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ISBN 978 - 85 - 200-0565 - 1

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José Murilo de Carvalho

Cidadania no Brasil
O longo caminho

ll 3 edição

2
CIVILIZA ÇÃ O BKASILE1 RA

Rio de Janeiro
2008
COPYRIGHT © 2001 by José Murilo de Carvalho

CAPA: Evelyn Grumach


Sum á rio
PROJETO GR Á FICO: Evelyn Grumach e João de Souza Leite

CIP-BRASIL CATALOGAÇÃO-NA-FONTE INTRODU ÇÃO: MAPA DA VIAGEM 7


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Carvalho, José Murilo de, 1939-


C324c Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo de Capítulo I: Primeiros passos (1822-1930) 15
11a ed. Carvalho. - 11a ed. - Rio de Janeiro: Civilizaçã o Brasileira, O PESO DO PASSADO (1500 1822)
- 17
2008. 1822: OS DIREITOS POLÍTICOS SAEM NA FRENTE 25
1881: TROPE Ç O 38
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-200-0565-1 DIREITOS CIVIS SÓ NA LEI 45
CIDADÃOS EM NEGATIVO 64
1. Cidadania - Brasil - História. 2. Democracia - Brasil O SENTIMENTO NACIONAL 76
- História. 3. Brasil - Política e governo. I. Título.
CDD 323.60981 Capítulo II: Marcha acelerada (1930-1964) 85
01-0103 CDU 323.2 ( 81)
1930: MARCO DIVIS Ó RIO 89
OS DIREITOS SOCIAIS NA DIANTEIRA (1930 1945)
- 110
A VEZ DOS DIREITOS POLÍTICOS (1945-1964) 126
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou CONFRONTO E FIM DA DEMOCRACIA 144
transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia
autorização por escrito. Capítulo III: Passo atr ás, passo adiante (1964-1985) 155
PASSO ATRÁS: NOVA DITADURA (1964-1974) 158
NOVAMENTE OS DIREITOS SOCIAIS 170
PASSO ADIANTE: VOLTAM OS DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS (1974-1985) 173
Direitos desta edição adquiridos pela UM BALAN Ç O DO PER ÍODO MILITAR 190
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA
um selo da Capítulo IV: A cidadania após a redemocratizaçao 197
EDITORA RECORD LTDA.
Rua Argentina 171, São Cristóvão, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 20921-380 A EXPANS ÃO FINAL DOS DIREITOS POL ÍTICOS 200
Telefone: (21) 2585-2000 DIREITOS SOCIAIS SOB AMEAÇA 206
DIREITOS CIVIS RETARDATÁ RIOS 209
PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL
Caixa Postal 23.052, Rio de Janeiro, RJ - 20922-970 CONCLUSÃO: A CIDADANIA NA ENCRUZILHADA 219
SUGESTÕ ES DE LEITURA 231
Impresso no Brasil
2008
Introdução: Mapa da viagem

O esfor ço de reconstrução, melhor dito, de constru ção da


democracia no Brasil ganhou ímpeto após o fim da ditadura
militar, em 1985. Uma das marcas desse esfor ço é a voga que
assumiu a palavra cidadania. Políticos, jornalistas, intelectuais,
líderes sindicais, dirigentes de associaçõ es, simples cidadãos,
todos a adotaram. A cidadania, literalmente, caiu na boca do
povo. Mais ainda, ela substituiu o pr óprio povo na retórica
política. Não se diz mais “o povo quer isto ou aquilo”, diz-se
“a cidadania quer ”. Cidadania virou gente. No auge do entu¬
siasmo cívico, chamamos a Constituição de 1988 de Consti¬
tuição Cidadã.
Havia ingenuidade no entusiasmo. Havia a crença de que
a democratização das instituições traria rapidamente a felici¬
dade nacional. Pensava-se que o fato de termos reconquista¬
do o direito de eleger nossos prefeitos, governadores e presi ¬
dente da República seria garantia de liberdade, de participa¬
ção, de segurança, de desenvolvimento, de emprego, de justi¬
ça social. De liberdade, ele foi. A manifestação do pensamen¬
to é livre, a ação política e sindical é livre. De participação
também. O direito do voto nunca foi tão difundido. Mas as
coisas não caminharam tão bem em outras áreas. Pelo contrá¬
rio. Já 15 anos passados desde o fim da ditadura, problemas
JOS É MURIIO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

centrais de nossa sociedade, como a violência urbana, o de¬ liberdade e a participação não levam automaticamente, ou ra¬
semprego, o analfabetismo, a má qualidade da educação, a pidamente, à resolução de problemas sociais. Isto quer dizer
oferta inadequada dos serviços de saúde e saneamento, e as que a cidadania inclui várias dimensões e que algumas podem
grandes desigualdades sociais e económicas ou continuam sem estar presentes sem as outras. Uma cidadania plena, que com ¬

solução, ou se agravam, ou, quando melhoram, é em ritmo bine liberdade, participação e igualdade para todos, é um ideal
muito lento. Em conseqiiência, os pr óprios mecanismos e desenvolvido no Ocidente e talvez inatingível. Mas ele tem ser¬
agentes do sistema democr ático, como as eleições, os parti¬ vido de par âmetro para o julgamento da qualidade da cidada¬
dos, o Congresso, os políticos, se desgastam e perdem a con¬ nia em cada país e em cada momento histórico.
fiança dos cidadãos. Tornou-se costume desdobrar a cidadania em direitos ci ¬
Não há indícios de que a descrença dos cidadãos tenha vis, políticos e sociais. O cidadão pleno seria aquele que fosse
gerado saudosismo em relação ao governo militar, do qual a titular dos tr ês direitos. Cidadãos incompletos seriam os que
nova geração nem mesmo se recorda. Nem h á indicação de possuíssem apenas alguns dos direitos. Os que não se benefici¬
perigo imediato para o sistema democr ático. No entanto, a assem de nenhum dos direitos seriam não-cidadãos. Esclareço
falta de perspectiva de melhoras importantes a curto prazo, os conceitos. Direitos civis são os direitos fundamentais à vida,
inclusive por motivos que tê m a ver com a crescente depen¬ à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei. Eles se
d ência do país em relação à ordem económica internacional, desdobram na garantia de ir e vir, de escolher o trabalho, de
é fator inquietante, não apenas pelo sofrimento humano que manifestar o pensamento, de organizar-se, de ter respeitada a
representa de imediato como, a mé dio prazo, pela possível inviolabilidade do lar e da correspondência, de não ser preso a
tentação que pode gerar de solu ções que signifiquem retro¬ não ser pela autoridade competente e de acordo com as leis, de
cesso em conquistas já feitas. É importante, então, refletir não ser condenado sem processo legal regular. São direitos cuja
sobre o problema da cidadania, sobre seu significado, sua garantia se baseia na existência de uma justiça independente,
evolução histórica e suas perspectivas. Será exercício adequa¬ eficiente, barata e acessível a todos. São eles que garantem as
do para o momento da passagem dos 500 anos da conquista relações civilizadas entre as pessoas e a própria existência da
dessas terras pelos portugueses. sociedade civil surgida com o desenvolvimento do capitalismo.'
Inicio a discussão dizendo que o fenômeno da cidadania é Sua pedra de toque é a liberdade individual.
complexo e historicamente definido. A breve introdução aci ¬ E possível haver direitos civis sem direitos políticos. Estes
ma já indica sua complexidade. O exercício de certos direitos, se referem à participação do cidad ão no governo da socieda¬
como a liberdade de pensamento e o voto, não gera automati¬ de. Seu exercício é limitado a parcela da população e consiste
camente o gozo de outros, como a seguran ça e o emprego. O na capacidade de fazer demonstrações políticas, de organizar
exercício do voto não garante a existência de governos atentos partidos, de votar, de ser votado. Em geral, quando se fala de
aos problemas básicos da população. Dito de outra maneira: a direitos políticos, é do direito do voto que se está falando. Se
JOSÉ MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRAS I L

pode haver direitos civis sem direitos políticos, o contrário lógica. Foi com base no exercício dos direitos civis, nas liber¬
não é viável. Sem os direitos civis, sobretudo a liberdade de dades civis, que os ingleses reivindicaram o direito de votar,
opinião e organização, os direitos políticos, sobretudo o voto, de participar do governo de seu país. A participação permitiu
podem existir formalmente mas ficam esvaziados de conteú¬ a eleição de oper ários e a criação do Partido Trabalhista, que
do e servem antes para justificar governos do que para repre¬ foram os responsáveis pela introdução dos direitos sociais.
sentar cidadãos. Os direitos políticos têm como instituição Há, no entanto, uma exceção na seqiiência de direitos,
principal os partidos e um parlamento livre e representativo. anotada pelo próprio Marshall. Trata-se da educação popu ¬
São eles que conferem legitimidade à organização política da lar. Ela é definida como direito social mas tem sido historica¬
sociedade. Sua essência é a idéia de autogoverno. mente um pr é-requisito para a expansão dos outros direitos.
Finalmente, há os direitos sociais. Se os direitos civis garan¬ Nos países em que a cidadania se desenvolveu com mais rapi ¬
tem a vida em sociedade, se os direitos políticos garantem a dez, inclusive na Inglaterra, por uma razão ou outra a educa¬
participação no governo da sociedade, os direitos sociais ga¬ ção popular foi introduzida. Foi ela que permitiu às pessoas
rantem a participação na riqueza coletiva. Eles incluem o direi¬ tomarem conhecimento de seus direitos e se organizarem para
to à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, à apo¬ lutar por eles. A ausência de uma população educada tem sido
sentadoria. A garantia de sua vigência depende da existência sempre um dos principais obstáculos à construção da cidada¬
de uma eficiente máquina administrativa do Poder Executivo. nia civil e política.
Em tese eles podem existir sem os direitos civis e certamente O surgimento seqüencial dos direitos sugere que a pró¬
sem os direitos políticos. Podem mesmo ser usados em subs¬ pria idéia de direitos, e, portanto, a própria cidadania, é um
tituição aos direitos políticos. Mas, na ausência de direitos civis fenômeno histórico. O ponto de chegada, o ideal da cidada¬
e políticos, seu conte údo e alcance tendem a ser arbitr ários. nia plena, pode ser semelhante, pelo menos na tradição oci ¬
Os direitos sociais permitem às sociedades politicamente or¬ dental dentro da qual nos movemos. Mas os caminhos são
ganizadas reduzir os excessos de desigualdade produzidos pelo distintos e nem sempre seguem linha reta. Pode haver tam¬
capitalismo e garantir um mínimo de bem -estar para todos. A bém desvios e retrocessos, não previstos por Marshall. O per¬
idéia central em que se baseiam é a da justiça social. curso inglês foi apenas um entre outros. A Fran ça, a Alema¬
O autor que desenvolveu a distinção entre as v árias dimen¬ nha, os Estados Unidos, cada. país seguiu seu pr óprio cami ¬
sõ es da cidadania, T. A. Marshall, sugeriu também que ela, a nho. O Brasil não é exce ção. Aqui n ão se aplica o modelo in ¬
cidadania, se desenvolveu na Inglaterra com muita lentidão. glês. Ele nos serve apenas para comparar por contraste. Para
Primeiro vieram os direitos civis, no século XVIII. Depois, no dizer logo, houve no Brasil pelo menos duas diferen ças im ¬
século XIX, surgiram os direitos políticos. Finalmente, os di¬ portantes. A primeira refere-se à maior ênfase em um dos di ¬
reitos sociais foram conquistados no século XX. Segundo ele, reitos, o social, em relação aos outros. A segunda refere-se à
n ão se trata de seqiiência apenas cronológica: ela é também alteração na seqiiência em que os direitos foram adquiridos:
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

entre nós o social precedeu os outros. Como havia lógica na Discorda-se da extensão, profundidade e rapidez do fenôme¬
seq üéncia inglesa, uma alteração dessa lógica afeta a natureza no, n ão de sua existê ncia. A internacionalização do sistema
da cidadania. Quando falamos de um cidadão inglês, ou nor¬ capitalista, iniciada há séculos mas muito acelerada pelos avan¬
te-americano, e de um cidad ão brasileiro, não estamos falan ¬
ços tecnológicos recentes, e a criação de blocos econ ómicos e
do exatamente da mesma coisa. políticos têm causado uma redução do poder dos Estados e uma
Outro aspecto importante, derivado da natureza históri¬ mudança das identidades nacionais existentes. As várias nações
ca da cidadania, é que ela se desenvolveu dentro do fenôme¬ que compunham o antigo império soviético se transformaram
no, também histórico, a que chamamos de Estado-nação e que em novos Estados-nação. No caso da Europa Ocidental os ,

data da Revolução Francesa, de 1789. A luta pelos direitos, v ários Estados nação se fundem em um grande Estado
todos eles, sempre se deu dentro das fronteiras geogr áficas e
-
multinacional. A redu ção do poder do Estado afeta a natureza
políticas do Estado-nação. Era uma luta política nacional, e o dos antigos direitos, sobretudo dos direitos políticos e sociais.
cidadão que dela surgia era também nacional. Isto quer dizer Se os direitos políticos significam participação no governo, uma
que a constru ção da cidadania tem a ver com a relação das diminuição no poder do governo reduz também a relev ância
pessoas com o Estado e com a nação. As pessoas se tornavam do direito de participar. Por outro lado, a ampliação da com¬
cidadãs à medida que passavam a se sentir parte de uma na ¬
petição internacional coloca pressão sobre o custo da mão-de -
ção e de um Estado. Da cidadania como a conhecemos fazem obra e sobre as finanças estatais, o que acaba afetando o em¬
parte então a lealdade a um Estado e a identificação com uma prego e os gastos do governo, do qual dependem os direitos
nação. As duas coisas também nem sempre aparecem juntas. sociais. Desse modo, as mudanças recentes têm .recolocado em
A identificação à nação pode ser mais forte do que a lealdade pauta o debate sobre o problema da cidadania, mesmo nos pa¬
ao Estado, e vice-versa. Em geral, a identidade nacional se deve íses em que ele parecia estar razoavelmente resolvido.
a fatores como religi ão, língua e, sobretudo, lutas e guerras Tudo isso mostra a complexidade do problema. O
contra inimigos comuns. A lealdade ao Estado depende do enfrentamento dessa complexidade pode ajudar a identificar
grau de participação na vida política. A maneira como se for ¬ melhor as pedras no caminho da construção democrática Não
maram os Estados-nação condiciona assim a constru ção da
.
ofereço receita da cidadania. Também n ão escrevo para espe ¬
cidadania. Em alguns países, o Estado teve mais importância cialistas. Faço convite a todos os que se preocupam com a
e o processo de difusão dos direitos se deu principalmente a democracia para uma viagem pelos caminhos tortuosos que a
partir da ação estatal. Em outros, ela se deveu mais à ação dos cidadania tem seguido no Brasil. Seguindo-lhe o percurso, o
pr ó prios cidadãos. eventual companheiro ou companheira de jornada poderá de¬
Da relação da cidadania com o Estado-nação deriva uma senvolver visão própria do problema Ao fazê lo, estará exer¬
.
ú ltima complicação do problema. Existe hoje um consenso a
-
cendo sua cidadania.
respeito da idéia de que vivemos uma crise do. Estado-nação.
CAPí TULO i Primeiros passos (1822-1930)
A primeira parte do trajeto nos levar á a percorrer 108 anos da
historia do país, desde a independência, em 1822, até o final
da Primeira República, em 1930. Fugindo da divisão costumeira
da historia política do país, englobo em um mesmo per íodo o
Império (1822-1889) e a Primeira República (1889-1930). Do
ponto de vista do progresso da cidadania, a ú nica alteração
importante que houve nesse per íodo foi a abolição da escravi ¬

dão, em 1888. A abolição incorporou os ex-escravos aos direi ¬

tos civis. Mesmo assim, a incorporação foi mais formal do que


real. A passagem de um regime político para outro em 1889
trouxe pouca mudan ça. Mais importante, pelo menos do pon ¬

to de vista político, foi o movimento que pôs fim à Primeira


República, em 1930. Antes de iniciar o percurso, no entanto, é
¬
preciso fazer r ápida excursão à fase colonial. Algumas caracte
rísticas da colonização portuguesa no Brasil deixaram marcas
duradouras, relevantes para o problema que nos interessa.

O PESO DO PASSADO (1500-1822)

Ao proclamar sua independ ência de Portugal em 1822, o Brasil


herdou uma tradi ção cívica pouco encorajadora. Em tr ês sé-
JOSÉ MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASI L

culos de colonização (1500-1822), os portugueses tinham do século XVII, quando a exploração do ouro passou a ter
construido um enorme país dotado de unidade territorial, lin¬ importância.
güística, cultural e religiosa. Mas tinham também deixado uma A mineração, sobretudo de aluvião, requeria menor volu¬
população analfabeta, uma sociedade escravocrata, uma eco¬ me de capital e de mão-de-obra. Além disso, era atividade de
nomia monocultora e latifundiária, um Estado absolutista. À natureza volátil, cheia de incertezas. As fortunas podiam surgir
é poca da independência, não havia cidadãos brasileiros, nem e desaparecer rapidamente. O ambiente urbano que logo a
pátria brasileira. cercou também contribuía para afrouxar os controles sociais,
A história da colonização é conhecida. Lembro apenas inclusive sobre a população escrava. Tudo isto contribuía para
alguns pontos que julgo pertinentes para a discussão. O pri¬ maior mobilidade social do que a existente nos latif ú ndios.
meiro deles tem a ver com o fato de que o futuro país nasceu Por outro lado, a exploração do ouro e do diamante sofreu
da conquista de povos seminômades, na idade da pedra poli ¬ com maior for ça a presença da máquina repressiva e fiscal do
da, por europeus detentores de tecnologia muito mais avan ¬ sistema colonial. As duas coisas, maior mobilidade e maior
çada. O efeito imediato da conquista foi a dominação e o controle, tornaram a região mineradora mais propícia à rebe¬
extermínio, pela guerra, pela escravização e pela doença, de lião política. Outra atividade económica importante desde o
milhões de indígenas. O segundo tem a ver com o fato de que início da colonização foi a criação de gado. O gado desenvol¬
a conquista teve conotação comercial. A colonização foi um veu-se no interior do país como atividade subsidiária da grande
empreendimento do governo colonial aliado a particulares. propriedade agrícola. A pecuária era menos concentrada do
A atividade que melhor se prestou à finalidade lucrativa foi a que o latif úndio, usava menos mão-de-obra- escrava e tinha
produ ção de açúcar, mercadoria com crescente mercado na sobre a mineração a vantagem de fugir ao controle das autori ¬
Europa. Essa produção tinha duas caracter ísticas importan ¬ dades coloniais. Mas, do lado negativo, gerava grande isola¬
tes: exigia grandes capitais e muita m ão- de-obra. A primeira mento da população em relação ao mundo da administração
foi responsável pela grande desigualdade que logo se estabe¬ e da política. O poder privado exercia o domínio inconteste .
leceu entre os senhores de engenho e os outros habitantes; a O fator mais negativo para a cidadania foi a escravid ão .
segunda, pela escravização dos africanos. Outros produtos Os escravos começaram a ser importados na segunda metade
tropicais, como o tabaco, juntaram-se depois ao açú car. Con- do século XVI. A importação continuou ininterrupta até 1850,
solidou-se, por esse modo, um traço que marcou durante sé ¬ 28 anos após a independência. Calcula-se que até 1822 te ¬
culos a economia e a sociedade brasileiras: o latif ú ndio nham sido introduzidos na colónia cerca de 3 milh ões de es ¬

monocultor e exportador de base escravista. Formaram-se, ao cravos. Na época da independência, numa população de cer¬
longo da costa, n úcleos populacionais baseados nesse tipo de ca de 5 milhões, incluindo uns 800 mil índios, havia mais de
atividade que constituíram os principais pólos de desenvolvi ¬ 1 milhão de escravos. Embora concentrados nas áreas de gran¬
mento da colónia e lhe deram viabilidade económica até o final de agricultura exportadora e de mineração, havia escravos em
CIDADANIA NO BRASIL
JOS É MURILO DE CARVALHO

nas, em parte pelo simples estupro. No caso das escravas afri¬


todas as atividades, inclusive urbanas. Nas cidades eles exer¬
ciam várias tarefas dentro das casas e na rua. Nas casas, as
canas, o estupro era a regra.
Escravidão e grande propriedade não constituíam ambien¬
escravas faziam o serviço doméstico, amamentavam os filhos
te favor ável à formação de futuros cidad ãos. Os escravos não
das sinhás, satisfaziam a concupiscência dos senhores. Os fi¬
eram cidad ãos, n ão tinham os direitos civis básicos à integri¬
lhos dos escravos faziam pequenos trabalhos e serviam de
dade f ísica (podiam ser espancados), à liberdade e, em casos
montaria nos brinquedos dos sinhozinhos. Na rua, trabalha¬
extremos, à pr ó pria vida, já que a lei os considerava proprie¬
vam para os senhores ou eram por eles alugados. Em muitos
dade do senhor, equiparando-os a animais. Entre escravos e
casos, eram a ú nica fonte de renda de viúvas. Trabalhavam de
senhores, existia uma população legalmente livre, mas a que
carregadores, vendedores, artesãos, barbeiros, prostitutas.
Alguns eram alugados para mendigar. Toda pessoa com algum
faltavam quase todas as condições para o exercício dos direi¬
tos civis, sobretudo a educação. Ela dependia dos grandes
recurso possuía um ou mais escravos. O Estado, os funcioná¬
proprietários para morar, trabalhar e defender-se contra o
rios pú blicos, as ordens religiosas, os padres, todos eram pro¬
arbítrio do governo e de outros proprietários. Os que fugiam
prietários de escravos. Era tão grande a for ça da escravidão
para o interior do país viviam isolados de toda convivência
que os pr ó prios libertos, uma vez livres, adquiriam escravos.
social, transformando-se, eventualmente, eles pr óprios em
A escravidão penetrava em todas as classes, em todos os luga¬
grandes proprietários.
res, em todos os desvãos da sociedade: a sociedade colonial
era escravista de alto a baixo.
Não se pode dizer que os senhores fossem cidadãos. Eram,
sem dúvida, livres, votavam e eram votados nas elei ções mu ¬
A escravização de índios foi praticada no início do perío¬
nicipais. Eram os “homens bons” do período colonial. Falta¬
do colonial, mas foi proibida pelas leis e teve a oposição deci¬
va-lhes, no entanto, o próprio sentido da cidadania, a noção
dida dos jesuítas. Os índios brasileiros foram rapidamente
da igualdade de todos perante a lei. Eram simples potentados
dizimados. Calcula-se que havia na época da descoberta cer ¬
que absorviam parte das funções do Estado, sobretudo as fun ¬
ca de 4 milhões de índios. Em 1823 restava menos de 1 mi ¬
ções judiciárias. Em suas mãos, a justiça, que, como vimos, é
lh ão. Os que escaparam ou se miscigenaram ou foram empur ¬
a principal garantia dos direitos civis, tornava-se simples ins¬
rados para o interior do país. A miscigenação se deveu à na¬
trumento do poder pessoal. O poder do governo terminava
tureza da colonização portuguesa: comercial e masculina.
Portugal, à é poca da conquista, tinha cerca de 1 milh ão de na porteira das grandes fazendas.
habitantes, insuficientes para colonizar o vasto império que A justiça do rei tinha alcance limitado, ou porque não atin¬
gia os locais mais afastados das cidades, ou porque sofria a
conquistara, sobretudo as partes menos habitadas, como o
Brasil. N ão havia mulheres para acompanhar os homens. oposição da justiça privada dos grandes proprietários, ou
porque não tinha autonomia perante as autoridades executi¬
Miscigenar era uma necessidade individual e política. A mis ¬
vas, ou, finalmente, por estar sujeita à corrup ção dos magis-
cigenação se deu em parte por aceitação das mulheres indíge¬
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

trados. Muitas causas tinham que ser decididas em Lisboa, per íodo colonial. Mas se verificarmos que em 1872, meio
consumindo tempo e recursos fora do alcance da maioria da século após a independência, apenas 16% da população era
população. O cidad ão comum ou recorria à proteção dos gran¬ alfabetizada, poderemos ter uma idéia da situação àquela é po ¬
des proprietários, ou ficava à mercê do arbítrio dos mais for ¬ ca. É claro que n ão se poderia esperar dos senhores qualquer
tes. Mulheres e escravos estavam sob a jurisdição privada dos iniciativa a favor da educação de seus escravos ou de seus
senhores, não tinham acesso à justiça para se defenderem. Aos dependentes. Não era do interesse da administração colonial,
escravos só restava o recurso da fuga e da formação de ou dos senhores de escravos, difundir essa arma cívica. Não
quilombos. Recurso precário porque os quilombos eram sis¬ havia também motivação religiosa para se educar. A Igreja
tematicamente combatidos e exterminados por tropas do go¬ Católica não incentivava a leitura da Bíblia. Na Colónia, só
verno ou de particulares contratados pelo governo. se via mulher aprendendo a ler nas imagens de Sant’Ana Mes¬
Freq üentemente, em vez de conflito entre as autoridades tra ensinando Nossa Senhora.
e os grandes proprietários, havia entre eles conluio, depen ¬ A situação não era muito melhor na educação superior.
d ê ncia m ú tua. A autoridade m áxima nas localidades, por Em contraste com a Espanha, Portugal nunca permitiu a cria¬
exemplo, eram os capitães-mores das milícias. Esses capitães- ção de universidades em sua colónia. Ao final do período
mores eram de investidura real, mas sua escolha era sempre colonial, havia pelo menos 23 universidades na parte espa¬
feita entre os representantes da grande propriedade. Havia, nhola da América, três delas no México. Umas 150 mil pes¬
então, confusão, que era igualmente conivência, entre o po¬ soas tinham sido formadas nessas universidades. Só a Univer ¬
der do Estado e o poder privado dos proprietários. Os im¬ sidade do México formou 39.367 estudantes. Na parte por¬
postos eram també m freq ü entemente arrecadados por meio tuguesa, escolas superiores só foram admitidas após a chegada
de contratos com particulares. Outras funções públicas, como da corte, em 1808. Os brasileiros que quisessem, e pudessem,
o registro de nascimentos, casamentos e óbitos, eram exercidas seguir curso superior tinham que viajar a Portugal, sobretudo
pelo clero católico. A conseqüéncia de tudo isso era que n ão a Coimbra. Entre 1772 e 1872, passaram pela Universidade
existia de verdade um poder que pudesse ser chamado de de Coimbra 1.242 estudantes brasileiros. Comparado com os
público, isto é, que pudesse ser a garantia da igualdade de todos 150 mil da colónia espanhola, o nú mero é ridículo.
perante a lei, que pudesse ser a garantia dos direitos civis. A situação da cidadania na Colónia pode ser resumida nas
Outro aspecto da administração colonial portuguesa que palavras atribuídas por Frei Vicente do Salvador a um bispo
dificultava o desenvolvimento de uma consciência de direitos de Tucumán de passagem pelo Brasil. Segundo Frei Vicente,
era o descaso pela educação primária. De início, ela estava nas em sua História do Brasil, 1500-1627, teria dito o bispo:
mãos dos jesuítas. Após a expulsão desses religiosos em 1759, “Verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas,
o governo dela se encarregou, mas de maneira completamen¬ porque toda ela não é república, sendo-o cada casa.” Não havia
te inadequada. Não há dados sobre alfabetização ao final do repú blica no Brasil, isto é, não havia sociedade política; n ão
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

havia “repúblicos”, isto é, não havia cidadãos. Os direitos ci¬ senhores de engenho e, sobretudo, padres. Calcula se em 45
-
vis beneficiavam a poucos, os direitos políticos a pouquíssimos, o n ú mero de padres envolvidos. Sob forte influência maçóni¬
dos direitos sociais ainda n ão se falava, pois a assistência so ¬ ca, os rebeldes proclamaram uma república independente que
cial estava a cargo da Igreja e de particulares. incluía, além de Pernambuco, as capitanias da Paraíba e do
Foram raras, em conseqiiência, as manifestações cívicas Rio Grande do Norte. Controlaram o governo durante dois
durante a Colónia. Excetuadas as revoltas escravas, das quais meses. Alguns dos líderes, inclusive padres, foram fuzilados.
a mais importante foi a de Palmares, esmagada por particula¬ Na revolta de 1817 apareceram com mais clareza alguns
res a soldo do governo, quase todas as outras foram conflitos traços de uma nascente consciência de direitos sociais e polí¬
entre setores dominantes ou reações de brasileiros contra o ticos. A república era vista como o governo dos povos livres,
domínio colonial. No século XVIII houve quatro revoltas po¬ em oposição ao absolutismo monárquico. Mas as idéias de
líticas. Três delas foram lideradas por elementos da elite e igualdade não iam muito longe. A escravidão não foi tocada.
constituíam protestos contra a política metropolitana, a favor Em 1817, houve, sobretudo, manifestação do espírito de re¬
da independência de partes da colónia. Duas se passaram sinto¬ sistência dos pernambucanos. Sintomaticamente, falava-se em
maticamente na região das minas, onde havia condições mais “patriotas” e não em “cidadãos”. E o patriotismo era pernam¬
favor áveis à rebelião. A mais politizada foi a Inconfidê ncia bucano mais que brasileiro. A identidade pernambucana fora
Mineira (1789), que se inspirou no ideário iluminista do sé¬ gerada durante a prolongada luta contra os holandeses, no
culo XVIII e no exemplo da independ ência das col ónias da século XVII. Como vimos, guerras são poderosos fatores de
América do Norte. Mas seus líderes se restringiam aos seto¬ criação de identidade.
res dominantes militares, fazendeiros, padres, poetas e Chegou-se ao fim do per íodo colonial com a grande maio¬
— —
magistrados , e ela n ão chegou às vias de fato. ria da população excluída dos direitos civis e políticos e sem a
Mais popular foi a Revolta dos Alfaiates, de 1798, na existência de um sentido de nacionalidade. No máximo, ha¬
Bahia, a ú nica envolvendo militares de baixa patente, artesãos via alguns centros urbanos dotados de uma população politi¬
e escravos. Já sob a influência das idéias da Revolução Fran¬ camente mais aguerrida e algum sentimento de identidade
cesa, sua natureza foi mais social e racial que política. O alvo regional.
principal dos rebeldes, quase todos negros e mulatos, era a
escravidão e o domínio dos brancos. Distinguia-se das revol¬
tas de escravos anteriores por se localizar em cidade impor¬ 1822: OS DIREITOS POLÍTICOS SAEM NA FRENTE
tante e não buscar a fuga para quilombos distantes. Foi repri¬
mida com rigor. A última e mais séria revolta do período co¬ A independência não introduziu mudança radical no panora¬
lonial aconteceu em Pernambuco, em 1817, Os rebeldes de ma descrito. Por um lado, a herança colonial era por demais
Pernambuco eram militares de alta patente, comerciantes, negativa; por outro, o processo de independência envolveu
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

conflitos muito limitados. Em comparação com os outros ser possível uma solução que não implicasse a separação com¬
países da Am érica Latina, a independência do Brasil foi rela¬ pleta de Portugal. Foram as tentativas das Cortes portugue¬
tivamente pacífica. O conflito militar limitou-se a escaramu¬ sas de reconstituir a situação colonial que uniram os brasi ¬
ças no Rio de Janeiro e à resistência de tropas portuguesas leiros em torno da idéia de separação. Mesmo assim, a sepa¬
em algumas províncias do norte, sobretudo Bahia e Maranhão. ração foi feita mantendo-se a monarquia e a casa de
Não houve grandes guerras de libertação como na América Bragan ça. Graças à intermediação da Inglaterra, Portugal
espanhola. Não houve mobilização de grandes exércitos, fi¬ aceitou a independência do Brasil mediante o pagamento de
guras de grandes “libertadores”, como Simón Bolívar, José de uma indenização de 2 milhões de libras esterlinas A escolha
.
San Martin, Bernardo O’Higgins, Antonio José de Sucre. Tam¬ de uma solução monárquica em vez de republicana deveu-
bém não houve revoltas libertadoras chefiadas por líderes se à convicção da elite de que só a figura de um rei poderia
populares, como os mexicanos Miguel Hidalgo e José María manter a ordem social e a união das províncias que forma¬
Morelos. A revolta que mais se aproximou deste último mo ¬ vam a antiga colónia. O exemplo do que acontecera e ainda
delo foi a de 1817, que se limitou a pequena parte do país e acontecia na ex colônia espanhola assustava a elite Seus
- .
foi derrotada. membros mais ilustrados, como José Bonif ácio, queriam
A principal caracter ística política da independência brasi¬ evitar a todo custo a fragmentação da ex-colônia em v á rios
leira foi a negociação entre a elite nacional, a coroa portu¬ países pequenos e fracos, e sonhavam com a constru ção de
guesa e a Inglaterra, tendo como figura mediadora o pr íncipe um grande império Os outros temiam ainda que a agitação
.
,
e a violência, prov áveis caso a op ção fosse pela república,
D. Pedro. Do lado brasileiro, o principal negociador foi José
Bonifácio, que vivera longos anos em Portugal e fazia parte trouxessem riscos para a ordem social. Acima de tudo, os
da alta burocracia da metrópole. Havia sem d úvida partici ¬ proprietários rurais receavam algo parecido com o que su¬
pantes mais radicais, sobretudo padres e maçons. Mas a maio¬ cedera no Haiti, onde os escravos se tinham rebelado, pro¬
ria deles também aceitou uma independê ncia negociada. A clamado a independência e expulsado a população branca .
população do Rio de Janeiro e de outras capitais apoiou com O “haitianismo”, como se dizia na é poca, era um espanta¬
entusiasmo o movimento de independ ê ncia, e em alguns lho poderoso num país que dependia da m ão-de obra escra¬
-
momentos teve papel importante no enfrentamento das tro¬ va e em que dois ter ços da população eram mesti ços Era .
pas portuguesas. Mas sua principal contribuição foi secundar importante que a independência se fizesse de maneira orde ¬
por meio de manifestações públicas a ação dos líderes, inclu¬ nada, para evitar esses inconvenientes. Nada melhor do que
sive a de D. Pedro. O radicalismo popular manifestava-se so¬ um rei para garantir uma transição tranquila, sobretudo se
bretudo no ódio aos portugueses que controlavam as posições esse rei contasse, como contava, com apoio popular .
de poder e o comércio nas cidades costeiras . O papel do povo, se não foi de simples espectador, como
Parte da elite brasileira acreditou até o último momento queria Eduardo Prado, que o comparou ao carreiro do qua -
26 7 7
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

dro Independência ou morte!, de Pedro Américo, também não direções opostas: a direção americana, republicana, e a dire¬
foi decisivo, nem tão importante como na Am érica do Norte ção européia, monárquica. Do lado americano, havia o exem¬
ou mesmo na América espanhola. Sua presença foi maior nas plo admirado dos Estados Unidos e o exemplo recente, mais
cidades costeiras; no interior, foi quase nula. Nas capitais temido que admirado, dos países hispânicos. Do lado euro¬
provinciais mais distantes, a notícia da independência só che¬ peu, havia a tradição colonial portuguesa, as pressões da San¬
gou uns tr ês meses depois; no interior do país, demorou ain¬ ta Alian ça e, sobretudo, a influência mediadora da Inglaterra.
da mais. Por isso, se não se pode dizer que a independência se Foi esta última que facilitou a solu ção conciliadora e forne¬
fez à revelia do povo, também não seria correto afirmar que ceu o modelo de monarquia constitucional, complementado
ela foi fruto de uma luta popular pela liberdade. O papel do pelas id éias do liberalismo francês pós-revolucion ário. O
povo foi mais decisivo em 1831, quando o primeiro impera¬ constitucionalismo exigia a presen ça de um governo repre¬
dor foi for çado a renunciar. Houve grande agitação nas ruas sentativo baseado no voto dos cidad ãos e na separação dos
do Rio de Janeiro, e uma multidão se reuniu no Campo de poderes políticos. A Constituição outorgada de 1824, que
Santana exigindo a reposição do ministério deposto. Ao povo regeu o país até o fim da monarquia, combinando idéias de
uniram-se a tropa e vários políticos em raro momento de con¬ constituições européias, como a francesa de 1791 e a espa ¬
fraternização. Embora o movimento se limitasse ao Rio de nhola de 1812, estabeleceu os três poderes tradicionais, o
Janeiro, o apoio era geral. No entanto, se é possível conside¬ Executivo, o Legislativo (dividido em Senado e Câmara) e o
rar 1831 como a verdadeira data da independência do país, Judiciário. Como resíduo do absolutismo, criou ainda um
os efeitos da transição de 1822 já eram suficientemente for ¬ quarto poder, chamado de Moderador, que era privativo do
tes para garantir a solução monárquica e conservadora. imperador. A principal atribuição desse poder era a livre no ¬
A tranqiiilidade da transição facilitou a continuidade so¬ meação dos ministros de Estado, independentemente da opi ¬
cial. Implantou-se um governo ao estilo das monarquias cons¬ nião do Legislativo. Essa atribuição fazia com que o sistema
titucionais e representativas européias. Mas não se tocou na n ão fosse auténticamente parlamentar, conforme o modelo
escravidão, apesar da pressão inglesa para aboli-la ou, pelo inglês. Poderia ser chamado de monarquia presidencial, de vez
menos, para interromper o tráfico de escravos. Com todo o que no presidencialismo republicano a nomeação de minis¬
seu liberalismo, a Constituição ignorou a escravid ão, como tros tamb ém independe da aprovação do Legislativo.
se ela não existisse. Aliás, como vimos, nem a revolta republi¬ A Constituição regulou os direitos políticos, definiu quem
cana de 1817 ousou propor a libertação dos escravos. Assim, teria direito de votar e ser votado. Para os padr ões da é poca,
apesar de constituir um avanço no que se refere aos direitos a legislação brasileira era muito liberal. Podiam votar todos
políticos, a independ ência, feita com a manuten ção da escra¬ os homens de 25 anos ou mais que tivessem renda mínima de
vidão, trazia em si grandes limitações aos direitos civis. 100 mil-r éis. Todos os cidadãos qualificados eram obrigados
À é poca da independência, o Brasil era puxado em duas a votar. As mulheres não votavam, e os escravos, naturalmen-

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JOS É MURILO DE CARVALHO
CIDADANIA NO BRAS I L

te, não eram considerados cidad ãos. Os libertos podiam vo¬ culina participasse da formação do governo. Na pr ática, o
tar na elei ção prim ária. A limitação de idade comportava ex ¬ número de pessoas que votavam era também grande, se leva¬
ceções. O limite caía para 21 anos no caso dos chefes de fa¬ dos em conta os padr ões dos países europeus. De acordo com
mília, dos oficiais militares, bachar éis, cl érigos, empregados o censo de 1872, 13% da população total, excluídos os escra¬
p ú blicos, em geral de todos os que tivessem independência vos, votavam. Segundo cálculos do historiador Richard
Graham, antes de 1881 votavam em torno de 50% da popu ¬
económica. A limitação de renda era de pouca importância .
A maioria da populaçã o trabalhadora ganhava mais de 100 lação adulta masculina. Para efeito de comparação, observe-
mil-r éis por ano. Em 1876, o menor sal ário do serviço públi¬ se que em torno de 1870 a participação eleitoral na Inglater¬
co era de 600 mil-r éis. O critério de renda não excluía a po¬ ra era de 7% da população total; na Itália, de 2%; em Portu¬
pulação pobre do direito do voto. Dados de um município gal, de 9%; na Holanda, de 2,5%. O sufrágio universal mas¬
do interior da prov íncia de Minas Gerais, de 1876, mostram culino existia apenas na França e na Suíça, onde só foi intro¬
que os proprietá rios rurais representavam apenas 24% dos duzido em 1848. Participação mais alta havia nos Estados
votantes. O restante era composto de trabalhadores rurais, Unidos, onde, por exemplo, 18% da população votou para
artesãos, empregados públicos e alguns poucos profissionais presidente em 1888. Mas, mesmo neste caso, a diferen ça não
liberais. As exigências de renda na Inglaterra, na é poca, eram era tão grande.
muito mais altas, mesmo depois da reforma de 1832. A lei Ainda pelo lado positivo, note-se que houve elei çõ es
brasileira permitia ainda que os analfabetos votassem. Talvez ininterruptas de 1822 até 1930. Elas foram suspensas apenas
nenhum país europeu da é poca tivesse legislação tão liberal. em casos excepcionais e em locais específicos. Por exemplo,
A elei ção era indireta, feita em dois turnos. No primeiro, durante a guerra contra o Paraguai, entre 1865 e 1870, as
os votantes escolhiam os eleitores, na propor ção de um elei¬ elei ções foram suspensas na província do Rio Grande do Sul,
tor para cada 100 domicílios. Os eleitores, que deviam ter muito pr óxima do teatro de operações. A proclamação da
renda de 200 mil-r éis, elegiam os deputados e senadores. Os Rep ública, em 1889, também interrompeu as elei ções por
senadores eram eleitos em lista tr íplice, da qual o imperador muito pouco tempo; elas foram retomadas já no ano seguin ¬
te. A freqiiência das eleições era também grande, pois os man¬
escolhia o candidato de sua prefer ê ncia. Os senadores eram
vitalícios, os deputados tinham mandato de quatro anos, a não datos de vereadores e juízes de paz eram de dois anos, havia
ser que a Câmara fosse dissolvida antes. Nos municípios, os eleições de senadores sempre que um deles morria, e a Câma¬
vereadores e juízes de paz eram eleitos pelos votantes em um ra dos Deputados era dissolvida com freqiiência. Este era o
¬
lado formal dos direitos políticos. Ele, sem d úvida, represen
só turno. Os presidentes de prov íncia eram de nomeação do
tava grande avanço em relação à situação colonial. Mas é pre¬
governo central.
Esta legislação permaneceu quase sem alteração até 1881. ciso perguntar pela parte substantiva. Como se davam as elei ¬
Em tese, ela permitia que quase toda a população adulta mas- çõ es ? Que significavam elas na prática? Que tipo de cidadão

3 o 31
JOS É MURILO DE CARVALHO
CIDADANIA NO BRASIL

era esse que se apresentava para exercer seu direito político ?


Qual era, enfim, o conteúdo real desse direito ? pelos patrões, pelas autoridades do governo, pelos juízes de
Não é difícil imaginar a resposta. Os brasileiros tornados paz, pelos delegados de polícia, pelos párocos, pelos coman¬
cidadãos pela Constituição eram as mesmas pessoas que ti¬ dantes da Guarda Nacional. A luta política era intensa e vio¬
nham vivido os três séculos de colonização nas condições que lenta. O que estava em jogo não era o exercício de um direito
já foram descritas. Mais de 85% eram analfabetos, incapazes de cidadão, mas o domínio político local. O chefe político local
de ler um jornal, um decreto do governo, um alvará da justi¬ não podia perder as eleições. A derrota significava desprestígio
ça, uma postura municipal. Entre os analfabetos incluíam-se e per da de controle de cargos públicos, como os de delegados
muitos dos grandes proprietários rurais. Mais de 90% da de polícia, de juiz municipal, de coletor de rendas, de postos
população vivia em áreas rurais, sob o controle ou a influên¬ na Guarda Nacional. Tratava, então, de mobilizar o maior
cia dos grandes proprietários. Nas cidades, muitos votantes número possível de dependentes para vencer as eleições.
eram funcionários públicos controlados pelo governo . As eleições eram freq úentemente tumultuadas e violentas.
Nas áreas rurais e urbanas, havia ainda o poder dos co¬ Às vezes eram espetáculos tragicómicos. O governo tentava
mandantes da Guarda Nacional. A Guarda era uma organiza¬ sempre reformar a legislação para evitar a violência e a frau¬
de, mas sem muito êxito. No período inicial, a formação das
ção militarizada que abrangia toda a população adulta mas¬
culina. Seus oficiais eram indicados pelo governo central en¬ mesas eleitorais dependia da aclamação popular. Aparente¬
mente, um procedimento muito democr ático. Mas a conse-
tre as pessoas mais ricas dos municípios. Nela combinavam -
se as influências do governo e dos grandes proprietários e qiiência era que a votação primária acabava por ser decidida
comerciantes. Era grande o poder de pressão de seus coman¬ literalmente no grito. Quem gritava mais formàva as mesas, e
dantes sobre os votantes que eram seus inferiores hier árquicos. as mesas faziam as eleiçõ es de acordo com os interesses de
uma facção. Segundo um observador da época, Francisco
A maior parte dos cidadãos do novo país não tinha tido
prática do exercício do voto durante a Colónia. Certamente, Belisário Soares de Sousa, a turbulência, o alarido, a violên¬
não tinha também noção do que fosse um governo represen¬ cia, a pancadaria decidiam o conflito. E imagine-se que tudo
tativo, do que significava o ato de escolher alguém como seu isto acontecia dentro das igrejas! Por precau ção, as imagens
representante político. Apenas pequena parte da população
eram retiradas para não servirem de projéteis. Surgiram vários
urbana teria noção aproximada da natureza e do funciona¬ especialistas em burlar as eleições. O principal era o cabalista.
mento das novas instituições. Até mesmo o patriotismo tinha
A ele cabia garantir a inclusão do maior n úmero possível de
alcance restrito. Para muitos, ele n ão ia além do ódio ao por ¬ partidários de seu chefe na lista de votantes. Um ponto im¬
tuguês, n ão era o sentimento de pertencer a uma pátria co¬ portante para a inclusão ou exclusão era a renda. Mas a lei
mum e soberana. não dizia como devia ser ela demonstrada. Cabia ao cabalista
Mas votar, muitos votavam. Eram convocados às elei ções fornecer a prova, que em geral era o testemunho de algu ém
pago para jurar que o votante tinha renda legal.
3 2
JOS É MURILO DE CARVALHO
CIDADANIA NO BRASIL

O cabalista devia ainda garantir o voto dos alistados. Na assim mesmo. A ata era redigida como se tudo tivesse
hora de votar, os alistados tinham que provar sua identidade. aconte¬
cido normalmente. Eram as chamadas eleições feitas a bico .
Aí entrava outro personagem importante: o “fósforo”. Se o “
de pena”, isto é, apenas com a caneta. Em geral, eram as que
alistado não podia comparecer por qualquer razão, inclusive davam a apar ê ncia de maior regularidade, pois constava na
por ter morrido, comparecia o f ósforo, isto é, uma pessoa que ata que tudo se passara sem viol ê ncia e absolutamente de
se fazia passar pelo verdadeiro votante. Bem-falante, tendo acor¬
do com as leis.
ensaiado seu papel, o fósforo tentava convencer a mesa elei¬
¬
Nestas circunstâncias, o voto tinha um sentido completa
toral de que era o votante legítimo. O bom fósforo votava mente diverso daquele imaginado pelos legisladores. Não se
várias vezes em locais diferentes, representando diversos vo¬ tratava do exercício do autogoverno, do direito de participar
tantes. Havia situaçõ es verdadeiramente cómicas. Podia acon¬ na vida política do país. Tratava-se de uma ação estritamente
tecer aparecerem dois f ósforos para representar o mesmo relacionada com as lutas locais. O votante não agia como parte
votante. Vencia o mais hábil ou o que contasse com claque de uma sociedade política, de um partido político, mas como
mais forte. O máximo da ironia dava-se quando um fósforo dependente de um chefe local, ao qual obedecia com maior
disputava o direito de votar com o verdadeiro votante. Gran¬ ou menor fidelidade. O voto era um ato de obediência força¬
de façanha era ganhar tal disputa. Se conseguia, seu pagamento da ou, na melhor das hipóteses, um ato de lealdade e de gra¬
era dobrado. tidão. À medida que o votante se dava conta da importância
Outra figura importante era o capanga eleitoral. Os ca ¬
do voto para os chefes pol íticos, ele começava a barganhar
pangas cuidavam da parte mais truculenta do processo. Eram mais, a vendê-lo mais caro. Nas cidades, onde a depend ência
pessoas violentas a soldo dos chefes locais. Cabia-lhes prote¬ social do votante era menor, o preço do voto subia mais rápi ¬
ger os partidários e, sobretudo, ameaçar e amedrontar os ad¬ do. Os chefes não podiam confiar apenas na obediência e leal ¬
versários, se possível evitando que comparecessem à eleição. dade, tinham que pagar pelo voto. O pagamento podia ser
Não raro entravam em choque com capangas adversários, feito de várias formas, em dinheiro, roupa, alimentos, animais.
provocando os “rolos” eleitorais de que está cheia a história
¬
A crescente independência do votante exigia també m do che
do período. Mesmo no Rio de Janeiro, maior cidade do país, fe político precauções adicionais para não ser enganado. Por
a ação dos capangas, freqiientemente capoeiras, era comum.
¬
meio dos cabalistas, mantinha seus votantes reunidos e vigia
Nos dias de elei ção, bandos armados saíam pelas ruas ame ¬
dos em barracões, ou currais, onde lhes dava farta comida e
drontando os incautos cidadãos. Pode-se compreender que, bebida, até a hora de votar. O cabalista só deixava o votante
nessas circunstâncias, muitos votantes não ousassem compa ¬
após ter este lançado seu voto. Os votantes aprendiam tam ¬
recer, com receio de sofrer humilhações. Votar era perigoso. bém a negociar o voto com mais de um chefe. Alguns conse¬
Mas não acabavam aí as malandragens eleitorais. Em caso guiam vendê-lo a mais de um cabalista, vangloriando-se do
de não haver comparecimiento de votantes, a eleição se fazia
feito. O voto neste caso não era mais expressão de obediê n-
CIDADANIA NO BRASIL
JOS É MURILO DE CARVALHO

O interesse desses proprietários era baratear as eleições sem


cia e lealdade, era mercadoria a ser vendida pelo melhor pre¬
pôr em risco a vitória. O meio para isso era reduzir o n ú mero
ço. A eleição era a oportunidade para ganhar um dinheiro fácil,
de votantes e a competitividade das eleições. A eleição ideal
uma roupa, um chapéu novo, um par de sapatos. No míni¬
para eles era a de “ bico de pena”: barata, garantida, “limpa”.
mo, uma boa refeição.
Além da participação eleitoral, houve, após a independên ¬
O encarecimento do voto e a possibilidade de fraude ge¬
cia, outras formas de envolvimento dos cidadãos com o Esta¬
neralizada levaram à crescente reação contra o voto indireto
do. A mais importante era o serviço do júri. Pertencer ao cor¬
e a uma campanha pela introdução do voto direto. Da parte
po de jurados era participar diretamente do Poder Judiciário.
de alguns políticos, havia interesse genuíno pela correção do
Essa participação tinha alcance menor, pois exigia alfabetiza¬
ato de votar. Incomodava-os, sobretudo, a grande influência
ção. Mas, por outro lado, era mais intensa, de vez que havia
que o governo podia exercer nas eleições por meio de seus
duas sessões do jú ri por ano, cada uma de 15 dias. Em torno
agentes em aliança com os chefes locais. Nenhum ministério
de 80 mil pessoas exerciam a fun ção de jurado em 1870. A
perdia eleições, isto é, nenhum se via diante de maioria
pr ática também estava longe de corresponder à intenção da
oposicionista na Câmara. Nenhum ministro de Estado era der¬
lei, mas quem participava do júri sem dúvida se aproximava
rotado nas urnas. Para outros, no entanto, o que preocupava
do exercício do poder e adquiria alguma noção do papel da
era o excesso de participação popular nas eleições. Alegavam
lei. A Guarda Nacional, criada em 1831, era sobretudo um
que a culpa da corrupção estava na falta de preparação dos
mecanismo de cooptar os proprietários rurais, mas servia tam ¬
votantes analfabetos, ignorantes, inconscientes. A proposta de
bém para transmitir aos guardas algum sentido. de disciplina
eleição direta para esses políticos tinha como pressuposto o
e de exercício de autoridade legal. Estavam sujeitas ao servi¬
aumento das restrições ao direito do voto. Tratava-se, sobre¬
ço da Guarda quase as mesmas pessoas que eram obrigadas a
tudo, de reduzir o eleitorado à sua parte mais educada, mais
votar. Experiência totalmente negativa era o servi ço militar
rica e, portanto, mais independente. Junto com a eliminação
no Exército e na Marinha. O car áter violento do recrutamen¬
dos dois turnos, propunham-se o aumento da exigência de
to, o serviço prolongado, a vida dura do quartel, de que fazia
renda e a proibição do voto do analfabeto.
parte o castigo físico, tornavam o serviço militar em ou¬
Havia ainda uma razão material para combater o voto —
tros países, símbolo do dever cívico um tormento de que
ampliado. Os proprietários rurais queixavam-se do custo cres¬ —
todos procuravam fugir.
cente das eleições. A vitória era importante para manter seu
A forma mais intensa de envolvimento, no entanto, foi a
prestígio e o apoio do governo. Para ganhar, precisavam man¬
que se deu durante a guerra contra o Paraguai. As guerras
ter um grande nú mero de dependentes para os quais não ti¬
são fatores importantes na criação de identidades nacionais.
nham ocupação económica, cuja única finalidade era votar na
A do Paraguai teve sem d ú vida este efeito. Para muitos bra¬
época de eleiçõ es. Além disso, como vimos, o votante ficava
sileiros, a idéia de pátria n ão tinha materialidade, mesmo
cada vez mais esperto e exigia pagamentos cada vez maiores.
3 7
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

ap ós a independência. Vimos que existiam no máximo iden¬ corretamente, que a lei era um erro de sintaxe política, pois
tidades regionais. A guerra veio alterar a situação. De repente criava uma oração política sem sujeito, um sistema represen¬
havia um estrangeiro inimigo que, por oposição, gerava o sen¬ tativo sem povo.
timento de identidade brasileira. São abundantes as indicações O limite de renda estabelecido pela nova lei, 200 mil- r éis,
do surgimento dessa nova identidade, mesmo que ainda em ainda não era muito alto. Mas a lei era muito rígida no que se
esboço. Podem-se mencionar a apresentação de milhares de referia à maneira de demonstrar a renda. Não bastavam de ¬
voluntários no início da guerra, a valorização do hino e da clarações de terceiros, como anteriormente, nem mesmo dos
bandeira, as canções e poesias populares. Caso marcante foi empregadores. Muitas pessoas com renda suficiente deixavam
o de Jovita Feitosa, mulher que se vestiu de homem para ir à de votar por não conseguirem provar seus rendimentos ou por
guerra a fim de vingar as mulheres brasileiras injuriadas pelos não estarem dispostas a ter o trabalho de prová-los. Mas onde
paraguaios. Foi exaltada como a Joana d’Arc nacional. Luta¬ a lei de fato limitou o voto foi ao excluir os analfabetos. A
ram no Paraguai cerca de 135 mil brasileiros, muitos deles razão é simples: somente 15% da população era alfabetizada,
negros, inclusive libertos. ou 20%, se considerarmos apenas a população masculina. De
imediato, 80% da população masculina era excluída do direi¬
to de voto.
1881: TROPE ÇO As conseqiiências logo se refletiram nas estatísticas eleito¬
rais. Em 1872, havia mais de 1 milh ão de votantes, corres¬
Em 1881, a Câmara dos Deputados aprovou lei que introdu¬ pondentes a 13% da população livre. Em 1886, votaram nas
zia o voto direto, eliminando o primeiro turno das eleições. eleições parlamentares pouco mais de 100 mil eleitores, ou
Não haveria mais, daí em diante, votantes, haveria apenas 0,8% da população total. Houve um corte de quase 90% do
eleitores. Ao mesmo tempo, a lei passava para 200 mil-réis a eleitorado. O dado é chocante, sobretudo se lembrarmos que
exigência de renda, proibia o voto dos analfabetos e tornava a tend ência de todos os países europeus da época era na dire ¬
o voto facultativo. A lei foi aprovada por uma Câmara un áni¬ ção de ampliar os direitos políticos. A Inglaterra, sempre olha¬
memente liberal, em que n ão havia um só deputado conser ¬ da como exemplo pelas elites brasileiras, fizera reformas 'im ¬
vador. Foram poucas as vozes que protestaram contra a mu¬ portantes em 1832, em 1867 e em 1884, expandindo o elei ¬
dança. Entre elas, a do deputado Joaquim Nabuco, que atri¬ torado de 3% para cerca de 15%. Com a lei de 1881, o Brasil
buiu a culpa da corrupção eleitoral não aos votantes mas aos caminhou para tr ás, perdendo a vantagem que adquirira com
candidatos, aos cabalistas, às classes superiores. Outro depu¬ a Constituição de 1824 .
tado, Saldanha Marinho, foi contundente: “ Não tenho receio O mais grave é que o retrocesso foi duradouro. A procla¬
do voto do povo, tenho receio do corruptor.” Um terceiro mação da Rep ú blica, em 1889, não alterou o quadro. A Re ¬
deputado, José Bonif ácio, o Moço, afirmou, retó rica mas pú blica, de acordo com seus propagandistas, sobretudo aque -
38 39
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

les que se inspiravam nos ideais da Revolução Francesa, de¬ Bruzundangas, no qual descreve uma república imaginária em
veria representar a instauração do governo do país pelo povo, que “os políticos práticos tinham conseguido quase totalmente
por seus cidadãos, sem a interfer ência dos privilégios mo ¬ eliminar do aparelho eleitoral este elemento perturbador o
n árquicos. No entanto, apesar das expectativas levantadas

voto ”. A repú blica dos Bruzundangas se parecia muito com a
entre os que tinham sido excluídos pela lei de 1881, pouca república dos brasileiros
.
coisa mudou com o novo regime. Pelo lado legal, a Constitui¬ Do ponto de vista da representação política, a Primeira
ção republicana de 1891 eliminou apenas a exigência da ren¬ República (1889-1930) não significou grande mudança. Ela
da de 200 mil r éis, que, como vimos, não era muito alta. A
- introduziu a federação de acordo com o modelo dos Estados
principal barreira ao voto, a exclusão dos analfabetos, foi Unidos. Os presidentes dos estados (antigas províncias) pas¬
mantida. Continuavam também a n ão votar as mulheres, os saram a ser eleitos pela população. A descentralização tinha o
mendigos, os soldados, os membros das ordens religiosas. efeito positivo de aproximar o governo da população via elei¬
Não é, então, de estranhar que o número de votantes te¬ ção de presidentes de estado e prefeitos. Mas a aproximação
nha permanecido baixo. Na primeira eleição popular para a se deu sobretudo com as elites locais. A descentralização faci ¬
presid ência da República, em 1894, votaram 2,2% da popu¬ litou a formação de sólidas oligarquias estaduais, apoiadas em
lação. Na última eleição presidencial da Primeira República, partidos ú nicos, també m estaduais. Nos casos de maior êxi ¬
em 1930, quando o voto universal, inclusive feminino, já fora to, essas oligarquias conseguiram envolver todos os mandões
adotado pela maioria dos países europeus, votaram no Brasil locais, bloqueando qualquer tentativa de oposição política. A
5,6% da população. Nem mesmo o per íodo de grandes re¬ aliança das oligarquias dos grandes estados, sobretudo de São
formas inaugurado em 1930 foi capaz de superar os números Paulo e Minas Gerais, permitiu que mantivessem o controle
de 1872. Somente na eleição presidencial de 1945 é que com¬ da política nacional até 1930.
pareceram às urnas 13,4% dos brasileiros, número ligeiramen¬ A Primeira Repú blica ficou conhecida como “ repú blica
te superior ao de 1872. dos coron éis”. Coronel era o posto mais alto na hierarquia
O Rio de Janeiro, capital do país, também dava mau exem¬ da Guarda Nacional. O coronel da Guarda era sempre a
plo. Em 1890, a cidade tinha mais de 500 mil habitantes, e pelo pessoa mais poderosa do município. J á no Império ele exer ¬
menos metade deles era alfabetizada. Mesmo assim, na eleição cia grande influência política. Quando a Guarda perdeu sua
presidencial de 1894 votaram apenas 7.857 pessoas, isto é, 1,3% natureza militar, restou lhe o poder político de seus chefes.
-
da população. Em 1910, 21 anos após a proclamação da Re ¬ Coronel passou, então, a indicar simplesmente o chefe polí¬
pública, a porcentagem desceu para 0,9%, menor do que a tico local. O coronelismo era a alian ça desses chefes com os
média nacional. Em contraste, em Nova York, em 1888, a par¬ presidentes dos estados e desses com o presidente da Repú ¬
ticipação eleitoral chegou a 88% da população adulta masculi¬ blica. Nesse paraíso das oligarquias, as pr áticas eleitorais
na. Lima Barreto publicou um romance satírico chamado Os fraudulentas n ão podiam desaparecer. Elas foram aperfei çoa-

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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

das. Nenhum coronel aceitava perder as eleições. Os eleito¬ base no argumento de que o povo não tinha condições de o
res continuaram a ser coagidos, comprados, enganados, ou exercer adequadamente. Vimos que, de fato, não houve ex ¬
simplesmente excluídos. Os historiadores do período con¬ periência política prévia que preparasse o cidadão para exer¬
cordam em afirmar que n ão havia eleição limpa. O voto cer suas obrigações cívicas. Nem mesmo a independência do
podia ser fraudado na hora de ser lançado na urna, na hora país teve participação popular significativa Este povo não seria
de ser apurado, ou na hora do reconhecimento do eleito. Nos de fato um fator perturbador das eleições por não dispor de
estados em que havia maior competição entre oligarquias, independência suficiente para escapar às pressões do gover¬
elegiam-se às vezes duas assembléias estaduais e duas banca¬ no e dos grandes proprietários? Não era este o argumento
das federais, cada qual alegando ser a legítima representan¬ usado em muitos países europeus para limitar o exercício do
te do povo. A Câmara federal reconhecia como deputados voto? O grande liberal John Stuart-Mill não exigia que o ci¬
os que apoiassem o governador e o presidente da Repúbli¬ dadão soubesse ler, escrever e fazer as operações aritméticas
ca, e tachava os demais pretendentes de ilegítimos. básicas para poder votar ?
Continuaram a atuar os cabalistas, os capangas, os fósfo¬ Os críticos da participação popular cometeram v á rios
ros. Continuaram as eleições “a bico de pena”. Dez anos de¬ equívocos. O primeiro era achar que a população saída da
pois da proclamação da República, um adversário do regime dominação colonial portuguesa pudesse, de uma hora para
dizia que quando as atas eleitorais afirmavam que tinham outra, comportar-se como cidadãos atenienses, ou como ci ¬
dadãos das pequenas comunidades norte-americanas. O Bra ¬
comparecido muitos eleitores podia-se ter a certeza de que se
.
tratava de uma eleição “abico de pena” Os resultados eleito¬ sil não passara por nenhuma revolução, como a Inglaterra, os
rais eram às vezes absurdos, sem nenhuma relação com o ta¬ Estados Unidos, a França. O processo de aprendizado demo ¬
manho do eleitorado. Com razão dizia um jornalista em 1915 crático tinha que ser, por força, lento e gradual. O segundo
que todos sabiam que “o exercício da soberania popular é uma equívoco já fora apontado por alguns opositores da reforma
fantasia e ninguém a toma a sério”. Mas, apesar de todas as da eleição direta, como Joaquim Nabuco e Saldanha Mari¬
leis que restringiam o direito do voto e de todas as práticas nho. Quem era menos preparado para a democracia, o povo
que deturpavam o voto dado, não houve no Brasil, até 1930, ou o governo e as elites? Quem forçava os eleitores, quem
movimentos populares exigindo maior participação eleitoral. comprava votos, quem fazia atas falsas, quem não admitia
A ú nica exceção foi o movimento pelo voto feminino, valen¬ derrota nas urnas? Eram os grandes proprietários, os oficiais
te mas limitado. O voto feminino acabou sendo introduzido da Guarda Nacional, os chefes de polícia e seus delegados, os
após a revolução de 1930, embora não constasse do progra¬ juízes, os presidentes das províncias ou estados, os chefes dos
ma dos revolucionários. partidos nacionais ou estaduais. Até mesmo os membros mais
Pode-se perguntar se não tinham alguma razão os que esclarecidos da elite política nacional, bons conhecedores das
defendiam desde 1881 a limitação do direito do voto, com teorias do governo representativo, quando se tratava de fazer

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JOS É MURILO DE CARVALHO C I DADAN I A NO BRAS I L

política prática recorriam aos métodos fraudulentos, ou eram queno mundo da grande propriedade, um poder que elas
coniventes com os que os praticavam. podiam usar contra os mandões locais. Já havia aí, em germe,
O terceiro equívoco era desconhecer que as práticas elei¬ um aprendizado político, cuja prática constante levaria ao
torais em países considerados modelos, como a Inglaterra, aperfeiçoamento cívico. O ganho que a limitação do voto
eram tão corruptas como no Brasil. Mesmo após as grandes poderia trazer para a lisura das eleições era ilusório. A inter¬
reformas inglesas, continuaram a existir os “burgos podres”, rupção do aprendizado só poderia levar, como levou, ao re ¬
dominados por décadas pelo mesmo político, ou pela mesma tardamento da incorporação dos cidad ãos à vida política.
família. A Inglaterra tinha construído ao longo de séculos um
sistema representativo de governo que estava longe de ser
democr ático, de incorporar o grosso da população. Foi ao DIREITOS CIVIS S Ó NA LEI
longo do século XIX que esta incorporação se deu, e não fal¬
taram políticos, conservadores e liberais, que consideravam A herança colonial pesou mais na área dos direitos civis. O
inconveniente a extensão dos votos aos oper ários. Um libe¬ novo país herdou a escravidão, que negava a condição huma¬
ral, Robert Lowe, dizia que as classes oper árias eram impulsi¬ na do escravo, herdou a grande propriedade rural, fechada à
vas, irrefletidas, violentas, dadas à venalidade, ignor ância e ação da lei, e herdou um Estado comprometido com o poder
bebedeiras. Sua incorporação ao sistema político, acrescenta¬ privado. Esses tr ês empecilhos ao exercício da cidadania civil
va, levaria ao rebaixamento e corrupção da vida pública. A revelaram-se persistentes. A escravidão só foi abolida em 1888,
diferença é que na Inglaterra houve pressão popular pela ex ¬ agrande propriedade ainda exerce seu poder em algumas áreas
pansão do voto. Essa pressão forçou a elite a democratizar a do país e a desprivatização do poder público é tema da agen¬
participação. Havia lá, já no século XIX, um povo político, da atual de reformas.
ausente entre nós.
O quarto e último equívoco era achar que o aprendizado A escravidão
do exercício dos direitos políticos pudesse ser feito por outra
maneira que não sua pr ática continuada e um esforço por parte A escravidão estava tão enraizada na sociedade brasileira q úe
do governo de difundir a educação primária. Pode-se mesmo não foi colocada seriamente em questão até o final da guerra
argumentar que os votantes agiam com muita racionalidade contra o Paraguai. A Inglaterra exigiu, como parte do preço
ao usarem o voto como mercadoria e ao vendê-lo cada vez do reconhecimento da independência, a assinatura de um tra¬
mais caro. Este era o sentido que podiam dar ao voto, era sua tado que incluía a proibição do tráfico de escravos. O tratado
maneira de valorizá-lo. De algum modo, apesar de sua per- foi ratificado em 1827. Em obediência a suas exigências, foi
cepção deturpada, ao votarem, as pessoas tomavam conheci ¬ votada em 1831 uma lei que considerava o tráfico como pira¬
mento da existência de um poder que vinha de fora do pe- taria. Mas a lei n ão teve efeito prático. Antes de ser votada,

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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

houve grande aumento de importação de escravos, o que per¬ chefiado pelo visconde do Rio Branco conseguiu fazer apro¬
mitiu certa redução nas entradas logo após sua aprovação. Mas var, em 1871, a lei que libertava os filhos de escravos que
não demorou até que as importaçõ es crescessem de novo. nascessem daí em diante. Apesar da oposição dos escravistas,
Dessa primeira lei contra o tráfico surgiu a expressão “lei para a lei era pouco radical. Permitia aos donos dos “ingénuos”,
inglês ver ”, significando uma lei, ou promessa, que se faz ape¬ isto é, dos que nascessem livres, beneficiar-se de seu trabalho
nas por formalidade, sem intenção de a pôr em prática. gratuito até 21 anos de idade.
A Inglaterra voltou a pressionar o Brasil na década de A abolição final só come çou a ser discutida no Parlamen ¬
1840, quando se devia decidir sobre a renovação do tratado to em 1884. Só então, também, surgiu um movimento popu ¬
de comércio de 1827. Desta vez o governo inglês usou a for¬ lar abolicionista. A abolição veio em 1888, um ano depois que
ça, mandando sua Marinha apreender navios dentro das águas a Espanha afizera em Cuba. O Brasil era o último país de tra¬
territoriais brasileiras. Em 1850, a Marinha inglesa invadiu dição cristã e ocidental a libertar os escravos. E o fez quando
portos brasileiros para afundar navios suspeitos de transpor¬ o número de escravos era pouco significativo. Na época da
tar escravos. Só então o governo decidiu interromper o tr áfi¬ independência, os escravos representavam 30% da população.
co de maneira efetiva. Em 1873, havia 1,5 milhão de escravos, 15% dos brasileiros.
Calcula-se que, desde o início do tráfico até 1850, tenham Às vésperas da abolição, em 1887, os escravos não passavam
entrado no Brasil 4 milhões de escravos. Sua distribuição era de 723 mil, apenas 5% da população do país. Se considerar¬
desigual. De início, nos séculos XVI e XVII, concentravam-se mos que nos Estados Unidos, às vésperas da guerra civil, ha¬
na região produtora de açúcar, sobretudo Pernambuco e Bahia. via quase 4 milhões de escravos, mais que o dobro dos exis¬
No século XVIII, um grande n úmero foi levado para a região tentes no Brasil, pode-se perguntar se a influência da escravi¬
de exploração do ouro, em Minas Gerais. A partir da segun¬ dão não foi maior lá e se não seria exagerada a importância
da década do século XIX, concentraram-se na região do café, que se dá a ela no Brasil como obstáculo à expansão dos di ¬
que incluía Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. reitos civis
.
Depois da abolição do tráfico, os políticos só voltaram a A resposta pode ser dada em duas partes. A primeira é que
falar no assunto ao final da guerra contra o Paraguai. Duran¬ a escravidão era mais difundida no Brasil do que nos Estados
te o conflito, a escravid ão revelara-se motivo de grande cons¬ Unidos. Lá ela se limitava aos estados do sul, sobretudo os
trangimento para o país. O Brasil tornou-se objeto das críti¬ produtores de algodão. O resto do país não tinha escravos. A
cas do inimigo e mesmo dos aliados. Além disso, a escravidão principal razão da guerra civil de 1860 foi a disputa sobre a
mostrara-se perigosa para a defesa nacional, pois impedia a introdu ção ou n ão da escravid ão nos novos estados que se
formação de um exército de cidadãos e enfraquecia a segu¬ formavam. Esta separação significava que havia uma linha
rança interna. Por iniciativa do imperador, com o apoio da divisória entre liberdade e escravidão A linha era geográfica.
.
imprensa e a ferrenha resistência dos fazendeiros, o gabinete O escravo que fugia do sul para o norte, atravessando, por

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JOS É MURILO DE CARVALHO
CIDADANIA NO BRAS I L

exemplo, o rio Ohio, escapava da escravidão para a liberda¬


de escravos possuírem escravos. De acordo com o depoimen¬
de. Havia até mesmo um movimento, chamado Underground
to de um escravo brasileiro que fugiu para os Estados Uni ¬
Railway , que se ocupava de ajudar os escravos a fugirem para
dos, no Brasil “ as pessoas de cor, tão logo tivessem algum
o norte.
poder, escravizariam seus companheiros, da mesma forma
No Brasil, não havia como fugir da escravidão. Se é ver¬
que o homem branco ”.
dade que os escravos se distribuíam de maneira desigual pelo Esses dados são perturbadores. Significam que os valores
país, é também verdade que havia escravos no país inteiro,
da escravidão eram aceitos por quase toda a sociedade. Mesmo
em todas as províncias, no campo e nas cidades. Havia escra¬
os escravos, embora lutassem pela pr ópria liberdade, embora
vos que fugiam e organizavam quilombos. Alguns quilombos repudiassem sua escravidão, uma vez libertos admitiam escra¬
tiveram longa duração, como o de Palmares, no nordeste do ¬
vizar os outros. Que os senhores achassem normal ou neces
país. Mas a maioria dos quilombos durava pouco porque era
sária a escravid ão, pode entender-se. Que libertos o fizessem,
logo atacada por for ças do governo ou de particulares. Os
é matéria para reflexão. Tudo indica que os valores da liber¬
quilombos que sobreviviam mais tempo acabavam mantendo
dade individual, base dos direitos civis, tão caros à
relações com a sociedade que os cercava, e esta sociedade era modernidade européia e aos fundadores da América do Nor¬
escravista. No próprio quilombo dos Palmares havia escravos.
te, não tinham grande peso no Brasil.
Não existiam linhas geográficas separando a escravidão da ¬
É sintomático que o novo pensamento abolicionista, se
liberdade. guindo tradição portuguesa, se baseasse em argumentos dis ¬

Acrescente-se a isto o fato de que a posse de escravos era tintos dos abolicionismos europeu e norte -à mericano. O
muito difundida. Havia propriedades com grandes plantéis,
abolicionismo anglo-sax ônico teve como fontes principais a
mas havia também muitos proprietários de poucos escravos. religi ão e a Declaração de Direitos. Foram os quakers os pri ¬
Mesmo em áreas de maior concentração de escravos, como meiros a interpretar o cristianismo como sendo uma religião
Minas Gerais, a média de escravos por propriet ário era de
da liberdade, incompatível com a escravidão. A interpreta¬
tr ês ou quatro. Nas cidades, muitas pessoas possu íam ape ¬
ção tradicional dos católicos, vigente em Portugal e no Bra¬
nas um escravo, que alugavam como fonte de renda. Em sil, era que a Bíblia admitia a escravidão, que o cristianismo
geral, eram pessoas pobres, vi úvas, que tinham no escravo
não a condenava. A escravidão que se devia evitar era a da
alugado seu ú nico sustento. O aspecto mais contundente da
alma, causada pelo pecado, e n ão a escravid ão do corpo. O
difusão da propriedade escrava revela-se no fato de que pecado, este sim, é que era a verdadeira escravidão. Os qua¬
muitos libertos possu íam escravos. Testamentos examinados
kers inverteram esta posição, dizendo que a escravid ão é que
por Kátia Mattoso mostram que 78% dos libertos da Bahia
era o pecado, e com base nessa afirmação iniciaram longa e
possu íam escravos. Na Bahia, em Minas Gerais e em outras
tenaz luta pela abolição, primeiro do tr áfico, depois da pr ó¬
províncias, dava-se até mesmo o fenômeno extraordin ário
pria escravidão.
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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

As idéias e valores que inspiraram os textos básicos da e política do país e a formação de for ças armadas poderosas.
fundação dos Estados Unidos eram também fonte segura para Dizia, como o fez també m Joaquim Nabuco, que a escravi ¬
justificar a luta contra a escravidão. Se a liberdade era um dão bloqueava o desenvolvimento das classes sociais e do
direito inalienável de todos, como dizia a Declaração de In¬ mercado de trabalho, causava o crescimento exagerado do
depend ência, n ão havia como negá-la a uma parte da popula¬ Estado e do n ú mero dos funcion ários p ú blicos, falseava o
ção, a não ser que se negasse condição humana a essa parte. governo representativo.
Os pensadores sulistas que justificaram a escravidão, como O argumento da liberdade individual como direito
George Fitzhugh, tiveram que partir de uma premissa que inalienável era usado com pouca ênfase, não tinha a for ça que
negava a igualdade estabelecida nos textos constitucionais. lhe era caracter ística na tradi ção anglo-saxô nica. Não o favo ¬
recia a interpretação católica da Bíblia, nem a preocupação
Para eles, as pessoas eram naturalmente desiguais, justifican-
da elite com o Estado nacional. Vemos aí a presen ça de uma
do-se o domínio dos superiores sobre os inferiores.
tradição cultural distinta, que poder íamos chamar de ibérica,
No Brasil, a religião católica, que era oficial, não comba¬
alheia ao iluminismo libertário, à ênfase nos direitos naturais,
tia a escravidão. Conventos, clé rigos das ordens religiosas e
à liberdade individual. Essa tradi ção insistia nos aspectos co¬
padres seculares, todos possuíam escravos. Alguns padres não munitários da vida religiosa e política, insistia na supremacia
se contentavam em possuir legalmente suas escravas, eles as do todo sobre as partes, da cooperação sobre a competi ção e
possuíam também sexualmente e com elas se amigavam. Al ¬ o conflito, da hierarquia sobre a igualdade.
guns filhos de padres com escravas chegaram a posi ções im¬ Havia nela caracter ísticas positivas, como a visão comu ¬
portantes na política do Imp ério. O grande abolicionista José nitá ria da vida. Mas a influ ê ncia do Estado absolutista, em
do Patrocínio era um deles. Com poucas exceções, o máximo Portugal, acrescida da influê ncia da escravid ão, no Brasil,
que os pensadores luso-brasileiros encontravam na Bíblia em deturpou -a. Não podendo haver comunidade de cidad ãos em
favor dos escravos era a exortação de São Paulo aos senhores Estado absolutista, nem comunidade humana em plantação
no sentido de tratá-los com justiça e eq ü idade. escravista, o que restava da tradi ção comunitária eram ape ¬
Fora do campo religioso, o principal argumento que se los, quase sempre ignorados, em favor de um tratamento be ¬
apresentava no Brasil em favor da aboli ção era o que podía¬ nevolente dos súditos e dos escravos. O melhor que se podia
mos chamar de razão nacional, em oposição à razão indivi ¬ obter nessas circunstâncias era o paternalismo do governo e
dual dos casos europeu e norte-americano. A razão nacional dos senhores. O paternalismo podia minorar sofrimentos in ¬
¬
foi usada por José Bonif ácio, que dizia ser a escravidão obstá dividuais mas n ão podia construir uma autêntica comunida¬
culo à formação de uma verdadeira nação, pois mantinha de e muito menos uma cidadania ativa.
parcela da população subjugada a outra parcela, como inimi¬ Tudo isso se refletiu no tratamento dado aos ex-escravos
gas entre si. Para ele, a escravid ão impedia a integração social após a abolição. Foram pouquíssimas as vozes que insistiram
CIDADANIA NO BRASIL
JOS É MURILO DE CARVALHO

mesmo o objetivo dos defensores da razão nacional de for¬


na necessidade de assistir os libertos, dando-lhes educação e mar uma população homogénea, sem grandes diferenças so¬
emprego, como foi feito nos Estados Unidos. Lá, após a guer¬ ciais, foi atingido. A população negra teve que enfrentar sozi¬
ra, congregações religiosas e o governo, por meio do Freedmen’s nha o desafio da ascensão social, e ffeqUentemente precisou
Bureau, fizeram grande esforço para educar os ex-escravos. Em fazê-lo por rotas originais, como o esporte, a música e a dan¬
1870, havia 4.325 escolas para libertos, entre as quais uma ça. Esporte, sobretudo o futebol, m úsica, sobretudo o samba,
universidade, a de Howard. Foram também distribuídas terras e dança, sobretudo o carnaval, foram os principais canais de
aos libertos e foi incentivado seu alistamento eleitoral. Muitas ascensão social dos negros até recentemente.
dessas conquistas se perderam após o fim da intervenção mili¬ As consequências da escravidão não atingiram apenas os
tar no sul. A luta pelos direitos civis teve que ser retomada 100 negros. Do ponto de vista que aqui nos interessa a forma¬
anos depois. Mas a semente tinha sido lançada, e os princípios —
ção do cidadão , a escravidão afetou tanto o escravo como
orientadores da ação estavam lá. —
o senhor. Se o escravo n ão desenvolvia a consciência de seus
No Brasil, aos libertos n ão foram dadas nem escolas, nem direitos civis, o senhor tampouco o fazia. O senhor não ad¬
terras, nem empregos. Passada a euforia da libertação, mui¬ mitia os direitos dos escravos e exigia privilégios para si pr ó¬
tos ex-escravos regressaram a suas fazendas, ou a fazendas prio. Se um estava abaixo da lei, o outro se considerava aci ¬
vizinhas, para retomar o trabalho por baixo salário. Deze¬ ma. A libertação dos escravos não trouxe consigo a igualdade
nas de anos após a abolição, os descendentes de escravos efetiva. Essa igualdade era afirmada nas leis mas negada na
ainda viviam nas fazendas, uma vida pouco melhor do que a prática. Ainda hoje, apesar das leis, aos privilégios e arrogân¬
de seus antepassados escravos. Outros dirigiram-se às cida¬ cia de poucos correspondem o desfavorecimento e a humi¬
des, como o Rio de Janeiro, onde foram engrossar a grande lhação de muitos.
parcela da população sem emprego fixo. Onde havia dina¬
mismo económico provocado pela expansão do café, como A grande propriedade
em São Paulo, os novos empregos, tanto na agricultura como
na indústria, foram ocupados pelos milhares de imigrantes O outro grande obstáculo à expansão da cidadania, herdado
italianos que o governo atraía para o país. Lá, os ex-escra¬ da Colónia, era a grande propriedade rural. Embora profun ¬
vos foram expulsos ou relegados aos trabalhos mais brutos damente ligada à escravidão, ela deve ser tratada em separa¬
e mais mal pagos . do porque tinha características próprias e teve vida muito mais
As conseqiiências disso foram duradouras para a popula¬ longa Se é possível argumentar que os efeitos da escravidão
ção negra Até hoje essa população ocupa posição inferior em
. ainda se fazem sentir no Brasil de hoje, a grande propriedade
todos os indicadores de qualidade de vida. É a parcela menos ainda é uma realidade em várias regiões do país. No Nordes¬
educada da população, com os empregos menos qualificados, te e nas áreas recém-colonizadas do Norte e Centro-Oeste, o
os menores salários, os piores índices de ascensão social. Nem
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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

grande proprietário e coronel político ainda age como se es¬ Valores de Nova York em 1929, o principal choque sofrido
tivesse acima da lei e mantém controle rígido sobre seus tra¬ pelo Brasil foi a redução à metade dos preços do café e a im¬
balhadores. possibilidade de vender os estoques. A crise económica que
Até 1930, o Brasil ainda era um país predominantemente se seguiu foi um dos motivos que levaram ao movimento po¬
agr ícola. Segundo o censo de 1920, apenas 16,6% da popu¬ lítico-militar que p ôs termo à Primeira República.
lação vivia em cidades de 20 mil habitantes ou mais (não houve Na sociedade rural, dominavam os grandes proprietários,
censo em 1930), e 70% se ocupava em atividades agrícolas. A que antes de 1888 eram também, na grande maioria, propri ¬
economia passava pela fase que se convencionou chamar de etários de escravos. Eram eles, ff eqúentemente em alian ça com
“voltada para fora”, orientada para a exportação. Exporta¬ comerciantes urbanos, que sustentavam a política do
ção de produtos primários, naturalmente. No caso do Brasil, coronelismo. Havia, naturalmente, variaçõ es no poder dos
esses produtos eram agrícolas. A economia do ouro domina¬ coron éis, em sua capacidade de controlar a terra e a mão-de-
ra a primeira parte do século XVIII, mas ao final do século já obra. O controle era mais forte no Nordeste, sobretudo nas
quase desaparecera. Na primeira década ap ós a independ ên¬ regiões de produção de açúcar. Aí se podiam encontrar as
cia, tr ês produtos eram responsáveis por quase 70% das ex¬ oligarquias mais sólidas, formadas por um pequeno grupo de
portações: o açúcar (30%), o algodão (21%) e o café (18%). famílias. No interior do Nordeste, zona de criação de gado,
Na última d écada do Império, as únicas alterações nesse qua¬ tamb ém havia grandes proprietários. No estado da Bahia, eles
dro foram a subida do café para o primeiro lugar, o que se eram poderosos a ponto de fugirem ao controle do governo
deu na d écada de 1830, e o aumento da participação dos três do estado. Em certo momento, o governo federal foi obriga¬
produtos para 82% do total, o caf é com 60%, o açúcar, 12% do a intervir no estado como mediador entre os coronéis e o
e o algodão, 10% . governo estadual. Os coron éis baianos formavam pequenos
A Primeira República foi dominada economicamente pe¬ estados dentro do estado. Em suas fazendas, e nas de seus
los estados de São Paulo e Minas Gerais, cuja riqueza, sobre¬ iguais em outros estados, o braço do governo não entrava.
tudo de São Paulo, era baseada no caf é. Esse produto tinha O controle não era tão intenso nas regiões cafeeiras e de
migrado do Rio de Janeiro para o sul de Minas e oeste de São produ ção de laticínios, como São Paulo e Minas Gerais. Em
Paulo, onde terras mais f érteis e o trabalho livre de imigran¬ São Paulo, particularmente, a entrada maciça de imigrantes
tes europeus multiplicaram a produção. Um dos problemas europeus possibilitou as primeiras greves de trabalhadores
económicos recorrentes da Primeira República era a superpro¬ rurais e o início da divisão das grandes propriedades. Em
dução do café. Os governos federal e dos estados produtores Minas, os coronéis eram poderosos, mas já necessitavam do
introduziram em 1906 programas de defesa do preço do café, poder do Estado para atender a seus interesses. Foi em São
ameaçado pela superprodução. Quando as economias centrais Paulo e Minas que o coronelismo, como sistema político, atin ¬

entraram em colapso como conseqiiência da crise da Bolsa de giu a perfeição e contribuiu para o domínio que os dois esta-

54 5 5
JOSÉ MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

dos exerceram sobre a federação. Os coronéis articulavam-se agentes privados é a negação da justiça. O direito de ir e vir, o
com os governadores, que se articulavam com o presidente direito de propriedade, a inviolabilidade do lar, a proteção da
da República, quase sempre oriundo dos dois estados. honra e da integridade íf sica, o direito de manifestação, fica¬
O poder dos coronéis era menor na periferia das econo¬ vam todos dependentes do poder do coronel. Seus amigos e
mias de exportação e nas áreas de pequena propriedade, como aliados eram protegidos, seus inimigos eram perseguidos ou
nas colónias de imigrantes europeus do Sul. Foi nessas regiões ficavam simplesmente sujeitos aos rigores da lei. Os depen¬
que se deram as maiores revoltas populares durante o per ío¬ dentes dos coronéis não tinham outra alternativa sen ão colo¬
do da Regência (1831-1840) e onde se verificaram movimen¬ car-se sob sua proteção. Várias expressões populares descre¬
tos messiânicos e de banditismo já na República. Para listar só viam a situação: “Para os amigos, pão; para os inimigos, pau.”
os últimos, a revolta de Canudos se deu no interior da Bahia; Ou então: “ Para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei.”
a do Contestado, em áreas novas do Paraná,- a do Padre Cícero, A última expressão é reveladora. A lei, que devia ser a
no Ceará. Nas áreas de forte controle oligárquico só podia garantia da igualdade de todos, acima do arbítrio do gover¬
haver guerras entre coronéis; nas de controle médio, as per ¬ no e do poder privado, algo a ser valorizado, respeitado,
turbações da ordem oligárquica eram raras. mesmo venerado, tornava-se apenas instrumento de castigo,
O coronelismo não era apenas um obstáculo ao livre exer¬ arma contra os inimigos, algo a ser usado em benef ício pró¬
cício dos direitos políticos. Ou melhor, ele impedia a partici¬ prio. Não havia justiça, não havia poder verdadeiramente
pação política porque antes negava os direitos civis. Nas fa¬ pú blico, não havia cidadãos civis. Nessas circunstâncias, não
zendas, imperava a lei do coronel, criada por ele, executada poderia haver cidadãos políticos. Mesmo que lhes fosse per¬
por ele. Seus trabalhadores e dependentes não eram cidadãos mitido votar, eles não teriam as condições necessárias para
do Estado brasileiro, eram súditos dele. Quando o Estado se o exercício independente do direito político.
aproximava, ele o fazia dentro do acordo coronelista, pelo qual
o coronel dava seu apoio político ao governador em troca da A cidadania operária
indicação de autoridades, como o delegado de polícia, o juiz,
o coletor de impostos, o agente do correio, a professora pri¬ Se os principais obstáculos à cidadania, sobretudo civil, eram
mária. Graças ao controle desses cargos, o coronel podia pre¬ a escravidão e a grande propriedade rural, o surgimento de
miar os aliados, controlar sua mão-de-obra e fugir dos impos¬ uma classe operária urbana deveria significar a possibilidade
tos. Fruto dessa situação eram as figuras do “ juiz nosso” e do da formação de cidad ãos mais ativos. A urbanização evoluiu
“ delegado nosso”, expressões de uma justiça e de uma polícia lentamente no período, concentrando-se em algumas capitais
postas a serviço do poder privado. de estados. Como vimos, em 1920 apenas 16,6% da popula¬
O que significava tudo isso para o exercício dos direitos ção vivia em cidades de 20 mil habitantes ou mais. Os dois
civis? Sua impossibilidade. A justiça privada ou controlada por principais centros urbanos eram o Rio de Janeiro, com 790

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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

mil habitantes, e São Paulo, com 579 mil. O crescimento do tações. O operariado do Estado e de empresas públicas (es¬
estado e da capital de São Paulo foi maior devido à grande tradas de ferro, marinha mercante, arsenais) mantinha es¬
'
entrada de imigrantes, sobretudo italianos. No período entre treita ligação com o governo. Muitos operá rios do Estado
1884 e 1920, entraram no Brasil cerca de 3 milhões. Desses, votavam nas elei ções. No setor n ão-governamental havia
1,8 milhão foi para São Paulo. Muitos imigrantes dirigiam-se maior independê ncia política. Os oper ários do porto não se
inicialmente para as fazendas de caf é de S ão Paulo. Mas um negavam a dialogar com patrões e com o governo, mas eram
grande nú mero acabava se fixando na capital, empregados na bem organizados e mantinham posição de independência. Na
ind ústria ou no comércio. indústria e na construção civil, encontravam-se as posições
Em 1920, a industrialização também se concentrava nas mais radicais, influenciadas pelo anarquismo trazido por
capitais, com destaque para o Rio de Janeiro, ainda a cidade imigrantes europeus. O auge da influência dos anarquistas
mais industrializada do país, e para São Paulo, que se trans¬ verificou-se nos últimos anos da Primeira Guerra Mundial,
formava rapidamente no principal centro industrial. Cerca de quando lideraram uma grande greve que incluía planos de
20% da mão-de-obra industrial estava na cidade do Rio de tomada do poder. Em São Paulo, o peso do anarquismo foi
Janeiro, ao passo que 31% se concentrava no estado de São maior devido à presença estrangeira e ao pequeno nú mero
Paulo. Em 1920, havia no Brasil todo 275.512 operários in¬ de oper ários do Estado. O movimento oper ário como um
dustriais urbanos. Era uma classe operária ainda pequena e todo foi mais agressivo, culminando em uma grande greve
de formação recente. Mesmo assim, já apresentava alguma geral em 1917. Mas também lá havia obstáculos à ação ope¬
diversidade social e política. Rio de Janeiro e São Paulo po¬ rária. Os imigrantes, mesmo os italianos, provinham de re¬
dem ser tomados como representativos do que sucedia, em giões diferentes, falavam dialetos diferentes e ff eqiientemente
ponto menor, no resto do país. No Rio, a industrialização era competiam entre si. Muitos deles estavam também mais in¬
mais antiga e o operariado, mais nacional. O grupo estran¬ teressados em progredir rapidamente do que em envolver¬
geiro mais forte era o português, cuja cultura e tradições não se em movimentos grevistas.
se distanciavam muito das brasileiras. Havia ainda, no Rio, Além desses obstáculos internos à classe, os operários ti¬
forte presença de população negra na classe operária, inclusi¬ nham que enfrentar a repressão comandada por patrões e pelo
ve de ex-escravos, e também muitos operários do Estado. Em governo. O governo federal aprovou leis de expulsão de es¬
São Paulo, a grande maioria do operariado era composta de trangeiros acusados de anarquismo, e a ação da polícia rara¬
imigrantes europeus, italianos em primeiro lugar, mas tam¬ mente se mostrava neutra nos conflitos entre patr ões e ope¬
bém espanhóis e outros. O operariado do Estado e de empre¬ rários. O anarquismo teve que enfrentar ainda um opositor
sas públicas era pequeno. interno quando foi criado o Partido Comunista do Brasil, em
O comportamento dos operários nas duas cidades era 1922, formado por ex-anarquistas. O Partido Comunista vin¬
também diferente. No Rio, havia maior diversidade de orien- culou-se à Terceira Internacional, cujas diretrizes seguia de

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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

perto. A partir daí a influência anarquista declinou rapidamen¬ todas as tentativas de formar partidos socialistas operários no
te. O movimento oper ário como um todo perdeu for ça du¬ Rio de Janeiro e em São Paulo. A política das oligarquias, com
rante a década de 20, só vindo a ressurgir após 1930. sua aversão às eleições livres e à participação política, não lhes
Sob o ponto de vista da cidadania, o movimento operário deixava espaço para atuar.
significou um avanço inegável, sobretudo no que se refere aos Assim é que os poucos direitos civis conquistados não pude¬
direitos civis. O movimento lutava por direitos básicos, como ram ser postos a serviço dos direitos políticos. Predominaram,
o de organizar-se, de manifestar-se, de escolher o trabalho, de um lado, a total rejeição do Estado proposta pelos anar¬
de fazer greve. Os operários lutaram também por uma legis¬ quistas; de outro, a estreita cooperação defendida pelos “amare¬
lação trabalhista que regulasse o hor ário de trabalho, o des¬ los”. Em nenhum dos casos se forjava a cidadania política. A
canso semanal, as férias, e por direitos sociais como o seguro tradição de maior persistência acabou sendo a que buscava
de acidentes de trabalho e aposentadoria. No que se refere melhorias por meio de aliança com o Estado, por meio de con ¬
aos direitos políticos, deu-se algo contraditório. Os setores tato direto com os poderes públicos. Tal atitude seria mais bem
oper ários menos agressivos, mais próximos do governo, cha¬ caracterizada como “ estadania”.
mados na época de “amarelos”, eram os que mais votavam,
embora o fizessem dentro de um espírito clientelista. Os se¬ Os direitos sociais
tores mais radicais, os anarquistas, seguindo a orientação clás¬
sica dessa corrente de pensamento, rejeitavam qualquer rela¬ Com direitos civis e políticos tão precários, seria dif ícil falar
ção com o Estado e com a política, rejeitavam os partidos, o de direitos sociais. A assistê ncia social estava quase exclusiva ¬

Congresso, e até mesmo a idéia de pátria O Estado, para eles,


. mente nas mãos de associações particulares. Ainda sobreviviam
não passava de um servidor da classe capitalista, o mesmo se muitas irmandades religiosas oriundas da é poca colonial que
dando com os partidos, as eleições e a própria pátria. Ao en¬ ofereciam a seus membros apoio para tratamento de saúde,
cerrar um Congresso Operário, em 1906, no Rio de Janeiro, auxílio funerário, empréstimos, e mesmo pensões para viú¬
um líder anarquista afirmou que o operário devia “abando¬ vas e filhos. Havia também as sociedades de auxílio m útuo,
nar de todo e para sempre a luta parlamentar e política”. O que eram versão leiga das irmandades e antecessoras dos
voto, dizia, era uma burla. A ú nica luta que interessava ao modernos sindicatos. Sua principal fun ção era dar assistência
operário era a luta económica contra os patrões. social aos membros. Irmandades e associações funcionavam
Imprensados entre “amarelos” e anarquistas achavam-se em base contratual, isto é, os benef ícios eram proporcionais
os socialistas, que julgavam poder fazer avançar os interesses às contribuições dos membros. Mencionem -se, ainda, as san ¬
da classe também através da luta política, isto é, da conquista tas casas da misericórdia, instituições privadas de caridade
e do exercício dos direitos políticos. Sintomaticamente, os voltadas para o atendimento aos pobres
socialistas foram os que menor êxito tiveram. Fracassaram em O governo pouco cogitava de legislação trabalhista e de

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proteção ao trabalhador. Houve mesmo retrocesso na legis¬ mente equilibrada. Ficou famosa a afirmação de um candida ¬

lação: a Constituição republicana de 1891 retirou do Estado to à presid ê ncia da Rep ública de que a questão social nome
a obrigação de fornecer educação prim ária, constante da gen é rico com que se designava o problema oper ário era
——
Constitui ção de 1824. Predominava então um liberalismo questão de polícia. Outra indicação dessa mentalidade foram
ortodoxo, já superado em outros países. Não cabia ao Estado as leis de expulsão de oper ários estrangeiros acusados de
promover a assistência social. A Constituição republicana anarquismo e agitação política.
proibia ao governo federal interferir na regulamentação do No campo da legislação social, apenas algumas tímidas
trabalho. Tal interferência era considerada violação da liber¬ medidas foram adotadas, a maioria delas após a assinatura pelo
dade do exercício profissional. Brasil, em 1919, do Tratado de Versalhes e do ingresso do país
Como conseqiiência, não houve medidas do governo fe¬ na Organização Internacional do Trabalho (OIT), criada nes¬
deral na área trabalhista, exceto para a capital. Logo no iní¬ se mesmo ano. Influenciou também a ação do governo a maior
cio da República, em 1891, foi regulado o trabalho de meno¬ agressividade do movimento oper ário durante os anos da
res na capita1 federal. A lei não teve muito efeito. Em 1927 guerra. Havia muito os operários vinham cobrando medidas
voltou-se ao assunto com a aprovação de um Código dos que regulassem a jornada de trabalho, as condições de higie ¬
Menores, também sem maiores conseqiiências. A medida mais ne, o repouso semanal, as f érias, o trabalho de menores e de
importante foi na área sindical, quando os sindicatos, tanto mulheres, as indenizações por acidente de trabalho. Em 1919,
rurais quanto urbanos, foram reconhecidos como legítimos uma lei estabeleceu a responsabilidade dos patr ões pelos aci¬
representantes dos oper ários. Surpreendentemente, o reconhe¬ dentes de trabalho. Era um passo ainda tímido, pois os pedi ¬
cimento dos sindicatos rurais precedeu o dos sindicatos urba¬ dos de indenização deviam tramitar na justi ça comum, sem
nos (1903 e 1907, respectivamente). O fato se explica pela interfer ência do governo. Em 1923, foi criado um Conselho
presen ça de trabalhadores estrangeiros na cafeicultura. As Nacional do Trabalho que, no entanto, permaneceu inativo.
representações diplom áticas de seus países de origem estavam Em 1926, uma lei regulou o direito de f érias, mas foi outra
sempre atentas ao tratamento que lhes era dado pelos fazen¬ medida “ para ingl ês ver ”.
deiros e protestavam contra os arbítrios cometidos. O que houve de mais importante foi a criação de urria
Só em 1926, quando a Constituição sofreu sua primeira Caixa de Aposentadoria e Pensão para os ferrovi ários, em
reforma, é que o governo federal foi autorizado a legislar so ¬ 1923. Foi a primeira lei eficaz de assistência social. Suas ca¬
bre o trabalho. Mas, fora o Código dos Menores, nada foi feito racterísticas principais eram: contribuição dividida entre o
até 1930. Durante a Primeira República, a presen ça do go¬ governo, os oper ários e os patr ões; administração atribuída a
verno nas relações entre patr ões e empregados se dava por representantes de patr ões e oper ários, sem interferência do
meio da inger ência da polícia. Eram os chefes de polícia que governo; organização por empresa. Três anos depois, em 1926,
interferiam em casos de conflito, e sua atuação n ão era exata- foi criado um instituto de previdência para os funcionários

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JOS É MURILO DE CARVALHO
CIDADANIA NO BRASIL

da União. O sistema das Caixas expandiu-se para outras em¬ ca. No outro extremo, colocava 200 mil proprietários e pro¬
presas. Embora modestas e limitadas a poucas pessoas, essas fissionais liberais que constituíam a classe dirigente. No meio
medidas foram o germe da legislação social da década seguinte. ficavam 6 milh ões que, segundo ele, “ nascem, vegetam e
Ao final da Primeira República, havia pelo menos 47 Caixas, morrem sem ter servido ao país”. Não havia em lugar algum,
uns 8 mil oper ários contribuintes e cerca de 7 mil pensionistas. é ainda Couty quem fala, massas organizadas de produtores
As poucas medidas tomadas restringiam-se ao meio ur¬ livres, “massas de eleitores sabendo pensar e votar, capazes
bano. No campo, a pequena assistê ncia social que existia era de impor ao governo uma direção definida”.
exercida pelos coronéis. Assim como controlavam a justi ça Em 1925, o deputado Gilberto Amado fez um discurso
e a polícia, os grandes proprietários também constituíam o na Câmara em que, sem citar Couty, repetia a análise, atuali¬
¬
ú nico recurso dos trabalhadores quando se tratava de com zando os dados. Esse importante político e pensador dizia que,
prar remédios, de chamar um mé dico, de ser levado a um de acordo com os dados do censo de 1920, em 30 milhões de
hospital, de ser enterrado. A dominação exercida pelos co ¬ habitantes, apenas 24% sabiam ler e escrever. Os adultos
ronéis incluía esses aspectos paternalistas que lhe davam al¬ masculinos alfabetizados, isto é, os que tinham direito de voto,
guma legitimidade. Por mais desigual que fosse a relação não passariam de 1 milhão. Desse milhão, dizia, não mais de
entre coronel e trabalhador, existia um mínimo de recipro¬ 100 mil, “em cálculo otimista, têm, por sua instrução efetiva
cidade. Em troca do trabalho e da lealdade, o trabalhador e sua capacidade de julgar e compreender, aptidão cívica no
recebia proteção contra a polícia e assistência em momen¬ sentido político da expressão”. Esse n ú mero, continuava,
tos de necessidade. Havia um entendimento implícito a res¬ poderia ser reduzido a 10 mil, se o conceito “aptidão cívica”
peito dessas obrigações m útuas. Esse lado das relações mas¬ fosse definido mais rigorosamente.
carava a exploração do trabalhador e ajuda a explicar a du¬ Se entendermos as observações de Couty e Amado como
rabilidade do poder dos coronéis. indicação de que não havia no país povo politicamente orga¬
nizado, opinião p ública ativa, eleitorado amplo e esclarecido,
podemos concordar com elas e considerá-las fiel descrição do
CIDADÃOS EM NEGATIVO Brasil em 1881 e em 1925. Não foi outro o sentido de minha
argumentação até aqui. Mas é preciso fazer duas ponderações.
Em 1881, um bi ólogo francês que ensinava no Rio de Janei¬ A primeira é que houve alguns movimentos políticos que in ¬
ro, Louis Couty, publicou um livro intitulado A escravidão no dicavam um início de cidadania ativa. Refiro-me sobretudo
Brasil , em que fazia uma afirmação radical: “ O Brasil não tem ao movimento abolicionista, que ganhou for ça a partir de
povo.” Dos 12 milhões de habitantes existentes à é poca, ele 1887. Era um movimento nacional, embora predominante ¬
separava, em um extremo, 2 milhões e meio de índios e es¬ mente urbano. Foi forte tanto no sul como no norte do país.
cravos, que classificava como excluídos da sociedade políti- Além disso, envolveu pessoas de várias camadas sociais, desde

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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

membros da elite, como Joaquim Nabuco, até os próprios sobretudo o uso do direito do voto. Esse critério foi usado
escravos, passando por jornalistas, pequenos proprietários e também até agora neste trabalho. Parece-me, no entanto, que
oper ários. Principalmente, tratou-se de uma luta por um di¬ uma interpretação mais correta da vida política de países como
reito civil básico, a liberdade. O ponto fraco do abolicionismo o Brasil exige levar em conta outras modalidades de partici ¬
veio do fato de ter acabado logo após a abolição, em parte, pação, menos formalizadas, externas aos mecanismos legais
talvez, pela concepção de razão nacional que, como visto, de representação. É preciso também verificar em que medi ¬
predominava em sua motivação. Ele não prosseguiu a luta, da, mesmo na ausência de um povo político organizado, exis¬
como queria André Rebouças, para quem a abolição era ape¬ tiria um sentimento, ainda que difuso, de identidade nacio ¬
nas o primeiro passo na transformação dos ex-escravos em nal. Esse sentimento, como já foi observado, acompanha quase
cidadãos. sempre a expansão da cidadania, embora não se confunda com
Outro movimento que merece referência foi o dos jovens ela. Ele é uma espécie de complemento, às vezes mesmo uma
oficiais do Exército, iniciado em 1922. Embora de natureza compensação, da cidadania vista como exercício de direitos.
estritamente militar e corporativa, o tenentismo despertou A avaliação do povo como incapaz de discernimento po¬
amplas simpatias, por atacar as oligarquias políticas estaduais. lítico, como apático, incompetente, corrompível, enganável,
A consciência política dos oficiais, sobretudo no que se re¬ que vimos nos debates sobre a eleição direta, revela visão
fere ao mundo das oligarquias, tornou-se mais clara duran¬ míope, m á-f é, ou incapacidade de percepção. E evidente que
te a grande marcha de milhares de quilómetros que fizeram não se podia esperar da população acostumar-se da noite para
pelo interior do país na tentativa de escapar ao cerco das for¬ o dia ao uso dos mecanismos formais de participação exigi ¬
ças governamentais. O ataque às oligarquias agrárias esta¬ dos pela parafernália dos sistemas de representação. Mesmo
duais contribuía para enfraquecer outro grande obstáculo à assim, vimos que o eleitor do Império e da Primeira Rep ú bli¬
expansão dos direitos civis e políticos. O lado negativo do ca, dentro de suas limitações, agia com racionalidade e que
tenentismo foi a ausência de envolvimento popular, mesmo não havia entre os líderes políticos maior preocupação do que
durante a grande marcha. Os “tenentes” tinham uma con¬ a dele com a lisura dos processos eleitorais.
cepção política que incluía o assalto ao poder como tática Além disso, se o povo n ão era um eleitor ideal e nem sem ¬
de oposição. Mesmo depois de 1930, quando tiveram intensa pre teve papel central nos grandes acontecimentos, como a
participação política, mantiveram a postura golpista alheia proclamação da independ ência e da República, ele achava com
à mobilização popular. freqiiência outras maneiras de se manifestar. Já na indepen¬
A segunda ponderação é que as afirmações de Couty e dência, a população do Rio de Janeiro por várias vezes foi à
Amado pecam por adotar uma concepção de cidadania estreita rua, aos milhares, em apoio aos líderes separatistas, contra as
e formal, que supõe como manifestação política adequada tropas portuguesas. Em janeiro de 1822, 8 mil pessoas assi ¬
aquela que se dá dentro dos limites previstos no sistema legal, naram o manifesto contra o regresso de D. Pedro a Portugal.
CIDADANIA NO BRASIL
JOS É MURILO DE CARVALHO

dos “ balaios”, Luís Alves de Lima, foi recompensado com o


Para uma cidade de cerca de 150 mil habitantes, dos quais
título de bar ão de Caxias.
grande parte era analfabeta, o número é impressionante. Em A revolta popular mais violenta e dram ática foi a
1831, um levante em que se confundiram militares, povo e Cabanagem, na província do Par á, iniciada em 1835. Os re¬
deputados reuniu 4 mil pessoas no Campo de Sant’Ana, for¬
beldes eram na maioria índios, chamados “ tapuios”, negros e
çou D. Pedro I a renunciar e aclamou seu filho, uma criança
mestiços. A capital da província, Bel ém, foi tomada, e boa
de cinco anos, como sucessor.
parte da população branca, cerca de 5 mil pessoas, formada
Algumas rebeliões da Regência tiveram caráter nitidamente
de comerciantes e proprietários brasileiros e portugueses, re-
popular. Nas capitais revoltaram-se com freqüéncia as tropas
fugiou-se, junto com o presidente, em navios de guerra es¬
de linha, cujos componentes eram na totalidade provenientes trangeiros. A província caiu nas mãos dos rebeldes, que a pro¬
das camadas mais pobres da população. Era comum a expres¬
clamaram independente, sob o comando de um extraordiná¬
são “ tropa e povo” para indicar os revoltosos. Mas foi nas áreas
rio líder de 21 anos chamado Eduardo Angelim. A luta conti¬
rurais que aconteceram as revoltas populares mais importan¬
nuou até 1840 e foi a mais sangrenta da história do Brasil. O
tes. A primeira delas deu-se em 1832, na fronteira das pro¬
novo presidente, um general, recuperou a capital abandona¬
víncias de Pernambuco e Alagoas. Chamou-se a Revolta dos
da pelos rebeldes e iniciou uma campanha sistem ática de re¬
Cabanos. Os cabanos eram pequenos proprietários, índios, pressão. Militarizou a província, deu ordens de fuzilar quem
camponeses, escravos. Defendiam a Igreja Católica e queriam
resistisse, obrigou todos os n ão-proprietários a se alistarem
a volta de D. Pedro I. Seu líder era um sargento, filho de pa¬
em corpos de trabalhadores. Violência e crueldade marcaram
dre, que desertara do Ex ército. Durante tr ês anos enfrenta¬ a ação dos dois grupos de antagonistas. Soldados do governo
ram as tropas do governo em autêntica guerrilha travada nas eram vistos nas ruas exibindo em torno do pescoço rosários
matas da região. Os últimos rebeldes foram caçados um a um
feitos de orelhas de cabanos. Uns 4 mil cabanos morreram
nas matas, como animais.
somente em prisões, navios e hospitais. Calculou-se o núme¬
Outra revolta popular aconteceu em 1838 no Maranhão,
ro total de mortos em 30 mil, divididos igualmente entre os
perto da fronteira com o Piauí, em região de pequenas pro¬
dois campos em luta. Esse n ú mero representava 20% da po¬
priedades. Ficou conhecida como Balaiada porque um dos pulação da província. Foi a maior carnificina da história do
líderes era fabricante de balaios. Outro líder era vaqueiro. A Brasil independente.
eles se juntou também um ex-escravo à frente de uns 3 mil
Deve-se mencionar ainda a revolta dos escravos malês de
escravos fugidos das fazendas das regi ões vizinhas. Os
1835, em Salvador. Embora abortada devido a den ú ncias, foi
“balaios” chegaram a reunir 11 mil homens em armas e ocu¬ duramente reprimida. Calcula-se em 40 o n úmero de escra¬
param Caxias, a segunda maior cidade da província. Mas di ¬ vos e libertos mortos na luta, aos quais se devem acrescentar
visões internas entre livres e escravos enfraqueceram o movi ¬
cinco que foram executados por sentença condenatoria. Ex-
mento, que foi finalmente derrotado em 1840. O vencedor
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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO B RAS I L

cetuando-se esta última revolta, que reclamava claramente o cias e duraram até 1887. Multidões de até 400 pessoas inva¬
direito civil da liberdade, nenhuma das outras tinha progra¬ diam igrejas para interromper o trabalho das juntas de recru¬
ma, nem mesmo idéias muito claras sobre suas reivindicações. tamento. De particular interesse nessas reações era a grande'
Isto não quer dizer que os rebeldes n ão tinham discernimento, presença de mulheres. Talvez tenha sido esta a primeira ma¬
e que lutaram por nada. Lutaram por valores que lhes eram nifestação política coletiva das mulheres no Brasil.
caros, independentemente de poderem expressá-los claramen¬ Uma das reações mais intensas se deu em 1874. O motivo
te. Havia neles ressentimentos antigos contra o regime colo¬ agora foi lei de 1862, que introduzia o novo sistema (deci ¬
nial, contra portugueses, contra brancos, contra ricos em ge¬ mal) de pesos e medidas e que devia entrar em vigor em 1872.
ral. Os “ balaios” davam vivas à “Sagrada Causa da Liberda¬ A reação começou no Rio de Janeiro, em 1871, onde ganhou
de”. Havia, também, um arraigado catolicismo que julgavam o nome de quebra-quilos. Em 1874 ela se espalhou entre pe¬
ameaçado pelas reformas liberais da Regência, atribuídas va¬ quenos proprietários nas províncias da Paraíba, Pernambuco,
gamente a alguma conspiração maçó nica. O importante é Alagoas e Rio Grande do Norte. Os revoltosos atacaram câ¬
perceber que possuíam valores considerados sagrados, que maras municipais, cartórios, coletorias de impostos, servi ços
percebiam formas de injustiça e que estavam dispostos a lutar de recrutamento militar, lojas maçónicas, casas de negócio, e
até a morte por suas crenças. Isto era muito mais do que a destruíram guias de impostos e os novos pesos e medidas. A
elite, que os considerava selvagens, massas-brutas, gentalha, população protestava também contra a prisão de bispos cató¬
estava disposta a fazer. licos, feita durante o ministério do visconde do Rio Branco,
As manifestações populares do Segundo Reinado tiveram que era gr ão-mestre da maçonaria. Não havia reivindicações
natureza diferente. No Primeiro Reinado e na Regência, elas explícitas, mas não se tratava de ação de bandidos, de igno¬
se beneficiavam de conflitos entre facções da classe dominan¬ rantes, ou de inconscientes. O governo reformista do viscon¬
te. Ap ós 1848, os liberais com os conservadores abandona¬ de do Rio Branco ofendera tradições seculares dos sertane ¬
ram as armas e se entenderam graças à alternância no gover ¬ jos. Ofendera a Igreja, que lhes dava a medida cotidiana da
no promovida pelo Poder Moderador. O Estado imperial ação moral; mudara o velho sistema de pesos e medidas, que
consolidou-se. As revoltas populares ganharam, então, a ca¬ lhes fornecia a medida das coisas materiais. Além disso; in ¬

racter ística de reação às reformas introduzidas pelo governo. troduzira também a lei de servi ço militar que, embora mais
Em 1851 e 1852 houve reação em várias províncias contra democrática, assustava os sertanejos, que nela viam uma pos¬
uma lei que introduzia o registro civil de nascimentos e óbi¬ ¬
sível tentativa de escravização. Os sertanejos agiram politica
¬
tos (o registro era feito pela Igreja) e mandava fazer o primei mente, protestando contra uma ação do governo que interfe ¬
ro recenseamento nacional. O governo interrompeu as duas ria em suas vidas de maneira que não consideravam legítima.
medidas. A lei do recrutamento militar de 1874 provocou Já foram mencionadas as duas grandes revoltas messiânicas
reações ainda mais generalizadas que atingiram oito provín- de Canudos e do Contestado. Em Canudos, interior da Bahia,

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JOSÉ MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

¬
um líder carism ático e messiânico, Antônio Conselheiro, reu dias. Daí em diante, tornaram-se freqiientes as revoltas con¬
niu milhares de sertanejos depois que a polícia o perseguiu tra a má qualidade dos serviços públicos mais fundamentais,
por ter destruído listas de novos impostos decretados após a como o transporte, a iluminação, o abastecimento de água. A
proclamação da República. O Conselheiro não gostara tam¬ revolta urbana mais importante aconteceu em 1904, por
bém de medidas secularizadoras adotadas pela República, motivo na aparência irrelevante. O Rio era conhecido pelas
como a separação entre Igreja e Estado, a secularização dos freqiientes epidemias de febre amarela, varíola, peste bubó¬
cemitérios e, sobretudo, a introdução do casamento civil. Em nica. Era cidade ainda colonial, de ruas desordenadas e es¬
Canudos, ele tentou criar uma comunidade de santos onde as treitas, com precário serviço de esgoto e de abastecimento de
práticas religiosas tradicionais seriam preservadas e onde to¬ água. As residências não tinham condições higiénicas. Havia
dos poderiam viver irmanados pela f é. Sua comunidade foi numerosa população no mercado informal, acrescida nos úl¬
destruída a poder de canhões, em nome da República e da timos anos do século pela migração de ex-escravos. No ve¬
modernidade. No Contestado também estava presente a uto¬ rão, a elite local e os diplomatas estrangeiros, para fugir das
pia sertaneja de uma comunidade de santos. Não havia co¬ epidemias, mudavam-se para Petrópolis, cidade de clima mais
mércio, e dinheiro republicano lá não entrava. Seu livro sa¬ saudável.
grado era Carlos Magno e os 12 pares de França, indicação da O prefeito Pereira Passos deu início em 1902 a uma refor ¬
persistência de longuíssima tradição e do ideal de fraternidade. ma urbanística e higiénica da cidade. Abriu grandes avenidas,
Um dos fatores que levaram à formação da comunidade fora endireitou e alargou ruas, reformou o porto. Centenas de casas
a luta pela propriedade da terra, exacerbada pela chegada ao foram derrubadas, deixando os moradores sem. teto. Na área
local de uma grande companhia estrangeira de construção de da saúde, Oswaldo Cruz atacou primeiro a febre amarela pelo
estrada de ferro. A questão social estava presente, assim como combate aos mosquitos que a transmitiam, aproveitando
a política. Como os de Canudos, os rebeldes do Contestado método recente aplicado em Cuba. Dezenas de funcion ários
foram arrasados a ferro e fogo. percorriam a cidade desinfetando ruas e casas, interditando
Não só no interior houve manifestações populares de na¬ prédios, removendo doentes. Foram especialmente visados os
tureza política. O Rio de Janeiro do final do século retomou cortiços, conjuntos de habitações anti-higiênicas onde se aglo¬
a tradição de protestos da época da independência e da Re¬ merava boa parte da população pobre. Muitos deles foram
gência. Em 1880, por causa do aumento de um vintém (20 condenados à demolição. Em 1904, Oswaldo Cruz iniciou o
r éis) no preço das passagens do transporte urbano, 5 mil pes¬ combate à varíola, tradicionalmente feito por meio de vaci¬
soas se reuniram em praça pública para protestar. Houve cho¬ nação que uma lei tornara obrigatória. Os políticos que se
ques com a polícia, e o conflito generalizou-se. A multidão opunham ao governo iniciaram uma campanha de oposi ção
quebrou coches, arrancou trilhos, espancou cocheiros, esfa¬ à obrigatoriedade. Os positivistas também se opuseram rui¬
queou mulas, levantou barricadas. Os distú rbios duraram três dosamente, alegando que a vacina não era segura, que podia

72 73
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

causar outras doenças e, sobretudo, que o Estado não tinha a obrigatoriedade da vacina levaram a população a levantar¬
autoridade para forçar as pessoas a se vacinarem, não podia se para dizer um basta. O levante teve incentivadores nos
mandar seus médicos invadir os lares para vacinar os sãos ou políticos de oposição e no Centro das Classes Oper árias. Mas
remover os doentes. A oposição estendeu-se às camadas po¬ nenhum líder exerceu qualquer controle sobre a ação popu¬
pulares, organizadas no Centro das Classes Operárias. Umas lar. Ela teve espontaneidade e dinâmica próprias.
15 mil pessoas assinaram listas pedindo ao governo que sus¬ A oposição à vacina apresentou aspectos moralistas. A
pendesse a vacinação. No dia 10 de novembro de 1904, ao vacina era aplicada no braço com uma lanceta. Espalhou-se,
ser anunciada uma regulamentação muito rigorosa da lei, a no entanto, a notícia de que os médicos do governo visitariam
revolta popular explodiu. De início, houve o tradicional con¬ as famílias para aplicá-la nas coxas, ou mesmo nas nádegas,
flito com as forças de segurança e gritos de “ Morra a polícia! das mulheres e filhas dos operários. Esse boato teve um peso
Abaixo a vacina!”. Depois a revolta generalizou-se. Do dia 10 decisivo na revolta. A idéia de que, na ausência do chefe da
ao dia 18, os revoltosos mantiveram a cidade em estado de família, um estranho entraria em sua casa e tocaria partes ín¬
permanente agitação, no que receberam a ajuda de militares timas de filhas e mulheres era intolerável para a população.
do Exército também rebelados contra o governo. Era uma violação do lar, uma ofensa à honra do chefe da casa .
As áreas centrais, mais atingidas pela reforma, e a região Para o operário, para o homem comum, o Estado não tinha o
do porto tornaram se redutos dos rebeldes, que bloquearam
- direito de fazer uma coisa dessas .
várias ruas com barricadas. No dia 13, grandes danos foram Em todas essas revoltas populares que se deram a partir
causados por multidões furiosas. Houve tiroteios, destruição do início do Segundo Reinado verifica se que, apesar de não
-
de coches, de postes de iluminação, de calçamento; prédios participar da política oficial, de não votar, ou de não ter cons¬
públicos foram danificados, quartéis assaltados. A ira da po ¬ ciência clara do sentido do voto, a população tinha alguma
pulação dirigiu-se principalmente contra os serviços públicos, noção sobre direitos dos cidadãos e deveres do Estado. O
a polícia, as autoridades sanitárias, o ministro da Justiça. O Estado era aceito por esses cidad ãos, desde que não violasse
governo decretou estado de sítio e chamou tropas de outros um pacto implícito de não interferir em sua vida privada, de
estados para controlar a situação. O saldo final da luta foram não desrespeitar seus valores, sobretudo religiosos. Tais pes¬
30 mortos, 110 feridos e 945 presos, dos quais 461 foram soas n ão podiam ser consideradas politicamente apáticas.
deportados para o norte do país . Como disse a um repórter um negro que participara da re¬
A Revolta da Vacina foi um protesto popular gerado pelo volta: o importante era “mostrar ao governo que ele não põe
acúmulo de insatisfações com o governo. A reforma urbana, o pé no pescoço do povo” Eram, é verdade, movimentos
.
a destruição de casas, a expulsão da população, as medidas reativos e n ão propositivos. Reagia-se a medidas raciona -
sanitárias (que incluíam a proibição de mendigos e cães nas lizadoras ou secularizadoras do governo. Mas havia nesses
ruas, a proibição de cuspir na rua e nos veículos) e, finalmente, rebeldes um esboço de cidadão, mesmo que em negativo.

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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

O SENTIMENTO NACIONAL como os que foram feitos por ocasião da entrega da bandei ¬
ra, o Brasil aparece apenas como “ as províncias deste vasto
Se não existía o cidadão consciente buscado por Couty e Gilber¬ continente”, isto é, uma coleção de unidades políticas unidas
to Amado; se exist ía apenas percepção intuitiva e pouco elabo¬ por contig üidade geográfica.
rada de direitos e deveres que às vezes explodia em reações vio¬ As vésperas da independ ência, os deputados da capitania
lentas, pode-se perguntar se havia algum sentimento de perten¬ de São Paulo, presentes às cortes de Lisboa, diziam abertamen ¬
cer a uma comunidade nacional, de ser brasileiro. Ao final da te não serem representantes do Brasil mas de sua capitania
Colónia, antes da chegada da corte portuguesa, não havia pátria
.
Em 1824, logo ap ós a independência, a revolta da Confede ¬
brasileira. Havia um arquipélago de capitanias, sem unidade ração do Equador, liderada por Pernambuco, separou várias
política e económica. O vice-rei, sediado no Rio de Janeiro, ti¬ províncias do resto do país e proclamou uma república. Os
nha controle direto apenas sobre algumas capitanias do sul As
. textos rebeldes revelam grande ressentimento contra a Corte
outras comunicavam-se diretamente com Lisboa Nas capitanias, e o Rio de Janeiro, e nenhuma preocupação com a
unidade
muitos governadores, ou capitães-generais, não tinham contro¬ nacional. A id éia de p átria manteve se ambígua até mesmo
le sobre os capitães-mores que governavam as vilas. A colónia
-
depois da independência. Podia ser usada para denotar o Brasil
portuguesa estava preparada para o mesmo destino da colónia ou as províncias. Um deputado mineiro, Bernardo Pereira de
espanhola: fragmentar-se em vários países distintos. Vasconcelos, insuspeito de separatismo, falando a seus
Não é de admirar, então, que não houvesse sentimento de conterrâneos referia-se a Minas Gerais como “minha pátria ,

pátria comum entre os habitantes da colónia. As revoltas do em contraste com o Brasil, que seria o “ Imp ério ”. A distinção
per íodo o indicam. Os juristas, poetas e militares da capitania é reveladora: a identificação emotiva era com a província,
o
de Minas Gerais que sonharam com a independência em 1789, Brasil era uma construção política, um ato de vontade movi¬
inspirados no exemplo norte-americano, não falavam em Bra¬ do antes pela mente que pelo coração.
sil. Falavam em América (“nós, americanos”), ou falavam em Várias das revoltas da Regê ncia manifestaram tend ê ncias
Minas Gerais (a “pátria mineira”). Os argumentos que davam separatistas. Três delas, a Sabinada, a Cabanagem e a Farrou ¬
em favor da independ ê ncia se referiam ao território da capi¬ pilha, no Rio Grande do Sul, proclamaram a independê
ncia
tania e a seus recursos naturais. O mesmo pode ser dito da da província. O patriotismo permanecia provincial. O pouco
revolta de 1817 em Pernambuco. Nessa época, o Brasil já fora de sentimento nacional que pudesse haver baseava-se no ódio
promovido a Reino Unido a Portugal e Algarves. Mesmo as¬ ao estrangeiro, sobretudo ao português. Nas revoltas
sim, quando os rebeldes falavam em pátria e patriotas, e eles regenciais localizadas em cidades, a principal indica o
çã de
o faziam com freqiiê ncia, era a Pernambuco que se referiam e brasilidade era o nativismo antiportugués, justificado pelo fato
não ao Brasil. A bandeira da Rep ública, o hino, as leis não ti¬ de serem portugueses os principais comerciantes e proprietá¬
nham refer ê ncia alguma ao Brasil. Em discursos rebeldes, rios urbanos.

7 6
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRAS I L

Foram as lutas contra inimigos estrangeiros que criaram a mudança de mentalidade. Dois deles são particularmente
alguma identidade. No per íodo colonial, a luta contra os ho¬ reveladores. Um foi publicado na Semana Ilustrada em 1865,
landeses deu forte identidade aos pernambucanos, embora não sob o título: “ Brasileiros! Às armas!” Nele o Brasil é repre¬
aos brasileiros. Só mais tarde, durante a guerra contra o sentado por um índio sentado no trono imperial, tendo às
Paraguai, os pintores oficiais do Império dedicaram grandes mãos a bandeira nacional. O índio recebe a vassalagem das
quadros às principais batalhas contra os holandeses, tentan¬ províncias, personificadas por guerreiros romanos. A palavra
do transformá las em símbolos da luta pela independência da
- “brasileiro” indica com clareza o tipo de identidade que se
pátria. Mas tratava-se ai de manipulação simbólica, talvez efi¬ procurava promover, e a vassalagem das províncias mostra que
ciente, mas muito posterior aos fatos. O principal fator de agora um valor mais alto se apresentava, acima das lealdades
produção de identidade brasileira foi, a meu ver, a guerra e dos patriotismos localistas. O outro, também da Semana
contra o Paraguai. O Brasil lutou em aliança com a Argentina Ilustrada, e de 1865, é ainda mais revelador. Representa a
e o Uruguai, mas o peso da luta ficou com suas tropas. A guerra despedida de um voluntário, a quem a mãe entrega um escu¬
durou cinco anos (1865-1870), mobilizou cerca de 135 mil do com as armas nacionais junto com a advertência, atribuí¬
soldados vindos de todas as províncias, exigiu grandes sacri¬ da às mães espartanas, de que só regresse da guerra carregan¬
íf cios e afetou a vida de milhares de famílias. Nenhum acon¬ do o escudo ou deitado sobre ele. Baseado em fato real, pas¬
tecimento político anterior tinha tido car áter tão nacional e sado em Minas Gerais, o cartum revela com nitidez o surgi ¬
envolvido parcelas tão grandes da população, nem aindepen- mento de uma lealdade que se sobrepõe à lealdade familiar.
dência, nem as lutas da Regência (todas provinciais), nem as O texto que acompanha o quadro reproduz os versos do Hino
guerras contra a Argentina em 1828 e 1852 (ambas limitadas da Independência: “ Ou ficar a pátria livre, ou morrer pelo
e envolvendo poucas tropas, algumas mercenárias). No iní¬ Brasil.” Pela primeira vez, o brado retórico de 1822 (“Inde ¬
cio da guerra contra o Paraguai, as primeiras vitórias desper¬ pendência ou morte!”) adquiria realidade concreta, potencial¬
taram aut ê ntico entusiasmo cívico. Formaram-se batalhões mente trágica.
patri óticos, a bandeira nacional começou a ser reproduzida O início de um sentimento de pátria é também atestado
nos jornais e revistas, em cenas de partida de tropas e de vitó¬ pela poesia e pela canção popular sobre a guerra. Algumas
ria nos campos de batalha. O hino nacional começou a ser poesias e canções sobreviveram até hoje na memória popu¬
executado, o imperador D. Pedro II foi apresentado como o lar. Muitas falam do amor à pátria e da necessidade de a de¬
¬ fender, se necessário com o sacrifício da própria vida. É co ¬
líder da nação, tentando conciliar as divergências dos parti
dos em benef ício da defesa comum. A imprensa começou tam¬ mum nas poesias o tema do soldado despedindo-se da mãe e
bém a tentar criar os primeiros heróis militares nacionais. Até da família para ir à guerra. Do Paraná, há uma que diz: “ Ma¬
então, o Brasil era um país sem heróis. mãe, sou brasileiro/ E n ão hei de sofrer.” De Santos, São Pau¬
Alguns cartuns publicados na imprensa da época indicam lo, há outra mais explícita: “ Mamãe, eu sou brasileiro/ E a

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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

pátria me chama para ser guerreiro.” Em Minas Gerais, um Janeiro assistira bestializado, isto é, bestificado, atónito, aos
soldado se despede da família de maneira estoica: “ Não que¬ acontecimentos, sem entender o que se passava, julgando tra¬
ro que na luta ninguém chore/ A morte de um soldado brasi¬ tar-se de parada militar. A participação popular foi menor do
leiro;/ Nunca olvidem que foi em prol da pátria/ Que eu dei o que na proclamação da independência. Não houve grande
meu suspiro derradeiro.” Tanto nos cartuns como nas poesias, movimentação popular nem a favor da República, nem em
a lealdade à pátria aparece como superior à lealdade provin¬ defesa na Monarquia. Era como se o povo visse os aconteci¬
cial e familiar. A presença da mãe encorajando o filho é parti¬ mentos como algo alheio a seus interesses. Houve maior par¬
cularmente significativa. Ela reconhece a existencia de outra ticipação popular durante o governo do marechal Floriano
mãe maior, a “mátria”, como gostavam de dizer os positivistas, Peixoto (1892-95), mas ela adquiriu conotação nativista
cujo amor tem exigências superiores às suas. antiportuguesa e foi eliminada quando se consolidou o poder
Depois da guerra, poucos acontecimentos tiveram impac¬ civil sob a hegemonia dos republicanos paulistas.
to significativo na formação de uma identidade nacional. A Sob certos aspectos, a República significou um fortalecimen¬
pr ópria guerra, passado o entusiasmo inicial, tornou-se um to das lealdades provinciais em detrimento da lealdade nacio¬
peso para a população. Se os primeiros batalhões de voluntᬠnal. Ela adotou o federalismo ao estilo norte-americano, refor¬
rios eram fruto de genuíno patriotismo, à medida que a guer¬ çando os governos estaduais. Muitos observadores estrangei ¬
ra se foi prolongando, o entusiasmo desapareceu, e os bata¬ ros e alguns monarquistas chegaram a prever a fragmentação
lhões seguintes só tinham de voluntários o nome. Episódio do país como conseqiiência da República e do federalismo.
que em princípio deveria ter marcado a memória popular foi Houve um período inicial de instabilidade e guerra civil que
a proclamação da República. Mas não foi o que aconteceu. parecia dar sustentação a esses temores. A unidade foi mantida
Havia um movimento republicano em organização desde afinal, mas não se pode dizer que o novo regime tenha sido
1870, mas que só tinha alguma importância em São Paulo, considerado uma conquista popular e portanto um marco na
Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Atingia apenas setores da criação de uma identidade nacional. Pelo contrário, os movi¬
elite, sobretudo cafeicultores irritados com a abolição da es¬ mentos populares da época tiveram quase todos características
cravidão, e da classe m édia urbana, médicos, professores, anti-republicanas. Tal foi o caso, por exemplo, da revolta de
advogados, jornalistas, engenheiros, estudantes de escolas Canudos. Movimento messiânico por excelência, foi também
superiores, e militares. Al ém disso, o ato da proclamação em abertamente monarquista, mesmo que por motivações religio¬
si foi feito de surpresa e comandado pelos militares que ti¬ sas e tradicionalistas. O combate aos rebeldes de Canudos, vis¬
nham entrado em contato com os conspiradores civis poucos tos equivocadamente como ameaça à República, despertou certo
dias antes da data marcada para o início do movimento. entusiasmo jacobino no Rio de Janeiro. Mas todo o episódio
A surpresa da proclamação entrou para a história na frase foi um equívoco trágico, conforme denunciou Euclides da
famosa de Aristides Lobo, segundo a qual o povo do Rio de Cunha em Os Sertões. O Exército nacional massacrou os cren -
8 o 81
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

tes com tiros de canhões Krupp. Outro movimento messiânico, se firmou como herói cívico foi Tiradentes, o único entre os
o do Contestado, também teve caráter monarquista. Os rebel¬ rebeldes mineiros de 1879 que tinha cara popular, e talvez por
des lançaram manifesto monarquista e escolheram um fazen¬ isso mesmo tenha sido o ú nico a ser enforcado. Pintores o re ¬
deiro analfabeto como seu rei Como os crentes de Canudos,
. presentaram com a apar ência de Jesus Cristo, o que sem dúvi¬
foram massacrados ao final de três anos de luta contra tropas da contribuiu para difundir sua popularidade.
do Ex ército. Sua rendição final se deu em 1915. Pode-se concluir, então, que até 1930 não havia povo or¬
Até mesmo a população pobre do Rio de Janeiro, em gran¬ ganizado politicamente nem sentimento nacional consolida¬
de parte negra ou mulata, tinha simpatias monarquistas. Um do. A participação na política nacional, inclusive nos grandes
cronista da cidade atesta que em torno de 1904, após 15 anos acontecimentos, era limitada a pequenos grupos. A grande
da proclamação da República, ao visitar a Casa de Detenção, maioria do povo tinha com o governo uma relação de distân¬
verificou que todos os presos eram radicalmente monarquis¬ cia, de suspeita, quando n ão de aberto antagonismo. Quando
tas. A revolta contra a vacinação obrigatória pode ter sido em o povo agia politicamente, em geral o fazia como reação ao
parte encorajada pela antipatia popular pelo novo regime. O que considerava arbítrio das autoridades. Era uma cidadania
primeiro chefe de polícia do governo republicano mandara em negativo, se se pode dizer assim. O povo não tinha lugar
prender e deportar grande n úmero de “capoeiras”, negros na no sistema político, seja no Império, seja na República. O Brasil
maioria, que tinham participado de atos de hostilidade con¬ era ainda para ele uma realidade abstrata. Aos grandes acon ¬
tra os republicanos nos últimos anos da Monarquia . tecimentos políticos nacionais, ele assistia, n ão como
A consciência da falta de apoio levou os republicanos a bestializado, mas como curioso, desconfiado, temeroso, tal¬
tentarem legitimar o regime por meio da manipulação de sím¬ vez um tanto divertido.
bolos patrió ticos e da criação de uma galeria de heróis repu¬
blicanos. Mesmo aí foi necessário fazer compromissos. A ban¬
deira nacional foi modificada, mas foram mantidas as cores e
o desenho básico da bandeira imperial. A mudança do hino
nacional foi impedida por reação popular. Graças à guerra
contra o Paraguai, bandeira e hino já tinham adquirido legiti¬
midade como símbolos cívicos.
Não teve muito êxito também a República em promover
seus fundadores, os generais Deodoro e Floriano e o tenente-
coronel Benjamin Constant, a heróis cívicos. O ú nico que ad¬
quiriu certa popularidade foi Floriano, mas a tendência jacobina
de seus seguidores fez dele uma figura polêmica. O ú nico que

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CAP ÍTULO II Marcha acelerada (1930-1964)
O ano de 1930 foi um divisor de águas na historia do país. A
partir dessa data, houve aceleração das mudan ças sociais e
políticas, a historia começou a andar mais r ápido. No campo
que aqui nos interessa, a mudança mais espetacular verificou¬
se no avanço dos direitos sociais. Uma das primeiras medidas
do governo revolucionário foi criar um Ministé rio do Traba¬
lho, Ind ústria e Comércio. A seguir, veio vásta legislação tra¬
balhista e previdenciária, completada em 1$43 com a Conso¬
lidação das Leis do Trabalho. A partir desse forte impulso, a
legislação social não parou de ampliar seu alcance, apesar dos
grandes problemas financeiros e gerenciais que até hoje afli¬
gem sua implementação.
Os direitos pol íticos tiveram evolu ção mais complexa. O
país entrou em fase de instabilidade, alternando-se ditaduras
e regimes democr áticos. A fase propriamente revolucionária
durou até 1934, quando a assembléia constituinte votou nova
Constitui ção e elegeu Vargas presidente. Em 1937, o golpe
de Vargas, apoiado pelos militares, inaugurou um per íodo di ¬
tatorial que durou até 1945. Nesse ano, nova intervenção mi ¬
litar derrubou Vargas e deu início à primeira experiência que
se poderia chamar com alguma propriedade de democr ática
em toda a história do país. Pela primeira vez, o voto popular

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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

começou a ter peso importante por sua crescente extensão e 1930: MARCO DIVISÓRIO
pela também crescente lisura do processo eleitoral. Foi o pe¬
írodo marcado pelo que se chamou de política populista, um Em 3 de outubro de 1930, o presidente da Rep ú blica, Wa¬
fenômeno que atingiu também outros países da América La¬ shington Luís, foi deposto por um movimento armado diri ¬
tina. A experiência terminou em 1964, quando os militares gido por civis e militares de tr ês estados da federação, Mi¬
intervieram mais uma vez e implantaram nova ditadura. nas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba. Terminava assim a
Os direitos civis progrediram lentamente. Não deixaram Primeira República. O episódio ficou conhecido como a Re¬
de Figurar nas tr ês constituições do per íodo, inclusive na di¬ volução de 30, embora tenha havido, e ainda haja, muita dis¬
tatorial de 1937. Mas sua garantia na vida real continuou cussão sobre se seria adequado usar a palavra revolu ção para
precária para a grande maioria dos cidadãos. Durante a dita¬ descrever o que aconteceu. Certamente n ão se tratou de re¬
dura, muitos deles foram suspensos, sobretudo a liberdade de volu ção, se compararmos o episó dio com o que se passou
expressão do pensamento e de organização. O regime ditato¬ na França em 1789, na R ússia em 1917, ou mesmo no Mé¬
rial promoveu a organização sindical mas o fez dentro de um xico em 1910. Mas foi sem d úvida o acontecimento mais
marcante da história política do Brasil desde a independ ê n ¬
arcabouço corporativo, em estreita vinculação com o Estado.
cia. É importante, então, discutir suas causas e seu signi ¬
Os movimentos sociais independentes avan çaram lentamen¬
ficado. ‘
te a partir de 1945. O acesso da população ao sistema judiciá¬
A Primeira Repú blica caracterizava se pelo" governo das
-
rio progrediu pouco.
oligarquias regionais, principalmente das mais fortes e orga¬
Houve progresso na formação de uma identidade nacio¬
nizadas, como as de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande
nal, na medida em que surgiram momentos de real participa¬
do Sul. A partir da segunda década do século, fatos externos
ção popular. Foi o caso do pr ó prio movimento de 1930 e das
e internos começaram a abalar o acordo oligárquico. Entre
campanhas nacionalistas da década de 50, sobretudo a da os externos, devem se mencionar a Grande Guerra, a Revo ¬
defesa do monopólio estatal do petróleo. O nacionalismo,
-
lu ção Russa, e a quebra da Bolsa de Nova York em 1929.
incentivado pelo Estado Novo, foi o principal instrumento de A guerra causou impactos económicos e políticos. O pre¬
promoção de uma solidariedade nacional, acima das lealda¬ ço do caf é, principal produto de exportação, sofreu grande
des estaduais. A esquerda salientou-se na defesa das teses na¬ queda, reduzindo-se, em conseqiiência, a capacidade de im ¬
cionalistas. O Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), portar. A carestia que se seguiu piorou as condições de vida
criado no Rio de Janeiro na década de 50, foi o principal da população pobre das cidades e favoreceu a eclosão das
formulador e propagandista do credo nacionalista. grandes greves oper árias do final da segunda década. Do ponto
de vista político, a guerra serviu também para despertar a
preocupação com a defesa nacional entre militares e civis. Pela

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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

primeira vez, civis organizaram Ligas de Defesa Nacional e controlaram a capital por alguns dias. Abandonando a ci¬
pregaram a importância da preparação militar do país. Um dade, juntaram-se a outros militares rebeldes do sul do país
dos pontos da pregação era a introdução do serviço militar e formaram a coluna que percorreu milhares de quiló me¬
obrigatório para todos os homens, velha reivindicação dos tros sob perseguição dos soldados legalistas, até internar¬
militares que as elites civis resistiam em aceitar. se na Bolívia em 1927, sem ter sido derrotada. A coluna
A Revolu ção Soviética não teve impacto imediato, de vez ganhou o nome de seus dois comandantes iniciais, o coro ¬
que o movimento operário mais radical seguia orientação nel Miguel Costa, da Polícia Militar de São Paulo, e o capi¬
anarquista. Mas em 1922 formou-se o Partido Comunista do tão Luís Carlos Prestes, do Ex é rcito. Posteriormente, ficou
Brasil, dentro do figurino da Terceira Internacional. O Parti¬ mais conhecida como Coluna Prestes, por ter Miguel Cos¬
do disputou com os anarquistas e os “amarelos” a organiza¬ ta abandonado a luta. Prestes tornou-se um líder simpáti¬
ção do operariado. Com o Partido Comunista, um ator novo co aos opositores do regime. Aderiu ao comunismo em
entrou na cena política, onde teria papel relevante por muito 1930 e foi indicado, por imposição de Moscou, secretário-
tempo. geral do Partido Comunista, condição que manteve até
A crise de 1929 serviu para agravar as dificuldades já pouco antes de morrer, em 1990.
presentes na á rea econó mica. O governo desenvolvera Os militares tinham tido grande influência sobre os pri¬
amplo programa de defesa do preço do caf é. Como conse- meiros governos republicanos, conseqiiência lógica do fato de
qiiência, grandes safras foram produzidas nos últimos anos terem proclamado a República. Mas aos poucos as oligarquias
da d é cada de 20. A superprodu ção coincidiu com a crise e tinham conseguido neutralizar sua influência e garantir um
com a Grande Depressão que a seguiu. Os preços do caf é governo civil estável. O movimento iniciado em 22 pretendia
despencaram. Num esfor ço desesperado para conter sua recuperar a influ ência perdida. A guerra contribuíra também
queda, o governo comprou os grandes excedentes e pro¬ para despertar em alguns oficiais a consciência do despreparo
moveu sua destrui ção. Não pôde, no entanto, evitar a que¬ militar do país e da necessidade de mudanças na política de
da na capacidade de importar e nas receitas derivadas em defesa, com conseqiiências também para a política económi¬
grande parte dos impostos sobre o com ércio exterior. Maior ca e industrial. O caráter corporativo inicial do movimento
produtor de caf é, o estado de São Paulo foi particularmen¬ foi aos poucos dando lugar a reivindicações que tinham por
te penalizado. alvo combater o domínio exclusivo das oligarquias sobre a
Internamente, a fermentação oposicionista come çou a política. O movimento ganhou a simpatia de outros grupos
ganhar for ça na d é cada de 20. Depois dos oper ários, fo¬ insatisfeitos, sobretudo os setores médios das grandes cida¬
ram os militares que começaram a agitar se. Em 1922, hou¬
- des. O tenentismo n ão tinha características propriamente
ve uma revolta de jovens oficiais no Rio de Janeiro. Em democráticas, mas foi uma poderosa força de oposição. Todo
1924, eles se revoltaram novamente em São Paulo, onde o período presidencial de 1922 a 1926 se passou sob o estado

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JOSÉ MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

de sítio, em conseqüéncia da luta tenentista. Embora derrota¬ gação apontava para um problema central na formação dos
dos em 1922, 1924 e 1927, muitos “ tenentes” continuaram a cidadãos .
luta na clandestinidade ou no exílio. Quando as circunstâncias O reformismo atingiu ainda a área da saúde. A partir do
políticas se tornaram favoráveis em 1930, eles reapareceram saneamento do Rio de Janeiro, empreendido no início do sé¬
e forneceram a liderança militar necessária para derrubar o culo por Oswaldo Cruz, outros médicos sanitaristas levaram
governo. a campanha ao interior do país Assim como Euclides da Cu ¬
.
O fermento oposicionista manifestou-se também no cam¬ nha revelara o mundo a um tempo primitivo e heroico dos
po cultural e intelectual. No ano de 1922, foi organizada em sertanejos, os sanitaristas descobriram um Brasil de misérià e
São Paulo a Semana de Arte Moderna. Um grupo de escrito¬ doença a pedir a aten ção do governo. Tornou se famosa a frase
-
res, artistas plásticos e músicos de grande talento, patrocina¬ de Miguel Couto de que o Brasil era um vasto hospital. Os
dos por ricos mecenas da elite paulista, escandalizaram a bem - médicos envolveram-se, então, em campanha nacional a fa¬
comportada sociedade local com espetáculos e exibições de vor do saneamento do país como condição indispensável para
arte inspirados no modernismo e no futurismo europeus. O construir uma nação viável.
movimento aprofundou suas idéias e pesquisas e colocou em Todos os reformistas estavam de acordo em um ponto: a
crítica ao federalismo olig árquico. Federalismo e oligarquia ^
questão a natureza da sociedade brasileira, suas raízes e sua
eram por eles considerados irmãos gêmeos, pois era o federa¬
relação com o mundo europeu. Na década seguinte, muitos
modernistas envolveram-se na política, à esquerda e à direi ¬ lismo que alimentava as oligarquias, que lffes abria amplo
campo de ação e lhes fornecia os instrumentos de poder. De
ta. Mas desde o início, mesmo na versão puramente estética -
do movimento, ele já trazia em si uma crítica profunda ao senvolveu se nos círculos reformistas a convicção de que era
-
mundo cultural dominante . necessá rio fortalecer novamente o poder central como con ¬
Na área da educação também houve tentativas de refor ¬ dição para implantar as mudanças que se faziam necessárias .
ma. A influência maior veio dos Estados Unidos, sobretudo Pensadores políticos, como Alberto Torres, insistiam nesse
ponto, propondo que o governo central retomasse seu papel 1
do fil ósofo John Dewey. As propostas dos defensores da Es¬
cola Nova, entre os quais se salientavam Anísio Teixeira, de organizador da nação, como nos tempos do Império. Para
Fernando de Azevedo e Lourenço Filho, tinham um lado de Torres, talvez o mais influente pensador da época, a socieda¬
pura adaptação do ensino ao mundo industrial, que se torna¬ de brasileira era desarticulada, não tinha centro de refer ên ¬
va cada vez mais dominador. O ensino devia ser mais técnico cia, n ão tinha prop ósito comum. Cabia ao Estado organizá-la
e fornecer-lhe esse propósito.
e menos acad ê mico. Mas tinham também um lado democrá¬
tico, na medida em que apontavam a educação elementar A d é cada de 20 terminou presenciando uma das pou ¬
como um direito de todos e como parte essencial de uma socie¬ cas campanhas eleitorais da Primeira Rep ú blica em que
dade industrial e igualitária. Num país de analfabetos, tal pre- houve autêntica competi ção. O candidato oficial à presi -
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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

d ê ncia, J úlio Prestes, paulista como o presidente que estava do Nordeste, a Paraíba. Os tr ês estados enfrentaram a for ça
no poder, representava a continuidade administrativa. O de São Paulo e do resto do país.
candidato da oposi ção, Get ú lio Vargas, à frente da Alian ça A elei ção, como de costume, foi fraudada, e o governo,
Liberal , introduziu temas novos em sua plataforma política. também como de costume, declarou-se vencedor. Houve as
Falava em mudan ças no sistema eleitoral, em voto secreto, reclamações de sempre contra as fraudes, em pura perda de
em representação proporcional, em combate às fraudes tempo. As coisas pareciam caminhar para a retomada da “ pax
eleitorais; falava em reformas sociais, como a jornada de olig árquica”, quando um assassinato mudou o rumo dos
acontecimentos. O governador da Paraíba, João Pessoa, f òi
trabalho de oito horas, f é rias, sal ário m ínimo, proteção ao
morto por um inimigo pol ítico local. Sua morte forneceu o
trabalho das mulheres e menores de idade.
pretexto para que os elementos mais radicais da Alian ça Li ¬
Getúlio Vargas n ão se diferenciava socialmente de J úlio
beral retomassem a luta, desta vez com propósito abertamen ¬
Prestes no que se referia às origens sociais. Ambos eram mem ¬
te revolucion ário. Um passo l ógico foi a busca do apoio dos
bros das oligarquias de seus respectivos estados, onde tinham
“ tenentes” remanescentes das revoltas de 1922 e 1924. Sua
sido governadores. Mas as circunstâncias do momento, que experiência militar e sua influência nos quartéis eram preci¬
acabamos de descrever, deram a suas campanhas uma cono¬ osas para a nova fase da luta. Prestes recusou o comando
tação distinta. A Aliança Liberal captou as simpatias de boa militar do movimento por já estar pr óximo do comunismo.
parte da oposi ção e tornou-se símbolo de renovação. Uma Mas os outros “ tenentes” aderiram. Fez-se a^alian ça, agora
nova geração de políticos, de origem oligárquica mas com já n ão muito liberal, entre as dissid ências oligárquicas e a
propostas inovadoras, assumiu a lideran ça ideol ógica do dissid ê ncia militar.
movimento. Dessa alian ça nasceu a revolta civil-militar de 1930. Ela
A Aliança Liberal ameaçava ainda o sistema por ter colo ¬ começou simultaneamente nos tr ês estados, com a tomada
cado em campos opostos as duas principais for ças políticas dos quartéis do Ex ército, feita com o apoio das fortes polí¬
da Rep ública, os estados de São Paulo e de Minas Gerais. Os cias militares estaduais. O Nordeste foi rapidamente domi¬
dois estados alternavam-se na presidência. Em 1930, o acor ¬ nado, o mesmo acontecendo com o sul do país. As tropas
do foi quebrado quando São Paulo insistiu em um candidato rebeldes convergiram para S ão Paulo e para o Rio de Janei¬
paulista para substituir um presidente também paulista. Rom¬ ro, onde estava o centro da resistência. O governo detinha
pido o acordo, os conflitos latentes, dentro e fora das oligar ¬ superioridade militar sobre os revoltosos, mas faltava ao alto
quias, encontraram campo livre para se manifestar. A elite comando vontade para defender a legalidade. Os chefes
política mineira, frustrada em suas ambiçõ es, aliou-se à elite militares sabiam que as simpatias da jovem oficialidade e da
gaúcha, sempre insatisfeita com o domínio de paulistas e mi¬ população estavam com os rebeldes. Uma junta formada por
neiros. Às duas juntou -se ainda a elite de um pequeno estado dois generais e um almirante decidiu depor o presidente da

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JOS É MURILO DE CARVALHO
CIDADANIA NO BRASIL

Rep ú blica e passar o governo ao chefe do movimento


revoltoso, o candidato derrotado da Aliança Liberal. Sem Em conseqiiência, o Ex é rcito era uma for ça que disputa¬
grandes batalhas, caiu a Primeira Rep ú blica, aos 41 anos de va o poder com a oligarquia rural. Em 1889, a jovem oficia¬
vida. lidade responsável pela mobilização era influenciada pelo
Sob o ponto de vista que aqui nos interessa, não se pode positivismo, uma ideologia industrializante, simpática à ciên¬
negar que a maneira por que foi derrubada a Primeira Repú¬ cia e à técnica, antibacharelesca. Os positivistas faziam oposi ¬
blica representou um avanço em relação à sua proclamação ção aos proprietários e à elite política civil, quase toda for¬
em 1889. Em 1930, o movimento foi precedido de uma elei¬ mada de advogados e juristas. Em 1930, os jovens militares
ção que, apesar das fraudes, levou o debate a uma parcela da ainda eram uma for ça de oposição à elite civil. A experiência
população. O assassinato do governador da Paraíba introdu¬ adquirida desde 1922, os contatos com civis da oposi ção, deu
ziu um elemento de emoção totalmente ausente em 1889. A a eles maior visão política, idéias mais claras sobre reformas
mobilização revolucionária envolveu muitos civis nos estados políticas e, sobretudo, económicas e sociais. Como em 1889,
rebelados. No Rio Grande do Sul pode-se dizer que houve eram favor áveis a um governo forte que, usando a linguagem
verdadeiro entusiasmo cívico. O povo n ão esteve ausente positivista, chamavam de ditadura republicana. Esse governo
como em 1889, não assistiu “ bestializado” ao desenrolar dos deveria ser usado para centralizar o poder, combater as oli¬
acontecimentos. Foi ator no drama, posto que coadjuvante. garquias, reformar a sociedade, promover a industrialização,
É verdade que em 1930, como em 1889, foi necessária a modernizar o país. Apesar de não ser democr ático, o tenen-
presen ça militar. O fato pode ser visto pelo lado negativo: tismo era uma for ça renovadora.
as for ças civis ainda n ão dispensavam o apoio militar. Os dois
regimes nasceram sob a tutela do Ex ército, isto é, da for ça. Ensaios de participação política ( 1930 -1937 )
Mas há também um lado positivo. O Ex ército em 1889, e mais
ainda em 1930, n ão era um aliado das oligarquias. Neste Entre 1930 e 1937, o Brasil viveu uma fase de grande agitação
ponto, o Ex é rcito brasileiro era diferente de quase todos os política. Anteriormente, só a Regência, um século antes, e os
outros da Am érica Latina. Como a independência se fez sem anos iniciais da República tinham vivido situação parecida. Mas
guerra civil, n ão surgiram no Brasil os caudilhos militares li¬ o período de 30 superou os anteriores pela amplitude e pelo
gados à grande propriedade da terra. O Exército formou-se grau de organização dos movimentos políticos. Quanto à am ¬
em ambiente político de predomínio civil. Ao final do Impé¬ plitude, a mobilização atingiu v ários estados da federação, além
rio, quase todos os oficiais eram filhos de oficiais ou de famí¬ da capital da República; envolveu v ários grupos sociais: operá¬
lias sem muitos recursos. Os poucos filhos de proprietários rios, classe m édia, militares, oligarquias, industriais. Quanto à
rurais vinham quase todos do Rio Grande do Sul. organização, multiplicaram-se os sindicatos e outras associações
de classe; surgiram v ários partidos políticos; e pela primeira
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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

vez foram criados movimentos políticos de massa de âmbito pol ítica de industrialização e de reforma agr ária. Vários
nacional. desses pontos, sobretudo o último, constituíam sé ria ame ¬
O movimento que levou ao fim da Primeira República aça às oligarquias. O receio dos proprietários aumentou
era heterogé neo do ponto de vista social e ideol ógico. Tor- depois da adesão do capitão Luís Carlos Prestes ao Partido
nava-se, assim, inevitável que, após a vitória, houvesse luta Comunista, em fins de 1930. Prestes aderira ao comunis¬
entre os aliados de v éspera pelo controle do governo. Os dois mo quando ainda exilado na Argentina. Não aceitou o co¬
blocos principais, como vimos, eram as dissidências oligár¬ mando militar do movimento de 1930 por julgar tratar-se
quicas e os jovens militares. As primeiras queriam apenas de um projeto burguês, não revolucion ário. Adotou as te ¬
ajustes na situação anterior; os militares, aliados a revolucio¬ ses da Terceira Internacional, pregando uma revolu ção se¬
n ários civis, queriam reformas mais profundas que feriam gundo o modelo de 1917, feita pela alian ça de oper á rios,
os interesses das oligarquias. A principal delas era a reforma camponeses e soldados.
agr á ria. Do lado oposto, os inimigos da revolução, as velhas Isto era an átema para as oligarquias, e mesmo para os
oligarquias, sobretudo a de São Paulo, procuravam explo ¬ reformistas da coluna que Prestes comandara. Osvaldo Ara¬
rar as divergências entre os vitoriosos para bloquear as re¬ nha, um dos principais líderes civis da revolta, braço direito
formas. de Get úlio Vargas, escrevia em 1931 ao governador do Rio
Os “tenentes” e seus aliados civis organizaram se em tor ¬
- Grande do Sul propondo a criação de legi ões civis para com ¬
no do Clube 3 de Outubro, refer ê ncia à data da vitória do bater o perigo do militarismo. O que assustava no militaris¬
movimento. O Clube exerceu grande influência nos dois mo, no entanto, era o que Aranha chamava de novos rumos
primeiros anos do novo governo. Alé m de pressionar o pre ¬ do movimento, contaminado “ de esquerdismo e até de co¬
sidente para nomear pessoas ligadas à proposta reformis¬ munismo! É o Luís Carlos Prestes”. E concluía: “ (...) o Exé r¬
ta, seus membros promoviam debates e tentavam definir cito ameaça constituir um perigo, não à ordem atual, mas às
um programa revolucionário. Muitas das propostas tinham pr óprias instituições basilares do organismo nacional ”. As
a ver com o que já vinha sendo veiculado anteriormente, disputas internas levaram ao declínio do Clube 3 de Outu ¬
mas pela primeira vez eram formuladas por uma organiza¬ bro. Moderados e radicais o abandonaram. Os primeiros
ção com poderes para influenciar o governo. Os reformis¬ assustaram-se com o radicalismo das propostas; os últimos
tas pediam a redução do poder das oligarquias por meio não se satisfaziam com sua moderação. O prolongamento
da centralização política e da representação classista no do governo revolucionário provocou também o crescimen¬
Congresso; pediam o controle sobre as polícias militares to da oposição, sobretudo em São Paulo, onde as elites se
dos estados, o fortalecimento das forças armadas e da de ¬ uniram para pedir o fim da interven ção federal no estado e
fesa nacional; pediam uma legislação sindical e social, uma a volta do país ao regime constitucional Parte da elite
.
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CIDADANIA NO BRASIL
JOS É MURILO DE CARVALHO

torno do bandeirante mitificado. Não faltaram mesmo mani¬


paulista apoiara a revolução, mas a nomeação de interven¬ festações de separatismo, embora este não fosse um tema cen¬
tores militares para o estado causara irritação geral. As eli ¬ tral da pregação rebelde. Em um país com tão pouca partici¬
tes paulistas uniram-se e revoltaram-se contra o governo pação popular, a guerra paulista foi uma exceção. Não favo ¬
federal em 1932. recia a identidade brasileira, mas revelou e refor çou um forte
A revolta paulista, chamada Revolução Constitucionalista, sentimento de identidade paulista.
durou três meses e foi a mais importante guerra civil brasileira Os paulistas perderam a guerra no campo de batalha, mas
do século XX. Os paulistas pediam o fim do governo ditatorial a ganharam no campo da política. O governo federal con¬
¬
e a convocação de eleições para escolher uma assembléia cons cordou em convocar eleições para a assembléia constituinte
tituinte. Sua causa era aparentemente inatacável: a restauração que deveria eleger também o presidente da Rep ública. As
da legalidade, do governo constitucional. Mas seu espírito era eleições se deram em 1933, sob novas regras eleitorais que
conservador: buscava-se parar o carro das reformas, deter o representavam já grande progresso em relação à Primeira
tenentismo, restabelecer o controle do governo federal pelos Rep ública. Para reduzir as fraudes, foi introduzido o voto
¬
estados. Aos paulistas aliaram-se outros descontentes, inclusi secreto e criada uma justiça eleitoral. O voto secreto protegia
ve oficiais superiores das forças armadas, insatisfeitos com a o eleitor das pressões dos caciques políticos; a justiça eleitoral
inversão hierárquica causada pelos “ tenentes”. Outros estados, colocava nas mãos de juízes profissionais a fi&calização do
como o Rio Grande do Sul e Minas Gerais, hesitaram sobre a alistamento, da votação, da apuração dos votos e o reconhe¬
posição a tomar. Decidiram-se, finalmente, pelo apoio ao go¬ cimento dos eleitos. O voto secreto e a justiça eleitoral foram
verno federal, talvez por receio de que uma vitória paulista conquistas democráticas. Houve também avanços na cida¬
resultasse em poder excessivo para São Paulo. Bastava que um dania pol ítica. Pela primeira vez, as mulheres ganharam o
¬
dos dois grandes estados apoiasse os paulistas para que a vitó direito ao voto.
ria da revolta se tornasse uma possibilidade concreta. Outra inovação do código eleitoral foi a introdução da
Apesar de seu conteú do conservador, a revolta paulista foi representação classista, isto é, a eleição de deputados não pelo
uma impressionante demonstração de entusiasmo cívico. Blo¬ eleitores em geral mas por delegados escolhidos pelos sindi¬
queado por terra e mar, o estado contou apenas com as pró¬ catos. Foram eleitos 40 deputados classistas, 17 representan¬
prias for ças para a luta. Houve mobilização geral. Milhares do os empregadores, 18 os empregados, tr ês os profissionais
de voluntários se apresentaram para lutar ; as ind ú strias se liberais e dois os funcionários públicos A inovação foi objeto
adaptaram ao esfor ço de guerra produzindo armamentos,
.
fardas, alimentos; mulheres ofereciam suas jóias para custear
.
de grandes debates Era uma tentativa a mais do governo de
reduzir a influê ncia dos donos de terra e, portanto, das oli¬
o esforço bélico. Tentou -se refor çar a identidade paulista, garquias estaduais, no Congresso nacional.
ameaçada pela grande presen ça de imigrantes europeus, em
101
1 oo
JOSÉ MURILO OE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

A constituinte confirmou Getúlio Vargas na presid ência e um Estado intervencionista, desprezavam o liberalismo, pro¬
elaborou uma constituição, inspirada na de Weimar, em que punham reformas econ ómicas e sociais. Eram movimentos
pela primeira vez constava um capítulo sobre a ordem econó¬ que representavam o emergente Brasil urbano e industrial.
mica e social. Fora esse capítulo, era uma constituição orto¬ Apesar das diferenças ideológicas, ambos se chocavam com
doxamente liberal, logo atacada pelo governo como destoan- o velho Brasil das oligarquias. Nesse sentido, eram continua¬
ção das forças que desde a década de 20 pediam maior po¬
te das correntes políticas dominantes no Brasil e no mundo.
Segundo essa crítica, o liberalismo estava em crise, em vias de
der para o governo federal e a definição de um projeto de
constru ção nacional.
desaparecer. Os novos tempos pediam governos fortes como
A ANL e a AIB aproximavam-se ainda no que se refere a
os da Itália, da Alemanha, da União Soviética, ou mesmo do
New Deal norte-americano. Os reformistas autoritários viam
.
sua composição social Ambas atraíam setores de classe mé¬
dia urbana, exatamente os que se sentiam mais prejudicados
no liberalismo uma simples estratégia para evitar as mudan¬ pelo domínio oligárquico. Os integralistas tinham ainda forte
ças e preservar o domínio oligárquico. apoio no sul do país entre os descendentes dos imigrantes
Após a constitucionaliza ção do país, a luta política re¬ alemães e italianos, sem dúvida por causa da proximidade
crudesceu. Formaram-se dois grandes movimentos políticos, da AIB com o fascismo e, em menor escala, com o nazismo
um à esquerda, outro à direita. O primeiro chamou-se Ali¬
.
Ambos tinham simpatizantes nas for ças armadas, com uma
an ça Nacional Libertadora (ANL), e era liderado por Lu ís diferença. A influência dos integralistas se' clava entre os ofi ¬
Carlos Prestes, sob a orientação da Terceira Internacional. ciais da Marinha, ao passo que a ANL tinha maior apoio no
O outro foi a Ação Integralista Brasileira (AIB), de orienta¬ Exército. A ANL atraiu o grupo mais radical dos “tenentes”
ção fascista, dirigido por Plínio Salgado. Embora a inspira¬ egressos do Clube 3 de Outubro. A AIB atraiu sobretudo os
ção externa estivesse presente em ambos os movimentos, eles oficiais da Marinha. A diferen ça se explica pelo maior
apresentavam a originalidade, para o Brasil, de terem alcan ¬ conservadorismo da Marinha, que recrutava seus oficiais na
ce nacional e serem organizações de massa. Não eram parti¬ classe alta. O anticomunismo dos integralistas lhes valia tam ¬
dos de estados-maiores, como os do Império, nem partidos bém o apoio da hierarquia da Igreja Católica e de boa parte
estaduais, como os da Primeira República. do clero.
Os partid ários da ANL e da AIB divergiam ideologica¬ Sob a influência do Partido Comunista, a ANL decidiu
mente em muitos pontos e se digladiavam nas ruas, refletindo radicalizar sua posição. Analisando equivocadamente a situa¬
em parte a luta internacional entre comunismo e fascismo. ção do país, os líderes do movimento julgaram ser possível
Mas os dois movimentos assemelhavam-se em v ários pon¬ promover uma revolução popular. A revolta aconteceu em
tos: eram mobilizadores de massa, combatiam o localismo, novembro de 1935, mas limitou-se a tr ês capitais, Rio de Ja¬
pregavam o fortalecimento do governo central, defendiam neiro, Recife e Natal. Além disso, concentrou-se nos quartéis

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CIDADANIA NO BRASIL
JOS É MURILO DE CARVALHO

do Exército, com muito pouco envolvimento popular. O go¬ O prefeito tinha inaugurado o que depois se chamou no Bra¬
verno não teve maiores dificuldades em reprimi-la. Apenas em sil e em outros países da América Latina, sobretudo Argenti¬
Natal os revoltosos, liderados por um sargento do Exército
, na e Peru, de política populista. Médico de profissão, Pedro
¬ Ernesto era um “ tenente ” civil. Na prefeitura da capital bus¬
conseguiram dominar a cidade e manter-se no poder por qua
tro dias. Foi criado um “Comité Popular Revolucionário”
, com cou o apoio da população pobre das favelas, dando-lhe pela
a participação de civis. Em Recife, a revolta durou dois dias
. primeira vez a oportunidade de participar da política. Foi tam ¬
bém o primeiro político no Brasil a utilizar com eficácia o r ádio
No Rio de Janeiro, revoltaram-se um regimento de infantaria
em suas campanhas. Preso e processado, Pedro Ernesto per¬
e a Escola de Aviação do Ex ército, sob a liderança de oficiais
deu o governo da capital.
subalternos. No dia seguinte, a revolta estava dominada, com
A luta contra o comunismo serviu ainda ao governo para
poucas mortes de ambos os lados.
preparar o fim do curto experimento constitucional inau¬
As tr ês revoltas foram feitas no estilo dos movimentos
gurado em 1934. As revoltas de 1932 e de 1935 tinham pos¬
tenentistas, ainda comuns na década de 30. Basearam-se qua¬
sibilitado aos novos chefes do Exército, promovidos a par¬
se exclusivamente na ação militar (tomada de quartéis), com
¬ tir de 1930, livrar-se dos radicais e outros oposicionistas
descaso pela participação popular. O fato é estranho se lem
dentro da corporação. Os novos generais, especialmente Góis
brarmos que o Partido Comunista estava por trás da atuação
da ANL. Mas explica-se pela presença de Prestes na secretaria- Monteiro, o chefe militar de 1930, e Gaspar©utra, tinham!
visão do papel do Ex ército diferente da dos antigos generais
geral do Partido. Prestes tinha sido o mais notório dos “te¬
.
nentes” e sua influência ainda era forte entre os militares Sua
e também da dos “ tenentes”. Para eles, o Ex é rcito não devia
entrada para o Partido como secretário-geral tinha modificado
ser instrumento político dos chefes civis, como era prática
- na Primeira Rep ública, nem fator de revolu ção social, como
a orientação obreirista voltada para sindicatos, desviando a
queriam os “tenentes”. Devia ter papel tutelar sobre o go i -.
para os quartéis. O equívoco da estratégia revolucionária fi¬
cou claro na pequena repercussão do movimento entre os verno e a naçãoj Devia ter seu projeto próprio para o país,
um projeto que incluísse propostas de transformações eco¬
oper ários. nómicas e sociais, mas dentro dos limites da ordem. Era um
O governo, no entanto, fez bom uso da revolta. Tomou-a
projeto de modernização conservadora ou, na terminologia
como pretexto para expulsar do Exército os elementos mais
que se popularizou, de poder moderador, lembrança do pa ¬
radicais e para exagerar o perigo de uma revolta comunista
pel exercido pelo Imperador. Estes generais foram aliados
no país. Criou, com o apoio do Congresso, um Tribunal de
de Vargas em seu projeto de pôr um fim ao regime constitu ¬
Segurança Nacional para julgar crimes políticos. A ANL foi
. ¬ cional.
fechada e seus simpatizantes foram perseguidos O mais im
portante deles era o prefeito do Rio de Janeiro, Pedro Ernesto
. O golpe veio em 1937. O primeiro movimento foi a de -
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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

posição do governador do Rio Grande do Sul, Flores da Cu¬ ^ tamente por conhecer o medo que uma população profunda-
nha, ex -aliado de Vargas. Com o ato, o governo federal der¬ -- mente católica tinha do regime sovié tico. Um terceiro motivo
rotou o último reduto da velha política oligárquica estadua - relaciona-se com a postura nacionalista e industrializante do
lista. Urna rápida operação bélica, orientada por Góis governo. Ao mesmo tempo em que anunciava o fechamento
Monteiro, for çou o governador a fugir do país. A seguir, o do Congresso, Vargas pregava o desenvolvimento económi¬
governo iniciou campanha contra um dos candidatos à su¬ co, o crescimento industrial, a construção de estradas de fer¬
cessão presidencial, José Américo de Almeida, acusando-o ro, o fortalecimento das for ças armadas e da defesa nacional.
de ter posições e apoio comunistas. Finalmente, um docu¬ Em um mundo com sinais claros de que se caminhava para
mento forjado por oficiais integralistas foi usado como pre¬ outra guerra mundial, esses projetos tinham forte apelo. Até
texto final para fechar o Congresso e decretar nova Consti¬ mesmo a oposi ção de esquerda se dividiu diante do golpe,
tuição. O documento, batizado de Plano Cohen, descrevia achando alguns líderes que seus aspectos nacionalistas mere¬
um pretenso plano comunista para derrubar o governo Para. ciam apoio .
causar mais impacto, o plano previa o assassinato de v ários O nacionalismo económico do Estado Novo só fez cres¬
políticos. cer com o passar do tempo. Seus cavalos de batalha foram a
O golpe de 1937 e o estabelecimento do Estado Novo siderurgia e o petr óleo. No primeiro caso, uipa luta de mui¬
contaram com o apoio entusiasta dos integralistas. Poucos dias tos anos opunha os nacionalistas, que queriam usar os vastos
antes, eles tinham feito desfilar mais de 40 mil adeptos pelas recursos minerais do país para criar um parque siderúrgico
ruas do Rio de Janeiro em apoio ao governo. A reação ao golpe nacional, e os liberais, que preferiam exportar o minério.
foi pequena. Apenas dois governadores, os da Bahia e de Vargas negociou com os Estados Unidos a entrada do Brasil
Pernambuco, manifestaram desagrado. Foram substituídos na guerra em troca de apoio para construir uma grande side¬
sem dificuldade. A falta de oposição pode parecer surpreen¬ r ú rgica estatal. A sider ú rgica de Volta Redonda tornou se um
-
dente, pois a mobilização política vinha num crescendo des¬ dos símbolos do nacionalismo brasileiro. No caso do petró¬
de 1930. A expectativa mais lógica seria a de forte reação ao leo, a luta foi contra as companhias estrangeiras, contrárias a
golpe. Como explicar a passividade geral? uma política de restrição a sua ação no país. O governo dita¬
São v árias as razões. Uma delas tinha a ver com o apóio torial criou um Conselho Nacional de Petróleo, primeiro passo
dos integralistas ao golpe. Seus chefes achavam que seria a para o estabelecimento do monop ólio estatal da exploração e
oportunidade de chegarem ao poder, de executarem o equi¬ refino do petróleo, que só foi possível quando Vargas voltou
valente da Marcha sobre Roma dos fascistas italianos. Outra ao poder, na década de 50 .
razão era a bandeira da luta contra o comunismo. O governo Por último, podem-se mencionar como causa da peque¬
sem dúvida exagerara o perigo comunista, mas o fizera exa- na resistência as transformações económicas por que o país

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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

já passara desde 1930 A Grande Depressão produzira efei¬


. ao Estado Novo só ganhou for ça por efeito das mudan ças
tos dram áticos sobre o preços do caf é e reduzira a capacida¬ externas trazidas com o final da Segunda Guerra Mundial .
de de importação. Uma das conseqiiências foi um forte mo¬ De 1937 a 1945 o país viveu sob um regime ditatorial civil,
vimento de substituição de importações com base no cresci¬ garantido pelas for ças armadas, em que as manifestações
mento de indústrias nacionais. O mercado interno expan¬ políticas eram proibidas, o governo legislava por decreto, a
diu-se, ligando os interesses de produtores de v á rias partes censura controlava a imprensa, os cárceres se enchiam de
do país. Uma economia até então pouco integrada, com o inimigos do regime.
eixo din âmico voltado para fora, passou a criar e fortalecer Nem mesmo os integralistas escaparam da repressão. De¬
laços internos, a nacionalizar os mercados de trabalho e de sapontados por n ão terem conquistado o poder em 1937, ten¬
consumo. A centralização política e a unidade nacional, sa¬ taram seu pr óprio golpe em 1938. Da ação participaram civis
lientadas pela nova elite política, ganhavam assim base ma¬ e militares da Marinha e do Ex ército. O objetivo era prender
terial consistente. o presidente da Rep ú blica e assumir o controle do Estado.
A autonomia dos estados, tão enfatizada pelas oligarquias, Como em 1935, o golpe fracassou e deu oportunidade ao
perdia parte de sua sustentação, uma vez que os interesses dos governo para completar o expurgo das for ças armadas. A vi ¬
produtores passavam a depender do mercado nacional. Isto tória do governo deixou clara a natureza do regime. Não se
era particularmente verdadeiro para o estado de São Paulo, tratava de fascismo ou nazismo, que recorriam a grandes
onde se desenvolvia com maior velocidade o parque indus¬ mobilizações de massa. O Estado Novo não queria saber de
trial do país. Vargas foi cuidadoso em estabelecer boas rela¬ povo nas ruas. Era um regime mais pr óximo do salazarismo v .
ções com os industriais paulistas, ao mesmo tempo em que português, que misturava repressão com paternalismo, sem
não descuidava das medidas de proteção aos preços do café. buscar interferir exageradamente na vida privada das pessoas.
Não por acaso, o interventor de São Paulo, consultado previ¬ Era um regime autoritário, não totalitário ao estilo do fascis¬
amente sobre o golpe, deu sua aprovação, mesmo sendo mo, do nazismo, ou do comunismo.
paulista e candidato à presidência da República. Em 1932 os Um dos aspectos do autoritarismo estado-novista reve¬
paulistas foram à guerra em nome da constitucionalização. Em lou-se no esfor ço de organizar patr ões e oper ários por meio
| 1937 davam, pelo interventor, seu apoio ao golpe e ao gover ¬ de uma vers ão local do corporativismo. Empregados e pa¬
no ditatorial. Nada mais revelador das grandes mudanças que tr ões eram obrigados a filiar -se a sindicatos colocados sob o
se tinham verificado. controle do governo. Tudo se passava dentro de uma visão
A aceitação do golpe indica que os avanços democr áti¬ que rejeitava o conflito social e insistia na cooperação entre
cos posteriores a 1930 ainda eram muito frágeis. A vida na¬ trabalhadores e patr ões, supervisionada pelo Estado.
cional sofrera uma sacudida, mas tanto as convicções como Complementando este arranjo, o governo criou órgãos téc¬
as pr áticas democr áticas apenas engatinhavam A oposição
. nicos para substituir o Congresso. Desses ó rg ãos participa-

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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO B RAS IL

vam representantes dos empresários e especialistas do pr ó¬ A corrente mais forte do positivismo brasileiro, chamada de
prio governo. A política era eliminada, tudo se discutia como ortodoxa, manteve-se fiel ao pensamento de Augusto Comte.
se se tratasse de assunto puramente té cnico, a ser decidido No que se refere à questão social, Comte dizia que o princi¬
por especialistas. pal objetivo da política moderna era incorporar o proletaria¬
do à- sociedade por meio de medidas de proteção ao traba¬
lhador e a sua família. O positivismo afastava-se das corren-
OS DIREITOS SOCIAIS NA DIANTEIRA (1930-1945) tes socialistas ao enfatizar a cooperação entre trabalhadores ^
e patr ões e ao buscar a solu ção pacífica dos conflitos. Am ¬
Se o avan ço dos direitos políticos após o movimento de 1930 bos deviam agir de acordo com o interesse da sociedade, que
foi limitado e sujeito a sérios recuos, o mesmo não se deu com era superior aos seus. Os oper ários deviam respeitar os pa¬
os direitos sociais. Desde o primeiro momento, a lideran ça tr õ es, os patr õ es deviam tratar bem os oper á rios. Os positi ¬
que chegou ao poder em 1930 dedicou grande atenção ao vistas ortodoxos brasileiros seguiram ao p é da letra essa ori ¬
problema trabalhista e social. Vasta legislação foi promulga¬ entação.
da, culminando na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT ), Logo no início da Rep ública, ainda em 1889, eles sugeri ¬
de 1943. A CLT, introduzida em pleno Estado Novo, teve ram ao governo provisório uma legislação social muito avan¬
longa duração: resistiu à democratização de 1945 e ainda çada para a é poca. Ela incluía jornada de trabalho de sete
permanece até hoje em vigor com poucas modificaçõ es de horas, descanso semanal, f é rias anuais, licen ça remunerada
fundo. O per íodo de 1930 a 1945 foi o grande momento da para tratamento de saú de, aposentadoria, pensão para as vi ú ¬
legislação social. Mas foi uma legislação introduzida em am¬ vas, estabilidade aos sete anos de trabalho. Naturalmente, a
biente de baixa ou nula participação política e de precária proposta n ão foi levada a sé rio. Mas políticos ligados ao
vig ência dos direitos civis. Este pecado de origem e a maneira positivismo continuaram a apresentar projetos de lei volta¬
como foram distribuídos os benef ícios sociais tornaram duvi¬ dos para a questão social. Se conseguiram pouco durante a
dosa sua defini ção como conquista democr ática e comprome¬ Primeira República, pelo menos contribuíram para criar men ¬
teram em parte sua contribuição para o desenvolvimento de talidade favor ável à política social.
uma cidadania ativa. A maior influência do positivismo ortodoxo no Brasil ve¬
Vimos que na Primeira Repú blica a ortodoxia liberal não rificou-se no estado do Rio Grande do Sul. A constitui ção re¬
admitia a ação do Estado na á rea trabalhista e a limitava na publicana gaúcha incorporou v árias idéias positivistas. O fato
á rea social. Havia, no entanto, um grupo influente que de o chefe da revolução de 1930, Getúlio Vargas, e seu pri¬
destoava do liberalismo dominante e propunha a adoção de meiro ministro do Trabalho, Lindolfo Collor, serem rio -
ampla legislação social. Por sua influ ê ncia na legislação da grandenses ajuda a explicar a ênfase que passou a ser dada à
d é cada de 30, ele merece aten ção. Trata-se dos positivistas. questão social. Lindolfo Collor, em sua justificação da nova

11 o
JOS É MURILO DE CARVALHO
CIDADANIA NO BRASIL

orientação do governo revolucionário, mencionava explíci¬ triá rios. A Constitui ção de 1934 consagrou a competê ncia
tamente as diretrizes de Augusto Comte. O Ministério do do governo para regular as relações de trabalho, confirmou
Trabalho, Indústria e Comércio foi criado ainda em 1930, a jornada de oito horas e determinou a criação de um salá¬
menos de dois meses após a vitó ria da revolu ção. Embora rio mínimo capaz de atender às necessidades da vida de um
abrangesse a ind ústria e o com ércio, toda a sua energia era trabalhador chefe de família. O salário mínimo foi adotado
dirigida para a área do trabalho e da legislação social. O pró¬ em 1940. A Constitui ção criou também a Justiça do Traba¬
prio ministro referia-se a ele com freq úência simplesmente
lho, que entrou em pleno funcionamento em 1941. Em 1943,
como Ministério do Trabalho e dizia ser ele por excelê ncia o
veio a Consolidação das Leis do Trabalho, uma codificação
“ Ministério da Revolu ção”. Como auxiliares, o ministro con ¬ de todas as leis trabalhistas e sindicais do per íodo. A CLT
vocou alguns antigos batalhadores das leis sociais e trabalhis¬
teve impacto profundo e prolongado nas relações entre pa¬
tas, merecendo menção especial Evaristo de Morais e Joaquim
tr õ es, empregados e Estado.
Pimenta. O ministério agiu rapidamente em tr ês direções, a
Na área da previdência, os grandes avanços se deram a
' trabalhista, a da previd ência social e a sindical.
Na área trabalhista, foi criado em 1931 o Departamento partir de 1933. Nesse ano, foi criado o Instituto de Aposen¬
Nacional do Trabalho. Em 1932, foi decretada a jornada de tadoria e Pensão dos Mar ítimos (IAPM), dando início a um
oito horas no comércio e na ind ústria. Nesse mesmo ano, foi processo de transformação e ampliação das Caixas de Apo¬
regulamentado o trabalho feminino, proibindo-se o trabalho sentadoria e Pensão (CAPs) da década de 20. No ano anterior,
noturno para mulheres e estabelecendo-se sal ário igual para havia cerca de 140 CAPs, com perto de 200 mil segurados.
homens e mulheres. O trabalho de menores só foi efetivamente Os institutos (IAPs) inovaram em dois sentidos. Não eram
regulado em 1932, apesar da existência de legislação anterior baseados em empresas, como as CAPs, mas em categorias
a 1930. No mesmo ano de 1932 foi criada a carteira de tra¬ profissionais amplas, como mar ítimos, comerci ários, bancá¬
balho, documento de identidade do trabalhador, muito im¬ rios etc. Além disso, a administração dos LAPs não ficava a
portante como prova nas disputas judiciais com os patr ões. cargo de empregados e patr ões, como no caso das CAPs. O
Essas disputas encontraram um mecanismo ágil de arbitra¬ governo era agora parte integrante do sistema. O presidente
mento nas Comissões e Juntas de Conciliação e Julgamento, da República nomeava o presidente de cada IAP, que contava
criadas também em 1932 como primeiro esboço de uma jus¬ com um Conselho de Administração formado de maneira
tiça do trabalho. As Comissões reconheciam convenções co¬ paritária por representantes das organizações sindicais de
letivas de trabalho, quebrando a tradi ção jurídica liberal de patr ões e empregados.
só admitir contratos individuais. A criação dos LAPs prosseguiu ao longo da década, am¬
Entre 1933 e 1934, o direito de f é rias foi regulamenta¬ pliando continuamente a rede de beneficiados. Ao IAPM se¬
do de maneira efetiva para comerciários, bancá rios e indus - guiram se o instituto dos bancários ( IAPB) e o dos comerciá
- -
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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

rios (IAPC), em 1934, o dos industri ários (IAPI), em 1936, ela fosse concebida como direito, deveria beneficiar a todos e
o dos empregados em transportes e cargas (IAPETEC) e o da mesma maneira. Do modo como foram introduzidos, os
da estiva (IAPE), em 1938. Nesse ú ltimo ano foi també m benefícios atingiam aqueles a quem o governo decidia favo¬
criado o Instituto de Previd ê ncia e Assistê ncia dos Servido ¬ recer, de modo particular aqueles que se enquadravam na es¬
res do Estado (IPASE). Desse modo, em cinco anos a previ¬ trutura sindical corporativa montada pelo Estado. Por esta
dê ncia social foi estendida a quase todos os trabalhadores razão, a política social foi bem caracterizada por Wanderley
urbanos. Foi rapidamente atendida uma velha reivindicação G. dos Santos como “cidadania regulada”, isto é, uma cida¬
dos trabalhadores. dania limitada por restrições políticas.
Os recursos dos IAPs provinham do governo, dos patr ões Para entender melhor este aspecto, é preciso analisar a
e dos trabalhadores. Os benef ícios concedidos variavam mui¬ atuação do novo governo na á rea sindical. Do ponto de vis¬
to segundo o IAP. Todos concediam aposentadoria por ta pol ítico, essa atuação constituiu o cerne da estratégia do
invalidez e pensão para dependentes. Os IAPs mais ricos, como governo. O primeiro decreto sobre sindicalização veio em
o dos bancários, forneciam ainda aposentadoria por tempo 1931. Nele estava embutida a filosofia do governo em rela¬
de trabalho, auxílio mé dico-hospitalar, auxílio para caso de ção ao assunto. Ela se parecia com a visão dos positivistas
doença, de morte, de parto. Salientou-se entre os IAPs o dos do in ício do século e també m com a doutrina social da Igre ¬
industriá rios, o maior de todos. Criado em 1936, regulamen¬ ja Católica. As relaçõ es entre capital e trabalho deveriam ser
tado em 1937, o IAPI já contava em 1938 com mais de 1 harm ó nicas, e cabia ao Estado garantir a harmonia, exercen -
^
milhão de inscritos. Al ém disso, ele inovou em matéria de do papel de regulação e arbitramento. A organização sindi ¬

administração, introduzindo o sistema do m érito verificado cal deveria ser o instrumento da harmonia. O sindicato n ão
por meio de concursos públicos. O IAPI tornou-se famoso deveria ser um órgão de representação dos interesses de ^
pelos técnicos competentes que formou e que tiveram poste ¬ oper ários e patr ões, mas de cooperação entre as duas clas¬
riormente grande influ ência na política previdenciária. ses e o Estado. Os reformistas de 1930 foram, no entanto,
Ao lado do grande avan ço que a legislação significava, muito al ém do que desejavam os positivistas no que se refe ¬
havia também aspectos negativos. O sistema excluía categorias re ao controle do Estado. O sistema evoluiu na dire ção de
importantes de trabalhadores. No meio urbano, ficavam de um corporativismo de Estado, a exemplo do que se passava
fora todos os autónomos e todos os trabalhadores ( na grande na Itália.
maioria, trabalhadoras) domésticos. Estes não eram sindica¬ A lei de 1931 foi elaborada por velhos militantes traba¬
lizados nem se beneficiavam da política de previd ência. Fica¬ lhistas reunidos pelo ministro do Trabalho. Introduzia gran ¬
vam ainda de fora todos os trabalhadores rurais, que na é po ¬ des modificaçõ es na lei de 1907. As principais foram as se ¬
ca ainda eram maioria. Tratava-se, portanto, de uma concep ¬ guintes: o sindicato deixava de ser uma institui ção de direito
ção da política social como privil égio e n ão como direito. Se privado e passava a ter personalidade jurídica p ública; o sin-

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CIDADANIA NO BRASIL
JOS É MURILO DE CARVALHO

cado quatro dias antes da promulgação da Constituição. Era


dicato deixava de ser órgão de representação dos interesses uma reação antecipada à postura mais liberal dos consti¬
dos oper ários para ser “ órgão consultivo e técnico” do gover¬ tuintes. O decreto manteve a definição do sindicato como
no; a pluralidade sindical, isto é, a possibilidade de existir mais órgão de colaboração com o Estado. Exigia o reconhecimen ¬
de um sindicato por categoria profissional, foi eliminada e to pelo Ministério do Trabalho, ao qual os sindicatos devi¬
substituida pela unicidade sindical. am enviar seus estatutos e a relação dos associados. Regula¬
Outros aspectos do decreto de 1931 e de decretos que se va ainda o funcionamento interno dos sindicatos. Pelo lado
seguiram merecem ser citados. A ligação dos sindicatos com positivo, aumentava as garantias dos operários sindicaliza¬
¬
o governo ia além da de órgãos consultivos e técnicos. O go dos, sobretudo dos que ocupavam posições de direção, con¬
verno mantinha delegados seus dentro dos sindicatos. Os de¬ tra as perseguiçõ es patronais.
¬
legados assistiam às reuniões, examinavam a situação finan Este último ponto era importante. Toda a legislação de que
¬
ceira e enviavam relatórios trimestrais ao governo. Os sindi vimos falando aplicava-se tanto aos operários como aos pa¬
catos funcionavam sob estrita vigilância, podendo o governo trões. A ênfase tem sido dada pelos estudiosos aos oper ários
¬
intervir caso suspeitasse de alguma irregularidade. Além dis porque era em relação a eles que ela trazia novidades. Os
so, embora a sindicalização não fosse obrigatória, o governo empregadores havia muito tempo tinham suas organizações
reservava certas vantagens para os operários que pertences¬ associações de comerciantes, de industriais, dé proprietá¬
sem a sindicatos reconhecidos pelo Ministério do Trabalho. rios rurais suficientemente fortes para defender seus inte¬
Por exemplo, só os sindicalizados faziam jus à proteção do
— —
resses perante o governo. Eles tinham resistido sistematica¬
governo em caso de perseguição por parte dos empregado¬ mente às tentativas de introdução da legislação social. Inte-
res; só os sindicalizados podiam recorrer às Comissões e Jun¬ ressava-lhes uma postura puramente liberal da parte do go¬
tas de Conciliação e Julgamento criadas em 1932; só os sin¬ verno, pois no livre confronto de for ças eram eles que leva¬
dicalizados tinham direito a férias; só os sindicalizados podiam vam vantagem. Foi negativa també m sua reação à legislação
beneficiar-se da legislação previdenciária. trabalhista e sindical posterior a 1930. A proteção do Estado
Aberta a assembléia constituinte em 1934, algumas mu ¬ ao trabalhador sindicalizado modificava a situação de confron¬
danças liberalizantes foram feitas nessa legislação. A princi¬ to direto existente anteriormente e aumentava o poder relati¬
pal delas foi o fim da unicidade sindical. Bastava que um terço vo dos oper ários.
dos operários de uma categoria profissional dentro do mu¬ Para os últimos, a situação apresentava um dilema de difí¬
nicípio se reunisse para que fosse possível criar um sindica¬ cil solução. De um lado, a entrada do Estado como mediador
to. Foram também eliminados os delegados do governo den¬ das relações de trabalho equilibrava um pouco a situação de
tro dos sindicatos. Mas um decreto de 1934 contrariou o desigualdade de for ças e era favor ável aos oper ários. Não por
dispositivo da Constituição que estabelecia “completa auto¬ acaso a legislação de 1931 foi redigida por advogados havia
nomia dos sindicatos”. Não foi por acaso que ele foi publi¬
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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

muito envolvidos na defesa de direitos trabalhistas e sociais. ren ça entre os estados. Em 1934, São Paulo e o Distrito Fede¬
Eles sabiam que sem legislação protetora a luta era desigual. ral tinham 43,9% do total nacional de sindicatos; em 1939, a
Insistiam na unicidade sindical, sob o argumento de que a porcentagem tinha caído para 21,4%.
A partir de 1930, come çou tamb ém a haver grandes mu ¬
pluralidade enfraquecia a classe na luta contra os emprega¬
dores. O inimigo a ser combatido era o liberalismo das velhas dan ças demogr áficas no país. A imigração estrangeira, que
oligarquias e dos patr ões. Mas a interfer ência do Estado era tanto afetara a composi ção da classe oper ária, sobretudo de
¡urna faca de dois gumes. Se protegia com a legislação traba¬
S ão Paulo, reduzira-se drasticamente por raz õ es externas e
lhista, constrangia com a legislação sindical. Ao proteger, in¬ internas. O grande afluxo de italianos acabara, e o governo
terferia na liberdade das organizações operárias, colocava-as introduzira restri ções à imigração em 1934, visando a coi¬
na dependência do Ministério do Trabalho. Se os oper ários bir a entrada de japoneses. A m é dia anual de entrada de
eram fracos para se defender dos patr ões, eles també m o eram imigrantes de 1931 a 1935 foi de 18.065, e de 1936 a 1940,
de 10.795, comparada à m édia de mais de 110 mil na últi ¬
para se defender do Estado. Houve reação à sindicalização
oficial por parte dos oper ários, sobretudo os do Rio e de São ma d écada do sé culo XIX. Em contrapartida, intensificou-
Paulo, onde era mais forte a tradi ção de luta. As correntes se a migração interna do Norte e Nordeste para o Sul. S ão
anarquistas eram por definição contrárias a qualquer interfe¬ Paulo e o Distrito Federal foram particularmente atingidos
rência do governo. Concebiam a luta sindical como enfren- por esse movimento populacional. O saldo positivo da mi ¬
tamento direto dos patr ões. gração interna em São Paulo, isto é, a diferen ça entre as pes¬
De 1931 a 1939, quando uma legislação sindical mais rí¬ soas que entraram e saíram, fora de 18.924 entre 1900 e
gida foi introduzida, o movimento oper ário viveu com mais 1920. Entre 1920 e 1940 passou para 432.862, e continuou
intensidade o dilema: liberdade sem proteção ou proteção sem a aumentar daí para diante. A composi ção da classe oper á¬
liberdade. O ponto central era o desequilíbrio de for ças entre ria nesse estado modificou-se, deixando de ser predominan ¬
operariado e patronato. Onde o desequilíbrio era menor, como temente estrangeira.
no Rio e em São Paulo, os custos do liberalismo eram mais O governo mudara sua posição em relação ao imigrante ]
baixos e as vantagens do protecionismo eram também meno¬ estrangeiro. Durante o sé culo XIX e até a Primeira Guerra j
res, acontecendo o oposto onde era fraco o movimento ope¬ Mundial, o imigrante era bem-vindo e subsidiado. Havia ne j -
rário. Daí também maior resistência à estrutura oficial nas duas cessidade de substituir os escravos e abastecer de m ão-de-obrai
maiores cidades e a maior aceitação nas outras. Para um ope¬ as lavouras de caf é. Depois da guerra, o estrangeiro passou a
rário de Belo Horizonte, por exemplo, com menor tradi ção ser visto como agitador, corruptor do oper ário nacional. O
de luta e de organização, o apoio do Estado e os privilégios governo tentou criar animosidade entre o operariado nacio ¬
do sindicalismo oficial ofereciam um atrativo difícil de recu¬ nal e o de origem estrangeira, acusando o último de privar o
sar. Os dados sobre o n ú mero de sindicatos indicam esta dife¬ primeiro de seus empregos. A lei de sindicalização de 1931

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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

continha um dispositivo que obrigava as empresas a contra¬ formar uma federação, tr ês federações podiam formar uma
tar um mínimo de dois terços de operários nacionais. O Esta¬ confederação. Os sindicatos em geral tinham base municipal,
do Novo refor çou o intervencionismo governamental. No que as federações base estadual e as confederações base nacional.
se refere à legislação sindical, a nova orientação refletiu-se em Os sindicatos elegiam representantes para as federações e es¬
decreto de 1939 e na Consolidação das Leis do Trabalho, de tas para as confederações. As federaçõ es e confederações fa¬
1943. Tanto no decreto como na CLT, fez-se sentir a influên¬ ziam listas de nomes para escolha, pelo presidente da Repú ¬
cia da Carta del Lavoro, a lei sindical corporativa do fascis¬ blica, dos membros classistas dos Tribunais Regionais do Tra¬
mo italiano. Foi restabelecida a unicidade sindical, e o con¬ balho e do Tribunal Superior do Trabalho.
trole do Estado sobre os sindicatos tornou -se mais r ígido. O último esteio importante da legislação sindical do Esta¬
Exigia-se carta de reconhecimento do Minist é rio do Traba¬ do Novo foi o imposto sindical, criado em 1940, ainda vi ¬
lho para que o sindicato pudesse funcionar legalmente; o or¬ gente até hoje, apesar dos esfor ços para extingui-lo. A des¬
çamento e as decisões das assembléias deviam ser aprovados peito das vantagens concedidas aos sindicatos oficiais, mui¬
pelo Ministério; o ministro podia intervir nos sindicatos quan¬ tos deles tinham dificuldade em sobreviver, por falta de re¬
do julgasse conveniente. Aperfei çoou-se também o enqua¬ cursos. O imposto sindical veio dar-lhes o dinheiro sem exi ¬
dramento sindical, isto é, a defini ção das categorias económi¬ gir esforço algum de sua parte. A solu ção foi muito simples:
cas e profissionais que poderiam organizar sindicatos, valen¬ de todos os trabalhadores, sindicalizados ou n ãg, era descon ¬
do tanto para patrões como para empregados. Todas as ativi¬ tado anualmente, na folha de pagamento, o salário de um dia
dades econ ó micas foram classificadas para efeito de enqua¬ de trabalho. Os empregadores também contribuíam Do to¬ .
dramento. tal arrecadado, 60% ficavam com o sindicato da categoria
A Justiça do Trabalho foi aperfeiçoada. Além das Comis¬ profissional, 15% iam para as federações, 5% para as confe¬
sões e Juntas de Conciliação e Julgamento, foram criados Tri¬ derações. Os 20% restantes formavam um Fundo Social Sin¬
bunais Regionais do Trabalho e um Tribunal Superior do Tra¬ dical, na prática utilizado pelo Ministério do Trabalho para
balho. Em todas as instâncias havia justiça paritária, isto é, ao as mais diversas finalidades, algumas delas escusas, como o
lado dos juízes profissionais, havia vogais (representantes) dos financiamento de campanhas eleitorais (ap ós a redemo
sindicatos dos empregados e dos empregadores, em n ú mero
-
cratização de 1945).
igual. Essa justi ça trabalhista, endossada e aperfeiçoada pela É fácil perceber as conseqíiências desse imposto. Todos os
Constituição de 1946, permanece quase intata até hoje. A sindicatos passaram a dispor de recursos para manter sua
ú nica mudan ça importante foi a eliminação dos ju ízes burocracia. Os mais ricos tinham dinheiro para oferecer be¬
classistas, por lei de 1999. nef ícios adicionais aos sócios, tais como assistência jurídica,
A estrutura sindical era como uma pirâmide, em cuja base médica, dentária etc. Não era necessário fazer campanha pela
estavam os sindicatos. Um mínimo de cinco sindicatos podia sindicalização, pois o imposto era cobrado compulsoriamen-

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te de todos, embora beneficiasse apenas alguns. Se o imposto torno da tentativa de desalojar os pelegos de suas posições
não incentivava a sindicalização, incentivava a formação de de poder. O aspecto ir ónico é que os renovadores muitas
sindicatos, pois era a maneira mais simples de conseguir re¬ vezes usavam na luta o mesmo sistema que permitira o
cursos sem fazer força. Houve proliferação de pequenos sin¬ .
surgimento dos pelegos Líderes mais politizados chegavam
dicatos. à cú pula sindical sem contato com as bases oper árias nas
O acréscimo de autoritarismo na legislação sindical, man¬ -
f ábricas. Mudava se, então, apenas a cú pula. Um ministro
tendo embora os aspectos positivos já mencionados, acen¬ do Trabalho favorável aos interesses do operariado podia
tuou alguns traços negativos. O principal deles foi o usar a máquina da mesma maneira que um ministro que lhes
peleguismo. A expressão vem da palavra “ pelego ”, peça de fosse hostil. Em um caso como no outro, a base operária era
lã de carneiro que se coloca sobre a sela de montaria para excluída, e o poder sindical se resumia a um estado-maior
torná-la mais confortável para o cavaleiro. O pelego sindical, sem tropa.
em geral um oper ário, embora a expressão possa ser também Em toda essa legislação houve um grande ausente: o tra-
aplicada aos patrões, era aquele funcionário que procurava balhador
j rural . Embora n ão fossem explí citamente excluí¬
beneficiar-se do sistema, bajulando o governo e o emprega¬ dos, exigia-se lei especial para sua sindicalização, que só foi
dor e negligenciando a defesa dos interesses da classe. Jun¬
tos, o imposto sindical, a estrutura piramidal e a justiça do
.
introduzida em 1963 A extensão da legislação social ao cam¬
po teve que esperar os governos militares pbra ser imple¬
trabalho constituíram um viveiro de pelegos. Eles reinavam mentada. Esse grande vazio na legislação indica com clareza
nas federações, confederações e tribunais. Cada sindicato,
o peso que ainda possuíam os proprietá rios rurais. O gover¬
independentemente de seu tamanho, tinha um representante
no não ousava interferir em seus domínios levando até eles
com direito a voto nas federações, e essas um representante
a legislação protetora dos direitos dos trabalhadores. O re ¬
com voto nas confederações. Federações e confederações, por
sua vez, indicavam os vogais da justiça do trabalho. Era fácil ceio de atingir a classe média urbana pode tamb ém ter in ¬
controlar os votos dos pequenos sindicatos e por meio deles fluenciado o esquecimento dos trabalhadores dom ésticos .
montar uma m áquina para controlar os órgãos superiores. Quanto aos autónomos, talvez não apresentassem naquele
Os pelegos eram aliados do governo e dos empregado ¬ momento problemas políticos nem económicos que justi ¬
res, de quem também recebiam favores. Sempre avessos a ficassem preocupação do governo em cooptá-los e contro¬
conflito, alguns podiam ser bons administradores dos recur ¬ lá-los
.
sos sindicais e com isto tornar o sindicato atraente pelos Apesar de tudo, por ém, não se pode negar que o perío ¬
benefícios que oferecia. Mas, em geral, eram figuras detes¬ do de 1930 a 1945 foi a era dos direitos sociais. Nele foi
tadas pelos sindicalistas mais aguerridos. Grande parte da implantado o grosso da legislação trabalhista e previden -
luta sindical após a redemocratização de 1945 se deu em ci .
\ ária O que veio depois foi aperfeiçoamento, racionalização
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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

e extensão da legislação a n ú mero maior de trabalhadores . leis trabalhistas e previdenciárias, e outros programas, como
Foi tamb ém a era da organização sindical, só modificada em os de construção de casas populares e de oferta de alimenta-
parte após a segunda democratização, de 1985. Para os be¬ ^
ção barata. O regime era apresentado como identificado com
neficiados, e para o avan ço da cidadania, o que significou o povo e, como tal, democr á tico. Vargas era exaltado como
toda essa legislação ? O significado foi ambíguo. O governo o grande estadista que se tinha aproximado do povo, que
invertera a ordem do surgimento dos direitos descrita por lutava pelo povo, que se identificava com o povo. Era o gran ¬
Marshall, introduzira o direito social antes da expansão dos de benfeitor, o “ pai dos pobres”. À medida que se aproxi ¬
direitos políticos. Os trabalhadores foram incorporados à mava o fim do regime, o pr ó prio Vargas passou a se dirigir
sociedade por virtude das leis sociais e n ão de sua ação sin ¬ aos oper á rios em grandes comícios organizados com o apoio
dical e política independente. Não por acaso, a leis de 1939 da máquina sindical. A propaganda não caiu no vazio. En ¬
e 1943 proibiam as greves. quanto as for ças liberais se organizavam para depor o dita ¬
A situação é ainda mais complexa se lembrarmos que a dor, as for ças populares se congregavam em movimento
ação governamental dividia a classe oper ária. Os setores me¬ oposto que lutava por sua perman ência no poder. Criou -se
nos organizados estavam dispostos a pagar o preço da restri¬ o “ queremismo ”, nome tirado da expressão “ queremos
ção pol ítica para ter o benef ício dos direitos trabalhistas e Vargas ”. O apoio a Vargas atingiu o ponto alto quando Lu ís ¡

sociais. Isso ficou claro no final do Estado Novo. Ao perceber Carlos Prestes, libertado da prisão onde | s < encontrava por
que a guerra caminhava para um final desfavor ável ao Eixo, causa da revolta de 1935, aderiu publicamente ao
Vargas teve a certeza de que a ditadura não sobreviveria, ape¬ “ queremismo ” .
.
sar de estar lutando ao lado dos prov áveis vencedores Co¬ Vargas foi, afinal, derrubado por seus pr ó prios ministros
meçou, então, a preparar a transição para um regime consti ¬ militares em 1945. Sua for ça popular, no entanto, se fez logo
tucional. Uma das táticas utilizadas foi tentar ganhar o apoio sentir. A luta sucessória foi decidida em favor do general
dos trabalhadores usando o argumento da legislação social e Eurico Gaspar Dutra, seu ministro da Guerra, graças ao apoio
trabalhista. que lhe deu o ex-presidente, poucos dias antes das elei ções.
A partir de 1943, o ministro do Trabalho, Alexandre Ao se candidatar à eleição presidencial de 1950, o ex-dita -
Marcondes Filho, come çou a transmitir pelo r ádio, durante dor n ão teve dificuldade em eleger-se, conquistando quase
a Hora do Brasil , uma sé rie de palestras dirigidas aos traba¬ 49% dos votos, contra apenas 30% do competidor mais pr ó ¬
lhadores. O programa era de transmissão obrigatória por ximo. Seu segundo governo foi o exemplo mais típico do
todas as rádios. Nele creditava-se ao Estado Novo o estabe¬ populismo no Brasil e consolidou sua imagem de “ pai dos
lecimento da dignidade do trabalho e do trabalhador, e a pobres ”.
transformação em homem novo, em novo cidad ão, de quem É preciso, portanto, reconhecer que a inversão da ordem
antes era excluído da comunidade nacional. Eram citadas as dos direitos, colocando os sociais à frente dos políticos, e

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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

mais ainda, sacrificando os últimos aos primeiros, n ão im¬ neiro de 1946, ano em que a assembléia constituinte concluiu
pediu a popularidade de Vargas, para dizer o mínimo. A seu trabalho e promulgou a nova constituição. O país entrou
ênfase nos direitos sociais encontrava terreno f értil na cul¬ em fase que pode ser descrita como a primeira experiência
tura política da população, sobretudo da população pobre democrática de sua história.
dos centros urbanos. Essa população crescia rapidamente
graças à migração dos campos para as cidades e do nordeste A primeira experiência democrática
para o sul do país. O populismo era um fenômeno urbano e
refletia esse novo Brasil que surgia, ainda inseguro mas dis¬ A Constituição de 1946 manteve as conquistas sociais do pe¬
tinto do Brasil rural da Primeira Rep ú blica, que dominara a ríodo anterior e garantiu os tradicionais direitos civis e políti¬
vida social e política até 1930. O populismo, no Brasil, na cos. Até 1964, houve liberdade de imprensa e de organização
Argentina, ou no Peru, implicava uma relação ambígua en¬ política. Apesar de tentativas de golpes militares, houve elei¬
tre os cidad ãos e o governo. Era avanço na cidadania, na ções regulares para presidente da República, senadores, de ¬
medida em que trazia as massas para a política. Mas, em putados federais, governadores, deputados estaduais, prefei¬
contrapartida, colocava os cidad ãos em posição de depen¬ tos e vereadores Vários partidos políticos nacionais foram
.
d ência perante os líderes, aos quais votavam lealdade pesso ¬ organizados e funcionaram livremente dentro e fora do Con¬
al pelos benefícios que eles de fato ou supostamente lhes ti¬ gresso, à exceção do Partido Comunista, que úeve seu regis¬
nham distribuído. A antecipação dos direitos sociais fazia tro cassado em 1947. Uma das poucas restrições sérias ao
com que os direitos não fossem vistos como tais, como in¬ exercício da liberdade referia-se ao direito de greve. Greves
dependentes da ação do governo, mas como um favor em só eram legais se autorizadas pela justiça do trabalho. Essa
troca do qual se deviam gratidão e lealdade. A cidadania que exigência, embora conflitante com a Constituição, sobreviveu
daí resultava era passiva e receptora antes que ativa e até 1964, quando foi aprovada a primeira lei de greve, já no
reivindicadora. governo militar. O que não impediu que várias greves tenham
sido feitas ao arrepio da lei.
A influência de Vargas marcou todo o período. Após a
A VEZ DOS DIREITOS POLÍTICOS (1945 1964)
- deposição, ele foi eleito senador e manteve postura discreta
enquanto preparava a volta ao poder pelo voto. Sua eleição a
Ap ós a derrubada de Vargas, foram convocadas eleições pre¬ presidente pelo voto popular, em 1950, representou um gran¬
sidenciais e legislativas para dezembro de 1945. As eleições de desapontamento para seus inimigos, que tentaram utilizar
legislativas destinavam-se a escolher uma assembléia consti¬ meios legais e manobras políticas para impedir sua posse. Seu
tuinte, a terceira desde a fundação da República. O presiden¬ segundo governo foi marcado por radicalização populista e
te eleito, general Eurico Gaspar Dutra, tomou posse em ja- nacionalista. O ministro do Trabalho, João Goulart, agia em

1 26 127
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

lado lhista, da independência na política externa. Para esses, os


acordo com os dirigentes sindicais, pelegos ou não. Pelo
da inimigos eram entreguistas, pr ó americanos, reacionários,
-
nacionalista, destacou -se a Iuta pelo monopolio estatal
o da golpistas. Do outro lado estavam os defensores da abertura
exploração e refino do petr óleo, corporificada na criaçã
Petrobras, em 1953. do mercado ao capital externo, inclusive na área dos recur¬
o apoio sos naturais, os que condenavam a aproxima çã o entre o
A pol ítica populista e nacionalista contava com
, dos setores na¬ governo e os sindicatos, os que queriam uma política exter¬
dos trabalhadores e de sua máquina sindical
cionalistas das for ças armadas, sobretudo do Ex é rcito
, dos na de estreita cooperação com os Estados Unidos. Os opo¬
setores nacionalistas do empresariado e da intelectual
idade, nentes eram por eles estigmatizados como comunistas, sin ¬
do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), criado por
^
Vargas ain¬ dicalistas, demagogos e golpistas.
da antes da deposição em 1945. A oposi ção vinha
principal ¬ Os militares contr ários e favor áveis a Vargas dividiram-se
Novo, irremediavelmente, em 1951 e 1952, em torno da questão do
mente dos liberais, que se tinham oposto ao Estado
agrupados no principal partido de oposi ção, a União Demo - envio de tropas à Cor éia, solicitado pelos Estados Unidos. O
cr á tica Nacional (UDN). Vinha também
de militares Clube Militar, que reunia oficiais das tr ês armas, então nas
anticomunistas, alguns deles sob a influência norte-americana m ãos dos nacionalistas, apoiados pelo ministro da Guerra,
pelo também ele um nacionalista, tomou posição radicalmente
recebida durante a guerra. Esses militares viam o mundo
ame¬ contrária e atacou os Estados Unidos. A facçãg oposta reagiu
viés da guerra fria, a marca registrada da política norte-
1949 a prontamente, conseguiu a demissão do ministro da Guerra e
ricana do pós-guerra. Alguns deles organizaram em
de o derrotou nas eleições de 1952 para a presid ência do Clube
Escola Superior de Guerra (ESG), que se tornou centro
, ¬ Militar. A partir daí, a oposição militar, em aliança com os
doutrinação anticomunista e antivarguista. Vinha finalmen
te, de parte do empresariado brasileiro ligado
ao capital in¬ políticos da UDN, manteve vigil ância contínua sobre o go ¬
ternacional, e do pr óprio capital internacional, representado verno.
na época sobretudo pelas grandes multinacionais
do petr ó¬ A batalha pelo monopólio estatal do petróleo durou de
leo, pejorativamente chamadas de “trustes”. 1951, quando o projeto foi enviado ao Congresso, até 1953,
Guerra fria, petróleo política sindical e trabalhista -
fo quando a lei foi assinada. Esta luta distinguiu-se da batalha
^ po¬ do Clube Militar por ter chegado às ruas. A Petrobras tor¬
ram exatamente as causas dos principais enfrentamentos
líticos. Em torno desses tr ês cavalos de batalha alinharam - nou-se o símbolo do nacionalismo, do antiimperialismo. A
se amigos e inimigos do presidente. À medida que a
luta se campanha por sua criação reuniu militares nacionalistas, es¬
aprofundava, polarizavam-se as posições. De um lado fica¬ tudantes universitá rios, l íderes sindicais. Houve debates
do pe¬ violentos, manifestações públicas e comícios, em que o prin¬
vam os nacionalistas, defensores do monopolio estatal
el é
energia trica, cipal vilão eram as companhias estrangeiras de petr óleo.
tr óleo e de outros recursos básicos, como a
partid ários do protecionismo industrial, da política traba- Nenhum outro tema tinha até então apaixonado tanto a

1 28 129
CIDADANIA NO BRASIL
JOSÉ MURILO DE CARVALHO

opinião pública. No calor da luta, o próprio Vargas


foi leva¬ partir daí, a conspiração para derrubar o presidente, envol ¬
inicial¬ vendo civis e militares, ganhou for ça. Infeliz tentativa dos
do a tomar posição mais radical do que aquela que
à Petrobras responsáveis por sua guarda pessoal de assassinar o líder da
mente propusera. A lei finalmente aprovada dava
o e refino do oposi ção, o udenista Carlos Lacerda, resultou na morte de
o monopólio de toda a prospecção, extraçã
, inclusive estran¬ um oficial da Aeronáutica, major Rubem Vaz. O fato irritou
petr óleo, ficando aberta ao capital privado
ainda mais os militares e precipitou os acontecimentos. Os
geiro, apenas a distribuição.
¬ chefes das tr ês for ças exigiram a renúncia do presidente.
O embate do populismo, mais precisamente do sindica
e em sua Velho e sem a energia e a astúcia que tinham caracterizado
lismo, centrou-se na figura do ministro do Trabalho
1953. sua primeira fase de governo, Vargas preferiu matar -se a
política salarial. João Goulart foi nomeado ministro em
de críticas ceder ou a lutar. Deu um tiro no coração no dia 24 de agos¬
A oposição logo o escolheu como alvo principal
se a grande
- to de 1954, em seu quarto de dormir no Palácio do Catete,
por suas ligações com o mundo sindical. Recorde ¬
sindi deixando uma carta-testamento de forte conte údo naciona¬
influê ncia que o ministro podia ter dentro da estrutura
após a de¬ lista e populista.
cal montada pelo Estado Novo e não modificada
do Partido A reação popular foi imediata e mostrou que mesmo na
mocratização. Líderes sindicais radicais, alguns
cú pula do morte o prestígio do ex- presidente mantinha-se intato. Mul¬
Comunista, tinham conseguido atingir postos na
acordo com tid ões foram para as ruas, jornais da ojjosição foram
sistema sindical e da previdência social e agiam em
gre¬ destruídos, e Carlos Lacerda, vitorioso na véspera, teve que
Goulart. Não por acaso, o ano de 1954 foi marcado por
se esconder e sair do país. O antigo ditador, que nunca se sa¬
ves importantes.
% no sa¬ lientara pelo amor às instituições democráticas, tornara-se um
Nesse ano, Goulart propôs um aumento de 100
ínimo, so¬ herói popular por sua política social e trabalhista. O povo
lário mínimo. Em vigor desde 1940, o salário m
um pon¬ identificara nele o primeiro presidente da República que o
bretudo a definição de seu valor, tinha-se tornado
trabalhadores. A interpelara diretamente, que se preocupara com seus proble¬
to -chave nas relaçõ es do governo com os
um grupo mas. O fato de ser preocupação paternalista era irrelevante
proposta do ministro surgiu um mês depois que
contra para os que se sentiram valorizados e beneficiados pelo líder
de oficiais do Exército tinha lançado um manifesto
de pol í tica de morto. A influência de Vargas projetou-se ainda por vários
os baixos sal ários da classe e em momento
conten ção de despesas. Houve reação contrária
de empre¬ anos na política nacional. O choque de forças que levou a seu
cargo, mas suicídio resolveu-se apenas com o golpe militar de 1964. Fo-
sários e de militares. Goulart pediu demissão do
do salᬠram mais dez anos de intensa luta política que poderiam ter
Vargas adotou a sugestão e proclamou o novo valor
rio mínimo no Primeiro de Maio, num discurso emocion
al resultado em consolidação democr ática, mas que terminaram
esta¬ em derrota dos herdeiros de Vargas e também do primeiro
em que dizia aos trabalhadores que eles no momento
.A eXPerimento democrático da história do país.
vam com o governo, mas no futuro seriam o governo
13o 131
CIDADANIA NO BRASIL
JOS É MURILO DE CARVALHO

que as grandes multinacionais implantaram beneficiando-se


Ap ós a morte do presidente, seguiram -se golpes e dos incentivos governamentais.
contragolpes para impedir ou garantir a posse do novo presi¬ A fundamentação ideológica do nacionalismo desenvol
dente, Juscelino Kubitschek. As for ças anti-Vargas, comanda¬ vimentista vinha do pensamento da Comissão Económica
-
das pela UDN, foram novamente derrotadas nas eleições de para a Am érica Latina (CEPAL) e foi elaborada no país pelo
1955. O candidato vitorioso, Kubitschek, fora apoiado por Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), órgão cria¬
aliança do Partido Social Democrático (PSD), também criado do em 1955, ligado ao Ministério da Educação. O ISEB era
por Vargas antes do fim do Estado Novo, com o PTB, que o equivalente funcional da ESG, mas seu antípoda na ideo¬
forneceu o vice-presidente, João Goulart. Kubitschek não era logia. Contando com intelectuais de prestígio, como Guer¬
um nacionalista e um trabalhista como Vargas e Goulart. Mas reiro Ramos, Álvaro Vieira Pinto e Hélio Jaguaribe, buscou
sua eleição, que se deu com apenas 35,7% dos votos, foi con¬ elaborar uma ideologia nacionalista e difundi-la por meio de
siderada pelos inimigos como a continuação do varguismo e cursos e confer ências. Aos poucos, tornou -se um dos alvos
foi contestada até o último momento. Os militares dividiram- prediletos dos ataques da direita e mesmo dos liberais con ¬
se ainda mais, vencendo desta vez os partidários do naciona¬ servadores.
lismo e da obediência à Constituição. Alguns oficiais da Ae¬ Os conflitos do ú ltimo governo Vargas n ão tinham
ron áutica, ainda inconformados com a morte do companhei¬ desaparecido, mas eram amortecidos pelas altas taxas de de
ro de farda, rebelaram-se depois da posse, mas sem maiores I senvoívimento económico, em torno de 7°Z ao ano, que
-
conseqiiê ncias. distribuíam benefícios a todos, operários e patrões, indus
¬ -
Apesar da oposição civil e de revoltas militares, a habili triáis nacionais e estrangeiros. Os sindicatos tinham a pre

dade do novo presidente permitiu-lhe dirigir o governo mais sença de Goulart na vice-presidência como garantia de bom
-
din âmico e democr ático da história republicana. Sem recor¬
relacionamento com o governo: o salário mínimo real atin ¬
rer a medidas de exceção, à censura da imprensa, a qualquer giu seus índices mais altos até hoje. Os industriais nunca ti ¬
meio legal ou ilegal de restrição da participação, Kubitschek nham tido incentivos tão generosos. Restava o setor rural.
desenvolveu vasto programa de industrialização, além de pla¬ Neste, seguindo a estratégia de Vargas, Kubitschek n ão to¬
nejar e executar a transfer ência da capital do Rio de Janeiro cou. Os proprietários naturalmente ganhavam com o cres¬
para Brasília, a milhares de quilómetros de distância. Foi a cimento do mercado interno. Mas os trabalhadores perma¬
época áurea do desenvolvimentismo, que não excluía a coo-
neceram fora da legislação social e sindical. Politicamente,
peração do capital estrangeiro. O Estado investiu pesadamente
Kubitschek apoiou-se na aliança dos dois grandes partidos,
em obras de infra-estrutura, sobretudo estradas e energia elé¬ PSD e PTB, que lhe deram sustentação até o final. Era alian ¬
trica. Ao mesmo tempo, tentou atrair o capital privado, nacio¬ ça que bem revelava sua pol ítica| d conciliação de interes¬
nal e estrangeiro, para promover a industrialização do país. ses. O PSD tinha sua base entre os proprietários rurais, nas
O êxito mais espetacular foi o da indústria automobilística,
133
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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

velhas oligarquias do interior; o PTB era um partido urba¬ em janeiro de 1961 e renunciou em agosto desse mesmo ano,
no, com forte apoio na classe oper ária e no sistema sindical. alegando impossibilidade de governar. Nunca esclareceu
Enquanto a questão agrária não fosse tocada, o acordo era satisfatoriamente as razões da renú ncia. A explicação mais
possível e funcionou satisfatoriamente. provável é que ela teria sido um estratagema para conseguir
Ao final do período, no entanto, já surgiam sinais de difi¬ poderes especiais do Congresso para governar discricionaria-
culdades. Os nacionalistas mais radicais mostravam insatisfa¬ mente. Para o êxito do plano, Quadros contaria com a in¬
ção com a abertura ao capital estrangeiro e se opunham a compatibilidade entre os militares e o vice-presidente João
acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI). A es¬ Goulart, que, no momento, convenientemente para J ânio,
querda alegava que o pacto desenvolvimentista beneficiava se achava na China comunista em visita de cortesia. O apoio
mais a burguesia que o operariado. Começaram a surgir exi¬ popular a Quadros e o veto militar a Goulart, segundo esta
gê ncias de que as reformas fossem estendidas ao setor agrᬠhipó tese, fariam com que a ren ú ncia não fosse aceita e o
rio. Mas Kubitschek teve o mérito de encerrar em paz seu presidente ganhasse do Congresso os poderes extraordiná¬
mandato e passar a faixa presidencial ao sucessor. Foi faça¬ rios que desejava.
nha que até hoje nenhum outro presidente civil, eleito popu¬ Se foi este o cálculo, o fracasso foi total. A ren ú ncia foi
larmente depois de 1930, foi capaz de repetir. aceita imediatamente pelo Congresso. Mas a previsão sobre a
Seu sucessor, J ânio Quadros, foi eleito em 1960 com reação dos militares fora correta. Os ministros militares de¬
48,3% dos votos, derrotando o candidato da coligação PSD/ clararam não aceitar a posse do vice-presidfente, instalando-
PTB, general Henrique Lott. Quadros foi apoiado pela UDN, se uma crise política. Renovou se a disputa que dividia políti¬
-
mas não pertencia ao partido e nunca se submeteu a seus di¬ cos e militares desde o governo de Vargas. O comandante do
tames. Era pessoa imprevisível, que fizera carreira política III Exército, sediado no Rio Grande do Sul, estado natal do
meteórica e tinha grande capacidade de mobilizar apoio po¬ vice-presidente, recusou-se a aceitar a decisão dos ministros
pular, sobretudo das classes médias. Sua vitória foi um feito militares e defendeu a posse como previa a Constituição. Sua
pessoal e não partid ário. Isto ficou evidente pelo fato de seu posição foi apoiada por setores legalistas das for ças armadas
vice-presidente, um dos principais políticos da UDN, ter sido e, naturalmente, por todas as for ças populistas e de esquerda
derrotado por João Goulart, candidato a vice na chapa do geradas no bojo do varguismo.
PSD/ PTB. Não fosse o carisma pessoal de Quadros, as for ças Por dez dias, o país se viu à beira da guerra civil. Abdu¬
varguistas teriam mantido sua tradicional hegemonia. De ção encontrada pelo Congresso foi adotar um sistema parla¬
qualquer modo, por culpa de uma legislação defeituosa, o país mentarista de governo em substituição ao presidencialismo.
ficou na situação de ter um presidente e um vice-presidente Com isto, mantinha-se a sucessão dentro da lei e, ao mesmo
eleitos por forças políticas antagónicas. tempo, retirava-se do presidente grande parte de seus pode ¬
O governo de Jânio Quadros foi curto. Ele tomou posse .
res Mas foi solução de emergência. Desde o primeiro mo-

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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

mento, Goulart e as for ças que o apoiavam buscaram rever¬ trabalhadores, não permitidas pela CLT, começaram a sur¬
.
ter a situação e restaurar o presidencialismo Depois de uma gir, tais como o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e
série de primeiros-ministros que não conseguiram governar, o Pacto de Unidade e A ção ( PUA ). Entre os anos de 1962 e
o Congresso marcou um plebiscito para janeiro de 1963 para 1964, v á rias greves, ou ameaças de greve, de natureza polí¬
decidir sobre o sistema de governo. Como era de esperar, o tica foram feitas, em geral com o apoio do Ministério do
presidencialismo venceu por grande maioria e Goulart assu¬ Trabalho e de grandes companhias estatais, como a Petrobras.
miu os plenos poderes de um presidente. Em 1962, houve greve a favor do plebiscito sobre a volta do
A partir do plebiscito, a luta política caminhou rapidamen¬ presidencialismo. Em 1963, houve ameaças de greve em fa¬
te para radicalização sem precedentes. Os conflitos reduziram - vor das reformas de base, do movimento dos sargentos e
se cada vez mais à oposição esquerda/direita, sem deixar es¬ contra o estado de sítio. Ferrovi á rios, portu ários, metal ú r ¬
paço para negociação. As direitas civil e militar começaram a gicos, petroleiros, todos oper ários de empresas estatais, es¬
I organizar-se e preparar-se para o confronto. Surgiram orga - tavam sempre entre os principais sustentáculos das greves e
! nizações como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais movimentaçõ es políticas.
| (IPES), financiado por empresários nacionais e estrangeiros; A União Nacional dos Estudantes (UNE ) também adqui¬
S o Instituto Brasileiro de Ação Democr ática (IBAD), que apoia- riu grande dinamismo e influência. Com algum apoio entre
\ va financeiramente políticos da oposição e organizações sin - estudantes universitários, na época pouco maisxle 100 mil, a
; dicais e estudantis contr árias ao governo; a Ação Democr áti - UNE envolveu-se, ao lado do CGT e outras organizações, em
I ca Parlamentar (ADP), que reunia deputados conservadores todas as grandes negociações políticas, freqiientemente com
de v ários partidos. Essas organizações vinham unir-se a ou¬ o apoio do Ministério da Educação. Um deputado do PTB,
tras mais antigas, como as associações comerciais e industriais, Leonel Brizóla, organizou os “ Grupos dos Onze”, com carac¬
as associações de proprietários rurais, parte da hierarquia da terísticas paramilitares, preparados para agir à margem dos
Igreja Católica, e a ESG. O bord ão do anticomunismo foi mecanismos legais. No Congresso, formou-se uma Frente
usado intensamente. Planos para derrubar o presidente come¬ Parlamentar Nacionalista ( FPN) que acolhia deputados de
çaram a ser traçados, contando com a simpatia do governo v ários partidos comprometidos com a causa nacionalista e
norte -americano. popular. Infiltrados em muitos desses movimentos estavam
Do lado da esquerda n ão houve menor atividade, embo ¬ membros do Partido Comunista, sempre hábil em utilizar as
ra a unidade fosse mais fr ágil. O esquema sindical do Esta¬ brechas do sistema para chegar ao poder. Dissidências desse
do Novo rendeu nesse momento seus melhores frutos polí¬ Partido também se organizavam, como o Partido Comunista
ticos. As cú pulas sindicais e dos LAPs tinham passado para o do Brasil (PC do B) e Política Operária (Polop), ambos de
comando de l íderes mais autê nticos, alguns deles membros orientação maoísta .
do Partido Comunista. Organizações nacionais unificadas de Todas essas organizações tinham pouco suporte popular.

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JOSÉ MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

A mobilização política, no entanto, atingiu també m as bases a política das Ligas radicalizou-se e o movimento passou a
da sociedade. A Igreja Católica come çara a abandonar sua contar com o apoio financeiro de Cuba. A aproximação com
tradicional posição política reacionária e investia no movi¬ Cuba assustou ainda mais os proprietá rios de terras, cuja
mento estudantil, no movimento oper ário e camponês, na reação se tornou mais violenta. Os Estados Unidos tamb ém
educação de base. Seu braço mais politizado era a Ação Po ¬ se inquietaram e começaram a dirigir para o Nordeste pes¬
pular (AP), um desdobramento da Juventude Universitária soal e recursos da Aliança para o Progresso. Uma parcela das
Católica (JUC). O Movimento de Educação de Base (MEB), Ligas optou decididamente pela luta armada, sob a orienta¬
mantido pela Confer ê ncia Nacional dos Bispos, fornecia ção cubana. Iniciou se a construção de campos de treinamen¬
-
apoio log ístico para o trabalho da AP no movimento de to em Goiás. Em 1963, o governo promulgou um Estatuto
sindicalização rural. A UNE, por sua vez, desenvolveu intenso do Trabalhador Rural, que pela primeira vez estendia ao cam¬
trabalho cultural de mobilização política. Criou um Centro po a legislação social e sindical. O impacto maior do Estatuto
Popular de Cultura em que trabalhavam artistas de talento, foi sobre o processo de formação de sindicatos rurais, tor¬
sobretudo m úsicos. Caravanas artísticas percorriam as princi¬ nado agora muito mais simples e desburocratizado. Impul¬
pais cidades apresentando shows em que a arte se misturava sionado por grupos de esquerda, inclusive a Igreja e a AP, o
estreitamente à propaganda das idéias reformistas. O ISEB sindicalismo rural espalhou -se com rapidez pelo país, rele ¬
promovia confer ências e edições baratas de livros de cons- gando as Ligas Camponesas a segundo plano. Em 1964, a
cientização política. Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag ),
A grande novidade, no entanto, veio do campo. Pela pri¬ formada nesse ano, já englobava 26 federações e 263 sindi¬
meira vez na história do país, excetuando-se as revoltas cam¬ catos reconhecidos pelo Ministé rio. Quase 500 sindicatos,
ponesas do século XIX, os trabalhadores rurais, posseiros e aguardavam reconhecimento. Os sindicatos, em regime
pequenos proprietários entraram na política nacional com voz populista, tinham sobre as Ligas a enorme vantagem de po¬
pr ópria. O movimento começou no Nordeste em 1955, sob der contar com o apoio do governo e da grande m áquina ¡
o nome de Ligas Camponesas. Ganhou notoriedade com a sindical e previdenci ária.
adesão de um advogado e deputado com grande talento A vinculação ao governo reduz mas n ão destr ói a impor¬
mobilizador, Francisco Julião. Sociedades civis, as Ligas esca¬ tância da emergência do sindicalismo rural. Em 1960, 55%
pavam à legislação sindical e, portanto, ao controle do Mi¬ da população do país ainda morava no campo, e o setor pri ¬
nistério do Trabalho. Mas ficavam também fora da proteção mário da economia ocupava 54% da m ão-de-obra. Desde a
das leis trabalhistas, fato que lhes trouxe dificuldades na com¬ aboli ção da escravid ão, em 1888, o Estado n ão se envolvera
petição com os sindicatos. nas relações de trabalho agr ícola, se excetuarmos a lei de 1903,
Em 1960 Julião foi a Cuba, onde esteve novamente em que teve pouca aplicação. Nem mesmo as lideran ças de 1930
1961, acompanhado de dezenas de militantes. A partir daí, e o governo populista de Vargas tiveram vontade ou força para

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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

fazê-lo. Os trabalhadores agrícolas tinham ficado à margem para a revolta uma decisão do Supremo Tribunal contr á ria a
da sociedade organizada, submetidos ao arbítrio dos proprie¬ seu direito de concorrer a postos eletivos. Alguns deles, con ¬
tários, sem gozo dos direitos civis, políticos e sociais. Agora fiando em decisão favor ável, tinham-se candidatado e sido
eles emergiam da obscuridade e o faziam pela mão do direito eleitos. Seu mandato era agora declarado nulo pela justi ça.
de organização e num regime de liberdade política. Daí que A gravidade da revolta cresceu quando a UNE e o CGT de¬
seu movimento aparecia como mais ameaçador do que a ram seu apoio aos sargentos. Além do aspecto político, o epi ¬
.
sindicalização urbana dos anos 30 A ameaça parecia mais real sódio refletia também a insatisfação dos sargentos com sua
por vir o sindicalismo rural acoplado a um movimento nacio¬ situação funcional. A insatisfação se devia aos baixos soldos
nal de esquerda que, entre outras mudanças estruturais, re¬ e também às regras de promo ção e disciplina. Os sargentos
clamava uma reforma agrária. Esta expressão era anátema para necessitavam, por exemplo, da permissão dos superiores para
os proprietários, cuja reação não se fez esperar. Muitos fa¬ casar. Muitos deles aproveitavam o tempo livre para freqíien -
zendeiros se organizaram e se prepararam para resistência tar cursos universitários e sentiam-se intelectualmente iguais
armada ao que consideravam um perigo de expropriação de aos oficiais, que, no entanto, gozavam de muitos privilégios
suas terras ao estilo soviético ou cubano. Em alguns pontos a eles negados.
do país houve conflitos violentos envolvendo fazendeiros e O presidente achava-se imprensado entre os conspirado¬
trabalhadores rurais. res de direita, que o queriam derrubar, e os setores radicais
A mobilização política se fazia em torno do que se cha¬ da esquerda, que o empurravam na direção de' medidas cada
mou “reformas de base”, termo geral para indicar reformas vez mais ousadas. Incapaz de determinar um curso pr óprio
da estrutura agrária, fiscal, bancária e educacional. Havia ainda de ação, cedeu afinal à esquerda e concordou em realizar gran¬
demandas de reformas estritamente políticas, como o voto des comícios populares como meio de pressionar o Congres¬
para os analfabetos e para as praças de pré e a legalização do so a aprovar as “ reformas de base ”. Alguns de seus aliados
Partido Comunista. Suboficiais e sargentos das forças arma¬ falavam mesmo em substituir o Congresso por uma assem -
das podiam votar mas n ão podiam ser eleitos. A eleição de bl éia constituinte, medida abertamente revolucionária. As li¬
sargentos tornou-se tema político importante, pois revelava a deranças sindicais sentiam-se confiantes em sua capacidade de
¡ politização da base da institui ção militar, uma ameaça à hie- mobilizar as bases, o mesmo acontecendo com as lideranças
j rarquia e à disciplina. estudantis. Os generais que apoiavam o presidente subestima¬
O problema da hierarquia militar adquiriu contornos vam a força da oposição militar.
reais em setembro de 1963, quando sargentos da Marinha e O primeiro grande com ício foi realizado no Rio de
da Aeronáutica se rebelaram na nova capital, Brasília, pren ¬ Janeiro em mar ço de 1964. Era sexta-feira, 13. O número e
dendo o presidente da Câmara dos Deputados e um minis¬ o dia da semana eram de mau agouro. A superstição mos¬
tro da Suprema Corte. Os sargentos alegavam como motivo trou sua for ça. Calculou-se a multid ão reunida em frente à

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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

Central do Brasil em 150 mil pessoas, muitas para lá trans¬ revoltaram no Rio de Janeiro, entrincheirando-se na sede do
portadas com o auxílio de sindicatos e empresas estatais, Sindicato dos Metal ú rgicos. Os marinheiros tinham -se or¬
sobretudo a Petrobras. Forte proteção militar guardava o ganizado em uma associação e pediam melhoria de condi ¬
comício. Foram muitos os discursos inflamados, pedindo ções de trabalho. Seu líder, cabo Anselmo, foi posteriormente
reformas e constituinte. O presidente n ão ficou atrás. Além identificado como agente da CIA americana tendo ainda
de discurso populista, assinou dois decretos, um deles nacio¬ colaborado com os ó rg ãos de repressão durante os gover ¬
nalizando uma refinaria de petr óleo, o outro desaproprian¬ nos militares. A reação do presidente foi desastrosa. Substi ¬
do terras às margens de ferrovias e rodovias federais e de tuiu o ministro da Marinha por outro, indicado pelo CGT.
barragens de irrigação. O novo ministro anistiou os revoltosos. Como na revolta dos
O decreto mais explosivo era o da desapropriação de ter¬ sargentos, o fato de terem os marinheiros utilizado a sede
ras. A maior dificuldade legal à reforma agrária estava na de um sindicato revivia o espectro de uma alian ça revoluci ¬
Constituição, que exigia pagamento em dinheiro das terras onária de operários e soldados.
desapropriadas. O pagamento em dinheiro elevava muito os Os oficiais das tr ês forças reagiram pela voz do Clube
custos da reforma, e o Congresso recusava-se a emendar a Militar e do Clube Naval. A revolta dos marinheiros teve efei ¬
Constitui ção nesse item. O decreto era um desafio presiden¬ to decisivo, pois os oficiais ainda dispostos a sustentar a le¬
cial aos legisladores. Como tal, serviu aos opositores de argu¬ galidade se viram sem argumentos diante da ameaça que a
mento para afirmar que o presidente ameaçava a legalidade e insubordinação significava para a sobreviv êí r&a da organi¬
o sistema representativo. Para os proprietários rurais, era mais zação militar. Agora seus interesses corporativos imediatos
uma prova das intenções revolucionárias do governo. estavam ameaçados. Muitos deles ou passaram a apoiar a
"~Ã partir do com ício do dia 13, os acontecimentos se pre¬ conspiração ou deixaram de a ela se opor. A essa altura, o
cipitaram. No dia 19 de mar ço um comício foi organizado dia 2 de abril já tinha sido escolhido como a data da revolta
em São Paulo em protesto contra o do Rio de Janeiro. Pro ¬ contra o presidente. Goulart ainda deu um motivo adicio ¬
movido por organizações religiosas, sob inspiração de um nal aos conspiradores. Contra o conselho enf ático de seus
padre norte-americano e financiado por homens de negócio auxiliares, inclusive do futuro presidente eleito Tancredo
paulistas, o comício, calculado em 500 mil pessoas, centrou Neves, compareceu no dia 30 de mar ço a uma reunião de
sua retórica no perigo comunista que se alegava vir do go¬ sargentos da Polícia Militar do Rio de Janeiro e fez um dis¬
verno federal. Outros comícios semelhantes foram planeja¬ curso radical, transmitido pela televisão para todo o país.
dos para outras capitais sob o lema “ Marcha da Família com Foi a gota d’água. Os conspiradores anteciparam a revolta
Deus pela Liberdade ”, um apelo astucioso aos sentimentos para o dia 31 de mar ço. Tropas do Ex ército saíram de Mi ¬
religiosos da grande maioria da população. Em 26 de mar ço nas GeranTe dirígiram-se para o Rio de Janeiro. Seguiram-
de 1964, mais de mil marinheiros e fuzileiros navais se se momentos de expectativa quanto ao comportamento dos

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JOS É MURILO DE CARVALHO
CIDADANIA NO BRASIL

comandos militares. O destino do presidente foi selado quan¬


do n ão aceitou sugestões do comandante de S ão Paulo, ge¬ tivo de quase todas as correntes políticas da é poca, em con ¬
sonâ ncia com o ambiente internacional, era o de conquistar
neral Amauri Kruel, de repudiar o CGT e o comunismo. As
o Estado, com ou sem o apoio popular. Ganharam os que já
tropas de S ão Paulo aderiram às de Minas, e o presidente
estavam no poder.
n ão quis continuar a luta. Voou para Brasília e depois para o
Rio Grande do Sul, onde Leonel Brizóla insistiu na resistê n¬
Após 1945, o ambiente internacional era novamente fa¬
vor ável à democracia representativa, e isto se refletiu na
cia. A sugestão n ão foi aceita. Goulart exilou -se no Uruguai,
enquanto o Congresso colocava em seu lugar o sucessor le ¬ Constitui ção de 1946, que, nesse ponto, expandiu a de 1934.
gal, o presidente da Câmara dos Deputados. O voto foi estendido a todos os cidad ãos, homens e mulhe ¬
No auge da crise, revelou-se com nitidez a natureza de res, com mais de 18 anos de idade. Era obrigatório, secreto
cú pula da organização sindical. Os confiantes dirigentes sin ¬ e direto. Permanecia, no entanto, a proibi ção do voto do
dicais convocaram uma greve geral para o dia 31 de mar ço analfabeto. A limitação era importante porque, em 1950,
em oposição ao golpe. Seu apelo n ão foi ouvido. As grandes 57% da população ainda era analfabeta. Como o analfabe ¬
massas em nome das quais falavam os líderes não aparece¬ tismo se concentrava na zona rural, os principais prejudica¬
ram para defender o governo. As que apareceram foram as dos eram os trabalhadores rurais. Outra limitação atingia os
da classe média, no dia 2 de abril, para celebrar a queda do soldados das for ças armadas, també m exclu ídos do direito
do voto. <#
presidente. A grande mobilização política por que passara o
país acabava em verdadeiro anticlímax. Apesar do grande A Constituição confirmou também a justiça eleitoral, cons¬
barulho feito, via-se agora que o movimento popular era um tituída de um Tribunal Superior Eleitoral na capital federal, e
castelo de cartas. tribunais regionais nas capitais dos estados. Cabia à justiça
eleitoral decidir sobre todos os assuntos pertinentes à organi¬
zação de partidos políticos, alistamento, votação e reconhe¬
CONFRONTO E FIM DA DEMOCRACIA
cimento dos eleitos. Todo o processo ficava, assim, nas mãos
de juízes profissionais, reduzindo, embora não eliminando, as
O per íodo de 1930 a 1937 representou um primeiro ensaio possibilidades de fraude. Essa legislação n ão sofreu modifica¬
de participação popular na política nacional. Foi tentativa ções até 1964. Mas ao final do per íodo já eram questionados
ainda hesitante e mal organizada. Não houve tempo para o os artigos que proibiam o voto do analfabeto e dos soldados.
aprendizado da participação, para a organização de parti ¬ Duas decisões tomadas no per íodo representaram retrocesso
dos ou movimentos bem enraizados. Al ém disso, os princi¬ democr ático. A primeira foi em 1947, quando o Partido Co ¬
,
munista teve cassado seu registro e foi proibido de funcionar
pais movimentos populares, a ANL e AIB, n ão eram parti¬
cularmente simpáticos à democracia representativa. O obje ¬ legalmente. Õ PCB tinha 17 deputados federais e conseguira
10% dos votos na elei ção presidencial de 1945. O argumen-
144
145
JOSÉ MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

/"to para a cassação foi um dispositivo constitucional que proi


- de voto e coer ção de eleitores. A seu mando, cabos eleito¬
l bia a organização de partidos ou associações que contrarias- rais ainda levavam os eleitores em bandos para a sede do
j s e m o regime democrático. A outra decisão foi de 1963. Em município e os mantinham em “currais”, sob vigilância cons¬
plena efervescência política, o Tribunal Superior Eleitoral tante, até o momento do voto. Os cabos eleitorais entrega¬
declarou que suboficiais e sargentos não podiam ser eleitos. vam aos eleitores envelopes fechados com as cédulas de seus
A decisão da justiça causou protestos e foi o motivo alegado candidatos, para evitar trocas. O pagamento podia ser em
para a revolta dos sargentos em 1963. dinheiro, bens ou favores. Por via das d úvidas, o pagamento
Apesãr das limitações, a partir de 1945 a participação do em dinheiro era muitas vezes feito da seguinte maneira: me¬
povo na política cresceu significativamente, tanto pelo lado tade da cédula era entregue antes da votação e a outra metade
das eleições como da ação política organizada em partidos, depois. O mesmo se fazia com sapatos: um pé antes, outro
sindicatos, ligas camponesas e outras associações. O aumento depois.
da participação eleitoral pode ser demonstrado pelos n ú me¬ Mas n ão há d ú vida de que se faziam grandes progressos
ros que se seguem. Em 1930, os votantes n ão passavam de em direção a uma eleição mais limpa. A r ápida urbanização
5,6% da população. Na elei ção presidencial de 1945, che ¬ do país facilitava a mudança. O eleitor urbano era muito
garam a 13,4%, ultrapassando, pela primeira vez, os dados menos vulnerável ao aliciamento e à coer ção. Ele era, sim,
de 1872. Em 1950, já foram 15,9%, e em 1960, 18%. Em vulnerável aos apelos populistas, e foi ele quem deu a vitó¬
n ú meros absolutos, os votantes pularam de 1,8 milhão em ria a Vargas em 1950, a Kubitschek em 1955, a Goulart
1930 para 12,5 milhões em 1960. Nas elei ções legislativas (como vice presidente ) em 1960. O populismo pode, sob
-
de 1962, as últimas antes do golpe de 1964, votaram 14,7 certos aspectos, ser considerado manipulação política, uma
milhões. O número de eleitores inscritos era em geral 20% vez que seus líderes pertenciam às elites tradicionais e não
acima do dos votantes, devido à abstenção que sempre exis¬ tinham vinculação autêntica com causas populares. Pode-se
tia, apesar de ser o voto obrigatório. Em 1962, por exem ¬ alegar que o povo era massa de manobra em disputas de
plo, o eleitorado era de 18,5 milhões, correspondente a 26% grupos dominantes. Mas o controle que tinham esses líde ¬
da população total. res sobre os votantes era muito menor do que na situação
As práticas eleitorais ainda estavam longe da perfeição, tradicional. Baseava-se em apelos paternalistas ou caris¬
apesar da justiça especializada. A fraude era facilitada por máticos, não em coer ção. Exigia certo convencimento, cer¬
n ão haver cédula oficial para votar. Os pr ó prios candidatos ta relação de reciprocidade que n ão era puramente indivi ¬
distribuíam suas cédulas. Isso permitia muita irregularida¬ dual. Vargas e seus sucessores exibiam como cr é dito a legis¬
de. O eleitor com menos preparo podia ser facilmente enga¬ lação trabalhista e social, os aumentos de salário mínimo.
nado com a troca ou anulação de cédulas por cabos eleito ¬ Sobretudo, a relação populista era din âmica. A cada elei ção,
rais. Coronéis mantinham várias práticas antigas de compra fortaleciam-se os partidos populares e aumentava o grau de

146 147
CIDADANIA NO BRAS I L
JOS É MURILO DE CARVALHO

Como era de esperar, dada a novidade da experiência,


independência e discernimento dos eleitores. Era um apren¬
houve grande movimentação de políticos dentro desses par¬
dizado democrático que exigia algum tempo para se conso ¬
tidos, e entre eles, durante os quase 20 anos que duraram. A
lidar mas que caminhava com firmeza.
an álise das mudanças não é simples, mas há concord ância em
O progressivo amadurecimento democr ático pode ser
torno de alguns pontos. Houve um processo de nacionaliza¬
verificado na evolu ção partid ária. Como vimos, foi esse o
ção que favoreceu os pequenos partidos. De início, só os
primeiro período da história brasileira em que houve parti¬
maiores tinham estrutura nacional. Eles foram perdendo for¬
dos nacionais de massa, diferentes dos partidos nacionais do
ça à medida que os menores se tornavam mais competitivos.
Império, concentrados em estados-maiores, dos partidos es¬
Os pequenos partidos (considerados como tais todos, menos
taduais da Primeira Repú blica e dos movimentos nacionais
PSD, UDN, PTB, PR, PSP) detinham 10,1% das cadeiras na
não-partid ários da década de 30. Embora sobrevivessem in¬
Câmara dos Deputados, em 1945; em 1962, tinham saltado
fluências regionais, os partidos de 1945 eram organizados
para 48,7%. Houve, também, enfraquecimento dos partidos
nacionalmente e possuíam programas definidos, apesar de
conservadores, se usarmos como medida a representação na
muitos se guiarem mais pelo pragmatismo. Eram partidos no
Câmara dos Deputados. Considerando como principais par¬
sentido moderno da palavra, e apenas necessitavam de tem¬
tidos conservadores o PSD, a UDN e o PR, vê-se que deti¬
po para criar raízes na sociedade.
nham 82,1% das cadeiras em 1945 e apenas 34,4% em 1962.
Havia 12 partidos nacionais, quase todos fundados ao fi¬
Em contraste, partidos populistas como o PTB e o PSP salta¬
nal da ditadura do Estado Novo. Os principais eram os dois
ram de 7,6% para 16,7% no mesmo período.
criados por Vargas, o PSD e o PTB, e o que reuniu a maioria
Pesquisas de opinião pública feitas pelo Instituto Brasilei¬
da oposição, a UDN. Para criar o PSD, Vargas simplesmente
ro de Opinião Pú blica e Estatística (IBOPE) em 1964, antes
reuniu os interventores dos estados e congregou em torno do
do golpe, em oito capitais, e só recentemente trazidas a pú bli¬
partido as for ças dominantes locais. O PTB foi criado com
co por Antônio Lavareda, revelam aspectos muito positivos.
base na estrutura sindical corporativa. A UDN reunia a opo¬
O primeiro deles é que 64% da população dessas capitais ti¬
sição liberal e, no início, também socialista. Ao redor desse
nha prefer ência partidária, índice alto mesmo para padrões
núcleo, v ários partidos menores se moviam à direita e à es¬
internacionais. Isto significa que a maioria acreditava no sis¬
querda. Alguns ainda presos a antigas pr áticas estadualistas,
tema partid ário, aceitava-o como instrumento de representa¬
como o Partido Republicano (PR), outros na linha populista,
ção política. A aceitação dos partidos é ponto fundamental
como o Partido Social Progressista (PSP), outros da esquerda
para a saúde de qualquer sistema representativo, e não deixa
democr ática, como o Partido Socialista Brasileiro (PSB), ou¬
de ser surpreendente que em tão pouco tempo ela já fosse tão
tros ainda de reformismo moderado, como o Partido Demo ¬
alta. Em termos de preferências, o PTB saía na frente com
crata Cristão ( PDC). Conforme vimos, o Partido Comunista
29%, seguido da UDN com 14% e do PSD com 7%. Os da-
teve seu registro cassado em 1947.

149
48
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

dos confirmam, assim, o crescimento do trabalhismo, maior partidos. As lideranças caminharam na direção de um enfren-
sem d úvida nas capitais. tamento fatal para a democracia.
Outra revelação das pesquisas de 1964 refere-se à orien¬ Pelo lado da direita, o golpismo não era novidade. Desde
tação ideológica do eleitorado das oito capitais às v ésperas do 1945, liberais e conservadores vinham tentando eliminar da
golpe. Enquanto as lideranças se radicalizavam, o eleitorado política nacional Vargas e sua heran ça. O liberalismo brasilei¬
mostrava tend ê ncia claramente centrista. O candidato prefe¬ ro n ão conseguiu assimilar a entrada do povo na política. O
rido para as eleições de 1965, que n ão se realizaram, era máximo que podia aceitar era a competitividade entre seto ¬
Kubitschek, seguido de longe pelo candidato daUDN, Carlos res oligárquicos. O povo, representado na é poca pela pr ática
Lacerda, um radical de direita. O radical de esquerda, Miguel populista e sindicalista, era considerado pura massa de ma¬
Arrais, tinha pequena porcentagem das intenções de voto. A nobra de políticos corruptos e demagogos e de comunistas
não haver o golpe, provavelmente o progressista moderado liberticidas. O povo perturbava o funcionamento da demo ¬
Kubitschek ganharia as eleições. A tendência moderada era cracia dos liberais. Para eles, o governo do país não podia sair
confirmada por outra pergunta da pesquisa. Indagados sobre do controle de suas elites esclarecidas.
qual a linha política mais indicada para o governo, 45% dos V A esquerda também não tinha tradi ção democrática. Ou
pesquisados preferiram o centro, contra 23% que prefeririam : >
v melhor, sua parte democr ática era muito reduzida. A parcela
a direita e 19% a esquerda. í maior, constituída pelo Partido Comunista,‘desprezava a de¬
Diante da evolução dos partidos e dessas informaçõ es so ¬ mocracia liberal, vista como instrumento de dominação bur ¬
bre o eleitorado, fica a pergunta: por que, afinal, a democra¬ guesa. Se a aceitava era apenas como meio de chegar ao po¬
cia foi a pique em 1964, se havia condições tão favoráveis a der. O lado nacionalista da esquerda, herdeiro de Vargas, cujos
sua consolidação ? A resposta pode estar na falta de convic¬ principais representantes eram Goulart e Brizóla, também não
ção democrática das elites, tanto de esquerda como de direi¬ morria de amores pela democracia. Aceitava-a na medida em
ta. Os dois lados se envolveram em uma corrida pelo contro ¬ que servisse a seus propósitos reformistas. Para ambos os la¬
le do governo que deixava de lado a pr ática da democracia dos, direita e esquerda, a democracia era, assim, apenas um
representativa. Direita e esquerda preparavam um golpe nas meio que podia e devia ser descartado desde o momento que
instituiçõ es. A direita, para impedir as reformas defendidas não tivesse mais utilidade.
pela esquerda e para evitar o que achavam ser um golpe co¬ Estabeleceu-se uma corrida dentro da pr ópria esquerda em
munista-sindicalista em preparação. A esquerda, com Leonel dire ção a um confronto final. Pressionado por Brizóla e pelos
Briz óla à frente, para eliminar os obstáculos às reformas e sindicalistas, e com receio de perder a liderança das reformas,
neutralizar o golpe de direita que acreditavam estar em pre¬ o presidente deixou-se levar a uma radicalização que se tor ¬

paração. No calor da luta, foram sendo aos poucos abando ¬ nou suicida quando atingiu a disciplina das for ças armadas.
nadas as possibilidades de negociação no Congresso e nos Alienado o apoio militar, n ão lhe restava outra alternativa

15o 151
JOSÉ MURILO DÊ CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

senão a derrota. A expectativa de alguns setores de esquerda, também receava perder poder e influência. Seguradoras priva¬
de que o país estaria preparado para uma insurreição popular das que cobriam a área de acidentes de trabalho igualmente
do tipo bolchevique de 1917, n ão passava de delírio, que se¬ resistiam à mudança. Um projeto de lei enviado ao Congresso
ria cómico se não pudesse ter conseqiiências tr ágicas. em 1947 para unificar o sistema foi seguidamente adiado.
Bastaria a falta de convicção democr ática para explicar o Em seu segundo governo, Vargas voltou à carga e fez or¬
comportamento das lideran ças ? Creio que não. O processo ganizar um congresso sobre a previdência, em 1953, sob a
democrático era incipiente. Se a opinião pública e o eleitora¬ presidência de João Goulart. Mas as divisões continuavam
do estavam prontos para uma solução democrática negocia¬ grandes, e só em 1960, sob o governo de Goulart, foi aprova¬
da, eles n ão tinham condi ções de passar essa informação para da a Lei Orgânica da Previdência Social. A lei era um com¬
as lideran ças fora do momento eleitoral. Em outras palavras, promisso. Uniformizava as normas da previd ência, mas não
não havia organizações civis fortes e representativas que pu¬ unificava o sistema, pois permaneciam os v ários institutos.
dessem refrear o curso da radicalização. A estrutura sindical Também mantinha em mãos privadas os seguros de aciden¬
era de cúpula, assim como o era a estudantil. Controlando seus tes. O ponto positivo foi a ampliação da cobertura previ-
postos de direção, líderes de esquerda eram v ítimas de ilusão denci ária, que passou a incluir os profissionais liberais.
de ótica, julgavam estar liderando multidões quando apenas A outra tentativa de ampliar o sistema verificou-se com o
dirigiam uma burocracia. A descoberta de que tudo não pas¬ Estatuto do Trabalhador Rural, de 1963, que como vimos,
sava de um castelo na areia foi feita tarde demais. A precipi¬ ^
estendeu ao campo a legislação trabalhista. O Estatuto previa
tação do confronto pôs a perder o que se tinha ganho em ter¬ ainda a extensão da previdência ao campo. Mas essa parte da
mos de mobilização e aprendizado político, à exceção da par¬ lei permaneceu letra morta. Não foram previstos recursos para
ticipação eleitoral, que nunca deixou de crescer nos anos se¬ a implantação e o financiamento dos benefícios. Os trabalha¬
guintes. O país iria entrar em nova fase de supressão das li¬ dores rurais continuaram excluídos, apesar do grande n úme¬
berdades, em novo regime ditatorial, desta vez sob o controle ro de sindicatos que se organizavam e da ê nfase do governo
direto dos militares. na reforma agr ária. Permaneciam também fora da previd ên ¬
Sintomaticamente, os direitos sociais quase não evoluíram cia os trabalhadores autónomos e as empregadas domésticas.
durante o período democrático. Desde o final do Estado Novo, Sem nenhuma organização, as empregadas constituíam um
os técnicos da previdência buscavam, com o apoio de Vargas, grande mercado informal de trabalho em que predominavam
unificar o sistema e expandi-lo para abranger toda a popula¬ relações pessoais que lembravam pr áticas escravistas. )
ção trabalhadora. Mas eram grandes as resistências. Como cada
instituto tinha leis pr óprias e burocracia pr ópria, os que esta¬
vam em melhor condição, como o dos bancários e o dos ferro¬
viários, se opunham à unificação. A burocracia dos institutos

152 153
CAPÍTULO III Passo atrás, passo adiante
(1964-1985 )

<#
Como em 1937, o r ápido aumento da participação política
levou em 1964 a uma reação defensiva e à imposição de mais
um regime ditatorial em que os direitos civis e políticos fo¬
ram restringidos pela violência. Os dois per íodos se asseme¬
lham aínda pela ênfase dada aos direitos sociais, agora esten¬
didos aos trabalhadores rurais, e pela forte atuação do Esta¬
do na promo ção do desenvolvimento económico. Pelo lado
político, a diferença entre eles foi a manutenção do funciona¬
mento do Congresso e da realização das eleições no regime
implantado em 1964.
Do ponto de vista que aqui nos interessa, os governos
militares podem ser divididos em três fases. A primeira vai de
1964 a 1968 e corresponde ao governo do general Castelo
Branco e primeiro ano do governo do general Costa e Silva.
Caracteriza-se no início por intensa atividade repressiva se¬
guida de sinais de abrandamento. Na economia, foi um perío¬
do de combate à inflação, de forte quedã no salário mínimo e
de pequeno crescimento. Foi o domínio dos setores mais li¬
berais das for ças armadas, representados pelo general Caste¬
lo Branco. No último ano, 1968, a economia retomou os al ¬
tos índices de crescimento da década de 50.
A segunda fase vai de 1968 a 1974 e compreende os anos

1s7
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

\ mais sombrios da historia do país,! do ponto de vista dos di- Antes de analisar essa atividade, é preciso discutir as ra¬
"
..
reitos civis e políticos. Foi o dominio dos militares mais zões de terem os militares assumido diretamente o governo,
truculentos, reunidos em torno do general Garrastazu Médici, para surpresa de seus pr ó prios aliados. A presença dos milita¬
escolhido presidente após o impedimento de Costa e Silva por res na política brasileira começou na proclamação da Rep ú ¬
motivo de doença. O período combinou a repressão política blica. Mas as oligarquias conseguiram alijá-los construindo o
mais violenta já vista no país com índices também jamais vis¬ sistema coronelista da Primeira Rep ública. Em 1930, eles
tos de crescimento econ ómico. Em contraste com as taxas de voltaram com for ça, trazendo propostas de centralização po ¬
crescimento, o salario mínimo continuou a decrescer. lítica, industrialização, nacionalismo. Vargas conseguiu usá-
A terceira fase começa em 1974, : j om a posse do general los e contê-los. Após 1945, eles se dividiram, como toda a
Ernesto Geisel, e termina em 1985, jcom a eleição indireta de sociedade, entre nacionalistas e populistas, de um lado, e li¬
Tancredo Neves. Caracteriza-se inicialmente pela tentativa do berais conservadores, do outro. A divisão das for ças armadas
general Geisel de liberalizar o sistema, contra a forte oposi ¬ atingia o corpo de oficiais e as praças de pré, sobretudo os
ção dos órgãos de repressão. A liberalização continua sob o sargentos
- . __
_
general João Batista de Figueiredo (1979-1985). As leis de Pode-se explicar a atitude mais radical em 1964 pela amea¬

repressão vão sendo aos poucos revogadas e a oposição faz ça que a divisão ideológica significava para a sobrevivência
sentir sua voz com força crescente. Na economia, a crise do da organização militar. Para fazer o expurgo dós inimigos, era
petr óleo de 1973 reduz os índices de crescimento, que no necessário controlar o poder. Mas havia também razões me¬
início dos anos 80 chegam a ser negativos. nos corporativas. Os antivarguistas tinham-se preparado para
o governo dentro da Escola Superior de Guerra. Lá elabora¬
ram uma doutrina de segurança nacional e produziram, junto
PASSO ATRÁS: NOVA DITADURA (1964-1974) com técnicos civis, estudos sobre os principais problemas na¬
cionais. Além disso, tinham-se aproximado de lideranças
Derrubado Goulart, os políticos civis que tinham apoiado o empresariais por meio de uma associação chamada Instituto
¬ de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES ), fundada em 1962 por
golpe, sobretudo os da UDN, foram surpreendidos pela de
cisão dos militares de assumir o poder diretamente. O gene¬ empresários do Rio de Janeiro e de São Paulo. O IPES lutava
ral Castelo Branco foi imposto, a um Congresso já expurga¬ contra o comunismo e pela preservação da sociedade capita¬
do de muitos oposicionistas, como o novo presidente da lista. Mas, ao mesmo tempo, propunha v árias reformas eco ¬
Rep ública. Começou, então, intensa atividade governamen ¬ nómicas e sociais. No Rio, mantinha estrito contato com a
¬ ESG. Vários membros do IPES participaram do governo Cas¬
tal na á rea política para suprimir os principais focos de opo
si ção e na área econ ómica para conter a inflação que atingia telo Branco, e muitas das idéias desenvolvidas no Instituto
níveis muito altos. foram aproveitadas pelo primeiro governo militar. Os milita-

158 159
JOS É MURILO DE CARVALHO
Cl DADANIA NO BRASIL

res tinham, assim, em 1964, motivos para assumir o governo, pol íticos, quando n ão a liberdade, do suspeito. Como em ge¬
julgavam-se preparados para fazê-lo e contavam com aliados ral acontece em tais circunstâ ncias, muitas vinganças pessoais
poderosos. foram executadas sob o pretexto de motivação política.
Dado o golpe, os direitos civis e políticos foram duramente Em 1966, houve eleições estaduais, e o governo foi der ¬
atingidos pelas medidas de repressão. Por essa razão, eles rotado em cinco estados, inclusive os estratégicos Rio de Ja¬
merecem atenção especial. Como era maior a mobilização em neiro e Minas Gerais. Em retaliação, setores militares radi¬
1964 e como estavam mais desenvolvidos os meios de con¬ cais exigiram novas medidas repressivas. O Ato Institucional
trole, a repressão política dos governos militares foi também n° 2, de outubro de 1965, aboliu a elei ção direta para presi¬
mais extensa e mais violenta do que a do Estado Novo. Em¬ dente da República, dissolveu os partidos políticos criados a
bora presente em todo o per íodo, ela se concentrou em dois partir de 1945 e estabeleceu um sistema de dois partidos. O
momentos: entre 1964 e 1965, e entre 1968 e 1974. AI-2 aumentou muito os poderes do presidente, conceden¬
Os instrumentos legais da repressão foram os “ atos do-lhe autoridade para dissolver o parlamento, intervir nos
institucionais” editados pelos presidentes militares. O primeiro estados, decretar estado de sítio, demitir funcionários civis e
foi introduzido logo em 9 de abril de 1964 pelo general Cas¬ militares. Reformou ainda o judiciário, aumentando o n ú me¬
telo Branco. Por ele foram cassados os direitos políticos, pelo ro de juízes de tribunais superiores a fim de poder nomear
per íodo de dez anos, de grande n ú mero de líderes políticos, partidários do governo. O direito de opinião f«i restringido,
sindicais e intelectuais e de militares. Al ém das cassações, fo¬ e juízes militares passaram a julgar civis em causas relativas à
ram também usados outros mecanismos, como a aposentado¬ seguran ça nacional .
ria for çada de funcionários públicos civis e militares. Muitos Nova retomada autoritária aconteceu em 1968. Nesse ano,
sindicatos sofreram intervenção, foram fechados os órgãos de voltaram a mobilizar-se contra o governo alguns setores da
cú pula do movimento oper ário, como o CGT e o PUA. Foi
sociedade, sobretudo os oper ários e os estudantes. Duas gre¬
invadida militarmente e fechada a UNE, o mesmo acontecen¬ ves marcaram a retomada das manifestaçõ es oper á rias. Os
do com o ISEB.
estudantes saíram às ruas em grandes marchas pela democra¬
Várias comissões de inqué rito foram criadas para apurar
tização, e um deles, Edson Luís, foi morto em uma das mani¬
supostos crimes de corrupção e subversão. As mais famosas
festaçõ es. Tendo a Câmara dos Deputados negado permissão
foram os Inquéritos Policiais Militares (IPMs), em geral diri ¬
para processar um de seus membros, que fizera um discurso
gidos por coronéis do Exército, que perseguiram, prenderam
considerado ofensivo às for ças armadas, o governo editou
e condenaram bom n ú mero de opositores. O perigo comu¬
novo ato institucional em dezembro. O Ato Institucional n° 5
nista era a desculpa mais usada para justificar a repressão.
(AI-5) foi o mais radical de todos, o que mais fundo atingiu
Qualquer suspeita de envolvimento com o que fosse conside¬
direitos políticos e civis. O Congresso foi fechado, passando
rado atividade subversiva podia custar o emprego, os direitos
o presidente, general Costa e Silva, a governar ditatorialmen -
160
1 61
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

te. Foi suspenso o habeas corpus para crimes contra a segu ¬ brode 1969, houve o primeiro ato espetacular da guerrilha
rança nacional, e todos os atos decorrentes do AI-5 foram urbana, o seqiiestro do embaixador norte-americano. Daí até
colocados fora da apreciação judicial. o final do governo Médici, em 1974, for ças da repressão e da
Paralelamente, recomeçaram as cassações de mandatos, guerrilha se enfrentaram em batalha inglória e desigual. Aos
suspensão de direitos políticos de deputados e vereadores, seqiiestros e assaltos a bancos dos guerrilheiros, respondia a
demissão sumária de funcionários públicos. Quando, em 1969, repressão com prisões arbitrárias, tortura sistemática de pre¬
o presidente sofreu um infarto, os militares não permitiram sos, assassinatos. Opositores assassinados eram dados como
que o vice- presidente, Pedro Aleixo, um civil da extinta UDN, desaparecidos ou mortos em acidentes de carro. A imprensa
assumisse o governo, de acordo com a lei. Uma junta militar era proibida de divulgar qualquer notícia que contrariasse a
assumiu, escolheu um sucessor e reabriu o Congresso para que versão das for ças de segurança.
este referendasse a escolha. Em outubro de 1969, tomou posse A máquina da repressão cresceu rapidamente e tornou-se
na presid ência o general Garrastazu Médici. Na mesma data, quase autónoma dentro do governo. Ao lado de órg ãos de in ¬
foi promulgada nova Constituição, que incorporava os atos teligência nacionais como a Polícia Federal e o Serviço Nacio ¬
institucionais. nal de Informações (SNI ), passaram a atuar livremente na
Sob o general Médici, as medidas repressivas atingiram repressão os serviços de inteligência do Exército, da Marinha,
seu ponto culminante. Nova lei de segurança nacional foi
da Aeron áutica e das polícias militares estadif &is; e as delega¬
introduzida, incluindo a pena de morte por fuzilamento. A
cias de ordem social e política dos estados. Dentro de cada
pena de morte tinha sido abolida ap ós a proclama ção da
Ministério e de cada empresa estatal foram criados órgãos de
República, e mesmo no Impé rio já não era aplicada. No iní¬
seguran ça e informação, em geral dirigidos por militares da
cio de 1970, foi introduzida a censura pr é via em jornais, li ¬
vros e outros meios de comunicação. Isto significava que reserva. 0 Exército criou ainda agências especiais de repres¬
são chamadas Destacamento de Operações de Informações e
qualquer publicação ou programa de r ádio e televisão tinha
que ser submetido aos censores do governo antes de ser le ¬ Centro de Operaçõ es de Defesa Interna, que ficaram triste -
vado ao pú blico. Jornais, r ádios e televisões foram obriga¬ mente conHecidas pelas siglas DOI-CODI.
dos a conviver com a presen ça do censor. Com freqiiência, A censura à imprensa eliminou a liberdade de opinião; não
o governo mandava instruções sobre os assuntos que não havia liberdade de rennião; os partidos eram regulados e con¬
podiam ser comentados e nomes de pessoas que não podiam trolados pelo govern 0 » os sindicatos estavam sob constante
ser mencionados. ameaça de interven <çã°; era proibido fazer greves; o direito
Em resposta à falta de alternativa para a oposição legal, de defesa era cercead pelas prisões arbitr árias; a justiça mi¬
°
grupos de esquerda começaram a agir na clandestinidade e litar julgava crimes civrs; a inviolabilidade do lar e da corres¬
adotar táticas militares de guerrilha urbana e rural. Em setem- pond ência não existi n; a integridade física era violada pela

162 163
JOS É MURILO DE CARVALHO
CIDADANIA NO BRASIL

pouco restou do movimento. Quando recomeçaram as gre¬


tortura nos cárceres do governo; o pr óprio direito à vida era
ves, em 1968, elas se fizeram à margem da estrutura sindical
desrespeitado. As famílias de muitas das vítimas até hoje não
oficial, naquele momento voltada apenas para tarefas de as¬
tiveram esclarecidas as circunstâncias das mortes e os locais
sistência social. A ú nica instituição que conseguiu defender¬
de sepultamento. Foram anos de sobressalto e medo, em que
se, apesar de alguns conflitos com o governo, foi a Igreja
os órgãos de informação e segurança agiam sem nenhum con¬
Católica. Por seu poder e influ ência, a hierarquia da Igreja foi
trole.
capaz de oferecer resistência e tornar-se aos poucos o princi ¬
Segundo levantamento de Marcos Figueiredo, entre 1964
pal foco de oposi ção legal. Alguns dos movimentos anterio¬
e 1973 foram punidas, com perda de direitos políticos, cassa¬
res a 1964 por ela influenciados, como a AP, foram atraídos
ção de mandato, aposentadoria e demissão, 4.841 pessoas,
pelo marxismo e enveredaram pela luta armada.
sendo maior a concentração de punidos em 1964, 1969 e
Para que o quadro dos governos militares, inclusive de sua
1970. Só o AI-1 atingiu 2.990 pessoas. Foram cassados os man¬
pior fase, esteja completo, é preciso acrescentar alguns pon ¬
datos de 513 senadores, deputados e vereadores. Perderam
tos responsáveis pela ambig ú idade do regime. O primeiro é
os direitos políticos 35 dirigentes sindicais; foram aposenta¬
que durante todo o per íodo, de 1964 a 1985, salvo curtas
dos ou demitidos 3.783 funcionários públicos, dentre os quais
interrup çõ es, o Congresso permaneceu aberto e em funcio¬
72 professores universitários e 61 pesquisadores científicos.
namento. Expurgados de seus elementos mais combatentes,
O expurgo nas for ças armadas foi particularmente duro, da¬
Câmara e Senado cumpriram as tarefas que lhes eram dadas
^
das as divisões existentes antes de 1964. A maior parte dos
pelos presidentes militares. No sistema bipartidário criado em
militares, se não todos, que se opunham ao golpe foi excluída
1966, o partido do governo, Aliança Renovadora Nacional
das fileiras. Foram expulsos ao todo 1.313 militares, entre os
(Arena) era sempre majoritário e aprovava todos os projetos,
quais 43 generais, 240 coronéis, tenentes-coronéis e majores,
mesmo os mais repressivos, como o que introduziu a censura
292 capitães e tenentes, 708 suboficiais e sargentos, 30 sol¬
pr évia. A Arena legitimou com seu voto todos os candidatos
dados e marinheiros. Nas polícias militar e civil, foram 206
a presidente impostos pelos militares. Seus políticos foram
os punidos. O expurgo permitiu às for ças armadas eliminar
sempre instrumento dócil do regime.
parte da oposição interna e agir com maior desembaraço no
O partido de oposição, Movimento Democr ático Brasilei ¬
poder.
ro (MDB), viu-se diante de dif ícil escolha: ou manter-se em
Órgãos estudantis e sindicais também foram alvo da ação
repressiva. Existem dados apenas para as intervenções nos
funcionamento, apesar das cassações de mandatos e da impos¬
sindicatos ocorridas de 1964 a 1970. Foram ao todo 536 in¬ sibilidade de fazer oposição real, ou autodissolver-se. No pri¬
meiro caso, conservava acesa a chama da oposição, embora
tervenções, sendo 483 em sindicatos, 49 em federações e
tênue, mas ao mesmo tempo emprestava legitimidade ao regi ¬
quatro em confederações. Quase todas concentraram-se em
me ao permitir-lhe argumentar que havia uma oposição em
1964 e 1965, indicação de que, eliminada a cúpula sindical,

1 64 1 6s
JOS É MURILO DE CARVALHO Cl D A D A N I A N O BRAS| L

funcionamento. No segundo caso, deslegitimava o regime, mas Mais estranho do que haver eleições foi o fato de ter o
reduzia ainda mais o espaço para a resistência legal e podia assim eleitorado crescido sistematicamente durante os governos
fortalecer o governo. O partido por mais de uma vez conside¬ militares. A tendência iniciada em 1945 não foi interrompi¬
rou a possibilidade de autodissolução mas optou finalmente por da, foi acelerada. Em 1960, nas eleições presidenciais, vota¬
fazer parte do jogo, utilizando a tribuna do Congresso para ram 12,5 milh ões de eleitores; nas eleições senatoriais de 1970
protestar contra as propostas que agrediam a democracia. votaram 22,4 milhõ es; nas de 1982, 48,7 milh ões; nas de
Mesmo este modesto papel tinha seus riscos: deputados e se- 1986, 65,6 milh ões. Em 1960, a parcela da população que
** nadores que injetavam um
pouco mais de contundência em suas votava era de 18%; em 1986, era de 47%, um crescimento
cr íticas quase sempre perdiam o mandato. impressionante de 161%. Isto significa que 53 milhões de
: Para manter aberto o Congresso, os militares conservaram brasileiros, mais do que a população total do país em 1950,
'

[ as eleições legislativas. As eleições diretas para governadores foram formalmente incorporados ao sistema político duran ¬
foram suspensas a partir de 1966, só voltando a ser realiza- te os governos militares.
- das em 1982. Para presidente da República, não houve elei - Esse é um dado cujas implicações não podem ser subesti¬
í ção direta entre 1960 e 1989, quase 30 anos de exclusão do madas. A pergunta a se fazer é óbvia: o que significava para
povo da escolha do chefe do Executivo. Os presidentes eram esses milhões de cidadãos adquirir o direito político de votar
^ escolhidos pelos comandos militares, de acordo com a cor ¬ ao mesmo tempo em que vários outros direito | políticos e civis
rente dominante no momento no alto comando. Seus nomes lhes eram negados? Que sentido teria esse direito assim con¬
eram levados ao Congresso para ratificação. A Arena nunca seguido ? Mais ainda: o que significava escolher representan ¬
deixou de emprestar sua maioria para referendar a farsa. tes quando os órgãos de representação por excelência, os par¬
As eleições legislativas para o Senado e Câmara fede¬ tidos e o Congresso, eram aviltados e esvaziados de seu po¬

ral, assembl éias estaduais, câmaras de vereadores foram
— der, tornando-se meros instrumentos do poder executivo ?
mantidas, embora com restri ções. Elas foram às vezes adia¬ Poderia, nessas circunstâncias, o ato de votar ser visto como
das, a propaganda política era censurada, os candidatos mais o exercício de um direito político?
radicais, vetados. Quando os generais se viam surpreendidos
pelos resultados, mudavam as leis, para manter a maioria no Crescimento económico
Congresso. Em 1978, por exemplo, para conservar o controle
do Senado, o general Geisel criou senadores eleitos indireta¬ A complexidade do período militar não pára por aí. Vimos
mente, aos quais a malícia popular logo chamou de “biónicos” . que ap ós a fase de bonança de Kubitschek a taxa de cresci ¬
Houve eleições para Senado e Câmara em 1966, 1970, 1974, mento económico caiu fortemente. O ano de 1963 foi o pon ¬
1978, 1982 e 1986, as quatro primeiras sob o sistema to mais baixo, com aumento do Produto Interno Bruto de
bipartidário, as duas últimas já em sistema multipartidário. apenas 1,5%. Em termos per capita, era decr éscimo. Após o

1 66 67
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

golpe, a taxa de crescimento manteve-se baixa até 1967. Mas cos dados demonstram esse ponto com clareza. Em
1960, os
a partir de 1968, exatamente o ano em que a repressão se 20% mais pobres da população economicamente ativa ganha¬
tornou mais violenta, ela subiu rapidamente e ultrapassou a
vam 3,9% da renda nacional . Em 1980, sua participação caí¬
do período de Kubitschek, mantendo-se em torno de 10% até ra para 2, 8%. Em contraste, em 1960 os 10% mais ricos ga¬
1976, com um máximo de 13,6% em 1973, em pleno gover¬ nhavam 39,6% da renda, ao passo que em 1980 sua partici¬
no Médici. Foi a época em que se falou no “milagre” econó¬ pação subira para 50,9%. Se subirmos na escala de renda, \
mico brasileiro. A partir de 1977, o crescimento começou a cresce a desigualdade. 01% mais rico ganhava 11,9% da ren- \
cair, chegando ao ponto mais baixo em 1983, com -3,2%, su¬ da total em 1960; em 1980 sua participação era de 16,9%. Se I
bindo depois para 5% em 1984, último ano completo de go¬ os pobres não ficaram muito mais pobres, os ricos ficaram /
muito mais ricos. _ _ /
verno militar.
Apesar da queda de crescimento ao final, a coincidência O aumento da desigualdade não era evidente na época. A
do período de maior repressão com o de maior crescimento rápida expansão da economia veio acompanhada de grandes
económico era perturbadora. O governo Médici exibiu esse transformações na demografia e na composi ção da oferta de
aspecto contraditório: ao mesmo tempo que reprimia feroz¬
empregos. Houve grande deslocamento de população do cam¬
mente a oposição, apresentava-se como fase de euforia eco¬
po para as cidades. Em 1960 a população urbana era 44,7%
nómica perante o resto da população. Foi também o momen¬ do total, o país ainda era majoritariamente rural. Em 1980, J
to em que o Brasil conquistou no México o tricampeonato em apenas 20 anos, ela havia saltado para 67,6*%. Em núme- £^
mundial de futebol, motivo de grande exaltação patri ótica de ros absolutos, a população urbana aumentara em cerca de 50 o
que o general soube aproveitar-se para aumento da própria milhões de pessoas. Os efeitos catastróficos desse crescimen¬
popularidade. Uma onda de nacionalismo xenófobo e reacio¬ to para a vida das grandes cidades só apareceriam mais tarde.
nário percorreu o país. Viam-se nas ruas e nos carros faixas Na época, a urbanização significava para muita gente um pro¬
com os dizeres: “Brasil: ame-o ou deixe-o”, uma crítica ex¬ gresso, na medida em que as condi ções de vida nas cidades
plícita à oposição, sobretudo à oposição armada. Pesquisas aca¬ permitiam maior acesso aos confortos da tecnologia, sobre¬
dêmicas de opinião pública feitas na época indicaram que o tudo à televisão e outros eletrodomésticos.
presidente gozava de popularidade. A mudança na estrutura de emprego acompanhou a urba¬
O sentido do “milagre” económico foi posteriormente nização. Houve enorme crescimento da população emprega¬
desmistificado por análises de especialistas que mostraram seus da, que os economistas chamam de economicamente ativa.
pontos negativos. Houve, sem dúvida, um crescimento rápi ¬
Essa população passou de 22,7 milhões em 1960 para 42,3
do, mas ele beneficiou de maneira muito desigual os vários milhões em 1980, quase o dobro. Particularmente dramático
setores da população. A conseqiiência foi que, ao final, as desi ¬
foi o aumento do número de mulheres no mercado de traba¬
gualdades tinham crescido ao inv és de diminuir. Alguns pou- lho. Enquanto o número de homens aumentou em 67%, o de

169
1 68
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

mulheres cresceu 184%. Isso fazia com que, apesar da que¬ Em 1966 foi afinal criado o Instituto Nacional de Previ¬
da no valor do salário mínimo, que em 1974 era quase a me¬ dência Social (INPS ), que acabava com os IAPs e unificava o
tade do que valia em 1960, a renda familiar se mantinha es¬ sistema, com exceção do funcionalismo público, civil e mili¬
tável ou mesmo aumentava devido ao n ú mero maior de pes¬ tar, que ainda conservava seus pr óprios institutos. As contri¬
soas que trabalhavam, sobretudo ao n ú mero de mulheres em¬ bui ções foram definidas em 8% do salário de todos os trabalha¬
pregadas. dores registrados, descontados mensalmente da folha de paga¬
'
, " Houve, ainda, mudan ça nos tipos de emprego. A ocupa¬
mento; os benef ícios, como aposentadoria, pensão, assistência
médica, foram também uniformizados. Acabaram os podero ¬
is ção no setor prim ário da economia (agricultura, pecuária,
sos IAPs, e os sindicatos perderam a influ ência sobre a previ¬
1 mineração) caiu de 54% do total em 1960 para 30% em 1980.
dência, que passou a ser controlada totalmente pela burocra¬
1 A ocupação no secundário (ind ústria) cresceu de 13% para
cia estatal. Em 1967 o INPS venceu outra resistência e tomou
24% no mesmo per íodo, e o terciário (transporte, serviços,
das empresas privadas o seguro de acidentes de trabalho.
administração) cresceu de 33% para 46%. Isso quer dizer que
O objetivo da universalização da previdência também foi
paralelamente à migração para as cidades houve um desloca¬ atingido. Em 1971, em pleno governo Médici, ponto alto da
mento maciço de pessoas do primário para o secund ário e para repressão, foi criado o Fundo de Assistência Rural (Funrural ),
o terciário. Dadas as condições de trabalho rural no Brasil, a que efetivamente incluía os trabalhadores rurais na previd ên¬
mudança não podia deixar de causar sensação de melhoria de cia. O Funrural tinha financiamento e administração separa¬
vida. dos do INPS. É sintomático que nem os governos militares
tenham ousado cobrar contribui ção dos proprietários rurais.
Mas n ão cobraram também dos trabalhadores. Os recursos
NOVAMENTE OS DIREITOS SOCIAIS do Funrural vinham de um imposto sobre produtos rurais,
pago pelos consumidores, e de um imposto sobre as folhas de
Houve outras mudanças. Ao mesmo tempo em que cercea¬ pagamento de empresas urbanas, cujos custos eram também,
vam os direitos políticos e civis, os governos militares inves¬ naturalmente, repassados pelos empresários para os consumi¬
tiam na expansão dos direitos sociais. O que Vargas e Goulart dores. De qualquer maneira, os eternos párias do sistema, os
n ão tinham conseguido fazer, em relação à unificação e trabalhadores rurais, tinham, afinal, direito a aposentadoria
universalização da previd ência, os militares e tecnocratas fi¬ e pensão, além de assistência médica. Por mais modestas que
zeram após 1964. O primeiro ministro do Trabalho dos go¬ fossem as aposentadorias, eram freqiientemente equivalentes,
vernos militares era um técnico da previdê ncia que colocou se não superiores, aos baixos sal ários pagos nas áreas rurais.
interventores nos institutos e preparou um plano de reforma A distribuição dos benefícios do Funrural, assim como de
com a ajuda de outros té cnicos, muitos deles nomeados outras formas de assistê ncia, foi entregue aos sindicatos ru ¬
interventores. rais. Em muitas localidades do interior, o único médico dis-

17 o 171
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

ponível, inclusive para os proprietários, passava a ser o médi¬ sentido e a expansão dos direitos sociais em momento de res¬
co do sindicato. A repressão inicial exercida contra esses sin¬ trição de direitos civis e políticos. "

dicatos, aliada as tarefas de assistência agora a eles atribuida,


contribuiu muito para reduzir sua combatividade política e
gerou dividendos políticos para os governos militares. O elei¬ PASSO ADIANTE: VOLTAM OS DIREITOS CIVIS E
torado rural os apoiou em todas as eleições. Parte desse apoio POLÍTICOS (1974 1985)
-
pode ser atribuída ao tradicional conservadorismo rural, mas
sem d úvida a legislação social contribuiu para refor çar essa Logo depois de empossado na presid ência da República, em
tradi ção. Como a previd ência rural não onerava os proprie¬ 1974, o general Ernesto Geisel deu indicações de que estava
tários e não se falava mais em reforma agr ária, também eles disposto a promover um lento retorno à democracia. S ão
tinham motivos para apoiar o governo. complexas as razões para o que se chamou de “ abertura”
Não ficaram aí as inovações no campo social. As duas ú ni¬ política. Discutiu -se muito se ela partiu dos militares ou da
cas categorias ainda exclu ídas da previdência empregadas pressão oposicionista. Há evidência suficiente para se admi¬

domésticas e trabalhadores autónomos foram incorpora¬
— tir que o pontapé inicial partiu do general e dos militares a
das em 1972 e 1973, respectivamente, tudo ainda no gover ¬ ele ligados. A oposição aproveitou com inteligência o espaço
no do general Médici. Agora ficavam de fora apenas os que que se abria e contribuiu decisivamente para levar a bom êxi¬
não tinham relação formal de emprego. Outras medidas ain¬ to a empreitada. Onze anos depois, era eleito o pftmeiro pre¬
da podem ser mencionadas. O primeiro governo militar, para sidente civil, marco final do ciclo militar.
atender a exigências dos empresários, acabara com a estabili¬
dade no emprego. Para compensar, foi criado em 1966 um A iniciativa do governo
Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), que funcio¬
nava como um seguro-desemprego. O fundo era pago pelos A abertura começou em 1974, quando o general presidente
empresários e retirado pelos trabalhadores em caso de demis¬ diminuiu as restri ções à propaganda eleitoral, e deu um gran¬
são. Criou-se també m um Banco Nacional de Habitação de passo em 1978, com a revogação do AI-5, o fim da censu¬
(BNH ), cuja finalidade era facilitar a compra de casa pr ópria ra pr évia e a volta dos primeiros exilados políticos. Por que
aos trabalhadores de menor renda. Como coroamento das teriam o general Geisel e seus aliados tomado a iniciativa de
políticas sociais, foi criado em 1974 o Ministério da Previ ¬ começar a desmontar o sistema autoritário ? Uma das possí¬
dência e Assistência Social . veis razões foi o fato de o general pertencer ao grupo de ofi¬
A avaliação dos governos militares, sob o ponto de vista ciais ligados ao general Castelo Branco, primeiro presidente
da cidadania, tem, assim, que livarTm contã ãimtênção militar. Esse grupo nunca pretendeu prolongar indefinidamen¬
do direito do voto combinada com o esvaziamento de seu
^ ^^ te o controle militar do governo. Eram liberais conservado -
172 173
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

res, ligados à Escola Superior de Guerra. Desagradava-lhes o como um todo o estigma de torturadores. A imagem da
populismo varguista, mas não eram partidários de uma dita- corporação ficara profundámente desgastada, o que não po¬
dura. Sua convicção pol ítica era liberal, embora não demo¬ dia interessar aos oficiais que tivessem visão mais profissio¬
cr ática. O general Castelo fora derrotado pelos setores mais nal do papel das for ças armadas, como era certamente o caso
autoritários das forças armadas, a linha dura, que colocaram do general Geisel e de seus amigos .
no poder o general Costa e Silva. O auge do poder dos linhas - Seja como for, em 1974 o general Geisel permitiu propa¬
duras foi durante o governo do general Médici. Com o gene¬ ganda eleitoral mais livre para as eleições legislativas desse ano.
ral Geisel voltavam os liberais conservadores. A oposição teve acesso à televisão e pôde falar com alguma
Havia outras razões para a abertura. Em 1973 tinha acon¬ liberdade. O resultado surpreendeu a todos, ao governo e à
tecido o primeiro choque do petr óleo, isto é, um aumento pr ó pria oposição. O governo foi amplamente derrotado nas
brusco no preço do produto, promovido pela OPEP, a Organi¬ eleições para o Senado. Havia 22 cadeiras em disputa, das
zação dos Países Exportadores de Petr óleo. A triplicação do quais a oposição, isto é, o MDB, ganhou 16 Nas eleições para
.
preço atingiu o Brasil com muita for ça, pois 80% do consumo a Câmara, o MDB não conseguiu maioria, mas aumentou sua
dependia do petróleo importado. O general Geisel fora presi¬ bancada de 87 para 165 deputados; a Arena caiu de 223 para
dente da Petrobras e podia bem avaliar a gravidade da situa¬ 199. Com isso o governo perdeu a maioria de dois ter ços,
ção. Os anos do “ milagre ” estavam contados e eram necessᬠnecessária para aprovar emendas constitucionais Assustado
.
rias novas estratégias para enfrentar os tempos difíceis que se com a derrota e sob pressão dos militares radicais, Geisel deu
anunciavam. Nessa conjuntura, seria melhor para o governo um passo atr ás. Com receio de nova derrota nas eleições de
e para os militares promover a redemocratização enquanto 1978, tentou fazer mudan ças na legislação eleitoral Como não
.
ainda houvesse prosperidade económica do que aguardar para podia mais contar com a maioria parlamentar necessária, sus¬
fazê-lo em época de crise, quando os custos da manuten ção pendeu o Congresso por 15 dias e decretou as mudanças
do controle dos acontecimentos seriam muito mais altos. salvadoras. Entre elas estavam a confirmação da eleição indi¬
Um terceiro argumento diz respeito às pr ó prias for ças ar¬ reta para governadores em 1978, a eleição indireta de um ter ço
madas. A ditadura tirara os militares de suas atividades pro¬ dos senadores, a limitação da propaganda eleitoral, sobretu¬
fissionais, atraíra-os para a vida pol ítica, para altos cargos na do na televisão, a eliminação da exigê ncia de dois ter ços dos
administração pública e privada. A ambi ção do poder e do votos para aprovação de reformas constitucionais .
lucro passara a predominar sobre as obrigações profissionais, Mas o retrocesso não interrompeu o movimento de aber ¬
minando o moral do oficialato. Mais ainda, a montagem dos tura. Em 1978, o Congresso votou o fim do AI-5, o fim da
aparelhos de repressão criara dentro das forças armadas um gru¬ censura pr é via no r ádio e na televisão, e o restabelecimento
po quase independente que ameaçava a hierarquia. Esse grupo do habeas corpus para crimes políticos. O governo ainda ate¬
envolvera-se em repressão e tortura, jogando sobre os militares nuou a Lei de Segurança Nacional e permitiu o regresso de

174 175
JOS É MURILO DE CARVALHO
CIDADANIA NO BRASIL

120 exilados políticos. Em 1979, já no governo do general


tro do partido graças ao amplo espaço existente para a discus¬
João Batista de Figueiredo, o Congresso votou uma lei de são interna.
anistia, havia muito exigida pela oposição. A lei era pol êmica
Outra medida liberalizante permitiu eleições diretas para
na medida em que estendia a anistia aos dois lados, isto é, aos
governadores de estados. Elas se realizaram pela primeira vez
acusados de crime contra a segurança nacional e aos agentes
de segurança que tinham prendido, torturado e matado mui¬ em 1982, junto com as eleições para o Congresso. A oposi¬
tos dos acusados. Além disso, não previa a volta aos quartéis
ção ganhou em nove dos 22 estados, inclusive nos mais im¬
portantes, como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, e
dos militares cassados e reformados compulsoriamente. Mas
conseguiu maioria na Câmara dos Deputados. Como ato fi¬
ela devolveu os direitos políticos aos que os tinham perdido e
ajudou a renovar a luta política. nal da transição, os militares se abstiveram de impor um ge ¬
Ainda em 1979, foi abolido o bipartidarismo forçado. neral como candidato à sucessão presidencial de 1985, em¬
Desapareceram Arena e MDB, dando lugar a seis novos par¬ bora tivessem mantido a elei ção indireta. Uma coalizão de
tidos. A Arena transformou-se no Partido Democr ático So¬
for ças da oposição e do partido do governo, PDS, levou à vi¬
tória do candidato oposicionista, Tancredo Neves, do PMDB,
cial (PDS), o MDB no Partido do Movimento Democr ático
Brasileiro (PMDB), os antigos trabalhistas do PTB dividiram- em janeiro de 1985. Por cruel ironia do fado, Tancredo mor¬
se em dois partidos, PTB e Partido Democr ático Trabalhista reu antes de assumir, causando um trauma nacional. Assumiu
(PDT), este último sob a liderança de Leonel Brizóla, recém-
seu vice, José Sarney, antigo servidor dos militases. Mas era
retornado do exílio. Os moderados do MDB reuniram-se em um civil, eleito pela oposi ção. Chegara ao fim o per íodo de
governos militares, apesar de permanecerem resíduos do
torno do Partido Popular ( PP), que logo depois voltou a fun-
autoritarismo nas leis e nas pr áticas sociais e políticas.
dir-se com o PMDB. A grande novidade no campo partidá¬
Outras medidas importantes do general Geisel foram to¬
rio, no entanto, foi a criação do Partido dos Trabalhadores
(PT), em 1980. Todos os partidos brasileiros, antes e depois
madas na área da repressão. Como foi visto, os órgãos de re¬
pressão tinham adquirido durante o governo do general
de 1964, com exceção do Partido Comunista, tinham sido
criados por políticos profissionais ou por influência do Po ¬ Médici grande independência, inclusive em relação à própria
presid ê ncia da Rep ública. Eram um quisto dentro do gover¬
der Executivo, e haviam sido sempre dominados por mem¬
bros da elite social e econó mica. O PT surgiu de reuni ão no. O general Geisel buscou restabelecer o controle sobre eles.
¬

ampla e aberta de que participaram centenas de militantes. Os anos cruciais foram 1975 e 1976. Em 1975, um conheci
Sustentou-se em tr ês grupos principais, a ala progressista da do jornalista, Vladimir Herzog, tendo-se apresentado espon¬
taneamente aos órg ãos de seguran ça do II Ex é rcito, de São
Igreja Católica, os sindicalistas renovadores, sobretudo os
metalúrgicos paulistas, e algumas figuras importantes da inte¬ Paulo, apareceu morto na cela no dia seguinte. Como já havia
maior liberdade de imprensa, o fato teve ampla divulgação e
lectualidade. Eram grupos heterogéneos que conviviam den-
gerou protestos. Os órg ãos de segurança alegaram, como de
176
177
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRAS IL

costume, que teria havido suicídio, versão em que ningu ém Digo retomada e renovação porque em alguns casos trata¬
acreditava. No ano seguinte, outro caso semelhante, agora com va-se de renascimento, em outros do surgimento de movi¬
o operário Manoel Fiel Filho, se deu no mesmo local. Desta mentos novos ou com características novas. O fenômeno
vez o presidente deixou clara sua discord ância, demitindo o tornou -se possível inicialmente gra ças às medidas libera¬
comandante do II Exército, sob cuja jurisdição os crimes ti¬ lizantes de Geisel, mas, com o correr do tempo, ele apres¬
nham acontecido. sou e reorientou a abertura.
Era a primeira vez, desde 1964, que um presidente mili¬ Já foi mencionada a luta do partido de oposição, o MDB,
tar desautorizava abertamente a ação da repressão, e o fato e seu dilema hamletiano: ser ou n ão ser. A maioria do partido
indicou que algo se modificava nessa área. Em 1977, o ge ¬ optou por mant ê-lo vivo, apesar das constantes cassaçõ es de
neral Geisel confirmou sua autoridade sobre a linha dura mi¬ mandatos e violações da lei por parte do governo. Mantinha-
litar, demitindo seu ministro da Guerra, que se opunha à po¬ se com isso a possibilidade de haver sempre uma voz cr ítica,
lítica de abertura. A direita militar ainda resistiu durante o embora fr ágil, no Congresso. Os resultados positivos dessa
governo do general Figueiredo, recorrendo a açõ es terroris¬ opção não apareceram até 1974. Nas eleições para o Congres¬
tas nos anos de 1980 e 1981. Os atos de maior repercuss ão so, em 1966 e 1970, boa parte do eleitorado manifestou seu
aconteceram no Rio de Janeiro. Em 1980 foi morta asecr é - desencanto abstendo-se ou anulando o voto. Apesar de ser o
tária da OAB, Ana Lídia, devido à explosão de uma carta - voto obrigatório e haver puniçõ es para os faltbsos, a absten ¬
bomba. Em 1981, explodiu uma bomba no Riocentro du ¬ ção foi de 23% nas duas elei ções. Os votos brancos e nulos
rante espetáculo musical em homenagem ao Primeiro de foram 21% em 1966 e 30% em 1970. Isto é, entre 40% e 50%
Maio, matando um sargento envolvido no atentado. Embo¬ do eleitorado manifestou sua descrença nos partidos e no
ra tivesse sido escolhido pelo general Geisel para ocupar a Congresso.
presid ência, o general Figueiredo n ão tinha a mesma vonta¬ Em 1973, contra a opini ão dos radicais do partido, o MDB
de política de seu antecessor para acabar com o terrorismo lançou seu presidente, Ulysses Guimar ães, candidato à presi ¬
militar. Foi conivente com a farsa de um inqu érito montado dência da República para concorrer com o general Geisel. A
pelo Ex ército para acobertar os responsáveis pelo atentado luta era puramente simbólica, pois a Arena detinha o contro ¬
do Riocentro. O desmantelamento do sistema repressivo só le do colégio eleitoral. Mas para as lideranças do MDB signifi¬
cou nova oportunidade de denunciar a farsa eleitoral, enfren ¬
foi feito nos anos 90.
tando o cinismo dos líderes da Arena, que insistiam no cará¬
Renascem os movimentos de oposição ter democr ático da eleição e acusavam de antidemocr ática a
posi ção do MDB. Os resultados positivos da luta solitária do
Paralelamente às medidas de abertura, houve, a partir de partido surgiram nas elei ções de 1974. Podendo ter acesso à
1974, a retomada e renovação de movimentos de oposi ção . televisão, o MDB conseguiu motivar o eleitorado e derrotar

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CIDADANIA NO BRASIL
JOS É MURILO DE CARVALHO

tica do novo sindicalismo, em contraste radical com o antigo


o governo nas eleições para o Senado e quase igualar a Arena sistema, era a insistência em se manter independente do con¬
nos votos para a Câmara. Daí em diante, ele foi um dos pila¬ trole do Estado. Não era movimento paralelo ao anterior: bus¬
res do processo de abertura, até eleger um de seus membros, cava transformar o sistema antigo em representação autênti¬
Tancredo Neves, primeiro presidente civil depois de 1960. ca do operariado. Essa tend ência consolidou-se com a forma¬
Inovação houve, e grande, na criação do PT e no movi¬ ção de organizações sindicais nacionais. Reuniu se em 1981,
-
mento sindical. Sobre o primeiro já se falou. A inovação no a primeira Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras
movimento sindical veio sobretudo dos operários de setores (Conclat) para criar uma entidade nacional, ignorando a proi¬
novos da economia que se tinham expandido durante o “mi¬ bição legal ainda em vigor. Dividiam-se os trabalhadores em
lagre” do período M é dici: o de bens de consumo durável e de duas tendências principais, os ligados a Lula, que insistiam no
bens de capital. Eram os metal ú rgicos de empresas automo¬ fortalecimento das bases e na greve como instrumento de ação,
bilísticas multinacionais e de empresas nacionais de siderur¬ e os ligados ao Partido Comunista, que ainda pensavam no
gia e máquinas e equipamentos, concentrados nas cidades controle das cú pulas e nas alian ças políticas típicas da pr ática
industriais ao redor de São Paulo. O movimento começou em .
anterior A reunião não chegou a um acordo. Após dois anos
1977, com uma campanha por recuperação salarial, e culmi ¬ de debates, o movimento dividiu-se em duas organizações
nou em 1978 e 1979, com grandes greves que se estenderam nacionais, a Central Única dos Trabalhadores ( CUT), dos que
a outras partes do país. Em 1978, cerca de 300 mil operários se chamavam “autê nticos”, vinculados ao PT, e a Coordena¬
¬
entraram em greve; em 1979, acima de 3 milhões, abrangen ção Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat), ligados ao
do as mais diversas categorias profissionais, inclusive traba¬ PMDB e ao Partido Comunista. A postura mais agressiva da
lhadores rurais. Eram as primeiras greves desde 1968. CUT lhe rendeu maiores ganhos nas lutas sindicais e maior
O novo movimento distinguia-se do sindicalismo herdei ¬ influência sobre as categorias profissionais mais modernas. A
ro do Estado Novo em vários pontos. Um deles era o de ser Conclat tinha influência sobre grande número de sindicatos
organizado de baixo para cima, de começar na fábrica, sob a .
menores e mais tradicionais Transformou-se em 1986 em
lideran ça de oper ários que vinham das linhas de produ ção, Central Geral dos Trabalhadores (CGT), refer ência à organi¬
em contraste com a estrutura burocratizada dominada pelos zação criada no início dos anos 60.
pelegos. Grande ênfase era dada às comissões de f ábrica e aos Outro aspecto da luta pela independência dos sindicatos
delegados sindicais que funcionavam dentro das fábricas. As era a busca de negociação direta com os empregadores por
decisões finais eram tomadas em grandes assembléias que reu ¬ meio de contratos coletivos, fugindo da justiça do trabalho.
¬
niam às vezes até 150 mil oper ários, e não por pequenos co De início, houve reação do governo, intervenção nos sindica¬
mités de dirigentes. Os novos l íderes tinham grande carisma, tos, brutalidade policial, prisão de líderes, inclusive do pró¬
sobretudo Lu ís In á cio da Silva, Lula, que se tornou um dos prio Lula. Aos poucos, a pr ática foi sendo aceita, em parte
principais nomes da vida política nacional. Outra caracterís-
181
18o
JOSÉ MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

talvez por terem os oper ários como interlocutoras as grandes tinham a vantagem de um contato estreito com as bases, o que
empresas multinacionais acostumadas a esse tipo de negocia¬ não se dava com os grupos guerrilheiros.
ção. Aos poucos, os alicerces da CLT iam sendo minados. Dentro da Igreja Católica, no espírito da teologia da li¬
Era também nova a forte presen ça de sindicatos rurais. bertação, surgiram as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
Ausentes até 1963, eles não tiveram seu crescimento inter ¬ A Igreja começou a mudar sua atitude a partir da Segunda
rompido durante os governos militares. Os líderes mais mi ¬ Conferência dos Bispos Latino-Americanos, de 1968, em
litantes foram afastados, os sindicatos mais agressivos sofre¬ Medellin. Em 1970, o próprio Papa denunciou a tortura no
ram intervenção. Mas continuaram a crescer, transformados Brasil. A hierarquia católica moveu-se com firmeza na dire¬
em órgãos assistencialistas. O nú mero de sindicatos rurais ção da defesa dos direitos humanos e da oposição ao regime
cresceu rapidamente, a ponto de em 1979 ser praticamente militar. Seu ó rgão m áximo de decisão era a Confer ê ncia Na¬
igual o n úmero de trabalhadores sindicalizados rurais e ur¬ cional dos Bispos do Brasil (CNBB). A reação do governo le¬
banos (5 milhões para cada lado). Como sindicatos assisten¬ vou a prisões e mesmo a assassinatos de padres. Mas a Igreja
cialistas, n ão se podia esperar grande mobilização política como um todo era poderosa demais para ser intimidada, como
de sua parte. Mas a pr ópria natureza violenta dos conflitos o foram os partidos políticos e os sindicatos. Ela se tornou
de terra e a ação da Igreja Católica por meio de sua Comis¬ um baluarte da luta contra a ditadura.
são Pastoral da Terra contribuíram para alterar o quadro. Em As CEBs surgiram em torno de 1975. Antes de 1964, os
1979 houve greves entre os cortadores de cana de setores militantes da Igreja atuavam nos sindicatos e no movi¬
Pernambuco, e a Confederação Nacional dos Trabalhadores mento estudantil por meio da Juventude Oper ária Católica
na Agricultura (Contag) colocou-se à mesma altura das ou¬ (JOC) e das Juventudes Estudantil e Universitária Católicas (JEC
tras confederações nas negociações nacionais para a forma¬ e JUC). Dentro do novo espírito de aproximar-se do povo,
ção de uma central sindical, embora sem o poder de fogo de sobretudo dos pobres, a Igreja passou a trabalhar também com
suas cong é neres. as populações marginalizadas das periferias urbanas. O traba¬
Fora do mundo partidário e sindical, houve também gran¬ lho religioso ligava-se diretamente às condições sociais desses
des modificações no movimento popular. Após o fracasso da grupos e era ao mesmo tempo um esfor ço de conscientização
guerrilha no início dos anos 70, desapareceram as várias or ¬ política. Alguns teóricos da teologia da libertação aproxima¬
ganizações militarizadas formadas a partir de 1968. Muitos ram-se abertamente do marxismo. As CEBs expandiram-se por
de seus membros foram presos, exilados, mortos, ou deixa¬ todo o país, abrangendo também as áreas rurais. Por volta de
ram a militância por perceberem a impossibilidade de uma 1985, seu nú mero estava em torno de 80 mil. A atuação políti¬
solu ção revolucion ária por meios violentos. Em seu lugar, ca fez com que elas se aproximassem do PT, apesar dos esfor¬
desenvolveram-se outras organizações, civis ou religiosas, cujas ços da hierarquia em evitar vinculação partidária. A identifica¬
finalidades nem sempre eram diretamente políticas, mas que ção com o PT já era nítida nas eleições de 1982. Sem discutir

182 183
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

as dificuldades que tal envolvimento político poderia trazer, ranças políticas. Muitos presidentes de associações ingressa¬
¬
inclusive para a dimensão religiosa da ação da Igreja, é impor ram na política partidária.
tante notar que as CEBs constitu íam outro exemplo da tend ên¬ Houve ainda grande expansão de associações de profissio¬
cia dos anos 80 de abandonar orientações de cúpula e buscar o nais de classe média, como professores, médicos, engenhei¬
contato direto com a população. Isto se verificou no movimento ros, funcion ários públicos. Muitas dessas associações coexis¬
sindical, no PT, nas CEBs e nos chamados movimentos sociais tiam com os sindicatos, mas para as categorias profissionais
urbanos de que se fala a seguir. proibidas de se sindicalizar, como os funcionários públicos,
Desde a segunda metade dos anos 70, acompanhando o elas eram os ú nicos canais de atuação coletiva. As associações
início de abertura do governo Geisel, houve enorme expan ¬ de classe média, juntamente com os sindicatos, tornaram-se
são dos movimentos sociais urbanos. Como diz o nome, eram focos de mobilização profissional e política. À medida que os
movimentos típicos das cidades, sobretudo das metr ópoles. efeitos do “ milagre” desapareciam, as greves dos setores mé¬
¬
Entre eles estavam os movimentos dos favelados. Eles já exis dios tornaram-se mais ffeq ü entes do que as greves oper árias.
tiam desde a d écada de 40 mas adquiriram maior for ça e visi¬ A pr ópria CUT teve sua composi ção alterada pela adesão
bilidade nos anos 70. A eles se juntaram as associações d è desses sindicatos de classe média.
moradores de classe média, que se multiplicaram da noite para Além do MDB e da Igreja Católica, duas outras organiza¬
o dia. No início dos anos 80 já havia mais de 8 mil delas no ções se afirmaram como pontos de resistê ncia ao governo
país. militar. A primeira delas foi a Ordem dos Advogados do Bra¬
Esses dois tipos de organização se caracterizavam por es¬ sil (OAB). Criada em 1930 por decreto do governo, a OAB
tarem voltados para problemas concretos da vida cotidiana. de início sofreu oposição da maioria dos advogados, que ti ¬
Á enorme expansão da população urbana causara grande de¬ nham organização própria, o Instituto dos Advogados do Bra¬
¬
terioração nas condições de vida, de vez que as administra sil, criado em 1843J Concebida dentro do espírito corporativo,
ções municipais não conseguiam expandir os serviços na mes- a OAB significava para eles perda de liberdade e de autono ¬
; ma rapidez. O que os movimentos pediam eram medidas ele- mia. Mas aos poucos ela conseguiu atrair advogados influen¬
j mentares, como asfaltamento de ruas, redes de água e de es- tes e se firmou como representante da classe. Sua posição em
I goto, energia elé trica, transporte público, segurança, serviços relação ao movimento de 64 foi de início ambivalente, divi ¬
de saúde. Os movimentos de favelados reclamavam ainda a dindo-se seus membros entre o apoio e a oposição. À medida
legalização da posse de seus lotes. A tática mais comum dos que o regime se tornava mais repressivo, a OAB evoluiu para
movimentos de moradores e favelados era o contato direto uma tímida oposição. A partir de 1973, no entanto, assumiu
com as administrações municipais. Embora sem conotação oposição aberta. Muitos advogados e juristas continuaram,
partid ária, esses movimentos representaram o despertar da naturalmente, a prestar seus servi ços ao governo, redigindo
¬
consciê ncia de direitos e serviram para o treinamento de lide os atos de exceção, defendendo-os, assumindo postos no Exe -
184 18S
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cutivo. Vários juristas de prestígio ocuparam o Ministé rio da dores, como O Estado de S. Paulo, não aceitavam a censura.
Justiça. Esse jornal, um dos mais sólidos e tradicionais do país, foi dos
A OAB, no entanto, em parte por convicção, em parte que mais resistiram à censura. Nos piores momentos, deixa¬
por interesse profissional, caminhou na direção oposta. O va espaços em branco na primeira página, denunciando not í¬
interesse profissional era óbvio, na medida em que o estado cias censuradas, ou então publicava poemas de Camões, ou
de exce ção reduzia o campo de atividade dos advogados. O receitas culinárias. O interesse profissional não tira, é claro, o
AI-5, como vimos, excluía da apreciação judicial os atos pra¬ mérito da luta. A ABI ajudou a reconstruir a democracia. Seu
ticados de acordo com suas disposições. As intervenções no presidente, Barbosa Lima Sobrinho, foi candidato à vice-pre-
Poder Judiciário também desmoralizavam a justiça como um sid ência da Repú blica na chapa da oposição em 1984.
todo. Os juízes eram atingidos diretamente, mas, indireta¬ A terceira instituição a assumir papel político importante
mente, igualmente os advogados eram prejudicados. Mui¬ foi a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
tos membros da OAB, por ém, agiam tamb ém em função de Fundada em 1948, a SBPC se dedicava exclusivamente a as-
uma sincera cren ça na import ância dos direitos humanos. A suntos profissionais relacionados à pesquisa cient ífica. Dela
V Confer ência anual da Ordem, realizada em 1974, foi participavam pesquisadores de todas as áreas do conhecimen¬
dedicada exatamente aos direitos humanos. A OAB tornou - to, das ciê ncias exatas às ciências humanas. Uma vez por ano,
se daí em diante uma das trincheiras de defesa da legalidade promovia uma grande reunião com milhares de participantes
constitucional e civil Como represália, o governo tentou
. para debate de temas científicos. Durante os governos milita¬
retirar sua autonomia, vinculando a ao Ministério do Tra¬
- res, as reuni ões anuais come çaram a adquirir crescente
balho, mas sem êxito. Em 1980, seu presidente foi alvo do conota ção política de oposi ção. Em 1977, o governo tentou
atentado em que perdeu a vida uma secretária. O prestígio impedir a reunião anual, suspendendo todo o apoio financei ¬
político da OAB atingiu o auge em 1979, quando seu presi¬ ro que tradicionalmente era dado para essa finalidade. A reu¬
dente, Raimundo Faoro, foi cogitado como candidato da nião foi realizada na Pontifícia Universidade Católica de São
oposição à presidência da República. Paulo, à revelia do governo, em clima emocional de confron¬
Outra instituição atuante na resistência foi a Associação to político. O n ú mero de participantes das reuni ões cresceu
Brasileira de Imprensa (ABI), cuja tradição de luta era menos muito, atingindo 6 mil na reunião de 1977. O mundo acadê¬
ambígua do que a da OAB. Em seu caso também, o interesse mico tinha nessas ocasiõ es oportunidade ímpar de manifes¬
corporativo era inegável A profissão de jornalista exige liber¬
. tar sua oposição .
dade de expressão e de informação para poder exercer-se com Menos organizados, mas não menos eficientes na ação
plenitude. A censura à imprensa e aos meios de comunicação oposicionista, foram os artistas e intelectuais. Apesar da cen¬
em geral, sobretudo a censura pr évia, não podia deixar de sura, compositores e m úsicos foram particularmente eficazes
.
merecer a repulsa dos jornalistas Mesmo jornais conserva¬ graças a sua grande popularidade. O nome que melhor per -
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sonificou a resistência foi, sem d úvida, o de Chico Buarque A ampla cobertura da imprensa, inclusive da Rede Globo,
de Holanda, cujas canções se transformaram em hinos opo¬ tornava quase impossível deter o movimento. Interrompê-
sicionistas. Embora a crítica direta fosse proibida, para bom lo só seria possível com uso de muita violência, uma tática
entendedor as letras eram suficientemente claras. Com me¬ que poderia ser desastrosa para o governo.
nor alcance, atores, humoristas, intelectuais em geral deram Os comícios transformaram-se em grandes festas cívicas.
sua contribuição à luta pela redemocratização, pagando às Compareciam os líderes dos partidos de oposição, os presi¬
vezes o preço da prisão ou do exílio. dentes de associações influentes como a ABI e a OAB, e, so¬
O auge da mobilização popular foi a campanha pelas elei¬ bretudo, os mais populares jogadores de futebol, cantores e
es
çõ diretas, em 1984. As eleições estavam previstas para ja¬ artistas de televisão. Músicas populares de protesto eram can¬
neiro de 1985 e seriam feitas por um colégio eleitoral que tadas com acompanhamento da multidão, tudo sempre em
incluía senadores, deputados federais e representantes das perfeita ordem. As cores nacionais, o verde e o amarelo, tin¬
assembléias estaduais. Desta vez, as for ças de oposição deci¬ giam roupas, faixas, bandeiras. A bandeira nacional foi recu ¬
diram ir além do simples lançamento de um candidato que perada como símbolo cívico. A última vez em que fora usada
competisse simbolicamente com o candidato oficial. Sob a li¬
publicamente tinha sido nas manifestações de nacionalismo
derança do PMDB, com a participação dos outros partidos
conservador e xenófobo do governo Médici. Mais que tudo,
de oposição, da CNBB, OAB, ABI e outras organizações, lan¬
o hino nacional foi revalorizado e reconquistado pelo povo.
çou-se uma campanha de rua pela elei ção direta do presiden¬
Ao final de cada comício, era cantado pela multidão num es¬
te. O objetivo imediato era for çar o Congresso, onde o go¬
petáculo que a poucos deixava de impressionar e comover.
verno detinha maioria simples, a aprovar emenda à Consti¬
tuição que permitisse a eleição direta. A emenda teria que ser
Uma versão personalizada do hino, executada por Faf á de
aprovada por dois ter ços dos votos, o que exigia que parte do Belém, tornou-se o grande símbolo da campanha.
PDS, partido do governo, a apoiasse. Faltaram 22 votos para a maioria de dois ter ços em fa¬
A campanha das diretas foi, sem dúvida, a maior mobi¬ vor da emenda. Os 55 votos dos dissidentes do PDS não
lização popular da história do país, se medida pelo número foram suficientes para a vitória das diretas. Apesar da frus¬
de pessoas que nas capitais e nas maiores cidades saíram às tração, a campanha das ruas n ão foi inú til. A oposição lan¬
ruas. Ela começou com um pequeno comício de 5 mil pes¬ çou o experiente Tancredo Neves, governador de Minas
soas em Goiânia, atingiu depois as principais cidades e ter ¬ Gerais, como candidato para enfrentar o candidato oficial.
minou com um comício de 500 mil pessoas no Rio de Janei¬ O candidato a vice-presidente foi escolhido entre dissiden¬
ro e outro de mais de 1 milh ão em São Paulo. Tentativas tes do PDS que tinham formado o Partido da Frente Liberal
espor ádicas de impedir as manifestações, partidas de alguns (PFL). A eleição seria feita em um colégio eleitoral domina¬
militares inconformados com a abertura, n ão tiveram êxito. do pelo governo. Foi intensa a campanha em favor de

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Tancredo Neves. Pesquisas de opinião pública lhe davam a direitos políticos foi também maior. O custo externo também
prefer ência de 69% da população. A pressão popular sobre foi maior, pois a situação internacional não era favor ável ao
os deputados governistas desta vez foi irresistível. Tancredo autoritarismo, em contraste com a década de 30 Os custos
.
Neves ganhou 480 votos do colégio eleitoral, contra 180 interno e externo eram tão altos que os militares mantiveram
¬
dados ao candidato do governo. Terminava o ciclo dos go uma fachada de democracia e permitiram o funcionamento
vernos militares. dos partidos e do Congresso.
Outra razão é que um dos aspectos da política social dos
governos militares — a uniformização e unificação do siste ¬
I
V'
' v' ¬
UM BALANÇO DO PER ÍODO MILITAR „ I , ; ma previdenciário — feria interesses corporativos da máqui
s %0
/ /' P > na sindical montada durante o Estado Novo. Como foi visto,

essa máquina controlava os institutos de aposentadoria e pen ¬
Como avaliar os 21 anos de governo militar sob o ponto de
j vista da construção da cidadania? Houve retrocessos claros, sõ es das v árias categorias profissionais. Como a cúpula sindi ¬

Jhouve avanços também claros, a partir de 1974, e houve situa- cal se politizara muito nos anos 60, a racionalização previ-
| ções ambíguas Comecemos pela relação entre direitos sociais
. denciária significou para ela uma perda política e, portanto,
e políticos Nesse ponto os governos militares repetiram a
. um custo para o governo .
j Uma terceira razão tem a ver com o setor rural Foi sobre
.
| tática do Estado Novo: ampliaram os direitos sociais, ao mes-
i mo tempo em que restringiam os direitos políticos. O perío- ele, sem dúvida, que a ação social do governo se fe sentir com
| do democr ático entre 1945 e 1964 se caracterizara pelo opos- *
maior for ça e redundou em ganho político muito grande. Mas
j to: ampliação dos direitos políticos e paralisação, ou avanço pode-se também dizer que o ganho político da extensão da
i lento, dos direitos sociais. Pode-se dizer que o autoritarismo legislação social ao campo foi menor do que o conseguido por
brasileiro pós-30 sempre procurou compensar a falta de li- Vargas ao estendê-la ao setor urbano O operariado urbano
.
\ berdade política com o paternalismo social. Na década de 30, era mais militante e crescia rapidamente Neutralizá-lo e
.
^ \ sobretudo durante o Estado Novo, a tática teve grande êxito, cooptá-lo politicamente foi uma façanha consider ável Em .
como atestam a popularidade do varguismo e sua longa vida contraste, o setor rural em 1964 tinha apenas um ano de
sindicalização intensa. Além disso, a população rural declina ¬
na política nacional. O corporativismo sindical e a visão do
¬ va rapidamente Daí o impacto social menor que o obtido no
.
Poder Executivo como dispensador de benefícios sociais fica
¬ Estado Novo.
ram gravados na experiência de uma geração inteira de tra
balhadores A eficácia da tática foi menor no período militar
. . Entende-se, assim, mais facilmente, por que o apoio aos
Uma das raz õ es para o fato foi que a mobilização política governos militares foi passageiro. O “milagre” económico dei¬
xara a classe média satisfeita, disposta a fechar os olhos à per¬
anterior ao golpe foi muito maior do que a que precedeu 1930 .
Como conseqiiência, o custo,para o governo, de suprimir os da dos direitos políticos. Os trabalhadores rurais sentiam-se pela

190 191
JOS É MURILO DE CARVALHO
CIDADANIA NO BRASIL

primeira vez objeto da atenção do governo. Os oper ários urba¬


¬
em 1984 foi o ponto culminante de um movimento de
nos, os mais sacrificados, pelo menos não perderam seus direi mobilização pol ítica de dimensões inéditas na história do país.
tos sociais e ganharam alguns novos. Enquanto durou o alto Pode-se dizer que o movimento pelas diretas serviu de apren¬
crescimento, eles tinham mais empregos, embora menores sa¬ dizado para a campanha posterior em favor do impedimento
lários. Mas, uma vez desaparecido o “milagre ”, quando a taxa de Fernando Collor, outra importante e inédita demonstra¬
de crescimento começou a decrescer, por volta de 1975, o cré¬ ção de iniciativa cidadã.
¬
dito do regime esgotou-se rapidamente. A classe média inquie Apesar do desapontamento com o fracasso da luta pelas
tou-se e começou a engrossar os votos da oposição. Os oper á¬
¬
diretas e da frustração causada pela morte de Tancredo Ne ¬
rios urbanos retomaram sua luta por sal ários e maior autono ves, os brasileiros iniciaram o que se chamou de “ Nova Re¬
mia. Os trabalhadores rurais foram os ú nicos a permanecer p ú blica” com o sentimento de terem participado de uma gran¬
governistas. As zonas rurais foram o último bastião eleitoral do de transformação nacional, de terem colaborado na criação
regime. Mas, como seu peso era declinante, não foi capaz de de um país novo. Era uma euforia compar ável àquela que
compensar a grande for ça oposicionista das cidades. .
marcou os anos de ouro de Juscelino Kubitschek Certamen¬
Assim, o efeito negativo da introdução de direitos sociais te era muito mais autê ntica e generalizada do que a da con ¬
em momento de supressão de direitos pol íticos foi menor quista da Copa em 1970, marcada pela xenofobia e mancha¬
durante os governos militares do que no Estado Novo. Se o da pelo sofrimento das vítimas da repressão. ¿
apoio ao governo Mé dici revelou baixa convicção democr á ¬ Os avan ços nos direitos sociais e a retomada dos direitos
¬
tica, o r ápido abandono do regime mostrou maior indepen políticos não resultaram, no entanto, em avanços dos direi¬
d ê ncia pol ítica da população. Do mesmo modo, se a manu ¬ tos civis. Pelo contrário, foram eles os que mais sofreram du ¬
ten ção de elei çõ es conjugada ao esvaziamento do papel dos rante os governos militares. O habeas corpus foi suspenso para
partidos e do Congresso era desmoralizadora para a demo¬ crimes políticos, deixando os cidadãos indefesos nas mãos dos
cracia, a população mostrou que, no momento oportuno, era agentes de seguran ça. A privacidade do lar e o segredo da
¬
capaz de revalorizar a representação e usá-la contra o go correspondência eram violados impunemente. Prisões eram
-
verno. ... feitas sem mandado judicial, os presos eram mantidos isola¬
Ainda do lado positivo, a queda dos governos militares teve dos e incomunicáveis, sem direito a defesa. Pior ainda: eram
muito mais participação popular do que a queda do Estado submetidos a torturas sistemáticas por métodos bárbaros que
Novo, quando o povo estava, de fato, ao lado de Vargas. A não raro levavam à morte da vítima. A liberdade de pensa¬
ampliação dos mercados de consumo e de emprego e o gran- \ mento era cerceada pela censura pr évia à mídia e às manifes¬
| de crescimento das cidades durante o período militar criaram tações artísticas, e, nas universidades, pela aposentadoria e
condi ções para a ampla mobilização e organização social que cassação de professores e pela proibição de atividades políti¬
aconteceram após 1974./ O movimento pelas eleições diretas cas estudantis.

19 2
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O poder judiciário, em tese o garantidor dos direitos ci¬ controladas por traficantes, devido à ausência da segurança
vis, foi repetidamente humilhado. Ministros do Supremo Tri¬ pú blica. Seus habitantes ficavam entre a cruz dos traficantes e
bunal foram aposentados e tiveram seus direitos políticos cas¬ a caldeirinha da polícia, e era muitas vezes dif ícil decidir qual
sados. Outros não fizeram honra à instituição, colaborando a pior opção. Pesquisas de opinião pública da é poca indica¬
com o arbítrio. O n ú mero de ministros foi aumentado para vam a seguran ça pú blica como uma das demandas mais im¬
dar maioria aos partidários do governo. Além disso, a legisla¬ portantes dos habitantes das grandes cidades.
ção de exceção, como o AI-5, suspendeu a revisão judicial dos A precariedade dos direitos civis lançava sombras amea¬
atos do governo, impedindo os recursos aos tribunais. çadoras sobre o futuro da cidadania, que, de outro modo,
Como conseqiiência da abertura, esses direitos foram res¬ parecia risonho ao final dos governos militares.
tituídos, mas continuaram beneficiando apenas parcela redu¬
zida da população, os mais ricos e os mais educados. A maio¬
ria continuou fora do alcance da proteção das leis e dos tri¬
bunais. A forte urbanização favoreceu os direitos políticos mas
levou à formação de metr ópoles com grande concentra ção de
populaçõ es marginalizadas. Essas populações eram privadas
de servi ços urbanos e també m de servi ços de segurança e de
justiça. Suas reivindicações, veiculadas pelas associações de
moradores, tinham mais êxito quando se tratava de serviços
urbanos do que de proteção de seus direitos civis. As polícias
militares, encarregadas do policiamento ostensivo, tinham sido
colocadas sob o comando do Ex ército durante os governos
militares e foram usadas para o combate às guerrilhas rurais e
urbanas. Tornaram-se completamente inadequadas, pela filo ¬
sofia e pelas táticas adotadas, para proteger o cidadão e res¬
peitar seus direitos, pois só viam inimigos a combater. A polí¬
cia tornou-se, ela pr ó pria, um inimigo a ser temido em vez de
um aliado a ser respeitado.
A expansão do tr áfico de drogas e o surgimento do crime
organizado aumentaram a violência urbana e pioraram ainda
mais a situação das populaçõ es faveladas. Muitas favelas, so¬
bretudo em cidades como o Rio de Janeiro, passaram a ser

194 195
CAPí TULO iv: A cidadania após a
redemocratização
¬
Apesar da tragédia da morte de Tancredo Neves, a retoma
¬
da da supremacia civil em 1985 se fez de maneira razoavel
mente ordenada e, até agora, sem retrocessos Ajconstituin-
^
te de 1988 redigiu e aprovou_a constituição mais libera!» e
democrática que o país já teve, merecendo por isso cTnome
^

de Constituição Cídadll Em 1989, houve a primeira eleição


. ¬
direta para presidente da República desde 4960 Duas ou
¬
tras eleiçõ es presidenciais se seguiram em cTima de normali
dade, precedidas de um inédito processo de impedimento
¬
do primeiro presidente eleito Os direitos políticos adquiri
.
¬
.
ram amplitude nunca antes atingida No entanto, a estabili
dade democr ática não pode ainda ser considerada fora de
perigo A democracia política não resolveu os problemas
. ¬
económicos mais sérios, como a desigualdade e o desempre
.
go Continuam os problemas da área social, sobretudo na
¬
educação, nos servi ç os de saúde,e saneamento, é houve agra
vamento da situação dos direitos civis no que se refere à se-
gurança individual Finalmente, as r ápidas transformaçõ es
.
da economia internacional contribuíram para pôr em xeque
a pr ópria no ção tradicional de direitos que nos guiou desde
a independência Os cidadãos brasileiros chegam ao final do
pfilênio, 5 00 anos ap ós a conquista dessas terras pelos portu-

99
JOS É MURILO DE CARVALHO
CIDADANIA NO BRASIL

gueses e 178 anos ap ós a funda ção do país, envoltos num da população e apenas durante per íodo curto da vida. Na
misto de esperança e incerteza. eleição presidencial de 1989, votaram 72,2 milhões de elei¬
tores; na de 1994, 77,9 milh ões; na última elei ção, em 1998,
83,4 milhões, correspondentes a 51% da população, porcen¬
A EXPANSÃO FINAL DOS DIREITOS POLÍTICOS tagem jamais alcançada antes e comparável, até com vanta¬
gem, à de qualquer país democr ático moderno. Em 1998, o
A Nova República começou em clima de otimismo, embalada eleitorado inscrito era de 106 milhões, ou seja, 66% da po¬
pelo entusiasmo das grandes demonstrações cívicas em favor pulação.
das elei ções diretas. O otimismo prosseguiu na eleição de 1986 Também em outros aspectos a legislação posterior a 1985
para formar a Assembl é ia Nacional Constituinte, a quarta da
foi liberal. Ao passo que o regime militar colocava obstáculos
República. A Constituinte trabalhou mais de um ano na reda¬
à organização e funcionamento dos partidos pol íticos, a le ¬
ção da Constituição, fazendo amplas consultas a especialistas
gislação vigente é muito pouco restritiva. O Tribunal Superi ¬
e setores organizados e representativos da sociedade. Final ¬
or Eleitoral aceita registro provisório de partidos com a assi¬
mente, foi promulgada a Constituição em 1988, um longo e
natura de apenas 30 pessoas. O registro provisó rio permite
minucioso documento em que a garant ía dos direitos do ci¬
dad ão era preocupação central. que o partido concorra às eleições e tenha acesso gratuito à
A Constituição de 1988 eliminou o grande obstáculo ain¬ televisão. Foi também extinta a exigência de fidelidade parti¬
da existente à universalidade do voto, tornando-o facultativo dária, isto é, o deputado ou senador não é mais obrigado a
aos analfabetos. Embora o n ú mero de analfabetos se tivesse permanecer no partido sob pena de perder o mandato. Sena ¬
reduzido, ainda havia em 1990 cerca de 30 milhões de brasi¬ dores, deputados, vereadores, bem como governadores e pre¬
leiros de cinco anos de idade ou mais que eram analfabetos. feitos, trocam impunemente de partido. Em conseqiiê ncia,
Em 1998, 8% dos eleitores eram analfabetos. A medida signi¬ cresceu muito o número de partidos. Em 1979, existiam dois
ficou, então, ampliação importante da franquia eleitoral e pôs partidos em funcionamento; em 1982, havia cinco; em 1986,
fim a uma discriminação injustificável. A Constituição foi tam¬ houve um salto para 29, estando hoje o n ú mero em torno de
bém liberal no crité rio de idade. A idade anterior para a aqui¬ 30. Muitos desses partidos são min úsculos e têm pouca
si ção do direito do voto, 18 anos, foi abaixada para 16, que é representatividade. De um excesso de restrição passou-se a
a idade mínima para a aquisição de capacidade civil relativa. grande liberalidade.
Entre 16 e 18 anos, o exercício do direito do voto tornou-se Do ponto de vista do arranjo institucional, o problema
facultativo, sendo obrigatório apartar dos 18. A única restrição mais sé rio que ainda persiste talvez seja o da distor ção regio¬
que permaneceu foi a proibi ção do voto aos conscritos. Em¬ .
nal da representação parlamentar O princípio de “ uma pes¬
bora também injustificada, a proibição atinge parcela pequena soa, um voto” é amplamente violado pela legislação brasilei-

200 201
CIDADANIA NO BRASIL
JOS É MURILO DE CARVALHO

depu¬ nacional, o MST representa a incorporação à vida política de


ra quando ela estabelece um piso de oito e um teto de 70
são parcela importante da população, tradicionalmente excluída
tados. Os estados do Norte, Centro-Oeste e Nordeste
e pela for ça do latif ú ndio. Milhares de trabalhadores rurais se
sobre-representados na Câmara, enquanto que os do Sul
. Uma organizaram e pressionam o governo em busca de terra para
Sudeste, sobretudo São Paulo, são sub-representados
aos cultivar e financiamento de safras. Seus mé todos, a invasão
distribuição das cadeiras proporcional à população daria
estados do Sul e Sudeste mais cerca de 70 deputados no total de terras públicas ou não cultivadas, tangenciam a ilegalida¬
16
de 513. Em 1994, o voto de um eleitor de Roraima valia de, mas, tendo em vista a opressão secular de que foram víti¬
representa ¬
vezes o de um eleitor paulista. O desequilíbrio na mas e a extrema lentidão dos governos em resolver o proble¬
elegem o
ção é refor çado pelo fato de que todos os estados ma agrário, podem ser considerados legítimos. O MST é o
po ¬
mesmo número de senadores. Como favorece estados de melhor exemplo de um grupo que, utilizando-se do direito
o,
pulação mais rural e menos educada, a sobre-representaçã de organização, for ça sua entrada na arena política, contribu¬
além de falsear o sistema, tem sobre o Congresso um
efeito indo assim para a democratização do sistema.
conservador que se manifesta na postura da institui çã o. Tra- Houve frustração com os governantes posteriores à de
ta-se de um vício de nosso federalismo, e difícil
de extirpar, mocratização. A partir do terceiro ano do governo Sarney, o
¬
uma vez que qualquer mudança deve ser aprovada pelos mes desencanto começou a crescer, pois ficara claro que a demo¬
mos deputados que se beneficiam do sistema. cratização não resolveria automaticamente «s problemas do
ti ¬
Outros temas permanecem na pauta da reforma polí dia-a- dia que mais afligiam o grosso da população. As ve¬
ca. Tramitam no Congresso projetos para alterar o sistema lhas práticas políticas, incluindo a corrupção, estavam to¬
¬
eleitoral, reduzir o n ú mero de partidos e refor çar a fideli
¬
das de volta. Os políticos, os partidos, o Legislativo volta¬
dade partid ária. O projeto mais importante é o que pro ram a transmitir a imagem de incapazes, quando não de cor¬
o
põe a introdução de um sistema eleitoral que combine ruptos e voltados unicamente para seus pr óprios interesses.
critério proporcional em vigor com o majoritário
, segun ¬
¬ Seguindo velha tradição nacional de esperar que a solução
do o modelo alemão. A idéia é aproximar mais os repre dos problemas venha de figuras messiânicas, as expectativas
sentantes de seus eleitores e refor çar a disciplina
partidá¬
ção populares se dirigiram para um dos candidatos à eleição pre¬
ria. São tamb é m numerosos os partidários da introdu
po¬ sidencial de 1989 que exibia essa característica. Fernando
do sistema parlamentar de governo. Tais reformas são
o Collor, embora vinculado às elites políticas mais tradicionais
lêmicas sobretudo por causa da dificuldade em prever
do país, apresentou-se como um messias salvador
impacto que podem ter.
es desvinculado dos vícios dos velhos políticos. Baseou sua cam¬
No que se refere à pratica democrática, houve frustraçõ
tem a ver com panha no combate aos políticos tradicionais e à corrupção
mas também claros avanços. Um dos avanços
do governo. Representou o papel de um campeão da mora-
o surgimento do Movimento dos Sem Terra (MST). De alcance
20 2 203
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

lidade e da renovação da política nacional. O uso eficiente pr óximas ao presidente. Os sinais tornaram-se certeza quan¬
da televisão foi um de seus pontos fortes. Em um país com do o pr óprio irmão o denunciou publicamente. Descobriu-
tantos analfabetos e semi- analfabetos, a televisão se tornou se, então, que fora montado pelo tesoureiro da campanha
o meio mais poderoso de propaganda. Fernando Collor ven¬ presidencial, amigo íntimo do presidente, o esquema mais
ceu o primeiro turno das eleições, derrotando políticos ex ¬ ambicioso de corrupção jamais visto nos altos escalões do
perimentados e de passado inatacável, como o líder do governo. Por meio de chantagens, da venda de favores gover¬
PMDB, Ulisses Guimar ães, e o l íder do PSDB, Mário Covas. namentais, de barganhas políticas, milhões de d ólares foram
No segundo turno, derrotou o candidato do PT, o também extorquidos de empresários para financiar campanhas, sus¬
carismático Luís Inácio Lula da Silva. tentar a família do presidente e enriquecer o pequeno grupo
As eleições diretas, aguardadas como salvação nacional, de seus amigos.
resultaram na escolha de um presidente despreparado, au¬ Humilhada e ofendida, a população que fora às ruas oito
toritário, messi â nico e sem apoio político no Congresso. anos antes para pedir as elei ções diretas repetiu a jornada
Fernando Collor concorreu por um partido, o PRN, sem ne¬ para pedir o impedimento do primeiro presidente eleito pelo
nhuma representatividade, criado que fora para apoiar sua voto direto A campanha espalhou-se pelo país e mobilizou
.
candidatura. Mesmo depois da posse do novo presidente, principalmente a juventude das grandes cidades. Pressiona¬
esse partido tinha 5% das cadeiras na Câmara dos Deputa¬ do pelo grito das ruas, o Congresso abriu o processo de im ¬
dos. Era, portanto, incapaz de dar qualquer sustentação pedimento que resultou no afastamento do presidente, dois
política ao presidente. A vitória nas urnas ficou desde o iní¬ anos e meio depois da posse, e em sua substitui ção pelo vice¬
cio comprometida pela falta de condi çõ es de governabi- presidente, Itamar Franco. O impedimento foi sem d ú vida
lidade. O problema era agravado pela personalidade arro¬ uma vitó ria cívica importante. Na história do Brasil e da
gante e megalomaníaca do candidato eleito. Os observado¬ América Latina, a regra para afastar presidentes indesejados
res mais perspicazes adivinharam logo as dificuldades que tem sido revolu ções e golpes de Estado. No sistema presi ¬
necessariamente surgiriam. dencialista que nos serviu de modelo, o dos Estados Unidos,
Embalado pela legitimidade do mandato popular, o presi¬ o método foi muitas vezes o assassinato. Com exce ção do
dente adotou de início medidas radicais e ambiciosas para Panam á, nenhum outro país presidencialista da América ti¬
acabar com a inflação, reduzir o nú mero de funcionários pú¬ nha levado antes até o fim um processo de impedimento. O
blicos, vender empresas estatais, abrir a economia ao merca¬ fato de ele ter sido completado dentro da lei foi um avan ço
do externo. Mas logo se fizeram sentir as dificuldades decor¬ na pr ática democr ática. Deu aos cidadãos a sensação in é dita
rentes da falta de apoio parlamentar e da falta de vontade e de que podiam exercer algum controle sobre os governantes.
capacidade do presidente de negociar esse apoio. Paralelamen¬ Avanço també m foram as duas elei ções presidenciais seguin ¬
te, foram surgindo sinais de corrupção praticada por pessoas tes, feitas em clima de normalidade. Na primeira, em 1994,

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CIDADANIA NO BRASIL
JOS É MURILO DE CARVALHO

foi eleito em primeiro turno o sociólogo Fernando Henrique muito alto. Ainda são necessários mais de dez anos para se
Cardoso. Durante seu mandato, o Congresso, sob intensa completarem os oito anos do ensino fundamental. Em 1997,
pressão do Executivo, aprovou a reeleição, que veio a bene¬ 32% da população de 15 anos ou mais era ainda formada de
ficiar o presidente na eleição de 1998, ganha por ele tam ¬ analfabetos funcionais, isto é, que tinham menos de quatro
bé m no primeiro turno. anos de escolaridade .
No campo da previdência social, a situação é mais com¬
plexa. De positivo houve a elevação da aposentadoria dos tra¬
DIREITOS SOCIAIS SOB AMEAÇA
balhadores rurais para o piso de um salário mínimo. Foi tam¬
bém positiva a introdução da renda mensal vitalícia para ido ¬
A Constituição de 1988 ampliou tamb ém, mais do que qual¬ sos e deficientes, mas sua implementação tem sido muito res¬
quer de suas antecedentes, os direitos sociais. Fixou em um trita. O principal problema está nos benefícios previdenciários,
sal ário mínimo o limite inferior para as aposentadorias e pen¬ sobretudo nos valores das aposentadorias. A necessidade de
sões e ordenou o pagamento de pensão de um salário míni¬ reduzir o déficit nessa área foi usada para justificar reformas
mo a todos os deficientes físicos e a todos os maiores de 65 no sistema que atingem negativamente sobretudo o funcio¬
anos, independentemente de terem contribuído para a previ¬ nalismo público. Foi revogado o critério de tempo de servi¬
d ê ncia. Introduziu ainda a licença-paternidade, que dá aos pais ço, que permitia aposentadorias muito precoces, substituído
cinco dias de licença do trabalho por ocasião do nascimento por uma combinação de tempo de contribuido com idade
dos filhos. mínima. Foram também eliminados os regimes especiais que
A pr á tica aqui tamb é m teve altos e baixos. Indicadores permitiam aposentadorias com menor tempo de contribuição.
básicos de qualidade de vida passaram por lenta melhoria. O problema do déficit ainda persiste, e, diante das pressões
Assim, por exemplo, a mortalidade infantil caiu de 73 por no sentido de reduzir o custo do Estado, pode-se esperar que
mil crianças nascidas vivas em 1980 para 39,4 em 1999. A propostas mais radicais como a da privatização do sistema
esperan ça de vida ao nascer passou de 60 anos em 1980 para previdenciário voltem ao debate .
67 em 1999. O progresso mais importante se deu na área da Mas as maiores dificuldades na área social têm a ver com
educação fundamental, que é fator decisivo para a cidada¬ a persistê ncia das grandes desigualdades sociais que caracte-
nia. O analfabetismo da popula ção de 15 anos ou mais caiu rizam o país desde a independê ncia, para não mencionar o
de 25,4% em 1980 para 14,7% em 1996. A escolarização período colonial. O Brasil é hoje o oitavo país do mundo em
da população de sete a 14 anos subiu de 80% em 1980 para termos de produto interno bruto. No entanto, em termos de
97% em 2000. O progresso se deu, no entanto, a partir de renda per capita, é o 34°. Segundo relatório do Banco Mun¬
um piso muito baixo e refere-se sobretudo ao n ú mero de dial, era o país mais desigual do mundo em 1989, medida a
estudantes matriculados. O índice de repetência ainda é desigualdade pelo índice de Gini. Em 1997, o índice perma-

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JOS É MURILO DE CARVALHO
CIDADANIA NO BRASIL

necia inalterado (0,6). Pior ainda, segundo dados do Institu¬


co do país nos últimos 20 anos. Mesmo durante o período de
to de Pesquisa Económica Aplicada (IPEA), a desigualdade
alto crescimento da d écada de 70 ela não se reduziu. Cres¬
económica cresceu ligeiramente entre 1990 e 1998. Na pri ¬
cendo ou não, o país permanece desigual. O efeito positivo
meira data, os 50% mais pobres detinham 12,7% da renda
sobre a distribui ção de renda trazido pelo fim da inflação alta
; nacional; na segunda, 11,2%. De outro lado, os 20% mais
teve efeito passageiro. A crise cambial de 1999 e a conseqiiente
i ricos tiveram sua parcela da renda aumentada de 62,8% para
redução do índice de crescimento económico eliminaram as
I^ 63,8% no mesmo per íodo. vantagens conseguidas no início.
A desigualdade é sobretudo de natureza regional e racial.
Em 1997, a taxa de analfabetismo no Sudeste era de 8,6%;
no Nordeste, de 29,4%. O analfabetismo funcional no Sudeste
DIREITOS CIVIS RETARDATÁRIOS
era de 24,5%; no Nordeste era de 50%, e no Nordeste rural,
de 72%; a mortalidade infantil era de 25% no Sudeste em
Os direitos civis estabelecidos antes do regime militar foram
1997, de 59% no Nordeste, e assim por diante. O mesmo se
recuperados ap ós 1985. Entre eles cabe salientar a liberdade
dá em relação à cor. O analfabetismo em 1997 era de 9,0%
de expressão, de imprensa e de organização. A Constituição
entre os brancos e de 22% entre negros e pardos; os brancos
de 1988 ainda inovou criando o direito de habeas data , em
tinham 6,3 anos de escolaridade; os negros e pardos, 4,3; en¬
virtude do qual qualquer pessoa pode exigir do geverno acesso
tre os brancos, 33,6% ganhavam até um sal ário mínimo; en ¬
às informações existentes sobre ela nos registros públicos,
tre os negros, 58% estavam nessa situação, e 61,5 % entre os
mesmo as de car áter confidencial. Criou ainda o “ mandado
pardos; a renda média dos brancos era de 4,9 salarios míni¬
de injunção”, pelo qual se pode recorrer à justiça para exigir
mos; a dos negros, 2,4, e a dos pardos, 2,2. Esses exemplos
o cumprimento de dispositivos constitucionais ainda não re¬
poderiam ser multiplicados sem dificuldade.
gulamentados. Definiu também o racismo como crime
A escandalosa desigualdade que concentra nas m ãos de
inafiançável e imprescritível e a tortura como crime inafian-
poucos a riqueza nacional tem como conseqiiência níveis do¬
¬
çável e não-anistiável. Uma lei ordinária de 1989 definiu os
lorosos de pobreza e misé ria Tomando-se a renda de 70 dó
. ¬
crimes resultantes de preconceito de cor ou raça. A Consti
lares que a Organização Mundial da Saú de (OMS) consi¬
— ¬
tuição ordenou também que o Estado protegesse o consumi
dera ser o mínimo necessário para a sobrevivência como a
— dor, dispositivo que foi regulamentado na Lei de Defesa do
linha divisória da pobreza, o Brasil tinha, em 1997, 54% de
pobres. A porcentagem correspondia a 85 milhões de pessoas, Consumidor, de 1990. Forado âmbito constitucional, foi cri ¬
ado em 1996 o Programa Nacional dos Direitos Humanos,
numa população total de 160 milh ões. No Nordeste, a por ¬
que prevê v árias medidas pr áticas destinadas a proteger esses
centagem subia para 80%. A persistência da desigualdade é
direitos. Cabe ainda mencionar como relevante a criação dos
apenas em parte explicada pelo baixo crescimento econômi-
Juizados Especiais de Pequenas Causas Cíveis e Criminais, em
208
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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

1995. Esses juizados pretendem simplificar, agilizar e bara¬ nada ou tentou resolvê-los por conta própria. Especifican¬
tear a prestação de justiça em causas cíveis de pequena com¬ do-se o conflito e as razões da falta de recurso à justi ça, os
plexidade e em infrações penais menores. dados são ainda mais reveladores. Assim, nos conflitos re ¬
Essas inovaçõ es legais e institucionais foram importan ¬ ferentes a roubo e furto, entre os motivos alegados para
tes, e algumas já d ão resultado. Os juizados, por exemplo, não recorrer à justi ça, tr ês tinham diretamente a ver com a
tê m tido algum efeito em tornar a justiça mais acessível. No precariedade das garantias legais: 28 % alegaram n ão acre ¬
entanto, pode-se dizer que, dos direitos que compõem a ci ¬ ditar na justi ça, 4% temiam represálias, 9 % n ão queriam
dadania, no Brasil são ainda os civis que apresentam as maio¬ envolvimento com a polícia. Ao todo, 41% das pessoas n ão
res deficiê ncias em termos de seu conhecimento, extensão e recorreram por n ão crer na justi ça ou por tem ê -la. Os da¬
garantias. A precariedade do conhecimento dos direitos ci ¬ dos referentes aos conflitos que envolviam agressão f ísica
vis, e tamb é m dos políticos e sociais, é demonstrada por revelam que 45% n ão recorreram à justi ça pelas mesmas
pesquisa feita na regi ão metropolitana do Rio de Janeiro em razões. E importante notar que também nessa pesquisa o
1997. A pesquisa mostrou que 57% dos pesquisados n ão grau de escolaridade tem grande importância. Entre as pes¬
sabiam mencionar um só direito e só 12% mencionaram al ¬ soas sem instrução ou com menos de um ano de instrução,
gum direito civil. Quase a metade achava que era legal a foram 74% as que não recorreram A porcentagem cai para
prisão por simples suspeita. A pesquisa mostrou que o fator 57% entre as pessoas com 12 ou mais anos ¿e instrução. A
mais importante no que se refere ao conhecimento dos di- pesquisa na regi ão metropolitana do Rio de Janeiro, já
f reitos é a educaçã o. O desconhecimento dos direitos caía de mencionada, mostra que a situação n ão se alterou nos últi ¬
a mos dez anos. Os resultados mostram que só 20% das pes¬
I 64% entre os entrevistados que tinham até a 4 sé rie para
| 30% entre os que tinham o terceiro grau, mesmo que incom- soas que sofrem alguma violação de seus direitos furto,

/ pleto. Os dados revelam ainda que educação é o fator que roubo, agressão etc. recorrem à polícia para dar queixa.

/ mais bem explica o comportamento das pessoas no que se Os outros 80% n ão o fazem por temor da polícia ou por
/ refere ao exercício dos direitos civis e políticos. Os mais edu- não acreditarem nos resultados.
( cados se filiam mais a sindicatos, a órgãos de classe, a parti- A falta de garantia dos direitos civis se verifica sobretu ¬
\ dos políticos. do no que se refere à seguran ça individual, à integridade f í¬
\ A falta de garantia dos direitos civis pode ser medida sica, ao acesso à justiça. O rápido crescimento das cidades
por pesquisas feitas pelo Instituto Brasileiro de Geografia transformou o Brasil em país predominantemente urbano em
e Estatística (IBGE), referentes ao ano de 1988. Segundo o poucos anos. Em 1960, a população rural ainda superava a
IBGE, nesse ano 4,7 milh ões de pessoas de 18 anos ou mais urbana. Em 2000, 81% da população j á era urbana. Junto
¬ com a urbanização, surgiram as grandes metrópoles. Nelas,
envolveram-se em conflitos. Dessas, apenas 62% recorre
ram à justi ça para resolv ê -los. A maioria preferiu n ão fazer a combinação de desemprego, trabalho informal e tr áfico de

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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

em conjunto com os seus correspondentes nas for ças


drogas criou um campo f é rtil para a proliferação da violên¬ arma¬
das.
cia, sobretudo na forma de homicídios dolosos. Os índices
A Constitui ção de 1988 apenas tirou do Ex ército o con¬
de homicídio tê m crescido sistematicamente. Na Am érica
trole direto das polícias militares, transferindo-o para os go¬
Latina o Brasil só perde para a Col ômbia, país em guerra civil.
vernadores dos estados. Elas permaneceram como for ças au¬
A taxa nacional de homicídios por 100 mil habitantes pas¬
xiliares e reservas do Ex ército e mantiveram as caracter ísticas
sou de 13 em 1980 para 23 em 1995, quando é de 8,2 nos militares. Tornaram -se novamente pequenos exé rcitos que às
Estados Unidos. Nas capitais e outras grandes cidades, ela é vezes escapam ao controle dos governadores. Essa organiza¬
muito mais alta: 56 no Rio de Janeiro, 59 em S ão Paulo, 70 ção militarizada tem-se revelado inadequada para garantir a
em Vitó ria. Roubos, assaltos, balas perdidas, seqiiestros, as ¬
seguran ça dos cidad ãos. O soldado da polícia é treinado den ¬
sassinatos, massacres passaram a fazer parte do cotidiano das tro do espírito militar e com métodos militares. Ele é prepa¬
grandes cidades, trazendo a sensação de inseguran ça à po ¬ rado para combater e destruir inimigos e n ão para proteger
pulação, sobretudo nas favelas e bairros pobres. cidad ãos. Ele é aquartelado, responde a seus superiores hie¬
O problema é agravado pela inadequação dos ó rg ãos r árquicos, não convive com os cidadãos que deve proteger,
encarregados da seguran ça p ú blica para o cumprimento de não os conhece, não se v ê como garantidor de seus direitos.
sua fun ção. As pol ícias militares estaduais cresceram duran ¬ Nem no combate ao crime as polícias militares tê m-se revela¬
te a Primeira Rep ú blica, com a implantação do federalismo. do eficientes. Pelo contr ário, nas grandes cidades e mesmo em
Os grandes estados, como S ão Paulo, Minas Gerais, Rio certos estados da federação, policiais militares e civis tê m-se
Grande do Sul, fizeram delas pequenos ex é rcitos locais, ins¬ envolvido com criminosos e participado de um n ú mero cres¬
trumentos de poder na disputa pela presid ê ncia da Rep ú bli ¬ cente de crimes. Os que são expulsos da corporação se tor¬
ca. Uma das exigê ncias do Ex é rcito ap ós 1930 foi estabele ¬ nam criminosos potenciais, organizam grupos de extermínio
cer o controle sobre as polícias militares. No Estado Novo, e participam de quadrilhas. Mesmo a polícia civil, que n ão
elas foram postas sob a jurisdi ção do Ministé rio da Guerra tem treinamento militarizado, se vem mostrando incapaz de
(como era então chamado o Minist é rio do Ex ército), que lhes agir dentro das normas de uma sociedade democr ática. Con ¬
vetou o uso de armamento pesado. A Constitui ção demo ¬ tinuam a surgir den ú ncias de pr ática de tortura de suspeitos
cr ática de 1946 manteve parte do controle, declarando as dentro das delegacias, apesar das promessas de mudança fei¬
polícias estaduais for ças auxiliares e reservas do Ex é rcito. tas pelos governos estaduais. São tamb é m abundantes as de¬
Durante o governo militar, as polícias militares foram pos¬ n ú ncias de extorsão, corrupção, abuso de autoridade feitas
tas sob o comando de oficiais do Ex é rcito e completou -se o contra policiais civis.
processo de militarização de seu treinamento. Elas tinham Alguns casos de viol ê ncia policial ficaram tristemente cé¬
seus órg ãos de intelig ência e repressão política que atuavam
lebres no país, com repercussão constrangedora no exterior.

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JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

Em 1992, a polícia militar paulista invadiu a Casa de Deten ¬ Çã°. Apesar de ser dever constitucional do Estado prestar
ção do Carandiru para interromper um conflito e matou 111 assistê ncia jur ídica gratuita aos pobres, os defensores p úbli ¬
presos. Em 1992, policiais mascarados massacraram 21 pes¬ cos são em n ú mero insuficiente para atender à demanda .
soas em Vig ário Geral, no Rio de Janeiro. Em 1996, em ple¬ Uma vez instaurado o processo, h á o problema da demora.
no Centro do Rio de Janeiro, em frente à Igreja da Os tribunais estão sempre sobrecarregados de processos,
tanto nas varas cíveis como nas criminais. Uma causa leva
Candelária, sete menores que dormiam na rua foram fuzila¬
dos por policiais militares. No mesmo ano, em Eldorado do anos para ser decidida. O ú nico setor do Judici ário que fun ¬
ciona um pouco melhor é o da justi ça do trabalho. No en ¬
Carajás, policiais militares do Par á atiraram contra trabalha¬
tanto, essa justiça só funciona para os trabalhadores do mer¬
dores sem- terra, matando 19 deles. Exceto pelo massacre da
cado formal, possuidores de carteira de trabalho. Os outros,
Candelária, os culpados dos outros crimes não foram até hoje
que são cada vez mais numerosos, ficam exclu ídos. Enten¬
condenados. No caso de Eldorado do Carajás, o primeiro
de-se, então, a descrença da população na justi ça e o senti ¬
julgamento absolveu os policiais. Posteriormente anulado,
mento de que ela funciona apenas para os ricos, ou antes,
ainda n ão houve segundo julgamento. A população ou teme de que ela n ão funciona, pois os ricos n ão são punidos e os
o policial, ou n ão lhe tem confiança. Nos grandes centros, pobres não são protegidos.
as empresas e a classe alta cercam-se de milhares de guardas A parcela da população que pode contar com a proteção
particulares para fazer o trabalho da polícia, fora do con¬ da lei é pequena, mesmo nos grandes centaos. Do ponto de
trole do poder pú blico. A alta classe média entrincheira-se vista da garantia dos direitos civis, os cidadãos brasileiros
em condomínios protegidos por muros e guaritas. As fave ¬ podem ser divididos em classes. H á os de primeira classe,
— las, com menos recursos, ficam à mercê de quadrilhas orga¬ os privilegiados, os “ doutores”, que estão acima da lei, que
nizadas que, por ironia, se encarregam da ú nica segurança sempre conseguem defender seus interesses pelo poder do
disponível. Quando a polícia aparece na favela é para trocar dinheiro e do prestígio social. Os “ doutores” são invariavel ¬
tiros com as quadrilhas, invadir casas e eventualmente ferir mente brancos, ricos, bem vestidos, com formação universi¬
ou matar inocentes. t á ria. S ão empres á rios, banqueiros, grandes proprietá rios
O Judici á rio tamb é m não cumpre seu papel. O acesso à rurais e urbanos, políticos, profissionais liberais, altos fun ¬
justiça é limitado a pequena parcela da população. A maio¬ cionários. Freq ú entemente, mantêm vínculos importantes
ria ou desconhece seus direitos, ou, se os conhece, não tem nos neg ó cios, no governo, no pr ó prio Judici á rio. Esses v í n ¬
condi çõ es de os fazer valer. Os poucos que d ão queixa à culos permitem que a lei só funcione em seu benef ício. Em
polícia têm que enfrentar depois os custos e a demora do um cálculo aproximado, poderiam ser considerados “dou ¬
processo judicial. Os custos dos serviços de um bom advo¬ tores” os 8% das fam ílias que, segundo a Pesquisa Nacional
gado estão além da capacidade da grande maioria dapopula - por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1996, recebiam mais

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JOSÉ MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

de 20 salários mínimos. Para eles, as leis ou não existem ou ensinou que ele quase sempre resulta em prejuízo pr óprio.
podem ser dobradas. Alguns optam abertamente pelo desafio à lei e pela crimi¬
Ao lado dessa elite privilegiada, existe uma grande massa nalidade. Para quantificá-los, os “elementos” estariam entre
de “cidadãos simples”, de segunda classe, que estão sujeitos os 23% de famílias que recebem até dois salários mínimos.
aos rigores e benefícios da lei. São a classe média modesta, os Para eles vale apenas o Código Penal.
trabalh ádores assalariados com carteira de trabalho assinada,
os pequenos funcionários, os pequenos proprietários urbanos
e rurais. Podem ser brancos, pardos ou negros, têm educação
fundamental completa e o segundo grau, em parte ou todo.
Essas pessoas nem sempre têm noção exata de seus direitos, e
quando a têm carecem dos meios necessários para os fazer
valer, como o acesso aos órgãos e autoridades competentes, e
os recursos para custear demandas judiciais. Freq üentemente,
ficam à mercê da polícia e de outros agentes da lei que defi¬
nem na prática que direitos serão ou não respeitados. Os “ci¬
dadãos simples” poderiam ser localizados nos 63% das famí¬
lias que recebem entre acima de dois a 20 salários mínimos.
Para eles, existem os códigos civil e penal, mas aplicados de
maneira parcial e incerta.
Finalmente, h á os “ elementos” do jargão policial, cida¬
dãos de terceira classe. São a grande população marginal das
grandes cidades, trabalhadores urbanos e rurais sem cartei¬
ra assinada, posseiros, empregadas domésticas, biscateiros,
camelos, menores abandonados, mendigos. São quase inva¬
riavelmente pardos ou negros, analfabetos, ou com educa¬
ção fundamental incompleta. Esses “ elementos” são parte da
comunidade política nacional apenas nominalmente. Na
pr ática, ignoram seus direitos civis ou os têm sistematicamen¬
te desrespeitados por outros cidad ãos, pelo governo, pela
polícia. Não se sentem protegidos pela sociedade e pelas leis.
Receiam o contato com agentes da lei, pois a experiência lhes

21 6 217
Conclusã o: A cidadania
na encruzilhada

Percorremos um longo caminho, 178 anos de história do es¬


forço para construir o cidadão brasileiro. Chegamos ao fi¬
nal da jornada com a sensação desconfortável de incom-
pletude. Os progressos feitos são inegáveis mas foram len¬
tos e não escondem o longo caminho que ainda falta per¬
correr. O triunfalismo exibido nas celebrações oficiais dos
500 anos da conquista da terra pelos portugueses não con¬
segue ocultar o drama dos milhões de pobres, de desempre ¬
gados, de analfabetos e semi-analfabetos, de vítimas da vio¬
lência particular e oficial. Não há ind ícios de saudosismo em
relação à ditadura militar, mas perdeu-se a crença de que a
democracia política resolveria com rapidez os problemas da
pobreza e da desigualdade.
Uma das razõ es para nossas dificuldades pode ter a ver
com a natureza do percurso que descrevemos. A cronologia e
a l ógica da seqíiê ncia descrita por Marshall foram invertidas
no Brasil. Aqui, primeiro vieram os direitos sociais, implanta¬
dos em per íodo de supressão dos direitos pol íticos e de redu ¬
ção dos direitos civis por um ditador que se tornou popular.
Depois vieram os direitos políticos, de maneira também bi¬
zarra. A maior expansão do direito do voto deu-se em outro

219
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

per íodo ditatorial, em que os órgãos de representação políti¬ houve percursos distintos, como demonstram os casos da In¬
ca foram transformados em peça decorativa do regime. Final ¬ glaterra, da Fran ça e da Alemanha. Mas é razoável supor que
mente, ainda hoje muitos direitos civis, a base da seqiiê ncia caminhos diferentes afetem o produto final, afetem o tipo de
de Marshall, continuam inacessíveis à maioria da população. cidad ão, e, portanto, de democracia, que se gera. Isto é parti¬
A pir âmide dos direitos foi colocada de cabeça para baixo. cularmente verdadeiro quando a inversão da seqüéncia é com¬
Na seqiiência inglesa, havia uma lógica que refor çava a pleta, quando os direitos sociais passam a ser a base da pirâ¬
convicção democr ática. As liberdades civis vieram primeiro, mide. Quais podem ser as conseqiiências, sobretudo para o
garantidas por um Judiciá rio cada vez mais independente do problema da eficácia da democracia?
Executivo. Com base no exercício das liberdades, expandiram- Uma conseqiiê ncia importante é a excessiva valorização
se os direitos políticos consolidados pelos partidos e pelo do Poder Executivo. Se os direitos sociais foram implantados
,
Legislativo. Finalmente, pela ação dos partidos e do Congres¬ em per íodos ditatoriais, em que o Legislativo ou estava fechado
so, votaram-se os direitos sociais, postos em pr ática pelo Exe ¬ ou era apenas decorativo, cria-se a imagem, para o grosso da
cutivo. A base de tudo eram as liberdades civis. A participa¬ população, da centralidade do Executivo. O governo aparece
ção política era destinada em boa parte a garantir essas liber ¬ como o ramo mais importante do poder, aquele do qual vale
dades. Os direitos sociais eram os menos óbvios e até certo a pena aproximar-se. A fascinação com um Executivo forte
ponto considerados incompatíveis com os direitos civis e po ¬ está sempre presente, e foi ela sem d úvida uma das razões da
líticos. A proteção do Estado a certas pessoas parecia uma vitória do presidencialismo sobre o parlamentarismo, no ple¬
quebra da igualdade de todos perante a lei, uma interfer ê ncia biscito de 1993. Essa orientação para o Executivo refor ça lon¬
na liberdade de trabalho e na livre competição. Além disso, o ga tradição portuguesa, ou ibérica, patrimonialismo. O Esta¬
auxílio do Estado era visto como restrição à liberdade indivi¬ do é sempre visto como todo-poderoso, na pior hipótese como
dual do beneficiado, e como tal lhe retirava a condi ção de repressor e cobrador de impostos; na melhor, como um dis¬
independência requerida de quem deveria ter o direito de voto. tribuidor paternalista de empregos e favores. A ação política
Por essa razão, privaram-se, no início, os assistidos pelo Esta¬ nessa visão é sobretudo orientada para a negociação direta com
do do direito do voto. Nos Estados Unidos, até mesmo sindi¬ o governo, sem passar pela mediação da representação. Como
catos oper ários se opuseram à legislação social, considerada vimos, até mesmo uma parcela do movimento oper ário na
humilhante para o cidad ão. Só mais tarde esses direitos pas¬ Primeira República orientou-se nessa direção; parcela ainda
saram a ser considerados compatíveis com os outros direitos, maior adaptou-se a ela na década de 30. Essa cultura orienta¬
e o cidad ão pleno passou a ser aquele que gozava de todos os da mais para o Estado do que para a representação é o que
direitos, civis, políticos e sociais. chamamos de “ estadania”, em contraste com a cidadania.
Seria tolo achar que só há um caminho para a cidadania. Ligada à prefer ência pelo Executivo está a busca por um
A história mostra que não é assim. Dentro da pr ópria Europa messias político, por um salvador da pátria. Como a experiên-

220 221
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

cia de governo democr ático tem sido curta e os problemas de trabalhadores para dentro do sindicalismo corporativo
sociais têm persistido e mesmo se agravado, cresce também a achou terreno fértil em que se enraizar. Os benef ícios sociais
impaciência popular com o funcionamento geralmente mais não eram tratados como direitos de todos, mas como fruto
lento do mecanismo democr ático de decisão. Daí a busca de da negociação de cada categoria com o governo. A sociedade
solu ções mais r ápidas por meio de lideranças carismáticas e passou a se organizar para garantir os direitos e os privilégios
messiânicas. Pêlo menos tr ês dos cinco presidentes eleitos pelo distribuídos pelo Estado. A for ça do corporativismo manifes¬
tou-se mesmo durante a Constituinte de 1988. Cada grupo
voto popular ap ós 1945, Getúlio Vargas, J ânio Quadros e
procurou defender e aumentar seus privilégios. Apesar das
Fernando Collor, possuíam traços messiânicos. Sintomatica¬
cr íticas à CUT, as centrais sindicais dividiram-se quanto ao
mente, nenhum deles terminou o mandato, em boa parte por
imposto sindical e à unicidade sindical, dois esteios do siste¬
n ão se conformarem com as regras do governo representati¬
ma montado por Vargas. Tanto o imposto como a unicidade
vo, sobretudo com o papel do Congresso.
foram mantidos. Os funcionários públicos conseguiram esta¬
A contrapartida da valorização do Executivo é a desvalo ¬
bilidade no emprego. Os aposentados conseguiram o limite
rização do Legislativo e de seus titulares, deputados e sena¬ de um salário mínimo nas pensõ es, os professores consegui¬
dores. As eleições legislativas sempre despertam menor inte¬
ram aposentadoria cinco anos mais cedo, e assim por diante.
resse do que as do Executivo. A campanha pelas eleições di¬ A prática política posterior à redemocratizaçãç tem revelado
retas referia-se à escolha do presidente da Rep ública, o chefe
a for ça das grandes corporações de banqueiros, comercian¬
do Executivo. Dificilmente haveria movimento semelhante tes, industriais, das centrais operárias, dos empregados públi¬
para defender eleições legislativas. Nunca houve no Brasil cos, todos lutando pela preservação de privilégios ou em bus¬
reação popular contra fechamento do Congresso. Há uma ca de novos favores. Na área que nos interessa mais de perto,
convicção abstrata da importância dos partidos e do Congresso o corporativismo é particularmente forte na luta de juízes e
como mecanismos de representação, convicção esta que não promotores por melhores salários e contra o controle exter¬
se reflete na avaliação concreta de sua atuação. O desprestígio no, e na resistência das polícias militares e civis a mudanças
generalizado dos políticos perante a população é mais acen¬ em sua organização.
tuado quando se trata de vereadores, deputados e senadores. A ausê ncia de ampla organização autónoma da sociedade
Al ém da cultura política estatista, ou governista, a inver¬ faz com que os interesses corporativos consigam prevalecer.
são favoreceu também uma visão corporativista dos interes¬ A representação política não funciona para resolver os gran¬
ses coletivos. Não se pode dizer que a culpa foi toda do Esta¬ des problemas da maior parte da população. O papel dos le¬
do Novo. O grande êxito de Vargas indica que sua política gisladores reduz-se, para a maioria dos votantes, ao de inter ¬
atingiu um ponto sensível da cultura nacional A distribuição
. medi ários de favores pessoais perante o Executivo. O eleitor
dos benef ícios sociais por cooptação sucessiva de categorias vota no deputado em troca de promessas de favores pessoais;

222 223
JOS É MURILO DE CARVALHO
CIDADANIA NO BRASIL

o deputado apóia o governo em troca de cargos e verbas para nal. Para isso tem contribuído o ambiente internacional, hoje
distribuir entre seus eleitores. Cria-se uma esquizofrenia po ¬ totalmente desfavor ável a golpes de Estado e governos au¬
lítica: os eleitores desprezam os pol íticos, mas continuam toritá rios. Isso n ão é m é rito brasileiro, mas pode ajudar a
votando neles na esperança de benef ícios pessoais. desencorajar possíveis golpistas e a ganhar tempo para a de ¬
Para muitos, o rem édio estaria nas reformas políticas mocracia.
mencionadas, a eleitoral, a partidária, a da forma de gover ¬ Mas o cenário internacional traz também complicações
no. Essas reformas e outros experimentos poderiam even¬ para a constru ção da cidadania, vindas sobretudo dos países
tualmente reduzir o problema central da ineficácia do siste ¬ que costumamos olhar como modelos. A queda do império
ma representativo. Mas para isso a fr ágil democracia brasi¬ soviético, o movimento de minorias nos Estados Unidos e,
leira precisa de tempo. Quanto mais tempo ela sobreviver, principalmente, a globalização da economia em ritmo acele¬
maior ser á a probabilidade de fazer as correçõ es necessárias rado provocaram, e continuam a provocar, mudanças impor ¬
nos mecanismos políticos e de se consolidar. Sua consolida¬ tantes nas relações entre Estado, sociedade e nação, que eram
ção nos países que são hoje considerados democr áticos, in¬ o centro da noção e da prática da cidadania ocidental. O foco
cluindo a Inglaterra, exigiu um aprendizado de sé culos. É das mudan ças está localizado em dois pontos: a redução do
possível que, apesar da desvantagem da inversão da ordem papel central do Estado como fonte de direitos e como arena
dos direitos, o exercício continuado da democracia pol ítica, de participação, e o deslocamento da nação «orno principal
embora imperfeita, permita aos poucos ampliar o gozo dos fonte de identidade coletiva. Dito de outro modo, trata-se de
direitos civis, o que, por sua vez, poderia refor çar os direi ¬ um desafio à instituição do Estado-nação. A redu ção do pa¬
tos políticos, criando um círculo virtuoso no qual a cultura pel do Estado em benef ício de organismos e mecanismos de
política tamb é m se modificaria. controle internacionais tem impacto direto sobre os direitos
Na corrida contra o tempo, há fatores positivos. Um de¬ políticos. Na Uni ão Européia, os governos nacionais perdem
les é que a esquerda e a direita parecem hoje convictas do poder e relevância diante dos órgãos políticos e burocr áticos
valor da democracia. Quase todos os militantes da esquerda supranacionais. Os cidadãos ficam cada vez mais distantes de
armada dos anos 70 são hoje políticos adaptados aos proce¬ seus representantes reunidos em Bruxelas. Grandes decisõ es
dimentos democr áticos. Quase todos aceitam a via eleitoral políticas e económicas são tomadas fora dó âmbito nacional.
de acesso ao poder. Por outro lado, a direita també m, salvo Os direitos sociais também são afetados. A exigência de
poucas exceções, parece conformada com a democracia. Os reduzir o déficit fiscal tem levado governos de todos os países
militares têm-se conservado dentro das leis e não h á indí¬ a reformas no sistema de seguridade social. Essa redução tem
cios de que estejam cogitando da quebra das regras do jogo. resultado sistematicamente em cortes de benef ícios e na
Os rumores de golpe, freqiientes no per íodo pós-45, já h á descaracterização do estado de bem -estar. A competição fe¬
algum tempo que não v êm perturbar a vida política nacio- roz que se estabeleceu entre as empresas também contribuiu

224 225
JOS É M URILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

para a exigencia de redu ção de gastos via poupan ça de mão- causa da longa tradi ção de estatismo, dif ícil de reverter de um
de-obra, gerando um desemprego estrutural dif ícil de elimi¬ dia para outro. Depois, pelo fato de que h á ainda entre nós
nar. Isso por sua vez, no caso da Europa, leva a pressõ es con¬ muito espaço para o aperfei ç oamento dos mecanismos
tra a presen ça de imigrantes africanos e asiáticos e contra a institucionais de representação. Mas alguns aspectos das mu ¬
extensão a eles de direitos civis, pol íticos e sociais. O pensa¬ danças seriam ben éficos. O principal é a ênfase na organiza¬
mento liberal renovado volta a insistir na importância do ção da sociedade. A inversão da seqiiência dos direitos refor¬
mercado como mecanismo auto-regulador da vida económi¬ çou entre n ós a supremacia do Estado. Se há algo importante
ca e social e, como conseqiiência, na redução do papel do a fazer em termos de consolidação democr ática, é refor çar a
Estado. Para esse pensamento, o intervencionismo estatal foi organização da sociedade para dar embasamento social ao
¬ político, isto é, para democratizar o poder. A organização da
um par êntese infeliz na história iniciado em 1929, em decor
r ência da crise das bolsas, e terminado em 1989 após a queda sociedade n ão precisa e não deve ser feita contra o Estado em
do Muro de Berlim. Nessa visão, o cidadão se torna cada vez si. Ela deve ser feita contra o Estado clientelista, corporativo,
mais um consumidor, afastado de preocupaçõ es com a políti¬ colonizado.
ca e com os problemas coletivos. Os movimentos de minorias Experiências recentes sugerem otimismo ao apontarem na
nos Estados Unidos contribuíram, por sua vez, para minar a direção da colaboração entre sociedade e Estado que n ão fo ¬
identidade nacional ao colocarem ênfase em identidades cul¬ gem totalmente à tradi ção, mas a reorieritam na dire ção
turais baseadas em gênero, etnia, op ções sexuais etc. Assim sugerida. A primeira tem origem na sociedade. Trata-se do
¬ surgimento das organizações n ão -governamentais que, sem
como h á enfraquecimento do poder do Estado, h á fragmen
tação da identidade nacional. O Estado-nação se vê desafia¬ serem parte do governo, desenvolvem atividades de interesse
do dos dois lados. público. Essas organizações se multiplicaram a partir dos anos
Diante dessas mudanças, países como o Brasil se vêem fren ¬ finais da ditadura, substituindo aos poucos os movimentos
te a uma ironia. Tendo corrido atr ás de uma noção e uma sociais urbanos. De início muito hostis ao governo e depen ¬

pr ática de cidadania geradas no Ocidente, e tendo consegui¬ dentes de apoio financeiro externo, dele se aproximaram ap ós
do alguns êxitos em sua busca, v ê em-se diante de um cen ário a queda da ditadura e expandiram as fontes internas de re ¬
internacional que desafia essa noção e essa pr ática. Gera-se cursos. Da colaboração entre elas e os governos municipais,
um sentimento de perplexidade e frustração. A pergunta a se estaduais e federal, têm resultado experi ências inovadoras no
fazer, então, é como enfrentar o novo desafio. encaminhamento e na solução de problemas sociais, sobretu ¬
As mudan ças ainda n ão atingiram o país com a for ça do nas áreas de educação e direitos civis. Essa aproximação
verificada na Europa e, sobretudo, nos Estados Unidos. Não n ão conté m o v ício da “ estadania ” e as limita çõ es do
seria sensato reduzir o tradicional papel do Estado da manei corporativismo porque democratiza o Estado. A outra mudan¬
ra radical proposta pelo liberalismo redivivo. Primeiro, poi ça tem origem do lado do governo, sobretudo dos executivos

226 227
CIDADANIA NO BRASIL
JOS É MURILO DE CARVALHO

da cidadania entre nós, qual seja, a incapacidade do sistema


municipais dirigidos pelo Partido dos Trabalhadores. Muitas representativo de produzir resultados que impliquem a redu ¬
prefeituras experimentam formas alternativas de envolvimento ção da desigualdade e o fim da divisão dos brasileiros em cas¬
da população na formulação e execu ção de políticas públicas, tas separadas pela educaçã o, pela renda, pela cor. José
sobretudo no que tange ao or çamento e às obras públicas. A Bonif ácio afirmou, em representação enviada à Assembl éia
parceria aqui se d á com associações de moradores e com or ¬ Constituinte de 1823, que a escravidão era um câncer que
ganizações n ão-governamentais. Essa aproximação não tem corroía nossa vida cívica e impedia a construção da nação. A
os vícios do paternalismo e do clientelismo porque mobiliza desigualdade é a escravidão de hoje, o novo câncer que impe ¬
o cidad ão. E o faz no nível local, onde a participação sempre
de a constitui ção de uma sociedade democr ática. A escravi¬
foi mais fr ágil, apesar de ser aí que ela é mais relevante para a d ão foi abolida 65 anos após a advertência de José Bonif ácio.
vida da maioria das pessoas.
A precária democracia de hoje n ão sobreviveria a espera tão
Mas h á tamb é m sintomas perturbadores oriundos das longa para extirpar o câncer da desigualdade.
mudan ças trazidas pelo renascimento liberal. Não me refiro
à defesa da redu ção do papel do Estado, mas ao desenvolvi ¬
mento da cultura do consumo entre a população, inclusive a
mais excluída. Exemplo do fenômeno foi a invasão pacífica
de um shopping center de classe média no Rio de Janeiro por
um grupo de sem-teto. A invasão teve o m érito de denunciar
de maneira dram ática os dois brasis, o dos ricos e o dos po ¬
bres. Os ricos se misturavam com os turistas estrangeiros mas
estavam a l éguas de distância de seus patr ícios pobres. Mas
ela tamb ém revelou a perversidade do consumismo. Os sem-
teto reivindicavam o direito de consumir. Não queriam ser
cidad ãos mas consumidores. Ou melhor, a cidadania que rei ¬
vindicavam era a do direito ao consumo, era a cidadania pre ¬
gada pelos novos liberais. Se o direito de comprar um telefo ¬
ne celular, um t ê nis, um relógio da moda consegue silenciar
ou prevenir entre os excluídos a militância política, o tradicio ¬
nal direito pol ítico, as perspectivas de avan ço democrático se
v ê em diminu ídas.
As duas experi ê ncias favorecem, a cultura do consumo
dificulta o desatamento do n ó que torna tão lenta a marcha
229
228
Sugestões de leitura

A análise feita neste livro cobre um vasto período. A literatu¬

ra pertinente é enorme. As sugestõ es que se seguem têm ape ¬


nas a finalidade de facilitar o trabalho dos que quiserem
aprofundar o tema.

O livro de T. H. Marshall aqui utilizado é Cidadania, classe


social e status (Rio de Janeiro, Zahar, 1967 ). Existem duas
histórias gerais do Brasil de boa qualidade. A primeira é a
História geral da civilização brasileira, organizada por Sé rgio
¬
Buarque de Holanda ( Colónia e Impé rio) e Boris Fausto (Re
¬
pública). Foi publicada em São Paulo pela Difel em 11 volu
mes, entre 1960 e 1984. A segunda, mais recente, é parte da
Cambridge History of Latin America , organizada por Leslie
Bethell e publicada pela Cambridge University Press. Dois
volumes já saíram em português pela Edusp. Recentes tam ¬
bém, e mais acessíveis, são a História do Brasil de Boris Fausto
(São Paulo, Edusp, 1996), Trajetória política do Brasil, de
Francisco Igl ésias ( Companhia das Letras, 1993), e História
geral do Brasil , organizada por Maria Yedda Linhares ( Rio de
¬
Janeiro, Campus, 9“ ed., 2000). Para o período contemporâ
neo, há um bom resumo dos acontecimentos em dois livros de
Thomas Skidmore, Brasil: de Getúlio a Castelo (Rio de Janeiro,

2 31
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

Saga, 1969) e Brasil: de Castelo a Tancredo (Rio de Janeiro, que vai de 1900 a 1980, foi organizada por Darcy Ribeiro e
Paz e Terra, 1988). Textos mais analíticos podem ser encon .
se intitula Aos trancos e barrancos Como o Brasil deu no
trados em Hélio Jaguaribe et alii, Brasil, sociedade democrᬠque deu (Rio e Janeiro, Guanabara Dois, 1985 ).
tica ( Rio de Janeiro, José Olympio, 1985 ), e Bol ívar Há ainda rica literatura que aborda diretamente o tema
Lamounier, org., De Geisel a Collor: o balanço da transição da cidania em seus v ários aspectos. O impacto da escravid ão
(São Paulo, Sumar é, 1990). sobre a cultura política é discutido de maneira arguta por
Há alguns ensaios clássicos de interpretação do Brasil de Joaquim Nabuco em O abolicionismo, publicado pela primeira
grande relev ância para o tema da cidadania, embora n ão o vez em Londres, em 1883, e republicado vá rias vezes. A situa¬
tratem diretamente nem exclusivamente e adotem perspec¬ ção do negro na sociedade atual é discutida por Florestan
tivas muito variadas. Cito, por ordem cronol ógica: Alberto Fernandes em A integração do negro na sociedade de classes
Torres, O problema nacional brasileiro (Rio de Janeiro, Im¬ (São Paulo, Dominus Editora, 1965) e por K átia de Queir ós
prensa Nacional, 1914), Gilberto Freyre, Casa-grande e sen¬ Mattoso em Ser escravo no Brasil (São Paulo, Brasiliense,
zala (Rio de Janeiro, José Olympio, 1933), Sérgio Buarque 1988 ). As desigualdades que afetam a posição de negros e
de Holanda, Raízes do Brasil (Rio de Janeiro, José Olympio, pardos no Brasil de hoje são documentadas por Carlos A.
1936), Nestor Duarte, A ordem privada e a organização po¬ Hasenbalg em Discriminação e desigualdades raciais no Bra¬
lítica nacional (S ão Paulo, Companhia Editora Nacional, sil (Rio de Janeiro, Graal, 1979 ). As limitações impostas à
cidadania pela grande propriedade agrária são abjeto de qua¬
1939 ), Victor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto. O
se todos os ensaios citados acima. Os movimentos messiânicos
municí pio e o regime representativo no Brasil (Rio de Janei¬
tiveram em Euclides da Cunha um cl ássico analista em Os
ro, Forense, 1949 ), Oliveira Vianna, Instituições políticas
sert ões, publicado em 1902. Para estudo mais acadê mico,
brasileiras (Rio de Janeiro, José Olympio, 1949), Clodomir
pode -se consultar Maria Isaura Pereira de Queiroz, O
Vianna Moog, Bandeirantes e pioneiros. Paralelo entre duas
messianismo no Brasil e no mundo (São Paulo, Dominus,
culturas (Rio de Janeiro, José Olympio, 1955 ), Raymundo 1965 ). As tend ê ncias do movimento oper ário na Primeira
Faoro, Os donos do poder. Formação do patronato político Rep ública são discutidas por Bóris Fausto em Trabalho urba¬
brasileiro (Porto Alegre, Globo, 1958), Simon Schwartzman, no e conflito social (São Paulo, Difel, 1977), as relações entre
S ão Paulo e o Estado nacional (S ão Paulo, Difel, 1975), o liberalismo e a política trabalhista de Vargas são o tema de
Florestan Fernandes, A revolução burguesa no Brasil (Rio de Luiz Werneck Vianna em Liberalismo e sindicato no Brasil (Rio
Janeiro, Zahar, 1975), Roberto daMatta, Carnavais, malan¬ de Janeiro, Paz e Terra, 1976), os esfor ços do Estado Novo
dros e heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro (Rio de cooptar o operariado urbano são analisados por Angela Ma¬
de Janeiro, Zahar, 1979 ), Richard M. Morse, O espelho de ria de Castro Gomes em A invenção do trabalhismo (Rio de
Próspero (São Paulo, Companhia das Letras, 1988 ). Uma Janeiro/São Paulo: IUPERJ/Vértice, 1988). A estrutura sindi ¬
bem -humorada e heterodoxa cronologia política do Brasil, cal pós-30 foi estudada por José Albertino Rodrigues, Sindi -
232 233
JOS É MURILO DE CARVALHO CIDADANIA NO BRASIL

cato e desenvolvimento no Brasil (São Paulo, Difusão Euro - (São Paulo, Vértice/Massangana, 1989). Ver também Vera da
péia do Livro, 1966), e por Leoncio Martins Rodrigues, Con¬ Silva Telles, Direitos sociais: afinal, do que se trata? (Belo Ho¬
flito industrial e sindicalismo no Brasil (São Paulo, Difusão rizonte, Editora da UFMG, 1999). Sobre legislação social e
Européia do Livro, 1966). trabalhista, veja se Délio Maranhão, Direito do trabalho (Rio
-
A discussão mais bem documentada da participação elei¬ de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 3a ed., 1974). Para uma
toral no Império foi feita por Richard Graham em Clien - discussão das relações entre a reforma do Judiciário e a de¬
telismo e política no Brasil do século XIX (Rio de Janeiro, Ed. .
mocracia, ver José Eduardo Faria, Direito e justiça A função
da UFRJ, 1997). A cidadania na Primeira República foi dis¬ social do Judiciário (São Paulo, Ática, 1989). Os direitos civis
cutida por José Murilo de Carvalho em Os bestializados. O e a violência são discutidos em Dulce Pandolfí et alii Cidada¬ ,
Rio de Janeiro e a República que não foi (São Paulo, Compa¬ nia, justiça e violência (Rio de Janeiro, Editora Fundação
nhia das Letras, 1987). O problema dos partidos políticos após Getúlio Vargas, 1999). An álise da repressão durante a dita¬
1930 tem uma boa análise em Maria do Carmo C. Campello dura militar foi feita por Marcos Figueiredo em L. Klein e M.
de Souza, Estado e partidos políticos no Brasil ( 1930 1964 )
- Figueiredo, Legitimidade e coação no Brasil pós 64 (Rio de
-
(São Paulo, Alfa- Omega, 1976). Rico em informações esta¬ Janeiro, Forense, 1978).
tísticas, incluindo dados in éditos de pesquisa de opini ão pú ¬ A melhor fonte para informações estatísticas são as publi¬
blica anterior a 1964, é o livro de Antônio Lavareda, A demo¬ cações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) .
cracia nas urnas. Processo partidário eleitoral brasileiro (Rio Foram de especial utilidade as seguintes: Akuário estatístico
de Janeiro, IUPERJ/Rio Fundo Editora, 1991). Os movimen¬ do Brasil, 1998 (Rio de Janeiro, 1999 ); Estatísticas hist óricas
tos associativos da d écada de 70 e suas relações com a demo¬ do Brasil . Séries económicas, demográ ficas e sociais, de 15S0
cracia são estudados por Renato Raul Boschi em A arte da a 1988 (Rio de Janeiro, 2a ed., 1990); Participação político-
associação. Política de base e democracia no Brasil (Rio de .
social, 1988 (Rio de Janeiro, 1990); Sindicatos Indicadores
Janeiro/São Paulo, IUPERJ/Vértice, 1987). As possibilidades sociais, vols. 1 e 2 (Rio de Janeiro, 1987 e 1988); e a série
da democracia direta após o fim do regime militar são explo¬ Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNAD , cuja

radas por Maria Victoria de Mesquita Benevides em A cida¬ última versão é de 1998 (Rio de Janeiro, 1989). Sé ries esta¬
dania ativa. Referendo, plebiscito e iniciativa popular (São tísticas económicas e demogr áficas, acompanhadas de análi ¬
Paulo, Ática, 1991). ses precisas, encontram-se em Anníbal Villanova Villela e
Os direitos sociais e sua relação com a cidadania foram Wilson Suzigan, orgs., Política do governo e crescimento da
abordados por Wanderley Guilherme dos Santos em Cida¬ economia brasileira, 1889-1945 (Rio de Janeiro, IPEA/INPES,
dania e justiça A política social na ordem brasileira (Rio
. 2a ed., 1975 ). Muito ú til para indicadores políticos e para
de Janeiro, Campus, 1979) e em Alexandrina Moura, org., dados sobre a repressão política é Que Brasil é este? Manual
O Estado e as políticas públicas na transição democrática de indicadores políticos e sociais, organizado por Violeta Maria

234 235
JOS É MURILO DE CARVALHO

Monteiro e Ana Maria Lustosa Caillaux, sob a coordenação


de Wanderley Guilherme dos Santos (Rio de Janeiro/São Paulo,
¬
IUPERJ/Vertice, 1990). Os dados eleitorais para os anos re
centes foram sistematizados por Jairo Marconi Nicolau, org.,
Dados eleitorais do Brasil (1982-1996 ) (Rio de Janeiro, Revan/
IUPERJ, 1998).

Este livro foi composto na tipología Classical


Garamond, em corpo 11/15, e impresso em
papel off-white 80g/m2 no Sistema Cameron
da Divisã o Gr á fica da Distribuidora Record
.

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