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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Direito

José de Assis Santiago Neto

A FORMAÇÃO INQUISITÓRIA DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO:


Análise a partir da construção legislativa do direito processual penal no Brasil

Belo Horizonte
2019
José de Assis Santiago Neto

A FORMAÇÃO INQUISITÓRIA DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO:


Análise a partir da construção legislativa do direito processual penal no Brasil

Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em


Direito da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais como requisito parcial para a obtenção
do título em Doutor em Direito Processual.

Orientadora: Professora Doutora Flaviane de


Magalhães Barros Bolzan de Morais

Co-Orientador: Professor Doutor Leonardo Augusto


Marinho Marques

Área de concentração: Direito Processual

Belo Horizonte
2019
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Santiago Neto, José de Assis


S235f A formação inquisitória do processo penal brasileiro: análise a partir da
construção legislativa do direito processual penal no Brasil / José de Assis
Santiago Neto. Belo Horizonte, 2019.
447 f.

Orientadora: Flaviane de Magalhães Barros Bolzan de Morais


Coorientador: Leonardo Augusto Marinho Marques
Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Direito

1. Brasil. [Código de processo penal (1941)]. 2. Processo penal -


Legislação - Brasil. 3. Inquisição. 4. Direito processual constitucional. 5.
Estado democrático de direito. 6. Inquisição. I. Morais, Flaviane de
Magalhães Barros Bolzan de. II. Marques, Leonardo Augusto Marinho. III.
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-
Graduação em Direito. IV. Título.

CDU: 343.1
Ficha catalográfica elaborada por Fernanda Paim Brito - CRB 6/2999
José de Assis Santiago Neto

A FORMAÇÃO INQUISITÓRIA DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO:


Análise a partir da construção legislativa do direito processual penal no Brasil

Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em


Direito da Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais como requisito parcial para a obtenção
do título em Doutor em Direito Processual.
Área de Concentração: Direito Processual

__________________________________________________________________________
Professora Doutora Flaviane de Magalhães Barros Bolzan de Morais (Orientadora – PUC
Minas - UFOP)

__________________________________________________________________________
Professor Doutor Leonardo Augusto Marinho Marques (Co-Orientador - UFMG)

__________________________________________________________________________
Professor Doutor Claudio Roberto Cintra Bezerra Brandão (PUC Minas – UFPE - DAMAS)

__________________________________________________________________________
Professor Doutor Lucas Alvarenga Gontijo (PUC Minas)

__________________________________________________________________________
Professor Doutor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR – PUC RS)

Belo Horizonte, 24 de maio de 2019


Dedico esse trabalho primeiro à minha família, a quem devo tudo que sou;
Aos professores Doutores Flaviane e Leonardo Marinho, exemplos a serem seguidos;
Àqueles que acreditam e lutam por um processo penal democrático;
Ao Alviverde das Minas Gerais, simplesmente por existir;
Aos meus alunos e ex-alunos, esperança de tempos melhores;
À PUC Minas, porto seguro e democrático em tempos sombrios.
AGRADECIMENTOS

Agradeço Primeiro a meus pais, José Marcos e Andréa, exemplos e fontes de


constante inspiração na busca de um mundo melhor;
Ao meu irmão e braço direito, Felipe por todo apoio incondicional; À minha irmã
Flávia;
Aos professores Flaviane de Magalhães Barros, Leonardo Augusto Marinho Marques,
Cláudio Brandão, Lucas de Alvarenga Gontijo e Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, pelas
críticas e considerações que muito contribuíram para o trabalho, e por tudo o que fazem e
representam para o Direito brasileiro;
Aos meus professores e amigos, em especial Guilherme José Ferreira da Silva (em
memória), Luciano Santos Lopes e Felipe Martins Pinto, (i)responsáveis por eu ser professor.
Aos companheiros de advocacia do Santiago & Associados Advocacia, por
compreenderem minha ausência e compartilharem a dor e a delícia da luta pelo Direito;
Ao Sultanato Secreto de Betim, pelo compartilhamento de discussões jurídicas e não
jurídicas;
Ao Centenário de Minas, simplesmente, por existir.
Aos meus alunos, por estimularem a dúvida e o crescimento no dia a dia.
À PUC Minas, por me oportunizar a docência e a vida acadêmica.
A todos que de alguma forma contribuíram, muito obrigado!
E o fascismo é fascinante
Deixa a gente ignorante e fascinada
(Humberto Gessinger – Engenheiros do Hawaii – Toda Forma de Poder)
RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo analisar a história das instituições do processo penal
brasileiro para desvelar as raízes da inquisitoriedade que domina seus sujeitos. Tal
inquisitoriedade impede a aplicação da lei processual penal em conformidade com o modelo
constitucional de processo e o Estado Democrático de Direito. Para tanto, foi realizado um
estudo histórico através das grandes eras da história das instituições para reconstruir o
processo penal brasileiro partindo de sua construção legislativa e, consequentemente
demonstrar que nossa legislação processual penal sempre teve a inquisitoriedade como
característica, possuindo influências inquisitórias desde suas mais remotas origens. Assim, no
capítulo inaugural são estabelecidas as bases teóricas para a compreensão do trabalho e
determinar as características de um processo penal de partes para contrastá-lo com o sistema
inquisitorial. Na sequência, é estudado o desenvolvimento das bases do processo penal
brasileiro, partindo de suas referências legislativas para construir suas origens através da
legislação de cada período e do contexto de sua época. O objetivo da análise histórica
realizada não é apenas o de um olhar para o passado, mas justificar os caminhos percorridos
pelas instituições para analisar a reforma do Processo Penal e através desses caminhos
estabelecer suas características que se repetem ao longo da história de suas instituições e
fomentam a manutenção inquisitória desde sua origem e que devem ser mudados para
estabelecer um processo penal em conformidade com as exigências da Constituição de 1988.
Essa mudança necessita mais que uma reforma superficial, que mude o processo penal para
deixá-lo como sempre foi, mas de uma refundação que atinja suas bases fundamentais.

Palavras Chave: Processo penal. Inquisição. Processo constitucional.


ABSTRACT

The present work has the objective of analyzing the history of the institutions of the Brazilian
penal process to unveil the inquisitorial roots that dominates the procedural actors. Such
inquisitorial process prevents the application of criminal procedural law in accordance with
the constitutional model of procedure and the Democratic State of Law. In order to do so, a
historical study was carried out through the great eras of the history of the institutions to
reconstruct the Brazilian criminal process starting from its legislative construction and,
consequently, demonstrate that our criminal procedural legislation has always had the
inquisitorial model as its characteristic, possessing inquisitive influences from its most remote
origins. Thus, in the first chapter the theoretical bases are established for the understanding of
the work and determine the characteristics of a criminal process of actors to contrast it with
the inquisitorial system. In the sequence, the development of the bases of the Brazilian penal
process is studied, starting from its legislative references to build its origins through the
legislation of each period and the context of its time. The objective of the historical analysis
carried out is not only to look at the past, but to justify the ways in which institutions have
gone to analyze the reform of the Criminal Procedure, and through these paths to establish
their characteristics that are repeated throughout the history of their institutions and foster the
inquisitorial maintenance since its inception and that must be changed to establish a criminal
procedure in accordance with the requirements of the 1988 Constitution. This change requires
more than a superficial reform, but a real new start to change its fundamental bases.

Key words: Penal process. Inquisition. Constitutional process.


RIASSUNTO

La presente tesi ha lo scopo di analizzare la storia delle istituzioni del processo penale
brasiliano per svelare le radici dell‘inquisitorietà che domina i suoi soggetti. Tale
inquisitorietà impedisce l‘applicazione della legge processuale penale in conformità con il
modello costituzionale del processo e lo Stato Democratico di Diritto. A tal fine, è stato
condotto uno studio storico attraverso le grandi fasi della storia della istituzioni per ricostruire
il processo penale brasiliano a partire dalla sua costruzione legislativa e, di conseguenza
dimostrare che la nostra legislazione processuale penale ha sempre avuto l‘inquisitorietà come
caratteristica, e ha influenze inquisitorie dalle sue origini più remote. Dunque, nel capitolo
iniziale vengono stabilite le basi teoriche per la comprensione di questo lavoro e per
determinare le caratteristiche di un processo penale di parti per paragonarlo con il sistema
inquisitoriale. Di seguito viene studiato lo sviluppo delle basi del processo penale brasiliano a
partire delle sue referenze legislative per costruire le sue origini attraverso la legislazione di
ogni periodo e del contesto dell‘epoca. L‘obiettivo dell‘analisi storica fatta non è solo quello
di fare uno sguardo al passato, ma di giustificare i percorsi fatti dalle istituzioniper analizzare
la riforma del Processo Penale e attraverso questi percorsi stabilire le sue caratteristiche che si
ripetono lungo la storia delle sue istituzioni e fomentano la manutenzione inquisitoria dalla
sue origini e che devono essere cambiati per stabilire un processo penale in conformità con le
esigenze della Costituzione del 1988. Questo cambiamento ha bisogno di più di una riforma
superficiale che cambi il processo penale per lasciarlo come è sempre stato, ma di una
ricreazione che colpisca le sue basi fondamentali.

Parole chiavi: Processo penale. Inquisizione. Processo costituzionale.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 21
2 SISTEMAS PROCESSUAIS E O PROCESSO PENAL DE PARTES CONSTRUÍDO
PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988........................................................................................ 25
2.1 Estabelecendo as premissas e conceitos fundamentais .................................................. 25

2.2 A busca dos fundamentos do processo penal e a quebra da bipartição entre sistema
acusatório e inquisitório ......................................................................................................... 40

2.2.1 Sistema inquisitorial ........................................................................................................ 46

2.2.2 Sistemas processuais de partes em contraditório ........................................................... 55

2.3 O procedimento inquisitorial como instrumento de perseguição e neutralização do


outro ......................................................................................................................................... 71

2.4 O Processo Penal de Partes na construção comparticipada da decisão processual no


paradigma do Estado Democrático de Direito na tutela de direitos fundamentais.......... 73

3 SISTEMAS PROCESSUAIS E SUA ORIGEM NO DIREITO ROMANO .................. 87


3.1 O estudo histórico do direito e a historiografia de grandes eras: a (re)construção dos
sistemas processuais através do tempo ................................................................................. 87

3.2 O procedimento penal na monarquia: o berço do modelo inquisitório ....................... 92

3.3 O processo penal na fase republicana: o nascimento do modelo acusatório ............... 99

3.4 O Principado e a retomada inquisitória ....................................................................... 111

3.5 O absolutismo romano no período do Dominato e o aperfeiçoamento do modelo


inquisitório: o surgimento da justiça penal eclesiástica e a transição para a idade média
................................................................................................................................................ 121

4 A IDADE MÉDIA: DOS JUÍZOS DIVINOS À INQUISIÇÃO ECLESIÁSTICA ..... 127


4.1 Processo Penal na Alta Idade Média e os julgamentos dos deuses ............................ 129

4.2 Processo penal na Baixa Idade Média: a inquisição religiosa-estatal ........................ 140

5 PROCESSO PENAL NAS ORDENAÇÕES PORTUGUESAS: A INQUISIÇÃO


ESTATAL E A UNIÃO SECULAR-ECLESIÁSTICA .................................................... 187
5.1 Ordenações Afonsinas (1446-1521) ............................................................................... 190

5.2 Ordenações Manuelinas (1521-1569) ............................................................................ 196


5.3 As compilações de Duarte Leão (1569-1603) ............................................................... 204

5.4 Ordenações Filipinas (1603-1824)................................................................................. 207

6 O CÓDIGO DE PROCESSO PENAL NAPOLEÔNICO: O NASCIMENTO DA


INQUISITORIEDADE TRAVESTIDA DE SISTEMA MISTO..................................... 219
6.1 O sistema inquisitorial travestido: o “sistema misto”................................................. 234

7 O PROCESSO PENAL FASCISTA E O RESGATE DO MODELO NAPOLEÔNICO:


A MANUTENÇÃO INQUISITÓRIA ................................................................................ 241
7.1 A ascensão do fascismo .................................................................................................. 242

7.2 O fascismo e o processo penal de seu tempo ................................................................ 244

8 O PROCESSO PENAL BRASILEIRO .......................................................................... 267


8.1 O processo penal imperial e a reprodução inquisitorial-napoleônica no Código de
Processo Criminal de 1832 .................................................................................................. 271

8.1.1 O Código de Processo Penal de Primeira Instância (1832) e a reprodução do modelo


inquisitóral-napoleônico ........................................................................................................ 276

8.2 O Brasil república e as constituições republicanas: a desvalorização dos direitos


fundamentais e as portas abertas para a manutenção inquisitória ................................. 287

8.3 A reviravolta proporcionada pela Constituição de 1988: a adoção do processo penal


de partes e a impossibilidade da manutenção do Código de Processo Penal inquisitorial –
o período de reformas pontuais incapazes de mudar a estrutura e a cultura ................ 350

8.3.1 A inadequação de um código ditatorial ao regime democrático e a necessidade de um


novo Código de Processo Penal em conformidade com as exigências democráticas ........... 392

9 A REFORMA PROCESSUAL PENAL NO BRASIL, ANTES TARDE DO QUE


NUNCA! ................................................................................................................................ 401
9.1 A reforma tardia do Código de Processo Penal brasileiro e as bases do projeto de
reforma .................................................................................................................................. 401

9.2 Além da reforma: o Estado pós democrático e a manutenção do processo inquisitório


................................................................................................................................................ 413

10 CONCLUSÃO ................................................................................................................. 419


REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 425
21

1 INTRODUÇÃO

O processo penal brasileiro vive entre a inquisitoriedade estampada no Código de


Processo Penal e a acusatoriedade trazida pelo texto constitucional. É um verdadeiro monstro
de duas cabeças, onde a mais forte prevalece e acaba dominando a mais fraca. No caso, a
cabeça mais forte e, portanto, a que prevalece, é a do Código vigente que, auxiliada por uma
mentalidade inquisitória forjada por séculos de influências inquisitoriais se mantém viva ainda
que a Constituição tenha adotado a separação das funções de acusar, julgar e defender, e
princípios como o da presunção de inocência, devido processo legal, juízo natural,
contraditório e ampla defesa (argumentação).
Esse contexto de prevalência de um modelo que vai em sentido oposto àquele
estabelecido pela constituição tem, ao nosso sentir, dois fatores preponderantes: Um teórico,
pela ainda grande influência da teoria da relação jurídica no direito processual pátrio, que
possibilita o protagonismo do julgador e coloca as partes como meros espectadores que
ocupam posição de inferioridade no monólogo procedimental. E, de outro lado, as influências
históricas que nos foram trazidas desde o império romano até os dias atuais de um modelo
inquisitório, ou, em outras palavras, pela falta de vivência acusatória que possibilitou a
formação de uma cultura e uma mentalidade inquisitoriais e não nos permitem ver além do
modelo conhecido. Juntemos a isso a pouca duração de regimes democráticos no Brasil, que
tem sua história contada entre golpes e ditaduras passando por períodos curtos de democracia,
o que faz com que se dê pouco valor à construção democrática.
Visando comprovar a hipótese levantada, o trabalho foi dividido em nove capítulos,
sendo que, no primeiro, foram estabelecidas as bases teóricas que serão úteis para o
desenvolvimento dos oito capítulos que se seguem, cujos seis capítulos seguintes possuem
viés histórico e têm como objetivo analisar como o sistema inquisitório se adaptou a cada
época e como serviu a cada modelo de Estado, desde o império romano, precursor do modelo
absolutista, até sua sobrevivência nos tempos atuais impedindo a efetiva construção do Estado
Democrático de Direito.
Assim, no primeiro capítulo, parte-se da definição kantiana de sistema e da concepção
de processo enquanto procedimento desenvolvido em contraditório para apresentar
características dos sistemas processuais, partindo da premissa que a dicotomia entre sistema
acusatório e inquisitório é equivocada, uma vez que não apenas o sistema acusatório seria
digno da designação ―processual‖ eis que estabelecido em contraditório, enquanto o sistema
inquisitório seria mero sistema procedimental. Assim, foram separarados os sistemas entre
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sistemas processuais, onde há o protagonismo das partes, abordando o sistema acusatório e o


sistema adversarial e, de outro lado, o sistema procedimental inquisitório, no qual se verifica o
protagonismo do juiz.
Após definirmos sistemas, foi realizada uma incursão na história, baseando os estudos
em dois pilares, na história das grandes eras e na história das instituições, iniciando no
terceiro capítulo o estudo do direito romano, conjugando a análise entre a sociedade daquele
período e as suas instituições. Seguindo a sistematização de Sebastião Cruz, a história de
Roma, ao longo de seus treze séculos, foi dividida em quatro fases: a monarquia (753 a.C a
510 a.C); a república (510 a.C a 27 a.C); o principado (27 a.C a 284 d.C); e o dominato (284-
395 no ocidente e até 1453 no oriente).
As invasões bárbaras determinam o fim do império romano do ocidente, tendo o
império do oriente perdurado por mais de mil anos após a queda do irmão ocidental. Com a
queda do império romano do ocidente tem-se o início da idade média, que foi dividida em
dois períodos, a Alta Idade Média e a Baixa Idade Média, segundo as conotações clássicas.
Para o estudo do período medieval foi utilizada principalmente da obra de Jacques Legoff,
que apresenta um panorama social e político do período, bem como de outros autores que
traçaram este rico período histórico. Na alta idade média prevaleceu um processo penal
arraigado às tradições e culturas religiosas, onde as ordálias ou juízos de Deus e os duelos
eram os principais modelos de julgamento presentes durante esse período. Por sua vez,
durante a baixa idade média, a igreja católica se aliou aos crescentes estados absolutistas,
proibindo os juízos de Deus para adotar um sistema de protagonismo judicial inquisitório,
resgatado do império romano, no qual o julgador tinha em suas mãos a gestão da prova e a
decisão através de um modelo de prova tarifada e, sobretudo, empregando a tortura como
principal meio de obtenção da confissão. Na reconstrução do processo penal eclesiástico
medieval foram adotadas das lições de Franco Cordero, bem como de registros das bulas
inquisitoriais em seu texto original, visando reconstruir o sistema inquisitório medieval
através das normas que o forjaram em sua essência.
Após a construção do sistema inquisitorial eclesiástico se passou à análise dos reflexos
desse modelo na legislação e na formação dos Estados Nacionais absolutistas e na legislação
dos mesmos. Como o enfoque é a construção da mentalidade inquisitória no Brasil, foi feita a
opção por trabalhar com a legislação portuguesa que foi trazida da metrópole para a colônia
durante o período colonial. Nesse contexto, foram analisadas as ordenações Afonsinas,
Manuelinas e Filipinas, além da compilação de Duarte Leão, sempre com o enfoque em
destacar o sistema processual penal adotado e demonstrar a inquisitoridade presente em tais
23

textos que ainda mantiveram a ligação entre Igreja e Estado construída na Baixa Idade Média.
Outra fonte de influência no processo penal brasileiro foi o Código de Processo Penal
de Napoleão Bonaparte, editado em 1808, que influenciou toda legislação processual penal
em sua época, inclusive a brasileira, e modelos posteriores como o Código de Processo Penal
fascista, que foi fonte direta do vigente Código brasileiro. Assim, a incursão no sistema
napoleônico é obrigatória, sobretudo para demonstrar o engodo da construção de um suposto
sistema misto e que até hoje segue sendo reproduzida em várias normas e defendido por
inúmeros autores. Assim, o trabalho buscou estudar o modelo napoleônico com escopo de
desvelar a manutenção inquisitória que, através de um golpe de cena, ao dividir o processo
penal em uma fase inquisitorial e uma acusatória, proporcionou a manutenção do
protagonismo do juiz já que permitiu que os elementos colhidos inquisitorialmente fossem
usados na segunda fase que se tornou mero jogo de cartas marcadas, simulando a participação
da defesa mas que, na realidade, já estava definida desde a fase inicial.
Após o estudo da estrutura napoleônica se passou à análise do processo penal sob á
égide dos Estados Totalitários, que representam a face mais autoritária dos Estados Nacionais
e a mais violenta, responsável pela morte de milhares de pessoas. Nesse período o Estado
policial usou do processo penal como instrumento de controle, como toda ditadura fez, se
valendo do inquisitivismo e usando o modelo de Napoleão como fonte estrutural do
procedimento penal para manter o controle de seus atos e, consequentemente, para manter os
indivíduos sob seu mais rigoroso controle.
Na sequência da análise das bases que formaram o processo penal no Brasil, o trabalho
analisou a própria estrutura adotada no processo penal brasileiro através da abordagem da
análise da estrutura constitucional e infraconstitucional do processo penal pátrio, buscando
desvelar a forma inquisitória que sempre se fez presente na prática e na cultura processual
penal no Brasil. Buscou, ao final do capítulo, demonstrar a completa desconformidade da
norma infraconstitucional, inquisitória, com a Constituição de 1988 cuja base acusatória é
latente. Dessa forma foi demonstrado o quão autoritário sempre foi o processo penal brasileiro
e o quanto que isso dificulta a formação de uma cultura que se coloque de forma a construir
um processo penal de partes e em conformidade com o Estado Democrático de Direito.
Através da análise histórica, procurou-se discutir através da evolução legislativa
brasileira a formação de uma cultura inquisitória no processo penal brasileiro e estabelecer
caminhos para a reforma do processo penal que se encontra em curso no Congresso Nacional.
Apenas uma mudança legislativa não é, e nem será, suficiente para resolver o problema, além
de que a alteração do código, apesar de necessária, está sendo realizada em momento
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inadequado uma vez que antes de mudar a lei é imprescindível modificar a mentalidade dos
operadores do direito e da própria sociedade de forma a construir a cultura de que um
processo penal de partes é necessária à própria construção do Estado Democrático de Direito.
A falta de cultura democrática e acusatória refletiu no projeto de reforma, fazendo com que
elementos inquisitórios permaneçam vivos e estejam presentes no projeto de novo Código.
Por fim, foi traçado o panorama do crescimento do estado pós-democrático e seus
reflexos na construção de um modelo processual penal autoritário e inquisitorial, buscando
apontar caminhos para a restauração democrática e destacando a importância de se resgatar o
Estado Democrático de Direito.
25

2 SISTEMAS PROCESSUAIS E O PROCESSO PENAL DE PARTES CONSTRUÍDO


PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988

2.1 Estabelecendo as premissas e conceitos fundamentais

O Direito, como ciência criada pelo ser humano, destina-se a servir à própria
humanidade segundo suas necessidades e interesses, assim, possui linguagem própria e, como
tal, deve estabelecer com clareza os significados dos conceitos jurídicos utilizados e, os
sentidos nos quais os utilizamos. O direito, como construção humana que é, vem sendo
aplicado desde o início das primeiras formas de organização coletiva entre os seres humanos,
servindo aos interesses daqueles que detinham o poder e existindo antes mesmo de sua
sistematização científica. Desde o surgimento do Direito, foram adotados meios de aplicação
das normas e, portanto, processo. Assim sendo o processo, enquanto meio de aplicação do
direito, existe muito antes da ciência do direito processual, que, por sua vez é uma ciência
recente e visa a sistematização científica do processo através da organização de seus conceitos
e sistematização de sua história.
O surgimento tardio da ciência do Direito Processual é ainda mais sentido na ciência
do Direito Processual Penal, que, normalmente, recebe conceitos de outras áreas do Direito,
sobretudo do Direito Processual Civil e do Direito Penal que são adotadas à força e sem que
se verifique sua adequação teórica. Nesse sentido, Carnelutti (1950, p. 3-8) afirmou que o
Processo Penal seria a Cinderela do Direito, recebendo as roupas de suas duas irmãs, a ciência
do Direito Penal e a Ciência do Processo Civil. Essa transposição dos conceitos jamais
poderia dar certo, porém, ainda é realizada até os nossos dias. É preciso que cada uma das
ciências, do Direito Processual Penal, do Direito Processual Civil e do Direito Penal tenha sua
autonomia científica e conceitual, onde cada uma se construa de forma autônoma e segundo
seu próprio sistema de normas e conceitos próprios.
Nesse contexto, conforme afirma Aroldo Plínio Gonçalves (1992, p. 18-20), toda
ciência pode ser entendida como um conjunto de conhecimentos fundamentados, que tem
como objetivo desenvolver uma competência explicativa sobre determinada realidade. Segue
o processualista mineiro afirmando que a atividade essencial da ciência é a procura de
semelhanças não aparentes daquilo que se encontra fragmentado e disperso em algum plano
da realidade.
Aroldo Plínio Gonçalves (1992, p. 27-28) ao estabelecer as relações entre a ciência
26

jurídica e técnica jurídica afirma ainda que o direito é criado para ser aplicado, devendo haver
entre sua ciência e os procedimentos adequados para sua aplicação um indissociável liame
mutuamente realimentado e em constante construção e que colocaram em pauta as relações
entre direito ideal e direito positivo, entre o direito natural e o direito estatal, quando o que
estava em jogo eram os limites da intervenção social na liberdade individual.
Dessa forma, pouco adiantará o direito que somente existe nos livros e universidades
se ele não se fizer presente na vida das comunidades. Entretanto, o direito enquanto
construção humana e sujeito a interferências políticas está sujeito a sofrer influências de
interesses de grupos dominantes e refletir a vontade dos grupos dominantes sobre os grupos
dominados.
Rosemiro Pereira Leal (2016) ensina que o Direito é construído pela humanidade para
atender aos interesses de cada época, constituindo uma obra que guarda consigo a ideologia
dominante e prevalecente de seu tempo, de forma a regular os interesses dominantes. Nesse
contexto, o Direito Penal e o Direito Processual Penal representam a forma mais dura e cruel
de dominação daquela cuja ideologia prevalece em determinado tempo sobre aqueles que são
dominados.
Consoante assinala Geraldo Prado (2006, p. 2), não existe neutralidade em termos de
Direito e Processo Penal, eis que tais ramos do direito sofrem sérias influências políticas e,
quando o Direito Processual Penal sai da neutralidade morna dos manuais para a realidade do
dia a dia os conflitos se tornam ainda mais nítidos. Assim, conhecer o processo penal
demanda vislumbrar as razões políticas que ensejaram as escolhas realizadas em termos
processuais penais e, principalmente, quais interesses levaram a tais opções.
Dessa forma, como produção e a aplicação do direito é produto da criação humana,
devem-se buscar mecanismos para que a intervenção do Estado na vida dos indivíduos se dê
de forma legítima, estabelecendo, constitucionalmente, o direito e as formas de sua produção
para que não seja convolado em violência do mais forte sobre o mais fraco ou do Estado sobre
os indivíduos. Ou, nas palavras de Calmon de Passos:
Compreendido o direito como algo não dado aos homens pela natureza, mas por eles
produzido, revelou-se fundamental entender o processo de sua produção, que se
percebeu ter matrizes políticas, devendo, portanto, para legitimar-se, adequar-se a
quanto estabelecido constitucionalmente para sua produção, em qualquer de seus
níveis. (CALMON DE PASSOS, 2004, p. 60)

Assim sendo, o direito, como obra humana carrega consigo toda a carga ideológica
daqueles que elaboraram suas normas, sendo utilizado como mecanismo de dominação
daqueles que detêm o poder em detrimento de uma maioria dominada. Com escopo de
27

camuflar tal face do direito e como forma de dar a ele aparente ar de neutralidade, figuras
míticas são criadas, como verdadeiros oráculos, como por exemplo, o ―legislador‖, que passa
a deter vontades próprias e a ocultar a vontade daqueles que efetivamente estão por detrás da
norma; a ―vontade da lei‖, que atribui vontade a uma criação inanimada; a ―jurisprudência‖,
que é citada e recitada em petições e obras jurídicas como fonte de um saber isento de críticas
e recheado de certezas; o povo seja como ícone (MÜLLER, 2011, p. 61) ou como instância de
legitimação (MÜLLER, 2011, p. 54) de um discurso a ser legitimado. No campo das ciências
criminais, seja no direito penal ou no processo penal, tal discurso é ainda mais claro, ao se
usar o ―legislador‖, a ―vontade da lei‖, a ―jurisprudência consolidada‖ e a ―vontade do povo‖
como fonte de legitimação de práticas punitivistas que resultam quase sempre em penas mais
duras e prolongadas ou em supressão de garantias processuais. Seja no momento de sua
criação como no de sua aplicação o direito estará sujeito aos interesses e ideologias, seja do
criador da norma jurídica ou daquele que a interpreta para dar-lhe vida no caso concreto, seja
juiz, promotor, advogado ou qualquer outro que deva aplicar a norma jurídica ao mundo real.
Alberto Warrat afirma que:
A regra da imutabilidade do signo rejeita as transformações dos signos judiciais
impostos pela vontade de um sujeito, bem, como a famosa e estereotipada ―vontade
do legislador‖. Os juristas, é preciso ressaltar, admitem parcialmente esta
propriedade dos signos jurídicos, sobretudo como um recurso ideológico, para negar
às partes envolvidas no processo a possibilidade de alterar as presumidas certezas
significativas dos textos legais. Entretanto, por outro lado, negam totalmente essa
propriedade quando postulam a metafísica figura da ―vontade do legislador‖ ou de
uma misteriosa vontade que vive de forma autônoma na lei. É preciso, portanto, que
os juristas ressaltem que a imutabilidade do signo coloca um limite histórico e social
no processo de significação. (WARRAT, 1995, p. 28)

Nesse contexto, tem razão Warrat (1995, p. 47) ao dizer que o Direito é uma
construção ideológica e compreender sua ideologia é fator fundamental da estrutura
conceitual contida em suas normas, para tanto, visando possibilitar uma análise histórica dos
sistemas processuais penais é importante esclarecer o sentido que trabalharemos com os
conceitos de sistemas e de processo, para possibilitar a compreensão exata daquilo que se
pretende dizer com o presente trabalho e que fique claro o sentido que foi dado à construção
histórica. Ainda nas pegadas de Warrat (1995, p. 84), é importante que as palavras devam ter
significação segundo seu contexto histórico, possibilitando a devida compreensão do texto
que será desenvolvido. O estudo dos sistemas processuais penais deve partir da compreensão
adequada e separada dos dois termos, para em um segundo momento serem trabalhadas as
características de cada um. Nesse contexto será desenvolvida a noção kantiana de sistema
como conjunto e o conceito de processo enquanto procedimento em contraditório para ao
28

estudar as características que formam cada um dos sistemas e demonstrar que somente os
sistemas processuais protagonizados pelas partes é que poderão ser rotulados como
processuais.
Dessa forma, foi adodata a definição kantiana de sistema1, uma vez que foi com a obra
de Kant que a teoria dos sistemas tomou forma articulada destinada ao salto de
desenvolvimento que teve no século XIX. Para Kant ―o sistema é o ideal para o qual deve
tender toda ciência; o sistema é um conjunto de proposições deduzidas de um único
princípio.‖ (LOSANO, 2008, p. 115). Para Kant é a unidade do princípio que fundamenta o
sistema, considerando sistema é ―um todo organizado finalisticamente, sendo portanto uma
articulação‖ (ABBAGNANO, 2012, p. 1076). Sobre o conceito kantiano de sistema, Tercio
Sampaio Ferraz Júnior afirma que sistema para o filósofo alemão seria uma ―relação entre o
todo e as partes, onde a retirada de uma só parte destrói ou modifica o todo como unidade
orgânica.‖ (FERRAZ JR. 1976, p. 12).
Em sua obra Crítica da Razão Pura, o próprio Kant afirma que entende por sistema ―a
unidade dos conhecimentos diversos sob uma ideia.‖, é, portanto, a unidade que forma o
sistema (KANT, 2015, p. 600). Os sistemas, segundo o filósofo alemão, são gerados pela
confluência de conceitos acumulados que com o tempo se aproximam na busca de se
completar (KANT, 2015, p. 601), sendo a filosofia o sistema de todos os sistemas (KANT,
2015, p. 603).
Assim sendo, em Kant, o sistema ―não é apenas um conjunto dedutivo de proposições,
mas um conjunto de proposições que deve ser deduzido de um princípio único‖ (LOSANO,
2008, p. 128). Dessa forma, podemos afirmar que para Kant sistema seria um conjunto
organizado de proposições que se aproximam visando se complementar e que podem ser
representadas por um princípio único, o princípio reitor.
Na seara do direito processual penal, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho ensina:
Por elementar, os diversos ramos do Direito podem ser organizados a partir de uma
idéia básica de sistema: conjunto de temas colocados em relação por um princípio
unificador, que formam um todo pretensamente orgânico, destinado a uma
determinada finalidade. (COUTINHO, 2001, p. 28)

Por sua vez, Camlin Marcie de Poli afirma:


O sistema se origina, primeiramente, da acumulação de dados (conceitos) não
especificamente ligados entre si, que constituem o material de construção que
possibilita traçar arquitetonicamente um todo, de acordo com os fins da razão.
Posteriormente, sobre esse acúmulo de dados, intervém o autor do sistema,

1
Em que pese a existência de outras concepções de sistemas, como a de Niklas Luhmann (2016) e outras tantas
oriundas de outras searas do conhecimento, porém a opção pela idéia kantiana se deu porque essa concepção
melhor se adequa à construção dos sistemas processuais penais na forma pela qual foi construído o trabalho.
29

organizando cada elemento segundo uma ideia. (POLI, 2016, p. 42)

Vê-se, pois, que o traço comum do conceito de sistemas passa por um conjunto.
Assim, sistema seria um conjunto de elementos que se aproximam e se aglutinam por
possuírem características comuns, unidos por um elemento central, que Kant denomina de
princípio reitor. Dessa forma, sistema jurídico seria o conjunto de normas jurídicas, regras e
princípios, que se ajuntariam através da identificação de seu conteúdo, através de um eixo
central que, como um imã atrairia para si todas as normas que se convergissem em relação a
ele e repeliria aquelas que lhe seriam contrárias.
Nesse contexto, o sistema jurídico é integrado por normas, sejam normas-regras ou
normas-princípios, que se aproximam para construir um todo comum, unidos pela
aproximação de suas características. A formação dos sistemas e sua adoção acabam por ser
reflexo direto dos interesses que se encontram por detrás da formação das normas de modo a
se adotar sistemas mais ou menos democráticos, mais ou menos garantidores de direitos
fundamentais, mais ou menos respeitadores da pessoa humana. Nesse sentido, os sistemas
totalitários representaram as maiores violações dos diretos humanos se configuram como
sistemas jurídicos, de outra parte, os sistemas democráticos, que buscam assegurar os direitos
fundamentais também são sistemas jurídicos. Nos dois exemplos, tratam-se da aproximação
das normas jurídicas que buscam a formação de um todo comum, restando claro que os
sistemas não são em si positivos ou negativos, o que os fazem bons ou maus são as normas
que os compõem, e, evidentemente, os interesses que levaram à construção dessas normas
jurídicas.
Porém, como as normas que fazem parte do sistema são criação humana, isso permite
que sejam escolhidas, segundo as conveniências e interesses, pela adoção de um sistema mais
democrático ou mais repressivo. Dessa forma, as normas que formarão o sistema, por serem
elaboradas em atendimento a interesses de grupos que detém o poder, acabam sendo
manipuladas para a construção de um sistema no formato que seja interessante a quem
determinou sua construção.
Por outro lado, no que toca ao conceito de processo, foi adotada a teoria que o define
como procedimento desenvolvido em contraditório, elaborada por Élio Fazzalari, que
provocou uma verdadeira revolução no Direito Processual ao romper com a tradição da
relação jurídica e propor um novo conceito de procedimento e de processo, agora baseado no
contraditório. A mudança proposta por Fazzalari veio ao Brasil pela obra do professor Aroldo
30

Plínio Gonçalves (19922), que afirma em seu livro ―Técnica Processual e Teoria do Processo‖
que o grau de racionalidade atingido pelos ordenamentos jurídicos atuais não mais admite a
decisão salomônica, inspirada nas qualidades pessoais do julgador, tal critério acabou sendo
substituído pela técnica de aplicação do direito através de uma estrutura normativa que
possibilita a aplicação racional do direito, permitindo maior segurança jurídica e evitando
deixar o direito ao critério de juízes mais ou menos preparados (GONÇALVES, 1992, p. 45-
46).
No direito processual atual, concebido como sistema normativo, o processo já não
pode mais ser reduzido a uma mera legitimação pelo procedimento, não porque se
deva dispensar as formas, mas porque o processo já não é mais um rito para
justificar uma sentença. A estrutura jurídica que permitiu o desenvolvimento do
conceito de processo construído sobre o contraditório é resultado de muitas
conquistas históricas. O procedimento desenvolvido em contraditório entre os
interessados na decisão final construiu-se não como uma forma de participação dos
jurisdicionais para justificar um ato interpretativo final do Estado, mas como
garantia da participação dos detentores de interesses contrapostos, em simétrica
paridade, para interferir na formação daquele ato. (GONÇALVES, 1992, p. 181)

Aroldo Plínio Gonçalves afirma a polissemia do termo procedimento, para destacar


que teoria da relação jurídica considerava o procedimento como mera sucessão de atos que
compunham o rito da aplicação do direito. Posteriormente, com base na teoria de Oskar
Bülow, se passou a diferenciar processo e procedimento através de critérios teleológicos
segundo os quais processo era um instrumento de atuação da jurisdição para a aplicação do
direito, o que possibilitava a adoção de finalidades do processo que eram estranhas ao direito,
os chamados escopos metajurídicos do processo, sendo que o procedimento seria a
exteriorização do processo, a forma externa do processo. Assim, Fazzalari buscou adotar um
critério lógico para diferenciar processo e procedimento, buscando a distinção não em
elementos finalísticos, mas dentro do próprio sistema jurídico. (GONÇALVES, 1992, p. 59-
68). Afirma Aroldo Plínio Gonçalves:
A diferença específica entre o procedimento em geral, que pode ou não se
desenvolver como processo, e o procedimento que é processo, é a presença neste do
elemento que o especifica: o contraditório. O processo é um procedimento, mas não
qualquer procedimento; é o procedimento de que participam aqueles que são
interessados no ato final, de caráter imperativo, por ele perpetrado, mas não apenas
participam; participam de uma forma especial, em contraditório entre eles, porque
seus interesses em relação ao ato final são opostos. (GONÇALVES, 1992, p. 68)

Nesse contexto, Fazzalari reformula o conceito de procedimento para redefini-lo como


uma sequência de atos regulados por normas nos quais a validade do anterior pressupõe a

2
A obra foi republicada em nova edição no ano de 2012, porém, como não houve alteração substancial do texto
optamos por trabalhar com a primeira edição.
31

validade do subsequente.

O procedimento de apresenta, em seguida, como uma sequencia de ―atos‖ os quais


são previstos e valorados pela norma.
O procedimento é, finalmente, formado por uma série de ―faculdades‖, ―poderes‖ e
―deveres‖: quantos e quais são as ―posições subjetivas‖ que é dado o desenho da
norma no discurso; e sendo cada um necessariamente ligados de modo que, por
exemplo, um poder cabe a um sujeitoquando um dever foi realizado, dele ou do
outro, e, a sua volta, o exercício daquele poder constitui i o pressuposto oara insurgir
um outro poder (ou faculdade ou dever).3 (FAZZALARI, 2005, p. 78, tradução
livre)

Assim sendo, a teoria fazzalariana constitui procedimento como uma sequência de atos
normativamente regulamentada, no qual a validade do ato final (provimento) dependerá da
validade e regularidade do ato precedente. Nas palavras de Fazzalari:
(...) o regime de validade e de eficácia de cada um dos atos do procedimento, e de
seu ato final, depende da regularidade ou da irregularidade do ato que o precede, e
influi na validade e na eficácia dos atos que lhe seguem (inclusive do ato final). Em
tudo isso é confirmada a validade teórica da noção de ―procedimento‖, e de sua
necessidade.4 (FAZZALARI, 2005, p. 80, tradução livre)

Em complemento, a lição de Aroldo Plínio Gonçalves:


O procedimento é uma atividade preparatória de um determinado ato estatal,
atividade regulada por uma estrutura normativa, composta de uma sequência de
normas, de atos e de posições subjetivas, que se desenvolvem em uma dinâmica
bastante específica, na preparação de um provimento. O provimento é um ato do
Estado, de caráter imperativo, produzido pelos seus órgãos no âmbito de sua
competência, seja um ato administrativo, um ato legislativo ou um ato jurisdicional.
(GONÇALVES, 1992, p. 102)

Ao alterar o conceito de procedimento, Fazzalari rompe com as teorias baseadas na


teoria da relação jurídica que estabeleciam procedimento como mera manifestação exterior do
processo, passando o procedimento, que outrora fora espécie de processo para seu gênero e
estabelecendo uma clara diferença entre processo e procedimento, a presença ou não do
contraditório. Dessa forma, a teoria fazzalariana permite a existência de procedimentos não
apenas no âmbito jurisdicional, como também no âmbito administrativo e legislativo,
procedimentos estes que, se qualificados pela presença do contraditório (participação daqueles

3
No original: ―Il procedimento se presenta, poi, come uma sequenza di “ati”, quali previsti e valutati dalle
norme.
Il procedimento va, infine, riguardato come uma serie di “facoltà”, “poteri”, “doveri”: quante e quali sono le
“posizioni soggettive” che è dato trarre dalle norme in discorso; e che risultano anch‟esse, e necessariamente,
collegate in modo che, ad esempio, um potere spetti ad um soggetto quando um dovere sai stato compiuto, da lui
o da altri, e, a sua volta, l‟esercizio di quel potere costituisca il pressuposto per l‟insorgere di un altro potere (o
facolà o dovere).‖ (FAZZALARI, 1996, p. 78).
4
No original: ―(...) il regime di validità ed eficácia di ciascun atto del procedimento, e di quello finale, risente
dela regolarità o irregolarità dell‟atto che lo precede, e influisce sulla validità e sull‟efficacia dell‟atto e degli
atti, dipendenti, che seguono (quello finale compreso). In tutto ciò è la conferma dela validità teórica dela
nozione di “procedimento”, dela sua necessità.‖ (FAZZALARI, 1996, p. 80)
32

que serão afetados pelo provimento) determinará a existência de processo jurisdicional,


administrativo ou legislativo. Aroldo Plínio Gonçalves ressalta que o procedimento legislativo
será sempre processo, pois ―sempre se realiza com a participação de parlamentares que
representam e reproduzem os interesses divergentes dos grupos e comunidades dos cidadãos‖
(GONÇALVES, 1992, p. 118).
O procedimento, conforme aponta Aroldo Plínio Gonçalves, não é uma atividade
simples que se exaure na prática de um único ato, o procedimento requer uma sequência de
atos disciplinados por uma série de normas que regem seu desenvolvimento (GONÇALVES,
1992, p. 108). O procedimento não é apenas uma sequência normativa de atos, pois como
esclarece o próprio autor mineiro, tal sequência deve obrigatoriamente pressupor que a
validade do ato seguinte tenha como pressuposto a validade de ato que o antecedeu.
Assim sendo, Fazzalari prevê o procedimento como sendo uma estrutura normativa na
qual o processo se realiza através da participação dialética e em simétrica paridade dos
destinatários do ato que será produzido. Mais uma vez nos valemos das palavras do autor
italiano para que possa explicar sua teoria:

Como repetido, o ―processo é um procedimento do qual participam (são habilitados


a participar) aqueles em cuja esfera jurídica o ato final é destinado a desenvolver
efeitos: em contraditório, e de modo que o autor do ato não possa obliterar as suas
atividades.
Não basta, para distinguir o processo do procedimento, o relevo que no processo tem
a participação de mais sujeitos, cujos atos que o constituem são movidos não
somente pelo autor do ato final, mas também por outros sujeitos. Como detectado,
quando se fala de procedimento ―plurissubjetivo‖ se refere ao esquema de atividade
em sequência, implementado por mais sujeitos, mas que se distingue do esquema do
verdadeiro e próprio processo. De resto, ninguém acredita que a participação do
privado consiste no pedido de licença de caça, e a participação do órgão consultivo
que fornece ao autor do provimento o próprio parecer transforme o procedimento em
processo. Ocorre alguma coisa de mais e diversa; alguma coisa que os observadores
dos arquétipos do processo nos permitem compreender. E é a estrutura dialética do
procedimento, isto é, precisamente, o contraditório.
Tal estrutura consiste na participação dos destinatários dos efeitos do ato final na
fase preparatória do mesmo; em simétrica paridade das suas posições; na mútua
implicação das suas atividades (destinadas, respectivamente, a promover e impedir a
emanação do provimento); na relevância das mesmas para o autor do provimento; de
modo que cada contraditor possa exercitar um controle – conspícuo ou modesto, não
importa – de escolhas, de reações, de controles, e deva sofrer os controles e as
reações dos outros, e que o autor do ato deva prestar contas dos resultados. 5

5
No original: ―Come ripetuto, il “processo” è un procedimento in cui partecipano (sono abilitati a participare)
coloro nella cui sfera giuridica l‟atto finale è destinato a svolgere effeti: in contradittorio, e in modo che
l‟autore dell‟atto non possa obliterar le loro attività.
Non basta, per distinguere il processo dal procedimento, il rilievo che nel processo vi è la participazione di più
soggetti, che cioè gli atti che lo costituiscono sono posti in essere non dal solo autore dell‟atto finale, ma anche
da altri soggetti. Come rilevato, quando si parla di procedimento “plurisoggttivo” ci si referisce allo schema di
attività in sequenza, poste in essere da più soggetti, ma lo si distingue dallo schema del vero e próprio processo.
Del resto, nessuno ritene che la partecipazione del privato consistente nella richesta della licenza di caccia e
quella dell‟organo consultivo che fornisce all‟autore del provvedimento il próprio parere trasformino il
33

(FAZZALARI, 2005, p. 82-83, tradução livre)

E sintetiza Fazzalari:
Existe, em resumo, ―processo‖ quando em uma ou mais fases do iter de formação de
um ato é contemplada a participação não só – e obviamente – do seu autor, mas
também dos destinatários de seus efeitos, em contraditório, de modo que eles
possam desenvolver atividades que o autor do ato deve determinar, e cujos
resultados ele pode desatender, mas não ignorar.6 (FAZZALARI, 2005, p. 83,
tradução livre)

Nesse contexto Fazzalari rompe com o conceito de processo desenvolvido pela teoria
da relação jurídica para estabelecer o contraditório como elemento central do processo. Essa
redefinição coloca em evidência o papel de super-parte do juiz na teoria da relação jurídica,
passando agora o protagonismo para as partes que, em contraditório, são responsáveis pela
construção participada da decisão.
A teoria do processo como procedimento desenvolvido em contraditório proporcionou
uma reviravolta em todo conteúdo do processo, sendo que redimensionou a estrutura
processual ao inserir o contraditório como seu eixo central, aumentando, dessa forma a
participação das partes na construção do provimento final. Nesse contexto, a decisão deixa de
ser obra exclusiva do julgador para passar a ser construída por aqueles que serão afetados pelo
provimento que, atuando em simétrica paridade, participam do processo em contraditório, o
que constituiria a legitimação das partes ao provimento. Dessa forma, estabelecer o conceito
de contraditório é essencial para a compreensão da teoria fazzalariana. Mais uma vez,
valemos-nos das palavras de Fazzalari:
A participação dos sujeitos no processo, enquanto possíveis destinatários da eficácia
do ato emitido, constitui, como se verá, a sua ―legitimação para agir‖. Onde e
quando, ao invés, da probabilidade de que não aconteça – se constata em um
processo concreto, que os participantes não são, sequer hipoteticamente,
destinatários do provimento final -, sobre tal constatação o processo se conclui, não
podendo prosseguir no rumo do seu êxito institucional; e a atividade processual já
desenvolvida, salvo aquelas que tenham a ver com a questão da ―legitimação para

procedimento in processo. Occorre qualche cosa di più e di diverso; qulache cosa che lósservazione degli
archetipi del processo consente di cogliere. Ed à la strutura dialética del procedimento, cioè appunto, il
contradittorio.
Tale struttura consiste nella partecipazione dei destinatari degli effetti dell‟atto finale alla fase preparatória del
medesimo; nella simmetrica parità delle loro posizioni; nella mutua implicazione delle loro attività (volte,
rispettivamente, a promuovere ed a impedire l‟emanazione del provvedimento); nella rilevanza delle medesime
per l‟autore del provvedimento: in modo che ciascun contradittore possa esercitare um insieme – cospicuo o
modesto non importa – di scelte, di reaziono, di controlli, e debba subire i controlli e le reazioni degli altri, e
che l‟altore dell‟atto debba tener conto dei resultati.‖ (FAZZALARI, 2005, p. 82-83)
6
No original: ―C‟è, insomma, “processo” quando in una o più fasi dell‟iter di formazione di un atto è
contemplata la participazione non solo – de ovviamente – del suo autore, ma anche dei destinatari dei suoi
effetti, in contraddittorio, in modo che costoro possano svolgere attività di cui l‟autore dell‟atto deve tener
conto; i cui resultati, cioè, egli può disattendere, ma non ignorare.‖ (FAZZALARI, 2005, p. 83)
34

agir‖, se consideram inutiliter gestae.


A essência do contraditório exige que dele participem ao menos dois sujeitos, um
―interessado‖ e um ―contra-interessado‖: sobre um dos quais o ato final é destinado
a desenvolver efeitos favoráveis e, sobre o outro, efeitos prejudiciais. 7
(FAZZALARI, 2005, p. 85-86, tradução livre)

Aroldo Plínio Gonçalves mais uma vez é esclarecedor ao comentar a teoria de


Fazzalari:
O processo começará a se caracterizar como uma ―espécie‖ do ―gênero‖
procedimento, pela participação na atividade de preparação do provimento, dos
―interessados‖, juntamente com o autor do próprio provimento. Os interessados são
aqueles em cuja esfera particular o ato está destinado a produzir efeitos, ou seja, o
provimento interferirá, de alguma forma, no patrimônio, no sentido de universum
ius, dessas pessoas. (GONÇALVES, 1992, p. 112)

A apropriação da obra de Fazzalari por Aroldo Plínio Gonçalves (1992) proporcionou


uma reviravolta na teoria do processo no Brasil, permitindo a revisão da teoria da relação
jurídica, ou, nas palavras de Flaviane de Magalhães Barros:
Assim, a apropriação feita por Gonçalves da obra fazzalariana permitiu a revisão da
teoria da relação jurídica processual. Fazzalari (1992), a partir de apropriações de
teorias dos direitos público e processual, revisitou os conceitos de processo e
procedimento, para estabelecer, por meio de um critério lógico de inclusão, que o
processo é uma espécie de procedimento, que se especifica em virtude da posição
dos afetados em relação à construção do provimento final, que, assim, se realizaria
em contraditório, isto é, com a garantia da participação em simétrica paridade dos
afetados na construção do provimento. (BARROS, 2009, p. 13)

Segundo a teoria fazzalariana, processo é espécie de procedimento realizado em


contraditório entre os interessados, sendo que, no processo jurisdicional os interessados são
denominados ―partes‖ (GONÇALVES, 1992, p. 113-114). Dessa forma, como assinala André
Cordeiro Leal (2002, p. 84), se o procedimento, como estrutura preparatória do ato estatal, é
estruturado pelo contraditório, tem-se o processo, de modo que poderemos ter procedimentos
sem que exista processo, mas jamais processos sem procedimento.
O contraditório, diz Fazzalari, é constituído por questões relativas às atividades
processuais das partes (FAZZALARI, 2005, p. 88), que deverão ser resolvidas através da
participação das partes com escopo de se chegar à decisão referente à questão posta e, em

7
No original: ―La participazione di soggeti al processo, in quanto stimati destinatari dell‟efficacia dell‟atto
emanando, constituisce, come si vedrà, la loro “legittimazione ad agire”. Ove e quando, invece, quella stima dia
risultato negativo – si constati cioè, in um concreto processo, che i partipanti non sono, neppure
hipoteticamente, destinatari del provvedimento finale – su tale contatazione il processo si conclude, non potendo
proseguire verso il suo esito istituzionale; e le attività processual già svolte, salvo quelle che abbiano, appunto,
riguardato la quaestio dela “legittimazione ad agire”m si considerano inutiliter gestae.
L‟essenza stessa del contraddittorio exige che vi partecipino almeno due soggetti, un “interessato” e un
“controinteressato”: sull‟uno dei quali l‟atto finale è destinato a svolgere effetti favorevoli e syll‟altro effetti
pregiudizievoli.‖ (FAZZALARI, 2005, p. 85-86)
35

última análise, à decisão final. Aroldo Plínio Gonçalves ensina que o contraditório não é
somente a participação dos sujeitos do processo, mas a garantia de participação em simétrica
paridade das partes a quem se destinam os efeitos do provimento final, nas palavras do citado
autor mineiro:
O contraditório não é apenas ―a participação dos sujeitos do processo‖. Sujeitos do
processo são o juiz, seus auxiliares, o Ministério Público, quando a lei o exige, e as
partes (autor, réu, intervenientes). O contraditório é a garantia de participação em
simétrica paridade, das partes, daqueles a quem se destinam os efeitos da sentença,
daqueles que são os ―interessados‖, ou seja, aqueles sujeitos do processo que
suportarão os efeitos do provimento e da medida jurisdicional que ele vier a impor.
(GONÇALVES, 1992, p. 120)

Até o desenvolvimento da teoria de Fazzalari, o contraditório era reduzido pela teoria


instrumentalista do processo aos simples atos de dizer e contradizer, como se bastasse que a
parte apresentasse seus argumentos e a outra seus contra-argumentos para que o princípio do
contraditório tivesse sido observado. A teoria do processo como procedimento em
contraditório remodelou a concepção de contraditório para adotar a ideia de participação em
simétrica paridade de armas no processo. Como diz Aroldo Plínio Gonçalves:
O contraditório não é o ―dizer‖ e o ―contradizer sobre a matéria controvertida, não é
a discussão que se trava sobre a relação de direito material, não é a polêmica que se
desenvolve em torno dos interesses divergentes sobre o conteúdo do ato final. Essa
será sua matéria, o seu conteúdo possível.
O contraditório é a igualdade de oportunidade no processo, é a igual oportunidade de
tratamento, que se funda na liberdade de todos perante a lei. É essa igualdade de
oportunidade que compõe a essência do contraditório enquanto garantia de simétrica
paridade de participação no processo. (GONÇALVES, 1992, p. 127)

No novo modelo de contraditório inaugurado por Fazzalari, o processo deixa de se ser


a mera bilateralidade de audiência para adquirir uma conotação mais ampla como um espaço
público procedimentalizado no qual as partes participam em simétrica paridade de armas da
construção do provimento. Nesse contexto, o contraditório é ampliado para a construção
comparticipada da decisão (BARROS, 2009, p. 18). Mais uma vez nos valemos dos
ensinamentos de Aroldo Plínio Gonçalves:
O princípio do contraditório, tecnicamente considerado, segundo expõe, se articula
em dois tempos essenciais: informazione, reazione, a primeira, sempre necessária, e
a segunda sendo eventual, devendo ser necessariamente garantida na possibilidade
de sua manifestação.
O juiz tem o dever de informar e de garantir que a informação seja dada, para que a
parte, querendo, possa intervir. E quando se diz querendo, pretende-se realçar que a
parte jamais poderia ser obrigada a praticar atos processuais que lhe são destinados,
podendo optar por suportar os eventuais ônus de sua omissão. Não se pode perder de
vista que o contraditório é a garantia, a possibilidade assegurada da participação das
partes em simétrica paridade, e uma garantia, considerada do ângulo do Estado, é
um dever, mas do ângulo do jurisdicionado jamais pode ser identificada como uma
coação, porque sempre será proteção assegurada pelo Direito. (GONÇALVES,
1992, p. 126-127)
36

Assim, o contraditório, com Fazzalari, deixa de ser o mero dizer e contradizer para
assumir um contorno mais amplo, abrangendo o direito de informação, reação, infuência e
não surpresa, e constituir uma garantia individual de participação na construção do
provimento como afirma Flaviane de Magalhães Barros:
Assim, tomando como base a noção de processo como garantia, o contraditório deve
ter seu conceito ampliado, de modo a ser compreendido como o espaço público
procedimentalizado para garantia da participação dos afetados na construção do
provimento. Assim, o contraditório tem como característica o princípio da
influência, no sentido de que as partes têm direito de influir argumentativamente nas
decisões do processo, ou seja, influir no desenvolvimento e no resultado do processo
(NUNES, 2007). A influência gera a garantia de não-surpresa, ou seja, de não ser
afetado por uma decisão sem participar de sua construção. Nesse sentido, a não-
surpresa somente pode ser retirada em casos excepcionais, mas o contraditório não é
suprimido e sim postergado. (BARROS, 2009, p. 18)

O juiz participa do contraditório sem ser contraditor, ou seja, o julgador detém papel
no espaço de construção do provimento, mas não ocupa o lugar de parte e nem poderá ser
uma delas. A substituição pelo juiz do lugar de uma das partes fulminaria o contraditório e
desnaturaria o próprio processo, porém sua participação como terceiro imparcial responsável
por garantir a simétrica paridade de participação entre os contraditores somente poderá se dar
se o juiz estiver participando da construção do provimento em conjunto com aqueles que
sofrerão seus efeitos. Ou, nas palavras de Aroldo Plínio Gonçalves:
Contudo, saliente-se, a participação do juiz não o transforma em um contraditor, ele
não participa ―em contraditório com as partes‖ entre ele e as partes não há interesse
em disputa, ele não é um ―interessado‖, ou um ―contra-interessado‖ no provimento.
O contraditório se passa entre as partes porque importa no jogo de seus interesses
em direções contrárias, em divergência de pretensões sobre o futuro provimento que
o iter procedimental prepara, em oposição. É essa oposição, essa contrariedade de
interesses, de que o provimento seja favorável a uma e desfavorável à outra, que
marca a presença das partes e que tem a garantia de igual tratamento no processo. O
contraditório não é, por isso, ―mera participação no processo‖. Essa era a ideia
originária do contraditório, quando a participação era concebida como o auge das
garantias processuais. Participação no processo têm todos os sujeitos do processo,
caso contrário não seriam ―sujeitos processuais‖. Entretanto, a participação em
contraditório se desenvolve ―entre as partes‖, porque a disputa se passa entre elas,
são elas as detentoras de interesses que serão atingidos pelo provimento.
O juiz, perante os interesses em jogo, é terceiro, e deve ter essa posição para
comparecer como sujeito de atos de um determinado processo e como autor do
provimento. Essa é uma garantia das partes, que se expressa tanto pelo princípio do
juízo natural, e não pós-constituído, tanto pelas normas que controlam a
competência do juiz. Investido dos deveres da jurisdição, o juiz não entra no jogo do
dizer-e-contra-dizer, não se faz contraditor. Seus atos passam pelo controle das
partes, na medida em que a lei lhes possibilita insurgir-se contra eles. Sublinhe-se,
nesse ponto, o profundo sentido do duplo grau de jurisdição como garantia dos
direitos processuais. O controle das partes sobre os atos do juiz é de suma
importância e, nesse aspecto, a publicidade e a comunicação, a cientificação do ato
processual às partes (que é, também, garantia processual) é de extrema relevância.
Entretanto, as partes não se colocam em combate com o juiz, nem este em
contraditório com as partes. Ele fala sempre pelo Estado, enquanto investido da
37

função jurisdicional, e os atos decisórios do processo têm o selo da imperatividade.


As partes exercem seu controle sobre ele, pelo remédio legal adequando à natureza
do ato, mas esse controle se dará sempre através do pedido de pronunciamento do
próprio poder judiciário, chamado a intervir para proteção dos direitos processuais.
(GONÇALVES, 1992, p. 121-122)

O contraditório, apesar de ser realizado apenas entre as partes, não exclui a


participação atenta do juiz, que tem a precípua missão de garantir a participação simétrica das
partes em contraditório, determinando que sejam adotadas todas as medidas para sua
implementação em grau máximo (GONÇALVES, 1992, p. 122-123).
A partir da adoção do contraditório como núcleo central do conceito de processo
jurisdicional, o juiz passa a estar vinculado ao contraditório e àquilo que as partes produzirem
em contraditório, uma vez que as partes são os afetados pelo provimento e, portanto,
responsáveis diretamente por sua construção em contraditório.
Vale ressaltar, entretanto, que nem todo procedimento será processo, bastando, para
tanto, que esteja ausente o contraditório do procedimento. O provimento, seja jurisdicional,
administrativo ou legislativo, poderá ter como atividade preparatória um simples
procedimento, sequência concatenada de atos e posições subjetivas dirigidos ao provimento
final, mas nem sempre terá a participação dos afetados em contraditório, mas será processo se
o procedimento tiver a participação dos envolvidos em contraditório. Como veremos no
próximo item, no processo penal teremos o processo de partes, que dividiremos em acusatório
e adversarial e o procedimento inquisitorial.
No processo penal, Fazzalari (2005, p. 245-246) aponta que o contraditório se instaura
e se desenvolve entre o ministério público, o imputado e a parte civil, colocando o ministério
público como parte do processo penal e essencial para o desenvolvimento do contraditório, eis
que estará junto da parte civil e em oposição em relação ao imputado, estabelecendo, dessa
forma, o contraditório entre as partes do processo penal. Ao ser colocado como parte
Fazzalari atribui ao Ministério Público faculdades, poderes, ônus e deveres processuais, uma
vez que atribui tais características às partes que exercem direito de ação no processo
(FAZZALARI, 2005, p. 419-421).
Dessa forma, o contraditório em Fazzalari tem sua essência na participação dos
sujeitos na construção do provimento, que, através da contribuição de cada um daqueles que
sofrerão os efeitos da decisão, ganhará legitimidade. Nesse contexto, todo processo demanda
ao menos duas partes antagônicas a fim de que seja estabelecido o contraditório, no caso do
processo penal, de um lado teríamos o Ministério Público (ou o querelante nos casos de ação
penal de iniciativa privada), titular da ação penal pública (art. 129, I, da CR/88), ou o
38

querelante, e, portanto seu autor, facultativamente, a vítima, como assistente da acusação, e de


outro o(s) acusado(s), implicando obrigatoriamente para tanto, que o Ministério Público aceite
seu papel de parte no processo penal e abandone de uma vez por todas o malfadado discurso
esdrúxulo de ser uma ―parte imparcial‖8, vez que o estabelecimento do contraditório demanda
a existência de pelo menos duas partes bem marcadas para garantir que o julgador seja
efetivamente o terceiro imparcial e não atue de forma a ocupar o lugar destinado à nenhuma
das partes.
Nesse contexto, Aroldo Plínio Gonçalves analisa expressamente o processo penal, para
concluir sobre a aplicação da teoria do processo como procedimento desenvolvido em
contraditório ao processo penal, vejamos:
No processo penal, os interessados no ato final são o acusado e o Estado, que atua
como parte, através do Ministério Público. Entre eles o contraditório se desenvolve.
As questões suscitadas em torno do argumento de que o Estado é também autor do
ato final resolvem-se pela essência do contraditório. Essa essência exige, como diz
FAZZALARI, que do processo participem pelo menos dois sujeitos, um interessado
e outro contra-interessado, um dos quais receberá os efeitos favoráveis e o outro os
efeitos desfavoráveis do ato final. O autor do ato final pode ser um dos
contraditores, mas o que o distingue, como autor do ato e como contraditor, é a sua
posição, nessa qualidade, de simétrica paridade em relação ao outro, ou aos outros
contraditores. A dupla atividade do Estado, como parte, através do Ministério
Público e como poder, que atua pelo órgão jurisdicional, não prejudica o processo se
nele há garantia do contraditório, e é exatamente a presença do contraditório, no
processo penal, que necessariamente o caracteriza como processo, que faz dele um
procedimento realizado em contraditório entre as partes. (GONÇALVES, 1992, p.
130)

O fato de o Estado ocupar duas posições no Processo Penal, uma como julgador, que
se dá através do órgão jurisdicional e, outra como parte, através do Ministério Público, não
torna o processo desigual. Porém, a confusão entre as duas funções do Estado, ou, como
acontece com frequência na vida quotidiana dos fóruns brasileiros, quando um dos entes
estatais invade a esfera de atuação do outro, sendo que os limites de atuação foram
constitucionalmente demarcados (COUTINHO, 2009b), torna o inexistente o contraditório e,
consequentemente, o próprio processo.
A quebra do discurso de ser o Ministério Público uma ―parte imparcial‖ e sua fixação
como parte é de estrema relevância à construção de um processo penal calcado na ideia de
contraditório, na qual as partes têm a missão de construir em contraditório a decisão. Somente
com partes bem definidas e exercendo com amplitude sua participação no processo é que se
garantirá que o juiz seja colocado em posição de imparcialidade, assegurando um julgamento

8
O próprio Carnelutti já dizia que a afirmativa de que o Ministério Público é uma ―parte imparcial‖ é um grave
equívoco em apontar o Ministério Público como imparcial, eis que, no Processo Penal o Ministério Público
deve constituir como o antagonista do defensor. (CARNELUTTI, 2007, p. 44)
39

justo e imparcial em conformidade com as exigências do devido processo legal. Além disso,
colocar o Ministério Público em posição de parte no processo penal faz com que o juiz seja
fixado no lugar de terceiro imparcial e fomenta a adoção de um sistema processual penal
acusatório. Por outro lado o discurso de que o Ministério Público seja imparcial o aproxima
da figura do juiz e fulmina a imparcialidade do julgador, levando à adoção de um sistema
inquisitório.
Nesse modelo, o processo penal acaba sendo um termômetro entre um regime
democrático e um regime não democrático, sendo que o estudo do processo penal em
conformidade com as exigências democráticas passa obrigatoriamente com o estudo dos
Sistemas Processuais Penais, eixo central do presente trabalho que pretende desvelar as razões
da manutenção inquisitorial na legislação brasileira e seus reflexos na construção da cultura e
da prática processual penal brasileira, em total dissonância da construção do processo penal
democrático e em conformidade com a Constituição de 1988. A escolha do modelo de
processo penal a ser adotado em uma nação reflete diretamente a forma escolhida para seu
governo, assim sendo, vê-se na história que governos autoritários primam pela adoção de
sistemas inquisitoriais enquanto modelos processuais de partes são adotados por Estados não
autoritários.
E é nesse contexto que ganha importância o estudo dos sistemas processuais penais,
vez que ―é só a partir da clivagem oriunda dessa discussão que brotará um sistema mais ou
menos democrático‖ (WEDY e LINHARES, 2015, p. 240). Assim, a discussão sobre os
sistemas processuais penais continua atual e consiste no estudo dos fundamentos do processo
penal, sendo certo que, quanto mais democrática é a sociedade mais autonomia é dada às
partes e maior seu protagonismo no processo criminal, tratando o acusado como sujeito de
direitos; quanto menos democrática e mais autoritária, maior será o protagonismo do Estado
representado pelo julgador e o acusado será tido cada vez mais como mero objeto do
procedimento.
Nesse contexto, partindo do conceito de sistema como conjunto de elementos unidos
por um núcleo comum e de processo como procedimento desenvolvido em contraditório é que
se buscará estabecer a distinção entre os sistemas processuais penais e quebrar a dicotomia
entre sistema processual acusatório e inquisitório, uma vez que somente o primeiro modelo
pode ser considerado sistema processual.
40

2.2 A busca dos fundamentos do processo penal e a quebra da bipartição entre sistema
acusatório e inquisitório

Após a definição de sistema jurídico enquanto conjunto de normas (regras e


princípios) que se aproximam por características comuns, seguindo a concepção kantiana de
que tal aglutinação se daria segundo um princípio reitor, e definir processo como
procedimento desenvolvido em contraditório, cumpre articular os dois conceitos para aplicá-
los ao processo penal e reconstruir a estrutura dos sistemas processuais penais. Dessa forma se
buscará desfazer a ideia de que haveria uma contraposição entre o sistema acusatório o
inquisitório, demonstrando que, na verdade, tal conflito não poderá existir eis que apenas o
sistema acusatório poderá ser tido por processual, não podendo o sistema inquisitório ser
tratado como processual (AROCA, 1997, p. 28-29), mas meramente procedimental. Assim, se
buscará pela teoria do processo como procedimento desenvolvido em contraditório, refletir e
justificar a ideia do processualista espanhol Juan Montero Aroca, que afirma:
O denominado processo inquisitivo não foi, e não pode ser, um verdadeiro processo.
Se este se identifica como actus trium personarum, no qual diante de um terceiro
imparcial comparecem duas partes parciais, situadas em pé de igualdade e com
pleno contraditório e levam um conflito para que aquele o solucione atuando o
Direito objetivo, algumas das características que indicaremos como próprias do
sistema inquisitivo levam indubitavelmente à conclusão de que esse sistema não
pode permitir a existência de um verdadeiro processo. Processo inquisitivo é uma
contradictio in terminis.
O chamado processo acusatório é sim um verdadeiro processo, porquanto nele existe
realmente um juiz imparcial e duas partes parciais que se enfrentam, mas nem todas
as características que são incluídas como próprios do sistema acusatório são
necessárias para que exista verdadeiro processo. Algumas dessas características são
necessárias poderiam ser modificadas ou suprimidas, sem que isso suponha o
desaparecimento do processo. Por exemplo, nada diz respeito a existência do
processo que o juiz seja profissional ou popular, o que o procedimento seja oral ou
escrito, mas se afeta a essência do processo que o juiz seja ao mesmo tempo o
acusador ou que o acusado não seja sujeito, mas objeto do processo. Portanto, dizer
processo acusatório é um pleonasmo, não pode existir verdadeiro processo se este
não é acusatório.9 (AROCA, 1997, p. 28-29, itálico no original, tradução livre)

9
No original: ―El denominado proceso inquisitivo no fue y, obviamente, no puede ser, un verdadero proceso. Si
éste se identifica como actus trium personarum, em el que ante um terceiro imparcial comparecen dos partes
parciales, situadas en pie de igualdad y con plena contradiicción, y plantean um conflicto para que aquél
solucione actuando el Derecho objetivo, algunos de los caracteres que hemos indicado como proprios del
sistema inquisitivo llevan ineludiblemente a la conclusión de que ese sistema no puede permitir la existencia
de um verdadero proceso. Proceso inquisitivo se reuelve así em uma contradictio in terminis.
El llamado proceso acusatorio sí es um verdadero proceso, por quanto em él existe realmente um juez
imparcial y dos partes parciales enfrentadas entre sí, pero no todos los caracteres que Suelen incluirse como
proprios del sistema acusatorio son necesarios para que exista verdadero proceso. Algunos de esos caracteres
podrían modificarse o suprimirse, sin que ello supusiera ka desaparición del proceso. Por ejemplo, nada dice
respecto de la existencia del proceso que el juez sea professional o popular, o que el procedimiento sea oral o
escito, pero sí afecta a la esencia del proceso el juez sea al mismo tempo el acusador o que el acusado non sea
sujeto sino objeto del proceso. Portanto, decir proceso acusatorio es um pleonasmo, pues no puede existir
verdadero proceso si éste no es acusatorio.” (AROCA, 1997, p. 28-29)
41

Em outra obra, Juan Montero Aroca afirma que é um grave erro cometido pela ciência
processual ao sustentar a existência de dois sistemas processuais penais, um acusatório e um
inquisitório, não existindo dois sistemas pelos quais se possa configurar o processo, mas dois
sistemas de atuação do direito penal pelos tribunais. Assim, segue o autor espanhol, o sistema
o sistema inquisitório não é, e nem nunca foi, um verdadeiro processo, uma vez que por
processo se exige a existência de um terceiro imparcial perante o qual comparecem duas
partes em igualdade e contraditório; por sua vez o sistema acusatório é um verdadeiro
processo, pois nele se verifica a existência do juiz (terceiro, independente e imparcial) e de
duas partes que se enfrentam em pé de igualdade e em contraditório. Desse modo, falar de
processo acusatório seria uma redundância, enquanto falar em processo inquisitório seria uma
contradição em termos. (AROCA, 2015)
O autor espanhol tem razão no que diz respeito a que o sistema inquisitório não pode
ser adjetivado de processual, contudo no que se refere à afirmativa de que apenas o sistema
acusatório possa receber essa qualidade não pode ser tida como uma afirmativa
completamente verdadeira. Verifica-se no processo penal uma verdadeira dicotomia entre os
sistemas processuais, aqueles que são demarcados pelo protagonismo das partes,
configurando verdadeiros sistemas de partes, portanto sistemas processuais, os quais podem
ser divididos entre acusatório e adversarial, e o sistema inquisitorial que não possui a
qualidade do contraditório e, por isso, é um mero sistema procedimental (procedimento), já
que se resume a uma mera sequência de atos em busca do ato final.
Consoante afirma Lorena Bachmaier Winter, o pocesso se identifica pela existência de
um terceiro imparcial, perante o qual as partes comparecem em igualdade e mediante
contraditório pleno, sendo que falar em processo inquisitório seria uma contradição em termos
e um pleonasmo falar em processo acusatório. Assim, o único modelo que mereceria a
alcunha de processo seria o modelo acusatório (WINTER, 2008, p. 24-25), entretanto,
entendemos que além o processo acusatório tem um irmão, com características semelhantes,
porém ainda assim essência diversa, o processo adversarial.
Em que pese inexistirem sistemas processuais penais puros, valendo o ensinamento de
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho de que ―todos os sistemas processuais penais
conhecidos mundo a fora são mistos. Isto significa que não há mais sistemas puros, ou seja,
na forma como foram concebidos‖ (COUTINHO, 2009b, p. 103), de tal assertiva, conclui-se
que se todos sistemas são mistos não há um sistema misto em sua natureza, mas sistemas nos
quais se sobressaem as características acusatórias ou inquisitórias. Ainda assim, é importante
o estudo das características de cada um dos sistemas, eis que a definição do sistema se dará
42

pelos elementos prevalecentes no modelo jurídico analisado. A referida construção de


modelos separados diz respeito a modelos hipotéticos e que resulta da generalização que do
estudo dos elementos de diversos ordenamentos jurídicos. Nesse sentido, vale o destaque de
Giulio Illuminati:
O que é certo é que a noção de processo acusatório como aquela contraposta a de
processo inquisitivo, é fruto de um exercício de abstração. A tradicional dicotomia
alude, com efeito, a dois modelos hipotéticos, que são o resultado de um processo de
generalização, realizado sobre a base de alguns elementos tomados dos
ordenamentos jurídicos existentes ou dos processos que podem ser historicamente
reconstruídos. Disso se deduz que não se trata da análise de um fenômeno
normativo, senão da melhor definição de uma escala de valores ideologicamente
orientada. Tanto é assim, que as características do sistema acusatório só se
identificam por uma contraposição às características do sistema inquisitivo, e vice-
versa: cada um desses modelos constitui um tipo de modelo ideal, que se situaria nos
extremos de um continum, dentro de cujas margens podem ser combinadas de
diversas formas, atendendo à múltiplas variáveis. 10 (ILLUMINATI, 2008, p. 136-
137, tradução livre)

Teresa Armenta Deu alerta que ―dificilmente encontraremos hoje em dia um modelo
acusatório, adversarial ou inquisitivo puro, como tão pouco um modelo misto realmente
existente‖11 (DEU, 2012, p. 21, tradução livre). Completando Lorena Bachmaier Winter
(2008, p. 13) afirma que não existem na história modelos que possam ser considreados
puramente acusatório ou puramente inquisitório.
Assim sendo, o objetivo do presente tópico é, abstraindo das origens dos sistemas, que
serão objeto de análise histórica, apresentar as características fundamentais de cada um,
partindo da divisão entre sistema inquisitorial e sistemas processuais, ou sistemas de partes,
que serão divididos entre acusatório e adversarial. A análise histórica é indispensável não
apenas para identificar as origens de cada sistema, mas principalmente para a compreensão
dos parâmetros de referência para a comparação entre eles, permitindo analisar os sistemas e
como evoluíram com o tempo e para formular um modelo que não repita os erros do passado
e que no qual se coloque cada sujeito em seu devido lugar (ILLUMINATI, 2008, p. 137).
Vale ressaltar, com Teresa Armenta Deu, que muito se escreve sobre sistemas processuais

10
No original: ―Lo que si es cierto es que la noción de proceso acusatorio como aquella contrapuesta a la de
proceso inquisitivo, es fruto de un ejercicio de abstracción. La tradicional dicotomia alude, en efecto, a dos
modelos hipotéticos, que son el resultado de un proceso de generalización realizado sobre la base de algunos
elementos tomados de los ordenamientos jurídicos existentes o de los procesos que pueden ser históricamemte
reconstruídos. De ello se deduce que no se trata del análisis de um fenómeno nomrmativo, sino más bien la
definición de uma escala de valores ideologicamente orientada. Tan es así, que los caracteres del sistema
acusatorio solo se identifican por contraposición a los caracteres del sistema inquisitivo y vice-versa: cada
uno de estos modelos consttuye um tipo o modelo ideal, que se situaria em los extremos de um continuum,
dentro de cuyos márgenes pueden combinarse de diversos modos, atendiendo a múltples variables.‖
(ILLUMINATI, 2008, p. 136-137)
11
No original: ―Difícilmente encontraremos hoy en dia um modelo acusatorio, adversativo o inquisitivo puro,
como tampoco un modelo mixto realmente homologable. ‖ (DEU, 2012, p. 21)
43

penais, sendo que os autores normalmente apresentam como opostos os sistemas adversarial /
inquisitivo e o sistema acusatório / inquisitivo (DEU, 2012, p. 20), porém, o sistema
acusatório e o sistema adversarial não se opõem ao sistema inquisitivo, pois, são categorias
diferentes e não se podem comparar sistemas propriamente processuais com um modelo
procedimental, sob pena de comparar estruturas completamente diferentes e que sequer fazem
parte do mesmo conjunto.
Vale destacar, com Lorena Bachmaier Winter (2008, p. 12) que não se trata de se
escolher entre o sistema acusatório ou inquisitório. Tal discussão seria irreal, uma vez que o
desenvolvimento das garantias fundamentais como contraditório, ampla defesa e
imparcialidade do juiz fazem do sistema inquisitório uma opção inválida. Porém, é necessário
identificar as características, sobretudo, porque é imprescindível abandonar toda carga
inquisitória do processo penal brasileiro que não permite o cumprimento do processo penal
traçado pela Constituição brasileira.
Nesse contexto, Giulio Illuminati lembra que concretamente a distinção entre os
sistemas acusatório e inquisitório se dá através da análise comparada cujos resultados
dependerão a identificação das características que devem ser consideradas essenciais para a
descrição de um ou do outro modelo. (ILLUMINATI, 2008, p. 137).
Consoante aponta Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, se a obediência ao devido
processo legal é uma imposição constitucional, como no Brasil (art. 5º, LIV), não há mais
espaço para um processo penal que não seja de partes, dentro de um sistema acusatório.
Valendo transcrever as palavras de Coutinho:
Vigente o devido processo legal (art. 5º, LIV, CR), não há espaço senão para um
processo de partes, dentro de um sistema acusatório. Aqui, os dois principais
caminhos impostos pela CR/88 e qualquer reforma processual para ter dignidade e
legitimidade constitucional deverá levar em consideração. Foi o que se tentou fazer
no Anteprojeto de reforma global de CPP realizado por Comissão Externa de
Juristas criada no âmbito do Senado Federal e ora em curso no Projeto nº 156/2009-
PLS. (COUTINHO, 2016, p. 11, itálico no original)

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (2001, p. 28; 2009c, p. 223), seguindo a matiz
kantiana de sistema, aponta que a diferença central entre o sistema acusatório e o inquisitório,
princípio reitor, é a gestão da prova. Assim sendo, será acusatório se a gestão probatória for
atribuída às partes e inquisitório se o juiz detiver o controle sobre as provas. Tal elemento,
consoante aponta o autor citado, é imutável, não podendo ser adotado de um sistema para o
outro, enquanto os demais elementos poderão migrar de um sistema para o outro sem
desnaturar o conjunto como um todo (COUTINHO, 2009c, p. 223), ou nas palavras do
professor paranaense:
44

A principal e única diferença definitiva remete à extrema concentração de poder nas


mãos do órgão julgador, no sistema inquisitório, o qual recolhe a prova (antes de
qualquer outro) e determina sua produção. Nele, o acusado é mero objeto de
investigação e por isso a regra é que seja decretada sua prisão cautelar, ficando,
assim, à disposição da instrução enquanto o verdadeiro ―objeto e meio de prova‖. De
certa forma, desaparece o cidadão; ou pode desaparecer.
No sistema acusatório, por outro lado, o juiz tem, primordialmente, a função de
―garante das regras do jogo‖, cabendo às partes apresentarem suas provas,
―licitamente obtidas‖, razão porque é imprescindível a paridade de armas. O acusado
é, assim, sujeito de direitos‖, pois pode se defender em posição de igualdade e
relação à acusação (logo, em liberdade: ganha expressão capital a ― presunção de
inocência‖, buscando apresentar o que lhe couber de favorável. (COUTINHO,
2009c, p. 224)

Nesse sentido, Leonardo Costa de Paula afirma que:


A gestão da prova, então, é algo que determina no processo a delimitação do poder
do Estado e das partes. Um processo em que o juiz tem poder instrutório, e aí não
importa se é supletivo ou não, se é complementar ou não, será um processo regido
pelo princípio inquisitivo. Caso o processo esteja pautado na separação da função
das partes de acusar, defender e julgar, o processo poderá ser identificado como
acusatório. Não é descurado destacar que se acusar e defender está na disposição das
provas, juiz não pode atuar como se parte fosse, isso é determinado no Direito
Processual Penal como norte de pensamento. (PAULA, 2017, p. 181)

Ter na gestão da prova o núcleo fundante de diferenciação entre os sistemas


processuais penais e atribuí-la às partes implica em estabelecer entre outros valores a pré-
ocupação de inocência e na carga de prova (AMARAL, 2017, p. 80). Nesse sentido, o
processo acusatório é tido como um sistema processual de partes, eis que é atribuída às partes
a gestão da prova e no juiz a figura de um garantidor dos direitos fundamentais do acusado
(CABRERA, 2016, p. 151).
Apesar de estarem corretas as afirmativas acima, a gestão da prova é um dos
elementos de cada um dos sistemas. É o principal e imutável, que convive no mesmo conjunto
(sistema) com outros elementos que determinarão o modelo adotado, porém, a diferença entre
os dois sistemas é mais ampla e possui outros elementos também importantes. O processo
penal, conforme o conceito de processo adotado no presente trabalho, apenas pode ser aquele
construído em contraditório. Dessa forma, a gestão da prova configura apenas uma parte de
um todo maior, a definição do sistema se dá não só pela gestão da prova, mas pela
determinação de qual dos sujeitos do processo é seu protagonista. Assim, em um sistema
processual o protagonismo do processo é das partes, a quem competirá a construção
comparticipada da decisão, em contraditório. Por outro lado, estaremos diante de um
procedimento inquisitorial quando o protagonista for o juiz. Nesse sentido, o próprio
professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho afirmou em texto mais recente:
45

Eis então, por que para o sistema ser acusatório, não basta tão só ter partes nele, mas
serem elas as protagonistas-mor do conhecimento, tenha ele a qualificação que tiver.
Se isso ocorre, o princípio é o dispositivo, nome, por sinal, sugestivo para o lugar
que ocupa e que elas, as partes ocupam. Doutra parte, se o protagonismo principal é
do próprio juiz (e não das partes), e ele é o protagonista-mor, o princípio
unificador/reitor/fundante é o inquisitivo. (COUTINHO, 2017, p. 58)

Ou, nas palavras de Geraldo Prado:


Como ao nosso juízo o princípio acusatório se distinguirá do inquisitivo não
somente em virtude da diferenciação forçada entre acusação e julgamento, portanto,
entre acusador e juiz, tarefas a cargo de sujeitos que não se confundem, entrará em
cena a problemática das maneiras de o imputado participar do processo. (PRADO,
2006, p. 120)

O processo penal é uma ótima forma de se medir o grau de democracia de um povo,


em uma relação de inversa proporcionalidade entre democraticidade e autoritarismo do
processo penal. Quanto mais autoritário for o processo penal menos democrático será o
Estado, quanto mais garantidor dos direitos fundamentais o processo penal, mais democrático
será o Estado. Nesse sentido, a definição do sistema adotado diz muito, ainda que não exista
sistema puro na atualidade, quanto mais autonomia for atribuída às partes, mais democrático
será o sistema, quanto maior o protagonismo do julgador, mais autoritário será o sistema.
Vale lembrar a lição de Mittermaier em obra publicada em 1848:
Quem estuda a história destas duas formas, terá a demonstração de quanto seus
desenvolvimentos pode influir a organização da sociedade política, e verá que onde
reina a democracia domina o processo por acusação. Com este regime, vê o povo em
qualquer acusação contra um cidadão um ataque perigoso à liberdade civil e
individual, e mostra-se receoso do poder, a quem pode esta acusação fornecer armas;
então esforça-se por aumentar, tanto quanto lhe é dado as garantias existentes contra
todos os abusos possíveis; não vê no processo criminal senão a questão política, e
despreza muitas vezes a questão puramente jurídica. A forma da inquirição pertence,
ao contrário, principalmente ao sistema monárquico; adquire todo o seu
desenvolvimento nos Estados em que o movimento das ideias políticas é refreado
por um poder ativo, central e que se leva ao infinito o impulso a agentes
subordinados que em seus sentidos distribui. Este poder supremo ordena a
investigação dos crimes no interesse da segurança e da ordem pública; por
instituições que são leis, guia os passos do juiz; e, conquanto submeta os fatos a um
exame, talvez demorado, porém profundo, conquanto obrigue o magistrado a seguir
sempre os meios legais; todavia a seus olhos, o processo penal não passa de um
simples negócio administrativo. É assim que na antiguidade, e sobretudo no tempo
das repúblicas, vemos predominar a forma da acusação, como também a vemos em
vigor no antigo direito germânico, enquanto o poder popular dá vida à instituição
dos Scabini; é assim, ainda que no Baixo Império Romano, pela primeira vez
aparecem instituições com um caráter inquisitorial e também que, na idade média, a
forma da inquisição esteve em vigor por toda a parte por onde o poder central tomou
mais incremento, e onde se considerava a pena como uma consequência do crime,
reclamada sobretudo pêlos [sic] interesses sociais. É fácil compreender agora por
que nas monarquias constitucionais, onde domina a necessidade de garantir as
liberdades individuais e civis, e em que se considera o processo criminal um meio de
opressão temível e possível, se manifesta uma tendência pronunciada em favor do
regime da acusação ou ao menos em alguma de suas formas particulares; em
46

consequência do que as legislações mais modernas têm tentado um sistema misto 12.
(MITTERMAIER, 1997, p. 34-35)

A definição clara das funções de cada um dos sujeitos processuais é de suma


importância para a definição do sistema adotado, assim em um sistema processual há a
distribuição clara das funções de cada um dos sujeitos, o acusador acusa, a defesa defende e o
julgador julga, cada um no seu espaço constitucionalmente demarcado, para usar a expressão
de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (2009b); enquanto no procedimento inquisitorial as
funções dos sujeitos, principalmente a de acusar e julgar, são absorvidas por um só sujeito, o
que não significa obrigatoriamente que não haverá três partes, mas que o juiz poderá avocar
para si a função das partes, sendo protagonista e ofuscando a participação daqueles que
deveriam construir dialogicamente a decisão. Nesse contexto, o processo acusatório-
adversarial o protagonismo é das partes que, comparticipadamente e em contraditório
construirão a decisão final, fruto do diálogo e do debate endoprocessual; já no modelo
inquisitório, o juiz será o protagonista, competindo a ele as funções de produzir provas e
julgar, colocando as partes como meros espectadores de seu monólogo solitário (SANTIAGO
NETO, 2015).
Adiante, serão traçadas as linhas características de cada um dos sistemas para, após
contextualizá-los historicamente e buscar demarcar os reflexos que tiveram na formação do
processo penal brasileiro com suas bases autoritárias.

2.2.1 Sistema inquisitorial

Atualmente, o termo inquisitivo vem ganhando um significado plenamente negativo,


sendo que a qualificação de uma acusação com tal adjetivo é imediatamente associada a
práticas medievais e que desrespeitam direitos fundamentais do acusado (WINTER, 2008, p
14).
O sistema inquisitório, regido pelo princípio de mesmo nome, tem por marca central o
protagonismo do julgador, que acumula em suas mãos a função de acusar e julgar, possuindo
poderes extremamente amplos (AROCA, 1997, p. 26) ou, como ocorre no Processo Penal
Brasileiro, substitui a parte acusadora na missão de comprovar a hipótese acusatória, muitas
vezes a substituindo por uma nova hipótese sequer produzida pelo acusador. Assim, como
visto, o protagonismo judicial, no sistema inquisitorial torna impossível a existência de

12
Em que pese Mittermaier apontar a existência de um sistema misto, como veremos tal sistema, em nossa
opinião, não passa de uma forma travestida do sistema inquisitório.
47

contraditório, eis que a decisão é exclusivamente do julgador que deixa as partes, ou muitas
vezes apenas o acusado, completamente impossibilitado de participar de sua construção.
Nesse sistema, a investigação ocorre por conta do Estado, característica essa que permanece
presente em modelos acusatórios até os dias atuais (WINTER, 2008, p. 31).
Luigi Ferrajoli chama de inquisitório ―todo sistema processual em que o juiz procede
de ofício à procura, à colheita e à avaliação das provas, produzindo um julgamento após
uma instrução escrita e secreta, na qual são excluídos ou limitados o contraditório e os
direitos da defesa‖ (FERRAJOLI, 2006, p. 520).
Kai Ambos (2008, p. 69) aponta que, no procedimento inquisitorial, o monopólio da
ação é exercido por apenas uma parte, o inquisidor, sendo o acusado mero objeto do processo.
Porém, como assinala Franco Cordero (1986, p. 47) não é correto dizer que o procedimento
inquisitorial seja um processo sem partes, tal sistema pode sim ter atores, porém, o julgador
detém poderes centrais que o colocam em posição de protagonista em detrimento das partes.
Valendo transcrever as palavras do professor italiano:
É falso que o método inquisitório equivalha a um processo sem atores: nas
ordenações criminais de 1670, monumento engenho inquisitorial, o monopólio da
ação é atribuída aos homens do rei (―O julgamento vai ser continuado, a pedido e
sob o nome de nossos promotores‖), embora na Itália o pretor a ação e o juiz, o
estilo é acusatório quando, desparecido uma instrução, tudo se resolve no debate. Ao
qualificar o processo não é somente a mecânica da primeira mudança. O autentico
destaque está no quadro psíquico, desenvolvido pela palavra: o velho ritual
destinado à contenda entre iguais, impõe um jogo limpo, para vencer o outro; no
qual os indivíduos não contam para nada, o imputado é apenas ―bete à aveu‖; não há
diálogo formalmente regulado quando se fala entre desiguais; em frente ao expoente
do sistema está um animal da confissão.13 (CORDERO, 1986, p. 47-48, tradução
livre)

O próprio Cordero (2018, p. 18) afirma que ―o inquisidor é um juiz ao qual a lei
confere um crédito ilimitado, e isto explica porque ao inquirido não é permitida a
interlocução‖. O inquisidor labora de forma ilimitada e calcado em certezas absolutas às quais
não há regras para que ele as confirme, deixando as partes de lado e impossibilitando a
formação dialógica da decisão.
Dessa forma, não se pode afirmar o procedimento inquisitório como um modelo sem

13
No original: ―È falso che método inquisitório equivalga a processo senza attore: nell‟prdonnance criminelle
1670, monumento dell‟ingegno inquisitoriale, il monopólio dell‟azione spetta agli hommes du roi („les procès
seront poursuivis à la diligence et sous le nom de nos procureurs‟); sebbene in Italia i pretore agiscano e
giudichino, lo stile à accusatorio quando, mancando um‟intruzione, tutto sai risolto nel dibattimento. A
qualificare i processi non è solo la mecânica della prima mossa. L‟autentico „clou‟ sta nel quadro psichico,
svelato dalle parole: i vecchi rituale destinati a contese tra eguali, imponevano um gioco pulito, a battute
alterne; qui gli individui non contano niente e l‟imputato è soltanto „bête à aveu‟; non hanno senso dialoghi
formalmente regolati quando parlano dei desiguali; davanti all‟espondente del sistema sta animale da
confessione.‖ (CORDERO, 1986, p. 47-48)
48

partes, pode tanto haver um procedimento sem partes como um procedimento no qual existam
partes definidas, porém, é o protagonismo do julgador que será a marca essencial do princípio
inquisitório, reitor do sistema inquisitorial.
O protagonismo do juiz traz consigo efeitos nefastos, sendo o primeiro deles a
anulação da função acusadora, que passa a ser exercida por um só sujeito, ficando essa função
nas mãos do próprio julgador, com o objetivo de garantir a persecução criminal ainda que ao
custo do sacrifício da imparcialidade (DEU, 2012, p. 22). A fusão das funções de acusar e
julgar em uma só pessoa é um dos pilares básicos do sistema inquisitório, sendo um dos
pontos de maiores críticas ao dito sistema, já que ataca um dos pilares da imparcialidade do
juiz (WINTER, 2008, p. 21). Vale salientar que o sistema poderá ser inquisitivo e ainda assim
ter formalmente a parte acusadora, o que marcará o sistema em estudo é a possibilidade de
que o julgador possa ocupar o lugar do acusador fazendo a acusação por conta própria ou em
conjunto. Vê-se que o sistema inquisitorial fulmina por completo qualquer possibilidade de
um julgamento imparcial.
Presume-se a culpa do acusado, que tem a ingrata missão de refutar a hipótese
construída pelo juiz-acusador. Nesse sentido, o pilar fundamental do processo penal, a
presunção de inocência resta completamente inexistente. Ainda que não se consigam provas
da acusação original, através da tortura se obterá a confissão de qualquer delito que se queira
e a consequente prova.
O procedimento inquisitório parte da premissa da confiança no julgador, o qual atuará
de ofício e de forma ilimitada na busca de uma pressuposta verdade. O trabalho do inquisidor
é solitário e secreto, sendo formalizado em atas que são o verdadeiro objeto de cognição, não
se julgam fatos, mas o conteúdo das atas que toma lugar do julgamento da prova através de
um modelo onde a cognição se dá de forma indireta. Nesse sistema, o órgão julgador é
permanente, ocupando posição de superioridade em relação ao acusado (POLI, 2016, p. 109),
sendo que nesse sistema se adota um modelo de juízes profissionais e permanentes (AROCA,
1997, p. 26). Valendo a contextualização para os modelos atuais realizada por Augusto Jobim
do Amaral:
O que se identifica com as práticas atuais de instrução probatória a cargo do
magistrado, estritamente, é a assunção de uma premissa absurda de que a dúvida (ou
descobrimento da verdade, dependendo do registro inquisitorial que seja visto) serve
para alavancar um prolongamento da tentativa de confirmação da hipótese
acusatória. O que se generaliza enfim é a fiabilidade concernente ao tipo de prova,
não aquela legalmente produzida pelo juiz. Subrrepticiamente, pode-se ler: se
aqueles elementos trazidos pelas partes não bastam, em rigor, as suas é que serão
provas suficientes. (AMARAL, 2017, p. 96, itálico no original)
49

Assim sendo, a primeira característica do sistema inquisitorial é a gestão probatória


concentrada nas mãos do juiz, a quem competirá a produção da prova (COUTINHO, 2001, p.
28; 2009c, p. 223) e, consequentemente a formação da própria hipótese acusatória,
trabalhando em um modelo fechado em si próprio e independente dos demais sujeitos
processuais. No sistema inquisitório
Muda a parte interna do juiz, já que ele se comportava de forma impassível na
contenda; oposto aos inimigos ocultos, o juiz se converte em órgão militante. Nasce
uma mística: descobre e elimina heresias ou delitos, combate potencias maléficas em
uma cruzada quotidiana; é mérito seu que o mundo não termine devorado pelo
diabo; se for neutro, seria cumplice do inferno e os escrúpulos são covardia.
(CORDERO, 2000, p. 21)

Leandro Gornicki Nunes (2017, p. 146) coloca a gestão da prova como característica
fundamental do sistema inquisitório, pois em razão da atividade probatória exercida pelo juiz
é que este produz provas a partir de suas íntimas convicções em busca de uma ―verdade real‖,
o que torna o jogo processual penal completamente desigual.
O inquisidor trabalha de forma solitária, como protagonista, usa do procedimento
como um monólogo, tal fato, aponta Franco Cordero, faz com que seu trabalho se torne
policialesco. O inquisidor trabalha para confirmar uma hipótese criada previamente aos fatos,
atuando de forma paranoica, produzindo o que Cordero denomina de primado da hipótese
sobre o fato. No procedimento inquisitório o fato pouco importa, importa o que o inquisidor
pensa que ocorreu, e que busca produzir evidências que confirmem. Ou seja, o procedimento
inquisitorial é marcado pelo quadro mental paranoico, nas palavras do próprio autor italiano
citado, em uma lógica deformada da própria realidade. (CORDERO, 1986, p. 51)
No sistema inquisitório inexiste espaço para a liberdade de acusação, adotando-se a
obrigatoriedade da ação penal, pois o juiz, como protagonista que é, se converte em acusador
e assume suas funções, nesse modelo o julgador se coloca em posição de superioridade em
relação ao acusado (POLI, 2016, p. 109), mero objeto do processo. Não há parte acusadora,
uma vez que o julgador toma seu papel processual, o juiz busca provas de ofício, partindo à
caça de provas que atendam ao sistema tarifado de apreciação da prova adotado pelo modelo
inquisitorial (AROCA, 1997, p. 26-27). Vale salientar que o procedimento inquisitório pode
ter a presença do acusador, porém, nas palavras de Leonardo Costa de Paula:
Se alguém do parquet se presta a enxergar o juiz atuando em seu nome deve ser
chamado de promotor público, cargo esse extinto em 1988, porque se o juiz está lá
para fazer o papel da acusação na falta do primeiro, é como se de assessor do juiz se
falasse, meirinho de um juiz inquisidor. (PAULA, 2016, p. 262)

No sistema inquisitorial o procedimento penal tem resultado definido de véspera,


50

sendo que o juiz trabalha buscando elementos que justifiquem a decisão que já tem em sua
mente. Já se sabe qual será a sentença, o que o inquisidor precisa é de apenas elementos que
façam com que a decisão ganhe contornos de alguma legitimidade e camufle todo
subjetivismo que ela oculta.
Trata-se, portanto de um jogo de cartas marcadas, onde os atos são teatralmente
orquestrados para conduzir a uma decisão previamente formatada, onde as chances das partes
modificarem a decisão são mínimas, para não dizer nulas. Não se tem partes onde o julgador é
o protagonista, ou, melhor dizendo, as partes acabam assumindo a postura de plateia para o
monólogo do juiz.
A imparcialidade do juiz requer que o juiz não seja parte, se o juiz se converte em
parte, indo em busca de provas, assumindo a investigação do delito, para valorar as provas
que produziu e proferir sua sentença, resta maculada a característica basilar de um processo: a
imparcialidade do julgador (WINTER, 2008, p. 22). Um processo sem um juiz imparcial, que
ocupa o espaço de uma das partes, impede a existência de participação dos sujeitos na
construção do provimento final, extermina o contraditório e faz tábua rasa da construção
comparticipada da decisão, em síntese, não podemos sequer falar em processo, mas em mero
procedimento.
Nesse contexto, o procedimento inquisitorial acaba sendo um modelo hipócrita, já que
a decisão já estaria preordenada, sendo todo procedimento voltado à confirmação daquilo que
racionalmente o inquisidor já havia projetado (COUTINHO, 2009b, p. 105). O inquisidor
trabalha em busca de elementos que confirmem a hipótese mentalmente criada por ele,
partindo do ponto de chegada para estabelecer o caminho que perseguirá, assim, vige no
sistema inquisitório o monismo interpretativo do julgador, que somente aceita uma única
interpretação do fato como verdadeira, aquela por ele criada em sua mente paranoica. É o
procedimento inquisitório um simulacro de julgamento, uma mera encenação simbólica para
aparentar um julgamento que aparentará uma decisão legítima. Nas palavras de Camilin
Marcie de Poli:
Por elementar, é necessário que o juiz seja mantido longe da atividade investigatória
e instrutória, pois esta é a principal característica do sistema inquisitório. Uma
estrutura que permite que a mesma pessoa atue na investigação, que recolha as
provas, e que as valore para emitir uma decisão viola claramente o princípio da
imparcialidade. Tal ocorrência transforma o processo em uma espécie de encenação
simbólica, tendo em vista que o juiz define a tese acusatória como verdadeira já no
momento em que decide ir atrás da prova. (POLI, 2017, p. 106-107)

Para comprovar sua hipótese, o inquisidor lança mão de todos os meios necessários,
inclusive a tortura para a busca da confissão, tendo em vista que no sistema inquisitório o
51

acusado é mero objeto do processo e vige o sistema das provas tarifadas, sendo certo que a
confissão é tida como a prova máxima, daí advém a expressão até hoje repetida de que a
confissão seria a rainha das provas. O inquisidor tortura os acusados livremente, eis que,
dentro de seu marco cultural pessimista o ser humano nasce culpado e como o mundo está
corrompido, bastaria escavar um ponto qualquer para fazer brotar o mal (CORDERO, 2000, p.
22-23).
O inquisidor trabalha enquanto quer, trabalhando secretamente sobre os acusados
que confessam; concebida a hipótese, sobre ela edifica as questões através da
intuição; a falta de debate contraditório abre um portal lógico ao pensamento
paranoico; tramas obscuras escondem os fatos. 14 (CORDERO, 2000, p. 23, tradução
livre)

No sistema em análise, o juiz-acusador em sua busca por elementos que comprovem


sua hipótese, principalmente da confissão do acusado, a prisão processual é a regra (AROCA,
1997, p. 26), sendo que se utiliza da prisão como forma de estimular a confissão e para
dificultar sua defesa, visando o sucesso da hipótese do juiz-acusador.
O inquisidor forma seu convencimento através da construção íntima de uma verdade
sobre os fatos e, partindo dessa verdade por ele construída, solitariamente, vai em busca dos
elementos que a justifiquem. Dessa forma, o inquisidor labora com a íntima convicção não
necessitando de fundamentar sua decisão. Como afirma Camilin Marcie de Poli ―a lógica
inquisitorial estava centrada na verdade absoluta, ela (a verdade) deveria ser defendida a
qualquer custo, sob o argumento da garantia da salvação e da vida eterna‖ (POLI, 2016, p.
97).
A busca da verdade como objetivo central do procedimento inquisitorial faza com que
o procedimento fosse iniciado de ofício, porque a ofensa da heresia era uma ofensa à Coroa
ou à Deus e, por isso, estava em jogo o interesse público, fosse do rei ou divino. Sendo Deus a
vítima, a prova não poderia refletir nada menos que a verdade (WINTER, 2008, p. 21). Nesse
contexto, a busca pela verdade é obsessiva, patológica, sendo essa uma característica
marcante do modelo inquisitivo (KALED JR., 2013, p. 49).
O julgamento inquisitorial é baseado em provas secretas, disponíveis apenas ao
inquisidor, principalmente provas testemunhais, às quais o acusado não tinha nenhum acesso,
sequer sabendo o nome daqueles que haviam testemunhado, já que a identidade das
testemunhas era mantida em sigilo (POLI, 2016, p. 95), sendo que a valoração das provas se

14
No original: ―O inquisidor labora mientras quiere, trabajando en secreto sobre los animales que confiesan;
concebida una hipótesis, sobre ela edifica cábalas inductivas; la falta de debate contradictorio abre un
portillo lógico al pensamiento paranoide; tramas alambicadas eclipsan los hechos.‖ (CORDERO, 2000, p.
23)
52

dá de maneira tarifada (POLI, 2016, p. 109). Há ainda que ser ressaltado que o procedimento
inquisitorial é escrito (formal), demorado e secreto (AROCA, 1997, p. 27).
Sem oralidade, o processo segue seu formato inquisitório, os seres humanos reais –
especialmente a vítima e o acusado – são absorvidos pela burocracia, onde,
inclusive, a presença dos atores jurídicos sequer é necessária, pois os procedimentos
criminais seguem seu curso normalmente, ainda que juízes, representantes do
Ministério Público e partes não estejam presentes. (NUNES, 2017, p. 150)

Por fim, o julgamento do inquisidor se dá através da gravidade do pecado e de sua


monstruosidade, sendo que o julgamento se dá através da imposição do medo e da propagação
do terror. O procedimento inquisitorial se configura em uma luta entre um suposto bem contra
um pressuposto mal, sendo este escolhido por aqueles que se autodenominam bons. A
acusação é formulada de ofício e denúncias secretas são admitidas em um procedimento
escrito (POLI, 2016, p. 109), nesse contexto, o procedimento inquisitório é formal.
O acusado no procedimento inquisitorial é mero objeto do procedimento, detentor de
uma verdade na qual julgador-acusador deveria extrair custe o que custar (POLI, 2016, p. 96),
para tanto podem ser utilizadas diversas formas de coação sobre o acusado, físicas ou
psíquicas com fins de obter a prova (WINTER, 2008, p. 20). Assim, o procedimento
inquisitorial que aglutina a função de acusar e julgar nas mãos do mesmo sujeito, também
anula completamente o acusado e sua defesa, sendo um modelo de uma só pessoa, o julgador,
que é o protagonista de um monólogo onde o acusado assiste atônito e sem lhe ser dada a
oportunidade de participar. O inquisidor é o responsável pela extração da verdade que o
imputado traz consigo, o herege-acusado possuiria em si uma verdade histórica e saberia dos
fatos como ninguém (POLI, 2016, p. 99). Nesse modelo, ―o acusado é um animal que deve
confessar e ser explorado a fundo‖15 (CORDERO, 2000, p. 23, tradução livre), não sendo o
acusado sujeito de direitos, mas mero animal do qual o juiz inquisidor deve extrair a confissão
e explorar, custe o que custar, seu interrogatório para buscar o máximo de informações que
possam confirmar a hipótese previamente formada.
Em razão disso, a prova do procedimento inquisitorial restou centralizada na
confissão, a busca da verdade (ainda que sob indução ou coação da tortura) é ponto central do
sistema inquisitorial. A prova da confissão é tão forte que ela, por si só basta para a
condenação, independentemente de outras provas (POLI, 2016, p. 100). Para a busca da
confissão, o sistema inquisitório passou a adotar a tortura que, apesar de repugnante, era útil e
necessária à estrutura inquisitória (POLI, 2016, p. 104). Essa busca, a todo custo pela
confissão, torna inútil o contraditório e a defesa (CORDERO, 1986, p. 49), o que, como

15
No original: ―El acusado es una bestia que debe confessar y ser explotada a fondo.‖ (CORDERO, 2000, p. 23)
53

afirmamos, impossibilita a existência de processo no modelo inquisitório.


Apesar de ser um sistema formal, o modelo inquisitorial utiliza de normas vagas,
abstratas, onde predomina a penumbra, as palavras insinuantes, armadilhas em um quadro
indefinidamente variável, adotando normas de tal forma flexíveis que acabavam por deixar as
mãos do inquisidor livres para conduzir o procedimento como lhe parecesse conveniente
(CORDERO, 2000, p. 23-24), assim sendo, a utilização de regras obscuras e abertas pode ser
tida como marca característica do procedimento inquisitorial. Nesse contexto, o procedimento
inquisitorial introduz regras probatórias que gozam de racionalidade, sobretudo baseada na
confissão, tida como prova plena e, normalmente obtida por tortura (WINTER, 2008, p. 19).
Buscava-se, da adoção de modelos racionais de prova ter o controle absoluto do material
produzido, de modo a comprovar a hipótese do inquisidor a qualquer preço, demonstrando aos
demais membros da coletividade que o inquisidor estava com a razão ao punir o acusado.
A prisão do acusado é a regra inquisitorial (POLI, 2016, p. 109) sendo que se usa da
prisão processual inclusive como forma de se fomentar a confissão dos acusados. Porém, é
bom ressaltar que essa busca desmedida da confissão se deve à adoção do sistema de provas
tarifadas, onde o valor da prova é previamente estabelecido e a confissão tem mais força que
as demais provas. No sistema inquisitório, a prisão preventiva do acusado por períodos longos
tem por escopo a utilização do mesmo de forma mais eficiente para a produção de provas que
servirão de embasamento para a sentença de condenação e, consequentemente para a pena
(THAMAN, 2008, p. 175).
A defesa tem a participação anulada no procedimento inquisitorial, sendo que são
concedidos prazos, normalmente brevíssimos, para apresentar suas conclusões, seguindo de
um julgamento público pelo qual o juiz pronunciará sua decisão, que não requer qualquer
fundamentação. O procedimento inquisitorial se mostraria um procedimento extremamente
eficiente se o objetivo fosse a obtenção de uma condenação rápida e exemplar.
(ILLUMINATI, 2008, p. 140)
A sentença do sistema inquisitório não faz coisa julgada, portanto, ainda que o
acusado fosse absolvido, poderia ser novamente processado pelos mesmos fatos a qualquer
tempo, bastando uma nova prova, ainda que oriunda da mente paranoica do inquisidor. Há no
procedimento inquisitorial o duplo grau de jurisdição, com a possibilidade do recurso de
apelação, que exerce dupla função no modelo inquisitorial, de um lado atua como uma
garantia do direito do acusado e de outro lado exerce uma forma de controle sobre o
procedimento aplicado pelo tribunal inferior (WINTER, 2008, p. 20).
Por fim, devemos salientar que o procedimento inquisitório tem aparência terapêutica,
54

a pena é um remédio, devendo o imputado cooperar com a apuração do delito. A lógica


inquisitória dispensa o exercício da ação, já que o próprio julgador realiza a acusação.
(CORDERO, 1986, p. 47)
Diante das características expostas, fica claro que o sistema inquisitório deforma o
próprio conceito de processo por tornar impossível a existência do contraditório. Assim,
concentra os poderes nas mãos do juiz que detém o saber e busca provar uma verdade
preestabelecida em sua mente paranoica. Dessa forma, não se pode sequer falar em ―processo
inquisitório‖ é uma contradição em termos, ou se tem processo ou se é inquisitório. Nesse
contexto, retomando a ideia inicial do presente capítulo, assiste razão a Juan Montero Aroca
(1997) ao afirmar que o modelo inquisitório não pode ser considerado um sistema processual,
bem como tal afirmação pode ser justificada através da teoria do processo como procedimento
desenvolvido em contraditório de Élio Fazalari ao desnaturar a idéia de processo quando esse
é desprovido do contraditório, como ocorre no sistema inquisitório.
O sistema inquisitorial acaba sendo um sistema que elege inimigos e, de forma
seletiva, busca justificar seu nenhum apego a garantias derivadas do devido processo legal,
buscando a punição do inimigo eleito através da comprovação da hipótese eleita secretamente
na mente do julgador. Nesse sentido, é válido o alerta de Geraldo Prado:
Garantias do processo, como a imparcialidade do juiz, a iniciativa acusatória distinta
da tarefa de julgar, a publicidade da produção das provas e dos argumentos das
partes, o contraditório, a adoção de critérios racionais de admissão e valoração dos
elementos probatórios e, o mais importante, a presunção de inocência, em todos os
tempos são obstáculos insuperáveis à condenação dos inimigos das pessoas de bem
que esteja fundada na convicção prévia de que estes demônios, bandidos que
atentam contra a nossa paz e tranquilidade, devem ser punidos independentemente
da demonstração de sua responsabilidade penal caso a caso. (PRADO, 2017, p. 3)

A eleição de inimigos faz do sistema inquisitorial um jogo sem juiz entre o acusador e
o inimigo, seja a bruxa, o demônio, o herege ou qualquer outro eleito como ―bandido‖ ou
contra quem quer que os interesses da época elejam para rotular e perseguir. Dessa forma é
criado um sistema maniqueísta resumido na luta do ―bem‖ contra o ―mal‖ ou daqueles que são
rotulados como bons cidadãos contra aqueles que são eleitos inimigos. Nesse contexto,
Augusto Jobim do Amaral (2017, p, 93) aponta que os inquisitorialismos têm no medo seu
principal vetor, justificando todo autoritarismo que lhe é próprio no medo do inimigo eleito,
sejam as bruxas, hereges, criminosos, ou quem os interesses assim etiquetarem segundo as
necessidades de dominação e de poder do respectivo momento histórico.
Por fim, vale ressaltar, com Geraldo Prado (2006, p. 105) que o procedimento
inquisitório tem por finalidade a realização do direito penal material, tendo todos os atos do
55

juiz a precípua função de aplicar o Direito Penal, ou, em outras palavras, o julgador passa a
exercer funções típicas de segurança pública no exercício da magistratura criminal.
O sistema inquisitório impede a democracia processual, eis que o inquisidor busca a
confirmação de uma ideia pressuposta, e que em razão disso impede a produção discursiva e
participada da decisão. Como explica Leandro Gornicki Nunes:
Em um contexto de violência (física ou discursiva), apenas o inquisidor terá algum
tipo de ―verdade‖ decorrente de um solipsismo – um ―vício em si mesmo‖
(selbsüchtiger) – que define o thema probandum e, consequentemente, o thema
decidendum. Portanto, sem democracia (igualdade material e discursiva entre os
sujeitos do processo), fica fulminada qualquer possibilidade de validação da verdade
no âmbito do processo penal. E, paradoxalmente, a partir do paradigma filosófico do
agir comunicativo (linguistic turn), o processo penal fundado no princípio
inquisitivo, onde o juiz é o gestor da prova, jamais revelará ―a‖ verdade, esse objeto
de desejo (fetiche) do inquisidor que, desde Carnelutti, sabe-se ser ―demais para
nós‖ (NUNES, 2016, p. 203)

Nesse contexto, o procedimento inquisitorial possui simetria com regimes autoritários,


o que não se dá de forma gratuita e nem mesmo se fixa nos regimes políticos, fazendo parte
da própria cultura dos povos (PRADO, 2006, p. 141). Nesse sentido, o procedimento
inquisitorial sempre esteve vinculado aos modelos autoritários, e serviu para a consolidação
de governos não democráticos durante toda a história, desde o império romano, os Estados
Absolutistas, o regime napoleônico, os regimes fascistas e nazistas, às ditaduras latino-
americanas. Dessa forma, esse modelo sempre esteve presente no processo penal brasileiro,
principalmente no vigente código de processo penal que foi forjado à imagem e semelhança
do código da Itália fascista e serviu à ditadura de Getúlio Vargas e à ditadura militar, não
servindo à democracia.
Apresentadas as características do modelo inquisitorial, se construirão as
características dos sistemas processuais, acusatório e adversarial, visando demonstrar que
nesses sistemas vigora o protagonismo das partes e há observância do contraditório, para na
sequência, buscar na evolução histórica do processo penal reconstruir o processo penal
brasileiro de suas origens inquisitoriais mais profundas, para demonstrar a pouca (ou
nenhuma) manifestação acusatória no Brasil.

2.2.2 Sistemas processuais de partes em contraditório

Segundo o que foi dito, o processo é espécie de procedimento qualificado pela


presença do contraditório. Desse modo, a existência de um sistema processual, segundo o
marco teórico da teoria do processo como procedimento desenvolvido em contraditório está a
56

exigir a presença de partes bem definidas, que atuem em contraditório na construção do


provimento e assegurem que o julgador seja efetivamente um terceiro imparcial. Daí a
importância de se traçar um sistema processual de partes, no qual não exista o protagonismo
do juiz, e no qual as partes sejam protagonistas da construção do provimento em simétrica
paridade. Vale ressaltar a análise de Lorena Bachmaier Winter:
Se tem dito, com razão, que não existiu um único processo acusatório, mas múltiplas
formulações da ideia de um julgamento baseado na decisão de um terceiro imparcial
sobre a base do alegado e provado por duas partes que se enfrentam em um debate
contraditório. Sobre esse elemento unificador, o chamado princípio acusatório se
apresentam perfis muito diversos, desde o modo de iniciação ao juízo de acusação, a
busca das provas, o sistema e a valoração das provas, a eficácia dos atos de
investigação, a extensão do direito de defesa, etc. Como exemplo dessa variedade de
processos enquadrados dentro do modelo acusatório da ênfase na diferença radical
entre, de um lado o processo acusatório na Grécia e em Roma, e, por outro o
acusatório ou sistema adversarial que se estabeleceu nos países de common law, nos
quais não se estabeleceu o modelo inquisitivo.16 (WINTER, 2008, p. 15-16, tradução
livre)

Pelo trecho citado, vê-se que se pode afirmar que sistema acusatório pode ser tido
como gênero de duas espécies de sistemas processuais de partes, o sistema acusatório de
origem grega e romana, que marcou o processo penal da antiguidade clássica, e o sistema
adversarial de origem saxônica, cuja origem se encontra nos países que adotaram a common
law. Conforme Lorena Bachmaier Winter, o termo acusatório é entendido sob dupla acepção,
às vezes de forma concreta como um sistema processual em que as funções de acusar, julgar e
defender são exercidas por pessoas distintas e separadas e outras vezes de forma genérica para
significar um processo penal onde todas as garantias são respeitadas (WINTER, 2008, p. 46).
Desse modo, existem dois modelos processuais que podem efetivamente ser
considerados sistemas processuais onde as partes são protagonistas, o sistema acusatório e o
sistema adversarial. Em ambos, se destaca o protagonismo das partes, a quem compete a
produção e a gestão da prova. Contudo, apesar de ser comum serem tidas por sinônimos17, o
sistema acusatório não é o mesmo do sistema adversarial, sendo que ―a „justiça acusatória‟ e
16
No original: ―Se há dicho, con razón, que no há existido un único proceso acusatório, sino múltiples
formulaciones de la idea del enjuiciamiento basado en la decisión de un tercero imparcial sobre la base de lo
alegado y probado por dos partes enfrentadas em un debate contradictorio. Sobre ese elemento identificador,
el llamado poceso acusatorio presenta perfiles muy diversos, desde el modo de iniciación al juicio de
acusación, la búsqueda de las pruebas, el sistema y la valoración de las pruebas, la eficacia de los actos de
investigación, la extensión del derecho de defensa, etc. Como ejemplo de esa variedade de procesos
encuadrables dentro del modelo acusatório suele hacerse hincapié em la radical diferencia entre, por un lado,
el proceso acusatorio em Grecia y Roma, y, por outro, el acusatorio o o adversary system que se estabeció em
los países del common law, em los que no enraizó el modelo inquisitivo.‖ (WINTER, 2008, p. 15-16)
17
Nesse sentido, Kai Ambos trabalha o sistema acusatório como sinônimo do processo adversarial, afirmando
que tal sistema é aquele em que há um órgão responsável pela acusação diferente daquele que julgará,
competindo às partes se enfrentarem em um tribunal ; enquanto o sistema inquisitorial é marcado pela
confusão entre o órgão que acusa e aquele que julga em um processo onde se busca a verdade material regido
pelo princípio da oficialidade. (AMBOS, 2008, p. 49-50)
57

a „justiça adversarial‟ são conceitos e realidades muito diferentes‖18 (VOGLER, 2008, p.177,
tradução livre).
Apesar de que os termos acusatório e adversarial com frequência são considerados
como sinônimos, na realidade, têm um significado diferente. A adversarialiade,
como forma de processo, não tem praticamente nada a ver com a antiga tradição
acusatória, pois se trata de um processo radicalmente novo, que se desenvolveu na
Inglaterra durante o século XVIII. Com o modelo adversarial se introduziu na
Inglaterra industrial um processo penal baseado no respeito a um conjunto de
garantias – marcadas pelo direito ao devido processo legal – e em reconhecimento
de determinados direitos do imputado, tais como a presunção de inocência, o direito
de ficar em silêncio, o direito das partes a interrogar as testemunhas, etc.
Profundamente inspirado no pensamento do Iluminismo e especialmente na obra de
John Locke, esta nova forma de processo foi desenvolvida por advogados litigantes
na Inglaterra entre 1730 e 1770. Portanto, este modelo de processo é anterior à obra
dos filósofos franceses e contornou as bases práticas sobre as quais se construíram
as grandes declarações de Direitos Humanos, por exemplo, a Carta de Direitos os
Estados Unidos e a Declaração dos Direitos do Homem francesa. Pela primeira vez
se tratava de uma forma de processo penal articulada na linguagem dos direitos, na
qual o cidadão acusado era posto em um nível de igualdade com o poder soberano
do Estado (e não, como no sistema ―acusatório‖, no nível da vítima acusadora.
Inspirou os revolucionários da Assembleia Constituinte francesa que o adotaram em
sua totalidade em 1791, se bem que, posteriormente, a maioria dos preceitos
relativos ao devido processo seriam abolidas por Napoleão, que retomou no Code
d´Instruction Criminelle de 1908, muitas das previsões autoruitárias do Code Louis
de 1670. O modelo adversarial influenciou claramente na progressiva reforma dos
sistemas de justiça penal na Europa e também no reconhecimento dos direitos
humanos na Europa no século XIX; um sistema que tristemente se veria infringido
ou eliminado durante os obscuros anos das ditaduras europeias do século XX. 19
(VOGLER, 2008, p.181-182, tradução livre, itálico no original).

Assim sendo, a dicotomia entre sistema acusatório e sistema inquisitório deve ser
superada, porque não fazem parte do mesmo conjunto. O sistema inquisitório não se

18
No original: ―la „justicia acusatoria‟ y la „justicia adversarial‟ son conceptos y realidades muy diferentes‖
(VOGLER, 2008, p. 177)
19
No original: ―A pesar de que los términos de acusatorio y adversarial com frecuencia son considerados como
sinónimos, en realidade tienen un significado diferente. La adversarialiad, como forma del proceso, no tiene
prácticamente nada que ver com la antigua tradición acusatoria, pues se trata de un proceso radicalmente
nuevo, que se desarrolló en Inglaterra a lo largo del siglo XVIII. Com el modelo adversarial se introdujo en la
temprana Inglaterra industrial un proceso penal basado en el respeto de un conjunto de garantías –
enmarcadas en el derecho al due process –, y em reconocomiento de determinados derechos al imputado, tales
como la presunción de inocencia, el derecho a guardar silencio, el derecho de las partes a interrogar a los
testigos, etc. Profundamente inspirado en la obra de John Locke, esta nueva forma de proceso fue
desarrollada por los abogados litigantes en Inglaterra entre 1730 y 1770. Por tanto, este modelo de proceso
es anterior a la obra de los philosophes franceses y conformo las bases praticas sobre las que se erigieron las
grandes declaraciones de Derechos Humanos, por ejemplo, la Carta de Derechos estadonidense y la
Declaración de los Derechos del Hombre francesa. Por primera vez se trataba de una forma de proceso penal
articulada em el lenguage de los derechos, en la qual el ciudadano acusado era puesto em um nível de
igualdad com el poder soberano del Estado (y no como em sistema “acusatorio”, al nível de la víctima
acusadora). Inspiró a los revolucionarios de la Asamblea Constituyente francesa que lo adoptaram en su
totalidad em 1791, si bien posteriormente, la mayoría de las preceptos relativos al due process serían abolidas
por Napoleón, lo que supomdría retomar, con el Code d‘Instruction Criminelle de 1808, muchas de las
previsiones autoritárias del Code Louis de 1670. El modelo adversarial influyó claramente em la progressiva
reforma de los sistemas de justicia penal em Europa y también en el reconocimiento de los derechos humanos
a lo largo de Europa em el siglo XIX; um sistema tristemente se vería infringido o eliminado durante los
oscuros años de las dictaduras europeas del siglo XX.‖ (VOGLER, 2008, p. 181-182)
58

contrapõe ao sistema acusatório, posto que somente o último poderia ser considerado um
sistema realmente processual, enquanto o sistema inquisitório é meramente um sistema
procedimental, posto que desprovido de contraditório, como restou demonstrado no tópico
sobre o sistema inquisitorial. De outro lado, a separação entre sistema acusatório e inquisitório
apenas é um tanto simplista, devendo ser substituída pelo conjunto composto pelos sistemas
processuais de partes, mais abrangente e que engloba não apenas o sistema processual
acusatório como também o sistema adversarial.
Hoje se parecem mais claras as linhas que limitam um modelo adversarial de partes
e do acusatório; o princípio acusatório em relação com outros princípios e direitos
como o do contraditório e de defesa; e inclusive se admite que a essencialidade do
acusatório não exige a instrução pelo fiscal.20 (DEU, 2008, p. 110, tradução livre)

Sobre as origens do processo penal de partes, Mittemaier aponta o sistema de duelos e


as ordálias que foram evoluídos para um modelo de debate entre acusado e acusador. Nesse
sentido afirma o autor citado:
(...) o processo por via de acusação, em sua natureza constitui um verdadeiro
combate entre dois adversários, cada um dos quais procura demonstrar a verdade de
suas asserções, e assegurar-lhes o triunfo final. O acusador emprega todos os meios
de que dispõe para converter o juiz; o acusado também quer atraí-lo a si, e emprega
todas as armas em sua defesa. Em uma época remota no tempo dos Juízos de Deus e
dos duelos judiciários, punham-se face à face o acusado e acusador; hoje que o
processo se tem ressentido dos progressos da civilização, é ainda um combate que se
dá, combate que se põe em jogo todos os poderes do espírito em que as armas
permitidas são a palavra e a persuasão, em que, segundo a bela expressão de
Carmignani, tem por terreno a consciência do juiz, que os dois contendores se
enforcam por convencer e por ganhar. E, enfim, não é esse mesmo juiz uma terceira
força passiva, que recebe seu impulso das duas outras? (MITTERMAIER, 1997, p.
35)

Nesse contexto, os sistemas processuais acusatório e adversarial se aproximam por


serem espécie pertencentes gênero sistemas processuais de partes, possuindo como ponto de
comunhão principal o protagonismo das partes e, consequentemente, a existência de
contraditório entre seus atores principais, que terão a obrigação de produzir as provas
enquanto ao juiz competirá a tarefa de julgar e assegurar que o as regras do jogo foram
devidamente obedecidas. Apontaremos a seguir as principais características de cada um dos
sistemas processuais e suas diferenças. Nesse sentido, Teresa Armenta Deu aponta as
diferenças entre os dois sistemas de partes:
O sistema acusatório se situa no plano da necessidade de uma acusação e com a
exigência de imparcialidade. O adversarial se faz no plano da audiência e do

20
No original: ―Hoy por hoy parecen más claras las líneas que delimitan un modelo adversarial o de partes y
outro acusatorio; el principio acusatorio em relación con otros principios e derechos como el contradicción y
defensa; e incluso se admite que la essencialidad del acusatorio no exige que instruya el fiscal.‖ (DEU, 2008,
p. 110).
59

confronto. O processo acusatório exige que alguém sustente a ação, o adversarial o


confronto entre duas partes com igualdade de armas e sob a direção de um terceiro
imparcial. Ambos se opõe ao inquisitivo mas resultam compatíveis com o sistema
misto com diferente grau de intensidade. O modelo acusatório tem suas raízes na
história, onde aparece muito antes que o inquisitivo, no entanto o modelo adversarial
supõe na realidade uma das opções a partir do exercício do direito de ação: aquela
consiste em um enfrentamento entre jurados de apoio (compurgadores, em inglês), e
não através de outros métodos como as ordálias. De fato, o modelo adversarial se
introduz na Inglaterra como forma de processo a partir do século XVIII
compreendendo uma série de garantias do devido processo legal (presunção de
inocência, direito ao silêncio, direito das partes a interrogar as testemunhas), que se
manifestam na realidade quando o acusado pede um julgamento por um jurado, e daí
que este se represente como instituição essencial ao modelo norteamericano. 21
(DEU, 2012, p. 42-43, tradução livre)

Lorena Bachmaier Winter (2008, p. 29-30) aponta que o modelo acusatório não se
confunde com o modelo adversarial, inicialmente o sistema acusatório se dá em um contexto
em que a ciência se encontrava em um grau muito menos avançado que o atual, sendo que a
prova ou consistia na invocação divina ou se focava em limitados elementos probatórios,
documentais, testemunhais ou na confissão.
Vê-se, pois, que o sistema acusatório precede aos demais, tendo surgido em primeiro
lugar, sendo seguido pelo inquisitorial e, somente no século XVIII é que o sistema adversarial
veio à lume. Porém, vê-se que as características dos sistemas acusatório e adversarial
acabaram por se misturar no tempo, sendo importante separá-los com fins didáticos. Contudo,
o que é comum se chamar de sistema acusatório nos dias atuais é o produto da fusão entre as
características acusatórias e adversariais originais. Como, por exemplo de tal mescla, afirma
Kai Ambos ao definir o processo acusatório:
O processo acusatório (do latim accusare) se define como um processo contraditório
(ou adversarial) com um órgão que realiza a instrução e a acusação (Ministério
Público e/ou Juiz de Instrução) e em que as partes se enfrentam perante um órgão
decisor (o tribunal).22 (AMBOS, 2008, p. 49-50, tradução livre)

21
No original: ―El sistema acusatorio se sitúa em el plano de la necesidad de uma acusacion y com ello de la
exigencia de imparcilidad. El adversativo lo hace em el plano de la audiencia o contradicción. El proceso
acusatorio exige que alguien sostenga la acción, el adversativo la confrontación entre dos partes com
igualdad de armas bajo la dirección de un tercero imparcial. Ambos se oponen al inquisitivo pero resultan
compatibles com el sistema mixto com diferente grado de intensidade. El modelo acusatorio hunde sus raíces
em la historia, donde aparece mucho antes que el inquisitivo, em tanto el modelo adversativo supone em
realidade una de las opciones a partir del ejercicio de la acción: aquella consistente em um enfrentamiento
entre jurados de apoyo (compurgadores, en inglés), y no a través de otros métodos como las ordálias. De
hecho el modelo adversativo se introduce em Inglaterra como forma del proceso a partir del siglo XVIII
comprendiendo una serie de garantias del “due processo of law‖ (presunción de inocencia, derecho a guardar
silencio, derecho de las partes a interrogar a los testigos), que se manifestan em realidad cuando el acusado
pide um uicio por jurado , y de ahí que éste represente como esencial al modelo norteamericano.” (DEU,
2012, p. 42-43).
22
No original: ―El proceso acusatorio (del latín accusare) se define como um proceso contradictorio (o
adversarial) com um órgano que lleva a cabo la instrucción y la acusación (Ministerio Fiscal y/o Juez de
Instrucción) y em que dos partes se enfrentan ante um órgano decisor (el tribunal).‖ (AMBOS, 2008, p. 49-
50)
60

O processo penal adversarial, por sua vez, tem suas origens nos países da família do
common law, sobretudo com o surgimento do direito ao confronto em meados do século
XVIII na Inglaterra, quando se introduziu a figura do defensor técnico nos julgamentos
criminais (MALAN, 2009, p. 7). Geraldo Prado (2006, p. 101) aponta que o sistema inglês
alcança o maior nível de acusatoriedade, através da adoção de um processo de partes
preocupado com a paridade pela garantia da ampla defesa, contraditório, publicidade,
oralidade e pela absoluta imparcialidade do juiz.
Mirjan Damasca (2017, p. 283) aponta que a matriz estrutural do processo adversarial
é a ideia de disputa entre as partes que se postam em posição teoricamente de igualdade diante
da corte que deve decidir o resultado da disputa. Sendo o processo uma disputa, são adotados
mecanismos como negociação da admissão da culpa e acordos entre as partes. Os
protagonistas têm posição claramente definida, atuando de forma independente e conflitante,
sendo papel do promotor obter a condenação e do réu o de bloquear os esforços da acusação.
O elemento central dos sistemas processuais de partes, seja acusatório ou adversarial, é
centrado na distribuição dos poderes, como há o protagonismo das partes e não do julgador os
poderes da estrutura processual são divididos entre o acusador e a defesa, a quem compete
levar ao processo as provas e argumentos e, assim, contribuir para a formação da decisão
final. Dessa forma a gestão da prova compete às partes e não mais ao julgador. Assim, as
provas devem ser produzidas pelas partes e não pelo juiz, que, no sistema acusatório, não
possui poderes autônomos para investigar os fatos (AROCA, 1997, p. 26).
A própria expressão sistema processual de partes soa redundante, eis que se o sistema
é processual, logo regido pela presença do contraditório, somente poderá ser realizado através
das partes em contraditório na forma construída por Élio Fazzalari em sua teoria do processo
como procedimento em contraditório. Nesse modelo, as partes serão protagonistas e
construirão, em conjunto a decisão final. Não existe sistema processual que não seja de partes.
Porém, para facilitar a compreensão, manteremos a expressão sistema processual de partes,
ainda que redundante, a fim de reforçar a ideia de um modelo que tem o protagonismo nas
partes e no contraditório seu eixo de construção conjunta da decisão final.
Ferrajoli aponta que a separação da função de julgar da função de acusar e defender é
a marca do processo acusatório, porém aponta outras características decorrentes da
característica maior, juntado a ela o contraditório e a presunção de inocência que somente
poderão ser garantidos em um modelo no qual as partes sejam protagonistas da decisão.
Franco Cordero (1986, p. 44-45), ao comentar a lógica acusatória, aduz que todo
processo acusatório é um ato de três pessoas, sendo vedada a atuação do juiz de ofício.
61

Vale o complemento de Leandro Gornick Nunes:


É possível inferir que o processo acusatório é cognitivo, imune ao arbítrio, com
igualdade entre os sujeitos: no lugar da verdade, o que se busca é a solução do caso
penal, com respeito aos pressupostos do agir comunicativo, ou seja, igualdade entre
os sujeitos comunicantes e aceitação do resultado por esses sujeitos, desde que
respeitadas as regras processuais democráticas. Logo, trata-se de um processo muito
mais vinculado à filosofia da linguagem e muito mais democrático, embora jamais
tenha havido um processo puro. (NUNES, 2017, p. 147)

Desse modo, o sistema acusatório é regido pelo princípio acusatório, ou princípio


dispositivo23, que determina a separação das funções de acusar, julgar e defender, como
explica Geraldo Prado:
A nosso juízo, o princípio acusatório, avaliado esteticamente, consiste na
distribuição do direito de ação, do direito de defesa e do poder jurisdicional, entre
autor, réu (e seu defensor) e juiz. Tal consideração conduz ao esclarecimento, pelo
menos sucinto, do que se considera direito de ação penal condenatória. (PRADO,
2006, p. 113)

Nesse sentido, o princípio dispositivo representa uma limitação aos poderes do juiz,
impedindo que este atue como parte e que exista pena sem devido processo legal (PAULA,
2017, p. 183). Nesse contexto, Teresa Armenta Deu afirma o princípio acusatório informa que
o processo não poderá ser iniciado sem exercício prévio do direito de ação por um sujeito
diverso que o juiz, o que acarreta em sua imparcialidade, sendo que não poderá haver
sentença condenatória por fatos não contidos na acusação e nem mesmo se condenar pessoa
diversa da que foi acusada (DEU, 2012, p. 35), em complemento a autora espanhola afirma
que muitas das características atribuídas ao sistema acusatório são reconhecidas nos processos
das sociedades democráticas atuais (DEU, 2012, p. 20).
No sistema adversarial a posição passiva do juiz é marca fundamental, competindo às
partes se enfrentarem perante o julgador que, embora tenha a possibilidade de intervir e
convocar testemunhas, raramente o faz para que não tenha sua posição de imparcialidade
afetada perante o enfrentamento das partes (ILLUMINATI, 2008, p. 158).
A construção do sistema adversarial é baseada na regulamentação do princípio da
oportunidade, que têm como escopo advertir que em casos diferentes devem ser tomadas
decisões político-criminais diferentes em relação aos conflitos que serão selecionados pelas
instituições incumbidas da persecução penal, com o objetivo de racionalizar a gestão da
conflitividade pelo Ministério Público, permitindo a ele concentrar esforços em casos de

23
Geraldo Prado, contudo, afirma que o princípio dispositivo não caracterizaria o sistema acusatório ou
inquisitório, diz o professor carioca sobre o princípio dispositivo: ―Pensamos que, por princípio dispositivo há
de se entender aquele que permita dispor sobre o objeto do processo em tramitação, não sendo
caracteristicamente acusatório ou inquisitório.‖ (PRADO, 2006, p. 115)
62

maior relevância. (POSTIGO, 2017, p. 35)


O sistema adversarial é marcado pelo reconhecimento de direitos a todos os
indivíduos, inclusive aos acusados de terem cometido o delito. Nesse sistema, destaca-se o
direito a apresentar a própria argumentação (autodefesa) e a exercer o direito de defesa. O
modelo adversarial estabelece limitações estruturais aos órgãos do Estado, visando diminuir a
diferença de força entre Estado e indivíduo que se dirigem a assegurar que as alegações e as
provas sejam praticadas em público (princípio da publicidade) e perante um tribunal
imparcial, o qual decidirá através daquilo que for produzido em contraditório. Assim, o
núcleo essencial do sistema adversarial é o juízo oral, público e aberto. (VOGLER, 2008, p.
183-184)
Para conseguir o predomínio do juízo oral público se estabelece um conjunto de
princípios básicos, que podem dividir-se em três tipos de categorias: em primeiro
lugar as normas que tendem a garantir o direito do acusado permanecer em silêncio
e o direito a ser assistido por advogado, em que pese outros direitos processuais, dos
quais deve ser informado o suspeito no momento inicial ao ser preso. Este primeiro
conjunto de normas busca evitar que o Estado utilize seu poder coativo e exerça
pressão psicológica ou física sobre o indivíduo para dobrar sua vontade e obter do
mesmo uma determinada declaração. O segundo elemento básico constituirá um
conjunto de regras relativas à prova, entre as quais se inclui o direito à presunção de
inocência e as regras sobre carga probatória. Este conjunto de normas tem como
objetivo evitar que o Estado se sirva de seus recursos e maiores poderes para
celebrar um processo que não seja justo. Tanto a presunção de inocência como as
regras sobre a prova se farão efetivas através da presença – e controle – dos
advogados no processo penal, não somente na fase judicial, mas durante todo seu
desenvolvimento. Por último, como terceiro elemento básico que permitirá preservar
os direitos que acabamos de citar, é preciso que o indivíduo seja considerado como
sujeito ativo do processo e não como um objeto passivo. Isto se conseguirá através
da introdução das declarações voluntárias de culpabilidade (guilty pleas) e também
da negociação das penas (plea bargains).24 (VOGLER, 2008, p. 184, tradução livre)

Vê-se, pois, que o sistema adversarial é marcado pelo reconhecimento da


superioridade de força do Estado em relação ao indivíduo-acusado. Sendo assim, tal sistema
estabelece um núcleo de garantias mínimas visando reduzir tal diferença de forças e
24
No original: ―Para lograr el predomínio del juicio oral público se estabelece un conjunto de principios
básicos, que pueden dividirse en tres tipos o categorías: en primer lugar, las normas que tienden a garantizar
ael derecho del acusado a guardar silencio y el derecho a ser asistido por abogado, además de otros derechos
procesales, de los cuales debe ser informado el sospechoso em el momento inicial al ser arrestado. Este
primer conjunto de normas pesigue evitar que el Estado utilice de su poder coactivo e ejerza una presión
psicológica o física sobre individuo para bolegar su voluntad y obtener del mismo uma determinada
declaración. El segundo elemento básico lo constituirá um conjunto de reglas relativas a la prueba, entre las
que se incluuye el derecho a la presunción de inocencia y las reglas sobre la carga de la prueba. Este
conjunto de normas tiene como objetivo evitar que el Estado se sirva de sus recursos y mayores poderes para
celebrar um proceso que no sea justo. Tanto la presunción de inocencia como las reglas sobre la prueba se
harán efectivos a través de la presencia – y control – de los abogados em el proceso penal, no solo em la dase
del juicio, sino a lo largo de todo su desarrollo. Por último, como tecer elemento básico que permitirá
preservar los derechos que acabamos de citar, es preciso que el individuo sea considerado como sujeto activo
del proceso y no simplemente como um objeto pasivo. Esto se logrará a través de la introducción de las
declaraciones voluntárias de culpabilidade (guilty pleas) y también a través de la negociación de las penas
(plea bargains)‖ (VOGLER, 2008, p. 184)
63

reestabelecer a paridade de armas que deve estar presente no devido processo legal,
estabelecendo um rol de garantias que partem da presunção de inocência do acusado para
estabelecer o direito ao silêncio, à assistência por advogado de escolha do próprio acusado e
com participação em todas as fases do procedimento, estabelecimento da carga probatória
para a acusação e o tratamento do indivíduo como sujeito autônomo de direitos que poderá
atuar ativamente durante todas as fases do processo. Vê-se, pois, que no sistema adversarial as
partes exercem papel de protagonistas do próprio destino, atuando o juiz como mediador e
garantidor do cumprimento do devido processo legal.
No sistema de partes a presunção de inocência é pilar fundante, sendo que competirá à
parte acusadora a prova da culpa do acusado, que deverá ser absolvido se restar presente
dúvidas razoáveis de sua culpa.
O sistema acusatório na forma estudada atualmente tem sua origem no século XI na
Inglaterra, após a invasão e conquista de Guilherme, Duque da Normandia no ano de 1066,
contudo, sua construção enquanto sistema se deu apenas no reinado de Henrique II, entre
1154 e 1189 (POLI, 2016, p. 111). Sendo que o processo penal inglês se constituiu como um
legítimo sistema de partes, com contraditório pleno, juiz passivo, gestão das provas nas mãos
das partes (POLI, 2016, p. 128). Assim sendo, o sistema acusatório tem como características
principais o julgamento por assembleia de jurados populares; a igualdade de condições entre
as partes; atuação do magistrado como árbitro, sem iniciativa investigatória ou probatória;
acusação dos delitos públicos por ação popular e dos delitos privados por iniciativa do
ofendido; processo oral, público e contraditório; avaliação da prova através da livre convicção
do julgador; adoção do princípio da coisa julgada da decisão; e liberdade do acusado como
regra (POLI, 2016, p. 130).
No sistema acusatório a jurisdição é exercida por tribunais populares que devem ser
provocados pela vítima do delito ou por ação popular, atuando as partes em contraditório e
igualdade enquanto o juiz atua restrito à tarefa de direção do procedimento e, ao final proferir
a decisão (AROCA, 1997, p. 26), sendo o modelo acusatório baseado na ideia de actum trium
personarum, com a figura do acusador dissociada da figura do julgador, havendo clara
separação das atividades de acusar e julgar (POLI, 2016, p. 129). Compete aos tribunais o
julgamento do caso penal e ao acusador a acusação com os ônus que lhe são próprios. Assim,
há a completa separação entre as funções de acusar, julgar e defender, o que assegura a
imparcialidade do julgador. Como afirma Teresa Armenta Deu:
O sistema acusatório se caracteriza por exigir uma configuração tripartida do
processo, com um acusador, um acusado e um tribunal imparcial que julga e cujo
objetivo é garantir a imparcialidade ainda que possa colocar em perigo a persecução
64

ou ao menos coloca-la submetida a variações em razão do exercício da


discricionariedade.25 (DEU, 2012, p. 21-22, tradução livre)

Conforme aponta Geraldo Prado (2006, p. 102) a legitimidade popular da decisão


proferida pelos tribunais populares acaba por dispensar a fundamentação das decisões e,
consequentemente sua irrecorribilidade.
Já o sistema adversarial, que como dito surge apenas no século XVIII, possui as
seguintes características, apontadas por Diogo Rudge Malan citando Stephan Landsman: ―(i)
julgador neutro e passivo (“neutral and passive decision maker”); (ii) iniciativa instrutória
das partes processuais (“party control”); (iii) ambiente forense altamente estruturado
(“highly structured forensic setting”)‖, nesse contexto, o sistema adversarial favorece à
formação de órgãos jurisdicionais colegiados integrados por jurados, nos quais as partes
exercem a iniciativa probatória, propondo e produzindo a prova perante um juiz neutro e
imparcial (LANDSMAN apud MALAN, 2009, p. 18-19). Vê-se que, no sistema adversarial,
há a formação de uma estrutura na qual se fomenta a participação das partes e seu
protagonismo através da produção das provas e do direito ao confronto. Nesse sentido, vale
citar as palavras de Diogo Rudge Malan:
Na lição de MIRJAN DAMASKA, a pedra angular do processo penal adversarial é a
visão de que o julgamento deve ser estruturado como uma disputa entre as partes
processuais em posição de igualdade, perante um órgão julgador que deve decidir o
resultado da contenda. Os sujeitos processuais devem ter papéis definidos de forma
clara, independentes e conflitantes.
Do acusador se espera parcialidade, pois seu objetivo precípuo é obter a condenação;
para tanto, ele tem o ônus de persuadir (burden of persuasion) os jurados e o ônus de
provar (burden of proof) os enunciados fáticos contidos em sua acusação.
O acusado, por sua vez deve tentar evitar sua condenação, decidindo quais teses
tentará provar em juízo. Ele não pode ser inquirido sem seu consentimento nem pelo
órgão julgador nem pela parte acusadora, pois o uso só de uma das partes
processuais como fonte de prova pela outra é visto como fator de desequilíbrio entre
elas.
Por fim, o papel do julgador é o de árbitro que zela pela observância das regras que
disciplinam a contenda. Sua atuação é passiva por excelência, pois mesmo tal função
de fiscalização só é exercida mediante provocação: a parte processual que se sentir
prejudicada deve instigar o árbitro protestando contra a conduta da outra. (MALAN,
2009, p. 20-21)

Diogo Rudge Malan (2009, p. 21) segue afirmando que, apesar do julgamento por
jurados ser comum no sistema adversarial, não se trata de um de seus elementos centrais,
podendo estar ou não presente. ―O valor social subjacente à concepção do processo
adversarial é a tutela da autonomia do indivíduo, devido aos autos graus de individualismo e

25
No original: ―El sistema acusatorio se caracteriza por exigir una configuración tripartita del proceso, con un
acusador, um acusado y um tribunal imparcial que juzga y cuyo obhetivo es garantizar la imparcialiad
aunque pueda peligrar la persecución o al menos quedar sometida a variaciones por efecto del ejercicio de la
discricionariedad.‖ (DEU, 2012, p. 21-22)
65

de competitividade arraigados na cultura dos Estados Unidos da América e da Inglaterra‖


(MALAN, 2009, p. 22).
Dessa forma, o sistema adversarial é um modelo que se fundamenta na autonomia dos
indivíduos e que através da relação entre iguais, com idênticas possibilidades de participação,
atuam de forma a convencer através de argumentos e provas, um juízo imparcial e
completamente passivo, que somente intervirá mediante provocação para assegurar a
igualdade entre as partes e o respeito às regras do jogo.
Nos sistemas processuais de partes é justamente o protagonismo das partes que
assegurará a imparcialidade do julgador. A partir do momento em que o julgador passa a
ocupar o papel principal ou que atua em conjunto, ou em substituição, com uma das partes, o
julgador deixa seu papel de terceiro imparcial e o contraditório deixa de existir, convolando o
processo em mero procedimento e destruindo toda a estrutura processual. Assim sendo, o
processo penal de partes, exige que as partes sejam claramente demarcadas, com escopo de
que seja mantido o juiz em sua posição de terceiro imparcial, não sendo aceitável o
protagonismo do juiz em nenhuma hipótese.
Nesse contexto, aponta Teresa Armenta Deu (2012, p. 24) que a própria criação do
Ministério Público se deu para assegurar a imparcialidade do julgador, eis que, no processo
penal moderno, o próprio Estado trouxe para si a obrigação de acusar e de julgar. A
introdução do Ministério Público no processo, como uma parte artificialmente criada para
separar as funções de acusar e julgar com o fim de possibilitar uma persecução penal em
conformidade com o sistema processual acusatório (DEU, 2012, p. 125). Dessa forma, para
que o Estado pudesse ao mesmo tempo desempenhar as funções de acusar e julgar, sem que
tais funções fossem colocadas nas mãos de uma só pessoa e separando claramente as funções
de acusar e julgar, foi criado o Ministério Público como parte artificial, possibilitando que
acusação e julgamento possam ser exercidos por sujeitos diferentes. ―A chave diferencial a ter
em conta neste caso é que o Ministério Público é uma verdadeira parte e atua como tal‖26
(DEU, 2012, p. 120, tradução livre). Sendo, segundo a autora espanhola, uma tendência
moderna de se atribuir a ação penal ao Ministério Público, como uma forma de se oficializar o
processo, excluindo do processo a participação do ator popular, seja a vítima ou o ofendido
(DEU, 2012, p. 123).
A construção de um processo penal de partes demanda que o Ministério Público
abandone vez por todas qualquer resquício da mentira repetida mil vezes de que seria uma

26
No original: ―La clave diferencial a tener em cuenta em este caso es que la Fiscalía es uma verdadera parte y
actúa como tal.‖. (DEU, 2012, p. 120)
66

parte imparcial no processo penal. Inicialmente porque não se pode ser uma parte imparcial,
trata-se de uma contradição em termos, mas, sobretudo, porque é necessário que tenhamos
partes claramente definidas, de um lado o acusador e de outo o acusado, para que possamos
ter um terceiro imparcial. Assim, é de suma importância que o Ministério Público assuma
claramente o papel de parte no processo penal, garantindo, dessa forma, que o julgador exerça
sua função de forma imparcial. Contudo, o que se verifica no processo penal brasileiro é que o
Ministério Público pensa ser imparcial como o juiz, e o julgador sai em busca de provas como
se parte acusadora fosse, em uma clara e destruidora (com)fusão de papéis que destrói
qualquer possibilidade de um verdadeiro Processo Penal na forma democrática, em
contraditório e em conformidade com o modelo constitucional de processo, fulminando, por
evidente a existência entre nós de um processo penal de partes.
Durante o processo acusatório a regra é a liberdade do acusado (AROCA, 1997, p. 26),
sendo a prisão processual somente será adotada em casos de extrema e concreta necessidade.
O processo acusatório é integrado por um procedimento é ―eminentemente oral,
público e contraditório, possibilitando às partes (acusação e defesa) igualdade de condições
na colheita das provas e impossibilitando a atividade probatória do juiz, que é mantido, de
regra, como um terceiro imparcial‖ (POLI, 2016, p. 129), a característica mais marcante do
modelo acusatório é a adoção da acusação particular e da ação popular, segundo tal sistema
um cidadão particular, por seus próprios meios, realizava a acusação contra outro cidadão
formando um processo entre iguais (DEU, 2012, p. 115). Contudo, o processo acusatório não
adota o duplo grau de jurisdição (AROCA, 1997, p. 27).
O sistema acusatório enfoca substancialmente as exigências relativas a acusação, à
imparcialidade que garante e ao fato de que o acusador não pode acusar, devendo
oferecer evidências de culpabilidade para apreciar a existência de uma causa
provável. Este é o fundamento para entender que a presunção de inocência constitui
elemento essencial para a configuração acusatória, ainda que não seja
exclusivamente desta.27 (DEU, 2012, p. 43-44, tradução livre)

Por sua vez, o sistema adversarial é configurado pela existência de um juiz


absolutamente passivo, em razão da adoção de um modelo de confronto entre as partes,
visualizado pela cláusula de confronto e pelo sistema de cross-examination, através do qual se
realiza o interrogatório cruzado de defensor e acusador perante o jurado (DEU, 2012, p. 44-
45). A passividade do juiz, a natureza leiga do jurado e o direito ao confronto, no sistema

27
No original: ―El sistema acusatorio enfoca sustancialmente las exigencias relativas a la acusación, la
imparcialidade que garantiza y al hecho de que el acusador no puede sin más acusar, debiendo oferecer
evidencias suficientes de culpabilidade para apreciar la existencia de una “causa probable”. Esye es el
fundamento para entender que la presunción de inocencia constituye un elemento esencial de la configuración
acusatoria, aunque no certamente, exclusiva de ésta‖. (DEU, 2012, p. 43-44)
67

adversarial acarreta três consequências principais, no reforço da necessidade de se excluir


qualquer procedimento preliminar; a prática dos atos de instrução perante o juiz e os jurados,
fundamentado no cross-examination, na oralidade e na concentração dos atos de prova; e na
elaboração de um amplo rol de regras de exclusão de provas para que se garanta que as provas
produzidas em desconformidade com o ordenamento jurídico não possam integrar o processo
e não sejam utilizadas para a formação do convencimento dos jurados. Entretanto, o sistema
adversarial não prevê a participação da vítima no processo, podendo ser admitida sua
participação como mero coadjuvante, como testemunha ou sujeito de programas de proteção
(DEU, 2012, p. 101)
A posição absolutamente passiva do juiz situa a verdade entre o que aportam as
partes e o juiz conclui através das regras probatórias correspondentes. Desta
perspectiva anglo-americana, o sistema adversarial se concebe como o mais eficaz,
ao entender que a luta equitativa das partes faz com que a verdade aflore com maior
probabilidade que a partir da iniciativa judicial. O promotor buscará provar que os
fatos ocorreram e são imputáveis ao acusado, entretanto, o advogado de defesa
processará pelo contrário. Em outras palavras, o resultado do confronto gera mais
confiança que a atuação profissional e imparcial. Nesse contexto, dois institutos
adquirem especial significado no sistema adversarial: o discovery e a cross-
examination.28 (DEU, 2012, p. 93, tradução livre)

Geraldo Prado aponta que o sistema adversarial é fundamentado ―em uma estrutura
processual preocupada em evitar injustificadas e errôneas privações de direitos e em
garantir a participação e o diálogo dos interessados no processo de decisão‖ (PRADO,
2006, p. 136).
A separação das funções de acusar, julgar e defender, assegurada tanto no sistema
acusatório como no adversarial, tem por objetivo maior assegurar a imparcialidade do juiz,
que, por não ter função de parte terá seu papel limitado ao julgamento do caso penal que lhe
fora apresentado (DEU, 2012, p. 49), sendo que a igualdade de armas entre o acusador e o
acusado a marca principal do sistema adversarial (DEU, 2008, p. 129). Essa é a essência do
sistema acusatório (adversarial), a valorização do Ministério Público, que ganha status de ator
principal da persecução penal, e confere ao juiz seu verdadeiro papel de julgador imparcial
(SILVEIRA, 2017, p. 210). Assim, o juiz não participa dos atos de investigação, qualquer
contato do julgador com os atos de investigação quebra sua imparcialidade, juiz que investiga

28
No original: ―La posición absolutamente pasiva del juez sitúa la verdade entre lo que aportan las partes y se
fija por el juez através de reglas probatorias correspondientes. Desde este perspectiva angloamericana, el
sistema adversativo se concibe como el más eficaz, al entender que la lucha equitativa de las partes hace que
la verdade aflore com mayor probabiliad, que a partir de la iniciativa judicial. El „prosecutor‟ buscará
probar que los hechos ocurrieron y sonb imputables al acusado, em tanto el abogado defensor processará lo
contrario. Em otras palavras: el resultado de la confrontaciòn genera más confianza que la actuación
professional e imparcial. En este contexto, dos instituciones adquiren un especial significado em sendo
adversativo: el „discovery‟ y la „cross-examination‟.‖ (DEU, 2012, p. 93)
68

e que produz prévia sobre os fatos, sai do seu lugar de julgador imparcial para tomar lugar das
partes. Nesse sentido, com Geraldo Prado:
Com efeito, não há razão, dentro do sistema acusatório ou sob a égide do princípio
acusatório, que justifique a imersão do juiz nos autos das investigações penais, para
avaliar a qualidade do material pesquisado, indicar diligências, dar-se por satisfeito
com aquelas realizadas ou, ainda, interferir na atuação do Ministério Público, em
busca da formação da opinio delict.
A imparcialidade do juiz, ao contrário, exige dele justamente que se afaste das
atividades preparatórias, para que mantenha seu espírito imune aos preconceitos que
a formulação antecipada de uma tese produz, alheia ao mecanismo do contraditório.
(PRADO, 2006, p. 175)

Em complemento, Franco Cordero (2018, p. 18) afirma que nos sistemas acusatórios
vale a regra do diálogo, o que se faz em juízo é público e as iniciativas probatórias são rituais,
sendo eficazes desde que tenham sido realizadas na presença e com a participação das partes.
A separação das funções garante que o processo acusatório seja verdadeiramente um
modelo processual, eis que assegura que as partes atuem em contraditório sendo protagonistas
do processo. Sendo as partes protagonistas no processo acusatório, é típico de tal modelo a
adoção do princípio da oportunidade, sendo a ação penal sujeita a critérios de oportunidade
para ser intentada pelo acusador, seja particular ou público. Tal característica leva o processo
penal à esfera de disponibilidade do acusador que poderá optar por iniciar ou não um processo
penal segundo critérios de oportunidade e conveniência da ação penal.
Nesse contexto, Leandro Gornicki Nunes afirma:
É possível inferir que o processo acusatório é cognitivo, imune ao arbítrio, com
igualdade entre os sujeitos: no lugar da verdade o que se busca é a solução do caso
penal, com respeito aos pressupostos do agir comunicativo, ou seja, igualdade entre
os sujeitos comunicantes e aceitação do resultado por esses sujeitos, desde que
respeitadas as regras processuais democráticas. (NUNES, 2017, p. 147)

Ou, nas palavras de Pietro Costa, apesar de que no imaginário popular se crie a
expectativa de que o processo possa separar culpados de inocentes, e que, dessa forma,
converta-se em uma ―máquina de justiça‖ ou numa ―máquina da verdade‖. Essa expectativa
permanece no modelo acusatório, porém de forma modificada, não mais sendo produto da
obra do juiz, mas construção das partes. Assim, a verdade é fruto da construção das partes em
condição de igualdade, ―a verdade perde sua aura sacra”, e passa a ser construída pelas
partes em conformidade com as regras do jogo. (COSTA, 2010-a, p. 157-158)
No sistema acusatório as provas são eminentemente orais, adotando-se o princípio da
oralidade em sua máxima plenitude, assim, a prática da prova oral perante o tribunal julgador
faz com que se cumpra plenamente o princípio do contraditório uma vez que as partes terão as
mesmas oportunidades de interrogar as testemunhas e demonstrar a credibilidade que cada
69

uma merece (WINTER, 2008, p. 37).


Em que pese a investigação nos sistemas acusatórios clássicos ser realizada pelos
particulares, modernamente a investigação pelo Estado foi mantida, sendo, contudo, a adoção
de um modelo acusatório demanda que o juiz não tenha contato com os elementos de prova
formados na investigação. A separação de fases investigatória e instrutória deve ser rígida,
para assegurar que o convencimento do juiz seja formado com base apenas na prova
produzida em contraditório, sob pena de abrir-se mão da imparcialidade. Nesse sentido,
Lorena Bachmaier Winter:
O ponto que não resulta tão claro é o relativo ao acesso dos autos ou peças de
investigação por parte do órgão julgador. Se a imparcialidade requer que o tribunal
que preside o juízo oral forme sua convicção com base no que foi praticado perante
esse juízo, sobre a base das provas praticadas em um debate oral em termos de
igualdade, o tribunal não deveria ter contato prévio com o atuado na fase de
instrução. (WINTER, 2008, p. 40)

Em complemento, Teresa Armenta Deu (2008, p. 112) afirma que nos países em que
se adota um sistema acusatório a fase de investigação perante um juiz com faculdades
investigatórias é eliminada, sendo que o juiz aparece pela primeira vez no processo apenas
para admissibilidade da acusação e para verificar a legalidade das investigações. Sendo que
nas sociedades democráticas muitas das características atribuídas ao sistema acusatório se
fazem presentes (ILLUMINATI, 2008, p. 146). Por sua vez Stephen C. Thaman (2008, p.
174) assevera que em um sistema acusatório puro, qualquer ato de investigação prévio deveria
ser limitado a determinar a existência de prova suficiente para que a acusação possa ser
devidamente válida, preferencialmente, com o acusado em liberdade e, complementa o autor
norte-americano dizendo que ―quanto mais curta e simplificada for a investigação preliminar,
mais se contribui com a oralidade, contraditório e imediação do juízo‖29 (THAMAN, 2008,
p. 175, tradução livre).
Importante frisar que a adoção de um processo penal de partes, no qual as partes
exerçam seu protagonismo de forma plena é uma exigência de um processo penal
democrático, calcado na participação dos sujeitos na construção legítima das decisões que
impliquem exercício de poder pelas quais serão afetados. Nesse sentido, Márcio Soares
Berclaz afirma que ―o princípio acusatório é um paradigma, um modelo, um lugar, um
padrão objetivo de postura na leitura dos institutos processuais penais‖ (BERCLAZ, 2016, p.
99), dessa forma, toda a leitura do processo penal deve passar pela construção de um processo
penal de partes e ter em tal construção seu objetivo maior.
29
No original: ―Cuanto más corta y simplificada sea la investigación preliminar, más se contribuye a la oraliad,
contradicción e inmediación del juicio.‖ (THAMAN, 2008, p. 175)
70

Por fim, o protagonismo das partes demanda ainda a adoção do princípio da


oportunidade da ação penal, não sendo a acusação obrigatória, mas um direito a ser exercido
pelos órgãos do Ministério Público diante da necessidade da intervenção penal.
Em um modelo acusatório, que historicamente se funda no protagonismo das partes,
há de se conceder espaço para uma atuação mais flexível do Ministério Público,
porquanto a noção da persecução penal em todas as circunstâncias, referida a todas
as infrações penais (ainda que consideremos somente as noticiadas) rende louvor ao
fim de defesa social, perseguindo no processo inquisitório, acima e além dos limites
de humanidade necessários à harmônica convivência social. (PRADO, 2006, p.127)

Nesse contexto, o processo penal de partes é historicamente ligado a regimes


democráticos, que se contrapõe à forma autoritária de Estado, sendo certo que em um
processo penal democrático as funções de acusar, defender e julgar devem ser distribuídas
entre órgãos distintos (PRADO, 2006, p. 132).
Há que se destacar ainda o sistema processual penal democrático, consoante a
proposta de Rui Cunha Martins (2013). Segundo o autor português:
É este o motivo pelo qual o quadro dos princípios a eleger não pode considerar-se
senão parcialmente disponível – e o critério de admissibilidade não pode ser outro
senão o da democraticidade. Em bom rigor, o sistema processual de inspiração
democrático-constitucional só pode conceber um em um ―princípio unificador‖: a
democraticidade; tal como só pode conceber um e um só modelo sistêmico: o
modelo democrático. Dizer ―democrático‖ é dizer o contrário de ―inquisitivo‖, é
dizer o contrário de ―misto‖ e é dizer mais do que ―acusatório‖. Inquisitivo, o
sistema não pode legalmente ser; misto também não se vê como (porque se é misto
haverá uma parte, pelo menos, que fere a legalidade); acusatório pode ser, porque se
trata de um modelo abarcável pelo arco de legitimidade. Mas só o poderá ser à
condição: a de que esse modelo acusatório se demonstre capaz de protagonizar essa
adequação. Mais do que acusatório, o modelo tem que ser democrático. A opção por
um modelo de tipo acusatório não é senão a via escolhida para assegurar algo de
mais fundamental do que ele próprio: a sua bandeira é a da democracia e ele é o
modo instrumental de a garantir. Pouca virtude existirá em preservar um modelo,
ainda que dito acusatório e revestido, por isso, de uma prévia pressuposição de
legalidade, se ele comportar elementos suscetíveis de ferir o vínculo geral do
sistema (o tal ―princípio unificador‖: a democraticidade), ainda quando esses
elementos podem até não ser suficientes para negar, em termos técnicos, o caráter
acusatório desse modelo. Não é o modelo acusatório enquanto tal que o sistema
processual democrático tem que salvar, é a democraticidade que o rege. (MARTINS,
2013, p. 73)

Não há como construir um sistema processual penal fora do Estado Democrático de


Direito, assim como não há sistema processual democrático que não seja um sistema
processual de partes, onde aqueles que serão atingidos pela decisão participem como
protagonistas de sua construção. Nesse contexto, o sistema democrático na forma proposta
pro Rui Cunha Martins é um modelo de partes, que adota o sistema acusatório e junta a ele o
critério da democraticidade. Porém, no atual cenário de desenvolvimento do próprio Estado
Democrático, o elemento democrático deve sempre estar presente e, entendemos que somente
71

estará presente nos modelos processuais de partes regidos por uma constituição
democraticamente estabelecida.
Vê-se, pois, que os sistemas modernos se apresentam com características dos dois
sistemas clássicos, havendo, portanto, pontos de interseção nos modelos de partes e
inquisitoriais, sendo, portanto, todos eles mistos. Porém, há um núcleo duro entre eles que não
nos permite falar em sistemas processuais mistos e que mantêm a separação entre os sistemas
de partes e os modelos inquisitoriais, o protagonista, se o protagonismo está com o juiz
estaremos diante de um sistema inquisitorial, se o protagonismo é das partes, estaremos diante
de um modelo de partes que, como vimos, poderá ser acusatório ou adversarial. O que se
chama de sistema misto, que teria uma fase inquisitória seguida de uma fase acusatória, nada
mais é do que a forma travestida do sistema inquisitório (SANTIAGO NETO, 2015, p. 149)
na qual os elementos da primeira fase são remetidos ao juízo da segunda e formam o
convencimento do julgador na segunda fase, fulminando qualquer possibilidade de
contraditório e mantendo o juiz na posição de protagonista.

2.3 O procedimento inquisitorial como instrumento de perseguição e neutralização do


outro

O procedimento inquisitorial sempre esteve presente no processo penal ao longo dos


séculos, sendo um dos grandes desafios da sociedade democrática o combate ao autoritarismo
inquisitório. Contudo, ao longo do desenvolvimento do processo penal, e com o foco voltado
à formação do processo penal brasileiro, vê-se que, desde suas mais antigas origens, a
inquisição sempre esteve à espreita e foi usada como meio de perseguição ao outro, segundo
os interesses de cada época.
Eugênio Raúl Zaffaroni (2007, p. 30-37) aponta que a principal característica do poder
punitivo é o confisco do conflito, retirando a vítima do processo penal para substituí-la pelo
poder público, relegando à vítima o lugar de dado estatístico da criminalidade. Porém, com a
usurpação da vítima o poder punitivo ganhou uma enorme capacidade de decisão nos
conflitos, já que passa a selecionar as pessoas que irão exercer o poder punitivo bem como
determinar a forma e a medida com que isso será feito, exercendo a vigilância e o controle
sobre toda a sociedade e em especial sobre aqueles que supõe ser daninhos para a própria
hierarquia social.
Ao longo das épocas, cada um dos governos passou a cuidar dos próprios inimigos.
Dessa forma, o discurso teocrático usado na baixa idade média, primeira etapa da
72

planetarização do poder, apresentava o genocídio colonialista como um empreendimento


piedoso que tinha o demônio como inimigo e que para o combate a ele extinguia os albigenses
e cátaros, como veremos no capítulo dedicado à inquisição religiosa (ZAFFARONI, 2007, p.
33). Nas palavras de Zaffaroni:
O discurso teocrático, usado durante a primeira etapa da planetarizaçao do poder,
apresentava o genocídio colonialista como uma empresa piedosa, em cujo nome se
matavam os dissidentes internos, os colonizadores rebeldes e as mulheres
desordeiras. O inimigo dessa empresa, depois da extinção dos infelizes albigenses e
cátaros, era Satã, o que deu lugar à primeira de uma longa lista de emergências, que
se seguiram pelos séculos afora até a atualidade, ou seja, ameaças mais ou menos
cósmicas ou apocalípticasque justificam uma guerra e, por conseguinte demandam a
individualização do inimigo. (ZAFFARONI, 2007, p. 33)

A partir da instituição do inimigo, o poder punitivo passou a se impor através da


criação do preconceito que gera o medo, inicialmente, em relação às bruxas, hereges, tendo
permanecido após o fim da inquisição eclesiástica e permanecido nas mãos do poder político,
como forma de controle social.
Com singular presteza, o modelo inquisitorial foi seguido pelos tribunais laicos e
generalizou-se. Quando, no século XVI, a inquisição romana entrou em decadência,
o modelo permaneceu nas mãos do poder político e os inimigos eram os hereges ou
os reformistas, que protagonizavam o espetáculo patibular e festivo das execuções
públicas nas principais praças de todas as cidades da Europa. Na Espanha, os
principais inimigos nunca foram as bruxas – embora muitas tenham sido eliminadas
– mas sim os opositores do monarca, acusados de hereges ou dissidentes, isto é,
hostis judicatus, prolongando-se a Inquisição até o século XIX. (ZAFFARONI,
2007, p. 34)

Com a revolução industrial, a neutralização do inimigo pela morte, que eliminava mão
de obra barata, foi sendo cada vez menos utilizada e deu lugar a outros meios de neutralização
que assumiram a forma de prisões preventivas ou provisórias ou a deportação (ZAFFARONI,
2007, p. 44). Porém, apesar de assumir forma diversa na punição a perseguição e o uso do
poder punitivo, que se dava via processo penal, para a neutralização do inimigo seguiram. Os
inimigos também mudaram, passando a ser os pobres e aqueles que o poder deseja manter
afastado para permanecer no poder.
É comum dizer que o Direito Penal tem por finalidade a tutela de bens jurídicos,
porém, a escolha desses valores não é neutra e nem em vão. Sobretudo, em uma sociedade
desigual como a da América Latina e, consequentemente a brasileira, o direito penal acaba
protegendo as relações sociais, ou seja, valores escolhidos pela classe dominante, ainda que
possam aparentar alguma universalidade, mas que contribuem para a reprodução das relações
de poder e manutenção do status social, assim, são efeitos sociais não declarados da pena a
estigmatização, o controle do exército industrial de reserva, a criação de bodes expiatórios, a
73

retroalimentação do autoritarismo. (BATISTA, 2013, p. 113)


Dessa forma, o próprio direito penal possui, nas sociedades desiguais, essa ―missão
secreta‖ de controle social e, principalmente gestão dos indesejáveis pelo poder. Nesse
contexto, a inquisição se casa com os regimes autoritários e que buscam a dominação social,
para, usando do método inquisitório, garantir a exclusão dos indesejados da sociedade através
da aplicação da pena e das prisões cautelares.
Pode se mudar o inimigo, mas o modelo de perseguição sempre se serviu do
procedimento inquisitorial para seu controle. O sistema inquisitório sempre serviu ao poder
punitivo como o instrumento mais eficiente de punição dos indesejáveis. Conforme esse
raciocínio, temos que a eleição do inimigo é realizada pelos meios de controle como o Direito
Penal, mas o controle sobre a prova e o resultado do julgamento, só o processo penal pode
fornecer e esse controle é absoluto em um modelo que garanta o resultado através da
concentração de poderes nas mãos do juiz, representante do Estado e garantidor do resultado
final de interesse dos detentores do poder.
Nesse contexto, o sistema inquisitório sempre serviu aos regimes ditatoriais, desde
suas origens, como será demonstrado através da análise de cada um dos períodos que foram
importantes para a formação da identidade do processo penal brasileiro. Não serve o
procedimento inquisitório para modelos que têm a necessidade do julgamento imparcial.
Neles o juiz deve ser garantidor de direitos fundamentais. No modelo inquisitório, o julgador
não é imparcial, mas atua no lugar das partes para que o resultado seja aquele que ele próprio
deseja.
O modelo inquisitório serve, dessa forma, ao poder autoritário, não serve à
democracia. Entretanto, como buscaremos demonstrar no presente trabalho, o sistema penal
brasileiro foi forjado por modelos autoritários desde sua origem, tendo interiorizado esses
valores e métodos como naturais, usando do processo penal inquisitorial para a perseguição e
neutralização dos indesejáveis da vez em uma sociedade que cada vez mais se firma como
pós-democrática (CASARA, 2018).

2.4 O Processo Penal de Partes na construção comparticipada da decisão processual no


paradigma do Estado Democrático de Direito na tutela de direitos fundamentais

Na atual quadra do desenvolvimento do Estado Democrático de Direito, em


conformidade com o modelo procedimentalista (HABERMAS, 1997), a participação dos
indivíduos na formação das decisões ganhou grande relevo. Porém, não basta a mera
74

participação, para que todos envolvidos tenham iguais oportunidades de participar e construir
a decisão dever-se-á adotar um modelo processual em conformidade com o paradigma do
Estado Democrático de Direito.
Assim sendo, a concepção de processo como mero instrumento da jurisdição aplicar o
direito não condiz com o atual paradigma democrático, eis que coloca o julgador em nível
superior em relação às partes, o que impossibilita que a decisão seja construída por aqueles
que serão afetados pelo provimento e coloca o juiz como protagonista do processo, sendo
adequada aos sistemas inquisitoriais.
Por sua vez, a adoção da teoria da relação jurídica no processo penal é inadequada,
uma vez que se trata de uma indevida apropriação de bases teóricas desenvolvidas para o
processo civil e que acabaram sendo adaptadas para o processo penal através de verdadeiras
gambiarras interpretativas, não condizentes com a realidade do processo penal. Tal teoria foi
construída sob a definição de lide, conceito esse inaplicável na seara processual penal, como
bem demonstrado acima. O processo penal não pode mais se contentar com adaptações, é
imperiosa uma teoria do processo penal pensada sob as necessidades do próprio processo
penal.
Ao se estabelecer o processo como procedimento desenvolvido em contraditório, Élio
Fazzalari (2006) promoveu uma verdadeira revolução no estudo das ciências processuais, eis
que determinou o processo como espécie do gênero procedimento. Porém, tal concepção
deverá ser adotada segundo o modelo constitucional de processo (ANDOLINA; VIGNERA,
1997) e em conformidade com sua base principiológica uníssona composta pelo contraditório,
ampla argumentação, terceiro imparcial e fundamentação das decisões (BARROS, 2009).
Assim, o sistema inquisitorial, marcado pelo protagonismo judicial, não se adequa a
um modelo processual, configurando mero procedimento porque impossibilita que a decisão
seja fruto da participação das partes. Por sua vez, os sistemas processuais de parte, acusatório
e adversarial têm o processo como um modelo dialógico entre as partes, reservando ao
julgador o importante papel de garantidor dos direitos fundamentais. Nesse sentido, os
sistemas processuais de partes são os únicos a assegurar verdadeira participação dos sujeitos
na construção do provimento final.
O modelo constitucional de processo não representa uma teoria unitária, que fosse
comum tanto ao processo civil como penal, mas um eixo comum teórico entre os dois ramos
autônomos do direito processual, uma vez que todo o Direito deve ter na constituição seu
fundamento de legitimidade. Dessa forma, o modelo constitucional de processo fornece ao
processo penal uma base principiológica que deverá ser aperfeiçoada segundo as necessidades
75

do ramo mais severo do processo, segundo suas necessidades e como ramo que ataca o que o
indivíduo possui de mais importante: seu tempo de vida, sua liberdade.
Dessa forma, um sistema processual penal que se coadune com as exigências do
paradigma democrático deve assegurar que as partes protagonizem a construção do
provimento, devendo fazer com que elas construam em conjunto a decisão que lhes atingirá.
Um sistema processual de partes deve assegurar tanto ao acusado como à vítima iguais
oportunidades de participação, assegurando que possam construir em conjunto o provimento
penal.
A possibilidade de que o juiz atue de forma ativa na produção da prova extermina com
qualquer possibilidade de um julgamento imparcial e com a construção democrática da
decisão. Quem procura a prova sabe exatamente aquilo que busca, afinal, para a decisão de
absolvição prescinde de provas face à presunção de inocência. A busca de provas pelo juiz
denota clara inclinação pela acusação, o juiz atua como substituto processual do acusador,
predispondo a decisão condenatória. Como afirma Geraldo Prado:
Quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar e isso, em termos de processo
penal condenatório, representa uma inclinação ou tendência perigosamente da
imparcialidade do julgador.
Desconfiado da culpa do acusado, investe o juiz na direção da introdução de meios
de prova que sequer foram considerados pelo órgão de acusação, ao qual, nestas
circunstâncias, acaba por substituir. Mais do que isso, aqui igualmente se verificará
o mesmo tipo de comprometimento psicológico objeto das reservas quanto ao poder
do próprio juiz iniciar o processo, na medida em que o juiz se fundamentará,
normalmente, nos elementos de prova que ele mesmo incorporou ao processo, por
considerar importantes para o deslinde da questão. Isso acabará afastando o juiz da
desejável posição de seguro distanciamento das partes e de seus interesses
contrapostos, posição essa apta a permitir a melhor ponderação e conclusão.
(PRADO, 2006, p. 137)

O que se defende não é que o juiz seja inerte, mera ―boca da lei‖, como foi o juiz do
Estado Liberal, mas que o juiz não se seja protagonista do processo, como fora no Estado
Social. O julgador no Estado Democrático de Direito tem posição determinada pela
Constituição como julgador imparcial, não podendo atuar de forma a substituir as partes e,
muito menos como garantidor da segurança pública. No atual paradigma democrático, que
adota obrigatoriamente um sistema processual de partes, o juiz pode participar da produção da
prova, esclarecendo dúvidas surgidas na produção da prova, interagindo com a prova que está
sendo produzida, contudo, não poderá ser o protagonista, como é nos modelos inquisitoriais.
É necessário ainda que o julgador seja colocado em seu lugar constitucional, enquanto
garantidor de direitos fundamentais e abandone qualquer espectro ilegítimo de atuação
supletiva do órgão de acusação. No processo democrático a decisão deverá ser fruto do
76

diálogo das partes, não mais obra solitária do juiz. Um julgador que abandone seu lugar
penderá para o lado de uma das partes, e, no processo penal que deve(ria) ser regido pelo
princípio da presunção de inocência, o juiz que assume papel de protagonista e vai em busca
de provas para comprovar sua versão dos fatos o faz atrás de provas para a condenação do
réu, eis que para a decisão absolutória não necessitaria de provas, eis que a presunção de
inocência determinaria a sentença absolutória quando não existirem provas.
Para se construir tal modelo processual, não basta assegurar às partes o mero acesso à
justiça, como afirmam Mauro Cappelletti e Bryant Garth (2002), é imprescindível que tal
acesso se dê de forma democrática, assegurando defesa técnica de qualidade e gratuita aos
pobres através do investimento na estruturação das defensorias públicas. Tal acesso à justiça
no âmbito processual penal é emergencial, eis que o processo penal atinge severamente as
camadas mais baixas da população que, muitas vezes, somente terão acesso à defesa técnica,
após o início da ação penal.
A garantia da imparcialidade do juiz demanda que as partes assumão posição de
protagonistas do processo, somente com partes claramente dispostas é que se possibilitará a
posição imparcial e de garantidor de direitos fundamentais a ser exercida pelo julgador.
Nesse contexto, é necessário que o Ministério Público assuma vez por todas sua
posição de parte, abandonando o vazio discurso de ser parte imparcial. Apenas assim, com
partes bem definidas é que será possível construir um sistema processual de partes onde elas
sejam protagonistas do processo e colocando o juiz em seu devido lugar de terceiro imparcial.
Assim sendo, a formação da decisão através do protagonismo das partes somente se
dará se as partes forem alçadas a condição de protagonistas e puderem atuar em condição de
igualdade de oportunidades na construção do provimento. Qualquer forma diferente não
passará de engodo, mantendo o sistema desigual.
Assim sendo, para a construção de um processo penal de partes, deve-se, de antemão,
sepultar de vez a ideia de que o Ministério Público possa ser uma parte imparcial. Deve o
Ministério Público assumir posição de parte processual penal, artificialmente criada pelo
ordenamento jurídico justamente para possibilitar a separação das funções de julgar, acusar e
defender, que não poderão ser exercidas pela mesma pessoa. Como ressalta Geraldo Prado:
Assim, se na estrutura inquisitória o juiz ―acusa‖, na acusatória a existência de parte
autônoma, encarregada da tarefa de acusar, funciona para deslocar o juiz para o
centro do processo, cuidando de preservar a nota de imparcialidade que deve marcar
a sua atuação. (PRADO, 2006, p. 106)

Nesse contexto, o processo penal de partes se funda na oposição entre acusação e


77

defesa, ambas possuindo direitos, deveres, ônus e faculdades processuais, somente se


desenvolvendo regularmente se centrado nas relações recíprocas estabelecidas entre as partes
(PRADO, 2006, p. 107). Assim, para um modelo efetivamente processual é imprescindível a
imparcialidade do juiz, assumindo que sua função mais importante é decidir o caso penal,
devendo manter a equidistância em relação às teses e provas levadas pelas partes durante todo
o procedimento, eis que ―só há processo penal se no início do procedimento ambas as teses –
de acusação e de resistência – puderem ser apresentadas em condições de convencer o juiz‖
(PRADO, 2006, p. 109).
Assim a construção de um processo penal de partes deve passar obrigatoriamente por
aquilo que se entende por acusação. Geraldo Prado tem razão ao afirmar que ―não se trata, a
nosso juízo, somente de oferecer uma petição inicial, em processo penal pelo qual se
pretenda a condenação de alguém‖ (PRADO, 2006, p. 111). Uma acusação nasce da decisão
de iniciar um processo penal, que, em um sistema de partes jamais poderá ser do julgador,
porém, a acusação apenas começa na petição inicial, devendo ser exercida durante todo o
procedimento com seriedade, buscando o acusador produzir as provas para levar ao
provimento de seu pedido inicial. Como afirmou Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:
Não se deve perder de vista, todavia, que o processo penal, como um conjunto de
atos preordenados a um fim, é realizado para que, nos limites legais, alguém que
tenha poder para acertar um caso penal e não o conheça possa, na medida do
possível, conhecer e, com isso, bem decidir. Trata-se, portanto, de uma atividade
recognitiva, na qual a decisão final de mérito deve ser um ato conclusivo e
construído a partir da participação dos atores processuais legitimados (Fazzalari),
tudo de modo a se evitar a prevalência daquilo que Cordero chamou, com razão, de
―primato dell‘ipotesi si fatti‖. Em suma, - e nesse caso -, primeiro se decide; e
depois se sai à cata de elementos que confirmem a decisão já tomada; ou, por outro
ângulo, decide-se e depois se sai a testar a decisão, colocando-a à prova, em testes
de verificação de sua higidez. Um processo penal com tal perfil só pode ser aquele
de um sistema inquisitório, mas interessa sobremaneira nos regimes de força
tirânicos, justo porque facilitam a repressão e o punitivismo sem se importar com os
direitos e garantias individuais. (COUTINHO, 2017-b, p. 111-112)

Somente através da assunção clara dos papéis de cada um dos sujeitos processuais é
que se construirá um processo de partes e em conformidade com o devido processo legal. É
preciso que cada um dos sujeitos desempenhe seu papel de forma clara e que um não ocupe o
lugar do outro, cada sujeito no lugar que lhe fora atribuído pela Constituição. Porém, a
mudança do papel dos sujeitos processuais passa obrigatoriamente por um problema maior,
pela ―necessidade de esclarecimento e educação jurídico-popular da sociedade para
compreender o papel instrumental e o sentido do processo penal‖ (BERCLAZ, 2017, p. 170).
Assim, o processo não é mais um monólogo do julgador que, sozinho, é o responsável
pela decisão a ser proferida independentemente da participação das partes. No Estado
78

Democrático de Direito, como vimos o processo é dialógico, sendo a decisão o produto da


construção comparticipada das partes em contraditório. Assim, o processo penal democrático
é o palco onde contracenam, através do diálogo em igualdade, acusação e defesa na
construção do provimento final intermediado pelo juiz, terceiro imparcial. Desse modo, o
processo penal democrático somente será compatível com os modelos processuais de partes
(SANTIAGO NETO, 2015). Como ensina Geraldo Prado:
O processo assim, em um Estado democrático e, principalmente, em uma sociedade
também democrática, revela-se produto da contribuição dialética de muitos e não da
ação isolada de um só, ainda que este um – mesmo sendo o juiz – atue informado
pela disposição de encontrar a solução mais justa, ou dito com outras palavras,
apropriando-se da expressão kelseniana, ainda que este ate para o povo. (PRADO,
2006, p. 33)

A legitimidade da decisão se encontra no emprego de técnicas que imunizem o


processo do decisionismo judicial (decisão arbitrária), que não se iludam na busca de uma
suposta verdade real e em que sejam assegurados os direitos fundamentais dos sujeitos do
processo, principalmente o direito de participação pelo qual acusação e defesa irão apresentar
a correspondência entre suas teses e a prova produzida, reduzindo ao máximo o subjetivismo
da decisão (PRADO, 2006, p. 35-36). Nesse sentido, pensamos que somente por um modelo
constitucional de processo que tenha no contraditório seu eixo gravitacional é que teremos a
possibilidade de construir um modelo onde as partes efetivamente participem da construção
do provimento final através do diálogo endoprocessual.
Estabelecer a separação das funções no seio do palco processual e, portanto, a adoção
de uma opção política por um modelo processual de partes e em conformidade com o Estado
Democrático de Direito. Como assinalou Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:
Ora, faz-se uma opção política quando se dá a função de fazer aportar as provas ao
processo seja ao juiz (como no Sistema Inquisitório), seja às partes, como no
Sistema Acusatório, por evidente que sem se excluir (eis porque todos os sistemas
são mixtos) as atividades secundárias de um e de outros, tudo ao contrário do que se
passava nos sistemas puros. Daí que a gestão da prova caracteriza sobremaneira, o
princípio unificador, e, assim, o sistema adotado. (COUTINHO, 2009b, p. 109,
itálico no original)

Justamente por exigir-se uma separação clara das funções de acusar, julgar e defender,
constituindo o processo como um diálogo que deve assegurar iguais condições de atuação
para cada um de seus sujeitos é que entendemos que caso o acusador peça, ao final do
procedimento, a absolvição do acusado, o juiz não poderá proferir decisão condenatória e nem
reconhecer agravantes não alegadas. O pedido de absolvição do acusado pelo acusador
fulmina a própria acusação inicial, não havendo mais acusação contra o réu e, por isso ele
79

deverá ser absolvido. Qualquer decisão condenatória após pleito absolutório representará uma
atuação do juiz como verdadeiro substituto processual do órgão acusador, fulminando o
contraditório e o processo penal de partes em conformidade com o modelo constitucional de
processo. Como explica Geraldo Prado:
Assim, quando em alegações finais o Ministério Público opina pela absolvição do
acusado o que ocorre em concreto, no processo, é que o acusador subtrai do debate
contraditório a matéria referente à análise das provas que foram produzidas na etapa
anterior e que possam ser consideradas desfavoráveis ao réu. Como a defesa poderá
reagir a argumentos que não lhe foram apresentados? (PRADO, 2006, p. 117)

Entretanto, o simples fato de poder pedir a absolvição não faz do Ministério Público
uma ―parte imparcial‖, a acusação jamais será imparcial, pois se a possibilidade de pedir a
absolvição tornasse o parquet imparcial a defesa também o seria por poder buscar uma pena
mais branda, pedindo assim a condenação, através de institutos como a delação (ou
colaboração) premiada e a confissão espontânea. Nesse sentido, a atuação do Ministério
Público, como exercício de função pública que é, submete ―o agente ao império da
legalidade, que, no campo penal, em consideração à máxima da isonomia, obedece a
princípios de moralidade e impessoalidade‖ (PRADO, 2006, p. 127).
Geraldo Prado alerta que ―toda construção acusatória foi concebida para edificar o
direito de defesa‖ (PRADO, 2006, p. 143), assim, a defesa técnica também deve estar
preparada para desempenhar seu papel. A imparcialidade do julgador somente se assegurará
com partes em posição de simetria e em igualdade de condições e oportunidades empenhadas
efetivamente na construção do provimento jurisdicional. Para tanto, deve-se investir na
estruturação das defensorias públicas, assegurando que em toda comarca exista ao menos um
defensor público e na formação sólida dos advogados, garantindo que a defesa tenha
participação efetiva na construção do provimento e, as mesmas condições do órgão acusador.
Nesse sentido, afirma Geraldo Prado:
A marca característica da Defesa no processo penal está exatamente em participar
do procedimento, perseguindo a tutela de um interesse que necessita ser oposto
daquele a princípio consignado pela acusação, sob pena de o processo converter-se
em instrumento de manipulação política de pessoas e situações. (PRADO, 2006, p.
121)

Dessa forma, a participação efetiva da defesa ganha enorme relevo em um processo


penal de partes, pois, somente pelo exercício real e concreto do direito de defesa e de uma
acusação que sabe seu lugar é que se colocará o julgador na posição que a Constituição lhe
reservou. Sem a defesa real e concreta o processo se desnatura em ato de vingança sendo mera
embuste para legitimar uma punição arbitrária, por isso, é preciso que se leve a sério as
80

garantias decorrentes da amplitude de defesa e que os defensores exijam, vez por todas, os
direitos e garantias que assegurem a independência necessária para sua atuação. Assim, ―a
compatibilidade com o princípio acusatório dependerá de a defesa concretamente estar em
condições de participar em contraditório do processo‖ (PRADO, 2006, p. 122)
Para que seja efetivado o direito de defesa, é imprescindível que o processo seja
público e lhe seja assegurado o contraditório e o acesso a todas as informações importantes
para que possa contraditá-las e contribuir com a formação do convencimento do juiz
(PRADO, 2006, p. 122).
A oralidade exigida pelo sistema processual acusatório ganha relevo, mais que uma
mera questão de predominância da palavra escrita, a oralidade ganha contornos de se
assegurar o princípio da identidade física do juiz, ou seja, que aquele magistrado que
participou da formação da prova seja o mesmo que irá proferir a sentença, e, principalmente,
possibilita a construção de um ambiente propício ao diálogo entre as partes na construção do
provimento. Como afirma Geraldo Prado:
A oralidade deixa de ser, exclusivamente, uma questão de predominância da palavra
falada para se constituir em exigência de que uma causa não seja decidida por um
juiz que não haja tido contato direto com as provas e com os argumentos das partes,
em um ambiente capaz de proporcionar condições ideais ao diálogo. (PRADO,
2006, p. 156)

E segue o autor:
A oralidade converte-se em condição de participação efetiva no processo. Sem a
mediação da forma escrita o acusado poderá se fazer ouvir, a vítima e as
testemunhas também, e as decisões não terão como se ocultar em linguagens
estranhas à vida quotidiana. (PRADO, 2006, p. 158)

O processo penal é estabelecido pelo debate plural com a participação da sociedade,


do acusado e da vítima, a partir de elementos fornecidos pelas partes, segundo o qual o juiz
estará vinculado para decidir (PINTO, 2012, p. 152-153). Dessa forma, o processo penal
democrático não comporta uma decisão solitária, formada, exclusivamente, pelas convicções
do juiz, no atual paradigma do Estado Democrático de Direito, a decisão é fruto da construção
das partes em contraditório, sendo compilada pelo juiz. Como dito, na decisão não mais se
deve ter como aplicável a livre convicção motivada do julgador, eis que a decisão é limitada
pelo julgador que deverá fundamentar sua decisão através da análise de todos os argumentos
levados pelas partes em contraditório.
Porém, o debate deve ser precedido de boa-fé entre as partes, não podendo ser
admitido jogadas ou estratagemas que permita a vitória do mais forte ou mais esperto. Assim,
as partes devem buscar a vitória através do argumento calcado no check-list entre o
81

argumento e a prova, sendo que o argumento sem a prova é inválido e a prova sem argumento
inútil. Assim, as partes devem ter postura colaborativa, buscando a resolução do caso penal
através meios lícitos e obedecendo estritamente às determinações do devido processo.
Nesse sentido, Dierle José Coelho Nunes é claro ao afirmar:
Com base no princípio do contraditório e, por consequência, no da efetividade
normativa, faz-se necessária a implementação do diálogo incessante entre os sujeitos
processuais, de modo a impedir decisões surpresa por parte do juiz e a imposição de
argumentos estratégicos e persuasivos de uma parte bem assessorada tecnicamente.
Somente argumentos normativos e legítimos deveriam formar a decisão
compartilhada – ou seja, argumentos que possam ser fundamentados
normativamente. (NUNES, 2009, p. 241)

Dessa forma, a construção de um processo penal democrático e, consequentemente de


um processo penal de partes demanda que se estabeleça primeiro um segundo o qual as partes
sejam protagonistas da construção conjunta do provimento final. Porém, não basta o
protagonismo das partes, é necessário que elas tenham iguais oportunidades e condições
(jurídicas, técnicas e fáticas) de participação da construção do provimento, que deve se dar
segundo as regras do devido processo constitucional em atitude colaborativa, impedindo a
vitória do mais forte, do mais esperto ou do melhor assessorado tecnicamente.
Por fim, conforme afirma Aury Lopes Jr., em Estados que tenham base democrática e
respeitam as liberdades individuais de forma séria predominam os sistemas processuais penais
de partes, enquanto em Estados que se destacam pela violação de garantias e por um modelo
repressor, predomina o sistema inquisitorial, ou nas palavras do autor gaúcho:
Podese [sic] constatar que predomina o sistema acusatório nos países que respeitam
mais a liberdade individual e que possuem uma sólida base democrática. Em sentido
oposto, o sistema inquisitório predomina historicamente em países de maior
repressão, caracterizados pelo autoritarismo ou totalitarismo, em que se fortalece a
hegemonia estatal em detrimento dos direitos individuais. (LOPES JÚNIOR, 2017,
p. 32)

Em complemento, Rômulo Andrade Moreira afirma:


Aliás, é inquestionável a estreita ligação entre o sistema processual penal de um país
e seu sistema político. Um país democrático evidentemente deve possuir, até porque
a sua Constituição assim o obriga, um Código de Processo Penal que adote o sistema
acusatório, eminentemente garantidor. (MOREIRA, 2017, p. 190)

Assim, se pode concluir o presente capítulo afirmando que um processo penal


democrático somente será efetivo se as partes forem protagonistas da construção do
provimento, porém, não basta o protagonismo das partes, é necessário que elas atuem com
lealdade entre si, em um processo oral e cooperativo.
O processo penal brasileiro, contudo, é um verdadeiro monstro de duas cabeças. De
82

um lado, temos a Constituição que, apesar de não adotar expressamente o sistema acusatório,
separa as funções de acusar, julgar e defender. Por outro lado, temos o Código de Processo
Penal, inspirado no Código italiano de 1930, possui alma inquisitorial, permitindo que o juiz
produza provas de ofício (art. 156), condene mesmo diante de pedido absolutório pela
acusação (art. 385), decrete prisão de ofício (art. 311), entre outros dispositivos. Sobre a
origem do Código de Processo Penal Brasileiro, Marco Aurélio Nunes da Silveira narra com
propriedade:
A comissão nomeada por Francisco Campos era constituída por importantes juristas
daquele período: Nelson Hungria, Roberto Lyra, Cândido Mendes de Almeida,
Vieira Braga, Florêncio de Abreu e Narcélio de Queiroz. O resultado foi um código
que representava os ideais políticos vigentes ao Estado Novo, declaradamente
autoritário e fundado num pretenso pensamento ―popular-democrático‖. A base foi o
Codice Rocco de processo penal (1930), da Itália Fascista de Mussolini, da qual
Alfredo Rocco era Ministro da justiça. Diante da incumbência de reformar a
legislação penal e processual penal segundo os princípios autoritários, Rocco
concede a Vicenzo Manzini, principalmente, a missão de redigir o códice di
procedura penale, que só fez agravar a natureza inquisitória dos códigos processuais
anteriores, já inseridos na lógica ―mista‖ napoleônica. (SILVEIRA, 2016, p. 65)

O vigente código de processo penal, de inspiração fascista, possui flagrante base


autoritária, como se denota por sua exposição de motivos, de onde destacamos o seguinte
trecho:
De par com a necessidade de coordenação sistemática das regras do processo penal
num Código único para todo o Brasil, impunha‐se o seu ajustamento ao objetivo de
maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os que delinquem. As
nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em
flagrante ou confundidos pela evidencia das provas, um tão extenso catálogo de
garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e
retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge
que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela
social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em
prejuízo do bem comum. O indivíduo, principalmente quando vem de se mostrar
rebelde à disciplina jurídico‐penal da vida em sociedade, não pode invocar, em face
do Estado, outras franquias ou imunidades além daquelas que o assegurem contra o
exercício do poder público fora da medida reclamada pelo interesse social. Este o
critério que presidiu à elaboração do presente projeto de Código. No seu texto, não
são reproduzidas as fórmulas tradicionais de um mal avisado favorecimento legal
aos criminosos. O processo penal é aliviado dos excessos de formalismo e joeirado
de certos critérios normativos com que, sob o influxo de um mal compreendido
individualismo ou de um sentimentalismo mais ou menos equívoco, se transige com
a necessidade de uma rigorosa e expedita aplicação da justiça penal. (BRASIL,
1941)

Vê-se, pois, que o sentimento que funda o código vigente é o de vingança, onde se
busca a punição a qualquer preço. Direitos são tratados como favores, cria-se um binômio
entre segurança pública e direitos individuais que jamais fora existente e não pode ser
tolerado em um sistema que se pretende democrático.
83

A cultura brasileira foi forjada por longos períodos autoritários e curtos períodos
democráticos, o que proporciona pouco apreço à democracia por pura falta de cultura
democrática. Por outro lado, a educação jurídica, cada vez mais voltada à dogmática, visando
a aprovação em concursos públicos e na prova da Ordem dos Advogados do Brasil e cada vez
menos voltada a formação de uma massa crítica e forjada sob o estudo teórico das disciplinas
jurídicas, alimenta uma cultura do culto à autoridade, que nada auxilia na construção do
Estado Democrático de Direito.
Não se trata apenas de uma cultura do judiciário brasileiro, mas da própria sociedade
que deseja condenações rápidas, de preferência imediatas. Tal cultura social, que não é
quebrada pelas dogmáticas faculdades de direito que, muitas vezes, limitam-se a um
conhecimento enlatado daquilo que é cobrado em provas de concursos e exames, acaba por
refletir na formação capenga dos próprios operadores do direito, que vão se tornar
magistrados, membros do ministério público e advogados, vendo a atuação do julgador como
protagonista processual com naturalidade de quem nunca percebeu os danos à democracia que
ela proporciona.
Outro fator importante é a insistência na concepção de que o processo é instrumento
da jurisdição solucionar a lide. No processo penal não temos seque lide (COUTINHO, 1998).
Porém, o processo pode mais ser tido como instrumento da jurisdição, o que proporcionaria o
protagonismo do juiz em detrimento das partes, em uma concepção democrática, como vimos,
cabem àqueles que serão afetados pela decisão serem protagonistas da construção do próprio
destino e, por isso, construírem a decisão em contraditório.
Tudo isso aliado a uma legislação autoritária, forjada no campo processual por
fortíssima influência da relação jurídica, tem-se a mistura necessária para formar um direito
onde se cultua a autoridade e permite a ela dizer os rumos da felicidade de cada um. Isso no
processo penal, leva à crença de que os juízes façam parte dos órgãos de segurança pública,
sendo tarefa do judiciário o combate à criminalidade a todo preço.
Essa cultura à autoridade, que coloca o judiciário como tutor da sociedade e órgão de
defesa dela, proporciona a colocação do julgador no lugar das partes e sua busca à prova de
forma desmedida e incansável. Verifica-se tal cultura nas decisões jurisdicionais, que se
preocupam com a garantia da segurança pública30, decretação de prisões de ofício, ainda que

30
V.g. ―Tratando-se o tráfico de drogas, hodiernamente, do crime de maior preocupação das políticas de
segurança pública, existindo nos autos fortes indícios de autoria e estando comprovada a materialidade
delitiva, a prisão preventiva, medida de exceção, mostra-se necessária para a garantia da ordem pública, sendo
insuficiente a aplicação das cautelares previstas no art. 319 do CPP.‖(TJMG, Habeas Corpus Criminal
1.0000.17.055774-8/000 0557748-03.2017.8.13.0000, p. 24.07.2017)
84

autorizadas pela legislação31, a busca de provas pelo juiz, condenações proferidas mesmo
diante de pedido absolutório.
Vê-se, pois, que a legislação penal brasileira tem natureza inquisitória, no que é
acompanhada pela prática quotidiana forense. E não bastaram, e não bastariam de modo
algum, reformas pontuais do Código. Não basta modificar seu corpo se sua alma inquisitória
seguirá vigendo. É necessário sepultar o código fascista e exorcizar o espírito do Código
Napoleônico que ainda insiste em obsidiar nossa legislação. Mas mais do que isso, é preciso
de operadores do direito críticos e com cultura acusatória e democrática. Não basta mudar a
lei, se não mudarmos os aplicadores.
Pode ser citado como exemplo o art. 222 do Código de Processo Penal, que coloca nas
mãos das partes as perguntas às testemunhas, permitindo ao juiz que complemente a
inquirição. A ideia da reforma era que o juiz apenas tirasse dúvidas em relação às respostas
das testemunhas. Porém, a prática vem se mostrando bem diferente, com juízes arguindo as
testemunhas, antes, durante ou após as perguntas das partes não para esclarecimento sobre as
respostas, mas com questões que nada tinham a ver com aquilo que fora abordado pelas
partes. É preciso mudar a cultura!
O momento atual de gestação de um novo código de processo penal se coloca como
uma oportunidade de mudança desse sistema. O projeto foi elaborado por uma comissão de
juristas, foi apresentado ao Senado Federal que, após aprovar o texto com alterações daquela
casa legislativa, remeteu-o à Câmara dos Deputados, onde vem tramitando ainda sem data
para votação em plenário.
Em que pese o projeto32, possuir estrutura acusatória, vide seu art. 4º, possui avanços,
sobretudo através da maior participação da defesa na fase do inquérito, porém, ainda mantém
ranços inquisitórios, sobretudo a forma do código napoleônico, com a fixação de competência
por prevenção (art. 97); manutenção do inquérito instruindo a denúncia (art. 36) e
recebimento da denúncia pelo mesmo julgador do caso penal (art. 263). A manutenção de
uma estrutura bifásica, com o inquérito servindo de base da denúncia significa a manutenção
do fantasma de Napoleão, representando um pequeno avanço frente ao que se demanda em
um regime democrático.
31
V.g. ―Sendo a prisão em flagrante delito do paciente convertida em preventiva, nos termos do artigo 310,
inciso II, do CPP, não há que se falar em relaxamento da mesma sob o fundamento de que a custódia foi
decretada de ofício na fase inquisitorial.‖ (TJMG, Habeas Corpus Criminal 1.0000.17.046635-3/000)
―O artigo 20 da Lei 11.340/06 autoriza que a prisão preventiva do agressor seja decretada de ofício pelo juiz em
qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal, devendo esta, contudo, observar os requisitos
previstos no art. 312 do CPP.‖ (TJMG, Habeas Corpus Criminal 1.0000.17.037290-8/000)
32
Foi analisada a versão aprovada pelo Senado Federal, não a versão elaborada pela comissão de juristas e nem
as alterações que vêm sendo realizadas pela Câmara dos Deputados.
85

Ademais, pouco ou nada adiantará se forem mantidos aplicadores do direito processual


penal com a mesma mentalidade inquisitória. Não basta ter uma lei melhor se não melhorar
seus aplicadores, de todos os operadores do processo penal, fazendo com que passem a dar
maior valor ao Estado Democrático de Direito na forma preconizada pela Constituição.
É preciso ir além, é fundamental que se mude a mentalidade dos operadores, criando
uma cultura democrática na sociedade, para somente então buscarmos uma mudança efetiva
da legislação para adotar efetivamente um modelo acusatório. Qualquer coisa diferente
significará mudança da casca, da embalagem, da forma, mas não do conteúdo autoritário do
processo penal brasileiro.
A importância de se implementar um processo penal de partes é justamente de se
democratizar o processo penal brasileiro, fazendo dele efetivo mecanismo de legitimação da
decisão, efetivando, assim os direitos fundamentais. Nesse sentido, concordamos com os
ensinamentos de Renzo Orlandi que, em texto em que comenta as mudanças do processo
penal italiano na Itália republicana afirma que ―implementar o processo penal de partes é a
principal forma de proteger, ao mesmo tempo, os direitos individuais ameaçados ou limitados
pela atividade judiciária e policial‖ (ORLANDI, 2016, p. 53).
Dessa forma, vale a lição de Aury Lopes Júnior, que afirma que ―o processo
acusatório impõe repensar a construção do saber jurisdicional desde a perspectiva do
contraditório delimitando, portanto, o campo de exercício de poder.‖ (LOPES JÚNIOR,
2017, p. 52), para isso, aponta o professor gaúcho, é necessário que a gestão da prova seja
atribuída às partes e que os autos do inquérito sejam excluídos, garantindo-se a máxima
originalidade do julgamento.
O devido processo legal é garantia fundamental, de legitimidade da decisão, sendo
direito fundamental a sua obediência e somente compatível com modelos processuais de
partes. Desse modo, um processo penal legítimo tem por objetivo a reconstrução possível dos
fatos e a definição do caso penal de maneira legítima, com a participação ampla das partes na
construção do provimento final.
Assim sendo, nos capítulos seguintes se buscará traçar as origens do processo penal
brasileiro e suas bases autoritárias, demonstrando que a cultura inquisitorial que nos domina
vai muito além da legislação e se deve principalmente à completa inexistência da adoção de
um modelo processual de partes na construção do processo penal brasileiro. Para tanto, serão
traçadas as origens de nosso direito processual penal desde suas origens e influências para
estabelecer as raízes de nossa mentalidade inquisitória e concluir demonstrando a razão pela
qual apenas a mudança da lei de nada nos adiantará se não mudarmos as práticas e a cultura.
87

3 SISTEMAS PROCESSUAIS E SUA ORIGEM NO DIREITO ROMANO33

3.1 O estudo histórico do direito e a historiografia de grandes eras: a (re)construção dos


sistemas processuais através do tempo

O estudo dos sistemas processuais penais é comumente relegado à análise histórica do


Direito Processual Penal, contudo, pensamos que não se trata de estudar apenas a história do
Processo Penal, mas da busca de seus fundamentos. Afinal, os sistemas processuais penais
constituem os fundamentos sobre os quais se estrutura todo o Processo Penal (COUTINHO,
2017).
O Processo Penal como ciência é relativamente novo, assim como é nova a pópria
ciência do Direito Processual, porém o processo é anterior à ciência e vem se desenvolvendo
ao longo da história, e, com isso, o estudo de seus fundamentos acaba sendo uma
(re)construção histórica. Diante disso, cabe ao estudioso dos sistemas processuais penais a
tarefa de historiador do Direito, devendo se projetar em um mergulho histórico, buscando
conhecer as origens do Processo Penal, mas sem perder de vista sua relação com seu presente.
Nesse contexto, a análise da historiografia não pode ter apenas o foco no passado, mas buscar
sua relação com a atualidade (COSTA, 2010-a, p. 151). Assim, em uma análise retórica
Koselleck (2002, p. 30) afirma que a história é como um presente no qual passado e futuro se
conectam.
Nesse contexto, o desenvovimento do pensamento jurídico se deu ao longo do tempo,
em uma marcha contínua e progressiva, sem saltos ou fraturas, seu desenvolvimento não se
deu na história, mas é a própria história. (COSTA, 2010-b, p. 30)
Assim sendo, o estudo dos fundamentos do Processo Penal, através da análise dos
sistemas processuais penais, se dá pelo estudo da própria análise do desenvolvimento do
Direito Processual Penal e das formas de punir ao longo dos tempos. Sendo que os sistemas
foram sendo desenvolvidos ao longo de cada uma de suas eras, mudando suas características e
ganhando novos contornos. Contudo, como vimos ao estabelecer as características de cada um
dos sistemas processuais penais, o núcleo central de cada um dos modelos (princípio
unificador) foi mantido através da centralização ou não dos poderes nas mãos do julgador.

33
Em que pese o processo penal na Grécia antiga (do século VI ao IV a. C) ser de natureza acusatória pura, pois
qualquer cidadão ateniense poderia formular a acusação perante o oficial competente, prevalecendo um modelo
de acusação popular (AMBOS, 2008, p. 50), o sistema grego não será nosso objeto de estudo por não ter ligação
direta com o modelo pátrio, diretamente derivado do direito romano. Nesse sentido, Luis Gustavo Grandinetti
Castanho de Carvalho (2017, p. 123-124) afirma que o sistema acusatório Romano (adotado na fase da
República, como veremos nas próximas páginas) deriva da observação dos romanos dos modelos gregos.
88

Nesse contexto, a tarefa do historiador do direito pode ser comparada a um quebra-


cabeça, cabendo ao intérprete a montagem do puzzle a partir das peças fornecidas pelo texto.
Entretanto, o historiador não encontra os significados no texto, mas os inventa através do
texto. O texto é montado e remontado pelo intérprete, sendo a historiografia uma forma de
interpretação. (COSTA, 2010-b, p. 22).
Não existe uma, e apenas uma interpretação verdadeira porque não exuste um, e
apenas um significado já dado pelo texto. Existem questões diferentes referentes ao
mesmo texto, diferentes pontos de vista sobre o texto, diferentes atribuições de
sentido a ele: uma historiografia de inspiração hermenêutica duvida da possibilidade
de um conhecimento em sentido forte e pensa antes na pluralidade das prospectivas
e na relatividade, aleatoriedade, no risco das próprias operações. (COSTA, 2010-b,
p. 23)

E nessa interpretação da história, e consequentemente do próprio direito, é o intérprete


que dá sentido ao texto e, através dele constrói uma narrativa que terá coerência a partir do
momento em que possuir um tema e coordenar os próprios enunciados ao seu redor. Se o tema
em questão é jurídico, a narrativa poderá ser considerada uma narrativa histórica-jurídica.
Assim, não se pode dizer que exista uma só história do direito, mas tantas histórias do direito
quantas forem as narrativas historiográficas que se redigirem, sendo que a história do direito
não representa uma experiência fechada em si mesma (COSTA, 2010-b, p. 35-36)

O objeto da historiografia, segundo aponta Pietro Costa é a interpretação de textos,


assim, a história do direito consiste na interpretação de textos jurídicos. No entanto, o
intérprete não é um sujeito neutro, historicamente confinado, nem mesmo o texto é uma arca
repleta de significados fixos e predeterminados: o texto possui uma infinidade de
possibilidades interpretativas e um infinito número de significados, cabendo ao intérprete dar
vida e conteúdo ao texto apreciado. (COSTA, 2010-b, p. 43-44)

Porém, os textos do passado são interpretados pelo historiador através de categorias


linguístico-conceituais do presente, sendo o presente o ponto de partida para a interpretação
do passado, que será interpretado através dos conceitos do presente, sendo interpretado
através da análise do historiador. (COSTA, 2010-b, p. 76)

Assim sendo, o papel do historiador é recontar, através de suas interpretações, a


história. Já o historiador do direito reconta a história, partindo de textos jurídicos que
funcionam como sua base de interpretação. A tarefa do historiador, e consequentemente do
historiador do direito, é uma tarefa heremenêutica, de análise e interpretação dos textos
89

históricos e, no caso do direito dos textos jurídicos. O texto em si não possui um significado
inerente a ele, é seu intérprete que lhe dá sentido através da interpretação.

A historiografia é uma ―operação hermenêutica‖: é a operação de um sujeito


radicado no contexto histórico, no espaço e no tempo, na sociedade e na cultura que
definem a sua identidade. Ainda que imerso no seu presente, o historiador todavia se
volta na direção ao passado, tentando não tanto usar mas interpretar os textos
antigos, de buscar neles o sentido que os caracterizava no contexto no qual foram
produzidos e usados. (COSTA, 2010-b, p. 74)

Em complemento, Flávio Quinaud Pedron (2012, p. 58), afirma que a tarefa do


historiador não é a mera descrição dos fatos, mas sua interpretação, dando aos fatos e
acontecimentos sentido.

Isso transforma o historiador em um bricoleur, que não trabalha mais com bases
sólidas de uma tradição definida, o historiador é consciente de que constrói seu trabalho
através da metalinguagem, utilizando das expressões e definições como instrumentos de seu
processo hermenêutico, ferramentas essas que são temporárias em sua aventura pessoal.
(COSTA, 2010-b, p. 56)

Assim, o trabalho que se apresenta, busca (re)construir, através da história das


instituições, a formação do processo penal brasileiro e como se deu a construção de sua
mentalidade inquisitorial. Contudo, o atual cenário autoritário do direito processual penal não
é fruto apenas do autoritarismo da atualidade, mas resultado de uma construção que vem de
sua fundação, de sua base de formação, faz parte de sua cultura e encontra-se presente em seu
DNA. Para mudar, é preciso refundar o processo penal brasileiro (CHOUKR, 2017).

Para essa refundação é preciso conhecer as bases do processo penal brasileiro, sendo
necessário buscar suas origens históricas e bases fundantes, de forma a entender de onde veio
a tradição autoritária de sua práxis processual penal e como se formou a cultura desapegada
de apreço às garantias indivuduais.

Covém lembrar que a atual conjuntura do processo penal brasileiro não nasceu do dia
para a noite. Pelo contrário, ela é fruto de todo desenvolvimento histórico da legislação e dos
operadores do Direito. Nesse contexto, vale salientar que o Brasil foi forjado desde suas
origens por sistemas processuais penais autoritários, nos quais predominou o protagonismo
dos órgãos jurisdicionais, impossibilitando a construção de um sistema processual penal de
partes e, muito menos a formação de operadores do Direito conscientes da importância de se
90

estabelecer a divisão das funções, o que vem se repetindo ao longo de várias gerações
formadas nos mais diversos cursos jurídicos do país.
Contudo, para buscar as origens do processo penal brasileiro, é necessário retornar às
bases de sua fundação, que não são nem o direito processual penal português, para cá trazido
pela colonização e nem o direito processual penal italiano, fonte de inspiração do vigente
Código de Processo Penal brasileiro.
Em que pese a origem da história do Brasil ser estudada a partir do descobrimento do
País no ano de 1500, quando os portugueses aqui chegaram já havia a população indígena
que, pouco é estudada, seja por esquecimento ou por falta de curiosidade sobre os povos
primitivos (PRADO, 2006, p. 167). Vale ressaltar que nos povos primitivos não havia uma
separação clara entre direito público e direito privado, tendo essa distinção surgido apenas no
Direito Romano, ―tal distinção pressupõe o surgimento do Estado, com a superação do
regime gentílico e a divisão da sociedade em classes‖ (BATISTA, 1981, p. 76), não havendo
uma distinção clara entre práticas ―penais‖ e ―civis‖ (BATISTA, 1981, p. 77). Nesse contexto,
aponta Nilo Batista que entre os povos indígenas não adotavam uma instância judiciária
distinta do próprio grupo social ou da pessoa ofendida, a aplicação da sanção, nos povos
indígenas era ―quase sempre ritualizada em si mesma, e dispensava ritos de mediação
(„processo‟) entre infração e pena‖, sendo que a responsabilidade poderia ultrapassar a pessoa
do autor da lesão e atingir seu grupo familiar (BATISTA, 1981, p. 82).
Contudo, como salienta Darcy Ribeiro (1995, p. 29), não se pode falar em nação
brasileira nesse período, eis que o território do que hoje é o Brasil era ocupado por diversos
povos indígenas que disputavam os melhores nichos ecológicos, com a prevalência dos índios
de fala tupi que, por serem bons guerreiros e dominadores, acabaram se instalando tanto na
área à beira-mar ao longo da costa atlântica como nas áreas interioranas através do rio
Amazonas e seus afluentes.
Não era, obviamente uma nação, porque eles não se sabiam tantos nem tão
dominadores. Eram, tão só, uma miríade de povos tribais, falando línguas do mesmo
tronco, dialetos de uma mesma língua, cada um dos quais, ao crescer, se bipartia,
fazendo dois povos que começavam a se diferenciar e logo se desconheciam e se
hostilizavam. (RIBEIRO, 1995, p. 29)

Sendo assim, o que os portugueses encontraram no Brasil quando aqui chegaram no


ano de 1500 foram grupos indígenas principalmente do tronco Tupi, que haviam se instalado
no litoral brasileiro séculos antes, somando, talvez um milhão de índios divididos em dezenas
de grupos tribais que se dividiam em aldeias que variavam entre trezentos a dois mil
habitantes. ―Não era pouca gente, porque Portugal àquela época teria a mesma população ou
91

pouco mais.‖ (RIBEIRO, 1995, p. 31)


A própria multiplicidade de tribos impossibilita a formação daquilo que hoje se
concebe como nação, sendo que cada uma delas possuía suas próprias regras e normas de
conduta, seu próprio direito.
Contudo, em que pese a existência de ritos punitivos anteriores à chegada dos
europeus no Brasil, os portugueses acabaram por se impor pela força bélica e pela violência
que dizimou a população aqui existente e acabou por colocar tais povos, que são os
verdadeiros povos originários de nosso País, como impostores e ocupantes de uma parcela
ínfima do território nacional. A chegada dos portugueses em território brasileiro teve como
consequência uma guerra entre duas culturas, vencida por aquela que possuía maior
desenvolvimento tecnológico e que se impôs pela força da pólvora. ―Embora minúsculo, o
grupelho recém-chegado de além-mar era superagressivo e capaz de atuar destrutivamente
de múltiplas formas. Principalmente como uma infecção mortal sobre a população
preexistente, debilitando-a até a morte‖ (RIBEIRO, 1995, p. 30).
Assim sendo, não se pode esquecer que antes da chegada portuguesa no Brasil já se
tinha uma vasta população estabelecida no território que se tornaria o Brasil, essa população
já possuía normas e estruturas sociais estabelecidas e que são pouco estudadas no Direito.
Contudo, o direito indígena foi completamente abandonado pela imposição das normas e
regras dos colonizadores que ao subjulgarem a população local impuerams seus costumes e
suas normas.
Nesse contexto, os portugueses, ao chegarem e ocuparem o território brasileiro
tomando-o à força dos indígenas, passaram a aplicar o direito penal português vigente naquela
época, o direito das ordenações que teve início em 1446 com as Ordenações Manuelinas e se
estendeu até 1750 com o fim das Ordenações Filipinas (ESPINOSA GOMES DA SILVA,
2011).
Há que se destacar ainda que não desconhecemos as origens do processo penal
acusatório no processo grego34, contudo a influência romana no direito brasileiro é direta e,
por isso optamos por estudar o processo penal romano e não aprofundar no modelo grego.
Para tanto estudaremos os rituais punitivos no direito romano, dividindo seus treze séculos em
três grandes eras, em conformidade com a obra de Sebastião Cruz (1984): a Monarquia (753
a.C – 510 a.C); a República (510 a.C – 27 a.C); Principado (27 a.C – 284 d.C); Dominato

34
Falar em processo penal grego como um todo é uma generalização eis que na Grécia antiga havia uma
pluralidade de sistemas que variavam de cidade em cidade, normalmente a doutrina, ao se referir ao processo
penal grego está se referindo ao processo penal ateniense. (WEDY e LINHARES, 2015, p. 243-244)
92

(284-476) e a queda do Império Romano do ocidente (476) e do Oriente (1453). Valendo


destacar que, apesar de Roma ter acabado seu domínio no século VI, o direito romano
sobrevive ao tempo e exerce sua iunfuência até nos dias atuais (CRUZ, 1984, p. 38).
Assim sendo, toda nossa legislação processual penal brasileira sofre influência direta
do direito português, aqui implantado pelos colonizadores, sendo importante, portanto, para se
entender atual processo penal brasileiro, entender suas origens no direito romano e as
influências desse nas bases de nossa formação. Esse é o objetivo do presente capítulo.

3.2 O procedimento penal na monarquia: o berço do modelo inquisitório

A história de Roma, desde sua fundação em 753 a.C35 até o declínio do império
romano do ocidente em 476 d.C com as invasões bárbaras e o início da idade média,
representam um dos maiores períodos históricos que se conhece, se alongando por treze
séculos. Nesse período, o direito e o processo penal sofream significativas transformações e
que foram relevantes para a construção daquilo que se tornou o direito na atualidade. No caso
do processo penal, vale salientar de antemão, tais transformações representaram a construção
de seu fundamento, uma vez que foi adotado tanto o modelo acusatório como o modelo
inquisitório em suas formas puras, modelos estes que são até hoje adotados, contudo, através
de formas mistas nas quais um ou outro tende a prevalescer.

Durante todo esse tempo é natural que o sistema jurídico romano tenha sofrido
alterações profundas em sua estrutura na busca de corresponder às transformações sociais dos
tempos. No princípio o Ius Romanunm formava um sistema fechado, duro e feroz, marcado
pelo formalismo e rigor característicos de uma sociedade agrícola e patriarcal. Com o tempo e
o desenvolvimento das cidades, o direito romano foi se transformando e sendo adaptado às
novas realidades sociais, podendo ser dividido em quatro épocas históricas: arcaica, clássica,
pós-clássica e justineanea. (CRUZ,1984, p. 39-43)

O Ius Romanum (portanto direito romano stricto sensu) não é todo igual nesses 13
séculos da sua vida (753 a. C. – 565 d. C). Como é natural, nesse ciclo inimterrupto
de vigência, o sistema jurídico romano teve de sofrer alterações profundas, para
corresponder às transformações sociais dos tempos. No início, o Ius Romanum
forma um sistema fechado, próprio e só dos quirites, duro e feroz como aquela gente
guerreria, impelida a lutar pela sua subsistência; formalístico e rigoroso como a
ordem que impera numa sociedade agrícola e patriarcal. Pouco a pouco, devido não

35
Sebastião Cruz (1984, p. 34) esclarece que ―A data de 753 a.C, inventada pelo escritor Varrão, é hoje
considerada lendária; mas, à falta de melhor, continua a usar-se como data da fundação de Roma consagrada
por uma longa tradição.‖
93

só à transformação social da civitas, aos contactos com os usos e costumes doutras


gentes, mas dobretudo ao génio criador dos grandes juristas de Roma, esse Direito,
embora mantendo-se fiel à sua estrutura originária, torna-se apto a resolver as
situações criadas pelas novas exigências da vida e pelo alargamento do comércio. E
esse Direito nunca mais para na sua evolução e adaptação às realidades sociais.
Na verdade, o Ius Romanum apresenta uma evolução completa: nasce, cresce, atinge
o apogeu, decai; retoma uma fase de certo esplendor, para depois se codificar.
Forma um ciclo evolutivo perfeito. Um fenômeno assim não se verifica com
nenhum outro Direito. É único. (CRUZ, 1984, p. 39-40)

Nesses treze séculos de história os ritos punitivos que formam o processo penal foram
sendo alterados, visando atender as necessidades e se adequar à forma de governo de cada
época. Assim, não se pode falar em um único processo penal romano, nem mesmo em um
único processo penal em cada uma das fases de Roma, mas vários modelos procedimentais
que mudavam de acordo com a época, havendo até mesmo mais de um modelo dentro da
mesma fase romana, como veremos nas páginas que se seguem.

O Estado Romano arcaico é constituído em forma de incontáveis cidades-estado36 da


antiguidade, gravitando em torno de um único reduto toda a totalidade da vida política.
Contudo, foi somente entre os séculos IV e II a.C é que Roma começou, gradualmente a
crescer e se desenvolver, até se converter em um estado que poderíamos denominar grande e a
dominar toda Itália. No que toca ao Direito, Roma sofreu significativa influência grega pelo
menos desde a metade do século V a. C. através da Lei das XII Tábuas. (KUNKEL, 1994, p.
9-12)

O período arcaico corresponde ao período do estado rudimentar das instituições


jurídicas romanas, não havendo limites certos entre o jurídico, o religioso e o moral, três
mundos que nesse período ainda formam um só. O período arcaico é dividido em duas etapas,
a primeira vai da fundação de Roma até a criação da figura do pretor peregrino no ano de 242
a. C, correspondendo ao período de exclusividade do ius civile; a segunda fase vai de 242 a.C
até 130 a.C, correspondendo à fase de coexistência do ius civile e do ius gentium. (CRUZ,
1984, p. 44-46)

De início, Religião, Moral e Direito constituíam um todo único; daí que a primitiva
interpretativo (a revelação dos mores, e. é, descobrir o ius nos mores maiorum)
estivesse só a cargo dos antigos sacerdotes-pontifices. E como toda a atividade da
ciência jurídica (iurisprudentia) se concretizava e reduzia à interpretativo e

36
Segundo aponta Sebastião Cruz ―‟Estado-cidade‟ significa um agrupamento de homens livres estabelecidos
sobre um pequeno território, todos dispostos a defendê-lo contra qualquer ingerência estranha e sobretudo onde
igualmente todos detêm uma parcela do poder. Esta última parte é uma grande característica do estado-cidade,
que o distingue do „Estado-território‟, onde só um homem exerce o poder duma forma absoluta e exclusiva.‖
(CRUZ, 1984, p. 58)
94

iurisprudentia identificavam-se. (CRUZ, 1984, p. 172)

O Estado para os romanos do período arcaico não possuía o mesmo significado que
possui nos dias atuais, para os romanos o Estado se confundia com os próprios cidadãos
romanos, o Populus Romanus era a própria denominação do Estado Romano. Nesse contexto,
era atribuído grande poder às assembléas populares, formadas pela comunidade dos cidadãos
e representavam o organismo supremo na época republicana, sendo a mais importante delas a
Comitia Curiata, que possuía funções religosas e jurídicas. Outra assembleia de relevo era a
Comitia Centuriata, que tinha funções políticas e o poder de eleger os magistrados maiores
(cônsules, pretores e censores). (KUNKEL, 1994, p. 16-21)

Na fase monárquica, que inicia na fundação de roma em 753 a.C e vai até o ano de 510
a.C, o poder se dividia entre o Rei, o Senado e o Povo (CRUZ, 1984, p. 59). O vértice do
estado romano era ocupado pela figura de um rei, que era o chefe militar e político além de
representar a comunidade romana perante os deuses. O rei era designado pelos deuses por
meio de presságios, como o voo das aves por exemplo, sendo o poder real exercido em razão
do carisma de índole mágica e religiosa. Assim, a função religiosa era exercida em conjunto
com as funções políticas e militares, estando as três funções umbilicalmente interligadas.
(KUNKEL, 1994, p. 21-22)

O Rei era o sumo sacerdote, chefe do exército e juiz supremo, o diretor (reitor) da
cidade, exercendo o cargo de maneira vitalícia, porém não hereditária, podendo designar
sucessor, sendo que somente era considerado rei depois de investido no poder pelas cúrias
(reunião do povo), quando recebia a delegação do poder, já que ―os romanos tinham a
convicção bem arraigada de que o poder (soberania) residia no povo, e de que era este que o
transmitia ao chefe. (CRUZ, 1984, p. 61)

O Rei exercia a posição de chefe único e vitalício que a comunidade possuía,


possuindo poder de mando ilimitado sobre todas as infrações, fossem elas de índole religiosa,
militares ou civis, cometidas dentro ou fora dos limites de Roma. Não havia procedimento
penal a ser aplicado, o rei atuava de forma ilimitada e seguindo os procedimentos que lhe
parercessem adequados, dendo poderes para instruir o processo e resolvê-lo, bem como
poderia delegar a um representante essa função. (MOMMSEN, 1905, p. 28-29)

A base da sociedade romana era a família, que era chefiada pelo paterfamilias, que,
contudo, não significava o pai, mas o chefe, senhor ou soberano da família e que tinha
95

poderes de vida e morte sobre aqueles que estavam sob seu poder. O vínculo que unia a
família não era sanguíneo, mas o da sujeição ao poder do chefe da família. O conjunto de
famílias sob uma só liderança, exercida pelo pater gentis, dá origem às gens. Com o abandono
da religião doméstica pelas gens para a adoção de uma religiosidade comum, os romanos
passaram a formar a cúria, que tinha no curião o chefe responsável pelos rituais. A partir da
cúria se desenvolvem as tribus que consistiam em uma organização mais vasta e tinha a
divindade como sua protetora e mantenedora da união de seus membros. Da união das tribus,
por acordo ou necessidade de defesa, origina a civitas, que era constituída através do ritual de
ascender o fogo sagrado simbolizando a pátria comum e levantar altares às divindades da
comunidade, sendo a primeira missão do rei a de sumo sacerdote, uma vez que para os
romanos o vínculo que originava e mantinha a união entre os indivíduos era encontrado na
religião. (CRUZ, 1984, p. 59-60)

Por sua vez, o Senado era um órgão auxiliar do rei, inicialmente composto pelos
patres das gentes fundadores da cidade, mais tarde foi composto pelos homens mais velhos,
escolhidos entre os patrícios, constituindo uma assembleia aristocrática, sendo que os plebeus
não podiam fazer parte, que somente puderam fazer parte em 312 a.C com a Lex Ovinia. O
Senado foi criado para exercer a função consultiva do Rei, postreriormente passou a indicar
um de seus membros (interrex) para exercer o poder supremo durante o período após a morte
de um rei e a proclamação de seu sucessor e o poder de conceder a auctorotas partrum, o
consentimento sobre as leis votadas nos comícios para dar a elas validade. (CRUZ, 1984, p.
61-62)

O povo em Roma se dividia entre patrícios e plebeus, os primeiros eram da classe


social elevada, aristocratas, enquanto os últimos pertenciam à classe humilde, trabalhadora.
Os patrícios gozavam de todos os direitos, enquanto os plebeus não possuíam direitos, o que
ensejou na luta entre as duas classes pela equiparação dos direitos. A plebe constituía um
Estado dentro do Estado, servindo-se principalmente das tribos para estabelecer uma
organização à parte com chefes próprios (Tribunos da Plebe) a partir de 494 a.C, tendo a luta
entre as classes perdurado até a vitória dos plebeus. O povo exercia sua parcela do poder
político através dos comícios, os mais antigos e mais importantes eram os comícios das
cúrias, (comitia curiata), inicialmente os comícios também eram exclusivos dos patrícios,
somente, posteriormente, é que os plebeus puderam fazer parte das cúrias. Inicialmente,
tinham poderes para a investidura do rei no poder através da lex curiata de imperio, e não se
pode dizer com precisão que tivessem funções legislativas. Na fase da república as cúrias
96

acabaram absorvidas pelos comitia curiata e pelos comitia tributa e conservaram apenas as
funções religiosas (CRUZ, 1984, p. 62-63)

Nesse período o direito romano era aplicado apenas aos cidadãos romanos (Cives), os
não cidadãos (hostes ou peregrini), ainda que residentes no território romano, realizavam suas
relações privadas fora do direito romano, que era privativo dos cidadãos (ius cives). Contudo,
em razão do crescimento de Roma, que passou a ser a cabeça dos povos do mediterrâneo, a
divisão do direito dos cidadãos e dos não cidadãos passou a gerar prejuízos aos próprios
cidadãos romanos obrigando mudanças em sua estrutura. Para atender às necessidades foi
criado o cargo de pretor peregrino com o qual começa a formação do ius gentium, direito
aplicado aos não cidadãos romanos e que vigorou em conjunto com o ius civile. (CRUZ,
1984, p. 45)

Os jurisconsultos romanos separam os atos ilícitos em duas categorias: delitos


públicos e delitos privados. Públicos seriam as lesões da norma jurídica na qual o Estado
considere importante, como o perduellio (atentado contra a segurança do Estado); o
parricidium (assassinato do homem livre), esses delitos eram punidos através de julgamentos
por Tribunais especiais com penas que variavam desde a pena de morte, penas corporais ou
em multa revestida ao Estado. De outro lado, os delitos privados eram as ofensas contra a
pessoa, como as lesões corporais, ou aos bens do indivíduo, nesse caso o Estado não agia,
cabendo a actio aos ofendidos. (ALVES, 1999, p. 223-224)
Dessa forma, fazia-se a diferença entre crimen e delictum. O crimen tinha significado
mais restrito, vez que identificava os fatos ilícitos enquanto objeto de persecução pública, se
referindo aos casos em que a acusação era pública. Por sua vez o delictum era a designação
dos delitos de natureza privada, que tinham seu processamento em conformidade com o
direito privado. (TUCCI, 1976, p. 19-20)
Vincenzo Manzini (1950, p. 5) aponta que no processo penal privado o juiz sentava
entre as duas partes contrastantes, e julgava, atendendo segundo as partes expunham e
provavam, da mesma forma que se faziam com procedimentos do direito privado. Já o
procedimento penal público o Estado buscava a perseguição do interesse social, não ficando
restrito apenas aos argumentos e provas das partes, mas indo em busca da verdade.
Nesse período não se diferenciava claramente o interesse privado e o interesse público
no âmbito da justiça penal, pelo que frente à vingança privada, como reação legítima frente ao
delito, existiam hipóteses de intervenção direta do Estado nos delitos especialmente lesivos ao
ordenamento jurídico. (ILLUMINATI, 2008, p. 138)
97

A punição doméstica foi a origem do sistema próprio sistema político do povo romano
mostra elementos que constituíam o procedimento penal, como a injustiça moral, a
comprovação da injustiça e a retribuição. Sob o ponto de vista moral, poder-se-ia distinguir os
delitos como procedimentos com fins de educação e ordem da casa e o procedimento fundado
no arbítrio e crueldade do chefe, porém, juridicamente, eles eram equiparados. Quando o
dano recaia sobre o particular o próprio chefe da casa poderia impor o castigo, atuando para
castigar os delitos que ele próprio fosse vítima ou que fossem cometidos dentro do círculo
familiar por alguma pessoa que pertencesse ao grupo contra outra ou contra um estranho. O
chefe de família agia de forma ilimitada sobre os indivíduos, exercendo poderes de vida e
morte sobre eles, o poder de punição do chefe de família era exercido sem sequer a existência
de previsão formal das ações que pudessem ser consideradas delitos e nem contavam com
procedimento fixo a ser obedecido. O chefe da casa era considerado um magistrado modelo
dentro da comunidade, e castigava os delitos cometidos pelas pessoas sujeitas ao seu poder.
Nesse contexto, não existia nenhuma fixação legal do delito, podendo o chefe de família
proceder em relação a toda ação que violasse as leios do Estado praticada por qualquer das
pessoas que estivessem sob seu poder, sendo que se considerava privada a punição eis que
aplicada pelo próprio chefe de família. Dessa forma, o procedimento doméstico era por sua
natureza inquisitivo, sendo a interposição da ação através da denúncia do fato e a punição
doméstica procedida inteiramente dentro de casa. (MOMMSEN, 1905, p. 17-27)

O direito penal público fazia parte do direito sacro (MOMMSEN, 1905, p. 8), e
transcorria perante um sacerdote, o magistrado, que detinha o comando militar e político,
sendo que a denominação mais antiga dos magistrados era a de pretor e não a de cônsules,
uma vez que o termo pretor era designado na lei das XII Tábuas. As magistraturas eram
exercidas de forma não remunerada (honores), exigindo de seus titulares gastos pessoais para
o bem comum. O pretor era o mais importante magistrado em uma comunidade primitiva.
Competia ao pretor matérias de coerção (coertio), ou o poder disciplinar; e a jurisdição
(iurisdictio), ou o poder de dizer o direito, que podiam abranger também o mando militar
(imperium em sentido estrito) e o poder geral de mando (imperium em sentido amplo).
(KUNKEL, 1994, p. 22-27)

A relação entre o Ius Romanum e o imperium remete à própria noção fundamental de


ius, que consistia em uma força (vis) que necessitava da auctoritas para subsistir e ser
eficiente, uma vez que essa autoridade deveria ser obedecida através da imposição da força.
Assim, o ius foi criado por uma autoridade pública, sendo criação dos próprios juristas. Em
98

princípio, os jurisconsultos romanos possuíam autoridade baseada em sua linhagem, de forma


aristocrática. (CRUZ, 1984, p. 55-56)

Segundo aponta Álvaro D´Ors, o termo auctoritas é um termo tipicamente romano,


não havendo equivalente sequer na Grécia, inicialmente foi exercida pela autoridade privada
dos prudentes, que eram os verdadeiros artífices do ius e que tinha como pressuposto uma
capacidade para se alcançar os honores. A Inicialmente a auctoritas foi exercida pela
autoridade privada dos prudentes, que eram os verdadeiros artífices do ius aparece como
sendo uma ordem imperativa, tendo origens nas relações privadas mais que nas públicas e que
poderia ser exercida por várias funções durante a história romana. Assim sendo, a auctoritas
pode ser compreendida como poder originário do qual dependem todos os outros poderes
delegados. (D‘ORS, 1984, p. 375-381)

Por sua vez, o procedimento penal público era exercido pelo direito da guerra, que era
de domínio do rei. O rei, como chefe único e soberano da comunidade romana dispunha de
poder ilimitado sobre toda a classe de infrações ou faltas de índole religiosa, militar ou civil,
fossem cometidas dentro ou fora dos limites territoriais de Roma. Nesse contexto, chamavam-
se delitos as ações castigadas pelo rei e pena os males impostos por ele. Nesse período não
havia um procedimento formal, o rei possuía poder para usar de todo e qualquer meio para
instruir o procedimento e o resolver, bem como para delegar a um representante a instrução e
a punição. Esse modelo tem origem na transmissão do modelo de punição doméstica para a
punição do Estado, uma vez que o poder do rei era comparável ao do chefe doméstico que era
exercido sobre aqueles que estavam sujeitos ao seu poder. (MOMMSEN, 1905, p. 29-30)

A falta de limites dos poderes, seja do chefe de família ou do rei, acabou por formar
um modelo processual de poderes concentrados no qual o julgador atuava de forma ilimitada,
portanto, na monarquia, fase mais rudimentar da sociedade romana, foi o berço do próprio
sistema inquisitório.

Vê-se, pois, que o procedimento inquisitório surgiu logo na primeira fase do direito
romano, que foi um período marcado sobretudo pela concentração do poder nas mãos do rei e
dos chefes das famílias, onde somente estavam submetidos ao direito romano os cidadãos
romanos homens patrícios, excluindo assim as mulheres, os plebeus e os estrangeiros.
Contudo, a fragmentação do poder vinda com a república, tornou insustentável a manutenção
do procedimento punitivo da forma monárquica, fazendo com que as mudanças se tornassem
cada vez mais necessárias.
99

3.3 O processo penal na fase republicana: o nascimento do modelo acusatório

Apartir de 510 a.C., o poder supremo do rei não mais resiste em um único chefe,
passando a ser dividido entre dois cônsules que o exercem em um mandato de um ano e são
eleitos pelo povo, não sendo mais vitalícios e designados pelo antecessor ou pelo senado.
Assim, a constituição republicana passa a contar com três grandes elementos: as
magistraturas, o senado e o povo. (CRUZ, 1984, p. 64)

Na fase republicana roma passa por um período de descentralização do poder, que


antes gravitava nas mãos do soberano, agora passa a ser dividido entre outras esferas. Tal
mudança se deve à disputa de força entre os patrícios e os plebeus, que disputavam espaço e a
igualdade de direitos.

A constituição política da República de Roma fundava-se portanto no equilíbrio de


três grandes forças: o imperium dos magistrados; a auctoritas do senado; a maiestas
do ―populus‖. Este equilíbrio entre as forças autocrática, aristocrática e democrática
– embora com uma certa preferência plutocrática (favorecendo sempre os mais
ricos) – dotou a República romana duma grande flexibilidade. Isso pemitia que ela
superasse graves cries, não só internas como externas. É neste período que principia
a revelar-se claramente o talento político dos romanos. (CRUZ, 1984, p. 71-72)

Em razão das lutas entre patrícios (cidadãos romanos, aos quais se destinava o Direito
Romano) e plebeus (não cidadãos, os quais não encontravam tutela do Direito Romano), foi
elaborada por uma comissão de dez pessoas (decemviri legibus scibundis) o texto da lei das
XII tábuas, o primeiro marco relativamente fixo da história do Direito Romano, que foi
elaborada no período arcaico entre os anos de 450/451 a.C, possuindo forte influência do
direito grego e regulava tanto o direito civil como o direito penal, e chegaram até os dias
atuais unicamente através de fragmentos. No campo do direito privado destacavam-se as
disposições sobre direito de vizinhança e do direito de família e sucessões, que possuíam
utilidade para a sociedade romana eminentemente rural daquela época. No que tangencia ao
direito penal, a Lei das XII Tábuas37 combina elementos arcaicos com elementos avançados e

37
A Lei das XII tábuas data aproximadamente dos anos 450 a.C, sendo que os romaniustas apontam que entre
451 e 449 a.C foi produzida em Roma uma grande obra codificadora, sendo o ano de 450 apontado por
aproximação como o ano de sua elaboração. Trata-se de uma codificação formulada em resposta às disputas
entre patrícios e plebeus por igualdade. Em 451 a.C o povo reunido nos comícios das cúrias e das centuras
nomeou uma magistratuda composta de dez cidadãos patrícios (decenviri legibus scrobundis consular potestate)
para a elaboração de um novo código, que durante um ano gozaram de plenos poderes, inclusive para suspender
as magistraturas ordinárias. Ao final do período, foram produzidas dez tábuas que foram aprovadas pelos
comícios das centúrias. Como as dez tábuas não foram suficientes, no ano seguinte foi nomeado um novo
decenvirato, composto por patrícios e plebeus, para terminar o código, tendo elaborado as duas últimas tábuas.
100

combina a regulamentação das leis de vingança privada dos ofendidos com a previsão de
penas para crimes de alta traição (perduellio) e crimes religiosos tidos como graves, ou seja
somente eram punidos os delitos que atingissem gravemente a sociedade romana, o Estado.
Em relação a outros delitos, a Lei das XII Tábuas adotava o regime da vingança, permitindo
inclusive a vingança de sangue em casos de morte, em casos de assassinato, a pena de morte
era tão evidente que a referida lei sequer mencionava a possibilidade da pena de morte,
adotada em muitos outros casos. De fato, o que se percebe é adoção da lei de Talião do
ofendido contra o ofensor, cuja culpa estivesse determinada na sentença. Desde o século II a.
C. começam a aparecer ações penais que poderiam ser iniciadas não apenas pelo ofendido ou
por seus familiares, como também poderia o Estado impor, de ofício, uma pena ao
delinquente, surgindo uma concepção publicista (ius publicum) do processo penal que passou
a ser adotada juntamente com sua parte privada (ius civile). (KUNKEL, 1994, p. 31-39)

Nesse contexto, a Lei das XII Tábuas desempenhou a função de romper com a
tradição do direito costumeiro romano, ius consuetudinarium para dar início à tradição do
direito baseado na lei, ius legitimum, de modo em que o costume cedeu lugar à lei. (CRUZ,
1984, p. 200)

O senado é o órgão político da república, não detinha imperium, mas possuía


auctoritas (que pode ser traduzida como prestígio), gozando de grande influência social. As
decisões do Senado tinham forma de conselho, porém, na prática eram verdadeiras ordens,
gozando ainda da auctoritas patrum, que fazia com que as leis aprovadas pelos comícios
somente tivessem validade após serem submetidas a ele. Após a lex Publia Phionis (339 a.C)
a aprovação do Senado passou a ser anterior à votação da proposta de lei pelos comícios,
atribuindo ao Senado o poder para dar à lei seu caráter normativo, relegando aos comícios a
tarefa de apenas sancionar a vontade dos senadores ou de um magistrado. (CRUZ, 1984, p.
70-71)

O povo se reunia em assembleias ou comícios com poderes de eleger certos


magistrados e votar as propostas de lei, funcionando ainda como tribunais de última instância
na provocatio ad populum. Na República havia três espécies de comícios, a comitiia curiata

Porém, o governo desses novos magistrados foi de profundo desagrado do povo, tendo os magistrados sido
expulsos por uma revolta popular e as duas tábuas elaboradas não foram aprovadas pelos comícios.Contudo, em
449 a.C, foram eleitos dois cônsules, Valério e Horácio, que, sem entenderem o descontentamento do povo,
mandaram afixar no fórum as doze tábuas, as aprovadas e as rejeitadas pelos comícios. As doze tábuas acabaram
destruídas no incêndio de Roma na invasão dos Gauleses em 390 a.C. (CRUZ, 1984, p. 178-180)
101

(que estava em franca decadência), comitia centuriata (que intervinha na eleição dos
cônsules, dos pretores, do ditador e dos censores, e na votação das leis propostas por esses
magistrados), e a comitia tributa (que elegiam alguns magistrados menores e votavam
algumas leis). Além deles três comícios havia ainda o comício da plebe (comitia plebis) que
tinha atribuição para emitir as plebiscita, que inicialmente não tinham sequer caráter
vinculativo, sendo que após a lex Valeria Horacia (449 a.C) passaram a vincular a plebe e
após a lex Hortensisa (287 a.C) passaram a ter força obrigatória a todo povo romano . (CRUZ,
1984, p. 71)

Apesar do marco temporal de passagem do período da monarquia para a república


datar do ano de 510 a.C., a constituição política de Roma pouco mudou nos primeiros tempos
republicanos, podendo-se afirmar que a república somente iniciou, de fato, no ano de 367
a.C., quando foram estabelecidas uma verdadeira divisão de poderes pelas várias
magistraturas que haviam sido criadas. Originalmente a palavra magistratus significava o
cargo de governo (magistratura) e a pessoa que governava (magistrado), compreendendo os
detentores dos cargos políticos do consulado para baixo, sendo os magistrados aqueles que
detinham o imperium, poder de soberania absoluto que não podia ter oposição dos cidadãos e
que antes pertencia aos reis. Na república, o caráter absoluto do império era limitado por três
circunstâncias: a) temporalidade (os magistrados exerciam mandato normalmente de um ano);
b) pluralidade (o poder era repartido por várias magistraturas); e c) colegialidade (em cada
magistratura havia mais de um magistrado, que poderia exercer poder de veto sobre as
decisões do colega, veto este que também poderia ser exercido pelo magistrado de maior grau
sobre as decisões do de menor grau). Além disso, as decisões dos magistrados baseadas no
poder do imperium poderiam estar sujeitas à apelação (provocatio ad populum) para a
assembleia do povo, comitia centuriata. (CRUZ,1984, p. 63-65)

As magistraturas eram divididas entre ordinárias (em ordem hierárquica do cargo


inferior para o superior, sendo que o acesso aos cargos mais relevantes somente poderia ser
alcançado após o exercido o cargo antecedente por no mínimo um ano: 1º questor; 2º edil
curul; 3º pretor; 4º cônsul; 5ºcensores, que eram o grau supremo do cursus honorum) e
extraordinárias (o tribunato da plebe e a ditadura), sendo seu exercício uma carreira de honras,
exercido segundo critérios de dignidade. (CRUZ, 1984, p. 65-66)

Os magistrados possuíam três poderes básicos, a potestas (poder de representar o povo


romano, que poderia ser exercido em maior ou menor grau); o imperium (poder de soberana
102

que compreendia o poder de comandar exércitos, de convocar o senado, de convocar


assembleias populares e de administrar a justiça), sendo que o império era exclusivo apenas
dos cônsules, dos pretores e dos ditadores. A partir da criação da pretura em 367 a.C, a
faculdade de administrar a justiça passou a estar contida no próprio império. Por sua vez a
iurisdictio, poder que competia aos pretores, aos edis curúis (apenas nos procedimentos
litigiosos referentes às matérias que deveriam superintender) e aos questores (nas causas
criminais). Dessa forma, o pretor era um magistrado que contava com três poderes, potestas,
imperium e iurisdictio. (CRUZ, 1984, p. 65-66)

Após as Leis Licinias Sextias, do ano de 367 a. C., a função do petor começou a ser
modificada para designar apeanas um titular do imperium, criando a figura do pretor agora
vinculada à jurisdição urbana, incumbindo a ele o exercício da jurisdição. (KUNKEL, 1994,
p. 25). Essa mudança na função do pretor representa a efetiva criação da figura do terceiro
imparcial, que representou um passo importante para a superação da vingança privada para
um processo penal público, ainda que de caráter vingativo.

O passo da vingança privada ao processo penal tem lugar quando a função de julgar
é confiada com caráter exclusivo a um terceiro órgão. Com a instituição das
quaestiones perpetuae, que eram comissões permanentes às quais lhes era conferida
a jurisdição penal para delitos concretos, o processo adquire um caráter público,
ainda que a acusação ficasse nas mãos da iniciativa privada: do ofendido em juízos
privados, ou de qualquer cidadão, em representação da sociedade, naqueles delitos
públicos nos quais se havia afetado um interesse do Estado. (ILLUMINATI, 2008,
p. 137, tradução livre)38

Dessa forma, os cargos das magistraturas eram ocupados apenas por cidadãos
romanos patrimonialmente favorecidos, que podiam dispor de seu patrimônio pessoal em prol
do bem comum. Isso fazia do sistema romano um modelo dominado pelos patrimonialmente
mais favorecidos, que usavam de seus cargos como forma de se manter no poder do Estado
Romano.

A jurisprudência, principal fonte do ius, não era uma profissão qualquer, era um
ministério (sacerdócio) reservado aos pontífices, inicialmente, e depois à nobreza romana. O

38
No original: ―El paso de la venganza privada al proceso penal tiene lugar cuiando la función de juzgar es
confiada con carater exclusivo a un tercer órgano. Con la institución de las quaestiones perpetuae, que eran
comisiones permanentes a las cuales les era conferida la jurisdicción penal para delitos concretos, el proceso
adquire un carácter público, aunque la acusación quedase aún en manos de la iniciativa privada: del ofendido
en los juicios privados, o de cualquier ciudadano, en representación de la sociedad, en aquellos delitos públicos
en los que se hubiera visto afectado un interés del estado‖ (ILLUMINATI, 2008, p. 137)
103

saber jurídico dos jurisconsultos lhes garantia grande prestígio e vantagens políticas. (CRUZ,
1984, p. 57)

O termo pretor deriva de praetor (prae-itor), e significa o que vai à frente. No


princípio do Direito Romano arcaico designava genericamente o chefe de qualquer
organização, por isso os cônsules, que eram os magistrados mais antigos, continuadores dos
reis como detentores do poder supremo, se intitularam pretores, por serem os chefes militares.
Mesmo após a criação da questura (aproximadamente em 450 a.C) e da censura (443 a.C), a
palavra pretor manteve a generalidade para designar qualquer magistrado, somente com as
leges Liciniar Sextiae em 367 a. C, é que foi criada a magistratura dos pretores e a designação
pretor perdeu seu caráter genérico para adotar o significado de magistrado encarregado
especificamente de administrar a justiça nas causas civis. Contudo, o pretor atuava apenas na
primeira fase do procedimento, que era dividido em duas fases fase in iure e fase apud
iudicem, na primeira o pretor analisava o aspecto jurídico da causa dizendo o dirieto a ser
aplicado, na segunda, o iudex, que era um particular e não um magistrado, apreciava-se a
questão de fato e a prova. (CRUZ, 1984, p. 67-69)

A ―fase in iure‖ (...) era importantíssima; decisiva para a vida do processo. Aí se


verificava um ius-dicere, uma afirmação solene da existência ou não existência de
direito (e para isso o pretor tinha a iuris-dictio); esse ius-dicere concretizava-se num
iudicare iubere dirigido ao juiz, isto é, numa ordem dada pelo pretor ao juiz para
proferir sentença neste ou naquele sentido, conforme se provasse ou não
determinado facto. Na 2ª fase do processo não há um ius-dicere, mas um simples iu-
dicare, um aplicar o direito, isto é, julgar, decidir conforme uma ordem jurídica já
anteriormente fixada. (CRUZ, 1984, p. 69)

Nesse período, o pretor exercia a magistratura e cabia a ele, diante do caso concreto
levado pelas partes, dizer o direito a ser aplicado, exercendo a jurisdição para dizer o que seria
bom e justo para o caso concreto (BRANDÃO, 2017, p. 154). O procedimento é bifásico,
onde já na primeira fase o pretor determinava o direito a ser aplicado, determinando aquilo
que seria bom e justo para a solução do conflito através da sentença. Após o pretor dizer o
direito, na segunda fase do procedimento, cabia ao juiz, que não era um magistrado, mas um
mero funcionário, a aplicação do direito dito pelo pretor, proferindo a decisão segundo a
prova produzida e aplicando o direito na forma determinada pelo pretor, exercendo a
judicatura. Dessa forma, jurisdição e judicatura não possuem originalmente o mesmo
significado e nem podem ser confundidas. A jurisdição era tarefa exclusiva do pretor, que
atuava sem qualquer contato com a prova, em uma estrutura acusatória, uma vez que a
104

decisão do pretor era tomada antes da prova e cabia ao juiz apenas aplicar o direito criado
pelo pretor de acordo com aquelas provas produzidas.

O direito é comparado à arte e o pretor, que era o juiz romano, ao artesão: assim,
como o artista constrói a peça de arte, cabe ao pretor construir, no caso concreto, a
decisão boa e justa. O direito é uma arte porque se extrai do caso a solução que
concretiza a justiça na situação concreta, é esta a boa decisão. Na idéia romana de
direito, a solução para a lide brota do caso, não de uma norma geral e prévia, que se
assemelha a um caminho pré-determinado que deve ser seguido pelo pretor.
Destarte, o direito romano não coloca a lei como fonte principal do dirieto, mas ela
servirá como um esquema de interpretação, que pode ser afastado através do arbítrio
do pretor, sempre que sua solução não conduzir a uma decisão boa e justa.
(BRANDÃO, 2017, p. 155-157)

Na República as provas eram produzidas pelas partes, perante o juiz, daí surgindo a
cognitio. Nesse procedimento, Geraldo Prado aponta que era necessária a presença do
acusador particular que atuava ora na defesa do próprio interesse ora no interesse público da
sociedade. Esse novo procedimento surgiu como decorrência dos novos interesses da
sociedade e como manifestação do antigo modelo às necessidades. (PRADO, 2006, p. 75)

A forma acusatória adotada na época, prescindindo de uma investigação anterior, era


dominada integralmente pelo contraditório, cumprindo às partes pesquisarem e
produzirem as provas das suas alegações. Tratava-se de um modelo de processo
público e oral, cujos debates formavam o eixo central, dos quais derivava o
fundamento da decisão. Nesse paradigma processual, as partes tinham, via de regra,
a disponibilidade do conteúdo do processo, competindo ao Estado tão só o
conhecimento e julgamento da ação criminosa, em se tratando de delicta publica.
(PRADO, 2006, p. 75-76)

Contudo, apontar uma única forma de procedimento penal na fase da república


configura uma simplificação, não havia uma única forma punitiva nesse período, nesse
sentido, Theodor Mommsen (1905) aponta outras formas de procedimentos penais, algumas
de índole acusatória e outras inquisitórias. Nesse contexto, Mommsem aponta como formas
de julgamento penal na fase republicana: a) o procedimento penal público em que somente
intervinham os magistrados; b) o procedimento penal em que intervinham o magistrado e os
comícios; c) o procedimento privado por causa de delito. E, ao final da fase republicana e
antes do início do principado, Mommsen aponta ainda outras formas de juízo criminal: d) o
juízo por júri sob a presidência de um magistrado; e) o procedimento penal municipal; f) o
procedimento penal dos governadores das províncias; g) o procedimento penal em que
intervinham os cônsules e o senado.
105

A primeira forma de procedimento é o procedimento público no qual interviam apenas


os magistrados, que tem como base o imperium o magistrado, que dentro da cidade de Roma
era regulado pela lei e fora da cidade era exercido de forma livre e discricionária, não
reconhecendo limites. Desse modo, estavam sujeitos ao julgamento, através do procedimento
em que apenas o magistrado intervinha: os cidadãos romanos, as mulheres, os estrangeiros e
os indivíduos livres. Era um procedimento inquisitivo, onde não havia interferência das
partes, sendo que o denunciante normalmente exercia a função de demandante, enquanto a
defesa era normalmente exercida na forma de autodefesa pelo próprio imputado. Apesar de
inquisitivo, o magistrado não poderia inciar o procedimento, porém a atuação do magistrado
não encontrava limites, apesar de não iniciar o procedimento, o magistrado poderia atuar de
forma livre na busca da prova. (MOMMSEN, 1905, p. 153-161)

O procedimento penal onde apenas o magistrado intervinha não contava com a


existência do acusador, sendo essa função exercida pelo próprio julgador. Cabia, assim, ao
magistrado a acusação, a prova e o julgamento, declarando o acusado culpado ou não do fato.
(MOMMSEN, 1905, p. 467)

O procedimento oposto àquele onde apenas o magistrado atuava é estabelecido pelo


procedimento penal onde intervinham o magistrado e os comícios, que se tratava de um
procedimento dividido em cinco fases. Esse procedimento decorreu da expansão de roma e da
necessidade de se realizar julgamentos penais além da cidade de Roma que acarretou na
existência de magistrados além dos limites da cidade de roma, sendo consequência da luta de
classes entre patrícios e plebeus que gerou a constituição de uma cidadania não patrícia para
fazer frente à antiga nobreza da cidadania patrícia. O procedimento tinha aplicação quando o
acusado era cidadão romano, sendo que nesse procedimento, a sentença era pronunciada pelo
magistrado, contudo a execução da pena ficava sujeita à confirmação pelos cidadãos caso
fosse imposta pena de morte ou pena patrimonial superior a um valor estabelecido.
Basicamente esse procedimento era adotado em três grupos de acusações: nos delitos públicos
quando se poderia aplicar a pena de morte; nas ofensas à plebe (posteriormente esse
procedimento passou a ser adotado também nos delitos contra o Estado), quando houvesse a
possibilidade de aplicação da pena capital, e em juízos que se impunham penas de multa
especificados em lei. Esse procedimento introduziu a possibilidade de uma apelação aos
cidadãos, organizados nos comícios, aos quais a execução da pena ficava condicionada.
(MOMMSEN, 1905, p. 162-174)
106

Esse procedimento não iniciava de ofício, sendo sempre necessário a existência de


uma denúncia por um particular, essa denúncia era, de fato, uma acusação que deveria ser
admitida pelo magistrado competente. O denunciante adquiria os direitos inerentes a uma
parte processual e deveria levar o adversário ao tribunal. (KUNKEL, 1994, p. 74-75)

A primeira fase, denominada diei dictio, tinha por objetivo a localização do acusado,
sendo que, quando o ele fosse cidadão romano, era necessário que fosse localizado para que o
magistrado pudesse realizar a instrução sumária. Essa instrução constituía a base do
procedimento perante o magistrado e os comícios, apesar de que juridicamente não havia
necessidade de tal instrução. A localização do acusado diferenciava o procedimento em
análise daquele onde apenas o magistrado intervinha. Localizado o acusado, passava-se à fase
da instrução preliminar. (MOMMSEN, 1905. p. 175-176)

Na segunda fase, denominada anquisitio, se dava a instrução sumária que correspondia


com a questio do procedimento inquisitório onde apenas o magistrado intervinha. Contudo, se
diferenciava da questio porque as decisões definitivas não poderiam ser tomadas pelo
magistrado, ficando nas mãos do povo (comícios). Nesse procedimento cabia ao magistrado
expor aos cidadãos os elementos constitutivos do delito, e as provas consistiam no
interrogatrório do acusado, além da prova testemunhal e documental. A defesa era exercida
apenas pelo próprio réu (autodefesa), excepcionalmente, poderia haver o patrocínio jurídico
da causa por terceira pessoa. Durante a contio, todo cidadão que não estivesse sendo
processado por má conduta poderia pedir a palavra ao magistrado. Após a instrução, na
terceira fase, o magistrado pronunciava a sentença (iudicium) podendo absolver ou conenar o
acusado, em caso de condenação poderia aplicar uma pena que poderia ser tanto pecuniária
como a morte. (MOMMSEN, 1905, p.176-177)

Após a acusação ser admitida, era constituído o consilium, mediante sorteio, para se
definirem os jurados que decidiriam se o acusado era culpado ou inocente, podendo o acusado
recusar um número de jurados.O julgamento se dava através do debate entre as partes e o
acusador apresentava e interrogava as testemunhas que havia convocado e o próprio acusado
interrogava as testemunhas a seu favor, podendo ser representado por advogado. Os jurados
permaneciam em silêncio e era vedado o diálogo entre eles. O magistrado se limitava apenas a
manter a ordem nas sessões e os jurados decidiam através do depósito do voto em uma urna,
sendo que o empate favorecia ao acusado. (KUNKEL, 1994, p. 75-76)
107

O condenado poderia se opor à execução da sentença, invocando uma decisão dos


comícios (cidadãos), sendo que a apelação possuía efeito suspensivo, caso o magistrado
cumprisse a pena de morte antes do julgamento do recurso ele próprio poderia ser condenado
à mesma pena. A interposição do recurso ao povo é considerada a quarta fase do
procedimento, sendo que a última fase é constituída pelo julgamento do recurso perante os
comícios. Interposto o recurso, competia ao magistrado convocar os cidadãos, sendo que, nos
primeiros tempos da república, os magistrados patrícios convocavam as centúrias patrício-
plebéias e os magistrados plebeus das tribos plebeias, com a lei das XII Tábuas a competência
passou a ser dos Comícios centuriatos, que era a maior assembleia do povo naquele período.
Os comícios não representam uma instância recursal propriamente dita, mas uma instância de
graça, já que não poderiam alterar a pena aplicada pelo magistrado, nem para majorar e nem
para minorar, podendo perdoar o acusado ou não. O tribunal da cidadania romana era a
expressão jurídica plena da liberdade dos cidadãos romanos, tendo sido adotado até a queda
da república e desaparecido junto dela. (MOMMSEN, 1905, p. 178-185)

Manzini (1950, p. 5-6), aponta a cognitio como a forma mais antiga de procedimento
criminal, nela, o magistrado tinha o máximo poder instrutório (Inquisitio) e de decisão,
possibilitando aos indivíduos, apenas cidadãos romanos homens, a faculdade de apelar ao
povo, (provocatio) contra a sentença do julgador, determinando um novo procedimento
(anquisitio). No mesmo sentido, Geraldo Prado (2006, p. 74) aponta que a cognitio, baseada
na inquisitio, era um procedimento de natureza pública, realizada em nome do Rei, por ele
próprio ou por um representante, que detinha amplos poderes de iniciativa, instrução e
deliberação. Vale o complemento dado por Mommsen:

É evidente que este procedimento penal público em sua mais antiga forma, ou seja
coerção primitiva correspondente aos magistrados, como podemos também chama-
lo, deixava os indivíduos entregues ao arbítrio sem limites dos órgãos do imperium;
e toda a evolução interna da comunidade romana veio a fazer que o exercício do
imperium de verificasse de forma ordenada pela lei, a expressão mais antiga desta
limitação legal do imperium teremos nas ligações propostas ao exercício da
potestividade penal com respeito aos cidadãos, e devidas à transformação ante todo
procedimento penal capital público em um procedimento no qual intervinham os
Comícios juntamente com o magistrado.39 (MOMMSEN, 1905, p. 338-339, tradução
livre)

39
No original: ―Es evidente que este procedimiento penal publico en su más antigua forma, o sea la primitiva
coerción correspondiente á los magistrados, como podemos también llamarlo, dejaba á los individuos
entregados al arbitrio sin limites de los órganos del imperium; y si toda la evolución interna de la comunidad
romana vino á parar á que elo ejercicio del imperio hubiera de verificarse en la forma ordenada por la ley, la
expresión más antigua desta limitación legal del imperium la tenemos en las ligaduras puestas al ejercicio de la
potestad penal con respecto á losciudadanos, y debidas á la transformación ante todo del procedimiento penal
capital público en un procedimiento en qual intervinían los Comicios juntamente con el magistrado.‖
(MOMMSEN, 1905, p. 338-339)
108

Tal qual a fase do Reinado, a República também manteve a divisão entre delitos
públicos e privados, sendo que os delitos públicos eram aqueles cuja lesão se dava à
comunidade e estavam submetidos ao procedimento inquisitório. Por sua vez, os delitos que
causassem danos aos particulares se sujeitavam a um procedimento em contraditório entre as
partes submetidos à arbitragem do magistrado. Nesse procedimento se aplicavam as normas
do direito privado, devendo o autor produzir as provas, inclusive se incumbindo de fazer com
que as testemunhas comparecessem ao julgamento. (MOMMSEN, 1905, p. 186-195)

Durante a República surgiu ainda o julgamento por um corpo de jurados presidido por
um magistrado, que figurou como o procedimento ordinário da República até o Principado, tal
procedimento é normalmente referido como o procedimento penal da República, mas que,
como vimos, não representa o único procedimento que foi adotado nesse período da história
de Roma. Trata-se de um procedimento que combinava, em um modelo bifásico, o
procedimento inquisitório presidido por um magistrado e sem intervenção de partes com o
procedimento privado por causa de delitos, seguido de um julgamento por jurados. ―Este
sistema foi uma novidade, pois reununiu e transformou os sistemas processuais vigentes,
aqueles de que se fazia uso‖40. (MOMMSEN, 1905, p. 196, tradução livre)

Tal qual o procedimento por questões, questio, o procedimento por jurados era
inicialmente dirigido por um magistrado. Na primeira fase prevalecia a inquisitoriedade do
julgamento pelos magistrados, porém, a grande novidade é o julgamento acusatório
proporcionado na segunda fase. Trata-se de um procedimento que tinha por base o princípio
ético do Direito Penal, assim como os juízos por magistrados em que os comícios
intervinham, demandando uma imputação moral, uma accusatio. A accusatio era um juízo
público que se dava através de um processo acusatório que demandava a existência de partes.

Segundo aponta Manzini (1950, p. 6), a accusatio surgiu no último século da república
e configurava um procedimento no qual a função de acusar não era acumulada com a de
julgar, sendo exercida ou por um outro funcionário público ou por um particular em
representação da coletividade.

Nessa época se manifestam as características que posteriormente se considerariam


típicos do sistema acusatório, vinculados precisamente com a natureza privada da
acusação: a discricionariedade no exercício da ação penal; a carga da prova sobre o
acusador; a igualdade das partes; a disponibilidade da prova pelas partes; a
publicidade e oralidade do juízo; e finalmente a posição passiva do juiz, o qual atua

40
No original: ―Este procedimento fue uma noveadad, em cuanto que reunió y transformo los sistemas
procesales vigentes, aquellos de que se hacía uso.‖ (MOMMSEN, 1905, p. 196)
109

como árbitro frente à controvérsia. 41 (ILLUMINATI, 2008, p. 139-139, tradução


livre)

Da natureza privada da ação penal no direito romano é que nascem as características


clássicas do sistema acusatório como a discricionariedade da ação, o ônus da prova dirigido à
acusação, o processo baseado na igualdade de partes e a atribuição às partes de toda atividade
e disponibilidade das provas, além da oralidade e do debate, colocando o julgador na posição
de árbitro imparcial. (FERRAJOLI, 2006, p. 520)

Fixada a acusação, o imputado recebia a condição processual de réu (―reatus‖),


marcava-se data para o julgamento (―diei dictio‖), com tempo suficiente para que o
acusador investigasse os elementos para demonstrar sua acusação, tudo
acompanhado do acusado ou de pessoa por ele indicada. Garantia-se, portanto, o
direito à defesa.
Naquela data (―diei dictio‖) formava-se o órgão julgador (tribunal popular), após
aceitação pelas partes de alguns dos jurados convocados e presentes. As partes
debatiam a acusação, produzia-se a prova em contraditório, com pouquíssima
participação do ―quaestor‖ presidente na sua formação, sendo-lhe vedado, inclusive,
indagar as testemunhas. (MORAES, 2010, p. 15)

Em complemento, Kai Ambos aponta o procedimento do processo penal no período da


República:
Formulada a acusação privada (accusatio), os delitos ordinários eram julgados por
uma assembleia popular através do iudicium populum contra cidadãos romanos.
Com a apresentação da accusatio o acusador assumia a obrigação ética de apesentar
a acusação justa frente ao acusado e por sua vez assumia que o processo poderia se
dirigir contra o próprio acusador. Para os delitos de alta traição nos quais existia um
interesse público em que foram perseguidos, existia um processo de instrução oficial
(a denominada inquisitivo), levada a cabo por um funcionário nomeado pelo cônsul
para o caso concreto, denominado questor. Em consequência, este processo estava
regido pelo princípio da oficialidade mas seu objetivo não se concentrava na
averiguação da verdade material, mas unicamente na determinação da culpabilidade
ou não do imputado pelo fato delitivo utilizando para isso os meios de prova de
caráter irracional como o ―Reinigungseid‖ (ou juramento purgador), os
―Eideshelfer‖ (jurados de apoio,) e ordálias ou juízos de Deus. 42 (AMBOS, 2008, p.

41
No original: ―En esta época se manifestan los caracteres que posteriormente se considerarían como típicos
del sistema acusatorio, vinculados precisamente con la natureza privada de la acusación: la discricionalidad en
el ejercicio de la acción penal; la carga de la prueba sobre la parte acusadora; la igualdad de las partes; la
disponibilidad y oralidad del juicio; y finalmente, la posición pasiva del juez el cual actúa de árbitro frente a la
controversia.‖
42
No original: ―Formulada la acusación privada (accusatio), los delitos ordinarios eran enjuiciados por la
asemblea popular a través del iuducium populum contra ciudadanos romanos. Con la presentación de la
accusatio el acusador asumía la obligación ética de presentar uma acusación justa frente al acusado y a su
vez asumía la obligación que el proceso pudiera dirigirse comtra el próprio acusador. Para los delitos de alta
traición en los que existía un interés público en que fueran perseguidos, existía un proceso de instruccíon
oficial (la denominada inquisitio), levada a cabo por um funcionário nombrado por el cônsul para el caso
concreto, denominado questor. En consecuencia, este proceso estaba regido por el principio de oficialidade
pero su objetivo no se centraba em la averiguación de la verdad material, sino unicamente en la
determinación de la culpabilidade o no del imputado por el hecho delictivo utilizando para ello medios de
prueba de caráter irracional como el “Reinigungseid” (o juramento purgador), los “Eideshelfer” (jurados de
apoyo) y ordálias o juicios de Dios.‖ (AMBOS, 2008, p. 51-52)
110

51-52, tradução livre)

Apesar de Geraldo Prado (2006, p. 75-76) afirmar que a forma acusatória dominava
integralmente esse procedimento, como vimos o procedimento do julgamento por jurados
combinava o procedimento do julgamento pelo magistrado, de viés inquisitório, com um
julgamento pelos jurados em contraditório na forma dos delitos privados. Assim, não se pode
dizer que o procedimento fosse integralmente permeado pela acusatoriedade, mas que sua
segunda fase, o julgamento pelos jurados em si o era. Vale salientar com o processualista
carioca que esse julgamento pelos jurados era de fato um ―modelo de processo público e oral,
cujos debates formavam o eixo central, dos quais derivava o fundamento da decisão‖
(PRADO, 2006, p. 75), tendo as partes a disponibilidade do conteúdo do processo e deixando
ao Estado apenas conhecer e julgar a ação criminosa.

Contudo, o procedimento por jurados, que nasceu no decorrer da república, foi


perdendo espaço na época do Principado, sendo que nesse período somente uma pequena
parte dos delitos é que eram submetidos ao denominado procedimento ordinário, deixando de
existir durante o governo de Diocleciano. (MOMMSEN, 1905, p. 204)

O crescimento de Roma e o aumento do comércio fez com que a centralização da


resolução dos conflitos apenas na cidade de Roma se tornasse inviável, sendo necessário
estabelecer formas de julgamentos aplicáveis fora em outros municípios. Incialmente foram
estabelecidos para o julgamento das causas civis e posteriormente ganharam competência para
os julgamentos penais, sendo que dentro dos limites de sua circunscrição, as autoridades
judiciarias exerciam os poderes decorrentes do imperium jurisdicional tal qual os Pretores
exerciam em Roma, extendendo sua competência também para os delitos privados.
(MOMMSEN, 1905, p. 229-235)

As disputas e os conflitos pelo poder entre a aristocracia romana acabaram por colocar
fim à República, provocando a concentração do poder e as relações de fidelidade a amizade
política, que passaram a constituir a base da política romana. Essas lutas foram conduzidas
através dos meios mais cruéis, como mandos miitares extraordinários e poderes
constitucionais extraordinários galgados por alianças políticas e sangrentas guerras civis,
responsáveis pela eliminação do melhor da aristocracia romana, abrindo caminho para a
instauração de uma monarquia em Roma, uma vez que a soberania passou a se concentrar nas
mãos do mais forte. (KUNKEL, 1994, p. 53-54)
111

Com isso, restava terminada a fase da República para dar lugar ao principado, que
serviria de etapa de transição para o império absolutista da última fase de Roma antes de sua
extinção completa.

3.4 O Principado e a retomada inquisitória

A crise da constituição republicana ocasionada pelo alargamento extraordinário do


poder de Roma, pela desmoralização de sua gente, pelo aparecimento de novas classes sociais
que ensejou em novas lutas de classes, pelo antagonismo entre a velha nobreza e a nova
aristocracia (formada por armadores de navios, banqueiros e industriais), e pela revolta dos
escravos em busca da liberdade bem como pelo frequente amparo na magistratura da ditadura,
que era reservada a casos excepcionais fez com que a constituição da república chegasse a sua
derrocada. A desilusão com o absolutismo de Sila, com o reinado de Pompeu e com a
monarquia de César após a incorporação do egito (30 a.C), faz com que o povo de Roma veja
em Octavio César Augusto o princeps civitatis, o primeiro cidadão e único capaz de restaurar
a paz e a justiça e vencer o caos moral, político e econômico. Nesse contexto é que Octavio se
aproveita para se afirmar como um político hábil para instaurar o principado. Nesse contexto,
Augusto foi um pacificador, construindo um período de paz duradorura conhecida pela
história como pax augusta. (CRUZ, 1984, p. 72-73)

Não se deve andar muito longe da realidade, pensando que, logo de início, o
principado era uma monarquia sui generis, de tendência absolutista, baseada no
prestígio de seu fundador, mas sem desprezar (pelo menos, na aparência) as
estruturas republicanas existentes: um império com aparências republicanas e
democráticas. (CRUZ, 1984, p. 73)

Augusto não queria ser apenas um soberano designado constitucionalmente, queria ir


além, desejava ser o primeiro cidadão, o princeps (por isso a designação principado) de uma
cidade livre. Com isso, Augusto ganhou um poder político que não poderia existir na
República, concentrando em suas mãos a autoritas. Todo poder que na República era
repartido entre seus órgãos, agora recaia sobre uma única pessoa. (KUNKEL, 1994, p. 56-57)

A reforma constitucional ocorrida em 27 a.C e que marca o fim da República e início


do principado dividiu o poder entre o Princeps, o Senado e o Povo, além de outorgar poderes
de pretores aos governadores das províncias. (CRUZ, 1984, p. 74)
112

O Princeps representa a figura central da nova constituição política de Roma, o


príncipe não era um magistrado, ele ―encarna um novo órgão político, de caráter permanente,
investido de um imperium especial e da tribunicia potestas‖. Aos poucos Augusto vai
concentrando na figura do princeps o melhor imperium das magistraturas, a auctoritas do
senado e dos jurisconsultos e a maiestas do povo. O principado é um modelo de concentração
de poderes nas mãos do Princeps, contudo, as magistraturas republicanas não deixam de
existir, contudo perdem poder gradualmente e tornam-se cada vez mais irrelevantes e
subordinadas ao Princeps, sendo os magistrados, cônsules e pretores, transformados em
funcionários executivos. (CRUZ, 1984, p. 74-75)

O princeps é a nova e grande figura da constituição política de Roma. Não sendo


nem rei, nem cônsul nem sequer magistratus, tem um poder quase absoluto, por
estar investido da tribunitia potestas com caráter vitalício e do imperium pro
consulare maius praticamente tembém com caráter vitalício. As antigas magistrauras
republicanas, sobretudo os cônsules e pretores, transformaram-se em funcionários
executivos. Surge o funcionalismo, tudo e todos subordinados ao princeps numa
colaboração... forçada. (CRUZ, 1984, p. 269-270)

A posição do Princeps tinha seu centro de gravidade fora da ordem da República,


vinculando a uma ideologia que não poderia ser compreendida apenas através de conceitos
jurídicos. Dessa ordem ideológica tem início com o sobrenome Augusto, que era concedido
pelo Senado a Octavio com o título honorífico de ―pai da pátria‖, além disso o príncipe era
tido como uma figura divina após sua morte. Os poderes outorgados ao príncipe lhe
asseguravam as condições necessárias para toda intervenção polítca em Roma. (KUNKEL,
1994, p. 61)

O Senado, por sua vez, ganha importância por um lado, eis que suas decisões
senatusconsulta lhe davam atribuições legislativas, e por outro perde sua autoridade política
que passa gradualmente para o princeps. Porém, gradualmente o Senado perde inclusive suas
atribuições legislativas para, ao final do principado se resumir apenas aos discursos do
imperador. (CRUZ, 1984, p. 75)

Até o século I a.C, os senatusconsultos eram meros pareceres do Senado dados aos
magistrados e sem nenhuma força vinculante, sendo a intervenção do Senado em matéria
legislativa bastante limitada à concessão ou não de auctoritas patrum às leis coiciais e e
recomendar medidas aos magistrados. Com a reforma constitucional que instaurou o
principado, os senatusconsultos passaram a ser fonte imediata do direito, adquirindo o Senado
competência legislativa. Porém, no século II, com Adriano, o Senado perde poder até que,
113

com os Severos, fins do século II, são designados apenas aos discursos do imperador. (CRUZ,
1984, p. 218-223)

O Senado ganhou gradualmente o lugar das assembleias populares (comícios), sendo


que durante a época de Tiberio assumiu a faculdade de eleger magistrados. A legislação
popular caiu em desuso durante o principado e o povo teve sua participação reduzida apenas
ao papel de comparecer nas solenidades estatais. Em contrapartida o Senado teve sua
participação ampliada, adquirindo a competência legislativa e eletivas. (KUNKEL, 1994, p.
59-60)

Os comícios, representação do povo, não foram abolidos, mas tiveream seus poderes
esvaziados, passando, principalmente, para o exército, terminando por acabarem por
inatividade. O principado é marcado pela criação de um corpo de funcionários que se dirigem
apenas ao imperador criando a burocracia na administração do Império. Os magistrados
perderam gradualmente poder e, ao lado dos tribunais ordinários, na forma existente na
República, passaram existir procedimentos extraordinários, presididos pelo próprio imperador
e adotando o sistema inquisitório.

Ao lado dos tribunais ordinários (ordo iudiorum privatorum) em que o processo


tinha duas fases - in iure, perante um magistrado, e apud iudicem, perante o juiz –,
havia uma forma ―extra-ordinária‖ de processar (extra-ordinem cognitio). Era um
tribunal especial, presidido pelo imperador, com amplos poderes judiciais.
Funcionava quer em primeira instância, quer como tribunal de apelação. O processo
aqui não tinha duas fases, mas uma; o imperador desempenhava cumulativamente as
funções de magistrado e de juiz, pois organizava o processo, apreciava as provas e
proferia a sentença. – As sentenças dadas por esse tribunal, que eram portanto
decisões do imperador verdadeiramente judiciais, chamavam-se decreta. (CRUZ,
1984, 274)

As magistraturas menores foram mantidas por Augusto, uma vez que o princeps não
tinha razão para assumir suas funções especiais, dessa forma foram mantidas a competência
dos pretores para a jurisdição civil e criminal, tal qual existiam no fim da República. Contudo,
se desenvolveu, inicialmente no campo penal e posteriormente na esfera civil, uma jurisdição
especial dos funcionários imperiais que foi gradualmente tomando lugar dos tribunais
ordinários dirigidos pelos pretores. (KUNKEL, 1994, p. 59)

O aumento do proletariado e do contingente de escravos, acompanhado do


crescimento da violência passou a exigir reformas, objetivando a manutenção da segurança
pública, fazendo nascer na virada entre os séculos III e II a.C uma justiça policial contra
delinquentes com violência, incendiários, envenenadores e ladrões, onde se estabeleceu a eles
114

a pena de morte. Os escravos e os membros dos extratos baixos da sociedade eram designados
magistrados menores, que tinham a incumbência de garantir a segurança da urbe, vigiar os
cárceres e promover as execuções, podendo executar os delinquentes confessos ou apanhados
em flagrante provavelmente sem sequer processo. Os escravos eram forçados a confessar
mediante tortura. (KUNKEL, 1994, p. 71-72)

A expansão de Roma trouxe a necessidade de se distribuir a administração das


províncias conquistadas, inicialmente província significava o cargo confiado a um
magistrado, porém, em sentido secundário, designava o próprio território sobre o qual um
magistrado exercia seus poderes. Inicialmente o governo de todos os terrritórios conquistados
pelos romanos era designado pelo Senado a um magistrado dotado de imperium. Porém, com
o principado, Augusto reservou para si a nomeação direta dos governadores das províncias.
Os governadores das províncias possuíam não só o imperium como também a iurisdictio e
publicavam seu edictum, dessa forma, os governadores apicavam o ius Romanum, mas não o
faziam de forma pura, aplicavam de modo a adaptá-lo às necessidades da administração da
justiça na província. (CRUZ, 1984, p. 76-79)

Assim sendo, os governadores, ou os questores, em seu nome, exerciam a jurisdição


tanto penal como civil nas províncias, tendo competência para o julgamento dos cidadãos
romanos e dos peregrinos, fosse em razão da leges província ou por sua vontade arbitrária.
(KUNKEL, 1994, p. 94)

A atividade jurisdicional dos governadores das províncias abrangia também a


aplicação da lei penal, instituindo tribunais romanos fora da Itália. Tal forma de julgamento
penal surgiu com o acordo do povo relativo à Sicilia e expandido pouco a pouco para todo
território romano, tendo sido adotado desde a república até o principado. Nesse contexto, os
presidentes das províncias possuíam o título de pretores, sendo encarregados de execer a
jurisdição civil, o comando do exercito e o exercício do imperium, que raramente exerciam e
era adquirido no ato de sua posse no cargo. Como já afirmamos o imperium é característica
central para o exercício do julgamento penal, fazendo com que os governadores das
províncias pudessem administrar a justiça dentro de sua circunscrição e poderia executar as
penas que devessem ser cumpridas dentro de sua província. Por sua vez, o pretor provincial
não gozava de atribuições judiciais penais, competindo ao governador seu exercício, podendo
aplicar inclusive a pena capital contra os seus cidadãos. Nesse contexto, o papel dos
governadores das províncias se resumia a manter os súditos obedientes e não permitir que os
115

escravos se revoltassem. Na fase republicana o papel dos governadores se resumia ao de


juízes civis e de depositários do poder soberando, se convertendo no principado em
verdadeiros órgãos da justiça do reino. (MOMMSEN, 1905, p. 236-257)

Vê-se que os governadores atuavam no lugar dos magistrados de Roma, e que também
passaram a contar com o título de pretores e a atuar em substituição aos magistrados de Roma,
em que pese a existência de pretores municipais que não gozavam das mesmas atribuições.
Esse procedimento tinha por escopo a aplicação do direito romano além dos limites da cidade
de Roma, nos territórios que faziam parte do Estado Romano. Esse procedimento teve lugar já
no final da república no período e na fase do principado.

Kunkel aponta ainda outra forma de julgamentos penais similar à presidida pelos
governadores. Segundo o autor alemão sob o principado, os prefeitos das cidades (praefextus
urbi) também exerciam a jurisdição penal. O prefeito, diferentemente dos tribunais ordinários,
tinha competência para julgar qualquer delito contra a ordem pública e a segurança do Estado,
podendo inclusive aplicar punições com maior severidade que os magistrados ordinários. Esse
sistema começou gradualmente a minar a competência dos tribunais dos jurados desde o
século I a.C, que acabaram extintos no século II a.C. Os julgamentos dos prefeitos se davam
de forma ilimitada e o julgador atuava de forma solitária. (KUNKEL, 1994, p.77-79)

Por outro lado, Augusto ressuscitou o procedimento penal no qual intervinham o


magistrado e os comícios, que vigoraram na República e haviam sido extintos no final
daquele período, contudo ao invés dos magistrados, intervinham nesse procedimento os
cônsules e o senado. Augusto substituiu a obrigação que tinham os magistrados de estarem
submetidos às decisões dos comícios pela obrigação dos cônsules de obedecer às decisões da
maioria do Senado. Esse procedimento era aplicado aos indivíduos que faziam parte do reino
e não estavam submetidos a nenhum tribunal romano ordinário, sendo o tribunal consular-
senatório competente para conhecer todos os casos penais. O julgamento pelo senado era um
procedimento de exceção, uma vez que a maioria dos casos penais podiam ser julgados por
outros tribunais, ficando o Senado apenas o conhecimento de casos especiais. A iniciativa do
procedimento competia ao cônsul, sendo que as denúncias eram dirigidas a ele em petições ou
em demandas. Em todos os casos julgados pelos tribunais do Senado, se adotava o modelo
inquisitorial, sendo que o Senado participava da gestão da prova enquanto o cônsul era
responsável pela acusação. O tribunal penal do cônsul e do senado não estava submetido às
leis, não precisando sequer de se atentar para os conceitos do delito fixados em lei, o senado
116

tinha atribuições para aumentar ou diminuir a pena prevista em lei segundo sua própria
vontade e seus próprios interesses. Nos julgamentos perante o consulado e o Senado era
admitida a autodefesa e a assistência jurídica (defesa técnica) por meio de terceira pessoa,
tanto perante o consulado como diante do Senado. (MOMMSEN, 1905, p. 258-267)

A jurisdição do senado era limitada ao julgamento dos membros da classe senatorial,


sendo essa jurisdição considerada um privilégio de classe, já que pessoas dessa classe não
poderiam ser julgadas com a publicidade do procedimento por jurados e por pessoas que
pertenciam à uma classe inferior. Porém, os julgamentos pelo Senado passaram a refletir a
vontade do princeps e seus julgamentos adotaram conotação política, o que se revelou terrível
para os acusados e uma forma de perseguição do príncipe contra aqueles que ameçavam seu
governo. (KUNKEL, 1994, p. 79)

Segundo aponta Kunkel (1994, p. 73) esse procedimento onde havia um julgamento
colegiado teve caráter improvisado até fins do século II a.C, sendo que o consilium era
integrado pelo magistrado, que o presidia, e pelo Senado, tendo o papel de decidir sobre a
culpabilidade do acusado. Nesse procedimento o pretor peregrino atuava como presidente do
tribunal.

A concentração de poderes nas mãos do princeps fez com que durante o principado o
imperador avocasse também a administração da justiça, tendo feito de quatro maneiras
diferentes: a administração em primeira e única instância; a delegação do julgamento penal; a
resolução de apelações em segunda instância; e a resolução de pedidos de autoridades
correspondentes. (MOMMSEN, 1905, p. 268).

Desse modo, com a nova ordenação de Augusto, o princeps adquiriu faculdades


jurisdicionais dentro de seu imperium proconsulare. Apesar de os imperadores terem exercido
as atividades jurisdicionais, é importante ressaltar que apenas chegavam a seu julgamento os
procedimentos mais importantes sob uma perspectiva jurídica, social ou política sobretudo os
procedimentos contra senadores e altos magistrados da classe dos cavaleiros, a partir da queda
da jurisdição senatorial. O procedimento perante o princeps poderia ser iniciado de ofício ou
por provocação das partes. A justiça penal do princeps permitia maior liberdade
procedimental que os julgamentos perante os conselhos dos tempos republicanos, uma vez
que estes se vinculavam às leis penais da República e os do imperador estavam sujeitos
apenas às regras do princeps, que poderia aplicar penas que variavam de penas pecuniárias à
pena de morte. (KUNKEL, 1994, p. 81-83)
117

O julgamento em primeira e única instância pelo imperador consistia em um


julgamento ilimitado, representado pela manifestação do próprio imperium primitivo, não
havia sequer a exigência de confirmação da condenação à morte pelos comícios, como havia
quando a condenação era aplicada por um magistrado. A falta de limites do imperador era
absouta, podendo inclusive condenar a uma pena maior ou maior que aquela imposta pela lei.
Todos os indivíduos pertencentes ao reino estavam sujeitos a essa modalidade de jurisdição,
inclusive os de cidadãos de cidades livres, os súditos de principados sujeitos ao julgamento
pels governadores das províncias e os cidadãos romanos, inclusive das classes mais
privilegiadas, os cavaleiros e os senadores. O procedimento perante o princeps era um
procedimento excepcional, podendo ser utilizado a qualquer momento de modo a suprir o
procedimento penal ordinário, sendo utilizado segundo a conveniência do imperador. Nesse
procedimento não havia partes, sendo que o juízo imperial desempenhava de ofício as funções
das partes, não havendo, em regra a figura do defensor técnico e apenas se permitia a
autodefesa. (MOMMSEN, 1905, p. 268-276)

O procedimento presidido pelo imperador era, portanto, um procedimento inquisitório


onde o imperador centralizava as funções de acusar, provar e julgar o acusado, sendo sua
decisão soberanda e irrecorrível, uma vez que derivada da autoridade máxima no exercício do
poder de imperium. O imperium tornava a decisão inquestionável e seu cumprimento
obrigatório, fazendo desse procedimento a manifestação do poder penal em seu grau máximo.

Além de desempenhar pessoalmente as funções jurisdicionais, o principe (imperador)


poderia ainda designar um representante para que exercesse em seu lugar aquelas funções,
porém, a função de julgar os crimes nunca foi designada a conselhos ou a colegiados. Os
delegados desempenhavam a função jurisdicional por delegação e com a mesma liberdade que
o imperador a exercia, sendo que a delegação poderia se dar tanto para um caso específico
como para determinada classe de delitos ou ainda para as apelações enviadas ao imperador de
um determinado território. (MOMMSEN, 1905, p. 276-282)

Vê-se que o juízo penal exercido pelos delegados do imperador era um tão
inquisitorial quanto aquele exercido pelo próprio princeps, uma vez que o delegado também
exercia o poder jurisdicional de forma ilimitada. Além disso não havia a preocupação com o
juízo natural, podendo se estabelecer o juízo após o fato segundo a conveniência do
imperador.
118

Das decisões dos delegados imperiais poderia haver apelação ao imperador, salvo
quando a delegação imadmitisse o apelo. A delegação era em tese ilimitada, mas a decisão
poderia ser revisada pelo titular do poder delegado através do julgamento da apelação ao
imperador. Segundo aponta Theodor Mommsen, de todas as inovações do principado, a
apelação reformatória foi a mais duradoura, sendo que até a atualidade ela segue existindo.
Além disso, aqueles condenados a penas de reclusão grave, deportação, trabalho forçado ou
de morte poderiam recorrer através de petição ao imperador, buscando a revisão da
condenação. (MOMMSEN, 1905, p. 282-286)

Vê-se que no principado os príncipes já passaram a adquirir funções jurisdicionais


criminais, passando a aglutinar a função de acusar e julgar em suas mãos ou na daqueles por
eles designados. Nesse período o sistema inquisitório ganha força e irá exercer influências
significativas nos períodos posteriores.
Nesse contexto, o sistema processual penal adotado na República foi se tornando cada
vez menos compatível com a nova forma de governo, juntando a isso o aumento populacional,
fez com que a sociedade fosse marcada por violentas tensões, o que levou a um
endurecimento das leis penais e processuais penais. O novo sistema ficou conhecido como
cognitio extra ordnem, sendo a primeira expressão típica do sistema inquisitório, seu
desenvolvimento se deveu ao imperador Augusto, que instituiu uma detalhada
regulamentação processual penal limitando o direito de acusar e o exercício da magistratura,
além de estabelecer um processo mais ágil e de formas elásticas, restabelecendo a coercitio
adotada no período régio. Gradualmente, as quaestiones perpetuae perderam espaço e a
cognitio extra ordinem tornou o processo ordinário, conferindo amplo poder jurisdicional ao
imperador e liberdade no exercício da jurisdição, inclusive com desapego às formas
processuais, o contraditório foi reduzido ao mínimo, colocando o juiz como principal sujeito
processual e relegando o acusado à condição de objeto do processo. (WEDY e LINHARES,
2015, p. 256-258)
Com Luigi Ferrajoli:

Não ao acaso as primeiras formas de processo inquisitório se desenvolveram na


Roma imperial com os procedimentos de ofício para os delicta publica, a começar
pelos crimina laesae majestatis de subversão e conspiração, em que se presume
ofendido um interesse do príncipe e a parte ofendida se identifica com o Estado.
Faltando o sentimento cívico e o costume de liberdade que na República havia
permitido o funcionamento da iniciativa acusatória por parte de qualquer cidadão, ―a
acusação pública se transformou na denúncia fatal‖ e na ―calúnia oculta‖, que ―se
transformaram em instrumento da tirania‖. Nasceu assim, com a cognitio extra
ordinem, o procedimento inquisitório, desenvolvido e decidido ex officio,
secretamente e em documentos escritos por magistrados estatais delegados do
119

príncipe (os irenarchi, os curiosi, os nunciatores e os stationari), baseado na


detenção do acusado e na sua utilização como fonte de prova, acompanhada bem de
perto pela tortura. (FERRAJOLI, 2006, p. 520-521)

As estruturas acusatórias vigentes na República, forjadas na descentralização do poder


judicante para os quaestores e para os julgadores nomeados pelo Senado, não mais eram
suficientes para um poder novamente centralizador (MORAES, 2010, p. 17). O regime de
persecução penal se tornou insuficiente por dois motivos, o crescente número de crimes
proporcionado pelo aumento da população em Roma e pelo grande número de acusações
infundadas, motivadas por vingança (KALED JR. 2013, p. 30), que ensejou no novo período
imperial o resgate da cognitio extra ordnem oriunda da primeira fase da história romana.

O Principado (27 a. C até 284 d. C) necessita de um sistema centralizador e


autoritário, no qual a figura do soberano possa ser o ápice e o eixo do qual todo
poder emane e para o qual todas as demandas sejam, em última instância
encaminhadas. Decidir causas é demonstrar poder, e decidir causas penais,
determinando penas (tão severas) é a forma mais significativa de controle social e
imposição de uma nova ideologia política. (MORAES, 2010, p. 18)

Kai Ambos (2008, p. 52) aponta que, no período imperial romano o procedimento
criminal poderia ser iniciado tanto por um particular, através da accusatio, como de ofício
pela cognitio, coexistindo o princípio acusatório com o princípio da oficialidade. Na fase
imperial, vigorava um modelo procedimental que dispensava o acusador privado, permitindo
que alguns agentes públicos desenvolvessem atividades de polícia judiciária e transmitissem
aos juízes os resultados de suas pesquisas, sempre que alguém não apresentasse a accusatio,
além de que os magistrados foram ampliando sua esfera de atribuições até chegarem ao
extremo de aglutinarem as funções de acusar e julgar (PRADO, 2006, p. 76). Contudo, com a
crescente centralização do poder, aos poucos a acusatoriedade foi sendo deixada de lado para
prevalecer o princípio inquisitivo, que assegurava a concentração de poderes nas mãos do
imperador seja diretamente ou através daqueles que eram por ele indicados. Como aponta
Giulio Illuminati:

Com a chegada do principado, a iniciativa penal privada restava insuficiente para


tutelar os poderes imperiais, assim, junto ao processo ordinário começa a se
estabelecer a cognitio extra ordnem dos funcionários públicos, inicialmente apenas
em relação aos delitos cometidos contra o príncipe (crimina lesae maiestatis), a qual
posteriormente irá se estender aos demais delitos. A acusação popular segue vigente,
já não é imprescindível para o início do processo, pois a ação penal também pode ser
exercitada de ofício. Aos magistrados delegados pelo príncipe eram conferidos
poderes de esclarecimento e investigação dos delitos, com o fim de obter as provas.
O processo passa a se converter em escrito e secreto, o imputado é utilizado como
fonte de prova, ademais de ser encarcerado; se introduz a tortura, a qual havia estado
proibida na época republicana. O procedimento ordinário continua vigente, mas vai
perdendo gradualmente terreno em favor do processo inquisitivo, o qual parece
120

haver se imposto já na época justinianea, a pesar do favor que o sistema goza – ao


menos formalmente – no Corpus iuris.43 (ILLUMINATI, 2008, p. 139, tradução
livre)

Nesse cenário, o principado vai buscar na fase monárquica de Roma o resgate da


cognitio, que, por ter natureza inquisitiva, serviu de base para o processo penal adotado nessa
nova fase romana. Em razão da força do princeps o novo sistema processual penal cresceu seu
ramo de atuação e passou a abranger cada vez mais áreas que até então eram julgadas pela
justiça privada e pelo procedimento ordinário. O procedimento resgatado da cognitio extra
ordinem visava satisfazer a necessidades autoritárias do império romano, suprindo as
deficiências do procedimento ordinário republicano e foi marcado pela presença de
magistrados imperiais (cognitores) que iniciavam a persecução criminal de ofício,
investigavam, acusavam e decidiam, sem que houvesse uma regra para a produção da prova.
Os direitos de defesa dos réus foram suprimidos, bem como o direito ao contraditório e o
direito à prova. Impunha-se ao julgador o dever de buscar a verdade, não havendo distribuição
de ônus ou carga probatória. Com a supressão da presunção de inocência e a presunção da
culpa do réu, o emprego da tortura passou a ser o meio mais eficaz de instrução, pois, por
meio dela se verificava facilmente a fidedignidade de uma versão, bem como, se construía a
versão desejada pelo cognitor. O princípio da publicidade foi aos poucos sendo suprimido até
seu completo desaparecimento. O procedimento ganhou contornos formais e a sentença
passou a ser obrigatoriamente escrita, visando que fosse possível recurso aos órgãos
superiores do império, tendo o Princeps posição de julgador supremo com decisões
irrecorríveis. Nesse contexto, a presunção de culpa imperava, afastando a presunção de
inocência e a prisão antes da decisão final passou a ser cada vez mais aceita até se tornar a
regra do sistema. (MORAES, 2010, p. 18-26)

Nele, a imputação já nasce comprometida com um único resultado possível, a


condenação. Tal ocorre porque, estando o magistrado imperial incumbido das
funções de investigar, acusar e julgar, somente acusaria alguém se já guardasse em
seu íntimo a certeza de que ele cometera o delito. Caso isso ainda não estivesse

43
No original: ―Con a llegada del principado, la iniciativa penal resultaba insuficiente para tutelar los poderes
imperiales, Así, junto al proceso ordinario comienza a estabelecerse la cognitio extra ordinem de los
funcionários públicos, inicialmente sólo en relación com los delitos cometidos contra el príncipe (crimina
lesae maiestatis), la cual posteriormente se irá extendiendo a los demás delitos. Aunque la acusación popular
segue vigente, ya no es imprescindible para la incoación del proceso, pues la acción penal tembién puede ser
ejercitada de oficio. A los magistrados delegados del príncipe les son conferidos poderes de esclarecimiento e
investigación de los delitos, com el fin de obtener las pruebas. El proceso pasa a convertirse em escrito y
secreto, el imputado es utilizado como fuente de prueba, además de ser encarcelado; se introduce la tortura,
la cual había estado prohibida em la época republicana. El procedimiento ordinario continua vigente, pero va
perdendo gradualmente terreno em favor del proceso inquisitivo, el cual parece haberse impuesto ya em la
época justinianea, a pesar del favor que el sistema acusatorio goza – al menos formalmente – en el Corpus
iuris.‖ (ILLUMINATI, 2008, p. 139)
121

maduro no ―íntimo‖, seguramente investigaria mais, não oferecendo pífia acusação


que o desacreditasse. Logo, oferecida a acusação pela natural certeza da culpa na
mente do julgador/acusador/investigador, era necessário que o réu (invariavelmente
culpado) esperasse sua decisão (invariavelmente condenatória) preso. Era, por esse
viés que se aceitasse para a prisão provisória uma finalidade de antecipação de pena.
(MORAES, 2010, p. 23)

Vê-se que o principado foi marcado, principalmente, pela centralização do poder nas
mãos do Estado, levando à retomada do procedimento inquisitorial e a centralização nas mãos
do princeps ou de seus designados, delegados ou governadores. Nesse contexto, o
fortalecimento do poder do imperador foi concomitante com o desenvolvimento do modelo
inquisitório que seria levado para a fase imperial que, como veremos, foi a passagem da
antiguidade para o período medieval, sendo o modelo inquisitorial adotado sobretudo na baixa
idade média para a afirmação da igreja e dos Estados Nacionais.

3.5 O absolutismo romano no período do Dominato e o aperfeiçoamento do modelo


inquisitório: o surgimento da justiça penal eclesiástica e a transição para a idade média

As crises internas proporcionadas por lutas pela sucessão dos imperadores, pela falta
de prestígio das autoridades públicas, pelos conflitos religiosos entre o Império Romano e o
Cristianismo, além da infiltração bárbara na enorme extensão territorial romana e uma grave
crise econômica foarm as razões que levaram a uma reforma ainda mais profunda e pela
ascensão de Diocleciano ao poder no ano de 284. Diocleciano foi um soldado severo e
autoritário que chegou ao trono aclamado pelos seus pares do exército, tendo se proclamado
dominus, o que orignou o nome dominato, tendo se intitulado deus e se dado o direito à
adoratio. Em razão da divindade do imperador, se estabeleceu grande perseguição aos
Cristãos, que haviam se rebelado contra Diocleciano, sendo que o período do governo de
Diocleciano ficou conhecido como ―era dos mártires‖. Além disso, o Imperador realizou
reformas econômicas, financeiras e políticas, tendo dividido o Império Romano entre o
Império do Ocidente e do Oriente. (CRUZ, 1984, p. 79-80)

Nesse período, o processo penal era usado para perseguir aos Cristãos, visto que a
religião cristã era considerada como inimiga da nação romana e seus praticantes acusados de
crime de lesa-majestade. A situação só mudou com o édito de 13 de junho de 313 dos
imperadores Constantino e Licinio que aboliu a antiga religião nacional e decretou o princípio
122

da liberdade religiosa. Contudo, essa liberadade religiosa foi abolida em 379, quando
Graciano e Valentiniano II no ocidente e Teodosio I no oriente proclamaram o cristianismo
como única religião verdadeira em Roma, obrigando a conversão de todos indivíduos em
Roma, proibindo que qualquer outra religião fosse professada, sob pena de restar configurado
crime de heresia e sujeitar o herege ao julgamento pelos tribunais seculares, em julgametos
pelos tribunais ordinários de procedimento acusatório, e pelos tribunais eclesiásticos, que
adotavam o procedimento de cognição e a inquisição por parte do magistrado, seguindo como
modelo o procedimento adotado contra os cristãos no passado e que se resumia a perguntar ao
acusado se pertencia à seita cristã, ou, no caso ao paganismo, advertindo a ele que a retratação
extinguia a ação, podendo o juiz recorrer ao testemunho de um sacerdote reconhecidamente
cristão ortodoxo. (MOMMSEN, 1905-b, p. 75-91)

O novo regime, inaugurado por Diocleciano e desenvolvido por Constantino o Grande,


foi construído sob uma estrutura administrativa burocrata e pela limitação da liberdade
pessoal em favor do Estado. Com isso, os órgãos constitucionais de Roma perderam utilidade
política, inclusive as magistraturas que perderam a autonomia administrativa e jurisdicional e
acabaram substituídas pelos perfectos urbanos, indicados diretamente pelo imperador.
(KUNKEL, 1994, p. 145)

A legislação do dominato desmascarou a aparência de república que vigorou durante o


principado, agora os imperadores legislavam livremente e suas leis eram a única legislação do
período. A denominação leges edictales designava as leis publicadas ou pelo imperador ou
por um funcionário por ele designado, no dominato não era mais os magistrados que
legislavam, o poder era todo concentrado nas mãos do imperador. (KUNKEL, 1194, p. 161)

No dominato, os poderes que, já no principado, começaram a ser centrados na figura


do princeps, agora estão efetivamente nas mãos do imperador, que suprime os demais órgãos
que haviam sobrado da República e se coloca como representante de Deus e único detentor
dos poderes do Estado.

O imperador já não era mais o primeiro cidadão romano, mas o senhor absoluto ante o
qual todos os cidadãos deveriam se curvar (KUNKEL, 1994, p. 147). Nesse período, as
constituições imperiais são a única fonte de direito e o imperador, com sua vontade absoluta, é
a única fonte do direito e seu único intérprete (CRUZ, 1984, p. 216). O imperador passa a
exercer a posição central do poder do império, ele é o designado por Deus na Terra e, como
representande divino, possui poderes ilimitados.
123

Ao assumir o poder, Diocleciano reformou a estrutura dos tribunais romanos,


instituindo um sistema de tribunais compostos por funcionários, em um modelo inspirado nos
tribunais delegados pelos primeiros imperadores do principado. Nesse modelo foi mantido o
poder do imperador de avocar para si qualquer procedimento judicial para resolver
discricionária e arbitrariamente segundo lhe parecesse indicado, tendo a nova monarquia
ampliado ainda mais os poderes jurisdicionais do imperador que os do antigo princeps. O
imperador poderia exercer a jurisdição penal de forma ilimitada e não precisava sequer seguir
as formalidades procedimentais, seguindo o procedimento penal sendo inquisitivo.
Diocleciano também estabelecu a possibilidade de tribunais de apelação, tendo, entretanto,
mantido o nome de apelação imperial, mas suprimido o nome pessoal do imperador. Nesse
contexto, o procedimento penal dos tempos do Dominato corresponde, quando o imperador
não dispusesse de forma diversa, a uma estrutura burocrática bastante desenvolvida, tendo a
definição da competência de seus tribunais normalmente determinada segundo a classe social
da qual o acusado fazia parte. (MOMMSEN, 1905, p. 287-293)

Entretanto, apesar de alterar a estrutura o julgamento manteve-se nas mãos do


imperador ou daqueles por ele delegados, que julgavam de forma ilimitada ecom ampla
liberdade de buscar a prova, inclusive através da tortura, em um modelo inquisitorial que foi
base para a formação dos tribunais inquisitoriais da idade média. Entretanto, o imperador
passou a resolver pouquíssimos casos, deixando os julgamentos aos seus tribunais (cognitio)
(CRUZ, 1994, p. 276)

Com a reviravolta provocada pelo reconhecimento do Cristianismo como religião


oficial de Roma, por Graciano e Teodosio I, o poder punitivo da igreja veio imediatamente a
se converter em elemento essencial da nova ordem religiosa. Assim, iniciou já nesse período a
cisão entre os procedimentos secular e eclesiástico, que seria determinante na baixa idade
média com a inquisição dividia entre reis e igreja. Porém, ―a organização política de Roma
não era compatível com a reunião em uma só mão da plenitude do poder temporal e a
plenitude do poder espiritual‖, pois não havia uma jurisdição sacerdotal, e a igreja necessitava
do amparo do Estado para o exercíciode seu poder penal, tendo a igreja elaborado
gradualmente seus procedimentos próprios. (MOMMSEN, 1905, p. 298-299)

A ascensão do cristianismo como religião oficial de Roma fez com que os municípios
e as comunidades locais também se convertessem ao cristianismo, fazendo com que se
formasse uma cristandade geral e a igreja tornada a igreja do Estado romano, tornando o
124

cristianismo obrigatório para todas as pessoas do reino e as decisões dos tribunais


eclesiásiticos se tornaram obrigatórias a todos. (MOMMSEN, 1905, p. 301)

Os fundamentos jurídicos do direito penal da igreja eram seus estatutos, reconhecidos


como de validade legal (sacri canones), sendo que sua interpretação e a faculdade de suprir
suas lacunas era de atribuição do imperador, uma vez que o cristianismo era a religião oficial
do estado absoluto. (MOMMSEN, 1905, p. 299)

Com a constituição da Igreja, foi determinado quais autoridades deveriam entender as


questões relativas à correção e disciplina eclesiásticas, em regra essa função coube aos bispos,
mas o sistema de instâncias que foi introduzido no Estado se aplicou ao procedimento
eclesiástico. O imperador não exercia imediatamente sua jurisdição, contudo, depois de
definido o fato, o assunto era remetido como instância final para a decisão definitiva. A forma
de proceder ficava exclusivamente nas mãos das autoridades eclesiásticas, tendo papel de
relevo a confissão do acusado nesse procedimento, além de ser mais fácil a condenação do
ausente que no procedimento penal do Estado. De toda forma, a base do procedimento
eclesiástico era o processo acusatório que vigorava no Estado, tendo o imperador Honorio, no
ano de 411 extendido aos juízos eclesiásiticos as disposições do sistema acusatório em relação
às demandas caluniosas. (MOMMSEN, 1905, p. 300-301)

Posteriormente, as leis do Estado e da Igreja se desvincularam e houve a separação do


procedimento penal civil, ou procedimento penal do Estado, do procedimento penal
eclesiástico, assim o tribunal secular não resolvia mais as faltas religiosas e nem o tribunal
eclesiástico poderia se misturar na justiça penal estatal. A mais significativa mudança da
autonomia do procedimento secular foi a criminalização da heresia entre os delitos contra o
Estado e atribuir a ela penas como o desterro, a incapacidade para testar, ou outras mais
graves ainda. (MOMMSEN, 1905, p. 302)

Com a quebra do vínculo que unia o modelo penal do Estado do modelo eclesiástico, a
igreja passou a ganhar cada vez mais força e mais poder, rumando gradualmente o processo
penal para um modelo inquisitorial e atribuindo cada vez mais poderes ao juízo eclesiástico.
Vale dizer ainda que aqueles que foram perseguidos por Diocleciano, agora voltavam-se
contra seus antigos algozes e contra todos que professassem outra religião, e o processo penal
era usado como instrumento de perseguição e neutralização.
125

Em 286, dada a extensão territorial de Roma que dificultava seu governo, o Império
foi dividido entre oriente e ocidente. Apesar das tentativas de reunião realizadas por
Constantino e por Teodosio, em 395 o império foi definitivamente dividido pelo próprio
Teodosio pouco antes de sua morte. O império do ocidente foi extinto em 476 quando
Rômulo Augusto foi derrotado por Odoacro, chefe de um grupo de bárbaros, mas seu fim se
deveu não apenas à batalha final, mas à penetração insensível dos bárbaros pelas fronteiras do
império que gradualmente misturou a cultura bárbara com a romana. Por sua vez o império do
oriente teve vida mais longa, somente acabando em 1453 com a tomada de Constantinopla
pelos turcos. (CRUZ, 1984, p. 81)

À guisa de conclusão do presente capítulo, tem-se que, durante os treze séculos nos
quais Roma existiu, não apenas um modelo de processo penal, e nem mesmo, como é comum
se notar, na doutrina processual penal, uma forma em cada uma das fases da história romana.
Ao longo do tempo várias foram as formas de processo penal adotadas pelo povo romano, que
variavam entre modelos de inquisitoriais e modelos acusatórios.

Porém, ainda após a queda do império romano, o direito romano seguiu vivo e
exercendo sua influência nas instituições jurídicas dos séculos seguintes, chegando até os dias
atuais. Portanto, apesar de a história de roma ter tido seu epílogo, o direito romano segue vivo
e incorporado na legislação e na cultura jurídica até os dias atuais, tendo sido referência para
os modelos de sistemas processuais penais que chegaram até nós.

Com a extinção do Império Romano do ocidente, tem-se início a idade média, com as
invasões dos povos do norte europeu, historicamente conhecidos como bárbaros, a região
dominada e sob influência romana passou a se organizar em feudos, cada qual com o direito
aplicado por seu senhor feudal, como será abordado no capítulo seguinte. Porém, a influência
do direito romano permanece viva mesmo nos dias de hoje, sendo essa uma das principais
origens da cultura inquisitória brasileira. O império romano foi fonte de inspiração para o
Código Napoleônico (1808), para as legislações portuguesas que foram aplicadas no Brasil e
influenciaram nossa formação jurídica: as Ordenações Afonsinas (1446); Ordenações
Manuelinas (1521), Compilações de Duarte Leão (1569) e as Ordenações Filipinas (1603),
Código de Processo Criminal (1832), bases da formação de tudo que se seguiu em termos de
processo penal e o ainda vigente Código de Processo Penal (1941).
127

4 A IDADE MÉDIA: DOS JUÍZOS DIVINOS À INQUISIÇÃO ECLESIÁSTICA

A Idade Média compreende dez séculos de história, entre os séculos IV e XV, sendo
que, segundo Jacques Le Goff (2007, p. 19), uma parte de seu impacto na construção da
Europa se deve ao fato de ela não ter se contentado com a transmissão passiva do patrimônio
que lhe antecedeu, tendo uma concepção de passado que lhe impelira a recolher uma parte de
seu passado para preparar o próprio futuro. Assim, a Idade Média foi um barqueiro da
antiguidade (LE GOFF, 2007, p. 19).
Porém, para o Processo Penal a Idade Média representa um período de grande relevo,
seja pela adoção de um modelo de partes, resgatado do período da República romana, que se
somou a doses de religiosidade na produção probatória pelas ordálias, que poucas chances
davam aos acusados. Ou, posteriormente, na ascensão da Igreja com a retomada do processo
inquisitorial do período do Império Romano, dessa vez regado a doses de crueldade com o
emprego da tortura em busca da confissão. Nesse contexto, Michel Foucault (2013, p. 21)
aponta a Idade Média como sendo o berço do inquérito como forma de pesquisa no interior da
ordem jurídica, através do qual se perquiria exatamente quem fez o quê.
Atualmente, os historiadores afirmam que a passagem da antiguidade para a Idade
Média foi o resultado de uma longa evolução, para sublinhar essa mudança de concepção
adota-se a expressão ―antiguidade tardia‖ para designar o período entre o século VI e VIII,
esse período consiste em uma transição de longa duração de onde começa a aparecer a
Europa. Tudo se passa em meio à cristianização do Império Romano, através do
reconhecimento da religião cristã pelo Imperador Constantino no edito de Milão de 313 e a
adoção do cristianismo como religião oficial do Império Romano pelo Imperador Teodósio I.
(LE GOFF, 2007, p. 29)
Mário Júlio de Almeida Costa (2012, p. 120-121) aponta que a ocupação do Império
romano pelos bárbaros não se deu de forma brusca, mas foi a consequência de uma lenta
infiltração, muitas vezes quase insensível e prolongada por um longo período que dá a
passagem da idade antiga à idade média ares de continuidade iniciados no século III da era
cristã.
Hilário Franco Júnior aponta que do ponto de vista demográfico, a primeira fase
medieval representa um prolongamento do próprio Império Romano, cujo recuo se deu no
século II. A desorganização do Estado Romano decorrente das invasões, fez com que se
tornassem raras as importações de alimentos que permitiram a existência da população urbana
de Roma por séculos, assim as cidades foram se esvaziando e cada região tentou produzir para
128

suprir suas necessidades, o que gerou grande insegurança porque a vida passou a depender do
sucesso em cada colheita. (FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 21-23)
A crise do mundo romano no século III deu origem ao Ocidente medieval cujas
transformações foram precipitadas pelas invasões bárbaras ocorridas a partir do século V e
que deu à Idade Média certo ar catastrófico. Contudo, as invasões germânicas não eram
novidade no século V, desde o século II a. C, quando os teutões foram derrotados por Mário, a
ameaça bárbara se fazia permanente. Porém, as invasões bárbaras se tornam um elemento
determinante à crise do século III, com a grande incursão dos alamanos, dos francos e de
outros povos do norte europeu que em 276 atingiram a Gália, a Espanha e a Itália do Norte.
Tais invasões, acentuadas no século V deixaram cidades em ruinas e campos devastados,
derrubando a economia e causando o declínio da agricultura, obrigando a uma ruralização da
Europa. Os camponeses foram obrigados a se colocar sob domínio dos grandes proprietários
de terras, que também se constituíram como grandes chefes militares. (LE GOFF, 2016, p. 19)
Importante destacar que as invasões, normalmente, eram realizadas pelos povos
nórdicos que se viram obrigados a fugir de algo mais forte ou mais cruel que eles. A
crueldade dos invasores em geral é a crueldade do desespero, sobretudo em razão dos
romanos terem lhes negado asilo que foi pedido, várias vezes, pacificamente. Porém, vale
ressaltar tal negativa muito pode se dever à religião, uma vez que Roma é tida como o berço
da Igreja Católica e os bárbaros eram povos pagãos (aqueles que não eram católicos), e, por
isso tidos por inimigos (LE GOFF, 2016, p. 20), o que séculos depois irá justificar a
perseguição aos hereges na baixa Idade Média.
A partir do século III, com a conversão de Constantino ao catolicismo, a Igreja passou
a deter um enorme poder temporal, tornando-se a maior aliada do poder e, em seguida a
religião oficial do Estado, tornando as demais religiões proibidas (POLI, 2016, p. 55). Como
dito no capítulo anterior, a adoção do cristianismo proporcionou, já no Império Romano, o
susrgimento dos tribunais eclesiásticos e a separação entre processo penal estatal e processo
penal eclesiástico, inclusive com a adoção de penas corporais aos não cristãos.
A Idade Média é um período histórioco marcado pelo crescimento do cristianismo e
por sua marcante presença na esfera política e religiosa. Sendo que, em um primeiro
momento, na Alta Idade Média (séculos IV – X), a característica essencial é a ruralização, a
formação dos feudos e com um processo penal voltado para a prova religiosa. Já na Baixa
Idade Média, séculos X – XIV, a marca é a expansão dos domínios dos senhores feudais e o
consequente aumento de seu poder político que deu origem aos estados nacionais, além da
junção dos reis com a igreja, construindo a inquisição religiosa entre os séculos XI – XIX.
129

Camilin Marcie de Poli aponta que:


Após a invasão dos bárbaros, a Igreja foi a única organização a subsistir. Com isso,
o legado da tradição jurídica romana, que no período da decadência apresentou
características inquisitórias, foi conservado, sendo, séculos depois ressuscitado e
potencializado pela Igreja, que influenciou o direito laico. (POLI, 2016, p. 57)

A cultura da Europa medieval é formada pelo legado romano e pela cultura cristã,
transmitidas pelos padres entre os séculos V e VIII, fundindo ainda a cultura antiga romana
com a cultura bárbara dos povos que haviam tomado o império romano (LE GOFF, 2007, p.
32). ―Esse mundo medieval resulta do encontro e da fusão de dois mundos em evolução, um
em direção ao outro, de uma convergência das estruturas romanas e das estruturas bárbaras
em vias de se transformar‖ (LE GOFF, 2016, p. 31). Nesse contexto, a religiosidade é marca
fundamental para o estudo da Idade Média, seja na Alta Idade Média ou na Baixa Idade
Média a fé irá desempenhar papel de relevo e com importância nos julgamentos penais, no
primeiro período através das ordálias (ou juízos de Deus) e, no segundo período, através do
crescimento do catolicismo e do nascimento dos Tribunais da Inquisição.

4.1 Processo Penal na Alta Idade Média e os julgamentos dos deuses

O fim do império romano e início da Idade Média se deu no final do século III, com a
invasão dos germanos na Itália, sobretudo na Gália, e depois na Espanha, nos anos de 406-
407. Após a tomada de Roma por Alarico, em 410, iniciou uma grande instalação dos
germanos no Império Romano, entre os séculos V e VI, outros povos também ocuparam o que
fora o Império Romano, como os visigodos, ostrogodos, suevos, vândalos e alanos. No Século
V a fronteira militar do Império Romano desapareceu em toda Europa Ocidental. (LE GOFF,
2007, p. 37)
As infiltrações bárbaras ocorreram em ritmo lento, variando momentos pacíficos
através do contato entre os povos e momentos de lutas e massacres. O momento mais
marcante é o cerco e a pilhagem de Roma por Alarico no ano de 410, quando os visigodos
tomaram a cidade eterna. (LE GOFF, 2016, p. 26)
Entre os anos de 409 e 411 da era Cristã os Vândalos, Suevos e Alanos ocuparam a
península ibérica, tendo se instalado na região e, em 457 d. C., após terem se convertido à
ideia do estabelecimento da paz pela misericórdia do Senhor, sortearam as regiões que viriam
a ocupar em definitivo. Assim, os Vândalos ocuparam a Galiza, os Suevos o território situado
no extremo e que dá acesso ao mar, os Alanos ficaram com as províncias Lusitana e
130

Cartaginense, os Vândalos (Silingos) com a região Bética e os hispanos das cidades que
haviam escapado, acabaram sendo submetidos à servidão. (PEDRERO-SÁNCHEZ,2000, p.
36-37)
Nesse contexto, o surgimento da Idade Média confunde-se com o próprio surgimento
da Europa, que se deu através de dois fenômenos ocorridos nos séculos IV e V: o primeiro, a
elaboração do Novo Testamento e a publicação das obras Confissões e A Cidade de Deus de
Santo Agostinho, esta escrita após a pilhagem de Roma por Alarico e seus Godos no ano de
410. O terror imposto à população romana pelos Godos foi tamanho que as novas populações
cristãs passaram a crer que o fim do mundo estaria próximo, o que levou a Agostinho a
rejeitar o fim dos tempos e remetê-lo a um futuro somente conhecido por Deus. (LE GOFF,
2007, p. 31)
Contudo, a civilização romana exercia sobre os povos bárbaros uma atração enorme,
sendo que os chefes nórdicos frequentemente convocavam os romanos como conselheiros e
adotavam os costumes e títulos romanos. Nenhum bárbaro se fez imperador romano até
Carlos Magno assumir o posto no ano 800. (LE GOFF, 2016, p. 24-25)
Inicialmente, os povos germanos não impuseram seu direito àqueles que viviam no
território invadido, aplicando o princípio da personalidade ou da nacionalidade do direito, ou
seja, a coexistência do direito romano e do direito germânico que era aplicado a cada um
segundo a respectiva nacionalidade. Somente com a queda do Império Romano é que houve
efetivamente o reforço da autoridade dos monarcas germânicos sobre toda população romana.
(COSTA, 2012, p. 122, 123)
Nesse período, em decorrência do domínio nórdico, os reis surgem como novas figuras
políticas, dispondo apenas de um poder limitado. As leis editadas por esses reis têm caráter
bárbaro marcante, consistindo em normas primitivas que regulavam listas de tarefas, multas,
compensações monetárias ou corporais, castigos a delitos entre outras.
A Europa passou a viver períodos de caos e violência entre os séculos V e X, com as
invasões dos povos vindos do norte europeu, Ásia e África, impondo destruição e a
destituição de governos. Em razão de tais invasões, o poder real aos poucos foi sendo diluído,
passando às mãos de senhores locais, que administravam e defendiam a população mais
próxima em suas fortalezas, nesse sistema, os protetores ganharam o nome de Senhores
Feudais e protegiam os súditos em nome do rei e, em troca da proteção, recebiam dos súditos
lealdade e serviço. Com as invasões bárbaras e o início do feudalismo, que somente se
consolidou como modelo social no século X, a política centralizadora de Roma ruiu e o que se
viu foi uma descentralização política. (REBELO, 2013, p. 107-108)
131

A sociedade europeia ocidental desde o século IX tem características essencialmente


rurais, na qual o intercâmbio e circulação de utilidades atingiram níveis extremamente baixos.
A classe mercantil desapareceu e as relações sociais eram determinadas pela relação do
homem com a terra. Uma minoria de proprietários de terras detinha a propriedade e uma
multidão de rendeiros era disseminada sob o domínio dos proprietários, sendo a servidão a
condição normal dos que não possuíam terras. ―Quem possui terra, possui, ao mesmo tempo,
liberdade e poder; por isso o proprietário é simultaneamente senhor; quem dela está privado,
fica reduzido à servidão: por isso a palavra vilão designa do mesmo modo, o camponês de
um domínio e o servo‖. (PIRENNE, 1968, p. 17-18)
Nesse período, a Europa vive uma ruralização, durante o império romano a população
vivia na cidade, sendo Roma um grande centro urbano. Porém, a invasão das cidades causou
medo e a população urbana passou a viver nas zonas rurais. A economia monetária perde
espaço para dar lugar à troca e o comércio quase desaparece nesse período, substituído pela
troca de produtos. (LE GOFF, 2007, p. 47)
Tal migração da cidade para o campo faz com que o desenvolvimento da produção
rural seja relevante nesse período histórico, sendo que o progresso se marcava mais pela
extensão cultivada que pela melhora das técnicas empregadas. Porém, a partir do século VIII
expandem-se os contratos agrários que ligam as pessoas e seus direitos sobre a terra à eficácia
sobre ela. (LE GOFF, 2014, p. 153)
A ruralização da Europa medieval é apenas um dos fatores preponderantes para a
construção social europeia do período, sendo o aspecto mais marcante de uma evolução que
forjou a mentalidade que perdurou por toda a Idade Média. Nesse período, a mobilidade
social era tida como pecaminosa, sendo que imperadores tornaram hereditárias certas práticas
profissionais e obrigaram os grandes proprietários a vincular os colonos à terra com escopo de
substituir os escravos. A Cristandade medieval, nesse período, transformou em pecado o
próprio desejo de mudar a condição social, assim, tal pai tal filho será a lei da idade média
herdada diretamente do baixo império romano, formando uma sociedade estratificada e
horizontalmente compartimentada. (LE GOFF, 2016, p. 32-33)
A Alta Idade média é marcada pela fundação das nações forjadas sobre as antigas
distinções do mundo romano, tendo a Europa ocidental sofrido grande influência da
cristianização. Os bispos passam a possuir cada vez mais poder, particularmente na
administração das cidades, sendo que a partir do século VII passaram a destacar um grupo
mais importante como arcebispos. Com o governo dos bispos o território foi dividido,
retomando-se as antigas divisões administrativas romanas, que ganharam o nome de dioceses.
132

A influência de monges vindos do oriente e que se estabeleceram em mosteiros localizados


longe das cidades é importante entre os séculos IV e VIII, sendo eles essenciais para a
cristianização dos camponeses pagãos. As mulheres religiosas também se agruparam em
mosteiros e cultuaram o estado de virgindade, encarnando os novos comportamentos de
castidade que distinguem o cristianismo. (LE GOFF, 2007, p. 40-41)
Nos séculos IV e V os imperadores passaram a reconhecer a competência dos bispos
para o julgamento das infrações religiosas e espirituais, competindo-lhes o julgamento de
todos os casos que se relacionassem com as questões de fé, dogmas e sacramentos da Igreja.
Posteriormente outras questões relacionadas aos sacramentos também foram passadas aos
tribunais eclesiásticos e os clérigos adquiriram foro privilegiado perante os tribunais da Igreja,
que possuíam competência absoluta em matérias penais e civis. (POLI, 2016, p. 58-59)
Em meio ao caos das invasões a igreja ganha força econômica e política e os religiosos
se tornam chefes polivalentes em um mundo desorganizado, negociando com os bárbaros e
distribuindo esmolas aos pobres. Contudo, a igreja busca seus próprios interesses, arrancando
grandes doações dos reis e acumulando terras e rendas, gozando de isenções e tendo seus
bispos entre os egressos da aristocracia. Nesse contexto, os bispos se tornam conselheiros e
censores dos soberanos e se empenham em transformar os cânones dos concílios em leis civis.
(LE GOFF, 2016, p. 37-38)
A aproximação do Rei com o Papa cresce com o reinado de Carlos Magno, que a
pedido do Papa empreende guerra contra o rei dos lombardos, Dídio, que importunava a Itália,
e se sagra vencedor. ―Os papas buscaram e encontraram nos soberanos francos um braço
secular que os protegeu de seus inimigos, particularmente os lombardos.‖ (LE GOFF, 2007,
p. 52). Nesse período, a tomada da Itália por Pepino o Breve, aliado do papa, introduz a
política carolíngia em território italiano. Com Carlos Magno se inaugura uma tradição de
obrigar a conversão forçada dos povos conquistados. (LE GOFF, 2016, p. 41)
A expansão do cristianismo na Europa, seja por conversões voluntárias ou forçadas
deu à igreja enorme força, contudo a igreja preferiu se unir aos reis, que detinham poderio
bélico, para galgar novos territórios e assim expandir ainda mais suas fronteiras.
Entre o século IX e XI os poderes da igreja se concentraram ainda mais, eis que ela
possuía concomitantemente poder econômico, por ser proprietária de terras e poder moral.
Além disso ela poderia dispor de uma fortuna monetária garantida pelas oferendas dos fiéis e
das esmolas dos peregrinos que lhe permitia emprestar dinheiro aos necessitados. Além de
dominar a leitura e a escrita em uma sociedade marcada pela ignorância. Nesse contexto, a
igreja se adaptou à visão rural de mundo e à sociedade rural marcada pela imutabilidade
133

social, assim, pregava-se que a finalidade do trabalho era apenas a conservação das condições
de nascimento até que a vida mortal passe para a vida eterna, procurar riqueza é tratado como
pecado de avareza. (PIRENNE, 1968, p. 18-19)
No natal do ano de 800, o Papa Leão III coroou Carlos Magno como imperador,
fortalecendo a independência da cristandade latina ocidental em relação ao Império Bizantino
grego ortodoxo. A Europa de Carlos Magno é restrita territorialmente apenas ao leste do rio
Reno, não compreendendo as ilhas inglesas, dominadas pelos irlandeses e pelos anglo-saxões,
e nem a península ibérica, sob domínio dos muçulmanos, nem a Itália do Sul, dominado pelos
sarracenos e nem a Escandinávia, ocupada pelos Vikings. (LE GOFF, 2007, p. 55)
A expansão comandada por Carlos Magno visando reestabelecer o Império do
Ocidente não foi uma ideia carolíngia, conforme afirma Jacques Le Goff (2016, p. 42) parece
mais ter sido uma vontade papal.
Carlos Magno tinha principalmente a preocupação de consagrar a divisão do antigo
Império Romano em um Ocidente, do qual seria chefe, e um Oriente, que ele não
pensava em disputar com o basileu bizantino, mas recusava-se a reconhecer a este
um título imperial que evocasse a unidade desaparecida.
Porém, o Papa Leão III viu, em 799, uma tripla vantagem em dar a coroa imperial a
Carlos Magno. Preso e perseguido por seus inimigos romanos, tinha necessidade de
ver sua autoridade restaurada de fato e de direito por alguém cuja autoridade se
impusesse a todos: um imperador. Chefe de um Estado temporal, o patrimônio de
São Pedro, queria que o reconhecimento dessa soberania temporal fosse corroborado
por um rei superior a todos os outros, efetivamente e de fato. Enfim, com uma parte
do clero romano, pensava em fazer Carlos Magno imperador de todo o mundo
cristão, inclusive Bizâncio a fim de lutar contra a heresia iconoclasta e estabelecer a
supremacia do pontífice romano sobre toda a Igreja. (LE GOFF, 2016, p. 42)

Os atos de governo, que em geral eram orais, tiveram a forma escrita estimulada no
império de Carlos Magno, adotando-se instrumentos denominados capitulares, ou
ordenanças, que podiam ser gerais ou específicos para uma região. Durante o século IX novos
ataques externos desmantelariam rapidamente a edificação carolíngia. (LE GOFF, 2016, p.
43)
Entre os séculos V a IX o direito germânico, por influência dos povos invasores, foi
aplicado na Europa, sendo regido pelo princípio clássico do modelo acusatório segundo o qual
não haveria juiz sem que houvesse a figura do acusador, nesse contexto a acusação era
formulada por um particular ou por um membro do povo. É característica desse período a
adoção de um procedimento com um modelo probatório formalizado, com ou sem jurados,
sendo a prova produzida por meio dos juízos de Deus ou dos duelos, com resultados
determinados de forma definitiva e sem a necessidade de que fossem produzidas provas da
culpa ou inocência do acusado. (AMBOS, 2008, p. 54-55)
134

Michel Foucault aponta que o direito germânico era muito próximo de algumas formas
do direito grego arcaico que adotava os jogos de prova como forma de resolução dos
conflitos. Nesse período não havia inquérito, ―o que caracterizava a ação penal era sempre
uma espécie de duelo, de oposição entre indivíduos, entre famílias ou grupos‖.
(FOUCAULT, 2013, p. 59)
Nesse contexto, as ordálias representavam um sistema que tinha por fim a limitação da
arbitrariedade dos grandes senhores, em um contexto de crença fiel na intervenção divina,
através de um método que exigia a presença de um ministro religioso. A partir do IV Concilio
de Latrão, 1215, Papa Inocêncio III determinou o fim dos juízos divinos com a proibição da
participação do clero na produção da prova pelas provas corporais (WINTER, 2008, p. 18-
19). Vê-se que nesse período já existe a influência da Igreja no processo penal, que se
intensificará nos séculos seguintes sob a forma da inquisição religiosa durante a Baixa Idade
Média.
Nesse contexto, o sistema processual penal era estruturado nos Juízos de Deus, sob a
forma de juramento (destinado aos mais abastados), duelos (que era adotado aos mais hábeis
nas ações agonísticas) e nas ordálias (para o povo em geral). (POLI, 2016, p. 61-62)
Nesse período, o crescimento do poder central e a dificuldade da realização das
assembleias populares com a frequência necessária para o julgamento dos crimes graves
foram fatores determinantes para a instituição do julgamento por ordálias ou pelos juízos de
Deus, sendo o julgamento realizado e presidido pelo líder e não mais pelo povo em assebleia.
(MORAES, 2010, p. 41-42)
Verifica-se nessa primeira fase do período medieval um processo penal iniciado pelas
partes, onde a acusação e o julgamento são exercidos por pessoas diferentes, portanto, um
processo acusatório. Contudo, a divisão de funções era restrita à forma de iniciar o processo,
sendo que a prova pouco dependia das partes, eis que era de incumbência divina, seja através
das ordálias ou dos duelos, era Deus quem dava o veredicto final.
Em conclusão, o processo penal germânico era um processo penal acusatório, na
medida em que se iniciava mediante uma querela particular e o conceito de acusação
se utilizava unicamente ao modo de se iniciar o processo.44 (AMBOS 2008, p. 55,
tradução livre)

O procedimento penal da Alta Idade Média dependia da decisão divina para ter seu
termo, pouco dependendo da atuação das partes. Contudo, como dito haviam diferentes tipos

44
No original: ―En conclusión, el proceso germânico era un proceso acusatorio, en la medida en que se iniciaba
mediante una querela particular y el concepto de „acusación‟ se utilizaba referido únicamente al modo de
iniciarse el proceso.‖ (AMBOS, 2008, p. 55)
135

de ordálias. Maurício Zanoide de Moraes (2006, p. 42-43) aponta que os proprietários de bens
de determinado valor e os nobres tinham direito a serem julgados pelos duelos judiciário, uma
forma de ordálias na qual os litigantes debatiam entre si, podendo inclusive escolher
representantes. Aos que não possuíam bens e nem eram nobres restava o julgamento através
das provas, onde o corpo do acusado era colocado em condição de objeto da prova e,
consequentemente, do procedimento.
Luigi Ferrajoli (2006, p. 521) afirma que a queda do Império Romano trouxe ao
processo penal de volta a um modelo acusatório que se confundia nas primeiras jurisdições
bárbaras com os ritos das ordálias e com os duelos, evoluindo para a disputatio e para o
contraditório, elaboradas entre o fim do primeiro milênio da era cristã e o século XII. Em
complemento, Giulio Illuminati (2008, p. 139) aponta que com a queda do Império romano
teria sido introduzido na Itália o processo penal acusatório de marca germânica que tinha em
suas origens o duelo judicial, que influenciou o modelo adversarial inglês, contudo,
entendemos que o modelo dos duelos não pode ser apontado como uma marca acusatória,
sobretudo no que tange ao julgamento dos nobres e patrimonializados, que podiam escolher
outras pessoas para lhes representarem nas disputas. Os duelos contam mais com a astúcia dos
contendores que propriamente com uma decisão do caso, a decisão não era das partes, mas do
mais forte que vencia e designava a decisão do caso penal não pela condenação ou absolvição,
mas pela vontade de Deus. Ou seja, não se pode dizer que exista nesse período um processo
construído pelas partes, existindo apenas uma decisão baseada em fatores externos e muito
mais vinculada à crença no sobrenatural que na participação racional dos sujeitos. De toda
forma, vale o alerta do autor italiano ao afirmar que o modelo inquisitivo continuou em vigor
concomitantemente durante toda idade média sendo transmitido através do direito canônico
que perpetuou toda tradição burocrata herdada do Império romano.
O processo penal da Alta Idade Média, ensina Salah Kaled Jr. (2013, p. 34-41), se
baseou no desmonte do aparato do Império romano, e, consequentemente com a
descentralização do poder político que gradualmente assumiu as características dos sistemas
germânicos. Nesse período, o processo penal se desenvolvia em contraditório entre as partes,
sendo que o procedimento judicial tinha papel secundário eis que somente era utilizado
quando a composição privada fracassava. Contudo, entre os séculos IX e XII o sistema
probatório não se baseava em uma forma de investigação dos fatos, adotando um
procedimento destinado a verificação da razão de um dos adversários, através de signos
exteriores, adotando um modelo de luta entre as partes onde uma delas demonstrava seu
direito, através da força.
136

No sistema germânico, havia provas de caráter social, provas de caráter verbal e


provas corporais ou físicas, as chamadas ordálias. As provas de caráter social eram
voltadas para a força, o peso e a importância de quem dizia. No sistema verbal, um
erro de gramática – ou uma simples troca de palavras – invalidava a fórmula e não a
verdade do que era dito. O duelo significava que os adversários abandonavam o
litígio por palavras para tomar a via do combate físico. Apesar de algumas nuanças,
o funcionamento do sistema era ―estruturado nos chamados Juízos de Deus,
basicamente nas fórmulas do juramento (em geral para os que mais possuíam), do
duelo (de regra para os mais hábeis nas ações agonísticas) e das ordálias para o
povo em geral. As ordálias receberam do direito germânico sua denominação: apesar
de não serem uma exclusividade sua, nele encontraram sua mais completa
elaboração. Baseavam-se na crença de que a divindade intervia no processo a favor
da parte que tinha razão, expressando seu apoio através de manifestações sempre
inseguras, cruéis e até mesmo trágicas. A prova era suprida pela suposta intervenção
da Divindade com a intenção de designar quem devia ser considerado culpado.
Portanto, o conflito costumava ser resolvido através de duelo e quando este não
fosse possível, água fervente, água fria, fogo, cruz, etc. Se os elementos naturais não
se comportassem da forma habitual – de maneira que o acusado não se queimasse
com fogo ou água fervendo, ou que suas feridas se curassem em um determinado
período – estaria demonstrada a intervenção divina para demonstrar a inocência do
acusado. (KALED JR., 2013, p. 36-37)

Nesse período, o processo era oral, público e contraditório, consistindo em uma luta
entre as partes perante o órgão julgador, através de atos formais que possuíam sentido mítico,
como a fórmula acusatória pronunciada pelo acusador com palavras sacramentais seguida do
convite ao acusado para que pudesse se defender. A oralidade no processo acusatório
medieval não era uma opção do sistema, mas uma verdadeira necessidade que se convertia em
garantia ao acusado eis que assegurava a publicidade dos atos processuais em juízo. No
sistema medieval o juiz era um árbitro a quem competia assegurar o respeito às regras,
visando que se garantisse a manifestação da vontade divina. Como a decisão não era atribuída
ao juiz, a quem competia apenas declarar a vontade de Deus, não havia que se falar em
fundamentação das decisões. (KALED JR, 2013, p. 38-39)
Conclui Salah Kaled Jr. (2013, p. 40) que o processo penal vigente na Alta Idade
Média apresentava características típicas do modelo acusatório, através da separação das
funções de acusar e de julgar, com o juiz alheio à gestão probatória, publicidade e oralidade.
Contudo, apesar de características acusatórias, a modalidade de produção probatória da Alta
Idade Média não permite a participação racional das partes, que dependiam da habilidade, da
natureza ou da sorte para obter êxito.
Nesse contexto, Geraldo Prado (2006, p. 69) aponta que os duelos45, jogos e ordálias
não são antecipação de formas dialéticas de disputas que se pautariam na adversariedade, mas

45
Vale destacar que os duelos não foram invenção da Idade Média, Michel Foucault (2013, p. 57), citando
Homero como referência, aponta que os duelos já existiam na Grécia, segundo o autor francês: ―Dois
guerreiros se afrontavam para saber quem havia violado o direito do outro‖.
137

apenas uma forma de se controlar as forças da natureza e de se assegurar a sobrevivência do


grupo. Sendo que as ordálias não eram uma forma processual penal, mas uma devolução a
Deus da decisão da controvérsia, concentrando a presidência dos julgamentos nas mãos do
líder. Porém, consoante aponta Maurício Zanoide de Moraes (2010, p. 43-45), o julgamento
por ordálias indica dois fenômenos importantes: o não desenvolvimento dos institutos
jurídicos e a influência religiosa na Alta Idade Média. Nesse contexto, todo processo penal era
destinado à decisão através da intervenção divina, sendo desnecessária a evolução técnico-
jurídica. Nesse período não se adotava a prisão provisória, até mesmo porque a celeridade do
julgamento a tornava desnecessária, sendo que apenas no final da Alta Idade Média que o
encarceramento provisório passou a ser adotado como forma a forçar que o imputado
escolhesse o julgamento inquisitivo no lugar dos juízos divinos. As decisões não julgavam o
caso penal, condenando ou absolvendo o imputado, competia ao líder apenas decidir a
necessidade e qual seria a prova a que o acusado seria submetido, cabendo a decisão de mérito
a Deus, sendo, portanto, uma sentença de prova e inexistindo qualquer possibilidade de
dúvida no julgamento. As ordálias eram utilizadas apenas quando houvesse dúvidas sobre a
inocência do imputado, sendo certo que a dúvida não lhe era tida como favorável mas
ensejava a necessidade de que provasse ser inocente, sendo que as ordálias representavam a
crença de que se o imputado fosse inocente seria expurgado da culpa pela vontade divina, a
culpa era presumida, competindo ao acusado, através das provas, provar sua inocência.
Consoante Foucault, nos procedimentos resolvidos pelos duelos:
Em um procedimento como este não há juiz, sentença, verdade, inquérito em
testemunho para saber quem disse a verdade. Confia-se o encargo de decidir não a
quem disse a verdade, mas quem tem razão, à luta, ao desafio, ao risco que cada um
vai correr. (FOUCAULT, 2013, p. 57)

Portanto, na Alta Idade Média foi adotado um procedimento penal iniciado pelas
partes, o que, contudo, não significa um processo dialético, eis que a prova era produzida
segundo um ritual próprio onde a religiosidade imperava, eis que o apego à religião e o temor
a Deus era marcante nesse período. Assim, a prova da culpa ou inocência do acusado era
realizado segundo provas, juízos de Deus / ordálias, ou através de duelos. Sobre as ordálias,
interessante a lição de Francisco Augusto das Neves e Castro:
As ordálias, julgamentos ou juízos de Deus, consistiam em submeter o acusado a
uma certa e determinada prova, supondo que Deus não o deixaria sahir d´ella com
vida se fosse culpado. Esta especie emcontra-se entre quasi todos os povos
primitivos.
(...)
Em épocas posteriores ainda continuaram a ser adoptados estes meios de provas,
tomando diversas fórmas, como são: 1.º A prova da água a ferver, que era peculiar
da lei salica. Consistia em tirar um objeto do fundo d´uma caldeira d´agua a ferver,
138

de forma que, se o acusado no fim de tres dias não tinha nas mãos signal algum de
queimadura, a prova era favorável. É isto o que exprime o latim da lei salica: ad
aenum ambulare. 2.º A prova do ferro quente, em virtude da qual o accusado havia
de levar uma barra de ferro em braza na distancia de nove passos sobre a relha
d´uma charrua no mesmo estado sem se queimar. 3.º A prova da água fria, que se
fazia de diversas formas, uma das quaes era passarem os dous pleiteantes um rio a
nado um certo numero de vezes, perdendo a causa aquelle que cançava primeiro. 4.º
A prova da cruz, em virtude da qual aquelles que questionavam se colocavam um
defronte do outro com braços abertos, de forma que aquelle que primeiro os deixasse
cahir não tinha justiça. 5.º A prova do cadáver, que consistia em colocar o da
victima defronte do acusado de fórma que, se de novo começava a correr-lhe o
sangue, era aquelle o author do crime.
Há quem queira sustentar que as ordálias eram um meio d´intimidação e de fazer
com que os criminosos confessassem seus crimes: isto porém é favorecer muito a
ilustração d´aqueles que as admittiram. Não pode com probabilidade fazer-se outro
juízo, senão que aquele era um meio de invocar a interferencia da Divindade como
um meio de prova.46 (CASTRO, 1917, p. 24-25)

Franco Cordero (1986, p. 40) aponta que as ordálias são uma aposta onde se afronta as
probabilidades, na qual toda possibilidade está contra aquele que deve provar o fato, é uma
aposta contra a constância da série causal. Em complemento, Michel Foucault (2013, p. 63)
afirma que as ordálias consistiam na submissão da pessoa a uma espécie de jogo no qual o
indivíduo lutava contra seu próprio corpo para se constatar se venceria ou fracassaria, no
fundo trava-se de uma batalha em que se buscava descobrir quem era mais forte que quem.
Todos esses afrontamentos do indivíduo ou de seu corpo com os elementos naturais
são um [sic] transposição simbólica, cuja semântica deveria ser estudada, da própria
luta dos indivíduos entre si. No fundo trata-se de uma batalha, trata-se sempre se
saber quem é o mais forte. No Direito Germânico, o processo é a penas a
continuação regulamentada, ritualizada da guerra. (FOUCAULT, 2013, p. 63)

Nesse contexto, a prova das ordálias, seja através da água, fogo ou dos duelos, não
permitiam decidir qual seria a verdade, mas apenas apontar quem deveria ser considerado
vencedor no enfrentamento (FOUCAULT, 2014, p. 221). Assim sendo, a prova através dos
juízos divinos excluía o controle do julgador sobre o resultado, competindo ao juiz apenas a
escolha da prova a ser adotada e não tinha controle sobre o resultado, interferindo apenas no
modelo adotado.
Foucault (2013, p. 64-65) aponta quatro características da prova pelas ordálias, sendo
a forma binária a primeira delas, segundo essa característica ou o indivíduo aceitava a prova
ou a renunciaria, sendo que a renúncia implicava na derrota. A segunda característica é de que
a prova sempre determina a vitória ou a derrota, sempre havendo alguém que vence e alguém
que é derrotado, o mais forte e o mais fraco, a sentença, portanto, aponta apenas a vitória ou o
fracasso. A terceira característica da prova pelas ordálias é seria a desnecessidade de se ter um

46
Preferimos manter a grafia original da obra em respeito ao texto de época.
139

terceiro personagem para distinguir os dois adversários, vez que a resolução se daria pela
força, sorte, vigor, resistência física, agilidade ou pela agilidade intelectual dos contendores,
assim, o juiz não decidiria sobre a verdade mas apenas sobre a regularidade do processo. A
quarta característica é a de que a prova serve não para definir quem disse a verdade, mas para
estabelecer que o mais forte é quem tem a razão, sendo a prova judiciária uma maneira de
ritualizar a guerra ou de transpô-la simbolicamente.
Vê-se, pois, que a adoção das ordálias representa um vínculo com o divino, mas que,
em processo penal geralmente a prova era contrária ao acusado ou representava a vitória do
mais forte em detrimento do mais fraco, sendo factível crer que as ordálias já eram
mecanismos para intimidar o acusado e forçar sua confissão. Assim sendo, apesar de um
processo de iniciativa das partes, a busca da confissão representa significativa sombra
inquisitorial ao processo penal da Alta Idade Média.
Contudo, como instrumento de poder e controle, a prova das ordálias não permitia o
completo controle dos julgadores, eis que muitas vezes dependiam da sorte ou de atos da
parte. Tal fato faz com que o resultado do processo não esteja nas mãos do julgador que se via
em posição passiva sobre o resultado, podendo, contudo, influir no meio a ser empregado.
Contudo, pelos exemplos dados acima, percebe-se que as chances do acusado eram mínimas
em tal sistema.
A crise política oriunda da existência de inúmeros reinos e as invasões do território do
império carolíngio favoreceu a fragmentação da autoridade e do poder imperial, ensejando o
fracionamento político dos reinos de forma que os grandes assumem maior poder econômico,
terras e, consequentemente, poderes públicos. (LE GOFF, 2016, p. 47)
Entre os anos de 950 e 1050 verifica-se uma aceleração econômica da cristandade, que
é marcada pela construção e ampliação das igrejas em toda a Europa. Esse crescimento
acarretou o desenvolvimento de toda cadeia produtiva ligada à construção e implicará na
construção das igrejas góticas-romanas. O século X também é marcado pela expansão do
cristianismo para o norte da Europa, os islandeses se converteram ao cristianismo no final do
século, o mesmo se dando na Dinamarca, Noruega e Suécia, esta última no princípio do
século XI, entre outros povos nórdicos. (LE GOFF, 2007, p. 66-68)
A igreja tem importante papel influenciador na última fase do direito dos povos
bárbaros das penínsulas ibérica e itálica. Em ambas as regiões vai paulatinamente
interferindo na cultura bárbara e espraiando sua influência e controle sobre o
exercício de poder. Os invasores tornam-se uns ―vencedores vencidos‖, porquanto se
deixam ―influenciar pela autoridade moral dos bispos e pela superioridade das leis
romanas. (MORAES, 2006, p. 45)
140

Não se pode reconhecer processo nesse período da Alta Idade Média, pois, como
vimos, não basta a existência de partes para a existência de processo. Nessa quadra histórica,
apesar de termos partes bem definidas, o que irá desaparecer na baixa idade média, não temos
o contraditório, eis que não se buscava comprovar um fato, mas que a verdade fosse apontada
por meios divinos, seja pelo resultado das ordálias, pelo vencedor dos duelos ou pela correta
repetição de uma fórmula.
Entre os séculos X e XIV, em razão das novas invasões dos povos que viviam ao redor
do império carolíngio, o poder real sofreu severo enfraquecimento, dando ensejo à formação
do sistema feudal e com a decadência das jurisdições laicas, levando a Igreja a seu apogeu
com a expansão da jurisdição eclesiástica que passou a ter competência para o julgamento de
particulares. (POLI, 2016, p. 59)
Vê-se, pois, que essa primeira fase da Idade Média é marcada pelo crescimento da
Igreja, política e economicamente. Crescimento esse favorecido pela religiosidade que
colocava os julgamentos nas mãos de Deus através da adoção dos sistemas ordálicos, onde a
prova era feita segundo a ―vontade divina‖, que normalmente decidia pela morte dos acusados
não lhes dando qualquer chance de sobreviver. De outro norte esse mesmo período também
representou o início da formação dos Estados, não com o conceito de Estado-Nação que
surgirá nos séculos seguintes, mas como esfera de poder territorial de divisão do poder entre
os reis.
Nesse contexto, com o fim do sonho romano, no ano 1000, uma revolução marca o
ocidente, sendo que o século XI seria marcado como o período de arrancada da Cristandade
ocidental (LE GOFF, 2016, p. 50). ―Depois do ano 1000 a mudança se acelera. A
Cristandade medieval realmente entra em cena‖ (LE GOFF. 2016, p. 53).
Esse crescimento econômico da Igreja representa o próprio crescimento da Igreja
Católica como instituição, que, como se verá cresce agora economicamente para nos séculos
que se seguem crescer politicamente através da união com os Reis e espalhar um regime
extremamente autoritário na Baixa Idade Média, a inquisição católica.

4.2 Processo penal na Baixa Idade Média: a inquisição religiosa-estatal

O crescimento da igreja católica se potencializou a partir do século XI, por volta do


ano 1000 um grande movimento de construção desempenhou papel relevante no horizonte
medieval ocidental. Nesse período a evolução da produção de matéria prima e a grande oferta
de mão de obra fez com que as construções de catedrais e de grandes casas dos
141

patrimonializados se tornassem a grande indústria medieval. Esse ímpeto da construção


corresponde às necessidades da época, principalmente de alojar a crescente população
proporcionada por um período de paz, após terem cessado as invasões bárbaras, sendo que o
crescimento populacional representou o próprio crescimento do número de fiéis das igrejas.
(LE GOFF, 2016, p. 54-55)
O processo de cristianização trouxe de volta a expansão das cidades com a emigração
do campo para as zonas urbanas entre os séculos X e XIV, nesse período as cidades passaram
a desenvolver dois papéis importantes nesse período, um de serem núcleos de trocas
comerciais e outro de se tornarem sedes centros onde se instalaram líderes espirituais nas
cátedras das igrejas e universidades, onde a igreja passou a governar as almas. Essa nova
sociedade urbana também faz parte da sociedade feudal, que por vezes se imagina
exclusivamente rural, apesar de que a população rural fosse majoritária. (LE GOFF, 2016, p.
67-71)
A expansão urbana teve no ressurgimento do comércio outro fator importante o
reestabelecimento das relações de comércio que, a partir do século X passou a se desenvolver
nos burgos e seus arredores, bem como nas regiões portuárias. (PIRENNE, 1965, p. 47-49)
Ao longo do século XII as escolas urbanas ultrapassam as escolas monásticas de forma
decisiva. As novas escolas, provenientes das escolas episcopais, dão origem às Universidades,
que nada mais são que corporações de professores e alunos. Com essa expansão do ensino, os
livros ganham importância e passam a ser fabricados em série e comercializados. (LE GOFF,
2016, p. 71)
Nesse período a Igreja desempenha um papel de relevo no desenvolvimento
econômico, sendo que a partir do século XI – XII, quando os judeus não mais conseguiam
suprir as necessidades de crédito, passaram os mosteiros a fazer o papel de estabelecimentos
de crédito. Além disso, a Igreja passa a proteger os comerciantes e ajudá-los a vencer o
preconceito que os faziam ser desprezados pela classe senhorial ociosa, ressuscitando o
trabalho-castigo definido no texto bíblico, conferindo ao trabalho valor de salvação, e
fomentando o desenvolvimento econômico. (LE GOFF, 2016, p. 72-73)
Conjuntamente com a expansão interna da Igreja Católica houve também a expansão
externa, iniciada ainda no século VII e prosseguiu nos séculos IX e X. Nesse período foram
realizadas as cruzadas para a região muçulmana com a expansão do cristianismo para além
das fronteiras europeias através de soluções militares. (LE GOFF, 2016, p. 57-58)
Contudo, a Igreja não possuía exércitos eis que a guerra e a batalha nunca fizeram
parte de seus objetivos, tendo a Igreja se unido aos reis para conseguir seus objetivos. Com as
142

cruzadas os reis ganhariam poder territorial e político e a Igreja aumentaria sua área de
influência e ganharia mais poder para seus objetivos de dominação pela fé. Nesse período, a
igreja fora apoiada pelos príncipes que lhe ofereciam o seu braço secular, sendo que em 1022
as primeiras fogueiras para hereges são acesas em Orléans (LE GOFF, 2016, p. 77). A heresia
era vista como a causa de todas as maldições divinas, por isso deveria ser combatida sem
qualquer piedade (PROSPERI, 2013, p. 254). Assim, em que pese a Inquisição ter sido
idealizada e dominada pelo Papa, em todos os países em que a inquisição atuou ela contou
com o auxílio e a aprovação dos soberanos (POLI, 2016, p. 70-71).
No princípio do século XIII o mercado, a vida urbana e a centralização dos poderes
monárquicos criaram um ambiente propício à consolidação dos poderes dos reis e da Igreja
(CORDERO, 1986, p. 43), nesse contexto histórico a formação inicial dos Estados e o
crescimento da Igreja propiciou o ambiente necessário para a formação do procedimento
inquisitorial. Nesse período, o estudo do Corpus Iuris Civile passou a ser realizado sob novos
parâmetros de racionalidade em razão do nascimento das universidades modernas, trazendo a
recepção do direito romano e fazendo com que o modelo das monarquias absolutas contasse
com um sistema normativo sobre o qual se referenciavam critérios religiosos de legitimidade,
sendo que a justiça penal se desenvolvesse no marco desse modelo completo e complexo,
produtor de uma cosmovisão político-religiosa do poder (BINDER, 2017, p. 100). Valendo as
palavras de René David:
A ideia de que a sociedade deve ser regida pelo direito impôs-se no século XIII. Um
acontecimento muito importante manifesta com clareza a necessidade que é sentida
nesta época de se voltar à ideia de direito: uma decisão do IV Concílio de Latrão, em
1215, proíbe aos clérigos participarem em processos nos quais se recorresse aos
ordálios ou aos juízos de Deus. Esta decisão marca uma mudança decisiva. A
sociedade civil não podia ser regida pelo direito, enquanto a solução dos litígios
fosse abandonada a um sistema de provas irracional, a função do tribunal sendo
somente a de dizer qual a prova se deveria submeter cada uma das partes. A decisão
do IV Concilio de Latrão, excluindo esse sistema, vai ter como consequência, nos
países da Europa continental, a adoção de um novo processo, racional, que terá
como modelo o direito canônico; ela abre, assim, o caminho ao reino do direito.
(DAVID, 2014, p. 49)

Nesse período, a revolução inquisitorial satisfazia tanto ao mundo eclesiástico como


ao mundo civil, o primeiro porque se encontrava cercado de heresia e o segundo porque
enfrentava o aumento da criminalidade decorrente da expansão econômica gerada pelo
ressurgimento das cidades e da expansão comercial, que demandava maior automatismo
repressivo e era incompatível com os modelos de acusações privadas adotados até então.
Nesse contexto, a reviravolta inquisitorial foi fermentada na primeira metade do século XIII
em razão das mudanças socioculturais, apoiando-se na necessidade da Igreja em combater os
143

hereges (inicialmente os Cátaros e Valdenses) e de outra banda servir de solução para a vida
urbana que se via atacada pelo aumento da criminalidade em decorrência da expansão
comercial e maior circulação de moeda. (CORDERO, 2000, p. 16-17)
O poder secular e o poder espiritual eram considerados derivados do próprio poder
divino. Naquilo que se referia à salvação da alma, o poder espiritual prevaleceria, enquanto no
que tangenciava ao bem-estar civil tinha o poder secular como prevalecente. O papa acabava
sendo detentor tanto do poder espiritual como do poder secular, pois era ao mesmo tempo
sacerdote e rei. Contudo, o poder secular era subordinado ao poder espiritual e não usurpava
seu julgamento. (PEDRERO-SANCHES, 2000, p. 137-138)
A busca da hegemonia religiosa e da consolidação dos reis absolutistas teve inspiração
na inquisitoriedade do Império Romano, de forma que não foi a Santa Inquisição a inventora
da inquisição, mas os tribunais da inquisição aperfeiçoaram seus métodos para formar um
sistema extremamente lógico e racional, calcado na eleição de inimigos, os hereges, e na
busca de confissões e delações. A eleição de perseguidos fez com que a inquisição pudesse
retirar do indivíduo qualquer caráter humano, podendo usar de tortura e meios degradantes
para a busca da prova. Vale destacar que os hereges eram escolhidos, segundo os interesses
eclesiásticos e reais. Dessa forma, o processo penal volta a ser entendido e utilizado para a
defesa dos domínios reais e católicos contra seus inimigos (MORAES, 2010, p. 51)
Michel Foucault afirma que ―o que se inventou no Direito dessa época foi uma
determinada maneira de saber, uma condição de possibilidade de saber, cujo destino vai ser
capital no mundo ocidental‖ (FOUCAULT, 2013, p. 65). O aperfeiçoamento do modelo
inquisitório durante a Idade Média cria, pois, um sistema de controle do saber e das
informações, possibilitando a perseguição, dominação e neutralização daqueles que
interessavam ao crescimento da Igreja e dos reis que formavam seus poderes absolutos
naquele período. Segue Foucault afirmando que o inquérito na idade média não é nada mais
que uma forma de se exercer o poder.
Assim a união entre a Igreja e os Reis busca o procedimento inquisitório do império
romano, que permitia a centralização dos poderes nas mãos do julgador, porém adapta o
modelo inquisitorial às necessidades de seu tempo, sobretudo no que diz respeito ao campo
probatório, trazendo ao modelo novas características que passaram a fazer parte do
procedimento inquisitório desde então, forjando o sistema, sobretudo no sacramento da
confissão dos pecados e na delação das heresias.
Nesse período histórico, o poder do monarca demandava um sistema de justiça penal
mais eficaz, o que não era compatível com o modelo acusatório onde cada indivíduo poderia
144

iniciar o processo criminal perante o Estado. Em razão disso se introduziu a possibilidade de


início da ação penal por meio das autoridades públicas, sobretudo quando nos assuntos que
dissessem respeito à coroa, os denominados delitos de lesa-majestade. (WINTER, 2008, p.
17)
Portanto, o processo penal acusatório era incompatível com os interesses de
consolidação da Igreja Católica e das monarquias absolutistas na baixa idade média. Assim,
―o novo processo constituía um assunto ou um conflito de caráter público e como tal, dirigido
a averiguar a verdade material com a ajuda de meios de prova racionais‖47 (AMBOS, 2008,
p. 58, tradução livre).
Dessa forma, o procedimento inquisitorial foi utilizado como instrumento para fins
políticos utilizado para a proteção dos domínios territoriais (dos inimigos do Estado) e dos
domínios católicos (hereges e não convertíveis). (MORAES, 2010, p. 53)
No final do século XII, a igreja percebe que a doutrina não era mais seguida e
respeitada, sobretudo, nos burgos, e, visando manter seu próprio poder, passou a criar
mecanismos de repressão, controle e punição contra quem se insurgisse, questionasse, se
opusesse, negasse ou aderisse a outra doutrina ou outra religião, denominando tais pessoas
como hereges. (POLI, 2016, p. 68)
Aury Lopes Júnior ressalta que ―para compreender a inquisição, é necessário situála
[sic] num espaçotempo [sic], considerando o comportamento da Igreja. Tratase [sic] de um
sistema fundado na intolerância, derivada da “verdade absoluta” de que “a humanidade foi
criada na graça de Deus.‖ (LOPES JR. 2017, p. 35-36)
Nesse contexto, elegem-se inimigos reais e os inimigos da Igreja, os eleitos hereges, e
um inimigo imaginário que foi utilizado para o controle através do medo, o Diabo. Assim
sendo, os hereges representavam o Diabo encarnado na vida real, o que justificava todo ato de
combate à heresia e a criação de um sistema ardiloso de procedimento punitivo focado na
confissão, na delação e na neutralização do inimigo. Sobre o Diabo, afirma Luiz Nazário:
A ―verdade católica‖ sustentaria os bens espirituais e materiais, as instituições, a
ordem e a própria existência física das sociedades humanas: a heresia levava ao
apocalipse. Mas, se pela própria lei de entropia tudo tende à desintegração, para
manter aquela ―verdade‖ como cimento da sociedade, os inquisidores precisavam
recorrer a um desorganizador externo, a um elemento não assimilado e
inassimilável, que requisitasse o combate permanente. Chamaram o Diabo, para que
sua presença justificasse a ação repressiva e legitimasse o poder inquisitorial.
(NAZÁRIO,2005, p. 71-72)

47
No original: ―el nuevo proceso constituía una asunto o conflicto de carácter público y como tal, dirigido a
averiguar la verdad material con la ayuda de medios de prueba racionales‖ (AMBOS, 2008, p. 58)
145

O mito da segurança é reforçado através do mito da busca da verdade absoluta, que


não poderia ser construída senão através dos concílios, encíclicas e outros instrumentos
nascidos pela assistência divina. A intolerância é a base fundante da inquisição e a verdade é
sempre intolerante sob pena de perder seu caráter absoluto, a verdade é o eixo central da
inquisição e nessa estrutura a heresia se tornava perigosa, pois ousava a colocar em dúvida o
núcleo do modelo, autorizando seu combate a qualquer preço. (LOPES JR. 2017, p. 36)
Nesse período a Igreja não mais enxerga o crime como uma questão privada, passando
a vê-lo como um problema de salvação da alma, requisitando sua participação nos rituais
punitivos como forma de expiação de culpas. Não basta, pois, apenas o arrependimento do
acusado, é necessário a penitência como forma de punição, impondo que a Igreja investigue
um considerável número de infrações e ratificando politicamente sua autoridade. (PRADO,
2006, p. 80)
Este processo inquisitivo baseado no princípio da oficialidade – a semelhança do
precedente processo canônico – se implantou a nível geral primeiro nas
constituições de Melfi, um ambicioso projeto de codificação do Direito público e do
Direito penal da Sicília, por obra do imperador Frederico II (1194-1250). Sucedeu,
sem dúvida, que cada vez mais foi utilizado de maneira abusiva precisamente no
marco da perseguição da inquisição contra hereges – com fins de perseguição
política contra determinadas pessoas. Posteriormente se regularia dom detalhes na
Constitutio Criminalis Bambergensis de 1507 (―Bambergre Halsgerichtsordnung‖) e
nas Constitutio Criminalis Carolina (CCC) de 1532 (―Peinliche
Halsgerichtsordnung de Carlos V) – a mãe do processo de inquisição. 48 (AMBOS,
2008, p. 59-60, tradução livre, itálico no original)

Luigi Ferrajoli (2006, p. 521) aponta que o procedimento inquisitivo ganhou força
com as constituições de Frederico II tendo sido desenvolvida de forma ainda mais terrível e
feroz nos delitos de heresia e magia, quando o ofendido era Deus, sendo, por isso, a acusação
obrigatória e pública e se difundido por toda a Europa após o século XVI quando passou a
abranger todos os tipos de crimes. Nesses casos não se admitia a incerteza na busca da
verdade, não se tolerava o contraditório e se exigia a colaboração forçada do acusado.
Com a justificativa de ―abolir a depravação pervertida das heresias‖ (RUST, 2012, p.
150), o Papa Lúcio III, se junta ao poder imperial e publica no dia 4 de novembro de 1184, em
Verona, sua Constituição Apostólica, denominada de Bula Ad Abolendam, que constitiu na

48
No original: ―Este proceso inquisitivo basado en el principio de oficialidad – a semejanza del precedente
proceso canónico – se implantó a nivel general primero en las constituciones de Melfi, un ambicioso proyecto
de codificación del Derecho público y del Derecho penal de Sicilia, por obra del emperador Frederico II
(1194-1250). Sucedió, sin embargo, que cada vez más fue utilizado de manera abusiva – precisamente en el
marco de la persecución la inquisición contra herejes – con fines de persecución política contra determinadas
personas. Posteriormente se regularía con detalle en la Constitutio Criminalis Bambergensis de 1507
(“Bambergre Halsgerichtsordnung”) y en la Constitutio Criminalis Carolina (CCC) de 1532 (“Peinliche
Halsgerichtsordnung de Carlos V) – “la madre del proceso de inquisición”.‖ (AMBOS, 2008, p. 59-60)
146

primeira medida contra os hereges adotada na Europa (POLI, 2016, p. 78), tendo retomado a
equiparação da heresia aos crimes de lesa-majestade, como já havia existido no final da
existência de Roma, conforme expõe o primeiro cânone da referida bula:
[1] Para abolir a depravação pervertida das heresias que no tempo presente tem
começado a pulular em várias partes do mundo, deve-se provocar o eclesiástico com
vigor, através do qual com o auxilio do poder imperial, não só seja esmagada a
insolência dos hereges nos próprios esforços de sua falsidade, mas também a
simplicidade da verdade católica, resplandecendo na santa igreja, mostre-a por toda
parte purificada de toda maldição e de falsos dogmas. (RUST, 2012, p. 150)

Sobre o casamento entre a Igreja e o poder do Estado, Camilin Marcie de Poli


esclarece:
Diante disso, no ano de 1184 foi realizado um Concílio em Verona, no qual a Igreja,
visando por fim nas contestações aos seus dogmas, uniu-se efetivamente ao poder
laico na luta contra a heresia, uma vez que necessitava do auxilio do Estado para que
a perseguição e o combate aos hereges surtisse efeito. Para tanto, nomeou bispos
(que tinham o título de Inquisidores Ordinários) os quais deveriam visitar as
paróquias suspeitas de heresia de uma a duas vezes por ano, a fim de descobrir
possíveis violadores da unidade cristã.
Em que pese a Inquisição ter sido uma instituição idealizada e denominada pelo
Papa, logo, dirigida por uma autoridade supranacional, em todos os países onde
atuou contou com o auxílio e aprovação dos soberanos. Assim, em 04 de novembro
do mesmo ano, o Papa Lúcio III, conjuntamente com o imperador Frederico I
(conhecido como Frederico Barba Ruiva), promulgou a Bula Ad Abolendam, a qual
anunciou a perseguição aos hereges e trouxe instruções de como se deveria operar,
dispondo os procedimentos de investigação e punição (v.g. excomunhão, confisco de
bens, etc.) era atribuição da jurisdição dos bispados. (POLI, 2016, p. 70)

E mais adiante Camilin Marcie de Poli segue:

Destarte, a Ad Abolendam não foi um mero documento papal: ela ―emergia da


autoridade imperial, seu texto expressa a interpenetração medieval dos poderes
temporal e espiritual. Tratava-se por assim dizer de uma ―bula do imperador‖, não
exclusivamente do pontífice: um estatuto simultaneamente imperial e eclesiástico.
(POLI, 2016, p. 78)

A bula Ad Abolendam tinha como foco as comunidades que se tornaram arredias aos
preceitos da eclesiologia papal, sobretudo contrários à forma de vida dos clérigos que
ostentavam uma vida de luxo e riquezas arcadas. Nesse contexto, grupos de cristãos
abandonaram as igrejas e deixaram de lhes pagar os tributos, ensejando a perseguição por
parte da inquisição. Como ensina Tereza Aline Pereira de Queiroz (1988, p. 10), a palavra
heresia significa escolha, porém, dentro do imaginário do cristianismo medieval a noção de
escolha era inconcebível, que se tornava um desvio, eis que o cristão devia aceitar as verdades
recebidas sobre a relação entre o homem e a divindade. Nesse contexto, os heréticos dos
séculos XI e XII desejavam uma reforma radical na Igreja e lutavam contra os desregramentos
morais do clero (QUEROZ, 1988, p. 24). O herege era essencialmente visto como sendo um
147

mau cristão, um desobediente em relação às ordens das autoridades cuja desobediência era
indício de uma degeneração moral e do abandono de todo respeito às normas que regiam a
sociedade, ou aqueles que haviam se afastado da vida comum dos católicos (PROSPERI,
2013, p. 349-350). Assim a heresia representava a cisão do indivíduo ou de uma comunidade
com o conjunto dos homens cristãos.
Vale transcrever a lição de Franco Cordero:
Fermentada na primeira metade do século XIII por mutações socioculturais,
apoiando-se em dois vértices: um eclesiástico e outro laico; em primeiro lugar, a
heresia cátara, radicada no mundo occitano, que constituiu uma anti-igreja de
impulso firme missionário, desde os Pirineus até a Lombardia, e em segundo lugar
na predicação valdense, surgida como variante espiritual da rotina esclerótica, e que
foi derivada da ortodoxia negando o monopólio sacerdotal dos instrumenta salutis;
vida urbana, moeda, mercado, expansão comercial, dão origem à expansão da
criminalidade. Restauração eclesiástica, centralização administrativa (na França, de
onde os reis se sobrepuseram aos poderes feudais e as autonomias locais),
consolidação dos microcosmos municipais italianos, constituem um contexto
adequado para a reforma judicial.49 (CORDERO, 2000, p. 17, tradução livre)

Nesse contexto, a bula, em questão, já condenava toda heresia e declarava verdadeira


guerra contra ela, já determinando a condenação dos apontados como hereges e daqueles que
lhes dessem qualquer tipo de proteção, sendo papel dos bispos apenas a descoberta das
pessoas que se enquadravam na descrição da bula como sendo hereges, como se vê em seu
texto:
[2] Por isso, sustentados com a força de nosso filho caríssimo, Frederico, ilustre
imperador dos romanos, sempre augusto, com o habitual conselho de nossos irmãos,
[os cardeais], bem como de outros patriarcas, arcebispos e muitos príncipes, que
vieram de outras regiões longínquas do império, mediante a promulgação do
presente decreto geral, nos erguemos contra os próprios hereges, cuja explicitação de
falsidades pervertidas gerou proposições desvirtuadas e, por meio desta constituição,
com autoridade apostólica, condenamos toda heresia, seja qual for o nome pelo qual
é conhecida.
[3] Portanto, inicialmente determinamos que Cátaros, Paritanos, aqueles que são
designados pelo falso nome de Humilhados ou Pobres de Lyon, Passaginos,
Josefinos e Arnaldistas sejam submetidos ao anátema perpétuo.
[4] E porque alguns deles, sob a aparência de piedade e denegrindo a virtude,
conforme diz o Apóstolo, reivindicam para si a autoridade para pregar, mesmo
quando o Apóstolo disse ―como pregarão, se não foram enviados?‖, [condenamos]
todos que, proibidos ou não foram enviados, ousaram pregar publicamente ou em
privado, sem ter percebido a autoridade da Sé Apostólica ou bispo do lugar.
[5] E ligamos com o vínculo do anátema perpétuo todos que não temem sentir ou
ensinar algo diferente do que a sacrossanta Igreja Romana prega e observa quanto

49
No original: ―Fermentada en la primera parte del siglo XIII por mutaciones socioculturales, apoyándose em
dos vértientes: una eclesiástica y outra laica; en primer lugar, la herejía cátara, radicada en el mundo
occitano, que constituió uma antiglesia de firme impulso missioneiro, des de los Pirineos hasta la Lombardía,
y en segundo lugar la predicación valdense, surgida como variante espiritual de la rutina esclerótica, y que se
derivó de la ortodoxia negando el monopólio sacerdotal de los instrumenta salutis; vida urbana, moneda,
mercado, expansión comercial dan origen a toxinas criminales. Restauración eclesiástica, centralización
administrativa (em Francia, donde los reyes eclipsan los poderes feudales y las autonomias locales),
consolidación de los microcosmos municipales italianos, constituyen um contexto adecuado para la reforma
judicial.‖ (CORDERO, 2000, p. 17)
148

aos sacramentos do Corpo e do Sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, do batismo e


da confissão dos pecados, do matrimônio ou dos demais sacramentos eclesiásticos.
E em geral [ligamos com o mesmo vínculo] quem quer que tenha sido julgado
herege pela mesma Igreja Romana ou por cada bispo em sua diocese, aconselhado
pelos clérigos ou pelos próprios clérigos, caso a sé episcopal esteja vacante, e, se for
oportuno, aconselhado pelos bispos das cidades vizinhas.
[6] Também ordenamos que se enquadrem na mesma sentença todos os seus
acolhedores e protetores, e todos que, de alguma forma, oferecerem algum apoio ou
ajuda aos mencionados hereges, com o propósito de fomentar sobre eles a
depravação herética, [e igualmente] os consolados, ou crentes, ou perfeitos ou
quaisquer outros nomes supersticiosos pelos quais são chamados. (RUST, 2012, p.
150)

A eleição de hereges funciona no período da inquisição eclesiástica segundo as


conveniências da Igreja e do Estado. A cada tempo o grupo aumentava segundo as
conveniências. Primeiro aqueles que se ousavam a pregar uma forma diversa do cristianismo,
como os Cátaros, Valdenses, etc. Posteriormente, as bruxas, que representavam aqueles que
cultuavam religiões pagãs, normalmente derivadas das culturas denominadas bárbaras e que
haviam invadido o Império Romano determinando, seu fim. E, ao final da inquisição, os
inimigos eleitos foram os reformistas durante a reforma protestante nos séculos XV-XVIII.
Naturalmente, não se pode negligenciar de todo o possível conteúdo real dos
argumentos inquisitoriais: não se pode excluir, em suma, que a heresia, a dissensão
doutrinária perseguida e eliminada na forma de proposições intelectualmente
elaboradas, fossem ocultadas e encontrassem expressão em comportamentos sociais
divergentes da norma. (PROSPERI, 2013, p. 464)

Dos hereges inicialmente eleitos, os cátaros foi o movimento de maior repercussão,


tendo atuação no sul da França, tendo o nome derivado da palavra grega Kataroi, que
significa ―puro‖, tendo origem na pregação do monge Henrique, que apensar de não ser
cátaro, exerceu influência nas populações do sul da França ao ponto se formar o grupo
herético que pregava a necessidade de profundas mudanças na Igreja daquela época.
(QUEIROZ, 1988, p. 35-45)
Já os Pobres de Lyon, mais tarde denominados Valdenses, em razão de terem sido
fundados por Pedro Valdès, era um grupo de pregadores que se deslocava pela França em
nome do evangelho e da reforma da Igreja, tendo como lema a pobreza volutária
fundamentada no evangelho. Valdès era um rico comerciante de Lyon que, seguindo os
exemplos de Cristo, abandonou mulher, deixando-lhe suas terras, e distribuiu sua fortuna aos
pobres, tendo conseguido reunir entorno de si um bando de discípulos junto dos quais saiu
pregando penitências, embora não tivesse autorização eclesiástica para tanto, tendo o
arcebispo de Lyon proibido Valdès e seu grupo de pregar, o que foi desobedecido. Os Pobres
de Lyon, Cátaros e arnaldistas em 1184 no concilio de Verona (QUEIROZ, 1988, p. 29-30).
149

Eugênio Raúl Zaffaroni (2007, p. 34) aponta que os inimigos nominados, nunca foram
os reais perseguidos, mas a inquisição perseguiu na realidade os opositores do monarca,
acusados de serem hereges ou dissidentes. Em outras palavras, a estrutura inquisitorial
perseguiu aqueles que eram contrários ao status quo posto pelo poder da força, representando
a união entre as monarquias absolutas em ascensão (Estados Nacionais Absolutos) e, portanto,
em busca de poder político, e a Igreja que buscava sua consolidação e desejava eliminar
qualquer um que adotasse postura religiosa diversa.
Vê-se, pois, uma das características de um modelo inquisitório que ainda sobrevive ao
tempo, como demonstraremos, a eleição de inimigos para sua neutralização através do
procedimento punitivo. Assim, a bula Ad Abolendam elencou aqueles que são considerados
pela Igreja como inimigos, os hereges, determinando quais grupos seriam perseguidos,
neutralizados e punidos através dos rituais punitivos.
A bula de 1184 estabelece que a severidade dos castigos serviria de estímulo ao
pecado, tal qual se propaga até os dias atuais de que a severidade da pena poderia
(des)estimular a prática do crime e se usa de penas mais graves como resposta à uma suposta
criminalidade. Aponta ainda que se clérigos forem surpreendidos em heresia deveriam ser
destituídos do ofício e entregues ao braço secular, que representava poder do Estado, para
serem punidos, salvo se imediatamente após a descoberta do fato o clérigo retornasse
espontaneamente à unidade de fé católica e consentisse em abjurar publicamente de seus erros
perante o julgamento do bispo local, cumprindo a pena correspondente. Caso um leigo fosse o
acusado de heresia, deveria ser julgado pelos juizos seculares e por ele punido, exceto se
houvesse abjurado da heresia e cumprido a pena imposta tão logo houvesse retornado à ―fé
ortodoxa‖. Vê-se que a estrutura construída pela Bula Ad Abolendam se alicerça também pelo
terror, através da adoção de penas públicas de modo a reafirmar a validade da própria norma
para que não ocorresse a heresia pelo medo da punição, adotando-se o que atualmente se
chama de prevenção geral negativa. Como se verifica no texto papal:
[7] Posto que, às vezes, na verdade, acontece que a severidade da disciplina
eclesiástica contribui em estímulos para o pecado quando é promovida pelos que não
compreendem sua virtude, determinamos pela presente ordenação, quanto àqueles
que manifestamente foram surpreendidos em heresia, se for clérigo ou se estiver sob
proteção de qualquer ordem religiosa, que seja despojado da prerrogativa de toda
ordem eclesiástica, destituído de todo ofício e benefício eclesiástico e entregue ao
julgamento do poder secular para ser punido com a pena adequada, exceto se,
imediatamente após o erro ter sido descoberto, ele retornar espontaneamente à
unidade da fé católica, consentir em abjurar publicamente de seus erros perante o
julgamento do bispo local e cumprir com a satisfação correspondente. Por sua vez, o
leigo que tiver sido maculado com alguns dos delitos, notórios ou privados, das
mencionadas pestes, deve ser conduzido ao julgamento do juiz secular para receber a
punição devida à qualidade das más ações, exceto se, conforme foi dito antes, tiver
abjurado da heresia e cumprido com satisfação correspondente, logo que regressou à
150

fé ortodoxa. (RUST, 2012, p. 152)

A bula Ad Abolendam atribuía a tarefa de acusar e julgar aos bispos, estabelecendo de


antemão a pena que seria aplicada aos hereges nominados por ela: a excomunhão, que era
estendida a todos que dessem qualquer tipo de auxilio aos hereges. Os religiosos e bispos que
fossem tidos por negligentes ou ociosos no cumprimento da referida bula poderiam ser
suspensos da dignidade e da administração episcopal pelo prazo de três anos. Além disso não
era necessária a certeza da prática de heresia, bastava a suspeita para a condenação, em mais
uma característica do modelo inquisitorial, a presunção de culpa e a inversão do ônus
probatório, cabendo ao acusado a prova da própria inocência e permitindo a condenação com
base em meras suspeitas. Além das penas, os bens dos acusados de heresia eram entregues ao
clérigo e destinados à igreja, o que deu à igreja condições econômicas de crescer ainda mais.
Em termos de processo penal, a bula em análise estabelece que os bispos e arcebispos
percorressem as respectivas paróquias em busca de informações sobre eventuais práticas de
heresias, podendo fazer com que toda a comunidade jure se esforçar para indicar quem seriam
os hereges, aqueles que realizaram reuniões secretas ou que os que estariam afastados do
convívio habitual da vida e dos costumes dos fiéis. Feita a seleção dos que se encontravam na
situação descrita, os acusados seriam julgados pelo próprio bispo e, se considerados hereges,
excomungados. Vê-se aqui a característica central do procedimento inquisitorial, importada
do sistema imperial romano, a concentração dos poderes de acusar, produzir provas e julgar
nas mãos de uma mesma pessoa. Além disso, a negativa do acusado de heresia de jurar para
confessar era interpretada de forma contrária ao acusado, o que tornava inexistente a
presunção de inocência. Mais uma vez, nos valeremos do texto da bula papal:
[8] Aqueles descobertos só pela Igreja em evidente suspeita serão submetidos à
mesma sentença, exceto se apresentarem ao julgamento do bispo, segundo a
consideração da suspeita qualidade da pessoa, a própria inocência, por intermédio da
reparação adequada. Também aos que, após a abjuração do erro ou, como dissemos,
após terem purificado [dele] mediante o exame do próprio antístite bispo, forem
surpreendidos reincidindo na heresia abjurada, determinamos que sejam entregues
ao julgamento secular, sem nenhuma outra [possibilidade] de apelação, e que os
bens dos condenados sejam entregues ao clérigo das igrejas aos quais serviam,
segundo as sanções legítimas de serem aplicadas.
[9] Determinamos que a referida sentença de excomunhão, à qual devem estar
submetidos todos os hereges, seja reiterada por todos os patriarcas, arcebispos, e
bispos nas principais festividades e mantidas em todas as solenidades ou demais
ocasiões, para a glória de Deus e a repressão da depravação herética. Se alguém da
ordem dos bispos for considerado negligente ou ocioso quanto ao cumprimento
desta constituição, por força da autoridade apostólica, ordenamos sua suspensão da
dignidade e da administração episcopal pelo espaço de três anos.
[10] A isto, por conselho dos bispos e recomendação do cume imperial e de seus
príncipes, acrescentamos que qualquer arcebispo ou bispo, por si mesmo, ou por seu
arquidiácono ou por outras pessoas honestas e idôneas, uma ou duas vezes ao ano,
percorra a própria paróquia na qual tenha a notícia de que ai vivem hereges, e aí
151

obrigue a três ou mais homens de bem, ou ainda, se parecer proveitoso, a toda


vizinhança, a jurar que se esforçarão para indicar ao bispo ou ao arquidiácono os
que se sabe são hereges ou os que celebram reuniões secretas ou os que se afastam
do convívio habitual da vida ou dos costumes dos fiéis. Que o bispo ou o
arquidiácono convoque os acusados à sua presença, os quais devem ser punidos
segundo o julgamento dos bispos, exceto se tiverem purificado da acusação
imputada mediante o julgamento deles e segundo o costume do lugar ou, se após
terem se purificado, forem relapsos reincidindo na perfídia anterior. Se alguns deles,
movidos por superstição condenável, recusando o juramento, talvez, se negarem a
prestá-lo, que sejam considerados por isso como hereges e submetidos às penas que
foram relacionadas acima. (RUST, 2012, p. 153-154)

Por fim, a bula inicial da inquisição eclesiástica constitui um sistema de vigilância,


baseado nas confissões, delações e na vigilância de uns sobre os outros determinando que os
condes, barões, rectores e cônsules das cidades auxiliem a Igreja no combate ao inimigo
herético. Nesse contexto, quem se recusasse a colaborar poderia vir a ser condenado em
infâmia perpétua e excluídos da assistência judiciária e do direito a prestar testemunho e
desempenho de serviços públicos. Vê-se que sob tais ameaças cria-se um clima de que todos
poderiam denunciar os atos de todos, assegurando à Igreja o controle das pessoas e da
sociedade através do controle sobre a informação e dos rituais punitivos. Nesse sentido, diz a
bula Ad Abolendam:
[11] Além disso, determinamos que os condes, barões, rectores e cônsules das
cidades e de outros lugares conforme a admoestação dos arcebispos e bispos,
mediante juramento prestado pessoalmente, prometam auxiliar fiel e eficazmente a
Igreja contra os hereges e seus cúmplices, em tudo que foi [aqui] mencionado,
quando forem requisitados; e de boa fé se empenharão em executar todos os
estatutos eclesiásticos e imperiais que ditamos, conforme o seu ofício e poder. Mas,
se não quiserem observar isto, que sejam destituídos da honra que gozam e de modo
algum não obtenham outra e que sejam ligados pela excomunhão e que as terras
deles estejam sob o interdito imposto pela Igreja. A cidade que resistir a cumprir
estas decretais estabelecidas ou, contrariando a exortação do bispo, negligenciar a
punir os que se lhes opõem, estará impedida de comercializar com os vizinhos, saiba
que estará privada da dignidade episcopal. Também determinamos que todos os
partidários dos hereges sejam condenados em infâmia perpétua bem como sejam
excluídos da assistência judiciária, de prestar testemunho e de outros ofícios
públicos. Entretanto, com base na lei, se houver alguém que esteja isento da
jurisdição diocesana, submeta-se apenas ao poder da Sé Apostólica, naquilo que
acima foi decretado contra os hereges, todavia, esteja submisso e acate o julgamento
dos arcebispos e dos bispos e nesse aspecto, como se fossem delegados da Sé
Apostólica, não obstante os privilégios de sua isenção. (RUST, 2012, p. 155)

Porém, no dia 25 de março de 1199 o Papa Inocêncio III editou a Bula Vergentis in
Senium que trouxe ainda mais rigor à perseguição aos hereges e àqueles que dessem auxilio
ou proteção aos hereges. Além disso ainda determinou o confisco dos bens dos hereges em
benefício da Igreja, impulsionando ainda mais seu crescimento econômico e,
consequentemente, seu poder. Como se verifica no próprio texto da referida bula:
[4] Portanto, de acordo com a sugestão consensual de nossos irmãos, [os cardeais], e
igualmente com o assentimento dos arcebispos e bispos presentes nesta Sé
152

Apostólica, proibimos com todo rigor que, de maneira nenhuma, ninguém se atreva,
de modo algum, a acolher os hereges, defende-los, favorece-los ou apoiá-los; se
alguém se atrever a fazer algumas dessas coisas, a não ser que se empenhe em
ratificar sua ousadia, após ser avisado pela primeira e segunda vez, mediante este
decreto, por força do próprio direito, estabelecemos firmemente que seja
considerado infame e não seja aceito para exercer cargos públicos ou tomar parte
nos conselhos citadinos ou participar das eleições para tais cargos e tampouco seja
admitido como testemunha . Que igualmente seja incompetente para testemunhar
nem tenha direito à sucessão hereditária. Ademais, que ninguém seja obrigado a
atender-lhe nas obrigações de quaisquer negócios. Caso se trate de um juiz, que sua
sentença não tenha valor algum, nem causa alguma seja apresentada ao seu tribunal.
Se for advogado, que de algum modo seja aceito para defender. Se for tabelião, que
os documentos redigidos por ele careçam de todo efeito e sejam condenados
juntamente com seu autor já condenado. Em casos semelhantes também ordenamos
a observância do mesmo [modo de proceder]. Se for clérigo, que seja deposto de
todo cargo e benefício, a fim de que naquele em que há maior culpa, sofra uma
punição mais severa.
[5] Se alguém desprezar o dever de evitar o contato com tais pessoas, após terem
sido declaradas culpadas pela Igreja, saiba que incorre em sentença de anátema. Nas
terras submetidas a nossa jurisdição temporal, ordenamos que os bens dos hereges
sejam confiscados e nos demais territórios estabelecemos que se faça o mesmo, por
intermédio dos poderes e dos princípios seculares, os quais, acaso se mostrem
negligentes em executar essa ordem, queremos e ordenamos que sejam compelidos a
cumpri-la mediante castigos eclesiásticos, sem haver possibilidade de apelação. Que
não sejam, posteriormente, devolvidos a tais hereges os seus bens, a não ser que
alguém queira usar de misericórdia para os que tiverem se convertido de coração e
renegado a companhia dos hereges, para que, ao menos, o castigo temporal puna o
que não se corrige por força das punições espirituais. (RUST, 2012, p. 159-160)

Porém a grande guinada proporcionada pela Bula Vergentis in Senium foi a


equiparação da heresia ao crime de lesa-majestade, que configurava o crime mais grave para a
sociedade medieval cujo poder do rei vinha se tornando cada vez mais forte. Como aponta
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:
Algumas medidas já haviam sido tomadas: Inocêncio III, o papa de então, havia
baixado uma bula (Vergentis in Senium), em 1199, equiparando o crime de heresia
ao de lesa majestade, historicamente o mais grave dos crimes. Ela, como tal,
produziu poucos efeitos, porque eventual punição ainda estava afeta aos leigos que,
ademais, começavam a avolumar poder em face do crescimento das nascentes
cidades medievais, construídas não pela decadência dos feudos, mas, sobretudo, em
função da necessidade dos senhores das caravanas melhor conduzirem e distribuírem
suas mercadorias, fato determinante não só da criação dos entrepostos comerciais,
mas, principalmente, para serem eles regidos por uma outra mentalidade, ligada ao
comércio e, portanto, muito diferente daquilo que se tinha nos feudos.
(COUTINHO, 2009b, p. 104)

A heresia foi alçada ao vértice da pirâmide dos crimes, suspendendo todas as garantias
e regras da administração da justiça, inclusive o sigilo e a voluntariedade da confissão
(PROSPERI, 2013, p. 30). ―A ameaça da heresia era a mais grave entre quantas se podiam
imaginar: era um crime de lesa-majestade humana e divina, subvertia a ordem pública‖
(PROSPERI, 2013, p. 252) Dessa a equiparação da heresia ao crime de lesa-majestade torna o
herege uma não pessoa, um inimigo, que deve ser aniquilado e, para tanto, todos os meios
153

valem e nenhuma garantia poderia lhe ser assegurada, sua confissão poderia ser obtida de
qualquer forma, inclusive mediante tortura e outros meios cruéis. Não havia, em relação à
confissão de heresia ou da confissão do herege nenhum sigilo, possibilitando a perseguição
daqueles que eram delatados através da confissão eclesiástica. Nesse contexto, as portas para
um sistema de dominação e poder estavam abertas.
De resto, não só na Itália religião e política eram incindíveis. Os soberanos puniam o
crime de heresia como o maior delito político, o de lesa-majestade. Divergir da
religião do príncipe era uma forma de sedição. Sobre esse terreno, como responsável
supremo pela fidelidade religiosa dos povos sujeitos a príncipes particulares, o
papado pôde, portanto, construir uma forma especial de exercício do poder acima
das fronteiras estatais: mas pôde fazê-lo somente nos estados italianos, os únicos nos
quais o tribunal do Santo Ofício romano exercia de fato sua função. (PROSPERI,
2013, p. 45)

A equiparação do crime de heresia ao crime de lesa-majestade abriu caminho para a


punição cada vez mais severa dos hereges, implicando no uso de meios de investigação e
punição que não respeitavam limites como a tortura e a pena de morte e, muito menos a
personalidade das penas, podendo a pena por heresia passar da pessoa do condenado para
atingir seus descendentes. Tal fato se justificou na bula Vergentis in Senium com o argumento
de que a heresia seria uma ofensa à própria fé e à Jesus Cristo, que seria a majestade eterna,
assim, a ofensa contra a majestade terrena (temporal) não poderia ser mais grave que a ofensa
à majestade eterna (Jesus Cristo), como se vê no próprio texto papal:
[6] quanto aos culpados pelo delito de lesa-majestade, que sejam punidos, em
conformidade com os castigos legais, isto é, seus bens sejam confiscados, e que a
vida de seus filhos seja poupada somente por misericórdia: ora, quanto mais que se
distanciam da fé no Senhor, ofendendo a Jesus Cristo, Filho de Deus, sejam
separados de nossa cabeça, Cristo, por sentença eclesiástica, e despojados de bens
temporais, pois não é mais grave ofender a majestade eterna do que a temporal?
Nem de modo algum seja impedida [a aplicação] do rigor deste castigo dos
ortodoxos, sob o pretexto de certa aparência de misericórdia no tocante aos filhos
daquele que perdeu seus bens, pois, segundo o julgamento divino, em muitas
circunstâncias, também estes sofrem temporalmente por causa de seus pais e,
conforme as penas canônicas, algumas vezes, o castigo recai não apenas sobre os
criminosos mas também sobre a descendência dos que foram condenados. (RUST,
2012, p. 161)

A equiparação da heresia aos delitos de lesa-majestade significou o uso do


procedimento inquisitório para a perseguição de qualquer desvio de caráter político ou
religioso. Na prática, os procedimentos inquisitórios serviram para institucionalizar a
persecução derivada de motivação política ou religiosa através da constituição de um modelo
de terror, com fins alheios à manutenção da paz social da comunidade. (WINTER, 2008, p.
20)
Em contrapartida à expansão econômica da igreja e sua urbanização, surgem no século
154

XI, e se expandem no século XII, novas ordens religiosas que delineiam reformas múltiplas
no modo em que os religiosos viviam e constituíam comunidades monásticas e solitárias
ligadas a uma sociedade rural e feudal. Tais movimentos, pregavam a simplicidade e
afirmavam a necessidade, preconizando o trabalho manual organizando novas formas de
atividade que combinavam com os novos métodos de cultivo. Outras ordens urbanas
acabaram repelidas para o segundo plano das cidades em desenvolvimento, as ordens dos
mendicantes, que pregavam uma vida de pobreza. Essas ordens novas acabaram perseguidas
pela própria Igreja como hereges. (LE GOFF, 2016, p. 75-76)
Nesse contexto, os sínodos da Idade Média davam o tom da sociedade cristã, sendo
que os concílios dos séculos XII e XIII deram o norte da evolução da Igreja, sobretudo o mais
importante deles, o IV Concilio de Latrão (1215). Nesse período as heresias eram tidas como
condutas ―antifeudais‖, eis que contestavam a própria estrutura da sociedade e o que a
constituía, o feudalismo. (LE GOFF, 2016, p. 76-78)
O feudalismo é antes de tudo o conjunto de vínculos pessoais que unem, numa
hierarquia, os membros das camadas dominantes da sociedade. Esses vínculos
apoiam-se numa base ―real‖: o benefício que o senhor outorga a seu vassalo em
troca de um certo número de serviços e de um juramento de fidelidade. O
feudalismo, no sentido estrito, é a homenagem e o feudo. (LE GOFF, 2016, p. 79)

Vê-se, pois, que a heresia era tida como uma conduta que colocasse em risco as regras
do feudalismo, ou seja, que colocasse em xeque a hierarquia de dominação estabelecida por
esse sistema. O feudalismo se apresenta como um sistema de classes onde os senhores feudais
detinham o poder bélico e econômico (propriedade sobre as terras) e os vassalos lhe
forneciam a mão de obra em troca de comida e proteção. Assim sendo, a heresia punia os atos
atentatórios a esse sistema e tinha, no fundo, o escopo de manutenção da estrutura social,
conservando as relações de poder e dominação entre senhores e vassalos. Após o ano 1000,
dois personagens ganham relevo, o papa e o imperador (LE GOFF, 2016, p. 87). Sendo que a
proeminência da inquisição se baseia na ―vingança pública‖ contra a heresia, por isso a Igreja
transfere o pecado do âmbito da culpa espiritual para a culpa jurídica (PROSPERI, 2013, p.
260). Contudo, Le Goff narra uma importante mudança, o surgimento dos reinos:
No final do século X, a estrutura social do Mâconnais é ainda, na superfície, a da
época carolíngia. A principal fronteira é a que separa os livres dos servos, e muitos
camponeses ainda são livres. O poder condal, expressão do poder público, parece
ainda respeitado. Rapidamente, porém, as coisas mudam e o feudalismo se insta.
Não que o feudo se difunda muito na região. Mas o castelo torna-se o centro de uma
senhoria que aos poucos absorve todos os poderes: econômico, judiciário, político.
Em 971 aparece o título de cavalheiresco e em 986 o primeiro tribunal privado, o da
Abadia de Cluny; em 988, pela primeira vez o senhor, o Conde de Chalon, cobra
exações dos camponeses tanto livres quanto servos. Data de 1004 a última menção a
uma corte vicarial independente de um senhor, e, de 1019, a última sentença
155

pronunciada por uma corte condal contra umcastelão. A partir de 1030 o contrato de
vassalagem se instaura e, em 1032, a palavra nobilis desaparece e dá lugar a miles50.
Enquanto o conjunto dos camponeses vê, com algumas exceções – alodiais,
ministeriais – suas condições de se uniformizarem no seio de uma ampla classe de
―manentes‖, instaura-se uma hierarquia no grupo senhorial. Por volta de 1075, a
cavalaria, ―antes classe de fortuna e de gênero de vida‖, tornou-se ―uma casta
hereditária, uma verdadeira nobreza‖. Ela comportava, contudo, dois escalões,
conforme ―a distribuição de poder sobre os humildes‖: o mais elevado é o dos
―sires‖ do castelo (domini, castellani), que exercem sobre um território de certa
importância o conjunto dos poderes públicos atrás de si além de um pequeno
número de dependentes pessoais. De seu casteo o senhor é chefe de um território em
que exerce o seu ban, conjunto de poderes privados e públicos misturados: é a
senhoria denominada ―banal‖ (embora na época o termo bannus seja bastante raro.
(LE GOFF, 2016, p. 81-82)

Camilin Marcie de Poli (2016, p. 59) aponta que entre os séculos X a XIV a poder real
restou enfraquecido pelo feudalismo e, em razão da decadência da jurisdição laica a jurisdição
eclesiástica passou a ter um significativo aumento de competência, passando a julgar também
os particulares, além dos religiosos. Dessa forma, os tribunais religiosos ganharam força de
forma gradual o que ensejou em seu crescimento e dominação dos meios de força e aplicação
penal.
Porém, o desenvolvimento urbano e a expansão dos feudos com a anexação dos
menores pelos de maior força, acabou acarretando o fim do sistema feudal e sua substituição
pelo sistema monárquico com o crescimento político, econômico e bélico dos reis. ―Na Idade
Média, o procedimento inquisitório apareceu associado à formação dos estados nacionais e
ao surgimento das monarquias absolutas, sempre reforçando a ideia de unidade de poder.‖
(MARQUES, 2011, p. 479). Nesse contexto se tornava importante para a Igreja se juntar aos
reis para se consolidar, juntado o poder da fé dominado pela Igreja e o poder territorial e
absoluto dos reis. Nesse período o controle da confissão vai se tornar peça chave para os
interesses de ambas as partes e o resgate do modelo inquisitório do império romano, agora
com roupagem nova e mais sofisticada, se torna interessante para a consolidação do poder do
rei e do poder da igreja. Nesse contexto, a Baixa Idade Média não inventa o modelo
inquisitório, mas resgata esse modelo do império romano, mas dá a ele uma face
extremamente inteligente, o tornando a maior engenhosidade que a humanidade já conheceu,
da qual ainda buscamos quebrar as amarras e nos livrarmos de suas influências.
Segundo Camilin Marcie de Poli (2016, p. 67), a expansão comercial proporcionada
sobretudo pelo desenvolvimento urbano que ensejou em maior circulação de produtos trouxe
também o aumento da desigualdade social e das diferenças entre os indivíduos. Tais fatos
ensejaram no aumento da criminalidade e na necessidade de uma resposta uniforme ao crime,

50
―Nobilis = nobre; miles = soldado‖ (LE GOFF, 2016. P. 81)
156

mostrando que ele não escaparia das malhas da justiça. Geraldo Prado (2006, p. 80)
acrescenta que a indisciplina por parte do clero e a corrupção por outra parte confrontaram o
poder do papa, o que criou as condições básicas para que o Papa Inocêncio III implementasse,
em 1215, no IV Concilio de Latrão o procedimento inquisitorial, que foi complementado
posteriormente por Bonifácio VIII, Clemente V e João XXII. Como dissemos, não foi
Inocêncio III quem descobriu o procedimento inquisitório, apenas o resgatou para aprimorá-lo
com novos elementos.
Tudo isso torna jurídico, se quer, o conjunto das relações entre o homem e Deus.
Essa juridicisação, tão notória mas instituições eclesiásticas e nas representações
religiosas, o é igualmente durante a Idade Média, sobre tudo a partir do século XII,
nas instituições políticas. Sem entrar em detalhes, digamos brevemente que a
afirmação e o crescimento do poder monárquico dentro do contexto das instituições
feudais se apoiaram no exercício e desenvolvimento do poder judicial. Quando
afiança seu poder por cima do poder feudal ou nos interstícios do poder feudal, o rei
o faz enquanto juiz, em quanto árbitro, em quanto se recorre a ele para resolver
disputas ou quando ele mesmo inicia causas que quer resolver. E o rei toma suas
decisões e as faz na forma jurisdicional. Em síntese, segundo uma conhecida
formula, a primeira forma do Estado Moderno foi um Estado de justiça. 51
(FOUCAULT, 2014, p. 220, tradução livre)

Nesse período, a inquisitoriedade se tornou um importante instrumento de combate às


diferenças religiosas, do poder econômico e ao conhecimento científico, forjando uma
estrutura de intolerância contra tudo aquilo que se apresentasse como uma ameaça aos
dogmas da igreja (MARQUES, 2011, p. 479). Nesse contexto, o Processo Penal serviria aos
interesses tanto da consolidação da soberania religiosa como da consolidação dos imperadores
absolutistas, que tinham no modelo procedimental inquisitório o instrumento para a
concentração de poderes e a atuação conforme estes interesses.
Assim sendo, em que pese a origem do sistema inquisitório remontar ao império
romano, na forma em que conhecemos hoje, o procedimento inquisitório remonta à Idade
Média com a inquisição católica, oriundo em resposta ao que se convencionou chamar
―doutrinas heréticas‖, tratando-se ―do maior engenho jurídico que o mundo conheceu, e
conhece‖ (COUTINHO, 2009a, p. 256).
Nesse contexto, com o intuito de tornar o sistema de combate à heresia ainda mais

51
No original: ―Todo esto juridiza, si se quiere, el conjunto de las relaciones entre el hombre y Dios. Esa
juridización, tan notoria em las instituciones eclesiásticas y las representaciones religiosas, lo es igualmente
durante la Edad Media, sobre todo a partir del siglo XII, en las instituciones políticas. Sin entrar en detalles,
digamos brevemente que la afirmación y el crecimiento del poder monárquico dentro del contexto de las
instituciones feudales se apoyaron en el ejercicio el desarrollo del poder judicial.. Cuando afianza su poder por
encima del poder feudal o en los intersticios del poder feudal, el rey lo hace en cuanto juez, en cuanto árbitro,
en cuantose recurre a él para zanjar litigios o en cuanto él mismo inicia causas que quiere resolver. Y el rey
toma sus decisiones y las hace en forma jurisdiccional. En síntesis, según una conocida fórmula, la primera
forma del Estado moderno fue un Estado de justicia.‖ (FOUCAULT, 2014, p. 220)
157

rigoroso e eficaz, o Papa Inocêncio III reuniu na basílica de São João de Latrão a cúpula da
igreja católica no IV Concilio de Latrão, realizado em 1215. Desse concílio resultaram seus
71 cânones que sistematizaram todo sistema inquisitorial e o transformaram no que Jacinto
Nelson de Miranda Coutinho denominou de maior engenho jurídico que o mundo já
conheceu, cuja genialidade é logicidade é tamanha que até hoje encontra-se presente em
vários ordenamentos processuais penais, como o brasileiro, sem que consigamos abandoná-lo
para adotar um modelo processual condizente com o Estado Democrático de Direito.
Em seu prefácio ao Martelo das Feiticeiras, Carlos Amadeu B. Byington afirma:
O crescimento da repressão às heresias acompanhou a ambição do poder temporal e
a centralização e unificação dogmática do Cristianismo. Essas três características,
que compõem a repatriarcalização progressiva do mito, atingem um ápice no papado
de Inocêncio III. O sermão que escolheu para sua sagração, ―Eu vos estabeleci acima
das nações e dos reinos‖ (Jer. 1:10), expressou sua ambição de dominar não só os
céus mas também as ―nações e os reinos‖. E conseguiu. Nada mais patriarcal do que
esta ideologia. Foi durante o seu papado (1198-1216) que se estabeleceu
definitivamente a pena de morte contra os hereges. Sua dedicação militar às
cruzadas determinou a cruzada que massacrou os albigenses no sul da França em
1209. As execuções em massa desta cruzada superaram todas as medidas repressivas
anteriores e estabeleceram a Inquisição cultural do terror em nome da fé.
(KRAMER; SPRENGER, 2015, p. 29-30, prefácio de Carlos Amadeu B. Byngton)

Com Inocêncio III, o modelo que começou a ser adotado desde 1184 teve seu apogeu e
o endurecimento do sistema. Com o IV Concílio de Latrão, a guerra contra a heresia tomou
contornos cada vez mais duros através de um modelo onde o inquisidor centralizava os
poderes de julgar e acusar além de usar de todas as formas para obter a confissão dos atos de
heresia.
Nesse contexto, o IV Concílio de Latrão teve por objetivo dar maior efetividade e
uniformidade aos éditos contra os hereges, tendo estabelecido a obrigatoriedade da confissão
privada anual, o caráter supérfluo da acusação formal e a supervalorização dos indícios e das
suspeitas. (POLI, 2016, p. 86)
A bula papal do IV Concílio de Latrão inicia em seu primeiro cânone, denominado
―Confissão de Fé‖ reafirmando os dogmas básicos da Igreja Católica bem como sua
unicidade, sendo certo que, se a Igreja é uma só todos os outros credos diversos dela poderiam
ser perseguidos. Assim se elegem novos inimigos, como os judeus e reformistas, ou ainda
aqueles que praticassem religiões diversas, sejam religiões nórdicas, africanas ou oriundas do
oriente médio. Em seu segundo cânone, ―Sobre o erro do Abade Joachim‖ a bula condena a
obra do Abade Joachim de Fiore.
158

O cânone terceiro52 condena os hereges à excomunhão, determinando que os

52
―3. Em Hereges
Nós excomungamos e anatematizamos toda heresia erguida contra a fé santa, católica e ortodoxa que temos
exposto acima. Condenamos todos os hereges, quaisquer que sejam os nomes que podem ir abaixo. Eles têm
rostos diferentes, mas na verdade suas caudas são amarradas juntas, na medida em que são similares em seu
orgulho. Que aqueles condenados a ser entregue às autoridades seculares presentes, ou aos seus oficiais de
justiça, para a devida punição. Clérigos são, antes de ser degradado de suas ordens. Os bens dos condenados
estão a ser confiscados, se eles são leigos e clérigos, se eles estão a ser aplicado às igrejas a partir do qual eles
receberam as suas bolsas. Aqueles que são encontradas apenas suspeito de heresia estão a ser atingidas
com a espada de excomunhão, a menos que prove sua inocência por uma purgação adequado, tendo em
conta as razões da desconfiança e do caráter da pessoa. Deixe essas pessoas sejam evitados por todos até
que eles tenham dado satisfação suficiente. Se eles persistirem na excomunhão por um ano, eles devem ser
condenados como hereges. Deixem as autoridades seculares, qualquer que elas podem ser descarregam, e
exortou ser aconselhados e se necessário, ser compelido pela censura eclesiástica, se eles quiserem ser
reputado e detido para ser fiel, ter publicamente um juramento para a defesa da fé para o efeito que eles vão
procurar, na medida em que puderem, para expulsar as terras sujeitas à sua jurisdição todos os hereges
designados pela igreja de boa fé. Assim, quando alguém é promovido a autoridade espiritual e temporal, ele
será obrigado a confirmar este artigo com um juramento. Se, contudo, um senhor temporal, e deu instruções
exigidos pela igreja, esquece de limpar o seu território desta porcaria herético, ele deve ser vinculado com o
vínculo de excomunhão dos bispos metropolitanos e outros da província. Se ele se recusa a dar satisfação
dentro de um ano, a mesma será comunicada ao Sumo Pontífice para que ele possa, em seguida, declarar seus
vassalos absolvido de sua fidelidade para com ele e fazer a terra disponível para ocupação pelos católicos para
que estes possam, depois de terem expulso os hereges, que possuem sem oposição e preservá-lo na pureza da
fé - resguardado o direito do suserano desde que ele não faz nenhuma dificuldade em colocar a questão e
nenhum obstáculo no caminho. A mesma lei é para ser observado nada menos no que diz respeito aqueles que
não têm um suserano.
Católicos que tomam a cruz e preparar-se para cima para a expulsão dos hereges gozarão da mesma
indulgência, e reforçadas pelo mesmo privilégio santo, como é concedido para aqueles que vão para o auxílio
da Terra Santa. Além disso, determinamos a submeter aos crentes excomunhão que recebem, defender ou
apoiar os hereges. Estamos rigorosamente ordenar que se essa pessoa, depois que ele foi designado como
excomungado, se recusa a prestar satisfação dentro de um ano, depois pela própria lei, ele será como marca
infame e não serão admitidos a cargos públicos ou de conselhos ou de eleger outros para o mesmo ou para dar
testemunho. Ele será intestable, que é que ele não deve ter a liberdade de fazer um testamento, nem deve
suceder a uma herança. Além disso ninguém pode ser obrigado a responder a ele em todo e qualquer negócio,
mas ele pode ser obrigado a responder a eles. Se ele é um juiz sentenças pronunciadas por ele não terá força e
os casos não pode ser levada até ele, se um advogado, ele não pode ser autorizado a defender ninguém, porque
se um notário, os documentos elaborados por ele será inútil e condenado juntamente com os seus autores
condenados, e em casos semelhantes que ordenar o mesmo a ser observado. Se, no entanto ele é um clérigo,
deixá-lo ser deposto de cada escritório e benefício, de modo que a maior culpa, maior a ser a punição. Se
algum se recusar a evitar que essas pessoas depois de terem sido apontados pela igreja, deixá-los ser punido
com a pena de excomunhão, até se tornar aptos satisfação. Clérigos não deve, é claro, dar os sacramentos da
Igreja para tais pessoas pestilentos, nem dar-lhes um enterro cristão, nem aceitar esmolas ou ofertas a partir
deles, se eles fizerem isso, deixá-los ser afastados das suas funções e não restaurou a ele sem uma especial
indulto da Sé Apostólica. O mesmo ocorre com regular, deixem eles sejam punidos com a perda de seus
privilégios na diocese em que se presumir a cometer esses excessos.
"Há alguns que apegar-se à forma de religião, mas negando o seu poder (como diz o Apóstolo), reivindicar
para si a autoridade para pregar, enquanto que o mesmo apóstolo diz: Como é que pregam se não forem
enviados? Vamos, portanto, todos aqueles que foram proibidos ou não enviados a pregar, e ainda se atreve
público ou privado para usurpar o ofício da pregação sem ter recebido a autoridade da Sé Apostólica ou do
bispo católico do lugar ", ser vinculado com o vínculo de excomunhão e, a menos que arrepender-se muito
rapidamente, ser punido com outra sanção adequada. Nós ainda acrescentar que cada bispo ou arcebispo, seja
pessoalmente ou através de seu arquidiácono ou meio adequado pessoas honestas, devem visitar duas vezes ou
pelo menos uma vez no ano de qualquer paróquia da sua em que os hereges são ditas para viver. Lá ele deveria
obrigar três ou mais homens de boa reputação, ou mesmo que pareça oportuno toda a vizinhança, a jurar que,
se alguém souber de hereges ou de quaisquer pessoas que detenham conventículos secretos ou que diferem em
sua vida e os hábitos do normal modo de vida dos fiéis, então ele vai ter o cuidado de apontá-los para o bispo.
O próprio bispo deverá convocar o acusado a sua presença, e eles devem ser punidos canonicamente, se eles
são incapazes de limpar-se da acusação ou, se depois eles compurgation recaída em seus antigos erros de fé.
159

condenados por heresia, que pela bula Vergentis in Senium (1199) já havia sido equiparada ao
crime de lesa majestade, deviam ser entregues ao braço secular para serem punidos, e terem
seus bens confiscados em benefício da Igreja. O cânone considera heresia toda forma de vida
ou toda fé praticada diversa da definida pela Igreja, diferentemente da bula Ad Abolendam
(1184) que elenca os hereges, a bula de 1215 não denomina os hereges e condena toda forma
de heresia que teriam a mesma natureza. Apenas a suspeita de heresia já era capaz de levar à
excomunhão, devendo o acusado provar a própria inocência, em clara inversão do ônus da
prova, característica típica do procedimento inquisitorial, afinal para a inquisição o herege é
um pecador, produto do pecado original, e compete ao inquisidor descobrir qual é seu pecado,
porém, partindo sempre da premissa de que algum pecado ele cometeu. ―O acusado é um
animal que deve confessar e deve ser explorado a fundo‖ (CORDERO, 2000, p. 23). Tal
culpa permite ao inquisidor que utilize de todos os meios para descobrir uma (pres)suposta
verdade, inclusive da tortura.
Utilizando de instrumentos virtualmente irresistíveis, o inquisidor tortura os
pacientes como quer; dentro de seu marco cultural pessimista o animal humano
nasce culpado; estando corrompido o mundo, basta escavar em um ponto qualquer
para que aflore o mal. Este axioma elimina todo escrúpulo na investigação.53
(CORDERO, 2000, p. 23, tradução livre)

Nesse contexto, Franco Cordero assinala que ―a tortura é um meio clássico para
arrancar a verdade‖54, visando a obtenção da suposta verdade, o inquisidor tem fome
investigativa e tortura os acusados como quer no marco pessimista de que o ser humano nasce
culpado e que, por isso, basta procurar para que se encontre o mal. (CORDERO, 2000, p. 22-
23)
Como bem resume Maurício Zanoide de Moraes:

O imputado considerado herege já no início da persecução, com a delação ou


denúncia pelos membros da comunidade e, portanto, antes mesmo de qualquer
investigação, era o ser humano, o portador do ―pecado original‖ e, exatamente por
portá-lo, sempre passível de um mal emergente ao mínimo descuido. Os

Se, contudo, nenhum deles com obstinação condenável se recusam a honrar um juramento e isso não vai levá-
lo, deixá-los por isso mesmo ser considerada como hereges. Nós, portanto, vontade e comando e, em virtude
da obediência, comando estritamente bispos que ver com cuidado para a execução efectiva destas coisas ao
longo das suas dioceses, se quiserem evitar sanções canônicas. Se algum bispo é negligente ou omissa na
limpeza de sua diocese o fermento da heresia, então, quando este se mostra por meio de sinais inconfundível
ele será deposto de seu cargo como bispo e não deve ser colocado em seu lugar uma pessoa adequada, que
tanto deseja e é capaz de derrubar o mal da heresia.‖ (grifos e negritos nossos)
53
No original: ―Provisto de instrumentos virtualmente irresistibles, el inquisidor tortura a los pacientes como
quiere; dentro de su marco cultural pesimista el animal humano nace culpable; estando corrompudo el
mundo, basta excavar em um punto cualquiera para que aflore el mal. Este axioma elimina rodo escrúpulo en
la investigación.‖ (CORDERO, 2000, p. 16)
54
No original: ―La tortura es um médio clássico para arrancar la verdad.‖ (CORDERO, 2000, p. 22)
160

inquisidores, guardiães e garantidores da verdade, conheciam-na bem e ela era que


todo herege era culpado. A culpa vinha do fato da pessoa ser humana, sendo a
heresia apenas um deslize daqueles descuidados e não tementes ao deus ou aos
desígnios políticos dos exercentes do poder. (MORAES, 2010, p. 54)

A presunção de culpa é um dos pilares do modelo constituído pelo IV Concilio de


Latrão, afinal todos carregavam a culpa do pecado original e, dessa forma presume-se que o
apontado como herege seja culpado e como tal cabe ao inquisidor extrair-lhe a confissão custe
o que custar. O inquisidor já possuía em sua mente a sentença, uma vez que a acusação foi por
ele mesmo formulada. Dessa forma, com a concentração de poderes de acusar e julgar
herdadas do procedimento penal romano imperial e a presunção de culpa buscava-se um
modelo em que o controle absoluto estivesse nas mãos dos membros da Igreja.
O réu é considerado culpado a priori, já que é preciso ―ter por culpado o acusado
para arrancar a sua culpa‖. Ao acusado só resta confessar tudo, sem o conhecimento
de nada. E mesmo que ele jure conforme a ortodoxia, de mil maneiras sabidas ou
decoradas, isto ainda é sinal de dissimulação e malícia, com as quais o inquisidor
está bem familiarizado. A Inquisição espera que o suspeito tire, uma a uma, todas as
máscaras, até a pele da alma, o que justifica a tortura, único instrumento capaz de
chegar ao cerne mesmo da culpa, talhada em carne viva. Sendo a heresia um pecado
do espírito, a única prova possível a esse respeito é a confissão: se o sujeito não
confessa, ―é preciso torturá-lo‖. (NAZÁRIO, 2005, p. 79)

Presume-se, de antemão que o acusado é culpado, que esteja mentindo ou que


responda de forma a se esquivar das acusações, o que leva o inquisidor Nicolau Eymerich
(1993, p. 119-122), em seu Manual dos Inquisidores (escrito em 1376), a apontar ―os dez
truques dos hereges para responder sem confessar‖. Desde a primeira frase entre o inquisidor
e o inquirido é instaurada uma prova de astúcia (PROSPERI, 2013, p. 233)
A presunção de culpa era decorrente da verdade que o inquisidor julgava conhecer,
partia-se da premissa de que o imputado era culpado, pouco importando as provas. O
procedimento inquisitorial resume-se a uma conta de chegar, a sentença de culpa já é
presumida necessitando-se do procedimento apenas para legitimar a decisão. Que o imputado
é culpado já é sabido, resta apenas se perquirir as provas de sua culpa, principalmente pela
confissão.
A presunção de culpa trazida pelo IV Concílio de Latrão, aliada à equiparação da
heresia ao crime de lesa-majestade, como fora feito pela Bula Vergentis in Senium, que foram
editadas em um período de dezesseis anos (1199 – 1215), torna o imputado um não sujeito de
direitos, vê-se no terceiro cânone na bula de 1215 uma verdadeira declaração de ódio ao
diferente, nesse panorama se despersonaliza o imputado e torna-o objeto do processo
completamente desprovido de direitos.
161

Aqui não se tratava de direitos do indivíduo, mas dos deveres das autoridades para a
salvação das almas; e partia-se do pressuposto, profundamente cristão, de que todo
homem era culpado e que uma varredura nas consciências individuais permitiria
sempre encontrar alguma coisa a ser confessada. Nisso, a inquisição eclesiástica
seguia um objetivo que lhe era peculiar. Tratava-se de fazer emergir da alma do réu
a penitência junto com a confissão. Era isso que diferenciava o tribunal eclesiástico
no âmbito da doutrina e da prática penal em vigor – com a qual, no entanto, tinha em
comum a convicção de que o réu podia e devia ser fonte de prova. (PROSPERI,
2013, p. 232)

Importante notar que a excomunhão era a pena mais grave que o inquisidor poderia
aplicar, o tribunal da Inquisição não se manchava com o sangue dos réus, quando se tratava de
punições corporais, sobretudo a aplicação da pena de morte, foi criado um sistema para
driblar tal regra, não se falava em morte física, apenas em excomunhão (morte espiritual),
entregando o condenado ao braço secular (Estado) para moderar a punição física sem que a
Igreja derramasse sangue. (PROSPERI, 2013, p. 191)
A presunção de culpa torna o acusado objeto do procedimento inquisitorial, fazendo
com que seu corpo possa ser usado para extrair, pela dor da tortura muitas vezes, as
informações que o inquisidor pensa já saber e necessita da prova para confirmar. O acusado
não é sujeito de direitos, mas objeto do procedimento. Seu interrogatório não é meio de sua
defesa, mas ato probatório que tem como único fim a confirmação da hipótese do inquisidor
em seu quadro mental paranoico (CORDERO 1986, p. 51).
O cânone 855 do IV Concílio de Latrão determina a forma do processo penal

55
8. Em inquests
"Como e de que forma um prelado devemos proceder para investigar e punir os delitos de seus súditos pode ser
esclarecido por parte das autoridades do novo e velho testamento, a partir do qual as sanções subsequentes em
direito canónico derivam", como se disse alguma distintamente tempo atrás e agora confirmar com a
aprovação deste conselho sagrado.
"Para nós lemos no evangelho que o administrador que foi denunciado ao seu rei para desperdiçar suas
mercadorias ouvi-lo dizer. Que é isto que ouço dizer de ti dá um relato de sua administração, para que você
não pode mais ser meu mordomo E em Gênesis, o Senhor diz: eu vou descer e ver se eles têm feito totalmente
de acordo com o clamor que chegou até mim A partir dessas autoridades é claramente demonstrado que não
somente quando um sujeito tenha cometido algum excesso, mas também quando um prelado tem. feito isso, eo
assunto chega aos ouvidos do superior através de um clamor ou boato, que não vêm, mas malévola e
caluniosas de pessoas honestas e prudentes, e veio não só uma vez mas muitas vezes (como sugere o clamor e
comprova o boato), então a superioridade devia diligentemente para procurar a verdade antes de altos pessoas
da igreja. Se a gravidade da questão exige, então a culpa do infrator deve ser submetido a punições canônicas.
No entanto, o superior deve realizar o dever de o seu gabinete não como se fosse o acusador e juiz, mas sim
com o boato proporcionando a acusação e tornando o clamor da denúncia. Enquanto isso deve ser observado
no caso de indivíduos, todos com mais cuidado o que deveria ser observado no caso de prelados, que são
definidos como um alvo à flecha. prelados não pode agradar a todos, porque estão vinculados a seu cargo não
só para convencer, mas também para repreender e às vezes até a suspensão e se vincular. Assim, eles
frequentemente suportam o ódio de muitas pessoas e risco de emboscadas. Portanto, os pais têm o sagrado
sabiamente decretou que denúncias contra prelados não devem ser admitidos imediatamente, sem prestação a
ser tomado cuidado de fechar a porta não só falsa, mas também a acusações maliciosas, para que com as
colunas sendo abalado o edifício desmorona. Assim, eles pretendiam garantir que os prelados não são
injustamente acusados e, no entanto, que ao mesmo tempo, eles tomam cuidado para não pecar em uma forma
arrogante, encontrar um remédio adequado para cada doença: ou seja, uma acusação penal que implica a perda
162

estabelecido pelo Papa Inocêncio III. Determinando ainda que a investigação e punição dos
crimes de heresia fossem realizadas por caridade, permitindo a aglutinação das funções de
investigar, provar e julgar nas mãos do próprio inquisidor o que determina a principal
característica do procedimento inquisitorial. Segundo o mesmo cânone haveriam três formas
de iniciar o procedimento inquisitorial, pela acusação, pela denúncia ou pelo inquérito, porém,
pouco importava a forma de início do procedimento inquisitorial, eis que a acusação e o
julgamento serão realizados pelo inquisidor. A acusação consiste na abertura do procedimento
através da imputação da heresia por um particular, que realiza a acusação contra o herege e
assume as consequências caso a acusação seja infundada, não era um meio bem quisto entre
os inquisidores que preferiam a atuação da inquisição por conta própria, sobre a acusação
Nicolau Eymerch afirma em seu manual:
Existe processo por acusação se, na frente do inquisidor, alguém acusar outra pessoa
de heresia, manifestar sua vontade de provar a acusação e declarar que aceita a lei de
talião, segundo a qual o acusador aceita, se perder, pagar a pena que o acusado
pagaria, se ficasse provada sua culpa.
Este não é o melhor método na prática da inquisição; é arriscado e bastante
discutível. Mas se o acusador insiste, o inquisidor aceita e registra a acusação.
Depois disso o inquisidor não ―procederá‖ sozinho, mas na instância civil, fazendo-
se assistir por um escrivão público e dois religiosos ou, pelo menos duas pessoas
idôneas. (EYMERICH, 1993, p. 106)

Em complemento, Heinrich Kramer e James Sprenger afirmam no Malleus


Maleficarum:
No primeiro [método de instauração do processo por heresia] tem-se a acusação de
uma pessoa por outra perante o Juiz, seja do crime de heresia, seja do de dar

de status, que é dizer degradação, de modo algum ser permitida a menos que seja precedida de um cargo na
forma legal. Mas quando alguém é tão famoso por suas ofensas que um clamor sobe que não pode mais ser
ignorado sem escândalo ou ser tolerado, sem perigo, em seguida, sem a menor hesitação deixar que sejam
tomadas medidas para investigar e punir os seus crimes, não por ódio, mas sim por caridade. Se o crime é
grave, mesmo que não impliquem a sua degradação, que ele seja removido toda a administração, de acordo
com a palavra do evangelho que o mordomo é para ser removido de sua mordomia, se ele não pode dar uma
boa conta dela ".
A pessoa sobre quem o inquérito está sendo feito deveria estar presente, a não ser que se ausenta de
contumácia. Os artigos do inquérito deve ser mostrado a ele para que ele possa ser capaz de se defender. Os
nomes das testemunhas, bem como os seus depoimentos estão a ser levadas ao conhecimento dele, para que
tanto o que foi dito e por quem será aparente; e exceções legítimas e as respostas são para ser admitido, sob
pena de supressão de nomes leva à negrito trazendo falsas acusações e a exclusão das exceções conduzir a
falsos depoimentos a ser feitas. Um prelado deve, portanto, o ato mais diligente em corrige os delitos de seus
súditos na proporção em que ele seria digno de condenação foram para ele deixá-los sem correção. Casos
notórios de lado, ele pode proceder contra eles em três formas: ou seja, pela acusação, a denúncia e inquérito.
Deixe precaução cuidado, no entanto, ser tomadas em todos os casos para que não perda grave é constituída
por causa de um pequeno ganho. Assim, apenas como um cargo na forma legal deveria preceder a acusação,
tão caritativo uma advertência deveria anteceder a denúncia e a publicação da acusação devia preceder a
sindicância, com o princípio sempre sendo observado que a forma da frase é acordo com as regras de
procedimento legal. Nós não pensamos, no entanto, que essa ordem precisa ser observada em todos os
aspectos como regulares diz respeito, que podem ser mais facilmente removidos e livremente a partir de seus
escritórios por seus próprios superiores, quando o caso requer.
163

proteção a algum herege, sendo que o acusador se oferece para prova-lo e se


submete à lei de talião caso não consiga. (KRAMER e SPRENGER, 2015, p. 396)

Nesse caso, seguem Kramer e Sprenger (2015, p. 396), o juiz não deveria aceitar o
procedimento, uma vez que não era acionado em razão de fé e o risco ao denunciante era
enorme, em razão de estar sujeito à pena de talião caso não conseguisse comprovar a acusação
formulada.
A segunda forma de início do procedimento de inquisição é a denúncia, que tem início
por uma denúncia de um delator que se segue à instauração do procedimento e pela
investigação por parte do inquisidor. Sobre a denúncia, afirma Eymerich:
Um delator denuncia alguém de heresia ou de protecionismo à heresia e declara que
faz isso para não se arriscar à excomunhão, que atinge os que sabem e calam.
O inquisidor manda colocar por escrito os termos exatos da denúncia e ―procede‖,
dessa vez, de acordo com suas atribuições e não como o solicitante de uma das
partes.
Este é o procedimento habitual. O processo começa na presença de um escrivão e
duas testemunhas, religiosos ou fiéis confiáveis. O delator jura sobre os quatro
Evangelhos e começa a depor: onde soube os fatos; se soube de primeira mão, ou
não; quem os revelou. O inquisidor fará o interrogatório para tornar o depoimento o
mais completo possível, e tudo será registrado nos autos lavrados pelo escrivão.
Depois, pergunta-se ao delator se faz a denúncia impelido pela maldade, ódio,
ressentimento ou, ainda, por ordem de terceiros. O delator, a seguir, jura guardar
segredo sobre tudo o que contou ao inquisidor e o que este lhe disse. Tudo fica
registrado nos autos do escrivão. Os autos da delação deverão ser datados.
(EYMERICH, 1993, p. 107-108)

Complementam Kramer e Sprenger:


No segundo tem-se a denúncia de uma pessoa por outra que não se propõe, contudo,
a prova-lo e se recusa a envolver-se diretamente na acusação; mas alega que presta
informação para o zelo da fé, ou em virtude de uma sentença de excomunhão
prescrita pelo Ordinário ou pelo Vigário; ou em virtude de castigo temporal
requerido pelo Juíz secular para aqueles que deixam de prestar tal informação.
(KRAMER e SPRENGER, 2015, p. 396)

Por fim, a terceira e última forma de iniciar o procedimento inquisitorial seria a


investigação, segundo a qual o próprio inquisidor, diante de boatos da prática de atos de
heresia ou acobertamento de hereges, procederá, de ofício, à investigação dos fatos. Nesse
caso, o inquisidor investiga, acusa e julga o imputado, como o Manual da Inquisição descreve:
Se não existir confissão espontânea, nem tampouco acusação ou delação, e sim
boatos, numa determinada cidade ou região, de que alguém, disse ou fez alguma
coisa contra a fé ou em favor dos hereges, neste caso, o inquisidor deverá investigar,
não na instância de uma das partes, mas segundo suas próprias atribuições.
É uma maneira muito comum de ―processar‖. E, se os boatos chegarem aos ouvidos
do inquisidor pela boca de pessoas honestas e bem-comportadas, o processo
começará, sempre, diante do escrivão e de duas testemunhas, pela lavratura dos
autos, em que se transcreve o teor desses boatos. (EYMERICH, 1993, p. 108)
164

Vê-se na transcrição e Eymerch que já na inquisição da Baixa Idade Média se valia de


conceitos de ―pessoas honestas‖ como hoje se fala do ―cidadão de bem‖, como forma de
categorizar pessoas em pessoas de primeiro ou segundo grau. Havia, naquela época, e hoje
ainda usamos desse tipo de conceito, pessoas que possuíam mais direitos cuja palavra era
digna de maior credibilidade. Tais depoimentos tinham força suficiente para dar início ao
procedimento inquisitorial e à investigação por parte do inquisidor.
O mesmo cânone nº 8 revela que o imputado poderia ter acesso ao inquérito,
principalmente para que pudesse se defender, bem como deveria estar presente, salvo se
estivesse, propositalmente, ausente. Contudo, o próprio cânone excepciona a presença do
imputado bem como possibilita que se suprimam os nomes das testemunhas e a alteração do
que disseram.
Importante no sistema construído pelo IV Concílio de Latrão a proibição expressa aos
Juízos de Deus contida no cânone de número 1856, que veda a participação de clérigos em
qualquer ato que envolva o derramamento de sangue. A proibição das ordálias representa o
rompimento do processo inquisitorial com as provas físicas, sob o objetivo de se adotar um
modelo de provas racionais cujo resultado não dependesse da sorte ou da habilidade do
imputado. Contudo tal proibição esconde a real intenção do sistema inquisitorial de ter o
controle sob a prova e seus resultados.
A inquisição eclesiástica apresentava o discurso de busca de uma prova racional,
rompendo com as provas divinas que visava substituir enquanto sistema de perseguição da
verdade. Com esse argumento, buscava um modelo de reconstrução histórica, reduzindo
privilégios construídos sob a justiça feudal, que se fundava na força e no poder dos senhores
feudais. (PRADO, 2006, p. 82)
No final do século XII o sistema de provas divinas passou a ser desacreditado em
razão de serem utilizados meios probatórios considerados irracionais que representariam a
manifestação divina. Em razão disso, restaram as provas divinas proibidas pelo IV Concilio
de Latrão, levando ao declínio os juízos de Deus e levando à ascensão do modelo

56
―18. Clérigos dissociar-se derramamento de sangue
Nenhum clérigo poderá decretar ou pronunciar uma sentença envolvendo o derramamento de sangue, ou de
realizar um castigo que envolve o mesmo, ou estar presente quando essa punição é realizada. Se alguém, no
entanto, ao abrigo do presente diploma, se atreve a infligir ferimentos em igrejas ou pessoas eclesiásticas,
deixá-lo ser travada pela censura eclesiástica. Um clérigo não pode ditar ou escrever cartas que exigem
punições envolvendo o derramamento de sangue, nas cortes dos príncipes esta responsabilidade deve ser
atribuída aos leigos e não clérigos. Além disso clérigo não pode ser posto no comando de mercenários ou
besteiros afins ou homens de sangue, nem pode um padre subdiácono, diácono ou praticar a arte da cirurgia,
que envolve fazer incisões e cauterização, nem qualquer um pode conferir um rito de bênção ou de
consagração a purgação por provação de água fervente ou fria ou do ferro em brasa, poupando, no entanto, as
proibições anteriormente promulgada sobre combates individuais e duelos.‖
165

inquisitorial. (POLI, 2016, p. 62-63)


Nesse contexto, Maurício Zanoide de Moraes (2010, p. 64) adverte que através da
adoção do modelo de provas tarifadas pretendeu-se diminuir o arbítrio do julgador, sendo que
através desse modelo, previa-se em lei o valor de cada prova, sua classificação (plena, semi-
plena, perfeita, imperfeita e também o valor para os indícios e as presunções) e fixava-se em
que quantidade e qualidade seriam necessárias para cada espécie de decisão.
O rompimento da inquisição com o modelo de provas de Deus representa mais que
apenas a racionalidade da prova. Os juízos divinos, ordálias ou duelos, não permitiam o
completo controle do julgador sobre o resultado da prova, o juiz era mero fiscal do
procedimento e das regras do jogo, mas não detinha controle absoluto sobre o resultado do
julgamento. O sistema inquisitorial construído pela inquisição eclesiástica na Idade Média
visava deter o controle sobre a punição, para tanto deveria deter pleno controle sobre os
resultados da prova, assim, lhe era mais eficiente um modelo baseado na tarifação probatória
e no emprego de todos os meios em busca da confissão, que poderia ser obtida inclusive
mediante tortura. Contudo, mesmo no procedimento inquisitorial a confissão para ter validade
deveria ser livre, ―para que as declarações arrancadas sob tortura serem confissões, era
necessário que fossem repetidas sem o suplício‖57 (FOUCAULT, 2014, p. 25, tradução livre),
porém o torturado sabia que se negasse a confissão feita sob tortura seria novamente
torturado.
A tarifação das provas causou outro efeito importante, a adoção de tortura para que se
obtivesse a confissão, tida como a prova mais importante no sistema inquisitorial. Assim, o
acusado e, eventualmente suas testemunhas (quando contraditórias), eram submetidos a
sessões de tortura, sendo que, somente eram excluídos do suplício os nobres, militares e
membros do judiciário, que somente poderiam ser torturados se acusados de crimes graves
(MORAES, 2010, p. 66). O emprego da tortura tinha por fim assegurar que as provas
necessárias para a condenação pudessem ser obtidas e mantinha o controle sobre a prova nas
mãos do julgador.
Nesse contexto, John H. Langbein (2017, p. 133-137) aponta que a substituição dos
juízos de Deus pela prova tarifada buscou eliminar a discricionariedade humana da
determinação da culpa ou da inocência, assim, era necessário obter o depoimento de duas
testemunhas oculares do fato para se condenar, ou se obter a confissão. Dessa forma, tal
mudança fomentou o emprego da tortura, uma vez que a busca da confissão passou a ser o

57
No original: ―para que las declaraciones arrancadas bajo de la tortura fueran confesiones, era menester que
se repitieran tras el suplicio.‖ (FOUCAULT, 2014, p. 25)
166

objetivo central do procedimento penal eis que sem ela dificilmente se chegaria à condenação.
Um sistema no qual o emprego da tortura é seu eixo central, acaba por constituir um sistema
que possui uma falha básica, já que a tortura testa a capacidade do acusado de suportar a dor e
não de dizer a verdade, assim, o acusado que sabia algo do crime mas era inocente, acabava
por confessar para ver-se livre do sofrimento.
Completando o sistema de controle sobre a prova da heresia, o cânone 2158 cria a
obrigação de que todo fiel confesse individualmente seus pecados uma vez ao ano,
preferencialmente no período da páscoa. Ao comentar o cânone em análise, Foucault (2014, p.
201) afirma que para ser considerado cristão o indivíduo deve pertencer à igreja e, para
pertencer à igreja deveria se confessar, não importando ter ou não cometido pecado, trata-se
de uma obrigação absolutamente geral, pouco importando se o fiel tem a consciência de ter
pecado ou não ele deverá se confessar. ―O investigado é um animal que confessa, ou pelo
menos deve ser e assim como a efusão suicida é normalmente repugnante é necessário
estimular a confissão.59‖ (CORDERO, 2000, p. 393, tradução livre)
A obrigatoriedade da Confissão tinha por finalidade o controle sistemático da
obediência à autoridade eclesiástica que se encontrava em luta contra a dissenção herética,
sendo a confissão um rito de passagem anual imposto e atentamente registrado. Vale ressaltar
que no século XVI tal prática foi reforçada pelo Concílio de Trento que impôs aos párocos o
dever de manter o registro daqueles que cumpriam e dos que não cumpriam seus deveres com
a Igreja. (PROSPERI, 2013, p. 25)
Por sua vez, a confissão adquiria dupla natureza, de um lado funcionava como

58
21. Na confissão anual a um sacerdote do próprio, anualmente comunhão, o selo confessional
Todos os fiéis de qualquer sexo, depois de terem atingido a idade de discernimento, devem confessar
individualmente todos os seus pecados de maneira fiel a seu próprio sacerdote, pelo menos uma vez por ano, e
deixá-los ter o cuidado de fazer o que puderem para executar a penitência imposta a eles. Deixe-os
reverentemente receber o sacramento da Eucaristia, pelo menos na Páscoa, a menos que eles pensam, por uma
boa razão e sobre o conselho de seu próprio sacerdote, que deve abster-se de recebê-lo por um tempo. Caso
contrário, serão impedidas de entrar em uma igreja durante a sua vida e que deve ser negado um enterro cristão
da morte. Deixe esta salutar decreto ser publicado com frequência em igrejas, de modo que ninguém pode
achar o pretexto de uma desculpa para justificar a cegueira da ignorância. Se as pessoas desejam, por boas
razões, para confessar seus pecados a um sacerdote deixá-los primeiro pedir e obter a permissão de seu próprio
sacerdote, pois caso contrário a outro sacerdote não terá o poder de absolver ou para vinculá-las. O sacerdote
deve ser criterioso e prudente, de modo que como um médico habilidoso ele possa derramar vinho e óleo sobre
as feridas de um dos feridos. Deixe-o cuidadosamente inquirir sobre as circunstâncias de ambos ao pecador e o
pecado, para que ele possa prudentemente discernir que tipo de conselho que ele deveria dar o remédio a
aplicar, utilizando vários meios de curar a pessoa doente. Deixe-o tomar o máximo cuidado, no entanto, para
não trair a todo o pecador por palavra ou sinal ou de qualquer outra forma. Se o sacerdote precisa de conselhos
sábios, busque-lo com cautela, sem qualquer menção à pessoa em causa. Porque, se alguém se atreve a revelar
um pecado divulgado a ele na confissão, no decreto que ele não é apenas para ser deposto de seu cargo
sacerdotal, mas também de ser confinado a um estrito mosteiro para fazer penitência perpétua.
59
No original: ―El investigado es un animal que confiesa, o por lo menos debe serlo y así como la efuisión
suicida repugna a los normales, menester estimularla.‖ (CORDERO, 2000, p. 393)
167

instrumento de poder do inquisidor sobre aquele que confessa e de consolação de quem a


realiza; sendo um canal de formação e de informação (PROSPERI, 2013, p. 466). Isso
significa dizer que ao mesmo tempo que a confissão se reportava a diminuir a culpa do
pecado por parte daquele que a realiza, de outro era o instrumento fundamental para que a
inquisição dominasse a comunidade através do conhecimento das informações trazidas pelo
sujeito da confissão sobre si e sobre as outras pessoas.
Assim, ao tornar obrigatória a confissão anual, o Concílio de Latrão trouxe sua mais
importante intervenção, que devia deixar de ser mera norma abstrata para se tornar uma
prática social difundida, registrada e controlada, com função precípua de fiscalização da
ortodoxia, seja na forma pastoral pelos bispos ou policial pela Inquisição. (PROSPERI, 2013,
p. 291)
Nesse período, a confissão obrigatória era um canal da igreja obter informações em
relação à comunidade, descobrindo quem eram os hereges e determinando aqueles que seriam
perseguidos (POLI, 2016, p. 87). Não interessava apenas a informação sobre a confissão do
pecador, mas a delação de quem mais teria cometido pecados e poderia ser considerado
herege, para que pudessem ser instaurados inquéritos contra os delatados.
Com a obrigatoriedade da confissão se estabelece um sistema em que o imputado tem
contra si a presunção de culpa derivada do pecado original e que deve confessar seus pecados
a todo preço. Não interessava ao inquisidor a negativa do imputado, o inquisidor partia do
pressuposto de que o indivíduo era um animal forjado no pecado e que, por isso, deveria
confessar.
Nesse contexto, a confissão possuía duas funções primordiais, sendo indispensável em
razão da natureza herética do crime, que, como dito, era considerado como crime de lesa-
majestade, tendo valor de um reconhecimento ritual do poder que se admitia traído; e, de
outro lado era tida como prova fundamental da própria existência do crime, tornando certos os
indícios e as suspeitas. (PROSPERI, 2013, p. 395-396)
Agora bem, no procedimento inquisitório – e [...] nessa forma particular de
procedimento inquisitório que encontramos justamente na Inquisição – o
arrancamento da confissão consistirá [...] uma forma muito estranha de mescla entre
a constatação de uma prova e a corroboração de uma verdade mediante um sistema
de demonstração: neste caso o testemunho do sujeito sobre si mesmo é estabelecido
como uma verdade e uma prova.60 (FOUCALT, 2014, p. 221, tradução livre)

60
No original: ―Ahora bien, en el procedimiento inquisitorio – y […] en esa forma particular de procedimiento
inquisitorio que encontramos justamente en la Inquisición – el arrancamiento de la confesión constituirá […]
una suerte muy extraña mezcla entre la constatación de una prueba y la corroboración de una verdad
mediante un sistema de demonstración: en este caso, el testimonio del sujeto sobre si mismo es a la vez el
estabelecimiento de una verdad y de una prueba.‖ (FOUCAULT, 2014, p. 221)
168

A inquisição não se interessava apenas na confissão dos próprios pecados, pretendia


criar um centro de poder, desejava-se conhecer as declarações das testemunhas, as confissões
dos acusados, controlando até mesmo o pensamento das pessoas, garantindo à Igreja e ao
soberano maior poder político. (PROSPERI, 2013, p. 132)
Nesse esboço falta um detalhe: no sistema católico e tridentino da confissão, a
Inquisição foi uma presença dominante e determinante. A vontade de saber do
confessor eclesiástico e a do juiz da Inquisição encontram-se no terreno comum da
relação especial de controle instaurado pela estrutura eclesiástica em relação ao povo
cristão no decorrer da longa época que vai do concílio Lateranense IV ao concílio de
Trento. A luta contra a reforma protestante acentuou os traços policiais do controle
eclesiástico. Para que na confissão prevalecesse o valor da consolação e conforto
espiritual, foi necessário esperar o fim da fase mais aguda dessa luta. Mas uma coisa
é certa: o encontro entre Inquisição e confissão não foi um acidente de percurso ou
um fato casual, mas correspondeu a algo de profundo e congênito à evolução geral
das formas de poder. (PROSPERI, 2013, p. 245)

Porém, o inquisidor não busca apenas saber a confissão do imputado, mas também
obter a delação dos nomes daqueles que o conduziram à heresia (PROSPERI, 2013, p. 233),
nesse contexto as figuras do confessor e do inquisidor se complementam, tornando-se o
primeiro o braço espiritual do segundo, tornando as confissões espaço de delações e
denúncias secretas (PROSPERI, 2013, p. 269-277). Assim, ao inquisidor interessava o se
apoderar das informações para dar efetividade em sua missão de combate à heresia
(PROSPERI, 2013, p. 321).
Nesse período o cânone 2261 proíbe que os médicos tratassem doentes que estivessem
doentes do corpo e da alma, sob pena de excomunhão, tal previsão levou o Papa Pio V impor,
em 1566 o juramento dos médicos de negar tratamento aos doentes que não tivessem
confessado antes do atendimento. (PROSPERI, 2013, p. 466)
Vê-se, pois que a confissão ocupa posição central no monumento erguido pela
inquisição a partir do IV Concilio de Latrão, trata-se, antes de tudo da única prova que daria
certeza e confirmaria a acusação. Porém, não se importava com a veracidade da confissão, eis
que poderia ser obtida de qualquer forma, inclusive por tortura, bastando que fosse

61
―22. Os médicos do corpo para aconselhar os pacientes a chamar os médicos da alma
Como a doença do corpo pode ser por vezes o resultado do pecado - como o Senhor disse ao homem doente a
quem tinha curado, Vai e não peques mais, para que algo pior que você - assim, por esta ordem presente
decreto e estritamente comando médicos do corpo, quando são chamados para o doente, para alertar e
persuadi-los antes de tudo para chamar médicos da alma, para que após a sua saúde espiritual tem sido visto
como eles podem responder melhor aos medicamentos para seus corpos, pois quando a causa cessa o efeito.
Isto entre outras coisas tem ocasionado esse decreto, ou seja, que algumas pessoas em seu leito, quando eles
são aconselhados pelos médicos para mandar para a saúde de suas almas, podem cair em desespero e por isso o
mais prontamente suportar o perigo de morte. Se algum médico transgredir esta nossa Constituição, depois de
ter sido publicada pelos prelados locais, ele será impedido de entrar numa igreja até que ele tenha feito
satisfação adequada para uma transgressão deste tipo. Além disso, uma vez que a alma é muito mais preciosa
do que o corpo, que proíbem qualquer médico, sob pena de excomunhão, a receitar alguma coisa para a saúde
física de uma pessoa doente que possam pôr em perigo a sua alma.‖
169

confirmada posteriormente, mesmo que confirmada pelo medo de ser novamente levado à
tortura. Nesse contexto, a confissão obtida mediante tortura, consoante ensinamento de
Michel Foucault (2014, p. 222), estabelece uma nova forma de duelo, dessa vez um duelo
ainda mais desigual, entre o acusado e o torturador. Duelo este que dependerá da resistência
do imputado a resistir à dor que poderá custar-lhe a própria vida.
No fundo, o sistema concebido pela igreja medieval é um modelo de extremo controle
social, segundo o qual a Igreja e o Estado buscavam controlar as comunidades através do
controle da informação proporcionada pela confissão e pela delação bem como pelo emprego
do terror nas investigações e punições daqueles considerados hereges. Vale destacar,
conforme destaca Kai Ambos (2008, p. 56), que o modelo inquisitório da igreja também
servia para se controlar os clérigos infratores e corruptos, em uma época que a Igreja vinha
perdendo a credibilidade devido à compra e venda de cargos eclesiásticos, sendo que, com a
implementação dos métodos inquisitivos e do terror proporcionado pela violência e pela
tortura se objetivava a recondução dos hereges à verdadeira fé.
Os cânones 3562 e 3663 da bula gerada pelo IV Concílio de Latrão tratam de matéria
recursal, o primeiro em relação às decisões finais e o segundo às decisões interlocutórias. A
própria estrutura do duplo grau de jurisdição e do direito ao recurso decorre do processo
inquisitorial, tendo sua razão no formalismo inquisitivo e na formalização do procedimento
através de atas. O procedimento acusatório da república romana não admitia recursos, uma
vez que a decisão era proferida pelo povo (ou seus representantes) e, portanto, não poderia ser
modificada através de recursos.
Uma importante característica do procedimento inquisitorial é a formalidade, seus atos
são solenemente registrados através de atas. Essa característica é expressamente prevista no

62
35. Em processos de recurso
A fim de que, devido honra pode ser dada aos juízes apreço e ser mostrado aos litigantes em matéria de
problemas e despesas, nós decreto que quando alguém processa um adversário antes de o juiz competente, ele
não deve apelar para um tribunal superior antes do julgamento foi dado , sem um motivo justo, mas sim deixá-
lo prosseguir com seu terno antes de baixar o juiz, sem que seja possível para ele a obstruir por dizer que ele
enviou um mensageiro para um tribunal superior ou mesmo adquiridos cartas dele antes que eles foram
designados para o delegada juiz. Quando, porém, ele acha que tem motivos razoáveis de recurso e declarou a
provável razão do recurso interposto perante o mesmo juiz, a saber, que se fossem eles provaram seria contada
legítimo, superior ao juiz examina o recurso. Se acha que este último recurso é o irracional, ele deve enviar a
volta recorrente ao juiz e inferior frase dele para pagar os custos da outra parte, caso contrário ele deve ir em
frente, porém poupando os principais cânones sobre casos de ser encaminhado à Sé Apostólica.
63
―36. Em sentenças interlocutórias
Uma vez que o efeito cessa quando cessa a causa, nós decreto que, se um juiz ordinário ou de um juiz delegar
pronunciou uma comminatory ou sentença interlocutória que iria prejudicar um dos litigantes, se a sua
execução foi ordenada, e, em seguida, agindo em bons conselhos abstém de colocá-lo em prática, ele deve
proceder livremente em ouvir o caso, independentemente de qualquer apelo contra uma sentença ou
interlocutória comminatory, desde que ele não está aberto a suspeita de algum outro motivo legítimo. Isso é
para que o processo não for realizado até por razões frívolas.‖
170

cânone 3864 do IV Concílio de Latrão, que determina que todos os atos inquisitoriais
deveriam ser registrados em atas através da anotação fidedigna de todos os atos. O
procedimento inquisitorial, como vimos, ao descrever suas características, é formalizado em
atas e termos escritos, o julgamento não se dá pelo diálogo ou por aquilo que se disse, mas
através do julgamento das atas e termos registrados sobre aquilo que se disse. O inquisidor
não labora sobre a fala do imputado, em um primeiro momento o inquisidor trabalha sobre o
corpo do acusado, buscando obter a prova da confissão. Todos os atos e provas são fielmente
registrados por escrito e somente em um segundo momento, o inquisidor julgará com base em
tais registros. Não se julga a prova produzida, o que é julgado são seus registros.
A divisão de funções entre os inquisidores clérigos e os leigos do poder secular
encontra previsão expressa no cânone 4265, que determina a separação das funções
eclesiásticas das funções leigas, sob pena de se alargar a jurisdição eclesiástica em detrimento
da jurisdição secular. Assim sendo garantia-se a competência da jurisdição inquisitorial
eclesiástica e a jurisdição secular do Estado, que representava a força do Estado em atuação
conjunta à inquisição de modo a atingir aqueles que interessavam ao crescimento da igreja e
do Estado absoluto, assegurando poderes ao clero e ao rei.
Na bula de 1215 o papa Inocêncio III elege novos inimigos a serem perseguidos, os
judeus. No cânone 6766 condena a usura, determinando que os judeus paguem o dizimo à

64
―38. registros escritos dos ensaios a serem mantidos
Um litigante inocente nunca poderá provar a verdade da sua negação de uma afirmação falsa, feita por um juiz
injusto, já que uma negação pela natureza das coisas, não constitui uma prova direta. Por isso, decreto, para
que a verdade prejuízo falsidade ou maldade prevalecer sobre a justiça, que em ensaios tanto ordinárias e
extraordinárias, o juiz deve sempre empregar quer um funcionário público, se ele pode encontrar um, ou dois
homens aptos para anotar fielmente todos os atos judiciais - - isto é, as citações, adiamentos, objeções e
exceções, petições e respostas, os interrogatórios, confissões, depoimentos de testemunhas, produção de
documentos, interlocuções, recursos, renúncias, as decisões finais e as outras coisas que deveriam ser escritos
para baixo na ordem correta - indicando os lugares, tempos e pessoas. Tudo, portanto, escrito deve ser dada às
partes em questão, mas os originais permanecerão com os escribas, de modo que caso surja um litígio sobre a
forma como a juíza conduziu o caso, a verdade pode ser estabelecida a partir dos originais. Com esta medida a
ser aplicada, tal deferência será pago aos juízes honesto e prudente que a justiça para os inocentes não será
prejudicada por imprudente e ímpios juízes. Um juiz que esquece de respeitar esta Constituição deve, se
alguma dificuldade surge a partir de sua negligência, punido como merece por um juiz superior, nem
presunção deve ser feita em favor de seu tratamento do caso, exceto na medida em que está de acordo com os
documentos legais.‖
65
―42. Clérigos e leigos não devem usurpar uns dos outros direitos
Assim como nós desejamos leigos não usurpar os direitos dos clérigos, assim que nós devemos desejar clérigos
não para reivindicar os direitos dos leigos. Nós, portanto, proíbem qualquer clérigo, doravante, de alargar a sua
jurisdição, sob o pretexto da liberdade religiosa, em prejuízo da justiça secular. Em vez disso, deixá-lo estar
satisfeito com as constituições escritas e costumes até agora aprovados, de modo que as coisas de César podem
ser prestadas a César, e as coisas de Deus podem ser prestados a Deus por um direito de distribuição.‖
66
―67. judeus e a usura excessiva
Quanto mais a religião cristã é impedida de práticas de usura, tanto mais que a perfídia dos judeus cresce
nestas matérias, de modo que dentro de pouco tempo eles estão esgotando os recursos dos cristãos. Desejando,
portanto, para ver que os cristãos não são oprimidos por judeus selváticamente nesta matéria, nós ordenamos
por este decreto sinodal que, se os judeus, no futuro, sob qualquer pretexto, extorquir opressivo e excessivo
171

igreja. Por sua vez o cânone 6867 determina que os judeus e os sarracenos fossem obrigados a
se vestir de modo que pudessem ser diferenciados dos cristãos, bem como fossem proibidos
de aparecer publicamente nos dias de lamentações sobre a paixão de Cristo e nos domingos,
além de terem sido proibidos pelo cânone 6868 de ocupar cargos públicos, vedação estendida
também aos pagãos, ao argumento de que estes não poderiam exercer nenhum tipo de poder
sobre os cristãos. Por fim os judeus convertidos, também conhecidos como cristãos novos,
foram proibidos de manter os antigos ritos pelo cânone 7069, sendo válido destacar que era
comum entre os judeus a conversão ao cristianismo perante a sociedade e a manutenção dos
costumes judaicos na intimidade do lar.

interesse por parte dos cristãos, então eles devem ser removidos do contato com os cristãos até que eles
tenham dado satisfação suficiente para a carga desmedida. Também os cristãos, se necessário, será compelido
pela censura eclesiástica, sem possibilidade de recurso, a abster-se de comércio com eles. Nós não
recomendamos aos príncipes de ser hostil aos cristãos sobre essa conta, mas sim para ser zelosos em dominar
os judeus da opressão tão grande. Nós decretamos, sob a mesma pena, que os judeus são obrigados a dar
satisfação às igrejas para dízimos e ofertas, devido às igrejas, as igrejas que estavam habituados a receber de
cristãos de casas e outros bens, antes que eles passavam por qualquer título aos judeus, de modo que as igrejas
podem assim ser preservado de perda.‖
67
68. judeus aparecer em público
Uma diferença de vestido distingue judeus ou sarracenos dos cristãos em algumas províncias, mas em outros
uma certa confusão se desenvolveu de modo que eles são indistinguíveis. Daí que por vezes acontece que, por
erros cristãos juntar-se com mulheres judias ou sarraceno, e os judeus ou sarracenos com as mulheres cristãs.
Para que o delito de tal mistura condenável não pode se espalhar ainda mais, sob o pretexto de um erro deste
tipo, nós decretamos que essas pessoas de ambos os sexos, em cada província cristã e em todos os momentos,
devem ser distinguidas em público a partir de outras pessoas pelo seu caráter de vestido - vendo além disso,
que este foram intimados pelo próprio Moisés, como lemos. Eles não devem aparecer em público, em todos os
dias de lamentações sobre paixão e domingo, pois alguns deles em tais dias, como ouvimos, não envergonhar a
desfilar em vestido muito ornamentado e não têm medo de cristãos falsos que estão apresentando um memorial
da paixão mais sagrado e estão exibindo sinais de dor. O que mais estritamente proíbo, porém, é que se
atrevem em alguma maneira de sair de escárnio do Redentor. Nós, os príncipes Ordem Secular para restringir a
punição condigna com aqueles que façam presumir, para que não se atreve a blasfemar em qualquer forma que
ele foi crucificado por nós, pois não devemos ignorar insultos contra ele que apagou nossos erros.‖
68
―69. judeus não ocupam cargos públicos
Seria muito absurdo para um blasfemador de Cristo para exercer poder sobre os cristãos. Renovamos, portanto,
neste cânone, por conta da ousadia dos criminosos, o que o município de Toledo frugalmente decretou neste
assunto: vamos proibir os judeus de ser nomeado para cargos públicos, uma vez que ao abrigo de que eles são
muito hostis aos cristãos. Se, no entanto, ninguém faz cometer tal ofício a eles deixá-lo, após uma advertência,
ser reduzidos pelo conselho provincial, que estamos a fim de ser realizada anualmente, por meio de uma
sanção apropriada. Qualquer funcionário assim designado deve ser negado comércio com cristãos em negócios
e em outros assuntos até que ele tenha convertido para o uso dos cristãos pobres, de acordo com as orientações
do bispo diocesano, o que ele obteve de cristãos em razão de seu gabinete assim adquiridos, e ele deve
entregar o cargo de vergonha que ele assumiu com irreverência. Nós estendemos a mesma coisa para os
pagãos.‖
69
―70. judeus convertidos não podem manter a sua rito antigo
Certas pessoas que vieram voluntariamente às águas sagradas do batismo, como nós aprendemos, não
totalmente fundido fora da pessoa idosa, a fim de colocar os mais novos perfeitamente. Pois, em consonância
remanescentes de seu antigo rito, que perturba o decoro da religião cristã por essa mistura. Como está escrito:
Maldito aquele que entra no terreno através de dois caminhos, e uma peça de roupa que é tecido de linho e lã
não devem ser colocados em, por isso decreto que essas pessoas devem ser totalmente evitada pelos prelados
das Igrejas de observação seu antigo rito, de modo que aqueles que livremente ofereceu-se para a religião
cristã pode ser mantido ao seu respeito por uma coerção salutar e necessária. Por isso é um mal menor não
sabe o caminho do Senhor, do que ir para trás depois de ter conhecido ele.‖
172

A bula papal oriunda do IV Concílio de Latrão dá contornos certos ao procedimento


da inquisição eclesiástica iniciada com a bula Ad Abolendam em 1184. Através do Concilio de
Latrão Inocêncio III estabelece uma estrutura de perseguição aos inimigos e controle
sistêmico da informação como forma de controle social. Assim, toda estrutura se baseia na
concentração de poderes nas mãos do inquisidor e da valorização da confissão, que poderia
inclusive ser obtida mediante tortura, porém, o inquisidor não estava interessado apenas na
confissão dos pecados ou dos atos de heresia, o desejo do inquisidor era a delação dos demais
hereges e da delação de outros pecadores. ―Desta forma, a confissão era uma espécie de canal
de informações, onde a Igreja angariava informações sobre o andamento da comunidade,
para saber quem eram os possíveis hereges, que deveriam ser perseguidos‖ (POLI, 2016, p.
87), Através do controle da informação a Igreja conseguia estabelecer no poder e manter sua
hegemonia, mantendo consigo os monarcas absolutistas que forneciam exércitos através dos
quais a força era exercida como forma de manutenção desse sistema.
O sistema inquisitorial se consolida de vez através de duas bulas, a bula
Excommunicamus e a bula Ad Extirpanda, como ensina Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:
Tudo se consolida com uma Bula de Gregório IX (Excommunicamus), de 1231,
donde se delineia o arcabouço técnico; e com a Bula Ad extirpanda, de Inocêncio
IV, em 1252, extendida [sic] ao mundo em 1254m pela qual abriu-se espaço
definitivo para os métodos utilizados na Inquisição, de modo que Inquisitor e Socius
se absolvessem mutuamente por eventuais demasias, entre elas a tortura. A Igreja
Católica tocava à barbárie que tanto havia criticado no início do catolicismo romano,
quando os católicos foram perseguidos, torturados e mortos. (COUTINHO, 2009-b,
p. 105)

Seguindo a montagem do sistema do procedimento inquisitorial o Papa Gregório IX


editou em 1231 a bula Excommunicamus70 através da qual são constituídos os tribunais da

70
Diz a bula Excommunicamus em tradução do latim para o português realizada por Camilin Marcie de Poli
(2016, p. 87-89): ―Iniciam os capítulos promulgados contra os Patarenos.. Excomungamos e anatematizamos
todos os heréticos, Cátaros, Patarenos, Pobres de Lião, Passaginos, Josepinos, Arnalditas, Speronistas e outros
com quaisquer nomes que sejam recenseados, tendo na verdade faces diversas, mas caudas religadas umas às
outras, porque a respeito da futilidade concordam no mesmo item. Condenados na verdade pela Igreja no juízo
secular, são deixados com a devida atenção para serem punidos aos clérigos antes degradados das suas ordens.
Se, porém, dos acima mencionados, depois que forem apanhados em flagrante, não quiserem voltar a fazer a
condigna penitência, sejam lançados ao cárcere perpétuo. Por outro lado, aqueles que acreditam no seus erros
julgamos do mesmo modo como hereges, Do mesmo modo decretamos estarem sujeitos à sentença da
excomunhão os recebedores, os defensores ou seguidores dos hereges, determinando firmemente que se após
ter sido condenado pela excomunhão qualquer um dos tais, não cessar de sua presunção a este respeito, pelo
próprio direito se torna infame, nem seja admitido para os ofícios públicos ou conselhos, nem para eleger
alguns para estes, nem para testemunha. Sejam também intestável, para que não possa fazer testamento, nem
ser admitido ao direito de sucessão na herança. Nenhum, além disso, seja impelido para estar a favor dele
sobre qualquer negócio ou o mesmo o seja a responder aos outros. E se por acaso o juiz deixar o cargo a sua
sentença não obtenha nenhuma firmeza nem causas algumas sejam levadas para sua audiência. Se houver
advogado, seu patrocínio não seja admitido de modo algum. Se tabelião, os instrumentos por ele
confeccionados não têm completamente valor nenhum, mas sejam condenados com o autor condenado. E nos
casos semelhantes ordenamos que seja observado o mesmo. Se, porém, for clérigo, seja deposto de todo ofício
173

inquisição. Através dessa bula a inquisição ganha base jurídica e se cria a inquisição delegada,
na qual os eclesiásticos são enviados aos denominados ―infectos‖ com escopo de perseguir,
inquirir e condenar os hereges. (POLI, 2016, p. 87-90)
A bula Excommunicamus representa uma declaração de ódio e eleição de velhos e
novos inimigos como os Cátaros, Patarenos, Pobres de Lion (Valdenses), Passaginos,
Josepinos, Arnalditas, Speroinistas entre outros, aos quais é atribuída a pena de excomunhão e
determinada a realização de recenseamento para verificar onde tais pessoas viviam. O
levantamento de dados sobre os hereges representa uma forma de controle de sua população e
incrementa a perseguição aos grupos determinados pela referida bula. Além disso a referida
bula dispunha especificamente sobre o dever de o acusado provar a própria inocência,
invertendo o ônus probatório e presumindo a culpa do imputado.
A sistematização dos tribunais da inquisição somente se deu no papado de Inocêncio
IV, que em 15 de maio de 1252 editou na cidade de Perugia (Italia) a bula Ad Extirpanda, que
segundo seu próprio texto constitui um conjunto de leis e constituições contra heréticos,
dando estrutura ao procedimento inquisitório que ganharia cada vez mais força nos séculos
seguintes (POLI, 2016, p. 91-93). A própria escolha do nome Inocêncio IV deixa clara a
retomada da obra de Inocêncio III, que havia realizado o IV Concilio de Latrão e
desencadeado a estrutura básica do procedimento inquisitório.
Com essa nova estrutura, o controle do processo penal passou a nas mãos dos
clérigos (justiças eclesiásticas inquisitoriais), sendo excluída a figura e um órgão
acusador, de modo tal que não mais se manteve o actum trium personaum, composto
por iudiciis, actori et rei.

e beneficio. Se, por outro lado, aqueles tais depois de terem sido denotados pela Igreja, desprezarem de evitar,
sejam punidos pela sentença de excomunhão, aliás reprimidos com a devida advertência. Aqueles que forem
encontrados marcados só pela suspeita, a não ser que conforme a consideração da suspeita e a qualidade da
pessoa, mostrarem a própria inocência com uma côngrua purificação, sejam feridos com a espada do anátema
e até uma condigna satisfação, sejam evitados por todos, assim que, se por um ano persistirem na excomunhão,
são desde então condenados como hereges. Também os protestos ou apelações de tais pessoas, de maneira
alguma sejam ouvidos. Também os juízes, advogados e notários a nenhum deles prestem ofício, de outro modo
sejam privados do mesmo ofício perpetuamente. Também os clérigos não administrem os eclesiásticos
sacramentos a pestilentos desta espécie, nem recebam deles esmolas ou ofertas, semelhantemente os
Hospitalares e os Templários e quaisquer que sejam regulares por outro lado sejam privados do seu ofício, ao
qual nunca sejam restituídos, sem indulto especial da Sé Apostólica. Também aqueles que presumirem dar a
tais a sepultura eclesiástica, saibam que estão sob a sentença de excomunhão até a sua idônea satisfação, nem
mereçam o benefício da absolvição, a não ser que com as próprias mãos arranquem do túmulo e lancem fora os
corpos de condenados desta espécie e aquele lugar careça perpetuamente de sepultura. Também inibimos
firmemente que as pessoas leigas pública ou privadamente discutam sobre a fé católica. Aquele que de fato
fizer o contrário seja ligado pelo laço da excomunhão. Também se alguém tiver conhecimento de hereges ou
de alguns realizando conventículos ocultos ou dissidentes por sua vida e costumes em relação à comum
convivência dos fieis, procure indica-los ao seu confessor ou a outro que acredita que através dele chegará ao
conhecimento do prelado, de outra maneira seja punido com a sentença de excomunhão. Por outro lado, os
filhos dos hereges, dos seus recebedores, defensores, não sejam admitidos a nenhum ofício ou benefício
eclesiástico até a segunda geração. O que for feito em contrário decretamos nulo e inane.‖
174

O procedimento criminal era possível independentemente de acusação, podendo ser


instaurado com base em simples delações ou de ofício (investigação secreta). Com
isso, generalizou-se o recolhimento de denúncias anônimas, colocadas em caixas
apropriadas em diversas regiões, denominadas ―bocas da verdade‖, e onde outrora o
processo partia da ação, aqui iniciava da delação.
O suspeito poderia ser preso a qualquer momento sem saber o que seria dele, sobre o
que se tratava a acusação, qual o motivo da prisão ou quem era o acusador. Portanto,
para além de oficioso, secreto, escrito, e não contraditório, o processo inquisitório
poderia estar baseado em declarações de testemunhas as quais o acusado não tinha
nenhum acesso, pois suas identidades eram preservadas, escondidas. (POLI, 2016,
p. 93-95)

A bula Ad Extirpanda, composta por 38 cânones (denominados ―leis‖), veio à lume


como resposta do papa Inocêncio IV ao conflito entre a Igreja e o imperador Frederico II, que
culminara no abandono de Roma pelo pontífice. Além do conflito com o imperador, a Igreja
vinha sofrendo ataques atribuídos aos Cátaros, que eram perseguidos desde o início da
inquisição, sobretudo com a invasão de conventos, mosteiros e ataques a inquisidores. Assim,
a bula Ad Extirpanda significa um endurecimento do sistema inquisitorial como forma de
vingança e retomada do controle social por parte da igreja. Vale ressaltar ainda que Inocêncio
IV via no procedimento inquisitorial uma dupla natureza, eclesiásticos e concomitantemente
seculares. (RUST, 2014)
Logo no segundo item de sua introdução71 a bula Ad Extirpanda já deixa claro seu
objetivo de ―extirpar a praga herética‖, proclamando, no item seguinte72, a obediência à bula
e ao combate a toda heresia ―que se insurge contra esta santa Igreja‖ (RUST, 2014, p. 216).
Após a introdução, seguem-se as trinta e oito leis de combate ao inimigo da Igreja.
A bula Ad Extirpanda cria em sua Lei nº 273 a obrigação de todo potentado74 e todo

71
―[2] Tendo em vista a solicitude [pelo rebanho]43 que nos foi confiado, nos propomos a extirpar do meio do
povo cristão a cizânia da depravação herética, que em nosso tempo, se espalhou amplamente, semeando a
licenciosidade em nome do Inimigo dos homens, tanto mais intensa quanto perniciosamente, à medida que
negligenciarmos como ela causa a ruína dos princípios católicos. Desejosos, pois, que os filhos da Igreja e os
defensores da fé ortodoxa se ergam e conosco se oponham aos artífices dessa perversidade, infra nós
decretamos determinadas leis, com o fito de extirpar a praga herética, e [determinamos que] venham a ser
observadas por vós e pelos fiéis defensores da Fé, com diligente cuidado.‖ (RUST, 2014, p. 216)
72
―[3] Portanto, mediante este decreto apostólico, nós ordenamos que sejam cumpridas em toda vossa
comunidade, cada uma destas leis redigidas para vós; que nunca venham a ser abolidas e que, sem qualquer
omissão, de acordo com o que elas estipulam, procedais contra toda heresia que se insurge contra esta santa
Igreja. Além disso, enviamos nossa carta aos amados filhos da Ordem dos Pregadores, a saber, aos superiores,
ao provincial e aos frades inquisidores da depravação herética na Lombardia, na Marca Trevisana e Romanha,
ordenando a cada um de vós que, sob pena de excomunhão pessoal e interdito nesses lugares, sem haver a
possibilidade remota de apelação, obriguem [todos] a cumprir tais leis.‖ (RUST, 2014, p. 216)
73
Lei 2
[5] De igual modo, o potentado ou o governante de qualquer cidade ou lugar, no começo de seu governo, em
uma assembleia pública reunida segundo o costume, sob o banum44 da cidade ou do lugar, deve acusar de
delito todos os hereges de ambos os sexos, qualquer que seja o nome pelo qual são conhecidos. E terá o dever
de confirmar tal banum recebido de seus predecessores. Além disso, que nenhum herege, homem ou mulher,
habite, more ou permaneça na cidade ou no termo ou distrito do mesmo; e quem os descobrir, poderá livre e
impunemente se apoderar de todos os bens dele ou deles e, licitamente, levá-los, consigo, pois lhes pertencerão
de pleno direito, exceto se esta forma de apropriação estiver reservada aos que exercem um cargo público.
175

governante delatar, em assembleia pública realizada no início do governo, todos os hereges da


comunidade governada. Determinando ainda a proibição de que os hereges habitassem as
cidades e autorizando o governante a se apoderar dos bens dos hereges passando a ter sua
propriedade.
A criação dos tribunais da inquisição e sua estruturação se dá a partir da ―lei 3‖75 que
determinou que o governante, com a participação do bispo (caso houvesse bispo na
localidade), no prazo de três dias contados do início de seu governo, nomeasse doze homens
probos e católicos, dois notários e dois auxiliares, sendo que todos deveriam obediência aos
oficiais nomeados no que tivesse relação com seu ofício76, bem como tinham amplos poderes
para definir os castigos que seriam impostos77. Além dos nomeados pelos governantes, caso
na localidade houvesse convento dos Pregadores e dos Menores, seriam nomeados dois frades
dessas congregações por seus superiores. Os nomeados tinham o dever de capturar os hereges
e retirar-lhes seus bens (ou tomar as providências para que seus bens fossem retirados),
levando os hereges à presença do bispo ou de seus vigários78, devendo o governante assegurar
que os hereges presos79 fossem levados à presença ou à cúria do bispo ou de seu vigário80,

(RUST, 2014, p. 218)


74
Soberano
75
―Lei 3
[6] Semelhantemente, antes do terceiro dia, após ter assumido o governo, o potentado ou o governante deverá
nomear doze homens probos e católicos, dois notários e dois auxiliares, ou quantos forem necessários; se aí
houver um bispo diocesano e ele quiser participar da indicação, poderá fazê-lo e, se aí houver um convento dos
Pregadores e dos Menores, dois frades daquelas referidas Ordens serão indicados por seus superiores para
participar disto.‖ (RUST, 2014, p. 218)
76
―Lei 6
[9] Quanto aos mencionados oficiais, todos lhes devem obedecer plenamente naquilo que sabidamente
concerne ao seu ofício, sobretudo em relação ao juramento mencionado; qualquer objeção contrária não será
aceita, onde estiverem presentes dois, três, ou mais dos referidos oficiais.‖ (RUST, 2014, p. 219)
77
Lei 7
[10] Além disso, uma vez eleitos, que tais oficiais jurem que, com todo empenho pessoal, irão fazer cumprir
fielmente todas estas leis; e que sempre irão dizer a verdade, no tocante às atribuições que têm de fazer
plenamente e que competem ao seu ofício. (RUST, 2014, p. 219)
78
―Lei 4
[7] Aqueles, pois, que forem designados e eleitos poderão e deverão capturar os hereges, homens e mulheres e
retirar-lhes os seus bens ou tomar as providências para que lhes sejam retirados por outros e levá-los ou fazer
com que sejam levados à presença do bispo diocesano ou de seus vigários e cuidar para que estas medidas
sejam plenamente cumpridas tanto na cidade, como em todo o seu termo e no distrito. (RUST, 2014, p. 218-
219)
79
―Lei 21
[24] Ademais, a partir deste momento, qualquer potentado ou governante deve manter todos os hereges,
homens ou mulheres, que foram capturados, sob a custódia de homens católicos, designados para isto pelo
bispo diocesano, se aí houver um, e pelos mencionados frades, os quais deverão ser exclusivamente reclusos
em um cárcere específico, indicado para tal, seguro e guarnecido, distantes dos ladrões e dos transgressores da
lei civil, às expensas da comuna da cidade ou do lugar. (RUST, 2014, p. 222)
80
―Lei 5
[8] Qualquer potentado ou governante mantido às expensas da comuna que governa deve se assegurar de que
os hereges que forem assim aprisionados sejam levados à presença ou à cúria do bispo diocesano ou do vigário
176

tendo o prazo de quinze dias após a prisão para a apresentar o preso para ser examinado e ser
declarada a heresia da qual era acusado81. Os oficiais se apoderavam da terça parte dos bens
dos hereges e um terço das multas pagas pelos condenados pela heresia era utilizado para
pagamento dos auxiliares da inquisição e poderiam ser punidos em caso de favorecimento à
heresia82. A casa onde o herege fosse encontrado deveria ser destruída e os bens encontrados
dentro dela deveriam se tornar públicos, o dono da casa incorreria na marca da infâmia
perpétua e deveria pagar multa, permanecendo preso perpetuamente caso não quitasse o
débito83, tendo o soberano ou o governador o prazo de dez dias após a formulação da
acusação para tomar tais medidas e o prazo de três meses para cobrar as punições
pecuniárias84. Vê-se que a acusação de heresia implicava na automática prisão do acusado
(prisão processual como regra) e na perda dos bens em favor da Igreja, do governante, e do
próprio inquisidor que se consolidavam cada vez mais política e economicamente, através da
imposição do terror contra seus alvos. Neste cenário o inquisidor lucrava financeiramente com
a condenação e temia ser punido por favorecimento da heresia, o que ensejava maior interesse

dele, ou à cidade ou ao lugar que ele quiser que sejam levados.‖ (RUST, 2014, p. 219)
81
― Lei 23
[26] Além disso, qualquer potentado ou governante está obrigado, quinze dias após a captura, a apresentar todos
os hereges, homens e mulheres, acusados sob qualquer designação, ao bispo diocesano ou ao vigário particular
ou aos inquisidores dos hereges, a fim de que sejam examinados e declarada a heresia que professam.‖ (RUST,
2014, p. 223)
82
―Lei 18
[21] Se algum desses oficiais, procedendo contra o juramento prestado e a integridade de seu cargo, for
apanhado favorecendo a heresia, além de incorrer na mancha da perpétua infâmia, na condição de protetor dos
hereges, há de ser levado à presença do bispo diocesano e dos mencionados frades para ser julgado e, depois,
por ordem do potentado ou do governante do local, será punido.‖
83
―Lei 26
[29] Por outro lado, a casa, na qual algum herege, homem ou mulher, tiver sido encontrado, deve ser destruída
até às fundações sem haver a esperança de que venha a ser reconstruída, a não ser que o dono da casa tenha
sido aquele que contribuiu para que fossem encontrados. E se o dono daquela casa possuir outras casas
contíguas à mesma, de igual modo, todas elas devem ser destruídas; os bens que forem encontrados no interior
daquela casa e das demais casas vizinhas deverão se tornar públicos e passarão a pertencer aos que puderem
levá-los, a não ser que essas pessoas exerçam um cargo. E, ademais, o dono daquela casa, além de incorrer na
marca da infâmia perpétua, deverá pagar cinquenta libras imperiais em dinheiro contado à comuna da cidade
ou do lugar; se for incapaz de pagar, deverá ser lançado em cárcere perpétuo. Aquele burgo no qual os hereges
foram encontrados pagará cem libras à comuna da cidade; a vila pagará cinquenta, assim como a vizinhança
tanto do burgo quanto da cidade pagará cinquenta libras imperiais em dinheiro contado.‖ (RUST, 2014, p. 223-
224)
84
―Lei 31
[34] Ademais, no prazo de dez dias após a acusação tiver sido feita, o potentado ou o governante deve levar a
efeito todas as obrigações, já mencionadas acima: a destruição das casas, a imposição das condenações, a
divisão e a atribuição dos bens encontrados e apropriados. Ele deve exigir que, no prazo de três meses, todos
castigos pecuniários sejam pagos em dinheiro contado e, dividi-los conforme o estipulado mais adiante e os
que não puderem saldá-las, devem ser condenados pelo crime contra o banum e mantidos no cárcere até que
possam pagar. Todavia, ele deve submeter cada uma e todas essas questões à investigação, conforme infra será
descrito, e designar um de seus assessores, escolhido pelo bispo diocesano ou por seu vigário ou pelos
mencionados inquisidores dos hereges, para executar tudo cuidadosamente; e se lhes parecer adequado, esse
assessor poderá vir a ser oportunamente substituído.‖ (RUST, 2014, p. 225)
177

na condenação e nenhum na absolvição.


Para investigar e punir os atos de heresia podia-se contar com o auxílio dos demais
membros da comunidade, que eram obrigados a auxiliar os oficiais eclesiásticos, bem como
podia a inquisição invadir a casa do acusado com a finalidade de capturá-lo85. Caso aquele a
quem fosse requisitado auxilio negasse prestá-lo, poderia ser punido e perder seus bens e sua
casa, devendo a pessoa que defendesse hereges ser capturado e levado para ser apresentado ao
governante86, sendo que aquele que aconselhasse, auxiliasse ou favorecesse algum herege
poderia ser condenado à pena de infâmia perpétua87. As testemunhas de defesa dos acusados
de heresia eram coagidas a confirmar os atos de heresia, pois caso o inquisidor entendesse que
as testemunhas mentiram, elas poderiam ter seus bens confiscados e tornados bens públicos88.
Os condenados eram entregues pelo bispo, pelo vigário ou pelos inquisidores aos

85
Lei 19
[22] Se o bispo diocesano, ou seu vigário, ou os inquisidores enviados pela Sé Apostólica ou os mencionados
oficiais solicitarem [outros], além de seu soldado ou de um outro assessor, o potentado deve enviá-los e, com
os mesmos, exercer fielmente o cargo deles. Igualmente também, qualquer um que vive no lugar, tanto na
cidade quanto no termo dela ou em algum distrito da mesma, ou que for requisitado, deve aconselhar e prestar
auxílio aos mencionados oficiais, ou aos seus colaboradores, quando eles quiserem capturar, espoliar ou
inquirir qualquer herege, homem ou mulher; entrar em uma casa, ou num lugar ou nas proximidades do
mesmo a fim de capturar os hereges, e o farão isso sob pena de pagar vinte e cinco libras imperiais ou banum.
Por outro lado, a fim de quitar qualquer dívida e no lugar dela, a totalidade do burgo, sob banum e pena, terá
de pagar cem libras, a vila sob banum e pena terá de pagar cinquenta libras imperiais em dinheiro contado.
(RUST, 2014, p. 221)
86
Lei 20
[23] Entretanto, todo aquele que ousar libertar um herege, homem ou mulher, de quem o capturou ou de quem
os capturou, ou defender tal pessoa, a fim de que não seja capturada, ou impedir que algum oficial entre em
uma casa, ou numa torre ou num lugar qualquer, de maneira a impedir que essa pessoa venha a ser capturada
ou inquirida, saiba que, conforme a lei de Pádua, promulgada pelo então imperador Frederico [II], terá
perpetuamente todos os seus bens confiscados e tornados públicos; aquela casa na qual a entrada dos oficiais
foi proibida será destruída até suas fundações, sem a esperança de ser reedificada; os bens, que aí forem
encontrados, deverão ser capturados; se aí forem encontrados hereges, então, por causa desta proibição ou
impedimento específico, o burgo entregará duzentas libras à comuna, a vila entregará cem libras e a vizinhança
do burgo quanto da cidade entregará cinquenta libras imperiais, exceto se, antes de transcorridos três dias, os
referidos defensores ou o defensor dos hereges forem capturados e levados pessoalmente para serem
apresentados ao potentado. (RUST, 2014, p. 221-222)
87
―Lei 27
[30] Todo aquele que tiver sido surpreendido aconselhando, auxiliando ou favorecendo um herege, homem ou
mulher, além da outra pena acima e abaixo fixada, com base nas mesmas leis, desde então, será perpetuamente
declarado infame, não será admitido a exercer cargos públicos, ou nos concelhos ou nas designações para
estes; tampouco será aceito como testemunha e, igualmente será inapto a testar, a fim de que não possa
livremente ter os diretos de fazer testamento nem de suceder na herança. Para mais, ninguém será obrigado a
responder sobre nenhum negócio dele, mas ele próprio será coagido a responder por outros. Se, por acaso for
um juiz, sua sentença será nula, nem causa alguma será levada ao seu tribunal. Se for um advogado, sua defesa
de modo algum será aceita. Se for um tabelião, os instrumentos legais chancelados por ele serão considerados
completamente nulos. Igualmente, os adeptos dos erros dos hereges serão punidos tal como eles próprios.‖
(RUST. 2017, p. 224)
88
Lei 22
[25] Se, acontecer que algumas pessoas, homens ou mulheres, não hereges, declararem que os capturados
como hereges, os quais não contestaram as acusações, não são hereges ou que, talvez, não o sejam e devem ser
libertados do cárcere perpétuo, embora tenham sido reconhecidos como hereges ou devam ser considerados
como tal, todavia, conforme a mencionada lei, os que mentirem terão todos os seus bens perpetuamente
confiscados e tornados públicos. (RUST, 2014, p. 222)
178

governantes (braço secular) para que no prazo de cinco dias tivessem a pena executada89. O
nome dos homens transformados em infames ou banidos por causa da heresia deveriam ser
escritos em quatro libelos de igual teor e lidos três vezes ao ano em voz alta na assembleia
pública90. Tal listagem pode ser equiparada com aquilo que hoje ainda chamamos de rol dos
culpados onde as sentenças dos dias atuais ainda determinam o lançamento do nome dos
condenados.
O emprego da tortura foi expressamente regulamentado pela bula Ad extirpanda,
desde que não resultasse na amputação de membros ou ao risco de morte. Segundo a ―Lei
2591‖, competia aos governantes, portanto ao braço secular, a coação dos hereges aprisionados
para que reconhecessem seus erros (confissão) e acusassem seus cumplices, partidários e
defensores (delação), bem como para que fossem identificados os bens dos hereges que
seriam tomados. A investigação da inquisição, seguindo a lógica inaugurada pelo IV Concilio
de Latrão (1215) e coroada em 1252, construiu um sistema próprio, baseado na confissão e
delação, porém, o pressuposto da culpa também é elemento central, uma vez que se presume o
imputado culpado, não importa que o inquisidor soubesse de qual delito, podia-se usar de
todos os meios para a descoberta da culpa, ainda que por atos que o inquisidor sequer
imaginava.
Contudo, para que a confissão obtida pela tortura tivesse validade e pudesse ser usada
como ―rainha das provas‖, deveria ser ratificada diante do juiz em local e data diversos
daquele onde o acusado fora submetidos à tortura, com isso acreditava-se que as influências
da dor física da tortura eram expurgadas. (MORAES, 2010, p. 67)
Nesse contexto, a lógica inquisitorial estava centrada na verdade que deveria ser
defendida a todo custo, sob o argumento da salvação e da vida eterna (POLI, 2016, p. 97). A

89
―Lei 24
[27] Quanto aos condenados por heresia pelo bispo diocesano ou por seu vigário ou pelos mencionados
inquisidores, entregues ao potentado, ao governante ou ao seu legado particular, deve recebê-los e,
imediatamente, ou, no mais tardar, em cinco dias, aplicar os decretos promulgados a respeito e contra tais
pessoas.‖ (RUST, 2014, p. 223)
90
―Lei 28
[31] Além disso, o potentado ou governante deve fazer com que os nomes de todos os homens transformados
em infames ou banidos por causa da heresia sejam escritos em quatro libelos do mesmo teor, um dos quais será
mantido pela comuna da cidade ou do lugar, um outro pelo bispo diocesano, o terceiro pelos frades
Pregadores, o quarto pelos frades Menores; os nomes deles devem ser solenemente lidos em voz alta na
assembleia pública três vezes ao ano.‖ (RUST, 2014, p. 224)
91
―Lei 25
[28] Ademais, o potentado ou o governante deve coagir todos os hereges aprisionados, sem chegar à
amputação dos membros e ao risco de morte, a se considerarem verdadeiramente como ladrões, assassinos das
almas e assaltantes dos sacramentos de Deus e da fé cristã, a reconhecerem expressamente seus erros e a
acusar outros hereges que conhecerem, e identificarem os bens deles, os partidários, os acolhedores e os
defensores dos mesmos, tal como os ladrões e os assaltantes dos bens temporais são obrigados a acusar seus
cúmplices e a reconhecer os crimes que cometeram.‖ (RUST, 2014, p. 223)
179

busca da verdade fundamentava o emprego dos meios mais cruéis, segundo os quais o
acusado não era sujeito de direitos, mas mero objeto do procedimento de quem se poderia
violar o próprio corpo para a descoberta da pressuposta verdade, no procedimento
inquisitorial os fins sempre justificarão os meios. Nesse sentido, afirma Adriano Prosperi:
Na eterna luta da verdade e do erro, havia a necessidade de um tribunal para
defender a verdade e dar caça à heresia; isso não significava que se devia maltratar
quem caia em erro, pelo contrário. Sem ódio e sem maldade, sem fins lucrativos, o
juiz inquisitorial deveria andar a procura somente da verdade. (PROSPERI, 2013, p.
190)

A tortura era empregada para a obtenção de confissões e delações, contudo, a verdade


criada pelo inquisidor e a presunção da culpa do acusado faziam com que o inquisidor
obrigasse através de meios físicos que o acusado falasse aquilo que ele (inquisidor) desejava
ouvir. Ou seja, a tortura era empregada para confirmar a hipótese criada pelo juiz-acusador,
como, em outras épocas insistiu em ser utilizada. O interrogatório, nesse modelo
procedimental deixa de ser um ato de defesa para se tornar um ato de se obter, a qualquer
preço, a confissão e a delação de outros hereges. Conforme afirma Camilim Marcie de Poli, o
que a inquisição buscava era a manutenção do poder através do controle dos corpos, buscando
torná-los obedientes e úteis ao sistema (POLI, 2016, p. 105).
Porém, a igreja não praticava atos de violência e nem de tortura, os inquisidores não
sujavam as mãos com o sangue despejado, competia ao braço secular empregar a violência,
que era acompanhada pelo inquisidor. Ao introduzir a tradução da bula Ad extirpanda,
Leandro Duarte Rust afirmou:
A principal razão para o vulto histórico atribuído à bula repousa em outro aspecto:
através da lei vinte e cinco, Inocêncio IV autorizou o uso da tortura nas
investigações. O governante deveria ―coagir todos os hereges aprisionados, sem
chegar à amputação dos membros e ao risco de morte‖.
Há quem tenha visto nesta medida uma prova inequívoca de que a Igreja romana foi
um organismo político soberano durante o século XIII. Isto é, ela teria exercido
prerrogativas típicas de um estado moderno. Porém, outra leitura pode ser feita. Ao
autorizar a aplicação da tortura, o papa vinculou competências inquisitoriais a
jurisdições seculares. Aquela não era uma matéria sujeita às decisões eclesiásticas.
Os próprios clérigos não poderiam aplicar a tortura. Os hereges poderiam ser
expostos ao uso da força porque tinham cometido delitos semelhantes aos que eram
punidos pelos governos temporais. Eles deveriam ser tratados com violência ―tal
como os ladrões e os assaltantes dos bens temporais‖. (RUST, 2014, p. 213)

A confissão e a delação se colocam no centro do sistema inquisitorial, sendo o


objetivo maior do inquisidor fazer com que o acusado confessasse e delatasse outros hereges,
que seriam novamente expostos à tortura para novas confissões e novas delações num ciclo
interminável e cruel. O inquisidor formula a acusação e vai em busca das provas que
confirmem a acusação, sobretudo da confissão eis que o modelo inquisitorial eclesiástico da
180

baixa idade média trabalha com o modelo das provas tarifadas, onde a confissão prevalece
sobre as demais provas. Assim, por ter o poder sobre o corpo do acusado, a tarefa de julgar o
indivíduo e a hipótese da acusação formulada por ele mesmo, o inquisidor reina absoluto no
procedimento inquisitorial no qual tem o único objetivo de produzir elementos que confirmem
a hipótese inicial, que demonstrem que a acusação era correta e se confirma na condenação.
A investigação passava da pessoa do próprio acusado de heresia, competindo aos
governantes que investigasse os parentes dos condenados impedindo que seus filhos ou
sobrinhos pudessem exercer cargos públicos92. A investigação inquisitorial era realizada pelo
inquisidor e pelos designados pelos soberanos/governadores, que deveriam investigar a
comunidade, compelindo que os indivíduos dissessem se conhecem hereges, designando onde
estariam seus bens, se realizam reuniões secretas ou se tentam afastar os fieis dos costumes
religiosos, apontando ainda quem acolhe ou auxilia os hereges93.
O herege era tido como inimigo a ser combatido, para ele não cabia nenhuma forma de
abrandamento de pena94, seus bens deveriam ser repartidos entre a comuna ou a cidade, os
oficiais que atuaram no caso e a Igreja95. Da punição se fazia um espetáculo de horror, sendo
a sentença exibida publicamente e seu cumprimento realizado da mesma forma em uma
espécie de espetacularização da morte: a inquisição se valia da narrativa dos casos para fins de
uma pedagogia do erro e do horror (PROSPERI, 2013, p. 207).

92
―Lei 29
[32] Igualmente também, o potentado ou o governante deve investigar, cuidadosamente, os filhos e sobrinhos
dos hereges e de quem os acolheu, defendeu e auxiliou, a fim de que, no futuro, eles de modo algum venham a
ser admitidos em cargo público ou ao concelho.‖ (RUST, 2014, p. 224-225)
93
―Lei 30
[33] Além disso, o potentado ou o governante deve enviar um de seus assessores, a quem o bispo diocesano
escolher, se aí houver, juntamente com os mencionados inquisidores designados pela Sé Apostólica, sempre
que eles assim o desejarem, à câmara da cidade e distrito. O referido assessor, segundo o que parecer aos
mencionados inquisidores, aí compelirá três ou mais homens fidedignos ou, se lhes parecer necessário, toda
vizinhança, a jurar perante os mencionados inquisidores se conhecem quaisquer hereges e se sabe onde estão
seus bens, se fazem reuniões secretas ou se tentam afastar os fiéis da convivência rotineira e dos costumes,
transformando-os em dissidentes e crentes [em sua heresia] ou, ainda, se conhecem quem crê, defende, acolhe
ou auxilia os hereges. Por outro lado, o potentado deve proceder contra os acusados, conforme as leis
promulgadas pelo, então, imperador Frederico, [II] em Pádua.‖ (RUST, 2014, p. 225)
94
―Lei 32
[35] Entretanto, todas estas condenações ou penas, impostas por motivo de heresia, de modo algum, jamais,
poderão ser atenuadas, nem por decisão de assembleia, nem do concelho, nem por aclamação popular, ou por
outra qualquer ação desta natureza.‖ (RUST, 2014, p.226)
95
―Lei 33
[36] Além disso, o potentado ou o governante deve repartir todos os bens dos hereges que tiverem sido
encontrados e apossados pelos mencionados oficiais, bem como as condenações por eles obtidas, do seguinte
modo: uma parte deve ser entregue à comuna da cidade ou do lugar; a segunda deve ser entregue como
recompensa ao empenho demonstrado pelos oficiais que, no cumprimento de sua incumbência tiverem lidado
com o caso; a terceira parte deve ser guardada em algum local seguro, conforme o parecer do prelado
diocesano e dos inquisidores, a ser reservada e utilizada, conforme conselho dos mesmos, em favor da fé e
para promover a extirpação dos hereges, não obstante semelhante divisão estar estipulada ou vir a ser
determinada por algum outro estatuto.‖ (RUST, 2014, p. 226)
181

Vê-se, pois que Inocêncio IV busca sua inspiração na bula de Inocêncio III e a
aprimora, dando sequência ao sistema de perseguição inaugurado pelo antecessor. Nesse
contexto, a bula Ad extirpanda, datada de 1254 complementa aquela editada em 1215 no IV
Concilio de Latrão, dando estrutura jurídica à perseguição e punição dos inimigos eleitos pelo
sistema que unia os soberanos absolutistas e os religiosos, assegurando o poder e o
crescimento de ambos.
O procedimento inquisitorial oriundo da soma dos fatores inaugurados na Bula Ad
Bolendam (1184) e desenvolvido pela bula Vergentis in Senium (1199), pelo IV Concilio de
Latrão (1215), pela bula Excommicamus (1231) e pela bula Ad Extirpanda (1252) colocou o
julgador no como protagonista, acumulando a função da parte acusadora e alocando o acusado
a mero objeto do procedimento. Como afirma Franco Cordero:
Muda a parte interna do juiz, já que então se sobrepunha à contenda; oposto aos
inimigos ocultos, se converte em órgão militante. Nasce uma mística: descobre e
elimina heresias ou delitos, combate potencias maléficas em uma cruzada
quotidiana; é mérito seu que o mundo não termine devorado pelo diabo; se fora
neutro, seria cumplice do inferno e os escrúpulos são covardia. 96 (CORDERO, 2000,
p. 21, tradução livre)

Em complemento, vale citar a lição de John H. Langbein:

Estudantes da história das regras sobre a tortura devem se lembrar de que a maior
falácia psicológica do processo inquisitorial europeu daquela época era a que
concentrava no magistrado inquisidor os poderes de acusar, investigar, torturar e
condenar. O inquisidor que possuísse aqueles poderes necessitava daquilo que um
historiador contemporâneo chamou de ―capacidade sobre-humanas [a fim de]... se
manter livre, em sua função decisória, das influências predispostas em sua própria
investigação e atividade investigadora‖. (LANGBEIN, 2017, p. 145)

Tal objetificação do acusado e a construção prévia da hipótese do inquisidor, que


passava a buscar de todas as formas, inclusive empregando a tortura, confirmar a tese da
acusação que ele mesmo formulava, proporciona o que Franco Cordero (1986, p. 51)
denominou de quadro mental paranoico, onde há o primado da hipótese sobre o fato.
A inquisição iniciada no século XI adentrou a idade moderna e nela sofreu importantes
reformas, como na bula Exigit sincerae devolutionis affectus publicada pelo Papa Sisto IV no
da 1º de novembro de 1478. Em tal bula foi fundada uma nova inquisição nos reinos de
Castela e Aragão, criando o tribunal do Santo Ofício na Espanha. Através da referida bula os

96
No original: ―Cambia la parte interna del juez, ya que entonces se sobreponía impasible a la contienda;
opuesto a los enemigos ocultos, se convierte en órgano militante. Nace una mística: descubre y elimina
herejías o delitos, combate potencias maléficas en una cruzada cotidiana; es mérito suyo que el mundo no
termine devorado por el diablo; si fuera neutral, sería cómplice del infierno y los escrúpulos son cobardía.‖
(CORDERO, 2000, p. 21)
182

reis Católicos, como eram chamados a Rainha Dona Isabel I de Castela e o Rei Dom
Fernando II de Aragão, a nomear três inquisidores por cidade ou diocese dos reinos. A
indicação dos inquisidores, que até então era atribuída ao papa, passou a ser dos reis,
verificando-se pela primeira vez uma ligação entre a jurisdição formal e a eclesiástica. Por sua
vez, no dia 23 de maio de 1536, o papa Paulo III editou a bula Cum ad nil magis que
modificou a inquisição em Portugal, acrescentando ao rol dos inimigos os judeus, luteranos e
islâmicos (CORBY, 2017, p. 50-52).
Porém, foi com Concilio de Trento, convocado em 22 de maio de 1542 pelo papa
Paulo III é que a inquisição volta a ganhar força e agora adicionando ao rol de inimigos os
reformistas. Nesse período os bárbaros não eram mais uma ameaça distante, já estando
instalados inclusive na capital do cristianismo (PROSPERI, 2013, p. 200).
A receita permaneceu a mesma adotada desde Latrão em 1215, baseada na confissão e
delação dos inimigos. Foi assim que, em 1555, em Messina, o inquisidor impôs, através de
um édito a obrigação de denunciar os suspeitos de heresia, sob pena de excomunhão
(PROSPERI, 2013, p. 26). A pena de morte fazia parte da justiça penal inquisitorial, sendo
que foram muito usadas no século XVI, sendo usados métodos cruéis com fins do que
atualmente se atribui o nome de prevenção geral, ou seja, as penas eram usadas para dar
exemplo aos demais (PROSPERI, 2013, p. 141)
Posteriormente, os adivinhos e astrólogos também entraram na mira da inquisição, no
dia 5 de janeiro de 1586 o papa-inquisidor Sixto V editou o decreto Coeli et terrae Creator
contra a astrologia judiciária. (PROSPERI, 2013, p. 396)
Em síntese inquisição eclesiástica construiu um modelo baseado na centralização de
poderes nas mãos do inquisidor que detinha os meios de prova à sua disposição e buscava a
confissão a todo custo, ainda que usando de meios físicos. A delação era outro pilar do
procedimento inquisitorial, afinal o inquisidor não desejava saber apenas o pecado e a heresia
praticada, mas também quem a praticara. Nesse contexto, utilizava-se de execuções públicas
de modo a causar o temor nos indivíduos e, através do medo, fazer com que a confissão fosse
obtida. Nesse sentido, Adriano Prosperi comenta que a inquisição romana do concílio de
Trento exemplificando bem o modelo de terror imposto por ela:
O modelo romano era, portanto, o de uma pedagogia exercida através dos ―autos de
fé‖, as sentenças e seus rituais públicos. De resto essas palavras encontravam uma
pontual e terrível confirmação dos fatos: as execuções capitais, públicas, solenes e
marcadas pelo ritual do consolo completavam essa pedagogia, na qual o terror era
instrumento para instilar a necessidade da confidência e do abandono aos braços da
Igreja. (PROSPERI, 2013, p. 208)
183

Retomando as características apontadas no capítulo primeiro e as normas analisadas


no presente capítulo, podemos estabelecer o procedimento penal inquisitorial eclesiástico da
baixa idade média como um procedimento secreto, cuja acusação não possuía objeto claro,
pois o inquisidor buscava a prova de um pecado e, mesmo que a confissão não fosse do
pecado desejado, algum pecado o acusado cometera, afinal todo ser humano é oriundo do
pecado original. Assim, o inquisidor iniciava o interrogatório com perguntas vagas, como por
exemplo ―se sabe por que o Santo Ofício mete as pessoas na prisão‖ (PROSPERI, 2013, p.
225).
Arbítrio e mistério: são essas as características ligadas aos processos da inquisição
por uma longa tradição. Prisioneiro de um sinistro cárcere e sobretudo de regras
desconhecidas, o réu é o modelo do homem posto na condição de incerteza total, de
si e do mundo. [...] Assume-se, em essência, que o tribunal eclesiástico operava
encobrindo com o segredo todo o arbítrio e pondo os ―réus‖ diante do fato
consumado, deixando-os debater sem pontos de referência. (PROSPERI, 2013, p.
226)

O procedimento inquisitorial também fora marcado pela formalidade, todos os atos


eram formalizados em atas, sendo que, ao final o inquisidor julgava as atas e não a prova que
produzira. A formalização de um procedimento secreto e escrito constituía uma forma de
produzir a verdade na ausência do próprio acusado (FOUCAULT, 1987, p. 34). Nesse
contexto de um processo formal e secreto, a organização e a proteção dos arquivos
inquisitoriais acabaram por se tornar uma parte significativa da estrutura burocrática da
inquisição (PROSPERI, 2013, p. 228). Nesse contexto, o examinador que conduzisse a
inquisitio registrava nas acta inquisitionis os atos procedimentais e as provas colhidas, ao
final das oitivas as atas eram levadas a uma comissão de juízes que decidiam apenas com base
na prova do dossiê (DAMASKA, 2017, p. 240). O julgamento não era feito sobre a prova,
mas pelas atas que relatavam os depoimentos e interrogatório, não se julgava o fato ou sua
reconstrução, mas a interpretação das atas e termos burocraticamente registrados pelos
investigadores da inquisição.
Como vimos, o acusado era tido como culpado, não se tratava de direitos do indivíduo,
mas no dever da autoridade inquisitorial em salvar as almas, partindo-se do pressuposto do
cristianismo de que todo homem era culpado e que bastava perquirir sua consciência para se
encontrar algo a ser confessado. Visando estimular tal busca na consciência individual a
prisão durante o procedimento era a regra, sem sequer saber o motivo de sua detenção.
(PROSPERI, 2013, p. 232)
O estabelecimento da confissão obrigatória no Concilio de Latrão (1215) foi com o
tempo ganhando contornos da busca da delação de modo a servir como uma forma de controle
184

social através do controle da informação e do controle das ideias dos fiéis. Tal fato deriva
sobretudo, da necessidade que os homens da Idade Média tinham de obter a absolvição de
suas culpas, o que acabou sendo fomentado e usado pela Igreja como meio de dominação e
controle (PROSPERI, 2013, p. 247-248). Afinal de contas, conhecimento é poder e conhecer
os segredos das pessoas conferia ao inquisidor poderes notáveis sobre os demais (PROSPERI,
2013, p. 447).
Porém, a confissão como meio de se chegar à prática das heresias e, sobretudo o
emprego da delação de outros hereges também trazia problemas ao modelo inquisitorial,
afinal ―Nada mais fácil que denunciar os inimigos pessoais e confiar no tribunal da
Inquisição a missão de executor das próprias vinganças” (PROSPERI, 2013, p. 475). Não se
tinha controle sobre os fatos confessados-delatados, possibilitando o emprego da delação à
inquisição como meio de satisfazer desejos pessoais do delator, que usava de delações falsas
para atingir objetivos de vingança pessoal. (PROSPERI, 2013, p. 475)
A busca da confissão faz com que o procedimento inquisitorial utilize da prisão
processual como regra, nele a prisão não é uma forma de punição, mas apenas um meio de se
dominar o corpo do acusado até que tenha a pena corporal aplicada. Mais do que a antessala
do suplício, a prisão é usada também como forma de tortura e ―estímulo‖ para que o acusado
confesse a prática herética ainda que confesse aquilo que não fez.
Nesse contexto, a formalidade dos atos da inquisição medieval e a busca desenfreada
pela confissão é explicada por Foucault de forma clara:
A informação penal escrita, secreta, submetida, para construir suas provas, a regras
rigorosas, é uma máquina que pode produzir a verdade na ausência do acusado. E
por essa razão, embora no estrito direito isso não seja necessário, esse procedimento
vai necessariamente tender à confissão. Por duas razões: em primeiro lugar, porque
esta constitui uma prova tão forte que não há nenhuma necessidade de acrescentar
outras, nem de entrar na difícil e duvidosa combinação dos indícios; a confissão,
desde que feita na forma correta, quase desobriga o acusador do cuidado de fornecer
outras provas (em todo caso mais difíceis). Em seguida, a única maneira para que
esse procedimento perca tudo o que tem de autoridade unívoca, e se torne
efetivamente uma vitória conseguida sobre o acusado, a única maneira para que a
verdade exerça todo o seu poder, é que o criminoso tome para si o próprio crime e
ele mesmo assine o que foi sábia e obscuramente construído pela informação.
(...)
No interior do crime reconstruído por escrito, o criminoso que confessa vem
desempenhar o papel de verdade viva. A confissão, ato do sujeito criminoso,
responsável pela fala, é peça complementar de uma informação escrita e secreta. Daí
a importância da confissão por todo esse tipo de processo inquisitorial.
(FOUCAULT, 1986, p. 34-35)

Vê-se que a inquisição foi mais que um instrumento de perseguição religiosa,


configurando-se muito mais como um meio de controle social a serviço do crescimento da
Igreja e das monarquias absolutas que se valeram dela para dominar os indivíduos. O sistema
185

desenvolvido pela igreja foi de tamanha lógica e funcionalidade que acabou sendo levado para
outras esferas nos tribunais laicos, como bem sintetizou Eugênio Raúl Zaffaroni:
Com singular presteza, o modelo inquisitorial foi seguido pelos tribunais laicos e
generalizou-se. Quando, no século XIV, a inquisição romana entrou em decadência,
o modelo permaneceu nas mãos do poder político e os inimigos eram os hereges ou
os reformistas, que protagonizavam o espetáculo patibular e festivo das execuções
públicas nas principais praças de todas as cidades da Europa. Na Espanha, os
principais inimigos nunca foram as bruxas – embora muitas tenham sido eliminadas
-, mas sim os opositores do monarca, acusados de hereges ou dissidentes, isto é, de
hostis judicatus, prolongando-se a Inquisição até o século XIX. (ZAFFARONI,
2007, p. 34)

Ademais, a união entre Igreja e Estado fez da inquisição eclesiástica um poderoso


instrumento de controle social. Conforme ensinam Marco Aurélio Nunes da Silveira e
Leonardo Costa de Paula (2017, p. 138-139), a inquisitoriedade já era imanente à cultura da
Baixa Idade Média, sendo as bulas papais produto da cultura vigente e tendo as jurisdições
seculares se valido dos procedimentos instrutórios eclesiásticos, além do que os monarcas
invocavam as bulas papais como instrumentos de legitimação de sua ação opressora, servindo
a inquisição religiosa como instrumento de consolidação e legitimação das práticas
autoritárias tanto da Igreja como do Estado absolutista.
A responsabilidade eclesiástica dos hereges não excluía a condenação secular,
―embora um príncipe secular possa lavrar a sentença capital, não por isso fica excluído o
julgamento da igreja, cuja responsabilidade é a de submeter à prova e julgar o caso‖
(KRAMER e SPRENGER, 2015, p. 380), porém, a sentença capital somente poderia ser
proferida e executada pelo juízo secular. Nesse contexto, os citados inquisidores (2015, p.
394) afirmam que num caso de heresia, competiria ao juízo eclesiástico realizar o inquérito e
julgar, enquanto ao juízo secular, competiria executar a sentença e punir.
O procedimento inquisitorial tinha no segredo sua regra, assim sendo, o nome das
testemunhas poderia ser mantido em sigilo, não sendo revelado ao acusado, e nem ao seu
advogado, quando o inquisidor entendesse que poderia trazer riscos às testemunhas. O que
transcorria no procedimento inquisitório também era cercado de segredo e mistério, sendo que
os envolvidos no procedimento que revelassem quaisquer segredos sem a permissão poderiam
ser punidos com pena de excomunhão. (KRAMER e SPRENGER, 2015, p. 416-419)
O acusado não tinha sequer o direito de escolher seu advogado, sendo esse indicado
pelo próprio juiz, somente podendo aceitar a causa de que o defendido não fosse culpado, sob
pena de ele (advogado) ter de pagar os custos e despesas do procedimento. O advogado
deverá ainda se vincular à verdade, contudo é importante frisarmos que o conceito de verdade
permeia todo o procedimento inquisitorial e acaba se vinculando à percepção do próprio
186

inquisidor. (KRAMER e SPRENGER, 2015, p. 419-420)


Uma solução apontada para a ocultação do nome das testemunhas seria o fornecimento
de uma cópia dos autos com os nomes dos informantes suprimidos, podendo a acusada
apontar os nomes de seus inimigos, devendo o juiz verificar se quem prestou o depoimento foi
a pessoa indicada como inimiga. (KRAMER e SPRENGER, 2015, p. 426)
A admissão de um defensor é apontada por Nicolau Eymerich (1993, p. 137) como
sendo um dos obstáculos à rapidez do processo. Nesse caso, o autor do Manual dos
Inquisidores aponta que o réu somente poderia ter um advogado quando não confessar o
delito e houver testemunhas a seu favor, contudo ressalva o autor que o advogado deveria ser
honesto, ter experiência em direito canônico e ser bastante fervoroso.
A inquisição eclesiástica representou a evolução do modelo inquisitorial do Império
Romano, mantendo seu eixo na centralização dos poderes nas mãos do julgador (inquisidor), e
adicionando no sistema outros elementos que buscavam a neutralização dos inimigos eleitos e
a instrumentalização do processo para fins de perseguição e dominação, possibilitando o
fortalecimento de governos absolutistas e o domínio da fé cristã pela Igreja, que se tornou o
braço do Estado e a religião oficial.
Esse modelo até hoje é lembrado como sendo mera construção histórica, porém, suas
marcas na mentalidade e na formação do processo penal atual ainda permanecem bastante
vivas. Não mais queimamos os hereges, mas preferimos tomar seu tempo de vida através do
tempo de exclusão social (MESSUTI, 2003). A pena não mais atinge os corpos
incandescentes nas fogueiras, mas os inimigos eleitos (que na inquisição eclesiástica foram
denominados hereges) continuam a arder através do sofrimento e da negação de direitos que
lhes é imposta.
A inquisição eclesiástica terminou com a Idade Média, mas sua lógica irretocável
permanece viva e forma a mentalidade de inúmeros operadores do direito em pleno século
XXI, tendo sido base da formação de sistemas processuais sucessivamente. Sua
engenhosidade é tamanha que muitos não percebem o ranço inquisitório que lhes ocupa a
mentalidade e acabam, sem se dar conta, a reproduzir a inquisitoriedade de geração em
geração.
Apesar dos tribunais da inquisição terem deixado de existir, a inquisição eclesiástica
deixou suas marcas e influenciou várias legislações estatais laicas, como a portuguesa e
francesa, que acabaram por influenciar a legislação pátria. É o que será construído construir
nos capítulos que se seguem.
187

5 PROCESSO PENAL NAS ORDENAÇÕES PORTUGUESAS: A INQUISIÇÃO


ESTATAL E A UNIÃO SECULAR-ECLESIÁSTICA

A península ibérica nos tempos anteriores à conquista romana e, principalmente antes


da era cristã, era uma região pouco povoada e ocupada por vários povos que José Henrque
Pierangelli divide em cinco grandes classes: Tardésios, Iberos, Celtas, Celtiberos e Franco-
pirenaicos. Além deles, povos estrangeiros, como os Fenícios, os Gregos e os Cartagineses
também estabeleceram colônias na região. Nesse período pouco se sabe sobre as práticas
desses povos e nobre seu direito, que era um direito consuetudinário. (PIERANGELLI, 1983,
p.22-24)
Com a conquista romana da península ibérica, iniciada em 218 a.C inicialmente com a
finalidade inicial de subjugar os povos e extrair suas riquezas, sendo que a romanização, ainda
que sob a força das armas romanas, somente teve início de fato em 137 a.C com a ida de
Décimo Júnio Bruto para a região conquistada os romanos passaram a se preocupar com a
participação dos povos peninsulares nas instituições políticas e administrativas e em seu
direito.Somente em 19 a.C é que a tomada da península se deu de forma integral e a
participação dos povos peninsulares na vida da metrópole passou a tomar corpo efetivo.
(PIERANGELLI, 1983, p.25-27)
Portanto, no período de ocupação romana na Península Ibérica vigeu naquela região o
direito romano, que deixou suas profundas marcas naquela civilização e que reflete em sua
construção jurídica de todo ordenamento português.
No século V, os povos bárbaros do Norte invadiram a Península Ibérica, sendo que
vários povos dominaram a região até que em 585 os godos a dominaram, adotando o nome de
Visigodos, estabelecendo o reinado de Leovigildo, sendo que a conquista integral só veio com
Suintila em 622. Nesse período o direito foi aplicado era o direito visigótico, porém havia
uma pluralidade de normas como o Código de Eurico, o Código de Leovigildo e o Breviário
de Alarico, somente em 654, com o Código Visigótico (também chamado de Livro dos Juízes
ou Fuero de Juzgo) é que o direito foi unificado. (PIERANGELLI, 1983, p. 27-28)
O Código de Eurico, do qual somente se conhece alguns fragmentos, foi baseado nos
princípios do direito romano e se aplicava apenas aos visigodos, sendo preciso uma legislação
para os hispanos-romanos. (PIERANGELLI, 1983, p. 28-29)
Por sua vez o Fuero de Juzgo possuía divisão similar ao Código de Justiniano, sendo
dividido em 12 livros que se dividiam em títulos e leis, fazendo uma apologia à submissão
dos homens às leis e adotando em matéria processual penal um procedimento de regra
188

acusatório, apesar de adotar o modelo inquisitivo para alguns delitos como o homicídio e a
falsificação de moeda; em todo caso a tortura era uma regra nesse código. A acusação era
feita por escrito, dependendo de juramento do acusador de que não agia com dolo, fraude ou
malícia, e era apresentada ao juiz em segredo, se o acusado confessasse, ainda que sob tortura,
seria considerado culpado, caso a confissão fosse diversa daquela exposta na acusação,
entendia-se que a confissão fora arrancada e o acusador seria castigado. Os nobres somente
poderiam ser submetidos à tortura se para o delito pudesse haver pena de morte. O Fuero
Juzgo somente foi revogado formalmente pela edição da Lei das Sete Partidas.
(PIERANGELLI, 1983, p. 29-34)
Já, as Flores das Leis marcaram o renascimento do Direito Romano na Península
Ibérica em razão da inspiração no Código de Justiniano. Trata-se de um pequeno manual de
direito processual escrito por Jácome Ruiz, mais conhecido como Jacó das Leis, mestre da
corte de Dom Afonso, o Sábio. Em matéria de processo penal, o Flores das Leis determinava
que em todo procedimento ordinário deveria ser obedecido o actum trium personarum,
devendo haver três pessoas juiz, autor e réu. Admitida a acusação, o réu deveria ser citado
para comparecer em juízo, podendo apresentar exceções, não sendo apresentada nenhuma
exceção, o feito prosseguia e era elaborado o libelo, havendo o prazo de trinta dias para
apresentação em juízo. Caso o réu não obedecesse à citação, o rei poderia tomar-lhe tudo que
encontrasse de sua propriedade, podendo o réu purgar a revelia se comparecesse dentro de um
ano. Havia três meios de prova, a confissão, os testemunhos e os documentos, sendo
concedido prazo razoável para a produção das provas pelas partes. Ao final era proferida a
sentença. (PIERANGELLI, 1983, p. 34-37)
Por sua vez o Fuero Real, concluído entre 1252 e 1255, sob reinado de Dom Afonso
X, o Sábio, era um fuero extendo que continha os costumes territoriais castelianos. As causas
criminais sob sua regência podiam ser públicas ou privadas e reservava aos membros da igreja
jurisdição especial. As acusações eram feitas por escrito e diretamente ao Rei ou ao alcayde.
(PIERANGELLI, 1983, p. 37-38)
Ainda no reinado de Dom Afonso X foi editada a lei das Sete Partidas, seguindo a
tradição de resgate do direito romano, e assim denominada por ser dividida em sete partes,
encontrando o procedimento lugar na terceira. Em matéria processual penal, a lei das Sete
Partidas operou significativa modificação através da passagem do processo acusatório para a
adoção do procedimento inquisitivo, estabelecendo a persecução penal de ofício pelo juiz que
passava a acumular as funções de acusar e julgar. (PIERANGELLI, 1983, p. 38-40)
O surgimento dos Estados Absolutistas, a fixação de Portugal como Estado Nacional e
189

o fortalecimento da Monarquia, trouxeram profundas modificações no que tange às normas


processuais penais, a forma processual da inquisição eclesiástica por ser um modelo de grande
racionalidade e eficiência na manutenção do Estado absoluto. Assim as legislações internas
estatais da idade média acabaram sendo influenciadas pelo modelo criado no Império Romano
e aperfeiçoado pela Igreja.
Em Portugal, as Ordenações do Reino, Afonsinas (1446), Manuelinas (1521) e
Filipinas (1603) reproduziram o modelo processual canônico. Aqui, vê-se de
maneira muito eloquente a influência do modelo canônico na construção dos textos
processuais laicos. As ultimas (Filipinas) foram aplicadas no Brasil, onde a
influência do processo inquisitório é bastante evidente na conformação do sistema
processual e atravessa diversas gerações de legislações, inclusive a atual.
(SILVEIRA e PAULA, 2017, p. 140)

Porém, o interesse dos monarcas em instaurar os tribunais eclesiásticos não era


meramente político, mas também econômico, uma vez que após o cumprimento das penas
corporais, o reino se apoderava dos bens do herege, sendo a guerra contra a heresia rentável
para os cofres dos Estados em ascensão. (ROSA, 2018, p. 163)
A influência canônica fez com que as legislações laicas adotassem a forma
inquisitorial, e tal influência é notada na legislação portuguesa que acabou trazida ao Brasil
nas ordenações Filipinas, editadas em 1603 e vigentes até à edição do Código de Processo
Penal do Império em 1832, mas também nas demais Ordenações, que vigeram na colônia
desde seu descobrimento no ano de 1500.
Nesse cenário, Mário Júlio de Almeida Costa (2012, p. 194-195) aponta que o direito
português pode ser dividido em três fases distintas, a) período da individualização do direito
português, iniciado no reinado de Afonso Henriques (1140) e dura até o reinado de Afonso III
(1248), tal fase é marcada pela manutenção do sistema de direito herdado do Estado leonês e
tinha uma base consuetudinária e foraleira; b) período do direito português de inspiração
romano-canônica, que consiste na edição das ordenações do reino, iniciado no século XIII e
vigente até o século XVIII; c) período de formação do direito português moderno, iniciado em
meados do século XVIII com o consulado do Marquês de Pombal.
Interessa-nos, no presente, capítulo justamente a segunda fase, que Mário Júlio de
Almeida Costa (2012, p.195) divide entre a época do direito romano renascido e do direito
canônico renovado e a época das ordenações. Vê-se que na primeira fase o direito canônico
exerceu forte influência no Estado português e suas normas acabariam servindo de base para o
desenvolvimento da legislação laica de Portugal.
Nesse contexto, vale a observação de Caio Prado Júnior (2011, p. 318) de que a
legislação portuguesa vigente nas colônias constituía um cipoal de normas sem clareza e
190

completamente desconexo, recheado por normas particulares e casuístas que se acrescentam


umas às outras sem qualquer plano de conjunto.
As ordenações Afonsinas consistiam em uma espécie de centralização legislativa que
representou a independência do direito do reino português do direito comum, que foi colocado
em posição subsidiária. (COSTA, 2012, p. 195)
Não se desconhece que antes do período de ordenações Portugal tivesse direito posto
pelo Estado e que conviveu com as normas eclesiásticas. Contudo, interessam-nos no presente
trabalho as normas que exerceram direta influência na construção do processo penal
brasileiro, sendo as ordenações relevantes posto que aqui vigeram após a ―descoberta‖ do
Brasil em 21 de abril de 1500.
Vale salientar que na legislação portuguesa não havia a preocupação com a concepção
de acusado, uma vez que no regime absolutista a autoridade suprema do monarca era
sobreposta a qualquer interesse individual. (ROSA, 2018, p. 159)
Dessa maneira, o presente capítulo buscará estudar as Ordenações reais buscando
destacar o sistema adotado e demonstrar a influência que exerceram na construção do atual
cenário do processo penal brasileiro.

5.1 Ordenações Afonsinas (1446-1521)

As ordenações afonsinas possuem posição de destaque na história do direito


português, constituindo a síntese desde a fundação da nação portuguesa até então. Tal
ordenação teve como objetivo primordial a sistematização e a atualização do direito vigente
em Portugal, sendo empregado em sua elaboração um estilo compilatório. Trata-se de um
texto legislativo dividido em cinco livros, sendo que o livro I cuidava do direito
administrativo; o livro II disciplinava os direitos do rei e os bens e privilégios da Igreja; o
livro III tratava do processo civil; o livro IV do direito civil; e, por fim do processo penal no
livro V. (COSTA, 2012, p. 305-313)
Contudo, é bom ressaltar que o que conhecemos das Ordenações Afonsinas não é seu
texto integral, chegaram até nossos dias cinco livros e não existe nenhuma coleção completa.
A data de conclusão das Ordenações consta do final do quinto livro como sendo 28 de julho
de 1446. O estilo adotado pelas Ordenações Afonsinas é de uma compilação das normas dos
reinados anteriores, mas somente nas Ordenações Manuelinas é que as normas tomam caráter
imperativo. (DOMINGUES, 2008)
O texto das ordenações não goza de grande preocupação sistêmica e nem de normas
191

cogentes em tom imperativo, mas de textos longos e descritivos que contêm proibições e
normas de conduta. Trata-se, como dito de um compilado de normas de vários reinados, onde
o compilador, principalmente Dom Afonso V, identifica os monarcas anteriores como Dom
Pedro, Dom João e Dom Duarte, respectivamente como seu bisavô, avô e pai (DOMINGOS,
2008, p. 97).
As ordenações afonsinas tinham como fontes subsidiárias o direito romano, em
matéria temporal; o direito canônico, em matéria espiritual, temporal e de pecado; a Glosa de
Acúrsio; a opinião de Bártolo; e a resolução do rei, que eram aplicadas na ordem indicada.
(ESPINOSA GOMES DA SILVA, 2011, p. 332)
Nesse contexto, o Título XXVII do livro dois das ordenações deixa claro que todo
cristão, como os reis da época, deveria guardar o Direito Canônico eis que emanado
diretamente do Papa. Os reflexos da legislação canônica e, consequentemente, das normas
inquisitoriais eclesiásticas, nas Ordenações Afonsinas são nítidos em seu texto, concentrando
poderes nas mãos dos julgadores e utilizando a prisão processual como regra e,
principalmente, como a antessala do suplício que normalmente era corporal.
As Ordenações Afonsinas constituem um texto assistemático e confuso, seu texto se
limita a compilar as fontes em vigor seguidas por um comentário favorável ou uma crítica ao
direito português vigente (ANDRADE, 2008, p. 308). A mescla entre normas penais e
processuais penais é explicável pelo fato de que o processo como ciência somente ter
adquirido autonomia científica dois séculos após a edição das ordenações, sendo o direito
processual, quando as ordenações entraram em vigor, mero apêndice do direito material e, por
isso, tinham suas normas previstas em meio às normas materiais.
Tais ordenações configuraram um marco no combate à vingança privada e a favor da
justiça penal pública, como era a tendência das legislações do século XIII, configurando o
marco fundamental do próprio direito português. (PIERANGELLI, 1983, p. 57)
O procedimento segundo as Ordenações Afonsinas, que seguiam o padrão eclesiástico
analisado no capítulo anterior, também tinha início por manifestação de qualquer interessado,
seja por acusação, querela ou notitia criminis, ou anda de ofício pelo juiz ou pelo rei, ou por
correição dos Corregedores (ANDRADE, 2008, p. 309). Não há grande preocupação com os
ritos e procedimentos enquanto sequência de atos, deixando o julgador livre para decidir
como proceder na crença da busca da verdade real da mesma forma que o inquisidor atuava.
As normas das Ordenações Afonsinas sequer falam de quem compete a acusação, sendo a
tarefa de acusar acumulada pelo próprio julgador, que recebia a acusação do interessado, e
instaurava o procedimento o qual era ele mesmo o responsável por produzir provas e julgar ao
192

final. Não se fala em separação das funções, mas apenas na figura do responsável pelo
julgamento e punição das infrações criminais. Os juízes no sistema afonsino eram extensão do
poder real, uma vez que competia aos reis a escolha dos julgadores, assim, a ofensa aos juízes
era equiparada à ofensa ao próprio soberano, conforme disposto no livro V, título LXXXXI
das Ordenações Afonsinas.
A aplicação subsidiária do direito canônico já indica a manutenção inquisitorial das
ordenações afonsinas, contudo, para demonstrar a hipótese ora levantada analisaremos o livro
V das Ordenações Afonsinas.
O livro em questão, que trata do direito e processo penal português no período, inicia
seu primeiro título, tratando dos hereges, afirmando que o rei deveria punir os pecados e
maldades atinentes a Deus, sendo a heresia sua mais grave ofensa. Segundo as Ordenações
Afonsinas o julgamento dos hereges deveria ser realizado pelos juízos eclesiásticos, contudo a
execução da pena era realizada pelo juízo estatal. Neste livro adotam-se penas corporais em
rituais públicos de punição. O tema dos hereges volta a ser tratado no título LXXXXVIIII,
que determina pena de açoite àqueles que renegassem a Deus ou aos Santos cristãos, sendo
que seriam tratados como hereges os que renegassem a Deus com o intuito de renegar a
própria fé. Tal tratamento das questões da fé denotam a influência religiosa na legislação laica
e o tratamento dos indesejados selecionados naquela época.
Vê-se que a vinculação do Estado português com a Igreja nesse período histórico é de
grande importância e tal elo proporciona a união entre os tribunais seculares e os tribunais do
santo ofício, demonstrando a perpetuação da inquisição e sua adoção além das normas
eclesiásticas. Em seu título XXVII as Ordenações Afonsinas vinculam todo rei católico às
determinações da igreja, como seu braço que deve fazer cumprir suas sentenças. Como dito
no capítulo anterior, a Igreja processava os hereges, mas cumpria ao Estado a tortura e a
execução das penas corporais, eis que os clérigos não poderiam sujar as suas mãos com o
sangue do condenado.
O segundo título do livro V das Ordenações Afonsinas trata das infrações contra o rei
e contra o Estado Real. Prevê entre os delitos contra o rei o crime de lesa majestade,
equiparando-a a um delito contra Deus, contra o senhor do criminoso e contra toda todos os
homens.
A ofensa à figura do rei era julgada pelo próprio rei, sendo que caso o rei percebesse
que a ofensa foi proposital deveria aplicar uma pena extremamente cruel para que pudesse
servir de exemplo aos demais membros da sociedade. Nesse caso o julgador não era nem
mesmo o acusador, mas a própria vítima, o que convertia o procedimento criminal em nítido
193

ato de vingança do rei contra seus opositores.


Vários livros das Ordenações Afonsinas são dedicados a questões sexuais e ao
casamento, punindo sobretudo as mulheres que recebiam penas superiores às dos homens. Tal
qual a inquisição eclesiástica que perseguiu as bruxas, as ordenações portuguesas se mostram
um texto de controle social e controle da vida privada. Nela, pecado e crimes se misturam em
um texto que se mostra repleto de concepções religiosas e do controle máximo sobre condutas
privadas dos indivíduos.
O quarto título do livro V das Ordenações Afonsinas regula o procedimento criminal,
determinando que as provas testemunhais deveriam ser produzidas pela acusação e pela
defesa, permitindo, contudo, a participação de ofício do juiz na produção da prova, mantendo
a inquisitoriedade do procedimento canônico também na legislação estatal.
Vê-se no texto das ordenações afonsinas a concentração de poderes nas mãos dos
julgadores que acusavam, ―julgavam‖ e puniam os acusados, como se vê no texto do livro
XVIIII das ditas ordenações, sendo as mulheres um dos alvos preferenciais do texto.
Os frades que eram flagrados fora dos mosteiros com mulheres, deviam, segundo o
título XXI do Livro V das Ordenações Afonsinas, ser levado à cadeia e entregue ao seu
superior. Contudo, o mesmo tratamento não era atribuído aos padres e clérigos. Vê-se que o
controle da moral, através do emprego do encarceramento para imposição do medo estava
presente nas ditas ordenações.
Por sua vez, o título XXV das Ordenações Afonsinas cuida de proibir que cristãos
tivessem relações sexuais com judeus e mouros, elegendo os mesmos inimigos perseguidos
pela inquisição religiosa e controlando mais uma vez a vida privada de tais grupos. O título
seguinte trata dos Mouros ou Judeus convertidos ao cristianismo, que eram denominados por
cristãos novos.
O título XXVIII, que trata dos excomungados e dos apelados, prevê a possibilidade do
recurso às cortes eclesiásticas romanas em caso de condenação à excomunhão. Nesse caso, a
apelação era feita por escrito através de cartas, que visavam dar publicidade ao recurso.
Valendo mencionar o título LXXXI do mesmo livro quinto que determina a punição
pecuniária ao infiel que houvesse se convertido ao cristianismo.
Por sua vez o título XXVIIII trata daqueles que apresentam queixas infundadas ao
inquisidor, estabelecendo que o acusador deveria pagar as custas do procedimento e determina
que caso o juiz, de ofício, percebesse que a acusação era infundada e o acusador malicioso.
As penas corporais eram reguladas pelo título XXX, que determina que as acusações
verdadeiras levariam os acusados a serem punidos em seus corpos, devendo, se condenados,
194

pagar as custas do procedimento. Também no título XXXI, que estabelece as relações dos
oficiais dos reis também prevê punições corporais para aqueles que difamarem tais oficiais,
estabelecendo penas de açoite àquela conduta. As ordenações Afonsinas adotaram no título
XXXIII a pena de morte para quem matasse alguém na corte e punia com a perda de membros
a tentativa de homicídio.
O procedimento criminal começa a ser traçado no título XXXIIII, que estabelece a
concentração de poderes nas mãos dos juízes, protagonistas do procedimento criminal
segundo as Ordenações Afonsinas, e que detinham poderes de buscar provas, inquirir
suspeitos e testemunhas de ofício, além dos poderes de decretar prisões, que no sistema das
ditas Ordenações eram a regra e apenas a antessala do suplício corporal.
O procedimento penal das Ordenações Afonsinas era escrito e formalizado, assumindo
o juiz papel protagonismo de colher a prova e exercendo a função de acusador, conforme
preceitua seu título XXXVI, deixando claro a natureza inquisitorial do texto em análise.
O título XXXXII determina que a punição dos feiticeiros é uma obrigação de todo rei
cristão, assim, criminaliza a prática da feitiçaria e determina sua punição através da pena de
morte. Mais uma vez resta clara a influência das determinações da inquisição eclesiástica na
construção do sistema punitivo das Ordenações Afonsinas que resulta em um texto normativo
repleto de punições de ordem moral e religiosa e na adoção da punição daqueles que eram
indesejáveis para a consolidação do Estado Absoluto e da fé cristã.
Como se verifica no título L das Ordenações Afonsinas, a prisão dos tidos por
malfeitores era tida como regra, sendo que a prisão significava apenas a antessala da pena
que, em geral era corporal. Nesse contexto o título LI determinava juízes e meirinhos não
soltar os acusados de participação em crimes por fiança e que não colocassem preço no crime.
Assim, utilizava-se da prisão processual como regra do sistema penal e a presunção de culpa
imperava em tal modelo jurídico inquisitorial.
O título LII trata do processamento dos crimes de injúria determinando que o juiz
somente recebesse a acusação por tal delito caso o acusador apresentasse fiador para as custas
em caso não se comprovasse a acusação. Contudo, tal título enseja ainda o protagonismo do
juiz, permitindo que o juiz atuasse de ofício, caso recebesse a acusação. Caso a acusação não
se confirmasse o juiz condenaria o autor a pagar o réu e, caso não pudesse pagar, o autor seria
condenado a penas corporais idênticas às do réu em caso da acusação ter sido provada.
Por sua vez, o título LVIII regulamenta os casos em que se poderia prender os
malfeitores, sendo a prisão a regra do procedimento inquisitorial como se demonstrou nos
capítulos antecedentes, o estudo do regulamento das prisões é de extrema importância para se
195

definir o sistema processual vigente nas Ordenações Afonsinas. O referido título inicia
determinando que nenhuma pessoa poderia ser presa por informações desabonadoras, cartas
de mal dizer ou por meras denúncias. Contudo, isso não faz da prisão uma exceção do sistema
afonsino. Porém, a sequência revela que a prisão foi estabelecida como regra do sistema,
sendo que as Ordenações Afonsinas listam crimes e pecados os quais bastavam a acusação
por uma denúncia jurada e testemunhas nomeadas ou que o juiz fizesse prova do estado ou
inquirisse testemunhas para que pudesse ser adotada a prisão, independentemente do
julgamento. Muitas vezes a prisão era apenas a antessala do suplício corporal, aguardando o
preso apenas o castigo físico.
O título LVIIII do livro V das Ordenações Afonsinas permite que os juízes nos
procedimentos criminais produzissem provas de ofício, atuando de forma ativa na produção
da prova. Tal possibilidade, como vimos no capítulo inicial do presente trabalho, configura o
eixo central do procedimento inquisitorial pelo que se verifica que as ordenações em análise
seguem a tendência inquisitorial de sua época, seguindo as normas da inquisição eclesiástica
ainda vigentes.
Segundo dispunha o título LVIIII permitia que os Capitães da cidade de Cepta, cidade
portuguesa na África para onde eram enviados os condenados ao degredo, julgassem e
condenassem os ―malfeitores97‖ quando a pena não fosse de morte ou corte de membros,
podendo condenar e aplicar as penas conforme as convicções dos julgadores. No caso de
penas corporais de perda de membros ou morte, seriam julgados pelo Rei, exceto nos casos de
deslealdade, traição, sodomia, furto ou roubo de navio que fossem levados da cidade de
Cepta, ou contra a segurança da cidade, nesses casos poderiam ser julgados pelos próprios
juízes locais.
O título LXXXVIII do citado livro V determina que não se impusesse tormentos sem
que houvesse sido julgado recurso. Determinando que todos os juízos aguardassem o
julgamento dos recursos para o cumprimento da pena. Segundo a legislação medieval
portuguesa, no título LXXXXVII, os recursos contra a condenação por crimes dever
decididos pelos ouvidores da corte real. Vale ressaltar que mesmo inquisitorial e surgida em
um regime absolutista, o citado artigo impede a execução provisória da pena, o que no Brasil
atual fora permitido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus
126.292, o que evidencia o retrocesso pelo qual vivemos na atualidade.
Os carcereiros que dolosamente permitissem a fuga de presos eram punidos com a

97
Expressão original das Ordenações Afonsinas.
196

morte, caso não tivessem facilitado a fuga eram castigados por açoites públicos, conforme o
título LXXXXIII das Ordenações Afonsinas. A pena corporal era a tônica no período de
vigência das ditas ordenações, sendo adotadas para praticamente todos os delitos e a prisão
era mera prévia para as punições corporais vindouras.
O título CXVOIII determina a obrigatoriedade dos juízes acusem, prendam e
condenem os malfeitores acusados de delitos sexuais em locais impróprios. Trata-se da
principal característica inquisitorial que vem no citado título de forma escancarada. Enquanto
o título CXXI termina com a advertência de que seria tarefa dos juízes fazer cumprir as
ordenações, colocando o julgador no papel de garantidor, não dos direitos dos indivíduos, mas
do cumprimento da vontade do rei.
Vê-se, pois, que as Ordenações Afonsinas representam a compilação da legislação
portuguesa do século XIII com forte influência, inclusive aplicação conjunta, do direito
canônico da época. Tal influência faz com que as ditas Ordenações mantenham a adoção de
um sistema inquisitorial e fortemente autoritário através da centralização do poder nas mãos
dos reis absolutistas e com a seleção dos indesejáveis como seu principal alvo de atuação
penal.
Após vigerem por 75 anos as Ordenações Afonsinas acabaram substituídas em 1521
pelas Ordenações Manuelinas que também mantiveram a estrutura inquisitorial, como se
passará a demonstrar no item seguinte.

5.2 Ordenações Manuelinas (1521-1569)

As Ordenações Afonsinas tiveram curto período de vigência, sendo que em 1515 já se


discutia a necessidade de sua reforma. Com este objetivo, dom Manuel encarregou os juristas
Rui Boto, Ri da Grã e João Cotrim para proceder a atualização das Ordenações do Reino,
alterando, suprimindo e acrescentando aquilo que entendessem necessário. Não se sabe ao
certo quando a obra ficou pronta, sendo que se conhecem exemplares de seus dois primeiros
livros datados de 1512 e 1513, mas apenas a edição integral composta por cinco livros
somente foi feita em 1514. Contudo, somente em 1521, com a morte do rei Dom Manuel é
que se verificou a edição definitiva das Ordenações Manuelinas. Sua estrutura, assim como as
Ordenações Afonsinas, é dividida em cinco livros, conservando a distribuição das matérias.
Vale destacar que foram suprimidos os preceitos aplicáveis aos Judeus e aos Moros, que
haviam sido expulsos de Portugal em 1496. Do ponto de vista formal, as Ordenações
Manuelinas representam uma evolução no quesito de técnica legislativa, pois apresenta
197

preceitos sistematicamente redigidos em estilo decretório. (COSTA, 2012, p. 313-317)


A expulsão dos judeus do reino de Portugal se deu com base no decreto de 31 de
março de 1492 no qual os Reis Católicos decretaram que todo judeu que não fosse batizado
segundo a fé católica estaria contaminando a população e colocando em risco a unidade
política e religiosa. A principal motivação para tal decreto foi o casamento entre a princesa D.
Isabel, herdeira da Espanha, e D. Manuel I, sendo a expulsão dos judeus condição imposta
pela princesa espanhola para a realização do casamento. (ROSA, 2018, p. 160)
Em que pese a supressão de dispositivos aplicáveis aos Judeus e Moros, as ordenações
Manoelinas preveem no livro segundo, título III, que estas categorias não gozariam de
proteção da igreja, uma vez que haviam abandonado suas regras. Além de excluir os judeus e
os morros da proteção da Igreja, as ordenações determinam que eles deveriam deixar o Reino
de Portugal, proibindo-os de estar e morar nas terras do reino, conforme título XLI do livro
segundo das Ordenações, sob pena de morte e perdimento dos bens em benefício daqueles que
lhes acusassem. Vê-se que o inimigo eleito desde o início da inquisição segue presente e lhe
sendo tolhidos os direitos e eventuais garantias contra atos arbitrários. Assim como os judeus
e moros, as ordenações Manoelinas excluíam da proteção os malfeitores, que era como as
Ordenações denominavam aqueles que cometessem crimes. O título IIII do segundo livro das
Ordenações Manoelinas determina que os judeus e mouros que buscassem amparo na Igreja
contra a ordem de expulsão das Ordenações não teriam amparo e nem teriam direito a
recorrer. Os Judeus e os Moros também não poderiam ser testemunhas em juízo e nem seriam
perguntados em feitos que um Cristão demandasse contra o outro, conforme título XXXXII
do livro terceiro das Ordenações.
As Ordenações Manuelinas determinam expressamente, no segundo título do livro V,
que os hereges devem ser processados pelos tribunais eclesiásticos, na forma que foi adotada
pela inquisição religiosa. Vale salientar que na vigência das Ordenações Afonsinas o Tribunal
do Santo Ofício, o mais importante tribunal eclesiástico de Portugal foi criado, no ano de
1536, somente sendo extinto com a revolução portuguesa de 1820 (ROSA, 2018, p. 159).
Após a condenação dos hereges, a execução da pena deveria se dar pelas normas estatais,
devendo os desembargadores determinar seu cumprimento. Vê-se claramente a união entre o
Estado Absolutista e a Igreja que tinha por finalidade precípua o estabelecimento de ambos
como fontes supremas de poder, o imperador com poder bélico e político e a Igreja com o
poder religioso. Por sua vez os Judeus e os Moros poderiam ser processados segundo as
normas das Ordenações, podendo o Estado processá-los e puni-los. O crime de lesa majestade
é declarado o pior crime existente, conforme título III do livro V das Ordenações, sendo que o
198

crime de heresia era a ele equiparado. Aquele que ousasse falar mal do rei seria julgado pelo
próprio soberano e poderia ser condenado à pena de morte, conforme título III do livro V.
Além disso, a vinculação entre a legislação estatal e a religiosa é bastante presente em
todo texto manuelino. A divisão entre os crimes eclesiásticos (heresias) e a execução penal
pelo Estado permanece nas Ordenações Manuelinas. O poder do rei era tido como diretamente
derivado de Deus e, por isso, o vínculo com a religião cristã e com o papa era umbilical. Vale
destacar que o título XCIX do quinto livro das Ordenações obriga que todos os escravos
oriundos da Guinee deveriam ser batizados pelos seus senhores.
Contudo, as Ordenações Manuelinas, ainda que mais bem sistematizadas que as
Ordenações Afonsinas, ainda não possuem normas processuais separadas das normas
materiais, uma vez que a autonomia científica do processo somente foi alcançada em 1868
através da obra de Oskar Von Bülow. Assim, na quadra histórica em que foram construídas as
Ordenações Manuelinas o processo seguia sendo mero apêndice do direito material e a
construção de normas processuais e procedimentais acabava ficando em segundo plano e
sendo sobrepostas às normas de direito material. Outro ponto a ser ressaltado é que as
ordenações Manuelinas não apresentam normas por seara do conhecimento jurídico, tratando
de normas de direito civil e penal dentro do mesmo título. Além disso não há uma separação
entre os ramos do direito, havendo normas penais, civis, administrativas, tributárias,
previdenciárias e processuais misturadas nos cinco livros que compõem as referidas
Ordenações do Reino.
As Ordenações Manuelinas se encontram distribuídas em cinco livros, que se dividem
em títulos e parágrafos. A matéria versada nos livros continua agrupada nos moldes das
Ordenações Afonsinas. No que tange ao estilo de redação, as Ordenações Manuelinas não são
mera compilação das leis anteriores, mas leis novas redigidas com estilo decretório, ―embora,
muitas vezes, seja apenas nova forma de lei já vigente‖. (ESPINOSA GOMES DA SILVA,
2011, p. 332-339)
Os cinco livros das Ordenações Manuelinas se dividem em títulos, tendo o primeiro
livro setenta e oito títulos, o segundo cinquenta títulos, o terceiro noventa títulos, o quarto
noventa e dois títulos e o quinto cento e treze títulos.
O primeiro livro das Ordenações Manuelinas é dedicado à organização do Estado e de
seus cargos públicos, assim, seu livro primeiro inicia regulamentando os cargos principais do
reinado português da época, como o Regedor de Justiça; o Chanceler Mor; os
Desembargadores do paço e Desembargadores do agravo e da casa de suplicação; do
corregedor das cortes dos crimes e das causas cíveis; dos juízes; dos desembargadores das
199

ilhas; dos quiridores da casa de suplicação; do ouvidor da terra da rainha, dos procuradores;
dos promotores de justiça da casa de suplicação; dos meirinhos; dos escrivães (do rei, das
malfeitorias e da corte); dos promotores de justiça; dos solicitadores de justiça; dos
sobrejuízes.
O Regedor de Justiça, caso soubesse de uma infração grave, um crime, de ofício
instauraria procedimento criminal para apurar o autor e determinar a punição, designando
imediatamente desembargador para apurar e julgar, conforme disposto no livro 1, título I. Por
sua vez, aos desembargadores do paaço competia realizar as inquirições, realizando os
julgamentos criminais e instaurando o procedimento de ofício, concentrando as funções de
acusar e julgar em suas mãos, conforme título II do livro I. Por sua vez, os desembargadores
de agravo tinham competência recursal para julgar os recursos contra sentenças definitivas,
conforme títulos IV e XXXI do livro I. O corregedor das cortes dos crimes tinha a
competência de conhecer por nova ação todos os crimes cometidos em sua área de atuação,
competindo a acusação à parte ou à justiça do lugar do fato, conforme livro I, título V. Os
juízes deveriam realizar audiências às segundas, quartas e sextas, e, nas terças e quintas
despachar juntamente dos desembargadores e do regedor definindo as sentenças, conforme
título VII do livro I. Os quiridores da casa de suplicação tinham competência de conhecer
todos os recursos de natureza criminal.
Há nas Ordenações Manuelinas a previsão de julgamento recursal através de órgão
colegiado, através dos sobrejuízes, a quem competia julgamento (desembargo) dos recursos
de agravo e apelação. Além disso os sobrejuízes tinham competência expressa para conhecer
dos feitos que lhe eram remetidos pelo governador.
Nota-se nas ordenações manuelinas uma separação entre causas criminais e cíveis,
separando as funções de julgamento, segundo a natureza da infração, o que antes dela não
havia clara separação, mas a punição do dano seja penal ou civil. Outra estrutura diferente em
relação às normas antecedentes tange ao estabelecimento de competências recursais diversas
do recurso ao rei, estabelecendo órgãos competentes para conhecimento recursal.
Aos promotores de justiça, conforme título XII98 do livro I, era atribuída a função de
formar libelos contra os seguros e os presos por parte da justiça que deveriam ser acusados
perante a Corte. Além disso, os promotores de justiça tinham função de fiscalizar a atividade
dos desembargadores. Conforme o parágrafo 23 do título XLII do quinto livro os acusadores

98
Vale destacar que os promotores de justiça encontravam regulamentação também no título XXXIV do mesmo
livro I das Ordenações Manuelinas, entretanto, as funções dos processos criminais encontra-se no citado título
XXII.
200

de justiça tinham a obrigação de estarem pessoalmente presentes nas audiências.


Em contraponto aos promotores de justiça, as Ordenações Manuelinas preveem a
função dos solicitadores de justiça, nos termos do título XXI do livro I, aos quais competia a
intervenção em benefício dos presos e pobres, em uma função embrionária do que atualmente
exercem os defensores públicos. Competia aos solicitadores de justiça apurar os acusados
presos e anotar seus dados, comparecendo às audiências e evitando que os feitos se
alongassem demasiadamente. Conforme o título XXXVI do livro primeiro, o cargo de
solicitador de justiça era exercido por um escrivão, a quem competia cuidar dos feitos com
indivíduos presos, o que era a regra no sistema manoelino, apontando eventuais erros dos
procuradores dos presos.
Nota-se que as Ordenações Manuelinas estabelecem funções de acusar e julgar em
figuras separadas, porém, isso não lhes garante ser uma legislação acusatória, é preciso
verificar os poderes estabelecidos aos magistrados e se estes eram protagonistas no
procedimento. Nesse sentido, o título XV do livro três das Ordenações Manuelinas inicia
afirmando que em qualquer juízo são necessárias três pessoas, o juiz que julgue, o autor que
demande e o réu que se defenda, retomando a máxima do jurista romano do século XII de que
o processo seria um ato entre três pessoas, juiz, autor e réu, determinando as regras de
procedimento cível e criminal, bem como estabelecendo que a prova deveria ser produzida
pela parte que houvesse deduzido a pretensão em juízo. Quanto à defesa em matéria criminal,
o título XXXVIII do livro primeiro das Ordenações vedava que o acusado tivesse procurador
em processos criminais em que fosse cominada pena de açoite ou penas mais graves que a de
degredo temporal, devendo comparecer pessoalmente em juízo, o que faz com que o
procedimento criminal tenha apenas órgãos de acusação e não haja defesa. Conforme o título
XLIV do livro primeiro das Ordenações Manuelinas, é permitido aos juízes de primeiro grau a
realização de inquisições, bem como a busca e a gestão da prova, podendo as partes indicar
testemunhas que seriam inquiridas pelo juiz. Vê-se, pois, que as Ordenações, apesar de
representarem um progresso em relação às Ordenações Afonsinas, mantiveram explicitamente
a lógica inquisitiva em Portugal.
O juiz tinha, conforme título XXI do terceiro livro das Ordenações Manuelinas, o
poder de constranger as partes a responder suas perguntas, podendo inclusive impor sanções
àquelas que se recusassem a responder. Vê-se, pois que o juiz, apesar da separação formal
entre as funções de acusar, julgar e defender, foi mantido no centro do palco processual sendo
seu protagonista e, consequentemente, restou mantida a estrutura inquisitorial vigente à época.
Além de terem a obrigação de responder as perguntas do juiz, as partes deveriam fazer o
201

chamado ―juramento de calúnia‖ pelo qual juravam utilizar apenas da verdade no processo,
sob pena de serem responsabilizadas por calúnia, conforme previsão do título XXIX do livro
três das Ordenações.
Os escrivães do rei, cuja previsão se encontra no título VXI do primeiro livro das
Ordenações, tinham a função de documentar o procedimento em atas, tendo a mesma função
os tabeliães das notas que documentavam os atos processuais a mando dos juízes, conforme
título LIX do mesmo livro citado. Assim, o procedimento segundo as Ordenações Manuelinas
era formal e documentado em atas, tal qual os procedimentos da inquisição eclesiástica. Era
função dos escrivães redigir as escrituras e guardá -las, arquivando-as na torre do tombo. Por
sua vez, os escrivães das malfeitorias tinham o papel de documentar os procedimentos
criminais, inclusive as inquirições realizadas pelos juízes, bem como, ao final do
procedimento, caso o acusado restasse absolvido deveria entregar a cópia da sentença ao
promotor de justiça para que retirasse o nome do réu do rol dos culpados. Vê-se, aqui, a
presença do até hoje usado rol dos culpados, no qual se lançava o nome dos acusados e
somente se retirava em caso de absolvição. Por fim os escrivães da corte eram responsáveis
pela documentação dos procedimentos judiciais, inclusive de natureza criminal. Vale destaque
que o título XX do livro inicial das Ordenações Manuelinas deixa clara a postura ativa dos
julgadores no procedimento criminal, possibilitando a busca ativa de prova e o protagonismo
na formação da prova, o que denota um sistema inquisitorial. Os escrivães de nossos feitos e
os escrivães de malfeitorias tinham, conforme o título XXVI do primeiro livro das
Ordenações Manuelinas a função de realizar citações, pregões, procurações e inquirições,
dando cumprimento às ordens judiciais.
Por sua vez, conforme o título LXVI do livro primeiro das Ordenações em análise, a
inquirição das testemunhas era realizada pelos Inquiridores, que exerciam a função perguntar
às testemunhas visando obter informações sobre o objeto da investigação.
O livro segundo inicia seu título I prevendo as hipóteses em que membros da igreja
poderiam ser julgados pela justiça secular, mantendo a divisão entre a justiça estatal e
eclesiástica. Portanto, mantém-se nas Ordenações Manuelinas a vigência das normas
inquisitoriais eclesiásticas que vigoraram concomitantemente com as normas estatais. Assim,
os membros da igreja poderiam ser julgados pela justiça secular nas causas cíveis patrimoniais
e nos delitos cometidos no reino. No caso de processamento perante a justiça secular, havendo
requerimento da justiça eclesiástica a cópia de todos os registros procedimentais poderia ser
remetida. Por sua vez, o título XLVI do quinto livro das Ordenações Manuelinas define
expressamente que as penas aplicadas pela justiça eclesiástica deveriam ser executadas pelo
202

juízo secular, sendo o Estado o braço armado da Igreja na tarefa de punir. O título XLVII do
mesmo livro quinto determina que os recursos das decisões eclesiásticas eram destinados à
Corte de Roma e a justiça secular somente poderia executar a pena após o julgamento por ela,
ou seja, o braço secular somente poderia executar a pena após não existirem mais recursos na
esfera eclesiástica.
O título XXVIII do livro dois das Ordenações Manuelinas estabelece a competência
criminal dos capitães portugueses nas colônias africanas, determinando que estes teriam
competência para punir os crimes quando a pena aplicada não fosse a pena de morte e nem de
perda de membros. Por sua vez, no caso de poder ser aplicada pena de morte ou de perda de
membros, o julgamento seria realizado pelos capitães, cabendo recurso ao Rei.
As Ordenações Manuelinas estabeleciam procedimentos orais para causas cíveis até
mil réis e para procedimentos que envolviam roubo e força, conforme título XIX de seu
terceiro livro.
Cabia às partes arrolar as testemunhas que pretendiam que fossem ouvidas, conforme
o título XXXXII do livro três das Ordenações Manuelinas, devendo apresentar os nomes das
testemunhas em audiência ou no dia seguinte no mais tardar. Ainda segundo o título citado, o
julgador poderia constranger as testemunhas, impondo penas pecuniárias, para que prestassem
depoimento, podendo ouvir as testemunhas mesmo que houvessem sido impugnadas por
suspeitas. Após designarem as testemunhas, as partes não poderiam se dirigir a elas, sob pena
de serem multadas, conforme título XXXXIIII do mesmo livro.
A busca da verdade é um dos objetivos do juiz no procedimento manuelino, conforme
título XL do terceiro livro das Ordenações era papel do juiz a busca da verdade dos fatos. Tal
característica, como vimos no primeiro capítulo, é uma das marcas do procedimento
inquisitório e permite que, em seu nome, o julgador converta o processo em uma verdadeira
caçada em busca de um culpado.
As provas tarifadas ainda eram adotadas nas Ordenações Manuelinas, sendo que o
título LXXXV trata da hipótese de a parte fazer ―meia prova‖ e lhe possibilita realizar
juramento perante o juiz para que a prova fosse tida como integralmente cumprida. Vê-se que
o instituto da prova tarifada, francamente instaurado pelo IV Concílio de Latrão, 1215, foi
recepcionado pela legislação interna portuguesa.
O quinto livro das Ordenações Manuelinas trata da matéria criminal e processual
penal, iniciando seu primeiro livro estabelecendo o procedimento penal. A prisão processual
era levada como regra do sistema, sendo que apenas excepcionalmente o réu respondia em
liberdade o processo. Após a formulação da acusação o réu era citado para apresentar sua
203

defesa e opor exceções, exemplificando as possíveis alegações do acusado. Apresentada a


defesa ou as exceções o juiz deveria dar às partes o tempo necessário para provar suas
alegações, na forma prevista no livro terceiro, o que leva a crer em um processo penal de
partes, porém, em contrapartida, nos leva a entender que competiria ao acusado a prova de sua
inocência. Após a produção das provas o julgador deveria abrir vista às partes para alegações
finais. O juiz poderia formular perguntas às testemunhas de ofício para esclarecer dúvidas,
podendo, também de ofício, determinar nova inquirição das testemunhas e produzir novas
provas. Vê-se que, apesar de se ter, já nas Ordenações Manuelinas, um processo penal de
partes, este segue inquisitório, podendo o julgador substituir as partes em sua atividade. A
tortura era praticada como forma de se forçar o acusado a confessar e como meio de se obter
delações.
A tutela moral é marca característica das Ordenações Manuelinas, criminalizando a
relação sexual entre parentes com a possibilidade de aplicação da pena de degredo para as
colônias africanas, conforme disposto no título XIII do quinto livro, contudo caso a mulher
fosse escrava ou prostituta a pena não seria executada. O estupro do homem contra mulher e o
ato sexual mediante fraude eram punidos conforme o título XVIIII do mesmo livro. E o título
XV do livro V criminalizava o adultério do homem (casado ou não) que mantinha relação
sexual com mulher casada, podendo a mulher ser condenada à pena de morte, porém, a
acusação somente poderia ser feita pelo marido traído, sendo que o título XVI do livro V
exclui a ilicitude do homicídio do marido traído contra a mulher e contra o homem que
estivesse cometendo o adultério com ela, em uma previsão similar à legítima defesa da honra.
As relações sexuais entre cristãos e judeus e entre cristãos e mouros eram criminalizadas e
passíveis de punição conforme o título XXII do quinto livro das Ordenações Manuelinas. A
relação sexual com freiras era criminalizada no título XXII do mesmo livro, bem como as
relações com moça virgem ou ―viúva honesta‖, e moças que andam no paço (título XXIII). A
repressão ao jogo, de cartas ou dados, também está presente, sendo criminalizada no título
XLVIII do quinto livro.
Os atos de feitiçaria eram criminalizados e os feiticeiros punidos com o degredo eterno
para as ilhas de São Thomé, conforme título XXXIII do livro V das Ordenações Manuelinas.
Contudo, se o feiticeiro fosse vassalo, escudeiro ou alguém com maior status social o degredo
era por até dois anos. A delação daqueles que não praticassem feitiçaria e delatassem os
feiticeiros nobres era remunerada, pagando o Estado quatro mil réis pelo delatado. O mesmo
título punia aqueles que benzesse cães ou outros animais, punindo os pobres com pena de
açoite público e o pagamento de mil réis àquele que o acusou e degredo por um ano e multa
204

de dois mil réis ao acusador caso o condenado fosse vassalo, escudeiro ou possuísse posição
social superior.
A blasfêmia era punida com penas corporais públicas, açoites e perfuração da língua,
bem como com penas de multa, vez que, assim como nos crimes de feitiçaria, havia penas
diferentes para nobres e plebeus. Aqueles que soubessem da blasfêmia poderiam denunciar
em segredo ao Corregedor da Corte, nomeando testemunhas e indicando as provas.
A prisão processual era a regra das Ordenações Manuelinas, conforme título XLII de
seu quinto livro que, regulamente, aqueles que deveriam ser mantidos presos, os que deveriam
receber as queixas e como se faria a acusação. Porém, o mesmo título adverte que somente
poderiam ser presos aqueles sobre os quais existisse alguma querela, alguma acusação, não
podendo os juízes prenderem qualquer pessoa, sob pena pecuniária caso alguma pessoa que
não devesse ser presa fosse levada ao cárcere.
Havia nas Ordenações Afonsinas regulamentação expressa de não submissão daquele
que fora absolvido por sentença de que não fosse submetido a novo julgamento pelo mesmo
fato que fora julgado antes, conforme título LXXIII do livro V. Essa previsão determinava
que aquele que houvesse sido absolvido por delitos que admitiam penas corporais não
poderiam ser julgados novamente pelos mesmos fatos.
Em síntese, as Ordenações Manuelinas representam um avanço em termos de estrutura
legislativa, porém mantêm a estrutura inquisitorial oriunda das Ordenações Afonsinas e
representam mais um instrumento de ligação entre o Estado e a Igreja para perseguição dos
indesejáveis de ambos. Vale dizer que essa união possibilitou a ascensão e a consolidação do
Estado Absoluto e do poder dos reis e, de outro lado, a consolidação do poder político do
Papa e a dominação religiosa pela Igreja Católica, que se deu através da dominação e
erradicação das outras religiões existentes.

5.3 As compilações de Duarte Leão (1569-1603)

Após as edições das Ordenações Afonsinas e Manuelinas várias leis extravagantes


foram formando um emaranhado de normas cada vez mais complexo. Assim sendo, durante a
menoridade de Dom Sebastião, o regente Cardeal Dom Henrique determinou a Duarte Nunes
Leão, então procurador da Casa da Suplicação que compilasse tais normas extravagantes. Para
realizar o intento, Duarte Leão compilou as leis que se encontravam na Casa de Suplicação e
em outros lugares (ESPINOSA GOMES DA SILVA, 2011, p. 349-350). ―Estes não só
revogavam, alteravam ou esclareciam muitos dos seus preceitos, mas também dispunham
205

sobre matérias inovadoras.‖ (COSTA, 2012, p. 317)


Nesse contexto, afirma o interventor em nome do rei no alvará que determinou que
Duarte Leão realizasse a compilação das normas extravagantes de Portugal:
(...) mandei ao Licenciado Duarte Nunez do Lião Procurador na dita cafa da
Supplicação, que ajuntafie todas as ditas extrauagantes c determinações , que -ao
prefente fiau5.o em vfo e fe praticauão, e fizeffe hum relatorio daíubfl:ancia de cada
hua das ditas leis , ordenações , e determinações, per titulas , e em tal ordem, que na
.relação de cada hua fe comprehen deiTe tudo o que fe continha no original. 99

Assim sendo Duarte Leão foi designado para compilar as leis que se encontravam na
casa de Suplicação e na Chancelaria-mor, e outras que estavam nos livros da Fazenda, dos
contos do reino, no conselho de Lisboa e na Torre do Tombo, entre outras. Terminado o
trabalho, a compilação foi revisada pelo Regedor da Casa de Suplicação, Lourenço Silva e por
outros letrados do Conselho de Desembargo do Rei, sendo aprovado por alvará no dia 14 de
fevereiro de 1569. (ESPINOSA GOMES DA SILVA, 2011, p. 350)
Interessante notar que as Compilações de Duarte Leão possuem normas interpretativas
das Ordenações Manuelinas, determinando como deveriam ser aplicadas as normas
manuelinas, como se percebe no Título II da segunda parte do texto em análise.
As Ordenações Manuelinas e as Compilações Duarte Leão foram aplicadas no Brasil,
tendo as Compilações disposição expressa em sua primeira parte, conforme Lei III do Título
XIII, da primeira parte das Compilações, sobre as relações judiciárias nas colônias nas quais o
nosso País é expressamente mencionado. Conforme a lei IIII do mesmo título, era papel dos
juízes das colônias ir em busca das culpas dos crimes cometidos, em um procedimento
inquisitorial que fora aplicado no território brasileiro no período de sua colonização. Na
segunda parte das Compilações Duarte Leão é limitada a jurisdição dos Capitães do Brasil,
conforme a lei II do Título VI, que tinham jurisdição sobre peões cristãos e homens livres.
Assim, não se trata de leis que revogam as Ordenações, mas que as complementam.
Sendo a coletânea composta de seis partes assim distribuídas: os ofícios e os oficiais régios;
as jurisdições e os privilégios; as causas, incluindo trechos de uma lei editada por D. João III
sobre os trâmites dos processos nos tribunais; os delitos; a fazenda real; matérias diversas,
cada uma composta por leis, cada qual dividida em vários títulos e os títulos mais extensos
ainda se dividem em parágrafos.
O estilo de redação das Compilações é diferente do das Ordenações que a precedem, o
texto é dividido em títulos, sendo que cada título é composto por leis. Enquanto os títulos das
ordenações são divididos em parágrafos contínuos e longos, as leis das compilações são mais

99
Optamos por citar o trecho do alvará em sua literalidade, mantendo a grafia de época.
206

curtas e mandamentais, portanto mais diretas.


Interessante destacar que a primeira lei do título V da primeira parte das Compilações,
afirmam textualmente que aos juízes era vedado ensinar as partes a formularem seus artigos.
As Compilações, apesar de conterem um texto mais voltado à regulamentação das
Ordenações Manuelinas, também guardavam espaço para determinar perseguidos e alvos do
sistema penal, como os vadios que deveriam ser presos e processados pelos Corregedores do
Crime de Lisboa, conforme a lei III do título X, parte primeira.
Conforme determina o a lei III do título XXVI da parte inicial, os presos pelos
Alcaides da cidade de Lisboa deveriam ser levados à presença de um magistrado que avaliaria
sobre a manutenção da prisão.
A segunda parte das compilações inicia seu título I, lei VI, determinando que os
corregedores do crime deveriam comparecer no local do crime e aquele que comparecesse
seria competente para determinar a prisão do indivíduo. Denota-se daí o papel ativo do
corregedor do crime em um procedimento com fortes fincas no modelo inquisitorial.
A lei número XII, do título II da parte II das Compilações Duarte Leão determinam
que os agentes do Rei devessem dar cumprimento às ordens da Justiça Inquisitorial. Vale
lembrar que a Igreja não dispunha de exercito e se valia dos membros da denominada justiça
secular, portanto do Estado, para fazer valer sua força. Assim, competia ao Estado fazer valer
as decisões e ordens eclesiásticas, demonstrando a coexistência de duas modalidades de
processo penal e da união entre a Igreja e o Estado em busca do poder religioso e político
respectivamente. Determinando a lei seguinte, número XIII, que o Rei deveria dar
cumprimento às normas do Concílio de Trento, determinando que a justiça secular desse
cumprimento célere às decisões da justiça eclesiástica, estabelecendo normas procedimentais
de cumprimento das decisões eclesiásticas.
A terceira parte das Compilações trata especificamente das questões judiciais, através
de normas procedimentais cíveis e criminais. O procedimento penal foi regulamentado pela
Lei VII, do primeiro título da parte III das Compilações de Duarte Leão. O réu após ser citado
deveria comparecer em juízo para que o juiz lhe formulasse as perguntas que entendesse ser
necessárias ao julgamento, determinando a atitude ativa do órgão jurisdicional na produção
das provas que é a marca central do procedimento inquisitorial. Tais perguntas visavam
definir o objeto do procedimento e, caso o juiz verificasse a viabilidade do pedido,
determinava que o autor apresentasse o libelo na mesma audiência. Oferecido o libelo, o juiz
o recebia, determinando que o réu o contrariasse até a segunda audiência. Após determinava
que o autor apresentasse réplica e o réu a tréplica, em audiências subsequentes. Na
207

contrariedade ao libelo o réu poderia arguir exceções que seriam processadas e instruídas em
conformidade com o disposto na lei em análise. As provas deveriam ser produzidas pelas
partes, contudo o parágrafo 14 da lei analisada permite que havendo dúvida por parte do juiz
ele produza provas de ofício, quando a prova demandar escritura pública para dirimir a
dúvida, caso entenda não ser necessária a escritura pública condenará a parte que devesse
produzir a prova nas custas processuais. Apesar da determinação de que as provas devessem
ser produzidas pelas partes, as inquirições deveriam ser realizadas pelos juízes e
complementadas pelas partes, consoante o parágrafo 34 da lei em comento. Entretanto, o
parágrafo 42 da lei que estamos a analisar, determina que em caso de procedimento criminal,
após ser oferecido o libelo, o juiz, após recebê-lo, verificaria a necessidade de alguma
declaração e determinaria, de oficio sua realização, o que determina a manutenção
inquisitorial do procedimento penal na vigência das Ordenações Manuelinas bem como das
Compilações de Duarte Leão.
Por sua vez a quarta parte das Compilações trata especificamente dos delitos e das
penas, possuindo em seu texto normas procedimentais junto das normas penais
incriminadoras. As normas procedimentais seguem padrão inquisitório, permitindo que o
julgador atue ativamente em busca de provas e na punição dos delitos. A fusão de normas
penais e processuais, logo de direito material e processual, é devida em razão à inexistência da
autonomia do direito processual, que somente ocorreu em 1868.
O título XIII da quarta parte das Compilações trata dos estrangeiros e dos vagabundos,
iniciando sua primeira lei com uma proibição de que pudessem pedir esmolas no reino, o que
é regulamentado nos títulos seguintes. Em sua segunda lei veda a entrada de ciganos no reino
de Portugal, enquanto a lei V impede a entrada de armênios, árabes e persas no Reino. Dessa
forma, as compilações mantêm a estrutura de eleição de indesejáveis, como Judeus e os
Mouros das Ordenações Manuelinas e, agora adiciona os estrangeiros e pobres dentre aqueles
que seriam atingidos por suas disposições.
Vê-se que as Compilações Duarte Leão representaram uma mera organização da
legislação especial que coexistia com as normas das Ordenações Manuelinas. Dessa forma, as
Compilações não seriam capazes de alterar o sistema inquisitorial mantido pelas Ordenações e
nem mesmo a coexistência do direito penal inquisitório eclesiástico que dividia espaço com o
direito estatal, mantendo-se o braço secular como a força da inquisição religiosa e o mesmo
modelo autoritário vigente desde o Império Romano e que fora aprimorado pela Igreja, como
demonstramos no capítulo antecedente.
5.4 Ordenações Filipinas (1603-1824)
208

As Compilações das leis extravagantes realizadas por Duarte Leão como forma de
atualizar e de organizar as Ordenações Manuelinas e as normas surgidas após as ordenações,
contudo, não cumpriram seu objetivo e, por isso, surgiu a necessidade uma reforma mais
profunda. Assim, no reinado de Filipe I, aproximadamente entre os anos de 1583 e 1585
foram iniciados os trabalhos para a nova sistematização, tendo o próprio Duarte Leão sido um
dos juristas que participou de sua elaboração, juntamente de Jorge de Cabedo e Afonso Vaz
Tendeiro, sendo possível que outros tenham colaborado. Nesse contexto, as Ordenações
Filipinas foram concluídas em 1595 e receberam aprovação por lei em 5 de junho de 1595,
porém somente no reinado de Filipe II é que passaram a ter vigência através da Lei de 11 de
janeiro de 1603, após oitenta e dois anos de vigência das Ordenações Manuelinas e trinta e
quatro anos da reorganização das Compilações de Duarte Leão. (COSTA, 2012, p. 321-322)
A ideia da nova normatização do direito português começou a ganhar corpo em razão
do elevado número de leis posteriores à Compilação de Duarte Leão e vigentes na virada dos
séculos XIV-XV, que deixaram o ordenamento jurídico português antiquado e fizeram nascer
o desejo reformador. Contudo, não se tratou de uma reforma ampla, mas apenas de uma nova
organização das leis com a reunião, num só texto, das Ordenações Manuelinas e da
Compilação de Duarte Leão, mantendo a estrutura dividida em cinco livros, dividindo os
títulos em capítulos e estes divididos em parágrafos. Contudo, as Ordenações Filipinas não se
preocuparam em atualizar as Ordenações Manuelinas, tendo os compiladores apenas juntado,
mecanicamente, as Ordenações Manuelinas e as normas posteriores, sem sequer verificar as
normas que haviam sido revogadas ou que estavam em desuso e sequer evitaram a inserção de
leis contraditórias. As Ordenações Filipinas vigeram em Portugal até 1867, quando foi
promulgado o Código Civil Português e no Brasil vigeram até após a independência, em 7 de
setembro de 1822, e após a própria queda do Império com a promulgação da República em 15
de novembro de 1889, tendo vigorado no Brasil100 até promulgação do Código Civil de 1916.
(ESPINOSA GOMES DA SILVA, 2011, p. 366-370)
A adoção das Ordenações Filipinas no Brasil denota que nosso sistema judiciário
acabou sendo construído à semelhança do português, com seus vícios e virtudes latentes,
incorporando a cultura inquisitória que Portugal havia herdado do direito romano e
eclesiástico.

100
A vigência das Ordenações Filipinas no Brasil se deu por força da Lei datada de 20 de outubro de 1823
publicada pelo Imperador Dom Pedro I, na qual a Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Brasil
declara expressamente a validade do ordenamento jurídico português vigente na época da independência em
território brasileiro.
209

Assim sendo, por se tratar de uma compilação entre as Ordenações Manuelinas, as


Compilações de Duarte Leão e outras leis vigentes, as Ordenações Filipinas foram incapazes
de mudar o sistema inquisitorial vigente. Manteve-se em Portugal e nas colônias portuguesas
o sistema híbrido dos ordenamentos anteriores, onde estavam presentes a inquisição
eclesiástica e o processo penal inquisitorial.
Assim como as Ordenações Manuelinas, as Ordenações Filipinas iniciam seu livro
inaugural, tratando da estrutura do Estado, estabelecendo os cargos e atribuições. Dessa
forma, o primeiro título do livro inicial trata do Regedor da Casa de Suplicação, que era tido
como o maior tribunal de justiça do Reino de Portugal. A influência religiosa nas Ordenações
é latente, sendo que o Regedor designava um sacerdote para celebrar uma missa diária antes
de iniciar os despachos. Uma das principais competências dos regedores era de fiscalizar o
exercício das funções pelos desembargadores e oficiais, exercendo controle sobre seus atos. O
segundo título regulamenta o cargo do Chanceler Mor, enquanto o terceiro título dos
Desembargadores do Paço. Aos desembargadores do paço era atribuída a competência de
despachar os pedidos de graça e de liberdade. Por sua vez o título IV trata do chanceler da
casa de suplicação. Já o título V trata dos desembargadores da casa de suplicação, que
exerciam papel recursal com competência dividida entre feitos cíveis e criminais, enquanto o
título VI trata dos desembargadores dos agravos e apelações da casa de suplicação, com
competência recursal em matéria cível. O título VII estabelece as funções dos corregedores da
corte dos feitos dos crimes, que detinha a competência para julgamento dos crimes.
A estrutura estatal desenhada pelas Ordenações Filipinas constitui um modelo
burocrático e regado a serviçais e regalias aos ocupantes de seus cargos mais altos, em uma
estrutura hierarquizada e complexa num emaranhado de funcionários destinados a servir
aqueles que detinham o poder de decisão e de atos formalizados. A burocracia, a formalização
e a hierarquia de servidão é uma característica típica de estruturas de concentração de poder,
como modelos inquisitórios, onde o inquisidor contava com estrutura de pessoal e serviçais
para que pudesse realizar um procedimento formal e detivesse o controle sobre os indivíduos
investigados perante seu juízo.
O parágrafo 11101 do título III trata especificamente do emprego de meios físicos para
obtenção de prova, denominados por tormentos e que tinham por finalidade a prova da culpa
do indivíduo. No citado parágrafo, verifica-se que as inquirições em alguns casos não

101
―E porque nas inquirições devassas, que assi são tiradas, ás vezes se não prova claramente a culpa porém
mostram-se alguns indicias e presunções sufficientes para tormento, ou outros indicias, que não são suficientes
para os culpados serem mettidos a tormento.‖ (grafia original do texto)
210

obtinham êxito em produzir prova suficiente para condenar o acusado, porém, poderiam ser
obtidos indícios para submeter o acusado aos tormentos que visavam a obtenção da confissão.
Nesse contexto, a inquisição eclesiástica encontra abrigo na legislação estatal e ambas se
utilizaram dos mesmos meios de obtenção da prova e de objetificação dos sujeitos em
modelos inquisitoriais onde não se buscava a apuração do fato, mas a confirmação das
verdades criadas na mente dos julgadores e a perseguição dos indesejáveis. Valendo dizer que
através da análise estrutural do sistema Filipino se percebe que a prisão processual era a regra
e que os castigos corporais ainda eram a forma final de punição.
Os desembargadores da suplicação com competência criminal, conforme parágrafo 12
do título V das Ordenações Filipinas, detinham poderes para buscar provas essenciais para
suprir defeitos do procedimento, o que demonstra a manutenção inquisitória das Ordenações.
Os corregedores da corte poderiam avocar para si a competência para julgar casos
criminais da cidade de Lisboa, consoante título VII das Ordenações Filipinas. Por sua vez os
corregedores do crime da cidade de Lisboa encontravam previsão no título XLIX das
Ordenações e tinham a obrigação de promover a devassa contra aqueles que possuíssem casa
de jogo em sua casa e deveriam proceder judicialmente contra elas. Contudo, os corregedores
tinham a competência de promover a devassa, acusar e julgar os indivíduos, o que mostra um
sistema inquisitorial.
A dualidade de jurisdição, Estatal (Secular) e eclesiástica resta clara no parágrafo 11
do título IX, do primeiro livro das Ordenações Filipinas. Dessa forma, as Ordenações segue o
modelo das normas antecessoras e conserva a existência de uma jurisdição inquisitória da
igreja e outra, também de natureza inquisitiva, do Estado. Além disso o parágrafo seguinte
determina o não cabimento de recursos para os tribunais estatais contra decisões das cortes
eclesiásticas, os quais apenas cabiam os recursos previstos nas normas de natureza
eclesiástica, salvo quando a decisão recorrida violasse direito natural, pois nesse caso era
obrigação do rei de acudir seus vassalos. As ordens emanadas dos inquisidores da justiça
eclesiástica eram cumpridas pelos oficiais da justiça secular-estatal, conforme regulamentado
pelos títulos VI e VIII do segundo livro das Ordenações Filipinas. Nesse contexto o Estado
disponibilizava sua estrutura de força para fazer valer as decisões dos Tribunais da Inquisição,
sendo seu braço armado em troca de poder político.
Durante a vigência das Ordenações Filipinas, através de Alvará datado do dia 12 de
setembro 1564, o Rei determinou que a força do Estado desse cumprimento às determinações
papais do Concílio de Trento, realizado em 22 de maio de 1542, em todo território de Portugal
e suas colônias. Em complemento, a lei nº XIII determinou que as execuções das demandas
211

dos Tribunais da Inquisição fossem realizadas pelo braço Secular, ou seja, pelas mãos do
Estado, através da citada lei, o Rei esclarece a ação do braço Secular
Contra publico adulteras, barregueiros, concubinarias, alcovileiros, e os [Jue
consentem as mulheres fazerem mal de si em suas casa, ince tuo os, feiticeiro.,
benzedeiros, sacrilegos, hlasphemos, perjuros, onzeneims, simoniaco , e contra
quaesquer outros, que commetterem publicos peccados e de líctos, que conforme
Direito sejão do fôro mixto. E bem assi contra os que dão publicas tavolagens (de jogo
em suas casas, posto que haja duvida se he caso mixti fori. (PORTUGAL, 1564)

Tendo o Rei Dom Sebastião, através da Provisão de 19 de março de 1569 determinado


que os juízos eclesiásticos poderiam se valer da estrutura secular para fazer valer suas
decisões, estabelecendo que a justiça estatal ajudasse no cumprimento das decisões emanadas
dos Tribunais da Inquisição.
Os Promotores de Justiça da Casa de Suplicação tinham previsão no título XV do
primeiro livro das Ordenações Filipinas, os ditos promotores tinham competência de
promover a acusação criminal, devendo buscar a confissão do acusado e, caso não a obtivesse,
devendo promover a devassa com escopo de conseguir provas para a acusação. Por sua vez, o
título XLIII prevê a figura dos Promotores de Justiça da Casa do Porto, com competência
similar à dos Promotores de Justiça da Casa de Suplicação. Vê-se que o sistema filipino se
manteve vinculado à confissão, que era tida como ―rainha das provas‖ em um sistema de
provas tarifadas, tal qual aquele adotado pela inquisição eclesiástica. Ademais, o promotor
recebia cem réis em caso de ser provido o libelo (acusação), o que o levava a buscar a todo
preço a confissão e a condenação.
Os Ouvidores do Crime da Casa de Suplicação, cuja previsão encontra-se no título XI
do primeiro livro das Ordenações Filipinas, tinham atribuição de buscar as provas, ouvir
testemunhas e as partes, devendo se reportar diretamente aos Desembargadores do Crime. Os
ditos ouvidores figuravam como o braço dos desembargadores, possibilitando que os juízes
produzissem provas e atuassem no lugar das partes, atuando de modo inquisitorial. Os
próprios desembargadores poderiam fazer com que as testemunhas comparecessem aos
tribunais, inclusive com as despesas pagas pelo tribunal, para serem ouvidas e, diante disso,
produziam, de ofício provas. Por sua vez, a Casa do Porto também tinha seus ouvidores do
crime, com competência similar à dos Ouvidores do Crime da Casa de Suplicação, contudo
previsão no título XLI das Ordenações em análise.
Os Desembargadores da Casa de Suplicação poderiam exercer a função de
Procuradores da Justiça da Casa de Suplicação, exercendo a função de promover a acusação
criminal, sendo obrigado a ver todas as inquirições e devassas que viessem à corte.
212

O Título LXV do primeiro livro das Ordenações Filipinas regulamenta a conduta dos
juízes, dividindo-os entre ordinários e de fora. Segundo o título mencionado, era papel dos
juízes realizar devassas, inquirir testemunhas e inclusive buscar pessoas que pudessem
contribuir com o caso em julgamento criminal. Denota-se pelas atribuições dadas aos juízes
que o sistema processual penal adotado nas Ordenações centralizava os poderes nas mãos do
julgador e relegava as partes a segundo plano, constituindo um modelo inquisitorial. Já o
título C do mesmo livro, previa que o juiz acusado por erros poderia ser suspenso de suas
funções e, se condenado, poderia ser preso. Valendo-se da dicotomia entre jurisdição
eclesiástica e estatal (secular), o primeiro título do segundo livro das Ordenações estabelece
os casos em que os clérigos poderiam responder perante a jurisdição secular, estabelecendo a
responsabilidade civil e criminal dos membros da Igreja perante o Estado.
Os Capitães das colônias na África gozavam de poderes jurisdicionais, podendo julgar
e condenar os crimes. Segundo o título XLVII do segundo livro das Ordenações Filipinas, nos
casos em que a pena não envolvesse mutilação de membros ou morte, os capitães decidiam
sem que o condenado tivesse direto a recursos, quando a pena aplicada fosse de morte ou
mutilação caberia apelo aos tribunais da Corte em Portugal. Nos crimes cometidos nas
colônias, os capitães acabavam exercendo o poder de polícia, investigação, instrução e
julgamento, em um modelo inquisitorial e centralizador dos poderes que eram delegados pelo
Rei ao qual os Capitães acabavam por representar fora do reino central.
Por sua vez os ouvidores do crime da Casa do Porto, previstos no título XXXVIII do
livro primeiro, detinham a competência de receber as querelas formuladas pelas partes e
aplicar o Regimento dos Corregedores do Crime da Casa de Suplicação, além de conhecer de
todos os crimes que o corregedor e os juízes de fora da cidade forem competentes para
conhecer.
Os juízes das colônias africanas e do Brasil tinham poderes para agir de ofício, por si
só, como diz o título LI do livro inicial das Ordenações, bem como para promover a busca de
provas e, ao final julgar o procedimento criminal. Vê-se que nas colônias o procedimento
inquisitorial foi adotado de forma efetiva tanto através da inquisição eclesiástica como pela
inquisição estatal.
O título XXVI do livro primeiro das Ordenações Filipinas prevê a figura do
Solicitador de Justiça da Casa de Suplicação, a quem competia acompanhar as penas e os
presos que tivessem direito de ser soltos, solicitando a soltura. Devia ainda acompanhar os
promotores de justiça em suas visitas ao cárcere, anotando o nome dos presos e buscaria
auxiliar o andamento dos procedimentos, atuando como uma espécie de oficial de justiça,
213

mantendo a competência atribuída pelas Ordenações Manuelinas. O capítulo XLV do


primeiro livro destacava os Solicitadores de Justiça da Casa do Porto, com atribuições
semelhantes às dos Solicitadores da Casa de Suplicação.
As prisões eram regulamentadas no capítulo XXXIV do livro inicial das Ordenações
Filipinas, sendo direito do preso uma fonte de luz e água. Ao ser solto o preso deveria pagar
financeiramente pelo tempo de prisão.
Os advogados e procuradores estão previstos no título XLVIII das Ordenações, sendo
que deveriam possuir formação jurídica em direito civil ou canônico na Universidade de
Coimbra e não poderiam ser tabeliões, escrivães e nem terem sido condenados por falsidade
ou qualquer outro crime. Contudo, o advogado poderia ser punido caso advogasse contra as
disposições das Ordenações Filipinas. Os advogados e procuradores eram remunerados pelo
próprio Estado.
O procedimento jurisdicional era formalizado em atas escritas pelos escrivães
judiciais, cuja previsão expressa está no Título LXXIX do livro primeiro das Ordenações
Filipinas. Trata-se de um processo documentado em atas e solene, característica típica da
inquisição, onde o objeto de julgamento deixa de ser a prova e os argumentos para passar à
interpretação das atas. Contra as sentenças das cortes eclesiásticas era cabível recursos à corte
de Roma, conforme previsão do título X do segundo livro das Ordenações, sendo que a
formalização do procedimento possibilitava a impugnação recursal para a Corte romana, eis
que o julgamento recursal se resumia a uma nova análise e um novo julgamento sobre as atas
produzidas.
A inquirição das testemunhas era realizada pelos inquiridores, conforme Título
LXXXV do primeiro livro das Ordenações Filipinas, sendo que a inquirição era realizada sob
comando dos juízes, e estes realizavam diretamente a inquirição quando se tratasse de casos
que resultasse morte, aleijamento ou deformidade do rosto. A testemunha prestava
compromisso de dizer a verdade em conformidade com o evangelho. Contudo, o inquiridor
acabava funcionando como extensão do julgador, que determinava a realização da oitiva e
concentrava em suas mãos a produção da prova.
O terceiro livro das Ordenações Filipinas regulamenta o procedimento jurisdicional,
determinando em seus primeiros títulos a citação e estabelecendo as normas de como ela
deveria ser realizada.
Interessante notar que as Ordenações Filipinas, datadas de 1603, já estabeleciam, no
título XX de seu terceiro livro, que no juízo cível seriam necessárias três pessoas, o autor que
demande, o réu que defenda e o juiz que julgue, restaurando a máxima de Búlgaro mais de
214

dois séculos antes de Bülow estabelecer a teroria do processo como relação jurídica entre
autor, réu e juiz. No mesmo título, resta estabelecida a obrigação de que o réu se manifestasse
a cada vez que o autor aditasse o libelo, estabelecendo a relação em contraditório e o
contraditório como a bilateralidade de audiência, sendo que somente com a manifestação do
réu é que seria realizada a segunda audiência onde as exceções seriam apreciadas pelo juiz.
Ainda no procedimento cível, o título XXXII do terceiro livro das Ordenações determina que
o juiz poderia, de ofício, formular questionamentos às partes e constrangê-las a responder,
procurando com isso provas quanto aos argumentos levados pelas partes em juízo, o que
coloca o juiz como protagonista e mantém a estrutura inquisitorial vigente. O ônus probatório
do procedimento civil era estabelecido no título LII do livro três, sendo que o autor deveria
provar suas alegações iniciais e o réu o conteúdo da contestação, contudo ambos poderiam
requerer auxílio do juiz para produzir as provas.
O título LXIII do terceiro livro das Ordenações Filipinas determina que o juiz decida
em conformidade com a verdade sabida no processo, privilegiando a confissão. Vale lembrar
que a busca da verdade da confissão foram características determinantes na formação do
procedimento inquisitório e com grande presença na inquisição eclesiástica, como afirmamos
nos capítulos anteriores, a adoção expressa de tal recomendação denota a inquisitoriedade
presente nas Ordenações em análise.
O quarto livro das Ordenações Filipinas trata das questões atinentes ao direito civil e
seus ramos derivados, como direito societário, contudo, vale mencionar a possibilidade de ser
deserdada a filha que usasse de feiticeiros ou conversasse com feiticeiros, bem como os pais
católicos poderiam deserdar os filhos hereges, nos termos do título LXXXVIII. Já o título
LXXXIX permitia que o filho católico deserdasse o pai ou a mãe herege. O sistema
inquisitorial se configura em um modelo de perseguição, onde o resultado é conhecido pelo
julgador e os perseguidos são escolhidos segundo os interesses daqueles que detêm o poder,
no caso das ordenações em análise a perseguição a feiticeiros e hereges permanece viva como
fora existente durante toda idade média tanto nas ordenações estatais como nas normas
eclesiásticas.
O quinto livro das Ordenações Filipinas trata da matéria de direito penal em seu
primeiro título deixa clara a cisão entre a justiça estatal (secular) e a justiça eclesiástica na
punição dos judeus e dos apóstatas, afirmando que esses dois grupos normalmente eram
julgados pelos Tribunais da Inquisição e tinham a pena executada pela justiça estatal, uma vez
que a justiça eclesiástica não poderia executar as penas corporais por suas próprias mãos.
Dessa forma, segundo dispõe o citado título, competia à justiça eclesiástica promover a
215

condenação dos indivíduos, enquanto a justiça secular tinha a competência para executar as
penas de sangue impostas pelos Tribunais da Inquisição. Ainda, segundo o referido título,
poderiam ser punidos os judeus convertidos ao cristianismo ou os filhos de cristãos que se
convertessem ao judaísmo.
A tutela da religião era levada às últimas consequências nas Ordenações Filipinas,
sendo que a blasfêmia era punida com penas corporais de açoites, conforme título II do livro
V das Ordenações Filipinas. Da mesma forma os feiticeiros encontravam previsão expressa de
punição no título III do mesmo livro, determinando que eles poderiam ser punidos pelas leis
estatais bem como pelas normas eclesiásticas.
O direito penal era usado para punir condutas privadas que eram tidas como pecados,
nesse contexto o título XIII do livro V das Ordenações Filipinas punia a prática sexual com
animais e a prática da sodomia, coito anal entre dois homens ou entre um homem e uma
mulher, com pena de morte na fogueira e confisco de todos os bens do condenado,
equiparando a sodomia com o crime de lesa majestade. No mesmo título, era prevista punição
com degredo para aqueles que praticassem atos homossexuais. A prova dos delitos sexuais
deveria ser feita por duas testemunhas, cujos nomes poderiam ser mantidos em sigilo a
critério do juiz. O título XIV do mesmo livro pune com pena de morte a relação sexual entre
cristãos e não cristãos, sobretudo Mouros e Judeus, estendendo a mesma pena ao não fiel.
Aquele que mantivesse relação sexual com freiras era punido com a morte, se plebeu, ou com
o degredo para o Brasil, caso ocupasse posição social de maior relevância. Aquele que tivesse
relação sexual com mulher livre, sem ser casado, poderia ser degredado para a África, sendo
que o plebeu seria ainda açoitado, conforme título XV. Conforme o título XVI o incesto com
pena de morte ou degredo, segundo o grau de parentesco dos envolvidos. O título XVII punia
o estupro com pena de morte, porém ressalvava que não haveria a execução da pena caso a
vítima fosse prostituta ou escrava.
A perseguição a povos estrangeiros, e sobretudo da utilização do Direito Penal e do
Processo Penal como vetor de perseguição, é verificada no título LXIX do quinto livro das
ordenações, que proibia a entrada no reino de Portugal dos ciganos, armênios, árabes, persas e
dos mouros de Granada. Além de proibir a entrada dos citados estrangeiros, o mesmo título
ainda determina que os Cristãos Novos, que eram judeus convertidos ao Cristianismo, não
poderiam entrar ou viver em Portugal, sob pena de prisão e degredo, além da perda de todos
os bens.
O título XCIV do quinto livro das Ordenações Filipinas determinava que os Judeus e
os Mouros que andassem em território português deveriam ter autorização do rei para tal ou
216

ali estarem como cativos. Em ambos os casos eles teriam que usar vestimentas diferentes dos
demais, sendo que os Judeus deveriam usar uma carapuça amarela ou vermelha e os Mouros
uma lua de pano vermelho no ombro direito, podendo ser preso e ter de pagar mil réis da
primeira vez, dois mil da segunda e, caso fosse flagrado pela terceira vez poderia ser
confiscado como cativo.
As Ordenações Filipinas previam no título CXVI de seu quinto livro a possibilidade de
se perdoar o criminoso que entregasse à prisão outros criminosos, adotando a possibilidade de
premiação da delação em troca das informações desejadas. Trata-se da manutenção da delação
premiada que tem suas origens em modelos inquisitoriais (SANTIAGO NETO e PENIDO,
2017; SANTIAGO NETO, 2016), como foi demonstrado nos capítulos antecedentes.
A acusação criminal nas Ordenações Filipinas poderiam se dar através de querela,
iniciada pelos querelosos, ou, quando estes não desejassem iniciar a querela, pelos juízes de
ofício, conforme disposto no livro V, título CXVII.
O procedimento criminal encontrava previsão no título CXXIV das Ordenações
Filipinas, iniciando com o recebimento do libelo pelo juiz que deveria designar audiência para
lê-lo ao acusado e, caso entendesse necessário indagaria o acusado na mesma audiência. A
acusação era feita pelos promotores e procuradores, conforme previsto no livro primeiro das
Ordenações. A prisão era a regra do procedimento, mantendo o acusado preso durante o
procedimento. Recebido o libelo, o réu poderia contestá-lo até a segunda audiência, podendo
contestar por negativa geral dos fatos e poderia oferecer exceções dilatórias ou peremptórias.
Não sendo contrariado o libelo, o juiz passava diretamente à fase probatória, que era realizada
pelo juiz, sendo que somente se a contrariedade fosse recebida é que as partes poderiam
apresentar suas provas, ou seja, nesse caso o ônus probatório de provar o que alegou na
contestação era do acusado e caso não oferecesse contestação o juiz iria em busca da prova
para a condenação. As Ordenações determinam que as testemunhas deviam ser arroladas pelas
partes, contudo, permite que o juiz formule perguntas que entendesse ser pertinentes para a
busca da justiça. Permite ainda que toda causa criminal, mesmo após a instrução iniciada,
recebesse novas testemunhas, de ofício do juiz ou a requerimento das partes.
Conforme o título CXXX aquele que fosse absolvido poderia ser novamente
processado desde que a absolvição se baseasse em provas falsas ou houvesse conluio entre o
acusador e o acusado. Era permitido, portanto, novo julgamento após sentença absolutória e a
decisão de absolvição não fazia coisa julgada plena. Tal cláusula faz com que tal disposição
pudesse ser manipulada ao critério do Estado e dos juízes para permitir reabertura de casos
penais em conformidade com a conveniência de quem detinha tal poder e fazia com que os
217

absolvidos tivessem que conviver com a possibilidade de serem novamente julgados mesmo
após terem sido absolvidos.
Os tormentos, como era chamada a tortura no título CXXXIII das Ordenações
Filipinas, eram adotados quando pesassem contra o indivíduo indícios do cometimento do
crime, ainda que fracos. Nesse contexto, o acusado era tratado como objeto, um animal que
deveria ser castigado para extrair dele uma suposta verdade que já era previamente
estabelecida pelo julgador. Há que se ressaltar que os fidalgos, cavaleiros, doutores em
cânones, em leis, ou medicina, os estudantes universitários e os vereadores não seriam
submetidos a tortura, ou seja, apenas os menos afortunados poderiam sofrer os tormentos
como meio de obter sua confissão.
O procedimento criminal das Ordenações Filipinas segue a linha de um procedimento
monofásico e centralizado na figura do juiz e que buscava a confissão ainda que mediante
tortura. Em que pese haver a separação da acusação e do julgamento, permite-se que o
julgador parta em busca de provas e presume-se a culpa do acusado, que tinha o ônus de
comprovar a própria inocência. Trata-se, portanto, de um modelo inquisitório e que segue os
parâmetros da inquisição eclesiástica que coexistia com o procedimento criminal estatal.
O procedimento penal das Ordenações, desde as Manuelinas até as Filipinas, adotou
modelo inquisitorial aos moldes do procedimento eclesiástico com quem todos os modelos
seculares conviveram e dos quais serviram como órgão de execução de pena e tortura. Nesse
contexto, adotaram um sistema monofásico onde todos os atos de investigação e instrução se
davam perante o juiz e, ainda que alguns dos modelos estatais separasse o início da acusação,
permitiam a atuação destacada do julgador que concentrava poderes instrutórios e decisórios,
além de adotar um modelo que usava da tortura como meio de obtenção da confissão que era
tida como a prova mais importante em um modelo de provas tarifadas.
As ordenações foram aplicadas no Brasil, como restou demonstrado, e influenciaram a
legislação processual penal brasileira, fazendo parte da formação da cultura inquisitória e
autoritária de nosso direito processual penal que insiste em perdurar até os dias atuais.
Contudo, não foram a única fonte de inspiração, sendo nosso processo penal atual sofrido
influências significativas tanto do Código de Instrução Criminal francês, de 1808, como do
Código de Processo Penal italiano de 1930, que serão objeto de estudo nos capítulos
seguintes.
219

6 O CÓDIGO DE PROCESSO PENAL NAPOLEÔNICO: O NASCIMENTO DA


INQUISITORIEDADE TRAVESTIDA DE SISTEMA MISTO

O processo penal francês construído pelo Código de Instrução Criminal francês de


1808, também conhecido como código napoleônico, exerceu e ainda exerce grande influência
no processo penal brasileiro. A grande diferença do sistema napoleônico para os modelos até
então vigentes é a criação de um modelo bipartido, ou bifásico, de procedimento penal, no
qual se teria uma primeira fase inquisitória e uma segunda fase acusatória.
A França já adotava um modelo inquisitorial desde as Ordenações de 1254, de Luis
IX, que foram editadas sob influência do direito romano-canônico e previam a disposição e
apuração das infrações penais de ofício pelo juiz e a imposição da jurisdição real em todo
território francês. (PRADO, 2006, p. 85)
Antes da Revolução, vigia na França, desde 26 de agosto de 1670, as Ordenações
Criminais, conhecida como Código de Luís, que consistia em um sistema inquisitório
perfeito, segundo Franco Cordero. Trata-se de um modelo construído ao longo de vários anos,
com base em leis datadas de 1498, além de várias reformas das quais se destaca quatro
ordenações: Francisco I (1535 e 1539), Francisco II (1560) e Enrique III (1579). No sistema
do Código de Luís a investigação competia aos procuradores do rei (2000, p. 26), sendo que
não havia processo sem a o Ministério Público. Tem-se um modelo trifásico, sendo que a
investigação servia apenas para estabelecer se alguém deveria perseguido, sendo que em
seguida realizado o interrogatório do acusado, em ato secreto e exclusivo do juiz, onde o
Ministério Público e a parte civil poderiam apenas sugerir perguntas, devendo o acusado jurar
responder às perguntas que lhe forem formuladas, podendo lhe ser permitido o
acompanhamento de defensor. Na segunda fase, iniciada por um auto baseado na informação
obtida pelos interrogatórios da primeira fase. Em nova audiência secreta eram ouvidas as
testemunhas em nova audiência secreta. Na terceira fase é facultado às partes privadas a troca
de petições e documentos. A tortura era método de obtenção de provas adotado desde que não
tivesse provas suficientes para a condenação capital ou para que o condenado à pena de morte
revelasse os mandantes ou cumplices do crime. O sistema elaborado pelas Ordenações
Criminais Francesas de 1670 denotam a adoção de um modelo perfeitamente inquisitório
marcado pelo tecnicismo cuja obsessão inquisitorial chega a uma pureza metafísica.
(CORDERO, 2000, p. 26-34). ―As Ordenações Criminais de 1670 persegue o objetivo das
ordenações anteriores que, gradualmente, por suas regras, isolaram o acusado contra um
220

juiz investigador cujos poderes estavam se afirmando.‖102 (FEROT, 2016, p.54, tradução
livre). Vê-se que as ordenações de 1670 não são um modelo forjado por Luís, mas construído
ao longo dos séculos e que seguia o caminho inquisitorial dos modelos antecedentes, que
mantinham a adoção de sistemas inquisitórios, configurando, portanto, um monumento
inquisitório em sua pureza plena.
Importante destacar que as Ordenações Criminais de 1670 representou uma
uniformização do direito de seu tempo, tendo restringido o emprego da tortura, ao determinar
que as decisões que permitissem seu emprego somente pudessem ser executadas após
confirmação do tribunal. O Código de Luís também determinou que a condenação às penas
corporais, de galés, banimento perpétuo ou confissão pública somente fossem executadas após
a confirmação pelo tribunal e minimizou a criminalização da heresia. Além disso criou uma
estrutura procedimental de partes, ao determinar que a acusação fosse feita pelos procuradores
do rei. (POLI, 2018, p. 228-229)
Porém, simples existência de partes não determina a existência de um sistema
acusatório, como dito no capítulo inicial e com base na obra de Franco Cordero (1986, p. 47),
não basta a existência de partes para a definição do sistema adotado, o que definirá o sistema
são seus protagonistas, se são as partes e estas detêm a participação ativa na construção do
provimento e gestão da prova teremos um modelo processual de partes (acusatório ou
adversarial); se o protagonista é o juiz, suprimindo a função das partes, mesmo que tenhamos
a existência de partes, estaremos diante de um modelo inquisitorial.
A ausência de acusação privada fazia com que o processo tivesse início de ofício pelo
juiz, porém o exercício da ação penal se dava pelo Ministério Público, porém, tal separação
entre acusação e julgamento, por si só, fora incapaz de alterar o sistema processual adotado,
que permaneceu inquisitivo (ILLUMINATI, 2008, p. 140-141). O modelo trazido pelo
Código de Luís foi associado a um modelo cartesiano do método científico, no qual o
investigador, utilizava de ferramentas forenses e técnicas experimentais para a busca da
verdade (VOGLER, 2008, p. 184). Nesse modelo há a adoção de modelos formais de
produção da prova que, contudo, permanecia nas mãos do julgador e que poderia decidir,
conforme sua convicção sobre o caso e a solução que desejava chegar, qual seria o caminho a
seguir e as provas que seriam necessárias.
Porém a aproximação do modelo inquisitorial do ordenamento jurídico processual

102
No original: ―L'Ordonnance criminelle de 1670 poursuit la finalité des précedentes ordonnances qui
progressivement, par leurs règles, isolèrent l'accusé face à un juge intructeur dont les pouvoirs allaient en
s'affirmant.‖ (FEROT. 2016, p. 54)
221

penal francês não aconteceu da noite para o dia. Como aponta Camilin Marcie de Poli (2016,
p. 136) ela se deu ao longo de uma evolução de três séculos, desde as Ordenações de Luis XII
(1498); passando pelas Ordenações de Francisco I (agosto de 1536 e 1539); de Francisco II
(1560) e de Henrique III (1579), sendo codificados em 1670 por Luís XIV através de um
sistema inquisitorial puro.
Vale salientar que a partir do século XV a influência da jurisdição eclesiástica foi
sendo reduzida e a jurisdição secular passou a ganhar cada vez mais espaço, principalmente
com o fortalecimento das monarquias absolutas e a estruturação de uma justiça profissional e
a determinação do lugar do fato como critério de determinação da competência (PRADO,
2006, p. 83). Tal fato decorre da busca pela laicização do conhecimento e das descobertas
científicas que colocavam em xeque o saber sacralizado o que o levou à crise (POLI, 2016, p.
132).
As Ordenações de 1670 são parte de uma codificação uniforme em um quadro comum,
trazendo os princípios das Ordenações de 1498 e de 1539, regras doutrinarias esparsas e
práticas judiciárias comuns (FEROT, 2016, p. 51). Assim, as normas de 1670, reforçavam a
jurisdição real e agravava as penas existentes nas codificações que lhe antecederam. Os
abusos cometidos pelos monarcas e pelo modelo de persecução penal que a elite intelectual
passou a denunciá-los através do movimento iluminista, como destaca Mauro Fonseca
Andrade na apresentação do Código de Instrução Criminal de 1808, porém a inquisitoriedade
da legislação de 1670 não era compatível com as ideias iluministas, que combatiam a
intolerância religiosa e, obviamente notaram a influência da inquisição religiosa no
inquistorialismo da persecução penal da época, sendo estes um dos motivos que levaram à
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1790. (ANDRADE, 2008, p. 17)
No contexto em que se desenvolveu a Revolução Francesa, o aparelho inquisitorial
passou a ser incompatível com a nova estrutura do Estado, as novas ideologias impunham que
se construísse um novo processo penal que permitisse a efetiva tutela do cidadão.
(CORDERO, 2018, p. 19)
Nos ordenamentos europeus, numa era que se desenvolve desde a Revolução
Francesa, aconteceu algo de muito importante: o aparelho inquisitorial parecia
incompatível com a mudada estrutura do Estado; as ideologias então afirmadas
impunham a construção do processo de tal modo a permitir uma tutela efetiva do
cidadão. (CORDERO, 2018, p. 19)

A imposição das novas ideologias oriundas do iluminismo levou ao fim da dualidade


do processo penal que se dividia entre o processo penal estatal e o eclesiástico. Porém, as
influências da inquisição religiosa já estavam sedimentadas na mentalidade e dominavam o
222

processo penal estatal. Entretanto, um modelo inquisitorial também era contra as ideias de
liberdade postuladas pelos iluministas, urgindo, portanto uma reforma mais profunda do
processo penal.
Nesse cenário, os pensadores iluministas defendiam que o poder não poderia ser
baseado em dogmas e não poderia ser concedida força política aos dogmas, tendo a religião
como principal alicerce do dogmatismo que impediria a livre inspeção das verdades.
Entretanto, o Iluministmo não defendia o ateísmo, mas a desvinculação do Estado e da
Religião. (GRESPAN, 2017, p. 40-41)
Assim, a desvinculação entre Estado e religião passava obrigatoriamente pelo processo
penal, obrigando o Estado a assumir o direito de punir de forma exclusiva e abandonando a
dualidade entre ele e os tribunais da inquisição eclesiástica.
Visando acabar com a inquisitoriedade das Ordenações de 1670, em Setembro de 1791
as velhas ordenações foram derrogadas e foi elaborado um complicado modelo de forma
acusatória. Para tanto, o modelo de 1791 adotou técnicas do sistema acusatório inglês. Nesse
modelo, as declarações eram recolhidas pelo juiz de paz e não figuravam nos autos e nem
influíam no processo, servindo exclusivamente para a verificação da viabilidade da
persecução penal perante os jurados, que, em número de oito, ouviam os depoimentos e liam
os autos, decidindo por maioria. Não havia Ministério Público, sendo as funções de acusação
desenvolvidas pelos comissários do rei, que tinham a atribuição de exercer a ação penal,
contudo, não herdaram todos os poderes ministeriais. Além dos comissários, a ação penal
também poderia ser exercida pelo particular, vítima ou denunciante. Os oito jurados faziam
um juízo de admissibilidade da acusação e, caso seja positivo, o caso passava a um tribunal
composto por quatro magistrados e um júri de doze jurados decidiam se o acusado era
culpado ou inocente, de forma que para o veredito condenatório era necessário pelo menos
dez votos, e a decisão era tomada com base nas provas apresentadas pelas partes e, caso o réu
fosse condenado, os quatro magistrados decidiam sobre a pena. Todo procedimento se
realizava oralmente, sem atas. Era uma reforma radical que, contudo, não prosperou.
(CORDERO, 2000, p. 35; 1986, p. 61)
Nesse modelo, em conformidade com os ideais reformistas do movimento iluminista
que era incompatível com o modelo inquisitorial que centralizava os poderes nas mãos dos
julgadores e buscava um modelo menos centralizador onde as partes eram os protagonistas, o
que acabaram encontrando no modelo acusatório. Contudo, a reforma não agradou àqueles
que subiram ao poder, uma vez que o modelo inquisitório, ao centralizar no Estado o poder do
processo penal acaba por permitir o controle sobre a própria punição e o controle social de
223

escolher os que serão punidos. Assim, o modelo inquisitorial serve melhor àqueles que
desejam conservar o próprio poder e exercer o domínio sobre os demais através da força do
processo penal. Os modelos secretos inquisitoriais e o emprego de tortura foram duramente
criticados por Beccaria em sua obra clássica ―Dos Delitos e das Penas‖, que afirma citando
Montesquieu que ―as acusações públicas são mais conformes à república, onde o bem
público deveria construir a primeira paixão dos cidadãos‖ (BECCARIA, 1999, p. 60).
Beccaria defende a presunção de inocência e desconstrói o emprego da tortura para obter a
confissão, a descoberta de outros delitos ou a entrega de comparsas (BECCARIA, 1999, p.
61-66), construindo um raciocínio inaplicável ao procedimento inquisitório e apenas viável
em um sistema acusatório. Em síntese, o iluminismo penal foi um movimento contrário à
estrutura inquisitorial e que clamou por reformas no sistema. Como destacou Giullio
Illuminati:
É natural que a Revolução Francesa inspirada no pensamento iluminista, trouxera
consigo, ao menos inicialmente, a adoção de um sistema acusatório baseado em uma
ampla participação dos cidadãos nos órgãos judiciais, em coerência com o recobrado
papel central dos indivíduos e o reconhecimento de seus direitos fundamentais. 103
(ILLUMINATI, 2008, p. 141, tradução livre)

A Revolução Francesa tem início com uma revolta dos privilegiados que, sem saber,
deram início ao processo revolucionário contra os próprios privilégios e o regime de
monarquia absolutista de Luis XVI. A revolta dos privilegiados abriu caminho para a revolta
antinobiliária e a revolução antimonárquica, que culminou na queda do regime absoluto e a
ascensão de Napoleão ao poder. (RÉMOND,1976, p. 116-120)
A grande crítica dos revolucionários franceses ao processo penal vigente no Antigo
Regime se referia aos mecanismos punitivos vigentes até então, que nada mais eram senão
instrumentos de manutenção da ordem classista e desigual, quando competia ao judiciário o
triste papel de garantidor do status de injustiças (PRADO, 2006, p. 90-91). A Revolução
Francesa teve por estopim a grave desigualdade entre a nobreza, o clero e o denominado
―terceiro estado‖ que era composto pela plebe e burguesia. Além das desigualdades sociais, o
crescente abuso de poderes do Estado Absoluto que fazia com que as desigualdades se
agravassem e causava ainda mais revolta na nos membros do ―terceiro estado‖, sobretudo na
burguesia. Porém, em uma análise restrita mão se poderia dizer que a Revolução Francesa
colocou fim ao antigo regime, uma vez que durante o século XIX monarquias absolutistas

103
No original: ―Es natural que la Revolución Francesa, inspirada en el pensamiento iluminista, trajera
consigo, al menos inicialmente, la adopción de un sistema acusatorio basado en una amplia participación de
los ciudadanos en los órganos judiciales, en coherencia con el recobrado papel central del individuo y el
reconocimiento de sus derechos fundamentales.‖ (ILLUMINATI, 2008, p. 141)
224

seguiram dominando a Europa (TENENTI, 2011, p. 438-459), porém, não se pode deixar de
reconhecer sua importância na mudança de paradigma do Estado absolutista para o Estado de
Direito. Desse modo, um processo penal que assegurasse a desigualdade e a seletividade não
atendia aos interesses revolucionários e não poderia ser mantido após a revolução. Assim
sendo, os doutrinadores políticos do século XVIII se interessaram pelo processo penal inglês
como resposta alternativa ao processo penal do denominado antigo regime (LANGER, 2017,
p. 309-310).
Os ideais da Revolução Francesa foram retratados na Declaração de Direitos do
Homem e do Cidadão de 26 de agosto de 1789, que previa normas básicas de direitos
humanos, como por exemplo o princípio da presunção de inocência. Tal declaração não
poderia conviver com um modelo das Ordenações inquisitoriais puras de 1670, sendo
necessária a reforma de 1791 que resgatou o modelo romano para adotar o sistema acusatório.
Ou, nas palavras de Luigi Ferrajoli:
A batalha cultural e política contra a irracionalidade e o arbítrio desse procedimento
forma um dos motivos animadores de todo o iluminismo penal reformador. De
Thomasius a Montesquieu, de Beccaria a Voltaire, de Verri a Filangieri e a Pagano,
todo o pensamento iluminista concordou com a denúncia da desumanidade da
tortura e do caráter despótico da inquisição, assim, como com o redescobrimento dos
valores garantistas da tradição acusatória, tal como foi transmitida do antigo
processo romano ao ordenamento inglês. Foi portanto natural que a Revolução
Francesa adotasse – na oportunidade imediatamente seguinte a 1789 – o sistema
acusatório, baseado na ação popular, no júri, no contraditório, na publicidade e
oralidade do juízo e na livre convicção do juiz. (FERRAJOLI, 2006, p. 521)

Contudo, reforma de 1791 durou pouco, sendo substituída pelo Código dos Delitos e
das Penas de 25 de outubro de 1795 que devolve o modelo ao passado, adotando um modelo
inquisitorial e estabelecendo o monopólio público da ação penal e dando competência
instrutória ao presidente dos jurados, que era similar ao que viria a ser o juiz instrutor do
Código de 1808, competindo a ele a descoberta da ―verdade‖. Ressurge a instrução escrita,
cujos materiais escritos pesam no debate, pois se admite a leitura das declarações quando a
testemunha mudasse sua versão. A reforma representa uma resposta inquisitória, vez que o
juiz atua sozinho, fora do debate contraditório, elaborando a matéria do processo que era lida
nos debates quando se impunha a oralidade. (CORDERO, 2000, p. 35-36)
O Código de 1795 derivou das radicais mudanças políticas e reestabeleceu a instrução
escrita e secreta, eliminando a figura do acusador público (ILLUMINATI, 2008, p. 142),
dessa forma foi retomado um modelo de concentração de poderes nas mãos do julgador e,
consequentemente, o modelo inquisitório. Dessa maneira o modelo acusatório construído em
1791 foi sendo desintegrado, primeiro pelo Código de 1795 e posteriormente pelo de 1808,
225

reformas que substituíram o júri por um sumário escrito e secreto conduzido de ofício pelo
juiz de instrução (POLI, 2016, p. 154).
Apesar de que a oralidade seja uma característica do modelo acusatório, ela por si só é
incapaz de alterar o sistema, eis que demanda outros elementos, sobretudo referentes à
centralização dos atos procedimentais. Assim, não basta apenas uma parte de um
procedimento oral para ter-se um sistema acusatório, a oralidade acompanhada da
centralização da decisão nas mãos do juiz é a simples adoção de um modelo oral e
inquisitório.
Mauro Fonseca Andrade (2008-b, p. 18) aponta que o fato de se adotar um sistema
centrado na acusação por um acusador popular acabou por repetir os mesmos erros do sistema
acusatório romano, como agressões e ameaças ao acusador particular e seus familiares. Tal
fato levou à redução do número de acusações e ao aumento da violência. Porém, a relação
entre número de punições e sistemas é falsa, eis que o sistema processual define a forma de se
punir e não determina um número maior ou menor de punições. Porém o modelo inquisitório
seleciona os que serão punidos ao gosto daquele que detém o poder punitivo enquanto o
sistema acusatório busca em um modelo onde a punição se dê quando se mostrar necessário.
Além disso, como ficou claro através da construção do processo penal romano, durate sua
longa história os sistemas se alternaram e se misturaram, sendo que Roma criou os sistemas
tendo a Idade Média aperfeiçoado o sistema inquisitório.
Dessa forma, mais uma vez sob o argumento de crescimento da criminalidade e da
violência, tal qual fora usado para derrubar o modelo acusatório em Roma na passagem da
República para o Império, ou como foi usado na idade média em relação à heresia pela
inquisição eclesiástica e que fora aproveitado pelos reis absolutistas para se estabelecerem. O
modelo inquisitivo sempre esteve ao lado de regimes autoritários, pois favorecem àqueles que
detém o poder e desejam o controle social. Nesse contexto, a consolidação do governo
ditatorial de Napoleão necessitava de um sistema de poder concentrado e que pudesse punir
aqueles que fossem contrários ao regime que se instituía, assegurando assim sua consolidação.
O novo código começou a ser desenhado entre os meses de março e julho de 1801
pelos Comissários Viellard, Targuet, Oudart, Treilhard e Blondel, entrando em vigor, em
1808. O Código Napoleônico manteve o processo penal nas mãos exclusivas do Estado,
porém, resgatou a inquisitoriedade vigente nas Ordenações de 1670, entretanto, se por um
lado o ditador Napoleão necessitava do controle punitivo proporcionado pelo sistema
inquisitório, por outro não poderia adotá-lo de forma expressa, pois o modelo era contrário ao
pensamento revolucionário francês. Como ressalta Camilin Marcie de Poli, dessa forma, ―o
226

sistema inquisitório religioso se transformou no inquisitório laico, paradigma processual


fundamental à centralização do poder real e posteriormente do Estado absolutista
oitocentista.‖ (POLI, 2016, p. 152).
Narrando a tramitação do Código de 1808, Camilin Marcie de Poli afirma que:
Napoleão interveio e adotou a ideia que de fossem levadas aos jurados as cópias da
investigação preliminar (information) – registros policiais excluídos – sob o
argumento de que enquanto a polícia instruía com a intenção de descobrir todas as
circunstâncias do crime e todos os culpados, o juiz instrutor buscava somente a
verdade dos fatos. Como se pode perceber, Napoleão já demonstrava o interesse pela
conservação da estrutura inquisitória, e buscava influenciar os membros na votação.
(POLI, 2016, p. 161)

Camilin Marcie de Poli aponta em outra obra que:


É importante notar que, durante as discussões e a votação do projeto do Código de
Instrução Criminal de 1808, o campo político prevaleceu sobre o campo jurídico,
uma vez que a construção do modelo misto de processo foi demasiadamente
influenciada por Napoleão e por Cambacéres, os quais buscaram (e conseguiram)
manter o poder em detrimento da cidadania. (POLI, 2018, p. 231-232)

O retorno ao modelo inquisitorial veio através do Código de Instrução Criminal de


1808, obra de Napoleão Bonaparte, que divide o processo penal em duas fases: a primeira
inquisitorial e a segunda com a estrutura acusatória. Porém, ao permitir o ingresso do produto
da fase inaugural na segunda fase acaba por mudar a estrutura sem mudar a inquisitoriedade.
―Este modelo de duas fases será o arquétipo dos sistemas continentais nos dois séculos
seguintes.‖104 (CORDERO, 2000, p. 36, tradução livre)
Contudo, como ressalta Franco Cordero:
Em vez de reformar o processo, ele foi dividido: a um procedimento sem
contraditório foi acrescido outro em que disputa é admitida, e, da soma dos dois,
saiu a simbiose que é comumente chamado de ―processo misto‖. O primeiro
confiado a um juiz instrutor, foi chamado de ―istruzione‖; ao segundo foi concebido
o nome dibattimento; um está voltado a operações secretas documentadas por escrito
(o sentido religioso das atas, típico do estilo inquisitorial, é um produto de cautela,
desconfiança, escrúpulo exasperado); o outro, destinado a reviver os fatos descritos
nos protocolos do instrutor. (CORDERO, 2018, p. 19)

Ou, na feliz síntese de Camilin Marcie de Poli (2018, p. 236), com o Código
Napoleônico as Ordenações de 1670 voltaram à vida e restaram sepultados todos os ideais da
Revolução, que foram enterrados pelos mecanismos criados por Napoleão e Cambaérès.
Conforme aponta Giulio Illuminati (2008, p. 142), o Código Napoleônico representou
a evolução da antiga Ordonnance criminelle, constituindo um sistema completamente novo

104
No original: ―Este modelo de dos períodos será el arquetipo de los sistemas europeos continentales em los
dos siglos siguientes.” (CORDERO, 2000, p. 36)
227

que seria o modelo dos códigos continentais dos séculos XVIII e XIX105 e que seria
qualificado posteriormente como misto por se dividir em uma fase acusatória e uma fase
inquisitória. O primeiro ordenamento jurídico a adotar esse sistema misto foi o Código de
Instrução Criminal francês de 1808, que, posteriormente foi difundido por todo o mundo
(LOPES JÚNIOR, 2017, p 40). No modelo napoleônico, também denominado de acusatório
formal, um órgão do Ministério Público, que pertence ao Executivo, é encarregado da
acusação, porém ao judiciário é atribuída a competência de investigar e iniciar o processo
(DEU, 2008, p.115; 2012, p. 65). No resumo de Camilin Marcie de Poli (2016, p. 179) as
inquisitórias Ordenações Criminais de 1670 foram ressuscitadas pelo Código de Instrução
Criminal de 1808, que jogaram por água a baixo os ideais da Revolução Francesa através dos
meios adotados por Napoleão, o código
restou de um aparato político movido pela vontade de poder, que manteve a gestão
da prova concentrada nas mãos do juiz e possibilitou a utilização de elementos
obtidos unilateralmente e sem contraditório na fase processual. Eis a fraude criada
pelo modelo napoleônico de processo. (POLI, 2016, p. 180)

A separação do procedimento em duas fases implementou o fim da prova tarifada e a


adoção do modelo de livre convencimento do juiz, tornando desnecessária a tortura como
meio de se obter a confissão. Com a criação de um órgão público acusador permitiu-se a
distinção das funções de acusador e julgador. Geraldo Prado descreve o procedimento penal
do código napoleônico:
O novo sistema, que principiou sua atuação na França, em seguida à revolução, para
com as guerras napoleônicas chegar a outros países, disciplinava o processo penal
em duas fases. Na primeira delas, denominada instrução, procedia-se secretamente,
sob o comando de um juiz, designado juiz-instrutor, tendo por objetivo pesquisar a
perpetração das infrações penais, com todas as circunstâncias que influem na sua
qualificação jurídica, além dos aspectos atinentes à culpabilidade dos autores, de
maneira a preparar o caminho para o exercício da ação penal; na segunda fase,
chamada de juízo, todas as atuações realizavam-se publicamente, perante um
tribunal colegiado ou júri, com a controvérsia e o debate entre as partes, no maior
nível possível de igualdade. (2006, p. 91)

Da necessidade de se criar uma parte para proporcionar um modelo acusatório na


segunda fase procedimental é que se cria o Ministério Público na forma moderna, pois ―essa

105
O Código Napoleônico inspirou, por exemplo o Código de Processo Penal alemão através das Ordenações
Processuais Penais da Prússia de 1846 (AMBOS, 2008, p. 63-64); a Lei Processual espanhola, ainda
parcialmente vigente (ANITÚA, 2017, p. 367); bem como do o Código de Processo Penal do Reino Piamontês
de 1847 e 1859, Código de Processo Penal Italiano de 1865, de 1913 e de 1930 (ILLUMINATI, 2008, p. 143)
e do Código de Processo Penal brasileiro, vigente desde 1941 até os dias atuais. Valendo a ressalva de Geraldo
Prado: ―Assim, apesar de um primeiro momento de reformas processuais ter-se voltado à oralidade, o século
XIX e o XX viram florescer os processos penais da matiz europeia continental (de que o nosso Código de
Processo Penal de 1941 é herdeiro direto) construídos em cima de estruturas burocráticas da Inquisição.‖
(PRADO, 2006, p. 157)
228

necessidade de dividir a atividade estatal exige naturalmente, duas partes. Surge da


necessidade do sistema acusatório e garante a imparcialidade do juiz.‖ (LOPES JÚNIOR,
2017, p. 40). Como restou demonstrado, porém, o Ministério Público encontrava-se previsto e
com funções criminais já nas Ordenações Manuelinas, que são anteriores ao Código de
Instrução Criminal de 1808, entretanto, o que o código napoleônico cria é a estrutura onde o
Ministério Público atuará como parte na segunda fase procedimental, visando separar as
funções de acusar e julgar e dar uma aparência acusatória a um modelo inquisitorial,
sobretudo sob o discurso de ser uma ―parte imparcial‖. Vale transcrever a lição de Franco
Cordero
Na época moderna, o Ministério Público constitui um produto napoleônico, herdado
loco pela restauração; se converte em um funcionário do governo, que atua dentro de
uma estrutura burocrática, e exerce o monopólio da ação penal; 106 (CORDERO,
2000, p. 155, tradução livre)

A estrutura do Código de Instrução Criminal de 1808, composto por 643 artigos,


divididos em disposições preliminares, composta por sete artigos e dois livros, que o primeiro
livro é dividido em nove capítulos e o segundo livro em sete títulos, cada qual dividido em
capítulos.
As disposições preliminares estabelecem as regras de aplicação da lei processual penal
francesa, adotando o critério da territorialidade, bem como regras de extraterritorialidade.
Estabelece ainda, no art. 2 que a ação penal será pública.
O primeiro livro trata da polícia judiciária, atribuindo a ela a investigação criminal, em
seu artigo 8º. Sendo que os procuradores imperiais os responsáveis pelo controle externo da
polícia, conforme o art. 22, que faz parte do capítulo IV destinado aos procuradores imperiais
e seus substitutos, sendo que os procuradores imperiais detinham a atribuição de exercer a
ação penal nos crimes cometidos em território francês.
O juízo de instrução está regulado no capítulo VI do Código Napoleônico, entre os
artigos 55 e 90. Conforme o artigo 55 a instrução será realizada perante o juiz instrutor, que
era escolhido pelo imperador. Os juízes de instrução exerciam a atividade investigatória e
eram supervisionados pelos procuradores gerais imperiais, conforme art. 56. Toda a
investigação se dava perante o juiz de instrução, em procedimento formal e escrito. O marco
inquisitorial do juízo de instrução constrói a alma do código, sendo que os artigos. 87 e 88
permitem ao juiz de instrução, de ofício ou a requerimento, ir em busca de das provas que

106
No original: ―En la época moderna, el ministerio público constituye un producto napoleónico, heredado
luego por la restauración; se convierte en un funcionario del gobierno, que actúa dentro de una estructura
burocrática, y ejerce el monopolio de la acción penal‖. (CORDERO, 2000, p. 155)
229

entendesse necessárias ao descobrimento da verdade. O referido artigo 87 traduz bem o


espírito inquisitorial que dominava a primeira fase do procedimento, adotando o sistema
inquisitório em sua pureza tal qual a inquisição eclesiástica e contendo elementos de um
procedimento onde o juiz é o protagonista, indo em busca da prova que lhe conviesse para
provar aquilo que entendia ser a verdade.
Trata-se de um procedimento escrito e secreto, com objetivo exclusivo de se perquirir
os fatos como o instrutor entendesse terem ocorrido, sendo adotado modelo similar ao das
Ordenações de 1670, com apenas a diferença de se permitir testemunhos de defesa.
(CORDERO, 1986, p. 71)
O juiz de instrução deveria relatar semanalmente seus atos de investigação, sendo o
relatório enviado à Câmara do Conselho, integrado pelo próprio juiz instrutor e outros dois
juízes (art. 128). Caso os juízes entendessem não ter ocorrido crime ou contravenção, o
imputado seria colocado em liberdade, sendo a prisão processual a regra do sistema
napoleônico, outra característica típica de modelos inquisitoriais.
Todavia, se no seu relatório o juiz instrutor, ou qualquer dos juízes da Câmara do
Conselho, entendessem que o fato era passível de ser punido com penas aflitivas ou
infamantes, havendo lugar a acusação (oui, il y lieu), remetiam os autos ao
Procurador Geral para que este, junto à Corte Imperial (chambre d‟accusation),
procedesse à acusação. Assim, tratando-se de fato definido como crime e
entendendo existir fundamento suficiente para a acusação, caberia à Corte Imperial
decidir se o imputado seria ou não submetido à Corte de Assises (Court d‟assises)
ou à Corte Especial, a qual teria competência. (POLI, 2016, p. 166)

Ao final da investigação, o juiz de instrução deveria fazer um relatório à Câmara do


Conselho relatando os atos realizados e os resultados do inquérito, sendo o relatório
comunicado ao Procurador Imperial para que pudesse promover o início da segunda fase.
Da instrução ao debate ―se passa da escuridão à luz plena‖; ali se tratava se um
labirinto escuro e secreto, por completo parcializado e rodeado por interesses
repressivos como queria as Ordenações criminais; aqui tudo é publicidade, debates
orais, defesa livre e plena discussão.107 (CORDERO, 2000, p. 58, tradução livre)

O Código de Instrução Criminal divide a segunda fase em dois tipos de juízo, o dos
Tribunais de Simples Polícia, cuja competência é atribuída aos juízes de paz e devem julgar as
contravenções penais (Livro II, Título I, Capítulo 1º - art. 137-178) e o dos tribunais de
correção, com competência para julgamento dos crimes com pena superior a cinco dias de
prisão (Livro II, Título I, Capítulo 2º - art. 179-216). O primeiro é um rito sumário cujo juiz

107
No original: ―De la instrucción al debate „se pasa de la oscuridad a la luz plena‟; allí se trataba de un
laberinto oscuro y secreto, por completo parcializado y rodeado por intereses represivos, como lo quería la
Ordenanza criminal; acá, „todo es publicidad, debates orales, libre defensa y plena discusión.” (CORDERO,
2000, p. 58)
230

de paz julgará monocraticamente, enquanto o segundo, destinado a crimes mais graves é o rito
ordinário aplicado à maior parte dos crimes e de competência do júri em uma fase que busca a
adoção de todas características de um modelo acusatório.
O rito do julgamento pelos Tribunais de Simples Polícia está previsto no art. 153 do
Código de Instrução Criminal, segundo o qual o processo deve ser público e oral,
possibilitando, contudo, a leitura do que fora produzido na fase inquisitorial. Conforme o art.
154, a prova das contravenções poderia ser feita tanto pela leitura das atas e relatórios
produzidos na primeira fase do procedimento ou através das testemunhas, que deveriam ser
ouvidas em audiência (art. 155), quando não houvesse atas ou relatórios oriundos da fase
anterior.
Por sua vez, o rito dos Tribunais de Correção era adotado para o julgamento da maior
parte das infrações penais mais graves, que adotava um julgamento público (art. 190) e
colegiado por três juízes (art. 180). O código estabelece, para a segunda fase, garantias
mínimas vinculadas ao direito de defesa, como o prazo mínimo de três dias entre a citação e o
julgamento, sob pena de nulidade da condenação (art. 184). A prova nos tribunais de correção
era feita da mesma forma que nos tribunais de simples polícia, sendo que o art. 189 remete
aos dispositivos referentes a esses tribunais. Ou seja, a prova era produzida por atas ou
relatórios da primeira fase ou, em sua falta, através de provas testemunhais. O julgamento
perante os Tribunais de Correção somente teria início por provocação dos procuradores
imperiais (art. 197).
O título II trata dos casos que deveriam ser levados a julgamento pelo júri, outra
característica de um modelo acusatório. A acusação no júri vem regulamentada entre os
artigos 217 e 250 do Código Napoleônico. No júri, composto por doze jurados (art. 393), toda
prova poderia ser produzida e o acusado tinha direito de defesa em uma estrutura plenamente
acusatória, contudo, permitia-se a utilização dos elementos colhidos pelo juiz de instrução na
fase inicial e inquisitória do processo. A formação do júri é regulada no capítulo II, que
abrange os artigos 251-290. As seções do júri eram compostas por cinco juízes, sendo um o
juiz presidente (art. 252), cujas funções se encontram dispostas nos artigos 266-270. A
acusação no júri era exercida pelo Procurador Geral Imperial, portanto, de forma separada
daqueles que competiria o julgamento. Na segunda fase o acusado tinha direito de defesa
técnica por advogado de sua escolha, caso não indicasse um o juiz deveria nomear sob pena
de nulidade dos atos seguintes (art. 294 e 295), sendo que a defesa poderia ter acesso e usar
no julgamento peças do processo produzidas na primeira fase (art. 305). Por fim o julgamento
se dava pela resposta aos quesitos estabelecidos nos artigos 337 a 340.
231

Dessa forma, o julgamento na segunda fase, que se dava perante a Corte de Assises e
na presença dos jurados, se dava de forma pública, oral e contraditória, havendo a
participação da defesa. (POLI, 2016, p. 168)
Conforme aponta Franco Cordero (2000, p. 58), o artigo 267 dá ao juiz presidente
poderes discricionários em razão dos quais poderia tomar todas as medidas que entendesse
necessárias para o descobrimento da verdade, dando a lei todos os instrumentos para que ele
pudesse atingir tal objetivo.
O acusado somente era acompanhado por guardas se houvesse alguma ameaça de fuga
(art. 310). No julgamento, o juiz presidente tinha por obrigação tomar compromisso dos
jurados (art. 312), tal qual se realiza no atual rito do júri do processo penal brasileiro. Após o
compromisso dos jurados, o juiz deveria relembrar o conteúdo da prova produzida na primeira
fase ao acusado (art. 314) e o procurador geral deveria expor a acusação apresentando a lista
de testemunhas, à quais poderiam ser contraditadas pelas partes. As testemunhas prestavam o
depoimento oral e individualmente (art. 317) e o presidente do júri garantia que
permanecessem em sala separada (art. 316). Contudo, as testemunhas do acusado somente
prestavam depoimento se o acusado pagasse as custas para tal fim, salvo se o acusado as
indicasse ao Procurador Geral e este entendesse que o depoimento era relevante ao
descobrimento da verdade (art. 321). Após cada testemunha ser ouvida, o juiz perguntava ao
acusado se ele queria se manifestar em relação àquilo que havia sido dito pela testemunha
contra ele, efetivando o contraditório na segunda fase do procedimento, podendo o juiz
formular perguntas que entendesse pertinentes à testemunha, em busca da verdade, o que
aproxima a segunda fase de um modelo inquisitivo (art. 319).
Poderia haver premiação por denúncia do crime praticado por outrem, podendo haver
premiação pela delação (art. 323). Nesse caso, o denunciante poderia ser ouvido no júri,
devendo o juiz presidente apenas esclarecer ao júri essa condição do denunciante.
O juiz presidente deveria fazer com que o acusado se manifestasse sobre todas as
peças capazes de formar a convicção pela condenação (art. 328-329). O que aparenta uma
forma de efetivação do contraditório, na realidade, esconde um dos dispositivos que deixam
clara a inexistência de um processo penal de partes no Código de 1808. O acusado poderia se
manifestar sobre as peças, porém sua manifestação servia apenas para aparentar a
legitimidade da decisão que já estava tomada antes da manifestação, pouco importava o
conteúdo da manifestação já que o juiz já formara seu convencimento com base naqueles
elementos que determinou a manifestação do acusado.
O Código de Instrução Criminal determina que aquele que fosse absolvido deveria ser
232

posto imediatamente em liberdade (art. 358), além de vetar expressamente novo julgamento
após a absolvição (art. 360).
Verifica-se que na segunda fase do procedimento do Código de Instrução Criminal é
adotado um modelo onde a acusação deveria provar a imputação, dando direito ao acusado de
acesso às provas e de defender-se, pessoal e tecnicamente, em um julgamento oral e pelo júri,
adotando-se nessa fase um aparente modelo acusatório. Porém, a adoção dos elementos
formados na primeira fase faz com que o acusado já ingresse na fase processual condenado
pela prova produzida na fase procedimental-inquisitorial. A prova da fase inicial será
reaproveitada e utilizada como prova hábil a formar o convencimento do juiz, sendo que a
prova da fase inquisitória foi produzida sem qualquer participação da defesa e de forma a
comprovar a hipótese formada pelo juízo de instrução. Assim, a segunda fase apenas tem por
escopo a legitimação da versão criada pelo juiz de instrução que, de forma solipsista, decide
de antemão a hipótese da acusação e passa a buscar elementos que confirmem tal hipótese,
sendo que tais provas quando levadas para a segunda fase apenas vão fundamentar uma
decisão com aparência de participação mas que tem por detrás a decisão do próprio juiz de
instrução que presidiu sozinho a fase inicial.
Por fim, o Código de Instrução Criminal dedica o Título III às nulidades (Capítulo I,
artigos 407-415), aos recursos de cassação (Capítulo II, artigos 416-442) e as demandas de
revisão (Capítulo III, artigos 443-447, com escopo de rever as decisões definitivas. Por sua
vez, o título IV, artigos 448-552, é dedicado aos procedimentos especiais (denominados de
procedimentos particulares), sendo o capítulo primeiro (artigos 448-464) dedicado às provas
falsas; o capítulo segundo trata da contumácia (artigos 465-478), destinada aos acusados que
não comparecessem no processo e tinham por consequência a possibilidade de que o Tribunal
suspendesse os direitos de cidadão do acusado; o capítulo III (artigos 479-503) trata dos
procedimentos dos crimes cometidos por juízes, tanto no exercício funcional como fora,
estabelecendo um procedimento criminal autônomo destinado ao processamento dos juízes; o
Capítulo IV (artigos 504-509) trata do procedimento destinado aos crimes contra o respeito às
autoridades constituídas, quando poderia ser imposta pena antecipada sem que pudesse ser
cabível apelação ou recurso, o que demonstra o autoritarismo por trás do Código
Napoleônico; já o capítulo V (art. 510-517) trata do procedimento adotado para se colher o
depoimento dos membros da família real em matéria criminal; o capítulo VI (artigos 518-520)
aborda o reconhecimento da identidade dos indivíduos condenados, fugitivos e recapturados;
o capítulo VII (artigos 521-524) regulamenta o procedimento para os casos de destruição ou
desaparecimento, total ou de peças, do caso. Já o título V regulamenta estabelece os
233

regulamentos que devem seguir os juízes (capítulo primeiro, artigos 525-541) e as regras que
regulam a relação entre tribunais diferentes (capítulo II, artigos 542-552).
O Título VI regulamenta os tribunais especiais, sendo construído sobre um único
capítulo e em cinco seções, sendo que a primeira seção (artigos 553-565) estabelece a
competência dos tribunais especiais para o julgamento dos vagabundos, pessoas sem
confissão e condenados a penas aflitivas ou infamantes (art. 553); os crimes de rebelião
armada contra as forças armadas, contrabando de armas, dinheiro falso e assassinatos também
eram julgados pelos tribunais especiais (art. 554); a segunda seção (artigos. 566-572) prevê a
instrução e o procedimento anteriores aos debates; a terceira seção (artigos 573-579) do
exame das causas de competência dos tribunais especiais; a seção IV estabelece as regras
referentes aos julgamentos dos tribunais especiais (art. 580-597); por fim a seção V, composta
dos artigos 598 e 599 trazem a forma de execução da decisão dos tribunais especiais.
Por fim, título VII, último do Código de 1808, dispõe sobre as matérias de ordem
pública e de segurança geral, sendo composto de cinco capítulos, sendo o primeiro (artigos
600-602) referente aos arquivos dos registros de julgamentos; o segundo (art. 603-614)
regulamenta as prisões, estabelecendo que os juízes de instrução deveriam visitar os presos
uma vez ao ano (art. 611); o Capítulo III (art. 615-618) prevê as formas de se garantir a
liberdade individual contra a prisão ilegal ou atos arbitrários, estabelecendo no art. 616 que
todo juiz, seja de paz ou de instrução e todos oficiais, inclusive do Ministério Público,
deveriam impedir a ocorrência de prisões ilegais; o Capítulo IV (artigos 619-634) prevê as
normas referentes à reabilitação dos condenados, que poderia ser requerida após transcorridos
cinco anos do cumprimento da condenação; o Capítulo V (artigos 635-643) regulamenta as
regras de prescrição.
Em síntese, pois, o Código de Instrução Criminal tenta aglutinar os dois sistemas, o
inquisitório do Código de 1670 e o acusatório do Código de 1791. Dessa forma, Napoleão
estabelece um modelo bifásico onde na primeira fase se adota o modelo inquisitorial através
do juízo de instrução e na segunda fase se adota um sistema acusatório. Contudo, não era do
interesse de um ditador como Napoleão que se adotasse efetivamente um sistema acusatório,
pois para isso seria exigido que ele abrisse mão do poder de escolher aqueles que poderia
punir, assim sendo, a segunda fase não passou de um verniz acusatório, um verdadeiro golpe
de cena, vez que, ao permitir que o produto da primeira fase (inquisitorial) fosse levado para o
julgamento na segunda fase, acabou mantendo tudo como antes, em um sistema inquisitorial
apenas travestido com vestes que davam a entender ser acusatório.
Dessa forma, como aponta Franco Cordero (2000, p. 59) surge o denominado processo
234

misto, composto de grandes cargas de instrução em perfeito modelo inquisitório seguido por
debates orais com muitas leituras e alguns discursos e debates perante os jurados. Contudo,
como se demonstrará, tal sistema misto nada mais é que uma forma travestida do modelo
inquisitório, como se passará a demonstrar.

6.1 O sistema inquisitorial travestido: o “sistema misto”

A junção dos dois modelos, inquisitório e acusatório, em um sistema bifásico fez com
que muitos afirmassem ter sido fundado pelo Código de Instrução Criminal de 1808 um novo
sistema processual penal, denominado de sistema misto por aglutinar em suas fases os dois
sistemas puros até então existentes. Até sua edição, o sistema inquisitório prevalecia em
grande parte da Europa, sobretudo em razão do caráter autoritário dos regimes absolutistas
(POLI, 2016, p. 131).
O Código de 1808, contudo, não criou um novo sistema, mas apenas travestiu o velho
sistema inquisitorial com um disfarce acusatório, para enganar os mais distraídos para que
passassem a pensar se ter adotado o modelo acusatório. Napoleão jamais teve interesse em
mudar, de fato, o sistema processual penal adotado, como ditador que foi, Napoleão desejava
manter em suas mãos o controle do processo penal, e, para tanto, o único modelo que lhe
serviria era o inquisitório. Entretanto, não poderia manter o sistema inquisitório puro adotado
no Código de Luis em 1670, que era contrário aos ideais da Revolução Francesa, sob pena de
ter o posto de imperador ameaçado, podendo, inclusive ser morto pelos revoltosos. Também
não era interessante ao Imperador a manutenção do sistema acusatório do Código de 1791,
inspirado no modelo inglês. Assim, Napoleão deu um verdadeiro golpe de cena, separou o
processo em duas fases, uma inquisitória, juízo de instrução, e outra acusatória, com todas as
características de cada um dos sistemas. Contudo, ao permitir que os elementos inquisitórios
passassem para a fase de julgamento, manteve o sistema inquisitorial fazendo da fase
acusatória mero teatro, rito de passagem, para se chegar na decisão final.
Como se vê, antes do ―terror‖ havia espaço para uma tentativa de reconhecimento
da democracia processual, inimaginável com Napoleão, um ditador como qualquer
outro que, entre outras coisas, influenciou diretamente na direção de um retorno à
estrutura do ancien régime (o espírito inquisitório seduz gente de tal porte, em
qualquer lugar e época), mas só conseguiu acabar com o júri de acusação, o que
aparentemente, não iria produzir (embora tenha efetivamente produzido) um grande
efeito. (COUTINHO, 2018, p. 53)

Dessa forma, o Código Napoleônico, ao contrário de seu objetivo declarado de adotar


um modelo acusatório, acabou por adotar, de fato, um sistema inquisitório, porém de maneira
235

mascarada (POLI, 2016, p. 159)


Como se pode perceber, Napoleão pretendendo manter o poder e o controle dos
processos, convenientemente, suprimiu a regra do art. 365 do Code des Délits et des
Peines, fazendo com que chegasse nas mãos dos jurados os elementos colhidos
durante a investigação preliminar (fase inquisitorial). Com isso, possibilitou a
utilização destes elementos durante o julgamento (fase acusatória) para efeitos de
prova, pois a formação do convencimento se dava pela íntima convicção, e os
jurados não precisavam motivar ou fundamentar a decisão. (POLI, 2016, p. 178)

A construção de um sistema acusatório, como tentado pelo Código de 1791 foi


obstruída por Napoleão, que, ao criar o sistema bifásico, ou misto para alguns, ressuscitou o
inquisitorialismo do Código de 1670 apenas camuflando sua inquisitoriedade com a máscara
de uma fase acusatória que era realizada após toda a prova ter sido produzida
inquisitorialmente. Nesse sentido, vale as palavras de Luis Gustavo Grandinetti Castanho de
Carvalho:
O caminho para um sistema acusatório foi definitivamente obstaculizado pela era da
codificação, de Napoleão. O código francês era dominado por um princípio
inquisitivo na fase de investigação e não se afastou o juiz da gestão da prova na fase
posterior, embora já existisse um ministério público organizado desde 1670. Previa
também o princípio do prejuízo nas nulidades, retirado do Código Civil Francês e
aplicado, inadequadamente, ao processo penal francês (de lá para o restante da
Europa e para o Brasil de hoje). (CARVALHO,2017, p. 125)

Após o código napoleônico, não mais se fala em sistemas puros, sendo que todos os
sistemas conhecidos atualmente aglutinam elementos acusatórios e inquisitórios. Assim, todo
sistema processual penal moderno seria misto, porém, o que tudo é nada será. Jacinto Nelson
de Miranda Coutinho, ao trabalhar a questão da (in)existência do sistema misto, afirma que
―um sistema processual penal misto, ao contrário do que comumente pensam alguns, não é a
simples somatória de elementos dos dois sistemas puros‖ (COUTINHO, 2009b, p. 107).
Segue Jacinto Coutinho afirmando que a própria definição de sistema não comportaria tal
aglutinação para se formar um terceiro sistema. Ou, com Aury Lopes Júnior:
Ora, afirmar que o ―sistema é misto‖ é absolutamente insuficiente, é um
reducionismo ilusório, até porque não existem mais sistemas puros (são tipos
históricos), todos são mistos. A questão é, a partir do reconhecimento de que não
existem mais sistemas puros, identificar o princípio informador de cada sistema,
para então classificálo [sic] como inquisitório ou acusatório, pois essa classificação
feita a partir do seu núcleo é de extrema relevância. (LOPES JÚNIOR, 2017, p. 33)

Dessa forma, não há um sistema misto porque não existe um princípio unificador que
se possa chamar de misto. Não se tem um princípio misto, apenas o principio dispositivo (ou
acusatório), que rege o sistema acusatório, e o princípio inquisitivo, que rege o princípio
inquisitório. Nas palavras de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:
O problema é que o fim do sistema – como referido –, que ressignifica o princípio
236

unificador e ele, como é elementar, ganha um colorido diferente nos dois sistemas
conhecidos: o princípio unificador será inquisitivo se o sistema for inquisitório; e
será dispositivo se o sistema for acusatório. Como ideia única, não comporta divisão
e, deste modo, não se pode ter um princípio misto e, de consequência, um sistema
misto. (COUTINHO, 2009b, p. 109, itálico no original)

Em complemento, Rui Cunha Martins afirma que ―a importância sistêmica do


“princípio unificador” é pois irrecusável. Tanto que “só se muda o sistema caso se mude o
princípio unificador. Nesse sentido, o princípio é mais que o modelo, que não é senão sua
tradução orgânica.‖ (MARTINS, 2013, p. 74)
O contraditório do Código Napoleônico, limitado apenas à segunda fase do
julgamento, era mais aparente que real, pois o Código de Instrução Criminal permitia que os
elementos produzidos na primeira fase do procedimento, que adotava o sistema inquisitorial
puro, fossem adotados na segunda fase de forma generalizada. Sem que houvesse qualquer
regra de proibição, os documentos escritos produzidos na investigação acabavam sendo
utilizados na fase de julgamento e influenciavam na decisão final, vez que o júri adotava a
íntima convicção para decidir, dispensando a fundamentação da decisão. (POLI, 2016, p. 169)
Por evidente, quando se pode transportar para o julgamento a prova colhida pela
polícia, seja como fonte única de prova seja como fonte prevalente, não se pode
definir o processo como ―misto‖, mas sim como essencialmente inquisitório. (POLI,
2016, p. 175)

No primeiro capítulo do presente trabalho foram separados os elementos dos sistemas


processuais, construindo um modelo que separou os sistemas processuais penais de partes,
dividindo-os em acusatório e adversarial e, de outro lado, o sistema inquisitório que é
meramente procedimental, de modo a demonstar que o que diferencia os sistemas é o
protagonismo das partes ou do juiz, e, seguindo esse raciocínio, não se pode ter o
protagonismo do juiz em uma fase e das partes na outra, ou o juiz é o protagonista ou são as
partes. No caso do sistema napoleônico, o juiz reina na fase inicial e a obra produzida por ele
contaminará a segunda fase e fará com que a atuação das partes na segunda fase seja mero
jogo de cena cujo resultado já é conhecido de antemão, o que fará com que a figura central do
procedimento permaneça sendo o juiz instrutor e as partes seguirão tendo papel secundário.
No modelo denominado misto, o Ministério Público e o juiz instrutor são sócios, como
afirma Franco Cordero:
Ministério Público e juiz instrutor são sócios no sistema processual misto; o
primeiro, engolido pela convulsão revolucionária, reaparece um tanto diferente sob o
regime de Napoleão, como monopolista da ação penal e da voz do governo; o outro
237

reencarna o espírito inquisitório da Ordenação criminal francesa. 108 (CORDERO,


2000, p.162, tradução livre)

Seguindo por esse caminho e comentando a obra de Jacinto Nelson de Miranda


Coutinho, o professor português Rui Cunha Martins (2013, p. 26) afirma que se é na gestão da
prova que se define o sistema, se a gestão probatória é colocada nas mãos do juiz o sistema
será inquisitório, se colocada nas mãos das partes o modelo será acusatório, será a gestão da
prova a identidade do sistema, sua marca, ora inquisitorial ora acusatória, nesse sentido, será
impossível de se ter um sistema que ocupe a ―coluna do meio‖, ou seja, um sistema misto.
O sistema adotado pelo Código de Instrução Criminal tem o caráter acusatório mais
aparente que real, como destaca Giulio Illuminati (2008, p. 142). Nesse sentido, destaca o
autor italiano que o Código Napoleônico inaugura um sistema novo que viria a ser conhecido
como misto, por ser dividido em duas fases uma inquisitória e outra acusatória, contudo, seu
caráter acusatório é mais aparente que real. Apesar dos depoimentos serem prestados
oralmente, todas as declarações eram previamente prestadas perante o juiz de instrução, sendo
utilizada na segunda fase para a formação da decisão final.
O sistema francês-napoleônico, como se verifica na análise histórica e legislativa, foi
incapaz de mudar a estrutura inquisitória até então vigente para implementar uma estrutura
efetivamente acusatória. Isso se deve ao fato de se ter mudado apenas a lei, sem antes se
modificar a racionalidade anteriormente existente e, com isso, não tendo rompido com a
lógica inquisitorial inserida na mentalidade. (POLI, 2016, p. 182)
O denominado sistema misto não passa de uma fraude, uma forma de se travestir o
sistema inquisitório para fazer com que ele ganhe aparência de acusatório, não mais que isso.
Muda-se a estrutura, sem, contudo, mudar a natureza. A criação de uma fase acusatória não é
capaz de mudar o sistema se a decisão continua sendo regida pelo produto da fase
inquisitorial. É um engodo napoleônico para manter a inquisitoriedade viva e o processo penal
servindo aos seus interesses ditatoriais. Ou, nas palavras de Aury Lopes Júnior:
A fraude no sistema reside no fato de que a prova é colhida na inquisição do
inquérito, sendo trazida integralmente para dentro do processo e, ao final, basta o
belo discurso do julgador para imunizar a decisão. Esse discurso vem mascarado
com as mais variadas fórmulas, do estilo: a prova do inquérito é corroborada pela
prova judicializada; cotejando a prova policial com a judicializada; e assim todo um
exercício imunizatório (ou melhor,, uma fraude de etiquetas) para justificar uma
condenação que na verdade está calcada nos elementos colhidos no segredo da
inquisição. O processo acaba por converter-se em uma mera repetição ou na

108
No original: ―Ministerio público y juez instructor son socios en el proceso mixto; el uno, engullido por la
convulsión revolucionaria, reaparece un tanto distinto bajo el régimen de Napoleón, como monopolista de la
acción penal y de la voz del gobierno; el otro reencarna el espíritu inquisitorio de la Ordenanza criminal
francesa.‖ (CORDERO, 2000, p. 162)
238

encenação da primeira fase. (LOPES JÚNIOR, 2017, p. 42)

Nesse contexto, a segunda fase não passa de uma etapa de homologação e de


legitimação daquilo que foi produzido na primeira fase, ou seja, o contraditório somente
existe em forma mas não em conteúdo, pois a decisão já vem produzida da fase inquisitorial,
o que transforma o processo penal em um jogo de cartas marcadas onde se conhece o
resultado final antes do apito inicial.
Quando se chega ao processo, então ilusoriamente acusatório e contraditório, a
verdade histórica já foi definida. Ao juiz cabe apenas aplicar o direito ao caso
concreto, dizer a lei (juizbocadalei [sic]) que deve incidir, fazendo o famoso
silogismo tão valioso para os modernos. (LOPES JÚNIOR, 2017, p. 51)

O modelo napoleônico constitui um verdadeiro monstro, uma espécie de Minotauro


processual, que junta uma metade de cada sistema, porém, a cabeça segue inquisitória. Um
modelo no qual prevalece a primeira fase, escrita, secreta, dominada pela acusação pública e
pela ausência de participação do imputado quando este era privado da liberdade, sendo
seguida por uma fase acusatória, marcada por debates, contraditório público e oral entre
acusação e defesa, mas que se destina a ser mera repetição ou encenação da primeira fase
(FERRAJOLI, 2006, p. 521-522)
Por tudo isso que o sistema misto não é nada mais que uma inteligente forma de se
camuflar o sistema inquisitório, sendo a inquisição travestida (SANTIAGO NETO, 2015, p.
149). Tal sistema foi muito útil a ditaduras, servindo aos modelos mais autoritários que a
humanidade foi capaz de criar, não podendo servir, portanto, à democracia.
Dessa forma, o sistema criado por Napoleão não fez nada mais que travestir o sistema
inquisitorial para dar a ele aparência de ser acusatório, podendo ser chamado de sistema neo-
inquisitorial ou sistema inquisitório moderno. Pouco importava se na segunda fase dava ao
indivíduo as garantias do sistema acusatório, se o caso era julgado com os elementos colhidos
na primeira fase, totalmente inquisitória. O Código de Instrução Criminal não foi feito para
mudar o sistema, pelo contrário, foi feito para manter o modelo como antes, resgatando as
Ordenações Criminais de 1670 (Código de Luís), porém de forma travestida, camuflada. O
que pretendia Napoleão não era construir um processo penal acusatório, mas recriar o modelo
inquisitório como forma de manter sob seu controle o processo penal, visando usar contra
aqueles que lhe interessassem como mecanismo de controle social e repressão aos
indesejáveis.
Por fim, não é demais dizer que o Código de 1808 serviu de inspiração a várias
codificações dos séculos XIX e XX, sendo de interesse ao recorte que se proõe destacar o
239

Código de Processo Criminal de Primeira Instância de 1832 e Código de Processo Penal da


Itália de 1930, que, por sua vez, inspirou o Código de Processo Penal brasileiro de 1941 e que
está vigendo até hoje no Brasil. Mais do que apenas inspiração legislativa, o Código
Napoleônico ajudou a formar a mentalidade jurídica brasileira, que ainda hoje se encontra
presa na arapuca montada por ele e não consegue sequer enxergar fora do modelo inquisitorial
ou a construção de um processo penal democrático.
241

7 O PROCESSO PENAL FASCISTA E O RESGATE DO MODELO NAPOLEÔNICO:


A MANUTENÇÃO INQUISITÓRIA

A consolidação do Estado Liberal, após a queda do antigo regime, marcada pelas


revoluções liberais e, principalmente, pela revolução francesa trouxe a implementação de um
modelo de Estado Mínimo. Porém, junto com o Estado Liberal, a França implementou o
Código Napoleônico que, foi fonte de inspiração para vários outros modelos processuais
penais dali em diante que normalmente possuíam matiz autoritário. O sistema neo-
inquisitorial foi bastante útil aos regimes totalitários que se instauraram na primeira metade do
século XX, principalmente na Itália de Benito Mussolini e na Alemanha de Adolf Hitler,
servindo o primeiro de fonte de inspiração para a elaboração do Código de Processo Penal
Brasileiro, pelas mãos de Getúlio Vargas em 1941.
Segundo o Estado Social, o Estado seria responsável por reduzir as desigualdades e
responsável por decidir o que era bom para seu povo, determinando os caminhos para a
felicidade de cada um como bem entendesse.
Dessa forma, o estudo das razões que levaram à ascensão do totalitarismo no mundo e,
principalmente do fascismo na Itália são relevantes para a compreensão do processo penal
vigente nos países totalitários, onde preponderou o culto à intolerância, ao ódio e o processo
penal foi utilizado como forma de ascensão e consolidação dos governos mais autoritários que
a humanidade conheceu. Vê-se que a ascensão fascista, com a tomada do poder na Itália por
Benito Mussolini em 1929, rendeu o Código de Processo Penal de 1930, já a Alemanha viu no
Nacional Socialismo subir ao poder através de Hitler em 1932 e logo em 1933 entrou em
vigor o Código de Processo Penal nazista.
Nesse contexto, surgem os regimes totalitários, que, apesar de termos diversas formas
de totalitarismos, pode-se caracterizar os governos totalitários por sua finalidade de deter o
total controle sobre o homem em benefício do Estado, não conhecendo limites, é o homem
servo do Estado, que possui poderes de vida e de morte sobre os indivíduos (EBENSTEIN,
1967, p. 18). Se na democracia os fins jamais justificam os meios, em regimes totalitários os
fins são mais relevantes que os meios e os indivíduos meras peças à disposição do Estado, ou
daqueles que detêm o poder, para atingir os objetivos finais.
Os Estados Totalitários coincidem com a ruptura do paradigma de Estado Liberal para
o Estado Social de Direito, que surgiram como uma resposta ao modelo de direito formal
burguês onde a liberdade de mercado prevalecia através da não interferência do Estado nas
questões individuais, o que gerou o crescimento da desigualdade (HABERMAS, 1997). Nesse
242

sentido, um governo autoritário procura controlar a vida política dos indivíduos, já um


governo totalitário tem por objetivo o domínio de todos os aspectos da vida das pessoas
(EBENSTEIN, 1967, p. 29), ou seja, para o governo totalitário as pessoas são coisas que
podem ser utilizadas da forma que melhor interessar ao Estado, que detém poderes de vida e
morte sobre elas.
Hannah Arendt aponta que o fim da Primeira Guerra Mundial a Europa foi tomada por
uma onda anti-democrática e pró-ditatorial de movimentos totalitários e semi-totalitários,
sendo que da Itália o movimento fascista foi levado para vários países da Europa. Porém,
Mussolini não teria tentado estabelecer um regime integralmente totalitário, tendo se
contentado apenas com uma ditadura de partido único. (ARENDT, 1989, p. 358-359)
Assim sendo, os regimes totalitários usaram do processo penal como forma de
consolidação e perseguição, tal qual fora feito pelos regimes políticos antecedentes, desde o
Império Romano e os regimes absolutistas e as demais ditaduras. Sempre como instrumento
de perseguição aos que interessavam ser mantidos excluídos pelo sistema dominante. No caso
dos regimes nazifascistas judeus, comunistas, negros e homossexuais, além de outras minorias
foram escolhidos como alvo preferencial do sistema, sendo que o processo penal foi o
instrumento usado para segregar, matar e excluir. Apenas à título ilustrativo, Richard J.
Evans, em obra que analisa o regime nazista demonstra como se deu a constituição de um
estado policial través da repressão e do emprego do processo penal como forma de eliminar
aqueles que foram denominados por ―inimigos do povo‖ (EVANS, 2016b, p. 37-148).
Nos interessa no presente estudo o regime fascista, uma vez que nos interessa a análise
do processo penal fascista cujo modelo foi trazido para o Brasil no vigente Código de
Processo Penal em 1941.

7.1 A ascensão do fascismo

O partido fascista foi fundado em 1919 por Benito Mussolini como parte da reação à
revolução russa de 1917 que levou o comunismo ao poder na Rússia. De acordo com a
doutrina fascista ―o povo é incapaz de se governar, ele deve ser governado por um grupo
seleto de líderes, uma elite superior moral e mentalmente mais capaz‖. Após a tomada do
poder pelos fascistas, todos os outros partidos e os sindicatos foram exterminados e a crítica
ao governo poderia ser punida até com a pena de morte. O regime fascista foi copiado
principalmente no Japão e na Alemanha, onde Adolf Hitler fundou o partido Nazista em 1919.
(EBENSTEIN, 1967, p.24)
243

A palavra fascismo deriva do latim fasces, o machado rodeado de um feixe de varas


que simbolizava a autoridade do estado romano; o italiano fascio significa grupo ou
bando. Os fsaci foram organizados desde outubro de 1914 como unidades de
agitação que visavam fazer com que a Itália aderisse à causa da Entente. Foram
compostos de jovens idealistas, nacionalistas fanáticos e empregados da classe
média entediados. A plataforma original do movimento fascista foi preparada por
Mussolini em 1919. Era um documento surpreendentemente radical, que exigia,
entre outras coisas, o sufrágio universal, a abolição do senado conservador, a
instituição legal de uma jornada de trabalho de oito horas, um pesado imposto sobre
o capital e sobre as heranças, o confisco de 85 por cento dos lucros de guerra, a
aceitação da Liga das Nações e a ―oposição a todos os imperialismos‖. Essa
plataforma foi aceita pelo movimento, mais ou menos oficialmente, até maio de
1920, quando foi suplantada por outra, de caráter mais conservador. Com efeito, o
novo programa omitia qualquer referência à reforma econômica. Com nenhuma
dessas plataformas os fascistas conseguiram grande sucesso político. (BURNS,
1993, p. 700)

Os fascistas possuíam uma agressividade notória e com ela compensavam seu


reduzido número inicial, agindo de forma enérgica e determinada. Com isso foram ganhando
cada vez maior espaço e diminuindo o poder do regime vigente, preparando para a tomada do
poder. Em setembro de 1922 Mussolini lançou o grito ―A Roma!‖, passando a falar
abertamente em revolução, sendo que no dia 28 de outubro 50 mil milicianos fascistas,
vestidos com camisas negras, ocuparam Roma, obrigando a renúncia do primeiro ministro.
No dia 29 de outubro, o Rei Vítor Emanuel III convidou Mussolini para organizar o gabinete,
levando os fascistas ao poder. Em três anos Mussolini acabou com o sistema de gabinete,
instaurou um sistema político de partido único e reduziu o parlamento à mera atividade de
homologação de seus decretos. (BURNS, 1993, p. 700-701)
Os fascistas possuíam três princípios centrais, o totalitarismo, colocando os interesses
do Estado sobre os interesses individuais; o nacionalismo, colocando a nação como maior
forma de sociedade criada pela humanidade e que deveria se sobrepor às outras nações; e o
militarismo, que enaltecia a guerra e a conquista bélica de outras nações. Em 1938 foram
abolidos os últimos resquícios democráticos da Itália, sendo a Câmara dos Deputados
substituída pela Câmara Fascista e de Corporações, que tinha os membros nomeados pelo
governo fascista. (BURNS, 1993, p. 701)
Lucas Alvarenga Gontijo (2017, p. 75) aponta que os fascistas negavam a existência
de classes sociais, pressupondo a existência de um cidadão abstrato, além disso tinham
naqueles que discordavam de suas ideias um inimigo a ser eliminado, se fechando ao diálogo
à argumentação e ao reconhecimento do outro. Segue o Lucas Gontijo (2017, p. 76), o
fascismo apareceu no século XX impulsionado pela ideologia anticomunista através da
polarização entre direita e esquerda, nascendo do medo e crescendo em sociedades nas quais
244

as pessoas não têm a educação para reconhecer o outro.


Nesse contexto, as ideias fascistas também ingressaram no processo penal italiano,
sobretudo pelas mãos de Vincenzo Manzini, ministro da justiça de Benito Mussolini,
responsável pela elaboração do Código de Processo Penal que vigeu na Itália de 1930 até
1988. Tais juristas defendiam abertamente uma neutralidade ideológica dos institutos
jurídicos e ―incutiam uma ideologia político-criminal autoritária, sob argumento o interesse
punitivo estatal, por ser coletivo, sempre deveria prevalecer sobre o interesse de defesa do
imputado, por ser individual.‖ (MORAES, 2010, p. 141)
Um governo autoritário como o fascista precisava, para se consolidar e dar aparente
legalidade a seus atos, de uma legislação que permitisse o controle da punição. Assim, nada
melhor que o velho modelo inquisitório para permitir o protagonismo dos juízes fascistas e
garantir a punição dos indesejados do sistema. Porém, naquela quadra histórica não mais era
viável a adoção de um modelo inquisitório puro, sendo que a solução encontrada fora buscar
no Código de Instrução Criminal francês de 1850 o sistema híbrido, instaurando o sistema
inquisitório, ou neo-inquisitorial, ou, como preferimos, o sistema inquisitório travestido, para
que através da camuflagem aparentar ter-se adotado um modelo acusatório.

7.2 O fascismo e o processo penal de seu tempo

O Código de Processo Penal da Itália fascista foi produto de seu tempo, fruto da
necessidade de um governo autoritário manter o controle sobre a massa dominada pelo
regime. Assim, como governo autoritário que era, o fascismo precisava de um código que
legitimasse sua atuação punitiva, centralizasse nas mãos do juiz os poderes instrutórios e
punitivos, para tanto nasceu o código de 1930.
O primeiro código de processo penal italiano pertence à época napoleônica, eis que
fora publicado no dia 8 de setembro de 1807, em Milão, contando com a revisão e
aperfeiçoamento de Domenico Romagnosi, que realizou a mudança para o sistema
napoleônico. Contudo, o citado código não adotou o sistema de julgamento pelo júri, as
sentenças adotavam decisão pela íntima convicção do juiz, independentemente de
fundamentação da decisão, podendo o acusado ser novamente processado caso fosse
absolvido por falta de provas, o que já denotava a adoção de um modelo nitidamente
inquisitorial. Em 26 de março de 1819, em Napoli, foi editado um novo código, consistindo
em uma versão mais evoluída do modelo de 1807 (Milão), adotando um modelo de menor
oralidade. (CORDERO, 2000, p. 59-60)
245

Vale destacar que a Itália sofreu diretamente a influência do Código de Instrução


Criminal de 1808, uma vez que teve seu território invadido pelas tropas napoleônicas e, por
isso, teve contato direto com a legislação francesa daquele período. (ILLUMINATI, 2008, p.
143)
Por sua vez, em 30 de outubro de 1847, foi editado o Código Piemontês. Um código
inquisitorial no qual o assessor examina os testemunhos e o juiz tem o monopólio da decisão,
trabalhando sobre os autos e sem nenhum tipo de proibição. Posteriormente em 1859, um
segundo código foi elaborado no reino de Piemonte, com aparatos instrutórios mais leves,
tendo adotado um modelo de julgamento por jurados e feito letra morta de qualquer limitação
de leituras dos elementos produzidos na instrução inquisitória. (CORDERO, 2000, p. 60).
O Código de 1847 adotou um modelo similar ao do Código Napoleônico, com uma
fase inquisitorial e uma fase decidida por doze jurados. O ministério público atua mediante
petição ao juiz de instrução. (CORDERO, 2000, p. 69)
Vale destacar que após intenso debate parlamentar entre 25 de fevereiro e 20 de abril
de 1850 restaram abolidos os tribunais eclesiásticos na Itália. (CORDERO, 2000, p. 69)
O Código Piemontês sofreu grande influência do modelo napoleônico, principalmente
em decorrência da ocupação bélica da região pelas tropas francesas, sendo que o código do
Piemonte serviu de base para o primeiro código de processo penal da Itália unificada, editado
somente em 1865. No código de 1865 o juiz instrutor tem papel central, sendo o responsável
pela instrução secreta e sem participação da defesa, em regra, o titular da ação penal era o
Ministério Público, sendo adotada a ação penal privada em alguns casos, adotava-se o juízo
oral perante o júri ou perante juiz profissional, segundo a gravidade do delito. Podendo o juiz
e os jurados ter acesso aos autos da instrução. (ILLUMINATI, 2008, p. 143)
Segundo aponta Franco Cordero (2000, p. 60), o Código de Piemonte foi, com
algumas adaptações, elevado a primeiro código de processo penal da Itália, após a unificação
italiana, sendo adotado a partir de 26 de novembro de 1865. Com o código de 1865, a
instrução se realiza de forma mais mecânica, e se realiza perante um órgão colegiado (que
havia sido abolido em 1859), o ministério público é o responsável pela instrução, porém atua
de forma secreta, em que pese a proibição das leituras dos elementos produzidos na primeira
fase inquisitorial, permanece o problema, sendo a lei ignorada nesse ponto. O código de 1865
já nasce velho, contudo, apesar de algumas reformas, acabou durando meio século.
(CORDERO, 2000, p. 60)
O processo penal do Código Piemontês se dava em duas fases, com uma longa
instrução que se caracterizava com dupla identidade jurisdicional-policial contando ainda com
246

o auxilio do Ministério Público, realizando, em segredo, todos os atos destinados ao


descobrimento da verdade, sendo tal fórmula levada ao Código fascista de 1930; as
testemunhas prestavam juramento quando o fato investigado era previsto como crime; o
julgamento se dava por dois órgãos colegiados sendo que o instrutor participava de um deles
denominado sala de decisão; os elementos de acusação eram amplamente utilizados no
julgamento. (CORDERO, 2000, p. 67)
Em síntese, o código Piemontês e, consequentemente, o código italiano de 1865
adotaram o modelo bifásico napoleônico, através de uma primeira fase acusatória e uma
segunda fase inquisitória, mantendo, assim, a estrutura inquisitória travestida na forma
adotada pelo Código de Instrução Criminal francês de 1808.
O Código de 1865 foi substituído pelo Código de 1913, aprovado em 27 de fevereiro
de 1913 e vigente a partir de 1º janeiro de 1914, produto de um golpe de governo. O Código
de 1913 supera tecnicamente os códigos do século XIX no que tange às nulidades absolutas e
relativas. O Código adota um sistema processual misto, permitindo, entretanto, que o defensor
do acusado assista a alguns atos de instrução (buscas domiciliares, reconstituição de fatos,
perícias e reconhecimentos), sendo que eram realizadas duas instruções, uma em ato
procedimental realizado pelo próprio juiz e outra realizada pelo Ministério Público, sendo a
instrução ministerial adotada geralmente nos casos destinados ao tribunal, porém, sempre que
o Ministério Público necessitava de dar ordens, interrogar ou realizar os atos que
demandavam a presença dos defensores, deviam levar a investigação ao juiz instrutor.
Haviam prazos máximos para a prisão preventiva e as regras de leitura das peças eram
cumpridas. O código de 1913 recebeu duras críticas desde sua entrada em vigor,
principalmente no que tange aos debates em contraditório e o contínuo intercâmbio entre
Ministério Público e o juiz que atrasava o procedimento. Em razão de tais críticas, já em
março de 1915 foi instaurada comissão para estudo e reforma do Código, que culminou no
Código de 1930, elaborado pelos irmãos Arturo e Alfredo Rocco e por Vicenzo Manzini,
então ministro da justiça do governo fascista de Mussolini. (CORDERO, 2000, p. 61)
Giulio Illuminati firma que o Código de 1913 manteve a divisão do processo em duas
fases, porém converteu o Ministério Público em exclusivo titular da ação penal e colocou em
suas mãos a atribuição de conduzir a instrução preliminar sumária, salvo nos casos em que tal
competência fosse reservada ao juízo de instrução. No juízo oral poderia ser realizada a leitura
das peças produzidas inquisitorialmente pelo Ministério Público e sem contraditório, apesar
da defesa poder acompanhar alguns atos da instrução, não poderia interferir nos depoimentos
e interrogatórios. Já a leitura de peças sofre uma restrição no código de 1913, porém tais eram
247

facilmente burladas na prática. (ILLUMINATI, 2008, p. 143)


O código de 1913 manteve-se fiel à estrutura napoleônica e, principalmente ao sistema
inquisitório travestido pelo discurso de sistema misto, não sendo capaz de afastar a
inquisitoriedade e nem mesmo o protagonismo do juiz de instrução e da decisão definida
pelos elementos produzidos fora do contraditório, fazendo da fase de debates mera instância
de passagem para se poder ter a decisão final.
Em razão das críticas ao Código de 1913, foram iniciados os debates para a reforma do
código, contudo, em razão da primeira guerra mundial a mudança foi deixada de lado.
Somente após a guerra e após a instauração do regime fascista é que o constitucionalista
Alfredo Rocco propôs uma contrarreforma, sendo nomeado por Vincenzo Manzini (então
ministro da justiça do governo fascista de Benito Mussolini) para a elaboração do novo
Código de Processo Penal, que entraria em vigor em 19 de outubro de 1930. Rocco era de
―tendência nacionalista e jurista muito hábil, que cultivava a intelectualmente uma filosofia
política simples, com fundo paranoico, e era artífice legal da incipiente ditadura‖109
(CORDERO, 2000, p. 75, tradução livre)
Além de Rocco, apenas Vincenzo Manzini, então ministro da justiça do governo de
Benito Mussolini, trabalhou no projeto. Manzini era um penalista casuísta e claramente
partidário da tradição inquisitorial italiana (CORDERO, 2000, p. 76). Segue Cordero (2000,
p. 85) descrevendo Manzini como xenófobo, partidário da repressão e defensor do passado
inquisitório, sendo avesso ao estudo do direito comparado. Sobre a obra de Manzini, Ricardo
Jacobsen Glockner relata:
Contudo, o código Rocco, fruto da elaboração solipsista de Manzini (será o próprio
Manzini a reivindicar o sucesso da própria fórmula, sem as ―aberrantes e absurdas‖
intervenções de uma comissão) seria uma obra ―granítica‖. Isto é, uma obra que não
poderia ser alterada através de microrreformas. O ―espírito de unidade e de
integração dos institutos não era compassível de alterações secundárias ou menos
radicais. Manzini, o hard worker, como designa Cordero, elabora uma obra maciça,
incapaz, portanto, de ser deposta a partir de determinadas alterações, incapazes de
repercutir em seus meandros. O ―garantismo‖ da reforma era a fachada para
mudanças lampedusianas e o ―inquisitório eterno‖ estava a ocupar o posto que de
fato, jamais lhe havia sido retirado. (GLOEKNER, 2017, p. 230-231)

Rocco e Manzini trabalharam com o objetivo de buscar o viés inquisitório, que melhor
serviria à ditadura fascista que crescia e se solidificava na Itália do fim dos anos vinte e início
dos anos trinta do século XX, trabalhando com vistas ao resgate das Ordenações de 1670 e
sua pureza inquisitória (CORDERO, 2000, p.76). Porém, acabaram seguindo o modelo

109
No original: ―Alfredo Rocco, de tendencia nacionalista y jurista muy hábil, que cultivaba intelectualmente
una filosofía política simple, con fondo paranoide, y era artífice legal de la incipiente dictadura.‖
(CORDERO, 2000, p. 75)
248

napoleônico de 1808, elaborando um código onde o procedimento penal era bifásico, sendo
uma fase inquisitória e outra fase aparentemente acusatória.
Em seu Tratado de Processo Penal, Vincenzo Manzini adota expressamente a teoria da
relação jurídica, mantendo a concepção de que o processo seria uma relação jurídica destinada
a produzir a decisão pelo juiz, o grande ator do processo segundo a teoria da relação jurídica.
Para Manzini o processo
É uma relação jurídica análoga, mas não idêntica, a do processo civil e, como todas
as relações de direito público se distingue por vários aspectos das relações comuns
de direito privado. É uma relação jurídica sui generis, que não perde sua juridicidade
apenas pelo efeito das particularidades que a diferenciam das outras relações de
direito. Por nenhuma razão se poderia negar seriamente a natureza jurídica a
relações subjetivas reguladas pelo direito.110 (MANZINI, 1951, p. 113, tradução
livre)

O Código Rocco, como ficou conhecido, era a expressão do autoritarismo, cujo eixo
de gravidade é o trabalho secreto dos instrutores, no código o Ministério Público restou
agigantado, dono da instrução e equiparado ao juiz; os defensores foram expulsos do
procedimento; a detenção preventiva encontra-se prevista como medida automática e por
prazo indeterminado; foi criado o procedimento sumário no qual o Ministério Publico possuía
poderes próprios de órgãos judiciais; desapareceram as nulidades absolutas, passando a se
tratar as nulidades como relativas e exigir a demonstração de prejuízo para seu
reconhecimento; as leituras dos elementos produzidos na primeira fase do procedimento eram
indiscriminadas; e os recursos limitados. (CORDERO, 2000, p. 61)
O sistema do Código Rocco representou tamanho endurecimento do sistema que a
Corte de Cassação da Itália, que não tinha ímpeto libertário, passou a interferir para corrigir o
Código e minimizar seus danos.
O Código de 1930 reduz a presunção de inocência que passou a ser considerada como
uma absurda teoria oriunda do empirismo francês, pois na prática deveria se considerar o
acusado presumidamente culpado, como se resultaria da prisão preventiva. (CORDERO,
2000, p. 85)
Apesar de Manzini (1951, p. 113) afirmar que o acusado não era objeto do processo,
mas sujeito de direitos, contudo, ao tratar da presunção de inocência afirma que presumir o
acusado inocente seria algo paradoxo e irracional, chegando a afirmar ―se se presume a

110
No original: ―Es una relación jurídica análoga, pero no idéntica a la del proceso civil y, como todas las
relaciones de derecho público, se distingue por varios aspectos de las relaciones comunes de derecho privado.
Es una relación jurídica sui generis, que no pierde su juridicidad por solo efecto de las particularidades que
lo diferencian de las otras relaciones de derecho. Por ninguna razón se podría negar seriamente la naturaleza
jurídica a relaciones subjetivas reguladas por el derecho.‖ (MANZINI, 1951, p. 113)
249

inocência do imputado, por que então processá-lo?”111 (MANZINI, 1951, p. 254, tradução
livre), exemplificando a impossibilidade de presumir a inocência do acusado através de
medidas cautelares, como prisão preventiva e com a própria existência do processo. Após, o
autor italiano constrói a presunção de não culpabilidade, sendo que, segundo Manzini ―o
imputado não é considerado culpado até a condenação definitiva.‖112 (MANZINI, 1951, p.
257). Na síntese de Maurício Zanoide de Moraes:
Nessa linha de raciocínio, MANZINI admite que haja culpado e não culpado, sem
espaço para outra qualificação. Conclui que enquanto o juiz não tenha decidido pela
culpa do acusado ele será presumivelmente não culpado, jamais inocente. Por seu
prisma ótico de qual seria o escopo do processo penal, ele entende que este
instrumento não se presta a analisar se alguém é ou não inocente, mas apenas se é ou
não culpado. Nasce, daí a justificativa para a substituição da ―presunção de
inocência‖ iluminista pela ―presunção de não culpabilidade‖, criada pelo positivismo
jurídico italiano do século XIX. (MORAES, 2010, p. 129)

Dessa forma, Manzini burla a presunção de inocência por considerá-la uma ideia
absurda do empirismo francês, devendo considerar o réu não culpado, porém, a dúvida
deveria ser resolvida contra o réu (CORDERO, 2000, p. 85). Para Manzini, primeiro se
verifica se o acusado é culpado, caso não seja prevalecerá o interesse à liberdade, mas nunca
sua declaração de inocência, já que para Manzini seria erro declarar a inocência do acusado,
pois ele poderia ser culpado e apenas não ter sido provada sua culpa (MORAES, 2010, p. 127-
128).
Com isso, Manzini pretende esvaziar o conteúdo do princípio da presunção de
inocência como forma de legitimar uma intervenção penal cada vez mais repressora onde, em
conformidade com os princípios fascistas, o interesse do Estado seria preponderante ao
interesse individual.
O Código Rocco inicia em seu primeiro artigo estabelecendo que a ação penal será
pública, salvo quando a própria lei exigir a apresentação de queixa crime, que poderia ser
oferecida pessoalmente ou por procurador com poderes especiais (art. 9º). Dessa forma, o
Código trabalha com a acusação pública como sua regra. Dentre as ações penais públicas
havia a possibilidade de se exigir autorização para que o Ministério Público procedesse à ação
penal, sendo que uma vez concedida a autorização não mais poderia ser revogada (art. 15).
Nos termos do art. 2º procedimento era iniciado por um relatório elaborado por
qualquer agente da polícia judiciária que tivesse conhecimento de um fato criminoso deveria
reportar através de um relato escrito as informações que tivesse sobre o fato, tendo para isso o

111
No original: ―Si se presume la inocencia del imputado, pregunta el buen sentido, ¿por qué entonces proceder
contra él?‖ (MANZINI, 1951, p. 254).
112
No original: ―el imputado no es considerado culpable hasta la condena definitiva.‖ (MANZINI, 1951, p. 257)
250

prazo de vinte e quatro horas (art. 4º). O relatório deveria constar a descrição do fato com
todas suas circunstâncias, as provas que poderiam ser produzidas para a verificação dos fatos
narrados, a indicação do autor do fato e as testemunhas. O relatório poderá ser feito pelo juiz
civil quando em processo de sua competência ele verifique a possibilidade de ocorrência de
delito (art. 3º).
A denúncia a ser apresentada pelo Ministério Público possuía os mesmos requisitos do
relatório, conforme art. 8º do Código Rocco, inclusive o próprio artigo citado faz referência
aos requisitos previstos no art. 2º, ou seja, descrição do fato criminoso, as provas a serem
produzidas e indicação de testemunhas. A ação penal competia ao Ministério Público ou aos
Pretores, separando a atribuição de iniciar a ação penal da competência para julgá-la. Caso o
Ministério Público ou o Pretor entendessem que não deveriam apresentar denúncia, o juiz ou
o Procurador do Rei poderiam discordar da decisão e determinar o envio dos autos ao
procurador geral que poderia determinar o prosseguimento do feito (art. 74).
O sistema judiciário criminal italiano de 1930 era dividido entre a corte de assises,
com competência para julgar os crimes punidos com pena de morte ou prisão perpétua (art.
29); e os tribunais que tinham competência para o julgamento dos demais crimes. Os pretores
tinham competência para julgamento dos crimes com pena de até três anos de privação de
liberdade (art. 31). O julgamento por juiz incompetente poderia ensejar a nulidade, porém,
apenas se o juiz que houvesse conhecido do caso penal fosse de menor hierarquia (art. 34), o
que ilustra a estrutura do código construída para dificultar a declaração de nulidades.
O Código de Processo Penal italiano de 1930 admite a figura da parte civil (art. 91-
104) com o objetivo de buscar, no processo penal, a reparação civil pelo dano causado em
decorrência do crime. Porém a parte civil poderia ser substituída pelo próprio Ministério
Público no caso de ser a vítima incapaz (art. 105).
O código adota estrutura bifásica, seguindo os moldes dos códigos anteriores
inspirados no Código de Instrução Criminal francês de 1808, sendo dividido em uma primeira
fase denominada de instrução e uma segunda fase de debates. A primeira completamente
inquisitória, com poderes centralizados nas mãos do juiz de instrução que buscava elementos
para comprovar a hipótese inicialmente concebida e sem oportunidade para que o acusado
pudesse se defender. A segunda, por sua vez acusatória, onde o debate se dava de forma plena
e a defesa era exercida. Contudo, os debates se davam sobre a prova produzida na fase
inquisitorial, o que fazia da segunda fase mera instância de passagem para legitimar e dar
aparência de democrática à decisão que já vinha pronta e sem qualquer participação do
acusado.
251

O acompanhamento por defensor na fase de instrução era vedado expressamente,


somente sendo permitido quando fosse admitida assistência, sendo limitada a defesa do
imputado a um só defensor (art. 124). Já em juízo, na segunda fase do procedimento, a
presença do defensor do acusado era obrigatória, sob pena de nulidade, sendo vedado ao
acusado ser defendido por mais de dois defensores (art. 125), sendo, portanto, limitado o
direito de defesa do acusado.
O código fascista estabeleceu que todas as nulidades eram relativas, permitindo a
convalidação dos atos praticados em desconformidade com as prescrições legais, conforme
disposto no art. 184, sendo papel do juiz buscar corrigir os vícios113 que poderiam ensejar o
reconhecimento da nulidade conforme art. 187. Através do art. 187 o código rocco adotou
expressamente os princípios do interesse e da causalidade das nulidades. Ao possibilitar a
convalidação dos atos processuais praticados de forma viciada, o Código estabelece de forma
clara que o devido processo legal não era prioridade e que a forma era menos importante que
o desejo punitivo, ou seja, que os órgãos públicos da persecução penal não estavam obrigados
a seguir as prescrições legais no procedimento punitivo, podendo ignorar as formas legais que
os atos poderiam ser validados.
O segundo livro do Código de Processo Penal da Itália fascista é destinado à fase de
instrução criminal e inicia a primeira seção do primeiro capítulo de seu primeiro título (artigos
219-230) com as disposições sobre a polícia judiciária, que se subordinava ao Ministério
Público ou aos procuradores do rei e tinham iniciativa de ofício diante da notícia da
ocorrência de um crime, com fins de prender seus autores e coletar provas, bem como de dar
cumprimento às ordens de prisão e preservação do corpo de delito. Ao final de alguma
operação, os agentes da polícia judiciária deveriam reportar as atividades à autoridade
judiciária competente. Sendo que todas as ações da polícia judiciária se davam em segredo.
A segunda seção do primeiro capítulo do primeiro título do segundo livro do Código
em análise (art. 231-234) trata das atividades instrutórias do pretor, do procurador do rei e do
procurador geral na corte de apelação.

113
Adotamos no presente trabalho o conceito de nulidades trazido por Aroldo Plínio Gonçalves de que nulidade
seria uma sanção processual e portanto somente existiria se judicialmente declarada a existência do vício
processual e aplicada a sanção (nulidade), ou, nas palavras do professor citado: ―Nulidade é consequência
jurídica prevista para o ato praticado em desconformidade com a lei que o rege, que consiste na supressão
dos efeitos jurídicos que ele se destinava a produzir.
Como consequência jurídica, a nulidade se integra na categoria das sanções.‖ (GONÇALVES, 2012-b, p. 3)
Em que pese a obra de Aroldo Plínio ser voltada ao estudo das nulidades na denominada Teoria Geral do
Processo e, portanto, sob a ótica do processo civil e não sob o viés do processo penal, como demonstramos no
capítulo inicial, temos que a definição de nulidade é sim aplicável podendo ser utilizado o conceito do
professor Aroldo Plínio Gonçalves também no processo penal.
252

O Capítulo II do segundo livro do Código Rocco tratava da liberdade pessoal do


acusado, iniciando sua primeira sessão (art. 235-249) abordando a prisão em flagrante, que se
divide em flagrante obrigatório (art. 235), que deveria ser realizado pelos agentes de polícia
quando se tratasse de crimes graves, punidos com pena superior a um ano de privação de
liberdade ou com pena mais gravosa; e em flagrante facultativo (art. 236) destinado aos
agentes policiais, que poderiam prender em flagrante aqueles que praticassem crimes com
penas inferiores a um ano e superiores a seis meses. O flagrante facultativo destinado a
qualquer pessoa do povo somente poderia ocorrer nas hipóteses do flagrante obrigatório das
forças policiais, ou seja, quando a pena fosse superior a um ano (art. 242). Nas hipóteses do
flagrante destinado às autoridades policiais, o procurador do rei poderia ordenar a captura do
indivíduo (art. 243). O preso deveria ser interrogado pelo procurador do rei ou pelo pretor,
ficando à disposição deles (art. 245). As mulheres gravidas ou lactantes e aqueles que
estivessem em condições graves de saúde poderiam ter o direito de não serem colocados em
cárcere e levados à prisão domiciliar .Por sua vez, a segunda seção trata das prisões
decorrentes de ordens judiciais (art. 250-268), estabelecendo regras para que a prisão se desse
de forma obrigatória (art. 253) em casos de crimes contra o Estado, homicídio doloso, lesões
corporais graves ou gravíssimas, roubo, extorsão, extorsão mediante sequestro, ou sequestro
para fins de roubo, além de crimes com pena mínima superior a cinco anos ou máxima
superior a dez anos. Como afirmamos na introdução do presente capítulo, o fascismo se funda
na ideia de supremacia do Estado sobre os indivíduos, assim, os crimes mais graves do
sistema fascista eram os crimes cometidos em detrimento do Estado, o que se percebe pela
primeira hipótese de prisão obrigatória. A prisão por mandado era facultativa em crimes
culposos com pena mínima não inferior a um ano e máxima superior a três anos; em casos de
crimes dolosos quando o condenado for reincidente; ou em crimes culposos quando a pena
mínima não for superior a dois anos ou no máximo supere cinco anos; e nos casos de
contravenções quando o preso for declarado criminoso habitual. Não se expedia mandado de
prisão caso estivesse demonstrado que o delito fora praticado em situações que demonstrem
que o imputado tenha agido em circunstâncias que demonstrem a legitimidade de sua conduta
(art. 256). A prisão por mandado poderia ser determinada pelo juiz de instrução, de ofício ou a
requerimento do Ministério Público (art. 262).
As disposições sobre a prisão por mandado levam a prisão processual à condição de
regra do sistema, fazendo com que a prisão seja declarada de forma automática e apenas
excepcionalmente os acusados aguardassem soltos a sentença. Tal meio demonstra que o
código de 1930 trabalha com base na presunção de culpa do indivíduo e não adota, como
253

afirmamos acima a presunção de inocência. Além de que a previsão da prisão automática nos
delitos contra o Estado permite que fossem presos todos aqueles que resistissem ao Estado
Fascista e seu regime autoritário.
Por sua vez, a terceira seção do segundo capítulo do livro dois do código trata da
prisão preventiva (art. 269-276), que nos termos do art. 269, em regra, poderia ser decretada
de oficio pelo juiz de instrução ou poderia ser decretada a pedido pelo Ministério Público,
sendo a prisão decretada antes ou depois do interrogatório do ofendido durante a fase
instrutória do procedimento.
A sentença condenatória determinava a prisão do acusado solto, art. 275, ou, caso
tivesse ficado preso preventivamente por mais tempo que fixado na decisão, sua soltura. A
prisão preventiva não tinha prazo máximo definido, podendo perdurar pelo prazo que o juiz
entendesse necessário, o Código Rocco aboliu a fixação de prazo da prisão preventiva que
existia na legislação antecedente italiana (MANZINI, 1950, p. 173)
A quarta seção do capítulo em análise (art. 277-294) trata da liberdade provisória, que,
apenas pelo título já demonstra o autoritarismo do código e a vulnerabilidade da presunção de
inocência, como já dissemos acima. Para o Código Rocco a liberdade que é o estado
provisório do réu, sendo, consequentemente, a prisão seu destino e seu lugar comum de estar
e permanecer. Manzini (1950, p. 175-178) trata a liberdade provisória como um benefício, um
favor que poderia ser excepcionalmente concedido ao imputado. A provisoriedade da
liberdade é, também, uma marca da inquisição, no procedimento inquisitório a prisão é a regra
do sistema, devendo o imputado aguardar preso o julgamento e a execução de sua pena. A
liberdade provisória era cabível nos casos que não comportasse a prisão preventiva do
imputado (art. 277), portanto, de forma excepcional. A liberdade provisória poderia ser
concedida tanto no juízo de instrução como na fase de debates e no juízo de cassação (art.
278).
O título segundo do segundo livro do Código regulamenta o juízo de instrução, o qual
competia atuar nos casos de competência da Corte de Assises ou do Tribunal (art. 295).
Conforme o disposto no art. 296, a instrução seria realizada pelo juiz instrutor a requerimento
do Ministério Público, podendo o juiz delegar atos de instrução aos pretores. Dentre os
deveres do juiz de instrução (art. 299) está expressamente a busca da verdade e a descoberta
de elementos que permitam o juízo sobre o crime e de suas circunstâncias, sendo que caso o
juiz de instrução descobrisse durante sua investigação outro crime para o qual pudesse
proceder de ofício, bastava comunicar a descoberta ao procurador do rei, porém, sem
interromper os atos de instrução. Apesar de que o art. 302 afirma que o procedimento seria
254

oral, as perguntas e respostas deveriam ser ditadas para que fossem registradas em atas e
termos. O ministério público poderia fazer requerimentos ao juiz instrutor, podendo ainda
acompanhar os atos de instrução, contudo, assumindo postura passiva em relação aos atos do
juiz instrutor (art. 303). Durante a instrução o juiz deveria facultar ao investigado a escolha de
defensor ou, caso o investigado se recusasse a nomear seu defensor, o juiz deveria nomear
(art. 304), contudo, o papel do defensor é apenas de acompanhamento e não de participação
efetiva em contraditório. Conforme o art. 306, o ofendido poderia fazer requerimento de
diligências ao juiz instrutor. Já o art. 308 estabelece que a atividade probatória do juiz de
instrução poderá ser realizada de forma ilimitada, somente encontrando limitações no que
tange ao estado das pessoas.
Sobre o juízo de instrução, afirmou Vincenzo Manzini:
A instrução formal (e correlativamente, como dito acima, a instrução sumária)
consiste em um complexo de características do elemento inquisitório, do segredo e
do escrito, diferentemente dos debates.
A instrução formal tem características prevalentemente inquisitórias, porque,
compete exclusivamente ao magistrado a atividade investigativa, e porque não é
admitido o contraditório com o acusador.
Essa é secreta, porque os seus atos não podem ser mostrados senão até sua
conclusão final (art. 307).
É escrita, não porque os atos que surgem na forma oral (interrogatório, testemunhas,
etc.), mas porque a diferença do que acontece nos debates, todos atos orais nessa
desse feito vêm imediatamente e completamente documentados mediante único
processo verbal, e porque a decisão terminativa da instrução pode ou deve fundar-se
sobre tais documentos, e não sobre a imediata percepção. 114 (MANZINI, 1950, p.
198, tradução livre)

O capítulo segundo do segundo título regulamenta as inspeções judiciais, que


poderiam ser realizadas de ofício e pessoalmente pelo juiz instrutor em sua busca da verdade
fática, podendo inspecionar pessoas, coisas ou lugares (art. 309). Nas inspeções o juiz poderia
identificar testemunhas que seriam ouvidas na instrução (art. 311).
Por sua vez, o capítulo terceiro trata da prova pericial, podendo o juiz determinar a
realização de prova pericial caso lhe parecesse necessário, independentemente de qualquer
provocação das partes, agindo de ofício ou, excepcionalmente poderia ser provocado pelo

114
No original: ―L´istruzione formale (e correrelativamente, per quanto sopra si è detto, l‟istruzione sommaria)
consiste in un complesso d‟atti dall‟elemento inquisitorio, dal segredo e dallo scritto, a diferenza del
dibattimento.
L‟intruzione formale ha carattere prevalentemente inquisitorio, perchè spetta esclusivamente al magistrato
l‟atività investigatrice, e perchè con è mammesso il contradittorio con l‟accusatore.
Essa è segreta, perchè i suoi atti non possono essere palesati sino a chenon sia definitivamente chiusa (art. 307).
E‟scritta, non perchè da essa siano esclusi gli atti che corgono in forma orale (interrogatorio, testimonianze,
ecc.), ma perchè, a differenza di ciòche accade nel dibattimento, tutti atti orali in essa compiuti vengono
immediatamente e completamente documentati medianti singoli porcessi verbali, e perchè la decisione
terminativa dell‟istruzione può o deve fondarsi sopra late documentazione, e non sull‟immediata percezione.‖
(MANZINI, 1950, p. 198)
255

Ministério Público ou pela parte civil, sendo o perito nomeado de ofício pelo juiz instrutor em
qualquer das hipóteses (art. 314). Na estrutura desenhada pelo Código Rocco, o juiz de
instrução é a figura central da primeira fase do procedimento, competindo a ele dirigir a
realização da perícia, ocupando o perito posição subalterna em relação ao juiz, podendo o juiz
determinar que o perito acompanhasse os depoimentos das testemunhas ou ao interrogatório
do acusado, podendo formular perguntas (art. 317).
O Capítulo V trata da perquirição, sendo que o art. 332 faculta ao juiz instrutor
proceder atos de investigação, de ofício, caso suspeite que qualquer pessoa tenha mentido ou
omitido fatos em depoimento prestado a ele, podendo agir sozinho ou solicitar auxílio de
força policial para realizar os atos de investigação, podendo realizar buscas pessoais ou
domiciliares.
Por sua vez, o capítulo VI trata da possibilidade de o juiz de instrução determinar o
sequestro dos bens relacionados ao crime, podendo determinar tal medida de ofício e cumpri-
la pessoalmente, utilizando se entendesse ser necessário de força pública para a concretização
da medida (art. 337).
O capítulo VII estabelece as regras da prova testemunhal no juízo de instrução. O juiz
deveria verificar se a testemunha era realmente útil ao descobrimento da verdade (art. 348). O
depoimento da testemunha era conduzido pelo próprio juiz, a quem competia a formulação
das perguntas, devendo evitar perguntas sugestivas, seguindo as regras estabelecidas pelo
artigo 349.
O capítulo VIII aborda o reconhecimento de pessoas e coisas, que também poderia ser
realizado pelo juiz de ofício (art. 360). Prevendo ainda a possibilidade de acareação (art. 364).
Por sua vez o capítulo IX dispõe sobre o interrogatório do imputado, ato que era
realizado exclusivamente pelo juiz na fase de instrução (art. 365). Nos termos do código
Rocco o interrogatório poderia ser dividido em duas etapas, uma sobre as questões pessoais
do imputado, outra sobre os fatos (artigos 366 e 367). O juiz de instrução deveria, por fim,
investigar todos os fatos levados pelo imputado no interrogatório, buscando de todas as
formas a apuração da verdade (art. 368). O interrogatório era considerado por Manzini (1950,
p. 199) como um meio de defesa e de contestação do imputado, todavia, alerta o principal
mentor do Código de 1930, ele não deve ser trocado por um meio de prova. Contudo, segundo
o próprio Manzini:
Ele [o interrogatório], na instrução, é um ato formal, oral, secreto, consistente no
exame não juramentado do imputado sobre a sua generalidade e o mérito da
imputação, direto ao escopo de estabelecer a identidade da pessoa, de fazer nota à
256

imputação e eventualmente os elementos que a corroboram, e de ouvir a sua


eventual declaração sobre o fato e seus atributos. 115 (MANZINI, 1950, p. 199,
tradução livre)

Encerrada a instrução pelo juiz este deveria comunicar ao procurador geral, caso o
crime fosse de competência da Corte de Assises ou ao procurador do rei caso a competência
não fosse daquele órgão jurisdicional, podendo o procurador do rei ou o procurador geral
requerer ao juiz de instrução a realização de diligências novas (art. 369). Somente após o
encerramento da fase de instrução é que o juiz depositaria o resultado de suas investigações na
secretaria do juízo facultando o acesso à defesa do imputado (art. 372), o que demonstra que o
procedimento da primeira fase do procedimento era secreto e sem qualquer interferência do
imputado e de sua defesa técnica. As nulidades da fase de instrução preliminar são sanáveis,
portanto, relativas (art. 377). Ao final da instrução, o juiz instrutor poderia absolver o
imputado (art. 378) ou conceder-lhe o perdão judicial (art. 379).
Sobre o procedimento do Código Rocco, Floriana Colao assevera:
Na justiça que o totalitarismo italiano delineava com a codificação, se fortalecia
então o caráter originário do Ministério Público, ―filho da política‖, com controle do
governo sobre os procuradores, destinado a aumentar com a reforma ―Grandi‖ da
ordem judiciária, que eliminaria o controle jurisdicional sobre o arquivamento e
atribuindo ao Ministério Público o domínio da ação penal. O acusado se tornava um
indiciado, destinado a responder na prisão, a todas as instâncias processuais, mesmo
que pudesse terminar com uma sentença absolutória. A prova era colhida na
hipertrófica instrutória: a preliminar, confiada à policia, a sumária, ao Ministério
Público, a formal, ao juiz instrutor, com a defesa técnica admitida após a publicatio
processus. (COLAO, 2017, p. 76)

O quarto título do segundo livro do Código de 1930, que encerra o citado livro,
tratava da possibilidade de reabertura da instrução quando o acusado era absolvido por falta
de provas, permitindo o reinicio da fase inquisitorial no caso de surgirem fatos novos (art.
402), sendo que o Ministério Público, o acusado absolvido e o pretor poderiam requerer, por
petição escrita, a reabertura da instrução (art. 403). Ao se reabrir a instrução o sujeito
absolvido retorna à posição de investigado ocupada anteriormente (art. 404).
Em resumo, a primeira fase consistia em um procedimento no qual se adotava o
sistema inquisitório em sua pureza, ressuscitando as Ordenações de 1670 e reavivando suas
disposições. Nessa fase, o juiz tem amplos poderes probatórios, podendo ir atrás dos
elementos que confirmem a hipótese por ele imaginada (quadro mental paranoico), a prisão é
a regra do sistema, as partes têm papel secundário, sendo que a participação da defesa
115
No original: ―Esso, nell‟istruzione, è un atto formale, orale, segreto, consistemte nell‟esame non giurato
dell‟imputato circa le sue generalità e il merito della imputazione, diretto allo scopo di stavilire l‟identità
della persona, di farle nota l‟imputazione ed eventualmente gli elementi che la sugragano, e di udire le sue
eventuali dichiarazioni circa i fatti a lei attribuiti.‖ (MANZINI, 1950, p. 199)
257

(pessoal e técnica) é praticamente nula. Ao final, ainda se tem que a decisão absolutória não
produz coisa julgada material, podendo a instrução ser reaberta e o sujeito absolvido voltar à
condição de investigado. O procedimento é escrito e o julgamento se dá sem contraditório,
julgando-se não a prova produzida, mas os elementos representados em atas e documentos
escritos. Não se julga sequer os elementos de prova, mas os registros documentados que
restaram produzidos na investigação pelo juiz de instrução.
O terceiro livro do Código Rocco traz a segunda fase do procedimento penal através
da fase do juízo, trazendo em seu primeiro título os atos preparatórios para a fase que se
inicia. Inicialmente era determinada a citação do imputado para a fase de debates (art. 405-
406). Na segunda fase o acusado tinha o direito da participação da defesa, que era notificada e
tinha acesso a todos os elementos e objetos apreendidos na primeira fase do procedimento
(art. 410). Antes da fase de debates o juiz presidente ou o pretor podiam examinar os
depoimentos das testemunhas realizados na fase inquisitória (art. 418), tendo acesso ao
material produzido no juízo de instrução.
Antes da fase de debates o juiz realizava um juízo de admissibilidade da acusação, ao
pretexto de poder proferir sentença absolutória nos casos que não se verificasse a viabilidade
da acusação, e as nulidades da fase inquisitória são sanadas se não alegadas até o referido
juízo de admissibilidade da acusação. (art. 421). Contudo, ao verificar a viabilidade da
acusação, o juiz analisava todo conteúdo produzido na fase inicial, contaminando-se com os
elementos da instrução e formando prévia compreensão sobre o caso que lhe seria submetido
a julgamento na etapa seguinte (quadro mental paranoico), tornando os debates mera instância
de passagem para a confirmação da hipótese criada pelos elementos inquisitoriais.
O segundo título do terceiro livro trata especificamente da fase de debates, sendo que
sua primeira sessão é dedicada às audiências. Nos termos do art. 423 todas as audiências dessa
fase são públicas, sob pena de nulidade, salvo quando a publicidade do ato pudesse acarretar
em tumulto ou prejuízo para o desenvolvimento do ato ou para a segurança dos envolvidos,
quando o juiz presidente poderia determinar a realização do ato à portas fechadas, podendo
decidir tal fato de ofício.
O acusado tinha direito de estar presente na audiência, se estivesse preso, deveria estar
presente no ato, e somente poderia ser retirado da sala, quando seria representado por seu
procurador, no caso de colocar em risco o ato por perigo de fuga ou violência (art. 427-428).
Segundo a ordem topográfica dos artigos, o interrogatório era o primeiro ato do
procedimento e durante o interrogatório do imputado, o juiz presidente poderia contrapor o
que ele dissesse com aquilo que havia dito na fase de instrução (art. 441), comparando as
258

versões e fazendo com que a versão da etapa inquisitória se confirme na fase de debates. O
interrogatório segue sendo um ato do juiz, sendo proibido que o defensor ou qualquer outra
pessoa auxiliem as respostas do imputado (art. 443).
Na sequência do interrogatório, a defesa poderia se manifestar em contestação aos
fatos imputados ao acusado (art. 446), seguindo o interrogatório da parte privada (art. 447) e a
produção da prova testemunhal (art. 448), que prestavam compromisso de dizer a verdade e
eram indagadas pelo juiz e pelas partes, a leitura dos depoimentos das testemunhas prestados
na fase da instrução formal era permitida nos termos do art. 462. Na sequência do
procedimento eram ouvidos os peritos. O falso testemunho, a falsa perícia ou a falsa
interpretação eram considerados crimes e punidos (art. 458).
O artigo 461 esclarece bem o objetivo da fase de debates, porém esconde perigosa
armadilha e mantém vivo o golpe inquisitório napoleônico, segundo o citado artigo, o
objetivo dos debates é discutir e contrapor o produto da fase de instrução ordinária. Outros
documentos levantados pela etapa inquisitória também poderiam ser lidos, conforme art. 463.
Os relatórios, atas, documentos, denúncias, querelas e outros documentos produzidos no juízo
de instrução também poderiam ser lidos e integrar a formação da convicção do juiz da
segunda fase (art. 466). Contudo, ao se permitir o ingresso da fase inquisitória na fase de
debates acaba-se tornando a segunda fase mera instância de passagem para legitimar o
produto da fase secreta, jogando sobre ela a luz do contraditório para iluminar aquilo que fora
feito no escuro e a portas fechadas. Dessa forma, o Código Italiano de 1930 é incapaz de
alterar o sistema inquisitorial, mantendo a armadilha de Napoleão armada e pronta para
atacar.
Ao final da produção da prova, as partes passavam ao debate em contraditório sobre a
prova produzida, atuando em contraditório, porém, não passa de um contraditório simulado,
onde a decisão já era tomada desde a fase de instrução formal, um mero requentado dos
elementos inquisitoriais com uma simulação de ser acusatório. Como restou demonstrado, o
sistema misto não existe: é um verniz para se travestir o sistema inquisitório que não mais
poderia ser aceito.
Após os debates, sob portas fechadas, os juízes proferiam a sentença em nome do rei
(art. 474, 1º). Apesar da fase de debates ser pública, os juízes decidiam a portas fechadas, de
modo secreto (art. 473). Podia a decisão dar ao fato consequência jurídica diversa da
capitulação contida na denúncia ou no mandado de citação, podendo inclusive aplicar pena
mais grave; caso dos debates se verifique que o fato narrado na acusação é diverso, os juízes
deveriam comunicar ao Ministério Público para que a acusação pudesse ser alterada (art. 477).
259

O juiz, tendo elementos para condenar o acusado, poderia perdoá-lo, devendo expor os
motivos na decisão (art. 478), podendo ainda absolvê-lo conforme o art. 479.
Verifica-se que, após a fase de instrução, marcada pela adoção de um sistema
inquisitório, passava-se a um modelo acusatório na segunda fase, permitindo que o réu tivesse
defesa, produzisse provas e debatesse em contraditório as provas e fatos levados ao processo.
Porém, o que parece nem sempre é. Trata-se apenas da manutenção da fórmula travestida do
sistema inquisitorial tal qual fora adotada por Napoleão no Código de 1808, onde todos os
elementos produzidos inquisitorialmente são requentados na fase acusatória, fazendo parecer
que se está em um modelo acusatório e escondendo toda inquisitoriedade do sistema. Apesar
de permitir os debates e a produção de provas na segunda fase, o Código Rocco permite que
tudo que foi produzido inquisitorialmente ingresse na fase de debates e faça parte da formação
da decisão, que será baseada na fase inquisitorial fazendo da segunda fase mero floreio para
aparentar algum grau de acusatoriedade que, de fato, não existe. Como afirma Franco
Cordero:
O princípio do contraditório não é respeitado quando o juiz decide com base nos
autos instrutórios. O mínimo que se pode esperar é uma severa desvalorização do
dibattimento, no qual as leituras tendem a prevalecer sobre o diálogo: o que
desmente muitas das comuns afirmações sobre as maravilhas do processo ―misto‖.
(CORDERO, 2018, p. 20)

O capítulo III do terceiro livro trata do procedimento de transcrição dos debates em ata
(art. 492-496), estabelecendo que toda fase de debate será registrada e que as partes poderão
requerer a inclusão de fatos nos registros. Deverá constar ainda, em resumo, as declarações do
imputado, das testemunhas, peritos, etc.
Já o quarto capítulo do segundo livro trata dos procedimentos especiais, iniciando na
primeira seção com o procedimento para julgamento do réu revel. A segunda sessão trata do
julgamento de rito sumário, aplicado em regra aos procedimentos de competência de tribunais
e dos pretores, mas podendo ser aplicado aos casos de competência da corte de Assises. Nesse
procedimento o Código determina que o preso em flagrante deveria ser apresentado em juízo
até o quinto dia seguinte à prisão (art. 502), e que o imputado não poderia escolher seu
defensor que lhe era nomeado pela corte e pelo Ministério Público. Por sua vez a terceira
sessão prevê a possibilidade do juízo por decreto de competência do pretor, que poderia
processar os crimes de sua competência de ofício e decidir por decreto, independentemente de
debates.
O terceiro título do segundo livro trata dos recursos no processo penal italiano e
estabelece as formas de impugnação das decisões, prevendo recursos de apelação, de cassação
260

e extraordinário. A regra do recurso contra sentença condenatória com pena superior a um ano
era a prisão, sendo que, nesse caso, por força do art. 535, o recurso não seria conhecido se o
acusado não estivesse encarcerado. No mesmo título encontra-se prevista a possibilidade de
revisão da decisão após seu trânsito em julgado, valendo ressaltar que, conforme o art. 553
somente seria cabível a revisão de decisão condenatória, portanto, sempre em favor do
acusado.
O quarto livro do Código Rocco é dedicado à execução penal, tratando de do
procedimento de execução de cada uma das espécies de pena, desde a pena de morte,
privativas de liberdade até às penas restritivas de direitos e pecuniárias, além da execução das
medidas de segurança. Além disso o livro trata do procedimento de reabilitação, dos registros
das sentenças, da execuções cíveis das sentenças criminais.
Já o quinto livro do Código de 1930 trata das relações do Processo Penal italiano com
os Estados Estrangeiros, regulamentando a expedição e cumprimento de cartas rogatórias, o
procedimento de extradição, e o reconhecimento de sentença penal estrangeira.
Em síntese, o Código de Processo Penal italiano de 1930, que serviu de base para o
Código de Processo Penal brasileiro de 1940, adota um modelo de duas fases, que para alguns
é denominado de misto, mas que, na verdade, é apenas o sistema inquisitorial travestido. Na
primeira fase do procedimento tem-se a aplicação do modelo inquisitório, com o juiz da
instrução atuando como protagonista livre para produzir a prova da forma que desejasse, sem
contraditório, sem participação do acusado, que não dispunha sequer do direito de defesa, e de
forma escrita e secreta. Já na segunda fase, debates, o acusado tinha amplo direito de defesa,
contraditório amplo e amplos debates sobre a prova, contudo, era permitida a leitura de
elementos formados na primeira fase do procedimento o que maculava toda segunda etapa e
mantinha o modelo italiano na armadilha armada por Napoleão com seu sistema bifásico, em
resumo, após uma fase de debates simulada, se decide com base no simples relatório policial
(CORDERO, 2000, p. 21). Ou como Franco Cordero afirmou sobre o modelo italiano de 1930
e o dito processo ―misto‖:
Por mais desagradável que seja admitir, os opostos não se permitem conciliar. Quero
dizer que o dibattimento precedido por uma istruzione escrita e secreta tem muitas
probabilidades de se resolver em uma ficção de um processo penal acusatório. De
fato, as provas formadas na etapa anterior se insinuam tal e qual; além disso,
admitindo que devem ser renovadas coram partibus (é o mínimo que se possa
pretender, se se quer que o dibattimento sirva para alguma coisa), tudo depende do
valor que compete aos autos do instrutor. Se os dois depoimentos feitos
sucessivamente pela mesma testemunha são considerados provas de igual hierarquia,
sempre preferível a primeira, o juiz decide com base no que outro magistrado diz ter
aprendido secretamente: no resultado, não se vê uma grande diferença com os
métodos de Valdès e Torquemada. (CORDERO, 2018, p. 19-20)
261

Contudo, após a Segunda Guerra Mundial, com a derrocada do governo fascista de


Benito Mussolini, a Itália passou a ter de enfrentar o espólio dos anos de regime ditatorial,
dentre eles o Código de Processo Penal de 1930, sobretudo após a promulgação da
constituição republicana de 1948. Como sintetiza Marco Aurélio Nunes sobre o contexto da
reforma do Código Rocco:
O contexto histórico é o da discussão da reforma do Codice Rocco, vigente desde is
anos 30, obra do fascismo italiano. Desde 1948, os italianos vinham discutindo as
possibilidades de reforma processual, com brilhantes textos teóricos em inclusive,
com algumas modificações na legislação (mesmo antes do ano do Covegno, 1964),
com destaque para a reformetta del 1955, como a chamou Carnelutti. Todavia, tais
reformas parciais foram insuficientes para uma revisão completa e sistemática do
processo penal italiano. O que se buscava, de fato, era uma reforma global, com a
substituição do Código Rocco, realizada apenas em 1988. (NUNES, 2018, p. 123-
124)

Nesse contexto, o modelo fascista, centrado em um modelo de procedimento secreto


prévio conduzido por juízes, acabou sendo mantido vigente até a 1988 (VOGLER, 2008, p.
188). Nesse sentido, Renzo Orlandi (2016, p. 52) afirma que após a derrota do fascismo,
surgiu subitamente a necessidade de tolher do ordenamento processual os elementos
autoritários típicos do regime derrotado, porém, inicialmente se teve a ilusão de que seria
suficiente apenas uma reforma parcial do Código Rocco. Em complemento, Michele Pifferi
(2010, p. 31-32) aponta que com a queda do fascismo os juristas italianos passaram a projetar
um novo sistema penal, que era uma necessidade urgente para o retorno de princípios
importantes e que faziam parte da história jurídica italiana.
A primeira e mais significativa reforma legislativa na Itália pós-fascista foi a reforma
constitucional de 1948, inspirada no reconhecimento dos direitos fundamentais e na proteção
do indivíduo frente à autoridade. Porém, a Constituição não estabeleceu um modelo orgânico
de processo, não definindo a opção por um sistema acusatório ou inquisitório, porém, em
decorrência do conjunto de garantias asseguradas pela Constituição pode-se dizer que o
processo acusatório seja o mais adequado para sua efetivação. (ILLUMINATI, 2008, p. 145)
Renzo Orlandi (2016) divide a reforma do processo penal fascista italiano em três
momentos, o primeiro entre os anos 1944-1961; o segundo entre 1962-1989 e o terceiro entre
1989-2010. O primeiro período inicia com o fim do regime fascista e foi marcado pelo
repúdio aos excessos autoritários do fascismo com os quais a justiça penal possuía ligação
umbilical. Assim, o primeiro impulso foi pelo retorno ao código de 1913, buscando sua
atualização, porém, de outro lado, uma minoria entendia que a legislação deveria ser mantida
e depurada do viés autoritário introduzido pelo fascismo. No segundo período, entre 1962-
1989, há um efetivo movimento de reforma do processo penal, tal qual desejava Carnelutti,
262

tendo sido instituída uma comissão para a reforma do processo penal, sob a presidência de
Francesco Carnelutti em janeiro de 1962, tendo realizado sucessivas reuniões até maio e
setembro de 1962, resultando no Código de Processo Penal proposto por Carnelutti que
abandonava o modelo napoleônico vigente na Itália nas três codificações anteriores (1865,
1913 e 1930). A proposta de Carnelutti não se converte em projeto de lei, mas consagra a
ideia de que o código devia ser reconstruído e que a reforma de 1955 não era suficiente para a
mudança no sistema processual penal exigida para por fim ao modelo autoritário do Código
Rocco. Em 1974 foi nomeada uma nova comissão, presidida por Giandomenico Pisapia para a
elaboração do novo código, essa comissão entregou o projeto em 1978, quando não havia
clima para uma reforma de natureza ―garantista‖, eis que havia uma grande tensão em razão
de terrorismo e o clamor por normas mais repressoras estava presente. Somente em 1983 os
trabalhos de reforma foram retomados, por uma comissão presidida pelo próprio Pisapia,
tendo a lei delegada ficado pronta em fevereiro de 1987, contendo 105 diretivas, e em
setembro de 1988 estava pronta a versão definitiva do novo Código de Processo Penal, que
finalmente sepultou, na Itália, o Código Manzini. Por fim, após a reforma, a Itália se vê diante
da denominada ―Operação Mãos Limpas‖, que fomentou uma crescente busca por leis mais
severas e pela diminuição das garantias processuais, como resposta aos anseios de punição o
processo penal sofre novas reformas para adotar um modelo mais rigoroso e de menos
liberdade. (ORLANDI, 2016, p. 25-52)
As reformas processuais penais operadas após a queda do regime fascista fazem parte
de um conjunto de reformas promovidas na Itália que Floriana Colao (2017, p. 80-84)
denominou de reformas antifascistas. As reformas operadas nesse primeiro período tinham
por fim resgatar o código liberal de 1913 em substituição ao código fascista (OLIVEIRA e
LOPES JÚNIOR, 2018, p. 350). Tais reformas eram somadas ao Código Rocco e fez com que
se divida o Código Rocco em dois momentos, o código do rito puro, como foi concebido, e o
código reformado que, em decorrência das reformas ganhou uma segunda vida.
As primeiras tentativas de reformas do Código Rocco somente vieram em 1955,
quando, nas palavras de Franco Cordero (2000, p. 78), se exumou do código de 1913
garantias defensivas e instrutórias, nulidades absolutas, prazos máximos de prisão, através da
Lei 517 de 18 de junho de 1955. As reformas de 1955 tinham por objetivo eliminar os abusos
extremos do sistema processual penal fascista, que se chocavam de forma evidente com a
nova ordem constitucional de 1948 (ILLUMINATI, 2008, p. 147). Tais reformas não foram
suficientes, tendo os funcionários judiciais ignorado a maioria, inclusive excluindo os
defensores do procedimento sumário, sendo que desde a década de 1960, se desenvolveu na
263

Itália decisões judiciais e micro reformas pontuais que desenvolveram uma linha inquisitorial
com garantias, sem mudança das estruturas se concede direitos à defesa, mas se mantiveram
os depoimentos secretos.
Renzo Orlandi (2016, p. 35) afirma que as reformas de 1955, apesar de ampla foi
insuficiente para assegurar a necessária eficácia do processo penal e, ao mesmo tempo
inadequada a efetivar os princípios estabelecidos na Constituição de 1948, sendo que uma
efetiva reforma do sistema processual penal demandava colocar em discussão o sistema
―misto‖, que a reforma tinha a intenção de preservar. Cailin Marcie de Poli (2016, p. 123)
afirma que a reforma promovida pela Lei 517/1955 foram as mais significativas e por ela
pontos essenciais do Código fascista foram modificados, como afirma a professora citada, o
art. 199, para criar a obrigação de comunicar a apelação do Ministério Público para o acusado
e a defesa, sob pena de inadmissibilidade da apelação; o art. 277, possibilitando a liberdade
provisória; o art. 304, permitindo o acesso da defesa a todos os atos de seu interesse,
mantendo, contudo, a defesa técnica afastada do interrogatório.
No entanto, mesmo após a referida reforma, apesar do reforço do direito de defesa, a
dialética processual continuou muito limitada, a igualdade entre as partes seguiu sendo apenas
de fachada, pois continuou sendo limitada apenas ao juízo oral, enquanto a fase de instrução
continuava dominada pelo Ministério Público e pelo Juiz de Instrução, e a defesa tinha
participação meramente passiva. O juízo oral seguia tendo acesso ao produto do juízo de
instrução, podendo formar seu convencimento com base nos elementos colhidos na fase
anterior. Em síntese, mesmo com as reformas, manteve-se o sistema inquisitorial, através da
arapuca do sistema misto bifásico de Napoleão em pleno vigor. Assim, a reforma não foi
capaz de efetivar o princípio do contraditório, mantendo o desequilíbrio entre os poderes das
partes. (ILLUMINATI, 2008, p. 147)
No segundo período apontado por Renzo Orlandi (2016), a Itália vivia um período de
crescimento econômico e de migrações internas do sul para o norte do país, que acentuaram
os problemas decorrentes do êxodo urbano como o aumento da violência e a criminalidade,
que passaram a exigir uma nova legislação processual. A busca de reformas profundas foi
ficando cada vez mais latente, não se mostrando suficiente a reforma pontual, como a ocorrida
em 1955, para assegurar a eficácia do processo penal e efetivar, ao mesmo tempo, os preceitos
constitucionais. (OLIVEIRA e LOPES JÚNIOR, 2018, p. 351-352). A reforma de 1955 abriu
caminho para a inserção de garantias individuais e da defesa no corpo autoritário do código
fascista de 1930, contudo, a cultura dominante na época era ainda de que o processo penal
deveria servir apenas à função repressiva do direito penal (RAFARACI, 2010, p. 126). Assim,
264

a reforma pontual de 1955, apesar de inserir elementos garantistas no processo penal italiano-
fascista, não foi capaz de quebrar o autoritarismo do sistema inquisitorial do código, apenas
estabelecendo elementos básicos do direito de defesa que eram insuficientes para uma
modificação sistêmica efetiva.
O primeiro modelo de reforma orgânica do sistema processual penal forjado pelo
fascismo italiano se deu apenas em 1963 com Francesco Carnelutti, tendo como premissas
fundamentais a eliminação da fase de instrução, que seria reduzida apenas a uma averiguação
preliminar privada, sem nenhum caráter probatório, recuperando assim o protagonismo do
juízo oral, como fase principal. Contudo, o projeto Carnelutti nunca foi levado à análise do
Parlamento. (ILLUMINATI, 2008, p. 148)
Em 1964 nova reforma pontual tentou modificar o papel probatório do juiz e das
partes no Código Rocco, contudo, também não foi capaz de alterar o sistema pois não se
mudará o sistema pela modificação apenas de normas, pois o sistema inquisitório estava
arraigado no espírito daqueles que aplicavam o processo penal na vida real. (SILVEIRA,
2017, p. 208).
Já em 1974 a lei de 3 de abril de 1974 tentou novamente aproximar o sistema
processual italiano de um modelo acusatório, trazendo estabelecendo uma fase eventual de
instrução por parte do juiz, com atos limitados às comprovações gerais e à produção de provas
irrepetíveis, além daquelas provas destinadas à absolvição imediata do imputado. Fora desses
casos, cabia ao Ministério Público requerer a abertura de juízo oral, fazendo com que a prova
fosse produzida oralmente e em contraditório. Com essa reforma, a leitura dos atos da
primeira fase somente seria admitida se a prova não pudesse ser realizada no juízo oral.
(ILLUMINATI, 2008, p. 148)
Após as diversas tentativas de reformas pontuais, todas incapazes de alterar o sistema
inquisitório do Código Rocco, operou-se uma virada no processo penal com a revogação deste
e a implementação do Código de 1988, que adotou um modelo acusatório, porém, logo em
seguida, o processo penal italiano iniciou uma nova fase, denominada de regresso por Vassali,
uma vez que apenas a lei havia sido alterada, permanecendo a mentalidade e a cultura
inquisitória vigente dentre os operadores do direito. (POLI, 2016, p. 124)
O novo Código começou a ser pensado em 1978, quando se redigiu um projeto
preliminar que fazia substanciais mudanças no modelo até então vigente, dentre elas a
derrogação da instrução sumária por parte do Ministério Público, que passou a ter um papel
de parte no processo; o reconhecimento do direito à prova; a possibilidade de exame direto
dos testemunhos; a separação das práticas do juízo oral e do juízo de instrução, vedando que o
265

juiz da segunda fase tivesse acesso ao que fora feito na fase instrutória. A lei delegada número
81 de 1987, que determinou a elaboração do Código de 1988, representou a continuidade do
projeto de 1978, porém, resultou alterada a estrutura pensada dez anos antes. No sistema do
Código de 1988 a fase de instrução foi eliminada, sendo atribuídas as diligências de
averiguação com escopo de fundamentar a ação penal exclusivamente ao Ministério Público;
o exercício da ação penal se dá através de uma solicitação de instauração de juízo oral (com
prazo de seis meses prorrogáveis); os autos da instrução não podem ser lidos no juízo oral, já
que seus elementos não possuem valor probatório e apenas as partes têm acesso ao produto da
investigação; as provas pré-constituídas requeridas durante a instrução passaram a ser
produzidas pelo juízo oral e poderiam ser requeridas tanto pelo Ministério Público como pelo
investigado, obedecendo ao contraditório e à ampla defesa, sendo o produto dessas provas
enviado ao juiz que decidirá o caso que poderia se valer delas na decisão. (ILLUMINATI,
2008, p. 148-149)
Nesse contexto, o novo Código buscou modificar a relação autoritária do código
anterior, modificando a relação entre autoridade e pessoa, onde prevalecia sempre a vontade
do Estado em detrimento dos direitos individuais para criar um modelo adequado ao
ordenamento constitucional vigente na Itália pós-fascista. Dessa forma, buscou-se adequar as
normas processuais penais para atuar em conformidade com os princípios constitucionais e as
normas das convenções internacionais ratificadas pela Itália relativas aos direitos da pessoa
humana e os as características do sistema acusatório. (DALIA; FERRAJOLI, 1997, p. 5-6)
Essa mudança para o modelo acusatório não contou com boa receptividade,
principalmente entre os juízes oriundos do sistema anterior e vinculados ao modelo
inquisitivo. Em seus primeiros anos de vigência o Código de 1988 foi atacado por arguições
de inconstitucionalidade. Em 1992, em razão das decisões da Corte Constitucional, a relação
entre as duas fases havia retornado, admitindo-se, com o argumento de que o juiz deveria ter a
faculdade de valoração de todos os elementos de prova, a utilização das declarações obtidas
na primeira fase durante o juízo oral, obrigando que o código fosse reformado para ser
adequado à nova doutrina, tendo sido realizada a reforma em 1997 para permitir apenas que
as declarações do acusado na primeira fase fossem utilizadas no juízo oral. (ILLUMINATI,
2008, p. 149-150)
O Código fascista de 1930 da Itália serviu de base para o Código de Processo Penal
brasileiro de 1941, apenas por isso já seria importante o estudo do modelo italiano. Mas,
como se percebe, não apenas nessa inspiração infeliz se aproximam Brasil e Itália quando se
trata de processo penal. Os dois países produziram os códigos sob regimes autoritários, a
266

Itália sob o regime fascista de Benito Mussolini e o Brasil sob o Estado Novo de Getulio
Vargas. Com a queda do regime fascista a Itália tentou reformar seu código em reformas
pontuais, o que não foi suficiente para afastar sua alma inquisitória que serviu ao governo
autoritário, sendo necessária uma reforma integral, sendo que, por sua vez, foi acompanhada
por uma volta inquisitória em razão da mentalidade dos próprios operadores do direito. No
Brasil se vive um movimento similar ao vivido na Itália dos anos oitenta, apesar de a ditadura
Vargas ter acabado com o fim do Estado Novo (1937-1945), o Código forjado sob batuta
autoritária segue vigente, tendo servido a outra ditadura, Militar (1964-1985) e, após a queda
do regime ditatorial e a Constituição da República (1988), sofreu várias reformas pontuais,
que, contudo, não foram capazes de afastar sua genética inquisitória-autoritária. Juntemos
ainda a mentalidade dos operadores do direito e da própria sociedade brasileira, que mantêm o
processo penal brasileiro como o mais atrasado da América Latina. Todavia, temos a
oportunidade de uma reforma integral do Código de Processo Penal, porém, não se sabe se tal
reforma será suficiente para sepultar o procedimento inquisitorial ainda vigente no Brasil.
267

8 O PROCESSO PENAL BRASILEIRO

Durante o período colonial, o Brasil passou por várias estruturas de administração e


governo. No século XVI, enquanto o país se limitava apenas ao litoral, vigeu o regime das
feitorias, onde não havia a aplicação de normas jurídicas e prevalecia a vontade do feitor.
Entre 1534 e 1549 vigorou o período das capitanias hereditárias, no qual os donatários
recebiam do rei de Portugal extensas faixas de terra com o objetivo de fundar vilas, doar
sesmarias e alistar colonos para fins militares e formação de milícias sob seu comando, nesses
grandes pedaços de terra. Os donatários gozavam de poderes administrativos, econômicos e
do monopólio da justiça, aplicando o direito como entendiam cabível. Com o fracasso das
capitanias, apenas as de São Vicente e Pernambuco prosperaram, o rei de Portugal fixou o
―Regimento do Governo-Geral‖ (1548), que é tido por vários autores como a primeira
constituição do Brasil. Pelo Regimento-Geral, as capitanias foram superadas e o e os esforços
das capitanias foram substituídos pelo fortalecimento do poder central da Coroa Portuguesa.
Somente em 1640, já sob a égide das Ordenações Filipinas, é que foi criado o cargo de vice-
rei do Brasil, porém não houve grande mudança estrutural, apenas a alteração do antigo cargo
de governador-geral para vice-rei. Durante o período colonial, as leis eram um verdadeiro
cipoal de normas, não havendo um sistema jurídico organizado, sendo as Ordenações do
Reino as normas mais importantes, porém, além delas, vigeu no Brasil colônia normas de
direito Canônico, do direito romano, a jurisprudência metropolitana e a jurisprudência
colonial, além dos costumes. A crise do período colonial se dá na passagem do século XVIII
para o século XIX com as ideias dos políticos e intelectuais iluministas, que buscavam dar
organização ao Estado através da Constituição. Com as transformações sociais e
administrativas geradas no período do Reino Unido (1808-1822), período em que a família
real portuguesa veio para a colônia brasileira fugindo da invasão da França napoleônica, o
Brasil começou a ter um pouco mais de autonomia. (CARVALHO, 2007, p. 463-467)
Sobre as capitanias hereditárias, José Afonso da Silva (2001, p. 69-70) afirma que essa
forma de organização fez com que se criassem núcleos completamente dispersos e
independentes entre si, nos quais os donatários tinham poderes quase absolutos e exerciam
seu governo com jurisdição cível e criminal através da nomeação de ouvidores e de juízes que
eram eleitos pelas vilas. ―Aos donatários foram outorgados as jurisdições civil e penal,
especicados nas cartas de doações ou forais.‖ As cartas de doação davam aos donatários
jurisdição de morte para os peões, gentios e escrabos com até dez anos de degredo.
(PIERANGELLI, 1983, p. 71)
268

Paulino Jacques aponta que no período do Vice-Reinado, as normas jurídicas eram


estabelecidas através do Regimento, que era complementado por ordenações avulsas do rei,
como cartas régias, alvarás e provisões, formando um cipoal de normas, como afirmamos
acima. Em casos de omissões, em matéria cível e criminal, tal emaranhado normativo era
complementado pelas Ordenações do Reino. Segue Paulino Jacques apontando que a justiça
era administrada pelas ouvidorias gerais, ouvidorias de comarca, juízes de fora e juízes
ordinários, cada um com sua jurisdição e competência. Das decisões de primeiro grau cabia
recurso ao Tribunal de Relação, instituído em 1609 na Bahia, suprimido em 1626 e
restabelecido em 1652, já na fase de vice-reinado. Em casos especiais, poderia recorrer à
terceira instância através das cassas de suplicação em Lisboa e o desembargo do paço,
presidido pelo rei funcionava como supremo tribunal de justiça contenciosa e administrativa.
(JACQUES, 1977, p. 66-67)
Acrescente-se ainda que a fase monárquica brasileira teve início com a chegada de
Dom João VI e a vinda da família real portuguesa com sua corte para as terras da colônia no
ano de 1808, e se efetivou aos poucos com o passar do tempo. Em 1815 o Brasil é elevado à
condição de Reino Unido a Portugal e, consequentemente extinto o sistema colonial, dando o
primeiro passo para a futura declaração da independência em 1822. (SILVA, 2001, p. 72-73)
Duas revoltas contra a coroa portuguesa foram de grande importância para a
independência brasileira, a Inconfidência Mineira (1789) e a Revolução Pernambucana
(1817). Além das revoltas ocorridas no Brasil, o movimento constitucionalista estabelecido
em Portugal após a revolução do Porto (1820), houve a reunião das Cortes Constituintes em
Lisboa no dia 26 de janeiro de 1821, que culminou com a elaboração da Constituição
Portuguesa de 1822 e contou com a participação de Deputados brasileiros que eram eleitos
pelas províncias. No Brasil, esse movimento constitucionalista levou à convocação de
assembleia Constituinte, convocada pelo príncipe regente Dom Pedro e convocada no dia 3 de
janeiro de 1822 para a elaboração da Constituição. Com a determinação do retorno do
príncipe regente Dom Pedro para Portugal e sua recusa em retornar, ato que entrou para a
história como ―dia do fico‖, 9 de janeiro de 1822, seguiram-se vários atos de ruptura com a
metrópole, culminando com a independência no dia 07 de setembro de 1822. Após a
independência foi instalada em 3 de maio de 1823 a Constituinte composta por 26 bacharéis
em Direito e cânones, 22 desembargadores, 19 clérigos e 7 militares. Em seu discurso na
instauração da Constituinte, o Imperador Dom Pedro I proferiu discurso em que deixava claro
que acima dos poderes da Constituição estavam os poderes reais, afirmando que esperava que
a Constituinte elaborasse um texto digno de sua aprovação. A Constituinte foi dissolvida no
269

dia 12 de novembro de 1823 por desentendimento com o Imperador, tendo Dom Pedro I, por
decreto editado no mesmo dia, instituído Conselho de Estado que elaborou o texto que viria a
ser a Constituição de 1824. (CARVALHO, 2007, p. 467-471)
A independência foi motivada sobretudo pela nobreza brasileira, que se constituía
através de grandes latifúndios e que era numerosa, rica, orgulhosa e esclarecida pelas ideias
vindas dos centros urbanos e cultos, principalmente, Rio de Janeiro e Pernambuco. Além da
citada nobreza haviam também uma aristocracia intelectual graduada pelas universidades
europeias que teve significativa influência na formação política daquela época. As novas
teorias trazidas pelos dois centros de reformas eram trazidas da Europa e tinham como eixos
central o liberalismo, o parlamentarismo, o constitucionalismo, a democracia e a república.
(SILVA, 2001, p. 73)
Até a independência, o Brasil fora regido pelas leis portuguesas, sobretudo pelo direito
das Ordenações. Mesmo após a declaração da independência brasileira, as normas
portuguesas seguiram tendo vigência, eis que somente no dia 25 de março de 1824 é que foi
publicada a primeira constituição brasileira pelo Imperador Dom Pedro I, instituindo
juridicamente o Estado Brasileiro.
No dia 20 de outubro de 1823 a Assembeia Geral Constituinte e Legislativa do
Império decretou a validade de todas as leis, regimentos, alvarás, decretos e resoluções
promulgadas pelos Reis de Portugal editadas até 25 de abril de 1821, data em que Dom João
VI retornou para Portugal, bem como daquelas editadas após aquela data e que haviam sido
editadas pelo Regente no Brasil e pelo Imperador e que não tivessem sido expressamente
revogados. (PIERANGELLI, 1983, p. 83-85)
É importante observar que o Brasil se faz independente de Portugal apenas pela
proclamação de Dom Pedro I, sendo que se manteve dependente de Portugal ao conservar as
normas vigentes e, principalmente, o poder nas mãos da antiga família real portuguesa que
passou a ser a família real brasileira. Não houve uma ruptura de fato e de direito com a antiga
metrópole, simplesmente, uma separação formal que manteve o modelo processual vigente
em Portugal ainda presente no Brasil.
O processo penal no Brasil somente teve início com o Código de Processo Penal de
Primeira Instância, editado em 1832 e que revogou parcialmente as Ordenações Filipinas
naquilo que dizia respeito ao processo penal, contudo as Ordenações seguiram vigentes até
serem integralmente revogadas em 1916 com a publicação do Código Civil.
O estudo da estrutura constitucional conjugado com a estrutura processual penal é
importante para compreendermos o modelo de processo penal que o Brasil adotou desde sua
270

fundação. Assim sendo, o que será objeto de análise é o processo penal aplicado em conjunto
com a estrutura constitucional de cada época, estabelecendo os elementos acusatórios e
inquisitórios e tentando estabelecer o modelo adotado em cada um dos períodos da história do
Brasil enquanto nação, durante esses quase dois séculos como uma nação independente.
O presente capítulo será fundamental para a compreensão sistêmica da cultura
inquisitória que ainda insiste em se fazer presente na prática jurídica brasileira, que teve
origem nas normas e práticas estrangeiras, como foi demonstrado nos capítulos antecedentes,
mas que segue viva cultura inquisitorial brasileira, mesmo após a promulgação da
Constituição de 1988.
É importante ressaltar que o Brasil, desde sua independência sempre oscilou entre
regimes democráticos e ditatoriais, sendo certo que pela maior parte do tempo os modelos
autoritários prevaleceram e se valeram do processo penal como instrumento de controle. Além
disso, vale destacar que o Brasil ao longo dos quase dois séculos que representam sua curta
história pós independência, teve oito textos constitucionais116, porém, como afirmam Daniel
Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto (2017, p. 97), ―se sobram constituições, faltou-nos
constitucionalismo. A maior parte das constituições que tivemos não logrou limitar de forma
eficaz a ação dos governantes em favor dos direitos dos governados‖.
Dessa forma, para iniciarmos o estudo proposto no presente capítulo, devemos iniciar
pela Constituição do Império, de 1824, que vigeu até a proclamação da República e o
nascimento da Constituição de 1891, sendo a mais longeva Constituição que o País já possuiu,
tendo vigorado por apenas 67 anos, e durante sua vigência sendo publicado o Código de
Processo Penal de Primeira Instância (1832) e o Código Criminal do Império (1832). Na
sequência estudaremos as constituições de 1934, 1937 (sob a qual foi publicado o Código de
Processo Penal de Getúlio Vargas, em 1941 e o Código Penal de 1940); a Constituição de
1946; a Constituição de 1967 e a emenda de 1969, obras da ditadura militar e, por fim a
Constituição de 1988, apelidada de Constituição Cidadã. Em cada uma das constituições o
processo penal foi objeto de emendas e alterações, que serão analisadas de acordo com o
contexto do tempo constitucional da reforma processual penal.

116
Há controvérsias sobre a emenda constitucional de 1969 e se a mesma configura uma constituição autônoma,
consideramos no texto como uma emenda à Constituição, porém face à sua abrangência contabilizamos a mesma
como uma das oito constituições da história brasileira.
271

8.1 O processo penal imperial e a reprodução inquisitorial-napoleônica no Código de


Processo Criminal de 1832

A independência do Brasil, em 07 de setembro de 1822, se deu de maneira bastante


diferente dos demais países da América Latina. Enquanto na América espanhola a
independência se deu através de processos violentos, através de conflitos armados e originou
várias repúblicas derivadas desmembradas, no Brasil a independência manteve a unidade do
país e conservou a monarquia como forma de governo, inclusive sendo mantida a mesma
dinastia dos tempos de colônia: os Bragança. (SOUZA NETO e SARMENTO, 2017, p. 98)
Em 1808 a família real portuguesa foi forçada a vir para o Brasil em fuga das tropas
francesas de Napoleão, tornando-se o Brasil sede do império português, o que ocasionou uma
série de medidas que deram ao Brasil maior autonomia como a abertura dos portos às ―nações
amigas‖, a permissão para a instalação de manufaturas e da impressão de livros e jornais,
além da fundação de universidades e da criação do Banco do Brasil. Ao ser declarada a
independência, o Brasil fazia parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve criado em
1815. Em 1817, passada a ameaça napoleônica, teve início em Portugal um movimento pela
volta da família real, tendo culminado com a revolução constitucionalista do Porto em 1820
que exigia o retorno de Dom João VI imediatamente e buscava limitar o absolutismo
monárquico e a relativa autonomia brasileira. Em 1821 o rei Dom João VI retorna para
Portugal e deixa seu filho Dom Pedro I como príncipe regente à frente do governo brasileiro,
porém as cortes portuguesas não ficaram satisfeitas apenas com o retorno do rei e passaram a
pressionar pela volta de Dom Pedro I, o que ocasionou o famoso ―dia do fico‖. (SOUZA
NETO e SARMENTO, 2017, p. 98-99)
Antes mesmo da proclamação da independência já havia sido prevista a realização de
eleições com o escopo de eleger uma Assembleia Nacional Constituinte no Brasil, contudo as
eleições ocorrem somente após a independência, e em maio de 1823 são iniciadas as reuniões
da assemblea, que já em sua abertura escuta o imperador se apresentar como ―Imperador
Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil‖ e dizer que se comprometeria a defender a
futura constituição desde que ela fosse digna do Brasil e do imperador, mostrando já nesse
discurso sua ambiguidade em relação a seu compromisso com o constitucionalismo. (SOUZA
NETO e SARMENTO, 2017, p. 99-100)
O pensamento liberal prevalecia na assembleia, exceto em relação à escravidão e os
caminhos da comissão levavam à adoção de uma monarquia constitucional pautada na
separação de poderes e com rígidas limitações ao poder do imperador, o que desagradou a
272

Dom Pedro I que dissolveu a assembleia em 12 de novembro de 1823 e covocou uma nova
constituinte prometendo apresentar um projeto ainda mais liberal. (SOUZA NETO e
SARMENTO, 2017, p. 100)
Vale dizer que o Imperador atuou de forma ativa na elaboração da constituição
imperial, tendo rascunhado artigos e ditado parte do texto, formando uma base que seria
utilizado na construção do texto final. (PIERANGELLI, 1983, p. 86)
A dissolução da assembleia constituinte pelo Imperador já mostra que desde a
fundação do Estado Brasileiro não se cultivou um grande apreço à constituição e ao
constitucionalismo, de modo que se não está ao gosto do Imperador ele não se via obrigado a
seguir com o projeto. Outro fato que chama a atenção é a contradição de um projeto liberal
que conservava a escravidão, que tornou esse liberalismo capenga e forjado na coisificação do
ser humano.
A criação da comissão do imperador foi composta por dez integrantes e batizada de
Conselho de Estado, sendo que foi mantida a estrutura do projeto da comissão dissolvida e a
única diferença foi a criação do Poder Moderador. Para evitar a pecha de tirano o imperador
submeteu o projeto a aprovação pelas câmaras municipais e pediu sugestões das mesmas,
tendo a maioria delas pedido apenas que o Imperador jurasse o projeto como a nova
Constituição, tendo seu texto entrado em vigor em 25 de março de 1824. (SOUZA NETO e
SARMENTO, 2017, p. 100-101)
A Constituição de 1824 restou caracterizada pela instituição do absolutismo tardio no
Brasil ao tratar da organização política, por outro lado, gozava de grandes influências liberais
naquilo que tangenciava aos direitos individuais. A principal inspiração dessa constituição
foram os projetos de Antônio Carlos e Martim Francisco, sendo que o primeiro era mais
liberal que o segundo, além de ter se baseado na Constituição da França (1814) e de Portugal
1822), e inovando ao estabelecer o ―Poder Moderador‖ e a possibilidade da ―dissolução da
Câmara dos Deputados‖ pelo imperador. (CARVALHO, 2007, p. 471)
O texto constitucional do império teve vigência pela Carta de Lei datada de 25 de
março de 1824 declarando ―em nome da Santíssima Trindade‖ o texto constitucional do
império. Em seu primeiro título a Constituição estabelece as normas atinentes ao império, seu
território, governo, dinastia e religião, estabelecendo que o império era formado pela
associação política de todos os brasileiros que formavam uma nação livre e independente.
Estabelecia a religião católica como religião oficial, permitindo o culto privado de outras
religiões, contudo, proibindo qualquer expressão exterior de templo. Já o segundo título
estabelece quem seriam os cidadãos brasileiros. Vale destacar que a Constituição estabelece
273

em primeiro lugar as instituições do Estado, deixando os direitos individuais relegados para o


final de seu texto, demonstrando inequivocamente que, para os constituintes, o Estado estava
em posição de superioridade em relação aos indivíduos.
Nesse contexto, restou estabelecida a monarquia hereditária como forma de governo e
foi atribuída a dinastia de Dom Pedro I como a linhagem real da coroa brasileira,
considerando o imperador como sagrado e inviolável, além de imune a qualquer forma de
responsabilização. (SOUZA NETO e SARMENTO, 2017, p. 101)
Interessante destacar a estrutura do Estado na Constituição de 1824, dividida em
quatro poderes políticos que deveriam ser harmônicos: Poder Legislativo, Poder Moderador,
Poder Executivo; e Poder Judicial, sendo que o Imperador exercia concomitantemente o Poder
Executivo e o Poder Moderador. A centralização dos poderes nas mãos do imperador resta
evidenciada pela existência do poder moderador e também pela possibilidade de interferência
dele no processo legislativo, já que, conforme o art. 13 da Constituição do Império, ―o Poder
Legislativo é delegado à Assembléia [sic] Geral com a sanção do Imperador.‖ (JACQUES,
1976, p. 72)
O Poder Legislativo, dividido em sistema bicameral entre Câmara dos Deputados e
Senado, ocupa o quarto título entre o art. 13 e o art. 97. Interessante notar que os deputados
exerciam mandato eletivo e temporário (art. 35) enquanto os senadores teriam cargo vitalício
e seriam nomeados através de eleição pelas províncias (art. 40-41), sendo que a província
elegeria uma lista tríplice e o senador seria indicado pelo imperador (art. 43), além dos
senadores eleitos pelas províncias, os príncipes da casa imperial também tinham o cargo de
senadores tão logo completassem vinte e cinco anos de idade (art. 46).
As eleições eram indiretas, sendo que os votantes elegian os eleitores (eleição em
primeiro grau) e esses que elegiam os titulares dos cargos (eleição em segundo grau). Além
disso o voto era excluisivo dos homens livres (mulheres e escravos não poderiam votar) e
somente poderia votar quem tivesse renda suficiente, 100 mil réis por ano para votar na
eleição de primeiro grau e 200 mil na de segundo grau, 400 mil réis anuais para poder
concorrer ao cargo de deputado e 800 mil para o senado. (SOUZA NETO e SARMENTO,
2017, p. 101)
O título 5º era destinado ao Imperador, sendo dividido em dois capítulos, um para o
Poder Moderador e outro para o Poder Executivo, construindo um sistema político do império
que passava obrigatoriamente pelo imperador cuja função centralizava de forma absoluta os
principais poderes e os exercia de forma a controlar os demais poderes.
O poder moderador era uma novidade da Constituição de 1824 e uma exclusividade
274

brasileira, apesar de baseado na obra de Benjamin Constant ele sequer foi experimentado na
França, bem como a ―importação‖ do instituto proposto por Constant não se deu de forma
adequada, pois o pensador francês pensou o poder moderador como um poder neutro e
imparcial, com objetivo de manter a harmonia entre os demais poderes, porém no Brasil isso
não seria possível já que o Imperador acumulava o Poder Moderador e o Poder Executivo. O
poder moderador chegou a ser chamado de ―constitucionalização do absolutismo‖, tamanha
fora a concentração de poderes nas mãos do imperador. (SOUZA NETO e SARMENTO,
2017, p. 103)
O Poder Judicial é previsto no sexto título da Constituição, sendo composto por juízes
e jurados, com competência civil e criminal (art. 151), sendo que o julgamento se dava por
jurados, competindo aos juízes a aplicação da lei (art. 152). Apesar de vitalícios, os juízes de
direito não gozavam de inamovibilidade (art. 153), valendo destacar que somente poderiam
perder o cargo por sentença (art. 155), contudo, os juízes poderem ser suspensos por ordem do
imperador (art. 154). O princípio da publicidade nos processos penais era assegurado apenas
depois da pronúncia, sendo públicas as audiências para inquisição das testemunhas e todos os
demais atos do processo (art. 159). As partes poderiam nomear árbitro nas ações cíveis e nas
ações penais de inciativa privada (art. 160). Sobre a organização da justiça criminal, afirmou
José Antônio Pimenta Bueno:
A organização judiciária quanto ao crime não só demanda garantias idênticas às que
referimos, mas ainda maiores.
É sabido que a polícia administrativa não só é distinta da justiça como da própria
polícia judiciária. Cumpre porém, que mesmo esta esteja bem separada da justiça,
são entidades diversas e que não devem de modo algum ser confundidas.
A polícia recebe as denúncias ou queixas, colige indícios, forma o sumário, prende
os indiciados, e entrega tudo à justiça, pois que aí para sua ação. Ativa, pronta,
governa-se por presunções, opera e decide sempre por modo sumário e provisório. A
justiça pensa refletidamente, examina as provas sem suspeita, as missão é de julgar
definitivamente e com inteira imparcialidade.
Se é de necessidade da polícia que a polícia prenda para que o indiciado não fique
impune pela evasão, é também mister que um juiz circunspecto examine desde logo
se procedem ou não os motivos da prisão.
Sem uma separação completa entre a polícia e a justiça, sem leis claras, que
determinem os únicos motivos em que aquela possa prender, mormente por
prevenção, não haverá perfeita segurança. (PIMENTA BUENO, 1978, p. 332-331)

Apesar da prometida independência do Poder Judicial, o Imperador podia, em razão do


Poder Moderador suspender magistrados por queixas recebidas. Além disso, a Constituição de
1824 não contemplou mecanismos de controle de constitucionalidade
Somente no título 8º é que são previstas as garantias dos direitos civis e políticos dos
indivíduos, em conjunto com as disposições gerais. No último artigo da Constituição de 1824
275

encontram-se previstas as garantias fundamentais e os direitos individuais (art. 179), havendo


previsão do princípio da legalidade (inciso I); do princípio da irretroatividade da lei (inciso
II); da livre manifestação e expressão do pensamento, mediante responsabilidade por danos
causados (inciso IV); da liberdade religiosa (inciso V); da liberdade de locomoção (inciso
VI); da inviolabilidade do domicílio (inciso VII); da vedação à prisão antes da formação da
culpa, salvo os casos previstos em lei (inciso VIII), podendo o preso prestar fiança nos casos
em que a lei a admitia ou o réu livrar-se solto quando a pena não superasse seis meses de
prisão ou desterro (inciso IX); da garantia de que o indivíduo somente poderia ser preso em
flagrante ou por ordem da autoridade competente (inciso X); do princípio do juízo natural
(inciso XI); da independência do Poder Judicial (inciso XII); do princípio da igualdade
perante a lei; princípio da responsabilidade criminal pessoal ou intranscendência da pena
(inciso XX); inviolabilidade de correspondência (inciso XXVII).
Os direitos dispostos no art. 179 da Constituição do Império representaram uma
importante ruptura com o modelo antes adotado pelo livro V das Ordenações Filipinas, eis
que levavam a adoção de um processo penal regido por princípios garantidores menos
inquisitorial que o anterior (PIERANGELLI, 1983, p. 86). De toda forma, ainda que com os
novos princípios constitucionais, a inspiração no Código Francês de 1808 fez do processo
penal brasileiro durante o império romper com a inquisição pura mas manter-se filiado ao
modelo inquisitorial ao adotar a falácia do sistema misto que, na verdade nada mais é que a
forma travestida do modelo inquisitório no qual se faz parecer que se tem alguma forma
acusatória.
No texto constitucional de 1824 não há previsão expressa da existência de Ministério
Público e nem quanto à titularidade da ação penal, ficando a matéria para ser regulamentada
por lei infraconstitucional.
Logo após a vigência da constituição de 1824, no dia 31 de março de 1824 foi editada
a Decisão nº 78, que determinava que os juízes fundamentassem suas sentenças ―afim de
conhecerem as partes as razões, em que se fundaram os julgadores as suas decisões‖. E pela
Decisão de nº 81 se determinou que o juiz que realizasse a devassa era impedido de julgar o
caso penal. (PIERANGELLI, 1983, p. 92, citações literais das decisões citadas)
Outra importante Lei é a de 11 de setembro de 1826 que determinou que as sentenças
de pena de morte somente fossem executadas após serem submetidas à apreciação do Poder
Moderador.
Após dez anos de vigência da Constituição, foi editado um ato adicional através da Lei
nº 16 de 12 de agosto de 1834 que alterou a Constituição do Império, porém tem sua matéria
276

restrita à estrutura do Poder Legislativo e a criação das assembleias das províncias. Por sua
vez a Lei 105, de 12 de maio de 1840 foi editada para interpretar os artigos da reforma de
1834.
O texto constitucional de 1824 não tem nos direitos fundamentais seu marco central,
pelo contrário, ao os constituir na última parte de seu texto demonstra claramente a pouca
importância que os mesmos possuíam naquele período. Também não são estabelecidas
garantias processuais no texto constitucional, deixando a regulamentação ao texto do Código
de Processo Penal que viria a ser editado em substuição às Ordenações Filipinas. Não foi
estabelecido um núcleo processual constitucional, trata-se de uma constituição liberal, onde a
Carta Imperial busca a mínima interferência na esfera privada e, através de um texto enxuto,
relega às normas infraconstitucionais, com o mínimo de limitações, a previsão das normas
processuais.
Os federalistas, entretanto, já estavam presentes na Constituinte de 1823, tendo
permanecido durante a fase imperial provocando rebeliões como as ―Balaiadas‖,
―Cabanadas‖, ―Sabinadas‖ e a ―República do Piratini‖, buscando de todas as formas instaurar
uma monarquia federalista no Brasil, inclusive por processos constitucionais (1823 e 1831).
De outro lado o republicanismo também estava presente desde antes da independência, com a
inconfidência mineira de 1789 e revolução de Pernambuco de 1817, tendo ganhado força na
constituinte e em 1831 para brilhar na ―República de Piratini‖ (1836) e ganhar força
definitivamente em 1870 e se desenvolver até 1889, quando as forças republicano-federalistas
tombaram o império, por decreto, instituíram a república em 15 de novembro de 1889.
(SILVA, 2001, p. 76- 77).
O primeiro Código de Processo Penal editado no Brasil, e que veio a substituir as
Ordenações Filipinas no que tange ao Processo Penal foi editado sob a égide da Constituição
do Império e adotou um sistema inqusitório à moda do Código de Instrução Criminal Francês
de 1808, que, dada à influência iluminista na independência do Brasil, foi uma das referências
do primeiro Código processual penal brasileiro.

8.1.1 O Código de Processo Penal de Primeira Instância (1832) e a reprodução do modelo


inquisitóral-napoleônico

Com a independência do Brasil em 1822 e a Constituição de 1824 era necessário que


fossem elaboradas normas adequadas à nova realidade e adequadas à nova norma
constitucional. Assim, iniciou-se no Brasil um processo de profunda produção legislativa que
277

somente terminaria com o Código Civil de 1916, já editado sob a égide da Constituição de
1891). Esse movimento tinha por fim sepultar de vez as Ordenações Filipinas que ainda
estavam vigentes, como afirmou Vicente de Paulo Vicente de Azevedo:
A Constituição do Império, 25 de março de 1824, trouxe a promessa de que breve
seriam promulgados os Códigos civil, comercial, criminal e de processo. O Código
Criminal, o primeiro a ser promulgado, veio substituir as famigeradas Ordenações
do Reino, cujo livro V encerrava a matéria relativa, tanto ao direito, como ao
processo penal. Data de 18 de dezembro de 1830. É um monumento legislativo de
valor jurídico internacional, que muito nos honra. É adiantadíssimo para a época.
O Código de Processo Criminal veio logo depois, é de 28 de novembro de 1832.
Enquanto o Código Criminal é original, não se assemelhando acentuadamente, a
nenhum dos códigos então vigentes, - o Código de Processo Criminal revela
nitidamente a influência do Código de Instrução Criminal da França. (AZEVEDO,
1958, p. 41)

Duas conclusões importantes podem ser extraídas do trecho acima citado: Uma que o
Direito Penal e Processual Penal, como instrumentos de controle social que são, fizeram com
que seus referenciados códigos fossem elaborados com prioridade, porém, a prioridade do
sistema punitivo foi maior que a do processo penal. Duas que o Código pouco inovou, ao
contrário do Código Penal que é tido como avançadíssimo para a época, o Código de Processo
Penal foi beber na fonte napoleônica, trazendo para o Brasil o sistema inquisitório travestido
na forma do denominado sistema misto e que até hoje ainda está presente entre nós.
Geraldo Prado (2006, p. 170) aponta que o Código de Processo Criminal de Primeira
Instância é fruto da euforia liberal, que levou à edição das Decisões do Governo nº 78 e 81
determinando aos juízes que se declarassem incompetentes para julgar aqueles que houvessem
atuado na fase de devassa. Nesse contexto, o Código de 1832 representou uma evolução em
relação ao sistema das Ordenações Filipinas.
Por essa razão, se considerarmos a brutalidade dos procedimentos das Ordenações
Filipinas haveremos de acatar a tese da evolução do sistema processual que as
sucedeu, em que pese a intensa concentração de poderes nas mãos dos juízes de
direito, municipais e de paz, encarregados de deflagrar o processo penal
condenatório, por crime público, independentemente de provocação do ofendido ou
de qualquer do povo.
Cumpre salientar que, ao lado da atuação judicial ex-offício, que permitia ao
magistrado iniciar e formar o corpo de delito e iniciar e concluir a sumaria
inquirição das testemunhas (sumário de culpa), havia as designadas ação penal
pública (a cargo do promotor público ou de qualquer do povo, ut civis(, particular e
as denúncias policiais. (PRADO, 2006, p.170)

José Henrique Pierangelli (1983, p. 103) afirma que o Código de 1832 adotou o
sistema misto, tendo ficado entre o modelo acusatório adotado na Inglaterra e o modelo misto
adotado na França, com uma fase inquisitória e outra acusatória, afirmando que nosso código
era mais liberal que o francês já que o acusado naquele sistema era tratado de forma
278

inferiorizada em relação ao acusador e a atividade probatória do juiz era realizada de forma


intensa e ocorria em um modelo escrito, secreto e não contraditório. Como dito o sistema
misto não pode ser tido como um sistema processual autônomo, o que faz da conclusão do
professor Pierangelli ser equivocada, e a análise do código de 1832 mostra que o mesmo se
aproxima mais do código francês de 1808, que era inquisitorial como já ficou assentado. O
Código de Processo Criminal do império era, portanto, um código inquisitorial que adotava a
forma travestida do sistema inquisitivo que entrou para a história com o nome de sistema
misto.
Já na introdução o Código de Processo Penal do império deixa claros seus objetivos,
buscar o equilíbrio entre os meios de combate ao crime e as garantias que devem cercar a
inocência, conciliando o interesse da sociedade na punição do criminoso com a segurança
social. Ainda na introdução, se esclarecia que os processos criminais poderiam ser iniciados
por queixa do particular, denúncia do Ministério Público ou de ofício, pelas autoridades
constituídas, podendo-se classificar os crimes entre privados, públicos ou policiais.
O Código de Processo Penal imperial inicia seu texto estabelecendo as normas de
organização judiciária. A divisão territorial da jurisdição era feita entre distritos de paz,
termos e comarcas (art. 1º), sendo que apenas nas últimas havia juízes de direito, sendo que
nas comarcas mais populosas poderia haver até três juízes de direito sendo que um deles
exerceria a função de chefe de polícia (art. 6º) e em cada termo havia um juiz municipal, um
promotor público um escrivão e quantos oficiais os juízes entendessem necessário (art. 5º).
A jurisdição nos distritos era exercida pelos juízes de paz com o auxílio dos escrivães
e dos fiscais de quarteirão. Aos juízes de paz era destinada a atribuição para atuar como
polícia administrativa e judiciária (art. 12) e a competência para julgamento dos crimes aos
quais fosse atribuída, no máximo, pena de multa de até cem mil réis (art. 12, §7º).
Nos termos a jurisdição era exercida pelos jurados, pelos juízes municipais e pelos
promotores públicos. Aos juízes municipais era dada a competência de exercer a jurisdição
policial (art. 35). Aos promotores era atribuída a função de fazer a acusação dos delitos e
requerer a prisão de seus autores (art. 37).
Os juízes de direito eram nomeados pelo imperador, conforme art. 102, III da
Constituição do Império, dentre os bacharéis em direito com mais de vinte e dois anos com
pelo menos um ano de prática forense (art. 44). A nomeação dos juízes pelo imperador
colocava os juízes vinculados ao chefe do executivo e fazia com que os magistrados se
colocassem em posição de parcialidade em relação aos casos que vinculassem interesses do
imperador, prejudicando a independência necessária para a função. A inamovibilidade dos
279

magistrados é garantida pelo artigo 45 do Código Penal de 1824. Aos juízes de direito
competia a presidência do júri, cabendo-lhe organizar e manter a ordem nas sessões de
julgamento, exercendo inclusive poder de polícia (art. 46).
As audiências eram públicas, devendo ser realizadas a portas abertas (art. 59),
podendo ser realizadas em local próprio ou até mesmo na casa do juiz (art. 58), as partes e
espectadores permaneciam sentados, devendo, contudo estar de pé para se dirigirem ao juiz
(art. 60), o fato de a lei estabelecer a obrigatoriedade de somente dirigir a palavra ao juiz
estando de pé já indica que o juiz exerce o papel de protagonista na audiência, demonstrando
a existência de uma relação de poder e hierarquia onde o juiz se encontra em posição de
superioridade em relação aos demais sujeitos. A imparcialidade do juiz era buscada com a
possibilidade de ser reconhecida sua suspeição ou de o juiz ser recusado pelas partes (Art. 61-
71).
A ação penal poderia ser iniciada por queixa, cuja titularidade era do ofendido (art.
72), nos crimes de ação penal privada. Por sua vez, poderia iniciar a ação penal pública,
através de denúncia, o Promotor Público ou qualquer pessoa do povo (art. 74). Os requisitos
para a denúncia ou a queixa estão previstos no art. 79 sendo similares aos vigentes ainda nos
dias de hoje: a narração do fato criminoso com todas suas circunstâncias; valor do dano
sofrido; nome do autor do crime, ou na expressão do código do ―delinquente‖, ou seus sinais
característicos; as razões de convicção ou de presunção; nomeação dos informantes e das
testemunhas; o tempo e o lugar do crime. Os juízes poderiam arguir o denunciante ou o
queixoso para descobrir a verdade e buscar os elementos necessários à arguição das
testemunhas (art. 80).
O Ministério Público ainda existia de forma insipiente, o que fazia com que o juiz
normalmente atuasse em seu lugar de ofício (PIERANGELLI, 1983, p. 112). Essa atividade
supletiva do magistrado em relação ao acusador é a característica primordial de um modelo
inquisitório, o que já demonstra a inquisitividade do sistema do código criminal de primeira
instância de 1832. A possibilidade de atuação do magistrado em lugar do Ministério Público
demonstra a adoção de um modelo inquisitorial e afastado dos preceitos que regem o sistema
acusatório.
As testemunhas poderiam ser arroladas pelas partes ou escolhidas pelo juiz de ofício
(art. 84), o que denota a possibilidade de que o juiz pudesse buscar provas de ofício e nos
coloca diante de um sistema inquisitorial. Além da prova testemunhal de ofício, a regra era
que a acareação entre as testemunhas divergentes também fosse realizada sem a provocação
das partes e à critério do juiz (art.96). O interrogatório era ato privativo do juiz e as perguntas
280

a serem realizadas encontravam-se previstas pelo Código (art. 98 e 99), não havendo previsão
da participação das partes na arguição do acusado.
Interessante notar que em caso de prisão em flagrante, o preso deveria ser levado à
presença do juiz de paz (art. 131), competindo a ele a lavratura do termo de prisão onde
constaram o interrogatório do preso e a oitiva das testemunhas (art. 132), se das oitivas restar
a suspeita da prática do crime o juiz de paz mandará o preso em custódia, salvo se for o caso
dele se livrar solto ou o crime admitir fiança (art. 133). A prisão durante o processo era a
regra do código de processo penal de 1832, conservando assim uma das marcas inquisitoriais.
O procedimento penal do Código de Processo Penal do Império era baseado no
procedimento bifásico do Código Napoleônico de 1808, podendo ser dividido ordinariamente
entre a formação da culpa e o processo ordinário. Destaca-se o nome da primeira fase que
deixa claro seu objetivo, formar a culpa do acusado através de um procedimento inquisitorial,
formal, burocrático e sem a participação da defesa, sendo que a formação da culpa poderia se
dar enquanto não ocorresse a prescrição do delito e se tratava de uma fase secreta (art. 146),
podendo, contudo, o juiz de paz proceder à formação da culpa a todo tempo enquanto não
ocorresse a prescrição do delito (art. 149). A importância de separar as duas fases é destacada
pelo jurista da época José Antônio Pimenta Bueno:
Uma outra separação que não deve ser olvidada por uma boa organização judiciária
é a da competência da pronúncia e do julgamento. Convém muito que o magistrado
que julga definitivamente seja diverso do que pronunciou, isto é, do que formou a
pronúncia.
Com efeito, o que interveio na pronúncia pode mesmo involuntariamente ficar
prevenido, perder a imparcialidade, a plena liberdade de espírito que o julgador deve
ter. A tarefa da pronúncia é de descobrir indícios, de combiná-los; o amor próprio se
interessa e o pensamento dominante é de não deixar que o crime fuja.
Se for o mesmo magistrado que tem de julgar afinal, ele quererá porventura alguma
ou sustentar seus atos anteriores, sua previsão mesmo mediante alguma dubiedade;
em todo o caso, é útil que não haja a possibilidade de abuso ou erro de uma mesma
pessoa em dois atos tão importantes.
O júri oferece esse sentido mais de uma de suas vantagens, por isso que concorre a
separar positivamente o julgamento do ato da pronúncia e muito mais quando separa
a própria instrução de sua decisão, ou ratificação dela. (PIMENTA BUENO, 1976,
p. 332)

A fase de formação da culpa tinha início pela lavratura do auto de corpo de delito, que
poderia se dar pelo exame ocular (direto) dos vestígios, quando a infração deixasse vestígios,
ou pelo depoimento de duas testemunhas, caso a infração não deixasse vestígios (art. 134). O
exame do corpo de delito poderia ser feito por peritos ou por pessoas nomeadas pelo juiz de
paz (art. 135), que também mandava recolher no local da infração tudo que pudesse servir de
prova. Nos crimes cuja ação penal demande queixa, o auto de corpo de delito demandava
pedido da parte, contudo, nos crimes públicos o juiz poderia proceder de ofício (art. 136).
281

Após a realização do auto de corpo de delito, poderia ser apresentada a denúncia ou a queixa,
devendo o juiz determinar autuação e realizar a oitiva de duas a cinco testemunhas que
tivessem notícia da infração (art. 140). Nos casos em que se procedia mediante denúncia,
mesmo sem que o promotor público a tenha oferecido, o juiz poderia ouvir as testemunhas
determinando a autuação do auto de corpo de delito e dos termos de oitiva das testemunhas
(art. 141). O imputado preso poderia assistir as oitivas das testemunhas, podendo contestá-las,
contudo não as poderia interromper, podendo ser, na mesma audiência, interrogado pelo juiz
(art. 142). Da inquirição das testemunhas e do interrogatório do imputado seria lavrado termo
que faria parte dos autos (art. 143), caso o juiz se convencesse da existência do delito e de sua
autoria, julgaria a queixa ou a denúncia procedente, determinando a prisão do imputado
quando esta medida fosse admitida (art. 144), caso não estivesse convencido da existência do
crime ou de sua autoria, julgaria improcedente a denúncia ou a queixa (art. 145). Em resumo,
a fase de formação da culpa era um juízo de admissibilidade da acusação que se dava através
de um procedimento inquisitório. Sobre a formação da culpa, afirma Pimenta Bueno:
A informação, instrução ou formação da culpa é a parte preliminar do processo
criminal ordinário, a série de actos autorizados pela lei por meio dos quaes o juiz
competente investiga, collige todos os esclarecimentos, examina e conclue que o
crime existe ou não, e, no caso affirmativo, quem é indiciado como autor d‘elle ou
como cumplice. (PIMENTA BUENO, [S/D], p. 95)

Na fase de formação da culpa a participação da defesa era sumária e se dava apenas no


interrogatório e na oitiva das testemunhas que prestassem depoimentos favoráveis ao réu, que
eram ouvidas pelo juiz de paz, ou após a reforma, pelo chefe de polícia, delegados ou sub
delegados. Nessa fase, aponta Pimenta Bueno ([S/D], p. 133) a defesa do réu deveria ser
sumária, apenas existindo se capaz de afastar de plano a acusação, caso contrário deveria ser
deixada para a segunda fase do procedimento.
Já a sentença de pronúncia deveria ser fundamentada, sobretudo quando a prova não
fosse intuitiva, quando deveria se manifestar sobre a análise dos raciocínios deduzidos dos
indícios. Além disso, a pronúncia não poderia ter linguagem semelhante à das decisões
definitivas, condenatórias ou absolutórias, vez que não passavam de um despacho
interlocutório. (PIMENTA BUENO, [S/D], p. 140)
Decretada a pronúncia, após a decisão passar em julgado, a autoridade que a proferiu
deveria encaminhar os autos ao escrivão do júri, além de remeter o réu para julgamento na
segunda fase do procedimento. (PIMENTA BUENO, [S/D], p. 152-153).
Por sua vez a segunda fase, denominada de processo ordinário, tinha início com a
formação da culpa pelo juiz de paz remeter os autos ao juízo competente, quando o delito não
282

fosse de sua competência (art. 228), sendo que o julgamento nessa fase se daria por dois júris,
o primeiro com competência para admissibilidade da acusação e o segundo para o julgamento
do caso penal. Nessa hipótese, para o primeiro júri (júri de acusação, composto por vinte e
três jurados que eram sorteados por um menino entre os sessenta integrantes da lista), o juiz
de paz também deveria determinar a notificação das testemunhas a comparecer no dia da
reunião do júri (art. 230). Toda a formação do júri se dava de forma pública (art. 238-241),
formado o júri este se reunia a portas fechadas e recebia os autos, produzidos na primeira fase
de forma inquisitória, para análise de admissibilidade da acusação, deliberando sobre o
processamento ou não da acusação formulada (art. 242-244), caso o júri entendesse não haver
elementos para proceder à acusação, o juiz se reuniria com o acusador, o réu e as testemunhas
(que seriam novamente ouvidas uma a uma) para nova análise do caso (art. 245). Verificado
pelo júri de acusação que havia matéria para a acusação, o acusador apresentava libelo
acusatório e o juiz de direito notificava o acusado para comparecer na sessão do júri (art.
254). O segundo júri era composto por doze jurados e presidido pelo juiz de direito que
interrogava o acusado (art. 258), findo o interrogatório, o escrivão realizava a leitura dos autos
da formação da culpa (art. 260), fazendo com que o júri tivesse contato com o produto
inquisitório da primeira fase do procedimento. Após a leitura, o advogado do acusador
realizava a acusação e eram ouvidas as testemunhas de acusação (art. 261-262). Após a
acusação, a defesa do réu, por seu advogado, apresentava seus argumentos e testemunhas (art.
263-264) segundo a réplica e tréplica das partes (art. 265). Após os debates, estando os autos
prontos para julgamento, os jurados se reuniam em sala secreta onde respondiam quesitos
formulados pelo juiz de direito, proferindo o veredicto ao final (art. 269). Sobre a participação
da defesa no júri, Pimenta Bueno assinala que o réu deveria ser notificado para o julgamento
com prazo razoável para ter assegurado direito de defesa e que esse prazo não deveria ser
inferior a três dias, pois,
Este prazo é uma das etapas substanciaes do processo, e por nenhum título lhe pode
ser denegado. O accusado tem de procurar seu advogado ou defensor, tem de instruí-
lo do facto e suas circunstancias, de concertar com elle os meios de seu livramento.
Tem de examinar o libello, de informar-se sobre os documentos e testemunhas
offerecidas pelo accusador, considerar as recusações dos jurados, e vêr as provas que
possa oferecer em prol de sua justicação. (PIMENTA BUENO, [S/D], p. 157)).

Na sessão de julgamento pelo júri eram lidos os autos da formação da culpa aos
jurados, sob pena de nulidade; tal medida é justificada por Pimenta Bueno da seguinte forma:
O fim porque a lei manda fazer desde logo esta leitura é para que os jurados fiquem
antes de tudo inteirados do facto e de suas circumstancias, e possam com prévio
conhecimento de causa comprehender perfeitamente a accusação e defesa que têm
de succeder a este acto; e também para que o accusado reconheça, sem incerteza,
283

quanto lhe é imputado, e possa deduzir sua defesa com toda precisão.
A preterição da leitura do processo poderá viciar o julgamentoe fundamentar a
nulidade conforme o valor das circumstancias. (PIMENTA BUENO, [S/D], p. 213).

A leitura das peças da formação da culpa na fase de julgamento pelo júri leva aos
julgadores da fase acusatória toda a carga inquisitória produzida na primeira fase,
contaminando a decisão e fazendo com que os julgadores decidam não com base nas provas e
argumentos produzidos pelo debate entre acusação e defesa mas com base naquilo que foi
produzido no silêncio do segredo de forma unilateral e sem qualquer participação defensiva.
As sessões de julgamento pelos jurados, tanto do júri de acusação como do júri de
julgamento, eram sempre públicas, apenas sendo secreta a deliberação pelo júri (art. 288), e os
jurados de acusação eram impedidos de participar do júri de julgamento (art. 289). A
publicidade é tratada por Pimenta Bueno ([S/D], p. 183) como uma valiosa garantia que faz
do povo fiscal da execução das leis, que contém os abusos e gera convicção da justiça pública.
Vale destacar que na Constituição do Império, o julgamento pelo júri era a regra tendo
competência para julgar causas criminais e cíveis nos termos do art. 151 da Constituição de
1824. Contudo, pelo decreto 562 de 2 de julho de 1850, a competência do júri foi suprimida
para atribuir ao juiz de direito a competência do julgamento dos crimes de moeda falsa; roubo
e homicídio cometidos nos municípios de fronteira do império; resistência; tirada de presos; e
banca rota. Nesses casos, a formação da culpa se dava perante os juízes municipais e o
julgamento perante o juiz de direito. Nesse sentido, explica Pimenta Bueno:
258. Seria para desejar que os crimes communs e graves não tivessem senão um só
idêntico processo para sua discussão e julgamento. Além de outras conveniencias,
valeria isso a mais perfeita igualdade da lei sobre tão importante matéria. Tratando
porém do processo criminal em geral e de suas diferentes especies, já indicamos que
a boa administração da justiça, em consequencia da especialidade das circunstancias,
exige que, em alguns casos ou assumptos, se modifique a forma de proceder, e se
aproprie às necessidades perticulares que predominam. Consequentemente a lei n.
562 de 2 de Julho de 1850, e regul. 707 de 9 de Outubro do mesmo anno,
estabeleceu um processo especial para os crimes que vamos referir.
259. Crimes. 1.º Os crimes de roubo e homicídio, quando cometidos nos municípios
das fronteiras do Estado, podem affectar muito a segurança d‘ellas, e até mesmo as
relações internacionaes; demandam providencias e julgamento prompto, e a isso se
oppõem as dilações e difficuldades que oferece o chamamento e reunião do jury.
2º Os crimes de moeda falsa, resistencia comprehendida na primeira parte arrt. 124
do cod., a tirada de presos de que tratam os arts. 127 a 132 do dito cod., em qualquer
parte em que sejam commettidos, terem profundamente a ordem publica, e
demandam imediata repressão.
3.º O crime de banca-rota ataca a confiança, bôa fé e pontualidade sobre que se
funda o crédito e o comércio; gera o temor e enerva o desenvolvimento mercantil
com grave detrimento do Estado; demanda por isso especialidade e competências
particulares.
260. Competencias. Estabeleceupois a sobredita lei de 2 de Julho, e regul. de 9 de
Outubro de 1850, para a formação da culpa e julgamento d‘esses crimes, as
seguintes competencias:
A formação da culpa é processada pelos respectivos juízes municipaes: dita lei arts.
284

1.º, e regul. art. 1.º e 16. Cumpre todavia observar que nas províncias em que ha
tribunaes de commercio a pronuncia do crime de banca-rota é exclusiva d‘elles: cod.
do com. art. 820, regul. n. 738 de 25 de Novembro de 1850 art. 123, dito regul. de 9
de Outubro art. 18, e regul. 1597 do 1º de maio de 1855 art. 61. Quando não ha na
província tribunal do commercio, essa jurisdicção pertence ao juiz de direito
comercial, e só na falta d‘esse ao juiz municipal, como é expresso n‘essas
disposições.
O julgamento definitivo em todo caso pertence ao juiz de direito criminal, nos
termos da mencionada lei de 2 de Julho. Serve de escrivão o mesmo do jury, como é
expresso nos arts. 21 e 22 do regul. de 9 de outubro. (PIMENTA BUENO, [s/d], p.
259-260)

Dessa forma, o procedimento adotado pelo Código de Processo Penal de 1832 espelha
aquele do Código de Instrução Criminal francês de 1808, elaborado por Napoleão, contando
com uma primeira fase inquisitória, e uma segunda fase acusatória. Porém, mantém-se o
contato dos jurados com o produto daquilo que fora produzido na primeira fase, mantendo-se
a inquisitoriedade presente na fase que deveria ser acusatória, já que a decisão era tomada
com base na prova inquisitorial, o que fazia da segunda fase mera instância de passagem, um
simulacro de processo acusatório para se legitimar a decisão previamente tomada dando
aparente direito de defesa ao acusado que, na verdade não tinha qualquer chance de ser
efetivo.
Nos delitos de competência do juiz de paz, apresentada uma queixa ou denúncia de
contravenção ou delito de sua competência este mandava citar o imputado para a primeira
audiência que, por disposição expressa do código, não poderia ser realizada no mesmo dia da
citação (art. 205), não havendo denúncia ou queixa, o juiz de paz determinava, de ofício, a
formação de auto circunstanciado e determinava a oitiva de testemunhas e a citação do
imputado. Comparecendo o réu, este era ouvido pelo juiz de paz e poderia se defender, após
eram ouvidas as testemunhas e o juiz de paz proferia sentença (art. 209), caso o réu não
comparecesse, o juiz ouvia as testemunhas e proferia sentença (art. 208), sendo que o juiz
indagava as testemunhas inicialmente e, somente após, caso houvesse procuradores, estes
podiam formular perguntas à testemunha.
Importante destacar que as disposições transitórias determinam em seu artigo 25 a
extinção da função de inquiridor, que era previsto nas Ordenações do Reino e permaneciam
existentes no Brasil até o Código de 1832.
Os cargos de chefe de polícia, delegado de polícia e de subdelegados, foram criados
pela lei 261, de 03 de dezembro de 1841, sendo que os chefes de polícia eram escolhidos entre
os juízes de direito e os desembargadores. A referida lei deu aos chefes de polícia as
atribuições que eram conferidas aos juízes de paz, ficando os escrivães de paz e os inspetores
de quarteirão submetidos aos subdelegados de polícia. Contudo, o cargo de juiz de paz não foi
285

abolido, tendo recebido atribuições de menor importância nos termos do regulamento 120 de
31 de janeiro de 1842, tais como a de cuidar dos bêbados e evitar brigas. A mesma lei
261/1841 alterou a competência dos juízes de paz para atribuir a competência criminal que o
Código de 1832 lhes outorgou aos juízes municipais, outorgando-lhes ainda as atribuições
policiais dos juízes de paz. Os juízes municipais eram competentes ainda para substituir os
próprios juízes de direito, quando estes fossem suspeitos ou não pudessem julgar o caso.
Sobre os delegados e subdelegados Pimenta Bueno afirma: ―Entre nós os delegados de
polícia e subdelegados acumulam as funcções de agentes de policia e de juízes da pronúncia,
salvo a sustentação d‟esta pelo juízo municipal.‖ (PIMENTA BUENO, [S/D], p. 138)
Trata-se da adoção de um modelo bifásico, à moda do Código Napoleônico, contudo,
no lugar dos juízos de instrução, a competência da fase inquisitorial foi delegada aos chefes
de polícia e seus subordinados, enquanto a fase de julgamento pelo júri, em um procedimento
simuladamente acusatório, era mantida no Judiciário. Mudavam-se os nomes dos
responsáveis, mas a estrutura inquisitorial era mantida e reproduzida.
Pelo decreto 120, de 31 de janeiro de 1842, passou a ser atribuição dos chefes de
polícia, delegados ou subdelegados fazer a remessa dos autos da formação da culpa ao júri
competente para o julgamento do caso penal.
A lei 261/1841 também determinou que em toda comarca deveria haver um promotor
público e que este deveria acompanhar o juiz de direito. Os promotores públicos eram
nomeados dentre os bacharéis pelo imperador por quem também poderiam ser demitidos, caso
não houvesse nomeação pelo imperador, os promotores públicos poderiam ser nomeados
pelos juízes de direito. Já os juízes de direito eram nomeados pelo imperador dentre os
bacharéis. Os juízes de direito tinham a obrigação de fiscalizar os juízos de culpa formados
pelos juízes municipais, pelos chefes de polícia, pelos delegados ou pelos subdelegados.
Outra alteração promovida pela lei 261/1841 se deu na fase de formação da culpa,
alterando as exigências do art. 134 do Código para a lavratura do auto de corpo de delito nas
infrações que não deixarem vestígios ou quando os vestígios não mais pudessem ser
verificados por peritos, tendo a lei passado a exigir apenas a inquirição das testemunhas sobre
a existência do crime e sua autoria. Segundo a lei, cabia aos juízes municipais, na fase de
formação da culpa, proceder de todas as formas para que a denúncia ou a queixa fossem
emendadas, caso houvesse necessidade, bem como a realizar diligências para evitar nulidades
nessa fase. Ao final da formação de culpa, a autoridade responsável por essa fase deveria, por
despacho, pronunciar ou não o imputado, na forma regulamentada pelo regulamento 120 de
1842.
286

Já na fase de julgamento pelo júri após a pronúncia dos subdelegados de polícia,


delegados de polícia, chefes de polícia ou dos juízes municipais ser confirmadas pelos juízes
municipais, os autos eram remetidos ao juiz de direito para julgamento pelo júri, mantém-se,
contudo, a utilização dos elementos da primeira fase na segunda. Consequentemente, se
mantém a estrutura inquisitorial do Código de Processo Penal de 1824.
Nos termos do regulamento 120 de 31 de janeiro de 1842, os chefes de polícia das
províncias do Rio de Janeiro, Bahia, Alagoas, Paraíba, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Minas
Gerais, Pará e São Paulo não poderiam acumular outra função, contudo, nas demais
províncias eles poderiam exercer conjuntamente a função de juiz de direito. Ou seja, o próprio
responsável pela formação da culpa na fase inquisitória presidia o julgamento pelo júri. Outro
fator relevante do regulamento 120 é tornar obrigatório o recurso contra decisão concessiva de
habeas corpus, dentre outras decisões todas elas favoráveis ao acusado.
O Decreto nº 1.698, de 15 de setembro de 1869, passou a permitir que o acusado que
fosse absolvido e que estivesse preso durante o procedimento, o que era a regra no modelo do
Código de 1832, pudesse ser libertadado, durante o processamento de recurso da acusação.
Para que pudesse ser solto a pena do delito não poderia ser superior a quatorze anos de prisão
simples ou doze anos de prisão com trabalho ou ainda vinte anos de degredo.
A competência jurisdicional dos chefes de polícia e delegados somente foi altrada pela
Lei 2.033, de 20 de setembro de 1871, que extinguiu a competência jurisdicional das citadas
autoridades e as atribuiu aos juízes de direito. Além disso, a referida lei aboliu o procedimento
de ofício dos juízes formadores da culpa, ressalvando apenas os casos de flagrante delito, os
crimes policiais, a inércia do Ministério Público para promover a ação penal e crimes
cometidos por autoridades judiciárias, quando era permitido iniciar a ação penal ex officio.
A Lei 2.033 foi regulamentada pelo Decreto 4.824, de 22 de novembro de 1871, que
estabeleceu a atribuição dos Chefes de Polícia e delegados para a preparação dos processos
crimes e a realização do inquérito policial, podendo fixar fiança.
O decreto 774 de 20 de setembro de 1890 deu um passo para um modelo processual
penal mais humano, tendo abolido a pena de galés e determinado o prazo máximo de trinta
anos para as prisões perpétuas, além de terminar que o tempo de prisão preventiva fosse
computado no tempo de pena a ser cumprida.
Apesar da Constituição de 1891 não prever a figura do Ministério Público, deixando
sua regulamentação a cargo das leis infraconstitucionais, no Código de Processo Criminal de
Primeira Instância o Ministério Público viu-se representado através do Procurador da Coroa
(Perante o Supremo Tribunal de Justiça) e dos promotores de justiça perante o Tribunal de
287

Relações (estes nomeados entre os respectivos desembargadores) e nas comarcas. (BUENO,


[S/D], p. 67)
Vê-se, pois que o Código de Processo Criminal de Primeira instância foi baseado no
sistema bifásico napoleônico, constituindo o procedimento criminal em duas fases distintas: a
formação da culpa e o julgamento pelo júri. Na primeira fase, adotou um procedimento
inquisitorial puro, tal qual sua fonte de inspiração, nessa fase o acusado não possuía direito de
defesa, sendo objeto da investigação que era realizada inicialmente pelo juiz de paz ou pelo
juiz municipal e depois, com a Lei 261/1841, foi transferida aos chefes de polícia, delegados
ou subdelegados, em estrutura similar ao atual inquérito policial. Já na segunda fase, adotou-
se uma simulação de sistema acusatório, com o julgamento pelo júri e amplo direito de defesa
e debates entre as partes, contudo, manteve-se, tal qual no Código francês de 1808, a
possibilidade de que os elementos da primeira fase ingressassem na segunda e fizessem parte
do convencimento dos jurados.
Dessa forma, o sistema adotado pelo Código de Processo Criminal de Primeira
Instância, seguiu sendo um modelo inquisitório, ou neo-inquisitorial, onde a prova era
produzida sem a participação do réu, em um procedimento sigiloso, unilateral e protagonizado
por um único agente. Não basta mudar o nome do inquisidor, como fez a Lei 261/1841 para se
mudar o sistema, é preciso que a decisão seja fruto do protagonismo das partes e não
construída unilateralmente.

8.2 O Brasil república e as constituições republicanas: a desvalorização dos direitos


fundamentais e as portas abertas para a manutenção inquisitória

A queda da monarquia se deu em decorrência de diversos fatores, dentre os quais a


insatisfação dos latifundiários rurais pela abolição da escravidão em 13 de maio de 1888, a
crise econômica com a desvalorização da moeda frente a libra esterlina e a inflação causada
pela facilitação de crédito como política compensatória aos produtores rurais pela perda da
mão de obra escrava, além do fato de que os negros libertos deixaram as fazendas para viver
de biscates nas cidades. Além disso, crescia no final da monarquia a admiração pela república,
principalmente após a Guerra de Secessão nos Estados Unidos, acabou levando ao fim a
monarquia na madrugada do dia 15 de novembro de 1889 pela deposição do Imperador Dom
Pedro II e instituindo o Governo Provisório da República pelo Decreto nº 1, de 15 de
novembro de 1889, sob a chefia do Marechal Manoel Deodoro da Fonseca. (BALEEIRO,
2001, p. 13/16)
288

Em decorrência da queda da monarquia, as bases que sustentavam o regime


monárquico se desgastaram de forma irrecuperável, enquanto o movimento republicano
ganhou força, somando-se a ele os que advogavam pelo federalismo sob a justificativa da
dificuldade de se implantar o federalismo em um regime monárquico.
A proclamação da república, entretanto, foi um golpe militar chefiado pelo Marechal
Deodoro da Fonseca, eleito posteriormente primeiro presidente da República. O povo assistiu
a proclamação como mero espectador. (SOUZA NETO e SARMENTO, 2017, p. 108-109)
A república foi proclamada sem a participação popular, a Constituição de 1891 nasceu
do movimento político oriundo ainda no segundo reinado, as reformas que foram frustradas
pelo governo imperial, desencadearam a frustração que foi o estopim para o golpe de 15 de
novembro de 1889. O povo assistiu o golpe militar que proclamou a república sem sequer
entender o que se passava. (CARVALHO, 2007, p. 477-478)
Através do decreto nº 1/1889 foi proclamada provisoriamente a república (art. 1º) e
deu a ela a forma de federação entre os Estados (art. 2º), além de estabelecer providências a
serem tomadas pelos Estados na elaboração das novas normas republicanas. Em decretos
editados na sequência foram estabelecidos os símbolos da república e a bandeira nacional.
O governo provisório dissolveu as assembleias da Constituição do Império, tendo
extinguido as duas casas da Assembleia Geral, o Conselho de Estado e as Assembleias
Provinciais, por outro lado, foram mantidos o Supremo Tribunal de Justiça e as Relações ou
Tribunais das províncias. (BALEEIRO, 2001, p. 25)
Enquanto o Imperador deposto e a família real foram exilados e partiram
imediatamente para a Europa, sendo substituída até a realização de eleições para a assembleia
constituinte por um governo provisório chefiado pelo próprio Marechal Deodoro da Fonseca,
e composto pelos militares Benjamin Constant e Eduardo Wanderkolk e pelos civis Rui
Barbosa, Quintino Bocaiúva e Aristides Lobo. Restou decretado ainda o caráter republicano e
a forma federativa. (SOUZA NETO e SARMENTO, 2017, p. 109)
Pelo decreto nº 29, de 03 de dezembro de 1889 foi nomeada uma comissão para
elaborar o projeto de constituição para servir de base para os debates de uma futura
assembleia constituinte, convocada pelo decreto 78-B, de 21 de dezembro de 1889 com
eleições marcadas para 15 de setembro de 1890 e reunião em 15 de novembro de 1890. Dos
trabalhos da comissão surgiram três projetos que foram fundidos num único por Rangel
Pestana e revisado por Rui Barbosa (JACQUES, 1977, p. 75)
O Congresso Constituinte foi instalado em 15 de novembro de 1890, funcionando no
antigo Palácio Imperial, tendo funcionado até 24 de fevereiro de 1891, quando foi promulgada
289

a primeira Constituição Republicana. (BALEEIRO, 2001, p. 30-31)


A Carta de 1891 foi inspirada nos princípios fundamentais da Constituição norte-
americana, adotando o regime representativo e a República Federativa, tendo dividido as
funções do Estado nos três poderes clássicos: Legislativo, executivo e judiciário (CASTRO,
1938, p. 23). A nova constituição ―era a encarnação, em um texto legal do liberalismo
republicano e moderado que havia se desenvolvido nos EUA.‖ (SOUZA NETO e
SARMENTO, 2017, p. 110)
A Constituição de 1891 possibilitava aos Estados autonomia constitucional e
legislativa, desde que respeitassem os princípios da Constituição da União, tendo os entes
federados toda autonomia para legislar, desde que não lhes fosse vedado por cláusula expressa
ou implícita da Constituição Federal (JACQUES, 1977, p. 77-78). A Constituição firmou
autonomia dos Estados, conferindo a eles competências remanescentes para legislar sobre
tudo aquilo que não fosse vedado por ela (SILVA, 2001, p. 79). Tal autonomia possibilitou
aos Estados a elaboração de Códigos de Processo Penal estaduais (AZEVEDO, 1958, p. 41),
sendo a justiça federal regida pelo Código de Processo Penal vigente no Distrito Federal que,
por sua vigência nacional, será objeto de análise no presente trabalho. O Código de Processo
Criminal de Primeira Instância vigeu até a entrada em vigor do Código de Processo Penal do
Distrito Federal em 31 de dezembro de 1924 ou enquanto os Estados não exerceram sua
competência legislativa autônoma.
Porém, a autonomia dada aos Estados foi também a sentença de morte da primeira
Constituição republicana. O sistema constitucional adotado enfraqueceu o poder central e deu
poderes muito acentuados para os poderes regionais e locais, que ficaram em segundo plano
no regime centralizador do império, dessa forma, o governo federal somente poderia se
sustentar se fosse amparado pelos poderes estaduais. O poder dos governadores, por sua vez,
era baseado no coronelismo, imposto pela força de quem dá proteção, socorro e sustento aos
dominados e, em contrapartida, lhes exige a vida, obediência e fidelidade, sendo ao mesmo
tempo força política e militar. (SILVA, 2001, p. 80)
A Constituição de 1891 passou por uma revisão em 1926, visando dar mais força ao
poder central e reduzir a força dos poderes regionais, a reforma alterou a intervenção da
União nos Estados; as atribuições do Poder Legislativo; o processo legislativo, com a
introdução da possibilidade de veto parcial; a competência da Justiça Federal; e a restrição do
Habeas Corpus para a tutela apenas do direito de ir e vir. (CARVALHO, 2007, p. 482)
A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, se divide em 91 artigos e
disposições transitórias. Inicia seu texto pelas disposições preliminares a tratar no título I da
290

organização federal (art. 1º- art. 62) determinando a federação formada pela união das antigas
províncias em Estados Unidos do Brasil. Na primeira seção do título I, a Constituição trata do
Poder Legislativo, atribuído ao Congresso Nacional em modelo bicameral. A competência
privativa do Congresso Nacional está no art. 34, dispondo no inciso 23 a competência
privativa para ―legislar sobre o direito civil, comercial e criminal da República e o
processual da justiça federal‖, com essa disposição, a Constituição possibilitou a criação de
códigos de processo penal estaduais, disciplinando apenas que o Congresso Nacional
estabeleceria o Código que regeria a Justiça Federal. A segunda seção do primeiro título é
dedicada ao Poder Executivo. E a seção III é dedicada ao Poder Judiciário, dividindo-o em
Poder Judiciário da União (composto pelo Supremo Tribunal Federal e pelos juízes federais) e
Poder Judiciário dos Estados, estabelecendo a competência dos juízes federais no art. 60,
dentre elas para julgamento dos crimes internacionais e aqueles que o direito se fundasse na
Constituição ou estivesse em disputa bens da União.
Rui Barbosa (1933, p. 402-403), um dos principais responsáveis pela Constituição do
Império, ao comentá-la faz duras críticas à magistratura naquela época, afirmando que atribuir
o direito processual aos Estados fez com que a magistratura baixasse de nível moral e
profissionalmente, ao final, conclui que a constituição deveria ser reformada para unificar o
direito de legislar sobre processo e unificar a magistratura.
O segundo título da Constituição de 1891 é dedicado aos Estados (art. 63 – art.67), que
segundo o art. 63 seriam regidos ―pela Constituição e pelas leis que adotar, respeitados os
princípios constitucionais da União‖. Enquanto o terceiro título, composto apenas pelo art.
68 foi dedicado aos municípios.
O título IV destina-se aos cidadãos brasileiros (art. 69 – art. 78), sendo que a seção I
estabelece as condições para ser cidadão brasileiro e a seção II traz o rol de direitos
assegurados aos brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil 117, assegurando no art. 72 os
direitos inerentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade e mais
especificadamente naquilo que nos interessa no presente trabalho o princípio da legalidade
(§1º); igualdade (§2); a garantia de que somente poderia haver prisão ou em decorrência de
flagrante delito ou após ser pronunciado, salvo nos casos previstos em lei mediante ordem
escrita da autoridade competente (§13); a garantia de que ninguém poderia ser conservado na
prisão sem a formação de sua culpa (§14); a garantia do juízo natural (§15); a plenitude de

117
Vale destacar que apesar do texto assegurar apenas aos brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil,
logicamente os direitos previstos também são destinados aos estrangeiros não residentes no País que
estivessem no território nacional.
291

defesa aos acusados, desde a nota de culpa entregue vinte e quatro horas após a prisão (§16);
garantia do habeas corpus a todo cidadão que sofresse ou estivesse na iminência de sofrer
violência, ilegalidade ou abuso de poder, garantia essa que foi restringida pela Emenda
Constitucional de 03 de setembro de 1926 para abranger apenas a liberdade de locomoção por
meio da prisão ou outra forma de constrangimento ilegal (§22).
No que toca aos direitos individuais, a Constituição de 1891 revela sua inspiração
liberal e estabelece um amplo rol de liberdades públicas, endossando importantes bandeiras
republicanas para abolir os privilégios oriundos da monarquia e constititucionalizar a
separação entre Estado e Igreja, entretanto, a Constituição se limitou aos direitos individuais
de defesa e não estabeleceu direitos de natureza positiva. (SOUZA NETO e SARMENTO,
2017, p. 112-113)
Por fim, o título V prevê as disposições gerais (art. 79 – art.91), e as disposições
transitórias estabelecem as normas de transição do modelo da constituição imperial para a
nova constituição dispostas em oito artigos.
A prática da Constituição de 1891 na vida das pessoas foi bem diferente, a começar
pelo autoritarismo que marcou o governo de Floriano Peixoto, que perseguiu opositores,
censurou a imprensa e ignorou a própria Constituição, além de inviabilizar o funcionamento
do Supremo Tribunal Federal ao não nomear ministros para a Corte e deixar de cumprir suas
decisões em razão de atritos entre ele e a suprema corte. No meio rural os chefes políticos
eram quase senhores feudais de suas terras, impondo sua vontade que era, de fato a lei, e
indicando os agentes (juízes, delegados, etc) através de arranjos políticos. Esse quadro tornava
os direitos individuais mera peça de ficção. (SOUZA NETO e SARMENTO, 2017, p. 108-
109)
Vê-se que a Constituição de 1891, seguindo o modelo da Constituição do Império,
também não estabeleceu preceitos importantes para o processo penal, como a presunção de
inocência, a imparcialidade dos juízes e a existência de um órgão separado do juízo destinado
à acusação. Porém, a matéria processual penal foi deixada para a legislação estadual 118,

118
Nesse sentido, José Henrique Pierangelli (1983, p. 161-165) aponta que os seguintes estados produziram seus
códigos: a) Maranhão (Lei nº 507 de 22 de março de 1909); b) Rio Grande do Sul (Lei nº 24, de 15 de agosto de
1898); c) Rio de Janeiro (Lei nº 1.137, de 20 de dezembro de 1912); d) Amazonas (Lei nº 920, de 1º de outubro
de 1917); e) Rio Grande do Norte (Lei nº 449, de 30 de novembro de 1918); f) Paraná (Lei nº 1.916, de 23 de
fevereiro de 1920); g) Piauí (Lei nº 962, de 4 de junho de 1919); h) Paraíba (Lei nº 336, 21 de outubro de 1910);
i) Ceará (Lei nº 1.950, de 24 de dezembro de 1921); j) Sergipe (Lei nº 753, de 7 de setembro de 1918); l)
Pernambuco (Ato nº 1.156, de 5 de dezembro de 1922); m) Alagoas (não teve código próprio, segundo o texto
imperial com poucas alterações); n) Bahia (Lei 1.121, de 21 de agosto de 1915); o) Espirito Santo (Lei 1.891, de
26 de setembro de 1914); p) Minas Gerais (Decreto nº 915, de 23 de agosto de 1926); q) Mato Grosso (não
apareceu no acórdão; q) Mato Grosso (não elaborou seu código; r) Santa Catarina (Lei 231, de 10 de agosto de
201); s) Pará (vigorou o código imperial, com alterações do Decreto estadual nº 1.352, de 21 de janeiro de 1925;
292

reservando a união apenas o Código de Processo Penal para regular os procedimentos perante
a justiça eleitoral. Tal atribuição causou verdadeiro caos, pois nem todos estados membros
editaram seus códigos, muitos legislaram por normas esparsas e o processo penal brasileiro
passou por tempos difíceis e de dificílima compreensão. Apenas o código destinado à Justiça
Federal será objeto de análise, uma vez que ele vigeu em todo território brasileiro.
As legislações estaduais fizeram com que cada uma das unidades federativas
adotassem um modelo processual penal diferente, havendo estados que sequer produziram seu
código. Contudo o Código adotado pelo Distrito Federal fora adotado pela Justiça Federal,
sendo, portanto, uma legislação aplicada em âmbito nacional. Como anota José Henrique
Pierangelli:
A quebra da unidade processual, já que cada Estado-memnro possuía a competência
para legislar em matéria de Direito processual e organização judiciária, não trouxe
qualquer vantagem para as instituições jurídicas do nosso País. Contrariamente,
‗essa fragmentação contribuiu para que se estabelecesse acentuada diversidade de
sistemas, o que, sem dúvida alguma, prejudicou a aplicação da lei penal‘.
(PIERANGELLI, 1983, p. 160)

E, mais adiante, segue Pierangelli:

Tendo em vista o permissivo constitucional, alguns Estados-membros se apressaram


em elaborar os seus códigos de processo penal, enquanto outros preferiram
prosseguir com o Código de Processo Criminal de Primeira Instância, com
modificações que haviam se processado, e legislarem supletivamente.
(PIERANGELLI, 1983, p. 161)

O Código de Processo Penal do Distrito Federal foi instituído pelo Decreto nº 16.751,
de 31 de dezembro de 1924 e inicia seus primeiros artigos a tratar da ação penal,
estabelecendo três formas de início da ação penal (art. 2º), denúncia do Ministério Público,
apesar da Constituição não prever o Ministério Público como uma de suas instituições, ou de
qualquer pessoa do povo, ou queixa do ofendido, sendo o início por denúncia do Ministério
Público a regra e as duas outras formas de início da ação penal exceções que somente eram
admitidas nas hipóteses que a lei assim dispusesse (art. 3º), sendo os crimes de ação penal
privada estabelecidos no rol do art. 4º e aqueles que qualquer do povo poderia mover a ação
penal por denúncia estavam elencados no art. 5º. Além dessas hipóteses, o art. 6º estabelece
que nos crimes de violação de direito autoral e nas contravenções penais o procedimento era

t) Goiás (inicialmente manteve o Código do Império, mas posteriormente legislou sobre processo penal
pontualmente); u) Sâo Paulo vigorou o Código Imperial com leis modificadores; v) Acre (manteve as
disposições processuais).
293

iniciado de ofício pela autoridade policial.


Os requisitos da denúncia encontram-se previstos no art. 12 e, tal qual o Código
Criminal de Primeira Instância, o Código de Processo Penal do Distrito Federal permitia em
seu art. 14 que o juiz interpelasse o autor da queixa ou da denúncia para descobrir a
―verdade‖, reduzindo suas respostas a termo (art. 14). A possibilidade de o juiz arguir o autor
da ação penal denota uma estrutura inquisitorial, pois permite que o juiz forme sua convicção
sobre os fatos antes da prova e, sobretudo, antes de ser oportunizada a defesa ao acusado,
fazendo com que tal convencimento se dê de forma unilateral.
O art. 16 estabelecia as hipóteses de inépcia da denúncia ou ilegitimidade da parte
acusadora como causas de rejeição da denúncia antes mesmo de qualquer manifestação da
defesa, obrigando a um prévio juízo de admissibilidade da acusação, porém não coloca a justa
causa como uma dessas possibilidades.
O art. 100, por sua vez, permitia que fosse decretada prisão preventiva de ofício pelo
juiz, permitindo que ele atuasse no lugar das partes para determinar a custódia do indivíduo
quando entendesse, segundo seus pré-conceitos, a necessidade da prisão, desde que o juiz
entendesse que houvesse prova plena do crime e indícios de culpabilidade .resultantes de no
mínimo duas testemunhas, documentos ou da confissão. Caso a confissão fosse feita perante a
autoridade policial, esta deveria remeter os autos ao juízo competente para que este pudesse
determinar a prisão, caso feita perante o próprio juiz este deveria decretar (art. 102). Vê-se a
adoção de vários elementos inquisitórios nesse dispositivo, primeiro por permitir que o juiz
atue de ofício para, presumindo a culpa do acusado, determinar sua prisão, segundo por se
valer do sistema de provas tarifadas, ao exigir duas testemunhas, ou documentos ou a
confissão do réu para decretar a prisão, sendo a prova tarifada o sistema de valoração
probatória adotado nos procedimentos da inquisição eclesiástica.
Pelas hipóteses de decretação da prisão preventiva, percebe-se que a prisão era a regra
do código em análise, tendo o mesmo mantido o título de liberdade provisória em seu texto,
como ainda ocorre nos dias atuais. A prisão é o estado definitivo em modelos autoritários,
inquisitoriais, em modelos não autoritários, a liberdade sempre será o estado normal e perene
dos indivíduos. A liberdade provisória (art. 122 – art. 144) era admitida na forma sem fiança
(quando não coubesse pena privativa de liberdade ou em caso evidente de conduta amparada
por uma excludente de ilicitude) ou com pagamento de fiança.
O título V trata do habeas corpus (art. 145 – art. 169) retomando a fórmula original do
Código de Processo Criminal de Primeira Instância de 1832 para estabelecer o cabimento de
habeas corpus contra todo ato de violência, coação, ilegalidade ou abuso de poder,
294

estabelecendo a capacidade ativa de qualquer pessoa em nome próprio ou de terceiros, ou


ainda do Ministério Público para sua interposição.
Como medidas preliminares da ação penal, o Código traça a busca e apreensão (art.
170 - art. 192), o exame de corpo de delito, bem como outros exames periciais (art. 193 –
238), sendo que ambas as modalidades probatórias poderiam ser determinadas de ofício pelo
juiz. Para a busca ser deferida, mais uma vez adotando o modelo das provas tarifadas, o
código estabelece que seria necessária a existência de indícios veementes resultantes de prova
documental, uma testemunha ou então a declaração da parte (art. 172).
O procedimento penal do Código de Processo Penal do Distrito Federal, seguindo os
modelos anteriores, era bifásico, dividido entre a investigação (art. 239 – 258) e a instrução
judicial.
A fase de investigação tinha por objetivo verificar a ocorrência de crimes e era
realizada pelas autoridades de polícia (art. 239), possuindo a marca da cartularidade e da
formalidade, como se extrai do art. 242.
Porém, os autos da investigação não eram remetidos ao juízo da segunda fase, sendo
que, por disposição expressa do art. 243, os autos da inquirição serviam apenas ao Ministério
Público fundamentar a acusação, e, por isso, tramitavam diretamente entre o acusador e a
polícia. Após o oferecimento da denúncia, os autos eram lacrados e permaneciam à disposição
na secretaria do juízo, sem que o juiz tivesse contato com eles. Trata-se de inovação relevante
no ordenamento jurídico brasileiro, pela primeira (e única vez) os autos do inquérito não
serviam para forjar o convencimento do julgador e apenas tinham o Ministério Público como
destino. Tal medida fomentava o debate e a participação das partes em audiência, efetivando o
contraditório e fazendo com que as partes tivessem a obrigação de atuar de forma ativa,
potencializando a audiência e fazendo com que ela não se torne um mero rito de passagem
para legitimar uma decisão que já havia sido tomada. Infelizmente, na elaboração do Código
de Processo Penal nacional, em 1941, não foi seguido esse exemplo, vez que se preferiu
seguir o modelo do direito processual penal fascista. Contudo, poderia o juiz ter acesso aos
autos da investigação durante o inquérito uma vez que a autoridade policial remetia ao juiz os
autos do inquérito juntamente com o pedido de prisão preventiva (art. 246), podendo inclusive
ouvir testemunhas antes de decidir sobre o pedido de prisão (art. 247), além do contato com o
inquérito no pedido de prisão preventiva. a autoridade policial deveria enviar os autos ao juiz
ao final das investigações (art. 248), possibilitando a ele acesso aos autos. Vê-se que o Código
traz uma importante conquista ao vedar o uso do inquérito na fase de julgamento,
determinando sua exclusão após a acusação, mas, em contrapartida é mantido o contato do
295

juiz com o inquérito por via obliqua, seja da prisão preventiva, seja de sua conclusão, antes da
acusação.
Durante o inquérito era permitido ao Ministério Público tanto realizar diligências
como requisitá-las à autoridade policial, conforme art. 248, podendo, portanto, o órgão de
acusação exercer ativamente a atividade investigatória e indo em busca de elementos que
serviriam para fundamentar a acusação.
Um marco importante do processo inquisitorial era a confissão, o Código de Processo
Penal do Distrito Federal trata dela como um dos meios de prova admitidos, porém estabelece
que a mesma deveria se dar perante a autoridade e de forma livre espontânea e expressa (art.
255), além de vedar às autoridades a busca direta pela confissão (art. 258). Ainda é
interessante destacar que a confissão deveria ser comparada com as demais provas produzidas
e ter com elas aderência, sob pena de não ser admitida.
As testemunhas poderiam ser arroladas pelas partes ou ter a intimação determinada
pelo juiz (art. 261), o que denota a possibilidade de o juiz produzir prova testemunhal de
ofício. A acareação poderia ser realizada apenas quando duas testemunhas divergissem, e
apenas entre elas (art. 274).
Os indícios recebem tratamento de meio de prova, permitindo que o juiz junte
elementos provados para concluir que determinado fato não provado ocorreu (art. 282),
porém, para que sejam válidos os indícios, o código estabelece que exista relação de
causalidade entre o fato que se deseja provar e os fatos provados e que o fato ou circunstância
referente ao indício coincida com o fato resultante de outros indícios ou com a prova
diretamente produzida (art. 283).
A segunda fase do procedimento, denominada processo comum, começava com o
oferecimento da denúncia ou da queixa que seria autuada e o juiz decidia sobre sua
admissibilidade (art. 284), e, sendo recebida a denúncia designava audiência de instrução,
determinando a citação das partes (art. 284, §1º). Lembrando que o produto do inquérito não
era levado aos autos nessa fase por vedação expressa do art.243 do Código em análise. O réu
preso não era citado, apenas conduzido à audiência (art. 284, §2º). O interrogatório do réu
ocorria na primeira vez que comparecesse em juízo (art. 295), sendo realizado pelo juiz (art.
296), ao final do interrogatório o juiz deveria perguntar ao réu se tem defensor, sendo que a
indicação do réu teria validade de procuração e caso se declarasse miserável o juiz deveria
nomear um defensor ao acusado (art. 297). A nomeação da defesa técnica somente ocorria
após o interrogatório, o que gerava prejuízo ao réu que não tinha o direito de ter sua defesa
organizada previamente, enquanto os afortunados tinham o defensor presente no ato do
296

interrogatório e a oportunidade de preparar sua defesa com antecedência. Todas as respostas


do acusado eram reduzidas a termo e ao final as atas eram assinadas pelo juiz e pelo acusado
(art. 298), a estrutura procedimental escrita e formal continuava sendo a adotada, tal qual o
fizera o Código do Império. Após o interrogatório do réu eram ouvidas as testemunhas (art.
300), sendo um ato protagonizado pelas partes, não tendo o juiz poderes para recusar as
perguntas, salvo se não tivessem relação alguma com o caso (art. 301). Em mais um resquício
das provas tarifadas, o art. 304 permite a que o exame de corpo de delito seja substituído pelo
depoimento de duas testemunhas. A colheita do depoimento dos informantes era realizada
pelo juiz, sendo que as partes poderiam requerer que os informantes esclarecessem as
informações prestadas (art. 305).
Nos procedimentos sujeitos à jurisdição do Tribunal do Júri, era seguido o
procedimento do processo comum, sendo que após a colheita da prova, o juiz abria prazo,
primeiro ao acusado e depois ao Ministério Público para que as partes pudessem analisar as
provas produzidas (art. 314). O querelante (queixoso na linguagem do código), tinha vista dos
autos antes do acusado e o assistente tinha vista conjunta com o Ministério Público (§1º) e as
partes não poderiam juntar documentos nessa fase procedimental. A defesa tinha a palavra
antes da acusação, o que acabava prejudicando a amplitude de defesa vez, que a acusação
acabava tendo a última palavra sobre a matéria probatória. Após, os autos seriam remetidos ao
juiz presidente do tribunal do júri que realizaria o juízo de admissibilidade da acusação,
havendo prova da existência do crime e de que o acusado é o autor ou participou do delito o
juiz pronunciaria o acusado para ser submetido a julgamento pelo júri, mandando lançar o
nome do réu no rol dos culpados (art. 315), presumindo a culpa do acusado; não havendo
prova do fato criminoso ou indícios da autoria, o juiz deveria julgar improcedente a denúncia
ou a queixa, podendo ser promovida nova ação penal contra o réu caso surjissem novas
provas (art. 317), vê-se que a improcedência da acusação não fazia coisa julgada material e o
acusado poderia ser submetido a novo julgamento caso surgissem novas provas. Caso
estivesse provada a existência de alguma das excludentes de ilicitude o juiz deveria absolver o
réu, contudo a decisão somente produzia efeitos depois de confirmada pelo Tribunal em
recurso de ofício (art. 318). Passada em julgado a decisão de pronúncia os autos eram
remetidos ao Ministério Público para que oferecesse libelo acusatório (art. 321), podendo o
réu apresentar contrariedade ao libelo art. 325. O libelo que não apresentasse os requisitos
legais, estabelecidos no art. 322, seria rejeitado e seu signatário estaria sujeito à pena de multa
(art. 323).
O tribunal do júri era composto por vinte e oito jurados (art. 330), e a sessão era
297

instalada com a presença de pelo menos quinze jurados (art. 344) e o conselho de sentença
integrado por sete jurados (art. 359), podendo cada parte recusar peremptoriamente até quatro
jurados, sendo que a defesa se manifestava antes da acusação nesse momento. Na sequência o
réu era interrogado pelo juiz (art. 367). Após o interrogatório, o escrivão fazia a leitura das
peças, sendo que o somente eram lidos o depoimento das testemunhas e o interrogatório
prestados na fase de instrução, sendo vedada a leitura das peças da investigação (art. 368). As
testemunhas eram ouvidas primeiro as da acusação e depois as da defesa (arts. 372 e 374),
seguindo-se os debates (art. 376). Após os debates os jurados decidiam o caso através da
votação de quesitos (art. 382), decidindo em sala secreta (art. 386). O acusado absolvido
somente era posto em liberdade se o júri o absolvesse, reconhecendo ter agido amparado por
uma excludente de ilicitude, se não o acusado somente seria libertado se o Ministério Público
não interpusesse apelação no prazo de vinte e quatro horas (art. 390).
Contudo, a competência do júri não era destinada a todos os crimes, tal qual no
Código Imperial. O júri julgava a maior parte dos crimes, restando alguns crimes que eram de
competência dos juízes de direito. Nos termos da Lei nº 515 de 3 de novembro de 1898, era
da competência dos juízes de secção no Distrito Federal e nos Estados o julgamento dos
crimes de moeda falsa; contrabando; peculato; falsificação de estampilhas, selos adesivos,
vales postais e cupons de juros do título da dívida pública da União. Para tais crimes o Código
de Processo Penal do Distrito Federal trazia previsão de procedimento destinado aos crimes
de competência dos juízes de direito.
Nos termos do art. 463, a apelação contra decisões do Tribunal do Júri somente era
cabível em hipóteses expressamente previstas, quando fosse a decisão contrária à lei; quando
a decisão fosse contrária à decisão dos jurados; quando o julgamento não obedecesse às
formalidades legais; ou quando a decisão dos jurados fosse contrária à prova dos autos. Havia
ainda a possibilidade de recurso de protesto para novo júri caso a condenação fosse superior a
30 anos (art. 654)
No julgamento dos crimes de competência do juiz singular a fase de investigação
ocorria da forma descrita acima, sendo que a fase de julgamento que tinha seu rito alterado
(art. 395). O réu era citado para ser interrogado e, após o interrogatório, o réu tinha o prazo de
três dias para apresentar defesa e indicar suas testemunhas (art. 396), vê-se que o
interrogatório era realizado como primeiro ato do procedimento e, por isso, o acusado tinha
sua defesa restrita vez que era interrogado antes da produção da prova, porém o réu era
novamente interrogado na audiência de julgamento. Após a defesa ser apresentada, eram
ouvidas as testemunhas da acusação (art. 397) e da defesa (art. 398) e as partes tinham o prazo
298

de dois dias para requerer diligência finais (art. 399). Após as diligências as partes tinham o
prazo sucessivo de três dias para alegações sobre as testemunhas produzidas (art. 400). Na
sequência, o juiz verificava se havia nulidades a serem sanadas e determinava data para
audiência de julgamento (art. 401). Aberta a audiência era realizado novo interrogatório do
réu (art. 403), passando aos debates entre as partes, primeiro a acusação e depois a defesa,
para após ser proferida a sentença (art. 405).
Vê-se que o processo de julgamento pelo juiz singular tinha feições acusatórias. Vale
lembrar que os elementos da investigação tinham escopo apenas a formação da convicção do
acusador para oferecer denúncia, não ingressando nos autos. Assim, as provas eram
produzidas em audiência, os debates eram realizados oralmente e em contraditório e, ao final,
era proferida a sentença.
O Código do Distrito Federal previa o procedimento para julgamento dos menores,
não submetendo esses crimes ao inquérito policial (art. 411), sendo o procedimento realizado
em segredo (art. 418) e perante o juiz de menores. A acusação era realizada pelo curador de
menores (art. 422), após instrução sumária, seguindo rito semelhante ao dos julgamentos por
juiz singular, com interrogatório, defesa, instrução (ouvindo as testemunhas de acusação e de
defesa), e, ao final, debates e sentença.
Os crimes falimentares também tinham procedimento especial no código em análise,
sendo que a ação penal poderia ser iniciada tanto por denúncia do Ministério Público como
por queixa do liquidatário ou de algum dos credores (art. 428). Não havia fase de investigação
e ação penal tramitava perante o juízo que decretou a falência até a pronúncia (art. 430). Após
o trânsito em julgado da decisão de pronúncia, os autos eram remetidos ao juízo criminal
competente (art. 435), que nos os crimes falimentares era o juiz singular (art. 433), onde seria
oferecido libelo acusatório (art. 436), após a contestação ao libelo, momento em que o
acusado poderia oferecer suas testemunhas (art. 438). Após, será designada audiência na qual
era lido o libelo, a contrariedade e as demais peças que as partes requererem, o acusado era
interrogado pelo juiz e inquiridas as testemunhas, primeiro as da acusação e depois as da
defesa, podendo as partes formular perguntas às testemunhas, sendo as provas registradas pelo
escrivão (art. 439). Após a instrução eram realizados os debates orais e os autos eram
conclusos para sentença (art. 441).
Os crimes praticados pelo abuso da liberdade de imprensa também gozavam de
procedimento especial, podendo a ação penal ser iniciada por queixa do ofendido, ou de seus
herdeiros, ou por denúncia do Ministério Público (art. 452), devendo a inicial acusatória ser
instruída com um exemplar do material ofensivo. Recebida a acusação o réu era citado para
299

comparecer na primeira audiência onde era qualificado e intimado do prazo de quatro dias
para apresentar defesa, quando poderia arguir exceção da verdade, após era designada
audiência para oitiva das testemunhas da acusação e da defesa e após as partes apresentarão
alegações finais e os autos serão remetidos ao juiz para sentença (art. 457). A sentença penal
condenatória devia ser publicada na mesma seção do periódico que ofendeu o autor, sob pena
de multa (art. 464). Em caso de sentença absolutória, os autores, querelantes e denunciantes
eram condenados solidariamente a publicar a sentença em jornais ou periódicos indicados na
decisão (art. 465).
O procedimento destinado a apuração das contravenções penais era realizado perante a
autoridade policial (art. 482), seguindo-se a oitiva das testemunhas e realizadas diligências
como exames periciais e busca e apreensão, após a autoridade policial remetia os autos ao
pretor que, ouvia o Ministério Público e interrogava o acusado, podendo reinquirir as
testemunhas de ofício (art. 489-490), interrogando o réu na sequência e proferida sentença
(art. 491). Vê-se nesse procedimento uma forte carga inquisitória, através da possibilidade de
produção probatória de ofício pelo pretor, bem como pelo início do procedimento perante a
autoridade policial que realizava as inquirições sem possibilitar o devido direito de defesa do
acusado.
A apelação interposta contra sentença condenatória tinha, em regra, efeito suspensivo
(art. 645), enquanto a apelação contra sentença absolutória poderia ter efeito suspensivo
apenas no caso de ser interposta contra decisão do júri não unânime que fosse manifestamente
contrária à prova dos autos quando devia ser interposta no prazo máximo de vinte e quatro
horas da decisão (art. 645, parágrafo único).
As nulidades são regulamentadas nos artigos 656 – 660, sendo que caberia a
convalidação de todos os atos que pudessem ser regularizados (art. 659), o que faz parecer
que todas as nulidades eram relativas e não havia nulidades absolutas. A relativização das
nulidades acaba trazendo a relativização do próprio devido processo, eis que, os atos
processuais poderiam ser praticados sem obediência às formalidades legais e serem, ao final,
validados. Tal fato demonstra uma aproximação autoritária no código do Distrito Federal de
1924.
Como restou claro nos capítulos iniciais, os sistemas processuais penais acusatório e
inquisitório somente existiram em sua forma pura na República Romana (acusatório) e no
Império Romano e na idade Média (inquisitório), após existem modelos onde predominam
um ou outro sistema. No Código de Processo Penal do Distrito Federal, de 1924, verifica-se
que há elementos de ambos os sistemas. Porém a vedação da contaminação da segunda fase
300

com elementos da primeira obriga que as partes assumam seu protagonismo e passem a atuar
em contraditório para a produção probatória, da qual detém a gestão. Trata-se do único
período em que um sistema se aproximou do acusatório no Brasil.
Contudo, a adoção de códigos estatuais transformou o processo penal pátrio em um
emaranhado completamente sem organização, com vários modelos diferentes variando de
lugar para lugar. A balbúrdia provocada levou a nova uniformização federal do processo
penal, que veio somente com o Código de 1941 e vigora até os dias atuais no Brasil, contudo,
o vigente código foi inspirado no modelo italiano, analisado no capítulo antecedente, sendo,
portanto, filho do código Rocco e neto do Código de Instrução Criminal francês de 1808.
Outra crítica à Constituição de 1891 tange ao fato de que aquela constituição
privilegiara o Direito Privado, tendo sido obra principalmente de civilistas e comercialistas,
não tendo dado espaço ao Direito Público, que não contava com espaço nas academias
jurídicas. O direito público nas mãos das oligarquias se convertia em instrumento que servia
ao próprio poder. (POLETTI, 2001, p. 16-17)
No ano de 1930, os governos de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba
deflagraram um movimento reformador, nesse contexto, as forças armadas aderiram ao
movimento que se converteu em revolução em 3 de outubro de 1930 no Rio Grande, tendo se
alastrado por vários Estados com o apoio das oposições e das tropas militares. No dia 24 de
outubro de 1930 as forças de terra e mar ocuparam o Distrito Federal e depuseram o
presidente Washington Luiz, constituindo uma junta de governo provisória. No dia 3 de
novembro de 1930, a Junta transmitiu o poder a Getúlio Vargas, constituído chefe civil da
revolução. O governo provisório deu início a uma grande reforma com o objetivo de
reorganizar a república, tendo, pelo decreto 19.398 de 11 de novembro de 1930, decretado
que o Governo Provisório acumularia os poderes Executivo e Legislativo, dissolvido o
Congresso e mantido o Poder Judiciário, restringindo-lhe o poder de conhecer os atos do
Governo, além de ter suprimido e suspenso direitos e garantias constitucionais. (JACQUES,
1977, p. 81-83)
A Revolução de 1930 promoveu a queda da Constituição republicana de 1891, que
teve muitos de seus preceitos violados, mencionando-se as fraudes eleitorais, com o
predomínio do coronelismo e das oligarquias locais, a primazia dos Estados
economicamente mais fortes na condução do poder público (a política do ―café-com-
leite‖, de Minas Gerais e São Paulo, ou ―política dos governadores‖, iniciada no
Governo Campos Sales, que preferiria designar como ―política dos estados‖, e
frequentes intervenções federais nos Estados, muitas vezes abusivas, a suspensão
das liberdades públicas em decorrência de qualquer ameaça de desordem, mediante
decretação do Estado de Sítio. (CARVALHO, 2007, p. 482-483)

A Constituição de 1891 teve seu fim em razão de duas revoluções, a de 1930, que
301

tinha entre ideário liberal, embora posteriormente tenha gradualmente tomando rumo de um
projeto socialdemocrata e, por fim, descambando em sendo causa de uma ditadura nos
modelos do fascismo europeu. A segunda revolução, de 1932, ficou conhecida como
revolução constitucionalista ocorrida em São Paulo e que teve entre seus motivos, embora não
declarados na época, a reação dos fazendeiros do café contra a ameaça causada por outras
fontes da economia bem como por motivos políticos decorrentes da velha política do café-
com-leite. Dessa forma, a ideia daqueles que integraram a constituinte que deu origem à
Constituição de 1934 foi, de um lado, a propaganda da Revolução de 1930 (justiça e
representação) e, de outro, a constitucionalização do país no modelo da ideologia da revolta
sufocada pelas armas, mas que marcaram a política pátria (POLETTI, 2001, p. 13-15)
A revolução de 1930 teve como estopim a sucessão de Washington Luís na
presidência da república, que quebrou a sequência entre paulistas e mineiros na denominada
política do café com leite. Whasington Luís preferiu lançar o paulista Júlio Prestes à
presidência, provocando a reação de Minas, que aliando-se ao Rio Grande do Sul e à Paraíba
deram origem à Aaliança Liberal e lançaram uma chapa composta por Getúlio Vargas para
presidente e João Pessoa para a vice-presidência. A vitória da chapa da de Júlio Prestes em
eleições suspeitas e o assassasinato de Joao Pessoa contribuíram para o início da revolução
que, depois de conflitos armados, se sagrou vitoriosa e levou Getulio Vargas à presidência da
república, ocasionando o fim da constituição de 1891. (SOUZA NETO e SARMENTO, 2017,
p. 116)
No dia 11 de novembro de 1930 Getulio Vargas edita o Decreto nº 19.398 para
institucionalizar seu governo provisório até a edição da Constituição de 1934, estabelecendo
em seu art. 1º que:
Art. 1º O Governo Provisório exercerá discricionariamente, em toda sua plenitude,
as funções e atribuições, não só do Poder Executivo, como tambem do Poder
Legislativo, até que, eleita a Assembléia Constituinte, estabeleça esta a
reorganização constitucional do país.

Além de centralizar as funções legislativas e executivas, o decreto ainda dissolveu o


Congresso Nacional e as Assembléias Legislativas estaduais (art. 2º) e estabeleceu que as
Constituições, Federal e estaduais, continuariam em vigor (art. 4º), além de suspender as
garantias constitucionais e a apreciação judicial dos atos do Governo Provisório (art. 5º),
determinando a eleição de Assembleia Nacional Constituinte para a elaboração da nova
Constituição. Na feliz síntese de Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento
302

―estruturava-se ali, ainda que provisoriamente, um governo de exceção.‖ (SOUZA NETO e


SARMENTO, 2017, p. 116)

O ambiente internacional refletia a crise do Estado Liberal, nos Estados Unidos o


modelo de não intervenção estatal havia sido abandonado pelo New Deal, na Europa os
governos autoritários cresciam, como o fascismo na Italia (1922), o Franquismo na Espanha,
o Salazarismo em Portugal e, na Alemanha, o Nazismo já começava a se mostrar uma
realidade brutal. Internamente os tenentistas e liberais disputavam espaço no governo
provisório, os primeiros pretendendo postergar o governo provisório e os segundos desejando
uma imediata convocação da assembleia constituinte. Somente em 14 de maio de 1932 é que
foi convocada a eleição da assembleia nacional constituinte, fixando o dia 3 de maio de 1933
para a realização das eleições, além disso foi estabelecida comissão para elaborar o
anteprojeto da constituição. Após a eleição da constituinte, os trabalhos foram iniciados sobre
o anteprojeto apresentado pela comissão outrora nomeada, tendo a assembleia apresentado o
texto final que foi promulgado em 16 de julho de 1934. No dia seguinte à promulgação,
Getúlio Vargas foi eleito em votação indireta, Presidente da República. (SOUZA NETO e
SARMENTO, 2017, p. 117-118)

Outro fator importante a se considerar para a análise da Constituição de 1934 é que o


mundo do século XIX não era o mesmo daquele da primeira metade do século XX, sendo
importante destacar que o México havia sofrido importante reforma constitucional pela
Constituição social de 1914 e a Alemanha estabelecera a Constituição de Weimar em 1919,
sendo tais reformas tidas como o marco inaugural do Estado do Bem Estar Social ou Estado
Social de Direito. Dessa forma, o crescimento da preocupação com os direitos de segunda
geração, direitos sociais, é um dos fatores a serem considerados para se pensar as
transformações ocorridas na primeira metade do século XX, mas também levaram aos Estados
Totalitários e às grandes guerras mundiais. O Governo Provisório de Getúlio Vargas editou o
decreto 21.402 de 14 de maio de 1932 no qual criou uma comissão, sob a presidência do
Ministro da Justiça e Negócios Interiores Osvaldo Aranha, para elaborar o projeto de
constituição e fixou o dia 3 de maio de 1933 para eleição da nova constituinte. O anteprojeto
elaborado pela comissão possuía linhas mais progressistas que o texto aprovado, que ganhou
o rótulo de progressista, mas se manteve presa às linhas republicanas tradicionais. (POLETTI,
2001, p. 24).
A Constituinte, integrada por grandes nomes e da política, iniciou seus trabalhos no
dia 15 de novembro de 1933, tendo os ideais das revoltas de 1930 e 1932 vivos, que
303

representaram o tom dos debates e acabaram refletidos no texto constitucional. Sendo que
entre os dias 7 e 9 de junho de 1934 o texto foi votado e promulgado no dia 16 de junho do
mesmo ano. (POLETTI, 2001, p. 40-44)
A Carta de 1934 teve como fonte de inspiração a Constituição de Weimar (1919) e a
Constituição Republicana espanhola (1931), tendo sido elaborada após a primeira guerra
mundial (1914-1919) e com o escopo de racionalizar o exercício do poder. (POLETTI, 2001,
p. 19)
A grande novidade da Constituição de 1934 foi a inserção no texto constitucional de
questões de cunho social, sob clara inspiração de Weimar, inserindo no texto mandamentos
que até então não possuíam natureza constitucional (POLETTI, 2001, p. 46-47), tendo
inaugurado o constitucionalismo social no Brasil e rompido com o modelo liberal anterior e
incorporado temas como a ordem econômica, relações de trabalho, família, educação e cultura
em seu texto (SOUZA NETO e SARMENTO, 2017, p. 119). A nova Constituição rompeu
com a tradição constitucional da época e instituiu uma democracia social, baseada na
Constituição de Weimar, incorporando em seu texto temas de direito civil, de direito social,
de direito administrativo, tendo aumentado de tamanho e adotado um texto mais prolixo
contando com o dobro de artigos que o texto constitucional anterior. A Constituição de 1934
procurou conciliar em seu texto a democracia social com a democracia social, o federalismo
com o unitarismo político e o presidencialismo com o parlamentarismo (JACQUES, 1977, p.
84-85). A inserção de princípios de cunho social no texto constitucional consagrou um
pensamento novo em relação aos direitos fundamentais da pessoa humana, assinalando a
influência exercida pela Constituição de Weimar no constitucionalismo brasileiro
(BONAVIDES, 2015, p. 374). Entretanto, apesar de que a Constituição de 1934 ter sido
baseada na Constituição de Weimar, não teve uma base ideológica bem definida, eis que não
expressou a autenticidade de um movimento nascido nas ruas das lutas populares pelos
direitos sociais (CARVALHO, 2007, p. 484-485).
José Afonso da Silva (2001, p. 81-82) aponta que o texto da Constituição de 1934 não
era tão bem estruturado como o texto anterior (1891), sendo um documento de compromisso
entre o liberalismo e o intervencionismo. Ainda seguindo o autor citado, a Constituição
manteve a estrutura anterior no que tange aos princípios formais fundamentais como a
república, a federação, a divisão dos poderes (funções), o presidencialismo e o regime
representativo, de outro lado, a Carta inovou ao ampliar os poderes da União, estabelecer
poderes ao Estado (exclusivos e concorrentes com a União), redistribuiu a competência
tributária, aumentou os poderes do Executivo, alterou as atribuições do Congresso para
304

atribuir poder legislativo apenas para a Câmara e colocar o Senado como um mero órgão de
colaboração dela (art. 22), definiu os direitos políticos e o sistema eleitoral, admitindo o voto
feminino, criou a justiça eleitoral, adotou a representação corporativa (de influência fascista)
ao lado da representação política tradicional, tendo inscrito ao lado da declaração dos direitos
individuais o um título sobre a ordem econômica e social e outro sobre a família, educação e
cultura.
Será objeto de análise a Constituição de 1934 apenas naquilo que diz respeito às
garantias penais e ao sistema punitivo por ela desenhado, com o objetivo traçar o sistema
processual penal adotado sob sua égide.
A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934,
inicia seu texto colocando no preâmbulo, estabelecendo como seus objetivos a organização de
um regime democrático que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar
social e econômico. Percebe-se pelo preâmbulo a tentativa de unir liberalismo com o
intervencionismo típico do modelo de estado do bem-estar social. Em seu primeiro título, a
Constituição estabelece as normas de organização federal, mantendo a república federativa
como sua forma estrutural (art. 1º) e estabelecendo as funções de Estado clássica divididas
entre Executivo, Legislativo e Judiciário (art.3º).
Diferentemente da Constituição de 1891 que delegara aos Estados a competência
legislativa sobre direito processual, gerando os Códigos de Processo Penal estaduais, a
Constituição de 1934 retomou a tradição pátria de se ter um único código de processo penal
nacional e editado pelo Poder Legislativo federal (art. 5º, inciso XIX, alínea ―a‖ e art. 39,
inciso 8, alínea ―e‖), restando estabelecido no art. 11, § 2º, das disposições transitórias que
enquanto não fosse publicado o código federal seguiriam em vigor os códigos estaduais.
Porém, o §3º do referido inciso XIX ressalvou a competência supletiva ou complementar dos
Estados, que poderiam editar leis estaduais para atender às necessidades locais ou suprir
eventuais lacunas ou deficiências da legislação federal. Entretanto, em razão de seu
curtíssimo período de vigência não foi editado o Código de Processo Penal sob a ordem
constitucional de 1934, somente sendo editado em 1941 sob a Constituição ditatorial do
Estado Novo de 1937.
Pontes de Miranda, ao comentar a Constituição de 1937 afirma que a centralização da
legislação processual foi o campo de maior inovação da Constituição de 1934, o que levaria
ao desaparecimento das normas estaduais de processo.
Mas tal desaparecimento só se efectivaria quando o Poder Legislativo central
exercesse a sua competência e estabelecesse, de-facto, a unidade do Direito
processual. Em-quanto isso não ocorresse, viver-se-ia a época de transição que
305

mantinha, sob competência única a situação efectiva da pluralidade de legislações


processuais locais. Ocorrendo, por exemplo, que – antes disso – se revogasse ou se
derrogasse a Constituição, o Direito processual uno teria sido apenas uma esperança.
Foi o que aconteceu à Constituição de 1934: caiu sem que se lhe cumprisse o
preceito.
Os Estados-membros já não podem derrogar ou revogar as leis processuais que
vigoravam a 16 de julho de 1934 e que eram, salvo o efeito de leis federais novas (e
houve-as), as que vigoravam a 10 de novembro de 1937. (PONTES DE MIRANDA,
1938, p. 443)

As garantias do Poder Judiciário e do Ministério Público estadual ficaram delegadas


ao legislador estadual (art. 7º, I, ―e‖), a quem competiria legislar constitucional e
infraconstitucionalmente sobre as normas que regeriam as duas funções. A Constituição de
1934 trouxe, pela primeira vez, a previsão constitucional do Ministério Público entre os
órgãos de cooperação nas atividades governamentais, contudo deixou para as normas
infraconstitucionais a definição de suas atribuições, sendo que por lei federal seria
disciplinado o Ministério Público Federal e por leis estaduais seriam organizados os
ministérios públicos dos Estados.
Os direitos fundamentais mantiveram-se relegados à parte final da Constituição,
estando previstos no art. 113, dos quais podemos destacar a adoção do princípios da igualdade
(art. 113, inciso 1); vedação de prisão arbitrária (art. 113, inciso 21 e 22); garantia do habeas
corpus garantindo o direito de liberdade contra atos ilegais praticados com ilegalidade ou
abuso de poder, portanto de forma mais ampla que o habeas corpus foi tratado na Constituição
atual (art. 113, inciso 23); garantia da ampla defesa com os meios e recursos que lhe são
inerentes (art. 113, inciso 24), garantia de julgamento perante o juízo natural (art. 113, inciso
25 e 26).
O tribunal do júri não foi previsto pela constituição de 1934, contudo, continuou
existindo na legislação infraconstitucional, sobretudo por encontrar previsão nos códigos
estaduais de Processo Penal.
A Constituição de 1934 vigorou de 16 de junho de 1934 até 10 de novembro de 1937,
portanto por pouco mais de três anos, sendo substituída pela Constituição varguista do Estado
Novo. A derrocada da constituição de 1934 se deveu ao colapso de seus mecanismos liberais
e democráticos à radicalização do regime e do clima social daquela época. (SOUZA NETO e
SARMENTO, 2017, p. 122)
Os anos que sucederam a primeira guerra mundial foram de grande turbulência
política em todo mundo, na Europa ascenderam os governos totalitários fascista (Itália) e
nazista (Alemanha), entre outros. No Brasil, não foi diferente, com o surgimento da Ação
Integralista, que tinha em Mussolini e Hitler suas fontes de inspiração e era comandada por
306

Plínio Salgado. Por outro lado, o Partido Comunista, comandado por Luís Carlos Prestes
também se organizava. Essas duas forças disputavam espaço pelo poder. Nesse contexto,
Getúlio Vargas, após ser eleito Presidente da República pela Assembleia Constituinte de
1934, dissolve o Congresso Nacional, revoga a constituição e outorga a Constituição de 10 de
novembro de 1937, dando início ao período denominado Estado Novo. (SILVA, 2001, p. 82-
83)
Os primeiros partidos políticos começaram a surgir no governo Vargas, estabelecendo
antagonismos, de um lado a Ação Integralista Brasileira, de inspiração no fascismo italiano,
de outro a Aliança Nacional Libertadora, ligada ao Partido Comunista, que estava atuando na
ilegalidade. Esses dois partidos se antagonizavam no cenário político e mobilizavam grandes
massas populares em grandes manifestações. Contudo, em 11 de julho de 1935, Getulio
Vargas invocou a Lei de Segurança Nacional para proibir a existência de partidos políticos
que visassem à subverção, tendo dissolvido a Aliança Nacional Libertadora, sob pretexto de
seus vínculos com os comunistas, na sequencia eclodiu a Intentona Comunista e a
Constituição somente passou a existir formalmente, com o início de um período cada vez mais
autoritário. (SOUZA NETO e SARMENTO, 2017, p. 122)
No dia 30 de setembro de 1937 o General Góes Monteiro divulgou o denominado
―Plano Cohen‖, uma farsa de uma tentativa de golpe comunista para tomar o poder que foi
utilizada para aprovar o Estado de Guerra no Congresso. No dia 10 de novembro de 1937
tropas da Polícia Militar contando com o apoio do Exercito cercaram o Congresso e Vargas
fez a ―Proclamação ao Povo Brasileiro‖ através do sistema de rádio, rompendo com a
Constituição, outorgando a nova Constituição e iniciando o denominado Estado Novo.
(SOUZA NETO e SARMENTO, 2017, p. 123)
A Constituição de 1937 foi redigida por Francisco Campos (Ministro da Justiça de
Getúlio Vargas) e ganhou o apelido de ―Constituição Polaca‖ por ter adotado o modelo da
Carta polonesa de 1935 do regime do General Pilsudski, que carregava elementos do
autoritarismo que dominava a Europa naquele período (CARVALHO, 2007. P. 486).
Francisco Campos foi ―um intelectual de forte inclinação autoritária, que chegava às raias
do fascismo‖, sendo que tal autoritarismo foi transmitido pela criador à sua obra, sendo o
autoritarismo a marca característica da Constituição de 1937, que inseriu o Brasil em estado
de emergência, instituindo uma ditadura e mantendo o congresso fechado até 1945 (SOUZA
NETO e SARMENTO, 2017, p. 123-124).
Vargas alegou para usurpar o poder que a paz política e social estava perturbada e que
os conflitos ideológicos colocavam a nação sob risco de iminente guerra civil. Baseado nisso,
307

decretou a nova constituição (JACQUES, 1977, p. 88). O grande jurista por trás de Getúlio
Vargas e um dos principais autores da Constituição de 1937, Francisco Campos chega a
firmar que o Estado Novo seria o resultado de salvação nacional (CAMPOS, 1941, p. 35).
Nesse sentido, afirmou Francisco Campos buscando justificar o Estado Novo:
O uso da violência, como instrumento de decisão política, passou para o primeiro
plano, relegando processos tradicionaes de competição para o primeiro plan, e onde
quer que se abra a perspectiva dessa lucta, torna-se imprescindível reforçar a
autoridade executiva, única cujos métodos de acção podem evitar o conflicto ou
impedir que elle assuma a figura e as proporções da guerra civil. (CAMPOS, 1941,
p. 41)

Ou como Getúlio Vargas inicia o texto constitucional de 1937:


Atendendo às legítimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social,
profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem resultantes da
agravação dos dissídios partidários, que uma notória propaganda demagógica
procura desnaturar em luta de classes, e da extremação de conflitos ideológicos,
tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, a resolver-se em termos de violência,
colocando a Nação sob a funesta iminência da guerra civil. (BRASIL, 1937, p. 69)

As justificativas não refletiam a realidade, nem mesmo havia qualquer iminência de


guerra civil ou qualquer ameaça comunista para tomar o poder. A Constituição de 1934,
vigente até então, poderia ter resolvido as crises enfrentadas, porém Vargas necessitava da
ruptura como forma de se manter no governo. (SOUZA NETO e SARMENTO, 2017, p. 124)
Ademais, ditaduras não se confessam autoritárias, pelo contrário, não medem esforços
para se proclamarem democráticas. Com o Estado Novo não foi diferente, proclamando
Francisco Campos sobre a Constituição de 1937:
A nova Constituição é profundamente democratica. Aliás, a expressão democratica,
como todas as expressões que traduzem uma atitude geral deante da vida, não tem
um conteúdo definido, ou não connota valores eternos. Os valores implícitos na
expressão ―democracia‖ variam com os typos de civilização e de cultura.
(CAMPOS, 1941, p. 53-54)

O que faz um governo democrático, entretanto, não são as palavras de seus


governantes ou a declaração em suas normas. Não há democracia por autoproclamação, mas
por práticas na relação entre Estado e cidadãos para a efetivação dos direitos fundamentais. O
que torna um Estado democrático são as práticas e a forma pelas quais as normas são
colocadas na vida de cada um de seus indivíduos, apesar de ser necessária a afirmação da
democracia nas normas, principalmente nas de caráter constitucional; mais importante ainda é
a aplicação dessas normas no plano concreto. Ou, como afirmou Pontes de Miranda em seus
comentários à Constituição de 1937:
A Constituição de 1937 não é uma constituição liberal; menos ainda é uma
Constituição democrática propriamente dita. É a carta de uma ditadura, em que
308

elementos sulamericanos de poder pessoal entraram em forte dose. Já tivemos


oportunidade de frisar que desapareceu o próprio princípio geral de liberdade, que
nos vinha da Constituição política do Império. No que concerne à política do
socialismo (seja do tipo russo, seja do tipo francês ou parlamentar pluripartidário,
seja do tipo nacionalista alemão), há na Constituição de 1937 preceitos-vasos cujo
conteúdo efectivo depende de lei e dos actos governamentais, o que vale dizer: da
mentalidade dos dirigentes. (PONTES DE MIRANDA, 1938-b, p. 545-546)

O próprio Francisco Campos se contradiz quando em entrevista ao Correio da Manhã


do Rio de Janeiro em 3 de março de 1945119 ao negar que a Carta de 1937 tenha sido uma
constituição fascista, porém, afirma Francisco Campos:
Mas a Constituição de 1937 não é fascista, nem fascista é a ditadura cujos
fundamentos são falsamente imputados à Constituição. O nosso regime de 1937 até
hoje, tem sido uma ditadura puramente pessoal, sem o dinamismo característico das
ditaduras fascistas, ou uma ditadura nos moldes clássicos das ditaduras sul-
americanas. (CAMPOS, 2001, p. 41)

Vê-se que Francisco Campos, ao tentar se desvencilhar do rótulo de fascista atribuído


à Constituição acaba confessando que aquele período era um período de ditadura. A estrutura
constitucional de 1937 denota uma estrutura típica dos regimes totalitários. Entre as principais
inovações apontadas por Paulino Jacques (1977, p. 88) vê-se a substituição do título ―Poder
Executivo‖ por ―Do Presidente da República‖, tendo reduzido a autonomia do Legislativo
(chegando a dissolver a Câmara e o Senado, bem como as demais assembleias deliberativas) e
do Judiciário, agigantando as funções do Presidente da República, como restou consignado
por Francisco Campos:
A construção constitucional da machina do governo propriamente dicta é simples e
prática. Toda ella é construída em torno de uma ideia central, favoravel á acção
eficaz do governo: o governo gravita em torno de um chefe, que é o Presidente da
República. A este cabe dar a impulsão ás iniciativas dos demais orgãos do governo.
(CAMPOS, 1941, p. 58)

Um governo totalitário, como vimos, tinha a marca da centralização do poder nas


mãos do líder, o Estado ganhava importância maior que seus membros e todos os esforços
deveriam ser empreendidos para o fortalecimento do Estado e a força do líder. Todas essas
características se percebem na estrutura do Estado Novo, bem como em seu desenho
constitucional. Como afirma Marco Aurélio Nunes (2016, p. 58), as experiências do fascismo
e do nazismo na Europa trouxeram aos países latino-americanos como o Brasil a experiência
de regimes autoritários.
Contudo, Vargas não governou com base na Constituição: acabou governando o País

119
A referida entrevista foi reproduzida no volume dedicado à Constituição de 1937 editado pelo Senado Federal
na Coleção Constituições Brasileiras.
309

apenas com base nas disposições transitórias que ―conferiam ao Presidente da República a
plenitude dos poderes executivo e legislativo‖, uma vez que a Constituição dissolvera o
congresso (art. 178) e o novo parlamento somente seria eleito após a realização de um
plebiscito a ser convocado pelo Presidente da República (art. 187) que jamais aconteceu
(CARVALHO, 2007, p. 486).
A Constituição de 1937 inicia seu texto estabelecendo os critérios destinados à
organização da república, atribuindo ao Presidente da República competência legislativa,
inclusive para alterar a Constituição e legislar em relação às matérias privativas da União nos
períodos de recesso parlamentar ou de dissolução da Câmara dos Deputados, quando legislava
através de decretos-lei (art.13), sendo o direito penal e o processual matérias de exclusividade
da União (art. 16, XVI), o que facultou ao Presidente da República a legislar sobre Processo
Penal editado pelo Decreto-Lei 3689 de 03 de outubro de 1941. O presidente da república é
alçado à ―autoridade suprema do Estado‖, nas palavras do art. 73 da Constituição, tendo a
Carta, como dissemos substituído o título ―Poder Executivo‖ por ―Do presidente da
República. O texto Constitucional de 1946 ampliou enormemente as funções do Presidente,
dando a ele poderes típicos do legislativo e autorizando-o a atuar de forma centralizadora e
praticamente ilimitada, características típicas das ditaduras totalitárias.
No tocante ao poder judiciário, a Constituição de 1937 estabelece as garantias da
vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade dos vencimentos como garantias dos
magistrados (art. 91), porém veda ao Judiciário o conhecimento de demandas políticas (art.
94). O Ministério Público, que na constituição de 1934 contava com um capítulo, perdeu
espaço na Constituição de 1937, sendo a ele reservado apenas o art. 99 para determinar que tal
órgão fosse chefiado pelo procurador geral da República e este funcionaria perante o Supremo
Tribunal Federal.
Durante a vigência da Constiuição Polaca, o judiciário não refreou as arbitrariedades
do regime varguista do Estado Novo, permitindo que o País vivesse sob estado de emegencia
até 1945, com a suspensão de inúmeras garantias constitucionais, além disso, os atos
praticados pelo governo em virtude do estado de emergência eram imunes ao controle
jurisdicional e os membros do Poder Judiciário temiam desagradar o governo e este usar dos
poderes de exceção para aposentar compulsoriamente os magistrados, não havendo sequer um
judiciário independende. (SOUZA NETO e SARMENTO, 2017, p. 128)
Os direitos e garantias individuais, mais uma vez ocupam a parte final da Constituição
(art. 122), sendo que, no que tange ao processo penal, fora previsto o direito à igualdade
(inciso 1); liberdade (inciso 2); inviolabilidade do domicílio e da correspondência (inciso 6);
310

garantia de que somente poderia haver prisão em flagrante, em consequência de pronúncia ou


em decorrência de ordem escrita da autoridade competente, bem como somente poderia se
conservar uma prisão por ordem de autoridade competente, além disso a instrução criminal
deveria ser realizada em contraditório, sendo garantidos os direitos de defesa (inciso 11);
foram vedadas as penas corporais, porém, adotada a pena de morte não só para os crimes de
guerra (inciso 13); a garantia do habeas corpus, agora com expressa determinação de seu
cabimento apenas para assegurar o direito de liberdade de locomoção e vedação de seu uso
contra punições disciplinares (inciso 16); a Constituição de 1937 não adotou o princípio do
juízo natural, estabelecendo que nos crimes contra a existência, a segurança e a integridade do
Estado e contra a guarda e o emprego da economia popular estariam sujeitos a julgamentos
perante tribunais especiais na forma estabelecida em lei, tendo a lei constitucional nº 7 de 30
de setembro de 1942 estabelecido o Tribunal de Segurança Nacional para tais casos, tendo o
Tribunal de Segurança Nacional sido extinto pela Lei Constitucional nº 14, de 17 de
novembro de 1945.
A Constituição permitia de forma expressa a restrição dos direitos e garantias
individuais por ela estabelecidos quando fosse do interesse do bem público, as necessidades
de defesa do bem-estar, da paz e da ordem coletiva ou a segurança nacional e do Estado
(art.123). Vê-se mais um elemento totalitário, de franca inspiração fascista no citado
dispositivo que coloca os interesses do Estado em conflito (falso ou imaginário) com os
interesses individuais. No Estado Totalitário os interesses do Estado são colocados acima dos
interesses individuais, porém em um Estado Democrático as normas visam a proteção do
indivíduo frente aos interesses do Estado, ou seja, o Estado jamais poderá se sobrepor ao
indivíduo.
Dessa forma, Getúlio Vargas instaurou uma ditadura unipessoal em que nem mesmo a
Constituição por ele outorgada fora devidamente cumprida (BONAVIDES, 2015, p. 375). Tal
regime vigorou até a promulgação da Constituição de 1946, elaborada por assembleia
nacional constituinte convocada pelo presidente da república e regulamentada pela Lei
Constitucional nº 15, de 26 de novembro de 1945 possuindo poderes ilimitados para elaborar
e promulgar a nova Constituição.
Os opositores do regime, principalmente os comunistas e também os integralistas e os
liberais, foram perseguidos através de prisões, exilio e tortura. Foi adotada a censura à
imprensa. Os partidos políticos foram extintos e a propaganda institucional adotou o ufanismo
e o culto à personalidade de Getúlio Vargas. (SOUZA NETO e SARMENTO, 2017, p. 128-
129)
311

A Constituição de 1937 foi baseada na rejeição às técnicas da democracia liberal vez


que o pensamento dos donos do poder era de que o povo não teria interesse e nem preparo
para participar das decisões políticas. Além disso a separação entre os poderes foi extinta por
ser considerada um entrave à modernização nacional e ao desenvolvimento, que deveriam ser
buscados por um presidente em contato com as massas. (SOUZA NETO e SARMENTO,
2017, p. 127-128)
Sob essa ordem constitucional, que colocava os interesses públicos sobre os interesses
individuais em um conflito imaginário, e que permitia que para a tutela do Estado adotasse
forma bélica contra o indivíduo, foi editado o Código de Processo Penal de 1941 através do
decreto-lei 3689 de 03 de outubro de 1941. O Código reflete o ideário de seus autores e o
modelo totalitário no qual foi produzido, possui, dessa forma, alma totalitária. Como um
código ditatorial que é, buscou inspiração no modelo italiano de 1930, que estudamos acima,
possuindo com ele similaridade ímpar. Apesar do fascismo ter acabado na Itália após a
segunda guerra mundial em 1945, o Estado Novo ter acabado em 1946, o Código de Processo
Penal segue vigente entre nós, como um presente de grego deixado pela ditadura Vargas e que
serviu à ditadura militar, não podendo, contudo, servir a um regime que se pretenda
democrático.
O Código de Processo Penal brasileiro, vigente desde 1941, sofreu ao longo do tempo
várias reformas pontuais, até mesmo por ter passado por quatro Constituições (1937, 1946,
1967 e 1988), além da Emenda Constitucional de 1969. Constituindo um emaranhado de
avanços e retrocessos onde hora se aproximou de um modelo menos inquisitório hora de um
modelo mais inquisitório. Porém, ele nasceu inquisitório e em momento nenhum deixou de
ser inquisitorial, já que somente uma reforma integral será capaz de mudar sua estrutura
autoritária, seu DNA inquisitorial.
Sob a constituição totalitária de 1937, o Presidente da República, Getúlio Vargas
editou o Código de Processo Penal, que não foi elaborado por lei, até mesmo porque o
parlamento havia sido dissolvido, mas por um decreto-lei de autoria do então Ministro da
Justiça Francisco Campos. O texto do código reflete a ideologia de seu autor e do governo ao
qual servia, tratando-se de um código autoritário e com inspiração franca no Código fascista
vigente na Itália desde 1930 e que, por sua vez, teve como fonte de inspiração o Código de
Instrução Criminal francês de 1808, elaborado por Napoleão Bonaparte. Ou seja, o código é
filho de um modelo ditatorial (Mussolini) e neto de um sistema ditatorial (Napoleão), e tem
em seu DNA o autoritarismo daqueles que o elaboraram, de forma que não é capaz de ter esse
autoritarismo expurgado por meras reformas pontuais, vez que ―de nada adianta alterar a
312

regra se não houver uma mudança radical de mentalidade‖ (LAMY, 2016, p. 181). Ou, como
afirma Camilin Marcie de Poli
Como se pode perceber, as coisas daquele tempo e daquele processo (Código
Rocco) não são muito diferentes do que se tem nos dias de hoje no Brasil: uma
mentalidade inquisitória que se faz presente tanto nos discursos de alguns teóricos e
operadores do direito quanto na práxis processual penal. (POLI, 2016, p, 126)

Nessa linha, Ricardo Jacobsen Gloeckner (2017, p. 232) aponta que a doutrina crítica
do processo penal vem apontando a similaridade do Código brasileiro em relação ao Código
italiano de Manzini (1930), desde a sede política, o Estado novo tinha no Estado fascista
italiano sua fonte de inspiração. Nesse contexto, o próprio Francisco Campos confessa na
exposição de motivos do Código de Processo Penal:
Quando da última reforma do processo penal na Itália, o Ministro Rocco, referindo-
se a algumas dessas medidas e outras análogas, introduzidas no projeto preliminar,
advertia que elas certamente agora iriam provocar o desagrado daqueles que estavam
acostumados a aproveitar e mesmo abusar das inveteradas deficiências e fraquezas
da processualística penal até então vigente. A mesma previsão é de ser feita em
relação ao presente projeto, mas são também de repetir-se as palavras de Rocco: ―Já
se foi o tempo em que a alvoroçada coligação de alguns poucos interessados podia
frustrar as mais acertadas e urgentes reformas legislativas. (BRASIL, 1941)

Nesse contexto, coube a Francisco Campos a redação do Código de Processo Penal


além de ter sido o responsável por profunda reforma no campo legislativo como afirmaram
Daniel Kessler de Oliveira e Aury Lopes Júnior:
A redação do Código de Processo Penal brasileiro de 1941 ficou a cargo de
Francisco Campos, alcunhado ―Chico Ciência‖, nome que despontou como principal
teórico estado-novista e um dos grandes teóricos do autoritarismo no Brasil,
nomeado ministro da justiça, lhe coube a redação da Constituição de 1937, além de
articular um novo Código Penal (promulgado em 1940) e a unificação da legislação
processual (Código de Processo Civil, em 1939 e Código de Processo Penal, em
1941). (OLIVEIRA e LOPES JÚNIOR, 2018, p. 346)

Francisco Campos (1941, p. 150-151) narra como se deu a elaboração do Código


ainda vigente. Em 1938 Campos pediu a uma comissão de juristas composta por Nelson
Hungria, Antônio Vieira Braga e Narcelio de Queiroz, que haviam redigido a lei do júri em
janeiro de no mesmo ano, além de Candido Mendes de Almeida, para que elaborassem um
projeto de Código. Em maio a comissão entregou ao ministro o trabalho por ele pedido, que
fez a revisão.
O espírito do conflito entre a liberdade individual e a segurança pública restou
consignado por Francisco Campos ao falar sobre o então projeto de Código, disse ele:
Não será demais dizer que elle está informado de um profundo sentido de
opportunidade e calcado no perfeito conhecimento que seus autores têm da realidade
de condições geraes do paiz. Sem deixar de assegurar, de fórma sincera, a defesa dos
acusados, faz por não tomar illusoria a defesa da sociedade contra o crime, e
313

offerece os meios necessários para a completa apuração da verdade nos processos


criminaes, adoptando o principio, hoje vencedor em todas as democracias do mundo,
da liberdade de iniciativa das provas por parte dos juízes e do livre convencimento
do julgador. Não quer dizer que este possa julgar sem provas, nem que os julgados
possam ser pronunciados contra as provas existentes nos autos. As provas é que
podem ser apreciadas livremente, liberto o juiz de normas preestabelecidas para
determinar-lhe os meios de apreciação. (CAMPOS, 1941, p. 151)

O trecho acima citado, revela de uma só vez o espírito do código que estava por vir,
calcado nas mais elementares características inquisitoriais e em um conflito que só existe nas
mentes autoritárias entre a sociedade e o crime. Para uma mentalidade autoritária que
dominava um estado totalitário e um governo ditatorial, o processo penal acabava sendo um
instrumento necessário de manutenção do controle e, para isso, somente o modelo inquisitório
poderia ser útil. Percebe-se nas palavras de Francisco Campos elementos como a apuração da
verdade, que baseou a perseguição e a tortura de milhares de pessoas desde a idade média,
como já demonstramos nos capítulos anteriores; vê-se a afeição pela adoção da gestão da
prova pelo julgador, elemento central do sistema inquisitorial e que fulmina qualquer chance
de se adotar a presunção de inocência; e também se verifica a adoção do princípio do livre
convencimento do juiz que, como já demonstramos, não pode ser adotado em regimes
democráticos vez que em democracia o convencimento não é livre, eis que vinculado ao
contraditório e nem mesmo é motivado já que a fundamentação das decisões exige mais que a
mera motivação do julgador. Na feliz síntese de Marco Aurélio Nunes da Silveira:
Em suma, o Código de Processo Penal brasileiro vigente nasce autoritário e
sobrevive inquisitório até os dias atuais, na medida em que segue orientado pela
lógica da descoberta da verdade real como um dever de ofício do magistrado. Como
já se mencionou, este modelo processual (re)produz uma práxis judiciária deletéria,
fundada naquele argumento totalitário e plenamente adequada a ele. (SILVEIRA,
2016, p. 69)

Em complemento, Antônio Pedro Melchior (2017, p. 47) aponta que o Código de


Processo Penal brasileiro foi fundado sob premissas ideológicas de defesa social e na
fragilidade das garantias individuais, forjado na concentração de poderes nas mãos do juiz,
principalmente da gestão probatória, no que o Código de 1941 representa o ápice da
incorporação inquisitória no Brasil.
Essa legislação que nasceu autoritária, permanece autoritária a mais de setenta anos,
apesar de todas as reformas que foram feitas e pela vigente constituição democrática, a
estrutura processual segue formada por elementos culturais e pela prática inquisitória, que
mantêm nas mãos do magistrado a busca da verdade real e a gestão probatória (SILVEIRA,
2016, p. 71), isso faz parte do DNA do código, não se muda a estrutura por reformas pontuais,
314

precisamos de uma nova norma, mas é necessário mudar a mentalidade antes de mudar a lei.
Francisco Campos, então Ministro da Justiça e Negócios Interiores do governo de
Getúlio Vargas, encaminha no dia 08 de setembro de 1941 ao Presidente da República o
projeto de Código de Processo Penal juntamente com sua exposição de motivos. Na missiva,
Campos inicia justificando o atraso em cumprir a determinação constitucional de elaborar um
código de processo penal nacional em razão da reforma integral das normas penais,
abrangendo o Código de Processo Penal e o Código Penal bem como a Lei de Contravenções
Penais. Os objetivos do Código são vislumbrados no texto de seu mentor, aduz Campos que o
Código único para todo o Brasil era uma imposição para buscar o objetivo de maior eficiência
e energia na ação do Estado contra aqueles que delinquem. Diz Francisco Campos em sua
exposição de motivos:
As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em
flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de
garantias e favores, que torna a repressão se torna, necessariamente defeituosa e
retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade.
(BRASIL, 1941)

O trecho acima repete a mesma justificativa dada pelos romanos quando passam a
adotar o modelo inquisitório, abandonando a aproximação do modelo acusatório adotado
durante parte da república, o aumento de criminalidade e o ―excesso‖ de garantias dado aos
acusados, nesse contexto, Francisco Campos se vangloria de ter reduzido a aplicação do
princípio do in dubio pro reo, e aumentado as hipóteses de prisão em flagrante delito.
Anuncia o Ministro a lei que estava por vir, cada vez mais rígida e com menos garantias aos
indivíduos. A solução para a criminalidade, diz o Ministro, estaria na redução das garantias
processuais e em um processo penal mais forte e célere, um espaço onde o interesse social
prevalecesse sobre o interesse individual. E, ao encerrar o texto da exposição de motivos,
Francisco Campos diz que o projeto tentou equilibrar o interesse social e o dever de punir de
um lado, com a defesa individual e as garantias inerentes à liberdade de outro.
O Código de Processo Penal brasileiro adotou a mesma estrutura bipartida do Código
de Processo Criminal de Primeira instância de 1832 e que o antecedeu como norma
processual penal nacional, além disso, adotou a mesma estrutura do Código de Processo Penal
italiano de 1930, sua fonte de inspiração, e do Código de Instrução Criminal napoleônico de
1808. Dessa forma, pode-se dividir a estrutura processual penal brasileira, ainda vigente nos
dias atuais, em duas fases, uma de investigação e outra de julgamento. Na primeira, como
veremos, se adota uma estrutura inquisitorial pura, onde a autoridade policial protagoniza toda
investigação e o investigado é colocado à parte, como um objeto do inquérito e tem
315

pouquíssima participação. Na segunda fase, como veremos, o julgamento se dá em


contraditório entre as partes, que seriam as protagonistas se não fosse a possibilidade de se
utilizar a prova produzida no inquérito na fase de julgamento.
Assim, o primeiro dos cinco livros que compõe o Código recebeu o título ―Do
Processo em Geral‖ e tem por escopo estabelecer as normas gerais do processo penal
brasileiro. Seu primeiro título foi destinado às disposições gerais como a norma processual
penal no tempo e no espaço e os critérios de aplicação da lei processual penal.
No segundo título se estabelecem as normas referentes ao Inquérito Policial. O código
adotou um procedimento bifásico composto pelo inquérito policial e pela fase judiciária, o
que convencionou se chamar de fase inquisitorial e fase judicial. A adoção do inquérito
policial diverge do Código italiano de 1930 que optou pela adoção do modelo de instrução
preliminar, onde a primeira fase se dava já perante o juiz instrutor. Nesse aspecto o Código
brasileiro preferiu manter a estrutura de uma fase investigatória a cargo da polícia judiciária
na forma inaugurada pela Lei 261 de 03 de dezembro de 1841 ainda sob a vigência do Código
de Processo Criminal de Primeira Instância do Império, que, no fundo muda apenas o nome
do inquisidor da primeira fase. Francisco Campos explica na exposição de motivos a opção
pelo inquérito policial:
O preconizado juízo de instrução, que importaria limitar a função da autoridade
policial a prender criminosos, averiguar a materialidade dos crimes e indicar
testemunhas, só é praticável sob a condição de que as distâncias dentro do seu
território de jurisdição sejam fácil e rapidamente superáveis. Para atuar
proficuamente em comarcas extensas, e posto que deva ser excluída a hipótese de
criação de juizados de instrução em cada sede do distrito, seria preciso que o juiz
instrutor possuísse o dom da ubiquidade. De outro modo, não se compreende como
poderia presidir a todos os processos nos pontos diversos da sua zona de jurisdição,
a grande distância uns dos outros e da sede da comarca, demandando, muitas vezes,
com os morosos meios de condução ainda praticados na maior parte do nosso
hinterland, vários dias de viagem. Seria imprescindível, na prática, a quebra do
sistema: nas capitais e nas sedes de comarca em geral, a imediata intervenção do juiz
instrutor, ou a instrução única; nos distritos longínquos, a continuação do sistema
atual. Não cabe, aqui, discutir as proclamadas vantagens do juízo de instrução.
Preliminarmente, a sua adoção entre nós, na atualidade, seria incompatível com o
critério de unidade da lei processual. Mesmo, porém, abstraída essa consideração, há
em favor do inquérito policial, como instrução provisória antecedendo à propositura
da ação penal, um argumento dificilmente contestável: ele é uma garantia contra
apressados e errôneos juízos, formados quando ainda persiste a trepidação moral
causada pelo crime ou antes que seja possível uma exata visão de conjunto dos fatos,
nas suas circunstâncias objetivas e subjetivas. Por mais perspicaz e circunspecta, a
autoridade que dirige a investigação inicial, quando ainda perdura o alarma
provocado pelo crime, está sujeita a equívocos ou falsos juízos a priori, ou a
sugestões tendenciosas. Não raro, é preciso voltar atrás, refazer tudo, para que a
investigação se oriente no rumo certo, até então despercebido. Porque, então abolir-
se o inquérito preliminar ou a instrução provisória, expondo-se a justiça criminal aos
azares do detetivismo, às marchas e contramarchas de uma instrução imediata e
única? Pode ser mais expedito o sistema de unidade de instrução, mas o nosso
sistema tradicional, com o inquérito preparatório, assegura uma justiça menos
aleatória, mais prudente e serena. (BRASIL, 1941)
316

Vê-se que o próprio Francisco Campos parece partidário da adoção da instrução


preliminar, nos moldes italianos, contudo, não o adotou por questões logísticas. Entretanto,
não é a adoção ou não da investigação judicial ou o nome juízo de instrução em detrimento do
inquérito policial que determinará por um sistema acusatório ou inquisitório. Não era o juízo
de instrução que fazia do sistema italiano inquisitorial e nem será a adoção da investigação
policial que fará o sistema brasileiro deixar de ser inquisitório. A estrutura processual, e o
comportamento de seus sujeitos, é que determinará a escolha política por um ou por outro
sistema e, como veremos, nosso código adotou francamente uma estrutura inquisitória
enquanto, como vimos, a constituição de 1937 não fez opção por nenhum dos sistemas.
Apesar de não adotar o juízo de instrução, o Código em sua redação original
determinava que o inquérito seria presidido pela autoridade policial no território de sua
jurisdição (art. 4º), atribuindo à autoridade policial esfera de competência a qual era exercida
inclusive com o poder de iniciar a ação penal nas contravenções penais, conforme art. 26 do
Código. Porém o art. 4º, em sua parte final determina a finalidade do inquérito, a apuração da
existência do crime e os indícios de sua autoria. A autoridade policial pode dar início ao
inquérito de ofício ou a requisição / requerimento (art. 6º).
Trata-se o inquérito policial, na forma adotada pelo Código de Processo Penal em sua
forma original, de procedimento inquisitorial, onde se adota o sistema inquisitório em sua
plenitude. No inquérito, a lei não estabelece o procedimento a ser adotado, fixando o código
as diligências que devem ser realizadas pela Autoridade Policial (art. 6º), que atua de forma
livre para construir a versão que lhe parecer apropriada para o fato criminoso em apuração. O
inquérito é um procedimento formal (art. 9º) e sigiloso (art. 20), onde a participação das
partes é reduzida ao mínimo, podendo apenas requerer a realização de diligências que
somente serão realizadas se a Autoridade Policial entender necessário (art. 14), o que coloca a
Autoridade Policial como protagonista único, podendo inclusive realizar diligências de ofício
mesmo com o inquérito arquivado (art. 18), e o inquérito em um monólogo desta em
detrimento dos demais sujeitos que apenas assistem sua atuação. Ademais, o inquérito deveria
destinar-se ao Ministério Público, tanto o é que este poderá devolvê-lo à autoridade policial
para realização das diligências que entenda imprescindíveis para o oferecimento da denúncia
(art. 16). Por fim, na redação original, o investigado permanecia incomunicável (art. 21),
sendo tratado como mero objeto do inquérito e não sujeito de direitos. Por fim, os autos do
inquérito não são excluídos, pelo contrário, acompanham a denúncia ou a queixa sempre que
forem a base para a inicial acusatória (art. 12), sendo o inquérito, entretanto, facultativo para a
317

propositura da ação penal (art. 39, §5º). Nas palavras de Vicente de Paulo Vicente de
Azevedo:
O conteúdo do inquérito, evidentemente, varia conforme o caso. Inquirir é verbo que
dá origem ao substantivo inquérito, equivale a perguntar, indagar, procurar, numa
palavra, averiguar o fato, ou os fatos como ocorreram e qual o seu autor, ou os seus
autores. Para realizar êsse objetivo, a autoridade, além de inquirir, isto é, interrogar
testemunhas, o ofendido, o indiciado – promoverá diligências, inclusive, sempre que
possível, a reconstituição dos fatos, a que o Código chama de reprodução simulada.
(AZEVEDO, 1958, p. 140)

Vicente de Paulo Vicente de Azevedo (1958, p. 142-144) segue sua obra afirmando
que o produto do inquérito não possui valor probatório absoluto, mas o juiz deveria analisá-lo
em conjunto com o conteúdo do que fosse produzido na fase judiciária. Trata-se de uma
verdadeira obra de fé na capacidade do julgador em não formar seu convencimento com base
naquilo que fora produzido unilateralmente. O que se verifica é que o contato do juiz com a
prova inquisitorial faz com que o julgador se contamine com a versão unilateral do inquérito e
passe a buscar elementos que confirmem aquela versão.
Vê-se a semelhança do Inquérito Policial brasileiro com o juízo de instrução adotado
pelo Código Rocco (Itália, 1930) e com o Código de Instrução Criminal (França, 1808), muda
o nome da autoridade protagonista, de juiz para autoridade policial, porém, a atividade
inquisitorial é a mesma e a sujeição do indivíduo ao Estado-penal é idêntica. Nele o
investigado é levado à condição de não humano, mas de objeto do procedimento onde a
Autoridade Policial busca comprovar a versão que pensa ser a adequada (quadro mental
paranoico) e busca elementos para demonstrar a concretude de sua versão. Vê-se, pois, que
este modelo torna a fase judiciária, que deveria ser acusatória, uma fase de confirmação e
legitimação das informações levadas no inquérito e construídas de forma unilateral e fora do
contraditório, um mero rito de passagem para confirmar na sentença o que foi produzido na
fase inicial. A lição de Aury Lopes Jr. sobre a inclusão dos autos do inquérito na fase de
julgamento da ação penal é lapidar:
É exatamente esse o problema do inquérito policial brasileiro, que ao integrar os
autos do processo e poder ser utilizado como elemento de convencimento do
julgador, acaba por transformar o processo penal num jogo de cartas marcadas, ou
melhor, dadas a critério do investigador. Ingênuos são os juízes que com elas jogam
sem darse [sic] conta disso... (LOPES JÚNIOR, 2017, p. 51

Apesar de não haver previsão constitucional da atribuição penal do Ministério Público,


o Código atribui a ele a função de propor a ação penal pública (art. 24), contudo possibilitava
à Autoridade Policial iniciar a ação penal nas contravenções penais (art. 26), que seguia o rito
determinado no art. 531. O rito sumário, que era destinado ao processamento das
318

contravenções penais era iniciado pelo Auto de Prisão em Flagrante, lavrado pela Autoridade
Policial, sendo observado o rito de sua lavratura e tendo a presença de defensor como
obrigatória (art. 532, art. 261 e art. 304), contudo, a primeira reforma do Código de Processo
Penal, realizada pelo Decreto-Lei 4.769 de 1º de outubro de 1942, alterou justamente o art.
532 para tornar a presença do defensor facultativa no julgamento das contravenções penais. Já
na portaria que dava início ao procedimento criminal, a autoridade policial designava
audiência de instrução e julgamento e determinava a citação do acusado (art. 533), após a
autoridade policial ouvir as testemunhas destinadas à acusação, deveria remeter os autos ao
juiz competente (art. 535), que deveria ouvir o Ministério Público e interrogar o acusado (art.
536) e na sequência o réu deveria apresentar defesa e arrolar suas testemunhas (art. 537),
sendo os autos conclusos ao juiz que poderia realizar diligências de ofício para sanar
eventuais vícios e deveria marcar audiência para ouvir as testemunhas da defesa (art. 538).
A dispensa do defensor no rito de julgamento das contravenções penais tornou o
modelo ainda mais inquisitório, uma vez que era presidido pela própria autoridade policial
que acumulava as funções de investigar, acusar e julgar, enquanto o acusado era mero objeto
espectador dos atos procedimentais sem qualquer oportunidade de defesa.
O artigo 28 carrega consigo a alma inquisitorial do Código, ao permitir que o juiz
possa discordar do pedido de arquivamento formulado pelo Ministério Público, a quem o
próprio código atribuiu a titularidade da ação penal, e remeta os autos ao Procurador Geral de
Justiça. O ato de o juiz discordar do pedido de arquivamento, já demonstra que sua convicção
é pela condenação do indiciado e que, para ele (juiz), os elementos do inquérito, aos quais lhe
fora dado acesso em razão do art. 12 do Código, são suficientes para a sentença condenatória,
precisando apenas do rito de passagem da segunda fase simuladamente acusatória para que
sua vontade prevaleça.
Os requisitos para a petição inicial acusatória, seja a denúncia ou a queixa, repetem o
do Código de Processo Penal italiano, a exposição do fato criminoso com todas suas
circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-
lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas (art. 41), valendo
dizer que se admite a acusação mesmo sem sequer a qualificação do acusado.
O Código adotou os princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal
ao determinar sua proposição de forma imperativa no art. 24 e impedir a desistência do
Ministério Público (art. 42). Determinando ainda a indivisibilidade da ação penal (art. 48).
Vê-se que a redação original do Código de Processo Penal, procurou estabelecer uma
segunda fase na qual a acusação fosse exercida pelo Ministério Público, ou pelo particular,
319

separando a acusação do julgamento. Porém tal separação não se deu de forma total, eis que
permitiu o código que o julgador discordasse do pedido de arquivamento e determinasse a
remessa dos autos ao Procurador Geral de Justiça para decidir em relação ao pedido do
Ministério Público. Porém, como dissemos acima, a ação penal sendo proposta com base no
inquérito policial e esse sendo peça que instrui a acusação torna a segunda fase um mero
simulado, ou um ato de simples confirmação e legitimação daquilo que já estava produzido
inquisitorialmente. Mero ato onde se gasta tempo e dinheiro para fazer parecer acusatório um
procedimento francamente inquisitorial.
A competência para julgamento do caso penal é estabelecida no código tendo o lugar
da infração como regra, entretanto, fixa como critério subsidiário a regra da prevenção (art.
83), segundo o qual, em caso de juízes igualmente competentes segundo os demais critérios
de fixação de competência, aquele que primeiro decidir no caso penal será competente. Tal
critério possibilita que o magistrado que conhecer de atos do inquérito, portanto dos
elementos inquisitoriais, seja competente para julgar o caso penal, permitindo que o juiz se
contamine com o conteúdo do inquérito, crie sua versão antecipada dos fatos(quadro mental
paranoico) e passe à fase de julgamento em contraditório em busca dos elementos que levem a
confirmar a hipótese paranoicamente criada.
Por sua vez, na apreciação da falsidade das provas, o juiz pode realizar de ofício
diligências (art.145, III) e até determinar a verificação da falsidade das provas de ofício (art.
147). Contudo, temos que o proceder de ofício do juiz neste caso não configura uma ingestão
inquisitorial, eis que o julgador tem por maior objetivo assegurar que as partes atuem de
forma igual e com respeito às regras do jogo. Ademais, consoante lembra Fauzi Hassan
Choukr:
No caso presente, o Juiz pode assumir postura ativa no desencadeamento do
incidente, na medida em que o documento trazido por qualquer das partes (ou pelo
assistente de acusação) pode se demonstrar essencial ao julgamento da ação penal
em curso. (CHOUKR, 2017, p. 432)

Dessa forma, o agir de ofício do juiz para verificar a autenticidade de documento tem
por escopo assegurar o respeito ao fair play do processo penal, fazendo com que as regras
sejam obedecidas e privilegiando a boa-fé processual em detrimento daquele que atua sem
respeitar as normas atinentes à lealdade, e provendo a regularidade do processo como
determina o art. 251 do próprio Código.
Outra possibilidade de atuação de ofício do juiz que entendemos que não se confunde
com a substituição das partes se situa na instauração de incidente de insanidade mental do
320

acusado (art. 149). Nesse caso o julgador está tutelando as condições psíquicas do acusado e
se o mesmo poderia compreender as consequências do processo penal, inclusive com
condições de atuar em sua própria defesa através dos atos destinados à autodefesa. Por outro
lado, a verificação da insanidade do réu encontra sua principal consequência no âmbito do
direito penal, afim de se apurar a saúde psíquica do réu no momento da infração para aferir
sua culpabilidade, podendo ensejar desde a decisão de absolvição imprópria em caso de
absoluta incapacidade mental ou a redução da pena em caso de incapacidade relativa.
O cerne da diferenciação entre os sistemas processuais de partes e o sistema
inquisitório é a questão probatória. Como vimos, é na produção das provas que se encontra
um dos princípios que levarão ao protagonismo do juiz (sistema inquisitório) ou se as partes
serão protagonistas do processo (sistema acusatório ou adversarial). Na estrutura original do
Código de Processo Penal o juiz não tinha limites para a produção das provas, uma vez que a
estrutura do código foi construída em conformidade com a crença inquisitorial da busca pela
verdade real. Assim, o art. 155, se limita a definir que a única limitação ao juiz na produção
da prova penal era em relação à prova do estado das pessoas, quando deveriam ser obedecidas
as normas do processo civil. O art. 156 estabelecia em seu texto original que a prova da
alegação competiria a quem a fizesse, dividindo o ônus da prova entre acusação e defesa, o
que faz com que a inocência não seja presumida, sendo que a própria Constituição de 1937
não havia previsto o princípio da presunção de inocência. Ainda o mesmo art. 156 permite ao
juiz determinar de ofício a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante,
tal possibilidade é o eixo do procedimento inquisitorial na sistemática do Código de 1941, ao
permitir que o juiz tenha atuação ativa na seara probatória, o código permite que o juiz
substitua uma das partes atuando de forma a buscar os elementos para fundar decisão que já
estava previamente estabelecida com base na análise nos elementos do inquérito policial que
foram levados à fase jurisdicional. Por fim o art. 157 prevê expressamente a adoção do
princípio do livre convencimento do juiz, tendo nítida influência do processo civil e de sua
teoria geral, a formação da decisão pela livre apreciação da prova faz com que o julgador não
encontre limites, podendo decidir com base na prova inquisitorial que fora produzida sem
qualquer participação da defesa. Na produção da prova pericial, a participação da autoridade
policial, na fase de inquérito, e do juiz na fase judicial também era ativa, sendo que a
autoridade policial ou o juiz poderiam, de ofício determinar que os peritos complementassem
o laudo ou sanassem eventuais omissões, contradições ou obscuridades, podendo também
determinar a realização de novo exame independentemente de pedido das partes (art. 181).
Nos julgamentos das apelações o Tribunal, a Câmara ou a Turma julgadora podem determinar
321

a realização de novo interrogatório do acusado, a realização de nova inquirição das


testemunhas ou a realização de diligências, podendo, portanto, produzir novas provas de
ofício e exercendo a gestão probatória de forma típica do sistema inquisitorial. ―Assim, a
gestão da prova é confiada ao magistrado, que é o senhor todo-poderoso do processo, na
medida em que o papel das partes é reduzido ao mínimo necessário para que se justificasse
sua existência.‖ (SILVEIRA, 2016, p. 67)
Vê-se que a estrutura adotada pelo Código de Processo Penal no que diz respeito à
prova é francamente inquisitorial, o julgador é alçado à condição de protagonista que deve
buscar por uma (pres)suposta verdade real, atuando de forma livre para ir em busca das
provas que entender necessárias para confirmar a decisão que já havia tomado de antemão.
Isso converte a fase judicial em mero teatro e a atuação das partes em um jogo de cena que
apenas é necessário para legitimar a decisão do personagem principal do procedimento, o juiz.
A estrutura do interrogatório do investigado ou do acusado, seja na fase inquisitória
como na fase judiciária, adotava modelo francamente inquisitorial e colocava o acusado como
objeto do procedimento. Tratava-se de um ato onde a autoridade policial ou o juiz
centralizavam todos os atos e cabendo às partes apenas acompanhar o monólogo do
inquisidor, que deveria seguir o roteiro estabelecido no art. 188. O acusado tinha, quando
muito, direito à entrevista prévia com o defensor (art. 185, §2º), que, por sua vez, não podia
interferir nas perguntas e nas respostas (art. 187). Assim, o acusado deveria ser qualificado e
interrogado (art. 185), sendo que o acusado, apesar de não ser obrigado a responder às
perguntas poderia ter seu silêncio interpretado em seu desfavor (art. 186), podendo o silêncio
do acusado constituir elemento de prova (art. 198), devendo o juiz consignar no termo de
interrogatório as perguntas que o acusado deixar de responder e as razões pelas quais ele
deixou de respondê-las (art.191). As respostas do acusado eram dadas ao juiz que ditava ao
escrivão para registro escrito (art. 195), tal procedimento acabava fazendo com que o
conteúdo do interrogatório não refletisse aquilo que fora dito pelo acusado / investigado,
representando a interpretação do escrivão em relação àquilo que o juiz lhe ditou, que, por sua
vez, representava aquilo que o juiz havia interpretado sobre a resposta do acusado, em uma
verdadeira brincadeira de ―telefone-sem-fio‖, onde a mensagem inicial nem sempre é a
mesma daquela que era registrada. Por fim, o juiz poderia, a seu critério, realizar novo
interrogatório quando entendesse pertinente (art. 196). O acusado que, apesar de intimado a
comparecer, deixasse de ir poderia ter decretada sua condução coercitiva (art. 260),
considerando-se o acusado um mero objeto processual e colocando de lado a possibilidade de
o acusado poder ficar em silêncio, vale dizer que tal preceito ainda se encontra vigente, apesar
322

de o Supremo Tribunal Federal ter o declarado não recepcionado pela Constituição de 1988
no julgamento da ADPF 444, que será objeto de análise no estudo destinado à Constituição
vigente.
O tratamento do interrogatório na redação original do Código de Processo Penal
brasileiro denota a inquisitoriedade que se fazia presente no Código, sendo que o ato era
formal, centralizado pelo juiz (ou pela autoridade policial, caso realizado no inquérito), a
quem competia realizar as perguntas de forma exclusiva. O juiz detinha em suas mãos todo o
poder do interrogatório, sendo o acusado seu objeto de pesquisa e os demais sujeitos meros
espectadores do ato protagonizado pelo julgador.
A objetificação do acusado é também verificada com a possibilidade de sua exclusão
da sala de audiência, conforme art. 217. O acusado é o principal interessado na resolução do
caso penal, sendo ele quem sofrerá as consequências da sentença penal. Além disso, é uma
das pessoas que acompanhou toda a dinâmica da ação criminosa e, por isso, conhece os
detalhes do fato e do local melhor que seu defensor. Nesse contexto, a presença do réu na sala
de audiência é fundamental e a possibilidade de excluir o indivíduo é uma forma de tratá-lo
como mero objeto do procedimento e não como sujeito de direitos. Outro fator de tratar o
acusado como objeto se verifica na possibilidade de que o acusado possa ser submetido a
acareações com outros acusados, com testemunhas ou com vítimas (art. 229). Apesar de a
Constituição de 1937 não prever o direito ao silêncio ou garantir a presunção de inocência, o
Código estabelecia que o acusado poderia não responder aos questionamentos no juiz no
interrogatório, podendo, contudo, isso ser avaliado em seu desfavor. Além de permitir a
interpretação do silêncio em desfavor do acusado, o código permitia a acareação do acusado
com outros acusados ou com testemunhas, sendo que o confronto do acusado, que não era
obrigado a responder, com quem também não detinha a mesma obrigação ou com quem a
possuía, coloca o acusado na posição de mero objeto processual e retirando-o da esfera de
sujeito de direitos.
A participação da vítima no procedimento, segundo o Código era ínfima, sendo
limitada a poder ser perguntado sobre os fatos. Porém não se verificava a vontade da vítima
em ser ouvida no procedimento, esta era mero objeto do procedimento, apenas um objeto de
prova, tendo sua presença obrigatória e podendo ser conduzida coercitivamente até a
audiência (art. 201).
O protagonismo do juiz também pode ser percebido na prova testemunhal, sendo que o
código dispunha que as perguntas a serem formuladas pelas partes deveriam ser feitas ao juiz
a quem cabia formulá-las à testemunha (art. 212). Trata-se de um modelo que, para colocar o
323

juiz como principal sujeito do procedimento, acaba prejudicando o próprio conteúdo do


depoimento. A parte (acusação ou defesa) devia formular a pergunta ao juiz que, após
interpretar a pergunta, fazia a pergunta, da forma que havia compreendido, para a testemunha;
por sua vez, a testemunha respondia ao juiz que interpretava a resposta e a ditava ao escrivão
que registrava não mais a resposta da testemunha mas sua própria interpretação sobre a
interpretação do juiz em relação à resposta da testemunha sobre a própria interpretação do
fato criminoso. Tratava-se de um modelo irracional no qual a forma acabava tendo tratamento
superior ao próprio conteúdo do ato.
Na produção da prova documental, o juiz, tendo notícia da existência de documento
que interesse a acusação ou a defesa, pode120 determinar a juntada aos autos. O juiz que, sem
requerimento das partes, determina a juntada de documentos acaba por substituir o dever
probatório das partes, retirando delas a tarefa de produzir provas e atua como inquisidor em
busca da verdade pressuposta que acredita existir em sua mente paranoica.
O Código, desde sua entrada em vigor, trabalha com os indícios entre os meios de
prova (art. 239). A utilização do indício como meio de prova significa que o juiz poderia
decidir com base em circunstâncias deduzidas por ele, porém não provadas, a partir de outras
circunstâncias provadas. Assim, pela letra do Código, estaria o juiz a julgar com base naquilo
que pensa ter deduzido da prova, mas que não fora provado. Trata-se, sem qualquer dúvida,
de perigoso elemento inquisitório e que abre franca possibilidade para a decisão forjada na
imaginação paranoica que vai além daquilo que efetivamente fora comprovado nos autos.
Vale aqui, a crítica de Aury Lopes Júnior:
Não há que confundir indícios com provas (ainda que toda prova seja um indicio do
que ocorreu), ainda que o Código os tenha colocado dentro do Título VII, muito
menos quando se trata de valoração na sentença. Ou seja, ninguém pode ser
condenado a partir de meros indícios, senão que a presunção de inocência exige
prova robusta para um decreto condenatório. Pensar o contrário significa desprezar o
sistema de direitos e garantias previstos na Constituição, bem como situar-se na
contramão da evolução do processo penal, perfilando-se, lado a lado, com práticas
inquisitoriais desenhadas por EYMERICH no famoso Directorium Inquisitorum.
(LOPES JÚNIOR, 2018, p. 507)

Vê-se, pois que a adoção dos indícios como meio de prova enfraquece a possibilidade
de um modelo processual de partes e contribui para a construção de um sistema inquisitório,
eis que esse modelo, como vimos, se funda no protagonismo do juiz que poderia decidir com
base apenas na sua compreensão e dedução das circunstâncias provadas, porém criando
circunstâncias que sequer foram objeto de prova pelas partes.

120
Optamos pelo uso da frase no presente pois o artigo em análise segue vigente.
324

A Constituição de 1937 dedica ao Ministério Público um único artigo (art. 99


CR/1937), sem estabelecer sua estrutura. No Código de Processo Penal o órgão incumbido de
ser titular da ação penal também encontra regulamentação rasa, sendo que o Código se limita
a dedicar ao Ministério Público apenas dois artigos e, em sua redação original a determinar
que ele deve promover e fiscalizar a aplicação da lei (art. 257). Tal disposição provoca séria
confusão na prática judiciária forense até a presente data, uma vez que muitos membros do
próprio Ministério Público ainda hoje pensam ser ―partes imparciais‖, sem perceber que tal
expressão por si só encampa uma contradição em termos, uma vez que não se pode ser
concomitantemente parte e imparcial, ou se é parte ou não se é. No processo penal, o titular da
ação penal deve ser considerado uma parte, pois somente possuindo duas partes (acusação e
defesa) bem delimitadas é que teremos a possibilidade de ter um juiz imparcial.
Tendo em vista que o julgador é colocado pelo Código em posição de protagonista, a
presença da defesa técnica do acusado acabou colocada de maneira secundária, sendo que a
presença do defensor não acarretava o adiamento dos atos processuais, apenas deveria o juiz
nomear substituto de sua escolha (art. 265).
A prisão, tal qual em todos os ordenamentos inquisitórios, era a regra do sistema do
código de 1941, afinal, se o acusado era objeto do procedimento, era esperado que aguardasse
preso o julgamento para permanecer à disposição dos órgãos da persecução penal. Assim, o
capítulo destinado à prisão iniciava determinando que, fora as hipóteses legais, somente se
admitia a prisão em decorrência de pronúncia e a prisão em flagrante, que acabava perdurando
durante todo procedimento (art. 282). No caso de flagrante delito, havendo fundadas suspeitas
em relação ao preso, o delegado tinha a obrigação de mantê-lo preso (art.304, §1º). No prazo
de vinte e quatro horas da prisão em flagrante deveria ser entregue, como até hoje ainda
acontece, a nota de culpa ao acusado (art. 306), a própria terminologia empregada pela norma
nos indica a opção pela presunção de culpa do acusado e não de sua inocência.
A prisão preventiva possuía na redação original do Código apenas os requisitos de
prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria, podendo ser decretada em
qualquer fase do inquérito ou da instrução criminal, mediante despacho fundamentado (art.
315) e a requerimento do Ministério Público ou do querelante, mediante representação da
autoridade policial ou de ofício pelo juiz (art. 311), possuindo apenas o pressuposto de que a
pena máxima cominada ao crime fosse igual ou superior a dez anos, não importando a pena
mínima (art. 312), sendo que nessa hipótese a prisão era obrigatória e não poderia ser
revogada (art. 315). Porém, para garantia da ordem pública, conveniência da instrução
criminal ou assegurar a aplicação da lei penal, a prisão preventiva poderia ser aplicada, ainda
325

que a pena máxima fosse inferior a dez anos, desde que o crime fosse inafiançável, o réu /
indiciado fosse vadio, houvesse dúvida de sua identidade, ou quando o réu fosse reincidente
em crimes da mesma natureza com sentença transitada em julgado (art. 313), podendo nessa
hipótese ser revogada caso o juiz verificasse não mais estarem presentes seus motivos
ensejadores (art. 315). A prisão preventiva somente não poderia ser decretada caso estivesse
evidente que o preso houvesse agido amparado por uma das excludentes de ilicitude (art.
314). Nas hipóteses em que comportava prisão preventiva, sequer a apresentação espontânea
do acusado era capaz de afastar-lhe a prisão (art. 317).
O réu somente se livraria solto se o crime não comportasse pena privativa de liberdade
ou quando esta não ultrapassasse o limite máximo de três meses (art. 321), nos demais casos
somente poderia ser libertado mediante fiança (nos casos que a lei permitia o pagamento de
fiança) ou quando tivesse a prisão revogada. A concessão da fiança era centralizada nas mãos
do juiz, sendo que a autoridade policial somente poderia conceder fiança nos delitos punidos
com prisão simples e detenção, que representavam a grande minoria das infrações penais,
restando a grande maioria para o controle jurisdicional (art. 322). A fiança não era cabível nos
crimes punidos com reclusão, salvo se o réu fosse maior de setenta anos ou menor de vinte e
um; nas contravenções de loteria não autorizada, loteria estrangeira, loteria estadual, exibição
ou guarda de lista de sorteio, jogo do bicho, vadiagem e mendicância; em qualquer crime ou
contravenção, desde que punidos com pena privativa de liberdade, caso o réu fosse
reincidente específico; e se houvesse prova de que o réu fosse vadio (art. 323). Assim, em
regra, o acusado permanecia preso durante a ação penal.
A adoção da prisão como regra, é uma das marcas de um processo penal autoritário, e,
mais que isso, quando se junta com a possibilidade de decretá-la de ofício se casa o
autoritarismo com a inquisitoriedade que costuma marcar sistemas autoritários. O modelo
adotado no Brasil pela ditadura do Estado Novo representa exatamente esse modelo
importado do fascismo italiano, autoritário, inquisitório e que tem na prisão o braço do
Estado-Poder para fazer valer sua vontade. No regime jurídico exposto acima, vê-se que se
adotava a prisão automática bastando que a pena máxima fosse igual ou superior a dez anos,
e, além disso, podia ser decretada de ofício. Adota ainda a cláusula oca da prisão preventiva
para garantia da ordem pública, que poderia ser preenchida da forma que o juiz desejasse e na
forma que o Estado ditatorial desejasse. Além disso, o modelo ainda elege os inimigos
daquela quadra histórica, na qual o Brasil vivia seu ciclo de industrialização tardia, os
326

vadios121 e reincidentes. Verifica-se que a fórmula inquisitorial de eleger aqueles que o poder
deseja combater e atacá-los através do sistema punitivo seguiu sendo utilizada, da mesma
forma que fora em Roma, na Idade Média, e no fascismo.
O acusado preso sequer era citado, bastando sua requisição para que fosse apresentado
no juízo em dia e hora designados (art. 360). De sua vez, o acusado citado, ainda que por
edital, que deixasse de comparecer tinha a revelia decretada e o processo seguia sem sua
presença (art. 366).
O juiz poderia alterar a definição jurídica do fato, podendo aplicar pena mais grave
(art. 383), o juiz, ao dar nova definição jurídica acaba atuando no lugar do órgão de acusação,
julgando por um delito não contido na denúncia e diverso daquele que entendeu a acusação.
Caso o juiz entendesse que a alteração da definição jurídica se deve ao surgimento de fato
novo que levou à nova capitulação, ele deveria, caso a pena da nova definição fosse inferior à
da capitulação original, baixar os autos em diligência para a manifestação da defesa que
poderia arrolar testemunhas e produzir provas em relação ao fato novo; por outro lado, caso a
definição jurídica nova tivesse como consequência a imposição de uma pena mais gravosa, o
juiz deveria determinar o aditamento da acusação para que o Ministério Público pudesse
alterar os fatos e arrolar testemunhas, podendo a defesa produzir provas (art. 384). Entretanto,
tanto na adequação da capitulação (emendatio libelli) como na alteração da narrativa fática
(mutatio libelli), o juiz já tem o seu convencimento formado antes do aditamento ou da
manifestação da defesa, agindo paranoicamente para que o procedimento obedeça às
formalidades legais com o objetivo de que possa fazer valer sua vontade ao final. Pouco
importa a manifestação das partes ou a prova produzida, o convencimento do juiz já está
formado e aguarda apenas que os ritos sejam obedecidos para que possa emergir. Trata-se de
práticas autoritárias e inquisitoriais nas quais o julgador age como protagonista e usa do
procedimento como conta de chegar para atingir e legitimar a versão que já estava forjada em
seu íntimo.
O art. 385, vigente desde a edição do Código até a presente data, permite que o juiz
condene o acusado mesmo tendo o Ministério Público tenha requerido a absolvição. Vale
destacar que o texto da lei usa o verbo opinar para se referir ao requerimento do acusador,
como se o Ministério Público se limite a apenas emitir opinião e o juiz possa agir livremente,

121
Vale a ressalva que a Lei de Contravenções Penais, Decreto Lei 3.688 de 3 de Outubro de 1941, mesmo dia
que fora publicado o Código de Processo Penal, estabelece a contravenção de vadiagem em seu art. 59 como
sendo ―Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe
assegure meios bastantes de subsistência, ou prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita.‖
(BRASIL, 1941). Dessa forma, era considerado vadio aquele que não possuía condições de prover a própria
subsistência e não se dedicava ao trabalho, ou, em outras palavras, o pobre que não trabalhava.
327

seguindo ou não o conselho do titular da ação penal. Trata-se de mais uma porta inquisitorial,
na qual o juiz-protagonista toma o lugar da parte e, mesmo sem qualquer pedido de
condenação profira sentença condenatória, violando o contraditório e substituindo a própria
parte acusadora que não entendia mais ser necessária a ação penal.
Nos termos originais do Código de Processo Penal (art. 393), eram efeitos automáticos
da sentença penal condenatória, ainda que recorrível, a prisão do réu condenado, podendo
prestar fiança quando cabível, e o lançamento do nome do réu no rol dos culpados. Vê-se que
a prisão era automática após a decisão jurisdicional condenatória, pouco importando sua
cautelaridade. Além disso o rol dos culpados tem como função precípua formar um elenco de
maus indivíduos, condenados por infringir a lei penal. Dessa forma, o rol dos culpados
configuram a expressão das marcas dos inimigos (reincidentes) tal qual os inimigos da
inquisição eclesiástica eram marcados através de roupas e/ou adereços ou os inimigos do
Estado Totalitário eram marcados como inimigos do Estado.
O procedimento ordinário adotado pelo Código de 1941 em sua redação original era
centrado na figura do juiz, adotando um formato de pouca efetividade da defesa e grande
protagonismo do julgador. Assim, o procedimento iniciava com o oferecimento da denúncia,
seguindo seu recebimento pelo juiz, sem qualquer manifestação da defesa, e determinando a
citação do acusado para interrogatório (art. 394), ao qual o réu era obrigado a comparecer,
pois o procedimento seguiria caso ele fosse citado e deixasse de comparecer. Somente, após o
réu ser interrogado é que a defesa poderia se manifestar através da apresentação da defesa
prévia (art. 395), o que se seguia à uma audiência para oitiva das testemunhas da acusação e
outra para as testemunhas da defesa (art. 396), diligências finais e julgamento. A manifestação
da defesa somente após o interrogatório causava grave prejuízo ao acusado, que primeiro se
via exposto a um interrogatório baseado exclusivamente nas peças do inquérito policial e, sem
conhecer as provas a serem produzidas pela acusação era obrigado a participar do
interrogatório em um sistema que, como já vimos, permitia a interpretação do silêncio contra
o réu, que era mero objeto do processo ou um verdadeiro inimigo social que deveria ser
combatido. Vê-se que nem mesmo ao adotar a estrutura do Código Rocco e baseada no
Código francês de 1808, o Brasil adotou um sistema onde a segunda fase do procedimento
fosse efetivamente acusatória, mantenho nela uma estrutura que se aproxima de um modelo
acusatório mas com fortes resquícios inquisitoriais, contudo, nunca é demais ressaltar que a
estrutura bifásica e a manutenção do inquérito na fase ―acusatória‖ fazem do sistema pátrio
inquisitório.
No procedimento do tribunal do júri originalmente, finda a audiência para inquirição
328

das testemunhas da defesa, na forma do rito do procedimento originário, e oferecidas as


alegações finais pelas partes (art. 406), os autos eram remetidos ao juiz presidente do Tribunal
do Júri que poderia realizar diligências para busca da verdade (407), vê-se mais uma vez a
fixação da lei brasileira com o conceito de busca de uma verdade, que, como vimos se trata de
uma das principais características inquisitoriais quando, em nome da dita ―verdade‖ se
praticavam os maiores absurdos em busca da confissão. Havendo prova da existência do
crime e indícios suficientes de autoria, o juiz presidente pronunciaria o acusado, determinando
que fosse submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri, indicando na decisão a capitulação
do crime que o réu estaria incurso, determinava o lançamento do nome do acusado no rol dos
culpados e determinaria sua prisão (art. 408), a prisão após a pronúncia era a regra do sistema
original do Código de Processo Penal, não importavam outros requisitos, bastava a decisão de
pronúncia, além dela, o nome do réu era lançado no rol dos culpados sem sequer a decisão
transitar em julgado, vê-se que a norma de 1941 presumia vivamente a culpa do acusado e não
sua inocência, exatamente como se prevê um ordenamento inquisitorial. Na fase de pronúncia
o juiz não estava limitado à acusação, podendo recapitular o crime, ainda que sujeitasse o réu
a pena mais gravosa (art. 408, §3º). Caso o juiz vislumbrasse na fase de pronúncia que
haveriam outros acusados, deveria remeter os autos ao Ministério Público para aditamento da
acusação visando a inclusão dos outros acusados (art. 408, §4º), em uma clara atitude
inquisitorial onde o juiz, atuando no lugar do acusador ordena a ele que corrija a acusação
segundo as suas convicções previamente estabelecidas. Caso o juiz não se convencesse dos
requisitos para pronúncia, poderia impronunciar o acusado (art. 409), contudo, o
procedimento poderia ser reiniciado caso surgissem novas provas, o que fazia com que o
acusado permanecesse com o risco de se ver processado a qualquer tempo e vivesse sob
grande insegurança (art. 409). O juiz somente poderia absolver o réu nessa fase procedimental
(absolvição sumária) caso o acusado comprovasse ter agido amparado por uma excludente de
ilicitude ou culpabilidade, quando deveria recorrer de ofício da decisão (art. 411), a decisão de
absolvição do acusado estava sujeita ao reexame necessário através do recurso de ofício
somente tendo validade se confirmada pelo Tribunal, dispositivos como esse apenas
demostram o como era autoritário o sistema adotado. Passada em julgado a decisão de
pronúncia o Ministério Público oferecia libelo acusatório (art. 416), nos moldes do Código de
Processo Penal de Primeira Instância de 1832, podendo a defesa contrariar o libelo (art. 421).
No julgamento pelo júri, após a formação e compromisso do conselho de sentença, o
interrogatório do réu era o primeiro ato do julgamento (art. 465 e 466), o que, como já
dissemos acarretava em grande prejuízo para sua defesa, quando o desconhecimento da prova
329

a ser produzida acabava sendo usada como forma de busca pela confissão. Após o
interrogatório o juiz fazia um relatório do procedimento e em seguida eram interrogadas as
testemunhas de acusação e de defesa, podendo as partes (acusação e defesa), os jurados
(juízes de fato) e o juiz presidente arguir as testemunhas, sem que a lei estabelecesse limites à
arguição e, consequentemente, permitindo que os jurados produzissem provas (art. 467-468).
Apesar de serem juízes de fato, o parágrafo único do art. 484 vedava que os jurados fossem
arguidos em relação às circunstâncias agravantes e atenuantes, deixando a decisão em relação
a elas exclusivamente nas mãos do juiz presidente a quem competia a aplicação da pena em
caso de condenação, isso implicava em que os jurados decidissem apenas em relação ao crime
cometido e condenação do acusado, enquanto ao juiz cabia a aplicação da pena integralmente.
Ainda que absolvido, o réu somente era colocado em liberdade se o crime fosse afiançável ou
se tivesse se apresentado espontaneamente à prisão e confessado o crime em momento no
qual se ignorava a autoria ou a imputava a outra pessoa (art. 492, II, ―a‖).
O tratamento destinado às nulidades tem como objetivo reduzir ao máximo seu
reconhecimento e o aproveitamento (convalidação, art. 572) dos atos processuais viciados.
Dessa forma, o Código inicia o capítulo dedicado às nulidades pela adoção do princípio do
prejuízo, estabelecendo que nenhum ato será declarado nulo se não resultar prejuízo para a
acusação ou para a defesa art. 563 e o princípio do interesse (art. 565), para exigir que
somente a parte interessada na declaração da nulidade pudesse argui-la. O Código adotou uma
disposição casuística, optando por definir um rol de hipóteses onde as nulidades poderiam
ocorrer (art. 564), como se fosse possível estabelecer um rol fechado de casos e estabelecendo
marcos temporais para a arguição da nulidade (art. 571). O código determina que as nulidades
não seriam reconhecidas caso não fossem determinantes para a descoberta da verdade ou na
decisão da causa (art. 566), criando critérios subjetivos com escopo de dificultar o
reconhecimento das nulidades e colocando nas mãos do juiz a decisão de reconhecer ou não a
nulidade. As omissões da denúncia, da queixa, da representação ou da portaria que iniciava o
procedimento criminal nos casos de contravenções penais poderiam ser sanadas a qualquer
tempo até a sentença (art. 569).
Apesar de o Código brasileiro adotar fórmula diversa do Código italiano de 1930, sua
fonte inspiradora, eis que a lei pátria optou por um modelo no qual o rol de nulidades
estivesse disposto em um capítulo autônomo enquanto o modelo da Itália preferiu dispor as
nulidades de forma esparsa ao longo do texto de lei, verifica-se certa similitude entre os
modelos adotados. O Código de Processo Penal brasileiro não separa nulidades em absolutas
e relativas, não adotando de forma expressa tal divisão, sendo que segue o exemplo italiano de
330

tentar relativizar as nulidades e evitar sua declaração, deixando nas mãos do juiz a decisão de
reconhecer ou não o vício e declarar ou não a nulidade. Tal fórmula se explica em um sistema
inquisitorial, eis que se trata de um modelo centrado na figura do juiz, onde ele concentra
todos os poderes de decidir. Nesse contexto, ao se estabelecer os princípios do prejuízo e da
convalidação como regras do sistema, somente se declararia a nulidade dos atos processuais
que interessaria ao juiz, lembrando que é sua função manter a regularidade dos atos
processuais. Trata-se de uma forma de se manter o controle sobre os rumos do procedimento
nas mãos do julgador e dar a ele amplos poderes para descumprir as regras do jogo, sendo-lhe
facultativo declarar a nulidade.
Francisco Campos via nas nulidades um ―meandro técnico por onde escoa a
substância do processo e se perdem o tempo e a gravidade da justiça‖ (BRASIL, 1941), para
isso o Código de 1941 reduz as nulidades ao mínimo, no que segue o Código de Processo
Penal italiano de 1930 que acabou com as nulidades absolutas. O Código brasileiro não
chegou a acabar com as nulidades absolutas, porém, reduziu ao mínimo as nulidades e traçou
um capítulo de péssima redação e forte influência da teoria geral do processo.
O tratamento dos recursos também recebeu forte carga da alma autoritária do Código.
Adotou-se o princípio da voluntariedade recursal, contudo nas decisões que concediam habeas
corpus e das que absolviam o réu na primeira fase dos julgamentos pelo Tribunal do Júri
havia o recurso de ofício (art. 574), ou a revisão obrigatória da decisão como elemento de
validade da decisão de primeiro grau. Ambas as hipóteses de recurso ex officio são de
decisões favoráveis ao acusado, ou seja, são recursos cujo provimento vão contra o acusado, o
que é típico de um modelo autoritário onde a presunção de culpa prepondera. O Ministério
Público atuava em conformidade com o princípio da obrigatoriedade da ação penal que, na
fase recursal desaguava na indisponibilidade do recurso, não podendo desistir do recurso
interposto (art. 576). Os recursos contra sentença absolutória tinham, em regra, efeito
suspensivo, o que permitia a manutenção da prisão do acusado mesmo após ter sido
absolvido, apenas não teria efeito suspensivo em relação ao acusado que houvesse se
apresentado espontaneamente e confessado a prática de crime de autoria ignorada (art. 318).
Por outro lado, a apelação contra sentença condenatória poderia ter efeito suspensivo (art.
597), salvo nos crimes inafiançáveis (art. 393), aplicação de pena provisória de interdição de
direitos, medidas de segurança e suspensão condicional da pena. Além disso, o acusado que
fosse condenado somente poderia apelar da sentença se se recolhesse à prisão ou prestasse
fiança nos crimes que esta era admitida (art. 594) e, caso o réu fugisse após recorrer, teria a
apelação julgada deserta (art. 595). A apelação interposta contra sentença absolutória apenas
331

permitia a liberdade no caso de crimes cuja pena máxima fosse inferior a oito anos de
reclusão, não suspendendo a aplicação de medida de segurança (art. 596). Em outras palavras,
todos eram considerados culpados até trânsito em julgado da sentença absolutória, salvo as
exceções previstas em lei.
Além do Decreto-Lei 4.769, de 01 de outubro de 1942, que alterou o artigo 532
alterando o procedimento sumário, o Código de Processo Penal sofreu apenas mais uma
alteração durante a vigência da Constituição de 1937, sendo alterado pelo Decreto-Lei 6.109
de 16 de dezembro de 1943 que modificou o artigo 712 para alterar o regime de concessão do
livramento condicional para modificar a competência para conceder o benefício, adotando a
forma que encontra-se vigente até os dias atuais.
Dessa forma, o Código de Processo Penal está em vigência desde 1941, tendo sido
forjado sob a marca do autoritarismo da ditadura de Getúlio Vargas durante o denominado
Estado Novo. Desde então, o Código esteve em vigor durante governos democráticos e
autoritários, vigorou em três ordenamentos constitucionais diferentes (1946, 1967/1969 e
1988), e passou por 54 reformas pontuais, algumas buscando um modelo menos autoritário e
outras um modelo ainda mais repressivo, mas nenhuma delas foi capaz de alterar sua alma
inquisitória e nem seu DNA autoritário, o que somente uma reforma integral e muito além da
simples reforma legislativa será capaz de fazer.
O fim da II Guerra Mundial, e com ela dos regimes totalitários europeus, foi
determinante no fim da ditadura Vargas. O Brasil, após adotar uma postura titubeante durante
a guerra, acabou lutando ao lado das forças aliadas e rompido as relações com os países
autoritários da Europa. Ao final da batalha restou a contradição de ter lutado contra o
totalitarismo externamente e manter uma ditadura no plano interno. A imprensa e a sociedade
tabém se juntaram para pressionar o fim do regime ditatorial do Estado Novo. (SOUZA
NETO e SARMENTO, 2017, p. 130)
Com a queda da ditadura de Vargas e o fim do Estado Novo após a Segunda Guerra
Mundial, a redemocratização do País se tornou necessária e foi eleita a Assembleia Nacional
Constituinte, instalada no dia 02 de fevereiro de 1946, sob o governo do General Eurico
Gaspar Dutra. A quarta constituinte brasileira não trabalhou com nenhum anteprojeto,
contudo buscou sua inspiração na Carta de 1937. Tendo a Constituição de 1946 recomposto
as antigas instituições que haviam sido excluídas na Constituição anterior. O texto
constitucional de 1946 é apontado como um dos melhores que o Brasil já possuiu, juntando o
pensamento liberal no campo político com a necessária abertura social. Contudo, não
representava os interesses do povo, uma vez que a Assembleia fora eleita por apenas 18% da
332

população, não se fazendo presente na vida do povo. (CARVALHO, 2007, p. 489-493)


Aliomar Baleeiro, ao comentar a Constituição de 1946 aponta que a Constituinte
buscou resgatar a Constituição de 1891, juntando a ele as inovações da Carta de 1934 como a
proteção dos trabalhadores, ordem econômica, educação, família, entre outros temas, que
deram as características do texto aprovado e promulgado em 18 de setembro de 1946.
(BALEEIRO, 1999, p. 14)
Nesse contexto, o Presidente da República editou a Lei Constitucional nº 9, em 28 de
fevereiro de 1945, que teve por objetivo recompor as instituições constitucionais que haviam
sido destituídas pela Carta de 1937, tendo substituído o plebiscito previsto em seu art. 187
pela e determinar a ―a eleição de um Parlamento dotado de poderes especiais para, no curso
de uma Legislatura, votar, se o entender conveniente, a reforma da Constituição‖ (BRASIL,
1945). Contudo, a lei editada por Getulio Vargas previa eleição parlamentar, foi necessário
que a Ordem dos Advogados do Brasil formulasse consulta ao Tribunal Superior Eleitoral
para que esse declarasse por meio da resolução nº 215/1945 que o parlamento eleito em 2 de
dezembro de 1945 teria poderes constituintes (SOUZA NETO e SARMENTO, 2017, p. 132).
Porém, o movimento denominado ―Queremismo‖ surgiu em defesa da permanência de
Getúlio Vargas no poder ou de que esse indicasse seu sucessor, tendo a repercussão popular
colocado em dúvida o processo eleitoral. Nesse contexto, e após medidas polêmicas adotadas
por Getúlio Vargas, o governo acabou interrompido em 29 de outubro de 1945 através de um
golpe militar comandado pelo General Goés Monteiro que depôs o presidente e colocou em
seu lugar o presidente do Supremo Tribunal Federal, Min. José Linhares, que edita leis
constitucionais para remover as medidas mais autoritárias e toma as medidas necessárias para
a realização de novas eleições. Em 31 de janeiro de 1945, o presidente em exercício transmite
ao eleito Eurico Gaspar Dutra o cargo de Presidente da República. (SOUZA NETO e
SARMENTO, 2017, p. 131)
Assim, foram convocadas eleições para Presidente da República, Governadores de
Estado, Parlamentares federais e Assembleias legislativas estaduais, fixando o dia 02 de
dezembro de 1945 para a realização das eleições. Concorreram à presidência os militares
Brigadeiro Eduardo Gomes (pelas forças contrárias à ditadura Vargas) e o General Eurico
Gaspar Dutra (ex-ministro de Vargas e que foi candidato por aqueles que apoiavam o
governo), tendo o General vencido as eleições. O texto da nova constituição fora baseado
sobretudo nas Constituições de 1934 e de 1891, nascendo de costas para o futuro e, por isso,
não conseguindo realizar-se plenamente. Mesmo assim, cumpriu seu papel de redemocratizar
o País e durante seus vinte anos de vigência sucederam crises políticas e conflitos
333

constitucionais de poderes, o mais significativo sendo a eleição de Getúlio Vargas com um


programa social e econômico que perturbou os conservadores e gerou gravíssima crise,
culminando no suicídio do Presidente. Além de tal crise, o golpe militar de 31 de março de
1964 que colocou o Brasil sob sua mais longa ditadura. (SILVA, 2001, p. 84)
A Assembléia Constituinte de 1946 surgiu em um contexto histórico de
constitucionalismo global iniciado após o término da segunda guerra mundial, momento em
que outros países como Itália (1947), Alemanha (1948) e Índia (1949) também estavam
elaborando novas constituições voltadas para a idéia de respeito aos direitos humanos e à
democracia. (SOUZA NETO e SARMENTO, 2017, p. 131)
A Constituição de 1946 possuiu cunho extremamente eclético, não tendo uma
definição e caracterização doutrinária. Manteve a conciliação entre o federalismo e o
unitarismo, o presidencialismo e o parlamentarismo, o individualismo e o socialismo. Tendo
como principais inovações a restauração da harmonia entre os poderes; a supressão da
representação profissional no parlamento; o reestabelecimento das funções clássicas do
Senado, que havia sido reduzido a um órgão consultivo na Constituição de 1934 e na de 1937;
inseriu a Justiça do Trabalho entre os órgãos do Poder Judiciário; aumentou o rol dos direitos
sociais do trabalho. (JACQUES, 1977, p. 92-96)
A nova Constituição buscava combinar elementos do liberalismo político e
democracia com o Estado Social, pouco inovadora, ela buscou se afastar do autoritarismo de
sua antecessora e acolher os elementos do liberalismo democrático como a separação de
poderes e o pluripartidarismo sem abrir mãos dos direitos trabalhistas e da intervenção do
Estado na ordem econômica. (SOUZA NETO e SARMENTO, 2017, p. 133)
Segundo Aliomar Baleeiro, a estrutura constitucional de 1946 é similar à de 1891,
contudo, sem a rigidez presidencialista da primeira constituição republicana. A Constituição
tem como premissa a máxima kantiana de que o Estado não é fim em si mesmo e que, por
isso, deveria canalizar esforços para o beneficio dos seres humanos, melhorando as condições
de saúde, educação, bem-estar, etc. (BALEEIRO, 1999, p. 16-18)
A Constituição de 1946 inicia seu texto afirmando a manutenção do regime
representativo, a federação e a república (art. 1º), o que denota ser a Carta em análise uma
continuação dos modelos anteriores e não um rompimento constitucional com o passado.
Com esse pensamento, o primeiro título da Carta trata da organização federal, estabelecendo
as normas gerais do Estado e as competências da União (art. 5º), nesse contexto o inciso XV,
alínea ―a‖ mantém na competência privativa da União a legislação sobre direito processual e
direito penal, sendo que a Constituição não permitiu sequer a competência supletiva dos
334

Estados (art. 6º).


O segundo capítulo do título I Constituição de 1946 é dedicado ao Poder Legislativo,
tendo reestabelecido as atribuições legislativas do Senado Federal, que passou a ser presidido
pelo vice-presidente da república, sendo que este somente teria direito ao voto de qualidade
em caso de empate nas votações (art. 37-77). O terceiro capítulo foi dedicado ao Poder
Executivo (art. 78-83). E, por último, encontram-se dispostas as normas referentes ao Poder
Judiciário no quarto capítulo (art. 94-124), dispondo sobre as garantias judiciais de
vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos (art. 95), como formas de se
buscar assegurar a imparcialidade do julgamento.
O segundo título da Constituição, composto apenas pelo art. 124, é dedicado à justiça
dos Estados, estabelecendo as normas gerais da organização da função jurisdicional estadual,
porém, deixando a efetiva organização às normas estaduais.
A Constituição de 1946 dedica o capítulo III ao Ministério Público. Nos quatro artigos
destinados ao Ministério Público (art. 125-128) não há qualquer referência à suas atribuições,
estabelecendo as normas gerais e delegando à lei infraconstitucional a organização da
instituição (art. 125), não estabelecendo qualquer função referente ao processo penal.
Já o título IV da Constituição de 1946 é dedicado à declaração de direitos e aos
direitos fundamentais, iniciando pela nacionalidade e cidadania (Capítulo I) e prevendo os
direitos e garantias individuais no Capítulo II, dentre eles os que se destinam ao processo
penal referentes igualdade (art. 141, §1º); legalidade (art. 141, §2º); reserva da jurisdição (art.
141, §4º); garantia de que ninguém seria preso salvo flagrante delito ou ordem da autoridade
competente (art. 141, §20); dever de comunicação da prisão ao juiz competente, que poderia
relaxar a prisão ilegal e até promover a responsabilização da autoridade coatora (art. 141,
§22); garantia do habeas corpus vinculada apenas à perigo ou restrição do direito de
locomoção (art. 141, §24) e do mandado de segurança para outras violações de direitos (art.
141, §25); garantia da plenitude de defesa, com todos os meios e recursos essenciais, desde a
nota de culpa, e instrução processual contraditória (art. 141, §25); exclusão do foro
privilegiado a juízes e tribunais (art. 141, §26); princípio do juízo natural (art. 141, §27);
instituição do júri, estabelecendo ainda que deveria possuir número ímpar de jurados, garantia
do sigilo das votações, plenitude da defesa e soberania dos veredictos, além da competência
obrigatória para os crimes dolosos contra a vida (art. 141, §28); irretroatividade da lei penal e
individualização da pena (art. 141, §29); responsabilidade penal individual ou
intranscendência das penas (art. 141, §30); vedação da pena de morte (salvo as leis militares
em tempo de guerra), de banimento, de confisco e de caráter perpétuo; além da garantia do
335

rápido andamento dos processos, publicidade dos atos e expedição de certidões (art. 141,
§36). A presunção de inocência não encontrou previsão na Constituição de 1946.
A garantia da instrução processual contraditória, não altera a possibilidade da fase
inicial do processo penal inquisitória e, por isso, desprovida do contraditório. Apenas se refere
à instrução processual em juízo e não ao momento da investigação. Dessa forma, apesar de
representar um avanço ao se levar o contraditório aos direitos fundamentais, pouco alterou a
sistemática inquisitória do processo penal, que seguiu sua sina inquisitória, apesar da
constituição prever entre os direitos e garantias básicas vários dos elementos acusatórios.
Na sequência dos direitos fundamentais, a Constituição estabelece as normas da ordem
econômica e social, Título V – art. 145-art. 162. Seguindo as normas referentes à família,
educação e cultura, Título VI, iniciando pela família, Capítulo I – art. 163-165; e seguindo
pela previsão da educação e cultura, Capítulo II – art. 166-175. As forças armadas possuem
previsão no Título VII (art.176-183). Os funcionários públicos vêm previstos no Título VIII
(art. 184-194). Por fim o Título IX estabelece as disposições gerais (art. 195-221).
Durante sua vigência, entre 18 de setembro de 1946 até 24 de janeiro de 1967 quando
foi substituída pela Constituição ditatorial do Regime Militar que havia tomado de assalto o
poder e inserido o Brasil em uma longa e sangrenta ditadura, a Constituição de 1946 passou
por crises graves, como o golpe parlamentarista de 1961 retratado na Emenda Constitucional
nº 4, de 02 de setembro de 1961, revogada em 23 de janeiro de 1963 pela Emenda
Constitucional nº 6. Além de ter sido a Constituição vigente no golpe militar de 31 de março
de 1964. Pode-se dividir a vigência da Constituição de 1946 em três períodos, o primeiro de
1946 a 1961 quando se viveu uma vida política razoavelmente democrática e de calma
institucional, com eleições livres e respeito às liberdades públicas. O segundo período, no
governo do agora presidente eleito Getulio Vargas, este aprofundou seu projeto de
trabalhismo e nacionalismo econômico, sendo alvo de uma oposição ferrenha de setores da
sociedade civil, das forças armadas e da alta burguesia. O atentado frustrado contra Carlos
Lacerda, ocorrido no dia 4 de agosto de 1954, que acabou vitimando o Major da Marinha
Rubens Vaz, e apontando o chefe da guarda presidencial Gregório Fortunato como seu
mandante tornou a crise ainda mais aguda, atraindo forte pressão da opinião pública e
culminando no suicídio de Getulio Vargas em 24 de agosto de 1954, levando ao poder o vice-
presidente Café Filho para terminar o mandato. Com a eleição de Juscelino Kubitschek nas
eleições de 3 de outubro de 1953, as forças antivarguistas passaram a conspirar para impedir a
posse do novo presidente, no qual viam uma linha de continuidade, ao argumento falso de que
o eleito não tinha obtido maioria absoluta dos votos, o que não era exigido
336

constitucionalmente. Antes da transmissão do cargo, Café Filho sofre um ataque cardíaco e é


obrigado a se afastar da presidência, sendo substituído por Carlos Luz, então presidente da
Câmara dos Deputados. Em razão de rumores de que Carlos Luz participava das conspirações
para impedir que Juscelino tomasse posse, o Marechal Lott dá um golpe de estado preventivo
para afastar Carlos Luz do poder e garantir a posse do presidente eleito, tendo o Senado
apoiado o golpe e eleito o senador Nereu Ramos, vice-presidente do Senado, para ocupar a
presidência até a posse de JK. Café Filho, recuperado tenta voltar ao poder através de um
mandado de segurança junto ao Supremo, que, por maioria de votos não julga o pedido e
prefere suspender o procedimento até que cessasse o estado de sítio que estava vigente.
Juscelino governa de forma relativamente tranquila e passa o cargo ao presidente Jânio
Quadros e ao vice João Goulart, eleitos por chapas diferentes, como era possível no
ordenamento constitucional vigente. Com a renúncia de Jânio, estando em viagem à China de
Mao Tsé-Tung, comçou a ser articulado um ―veto militar‖ à posse do vice-presidente, que
somente não deu certo em razão da não adesão dos militares do 3º exército sediado no Rio
Grande do Sul na denominada ―Campanha da Legalidade‖ comandada pelo então governador
gaúcho Leonel de Moura Brizola. Com isso se costura uma solução para a crise que
determinou na Emenda Constitucional nº 4 de 2 de setembro de 1961 e instituiu o
parlamentarismo no Brasil e perdurou até janeiro de 1963. (SOUZA NETO e SARMENTO,
2017, p. 136-138)
Com o fim do parlamentarismo, João Goulart passou a se aproximar cada vez mais da
esquerda, prometendo reformas de base e a reforma agraria, restringindo o capital estrangeiro
tornando o ambiente ainda mais turbulento e polarizado, tendo os Militares se aliado aos
setores do empresariado, proprietários rurais e seguimentos da classe média para, em 31 de
março de 1964 dar o golpe militar, sem nenhum conflito efetivo, apenas com a movimentação
das tropas. Em 1º de abril de 1964 o presidente do Senado Auro Moura Andrade declarou a
presidência vaga, antes mesmo da saída de João Goulart do País e o presidente da câmara
Ranieri Mazzilli passado a exercer a presiência por alguns dias até que o General Humberto
Castelo Branco assumisse a presidência, dando início à ditadura militar, formalizado pelo Ato
Institucional nº 1 redigido por Francisco Campos, dando início ao terceiro e último período da
Constituição de 1946. (SOUZA NETO e SARMENTO, 2017, p. 139)
Durante a vigência da Constituição de 1946 o Código de processo penal passou por
sete reformas pontuais. Após a Constituição reabrir o Congresso Nacional, que havia sido
fechado pela Constituição de 1937, e a fixação da competência do Congresso Nacional para
legislar sobre matéria processual penal, todas as reformas operadas sob a regência da
337

Constituição de 1946 foram realizadas através de leis ordinárias, sendo, desde então alçado o
Código de Processo Penal, originalmente um Decreto-Lei, para o status normativo de lei.
A primeira reforma do Código de Processo Penal se deu pela Lei 263, de 23 de
fevereiro de 1948 e realizou alterações significativas no Tribunal do Júri, começando por sua
competência (art. 74) para acrescentar no rol de crimes a serem julgados pelo Júri, além do
homicídio; infanticídio e auxilio e instigação ao suicídio, o crime de aborto em todas suas
formas (auto aborto, aborto consentido e aborto sem o consentimento da gestante). A mesma
lei também alterou as regras de fixação de competência por conexão (art. 78) para estabelecer
a competência do júri sobre a do juiz singular quando estas concorrerem, invertendo a regra
original do Código. Outra alteração da mesma lei foi a inserção do §1º no art. 466 original,
renumerando o antigo parágrafo único para parágrafo segundo, modificando o procedimento
do júri para inserir a possibilidade da leitura de peças durante o julgamento, a requerimento
das partes ou dos jurados, possibilitando que os juízes de fato pedissem a leitura de quaisquer
peças e, com isso tivessem ainda mais contato com o inquérito policial e a prova
inquisitorialmente produzida. Modificou também o art. 474 para estabelecer o prazo de três
horas para acusação e para a defesa, podendo acrescentar mais uma hora para cada parte na
réplica e tréplica. A quesitação do júri foi alterada pela nova redação do parágrafo único do
art. 484 pela Lei 263/1948, estabelecendo regras para a quesitação e a formulação de quesitos
referentes à existência de agravantes e atenuantes, o que gerou a reforma também do art. 492
no que se refere à aplicação de pena e as circunstâncias reconhecidas pelo júri. O capítulo de
nulidades ganhou um parágrafo único no art. 564 para estabelecer a nulidade do julgamento
pelo júri em razão de vícios e deficiências na quesitação. Também o inciso III do art. 593 foi
reestruturado para inserir a possibilidade de apelação contra a decisão do júri no caso desta ser
manifestamente contrária à prova dos autos, tendo renumerado o antigo parágrafo único para
§4º e inserido três parágrafo estabelecendo as consequências do provimento do recurso de
apelação contra decisão do Tribunal do Júri. Por fim a lei em análise alterou o art. 596 para
determinar que a apelação contra sentença absolutória não impediria que o réu fosse colocado
em liberdade, excluindo a exceção da redação original referente aos crimes com pena superior
a oito anos, alterou também os parágrafos renumerando o parágrafo único para §1º e criando o
§2º para determinar que a apelação contra sentença absolutória não teria efeito suspensivo.
Por sua vez, a lei 1.431 de 12 de setembro de 1951 alterou normas de execução penal
em relação ao patronato, que, por não ter relação com o presente trabalho não será objeto de
análise aprofundada.
Já a Lei 1.720-B alterou o art. 609 do Código de Processo Penal para adequá-lo à
338

Constituição de 1946 que alterou a nomenclatura dos antigos Tribunais de Apelação para
Tribunais de Justiça, criando ainda, ao inserir o parágrafo único no referido artigo o recurso
de embargos infringentes e de nulidade para que a defesa possa buscar o resgate do voto
divergente nos julgamentos realizados por maioria de votos.
A Lei 1.907 de 07 de setembro de 1953 alterou o art. 221 apenas para modificar o rol
daqueles que poderiam ser ouvidos em data e hora previamente acertados com o juiz, sendo o
mesmo artigo alterado novamente pela lei 3.653 de 04 de novembro de 1959 que deu ao caput
a redação que vigora até hoje. Já a lei 3.181 de 11 de janeiro de 1957 apenas modificou o
inciso II do art. 295 para excluia os prefeitos e vereadores do rol daqueles que teriam direito a
serem recolhidos em quartéis antes do trânsito em julgado de sentença condenatória, sendo os
guardas civis dos Estados e Territórios inseridos no inciso XI do mesmo artigo pela Lei 4.760
de 23 de agosto de 1965, sendo o mesmo inciso alterado pela Lei 5.126 de 29 de setembro de
1966 para ganhar sua redação vigente até os dias atuais abrangendo os delegados de polícia e
os guardas-civis dos Estados e Territórios, ativos e inativos com a possibilidade de
recolhimento em quartéis durante a ação penal. A lei 3.396 de 02 de junho de 1958
regulamentou as hipóteses de recurso extraordinário e, por isso, revogou os artigos 632 a 636
do Código de Processo Penal. Outra alteração destinada ao sistema recursal foi promovida
pela Lei 4.336 de 01 de junho de 1964 que inseriu o §4º no art. 600 do Código para permitir
que as razões de apelação pudessem ser apresentadas diretamente no Tribunal de segundo
grau. A Lei 4.893 de 09 de dezembro de 1965 alterou o art. 91 para alterar as hipóteses de
prevenção.
A Lei 5.010 de 30 de maio de 1966, ao regulamentar as normas procedimentais
aplicáveis à justiça federal, alterou o parágrafo único do art. 21 do Código para limitar a
incomunicabilidade do preso ao prazo máximo de três dias, exigindo para tanto ordem judicial
e determinando que a incomunicabilidade não atingisse ao advogado nos termos do art. 89,
III, da Lei 4.215, Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil vigente naquela época.
Dessa forma, o Código de Processo Penal passou pela Constituição de 1946 com
pequenas modificações, uma vez que a estrutura constitucional adotada não adotou, sequer
por aproximação, nenhum dos sistemas processuais penais. Desse modo, deixou toda
regulamentação para ser feita pelas normas infraconstitucionais e não se opôs ao modelo
inquisitorial adotado pelo Código vigente.
No entanto, com o golpe militar de 31 de março de 1964 e a vigência da Constituição
de 24 de janeiro de 1967, que visava atender aos anseios do governo autoritário imposto pelos
militares, um novo quadro constitucional se desenha. Em um regime novamente autoritário, o
339

Código de Processo Penal voltou à suas origens ditatoriais e pôde servir ao regime com
louvor.
Com o golpe militar de 31 de março de 1964 o Brasil ingressou em um período de
grande autoritarismo. Logo após a tomada do poder, os Militares editaram o Ato Institucional
nº 1, datado de 9 de abril de 1964 e inicia seu texto afirmando à nação brasileira:
É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao
Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver
neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como
na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução.
A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se
traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da
Nação.
A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se
manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e
mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder
Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a
capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente
ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela
normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação
das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu
nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular. O Ato
Institucional que é hoje editado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da
Marinha e da Aeronáutica, em nome da revolução que se tornou vitoriosa com o
apoio da Nação na sua quase totalidade, se destina a assegurar ao novo governo a ser
instituído, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira,
política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato,
os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do
prestígio internacional da nossa Pátria. A revolução vitoriosa necessita de se
institucionalizar e se apressa pela sua institucionalização a limitar os plenos poderes
de que efetivamente dispõe.
O presente Ato institucional só poderia ser editado pela revolução vitoriosa,
representada pelos Comandos em Chefe das três Armas que respondem, no
momento, pela realização dos objetivos revolucionários, cuja frustração estão
decididas a impedir. Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o
governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País. Destituído pela
revolução, só a esta cabe ditar as normas e os processos de constituição do novo
governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o
exercício do Poder no exclusivo interesse do Pais. Para demonstrar que não
pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição
de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do
Presidente da República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no
Brasil a ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a
drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do
governo como nas suas dependências administrativas. Para reduzir ainda mais os
plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos,
igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus
poderes, constantes do presente Ato Institucional.
Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do
Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do
Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação.
Em nome da revolução vitoriosa, e no intuito de consolidar a sua vitória, de maneira
a assegurar a realização dos seus objetivos e garantir ao País um governo capaz de
atender aos anseios do povo brasileiro, o Comando Supremo da Revolução,
representado pelos Comandantes-em-Chefe do Exército, da Marinha e da
Aeronáutica resolve editar o seguinte.
340

Entretanto, as ditaduras e os regimes autoritários não costumam confessar tal natureza,


sempre agindo dizendo estar assegurando direitos e instituições democráticas, ou como ensina
Maurício Zanoide de Moraes:
O Golpe Militar de 1964, como é comum a regimes autoritários, surgiu legitimado
sob o pretexto de garantir as instituições democráticas ao povo brasileiro, induzindo-
o a acreditar que aquele paternalismo de exceção seria passageiro e de transição.
Ledo engano, não vinha para ser transitório. Assim como todo regime autoritário,
que promete retirar dos cidadãos os seus mais elementares direitos para ―salvá-los de
um mal iminente (violência urbana, inimigo de estado, ou perigo institucional), ele
não foi passageiro, mas oportunista, com a declarada tendência de se perpetuar no
poder. (MORAES, 2010, p. 189)

Os militares que tomaram o poder não formavam um grupo homogêneo, podendo ser
separados entre os da ―linha dura‖, que desejavam a radicalização do regime e a perseguição
aos opositores e outro grupo moderado que desejavam devolver o governo aos civis o mais
rápido possível, tão logo excluíssem da vida política os indivíduos que consideravam mais
perigosos. De toda forma nenhum dos grupos tinha grandes amores pela democracia e nem
pelos direitos humanos, e entre eles havia uma disputa por espaço que transcorria no interior
da caserna. (SOUZA NETO e SARMENTO, 2017, p. 142)
Após o golpe militar, o Congresso Nacional elegeu o Marechal Castelo Branco para
exercer a presidência da república. Com o novo regime a Constituição de 1946 sofreu ataques
por meio de 21 emendas constitucionais, 4 atos institucionais e 33 atos complementares que
desfiguraram seu texto e deram os contornos do novo regime ditatorial que o Brasil
ingressava. A Constituição de 1967 buscou consolidar em texto único a obra do regime
militar, vez que a Constituição de 1946 ainda vigorava por força do Ato Institucional número
1 de 1964 (art. 1º). Com tal objetivo, foi nomeada pelo Decreto 58.198 comissão para a
elaboração do texto da nova Constituição. Posteriormente, por meio do Ato Institucional
número 4 de 7 de dezembro de 1966, o Presidente da República convocou o congresso
nacional para se reunir extraordinariamente entre 12 de dezembro do mesmo ano e 24 de
janeiro do ano seguinte para elaborar a lei constitucional que representasse o movimento de
1964, devendo o texto ser promulgado até o dia 24 de janeiro de 1967 e, caso o texto não
estivesse aprovado até o dia 21 de janeiro de 1967 prevaleceria o texto originário. Nesse
contexto político, a Constituição era meramente instrumental, visando dar forma jurídica ao
regime estabelecido de fato e de direito. (CARVALHO, 2007, p. 493-494)
A Constituição de 1967 refletiu o pensamento do grupo de militares mais moderado,
que foi hegemônico no governo Castelo Branco e buscava reconstitucionalizar o país de uma
forma limitada, contendo traços autoritários. A aprovação do texto constitucional se deu por
341

uma constituinte tutelada pelos militares. Não se pode dizer sequer que se teve uma
Assembleia Nacional Constituinte de fato, a aprovação do texto se deu por uma assemblea
que se limitou a homologar e legitimar um texto elaborado pelo regime militar. (SOUZA
NETO e SARMENTO, 2017, p. 142-143)
O Ato Institucional nº 1 determinou a realização de eleições indiretas para Presidente e
Vice-Presidente da República (art. 2º), autorizou o Presidente a remeter ao Congresso projetos
de emendas constitucionais (art. 3º) e projetos de lei que, se não aprovados no prazo de 30
dias seriam tidos como aprovados (art. 4º). Denota-se do Ato Institucional em questão a
centralização dos poderes nas mãos do chefe do Executivo que passou a governar o País de
maneira ditatorial e com amplos poderes e retira do povo a possibilidade de eleger
diretamente o Presidente, de forma a possibilitar a perpetuação dos mesmos ideais no poder e
afastar a participação popular na tomada das decisões políticas.
A principal influência da Constituição de 1967 foi a Carta de 1937 do Estado Novo,
tendo assimilado suas características básicas, porém com grande preocupação com a
segurança nacional. A constituição da ditadura militar centralizou os poderes na União e na
figura do Presidente da República, tendo reduzido a autonomia individual e permitido a
suspensão dos direitos e garantias constitucionais, sendo a Constituição mais autoritária já
adotada no Brasil. (SILVA, 2001, p. 86-87)
A eleição do Presidente da República na Constituição de 1967 passou a ser feita por
meio indireto, através do denominado ―colégio eleitoral‖ composto pelos membros do
Congresso Nacional, por três representantes indicados pelas Assembleias Legislativas de cada
Estado e por mais um delegado por cada grupo de quinhentos mil eleitores inscritos em cada
um dos Estados (BRITO, 2001, p. 43). A eleição do Presidente da República foi prevista no
art. 74 da Constituição, prevendo sua eleição pelo colégio eleitoral, o que somente foi
modificado
Vê-se na Constituição de 1967 uma centralização do poder político na União e,
sobretudo, no presidente da república, que passou a poder governar através de decretos e atos
institucionais, adotando um regime cada vez mais duro de perseguição àqueles que se
opunham ao regime. Ainda se percebe que a representação popular perdeu força no modelo de
eleições indiretas adotado pela Constituição. De outro lado, a Constituição permitia a
suspensão de direitos e garantias constitucionais como forma de não se limitar pelas próprias
garantias que previa, tornando o poder do Estado ilimitado e usado como forma de
manutenção de poder e perseguição de opositores em um modelo em que o Processo Penal
fora usado como um eficaz instrumento para aqueles objetivos.
342

A Constituição de 1967 inicia seu texto pelo título que estabelece a organização do
Estado, mantendo a república como forma de governo e federação como forma de governo
(art. 1º). Apesar de ser uma constituição de um período ditatorial, a Carta de 1967 estabelece
que o poder seria oriundo do povo (art. 1º, §1º), e dividindo esse poder entre os três poderes
clássicos (art. 6º), prevendo no Capítulo VI do mesmo Título o Poder Legislativo (art. 27-72),
no Título VII, o Poder Executivo (art. 73-. O segundo título do primeiro capítulo estabelece as
atribuições da União, determinando sua competência no art. 8º, dentre as quais, destacamos a
competência privativa para legislar sobre direito penal e processual penal (art. 8º, XVII, ―b‖).
O terceiro capítulo do primeiro título foi dedicado à regulamentação dos Estados e dos
Municípios e o quarto ao Distrito Federal e territórios. A grande fixação da Constituição de
1967 era a segurança nacional, elemento típico das ditaduras, ela vem prevista na seção V do
Capítulo VII (art. 89-91).
Dentre as competências destinadas ao Supremo Tribunal Federal, a Constituição de
1967 determinava, em sua redação original, a competência para o julgamento de habeas
corpus ―quando o coator ou paciente for Tribunal, funcionário ou autoridade, cujos atos
estejam diretamente sujeitos à jurisdição do Supremo Tribunal Federal ou se tratar de crime
sujeito à essa mesma jurisdição em única instância, bem como se houver perigo de se
consumar a violência antes que outro Juiz ou Tribunal possa conhecer do pedido.‖ (BRASIL,
1967), não prevendo o Recurso Ordinário contra decisão de Habeas Corpus. Contudo, o Ato
Institucional nº 6/1969 alterou a constituição para estabelecer no art. 114, II, ―a‖ a
competência para o julgamento de recurso ordinário em habeas corpus quando a decisão da
ação originária tiver sido denegatória, porém ressalva que não seria conhecido pedido de
habeas corpus originário quando cabível recurso ordinário. Já os Tribunais Federais de
Recursos poderiam julgar habeas corpus ―quando a autoridade coatora for Ministro de
Estado, ou responsável pela direção geral da Policia Federal, ou Juiz Federal‖ (BRASIL,
1967) (art. 117, I, ―c‖), podendo os juízes federais julgar habeas corpus ―em matéria criminal
de sua competência ou quando o constrangimento provier de autoridade, cujos atos não
estejam diretamente sujeitos a outra jurisdição‖ (BRASIL, 1967) (art. 119, VII). Porém, os
crimes contra a segurança nacional (art. 122, §1º), como eram considerados os crimes
políticos, eram da competência da Justiça Militar, não havendo previsão constitucional para o
julgamento de habeas corpus na seara especializada, sendo que a redação original do citado
dispositivo previa a possibilidade de recurso ordinário ao Supremo Tribunal Federal, sendo
reformado pelo Ato Institucional nº 6 para excluir a previsão de recurso.
A Constituição de 1967 previu o Ministério Público em apenas três artigos (art. 137-
343

139), apenas se limitando a estabelecer as normas gerais de sua organização e não dispondo
sobre suas atribuições, deixando tal missão às leis infraconstitucionais.
O Título II da Constituição de 1967 é destinado à declaração de direitos, iniciando seu
texto com as disposições referentes à nacionalidade (art. 140-141), seguidos dos direitos
políticos (art. 142-148), os partidos políticos (art. 149). Somente no título IV do Capítulo II é
que estão previstos os direitos fundamentais (art. 150-151) prevendo o direito à igualdade (art.
150, §1º); legalidade (art. 150, §2º); reserva de jurisdição (art. 150, §4º); a liberdade de
pensamento, porém ressalvando expressamente a intolerância ao que a Constituição chama de
propaganda de atos de guerra, subversão da ordem, preconceitos de raça ou de classe (art.
150, §8º); restrição da prisão aos casos de flagrante ou ordem jurisdicional (art. 150, §12);
anterioridade da lei penal e irretroatividade (art. 150, §13); respeito à integridade física e
moral do preso (art. 150, §14); ampla defesa (art. 150, §15), contraditório (art. 150, §16);
tribunal do júri, com competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (art.
150, §18); habeas corpus para os casos de risco à liberdade de locomoção, ressalvado as
punições disciplinares (art. 150, §20); também era assegurado o direito de reunião, porém
ressalvada a possibilidade de intervenção para assegurar a ordem (art. 150, §27), o que abria a
porta para que se intervisse nas reuniões e manifestações que fossem entendidas como
contrárias ao regime vigente. Não havia previsão do princípio da presunção de inocência.
A primeira reforma do Código de Processo Penal sob o governo militar foi justamente
no regime das prisões preventivas, através da Lei 5.349 de 3 de setembro de 1967, foi retirada
a exigência de prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria do art. 311 e
inserindo-os no art. 312, tirando a garantia da ordem pública, conveniência da instrução
criminal e segurança da aplicação da lei penal, até então dispostas no art. 313 para o art. 312,
e mantendo a possibilidade inquisitorial de se decretar a prisão preventiva de ofício. O art.
313 também foi reformado para determinar os pressupostos da prisão preventiva. Assim, a
reforma das prisões se deu para estabelecer os requisitos da prisão preventiva (garantir a
ordem pública, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal), estabelecer de forma clara
seus pressupostos (crimes inafiançáveis; crimes afiançáveis, quando se apurar no processo
que o indiciado é vadio ou quando, havendo dúvida sobre a sua identidade, não fornecer ou
indicar elementos suficientes para esclarecê-la; crimes dolosos, embora afiançáveis, quando o
réu tiver sido condenado por crime da mesma natureza, em sentença transitada em julgado).
As prisões cautelares são pontos sensíveis de qualquer regime autoritário, eis que se
valem delas para a prisão daqueles que se insurgem contra o governo e para perseguir aqueles
que fossem de interesse do poder dominante. Nesse contexto, a revisão das prisões
344

reorganizou o código no que diz respeito às prisões cautelares, tornando mais fácil seu
manuseio para a prisão dos indesejáveis do regime militar. Valendo-se do requisito mágico
―garantia da ordem pública‖ para segregar todos que fossem de interesse do poder dominante,
tal qual a inquisição, desde suas origens sempre adotou, prendendo os indesejáveis, que
mudam de época para época, tornando a prisão durante o processo uma regra posta no
sistema.
A edição do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, o mais duro dos atos institucionais do
regime militar, permitiu que o presidente decretasse recesso do Congressso, das Assembleias
estaduais e das Câmaras de Vereadores e avocasse para o executivo correspondente toda a
competência legislativa; permitiu que o presidente decretasse a intervenção nos estados e
municípios livremente; possibilitou a suspensão dos direitos políticos de quaisquer cidadãos
por até dez anos e a cassação de mandatos eletivos, permitindo que os que estivessem com
direitos políticos suspensos sequer pudessem participar de manifestações políticas; suspendeu
as garantias da magistratura e autorizou o presidente a demitir, remover, aposentar ou colocar
em disponibilidade magistrados; autorizou a suspensão dos direitos de reunião e de associação
pelo presidente da república e instituiu a censura; suspendeu o habeas corpus para os crimes
políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social ou contra a economia
popular; e excluiu da apreciação jurisdicional os atos praticados em nome do presidente da
república. O referido ato foi a materialização jurídica da ditadura, tornando claro que o
governo militar somente seguiria a constituição quando lhe parecesse conveniente e desfez a
expectativa de a constituição pudesse institucionalizar o regime. (SOUZA NETO e
SARMENTO, 2017, p. 146-147)
O Ato Institucional nº 14, de 05 de setembro de 1969, estabeleceu no art. 150, §11, a
possibilidade de pena de morte para atos de guerra externa, revolucionária ou subversiva,
determinando que a lei deveria definir tais hipóteses, porém, abrindo caminho para a adoção
de pena de morte contra os insurgentes políticos.
A leitura dos dispositivos referentes aos direitos fundamentais previstos na
Constituição de 1967 descontextualizada de seu período histórico faz parecer que tudo
transcorria na mais perfeita normalidade democrática no Brasil. Contudo, o País estava
mergulhado em uma profunda ditadura; pessoas eram mortas e submetidas à tortura nos
órgãos de persecução penal, havendo uma grande diferença do direito positivado da prática
diária. Nesse contexto, o art. 152 permitia ao Presidente da República decretar Estado de
Sítio, onde poderiam ser suspensas as garantias constitucionais (art. 154).
Na Constituição de 1967 o capítulo de direitos e garantias individuais foi generoso,
345

porém sem qualquer efetividade, uma vez que violados diuturnamente pelo regime através de
prisões arbitrárias, tortura, violações de domicílios, violência contra os opositores e outras
formas de violações, a constituição era mero detalhe para os ditadores durante o período
militar. (SOUZA NETO e SARMENTO, 2017, p. 144-145)
A ditadura militar trouxe de volta a possibilidade de o presidente legislar por decretos,
sendo que através do Decreto-Lei 504, de 18 de março de 1969, o Presidente da República
alterou a competência para conhecer e julgar revisão criminal através da reforma do art. 624
do Código.
Através do decreto 552, de 25 de abril de 1969 o Presidente da República revogou o
art. 611 do Código de Processo Penal e determinou que nos habeas corpus impetrados em
Tribunais Federais ou Estaduais o Ministério Público deveria ter vista dos autos pelo prazo de
dois dias, após as informações prestadas pela Autoridade Coatora, podendo o Parquet ter
direito a usar da palavra na sessão de julgamento. Entretanto, não regulamenta quais seriam os
fins da vista dos autos, o que fomenta a cultura de que se trataria de mero parecer
desinteressado do próprio titular da ação penal. É preciso deixar claro que, no Processo Penal,
o Ministério Público é parte e, como parte, deve agir para que o juiz possa ser efetivamente
imparcial.
Em 17 de outubro de 1969 a Constituição de 1967 sofreu uma grande reforma
promulgada pelos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar
através da Emenda Constitucional nº 1 que republicou todo texto constitucional com as
modificações, alterando inclusive o número de artigos e a disposição destes no texto
constitucional. O capítulo II do primeiro título da Constituição, referente à Organização
Nacional, foi renomeado, trocando o nome ―Da Competência da União‖ para simplesmente
―Da União‖, tendo a promoção da segurança nacional sido desmembrada do inciso IV do art.
8º onde figuravam com as forças armadas para ganhar vida autônoma no inciso V juntamente
com a competência de garantia do desenvolvimento. A competência privativa para legislar
sobre direito penal e processual penal permaneceu, tal como se encontrava no texto original,
apenas sofrendo renumeração do antigo inciso XVII para o inciso XVII, mantendo a
disposição na alínea ―b‖. A palavra ―competência‖ também foi excluída do título ―Da
Competência dos Estados e Municípios‖ que passou a ser chamado apenas ―Dos Estados e
Municípios‖.
As modificações promovidas pela Emenda nº 1/1969 foram tão significativas e de
tamanha monta que até mesmo o nome do país foi alterado de ―Brasil‖ para o ―República
Federativa do Brasil‖, que se manteve na vigente Constituição. Em razão disso, se debate na
346

doutrina se a dita emenda foi apenas uma alteração à Constituição de 1967 ou se deve ser tida
como uma nova Constituição, além disso, o fundamento de validade da Emenda não foi a
Constituição então vigente, mas no poder constituinte originário decorrente da ―Revolução
vitoriosa‖. (SOUZA NETO e SARMENTO, 2017, p. 148)
As divergências se a Emenda nº 1/1969 é ou não uma nova Constituição não convém
ao presente trabalho sanar, porém isso não significa que não se compreenda sua abrangência
como nova constituição, mas apenas que a adoção da denominação designada à sua época. A
referida emenda representou o contorno constitucional dos anos mais terríveis e autoritários
da ditadura militar brasileira, sequer poderíamos dizer que se tinha uma constituição que
limitava os poderes do Estado, o Brasil tinha uma constituição de fato, mas não de direito. A
constituição existia no plano abstrato, mas não na vida real.
Pela Emenda Constitucional nº 1/1969 o Conselho de Segurança Nacional foi alçado à
condição de órgão de mais alto nível na assessoria direta do Presidente da República para a
formulação e execução da política de segurança nacional, o que demonstra a preocupação do
Governo Militar com a questão da segurança nacional, contudo, entendendo-se por
―segurança nacional‖ a própria manutenção do regime e a manutenção da mesma linha
ideológica no governo federal. Ou, em outras palavras, a repressão, utilizando para tanto do
processo penal, daqueles que possuíssem propostas diversas daquelas dominantes.
O Ministério Público, até então previsto como apêndice do Poder Judiciário, foi levado
para o Capítulo do Poder Executivo, porém, as sintéticas disposições, que se limitavam a dar
diretrizes gerais para a organização do órgão que vinham das Constituições anteriores.
O Poder Judiciário também foi alterado pela Emenda Constitucional nº 1/1969 para
acrescentar os Tribunais e os Juízes estaduais no rol de seus membros.
O rol de direitos fundamentais também foi alterado para modificar a tutela
constitucional da liberdade de pensamento e inserir nas exceções do art. 150, §8º as
publicações e exteriorizações que pudessem ser consideradas ofensivas à moral e aos bons
costumes, o que criava uma cláusula aberta para que o pensamento contrário ao regime
ditatorial instalado no Brasil naquela época pudesse se valer da censura do pensamento e da
criminalização daqueles que manifestassem contra o governo dominante, usando para tanto do
Processo Penal como um dos instrumentos de controle social.
A previsão da pena de morte (art. 150, §11) foi mantida na forma determinada pelo
Ato Institucional nº 14 de 05 de setembro de 1969, sendo restringida apenas aos casos de
guerra declarada pela Emenda Constitucional nº 11, de 13 de outubro de 1978.
Outra inovação da referida emenda foi a possibilidade de suspensão dos direitos
347

políticos daqueles que fossem condenados por atos de subversão ou corrupção do regime
democrático (art. 154).
A emenda manteve a possibilidade de decretação de estado de sítio (art. 155-159),
limitando, porém, seu prazo em 180 dias, entretanto, permitia a prorrogação indefinidamente
se persistissem os motivos que lhe deram causa. Durante o estado de sítio poderiam ser
suspensas as garantias constitucionais (art. 157). Posteriormente, a Emenda Constitucional
nº11, de 13 de outubro de 1978 alterou as disposições sobre o Estado de Sítio, estabelecendo
os direitos fundamentais que poderiam ser restritos.
A emenda de 1969 vigorou até a promulgação da Constituição de 1988, tendo Cláudio
Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento (2017, p. 150-151) dividido sua vigência em três
períodos: o primeiro corresponde ao governo Médici, correspondendo aos ―anos de chumbo‖,
no qual ocorreu o ápice da repressão da ditadura militar, generalizando o emprego da tortura e
adotando a guerrilha como meio de ataque aos opositores do regime. Nesse primeiro
momento a Constituição foi emendada pelas Emendas nº 2 (determinando eleições indiretas
para o cargo de Governadores dos Estados) e nº 3 (possibilitando a posse de parlamentares
federais como ministros, secretários de Estado ou prefeitos de Capitais sem perda do cargo
parlamentar. O segundo período inicia nos governos Geisel e Figueredo, que eram da ala
moderada dos militares, tendo iniciado a abertura ―lenta, gradual e segura‖ do regime militar,
em movimentos de avanços e retrocessos que levaram às diretas já e à eleição de Tancredo
Neves, o primeiro civil a ser eleito presidente da República em após vinte e um anos de
regime militar, ainda que eleito sem a participação do povo de forma indireta. Com a morte de
Tancredo, antes de tomar posse, assume o cargo o vice-presidente eleito José Sarney, dando
início ao terceiro e último período da Constituição de 1969 que levou à elaboração e
promulgação da Constituição de 1988.
Durante a Constituição de 1969 várias foaram as reformas do processo penal, a
começar pela Lei 5.941 de 22 de novembro de 1973 alterou o Código de Processo Penal para
modificar dispositivos do júri, corrigindo erro gramatical no §1º do art. 408, ampliando a
possibilidade de o acusado ser solto não apenas nos casos de crimes inafiançáveis mas
também nos casos de acusados primários e de bons antecedentes (§2º), determinando que,
caso o crime fosse afiançável, o juiz deveria fixar o valor da fiança (§3º). Também renumerou
o antigo §3º para §4º, mantendo a determinação de que o juiz não estaria vinculado à
acusação, renumerando o §4º antigo para §5º. Mesmo com a reforma que possibilitou uma
limitação na prisão em decorrência da pronúncia, o código manteve o aspecto inquisitorial ao
não criar a vinculação entre a acusação e a decisão de pronúncia e permitir que o juiz
348

discordasse da imputação do Ministério Público. Além disso, apesar de abrir maiores


possibilidades para o acusado primário e de bons antecedentes aguardar julgamento em
liberdade ainda manteve a prisão obrigatória dos reincidentes ou daqueles que o juiz
entendesse ter maus antecedentes. A referida lei ainda alterou o art. 474 do Código para
reduzir o prazo para a acusação e para a defesa em plenário que era de três horas para duas
horas e o da réplica e da tréplica de uma hora para meia hora. A mesma lei reduziu as
hipóteses de prisão após sentença condenatória, antes restritas às hipóteses de fiança ou de
livrar-se solto para possibilitar a liberdade de todos aqueles que fossem reconhecidos pela
sentença como primários e de bons antecedentes (art. 594), apesar de ampliar as
possibilidades de liberdade, manteve-se o caráter inquisitorial da prisão dos que não fossem
declarados primários e de bons antecedentes, uma vez que a custódia era baseada em critérios
pessoais e não em critérios referentes ao crime ou ao processo. Por fim, revogou o dispositivo
que vinculava a não atribuição de efeito suspensivo à apelação contra a sentença absolutória à
decisão unânime dos jurados, acabando com a possibilidade de que o réu absolvido
permanecesse preso até o julgamento da apelação interposta pela acusação. Dessa forma, a
Lei 5.941 veio para reduzir as hipóteses de incidência de prisão, porém manteve a adoção de
critérios do direito penal do autor e os aspectos inquisitoriais presentes no código desde sua
origem.
Já a lei 6.416 de 24 de maio de 1977 promoveu várias alterações no Código Penal e no
Código de Processo Penal. No que tange ao direito processual, a citada lei alterou o art. 219
para revogar a possibilidade de prisão para a testemunha que deixasse de ir à audiência para a
qual havia sido intimada e estabelecer pena pecuniária, referente à multa e condenação a
pagar os custos da nova audiência, redação que está vigente até a presente data, alterando no
mesmo sentido o art. 453. Alterou também o art. 221 para atualizar o rol das autoridades que
gozam da prerrogativa de marcar data e hora para serem ouvidos como testemunhas em
procedimentos criminais. Também foi inserido o parágrafo único no art. 310 para permitir a
liberdade provisória do preso em flagrante quando não estivessem presentes os requisitos e
pressupostos para decretar a prisão preventiva. Alterou também os pressupostos para a
decretação da prisão preventiva (art. 313) para estabelecer que somente poderia ser decretada
a essa modalidade de prisão cautelar em crimes dolosos punidos com reclusão ou nos punidos
com detenção quando o réu fosse vadio, houvesse dúvida sobre sua identidade, ou quando
fosse reincidente em crime doloso. A alteração do art. 313 mantém dois dos inimigos
estabelecidos desde o regime Vargas, os vadios e reincidentes. Outra importante alteração da
lei em comento foi autorizar que a autoridade policial pudesse fixar fiança nos crimes mais
349

leves, punidos com pena de detenção ou prisão simples, determinando que nas demais
hipóteses a fiança deveria ser fixada pelo juiz (art. 322), alterando as hipóteses de
inafiançabilidade (art. 323) para os crimes com pena superior a dois anos; nas contravenções
de vadiagem e mendicância, art. 59 e 60 do Decreto-Lei 3.688/1941, além da manutenção da
inafiançabilidade no caso de existir prova de que o réu fosse vadio, e excluindo do rol a
loteria não autorizada, loteria estrangeira, loteria estadual, exibição ou guarda de lista de
sorteio e jogo do bicho, em uma clara manifestação da punição dos pobres e indesejáveis
socialmente; nos casos de o preso ser reincidente específico; e nos crimes punidos com
reclusão quando houverem provocado clamor público ou houver emprego de violência contra
a pessoa ou grave ameaça. Ainda no capítulo referente à fiança, a lei citada acrescentou o
parágrafo único ao art. 325 para possibilitar que a fiança reduzida de dois terços ou
aumentada em dez vezes, bem como alterou o inciso V do art. 581 modificando as hipóteses
de recurso no sentido estrito referentes à fixação de fiança. Por fim altera regras de execução
penal, que não são objeto de nosso estudo.
A última reforma promovida no Código de Processo Penal no regime Constitucional
de 1967 foi a inserção do parágrafo único no art. 20 promovida pela lei 6.900 de 14 de abril
de 1981. Essa alteração visou impedir que inquéritos instaurados fizessem parte de certidões
emitidas pela Autoridade Policial. Porém, o parágrafo permitia que constassem inquéritos
quando o indivíduo possuísse contra ele condenação criminal anterior. Mais uma vez, o se
trata o reincidente de modo a presumir sua culpa.
Somente com a abertura do regime é que os direitos inerentes à democracia foram
sendo gradualmente reestabelecidos, tendo a Emenda Constitucional nº 15, de 19 de
novembro de 1980 reestabelecido o direito ao voto direto e universal para os cargos de
Governador e Vice-Governador dos Estados e para o cargo de Senador. Para culminar na
Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985, que convocou Assembleia
Nacional Constituinte para a elaboração da nova Constituição a partir do dia 1º de fevereiro
de 1987. A mesma emenda concedeu anistia aos servidores públicos civis e militares punidos
por atos de exceção institucionais e aos autores de crimes políticos ou conexos e dirigentes de
organizações sindicais e estudantis e servidores civis que houvessem sido demitidos ou
dispensados por motivação política.
350

8.3 A reviravolta proporcionada pela Constituição de 1988: a adoção do processo penal


de partes e a impossibilidade da manutenção do Código de Processo Penal inquisitorial –
o período de reformas pontuais incapazes de mudar a estrutura e a cultura

Com o fim do regime militar no ano de 1984 e a consequente redemocratização do


País se tornou necessário a elaboração de uma nova constituição que atendesse aos ditames
democráticos e apontasse para os novos objetivos traçados pelas conquistas históricas
daqueles que lutaram pelo fim da ditadura. Assim, como dito no final do item anterior, foi
editada a Emenda Constitucional nº26, que convocou a reunião da Assembleia Nacional
Constituinte livre e soberana para elaborar a nova Constituição, com texto condizente com as
exigências do novo Estado Democrático de Direito nascente no Brasil.
José Afonso da Silva afirma que a luta pela redemocratização teve início tão logo o
golpe de 1964 logrou êxito, mas cresceu, principalmente, após o Ato Institucional nº5, que foi
o marco mais autoritário da ditadura miltar. Através do movimento ―Diretas Já‖, as ruas
foram tomadas pelo povo, tendo os atos sido iniciados a partir das eleições para governador
ocorridas em 1982 e que culminou com a candidatura de Tancredo Neves à presidência,
disputada por eleições indiretas. Tancredo venceu as eleições em 1985, contudo, não chegou a
tomar posse em razão de sua morte, tendo assumido o cargo seu vice-presidente José Sarney,
que enviou ao Congresso Nacional a proposta de Emenda Constitucional que acabou sendo
convertida na Emenda Constitucional n 26. (SILVA, 2001, p. 88-89)
É necessário lembrar que a transição da ditadura para o regime democrático se deu
pelos blocos moderados que davam suporte ao governo e que a ele se opunham, sem que da
transição resultasse em rupturas violentas. A convocação da assembleia constituinte foi
compromisso de campanha da chapa composta por Tancredo Neves e José Sarney, eleitos em
eleições indiretas para a presidência e vice-presidência do Brasil, contudo, com a morte de
Tancredo, seu vice assumiu o cargo de presidente e convocou a assembleia, composta em sua
maioria por parlamentares eleitos nas eleições diretas de 1986. (SOUZA NETO e
SARMENTO, 2017, p. 156-157)
Do ponto de vista histórico, a Constituição de 1988 representa o coroamento do
processo de transição do regime autoritário em direção à democracia. Apesar da
forte presença de forças que deram sustentação ao regime militar na arena
constituinte, foi possível promulgar um texto que tem como marcas distintivas o
profundo compromisso com os direitos fundamentais e com a democracia, bem
como a preocupação com a mudança das relações políticas, sociais e econômicas, no
sentido da construção de uma sociedade mais inclusiva, fundada na dignidade da
pessoa humana. (SOUZA NETO e SARMENTO, 2017, p. 170)
351

A Assembleia Constituinte foi instalada em 1 de fevereiro de 1987, sendo eleito, no


dia seguinte, o Deputado Ulisses Guimarães para sua presidência. No dia 10 de março foi
aprovado o Regimento Interno da Constituinte. A Assembleia inicialmente se dividiu em
vinte e quatro comissões temáticas para a elaboração do texto base da Constituição,
encerrando seus trabalhos em 25 de maio de 1987, passando para a segunda fase na qual os
constituintes se dividiram em oito comissões que elaboraram anteprojetos encaminhados à
comissão de sistematização, sendo apresentado um projeto, contendo 551 artigos, para
apreciação do plenário. Tal projeto recebeu 5.615 emendas e os debates foram iniciados no
dia 15 de julho de 1987, com duração de 40 dias. Na sequencia iniciou a fase de emendas ao
projeto, podendo ser apresentadas inclusive propostas populares, sendo que no dia 26 de
agosto de 1987, após receber 20.790 propostas de emendas, além das propostas populares, o
relator apresentou projeto substitutivo contendo 374 artigos. No dia 15 de setembro, após o
exame de mais 14.320 emendas, o relator apresentou outro substitutivo, agora com336
artigos, que começou a ser votado em 24 de setembro. A votação do texto constitucional
somente tem início no dia 27 de janeiro de 1988, encerrando no dia 30 de junho o primeiro
turno, sendo que no dia 28 de julho, após críticas do Presidente da República, através da
cadeia de rádio e televisão realizadas dois dias antes e a defesa do projeto pelo Presidente da
Assembleia Constituinte, o projeto, foi aprovado, iniciando a votação dos 1.744 destaques. O
texto definitivo foi aprovado em segundo turno no dia 22 de setembro de 1988, seguindo o
texto para a comissão de redação para correção de omissões e obscuridades, sendo a nova
Constituição promulgada no dia 05 de outubro de 1988 pelo Presidente da Assembleia
Nacional Constituinte, que a apelidou de ―Constituição Cidadã‖. (CARVALHO 2007. p. 496-
498)
A forma de participação na elaboração da nova constituição, inclusive com a
possibilidade da participação popular, fez da constituição um texto plural e democrático,
baseado sobretudo nos princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade e da
liberdade, um instrumento de cidadania e de apontamento para conquistas democráticas.
A própria estrutura constitucional adotada pela Constituição de 1988 mostra que se
trata de um texto que rompeu com os paradigmas das constituições anteriores, ao invés de
iniciar seu texto com as normas que estruturam o Estado, a norma constitucional vigente
começa pelo estabelecimento dos princípios fundamentais da República (art. 1º-4º) para na
sequência estabelecer os direitos fundamentais (art. 5º) e direitos sociais (art. 6º-11). Essa
modificação, por si só, já é capaz de traduzir a revolução realizada pelo Constituinte de 1988,
que colocou em segundo plano Estado para destacar o tratamento dado aos indivíduos.
352

A organização do texto constitucional é reveladora de algumas prioridades da Carta


de 88. Se as constituições brasileiras anteriores iniciavam pela estrutura do Estado e
só depois passavam aos direitos fundamentais, a Constituição de 88 faz o contrário:
consagra inicialmente os direitos e garantias fundamentais – no segundo título, logo
depois daquele dedicado aos princípios fundamentais – só se voltando, depois disso
à disciplina da organização estatal. Essa inversão topológica não foi gratuita.
Adotada em diversas constituições europeias do pós-guerra, após o exemplo da Lei
Fundamental alemã de 1949, ela indica o reconhecimento da prioridade dos direitos
fundamentais nas sociedades democráticas. (SOUZA NETO e SARMENTO, 2017,
p. 172)

A Constituição da República já estabelece no preâmbulo seus objetivos e demonstra


sob quais valores deve ser interpretada, instituindo um Estado Democrático ―destinado a
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-
estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na
ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias‖ (BRASIL, 1988).
Em que pese o preâmbulo não possuir força normativa, ele representa a declaração de
propósitos do texto constitucional, trazendo os fundamentos do texto normativo que seguirá
(CARVALHO, 2007, p.507). Assim sendo, toda interpretação do texto da Constituição de
1988, bem como da legislação infraconstitucional, deve levar em conta a efetivação e
potencialização dos direitos sociais e individuais, da liberdade e buscar fomentar a construção
de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.
Na sequência, a Constituição traz os princípios fundamentais da República,
estabelecendo que ela se funda na soberania; cidadania; dignidade da pessoa humana; nos
valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; e no pluralismo político, devendo estes
fundamentos serem levados em conta e potencializados em qualquer interpretação que se fizer
de todas as normas jurídicas vigentes no país, que devem buscar efetivar ao máximo os
objetivos estabelecidos no art. 3º, de construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o
desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação.
A maior revolução que a Constituição de 1988 poderia realizar foi a de trazer, pela
primeira vez, entre todas as Constituições brasileiras, os direitos e garantias fundamentais
para o início de seu texto, trazendo já no primeiro momento um amplo rol de direitos
individuais. Dessa forma a Carta deu um recado de ruptura com o paradigma anterior,
mostrando que o indivíduo possui maior valor que o Estado. Além disso, a Constituição foi
generosa ao estabelecer os direitos inerentes ao processo penal, constituindo uma base
353

principiológica que somente em um sistema processual de partes poderia ser atingido, tendo
incorporado normas penais e de processo penal como forma de dar ênfase e estabilidade ao
sistema punitivo (TÁCITO, 2002, p. 27), buscando dessa forma funcionar como verdadeiro
limite ao poder de punir estatal.
Refletindo a reação contra a anterior experiência autoritária de governo, a
Assembléia Constituinte traduz, em normas programáticas, o anseio de atendimento
a aspirações populares de liberdade e de justiça social, seguindo o movimento
pendular próprio das fases de restauração democrática. (TÁCITO, 2002, p. 25)

Dessa forma, a Constituição Cidadã inicia o rol dos direitos individuais 122 pelo
princípio da igualdade (art. 5º, I), sendo seguido pelo princípio da legalidade (art. 5º, II), que
formam um eixo de gravidade do próprio Estado Democrático que a Constituição de 1988
pretende instituir, tratando a todos os indivíduos de forma igual e exercendo o poder segundo
os limites legalmente estabelecidos. A sombra dos tempos vividos sob o regime ditatorial
aparece de forma explícita nos direitos fundamentais, ao se vedar, expressamente, e no texto
constitucional, o emprego de tortura e tratamento degradante (art. 5º, III) e assegurar a todos a
liberdade de expressão (art. 5º, IV) e de manifestação do pensamento e de crença (art. 5º, V,
VI, VII, VIII e IX), garantias que foram vilipendiadas no regime anterior e que ganharam
tutela constitucional no presente regime. Seguindo-se os direitos inerentes à intimidade, do
domicílio e de correspondência (art. 5º, X, XI e XII). A Constituição estabelece o acesso à
jurisdição como um direito fundamental (art. 5º, XXXV), assegurando a todo indivíduo que
sofrer qualquer lesão a direito a possibilidade de buscar a reparação em juízo, além de
assegurar a ação penal privada subsidiária da pública como direito fundamental (art. 5º, LIX).
Segue o texto constitucional com a vedação a juízo123 de exceção (art. 5º,XXXVII e LIII),
garantindo-se o princípio do juízo natural, como o órgão jurisdicional estabelecido

122
Destacaremos no presente trabalho apenas aqueles que guardam relação com o conteúdo do processo penal e
a definição do sistema processual estabelecido pela Constituição.
123
Sobre o termo ―juízo natural‖, vale a lição do Professor Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias: ―Inicialmente,
cumpre-nos alinhar as razões de ordem terminológica que justificam nossa preferência pelo princípio do juízo
natural, no lugar da expressão juiz natural, esta majoritariamente adotada nos compêndios jurídicos. Por
primeira, dito princípio tem assento constitucional, como se depreende da regra do inciso XXXVII, do artigo
5º da Constituição, ali se fazendo referência tecnicamente correta ao juízo – e não ao juiz – ao prescrever
“não haverá juízo ou tribunal de exceção”. Por segunda, há de se convir que a expressão juízo revela
designação jurídica mais qualificada tecnicamente do órgão estatal incumbido de exercer a função
jurisdicional (por isto, a nomenclatura constitucional), enquanto o termo juiz indica o agente público
investido pelo Estado do poder de julgar (por exemplo, enunciados do art. 93, incisos I e VII, e do artigo 95
da Constituição Federal. Por terceira e última razão, louvamo-nos nas lições sempre fecundas de Rosemiro
Pereira Leal, ao lembrar, sob remissão da doutrina do professor Aroldo Plínio Gonçalves, que, desde o
Congresso Internacional de Direito Processual de Gand, na Bélgica, realizado em 1977, „o provimento
(sentença) já não é mais ato solitário do juiz, mas da jurisdição que se organiza [...] em grau de definitividade
decisória, na órbita de toda a jurisdicionalidade estatal.‖ (BRÊTAS DE CARVALHO DIAS, 2015, p. 150-
151)
354

previamente, antes do fato, em lei. O tribunal do júri é reconhecido pela Constituição de 1988,
com competência para julgar os crimes dolosos contra a vida (que já vinha das constituições
anteriores) e tendo assegurados a plenitude de defesa, a soberania dos veredictos e o sigilo das
votações como forma de se assegurar um julgamento imparcial. Observe-se que a defesa no
Júri vai ainda além da amplitude, mas deve abarcar todos os meios e garantias possíveis, de
forma plena (art. 5º, XXXVIII). Tem-se no júri um dos marcos acusatórios do processo penal,
pois nele os jurados decidem com base na exposição feita pelas partes e da prova produzida,
contudo, no Brasil, o inquérito segue podendo ser utilizado em plenário, o que possibilita que
o jurado decida com base nos elementos inquisitoriais e não na prova produzida em
contraditório. A Constituição assegura a anterioridade da lei penal (art. 5º, XXXIX) e a
irretroatividade da lei penal maligna (art. 5º,XL), determinando a punição dos atos que
atentem contra direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI). Porém, a Constituição
também possui institutos de criminalização ou de endurecimento do sistema punitivo, como a
inafiançabilidade e imprescritibilidade do crime de racismo (art. 5º, XLII) e dos crimes de
ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado
Democrático (art. 5º, XLIV), bem como as vedações de fiança, anistia, graça para os crimes
hediondos e aqueles que a Constituição equipara a eles (tortura, terrorismo e tráfico de
drogas). Seguindo pelos princípios da intranscendência das penas (art. 5º, XLV) e pela
individualização da pena (art. 5º, XLVI e XLVII), seguidos pelos direitos dos presos (art. 5º,
XLVIII, XLIX, L).
As garantias processuais da Constituição, inseridas nos direitos individuais, formam
um amplo rol de proteção do indivíduo contra o Estado, a começar pela garantia do devido
processo legal (art. 5º, LIV), que, entretanto, limita-se a repetir a fórmula da Carta Magna de
João Sem Terra de 1215 remetendo às origens do devido processo legal (ORTH,2003, p. 7),
porém abarcando em seu texto várias normas que se vinculam à evolução do referido
conceito. Definindo como núcleo do devido processo legal o contraditório e a ampla defesa
(art. 5º, LV) e a inadmissibilidade das provas ilícitas (art. 5º, LVI). A presunção de inocência
aparece pela primeira vez no texto constitucional brasileiro ((art. 5º,LVII), sendo prevista
como uma regra constitucional que, contudo, veio estampada com redação de trágica
formatação, através da locução de que ―ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória‖ (BRASIL, 1988), o que dá a impressão de que a
constituinte teria adotado a terminologia utilizada por Manzini para esvaziar o próprio
conceito de presunção de inocência na Itália fascista da década de 1930, como vimos nos
capítulos anteriores e que exerceram influência significativa no Brasil. A publicidade do
355

processo também está prevista (art. 5º, LX). A prisão somente poderia ser realizada em
flagrante delito ou por ordem de autoridade judiciária competente (art. 5º, LXI), sendo
assegurados os direitos do preso a informação de seus direitos, principalmente ao silêncio (art.
5º,LXIII); à identificação dos responsáveis por sua prisão (art. 5º,LXIV). A liberdade durante
o processo é a regra constitucional (art. 5º,LXV e LXVII), sendo tutelada pela garantia do
Habeas Corpus (art. 5º, LXVIII).
A Constituição vigente manteve privativa da União a competência legislativa em
matéria penal e processual penal (art. 22, I), fazendo com que o somente por lei ordunária
federal se possa alterar a legislação processual penal. Durante os anos de vigência da atual
Carta, o Código de Processo Penal, assim como toda a legislação penal, foi substancialmente
alterado, sendo que parte das reformas se justificam em razão da revolução proporcionada
pela Constituição, que adotou um sistema processual penal de partes, ainda que indiretamente,
como demonstraremos. Outra parte das reformas, talvez a maior parte, deve-se a um
movimento punitivista e de lei e da ordem formado por uma parte de membros que acreditam
que a solução para o aumento da violência estaria na legislação que entendem branda e, por
isso acreditam que restringindo garantias irão resolver a questão; e outros que buscam uma
resposta a um suposto anseio popular por um maior endurecimento penal, entretanto o fazem
como plataforma política em busca de votos para manter seu posto de poder, ainda que o
custo seja o encarceramento massivo de inúmeras pessoas, normalmente oriundas das classes
menos favorecidas.
A Constituição trata dos três poderes no quarto título, iniciado pelo Poder Legislativo
(Capítulo I, art. 44 – art. 75), seguido do Poder Executivo (Capítulo II, art. 76 – 91) e, por
último do Poder Judiciário (Capítulo III, art. 92 - 126), que nos interessa na presente
construção. No que tange ao Poder Judiciário, a Constituição adota os princípios da
publicidade e da fundamentação das decisões (art. 93, IX) como forma de assegurar a
fiscalidade democrática e a racionalidade das decisões, vale lembrar que o processo penal de
partes é público e conta com decisões racionalmente tomadas, sendo o sistema inquisitivo
construído no segredo e na confiança da consciência do julgador, portanto, trata-se de
dispositivos tipicamente de um processo penal de partes. Visando assegurar a imparcialidade
e a independência judicial, o art. 95 adotou, seguindo a tradição das constituições anteriores,
os princípios da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade dos vencimentos, garantindo
que o juiz não poderá perder o cargo, ser removido de um lugar para o outro ou ter os
vencimentos diminuídos em razão de suas decisões jurisdicionais. A competência do Supremo
Tribunal Federal para processar habeas corpus restou definida no art. 102, I, ―i‖, que foi
356

posteriormente reformado pela Emenda Constitucional nº 22 de 18 de março de 1999, porém,


mantendo a previsão de que caberia habeas corpus no Supremo Tribunal Federal sempre que a
autoridade apontada como coatora for Tribunal Superior ou estivesse sujeita à jurisdição do
Supremo, sem fazer qualquer limitação ou objeção em relação ao cabimento de recursos
próprios, prevendo o cabimento de recurso ordinário contra decisão denegatória de habeas
corpus proferida por Tribunal Superior (art. 102, II, ―a‖). Por sua vez, o Superior Tribunal de
Justiça possui competência definida no artigo 105, sendo importante frisar que ele possui
competência para julgar o habeas corpus quando a autoridade coatora for tribunal de segundo
grau ou qualquer autoridade sujeita à sua jurisdição, caiba ou não recurso previsto contra a
decisão atacada pela via do remédio heroico. Por fim, o capítulo do Poder Judiciário trata
também dos Tribunais Federais e dos Juízes Federais, do Tribunal Superior do Trabalho, dos
Tribunais e Juízes Eleitorais e Militares e dos Tribunais Estaduais.
Vale dizer que a Constituição de 1988 trouxe um judiciário mais amplo que as
constituições anteriores, estabelecendo detalhadamente suas funções. Contudo, esse
crescimento também representa um crescimento de poder que deveria ser conjugado com
responsabilidade. O Estado Democrático de Direito exige um judiciário forte, porém, também
reclama um judiciário consciente de suas responsabilidades e de seu papel, principalmente de
seu papel na esfera do processo penal. A estrutura constitucional reservada ao judiciário
determina que o juiz ocupe seu lugar de garantidor de direitos fundamentais e não de
justiceiro ou fazedor de justiça, segundo suas próprias convicções. É importante que o
judiciário entenda que seu lugar é de garantidor dos direitos humanos trazidos pela
Constituição e não de órgão da segurança pública.
Dentro do título da organização dos poderes, porém, pela primeira vez fora da
estrutura dos demais poderes, a Constituição estabelece o quarto título dedicado às Funções
Essenciais da Justiça, o qual dispõe na primeira seção sobre o Ministério Público (art. 127 -
130), estabelecendo serem seus princípios institucionais a unidade, a indivisibilidade e a
independência funcional (art. 127, §1º), gozando de autonomia funcional e administrativa (art.
127, §2º) e seus membros das mesmas garantias dadas aos juízes (vitaliciedade,
inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios – art. 128, §5º, I, ―a‖, ―b‖ e ―c‖). A
constituição estabelece também as funções institucionais do Ministério Público (art. 129),
dentre as quais nos interessa a prevista no inciso I do citado artigo, a atribuição de promover
privativamente a ação penal pública, que torna o Ministério Público o titular constitucional da
ação penal.
Há, na Constituição de 1988, uma majoração das funções do Ministério Público,
357

elevando consequentemente suas responsabilidades. A Constituição, contudo, coloca o


Ministério Público na condição de parte que deve promover a ação penal com exclusividade,
não cabendo mais se pensar no Ministério Público, no processo penal, como ―parte
imparcial‖. Ele deve assumir sua condição de parte, vez que essa é a única forma de se
assegurar que o juiz deva ser colocado na condição de imparcialidade que a mesma
Constituição lhe determinou.
O Ministério Público é o protagonista da persecução penal em juízo. Cabe a ele o
exercício da ação penal diante da maioria dos crimes previstos no ordenamento
brasileiro. Com o Ministério Público a cargo da persecução, busca-se assegurar a
imparcialidade do órgão julgador. A separação entre o juiz a acusação, a divisão das
funções entre o Estado-juiz, que deve ser imparcial (e, portanto, afastado de toda
atividade persecutória), e o Estado-acusador, órgão que, apesar de parcial, deve atuar
de forma impessoal e comprometida com a legalidade estrita, é o mais importante
elemento constitutivo do chamado sistema processual acusatório, em que as funções
de acusar, defender e julgar cabem a órgãos distintos e independentes. (CASARA,
2018, p. 139)

Após a previsão do Ministério Público, a Constituição estabelece a segunda seção do


título à advocacia pública, no qual estabelece as normas gerais dos procuradores públicos no
âmbito da União, Estados e Municípios (art. 132). Já na terceira seção a Constituição trouxe,
em um único artigo (art. 133) a previsão da advocacia afirmando ser o advogado
indispensável à administração da justiça. Já na quarta seção se estabelece a defensoria pública
(art. 134 – 135), tanto no âmbito da União como dos Estados, estabelecendo que a defensoria
é uma instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe,
como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação
jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e
extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos
necessitados. Nenhuma outra constituição brasileira trouxe previsão sobre a advocacia e a
defensoria pública, sendo a Carta vigente a primeira a estabelecer normas referentes a
atividades tipicamente de defesa jurídica, que vêm ao encontro dos direitos fundamentais
inerentes ao processo e demonstram a estrutura da Constituição naquilo que diz respeito aos
direitos individuais.
No dia 30 de dezembro de 2004 a Constituição da República recebeu sua 45ª Emenda
Constitucional, que promoveu uma grande reforma em toda a estrutura jurisdicional. Nessa
emenda o art. 5º ganhou um novo inciso de nº LVIII, para assegurar a todos a razoável
duração do processo. Contudo, a razoável duração do processo não pode ser confundida com
a celeridade do processo, mas deve ser tida como uma garantia de que o procedimento
tramitará sem atropelos ou atrasos (etapas mortas), tendo sua regular tramitação segundo os
358

prazos necessários para a existência do devido processo legal e o efetivo direito de


argumentação e do contraditório (SANTIAGO NETO, 2015b). O art. 93, IX também foi
reformado pela Emenda nº 45/2004, porém a alteração de sua redação não modificou a adoção
dos princípios da publicidade e da fundamentação das decisões. Outra alteração de destaque
promovida pela Emenda Constitucional nº 45 se refere à inserção do §3º no art. 102, passando
a exigir que o recorrente, em sede de recurso extraordinário, demonstre a repercussão geral da
matéria levada ao Supremo Tribunal Federal como forma de se dificultar o acesso recursal ao
Supremo e reduzir, dessa forma, o número de recursos 124. Também pela Emenda nº 45 foi
inserido o art. 103-A que permitiu ao Supremo Tribunal Federal editar súmulas com caráter
vinculante ―mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões
sobre matéria constitucional‖, contudo, tal instrumento vem sendo usado como meio de o
Tribunal legislar e inovar a legislação, valendo dizer que desde a referida emenda ser
promulgada, o STF não mais editou súmulas sem caráter vinculante e passou a adotar as
vinculantes ainda sem reiteradas decisões sobre o tema.
Vê-se que a Constituição construiu um modelo constitucional de processo, e que é
aplicável ao Processo Penal. Assim, a base principiológica constituída dos princípios do
contraditório, da ampla argumentação (ou ampla-defesa), do terceiro imparcial e da
fundamentação das decisões foi expressamente adotada. Além da base principiológica
uníssona, adotou-se, expressamente, a obediência ao devido processo legal, que proíbe atos
arbitrários do Estado que atinjam a vida, a liberdade ou a propriedade dos indivíduos (ORTH,
2003, p. 101). E isso tudo, garantiu uma reviravolta no processo penal, pois ao retirar o
Ministério Público da estrutura do Poder Judiciário e dar a ele autonomia e atribuições de
promover a ação penal, deixa claro a separação que deve existir entre o juiz e o acusador,
garantindo na sequencia o direito de defesa, seja pelo advogado privado ou pela Defensoria
Pública. Nesse desenho, pode-se afirmar categoricamente que a Constituição adotou uma
estrutura acusatória, embora sem que a mesma tenha nenhum dispositivo expresso nesse
sentido.
Nesse sentido, vale destacar os estudos desenvolvidos por Flaviane de Magalhães
Barros que transporta o modelo constitucional de processo para o processo penal e
estabelecendo vínculos com a teoria fazzalariana de processo como procedimento

124
Não há dúvidas que o sistema recursal mereça reformas, porém, o §3º do art. 102 criou uma forma de se
dificultar o acesso à jurisdição constitucional. A a competência do Supremo deveria ser reformada para que
esse seja uma corte constitucional efetivamente, deixando a competência de se julgar casos concretos ao
Superior Tribunal de Justiça, que deveria ser ampliado, porém tal discussão foge aos objetivos do presente
trabalho.
359

desenvolvido em contraditório com o paradigma procedimentalista de Estado Democrático de


Direito na forma concebida por Habermas (1997) afirmando que:
Ao mesmo tempo, pode-se pretender a apropriação da teoria do processo como
procedimento em contraditório, como adequada ao paradigma do Estado
Democrático de Direito, principalmente em razão da compreensão do processo para
além da jurisdição, já que o processo, no paradigma procedimentalista, deve ser
entendido como constitutivo dos direitos fundamentais. Ademais, a noção de
contraditório pretendida pela referida teoria do processo consolida a proposta de
garantia da participação em simétrica paridade dos afetados pelo provimento, no
sentido de uma garantia de construção participada da decisão, que estarão
compreendidos no processo tanto como autores, quanto como destinatários da norma
jurídica. (BARROS, 2009, p. 13-14)

Assim sendo, o modelo constitucional de processo no processo uma garantia baseada


na Constituição sobretudo extraída dos direitos fundamentais. Tal noção de processo tem
origem no processo civil italiano através da obra de Andolina e Vignera (BARROS, 2009, p.
14), porém, por possuir fundamento na Constituição, entendemos que tal modelo supera as
fronteiras do processo civil para fundar um eixo teórico comum de todo direito processual, o
que não significa uma Teoria Geral do Processo, pois o processo civil e penal continuam com
bases completamente distintas, mas que tanto o processo civil como o processo penal
encontram na Constituição, sobretudo no rol dos direitos fundamentais, seu ponto comum.
Nesse ponto, vale destacar a posição de Flaviane de Magalhães Barros que em sua obra
afirma que:
(...) pode-se apropriar da noção de modelo constitucional de processo, que teve uma
proposição inicial feita para o processo civil italiano por Andolina e Vignera (1997),
mas aqui apropriada para um modelo de processo, visando à construção de outra
noção de teoria geral do processo, construída justamente por uma base
constitucional fundada nos princípios do processo. (BARROS, 2009, p. 14)

Nesse contexto, segundo aponta Leonardo Augusto Marinho Marques, no modelo


constitucional de processo se busca a legitimação do ato jurisdicional que produzirá efeitos na
vida do indivíduo através da atuação interligada dos princípios da não parcialidade do juízo,
do contraditório, da ampla argumentação e da fundamentação da decisão. Propõe o professor
citado que o princípio da imparcialidade do julgador seja substituído pelo da não-parcialidade,
vez que aquele não poderia ser atingido enquanto a não-parcialidade pode ser construída
objetivamente através de critérios concretos que irão remeter ao debate e à critica de toda
forma de pré-compreensão da vida e do direito. (MARQUES, 2015, p. 171-175) Nesse
sentido:
Não-parcial, portanto, será quem aceitar o diálogo em torno do próprio ponto de
vista. Será preciso, pois, abrir-se para o mundo e enxergar a diversidade; aceitar,
com tranquilidade, a possibilidade de que terceiros não compartilhem a mesma
opinião; e, em certos momentos propor-se a rever ideias. (MARQUES, 2015, p. 176)
360

Assim, segue Leonardo Augusto Marinho Marques afirmando que a Constituição


propõe um novo esquema processual, onde a decisão decorre da participação igualitária e
influente dos interessados com ampla liberdade de interpretar o direito, introduzir argumentos
e provas, no tempo do processo e vedando, por absoluta inconstitucionalidade,
prejulgamentos decisões unilaterais.
A constitucionalização do processo faz com que tanto o processo penal como o
processo civil, bem como qualquer outro ramo do direito processual, busquem seus institutos
básicos na Constituição. Dessa forma, a Constituição trouxe em seu texto um modelo
constitucional de processo, o qual Flaviane de Magalhães Barros toma por base o modelo
proposto por Andolina e Vignera trazido ao processo penal. Contudo, a construção de outra
teoria geral do processo seria impossível pois, apesar da base constitucional única, o processo
penal e o processo civil possuem matizes diversas, como demonstrado por Jacinto Nelson de
Miranda Coutinho (1998) e Rômulo de Andrade Moreira (2015), que os faz terem
necessidades diversas e, portanto, necessitarem de teorias próprias para cada espécie de
processo. Um modelo constitucional de processo significa uma base comum, mas não uma só
teoria que pudéssemos chamar de teoria geral, significa extrair da Constituição um núcleo
principiológico único, base principiológica uníssona, a qual possa servir, na medida das
necessidades aos diversos ramos do processo, amoldando-se a cada um segundo sua
configuração.
Nesse contexto, Ítalo Andolina e Giuseppe Vignera afirmam que no paradigma
constitucional o procedimento jurisdicional assume uma configuração particular na qual as
partes cooperam com o juiz para dar vida concreta ao processo (ANDOLINA, VIGNERA,
1997, p. 15). Dessa forma, para os autores citados, a Constituição contém as normas e
princípios referentes ao desenvolvimento do procedimento jurisdicional (1997, p.4), nesse
contexto, afirmam que:
As normas e os princípios constitucionais sobre o exercício do funcionamento da
jurisdição, se consideradas em sua complexidade, permitem ao intérprete designar
um verdadeiro e próprio esquema geral de processo suscetível de formar uma
exposição unitária. (ANDOLINA, VIGNERA, 1997, p. 7)125 (tradução livre)

Buscando criar um modelo de processo civil calcado na Constituição, Andolina e


Vignera propõe um sistema composto por três elementos básicos: a expansividade, a

125
No original: ―Le norme ed i princìpi costituzionali riguardanti l‟esercizio della funizione giurisdizionale, se
considerati nella loro complessità, consentono all‟interprete um vero e próprio schema generale di processo,
suscettible di formare l‟oggeto di uma esposizione unitaria.‖
361

variabilidade e a perfectibilidade, nas palavras dos autores:


Inicialmente tomando em consideração os elementos singulares (objetivos e
subjetivos do modelo constitucional de processo civil, é devido evidenciar suas
características gerais, que podemos individualizar:
a) na expansividade, consistente na sua idoneidade (conseguinte a posição primária
da norma constitucional na hierarquia das fontes) a condicionar a fisionomia do
singular procedimento jurisdicional introduzido pelo legislador ordinário, o qual
(fisionomia) deve ser contudo compatível com as conotações daquele modelo;
b) na variabilidade, indicada a sua atitude de assumir forma diversa, com o
resultado que a adequação ao modelo constitucional (pelo legislador ordinário) da
figura processual que funciona concretamente pode ter lugar segundo varie a
modalidade em vista da procura do objetivo particular;
c) na perfectibilidade, que designa a sua idoneidade de ser aperfeiçoado pela
legislação infraconstitucional, a qual (scilicet: no respeito, comunicação no qual o
modelo e função do qual se atinge os objetivos particulares) bem pode construir um
procedimento jurisdicional caracterizado da (ulterior) garantia dos institutos
desconhecidos do modelo constitucional de processo: se pensa, por exemplo, o
princípio da economia processual, o qual do duplo grau de jurisdição, o da
colegialidade e o instituto da coisa julgada. (ANDOLINA, VIGNERA, 1997, p. 9-
10)126 (tradução livre, itálico no original)

Sobre as três características básicas do modelo constitucional de processo, Flaviane de


Magalhães Barros, citando a obra de Andolina e Vignera (1997, p.9-10), esclarece que:
(...) o modelo constitucional de processo ―é um esquema geral de processo‖ (1997,
p. 9) que possui três importantes características: a expansividade, que garante a
idoneidade para que a norma processual possa ser expandida para microssistemas,
desde que mantenha sua conformidade com o esquema geral de processo;
variabilidade, como a possibilidade de a norma processual especializar-se e assumir
forma diversa em função de característica específica de um determinado
microssistema, desde que em conformidade com a base constitucional; e, por fim, a
perfectibilidade, como a capacidade de o modelo constitucional aperfeiçoar-se e
definir novos institutos por meio do processo legislativo, mas sempre de acordo com
o esquema geral. (BARROS, 2009, p. 15)

A partir das citadas características, o processo poderá se constituir em microssistemas,


cada qual com suas especificidades surgidas dos direitos que se pretende proteger. No caso do
processo penal, Flaviane de Magalhães Barros (2009, p. 16; 2009b, p. 334) aponta que a base

126
No original: ―Prima di prendere in considerazione i signoli elementi (oggettivi e soggettivi) del modelo
costituzionale del processo civile, è doveroso evidenziare in queste sede i suoi caratteri generali, che possono
individuarsi:
a)Nella espansività, consistente nella sua idoneità (conseguente alla posizione primaria dele norme
costituzionali nella gerarchia delle fonti) a condizionare la fisionomia dei sigoli procedimenti giuridizionali
introdotti dal legislatorie ordinario, la quale (fisionomia) deve essere comunque compatible coi connotati di
quel modelo;
b) Nella variabilità, indicante la sua attitudine ad assumire forme diverse, di guisa che l‟adeguamento al
modelo costituzionale (ad opera del legislatore ordinario) delle figure processual concretamente funzionamti
può avvenire secondo varie modalità in vista del perseguimento di particolari scopi.
c) Nella perfettibilità, designante la sua idoneità ad essere perfezionato dalla legislazione sub-costituzionale, la
quale (scilicet: nel rispetto, comumunque, di quel modelo ed in funizione del conseguimento di objettivi
particolari) ben può costituire procedimenti giurisdizionali caratterizzati da (ulteriori) garanzie ed istituti
ignoti al modello costituzionale: si pensi, per esempio, al principio di economia processuale, a quello del
doppio grado di giurisdizione, a quello della colegialità ed all‟istituto della cosa giudicata.‖ (ANDOLINA,
VIGNERA, 1997, p. 9-10)
362

principiológica que deve formar o microssistema do processo penal seria configurada pelo
contraditório, ampla argumentação, fundamentação das decisões e terceiro imparcial, devendo
ser interpretada sempre se levando em conta o princípio da presunção da inocência e da
garantia das liberdades individuais dos sujeitos.
Nesse contexto, em um modelo constitucional-democrático, a presunção de inocência
deve sempre se colocar no horizonte do intérprete-aplicador do processo penal (SANTIAGO
NETO, 2015, p. 179), que deve ao analisar um caso penal, como bem resumiu Amilton Bueno
de Carvalho, a presunção de inocência
(...) é dever constitucional do juiz ingressar no feito convencido da inocência do
acusado: é um pré-juizo constitucional. Logo, a condenação somente poderá
explodir quando, apesar de todos os esforços interpretativos, for impossível
absolver. Uma espécie de diálogo se trava com o acusado: ―tu és inocente e somente
serás condenado se a acusação destruir absolutamente todas as hipóteses
defensivas‖. (CARVALHO, 2011, p. 7)

Nesse contexto, Maurício Zanoide de Moraes divide a presunção de inocência em três


pilares básicos, como ―norma de tratamento‖, ―norma probatória‖ e ―norma de juízo‖ (2010,
p. 424). Tratar a presunção de inocência como ―norma de tratamento‖ significa tratar o
cidadão como inocente durante toda a persecução penal, garantindo que os efeitos de uma
decisão penal condenatória somente sejam aplicados após o seu trânsito em julgado127,
restando violada a presunção de inocência sob esse aspecto toda norma que imponha a
antecipação da culpa do acusado antes da sentença definitiva (MORAES, 2010, p. 427). A
presunção de inocência como ―norma probatória‖ atribui toda a carga probatória à acusação,
sendo ônus do acusador a prova da acusação através de provas lícitas, e, caso esse não cumpra

127
Em que pese, contudo, o Supremo Tribunal Federal ter, no julgamento do HC 126.292, declarado que a
execução da pena privativa de liberdade poder ser iniciada antes do trânsito em julgado da decisão
condenatória, restando assentada a ementa do julgado da seguinte forma:
―EMENTA: CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO
DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONFIRMADA POR
TRIBUNAL DE SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE.
1. A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a
recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência
afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal. 2. Habeas corpus denegado.‖ (BRASIL, Supremo
Tribunal Federal, Habeas Corpus 126.292, rel. Ministro Teori Zavascki, julgado em 17 de fevereiro de 2016).
No julgamento o Supremo Tribunal Federal decidiu por maioria dos votos, sendo que os Ministros Ministros
Teori Zavascki, Edson Fachin, Luis Roberto Barroso, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes votaram pela
possibilidade da execução da pena privativa de liberdade enquanto pendentes o julgamento de recursos aviados
aos Tribunais Superiores, sob argumentação centrada na falta de efeito suspensivo a tais recursos e,
principalmente, a celeridade processual e o combate a uma suposta impunidade gerada pela prescrição. De
outro lado, os Ministros Rosa Weber, Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski votaram pela
inconstitucionalidade da execução da pena antecipada, nos exatos termos da Constituição, reforçando a
exigência constitucional de que ninguém será considerado culpado sem sentença penal transitada em julgado.
Vê-se que a decisão do STF viola frontalmente o princípio da presunção de inocência, principalmente em seu
viés da ―norma de tratamento‖, eis que permite a produção de efeitos da decisão condenatória antes de seu
trânsito em julgado.
363

sua missão de provar a imputação realizada, prevalecerá a presunção de inocência (MORAES,


2010, p. 462-463). Nessa linha de raciocínio, Alexandre Morais da Rosa afirma que o
processo penal como garantia deve ser levado a sério, não podendo mais se tratar a presunção
de inocência como ―figura decorativo-retórica de uma democracia em constante construção e
que aplica, ainda, processo penal do medievo‖ (ROSA, 2016, p. 216), sendo que ―a
derrubada da muralha da inocência é função do jogador acusador‖ (ROSA, 2016, p. 217),
descabendo qualquer presunção de culpabilidade. Por sua vez, a presunção de inocência como
―norma de juízo‖
(...) incide em toda decisão, no instante de se analisar o material probatório já
produzido para a formação da convicção judicial. Ela se manifesta tanto nas decisões
de mérito, quanto nas demais decisões proferidas no curso persecutório, sejam
referentes à progressão das fases da persecução, sejam destinadas a reduzir a
liberdade do imputado, tratando-o, por qualquer modo, nesse último caso como
culpado antes de decisão final eventualmente condenatória. (MORAES, 2010, p.
468)

Vê-se, pois, que a presunção de inocência ocupa lugar central no devido processo
penal, devendo ser colocada sempre no horizonte de aplicação do processo penal e levada a
sério por todos seus sujeitos. A presunção de inocência é, dessa forma, a pedra fundamental
de todo microssistema do processo penal, segundo o modelo constitucional de processo.
Dentre os princípios que formam a base principiológica uníssona do modelo
constitucional, o contraditório, a ampla argumentação, o terceiro imparcial e a fundamentação
das decisões, o primeiro exerce influência direta sobre os demais. É assegurando o
contraditório que se verificará se as partes tiveram amplitude de argumentos analisados, se o
terceiro (julgador) foi efetivamente imparcial e é pela fundamentação da decisão que se
verificará se o contraditório foi devidamente efetivado.
Dessa maneira, no paradigma do Estado Democrático de Direito e em conformidade
com o modelo constitucional de processo, o contraditório não pode mais ser percebido
simplesmente de bilateralidade de audiência, como era percebido pela teoria da relação
jurídica. Também não basta o binômio informação-reação, onde o contraditório se resume na
possibilidade de as partes serem informadas e poderem reagir, participando, em simétrica
paridade de armas da construção do provimento. O modelo constitucional de processo,
adequado às exigências do Estado Democrático de Direito exige mais: exige que as partes
participem efetivamente da construção das decisões que atingirão seus interesses, nesse
contexto, ―a decisão não é produto somente do juiz, mas do esforço argumentativo das
partes, pois o contraditório é princípio da influência e da não surpresa‖ (BARROS, 2009, p.
19). Assim sendo, o contraditório no atual paradigma deve ser percebido de forma
364

quadripartida, ligando os direitos à informação, reação (participação), influência e não


surpresa, segundo o qual os sujeitos afetados pela decisão devem ser informados dos atos
processuais, terem oportunidade, em igualdade de condições, de reagir (participar), influindo,
diretamente, na construção da decisão, ou seja, tendo os argumentos analisados seriamente
pelo julgador, e não podendo ser surpreendidos por uma decisão que não tenha sua origem
nos argumentos levados por eles mesmos.
Em decorrência da noção acima traçada de contraditório, a participação na construção
do provimento não é apenas de uma das partes, mas de ambas. Assim, Flaviane de Magalhães
Barros, Marius Fernandes Cunha de Carvalho e Natália Chernicharo Guimarães apontam que
a ampla defesa deve ser trabalhada como a amplitude que as partes têm de argumentar e
produzir provas na construção do provimento final (BARROS, CARVALHO, GUIMARÃES,
2006, p. 11). Com os citados autores:
Assim, tomando estes dois conceitos como base – direito de ação e contraditório –, a
ampla defesa será compreendida como garantia das partes de amplamente
argumentarem, ou seja, as partes além de participarem da construção da decisão
(contraditório), têm direito de formularem todos os argumentos possíveis para a
formação da decisão, sejam estes de qualquer matiz. Isto, pois a recorrente
afirmação da distinção entre argumentos de fato e de direito, aqui estão
compreendidos como indissociáveis. Assim, a ampla argumentação garante como
conseqüência lógica a possibilidade de ampla produção de prova para a reconstrução
do fato e circunstâncias relevantes para o processo. (BARROS, CARVALHO,
GUIMARÃES, 2006, p. 11)

Dentro do direito à ampla defesa decorrem duas formas de seu exercício direto
(autodefesa), a participação ativa na qual coloca-se o direito de presença do acusado
(BINDER, 2003, p. 200), que tem direito de participar pessoalmente de todos os atos
processuais, uma vez que é parte integrante do fato pelo qual foi acusado, e o direito de
produzir provas e argumentos. De outro lado tem-se a ampla defesa passiva, que garante ao
acusado o direito ao silêncio, à não autoincriminação, a não participação na produção de
provas e a impossibilidade de se utilizar de intervenções corporais não autorizadas pela parte
interessada. Além da ampla defesa exercida diretamente pelo acusado, deve-se assegurar a ele
a defesa técnica, que será exercida por profissional do direito tecnicamente capacitado para
tanto.
Por sua vez, os princípios do contraditório e da ampla argumentação somente existirão
se o julgamento for realizado por um terceiro imparcial, que, como afirmou Fazzalari (2005),
participa do contraditório, mas não é contraditor. O juiz, em cooperação com as partes,
concorre para dar vida ao processo (ANDOLINA, VIGNERA, 1997, p. 15). Visando
assegurar a imparcialidade do juiz é que se veda o juízo de exceção, estabelecendo que a
365

competência deverá ser determinada em lei antes do fato e que se estabelecem as garantias da
magistratura (inamovibilidade, vitaliciedade e irredutibilidade de subsídios). Porém, no
ordenamento jurídico brasileiro, a imparcialidade do juiz acaba seriamente comprometida pela
adoção da prevenção como norma de fixação da competência, o que permite a formação
antecipada do convencimento judicial antes da real e efetiva participação das partes na
construção do provimento.
Por fim, é pela fundamentação das decisões que se verificará a obediência dos três
outros princípios que compõem a base principiológica uníssona. Porém, é bom dizer que
fundamentação da decisão não é o mesmo que motivação da decisão. Nesse sentido, Marcelo
Andrade Cattoni de Oliveira e Flávio Quinaud Pedron (OLIVEIRA; PEDRON, 2010, p. 126)
afirmam que a motivação das decisões é restrita à exposição íntima dos motivos que levaram
o julgador à decisão. A decisão será motivada quando o julgador se limitar a expor os motivos
que o levaram a decidir, por outro lado, a decisão fundamentada exige do julgador a análise
séria e detida dos argumentos e provas levados pelas partes (ampla argumentação e
contraditório), expondo quais estão corretos e quais estão incorretos (SANTIAGO NETO,
2015, p. 76). Vale frisar que, no Brasil o ordenamento constitucional, art. 93, IX, da
Constituição da República, exige que as decisões sejam fundamentadas, tendo a norma
infraconstitucional sido regulamentada infraconstitucionalmente pelo §1º do art. 489 do
Código de Processo Civil de 2015128, que deu contornos claros à exigência constitucional.
Se a teoria de Fazzalari mostrou que o convencimento do juiz não é livre, eis que
vinculado ao contraditório, o modelo constitucional de processo vai além e demonstra que o
convencimento também não poderá ser meramente motivado, eis que as exigências
constitucionais impõem que seja fundamentado, o que, como dito no presente trabalho, vai
muito além da simples motivação. Dessa forma, qualquer resquício de um suposto princípio
do livre convencimento motivado resta sepultado, eis que no Estado Democrático de Direito
não há espaço para que o convencimento seja do livre arbítrio do julgador, sendo construído

128
§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão,
que:
I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou
a questão decidida;
II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;
III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada
pelo julgador;
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes
nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a
existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
366

por ele em conjunto com as partes e a decisão formada segundo a persuasão racional
fundamentada. Nesse contexto, vale a crítica de Lênio Luiz Streck:
Expungir a livre apreciação e/ou o livre convencimento é sepultar o que restou do
socialismo processual do final do século XIX – início do século XX. Em uma
democracia e com uma constituição compromissória como a brasileira, não é
possível pensar a figura do juiz como ―acima das partes‖ ou o ―guardião-da-parte-
que-falhou. (STRECK, 2015, p.34)

Nesse contexto se deve levar a sério os preceitos do Estado Democrático de Direito e


do modelo constitucional de processo e assumir de uma vez por todas a corresponsabilidade
de todos os sujeitos processuais pela construção do provimento. Dessa forma, a sentença não
é obra apenas do julgador, mas construção comparticipada (NUNES, 2009) das partes e do
juiz em conjunto, cada qual ocupando o lugar que lhe foi reservado pela Constituição.
Porém, após a promulgação da Constituição, em seus 30 anos de vigência, ela já
sofreu 99 emendas, com uma média de mais de três emendas por ano de vigência, o que torna
o regime constitucional instável e sujeito a mudanças casuístas. Por parte do processo penal
infraconstitucional, o mesmo sofreu mais mudanças nos últimos trinta anos que nos outros
quarenta e sete anos que abarcam toda vigência do Código de Processo Penal até 1988.
Algumas dessas reformas se devem a uma tentativa de adaptar o Código às exigências do
Estado Democrático de Direito e ao modelo constitucional de processo estabelecido na
Constituição da República, outras, por sua vez buscaram endurecer as normas processuais
penais e afastá-las da Constituição.
A primeira reforma do Processo Penal, após a vigência da Constituição, deu-se pela lei
7.780 de 22 de junho de 1989 e reformou os artigos 325 e 581 do Código para modificar os
critérios de fixação do valor da fiança e acrescentar nas hipótese do recurso em sentido estrito
as decisões que revogassem a prisão preventiva ou que concedessem liberdade provisória,
possibilitando recursos contra decisões que determinassem a liberdade do acusado.
Posteriormente os critérios de fixação de fiança foram novamente alterados pela Lei 8.035, de
27 de abril de 1990, para inserir os §§1º e 2º no art. 325 do Código e permitir, segundo as
condições econômicas do preso que a fiança fosse reduzida ou aumentada (§1º) e estabelecer
regras próprias para a fiança nos crimes contra a economia popular (§2º).
Outra modificação do processo penal que teve grande repercussão nos primeiros anos
da vigência da Constituição foi a ressureição da prisão para averiguação vigente no regime
ditatorial da Constituição de 1967 em pleno regime democrático. Trata-se do advento da Lei
7.960, de 21 de dezembro de 1989. A referida lei nasce logo após a promulgação da
Constituição e é fruto de uma enorme pressão por parte da polícia judiciária que achava ter
367

sido enfraquecida com no novo ordenamento constitucional pela perda do poder da prisão
para averiguação, já que a polícia estava acostumada ao poder de prender sem qualquer
interferência jurisdicional simplesmente para averiguar (LOPES JÚNIOR, 2018, p. 676). A
referida lei começa seu caminho de violações constitucionais já em sua origem, vez que
ingressou no ordenamento jurídico pátrio através da Medida Provisória nº 111, editada pelo
então Presidente da República José Sarney em 24 de novembro de 1989 e convertida menos
de um mês depois na citada lei. A Constituição reservou a matéria processual penal para lei
federal (art. 22, I), não havendo sequer a urgência na edição da medida provisória na forma
exigida pelo art. 62 em sua redação original. Vale dizer que após a edição da Emenda
Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001, foi expressamente vedada a edição de
medidas provisórias em matéria penal e processual penal (nova redação do art. 62, I). Como
também asseverou Aury Lopes Júnior:
Outro detalhe importante é que a prisão temporária possui um defeito genético: foi
criada pela Medida Provisória n. 111, de 24 de novembro de 1989. O Poder
Executivo, violando o disposto no art. 22, I, da Constituição, legislou sobre matéria
processual penal e penal (pois criou um novo tipo penal na lei n. 4898), através da
medida provisória, o que é manifestamente inconstitucional. A posterior conversão
da medida em lei não sana o vício de origem. (LOPES JÚNIOR, 2018, p. 676)

Nesse contexto, a prisão temporária ―não se vincula à garantia do processo, mas sim
da investigação‖ (ROSA, 2016, p. 322), assim, a prisão temporária se afasta de um contexto
cautelar para se transformar em instrumento de se convolar o acusado em instrumento das
investigações, de dominação sobre o corpo do outro. Como arremata Aury Lopes Júnior:
A prisão temporária cria todas as condições necessárias para se transformar em uma
tortura psicológica, pois o preso fica à disposição do inquisidor. É um
importantíssimo instrumento na cultura inquisitória em que a confissão e a
―colaboração‖ são incessantemente buscadas. Não se pode esquecer que a ―verdade‖
esconde-se na alma do herege, sendo ele o principal ―objeto‖ da investigação.
(LOPES JÚNIOR, 2018, p. 677)

Nesse contexto, a prisão temporária elege no art. 1º da Lei 7.960/1989 um rol de


crimes que poderiam receber a prisão para investigar (art. 1º, III)129, desde que fosse
imprescindível para as investigações (art. 1º, I) ou o acusado não possuísse residência fixa ou
não fornecesse elementos de identificação (art. 1º, II), bastando a presença dos requisitos do

129
O rol original dos crimes que permitiam a prisão temporária continha os seguintes crimes: a) homicídio
doloso; b) sequestro ou cárcere privado; c) roubo; d) extorsão; e) extorsão mediante sequestro; f) estupro; g)
atentado violento ao pudor; h) rapto violento i) epidemia com resultado de morte; j) envenenamento de água
potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte; l) quadrilha ou bando; m) genocídio,
em qualquer de sua formas típicas; n) tráfico de drogas; o) crimes contra o sistema financeiro. Posteriormente
a Lei 13.260, de 16 de março de 2016 que inseriu os crimes previstos na Lei de Terrorismo no rol de crimes
possíveis de terem a prisão temporária decretada.
368

inciso I ou II simultaneamente com algum dos crimes do inciso III para possibilitar a prisão.
Vale dizer que a prisão temporária somente pode ser decretada no inquérito policial,
por representação da Autoridade Policial ou a requerimento do Ministério Público, não
podendo ser decretada de ofício, possuindo, segundo a redação original da lei o prazo de 5
dias, podendo ser prorrogada uma única vez. Tal prazo foi estabelecido em razão do prazo do
Inquérito Policial ser de 10 dias (Art. 10 do CPP). Posteriormente a Lei dos Crimes
Hediondos, Lei 8.072 de 25 de julho de 1990, permitiu a prisão provisória nos crimes
hediondos e assemelhados por até 30 dias prorrogáveis por igual período (art.2º, § 4º), tendo,
com isso, prorrogado indiretamente o prazo do inquérito policial nos crimes hediondos e
equiparados para 30 dias prorrogáveis por igual período, quando o investigado estiver preso,
prazo superior ao previsto para a conclusão do inquérito de investigados soltos.
Porém, a prisão temporária acaba sendo usada em plena conformidade com as prisões
inquisitoriais, uma vez que se prende para investigar e usa a prisão como instrumento de
tortura para buscar a confissão. A prisão temporária nada mais é do que um instrumento
colocado nas mãos da polícia judiciária para adotar a máxima pressão contra os investigados,
usando da ameaça de prisão para impor o medo ou trocando a liberdade em troca de alguma
informação, pouco importando se verídica ou apenas conveniente.
Outra reforma promovida por Lei Especial e que atingiu o Processo Penal se deu pela
Lei dos Crimes Hediondos, que ao regulamentar o tratamento dos crimes hediondos previstos
no art. 5º, XLIII, da Constituição, determinou uma série de restrições penais e processuais
penais para os acusados e condenados por um dos crimes considerados hediondos e para os
crimes que, embora não hediondos, foram equiparados aos hediondos pela Constituição
(tortura, terrorismo e tráfico de drogas). A referida lei tem por pano de fundo o clamor
popular por um direito penal mais punitivo como resposta ao aumento da violência, sendo a
materialização do direito penal simbólico. Assim, a Lei 8.072/1990 selecionou um grupo de
crimes (art. 1º130), segundo sua gravidade abstrata, para restringir direitos e dar a seus autores

130
Seriam crimes hediondos segundo a redação original da Lei 8.072/1990: o latrocínio, a extorsão qualificada
pela morte, a extorsão mediante sequestro e na forma qualificada, o estupro, o atentado violento ao pudor, a
epidemia com resultado morte, o envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal,
qualificado pela morte, e o genocídio. Posteriormente, a Lei 8.930, de 06 de setembro de 1994, também
motivada pelo clamor popular e punitivistas, alterou o rol do art. 1º para estabelecer como hediondo os
seguintes crimes I - homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda
que cometido por um só agente, e homicídio qualificado; latrocínio, extorsão qualificada pela morte; extorsão
mediante sequestro e na forma qualificada; estupro; atentado violento ao pudor; epidemia com resultado
morte; e o crime de genocídio. Já a lei nº 9.695, de 20 de agosto de 1998, acrescentou o crime de falsificação,
corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais no rol de crimes
hediondos. Alei 12.015, de 07 de agosto de 2009 revogou o crime de atentado violento ao pudor, tendo
fundido seu tipo com o crime de estupro e, por isso, retirou o crime revogado do rol dos crimes hediondos e
369

tratamento penal diferenciado. O rol dos crimes hediondos é constantemente alterado, sempre
ao sabor das correntes e em busca de um direito penal cada vez mais simbólico e repressor.
Assim sendo, o art. 2º da Lei 8.072, estabelece os direitos vedados aos condenados por
crimes hediondos, vedando a eles a anistia, a graça e o indulto, já iniciando seu rol de
inconstitucionalidades, ao vedar o indulto quando a própria Constituição não o vedou, tendo
banido apenas a graça e a anistia. Assim, a lei criou restrições que sequer o legislador
constituinte não havia criado, sendo, por isso, inconstitucional131. A referida lei vedava ainda
aos crimes hediondos a fiança e a liberdade provisória, sendo declarada a
inconstitucionalidade da última restrição por representar cumprimento antecipado da pena132.
Além de vedar a progressão de regime, impondo o cumprimento da pena em regime
integralmente fechado, no que foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal
no julgamento do Habeas Corpus nº 82.959133, sob fundamento de que tal vedação viola o

inseriu o recém criado crime de estupro de vulnerável no rol de hediondos. A Lei 12.978, de 21 de maio de
2014 acrescentou ao rol de crimes hediondos o favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração
sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável. A lei 13.142 de 06 de julho de 2015 acrescentou ao rol dos
crimes hediondos a lesão corporal dolosa de natureza gravíssima e a lesão corporal seguida de morte, quando
praticadas contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição, integrantes do sistema
prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra
seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição, valendo
destacar a absoluta falta de técnica da referida lei que se refere à lesão corporal gravíssima quando esse tipo de
lesão inexiste no tipo penal das lesões corporais, sendo tão somente um nome criado pela doutrina para
diferencias as lesões graves previstas no art. 129, §1º das lesões graves previstas no §2º do mesmo artigo. O
parágrafo único do art. 1º da Lei de Crimes Hediondos, que previa o genocídio como crime hediondo, foi
também emendado para acrescentar também o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito
no rol de crimes hediondos.
131
Em que pese posição diversa do Supremo Tribunal Federal como no seguinte julgado: ―(...) é constitucional o
art. 2º, I, da Lei 8.072/1990, porque, nele, a menção ao indulto é meramente expletiva da proibição de graça
aos condenados por crimes hediondos ditada pelo art. 5º, XLIII, da Constituição. Na Constituição, a graça
individual e o indulto coletivo — que, ambos, tanto podem ser totais ou parciais, substantivando, nessa última
hipótese, a comutação de pena — são modalidades do poder de graça do presidente da República (art. 84, XII)
— que, no entanto, sofre a restrição do art. 5º, XLIII, para excluir a possibilidade de sua concessão, quando se
trata de condenação por crime hediondo. Proibida a comutação de pena, na hipótese do crime hediondo, pela
Constituição, é irrelevante que a vedação tenha sido omitida no Decreto 3.226/1999.‖ (HC 84.312, rel. min.
Sepúlveda Pertence, j. 15-6-2004, 1ª T, DJ de 25-6-2004)
132
Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal decidiu: ―Tráfico de drogas. Vedação legal de liberdade
provisória. Interpretação dos incisos XLIII e LXVI do art. 5º da CF. Reafirmação de jurisprudência. Proposta
de fixação da seguinte tese: É inconstitucional a expressão ―e liberdade provisória‖, constante do caput do art.
44 da Lei 11.343/2006. (RE 1.038.925 RG, rel. min. Gilmar Mendes, j. 18-8-2017, P, DJE de 19-9-2017,
repercussão geral, Tema 959.)
133
PENA - REGIME DE CUMPRIMENTO - PROGRESSÃO - RAZÃO DE SER. A progressão no regime de
cumprimento da pena, nas espécies fechado, semi-aberto e aberto, tem como razão maior a ressocialização do
preso que, mais dia ou menos dia, voltará ao convívio social. PENA - CRIMES HEDIONDOS - REGIME DE
CUMPRIMENTO - PROGRESSÃO - ÓBICE - ARTIGO 2º, § 1º, DA LEI Nº 8.072/90 -
INCONSTITUCIONALIDADE - EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL. Conflita com a garantia da
individualização da pena - artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal - a imposição, mediante norma, do
cumprimento da pena em regime integralmente fechado. Nova inteligência do princípio da individualização da
pena, em evolução jurisprudencial, assentada a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90.
(HC 82.959, Tribunal Pleno, rel. min. Marco Aurélio, j. 23-2-2006, DJ 01-09-2006.
370

princípio da individualização da pena na esfera da individualização judiciária da pena. Com a


declaração de inconstitucionalidade da vedação de progressão de regime em crimes hediondos
e equiparados, a lei 8.072 sofreu alteração pela Lei 11.464 de 28 de março de 2007, passando
a admitir a progressão de regime, contudo com patamares de dois quintos de pena para os
condenados primários e três quintos para reincidentes, portanto, mais severos que dos crimes
dito ―comuns‖ que têm progressão em um sexto da pena, contudo, a lei alteradora impôs o
início de cumprimento de pena em regime obrigatoriamente fechado, no que, também, teve
sua inconstitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus nº
111.840134 pela mesma violação à individualização da pena.
A lei de crimes hediondos trata o investigado, réu e o condenado por tais crimes como
objetos, elegendo-os como inimigos públicos e aplicando um direito penal e processual penal
do autor, tal qual o fizera a Inquisição com seus eleitos. Mudaram os hereges, mas os métodos
são os mesmos, em busca da punição sempre mais dura e com o encarceramento como forma
de se buscar a confissão, a delação e a restrição de direitos e garantias fundamentais,
restringindo o amplo direito de defesa. Valendo dizer que a lei 13.285, de 10 de maio de 2016,
alterou o Código de Processo Penal para acrescentar o art. 394-A determinando que os
procedimentos que apurem a prática de crimes hediondos tenham prioridade na tramitação,
buscando dar celeridade maior a tais casos penais.
Outra guinada significativa no processo penal brasileiro, talvez a maior desde a
Constituição, se deu com a edição dos Decretos nº592, de 6 de julho de 1992 e 678, de 6 de

134
EMENTA Habeas corpus. Penal. Tráfico de entorpecentes. Crime praticado durante a vigência da Lei nº
11.464/07. Pena inferior a 8 anos de reclusão. Obrigatoriedade de imposição do regime inicial fechado.
Declaração incidental de inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90. Ofensa à garantia
constitucional da individualização da pena (inciso XLVI do art. 5º da CF/88). Fundamentação necessária (CP,
art. 33, § 3º, c/c o art. 59). Possibilidade de fixação, no caso em exame, do regime semiaberto para o início de
cumprimento da pena privativa de liberdade. Ordem concedida. 1. Verifica-se que o delito foi praticado em
10/10/09, já na vigência da Lei nº 11.464/07, a qual instituiu a obrigatoriedade da imposição do regime
inicialmente fechado aos crimes hediondos e assemelhados. 2. Se a Constituição Federal menciona que a lei
regulará a individualização da pena, é natural que ela exista. Do mesmo modo, os critérios para a fixação do
regime prisional inicial devem-se harmonizar com as garantias constitucionais, sendo necessário exigir-se
sempre a fundamentação do regime imposto, ainda que se trate de crime hediondo ou equiparado. 3. Na
situação em análise, em que o paciente, condenado a cumprir pena de seis (6) anos de reclusão, ostenta
circunstâncias subjetivas favoráveis, o regime prisional, à luz do art. 33, § 2º, alínea b, deve ser o semiaberto.
4. Tais circunstâncias não elidem a possibilidade de o magistrado, em eventual apreciação das condições
subjetivas desfavoráveis, vir a estabelecer regime prisional mais severo, desde que o faça em razão de
elementos concretos e individualizados, aptos a demonstrar a necessidade de maior rigor da medida privativa
de liberdade do indivíduo, nos termos do § 3º do art. 33, c/c o art. 59, do Código Penal. 5. Ordem concedida
tão somente para remover o óbice constante do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90, com a redação dada pela Lei
nº 11.464/07, o qual determina que ―[a] pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em
regime fechado―. Declaração incidental de inconstitucionalidade, com efeito ex nunc, da obrigatoriedade de
fixação do regime fechado para início do cumprimento de pena decorrente da condenação por crime hediondo
ou equiparado. (HC 111.840, Tribunal Pleno, rel. min. Dias Toffoli, j. 27-6-2012, DJe-249 DIVULG 16-12-
2013 PUBLIC 17-12-2013)
371

novembro de 1992, que internalizaram as normas do Pacto Interamericano de Direitos Civis e


Políticos (assinado em 16 de dezembro de 1966 e depositado pelo Brasil em 24 de janeiro de
1992) e da Convenção Americana de Direitos Humanos do Pacto de São José da Costa Rica
(assinado em 22 de novembro de 1969 e depositado em 25 de setembro de 1992). Vale
ressaltar que adoção dos tratados internacionais de direitos humanos não se fala apenas em
controle de constitucionalidade das normas, mas também em seu controle de
convencionalidade, como explica Nereu José Giacomolli:
A convencionalidade e a normatividade internacionais informam a existência e a
possibilidade de um controle normativo internacional e interno, dentro dessas novas
perspectivas. Por isso, uma lei ordinária interna sofre um duplo controle material
vertical, de modo que será válida quando adequada, ademais da CF, aos diplomas
internacionais ratificados pelo Brasil, sejam comuns (estrutura supralegal) ou
referentes aos Direitos Humanos (mesma hierarquia constitucional, com aplicação
da regra pro homine). (GIACOMOLLI, 2015, p. 27)

O Pacto Interamericano de Direitos Civis e Políticos assegura o direito à liberdade e


proíbe qualquer forma de detenção arbitrária, garantindo que o preso seja comunicado das
razões de sua detenção e da acusação contra ele formulada, além de da obrigação de
apresentar o preso à autoridade judiciária competente para que possa ser averiguada a
necessidade e legalidade da prisão, além de assegurar ao preso recurso a órgão jurisdicional
superior contra a determinação de sua prisão e indenização pela prisão arbitrária (art. 9º).
Assegura-se ainda tratamento humano a toda pessoa presa (art. 10). O mesmo pacto assegura
ainda que toda pessoa tenha o direito de ser ouvida por um tribunal competente, independente
e imparcial, para o julgamento de uma acusação criminal, presumindo sua inocência 135, além
de garantir ao acusado direito de informação sobre o processo em idioma que compreenda
sobre a acusação e o procedimento, podendo ser assistida por intérprete; dispor de tempo e
meios para a formulação de sua defesa; julgamento sem adiamentos indevidos; exercício
pessoal do direito de defesa ou por advogado de sua escolha; interrogar testemunhas e
produzir provas; não ser obrigada à autoincriminação e nem à confissão da culpa (art. 14).
A Convenção Americana de Direitos Humanos assegura importantes direitos que
passaram a integrar o denominado bloco de constitucionalidade, após a Emenda
Constitucional nº 45, sendo considerado norma infraconstitucional e supralegal pelo Supremo
Tribunal Federal. Assim, o referido tratado trouxe ao processo penal várias garantias que o
aproximaram de um sistema acusatório, tais como o direito a não sofrer encarceramento

135
O Pacto Interamericano de Direitos Humanos usa a expressão presunção de inocência, diferentemente da
Constituição de 1988 que preferiu a expressão presunção de não culpabilidade, utilizando-a como sinônimo da
presunção de inocência e não no sentido atribuído a ela por Manzini na Itália fascista.
372

arbitrário (art. 7º, 3), que mostra claramente que o cárcere é medida excepcional e somente
deve ser usado em último caso. O direito a informação das razões da prisão bem como de qual
é a acusação formulada (art. 7º, 4). O direito do preso de ser levado à presença do juiz para a
legalidade e necessidade da prisão possam ser julgadas em audiência (art. 7º, 5). A referida
convenção estabeleceu ainda garantias judiciais mínimas, tais como o julgamento em prazo
razoável e por juiz ou tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido em lei (art.
8º, 1); presunção de inocência136 (art. 8º, 2), fazendo parte das garantias mínimas previstas no
art. 8º, 2: o direito a ter acompanhamento por intérprete, caso o acusado não compreenda o
idioma do local onde o procedimento tramitar (a); direito à comunicação prévia e
pormenorizada do acusado com a acusação (b); tempo e meios adequados para preparação de
sua defesa (c); direito de autodefesa ou defesa por defensor da escolha do acusado e de
comunicação livre e particular entre o acusado e seu defensor (d) e, caso o acusado não tenha
condições a garantia de ter um defensor gratuitamente proporcionado pelo Estado (e); direito
a inquirir testemunhas (f); direito de não ser obrigado a depor contra si mesmo e nem de se
autodeclarar culpado (g); direito a recurso à instância superior (h). Garantindo ainda que a
confissão somente poderia ser válida se não houvesse nenhuma forma de coação (art. 8º, 3), o
direito de não sofrer mais de uma acusação pelo mesmo fato, em caso de absolvição (art. 8º,
4) e a publicidade do processo penal (art. 8º, 5).
Vê-se que no plano internacional, foram adotados princípios típicos do processo penal
de partes, garantindo-se julgamento imparcial, defesa, publicidade e, principalmente a
separação entre as funções de acusar, julgar e defender. Ainda que tenhamos, no entanto,
adotado as convenções desde 1992, estas vêm sendo efetivadas ao longo dos anos, a passos
lentos, e não serão integralmente implementadas enquanto não reformarmos integralmente o
Código de Processo Penal para acabar de vez com seu DNA inquisitorial e autoritário.
A lei 8.699, de 27 de agosto de 1993 alterou o artigo 24 do Código, no capítulo
referente à ação penal para inserir o §2º no citado artigo para determinar que nos crimes
contra os interesses da União, Estados e Municípios a ação penal será sempre pública
incondicionada. Tal dispositivo aproxima-se dos antigos delitos públicos do velho direito
romano, que no período da República Romana eram processados por ação penal pública
enquanto os delitos privados demandavam ação penal movida pelos particulares. Porém, trata-

136
Nesse ponto vale ressalvar que o texto da constituição de 1988 fala em presunção de não culpabilidade se
referindo à presunção de inocência, já o Pacto de São José da Costa Rica fala diretamente que ―toda pessoa
acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua
culpa‖, sendo expresso em presumir a inocência, com todas as implicações daí decorrentes, como já
mencionamos nos capítulos iniciais.
373

se de uma adequação necessária do ordenamento jurídico para evitar que o Estado, para
mover uma ação penal, tenha que movimentar a estrutura de sua advocacia pública e o
Ministério Público, evitando-se gasto de tempo e reduzindo os custos para os cofres públicos.
Sendo, portanto, ―uma opção legislativa, ligada à pronta legitimação ao acusador público, de
tornar incondicionada a ação‖ (CHOUKR, 2017, p. 221).
A lei 8.884, de 11 de junho de 1994, alterou os requisitos para a prisão preventiva
previstos no art. 312 do Código de Processo Penal para inserir o requisito ―garantia da ordem
econômica‖, tendo sido inserida de forma casuísta para atingir determinado caso concreto.
Contudo, a garantia da ordem econômica não tem por objetivo a tutela processual, não
havendo cautelaridade em sua decretação e, portanto, sendo inconstitucional. Vale a crítica de
Aury Lopes Jr. (2018, p. 651) que afirma que a medida cautelar restritiva de liberdade seria
ineficaz para a perseguição da especulação financeira e de transações fraudulentas, pelo que
deveriam ser adotadas medidas patrimoniais e o uso de outros ramos do direito, como o
administrativo sancionador para a sanção da pessoa jurídica. Porém, a prisão preventiva acaba
sendo adotada como forma de perseguição a consequências e não à tutela processual, não
guarda consigo nenhum elemento cautelar, apenas o desejo de se antecipar a punição,
reduzindo a abrangência da presunção de inocência.
Mais uma alteração que tangencia os sistemas processuais penais, desta vez para
reforçar a presunção de inocência foi a Lei 9.033, de 2 de maio de 1995, que alterou o §1º do
art. 408 do Código de Processo Penal para excluir a determinação de que o nome do réu fosse
lançado ao rol dos culpados em razão da sentença de pronúncia, o que violava gravemente a
presunção de inocência, pois determinava que o nome do réu figurasse no malfadado rol dos
culpados sem que houvesse sequer sido julgado pelo tribunal do júri. Tal revogação deu força
à presunção de inocência dando leve ênfase rumo a um processo penal onde se efetivamente
se presuma a inocência como um modelo não inquisitório.
A linguagem pouco técnica adotada no artigo 4º do Código que dava a entender que a
Autoridade Policial exercia jurisdição, foi corrigida pela Lei 9.043 de 1995, que modificou a
palavra ―jurisdições‖ para adotar ―circunscrições‖, já a autoridade policial não detém poderes
jurisdicionais, valendo lembrar ainda que após a Constituição de 1988 o artigo 26 do Código,
que permitia a autoridade policial dar início à ação penal nos casos de contravenções penais,
não foi recepcionado diante da atribuição privativa da ação penal pública ao Ministério
Público (art. 129, I, CR/88).
A quesitação do júri foi objeto da alteração promovida pela Lei 9.113, de 16 de
outubro de 1995, que alterou o inciso III do art. 484 do Código para obrigar que na quesitação
374

do Tribunal do Júri referente às excludentes de ilicitude fossem formulados quesitos


referentes ao excesso. Com essa reforma se possibilitou maior autonomia nas decisões do júri
e fomentou os debates em contraditório, trazendo maior participação das partes na construção
do veredicto, aproximando o pêndulo do processo penal de um modelo de partes.
A reforma proporcionada pela Lei 9.271 também aproximou o Código de Processo
Penal do modelo estabelecido pela Constituição e dar efetividade à ampla defesa e ao
contraditório. Pela redação original do Código, como vimos acima, o acusado que não fosse
citado de qualquer forma e não comparecesse seria tido por revel e o procedimento teria seu
curso. Com a citada lei, o art. 366 do Código foi alterado para determinar que o acusado
citado por edital e que não comparecesse tivesse o procedimento suspenso, assim como o
prazo prescricional, seguindo o procedimento apenas em caso de não comparecimento do
acusado pessoalmente citado (art. 377, também modificado pela mesma lei). A lei também
alterou o art. 368 para determinar a citação do acusado que estivesse em local conhecido no
exterior através de carta rogatória, impedindo o uso da citação por edital nesses casos e o art.
370 para regulamentar a forma das intimações, que deveriam seguir a forma das citações.
Dessa forma, caso o acusado não fosse citado ou intimado pessoal pessoalmente, não se
presumiria sua ciência da existência do procedimento contra ele e o feito não teria seguimento
e se potencializou a participação do acusado no procedimento.
Além de autoritário, o Código de Processo Penal refletia o pensamento de sua época,
inclusive no que dizia respeito ao machismo de uma sociedade patriarcal. Nesse aspecto, o art.
35 previa que a mulher casada somente poderia oferecer queixa-crime com o consentimento
do marido, exceto se o marido fosse o querelado. Contudo, o juiz poderia suprir o
consentimento marital. Tal artigo vigorou até 27 de novembro de 1997, quando foi revogado
pela lei 9.520, que buscou adequar o Código aos ditames constitucionais que, em razão da
equiparação entre homens e mulheres não mais admitia um dispositivo como esse.
Os poderes instrutórios do juiz ganharam ainda mais força com a edição da lei 9.296,
de 24 de julho de 1996, que permitiu ao juiz, de ofício, determinar a interceptação telefônica e
de dados dos investigados ou acusados de crimes punidos com reclusão. A permissão para
que o juiz produza provas de ofício foi acrescida em mais uma alternativa para que o
inquisidor escolha, dessa vez, violando o direito fundamental à intimidade do indivíduo.
O rol dos que faziam jus à prisão especial foi novamente alterado, desta vez pela lei
10.258, de 11 de julho de 2001, que alterou inciso V do art. 295 para inserir os militares dos
Estados e do Distrito federal dentre aqueles que têm o direito à prisão especial, criando ainda
a obrigação de que o transporte daqueles que têm direito à prisão especial não ser junto dos
375

presos denominados de ―comuns‖ (§4º). Além disso a citada lei inseriu §1º no mesmo artigo
para esclarecer que a prisão especial poderá ser apenas a prisão em cela distinta daqueles que
não possuem o mesmo direito, podendo ser coletiva (§3º).
A lei 10.628 alterou o art. 84 do Código para permitir que o foro por prerrogativa de
função fosse estendido o foro por prerrogativa de função, destinado constitucionalmente aos
agentes públicos, para após o término do mandado do agente. Contudo, a referida lei, editada
em resposta ao cancelamento da Súmula 394 do Supremo Tribunal Federal, acabou sendo
declarada inconstitucional pela Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.197, que considerou
que ―não pode a lei ordinária pretender impor, como seu objeto imediato, uma interpretação
da Constituição: a questão é de inconstitucionalidade formal, ínsita a toda norma de
gradação inferior que se proponha a ditar interpretação da norma de hierarquia superior.‖
(BRASIL, 2006). Dessa forma, apenas a norma constitucional poderia alterar a competência
por prerrogativa de função, vez que a matéria, que antes era regulamentada pelo Código, foi
integralmente prevista na Constituição. Tratou-se a reforma legislativa de uma forma
autoritária de se manipular o foro por prerrogativa de função, para assegurar aos membros do
governo, em final de mandato presidencial, conservassem o foro privilegiado mesmo após
deixar seus cargos, mais um ato casuísta e desprovido de qualquer apego ao sentimento
democrático que deveria fazer parte dos atos públicos.
O interrogatório, que desde que o Código de Processo Penal foi decretado era um ato
exclusivo do juiz e sem qualquer participação das partes, foi integralmente reformado pela Lei
10.792, de 01 de dezembro de 2002, o que deu efetividade à Constituição e aos Tratados
Internacionais de Direitos Humanos subscritos pelo Brasil. Em razão da citada reforma toda
estrutura do interrogatório foi reformulada, para permitir que as partes pudessem formular
perguntas ao acusado (art. 188) e garantir o direito constitucional ao silêncio (art. 186), sem
que o exercício desse direito pudesse ser interpretado em prejuízo do acusado, além de
assegurar o direito ao contato do acusado com seu advogado em entrevista reservada (art.
185). Apesar de ter provocado uma verdadeira revolução na estrutura do interrogatório do
Código de Processo Penal, a referida lei nada mais fez que aplicar, na lei infraconstitucional,
aquilo que a Constituição já previa. Ou como asseverou Rogério Schietti Machado Cruz em
artigo publicado tão logo a nova legislação entrou em vigor:
Para tanto, a nova dicção do Código de Processo Penal não deixa dúvidas — para os
que preferem aguardar reformas da lei para cumprir o que a Constituição já
determina — de que o acusado deverá ser interrogado ―na presença de seu defensor,
constituído ou nomeado‖ (art. 185, caput), com o qual o interrogando terá
assegurado o ―direito de entrevista reservada‖ (art. 185, § 2º); por sua vez, o art. 186
expressamente reconhece — também para os renitentes em interpretar as leis à luz
376

do texto constitucional — o direito ao silêncio do qual ―o acusado será informado


pelo juiz‖, antes de iniciar o interrogatório, não podendo seu exercício ―ser
interpretado em prejuízo da defesa‖ (art. 186, par. único). (CRUZ, 2004)

Trata-se de reforma que se limitou a aplicar aquilo que a Constituição, desde 05 de


outubro de 1988, já dispunha, porém, o Brasil padece da síndrome da pequena norma,
necessitando que normas inferiores repitam aquilo que diz a Constituição para que esta tenha
força. Infelizmente, ainda não se dá o devido valor à norma maior, precisando do suporte de
outras normas para repetir a Carta Magna para que esta ganhe força.
A reforma aproximou o interrogatório da Constituição e deu ao ato procedimental a
estrutura de um ato de defesa como deve ser em um Estado Democrático de Direito,
aproximando o ato de um modelo processual de partes. Porém a referida lei não alterou o
procedimento, mantendo o interrogatório como primeiro ato da instrução e, portanto, fazendo
com que o acusado se defendesse de uma acusação que sequer havia apresentado suas provas
ainda. Sendo válida a crítica de Cleunice Valentim Bastos Pitombo, Gustavo Henrique Righi
Ivahy Badaró, Marcos Alexandre Coelho Zilli e Maria Thereza Rocha de Assis Moura:
É certo que a não concessão de oportunidade de reperguntas será causa de nulidade,
justamente por integrar-se ao rol de requisitos essenciais do interrogatório. Em
conseqüência, haverá de ser assegurada a participação da acusação e da defesa
técnica, não podendo o ato realizar-se sem a presença destas. Essa exigência,
compatível com os novos ditames impostos pelo legislador, seria mais facilmente
atendida caso houvesse sido o interrogatório deslocado para momento procedimental
posterior, mais precisamente após a inquirição de todas as testemunhas, como aliás
já ocorre no procedimento sumaríssimo dos Juizados Especiais Criminais,
oportunidade em que todas as questões relativas à representação processual já teriam
sido superadas. (PITOMBO, BADARÓ, ZILLI e MOURA, 2004)

Assim, apesar do inegável ganho em relação ao direito de defesa, a nova forma do


interrogatório representou um avanço tímido contra o inquisitorialismo em relação à forma
anterior, mas sua manutenção como primeiro ato da instrução processual reduz a amplitude de
defesa, o que somente seria corrigido em 2008. Além disso, manteve-se sem alteração o art.
198, que, apesar de não ter sido recepcionado pela Constituição ainda vai contra a própria
reforma da lei 10.792, servindo apenas para tumultuar a interpretação do processo penal
pátrio. Trata-se dos prejuízos de uma reforma pontual, sem observar o conjunto normativo
como um todo, por melhor que sejam as intenções, não se é capaz de mudar o sistema por
uma reforma parcial.
A reforma da estrutura do art. 306, pela Lei 11.449, de 15 de janeiro de 2007, também
foi importante para determinar que toda prisão em flagrante em que o flagranteado não tivesse
advogado devesse ser comunicada à defensoria pública, possibilitando que as medidas
377

técnicas em busca da liberdade pudessem ser tomadas, dando parcial efetividade às normas
internacionais. Contudo, não basta apenas a comunicação do flagrante, a comunicação deveria
se dar em todas as modalidades de prisão. Também é insuficiente a comunicação posterior à
lavratura do auto de prisão em flagrante delito, a comunicação deveria ser prévia, devendo
cada repartição policial contar com a presença de um defensor em seu interior, isso evitaria
eventuais abusos policiais e asseguraria que a defesa fosse exercida de forma ampla desde o
primeiro momento da prisão, o que ocorre quando o preso possui recursos para contratar um
advogado, não sendo a realidade da grande maioria do povo brasileiro.
A maior reforma do processo penal brasileiro desde o Código de 1941 ocorreu no ano
de 2008, quando entraram em vigor as leis 11.689 e 11.690, ambas publicadas no dia 09 de
junho, e a lei 11.718, publicada no dia 20 de junho. Trata-se de uma tentativa de reforma
pontual da legislação processual penal para melhor adequá-la aos anseios constitucionais,
sendo fruto de uma comissão capitaneada pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual e sob
a presidência da professora Ada Pelegrini Grinover e composta pelos juristas Antônio
Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes, Luiz Flávio Gomes, Miguel Reale
Júnior, Nilzardo Carneiro Leão, René Ariel Dotti, Rogério Lauria Tucci, Petrônio Calmon
Filho, Sidney Beneti e Rui Stoco. Essa comissão, após optar pela reforma pontual do Código,
elaborou um estudo entregue ao Ministério da Justiça e que originou sete projetos de lei que
ganharam a seguinte numeração 4.203 (Tribunal do Júri), 4.204 (interrogatório do acusado),
4.205 (provas), 4.206 (Recursos), 4.207 (sentença e procedimentos), 4.208 (Prisão e medidas
cautelares e liberdade provisória), 4.209 (investigação preliminar), todos propostos no ano de
2001 (BARROS, 2009, p. 2). A comissão, marcada por integrantes oriundos da Universidade
de São Paulo, principalmente sua presidente, deu aos projetos a face da teoria da relação
jurídica (Bülow) e de sua matiz instrumental, assim, as reformas não tiveram o objetivo de
descentralizar os poderes processuais mas de manter o processo como instrumento da
jurisdição aplicar o direito como lhe for melhor e, consequentemente mantiveram-se as partes
em posição de segundo plano.
No produto dos trabalhos da comissão e, consequentemente nos projetos de lei
apresentados e nas leis que deles resultaram, percebe-se fortemente a adoção da teoria
instrumentalista do processo, que, como vimos representa a visão da Professora Ada Pelegrini
Grinover, presidente da comissão. O Código que já vinha de um modelo inquisitorial e,
portanto, com uma estrutura onde se coloca o juiz como protagonista, acabou recebendo uma
reforma marcada por uma concepção teórica que, como vimos, tem na jurisdição o eixo
central do processo, sendo ele mero instrumento de o juiz chegar na decisão final. Nesse
378

sentido, Flaviane de Magalhães Barros afirma:


A reforma pontual, que ora se efetiva, é um produto da escola teórica do
instrumentalismo do processo, fortemente influenciada pela socialização do
processo, que teve no Projeto Florença de Acesso à justiça dirigido por Mauro
Capeletti um importante marco. (BARROS, 2009, p. 8)

Entretanto, segue Flaviane de Magalhães Barros ao afirmar que o instrumentaismo foi


a linha mestra da reforma processual civil, propondo a simplificação procedimental para
assegurar a celeridade e a efetividade como meios de se atingir o acesso à justiça como meio
final. No processo penal, o mesmo instrumentalismo veio acompanhado do garantismo, tendo
a reforma do Código de Processo Penal o escopo de buscar a simplificação procedimental e
outras medias que tinham por finalidade possibilitar maior acesso à justiça. Dessa forma, a
legislação processual penal garantista e, concomitantemente fundada no juiz garantidor
vinculado ao paradigma do Estado Social é incapaz de resultar em um processo fundado na
participação das partes em iguais condições de influenciar argumentativamente na construção
da decisão, ou seja, em um processo penal que atenda às exigências do Estado Democrático
de Direito. (BARROS, 2009, p. 8-9)
Dos sete projetos de lei, três foram aprovados em junho de 2008, o nº 4.203/01 que foi
convertido na lei 11.689 e reformou todo o procedimento dedicado ao tribunal do júri; o de nº
4.205, vertido na lei 11.690 e tratava das provas e o de nº 4.207, convertido na lei 11.719, e
tratava da sentença e dos demais procedimentos (BARROS, 2009, p. 2).Outro ponto a ser
destacado é que, no dia 19 de junho de 2008, foi constituída comissão composta por nove
juristas (Hamilton Carvalhido, Eugênio Pacelli, Antonio Correa, Antônio Magalhães Gomes
Filho, Fabiano Augusto da Silveira, Feix Valois Coelho Junior, Jacinto Nelson de Miranda
Coutinho, Sandro Torres Avelar e Tito Souza do Amaral) para elaborar um projeto de Código
de Processo Penal completamente novo (LOPES JÚNIOR, 2011, p.1)
Uma primeira questão se reflete à matéria reformada em 2008, trata-se de uma reforma
muito mais voltada, segundo nosso marco teórico construído no capítulo inicial, para os
procedimentos que para o processo propriamente dito, ou seja, foi uma mudança muito mais
voltada para a sequência de atos que propriamente para efetivar a participação das partes na
construção do provimento final.
Assim sendo, no dia 09 de junho de 2008 foram publicadas as leis 11.689 e 11.690, a
primeira sobre o Tribunal do Júri e a segunda sobre os demais procedimentos e a sentença
penal. Ou seja, os procedimentos sofreram significativa alteração, mas não mudamos o
processo.
379

Dessa forma a Lei 11.689 veio para alterar o procedimento adotado no tribunal do júri,
conservando o procedimento bifásico, iniciando a primeira fase no oferecimento da denúncia.
A instrução da primeira fase do procedimento sofreu grandes alterações, sendo que após o
oferecimento e o recebimento da denúncia, o acusado passou a ser citado para apresentar
resposta escrita à acusação (art. 406), não mais para ser interrogado. O procedimento somente
seguiria seu curso após a apresentação da resposta, sendo que, caso o acusado não
apresentasse sua defesa por procurador, desde que tenha sido citado pessoalmente, o juiz
nomearia advogado ad hoc. Apresentada a defesa, os autos passaram a ter que ser remetidos
ao Ministério Público (art. 409) para se manifestar sobre as preliminares e os documentos,
garantindo o contraditório e assegurando que não seja proferida decisão surpresa. Contudo, é
importante observar que a mesma preocupação com o conhecimento da defesa sobre os atos
da acusação não encontra a mesma preocupação da lei. A lei em análise trouxe importante
modificação na legislação processual penal ao prever na nova redação do art. 411 que o
interrogatório do acusado passaria a ser o último ato da audiência do juízo da instrução
preliminar, quando se configura em legítimo ato de defesa e possibilita que o réu se manifeste
sobre toda prova produzida em juízo.
Ao final da primeira fase, a nova lei manteve as decisões de pronúncia (juízo de
admissibilidade da acusação – art. 413), impronúncia (ausência de indícios de autoria ou de
prova da existência do crime, art. 414) e absolvição sumária (existência de prova de que o réu
não foi autor ou partícipe ou de que agiu amparado por alguma das excludentes, art. 415). Vê-
se que nessa fase se mantém a estrutura de inversão do ônus probatório, quando a absolvição
somente será obtida em razão de prova produzida pela defesa, enquanto a dúvida leva à
admissibilidade. Isso se deve não à aplicação do repetido princípio do ―in dubio pro
societate‖, tão comum na doutrina e jurisprudência desprovidas de amor constitucional. Tal
fato se justifica em razão do princípio do juízo natural, que na estrutura constitucional pátria é
do Tribunal do Júri quando se tratar de crimes dolosos contra a vida. Assim, a pronúncia é
mero juízo de admissibilidade da acusação, devendo-se deixar a análise mais aprofundada da
acusação para o órgão que possui a competência constitucional para o julgamento dos crimes
dolosos contra a vida. Contudo, entendemos que a decisão de impronúncia não condiz com
um modelo de processo condizente com o Estado Democrático de Direito, sobretudo, por
permitir a lei a retomada do caso penal se surgirem novas provas, dessa forma ao final deveria
o juiz verificar apenas se foram produzidos elementos que autorizem o julgamento pelo júri
ou não, levando à pronúncia ou à absolvição. Vale frisar que a decisão de impronúncia
possibilita que o réu impronunciado seja submetido a nova acusação pelo mesmo fato, desde
380

que surjam novas provas, o que viola a cláusula que impede o duplo julgamento, como
previsto nos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, e possibilita a
ocorrência de arranjos hermenêuticos para a reabertura do procedimento. Outra modificação
da nova lei foi estabelecer que apenas contra a decisão de pronúncia será cabível recurso no
sentido estrito (art. 581, IV, que também fora reformado) enquanto para as decisões de
absolvição sumária e impronúncia se prevê o recurso de apelação (art. 416), em síntese a nova
lei reconheceu a natureza jurídica de decisão interlocutória mista da pronúncia e de sentença à
absolvição sumária e impronúncia, o que dá ainda mais força à impossibilidade de novo
julgamento.
A estrutura em si do júri foi mantida, mantendo-se as recusas peremptórias realizadas
primeiro pela defesa e depois pela acusação (art. 468), trata-se do único momento onde a
defesa precede a acusação, tal disposição fazia sentido no rito procedimental revogado,
quando em casos de julgamentos com mais de um acusado um recusasse e o outro aceitasse o
jurado sorteado caberia a escolha de qual seria julgado ao Ministério Público, com a nova
regulamentação do júri, perdeu-se mais uma oportunidade de se assegurar a efetividade e a
plenitude da defesa através de se garantir seu direito à última fala. O interrogatório do réu em
plenário de julgamento foi passado para após a instrução realizada em plenário (art. 473 e
474). Ao final dos debates os jurados podem requerer a realização de diligências que
entendam ser imprescindíveis para o julgamento (art. 481), em uma atitude de produção de
provas de ofício pelos juízes de fato, contudo, caso o juiz presidente entenda ser efetivamente
imprescindível a prova, determinará a dissolução do conselho de sentença e o julgamento será
novamente realizado em outra data, após a diligência ser realizada, e por um novo corpo de
jurados. Significativa mudança foi realizada pela simplificação dos quesitos e a aglutinação de
um só quesito para juntar todas as teses de defesa levadas ao plenário de julgamento (art.
483), determinando-se a formulação de um quesito único e obrigatório referente à absolvição
do réu no lugar do antigo modelo onde se quesitava todas as teses defensivas cada uma
desmembrada em seus requisitos.
Por sua vez, a lei 11.690 modificou o título dedicado à matéria das provas no processo
penal, extremamente sensível e caro para o estudo dos sistemas processuais penais. A reforma
perdeu a oportunidade de aproximar o processo penal pátrio de um modelo acusatório na
media em que manteve a possibilidade de o juiz produzir provas de ofício bem como decidir
com base nos elementos produzidos no inquérito policial. Mais uma vez, mostrou que não
basta reformar pontualmente o Código e, nem mesmo reformar, sem que seja realizada uma
mudança efetiva e real na mentalidade dos operadores do direito processual penal e na própria
381

sociedade como um todo, sob pena de não se construir uma mudança verdadeira no rumo da
democratização processual penal.
A referida lei 11.690 alterou o art. 155 do Código para aglutinar o antigo art.157, que
passou a tratar das provas ilícitas, e definir a adoção do sistema do livre convencimento
motivado como sendo o modelo de valoração da prova, além de permitir que o juiz decida
com base nos elementos levados pelo inquérito policial, desde que não o faça de forma
exclusiva. Dois pontos da nova redação do art. 155 devem ser objeto de análise, a adoção do
livre convencimento motivado e a possibilidade de o juiz decidir com base nos elementos
inquisitoriais, em ambos os casos a reforma manteve-se, adotando um modelo inquisitorial e
não incorporou as exigências da Constituição de 1988.
A adoção expressa do princípio do livre convencimento do juiz não atende ao
princípio do contraditório, eis que a decisão não mais é tida como obra solitária do juiz, mas
construção conjunta entre o diálogo entre as partes e o julgador que se desenvolve através do
contraditório. Assim, o juiz não é livre para decidir, uma vez que vinculado àquilo que fora
produzido pelas partes em contraditório; é o diálogo que limita a decisão final.
Por outro lado, e, talvez, de forma ainda mais grave, o art. 155 manteve a possibilidade
de o juiz decidir com base no inquérito que, face à manutenção do art. 12 desde a entrada em
vigor do Código, segue servindo de subsídio para a denúncia ou para a queixa acompanhando
a petição inicial da acusação. Assim sendo, o juiz pode tomar a decisão com base naquilo que
não foi produzido em contraditório, tendo como único limite que os elementos do inquérito
não sejam os únicos. É importante ressaltar que o projeto de lei nº 4.205, apresentado pelo
Poder Executivo ao Congresso e elaborado por comissão de juristas, não continha a palavra
―exclusivamente‖ na redação do art. 155, tendo ela sido inserida durante o processo
legislativo. Vê-se que a intenção do projeto de lei era vedar a decisão com base na prova
inquisitorial e aproximar o processo penal brasileiro de um modelo de partes com a decisão
sendo fundada na prova em contraditório. Contudo, a expressão ―exclusivamente‖ deu
redação oposta àquela desejada pela comissão de juristas, permitindo que o julgador decida
com base no produto do inquérito e, consequentemente mantendo toda carga inquisitória
trazida daquela fase para a fase judicial, fomentando o famoso ―cotejo‖ da prova inquisitória
com a prova judiciária e a leitura dos depoimentos da fase inquisitória para que a testemunha
confirme ou não o depoimento, usando a confirmação como prova judiciária para fraudar uma
decisão baseada na prova em contraditório quando, na realidade, a decisão foi tomada apenas
com base na prova inquisitorial.
Flaviane de Magalhães Barros (2009, p. 26-29) aponta que a reforma do art. 155
382

ampliou ainda mais a participação do juiz no inquérito policial, abrindo caminho para
decisões ainda mais discricionárias. Quando da entrada em vigor da Lei 11.690 estava em
trâmite na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 4.209/2001 que reformaria o inquérito
policial e o colocaria novamente como peça informativa do Ministério Público. Contudo, em
consulta ao site da Câmara dos Deputados, verifica-se que o referido projeto foi aprovado na
Câmara e remetido ao Senado, porém até hoje não entrou em vigor. E arremata Flaviane:
Em consonância, portanto, com o modelo constitucional de processo e a base
constitucional do processo penal, a prova para ser admitida no processo deve ser
produzida em contraditório. As provas que forem produzidas antes do processo têm
que ser produzidas em contraditório, não se pode esperar o processo penal iniciar
para que a ampla defesa do acusado possa ser exercida. (BARROS, 2009, p. 28-29)

Em resumo, a atual redação do art. 155 manteve o inquérito como fonte de formação
da decisão, viabilizando que o juiz decida com base nos elementos de prova colhidos no
inquérito e utilize de elementos retóricos para fazer parecer que não decidiu ―exclusivamente‖
com base no inquérito.
Por sua vez a nova redação do art. 156 possui impropriedades ainda mais graves
quando analisadas à luz do modelo constitucional de processo e das necessidades do Estado
Democrático de Direito. O citado artigo em sua atual redação ―distribui‖ o ônus da prova
àquela parte que fizer a alegação e permite que o julgador produza provas de ofício tanto no
inquérito como na fase judiciária.
O processo penal democrático é baseado no princípio da presunção de inocência, que,
no ordenamento brasileiro, é previsto nas normas constitucionais e convencionais. Assim
sendo, diante da presunção de que o acusado é inocente não há como distribuir o ônus
probatório para a defesa, devendo toda a carga probatória ser destinada à acusação, que,
inclusive faz a primeira e maior alegação no processo penal, de que o acusado cometeu o
delito a ele imputado. Dessa forma,
A distribuição do ônus da prova deve se manter com base nos parâmetros
constitucionais da presunção de inocência. Nessa seara, não se pode dizer que o
acusado é quem tem que provar sua inocência, mas sim que cabe a parte que acusa
provar a culpa do acusado. (BARROS, 2009, p. 32)

Por outro lado, a possibilidade de que o juiz produza provas de ofício foi mantida na
reforma de 2008, mantendo o modelo inquisitorial vivo e afastando o Brasil de um processo
penal realmente democrático, sobretudo, de um processo penal regido efetivamente pela
presunção de inocência. Dessa forma, ―a reforma persiste com a manutenção da base
inquisitorial, confrontando-se com a proposta constitucional de um sistema acusatório.‖
(BARROS, 2009, p. 33-34) Se o réu é presumidamente inocente, qualquer dúvida deve se
383

resolver de forma favorável à presunção constitucional, a busca de provas pelo magistrado


reforça a presunção de culpa e reflete que o julgador já possui o convencimento de que o réu é
culpado, necessitando apenas de provas para proferir sua decisão previamente tomada.
A reforma do art. 156 não apenas não trouxe uma melhora ao sistema processual
pátrio, como conseguiu piorá-lo, eis que antes o juiz somente poderia produzir provas de
ofício na fase judicial e agora poderá buscar provas também na fase inquisitorial. O artigo
citado proporciona confusão entre o papel do juiz com o papel de justiceiro, colocando o
julgador, que deve ser um terceiro imparcial, como um dos responsáveis pelo sistema de
segurança pública. O ―novo‖ artigo 156 afasta o juiz de seu papel constitucional, contribui
para um processo penal ainda mais inquisitório e afasta nosso sistema de um modelo de
processo penal de partes na forma que foi desenhado pela Constituição.
A ideia de um juiz conformador e justiceiro não se adéqua ao modelo constitucional
de processo, eis que objetiva promover a paz social, subjulgando as partes a sua
visão de mundo e os seus valores de justiça, sem levar em consideração os
argumentos jurídicos na defesa dos direitos e garantias fundamentais das partes no
processo. Sustenta a decisão no subjetivismo e na discricionariedade do juiz e não
no discurso argumentativo dos sujeitos do processo para a adequada desicão judicial.
(BARROS, 2009, p. 34)

A mudança do art. 156, dessa forma, veio para tornar o processo penal brasileiro ainda
mais inquisitivo, mudou-se o texto do código para pior. Trata-se de um modelo inquisitivo
que insiste em permanecer e que não se mudará por reformas pontuais e demanda mais que a
mudança da lei para mudar. Porém, no caso em analise a mudança foi inoportuna e caminhou
no sentido oposto do da constituição, enquanto esta separou as funções de acusar, julgar e
defender, como já visto no presente trabalho, a nova redação do artigo em análise cuidou de
misturar ainda mais as funções de acusar e julgar, tendo distanciado mais ainda o Código de
Processo Penal do quadro desenhado desde 1988.
Por sua vez a nova redação do art. 157 regulamentou o princípio constitucional da
vedação das provas ilícitas, adotando a teoria dos frutos da árvore envenenada (provas ilícitas
por derivação) e estabelecendo critérios para a admissibilidade da prova obtida por fontes
independentes. O projeto que deu origem à lei 11.690 previa o impedimento do juiz que
conhecesse da prova ilícita, tendo essa regra de exclusão do juiz sido vetada pelo Presidente
da República em razão do princípio da celeridade. O veto manteve a possibilidade de o juiz
formar a decisão com base na prova ilícita, bastando que não utilize dela para fundamentar
sua decisão, bastando para tanto que preencha o vazio do papel branco com argumentos
retóricos que camuflem a verdadeira fonte de sua decisão. É confiar demasiadamente na
capacidade e honestidade do julgador mantê-lo competente para julgar o caso penal, mesmo
384

após ter contato com a prova ilícita e desconhecer sua face humana. O juiz não é um
computador que é capaz de deletar a informação de que teve conhecimento, por mais que
tenha excluído a prova ilícita dos autos não a excluiu de sua memória e tal conhecimento fará,
ainda que inconscientemente, parte de sua decisão.
A reforma do artigo 212 também se manteve fiel à tradição inquisitória do processo
penal pátrio. De um lado o novo caput adotou o modelo de arguição das testemunhas cruzado
com as partes formulando suas perguntas diretamente às testemunhas. Porém, o parágrafo
único permite ao julgador complementar a inquirição sobre os pontos não esclarecidos. Trata-
se de uma tentativa de limitar as perguntas do juiz que, entretanto, caiu como luva em nossa
mentalidade inquisitória e permitiu que o juiz produza provas e formule perguntas à
testemunha ao argumento de estar esclarecendo pontos. O citado parágrafo deveria delimitar
as perguntas do juiz às respostas da testemunha e impossibilitar qualquer inovação.
O art. 217 também foi reformado para possibilitar que o réu seja retirado da sala de
audiências caso sua presença cause constrangimento à testemunha. Infelizmente, ainda não se
percebeu que o réu não é mero objeto do processo, mas o principal interessado na resolução
do caso penal, que será ele que sofrerá as consequências do provimento. A lei 11.690, ao
determinar a retirada do réu da sala de audiências trata o principal interessado como objeto do
processo, tal qual sempre foi tratado no Brasil e tal qual é típico de modelos inquisitoriais.
Poderia o legislador ter adotado soluções alternativas, como o fez o Código de Processo Penal
chileno que faculta ao acusador proteger a testemunha, seja impedindo o contato visual com o
réu ou a travestindo para que não seja reconhecida.
Através da lei 11.719, de 20 de junho de 2008, foram alterados os procedimentos do
Código de Processo Penal, além de disposições referentes à mutatio e emendatio libelli. A
primeira modificação da lei citada foi do artigo 257 do Código de Processo Penal,
estabelecendo que a ação penal pública é de atribuição privativa do Ministério Público,
limitando à repetição do texto constitucional. O novo artigo se limita à repetição da
constituição, porém, no plano infraconstitucional, esclarece a posição de parte do Ministério
Público na ação penal, o que seria fundamental para a construção de um modelo acusatório.
Porém, a crítica de Flaviane de Magalhães Barros (2009, p.80-81) é certeira ao afirmar
que a adoção de um sistema acusatório implicaria em extinguir todas as intervenções judiciais
no processo penal, não convivendo com hipóteses como a possibilidade de se condenar sem
pedido da parte acusadora (art. 385). Assim, segue a autora, que a adoção de um modelo
acusatório deve seguir ao fim de qualquer poder instrutório do juiz e da possibilidade de ele
exercer qualquer função de acusação supletivamente ao Ministério Público.
385

As mudanças na emendatio libelli (art. 383) e na mutatio libelli (art. 384) perderam
outra grande oportunidade de aproximar o modelo infraconstitucional pátrio de um sistema
processual de partes, reforçando ainda mais o atual quadro de um sistema inquisitorial. Dessa
forma, manter o juiz podendo alterar a capitulação do crime na sentença, para julgar em
desconformidade com a acusação, de um lado, ou permitir que o juiz discorde na narrativa
fática da acusação para determinar o acréscimo de fatos não contidos na denúncia significa
manter o juiz no centro do procedimento e, consequentemente manter o sistema inquisitorial
vivo. No caso da mutatio libelli a questão é ainda mais grave, pois, a simples determinação
pelo juiz de que o Ministério Público adite a acusação já denota a formação do convencimento
do juiz antecipado, sendo que os atos procedimentais a serem realizados apenas servirão para
legitimar a decisão e fazer aparentar a existência da obediência ao contraditório e da ampla
defesa, transformando o procedimento em um jogo de cartas marcadas para se chegar no
resultado desejado pelo juiz.
Por sua vez, a alteração promovida no art. 394 deixa clara a vertente teórica adotada
pela lei 11.719 na teoria da relação jurídica, que encontra guarida em toda a reforma
processual penal de 2008 e que também encontra abrigo na própria estrutura do Código de
Processo Penal. Divide-se o procedimento em comum e especial, tratando o procedimento
como espécie de processo, tal qual defendido pelas correntes instrumentalistas e de forma
oposta ao marco teórico adotado no presente trabalho de conceber o processo como a espécie
do gênero procedimento para designar a espécie de procedimento desenvolvida em
contraditório, como discorremos no primeiro capítulo deste trabalho.
Outra alteração importante e que toca diretamente o direito de defesa e,
consequentemente os sistemas processuais, se deu nos artigos 396 e 399. Segundo o projeto
de lei nº 4.207/2001 que deu origem à Lei 11.719, o art. 396 não previa o recebimento da
denúncia, apenas determinava que o juiz, ao ser oferecida a denúncia determinasse a citação
do réu para apresentar resposta e, somente com ela a acusação seria recebida, conforme o art.
399 do Código (redação da lei em análise). Contudo, no processo legislativo foi inserida a
locução ―recebê-la-á‖ no artigo 396, induzindo que a denúncia deveria ser recebida antes da
manifestação da defesa, enquanto o art. 399 prevê o recebimento da denúncia após a resposta.
Esse fato ensejou um duplo momento de recebimento da denúncia, ensejando o fenômeno
denominado por Aury Lopes Júnior (2018, p. 727) de mesóclise da discórdia. Segundo
explica o professor porto-alegrense, o projeto criava uma fase intermediária, de forma que a
acusação somente seria recebida após a manifestação da defesa técnica em um juízo prévio de
admissibilidade da acusação e inserindo o contraditório no recebimento da denúncia, o que
386

acabaria com seu recebimento automático através de despachos padronizados, sem


fundamentação e descumpridores da constituição. A análise do projeto de lei 4.207 demonstra
que com o oferecimento da denúncia, se não fosse o caso de sua rejeição sumária, o juiz
deveria determinar a citação do réu para apresentar resposta escrita, que, sendo apresentada os
o Ministério Público deveria se manifestar sobre ela e podendo realizar diligências antes de
receber a denúncia (art. 395), após essa fase é que a acusação seria ou não recebida, em
contraditório, com ampla participação das partes. Contudo, o (in)devido processo legislativo
alterou a redação dos artigos 395 e 396 e manteve a redação do art. 399, acabando com a fase
intermediária e mantendo o recebimento da denúncia sem contraditório. Em suma, a alteração
legislativa manteve tudo como antes, centralizou no juiz o recebimento da denúncia que será
feito através da análise da acusação e dos elementos do inquérito, fomentou o contato do juiz
com os elementos de prova produzidos na primeira fase do procedimento, possibilitando a
formação antecipada da decisão (quadro mental paranoico) e acabou com a possibilidade da
participação das partes na construção da decisão que recebe a acusação. Dessa forma,
manteve-se a estrutura original do código, mudaram-se as palavras, mas não a substância,
mantendo o procedimento penal inquisitorial e afastado do contraditório.
A formação da etapa intermediária é de suma importância ao processo penal
acusatório, pois nela a decisão do recebimento ou não da denúncia é tomada em contraditório.
Melhor seria que essa decisão fosse tomada em audiência através do debate oral entre as
partes e por juiz diverso do juiz que faria a instrução, pois trataria sobre os elementos do
inquérito e que deveriam ser, após o recebimento da acusação, excluídos dos autos. Porém, se
sequer se conseguiu criar uma etapa intermediária escrita, percebe-se que uma etapa
intermediária oral com a exclusão dos autos do inquérito ainda é um sonho distante da
realidade brasileira que padece da mentalidade inquisitória e não consegue se desvencilhar
dela principalmente pelo desconhecimento de outras realidades e outras possibilidades.
Em conformidade com o que foi dito no capítulo inicial, a decisão no paradigma do
Estado Democrático de Direito não é mais fruto da mente solitária do juiz, mas construção
conjunta das partes e do próprio julgador em contraditório. Assim sendo, não se pode ter uma
decisão que receba a denúncia proferida antes da apresentação da resposta à acusação, eis que
isso representaria uma decisão com base apenas nos argumentos de uma das partes (acusação)
e excluiria a participação da outra parte (defesa), sendo proferida sem obediência ao
contraditório e, portanto, em descompasso com a Constituição. Então, em conformidade com
o marco teórico adotado no presente trabalho, temos que a decisão que recebe ou rejeita a
denúncia somente poderia ser tomada após a manifestação das partes, em contraditório. Para
387

tanto, é imprescindível a criação de uma fase intermediária no processo penal para que se
discuta, preferencialmente, em audiência e oralidade, o recebimento ou não da acusação, o
que implicaria na diminuição do número de procedimentos iniciados de forma desnecessária,
a quantidade de habeas corpus para trancamento de ações penais levianas e reduziria os custos
e o tempo de um procedimento, além de efetivar garantias fundamentais e dar maior eficácia
ao que a Constituição dispõe.
Outra modificação promovida pela lei 11.719, agora no atual artigo 400 do Código137,
e que efetivou garantias fundamentais foi a unificação da audiência de instrução e julgamento,
estabelecendo audiência única determinando a ordem de oitiva das testemunhas, primeiro as
da acusação e depois as da defesa e, principalmente, alterando o momento procedimental do
interrogatório do acusado do primeiro ato da fase judiciária para seu derradeiro ato, que
ocorrerá após a instrução e antes dos requerimentos de diligências finais e das alegações
finais. Tais modificações potencializam a ampla defesa e trazem maior efetividade para a
estrutura do interrogatório construída pela lei 10.792/2002, eis que o réu somente será
interrogado quando toda a prova já houver sido produzida.
Por fim, ao final da audiência a lei 11.719 adotou a oralidade dos debates como regra
(art. 403), somente admitindo as alegações finais escritas de maneira excepcional em relação à
complexidade do feito ou a existência da necessidade de realização de diligências decorrentes
da instrução requeridas pelas partes. A oralidade é uma das características secundarias do
processo penal de partes, sendo de suma importância sua implementação e a construção da
decisão através do debate em contraditório, contudo, a prática forense tem transformado em
letra morta a determinação da lei. As alegações escritas, e que nem sempre são levadas em
conta na decisão, vem sendo adotadas como regras e o debate deixado em segundo plano,
infelizmente não vem se levando a sério o princípio do contraditório e a democracia no
processo penal vem sendo colocada à margem em benefício da eficiência, de estatística ou
simplesmente da maior comodidade.
A estrutura do interrogatório sofreu nova alteração com a edição da lei 11.900, de 08
de janeiro de 2009 visando a regulamentação do interrogatório por sistema de
videoconferência. Assim, foram acrescidos parágrafos no art. 185 do Código, determinando
inicialmente a realização do interrogatório do réu preso no estabelecimento prisional (§1º), o
que, deveria ter sido revogado uma vez que restou impossível de ser realizado após a reforma
dos procedimentos na forma da lei 11.719/2008, que estabeleceu a realização de uma

137
O rito sumário ganhou contornos similares com diferença apenas no número de testemunhas e no prazo para a
realização de audiência de instrução e julgamento (art. 531).
388

audiência única para toda colheita de provas e interrogatório ao final, não sendo compatível
esse rito com a realização do interrogatório no estabelecimento prisional. Em caráter
excepcional, o juiz passou a poder determinar, de ofício ou a requerimento das partes, a
realização do interrogatório por sistema de videoconferência (§2º), mediante decisão onde
estivessem presentes um dos seguintes requisitos: I - prevenir risco à segurança pública,
quando exista fundada suspeita de que o preso integre organização criminosa ou de que, por
outra razão, possa fugir durante o deslocamento; II - viabilizar a participação do réu no
referido ato processual, quando haja relevante dificuldade para seu comparecimento em juízo,
por enfermidade ou outra circunstância pessoal; III - impedir a influência do réu no ânimo de
testemunha ou da vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por
videoconferência; IV - responder à gravíssima questão de ordem pública. Os requisitos para a
realização do interrogatório por videoconferência são propositalmente vagos e permitem que
o juiz os adote, segundo as próprias conveniências, sendo que a suspeita de pertencer a
organização criminosa vem sendo usada como palavra mágica para tornar o réu inimigo
público e com isso restringir seus direitos. Assim, a adoção do interrogatório por
videoconferência acaba sendo uma forma de dificultar o contato do réu com a prova a ser
produzida em audiência única para tal finalidade e, consequentemente de exercer seu direito
de defesa. Não há dúvidas que a videoconferência pode ser útil para encurtar as distâncias das
testemunhas que residem fora do local onde o procedimento tramita e possibilitar ao juiz e às
partes que possam ter contato com as testemunhas distantes, reduzindo os deslocamentos, mas
entendemos que o contato do réu com as provas e com o juiz que o julgará é fundamental para
o amplo exercício do direito de defesa.
Quando os projetos de lei de 2001 pareciam abandonados e as atenções estavam
voltadas para os trabalhos da discussão do Projeto de Lei 156/2011, elaborado pela Comissão
nomeada em junho de 2008 para a reforma integral do Código de Processo Penal, ressurgiu o
Projeto de Lei 4.208 que foi aprovado e entrou em vigor pela lei 12.403, de 04 de maio de
2011 para alterar completamente o sistema de prisões. A nova lei acabou com o antigo
modelo binário de prisões, no qual ou o acusado/investigado estava preso cautelarmente
durante o procedimento criminal ou estava amplamente solto, podendo no máximo ter
prestado fiança. Dessa forma, a nova lei criou um rol de medidas cautelares diversas da
prisão, tentando possibilitar que, diante do caso, concreto seja evitada a prisão adotando
mediadas cautelares não restritivas de liberdade.
Dessa forma, destacou Aury Lopes Júnior (2011, p. 3-4), a lei apresenta como
destaques a adoção do sistema polimorfo, rompendo com o reducionista modelo binário de
389

prisão cautelar ou liberdade provisória e oferecendo um rol de medidas alternativas à prisão


preventiva; revitalizou o sistema da fiança, que estava completamente em desuso; e colocou o
flagrante em seu lugar de medida pré-cautelar preparatória da prisão preventiva, acabando
com a possibilidade de a prisão preventiva perdurar por si só.
Assim sendo, a nova redação do art. 282 do código estabeleceu um binômio entre
necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal ou para
evitar a prática de novos crimes e a adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias
do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado, ou em linhas gerais entre necessidade X
adequação da medida cautelar que deveria reger todo sistema de cautelares pessoais
estabelecido.
Contudo a lei 12.403 perdeu uma grande oportunidade de caminhar em direção a um
modelo processual protagonizado pelas partes e determinar que as medidas cautelares fossem
decretadas apenas se requeridas pela parte acusadora. Contudo, não foi o que fez a lei, sendo
que o §2º do art. 302 permite que as medidas cautelares sejam decretadas de ofício ou a
requerimento das partes, o mesmo prevendo em relação à prisão preventiva (art. 311),
colocando o juiz em papel de protagonismo em relação à tomada das decisões cautelares no
processo penal, podendo também de ofício ou a requerimento alterar a medida cautelar ou até
decretar a prisão preventiva em caso de descumprimento da medida (§4º). O contraditório
acabou sendo levemente fomentado no §3º do artigo 302 que determinou que, caso a urgência
da medida permita, o juiz deveria ouvir a parte sobre eventual pedido de cautelar.
Outra chance perdida pela lei 12.403 foi a de extirpar os requisitos da prisão
preventiva que não possuíam nenhum embasamento cautelar, como a garantia da ordem
pública e da ordem econômica, o primeiro presente desde a redação original do Código de
Processo Penal e os dois sem nenhuma base cautelar. Porém, manteve-se a possibilidade da
prisão preventiva para garantia da ordem pública e da ordem econômica no rol de requisitos
da prisão preventiva (art. 312) e mais do que isso, a prisão preventiva para garantia da ordem
pública vem sendo cada vez mais utilizada, representando estando presente na maioria
absoluta das decretações, posto que se trata de um conceito vago e esponjoso que pode ser
preenchido da forma que o juiz entender necessário, mantendo a prisão em suas mãos de
forma que baste uma boa justificativa retórica para atender formalmente o requisito. Ademais,
dispõe o art. 315 que a decisão que decretar a prisão preventiva deverá ser meramente
motivada, como foi desenvolvido no primeiro capítulo. A decisão motivada não é sinônimo
de decisão fundamentada, é preciso mais que a mera motivação para a legitimidade do ato
decisório, é fundamental que a fundamentação da decisão, ou seja, a análise séria e detida de
390

todas as teses levadas pelas partes e capazes de alterar a decisão.


O art. 306 na forma trazida pela lei 12.403 estabeleceu que a defensoria pública deve
ser comunicada da prisão do indivíduo que não possuir advogado e não indicar seu procurador
no momento de sua prisão. Contudo, apesar de a comunicação à defensoria pública
representar um avanço em termos da impugnação da prisão ilegal ou desnecessária, temos que
a comunicação posterior à lavratura do auto de prisão em flagrante delito cria uma séria
desigualdade processual, uma vez que o preso é ouvido sem a presença de advogado, vendo-
se impedido de exercer a sua defesa na amplitude constitucionalmente exigida. Não se pode
simular o respeito aos direitos fundamentais, ainda que representando um ganho como com a
lei em análise, deve-se implementá-los em sua plenitude, assim, o Estado deveria prover
defensores públicos em todas as unidades policiais responsáveis pelo primeiro atendimento ao
preso já no momento da formalização de sua prisão, possibilitando ao preso defesa técnica
durante todo o ato e já iniciando a atuação da defesa técnica que será base para todos os atos
seguintes.
O art. 310 determina que o juiz ao receber o auto de prisão em flagrante delito deverá
tomar uma das seguintes decisões: relaxar a prisão ilegal, conceder liberdade provisória
fixando ou não medida cautelar alternativa (art. 319) ou decretar a prisão preventiva nos casos
que essa medida extrema for necessária. Contudo, o juiz continua a decidir com base em
papéis, o que viola o disposto no art. 7º, inciso 5, do Pacto de São José da Costa Rica, que
determina que o preso deva ser levado à presença do juiz para, em audiência e ouvida sua
defesa, seja decidido sobre sua liberdade. Visando adequar a exigência de levar o preso à
presença do juiz trazida pelos tratados internacionais de direitos humanos com o código de
processo penal, o Conselho Nacional de Justiça editou a resolução nº 213, de 15 de dezembro
de 2015, portanto com mais de duas décadas de atraso, determinando a realização das
chamadas audiências de custódia. Apesar de louvável a inciativa e extremamente necessária,
principalmente para verificar a legalidade da prisão e eventuais abusos policiais, a instituição
da audiência de custódia não se deu da forma mais adequada. Primeiro porque se trata de
norma processual e, como tal, sujeita à reserva de lei nos termos do art. 22 da Constituição.
Segundo porque o art. 1º da referida legislação estabelece que as audiências de custódia são
aplicadas apenas à prisão em flagrante, como se não houvesse abusos nos cumprimentos de
mandados de prisão temporária e preventiva, o ideal seria estabelecer uma audiência de
controle de todo tipo de detenção, onde se averiguasse sua legalidade e a necessidade de sua
manutenção, em contraditório, dando ao preso o direito de se defender e de ter defesa técnica.
A referida resolução fixou um prazo de 90 dias para que os tribunais implementassem as
391

audiências de custódia no âmbito de suas respectivas jurisdições, contudo, passados quase três
anos da entrada em vigor da resolução ainda não houve a implementação em inúmeras
comarcas, fazendo com que presos tenham mais ou menos direitos segundo o local de sua
prisão.
Ou seja, apesar de a lei 12.403 ter reformado todo o sistema de prisões e medidas
cautelares diversas, buscando sua adequação constitucional, pouca coisa mudou em relação ao
uso da prisão no Brasil. Continua-se prendendo muito e muito mal; a população carcerária
brasileira cresce vertiginosamente. Nesse contexto, a lei citada, por melhor que pudessem ser
suas suas intenções, pouco mudou na realidade carcerária, pois a cultura do encarceramento e
a mentalidade inquisitorial ainda dominantes fazem com que aqueles que antes eram presos
continuem sendo encarcerados e os que antes eram libertados agora recebam medidas
cautelares. Ou seja, até mesmo uma lei com intenções boas, vem sendo adotada de modo a
tornar a aplicação do direito ainda mais dura.
A lei 12.694, de 24 de julho de 2012, instituiu a possibilidade de julgamentos
colegiados em primeiro grau de jurisdição quando o procedimento tratar de crimes que
envolvam organizações criminosas (art. 1º). Essa lei, além de permitir a formação do
colegiado em primeiro grau de jurisdição, também restringe direitos, criando a possibilidade
de juízos secretos, já que permite reuniões sigilosas (art. 1º, §4º), decisões secretas, uma vez
que apenas a decisão vencedora é publicada e não se faz referência à eventual voto vencido.
Tal lei, contudo, deve ser analisada em conjunto com a lei 12.850, de 02 de agosto de 2013
que regulamenta a persecução penal em casos de organização criminosa e prevê a colaboração
premiada (art. 4º), eufemismo para a adoção da delação premiada, como meio de investigação
e que como vimos se trata de mais um método adotado já na inquisição eclesiástica para a
busca desenfreada pelo mito da verdade real. Tais normas elegem os acusados de integrar
organizações criminosas como inimigos públicos e permite que eles tenham direitos e
garantias processuais restritas em busca de sua condenação a todo preço. Mudam os hereges
mas a fogueira da inquisição segue ardendo.
Importante dizer que nos crimes que envolvam tráfico de pessoas, seja interno ou
externo, o juiz poderá decretar medidas cautelares de ofício, nos termos do art. 8º da lei
13.344, de 06 de outubro de 2016. Contudo, tal medida torna-se inteiramente desnecessária
uma vez que o Código de Processo Penal já previa a possibilidade da decretação de medidas
cautelares pelo juiz, sem requerimento das partes. Trata-se de mais uma medida que coloca o
juiz como parte integrante do sistema de segurança pública e o retira do local que lhe fora
reservado pela Constituição, ou seja, de mais uma medida inquisitorial inserida no direito
392

processual penal pátrio.


Por fim, a última alteração do Código de Processo Penal proporcionada pela lei
12.434, de 12 de abril de 2017 proibiu o uso de algemas em mulheres grávidas ―durante os
atos médico-hospitalares preparatórios para a realização do parto e durante o trabalho de
parto, bem como em mulheres durante o período de puerpério imediato‖ (BRASIL, 2017).
Tal lei reflete bem a mentalidade inquisitorial que ainda assombra o processo penal brasileiro.
A lei seria desnecessária em sociedades ou em épocas minimamente civilizadas, porém, dada
a mentalidade inquisitória, a necessidade da lei mostra que agentes públicos responsáveis pela
custódia de mulheres grávidas tinham como possível a fuga da parturiente durante o trabalho
de parto ou logo após o mesmo, mantendo-a algemada, presumindo sua culpa, violando a
presunção de inocência e, sobretudo, a dignidade da pessoa humana. Tais condutas seriam
inaceitáveis em sociedades medievais e, infelizmente, ainda eram repetidas nos dias de hoje,
mostrando que não estamos muito diferentes do que fomos no passado.
Apesar de inúmeras mudanças na lei, elas não foram capazes de mudar o sistema, e
nem o serão. É preciso mudanças mais profundas que apenas na lei. Nenhuma das mudanças
foi capaz de atacar o núcleo do sistema inquisitorial, mantendo-se o juiz como principal gestor
da prova e o inquérito como meio de formação de seu convencimento e que deve acompanhar
a denúncia quando servir de base para ela, prejudicando a instrução processual e a
transformando em um jogo de cartas marcadas onde reina a simulação e o fingimento.
Vê-se pela análise do processo penal ao longo do tempo que várias foram as alterações
do processo penal ao longo desses quase oitenta anos de sua vigência. A maior parte delas
ocorridas após a Constituição da República, algumas para tentar adaptar seu texto às novas
exigências constitucionais, outras nem tanto. Apenas sob a vigência da atual Constituição 33
novas leis alteraram o Código de Processo Penal, porém, nenhuma das reformas pontuais foi
capaz de alterar sua base genética autoritária, responsável pela formação de gerações de
juristas com cérebros formatados para servir ao modelo inquisitorial sem sequer se dar conta
disso. Conclui-se, portanto, que alterações pontuais serão insuficientes para mudar o sistema
inquisitorial vigente, porém, como será visto, será preciso mais que uma mudança da lei para
tal objetivo.

8.3.1 A inadequação de um código ditatorial ao regime democrático e a necessidade de um


novo Código de Processo Penal em conformidade com as exigências democráticas

O Código de Processo Penal brasileiro é fruto do regime ditatorial de Getúlio Vargas e


393

de seu jurista Francisco Campos. Nesse contexto, representa uma obra fundada no
autoritarismo e que carrega nele seus valores. Assim, reflete uma concepção de processo
penal através de um conflito imaginário entre a sociedade e o indivíduo, onde a primeira deva
prevalecer em detrimento do segundo. A Constituição de 1937, por sua vez também não
possuía como seu eixo principal a preocupação com os direitos e garantias individuais e não
estabelecia a divisão das funções processuais de cada um dos sujeitos do processo penal.
Ainda deve-se juntar o fato de que o direito processual penal brasileiro é autoritário e
inquisitorial desde o tempo em que eram aplicadas as normas do direito português, o que
gerou uma cultura, passada de geração em geração, autoritária. Esse autoritarismo reflete na
prática do processo penal e nas relações dos órgãos de persecução penal com os indivíduos.
Ou, como lembra Marco Aurélio Nunes da Silveira: ―(...)sempre respiramos o processo penal
essencialmente inquisitório, marcado pela forma escrita, sem a devida separação entre as
fases preliminar e do processo e fundamentalmente centrado nas prerrogativas probatórias
oficiosas.‖ (SILVEIRA, 2018, p. 124)
Nesse contexto cultural inquisitório, o Código de Processo Penal vigorou por quase
oito décadas passando por quatro ordenamentos constitucionais diferentes, sendo dois
democráticos (1946 e 1988) e dois autoritários (1937 e 1967), servindo bem aos ditadores e,
por isso, não servindo à democracia.
Por sua vez, a Constituição de 1988 provocou uma reviravolta em termos de processo
penal, eis que, pela primeira vez o princípio da presunção de inocência foi previsto, junto dele
ainda estabeleceu claramente a função do Ministério Público e da defesa, bem como do
judiciário, adotando uma estrutura acusatória nunca antes adotada pelas constituições
anteriores. Por sua vez, a organização do texto constitucional com os direitos individuais
trazidos para o início do texto mostra a nova ordem do Brasil, onde o indivíduo sempre virá
antes do Estado, sendo este que deve proteger e servir aquele. Nesse diapasão, a Constituição
estabeleceu um denso modelo de direitos e garantias fundamentais que têm por escopo
proteger o indivíduo dos abusos do Estado. Ou, como afirma Giovani Frazão Della Villa:
De um lado, uma Constituição que prevê um amplo rol de direitos e garantias aos
cidadãos, em face de um Código de processo penal inquisitório, autoritário e
arbitrário, que precisa urgentemente ser substituído, a fim de adequar-se à Carta
Magna. (VILLA, 2017, p. 144)

Nada adiantará ter um Ministério Público em lugar constitucionalmente privilegiado,


estabelecido como titular da ação penal pública e com estrutura e autonomia próprias para se
constituir um sistema processual de partes (BERCLAZ, 2016, p. 95). É preciso ir além, é
394

necessário que esse Ministério Público assuma seu papel constitucional e que a magistratura
se coloque em seu devido (constitucional) espaço de atuação. É preciso que cada um faça seu
papel, constitucionalmente, estabelecido (COUTINHO, 2009b; 2016). Porém, o processo
penal brasileiro vive uma verdadeira crise existencial, se de um lado tem-se uma constituição
que determina o lugar de cada um dos sujeitos processuais, de outro tem-se um código que
coloca o julgador na posição de super-sujeito lhe dando poderes para atuar e substituir as
partes, principalmente a acusação, ao seu bel-prazer (SANTIAGO NETO, 2017b).
A Constituição estabeleceu o modelo constitucional de processo, determinando que o
processo seja regido pelos princípios do contraditório, da ampla argumentação, do terceiro
imparcial e da fundamentação das decisões. Contudo, o Código, seguindo a estrutura que vem
desde as normas inquisitoriais herdadas de Portugal, possui uma estrutura inquisitorial na qual
o contraditório é meramente formal, a ampla defesa é restrita à segunda fase quando todos os
elementos já foram produzidos na fase inquisitorial, o juiz tem poderes amplos na produção
da prova e deixa de ser imparcial e basta a motivação das decisões. De nada adiantará o texto
constitucional ser democrático e estabelecer as normas processuais se continuarmos a dar
maior relevo ao Código que a própria Constituição. É preciso, e já passou da hora, de
levarmos a Constituição a sério. A Constituição e o processo penal deveriam caminhar em um
só sentido sendo meios de se garantir e implementar direitos fundamentais e assegurar o
reinado da presunção de inocência, porém, a atual estrutura brasileira o Código e a
Constituição não são compatíveis, enquanto um estabelece um modelo voltado para a
condenação em uma estrutura que foi construída no conflito virtual entre interesse social e a
defesa individual, a outra se constitui como instrumento de proteção dos direitos individuais
frente ao próprio Estado.
Nesse contexto, um Código de Processo Penal forjado em um regime ditatorial e que
carrega consigo o DNA de uma ditadura, não pode adotado por um regime democrático. O
Código e a Constituição partem de pressupostos antagônicos e impossíveis de serem
conciliados, carecendo de um código que possa ser integralmente forjado sob os ideais
democráticos e que tutele efetivamente um modelo democrático em conformidade com a
Constituição. Vale lembrar as lições de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:
O processo penal, sufocado por uma legislação fascista (copiada na maior parte do
Código de Rocco de 1930) e cientificamente cega, acaba por receber uma vestimenta
(sistemática) costurada para um senhor mais rico, alto, velho e obeso. Entrou, desse
modo, mas não serviu. Deixou à mostra pontos cruciais que não serão sanados,
cobertos, tão somente com uma nova legislação, um novo traçado. No fundo, o
espírito que faz parte da vestimenta e deve mudar junto, sob pena da alteração ser
aparente e as falhas, em elementos essenciais, continuarem as mesmas.
(COUTINHO, 1998, p. 122)
395

O Código de Processo Penal deposita no juiz as fichas de pacificador social, quase um


super-herói, colocando-o na posição central do processo e relegando as partes ao papel
secundário e de mero assessoramento. E o juiz acaba acreditando nesse papel e achando fazer
parte do sistema de segurança pública ocasionando sua saída do lugar que a Constituição
reservou à magistratura, deixando de ser um garantidor dos direitos fundamentais. E o Código
fomenta tal posição, mesmo após as reformas o juiz é colocado em patamar central, mantendo
a estrutura inquisitorial, sendo que algumas das reformas potencializaram ainda mais essa
inquisitorialidade, como salientou Jacinto Nelson de Miranda Coutinho em outra
oportunidade:
O CPP – e o sistema como um todo – como poucos outros instrumentos legais,
oferece condições quase ilimitadas para o agir jurisdicional nesse âmbito (de busca e
produção da prova), em qualquer das fases processuais, agora ainda mais ressaltado
pelas regras do art. 156 (CPP), com redação da Lei nº 11.690, de 09.06.08,
comprovação de ser o sistema, na base, inquisitorial (...)
Com tamanha liberdade probatória, o juiz, no sistema processual brasileiro – e basta
apontar em tal direção – pode fazer quase tudo o que pretender. Isso se dará no mais
das vezes, dentro daquilo que Franco Cordero chamou de lógica deforme (...)
(COUTINHO, 2009b, p. 111)

Ademais, o próprio Estado Democrático de Direito acaba sendo incompatível com o


sistema inquisitório, eis que este concentra poderes nas mãos de um só sujeito enquanto a
democracia exige participação e igualdade como seus primeiros pressupostos. Assim, um
Código que é centrado num modelo inquisitorial, não poderá viger num regime democrático,
trata-se de uma grave contradição e que deve ser sanada, porém, trinta anos já se passaram da
promulgação da Constituição e ainda não se tem nem sinal de uma efetiva mudança sistêmica
do Processo Penal brasileiro. Nesse sentido, a obra de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é
irretocável:
Eis, então, por que a democracia é incompatível com o sistema inquisitório. Afinal,
se no processo do sistema acusatório retira-se do juiz a iniciativa probatória, e, com
isso, produz-se um alheamento a priori dele do conhecimento referente ao caso
penal (e com isso favorecendo que não decida antes das questões estarem
satisfatoriamente conhecidas), no sistema inquisitório dá-se o contrário, Construído
para ser assim, empurra o juiz na direção do conhecimento sob o fundamento que de
maneira mais larga pode se abeberar das fontes e, por isso, em conhecendo mais e
melhor, poderá julgar melhor. Isso é falso, como a história sempre mostrou, mas
ideologicamente muito eficaz, tanto que continua em vigor e seduzindo os
defensores do punitivíssimo exacerbado e da repressão sem limites. (COUTINHO,
2018, p. 118)

Vê-se pela lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho o Código que serviu a
ditaduras agora segue servindo a ideologia punitivistas que se instaurou no país, onde o
discurso de repressão cresce e não se percebe que se pune de forma seletiva e arbitrária uma
396

parcela significativa da população marginalizada, será demonstrado no derradeiro capítulo. A


cultura punitiva e o anseio pela punição a qualquer preço sustentam a vigência do código, e o
preço disso são vidas, a liberdade e a própria constituição.
Nesse contexto, possuímos uma sociedade autoritária e punitivista, que precisa de
consumir vingança à custa de sangue, para tal um código inquisidor e repressivo a serve bem
em seus anseios punitivos (VOLPI, 2018, p. 368), pouco importando, nesse contexto, os
parâmetros constitucionais. A constituição é colocada de lado como se de nada valesse, o que
vale é o endurecimento do sistema contra um falacioso combate ao crime e aos criminosos,
para os quais não se deveria dar direitos.
Dessa forma, a mudança do sistema punitivo, para a adoção de um sistema
efetivamente democrático com a valorização da Constituição e a percepção de que seus
princípios e garantias são conquistas de todos e para todos os indivíduos no qual a exceção
para um é a porta para se atingir a todos, é a porta de entrada para a mudança. Porém, por
mais que o regime ditatorial tenha acabado em 1984, o mesmo era para ter sido sepultado em
1988, porém, não parece ter sido. Assim, é fundamental uma reforma integral do processo
penal, trazendo uma mudança radical de sistema para acabar com o atual sistema inquisitório
e construir um novo sistema processual de partes, onde os sujeitos sejam protagonistas de seu
destino e a decisão seja produto da construção conjunta.
Estas reformas são compatíveis com a transição para a Democracia, mudam a face
do processo penal e embora realizadas a partir do início dos anos 90, não foram
ainda concluídas.
Tais mudanças, todavia, enfrentam alguns obstáculos: a) a mentalidade inquisitória,
ainda forte, só compreende alterações na estrutura do processo penal quando
enxerga o aperfeiçoamento do sistema punitivo. Assim, há a tendência a associar-se
o surgimento de um novo Código de Processo Penal, conforme o modelo acusatório,
ao aumento do número de casos julgados e réus condenados. Esta ―consequência‖
não é automática e as transformações não são produzidas tendo em vista este
objetivo, mas tão só tornar operacionais as garantias declaradas nas várias
Constituições e nas Convenções Internacionais de Direitos Humanos (com destaque
para o Pacto de São José da Costa Rica). (PRADO, 2006, p. 63-64)

Em complemento, afirmou Ricardo Jacobsen Gloeckner:


Após a Constituição de 1988, o projeto estabelecido de uma democracia processual
penal não se desenvolveu. A perspectiva de uma mudança na orientação político-
criminal, em seus aspectos processuais não se confirmou. Ao invés disso, o tom
mais otimista relativamente às garantias processuais penais, paulatinamente foi se
esvaindo e perdendo a força. Do garantismo compromissário, capaz de alterar
substancialmente as praticas punitivas, restou apenas a retórica manualística,
responsável por introitos aos ―princípios gerais do processo penal‖, que não
encontram ressonância na práxis forense. (GLOECKNER, 2017, p. 242)

O Brasil, após a ditadura, passa por um lento processo de reforma, que fica ainda mais
difícil pela falta do estabelecimento de práticas de justiça de transição para reconhecer os
397

erros do passado e impedir sua repetição no futuro. Nesse contexto de transição, a sede
punitiva ainda torna a transformação ainda mais difícil, mantendo a democratização do
processo penal como um sonho distante, porém cada vez mais necessário e urgente. O fim
histórico da ditadura militar não significou o fim da ditadura do processo penal brasileiro, que
somente vai ocorrer com sua refundação, nos termos propostos por Fauzi Hassan Choukr
(2017b). Porém, a refundação do processo penal brasileiro vai muito além que apenas da
mudança do Código. Séculos de uma prática inquisitória deixaram marcas profundas nos
operadores do direito processual penal brasileiro, muitos deles não conseguiram sequer
perceber a reviravolta promovida pela Constituição e seguem a interpretá-la em conformidade
com o Código autoritário, mantendo o espírito autoritário mesmo trinta anos depois da
vigência da Carta de 1988.
No Brasil não houve uma ruptura com o passado autoritário. Antes, a transição
proporcionou a acomodação entre os setores governamentais, que representavam
parte da elite, e algumas das principais forças oposicionistas, de modo tal que
estruturas e mesmo pessoas do antigo regime se incorporaram ao novo. (PRADO,
2006, p. 37)

Essa falta de rompimento com o autoritarismo dos governos passados, fez com que o
modelo constitucional tenha mudado formalmente, mas de outro lado proporcionou a
manutenção das forças políticas sem que se rompesse realmente com as práticas autoritárias.
O processo penal autoritário permaneceu justamente por essa razão: não se teve a
preocupação com a adoção e a efetivação das garantias constitucionais.
Esse contexto faz com que o Brasil tenha construído sua cultura processual penal sob a
sombra do sistema inquisitório, cujas raízes remontam ao autoritarismo e a arbitrariedade e é
refratária aos ideais republicanos (NUNES, 2017, p. 147). O Brasil passa por tempos em que
convivem de um lado uma Constituição que adota uma estrutura acusatória, um código que
tem suas bases no sistema inquisitório e uma mentalidade inquisitória que se instalou em
nossa cultura processual penal e insiste em se manter viva, seja nos discursos teóricos como
na prática processual penal (POLI, 2017, p. 108). Ou, como explicou Antônio Pedro
Melchior:
O empreendimento estatal brasileiro foi erguido sob os auspícios e um liberalismo
deslocado de bases sociais e, portanto, utilizado no mais das vezes como recurso
retórico para preservar os objetivos do clã oligárquico. O pacto colonial, de que nos
fala Caio Prado Jr. (2001), naturalizou uma estrutura normativa baseada na distinção
entre o Brasil legislado e o Brasil real. Modificam-se as leis para não se modificar as
práticas. (MELCHIOR, 2017. p.44)

As reformas não foram capazes de mudar o sistema, mesmo que a lei 11.690 tenha
modificado o núcleo do sistema inquisitório, o fez para manter tudo como antes. O acesso do
398

juiz ao inquérito vem sendo mantido desde o Código Criminal do Império sempre sob a
sombra do Código Napoleônico, a decisão não mais é fruto do contraditório entre as partes,
mas obra solitária do juiz. Nesse contexto a reforma processual acusatória nunca fez parte da
agenda
Assim sendo, reformas pontuais não serão capazes de modificar o código, é preciso
mais que apenas ajustes pontuais. Uma norma surgida em um regime ditatorial não pode
conviver em uma democracia, ou a democracia mata o autoritarismo e se concebe uma norma
democrática, ou o código autoritário sufocará a democracia.
Porém, o advento da Constituição configura-se como marco para se exigir a adoção de
uma estrutura que retire do processo penal seus elementos autoritários e se implemente o
contraditório como eixo central da construção de um processo penal de partes (NUNES, 2016,
p. 222). A mudança não é apenas da lei, é preciso mudar a cultura e a prática quotidiana do
processo penal, criar a consciência de que o processo penal em conformidade com a
constituição é necessário e viria não apenas ao encontro da constitucionalização do direito
processual penal, mas em razão da necessidade de se estabelecer normas que garantam o
devido processo constitucional.
É preciso romper as bases do próprio direito processual, que enquanto adotar uma
concepção de processo enquanto instrumento da jurisdição dizer o que é o direito. Somente
com o rompimento com a ideia de processo enquanto instrumento da jurisdição é que será
possível reconstruir o direito processual segundo as bases constitucionais. Porém, a adoção de
escopos metajurídicos no processo penal gera consequências catastróficas, eis que colocam
sob os ombros do processo penal a tarefa de reduzir a criminalidade e pacificar a sociedade,
missões essas que, pela adoção de concepções teóricas que colocam o juiz como grande ator
do processo, acabam sendo atribuídas ao julgador retirando-o de seu lugar
constitucionalmente devido para o colocar em conjunto com a parte acusadora.
(...) no Brasil há uma visão distorcida do papel do juiz. Aplaude-se a condenação e
questiona-se a absolvição ou a anulação do processo. O ―bom juiz” é aquele
engajado no papel de combate a essa ou aquela modalidade criminosa, inspirando
temor e mostrando-se intransigente com os acusados que tiverem o azar de
apresentar-se à sua jurisdição. (GARCIA FILHO, 2017, p. 215)

Nesse contexto, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (2017, p. 104) atribui ao


neoliberalismo a negação da ordem constitucional e a resistência à democratização do
processo penal, marcada principalmente pela ideia de que a criminalidade deveria ser
combatida por um direito penal máximo comandada pelo juiz.
Urge, pois a dita refundação do processo penal, porém essa refundação não se
399

restringe apenas à lei, mas à própria cultura processual penal da qual a lei é apenas seu
reflexo. Buscou-se reconstruir o processo penal brasileiro a partir de suas origens para mostrar
a manutenção do sistema inquisitório ao longo dos anos, desde as bases que formaram nosso
presente. Porém, uma reforma processual penal onde as partes sejam protagonistas nunca fez
parte da experiência brasileira, nosso sistema é herdeiro do modelo de Napoleão e mantém
suas bases até hoje (SILVEIRA, 2017, p. 299). Ou, como conclui Camilin Marcie de Poli:
Ainda que se mude a lei, ela, por si só, não garante o cumprimento da nova ordem
estabelecida. É preciso mudar não apenas a lei. É necessário mudar, sobretudo, a
mentalidade dos operadores do direito, dos legisladores, e demais envolvidos. Trata-
se de um conflito de cultura, um conflito ideológico, uma vez que a escolha entre a
estrutura inquisitória ou a estrutura acusatória é, antes de tudo, fruto de uma
ideologia. (POLI, 2017, p. 113-114)

A mudança de legislação é importante, mas estará fadada a ser a mera recolocação do


atual quadro legislativo caso não tenhamos a consciência da importância de se adotar um
sistema processual penal de partes e em conformidade com a constituição. Não basta mudar a
lei se não existir o compromisso com as exigências constitucionais e com a importância de um
processo penal onde o protagonismo das partes se coloque como núcleo fundante de uma
construção democrática de processo penal, onde os sujeitos sejam os responsáveis pela
construção em contraditório da decisão.
Durante o tempo, o processo penal brasileiro passou por sete ordenamentos
constitucionais, dois códigos de processo penal nacionais, uma fase de códigos estaduais,
além de incontáveis reformas pontuais do Código de Processo Penal, sem, contudo, conseguir
mudar o sistema através das microrreformas. É preciso se fazer valer a Constituição, levando-
se a sério sua estrutura constitucional. É imprescindível que se mude a lei, mas uma nova lei
elaborada por aqueles que conservam o velho pensamento redundará no resgate do processo
penal que necessita ser sepultado e, o que é pior, com a legitimidade de ter sido elaborado sob
o regime constitucional.
401

9 A REFORMA PROCESSUAL PENAL NO BRASIL, ANTES TARDE DO QUE


NUNCA!

9.1 A reforma tardia do Código de Processo Penal brasileiro e as bases do projeto de


reforma

Diante da necessidade de se adequar as normas processuais penais às exigências do


modelo constitucional de processo estabelecido pela Constituição de 1988, uma reforma
integral do código é imprescindível. As reformas pontuais não foram, e nem serão, suficientes
para a mudança do sistema processual inquisitório brasileiro. É necessária uma reforma
integral do mesmo, que passa por uma legislação acusatória mas também pela mudança dos
operadores do direito processual penal que devem perceber a importância de se adequar o
sistema adotado às exigências do Estado Democrático de Direito.
Nesse contexto, a experiência Italiana é interessante para compreendermos o que se
passa no Brasil. A Itália foi a fonte de inspiração para o atual Código de Processo Penal
brasileiro, porém, após a queda do fascismo viveu períodos de reforma que podem apontar um
caminho para a reforma brasileira. Renzo Orlandi (2016) aponta que após a queda do regime
totalitário a Itália viveu três períodos de reforma, o primeiro (1944-1961) começa no final da
segunda guerra mundial com a queda do regime fascista e é representada por duas propostas
de reforma que se enfrentavam. A primeira reconhecia no Código de 1930 representação do
regime findo e pretendia a volta do código liberal de 1913; a segunda corrente propõe a
reforma parcial do Código Rocco para adaptá-lo ao novo regime democrático, inaugurado
pela Constituição de 1948. Nesse período foram realizadas reformas pontuais, denominadas
―riformetta del 1955‖. Com a queda do fascismo a reforma do processo penal tornou-se
necessária, já que não se comportava mais os excessos autoritários dos quais o processo penal
era amplamente comprometido. Já o segundo período (1962-1989) tem início com um boom
econômico da Itália e é representado pela tentativa de substituição do sistema inquisitorial
travestido de sistema misto do código de 1930 por um modelo adversarial, tendo sido tal
tarefa atribuída ao processualista Francesco Carnelutti. Já o terceiro período, inicia com a
entrada em vigor do novo código em 24 de outubro de 1989, o primeiro código da Itália
republicana, que adotou um sistema de separação entre as fases preliminar e de juízo de
mérito, adotando um modelo adversarial. Contudo, em 1992 a Corte Constitucional promoveu
uma verdadeira contrarreforma através de três sentenças, sendo acompanhada de reformas
legislativas, decorrentes da denominada Operação Mãos Limpas, que visavam aumentar o
402

peso da investigação e ampliar os poderes do Ministério Público, resultando na


marginalização do defensor, recuando em relação às conquistas promovidas pelo código.
Somente entre 1997 e 2001 é que iniciativas legislativas, visando reforçar a posição da defesa
na fase preliminar e o direito de o réu confrontar as testemunhas de acusação foram propostas.
Entre 2001 e 2010, após o ataque de 11 de setembro, modificações com escopo de acrescer o
sentimento de segurança começaram a ser propostas, deslocando a fronteira entre prevenção e
repressão, sobre as quais foi construída toda teoria do garantismo penal e que agora passaram
a ser reduzidas à custa de direitos individuais.
A história brasileira é semelhante com a experiência italiana. O Brasil teve um código
inspirado no código fascista italiano e elaborado também durante uma ditadura (1937-1945),
contudo, o fim do período ditatorial e a promulgação da constituição de 1946 não foi capaz de
gerar a estabilidade necessária para se construir um país democrático. Já em 1964 outro golpe
de estado devolveu o País para um regime ditatorial que duraria até 1985. Somente com a
Constituição de 1988 conseguimos estabelecer normas constitucionais voltadas à construção
de um Estado Democrático de Direito. Porém, a nova constituição estava a reclamar um novo
código. Tal qual o exemplo italiano, várias tentativas de reformas pontuais foram realizadas
no Brasil, sendo a de 2008 a mais significativa, porém, nenhuma delas foi capaz de reformar o
sistema processual penal pátrio em seu núcleo fundante, uma vez que as reformas pontuais
não conseguirão atingir as bases autoritárias sob as quais foi forjado o Código de 1930. Uma
nova tentativa de reforma integral foi, no entanto, colocada em prática com a nomeação da
comissão de juristas em 2008 para a elaboração de projeto integral de reformas.
Ainda que a comissão tenha buscado uma reforma ampla de sistema processual penal,
a mentalidade inquisitorial dominante nas esferas de poder vem provocando retrocessos e a
manutenção de uma estrutura ainda vinculada ao passado que reflete no projeto de lei
156/2009138. A reforma enfrenta outro grave fator complicador, em meio às suas discussões, o
país vive a turbulência da denominada ―Operação Lava Jato‖ e o crescimento da violência
urbana que colocam em evidência o sistema penal e aumentam a pressão por uma reforma,
visando maiores restrições de direitos e menores avanços rumo à democratização processual
penal.
Importante ainda contextualizar a reforma brasileira no âmbito da América Latina,

138
Optamos no presente trabalho por analisar a versão aprovada pelo Senado Federal, sendo que o PLS 156/2008
após ter sido aprovado em sua casa originária foi encaminhado à Câmara dos Deputados onde ganhou o
número PL 8.045/2010 estando tramitando naquela casa desde 22 de dezembro de 2010, sendo que após a
realização de várias audiências públicas encontra-se em fase de discussão perante comissão especialmente
criada para o estudo do tema.
403

uma vez que praticamente todo continente latino-americano viveu sob ditadura entre as
décadas de 1960 e 1980. Assim, Leonel Gonzáles Postigo (2018, p. 18) afirma que em uma
análise transversal dos processos de reforma do processo penal na América Latina, as
reformas promovidas tiveram por objetivo central abandonar as práticas inquisitoriais
dominantes e instalar bases republicanas na administração do processo penal, tendo na
oralidade o centro gravitacional de todo rompimento com a tradição inquisitorial e sob a
aspiração comum de introduzir no processo penal de cada país um conjunto de valores
democráticos.
Assim, a partir da década de 1980, países como Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai,
Peru, Equador, Guatemala e Panamá começaram a abandonar o período de ditaduras militares
e a estabelecer governos democráticos. A mudança da ditadura para a democracia demanda
grandes desafios, dentre os quais uma nova forma de administrar a justiça criminal. Nesse
primeiro momento foram reformados os sistemas de justiça criminal da Argentina (1991),
Guatemala (1992), Costa Rica (1996), El Salvador (1996), Venezuela (1998), Paraguai
(1998), Bolívia (1999) e Honduras (1999). (POSTIGO, 2018, p. 19-20)
Após novas discussões sobre os sistemas processuais penais, as reformas restou ainda
mais evidente a necessidade de reformas nos sistemas de justiça penal vigentes nos períodos
de ditadura militar na América Latina, tendo no segundo momento reformado seus respectivos
códigos de processo penal o Chile (2000), Equador (2000), Nicarágua (2001), República
Dominicana (2004), Colômbia (2004), Peru (2004), Panamá (2008) e México (2014).
(POSTIGO, 2018, p. 21-23)
O modelo de justiça penal, legislativamente, representado pelas leis de processo penal
significam o principal instrumento de exercício de poder do Estado, sendo parte importante
em qualquer regime ditatorial, eis que permite o controle social através do braço forte do
Estado. Nesse contexto, todos os países latino-americanos, que sofreram com ditaduras
militares no passado, procuraram reformar as leis processuais penais para mudar o sistema.
Contudo, o Brasil segue atrasado nesse contexto, usando ainda um código elaborado não
pelos militares, mas pela ditadura Vargas e que serviu, com bastante eficiência, à ditadura
militar, pois o autoritarismo vivido no regime varguista não ficou atrás daquele vivido sob o
comando dos militares.
Trinta anos já se passaram entre a queda do regime militar e a elaboração da
constituição democrática, e os dias atuais e, no entanto, seguimos regendo nosso
procedimento penal pelo código de 1941, que fora completamente desfigurado pelas reformas
pontuais, incapazes de mudar o sistema fazendo com que o Código se mantivivesse fiel às
404

infelizes tradições autoritárias.


Nesse contexto, o primeiro objetivo da comissão que elaborou o projeto de lei que deu
origem ao PLS 156/2009 foi adaptar o Código de Processo Penal à Constituição, que tem
como principal e primeira consequência modificar o sistema processual do inquisitório para o
acusatório, colocando cada um dos sujeitos em seu lugar constitucionalmente demarcado
(COUTINHO, 2018, p. 229-230).
Isso se deve, aparentemente – entre outras coisas, mas, principalmente – porque a
mudança não foi tão só do periférico, do secundário, como se tem tentado fazer no
Brasil. Não. A mudança foi global e no núcleo dela está o afastamento do juiz da
gestão da prova, o que força um rearranjo dos lugares processuais, começando por
aquele do próprio juiz. Alheio à iniciativa probatória (como deve ser na estrutura
acusatória), esse lugar força os outros lugares e, assim dá ao Ministério Público um
papel de protagonista verdadeiro, ou seja, de provar que tem um caso e que procede
a acusação, quanto a ele, em relação ao réu ou réus. Para tanto, precisa ter o
comando/controle das investigações preliminares, as quais lhe devem fornecer o
material suficiente para demonstrar que tem, no momento processual adequado, um
caso. (COUTINHO, 2017c, p. 66)

Mudar o sistema adotado não é tarefa fácil, uma vez que após mais de quinhentos anos
de história inquisitória no Brasil, cujas origens remetem à inquisição do Império Romano, não
se muda do dia para a noite. A cultura está sedimentada na idéia de que o juiz inquisidor é
natural e não se consegue enxergar fora dela. A cultura inquisitória, fruto do sistema
napoleônico, e, em última análise, de Roma, foi passada de geração em geração. Muitos
sequer conseguem percebê-la, pensando ainda viver em um modelo acusatório, caíram e
permaneceram presos na armadilha napoleônica.
Assim, não se deve deixar de ter presente que a Comissão criada no âmbito do
Senado Federal para redigir o anteprojeto de reforma global do CPP (atual Projeto nº
159/2009-PLS) teve um ano para trabalhar e, como se sabe o labor foi árduo.
Pesaram, sobremodo, os quinhentos anos de história inquisitorial à qual o Brasil se
submete e a imensa dificuldade de pensar um novo sistema processual penal a partir
dos parâmetros exigidos pela Constituição da República, quase que única defesa (a
oferecida por ela) contra ataques daqueles que não querem mudar porque a situação
lhes é confortável. (COUTINHO, 2018, p. 233-234)

Em que pese o esforço e a vontade da comissão em construir um sistema processual


penal de partes, as emendas propostas e aprovadas no Senado fizeram do texto um projeto
desfigurado, refletindo o modelo atual mesmo em contrariedade com o desenho da
Constituição, como relatou Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:
Por outro lado, as poucas emendas que se tentou passar (ou se passou) foram do
absurdo (v.g. manter o sistema atual, contra a CR) ao patético (v. g. retornar o
número de jurados no procedimento do Tribunal do Júri, para 7 – ao invés de 8
como proposto – porque o MP teria uma maior dificuldade de vencer nos casos dos
crimes dolosos contra a vida julgados por aquele rito), passando, em muitas
hipóteses, pela grande praga de qualquer reforma processual (é só lembrar da
história delas), ou seja, o ―achismo‖, essa maldição que permite a qualquer um
405

opinar sobre a matéria mesmo nada sabendo sobre ela, com frequência fundado em
verdades obscuras à razão democrática. (COUTINHO, 2018, p. 235)

A guinada rumo à construção de um processo penal de partes fica clara na leitura do


título I do livro I do Código, dedicado aos princípios fundamentais. Nele se determina que as
garantias previstas no Código deverão ser observadas em qualquer forma de intervenção penal
(art. 2º). Seguindo nessa toada, determina o art. 3º que o processo penal seja realizado sob
contraditório e ampla defesa, garantindo-se a possibilidade de manifestação do defensor
técnico em todas as fases procedimentais. O art. 4º trata de importante mudança,
determinando que o processo penal tenha estrutura acusatória e veda a atuação do juiz na fase
de investigação, bem como a atuação supletiva do magistrado em relação ao acusador na fase
judiuciária. Trata-se, mais uma vez do fenômeno da síndrome da pequena norma, uma vez
que todas as garantias trazidas no código já existiam no texto constitucional que deve(ria) ser
observadas em qualquer intervenção do Estado na vida dos indivíduos, ademais, a efetivação
de um sistema processual de partes somente demandaria a aproximação do texto legal da
Constituição. De toda forma, ainda há a necessidade da lei infraconstitucional reafirmar
aquilo que a Constituição já afirma para que esta seja efetivamente cumprida.
O modelo bifásico segue presente no projeto de novo código, dividido entre a
investigação e a fase judiciária. A fase de investigação tem por finalidade a identificação das
fontes de prova (art. 8º), aqui é importante ressaltar a modificação proporcionada pelo projeto,
a investigação não produz provas, mas apenas identifica elementos de prova, uma vez que as
fontes de prova somente poderão ser tidas como provas após serem submetidas ao
contraditório. Outra mudança importante para a implementação dos direitos fundamentais é a
fixação da condição de investigado, implicando a possibilidade de todos os direitos
decorrentes dessa condição (art. 9º), principalmente, do acesso aos autos nos termos do art. 11
e o direito de ser ouvido antes da conclusão das investigações (art. 12) e a realização de atos
de investigação pela defesa (art. 13).
Outra importantíssima modificação no rumo de um processo penal de partes é a
criação do juízo das garantias que tem por finalidade o controle jurisdicional da legalidade da
investigação criminal e a garantia dos direitos individuais cuja franquia tenha sido
resguardada pela cláusula de reserva de jurisdição pela Constituição, sendo impedido o juiz
que atuar como juiz de garantias de atuar na fase processual (art. 16), contudo essa regra de
impedimento não se aplicaria aos juízos singulares e aos processos anteriores à entrada em
vigor do Código (art. 748), fazendo com que se tenha a depender da comarca juízos que se
aproximam do modelo de partes e juízos que sem mantenham presos no procedimento
406

inquisitivo. Porém, o juiz das garantias tem competência limitada às infrações de médio ou
maior potencial ofensivo, sendo excluída sua competência nos crimes de menor potencial
ofensivo (art. 15), como se nos crimes de menor potencial não houvesse garantias mínimas a
serem asseguradas pelo juízo de garantias. Nos procedimentos de competência originária, a
função de juiz de garantias será exercida por um dos membros do tribunal, escolhido, segundo
o regimento interno, e o membro que atuar como juiz de garantias será impedido de atuar
como relator do processo principal (art. 314), podendo, entretanto, participar do julgamento
como revisor ou vogal.
O projeto manteve a estrutura do Inquérito Policial, previsto no terceiro capítulo do
livro I, sendo atribuído aos delegados de polícia. A existência do inquérito policial sempre
acompanhou o processo penal brasileiro desde o Código de 1832, sendo a figura dos
delegados de polícia instituídos na reforma de 1841, restando mantida no projeto de novo
Código. Também foi mantida a possibilidade da vítima ou do investigado requerer a
realização de diligências durante o inquérito policial, mantendo-se a estrutura de que as
diligências somente serão realizadas a critério do delegado de polícia (art. 26), contudo foi
criado recurso para o delegado de polícia superior ou ao Ministério Público no caso de
indeferimento da diligência requerida. O código determina o momento do indiciamento,
determinando que o investigado seja cientificado de sua condição jurídica (art. 30). Além
disso, fixa em 720 dias o prazo para a conclusão do inquérito policial em 720 dias, após o
prazo os autos do inquérito deverão ser remetidos ao juízo de garantias para arquivamento
(art. 32).
Os elementos do inquérito são destinados à formação do convencimento do Ministério
Público quanto à viabilidade da acusação (art. 33), contudo, permanece a determinação de que
o inquérito policial acompanhe a denúncia quando lhe servir de base (art. 36). A manutenção
do inquérito como documento que acompanha a denúncia acaba transformando a segunda fase
do procedimento criminal, que deveria se realizar em contraditório e segundo regras de
oralidade e debate entre as partes, responsáveis pela produção de provas, em mera etapa
proforma, eis que o contato do juiz com o inquérito faz com que o julgador forme seu
convencimento de maneira antecipada e transforme a audiência em instância de passagem
para que se possa chegar à conclusão que já formou através do inquérito. Melhor seria a
exclusão do referido art. 36 e a determinação de que o inquérito seja disponibilizado apenas
para as partes, sem que o juiz possa ter contato com os elementos da fase de investigação.
A estrutura do arquivamento foi ressuscitada no Senado Federal, sendo atribuído ao
juízo de garantias (art. 38), contudo, possibilita que o juiz de garantias possa discordar do
407

pedido de arquivamento e recorra da decisão do promotor ao Procurador Geral, dessa forma o


juiz acaba substituindo a parte acusadora e ferindo de morte a estrutura acusatória
determinada pelos princípios gerais do código (art. 4º). Melhor solução seria facultar à vítima
ou seus representantes, recurso contra a decisão do Ministério Público às esferas institucionais
do próprio Ministério Público, sem que o juiz, ainda que de garantias, tenha participação na
decisão de arquivamento que deve ser tomada exclusivamente pelo titular constitucional da
ação penal.
Segundo o projeto, toda ação penal será pública, podendo ser incondicionada ou
condicionada, e extinguindo a ação penal privada (art. 45), sendo mantida apenas a ação penal
privada subsidiária, que na realidade não perde sua característica de pública. Lembremos que
as ações penais públicas foram a base do sistema inquisitório romano, mas que a criação do
Ministério Público como parte virtual permite que a ação seja pública e as funções de acusar e
julgar sejam realizadas por órgãos diversos. Manteve-se o princípio da indisponibilidade da
ação penal pública (art. 49), que impossibilita a desistência da ação penal pelo Ministério
Público.
O Título IV do primeiro livro do Projeto de Novo Código de Processo Penal é
dedicada aos sujeitos processuais, estabelecendo a separação entre o juiz, incumbido como
garantidor da legalidade do processo (art. 52-56); o Ministério Público, estabelecido na forma
constitucional como titular da ação penal (art. 57-58); e a defesa, representada pela defensoria
pública (art. 59), pelo advogado e pelo acusado, sendo garantido a existência de efetiva defesa
técnica em todos os atos do processo penal. Vê-se uma estrutura acusatória bem desenhada no
novo código, com a separação das funções de forma clara, porém a manutenção do inquérito
como peça que acompanhará a denúncia acaba pondo tudo a perder em uma cultura
inquisitorial, transformando toda a intenção da comissão que elaborou o projeto em atividade
destinada a mudar o código sem mudar a estrutura inquisitorial.
O interrogatório é expressamente definido como meio de defesa, exigindo sua
realização na presença do defensor do interrogando (art. 64). Inclusive no flagrante, não
havendo defensor para acompanhar o ato o interrogatório não seria realizado, porém faculta a
lei que caso o preso manifeste interesse em ser interrogado, mesmo sem o acompanhamento
de seu defensor, o ato poderá ser realizado. A abertura da possibilidade de se realizar o
interrogatório sem a presença do advogado ou do defensor público abre franca margem à
barganha com a liberdade do indivíduo, em troca do interrogatório e de eventual delação de
outros envolvidos o delegado condiciona a liberdade do indivíduo, o que fatalmente atingirá
apenas os menos favorecidos que não possuírem recursos para o acompanhamento por
408

advogado desde sua prisão. É de extrema importância que o preso seja ouvido apenas na
presença do advogado, devendo o Estado estabelecer a presença da defensoria pública já nas
delegacias de polícia e garantindo a atuação independente tanto do delegado como do
defensor. Modificação importante no interrogatório foi a limitação das perguntas formuladas
pelo juiz apenas às questões referentes à vida do interrogando, ficando estabelecido que as
perguntas referentes ao fato são de atribuição das partes (art. 73 e 74), podendo o juiz apenas
complementar pontos não esclarecidos (art. 75). Portanto, o juiz não poderá usar o
interrogatório para a busca de provas, porém, a possibilidade dele indagar o réu sobre os
pontos não esclarecidos abre uma perigosa porta quando trazida para nossa mentalidade
inquisitória, podendo, em mentes inquisitórias, significar ampla possibilidade de perguntas
sobre os fatos vindas do juiz, que deveriam ser restritas apenas ao esclarecimento de pontos
de dúvida em relação às próprias respostas do interrogando.
O capítulo das provas, ao mesmo tempo que se aproxima de um processo penal de
partes ao estabelecer que as provas devam ser propostas pelas partes (art. 165), abre a
possibilidade de que o juiz determine diligências para esclarecer dúvidas sobre a prova
produzida pelas partes (art. 165, parágrafo único), possibilitando que o julgador produza
provas de ofício, bastando que justifique a diligência em eventual dúvida em relação às provas
produzidas pelas partes. No processo penal democrático e calcado no princípio da presunção
de inocência o juiz deve valorar as provas produzidas pelas partes, podendo interagir com as
provas (v.g. sanar dúvidas quanto a resposta dada por uma testemunha), porém a realização de
diligências, após a conclusão da instrução abre a possibilidade de que o juiz, munido da
justificativa da dúvida realize diligências, quando, existindo dúvida, deveria ser privilegiada a
presunção de inocência. Ou seja, a dúvida sempre resultaria em diligências em busca de
elementos para fundamentar a sentença condenatória, tirando o juiz da posição de terceiro
imparcial e levando-o à substituição do acusador e, em último grau, fazendo letra morta do
estabelecido no art. 4º do Código.
Mantém-se a adoção do princípio do livre convencimento (art. 168), limitando-o
apenas às provas produzidas em contraditório judicial. Contudo, não se atentou que o
contraditório é o maior limitador da decisão, em razão do modelo constitucional de processo o
juiz não mais é livre para decidir como quiser, o magistrado encontra claro limite na
participação das partes que são corresponsáveis pela construção da decisão final. Como vimos
o livre convencimento deixa o juiz em posição de superioridade, sendo fruto da adoção de
uma teoria da relação jurídica que, como afirmamos, não foi capaz de vencer a
inquisitoriedade.
409

A exclusão do réu da sala de audiência é uma forma de tratá-lo como objeto do


processo e, portanto, de manutenção de característica inquisitorial, é restrita ao caso de não se
poder realizar a oitiva da testemunha por videoconferência (art. 183). Contudo, insta lembrar
que poderiam ser adotadas medidas menos gravosas que a exclusão do principal interessado
da sala de audiências, como a adoção de meios físicos que impedissem o contato visual entre
a testemunha e o acusado ou de sala de depoimento preservado destinadas à testemunha em
situação de risco pessoal. Não se pode, sem ofender o contraditório e a ampla defesa, excluir
aquele que sofrerá diretamente os efeitos da decisão dos atos de produção probatória. Trata-se
de medida arbitrária e típica de ordenamentos onde o acusado não é tido como sujeito de
direitos. A implementação de um processo democrático demanda soluções para que se trate o
acusado como sujeito de direitos efetivamente.
O Novo Código aproxima-se da Teoria Geral do Processo, importando categorias
típicas do processo civil como a extinção do processo sem resolução do mérito (art. 267) e
com resolução do mérito (art. 268). A importação de elementos do processo civil, como vimos
no capítulo inicial não tem boa aceitação no processo penal eis que cada uma das áreas do
direito processual parte de pressupostos diversos. A extinção do processo sem resolução do
mérito possibilita a existência de novo procedimento criminal contra o indivíduo eternizando
o processo criminal e mantendo o sujeito sempre sob a ameaça de se ver novamente
processado pelo mesmo fato. Tal hipótese acaba por violar a cláusula de vedação ao duplo
julgamento, que impede que a mesma pessoa seja acusada mais de uma vez pelo mesmo fato
reconhecida pelos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.
Mantem-se a vinculação com a teoria da relação jurídica ao se estabelecer o
procedimento como espécie de processo, dividindo aquele entre comum e especial (art. 269).
A manutenção da teoria da relação jurídica possibilita, em última análise a manutenção da
busca de escopos metajurídicos através do processo e a centralização dos atos na figura do
juiz, o que poderá dificultar a implementação de um modelo efetivamente de partes. Vê-se
que o processo foi colocado como gênero da espécie procedimento, quando, se tomado o
processo como procedimento em contraditório, o processo é espécie do procedimento.
Importante modificação realizada pelo projeto de lei do Novo Código de Processo
Penal é a criação da etapa intermediária, colocada após o oferecimento da denúncia e
compreendendo a intimação da vítima para aderir ao processo como parte civil (art. 272) e a
citação do acusado para oferecer resposta escrita (art. 273), sendo que somente após a
resposta é o juiz receberá a denúncia (art. 274). Tal disciplina acaba com aquilo que a
doutrina denominou de mesóclise da discórdia, acabando com o vigente duplo momento de
410

recebimento da inicial acusatória e determina que a denúncia somente será recebida após a
manifestação do acusado em contraditório, fazendo com que as partes possam participar
efetivamente da decisão que recebe ou não a denúncia. Seguindo o rito ordinário de forma
pouco alterada ao vigente.
A estrutura do rito sumário, que se diferencia do ordinário apenas pela inserção de
uma fase negocial antes da instrução criminal nos crimes cuja pena seja de até oito anos,
possibilita a negociação entre acusação e defesa em relação a aplicação imediata de pena,
adotando elementos típicos de processos penais adversariais e atribuindo maior autonomia às
partes (art, 283-284). Não resta dúvida que no sistema processual brasileiro, onde ainda
impera o pensamento punitivista isso pode ser usado para negociações de privação de
liberdade por menor tempo em casos que poderiam gerar absolvição. Assim sua adoção
demandaria maior preparo dos defensores e advogados para atuar em um sistema negocial
onde a autonomia das partes deva prevalecer.
No rito sumaríssimo, que se dará perante o Juizado Especial Criminal, a denúncia terá
por base apenas o termo circunstanciado de ocorrência e eventuais laudos periciais. Havendo
necessidade de instauração de inquérito os autos deverão ser remetidos ao juízo comum (art.
304). O oferecimento da denúncia com base apenas no singelo termo de ocorrência gerará
insegurança, eis que poderá gerar ainda mais denúncias infundadas sobretudo diante da
mínima cultura de garantias e do crescente punitivismo a qualquer preço que enfrentamos nos
últimos anos.
O procedimento do júri foi mantido de forma próxima ao estabelecido na legislação
vigente, adotando-se um procedimento dividido em duas fases: instrução preliminar e
julgamento. A instrução preliminar seguiu o mesmo procedimento atual. Manteve-se a
estrutura das decisões de pronúncia (art. 327), impronúncia (art. 328) e absolvição sumária
(art. 329), possibilitando inclusive a formulação de nova acusação para o caso de
impronúncia, bastando que surja nova prova. Na instrução no plenário do júri as perguntas
serão formuladas apenas pelo Ministério Público, assistente, querelante e defensor do
acusado, cabendo ao juiz presidente apenas formular perguntas para esclarecer dúvidas,
obscuridades ou contradições do depoimento (art. 386), podendo os jurados formular
perguntas apenas por intermédio do juiz presidente e requerer a realização de acareações,
reconhecimento de pessoas e coisas e esclarecimentos dos peritos. Dessa forma, permite-se
que os jurados possam buscar provas, no que o projeto anda em sentido contrario ao modelo
acusatório que pretende estabelecer.
A estrutura da emendatio libelli foi mantida inalterada (art. 418), possibilitando a
411

modificação da capitulação do fato sem modificação de sua descrição. Já a mutatio libelli foi
determinada a procedimento apenas a requerimento do Ministério Público em audiência (art.
419), não cabendo mais que o juiz determine o aditamento. Tal tratamento da mutatio libelli
aproximou o processo penal um pouco mais do modelo processual de partes, determinando o
protagonismo da parte acusadora e não do julgador nesse momento e impedindo que o juiz
determine o aditamento, visando apenas possibilitar que se criem condições formais para que
profira decisão previamente tomada, como ocorre com o código vigente.
Por sua vez o art. 420 limita a sentença condenatória aos limites da denúncia, porém
permite que o juiz condene mesmo quando o Ministério Público tenha pedido a absolvição do
réu. Em um sistema acusatório, como fora pretendido pelos autores do projeto, havendo
pedido de absolvição não poderá o juiz condenar, não há mais acusação e nem interesse no
provimento condenatório, assim a única sentença possível seria a de absolvição. É
pressuposto de uma decisão condenatória que exista uma acusação contra o acusado, se a
acusação deixou de existir, não se poderá condenar. As alegações finais não podem ser tidas
como peça meramente opinativa, devem ser levadas a sério sendo o próprio exercício da ação
penal após a produção probatória em contraditório, assim, é imprescindível para a decisão
condenatória existir e ter validade que o titular da ação penal tenha pedido a condenação,
sendo o pedido absolutório uma confissão de desnecessidade da própria ação penal. A
possibilidade de condenação após pedido de absolvição por parte da acusação desvirtua a
estrutura acusatória que deve ser buscada em conformidade com o ar. 4º do Projeto. A
redação do art. 420 do projeto é infinitamente superior à do atual art. 385, que permite
inclusive o reconhecimento de agravantes não alegadas, porém, mantém-se viva a
possibilidade de condenação sem pedido. Em síntese, nos valemos das palavras de Jacinto
Nelson de Miranda Coutinho:
Sem embargo, o art. 420 do PL n. 8.045 prevê que ―O juiz poderá proferir sentença
condenatória, nos estritos limites da denúncia, ainda que o Ministério Público tenha
opinado pela absolvição não podendo, porém, reconhecer qualquer agravante não
alegada ou causa de aumento não imputada‖. No caso – e isso parece sintomático –
há uma contradição. Em vigor uma estrutura verdadeiramente acusatória, não há
como o juiz subtrair o órgão do Ministério Público a disposição do conteúdo do
processo. Por sinal, o juiz, em função do lugar que ocupa no sistema acusatório,
nada tem a ver com a acusação e suas consequências, salvo aquilo que lhe é de
reserva e, por isso, a admissibilidade da acusação e a sentença. (COUTINHO,
2017c, p. 74)

Uma das grandes novidades do novo Código é a criação do livro III dedicado às
medidas cautelares. O art. 525 permite ao juiz atuar de ofício na fase judiciária para decretar
medidas cautelares, o que contraria à pretensão original da Comissão de Juristas de aproximar
412

o processo penal pátrio de um sistema processual de partes, sendo vedada decretar cautelares
sem pedido na fase de inquérito. O art. 527 veda a aplicação de cautelar mais grave que a
própria pena, impedindo que a medida assecuratória seja mais gravosa que a própria decisão
final e seja utilizada como punição indireta.
Dentre as medidas cautelares pessoais, previstas no art. 533, as atuais prisões em
flagrante, preventiva e temporária foram transformadas em espécies do gênero prisão
provisória. No caso de prisão em flagrante, manteve-se a estrutura de comunicação posterior à
defensoria pública quando o preso não possuir advogado e um defensor não houver
acompanhado a lavratura do auto de prisão (art. 553), mais uma vez manteve-se a distinção
onde os menos favorecidos somente terão acesso a advogado após a lavratura do auto de
prisão enquanto os patrimonializados garantem assessoria jurídica desde o primeiro momento
após a prisão.
Por sua vez, a prisão preventiva manteve entre seus requisitos a garantia da ordem
pública e econômica, acrescentando ainda a extrema gravidade do fato, outro elemento de
análise subjetiva no rol (art. 556), tratam-se de requisitos não cautelares e que demandam ser
preenchidos pelo juiz segundo sua vontade, possibilitando a prisão daqueles que forem
interessantes ao sistema, dos indesejáveis. Outra grande novidade na regulamentação da
prisão preventiva foi a fixação de prazos máximo para a prisão preventiva em 180 dias para
prisões decretadas antes da sentença e 360 dias para quando for decretada após a sentença
penal (art. 558), devendo o juiz reexaminar a prisão preventiva que exceder 90 dias (art. 562).
A prisão temporária foi trazida para dentro do código que estabeleceu seu cabimento
apenas na fase de investigação, sendo mantida a exigência de requerimento do Ministério
Público ou representação do delegado de polícia para ser decretada, e se limitará aos crimes
estabelecidos no art. 563, estabelecendo que, em regra a prisão temporária teria o prazo de 5
dias (art. 564).
Verifica-se que ao mesmo tempo que o Código avança rumo a um processo penal de
partes, por outro lado mantêm-se disposições típicas dos procedimentos inquisitórios, não
conseguindo se livrar completamente das armadilhas do Código de Instrução Criminal de
1808 e do Código Manzini da Itália de 1930. Nesse sentido, destacamos a manutenção do
inquérito como peça documental que acompanha a denúncia e que, por isso, permite a
formação antecipada do convencimento jurisdicional, a possibilidade de exclusão do réu da
sala de audiências e a possibilidade de se decretar prisões e medidas cautelares de ofício.
Trata-se de um passo importante rumo ao processo acusatório, porém, a cultura
inquisitorial que ainda reina no País não manteve a plenitude do projeto, inserindo elementos
413

inquisitoriais em seu texto. Porém, os elementos inquisitoriais atendem aos interesses


daqueles que estão no poder intactos, permitindo a punição de quem o próprio sistema
processual penal determinar.

9.2 Além da reforma: o Estado pós democrático e a manutenção do processo inquisitório

O Estado Democrático de Direito, que se desenvolveu após a segunda guerra mundial


e os movimentos populares como o movimento feminista e o movimento negro dos anos 1960
e que representa o modelo no qual o Estado deve obediência às normas jurídicas e respeito
aos direitos fundamentais, assegurando a todos os indivíduos condições de vida digna e
respeito às diferenças de cada um, vem passando por um momento de crise oriunda dos
modelos propostos pelo neoliberalismo. Como afirma Rubens Casara:
A figura do Estado Democrático de Direito, que se caracteriza pela existência de
limites rígidos ao exercício do poder (e o principal desses limites era constituído
pelos direitos e garantias fundamentais), não mais da conta de explicar e nomear o
Estado que se apresenta. Hoje poder-se-ia dizer em um Estado Pós-Democrático, um
Estado que, do ponto de vista econômico, retoma com força as propostas do
neoliberalismo, ao passo que, do ponto de vista político, se apresenta como um mero
instrumento de manutenção da ordem, controle das populações indesejadas e
ampliação das condições de acumulação do capital e geração de lucros. (CASARA,
2018, p. 16-17)

O Estado Pós-democrático, consoante aponta Rubens Casara (2018) é reflexo do neo-


liberalismo e produz consequências em todas as esferas de relação entre o indivíduo e o
poder. Na seara econômica, o estado pós-democrático reforça as tendências de desigualdade,
no campo das liberdades públicas acaba fazendo com que as inviolabilidades se tornem
seletivas, exemplificando o autor através dos mandados de busca e apreensão coletivos
expedidos pelo judiciário e que autorizaram a entrada em inúmeras casas, sempre dos mais
desvalidos (CASARA, 2018, p. 42).
Nesse modelo de Estado Pós-democrático o poder judiciário também acaba mudando
sua função, o que nas democracias o judiciário é o garantidor dos direitos fundamentais, na
pós-democracia passa a assumir a função de regulador das expectativas dos consumidores,
transformando o direito em instrumento do mercado, negando o diálogo e a alteridade
(CASARA, 2018, p. 42-43). Sendo que, ―o poder penal é um dos principais instrumentos
para o controle social de pessoas indesejáveis aos olhos dos governantes, dos detentores do
poder político e do poder econômico‖ (CASARA, 2018, p. 92)
Ao voltar os olhos pela história, se percebe que vários regimes autoritários foram
fundados no direito. Casara (2018, p. 60) lembra que os regimes fascistas e nazistas se
414

fundaram no direito, concluindo que a opressão, portanto, não é incompatível com o direito.
Porém, o uso do direito como instrumento de combate ao outro, ao eleito inimigo, não vem
apenas do totalitarismo da primeira metade do século XX, ficou demonstrado, desde a
inquisição eclesiástica eram eleitos inimigos, como os cátaros e valdenses, depois os judeus,
bruxos e hereges. Cada época elege seus inimigos e usa das estruturas de controle, como o
processo penal, como instrumento de combate e perseguição. Atualmente, o sistema de justiça
penal, que deveria se construir sob o prisma da igualdade, se mostra seletivo, voltado para os
indesejáveis, servindo para o controle social e para a manutenção das estruturas sociais
(CASARA, 2018, p. 70), sendo que na pós-democracia o sistema de justiça criminal é
caracterizado pela ausência de limites ao exercício do poder. Para tal estrutura, a
instrumentalização do processo nas mãos do Estado e o sistema inquisitorial são métodos que
se tornam imprescindíveis para a proposta punitiva.
No Brasil a tradição inquisitória vem desde as origens no direito português, que
também foi fundado sob tradição inquisitória herdada do direito romano e da inquisição
eclesiástica. Assim, possuímos o DNA do sistema punitivo autoritário sem termos passado
por períodos de um sistema penal diferente. Nossa tradição autoritária é marcada pelo
colonialismo e pela escravidão, onde o saber jurídico e os cargos no poder judiciário foram
usados como instrumentos de controle dos oriundos das classes dominantes contra aqueles
que vinham das classes dominadas, gerando um ―Poder Judiciário marcado por uma
ideologia patriarcal e patrimonialista‖, onde o poder é usado para manter seus valores e
definir lugares sociais e de poder, como forma de exclusão do outro. (CASARA, 2018, p.
128)
Nesse contexto, o Estado pós-democrático elege seus inimigos, seus indesejáveis,
aqueles para os quais se busca a punição. No Brasil atual, destacamos não só os pobres, mas
os acusados por crimes hediondos, drogas, organizações criminosas e de corrupção. A eles o
direito democrático não é aplicado, mas o direito pós-democrático, onde o direito não é mais
limite ao exercício do poder. No processo penal pós-democrático não interessa mais o fato ou
as garantias, mas aquilo que se diz do fato, sentenças são proferidas pela imprensa e
reproduzidas pelo judiciário que deixa o papel de garantidor contra majoritário para exercer
seu poder preocupado com a opinião pública (ou publicada).
Se no processo penal democrático a preocupação é com a reconstrução eticamente
possível do fato atribuído ao réu, no processo penal do espetáculo pós-democrático o
que ocorre é o primado do enredo sobre o fato. Retorna-se, com a velha estratégia
inquisitória de investir com a hipótese acusatória contra o réu, transformando-o em
mero objeto de um enredo para o qual não foi chamado a contribuir. (CASARA,
2018, p. 169)
415

Como vimos, a cada época o poder elege aqueles que serão seus perseguidos. Aos
escolhidos não há limites para a imposição da punição, o poder não tem limites. O processo
penal é parte central nessa estrutura, pois funciona como instrumento capaz de dar aparente
legitimidade à punição.
Deve-se juntar ao contexto do Estado pós-democrático denunciado por Rubens Casara
o contexto da sociedade de informação, onde se cobram respostas cada vez mais rápidas para
problemas cada vez mais complexos. O devido processo constitucional não se desenvolve na
velocidade desejada, possui seu próprio tempo de maturação e resposta, onde o debate em
contraditório não ocorre instantaneamente. Nesse contexto, cresce o clamor por punições mais
rápidas e rigorosas, ainda que a custo das garantias fundamentais do acusado.
Rubens Casara introduz sua obra ―Estado Pós-deomocrático‖ (2018) afirmando que o
Estado Democrático de Direito passa por um momento de crise, onde ou sairá fortalecido ou
chegará ao seu fim. Essa é também a crise vivida pelo processo penal, ou adotará de vez a
estrutura constitucional para constituir-se em um processo penal de partes e efetivamente
como um sistema processual, ou manter-se-á com a estrutura inqusitória e seguirá como mero
procedimento.
Nesse contexto, a simples reforma do código é insuficiente para mudar o quadro atual
do processo penal brasileiro. É preciso vencer a crise da democracia e impedir o crescimento
do Estado pós-democrático, implementando os direitos assegurados pela Constituição. No
brasil, como vimos, passamos por sete ordenamentos constitucionais diversos, causando a
ideia de que a constituição pode ser mudada ao gosto do poder. Juntemos a isso o fato de que
a maior parte do tempo de independência do Brasil se deu sob regimes autoritários que
ensejou uma falta de cultura democrática. Corrigir esse quadro é crucial para a própria
sobrevivência da democracia que exige regras estáveis e que devem ser obedecidas,
independentemente, do governo, as pessoas passam a Constituição permanece.
Ademais, consoante aponta Rui Cunha Martins (2013, p. 89), a transição da ditadura
para a democracia não se faz de forma imediata, podendo ser produzida a permanência da
ditadura ainda que em ambiente democrático, ou seja, de elementos provenientes do
patrimônio ditatorial. No Brasil esse fenômeno é ainda mais grave, como vimos, o Código de
Processo Penal foi gestado na ditadura do Estado Novo (1937-1945), tendo o país passado por
um curto período democrático até 1964 e mergulhado em mais vinte anos de regime ditatorial,
para somente em 1985 retomar o curso democrático e promulgar a Constituição em 1988. Ou
seja, os períodos ditatoriais foram mais longos que os democráticos, o país viveu sob o
416

autoritarismo por mais tempo que em democracias, o que torna essa migração mais lenta e
difícil, e essa dificuldade em se produzir um Código de Processo Penal em conformidade
democrática se torna ainda mais evidente e reflete no projeto aprovado pelo Senado que
apesar de alguns avanços manteve-se fiel ao Código de estrutura napoleônica.
O fato de um sistema democrático fazer uso de mecanismos constantes do painel de
funcionalidades da ditadura quer dizer exatamente isso, que ele se dispõe a trabalhar
com formas ditatoriais, não podendo querer dizer em caso algum que, por via da sua
requisição por parte de um sistema democrático, essas formas ditatoriais se
―democratizaram‖. ―Fascismos‖ em ambiente democrático? Com certeza que sim.
Fascismos punitivos, fascismos societais, fascismos informativos. O reconhecimento
de que existem elementos de distinta índole e de código genético contrastante a
funcionar em simultâneo no quadro de dado sistema não se resolve por via de uma
redução dessa diferença à lógica epocal. (MARTINS, 2013, p. 90)

A falta de cultura constitucional causou consequências sérias ao próprio devido


processo legal, que passou a ser tido como entrave à condenação. Tal falta de cultura
constitucional fez com que a implementação das normas constitucionais, que estabelecem um
sistema processual de partes, não se efetivassem e que o processo penal brasileiro seguisse em
seu modelo inquisitório, insistindo na interpretação da Constituição ao breu do Código e não
o contrário.
Para um país como o Brasil, que sempre esteve inserido em uma ideologia
inquisitória, pensar em superar o aspecto dual das estruturas demonstra até uma
certa ingenuidade, já que nunca se superou nem o modelo inquisitório. Isso sem
contar que implicitamente a Constituição de 1988 prevê como necessária a estrutura
acusatória. (VILLA, 2018, p. 249)

A estrutura inquisitória mantida no Brasil, a mais de cinco séculos, e de origem muito


mais antiga como vimos, serve a interesses determinados, que ao longo do tempo se variaram,
mas serviram à manutenção das próprias estruturas sociais dominantes. No Brasil atual o
estado pós-democrático vem se servindo da manutenção da estrutura inquisitória em busca de
punições cada vez mais sem limites, a perceber a atual postura do judiciário brasileiro que, ao
dizer interpretar a constituição a reescreve para dar novo sentido a textos em que não caberia
interpretações, como v.g. a presunção de inocência no habeas corpus 126.292, onde se
permitiu a execução provisória da pena privativa de liberdade após decisão condenatória
proferida por tribunal de segundo grau, portanto antes do trânsito em julgado da decisão nos
termos estabelecidos pelo art. 5º, LVII, da Constituição. Ou que se siga aplicando como sendo
válidos os dispositivos do Código de Processo Penal inquisitorial para a produção de provas
de ofício (arts. 155 e 156), a condenação sem pedido, etc.
O atual processo penal brasileiro foi transformado em um jogo de cartas marcadas,
onde a sentença é a mera confirmação do roteiro traçado pela denúncia, que, muitas vezes
417

apenas se limita a reproduzir o que o delegado relatou ao final de um inquérito limitado a


buscar a confirmação do registro de ocorrência. Não interessa julgar se a acusação é ou não
procedente, mas a mera confirmação da hipótese que foi formulada no primeiro momento e
acaba sendo levada até a decisão final. A participação das partes é mero ato formal sem contar
com a influência na construção da decisão.
A estetização do processo penal faz com que a hipótese descrita pelo órgão acusador
na denúncia ou queixa, que funciona como roteiro do espetáculo, e assumida pelo
juiz como verdade, remodele a realidade (que, distante do real, que não pode ser
reproduzido, não passa de uma trama simbólico-imaginária), que se encontra
espetacularizada e reduzida a uma versão de luta do bem contra o mal, numa ficção
que o juiz se esforçara para apresentar como uma realidade, uma representação que
independente de provas concretas – como a AP 470, caso emblemático desse
movimento de espetacularização do processo penal ao lado das ações penais
oriundas da Operação Lava Jato, deixou claro. (CASARA, 2018, p. 162)

A mudança para um modelo democrático de processo penal, condizente com a


estrutura traçada pela Constituição, já está mais de três décadas atrasada, porém, deve ser
precedida da mudança de mentalidade. Não basta a construção de um novo código, sobretudo
que o texto entregue pela comissão de juristas já vem sendo modificado para retornar ao
estágio atual, porém, agora com a chancela de ter sido promulgado sob a égide do atual
regime constitucional.
O sistema inquisitório sempre foi usado para o controle social e a perseguição dos
indesejáveis de cada época, sendo utilizado como forma de manutenção do poder estabelecido
e servido a governos autoritários e agora, se não cuidarmos da democracia, servirá ao Estado
pós-democrático.
O Estado Democrático de Direito passa por um momento de crise e poderá seguir por
dois caminhos: dar lugar ao Estado pós-democrático ou ressurgir fortalecido através do
fortalecimento das instituições democráticas e do respeito às regras do jogo democrático.
Nesse cenário, o processo penal acaba exercendo papel central, eis que a escolha que se
deverá fazer é entre um sistema seletivo de cartas marcadas ou um modelo no qual as partes
sejam tratadas como sujeitos de direitos e possam exercer seus direitos democraticamente.
No processo penal que se desenvolve em Estados Democráticos, a acusação não
passa de uma hipótese a ser ou não confirmada pelas provas. No Estado Pós-
Democrático não há necessidade de provar a hipótese acusatória, uma vez que é ela
que melhor atende à razão neoliberal. (CASARA, 2018, p. 197)

Dessa forma, a pergunta que se faz é qual reforma se deseja. Se uma reforma para
aproximar o processo penal do Estado Democrático de Direito, e, portanto, adotar um sistema
processual dos sistemas protagonizados pelas partes. Ou se buscará um sistema que conduza
418

ao Estado Pós-democrático com a adoção de um código que mantenha o sistema inquisitório e


um modelo que seja fundado na perseguição dos selecionados pelo sistema no qual os atos
procedimentais é mero rito de passagem para confirmar uma decisão preexistente.
É preciso sair da armadilha armada por Napoleão, que ao criar o modelo de uma fase
inquisitória com outra acusatória, permitindo a mistura entre elas, não criou um novo sistema,
mas travestiu o sistema inquisitório em um simulacro de contraditório. Porém, mesmo após
mais de duzentos anos do Código de Instrução Criminal, a ideia napoleônica ainda segue viva
e passando despercebida por muitos.
A mudança se faz não somente pela lei, mas deveria começar nas escolas jurídicas e
nos livros acadêmicos que deveriam dar maior ênfase ao estudo crítico que a mera reprodução
da lei e da jurisprudência. A evolução do processo penal brasileiro demonstra que nunca se
teve um processo penal de partes no Brasil e nossa formação inquisitória, oriunda até mesmo
antes do Código francês, dificulta que consigamos mudar a estrutura inquisitorial. Porém, a
mudança é necessária, pois o atual sistema inquisitório não serve à democracia e sua
manutenção ou a mudança para um sistema igualmente inquisitório serviria para sepultar as
aspirações democráticas e permitir o crescimento do estado pós-democrático, voltado a servir
aos anseios neoliberais.
Em resumo, o estado pós-democrático se adequa ao sistema inquisitorial, que serve
bem ao neoliberalismo e ao modelo seletivo de punição. Porém, a pós-democracia representa
o fim, e não uma evolução da democracia, nesse sistema antidemocrático o processo penal de
partes não serviria. Romper é necessário, mas o rompimento que se deve fazer é pelo resgate
da democracia e esse rompimento representa a refundação do processo penal para um sistema
de partes que nunca antes foi adotado no Brasil, com a modificação dos meios de investigação
e a instituição de um sistema onde as partes sejam responsáveis pela construção do
provimento final, onde o juiz julgue de forma independente e imparcial, colocando-se no seu
lugar, constitucionalmente, demarcado, e onde o julgamento seja um ato efetivamente
civilizado e que a acusação seja apenas uma versão a ser verificada através das provas,
possibilitando um julgamento justo e em conformidade democrática.
419

10 CONCLUSÃO

O presente estudo teve por finalidade a análise crítico-descritiva dos textos normativos
que foram responsáveis pela formação da identidade inquisitória brasileira. Dessa forma
procurou estabelecer inicialmente os conceitos fundamentais para o desenvolvimento e
compreensão do texto e determinar as características do processo penal Brasileiro e como ele
se formou a partir de suas origens.
Seguindo por esse caminho, o trabalho iniciou-se pela definição de sistemas, uma vez
que o eixo central do texto são os sistemas processuais penais, de forma que separamos a
conceituação de sistemas e processo para definir as características de cada um dos sistemas
processuais penais. Desse modo, foi adotada a definição kantiana de sistemas como conjunto
de elementos unidos por um principio unificador por ser a mais adequada para a construção
pretendidida no presente estudo.
Na sequência, foram estabelecidas as premissas da teoria do processo como
procedimento desenvolvido em contraditório de autoria do professor Élio Fazzalari, adotando
ainda o modelo constitucional de processo desenvolvido por Andolina e Vignera na Itália e no
Brasil por Flaviane de Magalhães Barros, para entender o processo como um um sistema
composto por três elementos básicos: a expansividade, a variabilidade e perfectibilidade
através do qual se buscaria pela participação dos sujeitos dar à decisão legitimidade
democrática.
Após estabelecer as bases teóricas do trabalho, definindo sistemas e processo, foi
desconstruída a ideia da dicotomia entre sistema acusatório e inquisitório, buscando
demonstrar que um sequer pode se contrapor ao outro eis que não pertencem ao mesmo
conjunto, já que o sistema acusatório e o sistema adversarial compõem o conjunto dos
sistemas processuais de partes, que possuem as partes no papel de protagonistas; já o sistema
inquisitório sequer é um sistema processual, configurando mero modelo procedimental por
não possuir o contraditório entre seus elementos. Dessa forma, o sistema inquisitório é mero
procedimento, uma vez que o protagonismo do juiz e seus poderes instrutórios não permitem
a existência de contraditório. Por sua vez, os processos penais de partes aão aqueles nos quais
as partes são protagonistas, sendo divididos entre acusatórios e adversariais, sendo os
processos acusatórios os oriundos da Europa continental e baseados na produção das provas
pelas partes e os adversariais oriundos do sistema acusatório inglês e baseados no confronto.
Ao final do primeiro capítulo restou demonstrando que o sistema inquisitório é um
sistema que sempre serviu, e ainda serve, para a neutralização e perseguição dos escolhidos
420

pelo poder, ideia que foi retomada ao longo da reconstrução histórica dos sistemas
processuais penais, demonstrando que toda a legislação inquisitorial foi construída através da
exclusão e perseguição dos indesejáveis de cada período. Em contrapartida os sistemas
processuais de partes são adotados em modelos que prezam pela construção comparticipada
da decisão e pela tutela dos direitos fundamentais.
Assim, ao final do capítulo inicial, pode-se concluir que os modelos democráticos
adotam sistemas processuais penais centrados nas partes e na construção comparticipada da
decisão, através do diálogo em contraditório e assegurando a presunção de inocência ao
acusado. De outro lado, regimes autoritários preferem o sistema inquisitório, pois, em razão
do protagonismo do juiz e da concentração de poderes em suas mãos acabam por concentrar o
poder punitivo e poder manipulá-lo, segundo as próprias conveniências para punir aqueles que
são escolhidos pelo poder como indesejáveis.
No segundo capítulo foi feita uma reconstrução do processo penal romano, um dos
berços dos sitemas processuais puros. Entretanto, diferentemente da divisão que é
normalmente apresentada nas obras de processo penal, onde cada uma das fases é marcada
pela adoção de apenas um sistema, o acusatório da República e o Inquisitório no Império,
restou demonstrado que o processo penal romano foi construído por várias formas punitivos
que se revesaram em seus treze séculos de história, havendo modelos acusatórios e
inquisitórios durante o período republicano e o sistema inquisitório tendo sido adotado desde
o Principado e se tornado mais forte durante o Império, inclusive com perseguição religiosa,
primeiro contra os cristãos e depois pelos cristãos contra os não-cristãos, já sendo
estabelecidos, nesse período, tribunais eclesiásticos inquisitórios que seriam posteriormente
aliados dos Estados Nacionais durante a Baixa Idade Média.
Em razão das invasões bárbaras, que de fato não foram apenas do Norte, mas fruto da
invasão gradual de povos do Norte, do Sul e do oriente médio na Europa continental ao longo
dos séculos, o império romano perdeu gradualmente sua força, iniciando a Idade Média. Esse
período, marcado pela forte influência religiosa foi dividido em dois grandes momentos, a
Alta Idade Média e a Baixa Idade Média. No primeiro período, foram adotados os duelos e as
ordálias (juízos dos Deuses) e a decisão penal era tomada através de provas físicas nas quais a
conclusão se dava através de intervenções divinas. Já a Baixa Idade Média é marcada pela
ascensão da igreja católica e sua união com os reis nos crescentes Estados Nacionais, juntando
o poder religioso com a força militar para fazer cumprir as ordens. Nesse contexto cresce a
inquisição eclesiástica, através da edição de uma série de bulas papais, em que se verificam
ações coordenadas para a formação de um sistema onde o inquisidor detenha o poder da
421

decisão e possa buscar as provas segundo entendesse necessário. Inicialmente, foram


proibidas as ordálias e os duelos, substituídas pela prova tarifada, na qual a busca da confissão
passou a ter posição de destaque, inclusive mediante tortura. Os membros da Igreja não
sujavam suas mãos de sangue, eram responsáveis pelo processo e julgamento, cabendo aos
representantes do braço secular (Estado) a tortura dos acusados e a execução das penas. Nesse
período os cátaros, valdenses, hereges e bruxos foram perseguidos e levados às fogueiras.
Após construir a inquisição eclesiástica medieval, se passou à análise da legislação de
Portugal em suas Ordenações do Reino, visando demonstrar a influência inquisitória na
construção do processo penal brasileiro. Assim, foram analisadas as Ordenações Manuelinas,
Afonsinas e Filipinas, além das compilações de Duarte Leão, demonstrando a presença da
inquisição e a perseguição dos mesmos grupos eclesiásticos e a adoção da união entre Igreja e
Estado presente no ordenamento jurídico português daquela época. Nos textos dos
compêndios dos reis portugueses fica clara a união entre eles e a Igreja para o fim de
perseguir os escolhidos, que se pode concluir que eram inimigos comuns, vez que se tratavam
de estrangeiros e não praticantes da religião cristã.
Outro marco importante para a construção do processo penal brasileiro é o estudo do
processo penal francês de 1808. Após a revolução francesa, a manutenção de um sistema
inquisitório como o do Código de Luis (1670) era impossível, porém Napoleão, um ditador,
não poderia manter o sistema acusatório adotado em 1791. Assim, o Código de Instrução
Criminal acabou conjugando os dois modelos, para adotar um modelo inquisitório na fase
investigativa (juízo de instrução) e um sistema acusatório na fase de julgamento. Contudo,
permitia que o produto da primeira fase fosse levado à segunda fase contaminando a formação
da decisão e transformando a etapa acusatória em um jogo de cartas marcadas onde a
inquisitoriedade da primeira fase imperava. Ao final do capítulo, concluímos que esse modelo
inquisitorial travestido, verdadeiro lobo em pele de cordeiro, não muda a inquisitoriedade,
apenas a reordena, mudando as coisas de lugar para deixar tudo como estava antes. Porém,
esse sistema ―novo‖ representou perigosa armadilha tendo influenciado o modelo italiano de
1930 e brasileiro de 1941, do qual ainda não conseguimos escapar.
Em razão da influência fascista no processo penal brasileiro, também foi objeto de
análise o processo penal italiano do Código de Processo Penal de 1930 que foi,
flagrantemente, inspirado no modelo francês de 1808. Nesse contexto, adotou-se um modelo
bifásico, com uma fase inquisitória e outra acusatória, permitindo-se, entretanto a comunhão
dos elementos da primeira fase na segunda e, portanto mantendo o sistema inquisitório. No
modelo italiano a presunção de inocência foi reduzida a mera presunção de não culpabilidade
422

e as nulidades relativizadas, acabando com as nulidades absolutas. Concluímos que esse é um


modelo autoritário e que não prezava pelos direitos individuais, adotando com veemência o
sistema inquisitório pois com ele poderia perseguir os indesejáveis do sistema fascista, usando
do processo penal como instrumento de dominação social.
No oitavo capítulo foi feita a construção do processo penal no Brasil, analisando os
sistemas adotados, após a independência e a partir da Constituição imperial de 1824.
Inicialmente foi estudado o Código de Processo Criminal de Primeira Instância do Império de
1832 pelo qual se conclui que teve inspiração direta no Código de Instrução Criminal de 1808
e adotou um modelo bifásico, sendo que a estrutura do estabelecimento da autoridade policial
somente foi adotada na reforma de 1841. Porém, adotou-se no Império um modelo de duas
fases, sendo a primeira inquisitória e a segunda acusatória, tal qual no código francês, a
possibilidade de se juntar os elementos da primeira fase na segunda e a possibilidade de o juiz
atuar na produção da prova, mantendo um sistema inquisitorial.
Já sob a égide da primeira Constituição republicana (1891), o processo penal passou a
ser cuidado pelos Estados, tendo a legislação se tornado um emaranhado de normas, alguns
Estados não tendo editado códigos. Enfim, o estudo das normas processuais penais se tornou
dificílimo e desorganizado. Nesse contexto foi feita a opção pelo estudo do Código de
Processo Penal do Distrito Federal, de 1924, que foi adotado na esfera da Justiça Federal.
Trata-se do Código menos inquisitivo já aplicado no Brasil, que adotava a divisão de duas
fases com a primeira inquisitória e a segunda acusatória, mas vedava que os elementos
inquisitoriais fossem levados para a segunda fase do procedimento. Porém, permitia que o juiz
buscasse provas de ofício e, portanto, mantinha elementos inquisitoriais. A competência
legislativa estadual em matéria processual penal foi cassada pela Constituição de 1934, que,
entretanto, não vigorou para ver um novo código nacional. Em 1937, após o golpe de estado
que fez nascer o Estado Novo, Getulio Vargas outorgou nova Constituição, que sequer foi
integralmente implementada, já que o Congresso permaneceu fechado e o presidente exercia a
função legislativa por decretos. Importante ressaltar que o modelo de Estado do denominado
Estado Novo foi o fascismo italiano, o que fica claro na análise dos textos de Francisco
Campos, então Ministro da Justiça
Sob a vigência da Constituição de 1937, Vargas editou o Código de Processo Penal,
através de decreto, inspirado no inquisitorial e autoritário Código Italiano de 1941. Esse
código vigora até a presente data, tendo passado por curtos períodos democráticos e muitos
períodos ditatoriais, possuindo genética autoritária. Em incontáveis reformas, nenhuma delas
foi capaz de mudar o sistema inquisitorial adotado.
423

A Constituição de 1988 promoveu uma revolução no modelo jurídico brasileiro, ao


instituir o Estado Democrático de Direito, prever, pela primeira vez, a presunção de inocência
e estabelecer, também de forma inédita as funções do ministério público, da advocacia e da
defensoria pública de forma separada da estrutura do Poder Judiciário. Além disso, a
Constituição Cidadã estabeleceu um extenso rol de direitos e garantias individuais que é
incompatível com um processo penal que carrega o autoritarismo em suas raízes. Essa
revolução é incompatível com o código vigente e urge sua reforma.
Várias tentativas de reformas pontuais foram tentadas, porém nenhuma delas foi capaz
de mudar o modelo autoritário adotado. Assim se concluiu pela necessidade de uma reforma
integral do código, tendo sido nomeada comissão para esse fim no ano de 2009. A comissão
apresentou seu projeto em 2010, firmemente inclinado para o modelo acusatório, porém, as
emendas do Senado contribuíram para uma volta ao vigente código e a manutenção de vários
pontos inquisitoriais ressuscitaram das cinzas.
Dessa forma, restou demonstrado que toda a construção legislativa do Direito
Processual Penal brasileiro sempre foi permeada pelo modelo inquisitório e, por isso, teve no
autoritarismo sua marca máxima de modo a criar, recriar e reproduzir um modelo autoritário.
Esse autoritarismo se naturalizou de tal forma que sequer é percebido pela maioria dos
aplicadores do Direito, que convivem com um sistema inquisitório sem perceber que
reproduzem essa cultura diarimente nos foros e faculdades de Direito. Perceber o
autoritarismo do processo penal no Brasil é o primeiro passo para mudar as práticas e tornar
possível uma reforma do processo penal que mude efetivamente o sistema adotado.
Por fim, conclui-se que o atual estágio da democracia brasileira coloca o Estado
Democrático de Direito em situação de crise. Ou estabelecemos uma relação de patriotismo
constitucional e implementamos de vez os valores democráticos constitucionais, ou as portas
do Estado Pós-democrático, que não está submetido às regras, estarão abertas para adotar um
modelo inquisitorial e marcado pela perseguição dos indesejáveis. Trata-se de um momento
de escolhas e crucial para a sobrevivência da democracia. Conclui-se, que a crise do modelo
democrático somente poderá ser resolvida com mais democracia, sob pena do regime
democrático ser mero simulacro.
Por fim, após toda a construção histórica e legislativa realizada, tem-se que o atual
cenário do processo penal brasileiro é um modelo que vive entre a democracia constitucional
e o autoritarismo infraconstitucional, que se junta com a formação de uma prática que tem
interiorizada a estrutura inquisitória que é natural aos operadores do Direito Processual Penal,
fazendo de sua prática uma disputa entre a Constituição e o Código onde este prevalesce em
424

razão da falta de cultura democrática. É preciso romper esse ciclo vicioso e valorizar a
Constituição para construir uma sociedade onde exista de fato sentimento constitucional, pois
somente com a valorização dos preceitos constitucionais é que se perceberá que o atual
processo penal precisa ser enterrado para que seja refundado sob as bases exigidas pela
Constituição.
425

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