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ORGANIZADORES

ANNA PAULA BAGETTI ZEIFERT


JOICE GRACIELE NIELSSON
MAIQUEL ÂNGELO DEZORDI WERMUTH

CIÊNCIAS CRIMINAIS & DIREITOS HUMANOS


Volume II

Editora Refletindo o Direito


2017
CIÊNCIAS CRIMINAIS & DIREITOS HUMANOS
Volume II

Organizadores:
ANNA PAULA BAGETTI ZEIFERT
JOICE GRACIELE NIELSSON
MAIQUEL ÂNGELO DEZORDI WERMUTH

1ª Edição | 2017 | Bento Gonçalves

E-mail de atendimento: revistardireito@gmail.com


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Código Penal.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Z46b

Zeifert, Anna Paula Bagetti; Nielsson, Joice Graciele;


Wermuth, Maiquel Ângelo Dezordi (Orgs.)

CIÊNCIAS CRIMINAIS & DIREITOS HUMANOS - Volume II / Anna Paula Bagetti Zeifert,
Joice Graciele Nielsson, Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth (orgs). Bento Gonçalves, RS:
Associação Refletindo o Direito, 2017.
814 f.
ISBN 978-85-67584-24-9
1. Novos direitos. 2. Jurisdição. 3. Democracia. 4. Direitos Humanos. I. Zeifert, Anna
Paula Bagetti II. Nielsson, Joice Graciele III. Wermuth, Maiquel Ângelo Dezordi IV. Título.
SUMÁRIO
1. AS (IM)POSSIBILIDADES DA PAZ EM UM CENÁRIO DE MEDO: A
CONTEMPORANEIDADE E O ESTADO DE GUERRA GLOBAL..............................12
Aline Michele Pedron Leves e Tamires De Lima De Oliveira

2. A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA E A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO


INSTRUMENTO DE INCLUSÃO SOCIAL............................................................27
Aline Beatriz Müller e Alisson Goulart Coffi

3. MIGRAÇÕES E DIREITOS HUMANOS NA CONTEMPORÂNEIDADE: A LUTA PELO


DIREITO HUMANO DO IMIGRANTE NA PERSPECTIVA NACIONAL...................40
Camila Rodrigues da Rocha e Micheli Pilau de Oliveira

4. JUSTIÇA SOCIAL E SOCIEDADE BEM ORDENADA A PARTIR DE JOHN RAWLS...56


Daiane Calioni Berton e Ana Maria Foguesatto

5. POLÍTICAS PÚBLICAS: COTAS RACIAIS A PARTIR DA LEI 12.711/12 NO ÂMBITO


DO ENSINO SUPERIOR...................................................................................67
Fagner Fernandes Stasiaki e Thaís Kerber de Marco

6. O MEDO DO“ ‘EFUGIADO“: UMA ANÁLI“E A PA‘TI‘ DO LIV‘O CONFIANÇA E


MEDO NA CIDADE DE ZIGMUNT BAUMAN.....................................................84
Gabriel Maçalai e Verônica Ottonelli

7. BRASIL, O PAÍS QUE MAIS MATA: UMA ANÁLISE CRÍTICA ACERCA DA


VIOLÊNCIA CONTRA TRAVESTIS E TRANSEXUAIS...........................................94
Juliana Oliveira Santos e Kaoanne Wolf Krawczak

8. A P‘OTEÇÃO QUE INDEPENDE DA O‘IENTAÇÃO “EXUAL : A


(IM)POSSIBILIDADE DE APLICAR A LEI MARIA DA PENHA PARA PROTEGER ÀS
TRANSEXUAIS.............................................................................................107
Kaoanne Wolf Krawczak e Ana Maria Foguesatto

9. A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: UMA ANÁLISE JUNTO AOS ÓRGÃOS DE


ACOMPANHAMENTO NO MUNICÍPIO DE CRUZ ALTA....................................122
Márcio Jean Malheiros Mendes e Ângela Simone Pires Keitel

10. A EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS NAS ESCOLAS COMO MECANISMO


PARA DIMINUIÇÃO DA VIOLÊNCIA...............................................................135
Matheus da Silva van der Ham e Enio Waldir da Silva

11. A DECRETAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA DE PARLAMENTAR (DETENTOR DE


IMUNIDADE FORMAL) PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O DIREITO
CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO: UMA ANÁLISE DE CASO
COM OLHAR GARANTISTA...........................................................................148
José Ricardo Maciel Nerling e Regina Gütler Carvalho
12. DESIGUALDADE DE GÊNERO: A (IN)EFETIVIDADE DO DIREITO PENAL
BRASILEIRO NA PROTEÇÃO DA MULHER......................................................161
Carla Cristiane de Castro, Natalia Letícia Mendonça e Dhieimy Quelem Waltrich

13. OS NOVOS DESDOBRAMENTOS DA FAMÍLIA PATRIARCAL: INFLUÊNCIAS NO


FEMINICÍDIO...............................................................................................176
Bianca Strücker e Gabriel Maçalai

14. PAU QUE BATE EM CHICO NÃO BATE EM F‘ANCI“CO : A “ELETIVIDADE DO


CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS NO BRASIL DIANTE DO FRACASSO DA POLÍTICA
PROIBICIONISTA.........................................................................................190
Gabrielle Scola Dutra

15. O SUPERENCARCERAMENTO E A DECISIVA CONTRIBUIÇÃO DO PODER


JUDICIÁRIO ATRÁVES DA PRISÃO PREVENTIVA............................................203
Lucas da Silva Santos e Felipe da Veiga Dias

16. A FENOMENOLOGIA DA SELETIVIDADE E A SUA RELAÇÃO COM O SISTEMA


PENAL BRASILEIRO......................................................................................217
Alena Ocom Moreira e Tainah Motta Nascimento

17. AS MÍDIAS INDEPENDENTES E O FORTALECIMENTO DOS DIREITOS


HUMANOS..................................................................................................229
Vinicius Bindé Arbo de Araujo

18. TERRORISMO DE ESTADO: As graves violações aos Direitos Humanos...........240


Aline Patrícia Klinger e Joice Graciele Nielsson

19. BIOPOLÍTICA, O DISCURSO JURÍDICO-PENAL E AS IMPLICAÇÕES ÉTICAS PARA


OS DIREITOS HUMANOS NA CONTEMPORANEIDADE...................................255
Aline ferreira da Silva Diel e Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

20. INSIGNIFICÂNCIA E REINCIDÊNCIA: A APLICAÇÃO DA ATIPICIDADE MATERIAL


FRENTE À REITERADA CONDUTA DELITIVA DO AGENTE................................273
André Giovane de Castro e Yana Paula Both Voos

21. REFLEXÕES ACERCA DA MANIFESTAÇÃO DA CULTURA DO ESTUPRO NA


ATUALIDADE...............................................................................................286
Bruna Schmidt Bronzatto e Joice Graciele Nielsson

22. CRIMINALIZAÇÃO DA LOUCURA: ENTRE MUROS E GRILHÕES.......................297


Carhla de Oliveira Alves e Bruna Garzella Michael

23. UMA MOEDA DE T‘OCA NA“ PENITENCIÁ‘IA“: O DIREITO À SAÚDE DOS


TRANSEXUAIS NO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO.................................314
Carolina Andrade Barriquello, Kaoanne Wolf Krawczak e Janaína Machado Sturza
24. SECULARIZAÇÃO, LAICIDADE E LAICISMO: DELINEANDO CONCEITOS E
AMPLIANDO O DEBATE...............................................................................331
Celso Gabatz

25. VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS PELAS EMPRESAS TRANSNACIONAIS E OS


MECANISMOS JURÍDICO-NORMATIVO........................................................345
Fernanda Barboza Bonfada e Mateus de Oliveira Fornasier

26. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: UMA LEITURA A PARTIR DE IMMANUEL


KANT...........................................................................................................355
Jaime Lisandro Martini

27. A PERSPECTIVA DA CLÍNICA AMPLIADA NO CONTEXTO PRISIONAL:


P‘ODUZINDO LIBE‘DADE“ ........................................................................
Karine Müller Dutra e Liamara Denise Ubessi

28. O IMPACTO DO PROCESSO DE PRECARIZAÇÃO DAS RELAÇOES DE TRABALHO


SOBRE A VIDA DAS TRABALHADORAS BRASILEIRAS DO SÉCULO XXI.............382
Letícia Baptista Fagundes e Joice Graciele Nielsson

29. A VERDADE POR TRÁS DOS BASTIDORES: A DITADURA MILITAR NÃO MATOU
VAGABUNDOS, BANDIDOS, IMINIGOS INTERNOS E TERRORISTAS................396
Luane Flores Chuquel, Alef Felipe Meier e Ivo dos Santos Canabarro

30. PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR: A RESPONSABILIDADE PENAL NA PUBLICIDADE


ENGANOSA E ABUSIVA................................................................................412
Natalia Letícia Mendonça e Eliete Vanessa Schneider

31. A PROBLEMÁTICA DA PSICOPATIA NA SOCIEDADE E NO ORDENAMENTO


JURÍDICO BRASILEIRO..................................................................................427
Patrick Prestes Hauenstein e Rafaella Bao Ficagna

32. CA‘ANDI‘U: A LEGÍTIMA DEFE“A QUE TI‘OU A VIDA DE 111


DETENTOS...................................................................................................441
Rafaela Weber Mallmann e Vera Lucia Spacil Raddatz

33. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA DOS EMBRIÕES EM FACE DA


LEI DE BIOSSEGURANÇA Nº. 11.105/05.......................................................452
Renata Oliveira Leal

34. DO ÍMPETO DOS CONFETES ÀS AGRESSÕES CONTRA A MULHER: RECORTES DE


VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL DURANTE O CARNAVAL........................464
Schirley Kamile Paplowski e Bibiana de Quadros

35. MOTIVAÇÕES DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: seria possível defini-las?............480


Taiane Lemos Lorencena e Dhieimy Quelem Waltrich
36. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO TRIBUNAL DO JÚRI: instrumentos para
efetivação dos direitos humanos e fundamentais........................................490
Roberto Fagundes Audino, Evandro Luis Sippert e João Alfredo Trelha Goulart

37. A APLICAÇÃO DO DOLO EVENTUAL E DA CULPA CONSCIENTE NOS HOMICÍDIOS


DECORRENTES DE ACIDENTES DE TRÂNSITO MOTIVADOS POR
EMBRIAGUEZ..............................................................................................503
Bianca Pivetta Nunes e Luis Felipe Frassoni de Abreu

38. VIOLÊNCIA, RISCO E LEGISLAÇÃO SIMBÓLICA: A EMERGÊNCIA DO ESTADO DE


EXCEÇÃO.....................................................................................................518
José Francisco Dias da Costa Lyra e Francis Rafael Mousquer

39. DA TIRANIA DA MAIORIA À TIRANIA DA NORMA FUNDAMENTAL................534


Maurício Fontana Filho

40. (RE) PENSANDO O CONFLITO SOCIAL BRASILEIRO E O TRATAMENTO POLÍTICO


CRIMINAL: UMA ABORDAGEM CRÍTICA A PARTIR DA ANÁLISE DA OBRA
CINEMATOG‘ÁFICA ÚLTIMA PA‘A 1 ....................................................548
Fernanda Licéli Lowe e Karine de Castro Kotlewski

41. O ESTADO DE EXCEÇÃO COMO PARADIGMA DE GOVERNO NA


CONTEMPORANEIDADE E O TENSIONAMENTO DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS..........................................................................................562
Adalberto Wolney da Costa Belotto e Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth

42. DIREITO E FEMINISMO: SUPERAÇÃO DO FORMALISMO DOGMÁTICO JURÍDICO


DA MODERNIDADE......................................................................................578
Joice Graciele Nielsson e Raquel Cristiane Feistel Pinto

43. ECONOMIA E PUNIÇÃO: UMA ANÁLISE CRITÍCA DA POLÍTICA CRIMINAL


PUNITIVISTA...............................................................................................594
Graciana Kemp Maas e Luiz Alberto Brasil Simões Pires Filho

44. DIREITO PENAL DO INIMIGO, GUERRA ÀS DROGAS E SEUS RESULTADOS: QUAIS


OS BENEFÍCIOS DE LEGALIZAR?....................................................................609
Brunno Leonarczyk Bomfim]

45. FALSAS MEMÓRIAS: UM OLHAR SOBRE O DEPOIMENTO INFANTIL NO


PROCESSO PENAL........................................................................................622
Luana Binkowski da Rosa e Emmanuelle Malgarim

46. PRODUÇÃO DE PROVAS PENAIS E A INDETERMINAÇÃO INTERPRETATIVA: A


ALTERNATIVA DOS STANDARDS PROBATÓRIOS...........................................636
Rafael Giorgio Dalla Barba e William Galle Dietrich

47. O RECONHECIMENTO DE PESSOAS COMO MEIO PROBATÓRIO SUSCETÍVEL À


INFLUÊNCIA DO FENÔMENO DAS FALSAS MEMÓRIAS..................................650
Maiara Müller Vincensi e Patrícia Borges Moura
48. DECISÕES QUE PODEM SER CONSIDERADAS ATIVISTAS NA ESFERA PENAL:
AVANÇOS OU RETROCESSOS?......................................................................666
Joici Antonia Ziegler e Rosemara Unser

49. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA: A BUSCA PELA HUMANIZAÇÃO DO PROCESSO


PENAL BRASILEIRO E SEUS REFLEXOS NO SISTEMA PRISIONAL......................677
Luana Carolina Bonfada e Patrícia Borges Moura

50. REFLEXÕES SOBRE CORRUPÇÃO COMO OBSTÁCULO À CONSTRUÇÃO DA


CIDADANIA E O DESENVOLVIMENTO DE POLÍTICAS SOCIAIS.........................690
Poliana Dill e Eloisa Nair de Andrade Argerich

51. A LUTA DOS CATADORES DE RESÍDUOS SÓLIDOS DE IJUÍ NA PERSPECTIVA DOS


DIREITOS SOCIAIS FUNDAMENTAIS EM BUSCA DE MELHORES CONDIÇÕES DE
VIDA E RENDA DIGNA..................................................................................704
Diéssica Rodrigues Adam e Eloisa Nair de Andrade Argerich

52. A VIOLÊNCIA NO AMBIENTE ESCOLAR E A CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA DE


PAZ.............................................................................................................719
Carolina Attuati e Enio Waldir da Silva

53. MENORES INFRATORES E DIREITOS HUMANOS............................................741


Adriana Rafaela Paz Dias

54. THE DECRIMINALIZATION OF DOMESTIC VIOLENCE IN RUSSIA......................754


Rodrigo Tonel e Rogério de Almeida Dilkin

55. POLÍTICAS PÚBLICAS, DISCURSO JURÍDICO E APROXIMAÇÃO POPULAR EM


RELAÇÃO AOS AGRICULTORES DE VIDEIRAS EM BENTO GONÇALVES,
RS...............................................................................................................754
Camila Paese Fedrigo

56. O QUE HÁ DE SAGRADO NA NUDEZ ABSTRATA DE UM SER HUMANO? Os


movimentos migratórios contemporâneos, as insuficiências das Declarações de
Direitos Humanos e a necessidade da justificação do respeito aos Direitos
Humanos no plano moral.............................................................................780
Anna Paula Bagetti Zeifert, Joice Graciele Nielsson e Maiquel Ângelo Dezordi
Wermuth

57. UM OLHAR SOBRE O DIREITO PENAL DO INIMIGO: SUA INFLUÊNCIA E


RESULTADOS NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA...................................................798
Erni Bernkopf, Braian Barros Braz e Lisiane Beatriz Wickert

58. A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL: DIREITO À VIDA DO


NASCITURO E DIREITOS FUNDAMENTAIS DA GESTANTE...............................815
Luís Fernando Pretto Corrêa, Graziele Strada e Janaína Machado Sturza
APRESENTAÇÃO

Os sistemas penais contemporâneos se constituíram e legitimaram a partir de


uma dupla promessa, qual seja: a segurança individual e a defesa social, manifestadas
por meio de uma função geral de contenção da violência. Se em suas origens, o sistema
penal constituiu-se com o objetivo principal de garantir a segurança individual em face
do arbítrio punitivo estatal – a ser assegurada a partir da estrita legalidade dos delitos e
das penas –, com seu desenvolvimento histórico, passou a legitimar-se
preponderantemente pela ideia de defesa social.
No entanto, em que pese a existência de tais promessas no bojo do discurso
jurídico-penal brasileiro, a história das práticas punitivas em terrae brasilis evidencia um
profundo descompasso entre as funções proclamadas e as funções realizadas,
descompasso este que tem desencadeado um processo de crise de legitimidade do
sistema punitivo, uma vez que, antes da defesa do indivíduo em face do poder de punir
do Estado e/ou da sociedade em face da criminalidade, chegou-se à conclusão de que a
função precípua da pena é conformar cada estrato social no lugar que lhe é designado
pela estrutura econômica. Quer dizer: a punição está diretamente vinculada ao modelo
de produção vigente, como forma de controle daqueles que representam uma potencial
ameaça.
Em um contexto tal, aduz Zaffaroni1 que são os fatos relacionados à sua atuação
os principais indícios da deslegitimação dos sistemas punitivos. Com efeito, o panorama
de crise de legitimidade que vem sendo enfrentado pelo sistema penal brasileiro na
atualidade decorre da sua operacionalidade real, a qual demonstra a sua incapacidade
de se justificar a seletividade que lhe é inerente, uma vez que se volta precipuamente
contra os estratos mais carentes da população, mesmo em uma sociedade em que,
como se constatou a partir dos estudos criminológicos contemporâneos, em especial da
contribuição teórica da Criminologia Crítica, o fenômeno da criminalidade é ubíquo e
ajoritário, e ão atri uto de u a i oria doe te , o soa te o outrora propalado
pelos criminólogos positivistas.

1
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Trad. Vania Romano Pedrosa, Amir Lopez da
Conceição. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
A partir desta seletividade da atuação do sistema punitivo brasileiro, torna-se
possível ratificar que o verdadeiro e real poder por ele exercido hoje não é diferente
daquele que lhe era designado quando dos primórdios de nossa história: o controle
social dos setores economicamente hipossuficientes da sociedade, que são
inconvenientes à configuração social desencadeada pelo sistema de produção, no qual
são os grupos que detêm o poder econômico que possuem a capacidade de definir as
infrações criminosas, assim como de garantir a impunidade de suas próprias condutas
delitivas, configurando, deste modo, a realidade social de acordo com os seus
interesses. Neste contexto, o papel que o sistema punitivo brasileiro ainda desempenha
é o de garantidor/reprodutor da violência estrutural inerente ao modelo capitalista de
formação socioeconômica.
Nesse rumo, refere Andrade2 que a criminalidade é imputada aos estratos
economicamente hipossuficientes da sociedade mediante juízos atributivos que são
realizados a partir dos processos de criminalização primária e secundária, ou seja,
através da definição dos bens jurídicos a serem protegidos e dos comportamentos
ofensivos a estes bens – os quais são predominantemente relacionados às formas de
desvio típicas das classes desfavorecidas (delitos contra o patrimônio ou contra o
Estado), em detrimento daqueles que dizem respeito a bens e valores como a vida, a
saúde, etc –, bem como da seleção dos indivíduos que serão criminalizados dentre todos
aqueles que praticarem tais comportamentos, quais sejam, os oriundos dos níveis mais
baixos da escala social, como consequência lógica da criminalização primária. Destarte,
o etiquetamento do indivíduo enquanto delinquente está intrinsecamente relacionada
à posição social por ele ocupada.
A partir deste background, o livro que ora temos o prazer de apresentar afigura-
se como fruto de um conjunto de pesquisas que foram apresentadas durante a
realização do II Congresso Nacional de Ciências Criminais e Direitos Humanos, na
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, entre os dias 23 e
26 de maio de 2017. Partindo do panorama geral acima delineado, o presente livro
dedica-se a promover o debate de diferentes temáticas relacionadas às Ciências

2
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência
do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.
Criminais, à luz dos Direitos Humanos. Trata-se de uma obra instigante que apresenta
contribuições de diversos autores sobre temas atuais e relevantes no âmbito da
Criminologia, Política Criminal, Direito Penal, Direito Processual Penal e Direitos
Humanos, servindo como uma importante fonte de pesquisa para acadêmicos e demais
interessados no debate acerca da construção de um modelo de Direito Penal mais justo
e igualitário, em conformidade com os postulados de um Estado Democrático de Direito.

Os organizadores.
12

AS (IM)POSSIBILIDADES DA PAZ EM UM CENÁRIO DE MEDO: A CONTEMPORANEIDADE E O


ESTADO DE GUERRA GLOBAL

Aline Michele Pedron Leves1


Tamires De Lima De Oliveira2

RESUMO: Este artigo insere-se na temática da institucionalização da guerra como forma


legítima, ainda que excepcional, de resolução de conflitos internacionais. Destaca-se o perigo
da utilização do paradigma do medo como ferramenta de poder e a correlação
contemporânea entre as noções de Estado de Exceção e Estado de Guerra Global, que se
retroalimentam através das intermináveis novas formas de ameaça geopolítica,
questionando-se a capacidade de efetivação de ideais mínimos de paz universal neste
contexto. O método utilizado é o hipotético-dedutivo, com a técnica da pesquisa bibliográfica.

Palavras-Chave: Direitos Humanos; Guerra Global; Paz Mundial; Sociedade Internacional.

1 INTRODUÇÃO

O resultado das incertezas presentes no mundo contemporâneo globalizado é que


nunca se teve tanto medo e, tampouco se assumiu neste uma dimensão tão onipresente. O
certo é que, quando a guerra passa a ser vista como um estado aceitável do jogo político e o
medo pauta a razão, a noção de busca pela paz mundial se confunde com a busca dos Estados-
nação por maior poder bélico. Vivemos, portanto, em um cenário de medo, sendo o momento
de reconhecer que a existência humana não vai bem, aliás, nada bem.
O breve retorno à história do processo civilizatório secular da sociedade ocidental
demonstra ueàesteà mal estar à oà à e e te,à asà esultadoàdeàu aà o ti uidadeàdeàfato esà
e paradigmas em que a comunidade global inseriu-se e criou ao longo dos séculos. Enfrentar
esta problemática exige, em um primeiro momento, coragem, haja vista a inevitável
ne essidadeàdeàolha àpa aàluga esàat àe t oà pouco agradáveis .àй àu àsegu doà o e to,à
implica saber trabalhar com a desilusão, ou seja, despir-se da ilusão de que os planos da pós-
modernidade, especialmente aqueles de reconhecimento igualitário de direitos e

1
Bacharel em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ;
Mestranda e Bolsista CAPES do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito - Curso de Mestrado em
Direitos Humanos da UNIJUÍ. E-mail: alineleves@hotmail.com.
2
Mestre em Direitos Humanos pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUI, bacharel em Direito pela mesma instituição.
Advogada. E-mail: tamires.lo@outlook.com.
13

manutenção da paz, poderão se concretizar da forma como a agenda internacional os têm


gerido nos últimos anos.
Neste ínterim, deve-se perceber que a problemática da institucionalização do medo e
da aceitação de um estado de guerra global não condiciona somente à forma e estratégias da
organização geopolítica do mundo, mas reflete de forma perigosa na formação de toda uma
racionalidade para a guerra, uma limitação das possibilidades cognoscitivas de aceitar e
pensar a existência de formas pacíficas de resolução de conflitos desde suas origens. Reflete,
de certa forma, uma desistência e um desacreditamento do potencial humano para
construção (simbólica e real) de mundo-comum.
Na atual sociedade internacional as questões suscitadas revestem-se de relevância,
ainda, porque os impasses que geram os conflitos são globalizados, de modo que interessam
a todos os homens e não apenas a grupos isoladamente considerados da humanidade,
integrando as vidas cotidianas dos indivíduos e das estruturas de governança mundial. Assim,
a soma dos perigos e das inseguranças, sua intensificação ou neutralização recíproca, constitui
a dinâmica social e política da sociedade contemporânea, exigindo-se, portanto, uma
consciência universal de responsabilidades dentro e fora das fronteiras nacionais.
Este trabalho enfrenta a temática e as hipóteses levantadas, através do emprego do
método hipotético-dedutivo, aliado com a técnica da pesquisa bibliográfica. Demonstra-se
que o desenvolvimento do Direito da Guerra moderno, construção paralela à consolidação da
noção de direito internacional, foi decisivo para a legitimidade da institucionalização da guerra
como forma de resolução de conflitos e para a formação de uma racionalidade de aceitação
daà iol iaà o oà o diç oà imutável àhu a a.à
Por fim, observa-se que atualmente esta aceitação da guerra, ainda que sob o manto
da suposta excepcionalidade, reflete um paradigma de medo e de constante estado de
exceção, que é tanto temido, quanto desejado, como ferramenta de manutenção do poder
das potências estatais. Tais fatores constituem os desafios para a efetivação de um ideal de
paz mundial, enquanto ausência de violência institucional e privada, na conjuntura
internacional do chamado Estado de Guerra Global.
14

2 Guerra e medo na sociedade internacional: as velhas-novas ferramentas do poder político

A perspectiva do conflito sempre esteve presente nas manifestações da convivência


humana. Até onde se pode aprender acerca da humanidade a partir da filosofia política
ocidental moderna, tem-se que a natureza do homem primitivo era pautada por paixões
beligerantes, fato que o inseria em um contexto de selvageria em antítese à sociabilidade
almejada.
No contexto do estado de natureza, a igualdade natural dos homens ocasionava uma
igual liberdade de agir conforme noções de justiça e defesa de interesses próprios, o que,
paradoxalmente, ocasionava que em um ambiente em que todos eram iguais e livres, ninguém
era de fato livre, tampouco igual, mas viva-seàe à o sta teàestadoàdeà gue aàdeàtodosà o t aà
todos à рOBBй“,à ,à p p iaà deà u aà ealidadeà e à ueà oà ho e à apa e eà o oà aà
et fo aàdeàPlautoà epetidaàpo àрo es:à homo homini lupus à ho e à àoàlo oàdoàho e .
A institucionalização do Estado, enquanto detentor do monopólio do uso da força, de
certa maneira controlou a possibilidade da guerra em nível interno. No entanto, em analogia
com os primórdios da sociabilidade humana de outrora, o excesso de liberdade que
alimentava o poder da soberania dos Estados e a ausência de institucionalização e
regularização das relações entre estes soberanos, criava em âmbito externo uma condição de
austeridade extrema, um mar de Leviatãs.
A guerra era, assim, uma forma natural (de natureza) de resolução de conflitos que, a
partir do renascimento do pensamento filosófico, chegou ao paradoxo da reafirmação de que
a guerra poderia ser uma via aceitável para a paz, nos termos do provérbio latino de Flávio
Veg ioà Si vis pacem, para ellu seà ue àpaz,àp epa e-seàpa aàaàgue a .
Esta noção foi ampliada pela retomada do pensamento escolástico durante os séculos
XV e XVII, na construção da teoria do bellum justum (guerra justa). Relembre-se que naquela
época, interessava especialmente à manutenção do poder do cristianismo e à exploração
mercantil e territorial, justificar o emprego da violência em prol da dominação como algo não
apenas necessário aos fins da evolução civilizatória, mas perversamente como algo justo.
Ocorre que o argu e toà olo izado ,à e asadoà aà o tadeà di i aà daà verdade à ist ,à
começava a ser questionado em face da diversidade religiosa desvelada pela expansão do
protestantismo europeu e a descoberta de povos não-cristãos.
15

A noção de guerra necessitava, então, ser associada a um fundamento de direito, que


coadunado aos anseios de máxima racionalidade e ao processo de laicização composse um
novo argumento legitimador. A empreitada filosófica que antecedeu a consolidação da noção
de guerra moderna perpassou, assim, o pensamento de estudiosos que se inseriram nos
diferentes contextos desta problemática e constituem o pensamento clássico da época.
Em meio ao contexto da colonização espanhola destacou-se Francisco De Vitória
(2006), que embora tenha escrito da perspectiva do povo dominante, reconhecia que a guerra
só poderia ser justa enquanto associada à noção de defesa e não de ofensa. Logo, as incursões
a adasà espa holasà o t aà osà po osà o igi iosà í dios à oà pode ia à se à o side adasà
guerras justas.
Ainda no cenário religioso, Alberico Gentili (2006) argumentou que a guerra justa seria
aquela empregada somente pelo poder soberano, ampliando a noção de guerras públicas
também pensada por Francisco Suárez. Na mesma esteira, Hugo Grotius (2005) veio a
identificar a guerra como um estado (status) daqueles que contendem, mesmo que não
necessariamente soberanos, relembrando a noção já construída por Cícero (1973), que trata
da guerra como um embate que se resolve pela força, independente de quem são os seus
sujeitos.
Ao fazê-lo o jurista holandês traduz a ideia de que a guerra, assim definida enquanto
estado, designa um conjunto de características específicas e um conjunto de condições que
se referem a um modo de estar, no qual se encontram os indivíduos em um determinado
o e to.àÉàoà ueàafi aàe àout aàpa te:à áàgue aà àaàdesig aç oàdeàu àestadoà ueàpodeà
e isti à es oàse àp oduzi àsuasàope aç esàe te a e te à G‘OTIU“,à ,àp.à .àOà ueà
ta à seà dep ee deà ua doà afi aà ueà aà gue aà pú li aà seà p olo gaà eà seà ealimenta
o ti ua e teàpelaàsu ess oàdeà o asà ulpasàeà o asài jú ias à ,àp.à .
Outrossim, comungavam todos da compreensão de que a justiça da guerra apenas
poderia ser associada a um critério de licitude, de estar ou não de acordo com a vontade geral
personificada na norma. A guerra tornava-se, então, parte da prerrogativa de defesa dos
Estados soberanos, um mal reconhecido, mas legitimado e limitado por um novo direito, o
Direito da Guerra.
Assim, da forma que internamente os Estados fortaleciam o sentimento de
nacionalismo e soberania absoluta sob a tutela do Direito, em âmbito externo este sentimento
16

refletia o panorama caótico de Estados desiguais política, jurídica e organicamente, cujo


direito regulador, Direito Internacional (então Direito das gentes), nascia justamente na
tentativa epistemológica de legitimar a guerra. O raciocínio moderno embasava-se, portanto,
na tentativa de abstratização da guerra como forma de apreendê-la aos mecanismos de
regulação social, inserida no objetivo pouco crível, quanto racional, de que esta poderia
realmente encerrar uma ferramenta útil à paz comunitária global.
Pa teà desseà a io í ioà de o e iaà daà afi aç oà daà gue aà o oà fato natural ,à daà
explicação de que seria próprio do humano ser propenso ao conflito, ter esse resquício de
animal selvagem à e à si.à Co fo eà desta aà щe o eà B.à “ h ee i dà ,à p.à ,à aà
modernidade a guerra passou a ser absorvida como um fato e uma questão da vida humana,
como que e à u à pe sa e toà si plistaà ueà eleà e à dese ha:à “o osà se esà
autopreservadores e briguentos; mas somos também sociáveis. Esses dois aspectos da
natureza humana tornam o problema da manutenção da ordem social bastante definido:
como seres briguentos, mas so ial e teàp ope sos,à o oàpode e osà i e àju tos? ,àouàseja,à
conformada a conflituosidade inerente aoàhu a o,à osàse iaài po ta teàaài dagaç oàdeà por
que brigamos? ,à esta doàape asàaàp o le ti aàdeàdes o i à o oà o i e à o àisso,à o oà
criar mecanismosàdeà o t ola àesteà fenômeno social .
A guerra adquiriu, portanto, contornos metafísicos de fato intocáveis e imutáveis, não
muito distante daquele pensamento teológico denunciado pelos pensadores precursores do
processo de secularização que a Modernidade tanto almejou. Realmente, ainda no século
XVIII, Carl Von Clausewitz (2010, p.30) viria a afirmar a fria realidade do conceito de guerra
que a intelectualidade renascentista-iluminista esforçou-se em sedimentar:

A guerra, então, é apenas um verdadeiro camaleão, que modifica um pouco a sua


natureza em cada caso concreto, mas é também, como fenômeno de conjunto e
relativamente às tendências que nela predominam, uma surpreendente trindade em
que se encontra, antes de mais nada, a violência original de seu elemento, o ódio e
a animosidade, que é preciso considerar como um cego impulso natural, depois, o
jogo das probabilidades e do acaso, que fazem dela uma livre atividade da alma, e,
finalmente, a sua natureza subordinada de instrumento da política por via da qual
ela pertence à razão pura.

Eric Hobsbawn (1995) bem observa que intrínseca à compreensão da modernidade


está a necessidade de compreender a noção de guerra global e, acrescenta-se, à necessidade
de reconhecer a existência de um verdadeiro estado de exceção que, paradoxalmente,
17

transforma-se na regra, ocupando desta forma um espaço da normalidade. Este fato torna
ai daà aisào s u aàaàdife e iaç oàe t eàaàdefi iç oàdeàgue aàeàdeàpolíti a,àu aà ezà ueà aà
guerra vai-se transformando no princípio básico de organização da sociedade, reduzindo-se a
políti aàape asàaàu àdeàseusà e u sosàouà a ifestaç es. à рá‘DT;àNйG‘I,à ,àp.à .

Em outras palavras, a guerra transforma-se na matriz geral de todas as relações de


poder e técnicas de dominação, esteja ou não envolvido o derramamento de sangue.
A guerra transformou-se num regime de biopoder, vale dizer, uma forma de governo
destinada não apenas a controlar a população, mas a produzir e reproduzir todos os
aspectos da vida social. Essa guerra traz morte mas também, paradoxalmente, deve
produzir vida. Isto não significa que a guerra foi domesticada ou que sua violência
tenha sido atenuada, e sim que a vida cotidiana e o funcionamento normal do poder
passaram a ser permeados pela ameaça da violência da guerra. (HARDT; NEGRI,
2005, p. 34).

Naà ossaà sociedade de incerteza ,àte oàesta ele idoàpo à) g u tàBau a à ,à


onde ocorrem continuamente conflitos de inúmeras ordens sociais, os quais se aproveitam
dos progressos tecnológicos, assumem proporções imensuráveis e, por este motivo,
desencadeiam um profundo sentimento de insegurança e medo generalizado na população
mundial. Os seres humanos vivem hoje, portanto, em meio a uma constante ansiedade e a
ameaça de perigos que sondam a realidade e podem, de fato, se concretizar em qualquer
lugar e a qualquer momento.
Essas sensações permanentes e difusas, que permeiam um cenário de medo,
consistem nas principais características da sociedade globalizada. Neste sentido, Bauman
(2013, p. 99- àp essup eà ueà aà e essidade de segurança torna-se viciante; as pessoas
descobrem que, embora tenham muito, isso nunca será suficiente [...] O medo alimenta o
medo. A resistência singular e solitária à tendência geral e à disposição universal tem pouca
utilidade .
áde ais,à ovos perigos são descobertos e anunciados quase diariamente, e não há
como saber quantos mais, e de que tipo, conseguiram escapar à nossa atenção (e à dos
peritos!) – preparando-seàpa aàata a àse àa iso. à BáUMáN,à ,àp. .àÉàpo àestesà oti osà
que na sociedade líquida contemporânea, a vida humana transformou-se, de fato, em uma
verdadeira e constante luta contra o medo, sendo este, portanto, uma característica
indissociável dos seres humanos, a qual pode ser usada como ferramenta do poder político.
18

3 Os desafios da efetivação da paz no contexto do estado de guerra global

Não resta a menor dúvida de que a configuração do planeta enquanto um sistema


global consiste num dos mais expressivos acontecimentos da história humana. O fenômeno
da globalização caracteriza-se por ser a causa e o efeito, simultaneamente, da unificação do
planeta em todos os sentidos e com diversos graus de intensidade. Portanto, faz-se coerente
aàafi aç oàdeàMilto à“a tosà ,àp.à àdeà ueà aàTe aàto a-seàu às àeàú i oà u do e
assiste-se a uma refundição da totalidade-te a ,àaà ualàad ui eàu à o oàstatus: de território
comum da humanidade.
Destarte, as mudanças que afetam as civilizações podem, de fato, serem sentidas em
toda parte do globo, isso porque, conforme Octavio Ianni (1996, pp. 169-170), através do
fenômeno da globalização, o planeta transformou-se

[...] em um território de todo o mundo. Tudo se desterritorializa e reterritorializa.


Não somente muda de lugar, desenraíza-se circulando pelo espaço, atravessando
montanhas e desertos, mares e oceanos, línguas e religiões, culturas e civilizações.
As fronteiras são abolidas ou tornam-se irrelevantes ou inócuas, fragmentam-se e
mudam de figura, parecem, mas não são [...]

Com o impacto direto dessa nova era, a soberania e a autonomia dos Estados são
significativamente relativizadas e fragilizadas em virtude do extraordinário aumento das
interconexões globais, fazendo das fronteiras institutos cada vez menos rígidos. Isto é,
vivencia-se um novo cenário de extrema interdependência entre todas as nações do globo,
sendo essa uma característica estruturante da sociedade internacional contemporânea. Por
tais razões, Luigi Ferrajoli (2002, p. 49-50) preceitua que:

De fato, paradoxalmente, são justamente a rapidez e a multiplicidade das


comunicações que acentuaram o anseio de identidade dos povos, das etnias, das
minorias e, ao mesmo tempo, o valor associado às diferenças, acendendo conflitos
étnicos desagregadores dentro das fronteiras dos Estados e processos inversos de
integração nacional fora delas [...]

Fica claro, então, que a pluralidade de conflitos e riscos oriundos do referido fenômeno
da globalização – os quais anteriormente eram marcados pelo caráter estritamente local –, na
contemporaneidade, esses embates dizem respeito não somente à região na qual ocorre a
disputa, mas a todas as demais nações que compõem a aldeia global, atingindo e integrando
um número indeterminado de pessoas. Portanto, com a globalização dos conflitos, do
19

terrorismo, da violência banal e dos riscos mundiais, torna-se necessária a manutenção da paz
e a proteção universal dos direitos humanos na comunidade internacional da maneira mais
abrangente possível, de tal modo que se consiga enfrentar os confrontos e as contradições
que permeiam a realidade de uma sociedade repleta de incertezas e de crises planetárias.
Pode-se afirmar que os processos de globalização provaram que o poder dos Estados
nacionais, em relação aos inúmeros problemas que sobrecarregam a agenda internacional –
tais como a manutenção da paz, a luta contra o terrorismo, a tutela dos direitos humanos,
dentre outros –, caracterizam-se como funcionalmente desequilibrados e fora de escala.
Neste sentido, Michael Hardt e Antonio Negri (2005) sustentam que a nova configuração
mundial estabelecida pelo fenômeno da globalização acarretou a ruptura e o
desapa e i e toà doà siste aà Westfalia oà dosà йstadosà so e a os,à issoà po ue,à aà e aà daà
interdependência global, seria anacrônico apostar ainda no modelo de Westfália para garantir
a ordem mundial e aà a ute ç oàdaàpaz à )OэO,à ,àp.à .
Vale ressaltar que o sistema de equilíbrio dos Estados soberanos gerou aquilo que
Thomas Hobbes (2012), como dito, chamou de bellum omnium (guerra de todos), fazendo
com que os Estados, na busca incessante pelo poder, constituam-seà o oà leviatãs ,à
permanentemente dispostos à guerra. Tal sistema, conforme Danilo Zolo (2011, p.30) já
estaria obsoleto, uma vez que as prerrogativas de independência das nações apresentam-se
o oà p ete s esà eleit iasà eà o oà o st ulosà pa aà aà soluç oà dosà p o le asà u iaisà doà
planeta, a começar pela contenção dos particularismos étnicos que correm o risco de
p e ipita àoà u doàe àu aàgue aà i ilàge e alizada .
Além disso, a deflagração da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) desvendou os
extremos que podem ser alcançados quando se une o conflito bélico a intensos artefatos
tecnológico-militares. O fenômeno da guerra, que para Clausewitz (2010) consolida-se na
realização da política por outros meios, torna-se – com o advento dos governos totalitaristas
e das armas nucleares – a essência de novas e terríveis possibilidades: a rendição e a
destruição maciça de civilizações inteiras e, também, da própria vida existente no planeta.
Assim, as novas e destrutivas tecnologias empregadas na guerra demonstraram até que ponto
os antagonismos e as rivalidades dos Estados podem chegar quando vinculadas aos
exacerbados nacionalismos evidenciados num panorama de desequilíbrios políticos,
econômicos e sociais.
20

No Segundo Pós-Guerra, o desenho conferido à conjuntura social contemporânea


possibilitou a configuração de uma nova realidade, revelando que o mundo tem oscilado entre
a defesa da política de poder e a adesão de formas mais institucionalizadas para a mediação
dos conflitos. De fato, a própria dinâmica da evolução que impulsiona a trajetória da
civilização faz com que os direitos humanos e as inseguranças globais não percam a
atualidade, tendo em vista os novos contextos da convivência social e do ambiente universal.
Nos dias de hoje, as possibilidades da paz mundial são obscurecidas e ameaçadas
indiscriminadamente pelo estado de guerra global que, aparentemente, se instituiu de modo
permanente em toda a sociedade internacional. Destarte, no cenário de medo da globalização
armada, pode parecer que o sonho da pacificação em escala internacional perdeu-se para
sempre. Assim, como o atual estado de guerra possui ao mesmo tempo um alcance de caráter
global e de longa duração, a manutenção da paz também se torna indefinida ou mesmo
perpétua (KANT, 2004).
A guerra transforma-se, portanto, em um fenômeno interminável, generalizado e
glo alizado.àйssasà a a te ísti asàassu idasàpelaàgue aàest a gula à todasàasàfo asàdeà idaà
so ial àeài p e à suaàp p iaào de àpolíti a ,àte doàaàfu ç oàdeà olda àoàpa o a aàpolíti oà
u dial,àdeàtalà odoà ueàaàpazà osàpa e e,à adaà ezà ais,à e o e taàpelosà egi esàa adosà
eàdeàsegu a çaàdeà ossoà o sta teàestadoàdeà o flito. à рá‘DT;àNйG‘I,à ,àp.à . Posto
isso, a afirmação de Clausewitz (2010) não poderia ser mais atual no sentido de que a guerra
é a continuação do exercício da política por outros meios.
A exemplo disso, Hardt e Negri (2005, p. 33, grifo do autor) preceituam que:

Hoje, no entanto, a guerra tende a ir ainda mais longe, transformando-se numa


relação social permanente. Certos autores contemporâneos tendem a traduzir esta
novidade invertendo a fórmula de Clausewitz anteriormente citada: talvez a guerra
seja a continuação da política por outros meios, mas a própria política vem-se
tornando cada vez mais a guerra conduzida por outros meios. Isto significa que a
guerra vai-se transformando no princípio básico de organização da sociedade,
reduzindo-se a política apenas a um de seus recursos ou manifestações.

Neste ínterim, para Maiquel Wermuth (2015, p. 133) a guerra

[...] deixa de ser a ultima ratio, ou seja, o elemento final das sequências de poder,
para transformar-se na prima ratio, ou seja, no principal fundamento da própria
política. A guerra assume a condição de única forma de coexistência global, cuja
consequência, que não surpreende, é justamente uma multiplicação em excesso dos
mesmos riscos que com a guerra se pretende evitar. Como resultado, tem-se uma
21

superposição absoluta de valores opostos como paz e guerra, ataque e defesa. Em


síntese: vida e morte se sobrepõem cada vez mais.

Nessa atual sociedade de extremos, a guerra tornou-se diferente e, portanto,


configurou-se enquanto uma guerra por escolha e não por necessidade. Isso significa dizer
que se trata, em suma, de uma categoria bastante distinta: a guerra preventiva, a qual se
utiliza da força com o objetivo de eliminar uma ameaça forjada. Como exemplo, temos a
guerra do Iraque, que não eclodiu e tampouco possuía um casus belli – fato considerado
suficientemente grave por parte do Estado ofendido para declarar guerra ao suposto Estado
ofensor – para acarretar a intervenção bélica norte-americana. Segundo Paulo Arantes (2007,
p. 27, grifo do autor), essa guerra preventiva sistêmica:

[...] não só inverteu, como perverteu de vez todo esse mortífero dispositivo
moderno, intercambiando necessidade e liberdade, no caso, política e naturalização
da máquina de guerra. Não é, portanto, incompreensível o pasmo provocado por
uma guerra que não foi colocada a nossa frente, na fórmula exata de um
desconsolado expert norte-a e i a o.à N sàopta osàpo àela .

Ademais, em relação aos Estados Unidos, enfatiza-se a tentativa desta grande potencia
mundial de apresentar as próprias guerras – que acarretam efeitos e impactos em âmbito
global – enquanto guerras conduzidas em prol de toda a humanidade. Neste sentido, para
Zolo (2011, p. 205):

Se um Estado combateu seu inimigo em nome da humanidade, a guerra que conduz


não é uma guerra da humanidade. Aquele Estado tenta simplesmente se apropriar
de um conceito universal, para poder se identificar com ele à custa do inimigo.
Monopolizar esse conceito durante a guerra significa negar ao inimigo qualquer
qualidade humana, declarando-o hors-la-loi e hors-l’humanité, de modo a poder usar
contra ele métodos cruéis, até mesmo de extrema desumanidade. Neste sentido, o
te oà hu a idade à– a referencia aos Estados Unidos é aqui ainda mais evidente
– é slogan ético humanitário.

É cabível neste momento uma retomada da ideologia inaceitável de guerra justa por
parte das políticas estadunidenses, as quais apresentam a guerra global contra o terrorismo
ou contra os Estados inimigos, enquanto uma guerra do bem contra o mal. Essa guerra seria
justificada não com base em objetivos ou interesses particulares, mas assumindo um ponto
de vista imparcial e superior, em prol dos valores que se presumem compartilháveis por toda
aà hu a idade,à o à oà i tuitoà deà mascarar à asà gue asà u ilate aisà eà ilí itasà ealizadasà à
22

margem à doà Di eitoà I te a io al.à Po ta to,à aà dis i i aç oà doà ad e s ioà à le adaà aà


proporções abissais, isso porque:

A guerra que se perfila no horizonte não será somente uma guerra global,
assi t i a,à justa àeà hu a it ia ,à asàse àaàgue aà apazàdeàu a discriminação
doà i i igo,à poisà assu i à aà fo aà deà pe a e teà aç oà deà polí ia :à u aà polí iaà
internacional, obviamente controlada pelos Estados Unidos, que usará armas de
dest uiç oà e à assaà o t aà osà pe tu ado esà daà paz ,à se à e hu aà disti ç oà
entre tropas regulares e milícias irregulares, e entre militares e civis. Não será,
portanto, guerra entre Estados, suscetível de ser concluída com um tratado de paz,
asà se à u aà pe a e teà gue aà i ilà u dial à o duzidaà po à u aà g a deà
potência, para submeter ao controle policial-militar o planeta inteiro. (ZOLO, 2011,
p. 206).

Esta realidade da guerra atual transformou-se, desta forma, num fenômeno global
interminável, o que significa que pela existência dos inúmeros conflitos armados, fazemos
parte de uma verdadeira sociedade de risco, com alto grau de insegurança. Todavia, acima de
tudo, essa realidade é irrefutável, uma vez que se compõem em um panorama de
normalização da guerra e da violência nas suas formas mais cruéis e cada vez mais impassíveis
de regulação jurídica.
Deste modo, pode-se afirmar que o reconhecimento da guerra configura-se enquanto
uma condição geral da existência humana. Por isso,

Em determinados momentos e lugares, pode haver cessação das hostilidades, mas a


violência letal está presente como uma potencialidade constante, sempre pronta a
irromper em qualquer lugar. [...] não se trata aqui de guerras isoladas, portanto, mas
de um generalizado estado de guerra global que de tal maneira torna menos distinta
a diferença entre guerra e paz que já não somos capazes de imaginar uma paz
verdadeira ou de ter esperança nela. (HARDT; NEGRI, 2005, p. 23, grifo do autor).

Por conseguinte, fica evidente que o recurso à guerra se multiplicou e a capacidade


destrutiva de seus atores tornou-se imensurável. Tal fato aumentou significativamente o
medo e incerteza em âmbito universal, o que acarretou urgência na busca pela construção de
um cenário pacífico na sociedade internacional. Assim, pode-se afirmar que o direito
internacional e os povos passaram a ter como desafio contínuo a busca dos mais variados
mecanismos para solucionar os conflitos em prol da efetivação da paz mundial, uma vez que
conforme os ensinamentos de Hardt e Negri (2005, p. 26):

Hoje, no entanto, em vez de nos movermos em direção à paz na realização deste


sonho, parece que fomos catapultados no tempo de volta ao pesadelo de um estado
23

de guerra perpétuo e indefinido, com a suspensão do império internacional do


direito e sem uma distinção clara entre a manutenção da paz e os atos de guerra.

De fato, a atual sociedade internacional é perpassada por conflitos muito diferentes


daqueles característicos de seu período clássico. Esta diferença evidencia-se através da
constante busca dos Estados pelo poder, seja ele político, econômico, bélico ou social, os quais
resultam em infindáveis disputas que, consequentemente, fizeram da guerra um fenômeno
glo alàeàpe a e te,à istoà ueà i ú e osà o flitos armados manifestam-se hoje através do
pla eta,àalgu sà e esàeàli itadosàaàu àluga àespe ífi o,àout osàp olo gadosàeàe pa si os. à
(HARDT; NEGRI, 2005, pp. 21-22).
Assim, a guerra global não é apenas violenta como todas as guerras, caracterizando-
se, acima de tudo, pela sua crueldade intencional. Vale ressaltar que nessas guerras é
praticamente inexistente diferenciação entre exterior e interior, entre a segurança interna dos
Estados e os conflitos externos. Por isso, passamos do patamar das invocações retóricas e
metafóricas da guerra para a ideia de guerras reais globalizadas contra inimigos indefinidos e
imateriais. Uma das principais consequências desse novo tipo de guerra é, conforme Hardt e
Negri (2005, p. 35):

[...] que os limites da guerra tornam-se indeterminados, em termos espaciais e


temporais. A guerra à maneira antiga contra um Estado-nação tinha claras
delimitações espaciais, embora pudesse eventualmente disseminar-se por outros
países, e seu fim geralmente era marcado por uma rendição, uma vitória ou uma
trégua entre os Estados em conflito. Em contraste, a guerra contra um conceito ou
um conjunto de práticas, mais ou menos como uma guerra de religião, não conhece
limites espaciais ou temporais definidos. Tais guerras podem estender-se em
qualquer direção, por períodos indeterminados. E com efeito, quando os americanos
a u ia a àsuaà gue aàaoàte o is o ,àdei a a à la oà ueàde e iaàeste de -se por
todo o mundo e por tempo indefinido, talvez décadas ou mesmo gerações inteiras.
Uma guerra para criar ou manter a ordem social não pode ter fim. Envolverá
necessariamente o contínuo e ininterrupto exercício do poder e da violência.

Notoriamente, o Estado de guerra global é um dos problemas centrais do nosso tempo.


Pode-se afirmar que a guerra passa a ser efetivamente absoluta mediante o desenvolvimento
tecnológico de armas que rompem com a moderna dialética e que torna possível, pela
primeira vez, a destruição em massa e mesmo global. De fato, a guerra sempre envolveu
destruição de vida, entretanto, foi a partir do século XX que esse poder destrutivo chegou aos
limites verdadeiros da pura produção de morte.
24

Assim, a guerra já não é mais a mesma, globalizou-se e, mais do que isso, civilizou-se.
Além disso, tornou-se uma manifestação contundente de um estado de exceção global. Fato
é que, atualmente, não conseguimos saber se estamos em guerra ou em paz, sendo notória a
indistinção entre o que é exceção e o que é regra. Estamos, portanto, diante de um momento
híbrido extremo, no qual o Estado de guerra global se cristaliza na escalada massiva de uma
dominação pelo medo em campo aberto.
Por fim, a virtuosa manifestação dos homens em busca da paz e a desumana disposição
para a guerra são dois eventos que se colocam um ao lado do outro. Do mesmo modo, o
aumento da interdependência, das complexidades e dos inúmeros desequilíbrios e confrontos
sociais, permitiram que a temática da guerra e da paz fosse assentada sobre novos
pressupostos e reforçaram a tendência constante para a difícil, senão impossível, busca pela
solução pacífica dos conflitos na sociedade internacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O panorama social que se utiliza do medo enquanto ferramenta de poder político e


mercadológico, como também distorce o conceito de estado de exceção com vistas à
legitimação de politicas interventivas e de dominação no bojo dos Estados Democráticos de
Direito, vem sendo gradativamente desnudado. Neste sentido, na medida em que o referido
estado de exceção assume o patamar dominante da política contemporânea, a sociedade em
âmbito internacional encontra-se exposta a uma violência nunca antes imaginada no decurso
da história das civilizações.
É evidente que os acontecimentos mundiais ocorridos a partir da segunda metade do
século XX e do início do século XXI intensificaram as competições econômico-comerciais,
conferiram relevante complexidade às relações internacionais, polaridade incerta e um
acentuado vínculo de cooperação e interdependência. Nesse cenário de transformações, a
humanidade presenciou o constante deslocamento do velho sistema anárquico westfaliano –
centrado no Estado e na sua soberania – para uma nova conjuntura internacional de arranjos
bifurcados, assentada em um mundo globalizado, multicêntrico e composto por inúmeras
coletividades discrepantes.
25

Essas inúmeras transformações pelas quais passa a comunidade internacional alteram,


de fato, as demandas de cada período histórico. Destarte, a tolerância, caracterizada como
um dos valores fundamentais do pensamento contemporâneo, está sendo
indiscriminadamente e perigosamente solapada – seja pelo poder destrutivo das armas
nucleares, pelas agressões cada vez mais catastróficas ao meio ambiente, pelos atentados
terroristas, pela eclosão dos conflitos étnicos e internacionais no interior ou exterior dos
Estados-nação –, o que contribui para tornar o equilíbrio internacional e a manutenção da paz
mundial cada vez mais distantes.
Assim, a contemporaneidade espanta com verdadeiros paradoxos e desafios quanto
às possibilidades de construção de uma sociedade pacífica frente ao Estado de Guerra Global.
Daí, portanto, do âmbito da prática e da teoria política contemporânea, os ideais de
reconhecimento dos direitos humanos para todos – independentemente das diferenças –, o
interculturalismo, as lutas pela justiça, pela convivência, pela solidariedade, bem como pela
manutenção e efetivação paz mundial, são questões que não podem ser trabalhadas tão
somente no cerne das fronteiras e soberanias estatais, mas sim em âmbito universal.

REFERÊNCIAS

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Tradução de Carlo Coccioli e Márcio Lauria Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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Revista da Faculdade de Direito - UFPR. Curitiba: vol. 60, n. 1, jan./abr. 2015 (pp. 117-136).
Disponível em: http://revistas.ufpr.br/direito/article/view/36715. Acesso em: 02 mai. 2017.

ZOLO, Danilo. Rumo a um Ocaso Global? Os direitos humanos, o medo, a guerra. Orgs. Maria
Luiza Alencar Feitosa e Giuseppe Tosi. São Paulo: Conceito Editorial, 2011.
27

A CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA E A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO INSTRUMENTO DE


INCLUSÃO SOCIAL

Aline Beatriz Müller1


Alisson Goulart Coffi 2

RESUMO: O presente artigo tem por finalidade tratar sobre a criminalização da pobreza
através do Direito Penal e a justiça restaurativa como meio de solução. O sistema penal é o
modo pelo qual o Estado exerce seu controle social e repressivo. Dentro do sistema capitalista,
aqueles que não seguem os padrões impostos pela sociedade são considerados um mal social
para o Estado. O Direito Penal, então, tende a se comportar de forma estritamente seletiva,
fazendo uma seleção dos tipos de criminosos. Assim, a partir do método de abordagem
hipotético-dedutivo, e método de procedimento bibliográfico, será realizada uma reflexão das
formas de criminalização da pobreza e como a justiça restaurativa se torna uma forma de
solução através da inclusão social.

Palavras-Chave: Direito Penal; Criminalização; Justiça Restaurativa; Inclusão Social.

1 INTRODUÇÃO

O Direito Penal, ao longo das décadas, tem se comportado de forma estritamente


seletiva em relação a classes sociais. Em decorrência disso, a criação de estereótipos na esfera
criminal em relação às pessoas mais desfavorecidas financeiramente se perpetuou ao passar
dos anos, sendo uma forma de favorecimento às classes dominantes e ocultação das classes
oprimidas.
O Direito Penal, como instrumento do discurso de (re)produção de
poder, tende a privilegiar os interesses das classes sociais
dominantes, imunizando de sua intervenção condutas
características de seus integrantes, e dirigindo o processo de
criminalização para comportamentos típicos das camadas sociais
subalternas, dos socialmente alijados e marginalizados (BARATTA,
2002, p. 165).

O sistema econômico atual, que tem total enfoque no poder e geração de lucros,
sustentado pela dominação e exploração das classes menores, tem grande influência em
relação à seletividade e criação de estereótipos penais. Este força a sociedade a viver dentro

1
Acadêmica do 5º semestre do Curso de Graduação em Direito da Universidade Regional Integrada do Alto
U uguaià eà dasà Miss es,à a pusà “a toà Â gelo.à Bolsistaà PIIC/U‘Ià doà P ojetoà deà Pes uisaà P‘йTO“,à POB‘й“à йà
PUTAS: os estereótipos nos discursos de uma sociedade penal punitivista e repressivista. Endereço eletrônico:
alinebeatriz09@hotmail.com
2
Acadêmico do 7º semestre do Curso de Graduação em Direito na Universidade Regional Integrada do Alto
Uruguai e das Missões, campus Santo Ângelo. Endereço eletrônico: alissoncoffi@hotmail.com
28

deàpad es,àfaze doà o à ueàaàpopulaç oà i aàdeàa o doà o àasà e ig ias ,àouàe t o,àsejaà
excluída do sistema.
Assim, neste trabalho, será feita uma reflexão a partir da criminalização da pobreza e
como a justiça restaurativa pode ser uma alternativa de mudança. A inclusão social através
desse novo modelo de justiça, surge como solução, envolvendo toda a comunidade na busca
de soluções à conflitos que poderiam ser evitados e trazendo de volta ao grande grupo uma
parte da sociedade até então deixada de lado.

2 O crime de ser pobre

A pobreza há muito tempo tem sido alvo de preconceito por parte das classes
dominantes. Desde os séculos anteriores, a pobreza, ou melhor, os pobres, são vistos como
pessoas com a função de servir e ser subordinados àqueles pertencentes a classe alta.
O pobre nunca teve lugar de prestígio na sociedade, pelo contrário, foi sempre visto
como causa dos problemas existentes em um país, bem como a razão que impede um país a
chegar a um patamar de desenvolvimento. Por isso, entre as principais metas de um Estado,
erradicar a pobreza é sempre uma questão importante, independente de como aconteça o
processo de extermínio3.
ál àdeà istaà o oà et o essoàpa aàu àpaís,àaàpo ezaà à istaà o oàp i ipalà po taà
deà e t ada à daà i i alidade.à A partir disso, então, é dado início a um processo de
i i alizaç oàdaàpo eza,ào de,à o àoào jeti oàdeà e te i -la àoàйstadoàusaàdoàDi eitoà
Penal como método para atingir este objetivo, conforme o pensamento de Baratta:

Ao contrário de sua função declarada, isto é, diferentemente de sua ideologia oficial,


o sistema de justiça criminal da sociedade capitalista serve para disciplinar
despossuídos, para constrangê-losàaàa eita àaà o alàdoàt a alho à ueàlhesà ài postaà
pela posição subalterna na divisão do trabalho e na distribuição da riqueza
socialmente produzida. Por isso, o sistema criminal se direciona constantemente às
camadas mais frágeis e vulneráveis da população: para mantê-la o mais dócil possível
– nos guetos da marginalidade social ou para contribuir para a sua destruição física.
Assim fazendo, o sistema sinaliza uma advertência para todos os que estão nos confins
da exclusão social (1999, p. 186).

3
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre,
justa e solidária;II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais;IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação.
29

Assim, o sistema penal propaga a ideia de que existe um inimigo social a ser combatido,
por este motivo o Estado utiliza seu aparato para selecionar as camadas sociais que serão
atingidos pelo sistema penal. Portanto,

Por tratar-se de pessoas desvaloradas, é possível associar-lhes todas as cargas


negativas existentes na sociedade sob forma de preconceitos, o que resulta
em fixar uma imagem pública do delinquente com componentes de classe
social, étnicos, etários, de gênero e estéticos (ZAFFARONI, 2011, p. 46).

O pobre, dessa forma, vítima da própria situação social em que se encontra, acaba
tendo seus direitos negados pelo estado. Questões básicas como, saneamento básico,
transporte público e acesso à justiça, por exemplo, muitas vezes são desconhecidas na
periferia, a grande maioria desconhece a existência desses direitos, bem como, pouco recebe
informações a respeito por parte da mídia.
Dentro do sistema penal, é possível perceber as diferenças quando se fala dos delitos
cometidos pelas classes marginalizadas em comparação aos crimes de colarinho branco. Para
Tho pso ,à oà ha adoà delitoà deà ola i hoà a oà à a ueleà o etidoà po à u aà pessoaà deà
respeitabilidade e elevado status sócio econômico, no exercício de suas atividades
e p esa iais à ,àp. .
O crime de ser pobre é um estereótipo predominante na sociedade devido a vários
fatores. Um dos principais fatores é o sistema econômico, capitalismo, o qual divide a
sociedade em classes, fazendo com que aqueles que se encontram nas classes inferiores, mais
necessitadas, se submetam das mais variadas formas àqueles que pertencem a classe
dominante.
áàdi is oàdaàso iedadeàe à Po esà à‘i os à foiàu aà o se u iaàge adaà aàá i aà
ao passar de um Estado-providência a um Estado penal e policial que levou ao fim de um
йstadoà a itati o à WáCQUáNT,à ,à p. -18). Após essa passagem, foi-se criando um
Estado onde seu lado social era cada vez mais dominado pelas classes privilegiadas, pois o
apoio do governo às classes média e alta, assim como às grandes empresas, sempre foi muito
grande, ao contrário dos programas sociais às pessoas mais necessitadas que sempre foram
limitadas e isoladas das demais atividades estatais. Dessa forma, criou-se uma situação onde
30

a marginalização e a contenção punitiva das categorias deserdadas fundamentaram a política


social.
Ocorre que, em meio a um denominado Estado Democrático de Direito, apenas uma
parte da sociedade é representada. Os partidos políticos, que deveriam representar toda a
população de um país, têm suas campanhas eleitorais financiadas por grandes empresários,
detentores do poder econômico, assim, quando eleitos, precisam cumprir com a troca de
favores, então, no local onde deveriam ser representados os interesses da população em
geral, acabam sendo idealizados apenas interesses daqueles que se encontram nas classes
altas, desta forma, excluindo uma parte da população que de fato precisa de mais auxilio.

O estado de direito é concebido como o que submete todos os habitantes à


lei e opõe-se ao estado de polícia, onde todos os habitantes estão
subordinados ao poder daqueles que mandam. O princípio do estado de
direito é atacado, por um lado, como ideologia que mascara a realidade de
um aparato de poder a serviço da classe hegemônica e defendido, por outro
lado, como uma realidade bucólica com alguns defeitos conjunturais.
(ZAFFARONI, 2011, p. 41)

A criação de leis, então, não parte das necessidades do povo, mas sim de interesses
dos grupos dominantes, sendo considerado crime, então, o interesse individual do legislador,
a partir da veemência de quem tem o poder nas mãos. Diante disso, sobre aqueles que
controlam as regras e ditam os interesses a serem representados através da legislação,
observa-se que

Embora se possa afirmar que muitas regras ou a maioria delas conta com a
concordância geral de todos os membros de uma sociedade, a pesquisa
empírica sobre uma determinada regra em geral revela variação nas atitudes
das pessoas. Regras formais, impostas por um grupo de pessoas
especialmente constituído, podem diferir daquelas de fato consideradas
apropriadas pela maioria das pessoas (BECKER, 2008, p. 28).

Grande parte da população já cometeu algum tipo de crime, porém, apenas uma
pequena parte deles são divulgados ou sofrem um processo judicial, Cadeia?àGua daàoà ueàoà
siste aà ãoà uis.àEs o deàoà ueàaà o elaà ãoàdiz 4. Assim, percebe-se que o sistema penal é

4
T e hoàdaà a ç oàdeà ap,àDi ioàdeàu àdete toàdoàg upoà‘a io aisàM s,àla çadaà oàa oàdeà , a qual aborda
a rebelião ocorrida no presídio do Carandiru, ocorrida em 2 de outubro de 1992. (WIKIPÉDA, acesso em 20 de
abril de 2017)
31

seletivo em relação a certos grupos, pois não importa o tipo de crime que se comete, mas sim
a situação do indivíduo na pirâmide social.

Numa sociedade complexa, e hierarquizada, dita as leis a classe que dispões


do poder. E obviamente, armará a ordem legal de sorte a garantir a
permanência das desigualdades existentes, das quais decorrem as vantagens
que lhe bafejam os membros, tanto quanto os ônus suportados pelas massas
oprimidas. Ou seja: a ordem jurídica, elaboram-na os grupos predominantes
em termos de poder, com o proposito político de assegurar a conservação do
status quo sócio-econômico (THOMPSON, 1983, p. 58).

Observa-se, então, que a criminalização da pobreza, além de existir no pensamento da


sociedade em geral, é presente na própria lei. Este processo de criminalização da pobreza
surge na própria elaboração do projeto de lei, ao ser aprovado, automaticamente excluindo
determinado grupo, os pobres. Chama-se essa etapa de criminalização desempenhada pelo
йstadoàdeà i i alizaç oàp i ia,àouàseja,àaà criminalização primária é o ato e o efeito de
sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas. Trata-
se de um ato formal fu da e tal e teàp og a ti oà[...] à )áннá‘ONI,à ,àp.à .
Assim, é notório que o sistema penal é a principal forma que o Estado encontrou de
fazer um controle das camadas sociais, assim, o Direito que deveria proteger e garantir a
dignidade das pessoas é o mesmo Direito que reprime e seleciona os grupos que são
privilegiados na elaboração de leis, nos processos e julgamentos.
A seletividade do Direito Penal é uma das maiores formas de violação ao princípio da
igualdade, expresso na Constituição Federal do Brasil de 1988. A Constituição que deveria
resguardar e ser respeitadas por todos acaba sendo desrespeitada pelos próprios agentes que
deveriam garantir a sua efetivação.
Desse modo, o que se busca é um sistema de justiça que trate a todos com igualdade,
respeitando os princípios constitucionais e aos direitos humanos, que atue de forma imparcial
e atenda aos interesses de todos independentemente da situação social em que se encontra.
Atualmente, o sistema penal brasileiro, de modo geral, utiliza a justiça retributiva como
modelo de resolução de conflitos. Além de prevenir novos crimes, mostrando para a
sociedade a forma como são punidos os cidadãos mediante seus delitos, bem como evitar a
reincidência daqueles que já delinquiram, o Estado parte da teoria retributiva da pena, onde
32

a sanção é, em tese, uma forma de punir um mal, com outro mal, ou seja, uma retribuição do
estado pelo crime cometido contra a ordem pública.
Éà o oàseàfosseàu aàesp ieàdeà i ga ça àdoàйstado,à o t aàa ueleà ueàfoià o t a as
o de sài postas,àassi àe t o,àfaze doà o à ueàesteà pagueàpeloà ueàfez ,àsejaàe àfo aàdeà
uma pena privativa de liberdade, restritiva de direitos ou multa. O que acontece, é que está
visão de retribuir o mal cometido, olho por olho, dente por dente5, é uma visão predominante
dentro da própria sociedade, assim, em situações de conflitos, o processo judicial é visto
muitas vezes pelas partes como uma forma de prejudicar o outro, e não de fato solucionar o
conflito de forma dinâmica, que seja realmente produtiva para o autor, bem como para a
sociedade em geral.
Em oposição a este contexto antagônico entre vítima e réu, onde na forma retributiva
se busca com o processo, um vencedor e um perdedor, surge a Justiça Restaurativa, a qual
será estudada no próximo tópico.

3 Justiça restaurativa: uma alternativa para a criminalização do pobre

A Justiça Restaurativa cria condições, onde autor e réu, através do diálogo, da reflexão
e do perdão, possam de fato encontrar a solução ao conflito de forma plena, onde as duas
partes saiam satisfeitas, sem raiva, e vejam o processo como algo bom, e não um criador de
inimigos. Diante disso, conforme o pensamento de Colet:

a prática restaurativa quebra com a justiça retributiva atual, pois é


fundamentada no processo comunicacional, no tratamento alternativo e
efetivo de conflitos, no diálogo e consenso, bem como no respeito absoluto
aos direitos humanos e na dignidade de pessoa humana, revelando-se,
portanto, preconizadora do Estado Democrático de Direito e assecuratória de
seus princípios e valores (COLET, 2009, p. 13).

Cabe ressaltar que a Justiça Restaurativa não visa abolir o velho sistema penal, nem as
penas, mas sim mitigar seu efeito punitivo, incluindo a comunidade na participação da justiça

5
A lei de talião, do latim lextalionis (lex: lei e talio, de talis: tal, idêntico), também dita pena de talião, consiste
na rigorosa reciprocidade do crime e da pena — apropriadamente chamada retaliação. Esta lei é frequentemente
expressa pela máxima olho por olho, dente por dente. É a lei, registrada de forma escrita, mais antiga da história
da humanidade. (WIKIPÉDIA, acesso em 28 de março de 2017)
33

e fortalecendo as relações humanas através do diálogo, que acabou sendo afastado com a
modernidade (SALIBA, 2009, p. 144).
Assim, a Justiça Restaurativa não deve ser entendida como uma forma privada de
realização da justiça – autotutela –, nem como uma justiça pública, como a que resulta do
funcionamento do sistema judicial, mas como uma justiça comunitária, menos punitiva, que
visa buscar o equilíbrio social (FERREIRA, 2008, p. 24-25).
A Justiça Restaurativa deve ser vista como uma nova forma de reparar os danos
causados, restaurar os relacionamentos entre as pessoas e impedir a reincidência, ao invés de
somente punir o infrator. Por conta disto, é fundamental a participação das partes envolvidas
e da comunidade. Cumpre ressaltar que a reparação dos danos deve ser compreendida de
u aàfo aàa pla,àpoisà o fo eàBia hi iàafi a,à oàda oà oà à edidoàape asà oàaspe toà
fi a ei o à ,àp.à .
Não se deve confundir Justiça Restaurativa com Justiça retributiva. Enquanto esta
enfatiza a necessidade de punição do agressor, aquela procura encorajá-lo a aprender novas
e melhores formas de estar em sociedade, possuindo um valor extremamente pedagógico e
preventivo (FERREIRA, 2008, p. 25-26).
Para a Justiça retributiva, o crime é um atentado contra o Estado, diante do
descumprimento da lei, e com uma finalidade vingativo-punitiva atribui-seàoà al àdaàpe aà
pa aà o ate à oà al à doà delito;à щ à aà щustiçaà ‘estau ati a,à oà i eà à o side adoà u aà
violação de relacionamentos, e para solucionar os delitos é utilizado as figuras da vítima, do
ofensor e da comunidade, valendo-se do diálogo e conscientização.
Assim, na Justiça Restaurativa são as próprias partes que buscam, através do diálogo e
com a ajuda de um facilitador capacitado, a resolução da divergência, tendo como objetivo a
discussão acerca dos motivos e consequências do crime para a vítima, ofensor e comunidade.
O Direito Penal é um ramo do Direito Público, que tutela os bens mais preciosos da
humanidade, tendo aplicabilidade somente nos casos mais graves, quando não há outro meio
de resolver os problemas, sendo regido por uma série de princípios para garantir sua aplicação
da forma mais adequada possível, observando as garantias constitucionais e
infraconstitucionais. Sendo assim, a Justiça Restaurativa, por se enquadrar no ramo do direito
penal, também deve observar a alguns princípios, sendo eles, em sua maioria, os aplicados ao
34

Direito Penal. Porém, possui também alguns princípios próprios, que será objeto de uma breve
análise no presente trabalho.
Os princípios norteadores da justiça restaurativa são: 1) princípio do processo
comunicacional; 2) princípio da voluntariedade; 3) princípio da consensualidade; 4) princípio
da resolução alternativa e efetiva dos conflitos; 5) princípio do respeito absoluto aos direitos
humanos e da dignidade da pessoa humana.
Conforme estipula o princípio do processo comunicacional, o processo deve ser
pautado pela comunicação entre as partes e participação da comunidade (SALIBA, 2009 p.
154). A seu turno, o princípio da voluntariedade estabelece que não deva existir nenhuma
forma de coação ou obrigatoriedade perante os envolvidos (BIANCHINI, 2013, p. 118).
O princípio da consensualidade diz respeito à anuência das partes em participar e
compreender a justiça restaurativa (BIANCHINI, 2013, p. 124). Por sua vez, o princípio da
resolução alternativa e efetiva dos conflitos traz efetividade às decisões judiciais, dando-lhe
cumprimento e conscientizando os envolvidos em respeitar os interesses alheios, exaltando a
solidariedade humana (SALIBA, 2009, p. 155).
De acordo com o princípio do respeito absoluto aos direitos humanos e da dignidade
da pessoa humana, não se pode ignorar, em nenhum momento, as questões relacionadas aos
direitos humanos e à dignidade da pessoa humana. Esse princípio serve de base para toda a
atuação da justiça restaurativa (SALIBA, 2009, p. 155-156).
Co fo eàpe saà“ali a,à aài lus oàso ialàpo à eioàdaàjustiçaà estau ati aàso e teàseà
ap ese taà o oà apazà o à aà o se iaà i est itaà dessesà p i ípios à ,à p.à .à Noà
tocante à aplicação da Justiça Restaurativa, observa-se que ela envolve a vítima, o ofensor e
a comunidade. Esse método participativo visa alcançar soluções alternativas ao caso concreto,
levando em conta as peculiaridades de cada caso e das pessoas envolvidas.
No processo restaurativo, discutem-se os motivos que levaram o ofensor a praticar o
crime, bem como as consequências para a vítima, o ofensor e a comunidade. Deve-se
entender como sendo comunidade todas as pessoas atingidas pelo delito, como por exemplo,
os familiares da vítima. Todo o processo baseia-se no diálogo e na conscientização da conduta,
ressaltando as interações humanas, visando alcançar a reconciliação das partes e a pacificação
social (SALIBA, 2009, p. 159).
35

Para a vítima, é assegurado todo o suporte e proteção necessários para que esta
supere o trauma causado pelo delito, bem como incentivada sua posição de destaque,
deixando, assim, de ser uma figura passiva e tornando-se uma figura ativa no processo
(SALIBA, 2009, p. 158-159). Ao ofensor, a Justiça Restaurativa busca trabalhar as questões
relativas à conscientização da sua conduta, bem como as consequências que esta importa na
vida da vítima, discutindo os motivos e as razões que o levaram a praticar o crime (SALIBA,
2009, p. 160).
A participação da comunidade é imprescindível para que a ressocialização aconteça de
forma efetiva, pautada pela solidariedade social, com o fim de evitar que novos delitos sejam
cometidos. Somente com participação da comunidade é que poderá se falar em inclusão
social, pois o atual sistema penal acaba por reforçar os estigmas sociais, justamente por excluir
a participação da comunidade do processo. O que se busca com a justiça restaurativa é o
oposto, incluindo a comunidade nas discussões processuais e superando essas discriminações
existentes atualmente, para construir uma sociedade mais justa e boa (SALIBA, 2009, p. 163-
164-165).
Conforme afirma Saliba:

O diálogo entre as partes não se estabelece para atribuir culpa e mensurar


danos, mas, para expor as razões que levaram cada participante ao processo
e compreender o significado individual de cada ser humano que ali se
encontra; uma exposição da vida, das dificuldades, das problemáticas e da
forma como se enfrenta; uma oportunidade de falar sobre o crime e como ele
afetou o cotidiano da vítima, o com sua sensação de dano e insegurança; o
arrependimento e a conscientização da ofensa (SALIBA, 2009, p.168).

O objetivo central da Justiça Restaurativa é a satisfação plena da vítima e do ofensor,


que independe da reparação do dano no aspecto material. É plenamente possível que as
partes saiam satisfeitas com o resultado do processo sem que haja a reparação material
(SALIBA, 2009, p. 169-171).
No Brasil, houve a edição do projeto de Lei nº 7.006/2006 que sugeria a
implementação da Justiça Restaurativa ao sistema brasileiro. Contudo, perante a resistência
daà so iedadeà asilei a,à ueà a la a aà po à aio esà pu iç es à eà pe asà aisà g a esà aosà
delinquentes, tornou-se inviável a aplicação do sistema restaurativo no Brasil, e o projeto
acabou sendo arquivado definitivamente (BIANCHINI, 2013, p. 161-162).
36

Mesmo sem a instauração formal da Justiça Restaurativa no país, há indícios de suas


características em algumas leis que se encontram em vigor como, por exemplo, a Lei nº
9.099/95 que criou os Juizados Especiais6, que destaca as figuras da conciliação, transação
penal, composição civil dos danos e suspensão condicional do processo (BIANCHINI, 2013, p.
164).
Há ainda, vigente no ordenamento jurídico brasileiro, a Lei nº 12.594 de 18 de janeiro
de 20127 que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE,
regulamentando as medidas socioeducativas destinadas a adolescentes que pratiquem atos
infracionais.
Na Lei nº 12.594/2012, tem-se como medidas socioeducativas8 as que visam
responsabilizar os adolescentes das consequências dos seus atos através da conscientização,
bem como as que promovem a integração social entre o adolescente e a comunidade.
Nesse sentido, é evidente que a Lei nº 12.594/2012 possui princípios idênticos aos da
justiça restaurativa, tendo em vista que visa enaltecer as interações humanas, bem como a
inclusão social dos adolescentes infratores na sociedade e os conscientizar de que suas
atitudes causam danos relevantes na vida de outras pessoas, aplicando as medidas
socioeducativas como uma espécie de educação conscientizadora, a partir do que se observa
em seu artigo 33.
O modelo ora estudado apresenta diversos resultados para a sociedade, mas o
principal deles é a inclusão social, o que acabaria diminuindo o índice de cometimento de
novos delitos. A compreensão do ofensor de que as atitudes dele causam danos na vida de

6
Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I - juizados especiais, providos por
juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis
de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e
sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de
juízes de primeiro grau; (CF/1988).
7
Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), regulamenta a execução das medidas
socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional; e altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho
de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente); 7.560, de 19 de dezembro de 1986, 7.998, de 11 de janeiro de
1990, 5.537, de 21 de novembro de 1968, 8.315, de 23 de dezembro de 1991, 8.706, de 14 de setembro de 1993,
os Decretos-Leis nos 4.048, de 22 de janeiro de 1942, 8.621, de 10 de janeiro de 1946, e a Consolidação das Leis
do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943.
8
Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as
seguintes medidas: I - advertência; II - obrigação de reparar o dano; III - prestação de serviços à comunidade; IV
- liberdade assistida; V - inserção em regime de semi-liberdade; VI - internação em estabelecimento educacional;
VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI (ECA/1990).
37

outras pessoas, e que na maioria das vezes são muito maiores que o simples cometimento do
crime, também é um fator importante para o impedimento de que novos delitos sejam
praticados, pois o agente acaba se conscientizando da sua conduta e assume sua
responsabilidade (BIANCHINI, 2013, p. 174-175).
Há, também, a possibilidade de que a vítima perdoe o infrator, reconhecendo as causas
da prática do crime, e quebrando o distanciamento causado pelo rompimento das relações,
tornando a sociedade mais humanitária. (BIANCHINI, 2013, p. 175).
Nesse sentido, Saliba ressalta que:

A justiça restaurativa apresenta uma perspectiva viável dentro dessa linha de


entendimento, pois sua estrutura rompe com o tradicional e permite o acesso
de forma mais igualitária ao sistema, chamando à responsabilidade os
membros do corpo social e comunitário, num espaço público político, voltada
para a ética da solidariedade. A estrutura independente corre em paralelo
com o Poder Judiciário, encontrando-se sempre que um controle mais efetivo
para o respeito aos seus princípios seja necessário. Há, através desse modelo
pós-moderno, superação daquele moderno, com oportunidades distintas de
respostas ou censuras para a resolução do conflito. A reinserção social é
princípio a ser seguido, e seu alcance se estende tanto ao desviante quanto à
vítima (2009, p. 183).

Considerando o estudo feito no presente trabalho, pode-se concluir que a implantação


do processo restaurativo traria uma riqueza de benefícios a toda comunidade, principalmente
pelo restabelecimento dos vínculos emocionais, que acabou por ser afastado com o
surgimento da modernidade.
Também é evidente que a abolição da justiça penal estatal não funcionaria, o que se
deve buscar é a reestruturação do sistema penal, pautado na observância dos direitos
humanos e a dignidade da pessoa humana, podendo-se então falar em uma sociedade mais
justa, sem a dominação das classes dominantes e a marginalização das classes
desprestigiadas, promovendo uma justiça inclusiva (SALIBA, 2009, p. 182).
Nesse sentido, faz-se necessária a implantação da justiça restaurativa na nossa
sociedade para torná-la mais igualitária, e promover de fato a inclusão das classes menos
privilegiadas na comunidade, tornando-as parte da sociedade, e por fim, eliminando o caráter
estigmatizador oriundo do atual sistema penal e reforçado pela desigualdade social.
38

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As classes mais pobres são consideradas como inferiores perante as classes mais
prestigiadas, carregando consigo um sentimento de desvalorização, subordinação, e sendo-
lhes atribuída a culpa de todos os males existentes na sociedade, inclusive da criminalidade.
Nesse sentido, o Estado passa a utilizar o Direito Penal como forma para erradicar a
pobreza da realidade nacional, como uma espécie de salvação da pátria, similar ao extermínio
de todos os males atualmente existentes, estipulando as classes mais baixas como o inimigo
da sociedade.
No sistema penal é nítido que a pena não cumpre sua função ressocializadora, tendo
em vista o alto índice de reincidências, e a dificuldade de reinserção social dos delinquentes
após seu cumprimento. Surge aí uma necessidade de alteração desse sistema.
O sistema restaurativo coloca as partes envolvidas no delito e a comunidade no centro
do processo, restaurando a comunicação social, as interações humanas e resgatando a
humanidade perdida com o surgimento da modernidade em um sistema capitalista.
Diante de toda a discussão anteposta, pode-se concluir que a justiça restaurativa é
uma alternativa extremamente viável para incluir as classes menos favorecidas na sociedade,
pois a partir do diálogo entre vítima, delinquente e comunidade promove-se uma integração
social, humanizando a sociedade que acaba por ignorar as diferenças econômicas, sociais,
raciais, sexuais, dentre outras, exterminando o caráter estigmatizador decorrente do atual
sistema penal e da diferença de classes.

REFERÊNCIAS

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2002.

BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudo de sociologia do desvio. 1. ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2008.

BIANCHINI, Edgar Hrycylo. Justiça Restaurativa: Um Desafio à Práxis Jurídica. Campinas, SP:
Servanda Editora, 2012.
39

COLET, Charlise Paula. MECANISMOS RESTAURATIVOS VERSUS PROCESSO DE


CRIMINALIZAÇÃO E EXCLUSÃO SOCIAL: uma Abordagem a Partir do Papel do Estado no
Enfrentamento do Senso Comum Punitivo. UNISC. Santa Cruz do Sul, RS. 2009.

FERREIRA, Francisco Amado. Justiça Restaurativa: Natureza, Finalidades e Instrumentos.


Coimbra Editora, 2006.

SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo. Curitiba: Juruá, 2009.

THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos? Rio de Janeiro: Achiamé, 1983.

WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: A nova gestão da miséria nos Estados unidos: A onde
punitiva. 3.ed.Rio de Janeiro: Revan, 2007.

ZAFFARONI, E. Raul; BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011.

ZAFFARONI, E. Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 9. ed.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

ZEHR, Howard. Trocando as lentes: Um novo foco sobre o crime e a justiça. São Paulo: Palas
Athena, 2008.
40

MIGRAÇÕES E DIREITOS HUMANOS NA CONTEMPORANEIDADE: A LUTA PELO DIREITO


HUMANO DO IMIGRANTE NA PERSPECTIVA NACIONAL

Camila Rodrigues da Rocha²


Micheli Pilau de Oliveira³

RESUMO: O direito como ferramenta na luta pela paz entende os Direitos Humanos como
norteadores para que se alcance esse objetivo. O ambiente condicionado pela violência, que
se enraizou no modo de viver das pessoas, faz com que brote um sentimento: a necessidade
da busca por segurança. O problema é quando o objeto de perigo fica confuso. No âmbito das
migrações, tem-se fomentado um sentimento de medo para com o diferente, caracterizado
pela figura do negro, do refugiado, do muçulmano e, por fim, desencadeado na do imigrante,
interpretando-o através da lógica do terrorismo. A fobia que se desenvolve nos cidadãos
autóctones quando tais indivíduos entram na sua zona territorial e de direito se configura
como um sentimento de mixofobia, ou seja, o medo de misturar-se. Assim, precisa-se de
medidas que possam erradicar preconceitos que foram introduzidos, visando a igualar esses
sujeitos por sua condição inalienável: a humanidade.

Palavras-chave: Direito. Direitos Humanos. Migrações. Sociedade.

INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende abordar a problemática dos Direitos Humanos no âmbito


das migrações internacionais, dando ênfase à não observância que os países receptores de
imigrantes têm em relação ao principio da dignidade humana. Este sentimento deriva em boa
medida dos problemas econômicos e sociais no local de destino, que acabam resultando em
repúdio e consequente desejo de afastamento dos imigrantes, e, a partir daí, as constantes
lesões aos seus direitos básicos. Destaca-se, também, a imigração no âmbito laboral, no qual
osài ig a tesàsof e àasà aisàdi e sasà iolaç esàdeàdi eitos,àe à e p egos à ujaàe plo aç oà
se dá no âmbito da normalidade, pois se aproveitam os empregadores de sua vulnerabilidade
para a obtenção de mão de obra fácil e barata.
йssaà o alizaç oà daà iol ia à seà d à oà o e toà e à ueà essesà i di íduosà seà
e o t a àp i osà aoà estadoà deà idasà uas à politi a e teà desi po ta tes ,à eà e t oà
possíveis de comparações com a figura do direito romano arcaico, resgatada pelo projeto
filosófico de Giogio Agamben, que se denomina homo sacer, o homem sacro, ao mesmo
tempo matável e insacrificável. Tal termo muito tem sido usado ao se estudar a situação dos
imigrantes na contemporaneidade.
41

Quanto à legislação pertinente no Brasil, tem-se o Estatuto do Estrangeiro (Lei nº


6.815/80), promulgada à luz do regime ditatorial cuja política de segurança nacional fez
crescer uma compreensão separatista entre nacionais e estrangeiros. No que diz respeito aos
Direitos Humanos (sob o prisma do art. 5º da CF/88), entretanto, nota-se uma impropriedade
quanto à gestão da situação legal dos alóctones sob os comandos do referido estatuto, uma
vez que, ao chegarem aqui, são submetidos a diversas exigências de teor burocrático que
consistem em processos demorados para poderem se regularizar (quando conseguem).
Nessas linhas, objetiva-se também mostrar resultados das comparações entre o Estatuto do
Estrangeiro e o Anteprojeto da Nova Lei de Migrações (PL 2516/2015), o qual tramita no
Congresso Nacional e melhor faz jus aos preceitos constitucionais atuais, para que se torne
possível construir uma nova visão acerca desse tema.

1 Processos migratórios: dos consensos históricos às atuais formas de mobilidade e as


repercussões no meio jurídico

Co fo eàG a ielaàMalgesi iàeàCa losàGi ezà ,àpg.à à laài ig a i àesàelà


acto de inmigrar, es decir, de entrar e residir temporal e permanentemente en un país distinto
alàdeào ige . .à“util e te,àoà o eitoàdeà o ilidadeà esseàse tidoà ep ese taàaàetapaàe à ueà
cidadãos deixam o seu domicilio de origem, estimulados (quando não forçados) por diversas
razões, preponderantemente pela crença de se depararem com melhores condições de vida
aoà fi da e à oà seuà iti e io.à ássi ,à efe eà щosepà эa o aà ,à p.à à ueà à so eà
poblaciones que se encuentram en situaciones económicas, sanitárias, socio-educativas que
favorecen y estimulan la búsqueda de oportunidades laborales, fuera de sus fronteras por
todosàlosà ediosàdeàal a e ,àpode doàe t o,à o fo eà elho àlhesàfosse,à esidi àte po iaà
ou permanentemente, usufruindo o direito de ir e vir de que dispõe a pessoa humana.
Nos processos migratórios, a globalização atuou e vem fazendo-o de forma
significativa. A partir da Segunda Guerra Mundial, conflito de escala internacional cuja
intensidade definiu um marco novo para analisar o desenvolvimento posterior dos
movimentos migratórios contemporâneos (que anteriormente eram mais intensos quanto aos
processos de descolonização), mundialmente foram estabelecidas novas fronteiras que
42

definiram novos espaços de mobilidade e relações internacionais, marcadas por políticas de


barreiras (LACOMBA, 2008, p. 45).
Como um processo pós-moderno transnacional e cultural, o fenômeno migratório foi
analisado sob a perspectiva de mercado global, que demasiadamente deu ênfase ao elemento
econômico, excluindo em sua maior parte os parâmetros sociais, culturais, étnicos,
nacionalistas e migratórios. Farena (2009), afirma que

os migrantes exibem assim a contradição mais flagrante de nossa sociedade


globalizada: o fruto do trabalho é cidadão do mundo, mas o trabalhador não.
Ou seja, as coisas circulam livremente travestidas da qualidade de
mercadoria, ao passo que as pessoas são reprimidas se ousarem ultrapassar
as fronteiras estabelecidas. O mundo não está tão globalizado para as pessoas
quanto para os capitais. Este sim, "cidadão" do mundo.

Essa perspectiva inibitória das complexidades socioculturais e étnicas obstruídas pela


economicidade com a qual veio engajada a globalização permite a discussão do
reconhecimento dos direitos culturais do imigrante como uma instância para a sua inclusão,
afi alà asà dife e çasà ultu ais,à ua doà e à ho ue,à de o st a à deà odoà la oà aà
i o pati ilidadeàe t eàasàdi e sasàdefi iç esà ate iaisàdeà ida ,à dig idade ,à li e dade àeà
auto o iaà i di idual à e à uest o. à йà aà g a deà difi uldadeà ueà osà flu osà ig at ios
apresentam aos países de destino está concentrada em criar estruturas políticas e, por
consequência, normativas jurídicas em condições de possibilitar a inclusão do imigrante e de
todaàaàt adiç oà ultu alà ueàt azà o sigo. à TйIXйI‘á,à ,àp.à .à
Tais estruturas políticas e normativas jurídicas significam, em primeiro lugar, dignificar
os direitos humanos, que são para todos, de tal forma que se desenvolvam meios efetivos
para que sejam cumpridos, pois a dignidade da pessoa humana, quando respeitada, inclui o
reconhecimento do outro – o estrangeiro – da mesma forma com a qual se reconhece aos
seus iguais. Nesse sentido, aceitá-lo (com toda a sua bagagem sociocultural) é o primeiro
passo para a construção de uma sociedade na qual a violência se torne menos significativa.
Contextualizam Malgesi iàeàGi ezà ,àpg.à à ueà si àe a go,àelàte aàdeàlosà
derechos humanos de los inmigrantes en los países del Norte esta teñido de uma doble moral:
en el nível del discurso, se tende a aceptar globalmente todos los derechos de la persona; pero
e à laà p ti aà o eta,à fallaà laà apli a i à deà losà is os. à й fatiza-se, então, a
responsabilidade dos Estados Nacionais no quesito da produção e aplicabilidade das
normativas, pois aà ealidadeà à ueà osà di eitosà hu a os dos migrantes dependem das
43

políticas migratórias nacionais (corolário tenaz da soberania), pois elas determinam os direitos
ueàosà ig a tesàgoza à aàp ti a. à нй‘á)á,à .àPa aàыo heà ,àp.à ,

o direito internacional dos direitos humanos garante a toda pessoa o direito


de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu. Do mesmo modo,
é-lhe garantido o direito de regressar ao seu país. Entretanto, em termos de
direito internacional, não é possível assegurar o direito correspondente de
entrar no território de determinado Estado. Isso significa dizer que posso
abandonar qualquer país, sem que isso signifique que posso ingressar em
qualquer país, devendo obter autorização deste para poder entrar e
permanecer em seu território.

Dessa forma, resta clara a importância da existência de leis que versem sobre a
imigração nos Estados Nacionais (países receptores), bem como meios que tornem possíveis
a sua real aplicabilidade. Esse avanço, não há o que se negar, exige um profundo processo de
reconhecimento do outro, que dentre diversos fatores inclui aspectos concernentes à
aceitação da estrutura cultural intrínseca ao imigrante, mostrando-se também, como uma luta
contra o egocentrismo cultural.

2 Migrações no brasil: conotações através da biopolítica agambeniana

No Brasil, a partir da segunda metade do século XVI, a economia guiada em grande


parte pela produção açucareira demandaria uma nova mão de obra, que foi constituída pelo
povo africano, organizados para o trabalho pelo regime escravista. A escravidão fora
regulamentada até 1888, findando com a promulgação da Lei Áurea, mas não
necessariamente proporcionou mecanismos para uma otimização da vida dos escravos, que
acabavam voltando aos seus senhores por não terem outros meios de sobrevivência, porém,
não mais interligados pelo vínculo escravista. Em termos jurídicos, a abolição da escravidão
configura uma conquista histórica cujo processo foi lento, sendo que suas marcas ainda
restam fortes e estigmatizaram a raça negra, que até a contemporaneidade luta contra o
racismo. A biopolítica permite resgatar certos pontos que constituem o racismo, permeados
por ela:

um corte entre o que deve viver e o que deve morrer; a consigna de que para
viver é preciso fazer morrer, mas o que era uma injunção guerreira, torna-se
biológica (a morte do outro, da raça ruim, inferior, degenerada, é o que em
geral vai deixar a vida mais sadia, mais pura); trata-se de eliminar, não os
44

adversários, mas os perigos, em relação à população e para a população.


(PELBART, 2011 p. 59).

Oà es oà auto à ai daà e fatizaà ueà seà aà i upç oà daà idaà aàhist ia,àpo à eioàdasà
epidemias e fome, pode ser chamada de biohistória, agora trata-seà deà iopolíti a .à Nesseà
se tido,à u iosa e te,à à ua doà aisàseàfalaàe àdefesaàdaà idaà ueào o e àasàgue as mais
a o i eisàeàge o idas à PйэBá‘T,à ,àp.à .à
Oàfil sofoàitalia oàGio gioàága e àdefe deà ueàago aàaà iopolíti aàseà efe eàaoà faze à
i e ,àpoisà aàteo iaà l ssi aàdaà iopoliti aàdeli eadaàpo àMi helàнou aultàeà o te tualizadaà
no século XVIII pa aàdesig a àu aàdasàfo asàdeàe e í ioàdeàpode àso eàaà ida:à àpo ueàoà
soberano pode matar que ele exerce seu direito sobre a vida. É essencialmente um direito de
espada à нOUCáUэT,à ,à p.à .à Dessaà fo a,à fazia-se da morte o ponto central de
espetacularizar o poder irrestrito do soberano. Porém quando se supera o regime da
soberania, a morte também perde a sua importância enquanto poder político sobre a vida
hu a a,à poisà seà o stataà ueà à elaà ueà oà i di iduoà es apaà aà ual ue à pode .à ássi ,à oà
inte esseàdoàpode àseàdeslo aàpa aàoà faze à i e ,àdeà odoà ueàaà o teà aià o oà ueàfo aàdeà
seuà ito à PйэBá‘T,à ,àp.à .à
Agamben (apud PELBART, 2011, p. 61), revendo os estudos de Foucault, demonstra
que os regimes políticos da contemporaneidade apoiam-seàso eàoà o eitoàdeà idaà ua à
(vida que politicamente não é qualificada), sob seus vieses histórico-filos fi os,àpoisà oàs à
vivemos num estado de urgência que o poder tem interesse em manter e explorar, mas
justificar-se e intensificar-se, mas ao mesmo tempo a vida nua, que desde sempre foi o
fundamento oculto da soberania, tornou-seàaà o a àe,àe àespe ial,àdesta aà ueàtalàp o essoà
não se percebe só no nazismo, mas também na democracia.
Tal contexto pode muito bem ser aplicado atualmente para designar a imigração no
século XXI e seus contornos biopolíticos, em especial e não raro, do imigrante que se encontra
em situação irregular. O atual estado de guerra global que, de certa forma, teve seu inicio com
o ataque de 11 de setembro às Torres Gêmeas,àsus ita doà e taà gue aàaoàte o is o àfazà
com que as pessoas sintam necessidade de todas as formas de proteção em relação aos
estranhos, pois não se identifica mais o outro como semelhante, mas sim, interpreta-o sob o
viés do inimigo, como uma ameaça à sua vida e aos seus direitos.
45

O estado de exceção é a circunstância – ou o espaço – no qual direito e violência se


confundem e, ao existir, remonta à situação dos judeus nos campos de concentração nazistas,
nos quais a pessoa era extraída de tal modo de sua essência e dignidade que se tornava apenas
vida fisiológica em si. Em um espaço assim,
avaliar alguém como perigoso é suficiente para convertê-lo em perigoso e
justificar sua detenção indefinida, ou seja, transformá-lo em um mero objeto
nas mãos do Estado, evidenciando, em pleno século XXI, uma repristinação
da figura do homo sacer, obscura figura do direito arcaico romano resgatada
por Agamben [...] para retratar justamente a ambivalência que é
característica do estado de exceção, bem como para dar conta da
complexidade da situação do homem contemporâneo. O homo sacer, assim,
é a figura encontrada pelo autor justamente por situar-se na zona de
indistinção entre a violência e o direito (WERMUTH, 2015).

Por esse motivo, pode-se constatar que a imigração na contemporaneidade é


administrada pelos preceitos da biopolítica, que há séculos serve para gerir o comportamento
humano em relação ao poder. Nesse sentido, os imigrantes tornam-se próximos à figura do
direito arcaico romano denominado homo sacer, explicada por Giogio Agamben (2010), e que
elucida a situação, como já anteriormente citado, daquelas pessoas em estado de vida nua,
tão mortificadas em suas subjetividades que lhes resta tão somente a vida fisiológica,
tornando-se, então, objetos de controle pelo biopoder.

3 A necessidade de reconhecimento do imigrante como sujeito de direitos e o afastamento


da exploração laboral

A desigualdade social no Brasil deixa o imigrante na rota da exploração laboral, tendo


em vista que a Legislação que trata sobre a imigração no país não trata da realidade social,
graças à influência de sua construção, que foi no período ditatorial e com efeitos do Estado
de Segurança Nacional. Outro impasse em relação ao cumprimento dos direitos mínimos
garantidos ao imigrante é o desconhecimento da legislação e da proteção que lhe é
incumbida, abrindo margem assim para a exploração de sua mão de obra através da
remuneração inadequada e superficial que lhe é imposta.
Sayad (1998, p. 54-55), sobre o imigrante e sua relação de provisoriedade em relação
ao trabalho, afirma que
46

um imigrante é essencialmente uma força de trabalho, e uma força de trabalho


provisória, temporária, em trânsito [...], revogável a qualquer momento [...]. Foi o
t a alhoà ueàfezà as e àoài ig a te,à ueàoàfezàe isti ;à àele,à ua doàte i a,à ueà
fazà o e àoài ig a te,à ueàde etaàsuaà egaç oàouà ueàoàe pu aàpa aàoà o-
ser. E esse trabalho, não se encontra em qualquer lugar; ele é o trabalho que o
e adoàdeàt a alhoàpa aài ig a tes àlheàat i uiàeà oàluga àe à ueàlheà àat i uído;à
trabalhos para imigrantes que requerem, pois, imigrantes. Imigrantes para trabalhos
que se tornam, dessa forma, trabalhos para imigrantes.

Existe no Brasil, uma grande massa de imigrantes bolivianos, que se concentra


principalmente na cidade de São Paulo. Esta comunidade escolheu o país como destino por
consequência da crise política da Bolívia, que forneceu para sua população ínfimas condições
de desenvolvimento e também resultou em pobreza extrema, no caso de algumas regiões.
A atratividade do Brasil para a imigração se dá, justamente pelo país, frente à
comunidade internacional, transparecer a imagem de um país aberto à imigração e com
espeitoà à di e sidadeà ultu alà g açasà aoà isti is oà deà suasà aças .à йsseà fato à o eçouà aà
chamar a atenção dos bolivianos, que descontentes com a precariedade em que viviam em
seu país de origem, resolveram reconstruir suas vidas neste país. A construção da boa imagem
brasileira se dá, em parte, pela influência midiática, ou até mesmo por agenciadores que
interessados nos resultados positivos da imigração (condições atribuídas a estes indivíduos
análogas a de escravos), convencem as pessoas a migrarem de seus países.
No entanto, a indiferença que a população brasileira tem em relação a imigração, e o
edoàdeà ueàoài ig a teàsejaàu à possí elàte o ista ,ài ia ilizaàoàso hoà ueàoài ig a teà
tem de crescimento econômico, de proporcionar para si e suas famílias uma vida digna com
condições mínimas de existência, considerando a provisoriedade em que vivem. Esses
imigrantes vendem sua liberdade aos empregadores que, vislumbrados pelas vantagens
econômicas da exploração laboral, não respeitam sua dignidade.
O terrorismo serve como justificativa ideológica para essa violência sancionada, já que
os terroristas são considerados à margem da lei, para que então se justifique um tratamento
de igual forma: são indivíduos não considerados pa teà daà a adaà hu a a.à Oà oà
reconhecimento de residência e de circulação (liberdade) aos imigrantes, especialmente aos
ilegais,àfa ilitaàoàt ata e toàdeà oàpessoa à эY‘á,à ,àp.à .à
A recusa da população autóctone de enfrentar a realidade da imigração é justificada
pelo fato desse tema sair da sua zona de conforto, pois a situação em que se encontram os
vulneráveis talvez não interesse tanto à implementação de políticas públicas estatais e muito
47

menos interesse à população brasileira, graças ao sentimento de mixofobia, que é o medo de


misturar-se que as pessoas tem com o imigrante e também ao sentimento de que ele irá
ocupar um lugar que não é seu por direito, justamente por não ter nascido no país. Há de se
falar assim, na desumanização em relação ao fenômeno migratório, a partir do qual o outro é
sempre visto como inimigo ou parasita. Historicamente, vale ressaltar, que a imigração já foi
até incentivada pelo governo, para formar a nação brasileira.
Nesse sentido, Silva (2008, p. 157) salienta que,

do ponto de vista ocupacional, os bolivianos que entram no país, a partir da


década de 1980, trabalham, em sua maioria, no setor da costura, por ser esse
um segmento do mercado de trabalho que não exige experiência prévia nem
idade mínima para o trabalho, incorporando mesmo menores. Do
trabalhador se exige apenas muita coragem para se adaptar às condições
insalubres de trabalho, uma vez que é um setor no qual não há nenhuma
regulamentação das relações trabalhistas. Tal modo de produção se
enquadra no modelo daà a u ulaç oàfle í el àdoà apital,àe à ueàaàp oduç oà
se dá com base na qualidade de peças que o trabalhador é capaz de costurar.

Nota-se que a clandestinidade em que muitos imigrantes vivem é resultante da


burocratização da imigração, fazendo com que esses indivíduos vivam em condições análogas
a de escravos.
Conforme aduz Silva (2006, p. 162),

o problema da indocumentação tem sido um dos grandes desafios para os


imigrantes mais pobres no Brasil, particularmente para os bolivianos(as), uma
vez que o Estatuto do Estrangeiro, aprovado em 1980 por decurso de prazo e
num contexto de Segurança Nacional, só permite a entrada de mão-de-obra
especializada e de empreendedores no país. Para os que não se enquadram
nesses critérios, as duas únicas possibilidades de regularização são o
casamento com cônjuge brasileiro ou o nascimento de filho em território
brasileiro. Entretanto, por falta de informação, há casos em que bolivianos
acabam registrando seus filhos nascidos no Brasil em nome de uma irmã que
já esteja documentada no país. A razão para tal atitude é o temor de serem
descobertas pela Polícia Federal, por não estarem regularizadas no país. O
problema é reverter essa situação, depois que elas conquistam a própria
documentação. Em outros casos, as crianças não são registradas porque os
pais acreditam que no registro constará apenas o nome da mãe, em razão dos
indocumentados.

Uma vez clandestinos, ocorre uma série de violações de direitos, ao passo que na seara
da legislação trabalhista esses indivíduos indocu e tadosà oà e iste à eà passa à
despercebidos. Conforme destaca Érica Sarmiento da Silva (2006, p. 146),
48

com significativa ocorrência, o primeiro passo para a auto definição é a


defi iç oàdoàout oàdeà odoà e lude te àeàeste eotipado.àáàdes ualifi aç oà
doà out oà pa e eà se à u aà fe a e taà pa aà aà ualifi aç oà doà s ,à pa aà aà
construção do sentido de pertencimento. O processo de representar a
diferença é uma prática política e a desqualificação gera poder para os
sujeitos do próprio lugar.

As condições degradantes de trabalho se dão à medida que o imigrante não tem um


local adequado para o labor, violando suas liberdades, ao passo em que muitos, inclusive,
vivem no local de trabalho, sem privacidade e muito menos com condições adequadas de
moradia e, por consequência disso, surgem as jornadas excessivas de trabalho. Dessa forma,
faz-se necessário um melhoramento na legislação e posterior investimento em políticas
públicas para sanar essa lacuna que favorece as mais diversas formas de violação de direitos.

4 Migrações no brasil e o respectivo aparato normativo: a contraposição do estatuto do


estrangeiro com o pl nº 2.516/2015, que institui a nova lei de migrações

Para o Brasil, a imigração internacional foi de caráter imprescindível, sobretudo sob o


pretexto da economia, mas também trouxe consigo todo o viés cultural que caracteriza a atual
composição do povo brasileiro. Na contemporaneidade, constatou-se que o país entrou na
rota das grandes migrações populacionais oriundas da globalização. Consequentemente, é
fundamental que se tenha uma legislação adequada, bem como políticas públicas, para que,
em termos de efetivação de direitos no âmbito dos Estados, contemple-se aquilo que
preconiza a Constituição, afinal, é no âmbito da prática do direito interno que se dá o ensejo,
regularização e tratamento daquilo que se está internacionalmente escrito.
A legislação vigente que trata da imigração no território nacional é o Estatuto do
Estrangeiro (Lei nº 6.815/80), criado no ano de 1980, sob a égide da Constituição Federal de
1967, período no qual o Brasil viveu sob a ditatura militar, e prevê normas de admissão,
entrada e impedimento da imigração em território brasileiro. Através da perspectiva do
regime ditatorial, o tema foi construído através do viés da segurança nacional, a qual se
amparava na ideia de que o imigrante seria uma espécie de ameaça, devendo-se investir na
proteção dos interesses nacionais. Como aduz o parágrafo único do art. 16, do referido
estatuto,
49

A imigração objetivará, primordialmente, propiciar mão-de-obra


especializada aos vários setores da economia nacional, visando à Política
Nacional de Desenvolvimento em todos os aspectos e, em especial, ao
aumento da produtividade, à assimilação de tecnologia e à captação de
recursos para setores específicos.

Vale ressaltar também o quanto o dispositivo enfatiza o viés capitalista que permeava
as relações, o que não difere no quesito econômico dos dias atuais, mas evidencia-se que
desde o princípio das criações de normas o ser humano foi secundário ao patrimônio e ao
capital, tendo serventia desde que pudesse prestar mão-de-o aàe,àdeà ual ue àfo a,à se à
útil .à áà leià e à uest o,à es oà te doà sidoà iadaà e à u à o te toà políti oà ditato ial,à à oà
postulado normativo que até hoje legisla sobre a situação do imigrante no país, prevendo a
regulação do tema de forma arbitrária e obsoleta frente às novas necessidades socais. As
adversidades enfrentadas pelo imigrante que vem, são relacionadas à falta de legislação
básica para tratar do tema da imigração sem influências arbitrárias, portanto.
Para Fonseca Neto (apud Kenicke, 2016, p. 43), o Estatuto em questão

reflete uma época em que os fluxos migratórios não tinham tanta relevância de
forma geral, e em que a política do governo brasileiro passou a buscar a
autossuficiência. Essa atitude limitou a política de imigração que incentivasse a
i ig aç oàespo t ea,àistoà ,àa uelaàe à ueàoàsujeitoài ig aàape asà o à i tuitoàdeà
estabelecer-se de forma permanente no país de destino, local com o qual antes não
tinha ví ulo .

No que tange à concessão de visto, conforme regimento expresso no ordenamento


ju ídi oà asilei o,à oàseà o ede à istoàaoàest a gei oà o side adoà o i oà ào de àpú li aà
ouàaosài te essesà a io ais .àO a,àpelaàespeta ula izaç oàdaà ídiaà ueàte de a culpabilizar o
imigrante por todas as desgraças de seu país de origem, rotulando-o como criminoso, ou o
associando erroneamente ao aumento dos índices de criminalidade, qual a probabilidade do
país atender a esses indivíduos com respeito à sua dignidade humana? Faz-se necessária,
portanto, a superação da perspectiva securitária, que deverá ser substituído pelo Estado de
Direitos.
Sobre a perpetuação do conceito de Segurança Nacional, Pedro Henrique Gallotti
Kenicke (2016, p. 17) salienta que

a Doutrina da Segurança Nacional (DSN), foi uma formulação teórica que decorreu
da ideia de defesa do Estado e de sua nação, e esteve presente principalmente nos
escritos de pensadores militares. O termo indeterminado "segurança nacional" é
anterior à doutrina porque fora editado em algumas leis, decretos e, inclusive,
Constituições brasileiras, o que veio a influenciar os atos normativos de exceção
50

criados sob o ordenamento jurídico inaugurado pelo golpe civil-militar de 1964. Um


desses atos normativos que exemplifica o recorrente uso dessa expressão, que deve
ser entendida mais como o resultado de uma construção histórica de um projeto
político para o país do que apenas um standard jurídico, é o Estatuto do Estrangeiro
(Lei n. 6.815/1980).

O referido estatuto retira também do imigrante e seu status de cidadão, que é o


título à ueàd àoàpode àdeàusuf ui àple a e teàdosàdi eitosà i isàeàpolíti os,àpoisàlheà à edadoà
o direito de participação no processo eleitoral. Dessa forma, mostra-se que tal lei fundamenta
conceitos que se desvinculam da essência da democracia. Nesse quesito, faz-se também
importante mencionar o período de fragilidade da democracia pelo qual se está passando,
tendo em vista que recentemente o Brasil sofreu um impeachment, com a deposição de Dilma
Rousseff (2016) e, agora, está sob o controle de um governo por muitos considerado não
legíti o,àseà istoàso àaàpe spe ti aàp i iaàdaàde o a ia,à ueà àoà go e oàdoàpo o,àpeloà
po oàeàpa aàoàpo o ,àpo à eioàdasàeleiç es.àà
A Constituição Federal de 1988 apresenta como objetivos da República a construção
deà u aà so iedadeà li e,à justaà eà solid ia à e à o oà p o o e à oà e à deà todos,à se à
p e o eitosàdeào ige ,à aça,àse o,à o ,àidadeàeà uais ue àout asàfo asàdeàdis i i aç o ,à
conforme disposto nos incisos I e IV do art. 3º. Também, no art. 4º, que dispõe sobre como
deve reger-seàasà elaç esài te a io ais,àeàseàte à o oàp i ípiosà o teado esàaà p e al iaà
dosàdi eitosàhu a os ,à defesaàdaàpaz ,à epúdioàaoàte o is oàeàaoà a is o àeà oope aç oà
e t eàosàpo osàpa aàoàp og essoàdaàhu a idade , conforme dispostos nos incisos I, II, VI, VIII
e IX. Ademais, há todo o corpo de incisos do art. 5º que versa sobre os direitos e garantias
fundamentais, o qual proporcionou a constituição de todo o viés do neoconstitucionalismo
(ou constitucionalismo moderno, que proporciona um novo viés constitucional de ênfase
muito maior aos direitos fundamentais).
À luz da égide constitucional e objetivando reger o tema da imigração sob um prisma
mais humanitário, teceu o legislador um novo projeto de lei, que revoga o então estatuto e
institui a nova Lei de Migrações (PL nº 2.516/2015). Nas palavras de Teixeira (2015, p. 12),

enquanto o Estatuto do Estrangeiro se norteava por um mero ideal de


hospitalidade universal, sem apresentar qualquer facilitação para que o
estrangeiro pudesse criar raízes no país, o Anteprojeto da Nova Lei de
Migrações, elaborado, em 2013/2014, por uma Comissão de Especialistas do
Ministério da Justiça tenta voltar as atenções para os direitos humanos do
migrante e suas características individuais que o diferenciam e demandam
proteção estatal.
51

Seu caráter humanitário é apreciável e em concordância com os preceitos


constitucionais, conforme se pode perceber através do disposto no parágrafo primeiro do art.
3º:

Os direitos e as garantias previstos nesta Lei serão exercidos em observância


ao disposto na Constituição Federal, independentemente da situação
migratória, observado o disposto nos §§ 4º e 5º deste artigo, e não excluem
outros decorrentes de convenções, tratados e acordos internacionais de que
o Brasil seja parte.

O projeto também objetiva a não criminalização do imigrante e um tratamento


humanitário a esses indivíduos, garantindo assim, como aduz o artigo, igualdade de
oportunidades, dentre outras variadas formas de inclusão e difusão de direitos, repudiando a
expulsão ou deportação coletiva de imigrantes.
A inclusão social é um importante fator do projeto, uma vez que através dela poderá
se dar o respeito à diversidade cultural do imigrante. Atualmente surgiu uma nova política
adotada pela Universidade Federal de Santa Maria, localizada no Rio Grande do Sul, embasada
no princípio da inclusão social do projeto de lei. Essa política visa a assegurar a inclusão de
refugiados no ensino superior, através da destinação de 5% das vagas para refugiados. Para o
ingresso é necessário a comprovação de conclusão do ensino médio ou equivalente no país
onde residiam. A iniciativa foi tomada por parte da instituição de ensino, fornecendo um belo
exemplo para o país.
A resposta é muito boa para sanar a necessidade de uma nova normatividade que trate
do assunto, mas o projeto também deixa a desejar em certos fatores: o processo de
formalização da imigração necessita ser mais célere e menos burocratizado, pois ainda impõe
restrições à permanência de imigrantes em território nacional, oriundos, por exemplo, da falta
de documentação, dentre outros empecilhos propostos na legislação. Consequentemente,
esse processo de regularização da situação do imigrante é dificultoso, pois para a concessão
de visto definitivo existe a exigência de documento de identidade, por exemplo, documento
esse que muitas vezes se perde nas longas e perigosas viagens dessa população que se arrisca
em travessias sem as mínimas proteções, visto que qualquer rasura na documentação
impossibilita a concessão de visto.
No que tange aos direitos laborais, o artigo 5º prevê, em seu parágrafo único, que
52

são estendidos aos estrangeiros, independentemente de sua situação


migratória, observado o disposto no art. 5º, caput, da Constituição:
II - os benefícios decorrentes do cumprimento das obrigações legais e
contratuais concernentes à relação de trabalho, a cargo do empregador;

O Projeto de Lei também fala sobre as penalidades ocasionadas ao empregador que


reduz alguém a condições análogas a de escravo, bem como dificulta a locomoção do
imigrante, impedindo-o de sair do trabalho ou até mesmo se apoderando de documentos do
trabalhador, com fim de retê-lo no local de trabalho.
O art. 25 traz as situações mediante as quais o imigrante conseguirá autorização de
residência, como para tratamento de saúde ou trabalho. Entretanto, conforme relatório da
OIM (Organización Internacional para las Migraciones), que teceu critica a respeito do projeto,
o artigo em pauta deveria esclarecer os procedimentos e critérios para a aquisição da
autorização, de forma a evitar que se deixe a critério da administração o poder de decisões.
Nesse âmbito Teixeira (2015, p. 18) salienta que

as principais legislações europeias do pós-Segunda Guerra Mundial sobre


direitos dos imigrantes, bem como o Anteprojeto brasileiro de nova Lei de
Migrações, de 2014, buscam ajustar as normativas nacionais a uma demanda
de inclusão social do migrante, protegendo sua individualidade nos seus
diversos contextos possíveis, seja no âmbito familiar, laboral, religioso ou
cultural. Assim como fizeram as legislações europeias na segunda metade do
século XX, o Brasil agora parte para a tutela ampla dos direitos do imigrante,
mas ainda não enfrenta diretamente a questão relativa ao reconhecimento
das identidades coletivas e das informações culturais [...].
.
Por fim, não há dúvidas quanto à validade e à superioridade do projeto em questão,
afinal, o direito precisa acompanhar as necessidades sociais e, mais do que nunca, evidencia-
se a urgência de uma nova matéria que norteie a situação legal dos que chegam ao Brasil e
precisam de proteção, frente a todo contexto de violência já suscitado que norteia a situação
da imigração no séc. XXI.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, fazem-se necessários meios jurídicos, bem como diretrizes no


âmbito de execução de preceitos legais, para efetuar a necessária aplicabilidade de leis que
venham a gerir a imigração de forma congruente com o que prezam os documentos
internacionais de Direitos Humanos. Capacitando, primeiramente a lei dos Estados Nacionais,
53

através do papel de converter a atual situação da imigração no seu âmbito, bem como, para
depois, poder-se dizer que há uma efetivada cobertura de direitos baseadas nos Direitos
Humanos gerindo a imigração em nível mundial, não se esquecendo do teor educacional que
carregam os dispositivos normativos. A partir do momento em que o maior número de países
ratificarem a tratados internacionais que se baseiam nos Direitos Humanos, bem como que
esses tratados e convenções – também - tragam espaços nos quais institucionalizem a
respeito da imigração, maior será o nível de informação para possível conscientização da
população sobre a causa, pois como o exposto, ainda é tratada sob o viés da violência que
transforma a xenofobia em mixofobia, biopolítica em tanatopolítica, resultando em
tratamentos jurídico-políticos de afastamento embebidos pelo medo.
No âmbito do direito cosmopolita kantiano, todos foram chamados a contemplar um
domicílio em comum, que é o planeta terra, podendo, dessa forma, trafegar por seu território
e serem tratados de forma dócil pelos demais habitantes, podendo-se exercer um direito de
isitaç o .à йsseà a io í ioà podeà se à apli adoà aosà diasà deà hojeà pa aà aà efle oà ua toà à
maneira que seres humanos têm tratado aos seus semelhantes em relação ao
(des)acolhimento dos imigrantes quando estes chegam a seu território, tornando evidente a
necessidade de se mudar a ótica sob a qual se tem visto a situação, começando-se pela
mudança na legislação, que é o plano primário para as reformas sociais efetivas, de forma que
se torne possível a conversa entre Direitos Humanos e a vida política dos cidadãos.

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cruzaram o Mediterrâneo em 2016. Disponível em:
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54

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55

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56

JUSTIÇA SOCIAL E SOCIEDADE BEM ORDENADA A PARTIR DE JOHN RAWLS

Daiane Calioni Berton1


Ana Maria Foguesatto 2

RESUMO: O presente artigo aborda a forma pela qual a justiça social oportuniza a
concretização de uma sociedade bem ordenada. A abordagem se dá a partir da obra do
fil sofoàщoh à‘a ls:à U aàTeo iaàdaàщustiça .àNaàteo iaàdaàjustiça,àaàdist i uiç oàdosàdi eitosàeà
deveres fundamentais se dá pelas instituições aos membros da sociedade. São elas ainda que
determinam a divisão das vantagens da cooperação social. Diante das informações obtidas na
teoria da justiça, constata-se que uma sociedade bem ordenada é possível, quando observado
os princípios fundamentais da justiça, pactuados entre os membros da sociedade em uma
posição original. Diante disso, buscou-se traçar o perfil dos transgressores da norma penal no
Brasil, e demonstrar de que forma a ausência da justiça social contribui para uma sociedade
mal ordenada.

Palavras-chave: Teoria; Justiça Social; Sociedade; Instituições; Criminalidade.

1 INTRODUÇÃO
O trabalho aqui apresentado busca abordar, a forma pela qual a justiça social
opo tu izaàaà o etizaç oàdeàu aàso iedadeà e ào de ada,àaàpa ti àdaào aà U aàteo iaàdaà
justiça ,à doà fil sofoà щoh à ‘a ls.à Pa aà oà auto ,à aà est utu aà si aà daà so iedadeà à oà o jeto
principal da justiça. Ele busca alcançá-la através de dois princípios elaborados no discorrer da
teoria, fundamentados na distributividade. Rawls apresenta sua concepção de justiça, tendo
como fundamento à estrutura básica da sociedade a Teoria Contratualista, encontrada em
Locke, Rousseau e Kant.
Para o autor, as instituições são as responsáveis pela distribuição das parcelas de
direitos e deveres, vantagens e desvantagens, de forma equitativa, à todos os membros da
sociedade, e é a observação a esses princípios que torna a sociedade bem ordenada ou não.
Quando essa distribuição não acontece de forma justa, instala-se o caos. Assim, demonstra-
se que as instituições não são fortes o bastante para anularem as tentações dos membros da
sociedade de transgredirem as normas (RAWLS, 2008).

1
Bacharela em Direito pela UNIJUI. Advogada. E-mail: cb.daiane@yahoo.com.br.
2
Mestranda em Direitos Humanos do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNIJUÍ, pesquisadora bolsista
da CAPES. Bacharela em Direito pela UNIJUÍ. E-Mail: anafoguesatto@hotmail.com.
57

A partir da análise da teoria da justiça de Rawls, verificaremos quais são os atributos


principais de uma sociedade bem ordenada. Após, buscaremos traçar o perfil dos
transgressores da norma penal no Brasil. A partir dos resultados obtidos pelas referidas
análises, abordaremos se os sujeitos menos favorecidos pela justiça social no país, e aqueles
menos beneficiados, quando realizada a distribuição das parcelas de deveres e obrigações aos
membros da sociedade, são os que mais incidem na prática delitiva.

2 A Teoria da Justiça de John Rawls


John Rawls, filósofo americano, é dono de uma teoria da justiça que tem por objeto
principal a estrutura básica da sociedade, ou seja, o modo como as principais instituições
distribuem os direitos e deveres fundamentais, e de como determinam a divisão das
vantagens decorrentes da cooperação social. Para o autor, ela é o objeto principal, pelo fato
de suas consequências serem profundas e estarem presentes desde o início.
O autor parte de uma ideia intuitiva de que essa estrutura básica da sociedade contém
várias posições sociais, em que os sujeitos nasceram em condições diferentes e têm
expectativas diferentes de vida, determinadas tanto pelo sistema político e, circunstâncias
econômicas e sociais, favorecendo mais certos pontos de partidas que outros. Essas
desigualdades são muito profundas e atingem as oportunidades iniciais de vida, porém, não
podem ser justificadas através da ideia de mérito. (RAWLS, p. 8).
A teoria da justiça de Rawls não se explica através de conceitos ou significados comuns,
e sim através da interpretação de certos princípios distributivos elaborados para a estrutura
básica da sociedade, pelos seus membros, em uma posição original (RAWLS, p. 12). Para
conseguir chegar ao resultado desejado em uma teoria da justiça, o autor propõe dois
princípios que serão abordados no decorrer desse trabalho. São eles os responsáveis para
concretização da justiça social.
O autor tem como ideia norteadora, que os princípios de justiça para estrutura básica
da sociedade constituem o objeto do acordo original, conhecido pela teoria do contrato social
e o t adaàe àэo ke,à‘ousseauàeàыa t.àássi ,àeleàpa teàdeàu àpla oào igi al,à àesteàoà status
quo i i ialà ap op iadoà pa aà ga a ti à ueà osà a o dosà fu da e taisà eleà seja à e uitati os à
‘áWэ“,à p.à ,à ,à ge a doà assi à aà e p ess oà justiçaà o oà e uidade .à á a t aà “e à
58

(2011), autor que aborda a teoria da justiça de Rawls em uma de suas obras, qual seja,à áàideiaà
deàjustiça ,àde la aàoà ueà àe uidade:

Essa ideia fundamental pode ser conformada de várias maneiras, mas em seu centro
deve estar uma exigência de evitar vieses em nossas avaliações levando em conta os
interesses e as preocupações dos outros também e, em particular, a necessidade de
evitarmos ser influenciados por nossos respectivos interesses pelo próprio benefício,
ou por nossas prioridades pessoais ou excentricidades ou preconceitos. Pode ser
amplamente vista como uma exigência de imparcialidade. (p. 84).

Uma concepção de justiça se torna mais razoável que outra, ou mais justificada que
outra, quando pessoas racionais passam a escolher seus princípios, em uma situação original,
a fim de alcançar a justiça. Essa concepção deve ser classificada pela quantidade de pessoas
que na posição original aceitariam esses princípios. Isso vincula a teoria da justiça à teoria da
escolha racional.
O conceito de posição original, é o da interpretação filosoficamente preferida dessa
situação de escolha inicial para os fins da teoria da justiça. A preferência do autor pela escolha
desse status se dá por alguns motivos. Para a escolha desses princípios, é necessário que todos
careçam de informações que poderiam gerar discórdia entre os homens, e que os permitissem
se deixar levar por preconceitos no momento da escolha. O objetivo da situação original é
excluir o conhecimento de certos pontos de justiça. Vejamos o exemplo:

Se determinado homem soubesse que era rico, poderia achar razoável defender o
princípio de que os diversos impostos em favor do bem estar social fossem
considerados injustos; se ele soubesse que era pobre, seria bem provável que
propusesse o princípio oposto. Para representar as restrições desejadas, imagina-se
uma situação na qual todos carecem desse tipo de informação. (RAWLS, 2008, p. 22).

Através desse método se chegaria ao véu de ignorância de maneira natural. O véu da


ignorância tem como propósito expressar restrições a argumentos, desse modo, não tendo
conhecimento de informações como as do exemplo supracitado, elas estariam em um grau de
igualdade (RAWLS, 2008).
Nesse caso, compreende-se por igualdade entre os seres humanos como pessoas
morais, em dois aspectos: os que têm uma concepção do próprio bem e os que estão
capacitados a ter um senso de justiça, presumindo-se que cada pessoa tem a capacidade
59

necessária para entender quais são os princípios adotados e agir em conformidade com eles.
Segundo o autor,

junto com o véu da ignorância, essas condições definem os princípios da


justiça como aqueles que pessoas racionais interessadas em promover seus
interesses aceitariam em condições de igualdade, quando não há ninguém
que esteja em vantagem ou desvantagem em razão de contingências
naturais ou sociais. (RAWLS, 2008, p. 23).

Assim, sob o véu da ignorância as pessoas não teriam conhecimento e informações


sobre classes sociais e outros fatores que pudessem gerar parcialidade, e consequentemente
criar princípios justos.
Além do véu da ignorância, outro fator justifica a escolha do estado original para
definição dos princípios. Trata-se da possibilidade de verificar se os princípios que seriam
escolhidos na situação original são compatíveis com as nossas convicções atuais de justiça. Ou
seja, trata-se de verificar se os princípios escolhidos nos levariam a formular os mesmos juízos
sobre a estrutura básica da sociedade, que agora formulamos intuitivamente, e nos quais
depositamos a maior confiança, ou se, nos casos em que existem dúvidas em nossos juízos
atuais e eles sejam expressos com hesitação, esses princípios apresentam uma solução que
podemos aceitar após reflexão (RAWLS, 2008).

2.1 Os princípios da teoria da Justiça

Rawls propõe em sua teoria da justiça, dois princípios distributivos fundamentais para
a estrutura básica da sociedade, os quais seriam definidos pelos indivíduos na sua situação
inicial, a fim de alcançar a justiça social:

a) Cada pessoa tem um direito igual a um esquema plenamente adequado de


liberdades básicas iguais que seja compatível com um esquema similar de liberdades
para todos;
b) As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições.
Primeira, elas devem estar associadas a cargos e posições abertos a todos em
condições de igualdade equitativa de oportunidades. Segunda, elas devem ser para
o maior benefício dos membros menos favorecidos da sociedade. (RAWLS apud SEN,
2011, p. 89).
60

O primeiro princípio aborda a liberdade pessoal, e tem prioridade sobre as exigências


do segundo princípio que trata de certas oportunidades gerais e da equidade na distribuição
dos recursos de uso geral. Já o segundo princípio é dividido em duas partes.
A primeira parte do segundo princípio diz respeito à obrigação institucional de garantir
que as oportunidades públicas sejam abertas a todos, sem que ninguém seja excluído ou
prejudicado em razão de raça, etnia, ou religião. A primeira parte do segundo princípio, tem
prioridade sobre a segunda parte do referido princípio.
áàsegu daàpa teàdoàsegu doàp i ípio,àta à ha adaàdeà p i ípioàdaàdife e ça ,à
está relacionada com a equidade distributiva, e com a eficiência global, e assume a forma de
fazer com que os membros da sociedade que estejam em pior situação sejam beneficiados
tanto quanto os que estão em uma condição melhor (SEN, 2011). Ou seja, a igualdade de
oportunidades tem prioridade sobre os outros bens.
É possível, que os negociadores dos princípios percebam possibilidade de conflito
entre eles, ou seja, é possível que a restrição da liberdade de alguns indivíduos constitua
alguma desigualdade que satisfaça o segundo princípio, resultando dessa desigualdade um
aumento de bens beneficiando a todos. Esse tipo de desigualdade deve ser excluído e os
negociadores darão prioridade ao primeiro princípio, como já relatado, uma vez que nem
mesmo a melhoria do bem estar de todos basta para justificar uma redução inequitativa de
liberdade.
Segundo Rawls (APUD Garcia, 2011), uma sociedade só é bem ordenada quando
descobre e segue os princípios da justiça mais defensáveis, pois na medida em que isso ocorre,
todas as decisões políticas e legislativas devem sujeitar-se aos limites impostos pelos referidos
princípios. Diante disso, uma vez estabelecidos os princípios da justiça, o argumento
rawlsiano passa a examinar o estabelecimento da ordem social dentro desses princípios.
Os princípios não discriminam ordens sociais em que os meios de produção ou os de
transportes sejam propriedade privada ou pública, entretanto distinguirão entre ordens
sociais repressivas ou dominadas por interesses sociais discriminatórios e aquelas ordens
sociais que se preocupam em dar para os seus cidadãos as melhores condições para a
realização de seus projetos de vida.
61

2.2 Uma sociedade bem ordenada

A partir de agora, desenvolveremos o conceito de sociedade bem ordenada elaborado


pelo filósofo John Rawls, e buscaremos abordar a importância da justiça social para que ela
alcance esse fim. O autor entende por sociedade bem ordenada:

aquela moldada para promover o bem de seus membros e regulada de forma efetiva
por uma concepção pública de justiça. Assim, a sociedade na qual todos aceitam e
sabem que os outros aceitam os mesmos princípios de justiça, e as instituições
sociais básicas atendem e se sabe que atendem a esses princípios. (RAWLS, 2008, p.
560).

Claudio Boeira Garcia (2011), também aborda o conceito de sociedade bem ordenada
na visão de Rawls. Vejamos:

Ela é bem ordenada quando faz e segue as regras que atendem a um conceito
público de justiça, onde cada um aceita e sabe que os outros aceitam os mesmos
princípios, e onde as instituições básicas os satisfazem.
[...]
Numa sociedade bem ordenada os participantes admitem um ponto de vista
comum, a partir do qual as reivindicações de cada um possam ser julgadas. A
convivência só é possível na medida em que se compartilhe de um conceito de
Justiça ou, ao menos, de certo grau de coincidência. Uma sociedade lida com os
problemas de coordenação, de eficiência e de estabilidade; eles devem ser levados
em conta, sobretudo suas soluções que devem atender aos princípios adotados.
(p.27)

Uma sociedade bem ordenada, segundo Rawls (2008), também é regida por uma
concepção pública de justiça. Isso implica no desejo que seus membros têm de agir conforme
exigem os princípios.
Uma sociedade bem ordenada resiste ao tempo, assim, presume –se que sua
concepção de justiça seja estável. Ou seja, quando as instituições são justas, os participantes
desses arranjos institucionais adquirem o correspondente senso de justiça e desejam fazer
sua parte para preservá-la.
Para melhor compreensão de uma sociedade bem ordenada, Rawls afirma ser
necessário que a concepção de justiça seja estável e equilibrada. Diante dessa necessidade
aborda-se o conceito de ambos adjetivos a fim de evitar confusões.
A estabilidade da concepção da justiça não se entende como sendo a não alteração da
sociedade, e sim, que tal sociedade conterá grande diversidade, e adotará ordenações
62

diferentes de tempos em tempos, porém, ainda que haja modificações, elas permanecem
justas ou aproximadamente justas, pois são realizados ajustes em razão de novas
circunstâncias sociais. Conforme o autor,

Uma concepção de justiça é mais estável que outra se o senso de justiça que tende
a gerar for mais forte e tiver mais probabilidade de anular inclinações
desestabilizadoras e se as instituições que permite gerarem impulsos e tentações
mais fracos a agir de maneira injusta. (RAWLS, 2008, p. 561).

áàesta ilidadeàdaà o epç oà aiàdepe de àdeàu àe uilí ioàdeà oti aç es,à oàse soà
de justiça que cultiva e os objetivos que incentiva devem normalmente ter preponderância
so eàasàp ope s esà ài justiça à ‘áWэ“,à ,àp.à .àPa aàa alia àaàesta ilidade de uma
concepção de justiça é necessário examinar a força relativa dessas tendências opostas.
O critério de estabilidade não é decisivo, pois algumas teorias éticas o desobedecem
completamente em algumas interpretações. A maioria das doutrinas tradicionais, por
exemplo, afirmam que em algum grau a natureza humana é tal que adquirimos um desejo de
agir com justiça, quando se vive em uma instituição justa e nos beneficiamos dela.
Oà siste aà deà e uilí io,à po à suaà ez,à assi à est à ua doà al a çaà u à estado que
persiste indefinidamente ao longo do tempo, contanto que não sofra pressão de forças
e te as à ‘áWэ“,à ,àp.à .àà Para definir com precisão o estado de equilíbrio, é
preciso traçar com critério os limites do sistema e definir com clareza suas características
determinantes. Três coisas são essenciais: em primeiro lugar, identificar o sistema e distinguir
entre forças internas e externas; em segundo lugar, definir os estados do sistema, sendo que
um estado corresponde a uma determinada configuração de suas características
determinantes; e, em terceiro lugar, especificar as leis que ligam esses estados.
É possível ainda, fazer uma diferenciação de um equilíbrio estável e equilíbrio instável.
Segundo Rawls,

um equilíbrio é estável sempre que os afastamentos dele, provocados, digamos, por


distúrbios externos, invocam forças internas do sistema que tendem a leva-lo de
volta ao estado de equilíbrio, a não ser, é claro, que os choques externos sejam
grandes demais. O equilíbrio é instável, pelo contrário, quando distanciar-se dele
desperta forças internas do sistema que levam a mudanças ainda maiores. Os
sistemas são mais ou menos estáveis, dependendo do poder das forças internas
disponíveis para devolver-lhes o equilíbrio. (2008, p. 564).
63

Para o presente artigo, o sistema mais relevante é a estrutura básicas das sociedades
bem ordenadas correspondentes às diversas concepções de justiça.

3 Uma visão conteporânea e a sociedade bem ordenada

Buscou-se abordar até o momento o que é uma sociedade bem ordenada a partir da
teoria filosófica de Rawls. Verificou –se que uma sociedade bem ordenada é aquela que aplica
os princípios da justiça fundamentados na distributividade equitativa, elaborados no decorrer
da teoria de Rawls, fazendo com os indivíduos de determinada sociedade não tenham desejo
de transgredir as normas, e sim o desejo de contribuir com a sociedade em geral.
A partir de agora buscaremos analisar o perfil dos transgressores da norma penal no
Brasil. Se tem como critério principal para a análise, o modo como os transgressores, antes de
praticar os delitos, foram assistidos pela justiça social.

3.1 O sistema prisional brasileiro e o perfil da população carcerária

No Brasil o debate sobre criminalidade e segurança pública é vasto e denso e grande


gerador de polêmicas do setor público. Discussões mais precisamente acerca do
funcionamento do sistema prisional, onde estudos precursores já apontam perspectivas nada
agradáveis.
Na percepção internacional, o sistema carcerário no Brasil não é bem visto, é
conhecido como sendo um campo onde concentra-se os menos favorecidos economicamente.
A população carcerária brasileira cresce consideravelmente a cada ano, esse crescimento é
acompanhado de formas severas do aparato repressivo. As prisões passaram a ter regimes
disciplinares mais rígidos, indo de encontro a perspectiva de ressocialização do apenado.
No que tange a política de segurança pública, surge um debate importante em relação
as concepções de repressão e prevenção, sendo as repressivas as com mais rigor na aplicação
penal, aproximando-se da perspectiva de lei e ordem; e as preventivas que são as medidas de
inclusão social e humanitária, que traz a defesa dos direitos humanos.
Para melhor compreender o cenário carcerário brasileiro se faz necessário a busca de
dados que são disponibilizados pelo Sistema Integrado de Informações Penitenciárias
64

(Infopen), no qual o Ministério da Justiça divulgou um relatório sobre a população carcerária


oàB asil:à áàpopulaç oàpe ite i iaà asilei aà hegouàaà . 02 pessoas em dezembro de
2014. O perfil socioeconômico dos detentos mostra que 55% têm entre 18 e 29 anos, 61,6%
s oà eg osà eà , %à t à at à oà e si oà fu da e talà o pleto. à Ca eà i fo a à ai daà ue:à
“egu doàoàestudo,àoàB asilà o taà o àaà ua taà aio àpopulação penitenciária do mundo,
at sàape asàdeàйstadosàU idosà . . ,àChi aà . . àeà‘ússiaà . . à“o eàaà
natureza dos crimes cometido pelos aprisionados destaca-se o tráfico de drogas, o roubo,
furto e o homicídio.
De acordo com os pesquisadores Felipe Mattos Monteiro e Gabriela Ribeiro Cardoso
(2013) colocam quanto ao perfil da população carcerária tendo por base dados estatísticos do
sistema prisional, levando em consideração diversas questões como por exemplo: o grau de
escolaridade, a idade, a cor, o crime cometido, a pena aplicada, se é ou não reincidente.
Nessa seara, cabe destacar que o sistema prisional brasileiro, tornou-se predominada
pelos mais pobres, pelo grande aumento de sua população a uma política de repressão e de
criminalização no que tange a pobreza, do que a uma política capaz de diminuir o crime
propriamente dito. Dando ênfase no debate da criminalidade acerca das desigualdades
sociais e econômicas, bem como as dificuldades ao acesso à justiça.
Nos cárceres brasileiros é notável que a maioria da população não são criminosos de
alta patente vistos como perigosos e violentos, mas sim condenados por envolvimento com
drogas, furto, roubo ou atentados à ordem pública. Na violência, a população mais jovem
assume uma posição de destaque, sendo tanto com autor (entre 18 a 29 anos) como vítima
(entre 15 e 24 anos). Em relação ao grau de instrução doas apenados consta que mais de 70%
não haviam concluído o ensino fundamental, sendo a maioria então com baixo grau de
escolaridade. Os dados demonstram a gravidade levando em consideração a cor das pessoas
encarceradas, sendo 60% negros e 37% brancos.
A partir disso, deve-se considerar que o panorama apresentado pelo sistema prisional
brasileiro qualifica o acompanhamento e a crítica das políticas de segurança pública. Onde as
discussões são de grande valia para a agenda pública
65

3.2 Uma visão rawlsiana e o sistema carcerário no Brasil

Fica evidente, a partir dos dados informados, que a população carcerária do Brasil é
constituída por pessoas menos assistida pelo Estado, ou seja, pelas políticas públicas, pela
justiça social. Logo, se o Estado se abstém de proporcionar direitos e deveres de forma
equitativa aos membros da sociedade, há grandes chances de que ela seja mal ordenada. Essa
constatação se dá fundamentada na teoria de Rawls.
Verifica-se através dos dados estatísticos supracitados, que 70% dos apenados não
concluíram o ensino fundamental, ou seja, são de baixa escolaridade. Sabe –se que o direito
à educação é um direito fundamental previsto na Constituição Federal que deveria ser
garantido pelo Estado. Quando o Estado deixa de garantir os direitos fundamentais aos
membros da sociedade de forma equitativa, os cidadãos acabam recorrendo a outras formas
de sobrevivência, que infelizmente nem sempre são os melhores, recorrem a métodos que
levam a sociedade a um grau de desordem.
A educação é apenas um dos direitos fundamentais omitidos pelo Estado, outros
direitos ainda encontram-se restritos a poucos, entre eles, a saúde, moradia e a alimentação.
Diante disso demonstra-se a necessidade de políticas públicas que garantam a distribuição
dos direitos fundamentais de forma equitativa, a fim de assegurar aos seus membros uma
vida digna, mudando as perspectivas dos seus membros que transgridam as normas penais,
para agir em prol da cooperação social e da ordem na sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao discorrer do trabalho, demonstrou-se que a justiça social, na perspectiva de John


Rawls, é alcançada a partir de dois princípios baseados na distributividade. Esses princípios
são o da liberdade, e o segundo princípio que é divido em duas partes, o da igualdade e da
distribuição de oportunidades equitativas. Verificou –se na teoria de Rawls que se os
princípios forem aplicados, a sociedade se manterá estável e, em equilíbrio, garantindo assim,
uma sociedade bem ordenada.
66

Analisado o perfil dos apenados no Brasil, constatou-se que a população carcerária é


constituída por aqueles menos assistidos pela justiça social. Assim, percebeu-se que a não
aplicação dos princípios da justiça na sociedade moderna, também acarreta em desordem.
Constatou-se assim, que a distribuição de direitos e deveres de forma equitativa aos
membros da sociedade são fundamentais para que a ordem seja mantida, ou seja, a sociedade
só será ordenada se as instituições forem justas. Se as instituições, não forem justas com os
seus membros na distribuição dos direitos fundamentais, eles também não agirão com justiça
no exercício dos seus deveres como cidadão. Porém, se garantida a liberdade, a igualdade e a
distribuição de oportunidades de forma equitativas, é possível a constituição de uma
sociedade bem ordenada.

REFERÊNCIAS

GARCIA, Boeira Claudio. John Rawls: os princípios de justiça em uma sociedade bem
ordenada – suas implicações. Direito em Debate. Ijuí: Ed. Unijuí, 1992, 24 – 39 p.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. MJ divulga novo relatório sobre população


carcerária brasileira. In: <http://www.justica.gov.br/radio/mj-divulga-novo-relatorio-sobre-
populacao-carceraria-brasileira>. Acesso em 25 abr. 2017

MONTEIRO, Felipe Mattos; CARDOSO, Gabriela Ribeiro. A seletividade do sistema prisional


brasileiro e o perfil da população carcerária: Um debate oportuno. Disponível em:
<http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/12592>. Acesso em
25 abr. 2017

RAWLS, Jonh. Uma Teoria da Justiça. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, 725 p

SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, 492 p.
67

POLÍTICAS PÚBLICAS: COTAS RACIAIS A PARTIR DA LEI 12.711/12 NO ÂMBITO DO ENSINO


SUPERIOR

Fagner Fernandes Stasiaki1


Thaís Kerber de Marco2

RESUMO: As políticas públicas tem fundamental importância em nossa sociedade, quando


visam as ações afirmativas no âmbito da inclusão social, num país, em que, atualmente ainda,
paira o preconceito e a desigualdade. Essa busca pelo reconhecimento tem como objetivo
proteger o direito à diferença, garantir direitos a grupos vulneráveis, bem como as minorias
que são excluídas, tanto social quanto economicamente. Buscam-se, no Brasil, meios de
enfrentar as desigualdades, não apenas punindo todas as formas de preconceito em virtude
da origem étnica, mas fazendo com que o Estado atue para a redução dessas desigualdades
de fato. Em 2012, sancionada a Lei 12.711/12, que trata das cotas raciais, a qual teve um
número significativo ao tratar-se da inclusão social, visando em longo prazo à igualdade
material.

Palavras-chave: POLÍTICAS PÚBLICAS; COTAS, DIREITO; EDUCAÇÃO; IGUALDADE.

1 INTRODUÇÃO
As cotas raciais têm como importância, buscar, a longo período, uma sociedade mais
igualitária. A Lei 12.711/12, sancionada em agosto de 2012, é percussora de mudanças
significativas na democratização do acesso ao ensino superior e na redução nas desigualdades
sociais no país. Assim, analisar, a partir da história do Brasil, a forma de organização das cotas
raciais e quais os motivos que levaram a criação da lei 12.711/12, num país em que, ainda, são
inúmeros os casos de desigualdades materiais. As ações afirmativas, enquanto direitos
fundamentais proporcionam ao cidadão o direito a igualdade em diferentes dimensões.
Cogita-se, há muitos anos, a inclusão das cotas raciais analisando-se por meio das
vertentes teóricas, a minimização das desigualdades, a partir do momento em que as
universidades brasileiras adotaram certa porcentagem de cotas. Ao passo que, é possível
verificar a grande aprovação pela população brasileira com relação as cotas aplicadas as
escolas e no âmbito das universidades, analisando-se a importância das mesmas a nível

1
Estudando de Direito da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), Campus Santo
Ângelo. E-mail:Fagner.stasiaki90@yahoo.com.br
2
Professora e mestre em Direito na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI),
Campus Santo Ângelo –RS. E-mail: thaiskerber@hotmail.com.
68

superior, mostrando, ainda, um número relevante de diminuição nas desigualdades sociais,


através da garantia do direito fundamental a educação.
Com o intuito de demonstrar os avanços relacionados as cotas raciais no Brasil,
tratando, em especial, na Lei 12.711/12, que outorgou aos cidadãos a inclusão ao ensino
superior. Logo, a entrada dos negros no ensino superior foi uma das maiores conquistas
sociais, é importante salientar que, a política pública de inclusão aqui referida, diz respeito a
oportunidades, nossa Constituição Federal de 1988 garante, como direito fundamental, o
direito a educação, bem como a igualdade de todos.

2. Princípio constitucional da igualdade

No Brasil, o princípio da igualdade passou a vigorar a partir da Constituição Federal de


1988, quando o cidadão passou a ter aptidões e possibilidades isonômicas perante a Lei. A
Carta Magna veda quaisquer diferenciações arbitrarias e absurdas. O princípio da igualdade
encontra-se respaldado no á t.à ºàdaàCo stituiç oàнede al,à ueàdei aà la o:à todosàs oàiguaisà
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segu a çaàeà àp op iedadeà[...] à B‘á“Iэ,à .à
É evidente que, ainda, existe uma série de problemas relacionados à desigualdade no
Brasil, e o Estado Democrático, tendo como objetivo o bem de todos os cidadãos, busca
enfrentar essas deficiências. Barroso deixa claro que a Constituição Federal, desde o começo,
repudia toda forma de preconceito e discriminação, adendo, ainda, que o mesmo, tem como
dever, combater este desvio e lutar pela redução das desigualdades:

A Constituição Federal de 1988 consagra o princípio da igualdade e condena de


forma expressa todas as formas de preconceito e discriminação. A menção de tais
valores vem desde o preambulo da Carta, que enuncia o propósito de constituir uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos .àOàa t.à ºà e o aàaài te ç oàeàlheà
confere inquestionavelmente normatividade, enunciando serem objetivos
fu da e taisà daà ‘epú li aà construir uma sociedade livre, justa e solidária à eà
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação .àOà aputàdoàa t.à ºà eafi aà ueà todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza à [...]à Bá‘‘O“O,à s.p,à
2012).
69

Para entendermos melhor a diferença entre a igualdade material (de fato) e a


igualdade formal (de direito), é preciso saber que, toda norma que se encontra na Constituição
Federal é uma norma constitucional, por isso, essa constituição formal também é uma
Constituição material, trazendo o princípio da igualdade e garantindo direitos e prerrogativas.
Logo, reproduz-se a distinção que corresponde a uma diferença no que se refere ao direito
formal (teoria) e o direito material (prática).
No que diz respeito ao direito formal, o Estado, os legisladores, e o poder público, são
responsáveis por garantir direitos fundamentais e sociais, bem como prevenir distinção de
qualquer natureza, como exemplo desses direitos formais, a Constituição Federal de 1988
proíbe expressamente o preconceito de raça, cor ou religião em seu artigo 5º, garantindo ao
povo brasileiro os valores pessoais sobre os quais assenta a estrutura moral da nação3. Outro
exemplo desses direitos é a Lei de Cotas 12.711/20124, hoje em vigor no Brasil.
Ao tratarmos da igualdade material, o Estado tem o dever de garantir que os direitos
previstos na Constituição Federal sejam efetivados. Ao abordar o assunto, tem-se como
exemplo as cotas raciais, que por meio da Lei 12.711/12, tem como finalidade garantir a
igualdade material, pois, ao passo que, a fim de reparar uma dívida histórica com os negros,
causado à época, por senhores burgueses brancos, que escravizavam e utilizavam-se da mão-
de-obra escrava, fazendo a fortuna de seus donos, enquanto que os negros tinham, apenas,
os direitos de trabalhar para garantir os privilégios de seus donos.
Nesse mesmo sentido, o artigo 5º (caput) da Constituição Federal não trata apenas da
igualdade formal, mas também da igualdade material, buscando uma igualdade proporcional,
demandando, é claro, de políticas públicas inclusivas, do interesse do Estado, bem como do
emprego de recursos públicos para sua garantia. Nesse sentido, é impossível não citar a
l ssi aàdefi iç oàdeàá ist telesà ue,à igualdadeà àt ata àigual e teàosàiguaisàeàdesigual e teà
os desiguais, na medidaàdeàsuaàdesigualdade .àй,àBoa e tu a,à essaltaà ue:

[...]àPa aà ueàoàp i ípioàdaàigualdadeàsejaàefeti ado.àй à e dade,à te osàoàdi eitoàaà


ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes
quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade

3
Constituição Federal de 1988: "Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
àigualdade,à àsegu a çaàeà àp op iedadeà[...] .
4
эeiàdeàCotas:àá t.à ºà[...]à po àautode la adosàp etos,àpa dosàeài díge asàeàpo àpessoasà o àdefi i ias,à osà
te osàdaàlegislaç o à[...].
70

que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou


reproduza desigualdades [...] (TREVISO apud BOAVENTURA).

Em 2014, a revista Carta Capital, ao tratar da redução das desigualdades sociais no


Brasil, publicou uma entrevista feita com o representante brasileiro dos Programas das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Jorge Chediek, que aduziu que:

[…]à Oà B asilà te eà e o esà a a çosà osà últi osà à a osà e à te osà deà cobertura
escolar e anos de ensino por estudante. A situação há duas décadas era muito ruim:
metade da população maior de 25 anos tinha menos de quatro anos de estudo. O
esforço que o país tem feito para assegurar a cobertura universal do ensino básico e
médio já registra significativa melhora no estoque [pessoas que já saíram da idade
escolar] e fluxo [que ainda estão em idade escolar]. Partindo do patamar bem baixo
que o Brasil tinha há 20 anos, o aumento da quantidade de anos de estudos foi uma
melhora espetacular. O que falta: universalização das creches e do ensino pré-
es ola ,à e à o oà elho a àaà ualidadeàdaà edu aç o.à“ oàosàdesafiosàatuaisà […]à
(CHEDIEK, 2014, s.p).

Essas desigualdades sociais, segundo o sociólogo alemão Karl Marx (WELFFORT, p. 06)
é acúmulo de capital, servindo para girar a roda da economia, uma vez que, quem detém o
capital, é quem detém as melhores condições de moradia, acesso a recursos e educação. Logo,
ue à est à doà out oà ladoà o oà e g e age à doà siste a ,à s oà osà t a alhado esà ue não
detêm a renda nem o capital, e estão na extremidade inferior da relação. Assim, as relações
de desigualdades foram se tornando cada vez mais complexas e crescentes. O professor Felipe
Medeiros, em matéria ao G1, explica que:

[…]àáà is oàdeàыa làMa x, que era muito mais economista do que mesmo sociólogo, deu
uma contribuição muito grande ao estudo sociológico. A desigualdade social está atrelada
necessariamente ao modo de produção capitalista que não é justo, não é igual. Possibilita
um processo de desigualdade muito intenso. Então o modo de produção que visa o lucro,
através do acúmulo de capital e da exploração de trabalho, na visão marxiana é uma visão
que possibilita a gente a entender porque essa desigualdade se estabelece e aqui a gente
visualizaàissoà[…]à MйDйI‘O“,à ,às.p .

É preciso levar em consideração que a prestação devida pelo Estado, varia de acordo
com a necessidade de cada cidadão, uma vez que isso, garantindo essa prestação, garante a
liberdade de cada um, bem como os direitos a saúde e a da educação, entre outros direitos
sociais e fundamentais à população. Assim, Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet
Branco, no livro, Curso de Direito Constitucional, referem que
71

[...] Em relação aos direitos sociais, é preciso levar em consideração que a prestação
devida pelo Estado varia de acordo com a necessidade especifica de cada cidadão.
Enquanto o Estado tem que dispor de um valor determinado para arcar com o
aparato capaz de garantir a liberdade dos cidadãos universalmente, no caso de um
direito social como a saúde, por outro lado, deve dispor de valores variáveis em
função das necessidades individuais de cada cidadão. Gastar mais recursos com uns
do que com outros envolve, portanto, a adoção de critérios distributivos para esses
recursos. [...] (MENDES, 2014, p. 628).

A igualdade material na grande maioria das vezes vem das políticas públicas de
inclusão, fazendo-se necessário, hoje, no Brasil, a implantação de políticas para um futuro
mais igualitário. A Constituição Federal garante o acesso à educação e recrimina qualquer tipo
de exclusão, bem como garantindo, não só os direitos formais, mas também a igualdade
material de direitos. Tratando da igualdade social, por meio da educação e da inclusão social,
as cotas raciais buscam por esses meios garantidos em nossa carta magna, nada mais que a
igualdade material, proporcionando aos excluídos uma participação ativa no meio social.
Mendes ao referir-se sobre os valores variáveis enfatizou os direitos fundamentais,
garantindo a liberdade do cidadão, o direito de ir e vir, bem como o direito a escolha, sem
qualquer restrição, sendo o Estado o maior garantidor desses direitos, para fins de
proporcionar possibilidades igualitárias. Salienta-se que esses direitos se fazem necessários
para consertar uma cultura que, ao longo da história, excluiu algumas minorias de nosso meio
social.
Essas políticas públicas e garantias supracitadas à uma sociedade carente de recursos
e de políticas inclusivas, no decorrer da história, a curto, médio ou em longo prazo, irão
desaparecer no momento em que as mesmas tiverem alcançado o objetivo na sociedade.
Nesse sentido, Gilmar Mendes deixa claro:

[...] o caráter da historicidade, ainda, explica que os direitos possam ser proclamados
em certa época, desaparecendo em outras, ou que se modifiquem no tempo. Revela-
se desse modo, índole evolutiva dos direitos fundamentais. Essa evolução é
impulsionada pelas lutas em defesa de novas liberdades em face de poderes antigos
- já que os direitos fundamentais costumam ir-se afirmando gradualmente - em face
de novas feições assumidas pelo poder (MENDES, BRANCO, 2014, p. 144).

Os direitos fundamentais dentro do Estado Democrático de Direito, dependem de


diversos fatores [...] das peculiaridades, da cultura e da história dos povos [...]. (MENDES;
BRANCO, 2014, p. 142), bem como os direitos específicos, que não abrangem toda e qualquer
72

pessoa, como por exemplo, as políticas de cotas, garantindo apenas para negros, indígenas e
pardos, não auferindo mais do que a renda estipulada, ou seja, aproximadamente um salário
mínimo e meio. Assim, Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco, no livro, Curso
de Direito Constitucional, referem que:

[...] Não é impróprio afirmar que todas as pessoas são titulares de direitos
fundamentais e que a qualidade de ser humano constitui condições suficientes para
titularidade de tantos desses direitos. Alguns direitos fundamentais específicos,
porém, não se ligam a toda e qualquer pessoa. Na lista brasileira dos direitos
fundamentais, há direitos de todos os homens - como o direito à vida -, mas há
também posição que não interessam a todos os indivíduos referindo-se apenas a
alguns [...] (MENDES; BRANCO, 2014, p. 143).

Assim, o Estado por meio de suas modificações lentas e progressivas, social-


democrático, dentro de suas peculiaridades tenta de forma sucinta, concertar os erros da
história liberal individualista, passando a aderir seu texto Constitucional ao lado da Declaração
dos Direitos Individuais. Sahid Maluf, explica:

[...] Os direitos sociais constantes destas declarações correspondem a obrigações


positivas do Estado, configurando normas de ação governamental. São direitos
fundamentais e grupais à prestação assistencial do Estado. São declarações
programáticas que se completam e se efetivam através de regulamentação
legislativa ordinária. [...] A Constituição brasileira de 1988 já incorporou grande parte
dessas declarações no Capítulo II do Título II (Dos direitos sociais) [...] (MALUF, 2013,
p. 247).

No que se referem aos direitos sociais, esses direitos indispensáveis para a realização
da dignidade da pessoa humana, a Constituição Federal, deixa claro:

Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a


moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição (BRASIL,1988).

Ao tratar das conquistas sociais, das lutas das minorias étnicas, bem como das ações
afirmativas, Habermas, refere que

[...] uma teoria dos direitos entendida de maneira correta vem exigir a política de
conhecimento que preserva a integridade do indivíduo, inclusive nos contextos vitais
que conformam sua identidade. [...] E sem os movimentos sociais e sem lutas
políticas, vale dizer, tal realização teria poucas chances de acontecer [...]
(HABERMAS, 2002, p. 235).
73

Além disso, Habermas, faz menção as decisões judiciais, fazendo ênfase a importância
doàPode àщudi i ioà oà ueàseà efe eàasàigualdadesàso iais:à u aào de àjurídica eticamente
neutra que deve assegurar chances iguais a todos, de modo que cada um possa orientar-se
po àu aà o epç oàp p iaàdoà ueàsejaà o à[...]à рáBй‘Má“,à ,àp. .
Assim, partindo da premissa que o direito constitucional brasileiro garante o princípio
da igualdade, e esse princípio garante não somente a igualdade formal, como também a
igualdade material, é essencial destacar que, as desigualdades existem e são reconhecidas
pelo Estado Democrático de Direito, se fazendo necessário tratar de modo desigual os
desiguais, não aprofundando as desigualdades, mas combatendo-as. E, por meio das cotas
raciais garantem-se os direitos sociais e fundamentais de modo que os que necessitam dessa
política de inclusão, se sintam seguros de que o Estado garanta a efetividade dessas ações
afirmativas.
Po à fi ,à рa e asà afi aà ueà [...]à u aà teo iaà deà di eito,à seà e te didaà deà fo aà
o eta,àja aisàfe haàosàolhosàpa aàasàdife e çasà ultu ais à[...]à рáBй‘Má“,à ,àp.à ,à
para a luta das minorias, conquistas sociais e o direito a igualdade. Então, as ações afirmativas
visam a inclusão não somente no meio social, como também no âmbito acadêmico e do
mercado de trabalho, efetivando assim, a igualdade material prevista na Constituição Federal
de 1988.

2 Conceito e origem de políticas públicas

Os últimos anos foram marcadas com práticas de inclusão social (políticas públicas)
que, preocupados somente com a questão da desigualdade social, econômica e de renda,
também buscam introduzir essas minorias na sociedade, visando a igualdade material, bem
como a dignidade da pessoa humana e, entre outros diversos fatores que contribuíram para
a maior visibilidade das minorias.
Leonardo Secchi define política pública como um procedimento capaz de enfrentar os
problemas sociais de nossa sociedade, refere que tal diretriz foi criada para o bem geral da
coletividade, aduzindo que
74

Uma política Pública é uma diretriz elaborada para enfrentar um problema público,
[...] uma política possui dois elementos fundamentais: intencionalidade pública e
resposta a um problema público; em outras palavras, a razão para o estabelecimento
de uma política pública é o tratamento ou a resolução de um problema entendido
como coletivamente relevante [...] (SECCHI, 2012, s.p).

Durante muitas décadas o Estado brasileiro não deu muita ênfase às Políticas Públicas,
não deixando a sociedade acompanhar essa evolução, voltado a atenção somente para
industrialização, não desempenhando um papel participativo, bem como deixando a desejar
políticas sociais que deveriam ser distribuídas de forma igualitária, refletindo, assim, uma
forma autoritária e conservadora ao tratar destas políticas sociais (SOCIOLOGIAS, 2006, p. 01).
O professor, Helder Baruffi, no livro Direito Fundamentais Sociais, faz a seguinte alusão:

[...] participar e usufruir desses direitos requer (a) a consciência destes direitos e (b)
a garantia de participação naquilo que a sociedade produz. Em outros termos, é ter
di eitosà e o he idosà pelaà so iedade,à Co oà di eitoà ela io adoà à dig idadeà da
pessoaà hu a a à eà à li e dade,à aà edu aç oà à di eitoà so ialà ueà isaà aoà ple oà
desenvolvimento humano [...] (BARUFFI, 2009, p. 106).

As políticas públicas são pouco discutidas por nossos parlamentares, uma vez que,
esses recursos deveriam ser usados para serem distribuídos de forma individual e social. É de
fundamental importância sabermos que, para proporcionar uma qualidade de vida digna,
igualitária e agradável aos brasileiros, garantir o básico é o primeiro passo rumo a uma
sociedade mais justa, como: moradia, vestuário, educação, saúde, segurança e lazer. E, é
somente com a positivação dessas políticas que é possível garantirem a redução das
desigualdades sociais.
O avanço das políticas públicas no Brasil no século XX foi marcante pela preocupação
do Estado com a promoção do bem estar social. Essas políticas são vistas como decisões do
ente público tanto nas áreas da educação como na área da saúde de maneira discricionária ou
com a combinação de esforços. O conceito de políticas públicas evoluiu com o tempo, eram
entendidas exclusivamente como a ação de produzir do sistema político, ou seja, existiam as
demandas sociais, o sistema político transformava essas demandas sociais em ações
propriamente ditas do Estado. Com o passar do tempo o entendimento no campo das políticas
públicas ganhou complexidade, então se passou analisar as demandas sociais e as ações do
Estado. Interessante o conceito elaborado por Elenaldo Texeira, que ressalta:
75

As políticas públicas são diretrizes, princípios norteadores de ações do poder público;


regras e procedimentos para relações entre poder público e sociedade, mediações
entre atores da sociedade do Estado. São, nesse caso, políticas explicitadas,
sistematizadas ou formuladas em documentos que orientam ações que
normalmente envolvem aplicações de recursos públicos (TEIXEIRA, 2015, Youtube).

Em pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Gografia e Estatistica (IBGE), divulgada


peloà Ne ojo al5 ,à e à o oà e à e t e ista,à oà a t op logoà Ped oà щai e,à fazà u aà a liseà
sobre a ausência de ações afirmativas, mostrando a disparidade dos homens e mulheres
negras no mercado de trabalho:

[...] De acordo com a classificação do IBGE, 52,9% da população brasileira é composta


por pretos e pardos. No entanto, os negros ocupam apenas 4,7% dos postos de
direção e 6,3% dos cargos de gerência das 500 maiores empresas que operam no
Brasil, segundo uma pesquisa lançada em 2016 pelo Instituto Ethos e pelo BID (Banco
Interamericano de Desenvolvimento). Em se tratando das mulheres, a discrepância
é ainda mais gritante: as negras estão presentes em apenas 0,4% dos cargos de
direção e 1,6% dos postos de gerência, segundo os dados da mesma pesquisa [...]
(NEXOJORNAL, 2017, s.p).

Na visão do antropólogo Pedro Jaime, que estudou no tema de seu doutorado,


pu li adoàe à àpelaàйduspà oàli oà й e uti osà eg os:à a is oàeàdi e sidadeà oà u doà
e p esa ial à efe eà ue,à uitosà fo a à osà a a çosà osà últi osà a os,à asà [...]à aà pou aà
participação de homens e mulheres negros em cargos de liderança no mundo corporativo é
mais uma forma de perpetuar as desigualdades sociais no país [...] (NEXOJORNAL, 2017, s.p. .
É importante ressaltarmos que na década de 80, debater sobre as políticas públicas no
Brasil com esse amplo campo de complexidade, entre os mais diversos pontos de vista, entre
as várias áreas, como Economia, Sociologia, Filosofia e Direito, era importante pra a
redemocratização do Estado brasileiro, principalmente no modelo de proteção social. Na
revista Direito e Justiça, reflexões sociojurídicas, os autores Emerique, Figueira e Brittes,
referem que

[...] nas décadas subsequentes o debate avançou em meio às mudanças globais e


internas e no processo de consolidação democrática. Os trabalhos permitiram um
alargamento na compreensão sobre as revisões das políticas públicas, a criação de
esferas participativas de gestão das políticas, e sobre os mecanismos não ligados

5
Nexo é um jornal digital. São Paulo. Tem o propósito de trazer fatos do cotidiano, para quem busca explicações
precisas e interpretações.
76

diretamente às políticas públicas, com repercussões sobre elas [...] ( EMERIQUE,


FIGUEIRA E BRITTES, 2016, p. 67).

“egu doàaàauto aàNa àн ase à [...]àaàjustiçaàso ialàj à oàseà i geàs àaà uestões de
dist i uiç o,àa a ge doàago aàta à uest esàdeà ep ese taç o,àide tidadeàeàdife e ça ,à
trazendo uma ideia da importância das políticas públicas que hoje em nosso país fazem
enorme diferença diante das desigualdades ainda existentes. Foi a partir do ano de 2002 que
o Brasil desenvolveu inúmeras políticas públicas obtendo um importante destaque social, tais
como FIES, PROUNI, Minha Casa Minha Vida, farmácia popular, Luz para Todos, Mais Médicos
e o Bolsa Família, políticas essas que, segundo o Banco Mundial e as Organizações das Nações
Unidas (ONU), o Brasil é exemplo a ser seguido no mundo. A avaliação da diretora do Banco
Mu dialà Bi d àpa aàoàB asil,àDe o ahàWetzel:à [...] o Brasil soube manter as melhorias para as
camadas mais pobres da população e, ao mesmo tempo, preservar a estabilidade
a oe o i a. à
Assim, no Brasil há diversos exemplos de programas sociais como já mencionados
acima, que garantiram e garantem a muitas pessoas a dignidade, e auxiliou, ainda, na redução
da pobreza e da fome. No relatório "O Estado da Insegurança Alimentar no Mundo 2015",
também divulgado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
(FAO) 6, destaca os avanços brasileiros na redução do número de pessoas em situação de fome
conquistado nos últimos anos, explicou:

[...] O Brasil é o país, entre os mais populosos, que teve a maior queda de
subalimentados entre 2002 e 2014, 82,1%. No mesmo período, a América Latina
reduziu em 43,1% esta quantidade. Entre os mais populosos, o País também é aquele
que apresenta a menor quantidade de pessoas subalimentadas. São 3,4 milhões no
B asil,àpou oà e osàdeà %àdaà ua tidadeàtotalàdaàá i aàэati a,à , à ilh es.à Oà
relatório confirma o esforço e reconhece a trajetória do Brasil na ação de redução
daàpo ezaàeàdoà o ateà àfo e ,à essaltouàaà i ist aàdoàDese ol i e toà“o ialàeà
Co ateà à нo e,à Te ezaà Ca pello.à Oà B asil,à aoà o t ioà deà out osà paísesà doà
mundo, sempre foi um grande produtor de alimentos. E, mesmo assim, a população
passava fome. O nosso problema não era a disponibilidade de alimentos, era acesso
aosà ali e tosà eà à e da.à йà issoà o segui osà al a ça à o à políti asà pú li as à [...]à
(CIDADANIA E JUSTICA, 2015, s.p).

O Brasil é exemplo no combate às desigualdades sociais por meio dessas políticas


nesses últimos 16 anos. Os programas sociais do Brasil são exemplos no mundo que, segundo

6
A redução da fome nos últimos anos no Brasil e as causas que levou essa redução.
77

o diretor da Oxfam, já estão sendo adotados por outras nações, deixando claro em entrevista
que: OàB asilàte àap ese tadoàu àpad oàdife e iado,àeàest àentre os poucos países que
est oà te doà su essoà e à di i ui à aà dife e çaà e t eà osà aisà i osà eà osà aisà po es à
(PROGRAMATICO POLÍTICO, 2014, s.p).
Para exemplo do que se refere o diretor da Oxfam, bem como para melhor
compreendermos a importância no que se referem políticas públicas, ressaltaremos que um
desses programas responsáveis pela redução das desigualdades sociais no Brasil, foi o Bolsa
Família, criado e sancionado em 2004, pelo então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com
a Lei 10.836/2004, que além de tirar o país do mapa da fome, reduziu a mortalidade infantil,
bem como desnutrição, ainda, reduzindo a desigualdade na educação do Brasil em 41%,
mantendo 17 milhões de crianças na escola. A revista Exame, em 2015, divulgou a seguinte
pesquisa:

[...] Estatísticas mostram que o Bolsa Família contribuiu para que o país reduzisse a
mortalidade infantil por desnutrição (65%) e por diarreia (53%). Os números indicam
ta à uedaà oàd fi itàdeàestatu aàdasà ia çasà asilei as.à йsteà oà à aisàu à
debate ideológico. Nos 12 anos do Bolsa Família, temos dados e estudos que
o p o a àosà o sà esultadosàdoàp og a a ,àdefe deuàCa pello.à ál àdisso,à o à
o programa, temos 17 milhões de crianças na escola, reduzindo a desigualdade da
edu aç oà oàB asilàe à aisàdeà % ,àa es e touàaà i ist a.àCa pelloà lassifi ouàoà
pla oà B asilà “e à Mis iaà deà u à saltoà aà o st uç oà dasà políti asà pú li asà ueà
estavam sendo desenvolvidas com os programas Fome Zero e Bolsa Fa ília .à Deà
acordo com ela, o amadurecimento dessas políticas permitiu que a pobreza fosse
combatida em suas diversas dimensões (EXAME, 2015, s.p).

O objetivo, sem dúvidas, é garantir direitos, oportunidades e valores diante da


sociedade que, em pleno século XXI, ainda, discrimina pela cor, pelo modo de se vestir, pelo
meio social em que vive ou até mesmo econômico. Nessa linha, busca-se garantir os direitos
sociais e fundamentais para a inclusão dessas minorias na sociedade. Por fim, para
entendermos melhor a discriminação de minorias sociais, a Ficha Informativa, n 18. Direitos
Humanos, onde os Direitos de Minorias deixa claro que:

[...] A discriminação que afecta negativamente as minorias – em termos políticos,


sociais, culturais ou económicos – persiste e é uma importante causa de tensões em
muitas partes do mundo. Entende-seà ueà aà dis i i aç oà i pli aà ual ue à
distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em qualquer fundamento
como a raça, a cor, [...] a língua, a religião, [...] a origem nacional ou social, [...] o
nascimento ou outra condição, que tenha como objectivo ou como efeito anular ou
comprometer o reconhecimento, o gozo ou o exercício por todas as pessoas, em
o diç esà deà igualdade,à deà todosà osà di eitosà eà li e dades .à áà p e e ç oà daà
78

dis i i aç oà à defi idaà o oà aà [...]à p e e ç oà deà ual ue à a toà ueà egueà aà


pessoas ou grupos de pessoas a igualdade de tratame toà ueàpossa àdeseja à[...]à
(FICHA INFORMATIVA SOBRE OS DIREITOS DAS MINORIAS, nº 18, 2004, p. 05).

Sarlet no que tange a dignidade da pessoa humana refere-seàdaàsegui teàfo aà [...]à


na condição de valor fundamental, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos
direitos fundamentais de todas as dimensões, [...] muito embora [...] nem todos os direitos
fundamentais [...] tenham um fundamento direto na dignidade da pessoa humana [...]
“á‘эйT,à ,àp. / .
Nesse sentido, as políticas públicas tem o objetivo de garantir no Estado Democrático
de Direito, baseado nos parâmetros multiculturais onde o reconhecimento dessas
diversidades, as minorias, soma-se os negros cotistas, em que o reconhecimento dessas
diversidades é valoroso para proporcionar condições de manter suas características
específicas, sem haver discriminação. O respeito e o reconhecimento pelas identidades
distintas faz parte da busca pela dignidade humana.

2.1. AS POLÍTICAS PÚBLICAS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

No Estado Democrático de Direito é possível destacar os direitos fundamentais e


sociais, além de garantias constitucionais que visam, entre outros direitos, o bem estar e a
igualdade. Além disso, são visados princípios, tais como, uma sociedade livre, justa e solidária,
onde seja erradicada a pobreza, havendo a redução de desigualdades sociais.
Entretanto, foi no final do século XIX que as grandes bases do Estado Democrático de
Direito foram consolidadas, tendo como objetivo, em qualquer Estado, garantir os mais
diversos tipos de direitos, bem como o respeito das liberdades, pelos direitos humanos e
garantias fundamentais.
Assim, tanto o Estado Liberal de Direito, como Estado Social de Direito, aparecem
com o propósito de trazer a adaptação social, de modo que os cidadãos passem a adotar
direitos e, a contrair deveres, direito e deveres estes elencados nas normas jurídicas que
regem a justiça no Estado (Adriana apud Streck e Morais, p. 15). Entretanto, o Estado é um
agrupamento político organizado, e este, sendo regido pela Constituição Federal de 1988,
vêm, com o objetivo de tornar a sociedade mais organizada e justa, bem como por meio desta,
alcançar a igualdade social e material. Nesse sentido, é possível destacar que:
79

Além disso, é certo que o Estado Democrático deve aparecer com a função de reduzir
antíteses econômicas e sociais e isto se torna possível com a devida aplicação da
Constituição Federal (colocada no ápice de uma pirâmide jurídica escalonada), que
representa o interesse da maioria (ADRIANA, p. 04).

Segundo Dalla i,à áàideiaà ode aàdeàu àйstadoàDe o ti oàte à aízesà oàs uloà
XVIII,à i pli a doà aà afi aç oà deà e tosà alo esà fu da e taisà daà pessoaà hu a aà [...] à
(DALLARI, 2006, p. 145). Essa ideia, ao decorrer dos anos, se mostrou necessária nas relações
sociais, garantindo direito e deveres à sociedade. Dessa forma Streck e Morais referem:

O Estado Liberal de Direito, com o passar dos anos e com a necessidade de relações
sociais, dá origem ao Estado Social de Direito, que da mesma forma que o anterior é
caracterizado pelo próprio ideário liberal. Deste modo começam a surgir os direitos
e deveres da sociedade, que são garantidos pela limitação dos poderes do Estado. O
personagem principal passa a ser o grupo de indivíduos, que vive em sociedade e,
assim, a lei assume uma segunda função aparecendo somente como um mecanismo
de facilitação de benefícios (STRECK, MORAIS, 2006, apud CASTRO, 2007).

Em defesa dos direitos fundamentais, os cidadãos são dotados de valores e dignidade


com a mesma proporção, tendo o Estado, o dever agir de maneira impessoal, buscando,
apenas, o bem comum, sem exceções e privilégios, não ferindo o princípio da isonomia. Além
disso, é importante ressaltar quanto ao princípio da igualdade material, sendo referido
princípio referente a distribuição de renda de forma igual, equiparando as pessoas mais
ul e eis,à isa doà assi ,à u aà idaà ho estaà eà dig a.à Ba oso,à dizà ueà [...] não basta
equiparar as pessoas na lei ou perante a lei, sendo necessária equipara-las também perante a
vida, ainda que i i a e teà[...] à Bá‘‘O“O,à ,às.p .
O Estado se caracteriza pela democracia, onde o cidadão exerce seus direitos sendo
ele legítimo e titular desses, ainda que exercido por representantes. É o que se pode destacar
a seguir:
O Estado Democrático de Direito, que significa a exigência de reger-se por normas
democráticas, com eleições, periódicas e pelo povo, bem como o respeito das
autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais, proclamado no caput do
artigo, adotou, igualmente o parágrafo único, o denominado princípio democrático,
aoà afi a à ueà todoà pode à e a aà doà po o,à ue o exerce por meio de seus
ep ese ta tesà eleitosà ouà di eta e te,à osà te osà destaà Co stituiç o à MO‘áй“à
apud CASTRO 2007, p. 19).

Nessa busca de uma condição social mais igualitária, o Estado se torna o maior
protagonista, tendo o dever de realizar implantações de políticas públicas, com o propósito
80

de que, todas as pessoas realizem seus desejos e aspirações, equiparando-as e colocando-as


nas mesmas condições sociais. Por fim, Dias e Fernanda Matos, no livro Políticas Públicas:
Princípios, Propósitos e Processos, também atribuem essa responsabilidade ao Ente Público:

[...] O bem comum consiste no conjunto de condições sociais que permitam e


favoreçam nos seres humanos o desenvolvimento integral de todos os membros da
comunidade. E o Estado tem por fim último oferecer condições para que todas as
pessoas que integram a comunidade política realizem seus desejos e aspirações, e
para tanto assegura a ordem, a justiça, o bem-estar e a paz externa, que são
elementos necessários para que outras necessidades públicas sejam atendidas [...]
(DIAS; MATOS, 2012, p. 09).

Notadamente, as políticas públicas (ações afirmativas) são de responsabilidade do


Estado democrático, reservando para parte da sociedade hipossuficiente (negros e índios, por
exemplo), concentrando nas desigualdades econômicas, bem como na história em que se
usou esse povo como combustível humano para a sustentação de seu modo de produção da
riqueza. Entretanto, existem aqueles que são contra essas ações afirmativas, argumentando
que essas políticas institucionalizam o racimo (SANTOS, 2016, p. 55/56). A autora, ainda,
efe e:à Oà B asilà foià o st uído,à asi a e te,à o à aà fo çaà es a aà t azidos,à aisà
especificamente, da cota ocidental africana (SANTOS apud ‘IBйI‘O,à ,àp. .
Por tanto, o Estado Democrático de Direito como garantidor dos direitos sociais e
fundamentais tem implantado a inclusão democrática e participativa de todos como forma de
superar o racismo e discriminação racial, também, afim de correção de discrepâncias criadas
no processo colonizadores que os mesmo também ajudaram a construir as riquezas do no
nosso brasil. Assim, as ações afirmativas, são ações políticas de reserva de vaga para uma
parcela hipossuficientes da população negra, com o intuito de minimizar as desigualdades
sociais e econômicas, bem como a inclusão social como já mencionados (SANTOS, 216, p. 55-
56).
Por fim, a implantação das políticas públicas é direito concebida ao cidadão pelo
Estado Democrático de Direito garantindo assim acesso à educação, assegurada pela Lei e
amparada nos princípios constitucionais. Logo, as ações afirmativas, no que se refere a
presente pesquisa, visam à mudança de uma cultura, bem como a quitação de uma dívida
histórica com a sociedade negra, equiparando-as aos olhos da sociedade e garantindo-os,
acima de tudo, dignidade humana e efetivando a igualdade material.
81

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após breve estudo acerca da importância do acesso à universidade por meio de


políticas públicas, as cotas raciais, ao analisarmos todo o contexto social e econômico dessa
classe, é interessante notarmos que os negros no decorrer da história não tiveram as mesmas
oportunidades que seus patrões à época, mas, sim, proporcionava-as, rendendo a seus
patrões grandes fortunas, tendo eles as melhores escolas e oportunidades. As condições de
trabalho em que, essas pessoas viviam eram precárias, fazendo com que essas identidades ao
longo da história, por serem diferentes dos grupos hegemônicos, passassem por processos de
discriminação e reconhecimento equivocado, gerando desigualdade e exclusão social nos dias
atuais.
Não se pode olvidar que, nesse processo acima mencionado, o Estado de Direito,
mesmo que considerado democrático, são determinantes para a viabilização de direitos a
cidadania e reconheci e toàiso i osàdosàg uposà o side adosà i o ias .àáàCo stituiç oà
Federal de 1988 garantiu o principio da igualdade bem como repudiando qualquer tipo de
discriminação por cor, raça ou até mesmo religião, e o Estado Democrático busca suprir essas
deficiências ainda gritantes com políticas públicas inclusivas e necessárias diante da nossa
história com os negros.
Assim, as ações afirmativas fazem-se necessário com o intuito de alcançarmos a
igualdade, uma vez que os direitos possam ser proclamados em certa época, desaparecendo
em outras, muitas vezes se modificando no tempo, ou até mesmo, renovando-se. É preciso
reconhecer a história, também é preciso valorizar e respeitar as diferenças e é isso que as
políticas públicas propõem: incluir os excluídos e respeitar as diversidades, bem como garantir
a igualdade material e formal a essas minorias.

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http://www.conjur.com.br/2010-nov-05/constituicao-1988-marco-discriminacao-familia-
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<https://www.youtube.com/watch?v=JOmZ_N-WHu0>. Acesso em 20 mar. 2017.
84

O MEDO DOS REFUGIADOS: UMA ANÁLI“йàáàPá‘TI‘àDOàLIV‘Oà CONнIáNÇáàйàMйDOàNáà


CIDADE DE ZIGMUNT BAUMAN

Gabriel Maçalai1
VerônicaOttonelli2

Resumo: O mundo vive a maior crise migratória de refugiados por motivo de guerra e
perseguição política desde a Segunda Guerra Mundial, milhões de pessoas sendo forçadas a
abandonar seus países devido a utilização da violência e do medo como instrumento de terror,
grande parte buscando refúgio em países que a sociedade e governo não estão sabendo como
lidar com a situação. Diante deste cenário, este texto trabalha com a violação dos direitos
humanos deste individuo, com o medo em que a sociedade tem de abriga-los devido a sua
situação de refugiado e visa demonstrar que estes possuem garantias fundamentais e
igualdade de direitos básicos entre nacionais e estrangeiros, sem nenhum tipo de
discriminação.

Palavras-Chave: Refugiados. Direitos Humanos. Mixofobia.

INTRODUÇÃO

O refugiado é definido pela Convenção da ONU relativa ao Estatuto dos Refugiados


como a pessoa que, em razão de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião,
nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de
seu país de origem e que, por causa dos ditos temores, não pode ou não quer regressar ao
seu Estado.
Dentro deste cenário o objetivo deste estudo é conhecer a origem da crise migratória
e apresentar informações importantes na relação de complementariedade dos refugiados
com os direitos humanos, bem como, a relação da promoção do medo por parte dos agentes
terroristas influenciam na mixofobia.
Este trabalho analisa, através do método hipotético-dedutivo e de pesquisa
bibliográfica, o medo na cidade como elemento constitutivo do terrorismo. Uma das melhores

1
Bolsista o do Curso de Mestrado Direitos Humanos do PPGD da UNIJUI, teólogo, filósofo, advogado, professor
da FAISA Faculdades e da FAL, assessor jurídico e procurador do Município de Inhacorá/RS. E-mail:
gabrielmacalai@live.com
2
Acadêmica do Curso de Ciências Jurídicas e Sociais, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul – UNIJUI. E-mail: veronica.ottonelli@hotmail.com
85

considerações feitas sobre o assunto pode ser é a promovida por Zygmunt Bauman (2009) em
suaào aà o fia çaàeà edoà aà idade .

1 Refugiados e direitos humanos

O refugiado é definido pela Convenção da ONU relativa ao Estatuto dos Refugiados


como a pessoa que, em razão de fundados temores de perseguição devido à sua raça, religião,
nacionalidade, associação a determinado grupo social ou opinião política, encontra-se fora de
seu país de origem e que, por causa dos ditos temores, não pode ou não quer regressar ao
seu Estado.
Os refugiados são forçados a fugir de seu país de origem em virtude de um receio maior
quanto a sua vida e liberdade e, na maioria das situações, essas pessoas se veem obrigadas a
abandonar sua casa, família e bens na busca de um futuro incerto em outro Estado. É o que
estamos vendo diariamente pelos meios de comunicação, em países como a Síria que está
sendo deixada por milhares de pessoas as quais fogem para escapar da guerra civil iniciada
em 2011, com a repressão imposta pelo ditador Bashar al-Assad manifestações da chamada
Primavera Árabe. Atualmente, diversas cidades sírias estão destruídas e o país se encontra
dividido entre grupos pró-Assad, rebeldes anti-governo, forças curdas, o Estado Islâmico e
outras facções jihadistas, entre elas a Frente al-Nusra, ligada à Al-Qaeda.
Em todo o mundo, milhares de refugiados, têm passado dias, meses de suas vidas em
a pos,à us a doà algu à paísà ueà osà a olha,à segu doà aà á istiaà I te a io alà %à dosà
cidadãos sírios estão em apenas cinco países: Turquia, Líbano, Jordânia, Iraque e Egito,
somando entre eles mais de 3 milhões de refugiados ,àaàe pli aç oàpa aàissoà àaàp o i idade,à
pois diante de uma situação de guerra não se tem muitas opções de fuga e optam pela rota
mais fácil, que geralmente leva a países vizinhos, os países da União Européia mais procurados
são a Alemanha que é que mais abrigou refugiados sírios com 47 mil pedidos aprovados, em
seguida a Suécia, França, Itália, Suiça e Grã Bretanha, Hungria e Portugal, por outro lado, o
que se tem visto é que em muito dessas nações os refugiados não estão sendo bem recebidos,
tanto pelo governo mas também pela população que cobra de seus governantes melhores
o diç esàdeà ida,à p i ei oà s,àdepoisàeles àsalie touàu àpo tugu s,à aàрu g iaàe iste à
cercas de arames nas fronteiras e bloqueios na estação central de trem (uma das vias para
86

Alemanha) para impedir a entrada dos refugiados, porém as constantes violações dos direitos
fundamentais dos migrantes colocaram esses países na mira dos principais órgãos de proteção
de direitos humanos.
A questão dos refugiados é um fenômeno da ordem internacional através do qual se
busca proteger e garantir os direitos fundamentais dos sujeitos que perderam a proteção no
seu país de origem ou de residência. No termo utilizado pela autora Liliana Lyra Jubilut[22],
há uma transferência de responsabilidade de proteção do indivíduo de um Estado para a
comunidade internacional.
Dentre os direitos garantidos à pessoa do refugiado é necessário destacar o direito
fundamental de não ser devolvido ao país em que sua vida ou liberdade esteja sendo
ameaçada. Tal direito constitui um princípio geral do direito internacional de proteção dos
refugiados e dos direitos humanos, princípio da não devolução. Tal direito encontra- se
consagrado no art. 33, n. 1 da Convenção de 1951.

á tà à P oi iç oà ouà й puls oà deà ‘e haçoà à 1. Nenhum dos Estados


Contratantes expulsará ou rechaçará, de forma alguma, um refugiado para as
fronteiras dos territórios em que sua vida ou liberdade seja ameaçada em
decorrência da sua raça, religião, nacionalidade, grupo social a que pertença
ouàopi i esàpolíti as.

Jubilut (2007, p.60) sustenta sobre esse tema que:

A proteção internacional dos refugiados se opera mediante uma estrutura de


direitos individuais e responsabilidade estatal que deriva da mesma base
filosófica que a proteção internacional dos direitos humanos. O Direito
Internacional dos Direitos Humanos é a fonte dos princípios de proteção dos
refugiados e ao mesmo tempo complementa tal proteção

A autora Jubilut (2007, p. 31) compreende a vinculação entre direitos humanos e


refugiados, segundo ela por ser o refúgio um instituto de proteção e garantia do ser humano
devido à perseguição sofrida, é fundamental sua compreensão e inserção como vertente do
Direito Internacional dos Direitos Humanos. É importante ressaltar que a vinculação entre
refúgio e direitos humanos passa a ter reconhecimento após seu status de refugiado, assim o
regime internacional dos refugiados representa a declaração de que o indivíduo não deve ser
obrigado a permanecer em seu país de residência caso lhe falte direitos básicos de
sobrevivência. Sendo assim, os refugiados só devem retornar a seus países, segundo a ONU,
87

ao menos que seja seguro e que tenham lugar para onde voltar, para milhares de pessoas essa
é uma perspectiva distante.

2 Propagação do medo

Em que pese, ainda não existir um conceito acadêmico absoluto sobre o tema, Olloqui
(2004), entende o terrorismo já era percebido na mitologia grega. O autor aponta para a
história do Minotauro, que possuía um corpo humano, mas a cabeça de um touro. Ele era
responsável por impor a sociedade da Ilha de Creta e de Atenas o terror em sua busca
insaciável por sangue, gerando insegurança e causando medo na sociedade. Teseo o mata,
tornando-se assim um herói. No dizer de Olloqui (2004, p. 4):

El Minotauro, al igual que los terroristas, há tenido sin embargo juicios más realistas
menos maniqueos. [...] El hombre a veces actúa como animal y a veces como persona,
tiene pasiones sangrentas pero también puede ser racional em suas actos y llevarlos
a cabo má ala de sus instintos, puede vivir y morir por sus ideas y las justifica com
base em sus propios deseos y miedos. Este podría ser también el perfil sociológico de
um terrorista que mata por um ideal, y aunque este ideal sea irracional, el tenerlo lo
distingue del asesino común. Stuación que nos lleva a enfatizar que, los terroristas
más que ser Buenos o malos, siguen pasiones y razoamientos humanos y claros
interesses políticos.

Nas palavras de Lira e Barreto (2016, p. 70), ao comentar Olloqui e a sua comparação
com a mitologia,

[...] se, na Grécia antiga, foi possível associar uma clara imagem do agente do terror
e do pânico, o problema da pós-modernidade consiste exatamente em identificar e
o eitua àesseà o st o àdisse i ado àdeà iol ia:àoàte o is o.

National Research Council (2001, p. 15), aponta para a os vícios conceituais que
qualquer estudioso pode cometer ao analisar o tema em questão.

Inerentemente incompletos sem estarem totalmente incoerentes, e são entendidos


de forma diferente por indivíduos e grupos que trazem diferentes origens, crenças e
convicções políticas para argumentar sobre eles. Além disso, os significados de tais
palavras mudam em ênfase ao longo do tempo.
88

Callegari (2016), por seu turno, aponta que o terrorismo pode não ser entendido como
uma guerra, por não seguir os princípios básicos de enfrentamento, como o tratamento de
doentes e feridos de guerras ou questões do mesmo nível.
O mesmo autor (2016) ainda menciona que não existe, para o terrorismo, a
delimitação de quem são as vítimas ou os agressores. Ou seja, qualquer pessoa pode ser a
próxima vítima, sem nenhuma motivação especifica, e qualquer pessoa pode estar recebendo
algum doutrinamento, para que, quando possível, possa fazer surgir um estado de terror. Isso
que, os atentados terroristas não permitem a construção de um mapa de locais mais ou menos
perigosos, ou a construção de um perfil de vítima, causando ainda mais instabilidade em todo
o globo. Uma coisa é certa, os atentados buscam, mais do que atingir exércitos ou campos de
batalha, atingir qualquer um. Fidel Castro (apud DUARTE, 2014, p. 33) afirmou que:

[...] as armas cada vez mais sofisticadas acumuladas pelos países mais ricos são
capazes de matar analfabetos, doentes, pobres e famintos, mas não podem acabar
com a ignorância, as doenças, a pobreza e a fome.

Na verdade, os ataques armados, quando, atingem civis, tem um peso muito maior.
Isto demonstra o despreparo do Estado vítima, que foi incapaz de proteger seus habitantes
ou de prepara-los para estes momentos. Mais do que isto, os ataques terroristas são contra
grandes conglomerados de pessoas, como os ataques de 11 de setembro de 2001, ou a locais
de festa, como casas noturnas, locais de cultos religiosos, escolas, hospitais, ou seja, onde
existe maior quantidade de civis, na maioria das vezes, sem nenhuma proteção.
Fica manifesto que o terrorismo se utiliza da força, da instabilidade e da surpresa, para
a promoção do pânico e propagação do medo, tais elementos podem ser considerados como
características do terrorismo, por isto, os atentados terroristas são todos filmados, mesmo as
mais simples execuções.
Ou seja, uma execução nos países árabes, por ser filmada e divulgada na internet e nas
emissoras de televisão, permitem que, por mais isolado que possa ser o caso, este abale e
afete a sociedade global, chegando em tempo real a diversos lares, gerando instabilidade e
demonstrando que não há segurança, com isto a sociedade sempre associa essas barbáries
aos migrantes que também estão fugindo.
O medo na verdade é mais um produto do que um problema, é um objeto de consumo
direito e indireto, que promove o capitalismo. Mas ao mesmo tempo é o instrumento que
89

milenarmente o terrorismo utiliza. Ocorre que tal problema tem se agravado e cada vez mais
faz mais vítimas diretas e indiretas e afeta a vida dos sujeitos, os escravizando e deixando
dominados e expostos a um perigo invisível.
Nesse diapasão, o que chama a atenção da comunidade internacional, principalmente
da ONU, é ação de terror realizada por grupos islâmicos. Tal perspectiva é observada com a
iniciativa do Secretário-Geral da organização com a elaboração do Plan of Action to Prevent
Violent Extremis (Plano de Ação para Prevenir o extremismo violento).
Senão vejamos o tópico n° 2 do referido documento:

2. O presente Plano de Ação para Prevenir o extremismo violento considera e aborda


o extremismo violento como, e quando, propício para o terrorismo. Violento o
extremismo é um fenômeno diverso, sem definição clara. Ele não é nova nem
exclusiva para qualquer região, nacionalidade ou sistema de crença. Contudo, nos
últimos anos, os grupos terroristas como o Estado Islâmico no Iraque e do Levante
(ISIL), Al-Qaida e Boko Haram moldaram a nossa imagem do extremismo violento e
o debate sobre como lidar com esta ameaça. A mensagem desses grupos de
intolerância - religioso, cultural, social - teve consequências drásticas para muitas
regiões do mundo. Segurando território e usando a mídia social para a comunicação
em tempo real global e de suas ideias e explorações, eles procuram a desafiar os
nossos valores comuns de paz, justiça e dignidade humana. (UN, 2016).

Os conflitos promovidos pelo terrorismo e em especial a promoção do medo são


elementos que tem afetado a vida humana, em especial na cidade, o local onde se dá o
encontro, a troca e a mistura das culturas e das experiências.
No entanto, os centros urbanos são os locais onde mais surge insegurança, alimentada
pelo capitalismo e pelo espirito norte americano que impõe ao sujeito o dever e a obrigação
deài esti àe à segu a ça à o ào i tuitoàdeàseàes o de àdeàseusà i i igosào ultos à o àai da,à
o à edoà deà se à aà p i aà iti a ,à ueà e o aà des o he idaà eà se à p edete i aç o,à
precisa ser guarnecida.
Essa reação da população muito tem a ver com o que Bauman à e si aà aà
suspeita crescente de um complô estrangeiro e o sentimento de rancor pelos estranhos, pode
ser entendida como um reflexo perverso da tentativa desesperada de salvar o que resta da
solida iedadeàlo al àpautadoàpelaà i ofo ia,à aàe p ess oàdeàBau a à à ueà àoà edoà
de misturar-seà o àoàdife e teàeàassi àpo àsiàs àaà o diç oà est a gei o àdizàá aizà ,à
traduz a ideia de uma pessoa que está ocupando ou usurpando um posto ou lugar que não
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lhe corresponde e nestes casos há também um fator quanto à potencialidade terrorista que o
estrangeiro sírio pode trazer infiltrado consigo.
A Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 surge como um instrumento
internacional e específico de proteção dos direitos dos refugiados enquanto pessoa humana
e dispõe de forma universal sobre a questão dos refugiados, sobre seus direitos e sobre seus
deveres.

3 Uma análise de Bauman

Naào aà Co fia çaàeà edoà aà idade ,àeditadoà oàB asilàpelaàйdito aà)aha à ,à


Zygmunt Bauman trata dos problemas pós-modernos enfrentados na cidade. A obra se divide
em três capítulos e mais o prefácio de Mauro Magatti, sendo que, o terceiro capítulo é o
compilado do discurso de Bauman no Congresso de Confiança e Medo na Cidade, que ocorreu
em março de 2004, em Milão. Esta obra de Bauman é uma importante lição no que tange ao
Direito da(s) Cidade(s).
Neste livro, o filosofo apresenta o problema da sociedade urbana atual, que foi
pensada, em sua origem, como um local de convivência, segurança e oportunidade. No
entanto, tornou-se um sinônimo de confusão, violência e medo.
No primeiro capítulo, fica manifesta a maneira como o medo se tornou constante na
cidade. Segundo o autor, a insegurança é um problema grandioso e de difícil solução. Nela,
o i e àpessoas,à e - i das à aà idadeàeàta àasàpessoasà a gi alizadas,à ha adasà
deà lassesà pe igosas à eà ueà oà possuem utilidade funcional. Divide esta classe em duas
categorias: aquelas pessoas que não possuem trabalho formal, ou seja, as desempregadas, os
est a gei osà eà osà i i osos,à e e e à doà so i logoà aà desig aç oà deà sup fluos ,à eà ue,à
gente supérflua, sempre existiu e sempre existirá, de uma maneira ou de outra.
Éàdestasàpessoasà ueààaàpopulaç oà deà e àdaà idadeàseàa a.à“eàa aàta toà ue,à
torna-se prisioneiro. Embora na cidade existam pessoas de todas as etnias, locais e culturas,
o citadino acaba se prendendo, com medo de se misturar. É a questão da mixofobia, onde o
autor aponta que, as pessoas, na verdade se afastam do viver público e da convivência.
Em lugar de uma troca de saberes a sociedade urbana prefere se guardar, criar uma
nova realidade, como que fugindo da contaminação. Não obstante, o homem se prende em si
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mesmo, com medo dos indesejados, que migraram de outras nações, em busca de
oportunidades anunciadas pela publicidade das cidades, que seria o local de encontro, de
vivencias e de fazer a coisa pública.
No entanto, cada vez mais as pessoas se prendem em seus muros, escondem-se com
seus pares que possuem as mesmas caraterísticas e mesmas identidades. Com medo do
estrangeiro e do diferente, ou mesmo, de que a convivência com estes as torne outras. Fogem
ou se escondem, em locais distantes ou em suas casas, demonstrando a exclusão que marca
esta sociedade.
No segundo capítulo, o autor demonstra que as armas que promovem e os locais de
pretensa segurança, em que os moradores da cidade se esconde à dosà pe igos .à йstaà
segurança é uma ficção na realidade. Fica, então, demonstrado que o medo é um fruto do
apitalis o,à daà supe alo izaç oàdoà i di íduo,à eà daà e ist iaàdeàu à Me adoà doà edo ,à
e à o o,àu aà a uitetu aàdoà edo .àál àdisto,àu àdosà edos presentes na sociedade
pós-moderna é o medo da não evolução cultural que todos os indivíduos precisam passar.
Neste ponto é bem demonstrado quem é indesejado na cidade ou, noutros termos,
quem é supérfluo: todos aqueles que não possuem identificação com o local, não fazem parte
do mercado financeiro local, não possuem emprego fixo e nem elementos econômicos
suficientes. Tais sujeitos são estranhos a ordem local e por isto, são segregados por serem
migrantes econômicos ou sociais.
O autor deixa claro que cada vez mais as pessoas se protegem do estranho, mas
acabam se afastando mais de sua liberdade e de seus benefícios. Mais do que isto, a proteção
buscada é o que gera mais medo e mais perigos ainda, visto que, alimenta o mercado e nunca
pode ser saciada, cada vez mais impede o morador da cidade de viver livre. O medo, seu
mercado, arquitetura e tecnologias nunca poderão ser saciados diante do crescente número
deà est a hos àeà pe igos .
O terceiro capítulo, é na verdade um discurso de Bauman que, compilado, tenta
demonstrar a solução para o dilema do medo e da cidade, que demonstrou nos primeiros
capítulos. A primeira constatação é de que a Administração Pública, por si só, embora seja
cobrada, não pode resolver na localidade, problemas que na verdade são globais, como
mobilidade, infraestrutura e a questão ambiental. A solução precisa partir do ser humano,
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buscando entrar uma cidadania que vá além da cidade e do prender-se em fortalezas, longe
do estranho e do indesejado.
Então, Bauman, apresenta como solução a tolerância, através da mixofilia, o interesse
em misturar-se, enquanto que a mixofobia deve, cada vez mais, reduzir-se. Isto exigiria um
novo olhar para o estranho, um olhar que não fosse de medo, raiva ou intolerância, mas de
compaixão, carinho e solidariedade.
Assim, se estaria apresentando a solução para o medo das cidades e criando ambientes
de confiança, para na Pós-modernidade, ser possível viver a pratica e o ambiente público, em
que, a cidade, cumpriria sua função social com integridade. Embora isto seja algo complicado
de ser alcançado, deve ser buscando, visto que, com harmonia, e respeito as diferenças, uma
sociedade melhor seria alcançada

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entender a vinculação entre os refugiados e os direitos humanos é importante para a


configuração do refúgio, além de esclarecer dúvidas às pessoas quanto aos refugiados e
evidenciar que às vezes, principalmente em casos extremos de guerras como a da Síria à
admissão em um país como refugiado e as fronteiras fechadas pode representar a diferença
entre a vida e a morte.
Além disso, é fundamental justificar a existência desse instituto, para que possibilite
que a questão dos direitos humanos seja foco também na acolhida das pessoas em um
determinado Estado, pois antes de qualquer condição, seja de estrangeiro ou refugiado, o
individuo é um ser humano.
Medo é um instrumento do terrorismo, e Bauman (2009) diz que não há saídas
imediatas, mas um ótimo começo será o possível acolhimento e reconhecimento mútuos. Se
a sombra da precariedade é comum, a busca de soluções humanizantes e transformadoras
também podem ser e apresenta uma solução, o amor e compaixão como resposta as situações
que geralmente deveriam promover o terror. Tal condição, no entanto não é fácil, nem
impossível, mas depende da comoção de toda a sociedade global.
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REFERÊNCIAS

ARNAIZ, Graciano González R. La condición de extranjero del hombre (Apuntes para una ética
de la difeencia). LOGOS. Anales del Seminário de Metafísica. n. 1, p. 121-141, 1998.

Bauman, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

CALLEGARI, André Luiz, et. al. Crime De Terrorismo: Reflexões Críticas E Comentários À Lei De
Terrorismo De Acordo Com A Lei Nº 13.260-2016. Porto Alegre: livraria do Advogado, 2016.

DUARTE, Sergio de Queiroz. Desarmamento e Temas Correlatos. Brasília: FUNAG, 2014.

Jubilut, Liliana Lyra. O Direito Internacional dos refugiados e sua aplicação no ordenamento
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LIRA, Claudio Rogério Souza; BARRETO, Vicente de Paulo. Política antiterror: os direitos
humanos na encruzilhada da prevenção e da repressão aos atos terroristas. In: Espaço
Jurídico: Journal of Law. Joaçaba, v. 17, n. 1, p. 65-82, jan./abr. 2016.

NATIONAL RESEARCH COUNCIL. Terrorism: Perspectives from the Behavior and Social
Sciences. Washington: The National Academies Press, 2001

OLLOQUI, Jose Juan de. Introducción: reflexiones en torno al terrorismo. In: OLLOQUI, José
Juan de (Coord.). Problemas jurídicos e políticos del terrorismo. México: Universidad
Nacional Autónoma de México, 2004.

ONU, Convenção Relativa ao Estatuto do Refugiado. 1951. Disponível em:


<http://www2.mre.gov.br/dai/refugiados.htm> . Acesso em: 05 de out. de 2015.

UN. Plan action prevent violent extremism. Disponível em:


<https://www.un.org/counterterrorism/ctitf/en/plan-action-prevent-violent-extremism >.
Acesso em 15 ago. 2016.
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BRASIL, O PAÍS QUE MAIS MATA: UMA ANÁLISE CRÍTICA ACERCA DA VIOLÊNCIA CONTRA
TRAVESTIS E TRANSEXUAIS

Juliana Oliveira Santos1


Kaoanne Wolf Krawczak2

Resumo: A violência e a segregação fazem parte do pano de fundo das corajosas histórias de
muitas travestis e transexuais, as quais diariamente necessitam se impor para participar do
meio social. O Brasil, com dados alarmantes é mais uma vez considerado o país que mais mata
travestis e transexuais, sendo que a expectativa de vida destas pessoas é muito inferior
aquelas pessoas que seguem o contexto da heteronormatividade. Em meio a uma sociedade
firmada na heteronormatividade e no patriarcalismo, a violência e a discriminação andam de
mãos dadas com travestis e transexuais, haja vista que a sociedade ao buscar a promessa de
estabilidade e segurança trazida pela modernidade se depara com a diferença, agindo na
maioria das vezes da pior forma possível.

Palavras-chave: Direitos Humanos; Heteronormatividade. Transexuais. Travestis. Violência.

INTRODUÇÃO

A violência faz parte da vida e do cotidiano de muitas travestis e transexuais, as quais


vivem à margem da sociedade, buscando incansavelmente seus espaços no meio social.
Através desta afirmação verifica-se a necessidade de analisar o contexto de violência a que
estão expostas estas vidas, as quais desde muito cedo deparam-se com uma sociedade
firmada nos conceitos de heteronormatividade e patriarcalismo restando por segregar e agir
violentamente em face das diferenças.
A travestilidade, bem como a transexualidade são experiências relacionadas à
identidade de gênero e foram socialmente construídas, da mesma forma que a identidade de
homens e mulheres. Entretanto, ao serem formadas em resistência às normas impostas de
gênero, são socialmente marginalizadas e isoladas, restando vulneráveis a violências físicas e
simbólicas.

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direitos Humanos, pela Unijuí; Pós-graduada em
Metodologia e Didáticas pela CENSUPEG. Bacharel em Direito pela UNICRUZ. E-mail:
julianaoliveirasantos@yahoo.com.br
2
Bolsista Integral CAPES e Mestranda no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Curso de Mestrado da
UNIJUÍ. Pós-graduanda em Direito Civil pela Universidade Anhanguera – UNIDERP. Bacharel em Direito pela
UNIJUÍ. Email: kaoanne.krawczak@gmail.com
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Segundo Kulick (2013, p.22), a existência de travestis é registrada em toda a América


Latina, mas em nenhum país elas são tão numerosas e conhecidas como no Brasil. Assim, em
qualquer cidade brasileira, pequena ou grande, existem travestis, contudo, mesmo havendo
no país um grande número de travestis e transexuais, a estigmatização e a discriminação
vividas afetam sua socialização, sendo que travestis e transexuais passam a ter um universo
existencial bastante restrito.
Neste norte, há de se destacar que os indivíduos relacionam-se com o mundo a partir
de suas vivências, de suas tradições, bem como de seus costumes, e constroem suas vidas a
partir da matéria-prima que a cultura lhes oferece. Ainda quando criança, os seres humanos
são introduzidos em padrões de cultura e maneiras de comportamentos pré-estabelecidos
pelo todo social do qual agora fazem parte. Estar fora, ou ainda sentir-se não pertencente à
categoria normativa gera incômodo, repulsa e discriminação, algo vivenciado quase que
cotidianamente por travestis e transexuais.
Diante disso, este artigo tem como escopo destacar a importância de dar voz a estes
grupos, proporcionando os mais distintos espaços nos quais seja possível compreender como
se dão as relações de travestis e transexuais com o meio social, ressaltando o combate à
discriminação e à incitação à violência, haja vista que a sociedade costuma ser cruel com as
diferenças, principalmente com os que fogem à normatização hegemônica.

O ser travesti e transexual

A transexualidade é uma experiência identitária que pode ser caracterizada pela


construção do gênero em contraste com as normas que instituem inteligibilidade entre corpo,
identidade e sexualidade. É, portanto, a possibilidade de reinterpretar os sentidos da
feminilidade e da masculinidade contrariando o impositivo de que o sexo deve ser coerente
com o gênero e, nesse caso, também ultrapassar a ideia de que a fêmea biológica é a única
legitimada a carregar o status de mulher, enquanto o macho é o único legitimado a carregar
o status de homem, em uma clara mençãoà deà ueà aà iologiaà oà à oà desti o.à áà
transexualidade é um desdobramento inevitável de uma ordem que estabelece a
i teligi ilidadeà osà o pos à BйNTO,à ,àp.à .
96

Mais do que um conjunto de músculos, ossos, vísceras, reflexos e sensações, o corpo


é também o seu entorno, ou seja, a roupa, os acessórios que o adornam, as
intervenções que nele se operam, a imagem que dele se produz, as máquinas que
nele se incorporam, os silêncios que por ele falam e a educação de seus gestos [...] o
corpo é produto de uma construção cultural, social e histórica sobre o qual são
conferidas diferentes marcas, em diferentes tempos, espaços, conjunturas
econômicas, grupos sociais, étnicos, etc. (GOELLNER, 2008, p. 135).

Neste contexto, quanto às travestis, Lionço (2009, p. 8) descreve que:

Ser travesti seria investir permanentemente na construção de um corpo a ser


reconhecido pelo outro como um corpo feminino. Diferentemente das transexuais,
no entanto, as travestis não afirmam uma identidade feminina estrita, mas ostentam
a androginia.

Neste rumo,ao romper com o ideal de sociedade homogênea e heteronormativa


t azidoàpelaà ode idade,àissoàpo ueà e àtodasàasàpessoasàseàe ai a oà osàpad esà ditosà
a eit eis ,à o o e à p o essosà deà esu as,à p e o eitoà e,à consequentemente, morte
si li aà da uelesà ueà seà to a à u aà idaà ua ,à o eitoà so à aà pe spe ti aà deà Gio gioà
ága e à ,àp. ,àsegu doàoà ualà todaàso iedadeàfi aàesteàli ite,àtodaàso iedadeà –
mesmo a mais moderna – decide quais sejam os seus homens sacros [...] a vida nua não está
mais confinada a um lugar particular ou em uma categoria definida, mas habita o corpo
iol gi oàdeà adaàse à i e te .
A modernidade trouxe a possibilidade de segurança, e atualmente busca-se
incansavelmente pelo paraíso, ou seja, pelo lugar onde todos são iguais, onde ninguém fuja
ao contexto planejado ao ponto de ameaçar, inquietar ou perturbar, como é o caso de
travestis e transexuais. Quando a sociedade sente-se incomodada, trata-se imediatamente de
excluir, de tirar da vista dos olhos, ou até mesmo de sacrificar estas vidas impossibilitando
assim, qualquer diálogo ou aproximação, como discorre Zygmunt Bauman (2011, ps.77-78):

a segurança gera um interesse em apontar riscos e selecioná-los para fins de


eliminação, e por isso escolhe fontes potenciais de perigo como alvos de uma ação
deà e te í ioà p e e ti a ,à e p ee didaà deà a ei aà u ilate al.à [...]à i di íduosà eà
grupos ou categorias de pessoas têm negada sua subjetividade humana e são
reclassificados pura e simplesmente como objetos, localizados de modo irrevogável
na ponta receptora desta ação. [...] A negação da subjetividade desqualifica os alvos
selecionados como parceiros potenciais do diálogo; qualquer coisa que possam
dizer, assim como o que teriam dito se lhes dessem voz, é a priori declarado
imaterial, se é que se chega a ouvi-los.
97

Co fo eàщudithàButle à ,àp.à àoàg e oà àpe fo ati o,àistoà ,à oàe p essa uma


essência interior de quem somos, mas é constituído por um ritualizado jogo de práticas que
p oduze àoàefeitoàdeàu aàess iaài te io .àй te deàai daàButle à ueàoàg e oà à i idoà
como uma interpretação, ou um jogo de interpretações do corpo, que não é restrita a dois, e
issoà àu aà ut elàeàhist i aài stituiç oàso ial .
ássi ,à“i o eàdeàBeau oi à ,àp. ,àaoàafi a à ueà i gu à as eà ulhe :àto a-
seà ulhe ,àt aduzàaàess iaàdaàide tidadeàdeàg e o,à ua toàao processo histórico, cultural
e social que resulta em se identificar como homem ou mulher. Com isto, percebem-se as
múltiplas possibilidades do gênero, inclusive de ser travesti e transexual.
Segundo Butler (2009, p. 194), o gênero é entendido como ação, ato e não apenas
como atribuição de um corpo. Esses atos, gestos e atuações, entendidos em termos gerais,
são performativos, no sentido de que a essência ou identidade que, por outro lado,
pretendem expressar, são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e
outros meios discursivos. Se tanto o sexo, quanto o gênero são construídos, não poderá haver
uma naturalidade, existindo apenas muitas interpretações cabendo a cada sujeito assumir as
suas normas.
Para algumas travestis e transexuais o ponto crucial para a diferenciação se dá
at a sàdaà ealizaç oàdaà i u giaàdeà adaptaç oàse ual ,àaà ualàso ep eàoàdesejoàdaàapli aç oà
de hormônios, silicone e a busca incessante pela aparência feminina. Contudo, conforme
afi aà р lioà “il aà ,à p. à fi a à la as,à duasà g a desà pe spectivas em relação ao
transexualismo, uma radicaliza a perspectiva da produção cultural de gênero, tornando a
dimensão biológica secundária na decisão, e a outra nega a existência de operação para a
uda çaàdeàse o .
Neste contexto, há de se destacar que o gênero é determinado pelo sentimento, e é
através deste conceito que travestis e transexuais apresentam-se ao mundo diariamente,
mesmo sabendo que a violência e a segregação fazem parte do pano de fundo de suas
corajosas histórias, isto porque em nenhum lugar a violência é tão onipresente quanto na
vida, e no cotidiano de travestis e transexuais.
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Travestis e transexuais e os dados da violência

Muitas travestis e transexuais vivem em situação de violência, sendo que em muitos


casos só aparecem nas ruas e nas esquinas noturnamente, e é por isso que se faz necessário
falar acerca da governamentabilidade dos corpos, na linha da filosofia foucaultiana, além da
liberdade, e da biopolítica e seus contornos. Na medida em que os corpos, ou seja, na medida
que os seres humanos nadam contra a corrente destes contornos biopolíticos, a própria
sociedade, seja através do medo da insegurança, seja através da orientação dos meios de
comunicação, passam a excluir , a privar do convívio ou dificultá-lo àqueles que são diferentes,
ouàe t o,à asàpala asàdeàBau a à ,àp. ,à est a hos .à

Um estranho por definição, é um agente movido por intenções que, na melhor das
hipóteses, só podem ser adivinhadas – mas das quais nunca se pode ter certeza. Em
todas as equações que elaborarmos ao deliberarmos sobre o que fazer e como nos
o po ta ,àoàest a hoà àu aài g ita.àÉ,àafi alàdeà o tas,à u àes uisito ,àu àse à
bizarro e enigmático, cujas intenções e reações podem ser muito diferentes daquelas
das pessoas comuns (habituais costumeiras). [...] estranhos são
su o s ie te e te àdes o fo t eis;àsuaà e aàp ese çaàto aàai daà aisàdifí ilàaà
tarefa já assustadora de prever os efeitos de nossas ações e suas chances de sucesso.

Segundo afirma Bauman (2005, p. 80), os estranhos também fornecem um escoadouro


conveniente – acessível – para o medo inato do desconhecido, do incerto e do imprevisível,
quando mantém-se os estranhos afastados de nossas casas e ruas, o fantasma apavorante
da incerteza, ainda que por um breve instante, é exorcizado e o mostro da insegurança é
vencido.
Nesteà o te,à dis o eà Val iaà Melkià Busi à ,à p. à ueà asà t a estisà sof e à
violências por se afasta e à daà o dutaà espe adaà deà pessoasà doà se oà as uli o ,à
abandonando sua masculinidade valorizada e aproximando-se do feminino, desqualificado
asà edesàdeàpode àdeàse oàeàg eo .
Com isso, a sociedade dificulta a vivência e o exercício da democracia por parte de
travestis e transexuais sendo que elas têm de diariamente enfrentar inúmeros obstáculos que
osàde aisài di íduosà oà o he e ,àpoisà adaàdeà a i ato àeà isí el àap ese ta àe àsuaà
condição.
As vidas de travestis e de transexuais encontram-se desamparadas, e mesmo que
existam políticas públicas afirmativas, e medidas que supostamente abarquem o cuidado e o
99

respeito para com elas, não é possível vislumbrar efetividade destes mecanismos, levando à
afi aç oàdeà ueàaàp p iaàpolíti a,àoàp p ioà pode àso e a o àe luiàa uelesà ue,àdeàfato,à
não são iguais, sendo que travestis e transexuais são assim, apenas coadjuvantes de suas
próprias vidas.
Diante do conceito de vida nua, trazido por Giorgio Agamben, pode-se explicar a
violência e a morte de inúmeros travestis e transexuais sem que haja um grande clamor por
pa teàdaà ídiaàeàdaàso iedadeàe àge al,àpoisàestasà idas,àestasàf agilizadasà idasà uas ,à oà
apresentam na maioria das vezes valor em uma sociedade marcada pelos padrões de beleza,
pela heterormatividade e pela falta de diálogo com as diferenças.
Segundo André Duarte (2010, p. 278),

Agambem esclarece que o homo sacer definia no antigo direito romano o homem
que era incluído na legislação exatamente no instante em que dela era excluído e se
encontrava totalmente desprotegido: homo sacer era aquele indivíduo que, por ser
tipificado legalmente como homem sagrado, poderia ser morto por qualquer um
sem que tal morte constituísse um delito, desde que tal morte não fosse o resultado
de um sacrifício religioso ou de um processo jurídico.

O fato de se conviver em uma sociedade existencialmente patriarcalista e que prioriza


a heteronormatividade, torna urgente falar da condição das travestis e transexuais, as quais
se encontram fora do alcance dos olhos da sociedade e da proteção estatal.
Desta forma, é latente e indispensável entender como se dão as diversas formas de
discriminação reiteradas em face de travestis e transexuais e porque a violência em suas mais
distintas formas, são legitimadas socialmente. É preciso compreender como vivem, de que
forma se apresentam, e fundamentalmente quais são as lacunas deixadas pelo Estado e pela
sociedade com relação às travestis e transexuais. É preciso que a voz da cientificidade
acadêmica se junte à voz destas travestis e transexuais que vivem no limbo da democracia.

Os corpos das transexuais e travestis perturbam, incomodam, desestabilizam porque


promovem fissuras na norma estabelecida socialmente. Embora muitos atos sejam
performativos, as inscrições corporais de travestis e transexuais são também
entendidas como subversivas, e, essas, portanto, tornam-se indicadores de
classificação, hierarquização, ordenação, normalização. É a partir da criação dessas
outras possibilidades, da construção de outros modos de ser, que os sujeitos
constituem-se e (re)inventam-se (LONGARAY; RIBEIRO, 2016, p. 780).
100

Com a invenção do dispositivo da sexualidade, o funcionamento do poder se altera e


emerge, assim, um poder normalizador. Esse tipo de poder tem no exame seu instrumento
aisà efi ie teà eà p oduzà oà a o al à o oà u à p o le aà te i oà eà políti oà ele a teà
(FOUCAULT, 2001, p. 52-53). Com isso, pode-se pensar que a partir do momento em que foi
possível perguntar pela normalidade, foram produzidos vários sujeitos "anormais", o que
fortaleceu o discurso médico-psicológico e seus efeitos de patologização sobre as experiências
(FOUCAULT, 2003, 2001).
Foucault em História da Sexualidade I - aà o tadeà deà sa e , Foucault (2003)
demonstrou como as relações de poder tramadas entre os mais variados discursos sobre o
sexo produziram os saberes, instituídos como verdades, e as subjetividades ao longo da
história das sociedades ocidentais. O conceito de sexo também ocupa lugar central nessa
trama de saber-poder- o t ole.àNessaàpe spe ti a,àse oà àe te didoà o o:à pa teàdeàu aà
p ti aà egulat iaà ueàp oduzàosà o posà ueàgo e a à BUTэй‘,à ,àp.à .
De acordo com Foucault (2008), as sociedades modernas são caracterizadas como
sociedades disciplinares e normativas, na medida em que o desenvolvimento do indivíduo e
da sociabilidade se dá a partir dos condicionamentos do panóptico, entendido enquanto o
modelo basilar a partir do qual se dá a gênese deste indivíduo e desta população moderna.
Importante salientar que, ao mesmo tempo em que as travestis e transexuais são
excluídas das políticas públicas e travam com o Estado para conquistar o próprio nome
(social), as pessoas trans são vistas como um perigo à sociedade, encaixando-se no
estereótipo do que é abjeto, violento e exótico. É essa estigmatização das parcelas
marginalizadas que vai legitimar as violações aos direitos humanos (PRADELLA; FRANÇA,
2015).

No espaço da prisão as travestis representam identidades femininas assujeitadas,


primeiro porque a ordem sexual que privilegia o masculino em detrimento do
feminino apresenta essa dominação como algo natural, inevitável e necessário,
fazendo com que a classe dominada aceite e internalize essa ordem e segundo
porque suas identidades de gênero travestis são historicamente subalternizadas,
quer dizer, não representam, para o senso comum,uma identidade feminina
legíti a ,à pu a à – sem falar
que são identidades que convivem nas/com experiências de pobreza e fragilid
ade de acesso a bens e serviços; possuem uma vida social,estética, emocional
eà o alà ú i aà ueà asà ligaà aoà espaçoà doà a gi al ,à daà pe ife ia ,à doà gueto à
(FERREIRA et al., 2014, p. 07).
101

Helena Schmitt (2015, p.234) afirma que, a solidariedade corrompida pelo


preconceito, bem como pela indiferença com o outro, resulta na destruição das relações inter-
humanas fundamentadas na alteridade, importando no não-reconhecimento do outro na sua
dife e çaàeàsi gula idade.àP ossegueàai da,à oàg a deàdesafioàdaàalte idadeà ,àp e isa e te,à
reconhecer como igual o que é singularmente diferente, o que está para além da
i te p etaç o,àdaà lassifi aç oàeàdaàide tifi aç oàpessoal .à
Diante disso, a estigmatização de determinadas pessoas ou grupos trata-se de um
processo social que, no contexto mais amplo das relações de poder e de dominação, produz
e reproduz as desigualdades.
Assim, como afirma Giorgio Agamben (1993, p.11), é preciso encontrar na
singula idadeàdoàout o,à oàse àtalà ualà ,àaàpossi ilidadeàdeàe te di e toàeà o p ee s o:

O ser que vem é o ser qualquer [...] seja qual for, o ente é uno, verdadeiro, bom ou
perfeito, [...]. O Qualquer que está aqui em causa não supõe, na verdade, a
singularidade na sua indiferença em relação a uma propriedade comum (a um
conceito, por exemplo: o ser vermelho, francês, muçulmano), mas apenas no seu ser
tal qual é. A singularidade liberta-se assim do falso dilema que obriga o
conhecimento a escolher entre o carácter inefável do indivíduo e a inteligibilidade
do universal.

Nesta senda, trata-se de uma urgência abordar as questões que envolvem travestis e
transexuais, juntar a voz da academia a estes milhares de homens e mulheres que sofrem
muitas vezes calados e que experimentam a morte simbólica diariamente. Quanto vale uma
vida? Qual vida é digna de respeito e merecedora de direitos? Judith Butler (2009, p.61) refere
ueà po ueàsiàelàfi àdeàu aà idaà oàp odu eàdolo à oàseàt ataàdeàu aà ida,à oà alifi a como
idaà à oàtie eà i gú à alo .ààÉàp e isoà ueàaàso iedadeà ejaàal àdasàdife e çasàeàpe e aà
aàsi gula idadeàdeà adaàu àaà o diç oàdeàhu a o.à эaà uesti à ueà eàp eo upaà[...]àesàloà
que cuenta como humano, las vidas que cuentan como vidas y, finalmente, lo que hace que
u aà idaà algaàlaàpe a. à BUTэй‘,à ,àp. .
Neste rumo, a violência a que estão expostas travestis e transexuais Brasil a fora, não
pode ser naturalizada, não pode ser justificável. São muitos casos, das mais variadas formas,
não só durante a noite, mas a luz do dia.

Na maioria das vezes, a violência vem na forma de agressão verbal, mas não são
raros os casos em que gangues de jovens espancam travestis. Também é comum ver
gente que passa de carro lançar garrafas sobre elas. Algumas vezes chegam a
102

disparar armas de fogo contra travestis em plena rua. Normalmente as pessoas que
cometem esses crimes não são identificadas nem detidas. E quando o são, recebem
penas leves da Justiça (SILVA, 2007, p.47).

Conforme uma pesquisa realizada pelaào ga izaç oà oàgo e a e talà T a sge de à


йu ope à TGйU ,à ueàapoiaàosàdi eitosàdaàpopulaç oàt a sg e o,àoàB asilà àoàpaísào deà aisà
se mata travestis e transexuais no mundo, sendo que entre janeiro de 2008 e março de 2014,
foram registradas 604 mortes no país. Um relatório sobre violência homofóbica no Brasil,
publicado em 2012 pela Secretaria de Direitos Humanos – hoje Ministério das Mulheres, da
Igualdade Racial e dos Direitos Humanos – apontou o recebimento, pelo Disque 100, de 3.084
denúncias de violações relacionadas à população LGBT, envolvendo 4.851 vítimas. Em relação
ao ano anterior, houve um aumento de 166% no número de denúncias – em 2011, foram
contabilizadas 1.159 denúncias envolvendo 1.713 vítimas.
áu elia oà Bia a elli,à aà e istaà Di e sidadeà ‘e elada à deà ,à o statouà ueà
transexuais e travestis sofrem preconceito e humilhação em ações simples do dia a dia, como
ir ao banheiro ou procurar um médico.
O Brasil é considerado o país que mais mata transexuais no mundo, sendo que a
expectativa de vida dessas pessoas é de 35 anos. Segundo o site G1, os dados são mais uma
vez alarmantes pois, em 2016 foram 127 mortes, uma a cada 3 dias, sendo que muitas mortes
e episódios envolvendo agressão e violência acabam não sendo contabilizados, estimando que
ainda possam ser maiores os números pesquisados.
Travestis e transexuais corajosamente apresentam-se ao mundo diariamente,
incansavelmente, mesmo conhecendo a triste realidade que as cerca, mesmo sabendo que o
próximo número lançado pode representar o fim de sua existência.
Assim, há de se ressaltar incansavelmente a possibilidade de enxergar no outro,
mesmo com sua peculiar diferença, a condição de humano, o ser comum, a vida, o valor.

O ser especial é absolutamente insubstancial. Ele não tem lugar próprio, mas
acontece a um sujeito, e está nele como um habitus ou modo de ser, assim como a
imagem está no espelho. A espécie de cada coisa é sua visibilidade, a sua pura
inteligibilidade. Especial é o ser que coincide com o fato de se tornar visível, com a
própria revelação (AGAMBEN, 2007, p.46).
103

Travestis e transexuais precisam ser vistos, ganhar voz, e principalmente respeito em


meio a uma sociedade hipócrita , a qual xinga, humilha e segrega a luz do dia, buscando a
satisfação de desejos reprimidos nas ruas escuras.
Co fo eàoàsiteàG ,à ap sàag ess esà o à hutesàeàgolpesàdeàpau,àaàt a estiàDa da aà
dosà“a tosàfoiàassassi adaàaàti os ,àse doà ueàasàag ess esàfo a àfil adasàe ua toà uitos
ia àaoào se a àa uelaà idaà ua àsa g a .àássi ,àfaz-se necessário e urgente que se possa
enxergar no outro a condição de humano, além das diferenças de raça, cor, credo, classe social
e sexualidade. A Travesti Dandara dos Santos, conhecida nacionalmente através da
brutalidade daqueles que filmavam seu espancamento precisa tocar, repugnar e travar uma
luta por igualdade na diferença, pelo direito de ser livre, pelo direito de singularidade e
principalmente pelo direito à vida sem violência e sem discriminação.
É preciso que se consiga enxergar no outro, mesmo com sua peculiar diferença, a
condição de humano, o ser comum, a vida, o valor.

O ser especial é absolutamente insubstancial. Ele não tem lugar próprio, mas
acontece a um sujeito, e está nele como um habitus ou modo de ser, assim como a
imagem está no espelho. A espécie de cada coisa é sua visibilidade, a sua pura
inteligibilidade. Especial é o ser que coincide com o fato de se tornar visível, com a
própria revelação (AGAMBEN, 2007, p.46).

Por fim, há de se pensar que o gênero, sendo determinado pelo sentimento, é o que
impulsiona travestis e transexuais a apresentarem-se ao mundo diariamente, mesmo
sabendo que a violência e a segregação fazem parte do pano de fundo de suas corajosas
histórias, isto porque em nenhum lugar a violência é tão onipresente quanto na vida, e no
cotidiano de travestis e transexuais. Assim, faz-se latente a necessidade de enxergarmos em
cada ser humano, a condição de humano e através disso travar a luta pela paz e pela tão
sonhada democracia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando o que já foi dito, o gênero é determinado pelo sentimento, sendo que
é em face deste conceito que travestis e transexuais apresentam-se ao mundo, mesmo
sabendo que a discriminação e que a violência fazem parte de suas histórias.
104

A sociedade firmada nos conceitos de heteronormatividade e patriarcalismo dificulta


o exercício da democracia de travestis e transexuais sendo que estas têm de cotidianamente
enfrentar inúmeros obstáculos que os demais indivíduos não conhecem, pois nada de risível
ou questionável apresentam em sua condição de vida. Vidas de travestis e de transexuais
encontram-se desamparadas, e mesmo que existam políticas públicas afirmativas, não é
possível vislumbrar efetividade destes mecanismos, levando à crer que travestis e transexuais
não são protagonistas de suas próprias vidas.
Oà o eitoà deà idaà ua ,à t azidoà po à Gio gioà ága e ,à e e plifi aà pe feita e teàà
esta condição, haja vista que o Brasil é considerado, como já foi mencionado, o lugar onde
mais se mata travestis e transexuais.
Assim, torna-se urgente falar da condição das travestis e transexuais, as quais se
encontram inúmeras vezes fora do alcance dos olhos da sociedade e da proteção estatal. Não
trata-se de olhar travestis e transexuais como vítimas, pelo contrário, trata-se de enxergar em
suas corajosas histórias de vida a oportunidade de juntar a voz acadêmica cientifica,
oportunizando espaços de fala.
Neste contexto, há de se destacar ainda, que a violência a que estão expostas travestis
e transexuais Brasil a fora, não pode ser naturalizada, ou seja, a morte, as agressões, e as mais
variadas formas de violência e humilhação não podem ser justificadas. É necessário que a
sociedade de forma geral abrace a luta pela igualdade em meio à diferença e pelo direito de
vida nas mais distintas formas de singularidade. É preciso que a sociedade enxergue no outro
o ser humano em frente a qualquer diferença e que isto baste para que o respeito seja o pilar
de qualquer relação.

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107

áàP‘OTйÇÃOàQUйàINDйPйNDйàDáà O‘IйNTáÇÃOà“йXUáL :àáà IM PO““IBILIDáDйàDйà


APLICAR A LEI MARIA DA PENHA PARA PROTEGER ÀS TRANSEXUAIS

Kaoanne Wolf Krawczak 1


Ana Maria Foguesatto 2

RESUMO: Com a promulgação da Lei 11.340/2006, foi criada uma das melhores legislações do
mundo dentre aquelas que buscam coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher: a
conhecida Lei Maria da Penha. Com isso, passou-se a dar oficialmente maior valor em relação
a dignidade da mulher na sociedade. A versatilidade da Lei permite que o direito fundamental
da mulher de dignidade, faça-se valer em meios à agressões dos mais diversos tipos. Diante
disso, o objetivo do presente artigo é tentar entender como funciona a Lei Maria da Penha e
se ela pode ser aplicada, ou não, para proteger às transexuais, e de que forma isso ocorre
efetivamente.

Palavras-chave: Direitos Humanos; Lei Maria da Penha; Transexuais; Violência Doméstica;


Violência de Gênero.

INTRODUÇÃO

A Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340/06) é fruto de uma luta histórica pela busca da
efetividade do princípio da isonomia, de modo a conferir maior proteção às mulheres vítimas
de violência doméstica e familiar. A nova lei traz mecanismos mais céleres e efetivos na tutela
dessas mulheres. De odoà ueàaàe p ess oà ulhe ,à o oà íti aàdeà iol iaàdo sti aà
sujeito à tutela da nova legislação, possui alcance controvertido tanto em sede
jurisprudencial, quanto em sede doutrinária.
U aà pa teà daàdout i aàe te deà ueà ulhe à s oà ape asà asà pessoas que possuem
sexo biológico feminino ou que sejam registradas como do sexo feminino em seus assentos
civis. De outro lado, os doutrinadores, de forma acertada, sustentam que a expressão
ulhe àde eàse àe te didaà o oàtodaàpessoaà ueàseàide tifi ueà o oàdo sexo feminino,
ainda que seu sexo biológico seja outro, mesmo sem a devida alteração registral.
Apesar não haver regulamentação legal para a embasar o entendimento mais acertado
da doutrina, a aplicabilidade da Lei Maria da Penha nos casos de violência doméstica e familiar

1
Bolsista Integral CAPES e Mestranda no Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Direito – Curso de
Mestrado em Direitos Humanos da UNIJUÍ. Bacharel em Direito pela UNIJUÍ. Pós-graduanda em Direito Civil pela
Universidade Anhanguera/UNIDERP. Email: kaoanne.krawczak@gmail.com
2
Bolsita Taxa Escolar CAPES e Mestranda no Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Direito – Curso de
Mestrado em Direitos Humanos da UNIJUÍ. Bacharel em Direito pela UNIJUÍ. Email: anafoguesatto@hotmail.com
108

envolvendo transexuais se justifica com a utilização de princípios gerais do Direito, em especial


os princípios previstos na Constituição Federal e em Tratados e Convenções Internacionais
sobre Direitos Humanos.
De modo que, deve-se fazer uma ponderação entre os princípios da estrita legalidade
penal, com os princípios da dignidade da pessoa humana e da vedação à proteção deficiente,
conferindo a máxima efetividade aos preceitos constitucionais, como forma de justificar a
aplicabilidade da Lei Maria da Penha nos casos em que os transexuais são vítimas de violência
doméstica a familiar.
A partir disso, o objetivo desse artigo é trazer todos os avanços conquistados pela Lei
Maria da Penha, principalmente no que toca à tutela da dignidade humana, concluindo pela
aplicabilidade da referida lei nos casos em que os transexuais sejam vítimas de violência
doméstica e familiar, com fundamento em regras, postulados e princípios que permeiam todo
o atual ordenamento jurídico.

1 Violência doméstica: uma breve abordagem

Embora a Constituição Federal de 1988, previsse igualdade de gênero dignidade da


pessoa humana e prevalência dos direitos humanos, não protege especificamente os direitos
dasà ulhe es.à Oà a tigoà º,à i isoà III:à aà dig idadeà daà pessoaà hu a a ,à apa e eà o oà
fundamento da República Federativa do Brasil. No artigo 4º, inciso II, o Brasil assume em suas
elaç esài te a io aisàaà p e al iaàdosàdi eitosàhu a os .àйà oàa tigoà º,à aput:à Todosà
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,
à segu a çaàeà à p op iedadeà ... ;à eà i isoà I:à ho e sà eà ulhe esà s oà iguaisà e à di eitosà eà
o igaç es,à osàte osàdestaàCo stituiç o .àNestaàli ha,àdis o eàMa iaàBe e i eàDiasà ,à
p. 26-27):

Apesar de a Constituição Federal assegurar a igualdade (arts. 5º e 226, §5º) e impor


ao Estado o dever de assegurar assistência à família e criar mecanismos para coibir
a violência no âmbito de suas relações, olvidou-se de ressalvar a violência doméstica
ao reconhecer alguns crimes como de pequeno potencial ofensivo, a serem julgados
de maneira sumária por juizados especiais, sendo admitida a transação penal e a
aplicação de medidas despenalizadoras. (...) No conceito de delito de menor
lesividade, não se comporta a violência sofrida pela mulher no ambiente doméstico.
A possibilidade de aplicação da pena mesmo antes do oferecimento da denúncia,
109

sem discussão da culpabilidade, claro que desafogou a Justiça, que ganhou


celeridade, emprestando maior credibilidade ao Poder Judiciário. Mas o preço foi
caro para as mulheres.

A implementação de políticas públicas para prevenir e combater a violência representa


um aliado muito forte na mudança desse fenômeno sociocultural de violência doméstica, até
porque representa a tentativa de coibir a violência, que é um dos objetivos que a República
Federativa do Brasil assumiu com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência contra a Mulher e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres.
É fundamental nesse estudo destacar as características que configuram tal violência.
Dessa forma, rege o artigo 5º da Lei 11.340/2006:

Artigo 5º. Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a
mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio
permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente
agregadas;
II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos
que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou
por vontade expressa;
III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha
convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de
orientação sexual.

O preconceito de gênero enraizado no país arrastou a violência pra dentro dos lares,
tornando a mulher uma vítima do próprio companheiro. O estilo universal da família dos
séculos passados no ocidente, que consolidou-se no mundo inteiro e dura até hoje em alguns
países asiáticos, africanos e no Oriente Médio, ainda resiste indiretamente nas famílias
brasileiras.
Até a primeira metade do ano de 2006, não existia no Brasil legislação pertinente à
proteção da mulher sujeita a violência doméstica e familiar. Ocorre que pelo apelo
internacional de uma das milhões de vítimas de violência doméstica, Maria da Penha Maia
Fernandes, em 7 de agosto de 2006 entrou em vigor a Lei Maria da Penha.
Dentre alguns dos aspectos da Lei 11.340/2006, o mais relevante foi tornar a violência
doméstica e familiar contra a mulher crime e definindo-a. A Lei também tornou impossível o
110

pagamento de cestas básicas ou de multa como pena, e estabeleceu as formas da violência


doméstica contra a mulher, sendo física, psicológica, moral, patrimonial e sexual. Ademais, os
denominados JECrim, - Lei 9.099/1995-, tornaram-se incompetentes para julgar os crimes de
violência doméstica, seja qual for a quantidade máxima da pena privativa de liberdade
cominada.
Neste diapasão, as medidas protetivas de urgência, surgiram como forma direta de
coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. O objetivo norte das medidas
protetivas é, indubitavelmente, segundo Maria Berenice Dias, ga a ti à à ulhe àoàdi eito a
u aà idaàse à iol ia (2012, p. 145). A citada autora infere também que dete àoàag esso à
bem como garantir a segurança pessoal e patrimonial da vítima e sua prole agora não é
encargo somente da polícia. Passou a ser também do juiz e do Ministério Públi o à(2012, p.
145).
As medidas de proteção estão elencadas nos artigos 22 e 23 da Lei Maria da Penha:

Artigo 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher,


nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto
ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:
I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão
competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; III -
proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite
mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de
comunicação;
c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e
psicológica da ofendida;
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de
atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

Artigo 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas: I -
encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de
proteção ou de atendimento;
II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo
domicílio, após afastamento do agressor;
III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos
a bens, guarda dos filhos e alimentos;
IV - determinar a separação de corpos.

As medidas de proteção supra elencadas possuem caráter cautelar,


independentemente da situação do homem-agressor, a mulher-vítima é resguardada da
111

forma mais breve e eficaz possível. A partir do momento em que é noticiada a prática da
violência doméstica e familiar ao juiz, este pode e, conforme o caso, deve aplicar as medidas,
tudo no prazo de 48 horas.
Das medidas impostas ao agressor, há preocupação em desarmá-lo, podendo o
Magistrado restringir o porte ou suspender a posse de arma. Se o agressor possui porte de
arma devidamente registrado na Polícia Federal, a suspensão ou restrição só pode se dar caso
a vítima solicite tal medida. Nos dizeres de Maria Berenice Dias (2012, p. 151):

Dispondo o agressor da posse regular e autorização de uso, o desarmamento só pode


ocorrer mediante solicitação da vítima, como medida protetiva a ser apreciada em
juízo. No entanto, caso o uso ou o porte sejam ilegais, as providências podem ser
tomadas pela autoridade policial, quando configurada a prática de algum dos delitos
previstos na lei. Sendo legal a posse e o uso da arma de fogo pelo agressor,
denunciando a vítima à autoridade policial a violência e justificando a necessidade
de desarmá-lo, por temer pela própria vida, é instalado expediente a ser remetido
ao Juízo.

Ainda, através da Lei, o homem-agressor pode ficar impedido de se aproximar da


vítima e seus familiares e testemunhas ou de contatar com algum deles por qualquer meio de
comunicação. É a medida mais corriqueira nesses casos e também a mais descumprida. A
proibição de frequentar determinados lugares precisa ser solicitado pela vítima no boletim de
ocorrência com a indicação do local e justificativa.
No tocante ao inciso IV, as medidas protetivas devem ser deferidas quando o risco de
dano está diretamente direcionado aos menores. Os casos mais comuns são os de crimes
contra a liberdade sexual e contra a vida. Stela Valéria Soares de Farias Cavalcanti (2012, p.
238) preleciona que estaà edidaà e t e aà de eà se à to adaà o à autelaà peloà juiz,à ou idoà
sempre o Ministério Público, como custos legis, visando sempre o melhor interesse das
ia çasàeàadoles e tes,à e à o oàdaà íti a,àou idaàaàe uipeà ultidis ipli a .
O já citado artigo 23 da Lei Maria da Penha, somado ao artigo 24 da referida lei,
descrevem as medidas protetivas para a vítima.

Artigo 24. Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles
de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as
seguintes medidas, entre outras:
I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;
II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e
locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;
III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;
112

IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos


materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.
Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao cartório competente para os fins previstos
nos incisos II e III deste artigo.

Para haver o cumprimento do inciso I do artigo 23, é necessário que o munícipio tenha
programa de atendimento especializado, o que não acontece na maioria das comarcas
brasileiras. Nesses programas, deve haver uma equipe multidisciplinar para atendimento às
vítimas e segurança, visto que estão, ao menos em tese, em situação de perigo constante.
A Autoridade Policial normalmente é quem reconduz a vítima ao seu domicílio, casa
haja a necessidade e a possibilidade. Se a vítima não for acolhida por algum programa de
proteção e se o homem-agressor não estiver na residência, a vítima será reconduzida para sua
moradia.
Outro ponto importantíssimo relacionado às medidas de proteção é o que reza o artigo
19 da Lei 11.340/2006:

Artigo 19. As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a
requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida.
§1o As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de imediato,
independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério
Público, devendo este ser prontamente comunicado.
§2o As medidas protetivas de urgência serão aplicadas isolada ou cumulativamente,
e poderão ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia, sempre
que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados.
§3o Poderá o juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida,
conceder novas medidas protetivas de urgência ou rever aquelas já concedidas, se
entender necessário à proteção da ofendida, de seus familiares e de seu patrimônio,
ouvido o Ministério Público.

Nota-se que as medidas poderão ser aplicadas cumulativa ou isoladamente, não se


excluindo a hipótese de aplicação de quaisquer outras medidas que não estejam previstas,
caso o juiz julgue necessário.
Não se pode querer que o agressor cumpra a medida se a vítima não cumpre a lei e a
sua própria moral. Ademais, e efetividade das medidas protetivas está intimamente ligada à
segurança pública. Ao tempo de resposta da autoridade policial em responder aos chamados
das vítimas ou testemunhas.
Sabe-se também que o Brasil não está preparado, especificamente quanto à
infraestrutura, para uma lei teoricamente inteligente e eficaz. Não há programas de
113

atendimento à mulher vítima de violência doméstica suficientes; não há casas de acolhimento


para essa mulher, caso necessite; há falta de entendimento por parte da mulher-vítima dos
reais objetivos das medidas protetivas... Enfim. Não se pode afirmar que as medidas protetivas
não são eficazes para com a erradicação da violência doméstica, porém os fatores supra
referidos interferem para que elas sejam ou não eficazes.

2 A lei Maria da Penha e a proteção às transexuais

A partir dessa breve explanação sobre a Lei Maria da Penha (Lei n° 11.340/06),
pretende-se nesse momento, abordar a questão da aplicabilidade da já referida lei em relação
às transexuais, discorrendo sobre a possibilidade ou impossibilidade de tal aplicação e como
esse os nossos tribunais tem se posicionado em relação a tal temática.
Contudo, antes de abordarmos a questão central, faz-se importante apresentar um
conceito a respeito do que é um transexual, nesse sentido, quanto a conceituação de
transexualismo, não existem divergências doutrinárias. De modo que, Diniz, citada por, L.
Araújo (2000, p.28), define o transexual como

1. Aquele que não aceita o seu sexo, identificando-se psicologicamente com o sexo
oposto [...] sendo, portanto, um hermafrodita psíquico [...] 2. Aquele que, apesar de
apresentar ter um sexo, apresenta constituição cromossômica do sexo oposto e
mediante cirurgia passa para outro sexto [...] 3. [...] é o indivíduo com identificação
psicossexual oposta aos seus órgãos genitais externos, com o desejo compulsivo de
mudá-los [...]

Já na conceituação de Vieira (2000),

o indivíduo que possui a convicção inalterável de pertencer ao sexo oposto ao


constante em seu Registro de Nascimento, reprovando veementemente seus órgãos
sexuais externos, dos quais deseja se livrar por meio de cirurgia.

Ainda, Klabin (apud ARAÚJO, L., 2000, p. 29), concebe o transexual como

um indivíduo, anatomicamente de um sexto, que acredita firmemente pertencer ao


outro sexo. Essa crença é tão forte que o transexual é obcecado pelo desejo de ter o
corpo alterado a fim de ajustar-seà aoà e dadei o à se o,à istoà ,à aoà seuà se oà
psicológico.
114

A partir destas conceituações pode-se observar que estes sujeitos que apresentam
u aà i o pati ilidadeàe t eàoàse oà iol gi oàeàaàide tifi aç oàpsi ol gi a à “UTйй‘àapudà
ARAÚJO, 2000, p. 29), ao apresentarem estas duas características juntas, é que são definidos
pela sociedade como pertencedores do transexualismo. Assim, tem-se que

o componente psicológico do transexual caracterizado pela convicção íntima do


indivíduo de pertencer a um determinado sexo se encontra em completa
discordância com os demais componentes, de ordem física, que designaram seu sexo
no momento do nascimento (VIEIRA, 2000).

Temos também que, essa falta de identificação acaba causando nos indivíduos um
p o essoàa gustioso,à o fliti oàeàdeli ado à á‘áÚщO,àэ.,à ,àp.à ,àoàge aàu àsof i e toà
intenso, pois os transexuaisà i e à oà o flitoà deà possui à u aà ge it liaà est a haà sà suasà
se saç es,àdesejosàeàfa tasias à á‘áÚщO,àэ.,à ,àp.à .àйàtudoàisso,àsi ples e te,àpo ueà
eles desejam pertencer a outro gênero, que possa melhor lhes representear e porque toda
essa fase de escolha não é bem compreendida pela sociedade que os rodeia.
Quanto à questão da escolha por um gênero mais adequado, explica Butler (2009) que,

embora se possa dizer que isso é uma escolha [...] de caráter dramático e profundo
[...] pode incluir um ou vários dos seguintes aspectos: a escolha de viver como outro
gênero, passar por um tratamento hormonal, achar e declarar um novo nome,
assegurar um novo estatuto jurídico para o seu gênero e submeter-se à cirurgia.

Pois bem, voltando a temática central de nosso artigo, passemos a analisar a questão
da aplicabilidade ou não da Lei Maria da Penha às transexuais quando estas forem vítimas de
violência doméstica ou familiar e o posicionamento dos tribunais brasileiros a respeito do
assunto.
Em primeiro luga à ài po ta teà ueàt ate osàdaàe te s oà ueàaàe p ess oà ulhe ,à
utilizada no texto da lei, representa no mundo jurídico. Ao passo que o alcance desse termo
possuiàduasà e te tesà o t o e tidas,àu aàdelasàdefe deà ueà ulhe às oàape asàosàsujeitosà
que nasceram com o sexo biológico feminino ou que foram registradas como sendo do gênero
feminino, enquanto que de outro lado estão aqueles que sustentam, de modo acertado, que
ulhe à àtodaàa uelaàpessoaà ueàseàide tifi ueà o oàse doàdoàse oàfe i i o,à es oàque
possua outro sexo biológico ou que seja registrado como sujeito do sexo masculino.
115

A partir disso, e do entendimento mais acertado, temos que às transexuais podem sim
ser tuteladas e protegidas pela Lei Maria da Penha, pois se identificam como mulher tanto
psicologicamente, quanto socialmente, apesar de nem sempre possuírem o sexo biológico
feminino – dependendo se optaram por realizar ou não a cirurgia de redesignação sexual – ou
alteração em seu registro civil. Pois é exatamente com relação a esses sujeitos - não operados
e com gênero masculino no registro civil – que paira a dúvida quanto a aplicabilidade ou não
de tal instituto.
Nesse sentido, nossos tribunais, a pesar de ainda não existir um posicionamento
dominante a respeito da matéria, tem se posicionado no sentido de admitir que às transexuais
sejam abrangidas e protegidas pela Lei n° 11.340/06. De modo que, conforme Ferreira (2014,
ps. 11 e 12), os tribunais chegam a tal conclusão a partir da utilização dos princípios gerais do
direito, especialmente aqueles previstos na Constituição Federal e nos Tratados e Convenções
Internacionais sobre Direitos Humanos, com destaque ao princípio da dignidade da pessoa
humana.
Ao passo que,

no que concerne à violência de gênero, a jurisprudência tem firmado alguns


parâmetros como forma de possibilitar a aplicação ou não da Lei Maria da Penha ao
caso concreto. É de se notar que esses parâmetros não são impositivos, mas revelam
uma forte tendência jurisprudencial (FERREIRA, 2014, p. 11).

Assim, para confirmar o que foi exposto até aqui se faz necessário citar algumas
de is es.àDeà odoà ueà oà“upe io àT i u alàdeàщustiça,à oàjulga e toàdoàрCà . /‘“,àpo à
exemplo, explicita que a aplicabilidade da Lei Maria da Penha ao caso de violência de gênero
est à o di io adaà à o i iaàí ti aàeà àsituaç oàdeà ul e a ilidadeàdaà ulhe à нй‘‘йI‘á,à
2014, p. 12).

Em relação a vítimas transexuais, é possível encontrar algumas decisões de Tribunais


estaduais, seja tratando especificamente sobre o caso, seja explicitando quais as
potenciais vítimas de violência doméstica capaz de atrair a competência para
processo e julgamento dos Juizados Especiais de Violência Doméstica (FERREIRA,
2014, p. 12).
116

Passemos então aos julgados dos tribunais estaduais brasileiros. Em especial dos
tribunais de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Acre e Mato Grosso do Sul. Assim tem
que:

A 9ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo determinou que medidas


protetivas previstas na Lei Maria da Penha sejam aplicadas em favor de uma
transexual ameaçada pelo ex companheiro. As informações foram divulgadas nesta
segunda feira, 19, pelo site do TJ/SP. A vítima, que não fez cirurgia para alteração de
sexo, afirmou no processo que manteve relacionamento amoroso por cerca de um
ano com o homem. Após o fim do namoro, ele passou a lhe ofender e ameaçar [...]
pediu em juízo a aplicação das medidas protetivas. O pedido foi negado pelo juízo
de primeiro grau, sob fundamento de que a vítima pertence biologicamente ao sexo
masculino [...] No entanto, em julgamento de mandado de segurança impetrado no
Tribunal de Justiça, a magistrada Ely Amioka, relatora do caso, afirmou que a lei deve
ser interpretada de forma extensiva, sob pena de ofensa ao princípio da dignidade
da pessoa humana (MACEDO, 2015).

O juiz de Direito Alberto Fraga, do 1º Juizado Especial Criminal e de Violência


Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Nilópolis/RJ, concedeu a um transexual o
direito a medidas protetivas garantidas pela lei Maria da Penha. A vítima declarou
conviver com o companheiro há 11 anos e disse que já tinha sido agredida diversas
vezes. De acordo com os autos, eles estavam em um bar quando o réu teria cobrado
uma dívida financeira. Ao chegar em casa, houve discussão e foi feita uma ameaça
com uma garrafa quebrada. A situação só foi contornada com a chegada da polícia
(MIGALHAS, 2016).

No Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, em julgamento de Habeas Corpus,


o Desembargador Júlio Cezar Guittierrez destacou, com acerto, o entendimento no
sentido de que o sujeito passivo alcançado pela Lei Maria da Penha seria mulher,
assim entendida como lésbicas, transgêneros, transexuais e travestis que tenham
identidade com o sexo feminino (FERREIRA, 2014).

A Justiça [...] do Acre já tinham tomado decisões no mesmo sentido. Na mais recente
delas,à oà juizà Da ielà Bo fi ,à deà ‘ioà B a o,à e te deuà ueà o sexo biológico de
nascimento (masculino) não impede que a vítima, cuja identidade sexual é feminina,
seja reconhecida como mulher, sendo assim sujeita à proteção da Lei Maria da
Penha à рYPNйй“,à ,àg ifoàdoàauto .à
Em Mato Grosso do Sul, o Tribunal de Justiça local traz entendimento diverso. O
Desembargador José Augusto de Souza, no julgamento de Conflito de Competência,
expressamente em seu voto afasta a incidência da Lei Maria da Penha quando a
vítima for transexual que não tenha alterado seu registro civil. Em resumo, o relator
entende que mulher é apenas quem assim nasce, ou quem tenha em seu registro
civil o sexo feminino.11 Desconsidera, portanto, a situação fática, dando relevo à
situação jurídica, vale dizer, entende que o sujeito deve ser formalmente mulher
(FERREIRA, 2014).

[...] outra decisão também amplia a aplicação da Lei Maria da Penha, dessa vez para
transexual masculino (proc. N. 201103873908, Tribunal de Justiça de Goiás 1ª Vara
Criminal da Comarca de Anápolis, juíza Ana Cláudia Veloso Magalhães, vítima de
violência doméstica) (BIANCHINI, 2017).
117

No estado do Rio Grande do Sul as decisões se mostram no mesmo sentido, de modo


que, conforme CURCINO (2016)

Uma decisão inédita da Justiça de Santa Maria tem muito a ser comemorada. Na
segunda-feira, o Poder Judiciário deferiu uma medida protetiva em favor de uma
transexual. A jovem, que tem 20 anos e conseguiu a redesignação sexual aos 16,
sofria violência do seu companheiro há pelo menos um ano e meio. Ela já havia
procurado a Polícia Civil outras vezes, mas como ainda não tinha a Carteira Social, e
a Lei diz que apenas mulheres podem requerer medidas protetivas, ainda não
havia conseguido uma solução.
[...]
O magistrado explica que a decisão é baseada, principalmente, na interpretação de
gênero, já que o fato da vítima não ter o órgão sexual feminino não impede que ela
se enquadre em um caso de violência doméstica. Quando a relação é entre duas
mulheres, por exemplo, não há nenhum impedimento nem sequer para efetuar o
pedido.

Diante disso, fica evidente a aplicabilidade da Lei Maria da Penha aos casos de violência
doméstica contra transexuais. Tais decisões foram baseadas em razão de que o próprio texto
legislativo (Lei n° 11.340/06) traz em seus artigos, 2° e no parágrafo único do artigo 5°, a
vedação a qualquer forma de discriminação em razão de orientação sexual.

Artigo 2° Lei n° 11.340/06. Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia,


orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade, religião, goza de direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhes asseguradas as oportunidades
e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu
aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

Artigo 5° Lei n° 11.340/06. Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e
familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause
morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
[...]
Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de
orientação sexual.

Ao passo que, sobre a aplicação da referida lei, Maria Berenice Dias (apud MELITO,
à й à fu ç oà dessaà efe ia,à ta à passouà aà seà e o he e à aà Ma iaà daà Pe haà
pessoas travestis e transexuais, já que as que têm identidade de gênero do sexo feminino
estariam ao abrigo da lei. Esse alargamento ocorreu por parte da doutrina e da
ju isp ud ia .à
Ainda, a mesma autora (apud TANNURI; HUDLER, 2015) afirma que
118

há a exigência de uma qualidade especial: ser mulher. Assim, lésbicas, transexuais,


travestis e transgêneros, que tenham identidade social com o sexo feminino estão
sob a égide da Lei Maria da Penha. A agressão contra elas no âmbito familiar constitui
violência [...] descabe deixar à margem da proteção legal aqueles que se reconhecem
como mulher.

Ademais, tem-se que levar em conta que a aplicação se faz possível em razão do
gênero, que vem a ser mais importante do que sexo. Nestes termos

O magistrado explica que a decisão é baseada, principalmente, na interpretação de


gênero, já que o fato da vítima não ter o órgão sexual feminino não impede que ela
se enquadre em um caso de violência doméstica. Quando a relação é entre duas
mulheres, por exemplo, não há nenhum impedimento nem sequer para efetuar o
pedido (PAGNON apud CURCINO, 2016).

Ainda, segue o juiz dizendo que a decisão deve ser igual se chegarem casos parecidos
e que os transexuais devem ter o seus direitos garantidos, igual a qualquer outra pessoa. E
concluiu dizendo que (PAGNON apud CURCINO, 2016)

Não me vem na mente outro grupo de pessoas que tenha menos direitos garantidos.
São pessoas que estão à sombra da sociedade e que, às vezes, nem trazem esses
casos à Justiça porque já têm introjetado uma negativa do Estado em atender os
seus direitos. O caminho do Juizado é esse, tutelar um grupo social que é esquecido
pelo Estado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de tudo que foi exposto até aqui, fica claro que existem diversos argumentos
capazes de ensejar a aplicabilidade da Lei Maria da Penha quando a violência de gênero tiver
como vítima o transexual. De modo que, quanto ao transexual sujeito ou não à intervenção
cirúrgica de trangenitalização, cujo registro civil não tenha sido alterado parece não haver
dúvidas que com a alteração do registro, a pessoa passa a ser reconhecida, formalmente, pelo
Direito, como sendo do sexo na qual se identifica.
Assim, tem-se que o transexual, entendido como a pessoa cujo sexo biológico não se
identifica com o sexo psíquico, deve ser reconhecido socialmente pelo sexo que se identifica.
A própria medicina assim o reconhece, razão pela qual regulamentou o tratamento do
Transtorno de Identidade de Gênero. De modo que a terapia médica tem por finalidade
119

corrigir a incompatibilidade entre o sexo psicológico e o biológico, fazendo prevalecer aquele,


pois é assim que se identifica o indivíduo e que o identifica a própria sociedade. Conclui-se,
portanto, que o transexual masculino deve ser tratado como se mulher fosse, inclusive para
os fins jurídicos.
Ao passo que, a interpretação do artigo 5º, parágrafo único da Lei 11.340/06 leva a
concluir pelo reconhecimento do transexual como sujeito passivo da violência de gênero. Isso
porque a lei determina que não se deve perquirir a orientação sexual da vítima. De modo que
os tribunais brasileiros, inclusive os superiores, tem aplicado esse mesmo entendimento, de
que aos transexuais vítimas de violência doméstica ou familiar, deve sim ser aplicada a Lei
Maria.
Por fim, ainda que os argumentos demonstrados não se revelem suficientes, o
reconhecimento do transexual como potencial vítima de violência doméstica e familiar
decorre dos princípios constitucionais. De forma que o texto constitucional impõe a proibição
da proteção insuficiente, trazendo, ainda, a dignidade humana como seu fundamento e
determinando o tratamento isonômico entre todas as pessoas. Por essa razão, entende-se
que não haveria motivo para deixar de aplicar as medidas protetivas, que foram inseridas no
ordenamento nacional com fundamento em Convenções Internacionais que tutelam direitos
humanos.

REFERÊNCIAS

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120

______. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. HC 1.0000.09.513119-9/000. Relator:


Desembargador Júlio Cezar Guittierrez. Disponível em:
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Relator: Desembargador José Augusto de Souza. Disponível em:
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CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de. Violência Doméstica: Análise da эeià Ma iaàdaàPe ha ,à
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DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de
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macedo/tribunal-manda-aplicar-lei-maria-da-penha-para-transexual/>. Acesso em 25 abr


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MELITO, Leandro. Lei Maria da Penha também vale para transexuais; entenda a aplicação.
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TANNURI, Claudia Aoun; HUDLER, Daniel Jacomelli. Lei Maria da Penha também é aplicável
às transexuais femininas. Conjur, 2015. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2015-
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VIEIRA, Tereza Rodrigues. Adequação de Sexo do Transexual: aspectos psicológicos, médicos


e jurídicos. Revista Psicologia – Teoria e Prática: São Paulo, v. 2, n. 2, 2000, p. 88-102.
Disponível em: <http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/ptp/article/view/1113/822>.
Acesso em 09 mar 2015.
122

A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: UMA ANÁLISE JUNTO AOS ÓRGÃOS DE


ACOMPANHAMENTO NO MUNICÍPIO DE CRUZ ALTA

Márcio Jean Malheiros Mendes1


Ângela Simone Pires Keitel2

Resumo: O presente trabalho versa analisar os dados dos órgãos que se dispuseram a fazer
pa teàdaàpes uisaà ealizadaàpeloàoàp ojetoàPIBIC,ài titulado:à Oàempobrecimento feminino sob
a ótica da prática da violência contra a mulher: um olhar na estatística social de Cruz Alta
ealizadaàju toàaàB igadaàMilita . à‘essalta-se que a metodologia utilizada foi bibliográfica, por
meio de análise doutrinária, bem como coleta de dados. Desta forma, é crucial que as
questões de gênero estejam sempre em pauta nas discussões, especialmente nas que
envolvem o cenário jurídico. Muito embora a Lei Maria da Penha tenha previsto uma série de
mecanismos de salvaguarda às mulheres em situação de violência, as estatísticas demonstram
que os agressores continuam agindo violentamente, mesmo após o deferimento de medidas
protetivas. Além disso a abordagem detalhada foi possível por efeito dos resultados coletados
junto aos órgãos responsáveis pela temática.

Palavras- Chave: Violência. Mulher. Vítima. Agressor.

INTRODUÇÃO

No dia 7 de agosto de 2006, foi publicada a Lei Maria da Penha (11.340)3, que exigiu a
partir daí uma maior atenção por parte do judiciário e da sociedade para enfrentar tal
p o le a.à àй à ,àfoiàpu li adaàaàэeià .à . ,àla ga e teà o he idaà o oà эeiàMa iaàdaà
Pe ha .àáàpa ti àdeàe t o,àaàso iedadeàeàoàjudi i ioàpassa a a enfrentar o tema com mais
e e gia .à щй“U“,à .à
Neste contexto, percebe-se que, mesmo após decorridos mais de 10 (dez) anos, a
violência contra a mulher permanece acontecendo frequentemente em todos os lugares e
com todos os níveis sociais, envolvendo pessoas, inclusive, de todas as áreas de
conhecimento.

1
Acadêmico do 5º Semestre do Curso de Direito da UNICRUZ e bolsista do projeto PIBIC - Oàe po e i e toà
feminino sob a ótica da prática da violência contra a mulher: um olhar na estatística social de Cruz Alta realizada
ju toàaàB igadaàMilita .ààй-mail: jeanmalheiros2010@hotmail.com.
2
Professora do Curso de Direito da UNICRUZ e coordenadora do projeto PIBIC - Oàe po e i ento feminino
sob a ótica da prática da violência contra a mulher: um olhar na estatística social de Cruz Alta realizada junto a
B igadaàMilita .àй-mail: angelakeitel@unicruz.edu.br.
3
Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226
da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as
Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe
sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo
Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.
123

Deparando-se com a realidade exposta até o presente momento, este trabalho tem como
objetivo estudar e analisar os órgãos do Município de Cruz Alta/RS que trabalham/atuam nesse viés,
bem como obter resultados e dados do ano de 2016 a fim de entender a efetiva importância e atuação
deà adaà eioàe ol idoà esseà assíduoà o ate àaà iol iaà o t aàaà ulhe .
Assim, os dados apresentados no trabalho são oriundos de pesquisas realizadas no projeto de
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC).

TIPOS DE VIOLÊNCIA

As relações de dominação sempre marcaram a história da humanidade. A necessidade


de estabelecer a superioridade de um grupo social em função de poder aquisitivo, cultura
específica ou gênero ainda traz reflexos à sociedade atual, na qual se notam diversos conflitos
em função de estereótipos obsoletos.
Desde a Antiguidade, as mulheres eram consideradas inferiores aos seus parceiros e,
em função da fortíssima influência da religião, eram vistas como impuras. Não poderiam ser
educadas, estando restritas aos serviços domésticos, eram proibidas de participar ativamente
de cerimoniais, bem como demonstrar suas sensações de bem-estar, como o prazer. Assim,
em função do contexto social em que a mulher estava inserida, a violência a que ela estava
sujeita sequer era considerada violência e, por isso, jamais era contemplada como assunto
nos espaços públicos (BOURDIEU, 2002).
Somente depois da segunda metade do século XX, por meio de movimentos
feministas, questões ligadas à mulher obtiveram espaço no cenário mundial. No ano de 1979,
a ONU (Organização das Nações Unidas) adotou a Convenção para Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) que, em seu primeiro artigo definiu a
discriminação contra a mulher:

Para os fins da presente Convenção, a expressão "discriminação contra a mulher"


significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por
objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela
mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem
e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político,
124

econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo (CEDAW, 1979, p. 8,


tradução nossa).3.1

Muito embora a CEDAW tenha sido pioneira na abordagem da discriminação contra a


mulher, foi bastante criticada por não tratar da violência propriamente dita. Por conseguinte,
a (Organização dos Estados Americanos) OEA, em 1994, adotou a Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, mais conhecida como Convenção
de Belém do Pará. A Comissão elaboradora (1994) definiu como violência contra a mulher
qualquer ação que possa resultar em sofrimento físico, sexual ou psicológico ou ainda, morte.
A conduta violenta, para que se caracterize como violência contra a mulher, deve basear-se
no gênero, abrangendo tanto a esfera pública quanto privada.
A partir da Convenção de Belém do Pará, elencou-se os principais tipos de violência
contra a mulher: violência sexual, violência doméstica, familiar ou intrafamiliar, assédio
sexual, assédio moral e feminicídio. Passemos agora, à pormenorização dos tipos de violência
supracitados (JESUS, 2015, p. 66).
A violência sexual transgride a liberdade sexual da mulher, resultando em traumas
físicos e psicológicos, além da exposição a doenças sexualmente transmissíveis e possibilidade
de gravidez indesejada (JESUS, 2015, p. 67).
Em se tratando da violência doméstica, familiar ou intrafamiliar, é possível elencar
várias definições diferentes. De maneira mais sintética, consiste em ações ou omissões que
ameacem a saúde física e mental de uma mulher, ocorridas no cenário familiar. É pertinente
salientar que a violência doméstica pode ser perpetrada por quaisquer homens que tenham
o livre acesso à casa em que a mulher mora, independentemente da nominação que ele
receber (seja marido, namorado, amante, ex-marido, etc) (JESUS, 2015, p. 68).
É passível de análise a questão da empregada doméstica e a violência intrafamiliar.
Esse tipo de violência, uma vez que ocorre no âmbito doméstico, num ambiente de convívio
permanente ou esporádico de pessoas, também pode vitimar empregadas, dependendo da
circunstância. Para que condutas violentas contra empregadas domésticas sejam

3.1
Trecho original: "For the purposes of the present Convention, the term "discrimination against women" shall
mean any distinction, exclusion or restriction made on the basis of sex which has the effect or purpose of
impairing or nullifying the recognition, enjoyment or exercise by women, irrespective of their marital status, on
a basis of equality of men and women, of human rights and fundamental freedoms in the political, economic,
social, cultural, civil or any other field.". Disponível em:
http://www.un.org/womenwatch/daw/cedaw/cedaw27/tun3-4.pdf.
125

consideradas como violência intrafamiliar – sujeitas à aplicação da Lei 11.340/2006 – é de


suma importância que ela se encontre inserida em questões familiares relevantes e
permaneça por um longo período na casa.
Os casos de abuso sexual geralmente ocorrem em ambientes em que pode ser
percebida a dependência financeira e emocional por parte das vítimas, que tornam-se
submissas aos abusadores. Essa condição de sujeição torna ainda mais improvável a denúncia,
uma vez que, estando o provedor da casa prejudicado, o restante da família também estará.
O assédio sexual compõe-se de atitudes direcionadas à intimidade sexual de uma
mulher, por ela indesejadas.
O assédio moral, por sua vez, deve ser entendido como uma violência psicológica em
que o agressor aproveita-se do seu posicionamento hierárquico superior para submeter a
vítima as situações vexatórias. É mais comum flagrarmos esse tipo de comportamento em
ambientes de trabalho, em que mulheres têm suas atividades profissionais depreciadas, suas
ideias apropriadas por homens (bropriating)4 e sua autoestima atacada por meio de
imposições de tarefas com prazos, por exemplo, propositalmente inexecutáveis. O assédio
moral é geralmente empregado com o objetivo de forçar a mulher a demitir-se.
A Lei do Feminicídio (13.104 de 9 de março de 2015)4.1 consiste no assassinato de
mulheres embasado na questão de gênero (pelo simples fato de serem mulheres). Os crimes
de feminicídio podem ser classificados como íntimos, quando o autor faz parte do círculo de
convivência da vítima, ou não íntimo, quando não há qualquer relação íntima entre autor e
vítima. O feminicídio não íntimo é mais comum em casos de ataque sexual prévio. Pode-se
ainda classificá-lo como feminicídio por conexão, que, segundo Radford e Russel (1992, apud
Dйàщй“U“,à ,àp.à ,à efe e-seà à ulhe à ueàfoiàassassi adaàpo àesta à aà li haàdeàfogo à
deàu àho e à ueàte taà ata àout aà ulhe .
O enfrentamento da violência por meio de denúncias esbarra em convenções impostas
por uma sociedade patriarcal, que ainda se mantêm no imaginário de grande parte da

4
Oàte oà op iati gà e àdeà othe à i o àeà app op iati g à ap op iaç o àeào o eà ua doàu àho e à
toma para si a ideia de uma mulher e ganha vantagens por isso. Disponível em:
http://movimentomulher360.com.br/2016/11/mm360-explica-os-termos-gaslighting-mansplaining-
bropriating-e-manterrupting/
4.1
Altera o art. 121 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio
como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1o da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, para
incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos.
126

população brasileira e acabam por hierarquizar as relações pessoais. Além do sentimento de


vergonha, a fragilidade psicológica e a dependência financeira, outro aspecto que torna ainda
mais difícil a efetivação da denúncia são os próprios funcionários públicos da polícia, do
judiciário, da saúde e da educação, que, muitas vezes, não são capacitados para dar o
atendimento adequado a mulheres que sofreram algum tipo de violência.
De acordo com dados da Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180, no Brasil, a
violência física lidera o número de denúncias, seguida das violências psicológica, sexual, moral,
patrimonial.
No Brasil, a primeira tentativa de enfrentamento à violência contra a mulher foi
concretizada por meio da inserção do § 9º ao artigo 129, o qual aumentava a pena mínima de
detenção para seis meses. Essa medida, porém, não foi suficientemente satisfatória para a
diminuição da incidência de casos de violência contra a mulher, uma vez que continuava sendo
considerado um crime de menor potencial ofensivo, julgado pelos Juizados Especiais Criminais
(responsáveis por crimes menos complexos).
A inocuidade da alteração legislativa clamava por uma nova medida mais efetiva.
Adveio, assim, a Lei n. 11.340/2006, a Lei Maria da Penha.

A patrulha Maria da Penha e sua implantação no município de Cruz Alta

A Patrulha Maria da Penha tem como objetivo diminuir o número de violência


praticada contra mulheres e prevenir possíveis agressões futuras. Os policiais envolvidos na
Patrulha devem possuir treinamento específico para fiscalizar o cumprimento das medidas
protetivas determinadas pelo Poder Judiciário, com o fim de proteger as vítimas de violência.
No ponto referente à Lei Maria da Penha e sua aplicação na atividade policial, busca-
se um maior envolvimento no que se refere ao trabalho dos órgãos de segurança pública na
sua intenção de dar um atendimento à mulher em situação de violência de gênero, bem como
do seu papel nesta rede de atendimento que vai desde a prevenção até sua não reincidência.
Para tanto, o artigo 10 da Lei 11.340/2006 diz que a autoridade policial que tomar
conhecimento da ocorrência adotará, de imediato, as providências legais cabíveis nos casos
de prática de violência doméstica e familiar contra a mulher ou da sua iminência. Nesse
127

sentido, a Patrulha Maria da Penha passou a ser implementada em diversos municípios no


Estado.
Assim ressalta-se que ao conceituar gênero, Saffioti (2004, p. 44- à efe eà ueà aà
expressão violência doméstica costuma ser empregada como sinônimo de violência familiar
e,à oà a a e te,à ta à deà iol iaà deà g e o .à Po à o segui te,à e te de-se que a
violência é um termo polissêmico, ou seja, tem muitos significados, e o seu uso aponta para
as formas diferenciadas de constrangimentos, coações ou agressões, e nesse sentido a
Patrulha visa combater a violência praticada contra a mulher.
O grande diferencial da Patrulha é o trabalho posterior à ocorrência do delito, por
meio da fiscalização do cumprimento de medidas protetivas e acompanhamento de mulheres
que foram vítimas de agressão. Além disso, a Patrulha Maria da Penha atua, como forma de
prevenção primária, comparecendo periodicamente à residência das mulheres que possuem
Medidas Protetivas de Urgência, para verificar se as mesmas estão sendo cumpridas.
Desde a implantação da Patrulha Maria da Penha houve, além da grande demanda,
muito interesse por parte de outras Organizações Policiais Militares (OPM), a Brigada Militar
e também de gestores municipais em ter Patrulhas Maria da Penha para atuar na prevenção
aos delitos de gênero e fiscalização do cumprimento das medidas protetivas expedidas pelo
Judiciário.
Com o fim de aprimorar a segurança das vítimas de violência, a Secretaria da
Segurança Pública (SSP) implantou a Patrulha Maria da Penha no Município de Cruz Alta, no
dia 9 de julho de 2014, objetivando maior êxito na aplicabilidade da Lei Maria da Penha, que
defende e garante a segurança igualitária das mulheres.
Salienta-se também, que o Município de Cruz Alta foi o 11º a receber a implantação
daà Pat ulhaà Ma iaà daà Pe ha,à se doà u à passoà aà ais à aà o st uç oà deà u aà so iedadeà
igualitária e segura para as mulheres agredidas, pois, conforme os dados referidos abaixo
percebe-se que não são poucos os relatos de agressão contra mulheres.
No município de Cruz Alta a Patrulha Maria da Penha foi implementada junto ao 16º
Batalhão da Brigada Militar que atua da seguinte forma: a) Período de atuação: de segunda a
sexta-feira, das 13h às 21h; b) Viatura(s) utilizada(s): Vtr BM 10536 – Renault/Duster; c)
Atendimentos realizados de acordo com a tabela abaixo:
Períodos 01/01/2016 a 01/02/2016 a 01/03/2016 a 01/04/2016 a
01/02/2016 29/02/2016 31/03/2016 30/04/2016
128

Dias e horário de atuação De segunda a De segunda a De segunda a De segunda a


sexta-feira, das sexta-feira, das sexta-feira, das sexta-feira, das
13h às 21h 13h às 21h 13h às 21h 06h às 18h
Integrantes da(s) Sd Techio Sd Techio 3º Sgt Ávila 3º Sgt Ávila
Patrulha(s) Sd Letícia Sd Letícia Sd Nilvane Sd Nilvane
Sd Eder
Vítimas cadastradas 91 95 101 98
Visitas realizadas 10 20 50 38
Medidas Protetivas de 0 0 91 0
Urgência ativas
Medidas Protetivas de 0 0 0 07
Urgência revogadas
Certidões de Negativa de 02 03 13 08
Endereço (vítimas não
localizadas)
Certidões de Fiscalização 0 0 05 02
de Medida Protetiva com
Retorno do(a)
Companheiro(a) ao Lar
(violação de MPU)
Certidões de Mulher em 01 0 0 0
Situação de Risco
Certidões de Término da 0 0 02 04
Medida Protetiva de
Urgência
Certidão de Recusa de 0 0 0 0
Acompanhamento da
Patrulha Maria da Penha
Prisões realizadas em 0 0 0 0
decorrência do
descumprimento de
MPU
Casos graves em 0 0 0 0
acompanhamento
Bairros com maior Bairros Bairros Bairros, Bairros, Fátima,
incidência de visitas Ferroviário, Fatima, Fátima, Centro,
Progresso, Hilda, Abegay, Centro, Vila Rocha,
Alvorada, Vila Centro, São Miguel, Bairro São José
Nova. Vila Hilda.
Ferroviário,
Penha.
16º BPM – PATRULHA MARIA DA PENHA DO MUNICÍPIO DE CRUZ ALTA

Assim, através da análise dos dados descritos na tabela acima, foi possível perceber
que no período compreendido entre os meses de janeiro e abril do ano de 2016, houve uma
uniformidade nos dados percentuais no que se refere ao número de vítimas cadastradas. No
129

entanto, o número de visitas realizadas mostrou-se mais elevado e os bairros com maiores
incidências de visitação se mantiveram praticamente os mesmos.
Pode-se perceber ainda que, muito embora as vítimas esperem um resultado positivo
da denúncia, ainda se sentem inseguranças quanto à decisão de dar seguimento a uma
responsabilização penal ao autor da violência.
O responsável pelo setor de Enc. Comunicação Social do 16º BPM aduziu em sua fala
o ente di e toà ua toà àposiç oàdoàauto àdaà iol ia,à aà aio iaàdosà asos:à “e ti osà ueà
osàauto es,àai daàseàse te àdeà e taàfo a,à i ati gí eis àpeloà açoàdaàjustiça,àpelaàde o aà
deàu aàde is oà a al .àDesseà odo,à oàh à o oàdei a àdeàladoàaà essal aàdeà ue a Lei existe,
mas ainda sofre fragilidades, causando uma deficiência na eficácia da mesma, sendo que isso
olo aàe à is oàaàso iedade,àu aà ezà ueàta toàaàaç oà o oàaào iss oàdeàalgoà est a ho àaà
lei se configura crime.
Nesse sentido, impende reescrever a conclusão aduzida pelo responsável da Patrulha
Maria da Penha no Município de Cruz Alta, de acordo com os itens fornecidos para o referido
trabalho:

As medidas provisórias (afastamento do lar, distância da vítima, entre outras) ainda


são de certa forma ineficazes, deixando a vítima insegura quanto ao seu
cumprimento, e o autor livre para agir a qualquer tempo. Isto contribui, em muito,
para a cessão do processo pela vítima. Do total de vítimas cadastradas e de Medidas
Protetivas de Urgência (MPU) em vigor cada mês, a Patrulha Maria da Penha, não
obstante a carência de efetivo, conseguiu concretizar a maior parte das visitas, sendo
o principal motivo das que ficaram prejudicas a não localização do endereço das
vítimas, muitas vezes por insuficiência de informações quando do registro da
ocorrência. Também foram constatados casos de retorno de companheiro(a) ao lar
(violação de MPU). Outrossim, cabe destacar que a Patrulha é muito bem recebida
em todos os lares, durante as visitas, independentemente da continuidade ou
término do relacionamento do casal. (16º BPM – PATRULHA MARIA DA PENHA DO
MUNICÍPIO DE CRUZ ALTA)

É possível perceber que a Lei Maria da Penha tem uma marcante importância no
Ordenamento Jurídico Brasileiro, uma vez que, a mesma tem se encaminhado para um êxito
social ainda maior, pois apesar de todas as dificuldades enfrentadas, a Lei busca um princípio
de conscientização e punição aos agressores.
Pode-se dizer que a Lei Maria da Penha já possui uma significativa efetividade, apesar
de ainda não ser suficiente para cessar a violência, ela está avançando nesse sentido, avanço
130

este que pode ser verificado no próprio município de Cruz Alta, sendo que, as denúncias
aumentam gradativamente e isso faz entender que as mulheres agredidas estão se
empoderando e decidindo pelo fim da violência de gênero.

Centro de referência maria mulher

O município de Cruz Alta, no ano de 2016, contava com o Centro de Referência Maria
Mulher, o qual atendia e auxiliava mulheres vítimas de violência, a equipe de trabalho contava
com uma profissional da área da psicóloga, uma assistente social e uma coordenadora.
A fim de entender o trabalho e os resultados do Centro de Referência, foram coletadas
informações, bem como, realizadas entrevistas com as profissionais que trabalhavam no
órgão conforme serão expostas as informações abaixo.
De acordo com a psicóloga e a assistente social, profissionais responsáveis pelos
atendimentos, no ano de 2016 foram atendidas 62 mulheres, sendo que destas, 23 eram casos
novos, 14 casos de reincidência e 25 já estavam sendo acompanhadas desde 2015.
Conforme exposto acima, o número de atendidas não fora muito alto no ano de 2016,
mas pode-se dizer que a cada mês no município pelo menos 5 (cinco) mulheres foram
agredidas, sendo que a maioria, segundo relatou a psicóloga dizia que seu companheiro estava
alcoolizado ou sob efeitos de entorpecentes.
Das 62 mulheres atendidas pelo centro de referência, foi possível perceber que as
violências ocorriam na seguinte ordem: psicológica, física, patrimonial, sexual, e ainda, cárcere
privado.
Mister se faz salientar que do número de casos descritos acima, 4 (quatro) foram mais
graves, os quais exigiam que as vítimas fossem removidas da cidade, sendo havia uma carro
disponível para o CRMM, o qual fazia as buscas de mulheres agredidas e quando necessário
as removia do município, sendo que sempre um técnico acompanhava todo o procedimento.
Finalizando a entrevista, as responsáveis pelos atendimentos informaram ainda, que a
maioria das agressões ocorriam do companheiro/marido ou ex-companheiro, sendo que, dos
23 novos casos de 2016, 02 foram agressões praticadas por netos contras avós.
131

Delegacia especializada da mulher – Cruz Alta – RS

No mês de outubro de 2016 foi realizada uma reunião com a delegada de Polícia Lilian
Carús, responsável pela delegacia especializada da Mulher do município de Cruz Alta, a fim de
coletar dados e entender como funcionavam os atendimentos as mulheres agredidas.
Em sua fala, a delegada, enfatizou que um dos maiores causadores da violência contra
ulhe ,àai daàe a,àaà Cultu aàMa hista ,àpostaàe àp ti aàpo à ho e sài segu os ,à aà ualà
predomina o pensamento de ueà ue à a a,à a da .à
Ela destacou também, que os maiores vilões desta violência, eram respectivamente, o
álcool e as drogas. Normalmente nos finais de semana em que acontecem festas, a violência
acabava sendo mais marcante e frequente.
Não menos importante, a delegada nos informou também, que a ideia de que somente
pessoasà po es à passa à po à situaç esà e at iasà deà iol iaà o t aà ulhe à à u à ito,à
sendo que afirmou ela, que pessoas de classe alta e média, procuram advogado, e pessoas
pobres procuram a polícia.
Os atendimentos de janeiro a agosto de 2016 foram numerosos, sendo que será
possível perceber através da tabela abaixo:
Mês/ano Número de Atendimentos
Janeiro/2016 110 casos
Fevereiro/2016 76 casos
Março/2016 106 casos
Abril/2016 119 casos
Maio/2016 116 casos
Junho/2016 100 casos
Julho/2016 106 casos
Agosto/2016 124 casos
DELEGACIA ESPECIALIZADA DA MULHER – CRUZ ALTA/RS

Conforme analise a tabela acima, os atendimentos realizados pela Delegacia da Mulher


do Município de Cruz Alta ficam entre 76 e 124.
Insta destacar, em que pese Cruz Alta possua uma delegacia de Polícia Especializada, a
primeira delegacia foi criada em 1988 na cidade de Porto Alegre – RS. Contudo, mesmo através
132

da obrigatoriedade atualmente o Estado do Rio Grande do Sul conta com apenas 20 (vinte)
postos policiais para a Mulher e 16 (dezesseis) Delegacias de Polícia Especializada.

METODOLOGIA E/OU MATERIAL E MÉTODOS

O presente artigo foi elaborado em âmbito qualitativo, por meio de uma pesquisa
bibliográfica. A pesquisa bibliográfica, por sua vez, é definida pela consulta de algumas
bibliografias pertinentes ao estudo proposto. É uma investigação que procura explicações
para os dados expostos, sendo realizada com diversos materiais para reunir dados distintos
com relação a um determinado tema.
Nessa direção, também foi realizada a coleta de dados junto a Patrulha Maria da
Penha, 16º Batalhão da Brigada Militar, Centro de Referência Maria Mulher e Delegacia
Especializada da Mulher.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A violência constitui-se de um problema humano pela questão antropológica aí


pressuposta. A condição humana é compreendida pelo viés da paz, do respeito, do
acolhimento, do entendimento, e tais características são compreendidas como fundantes da
o diç oà deà hu a oà se .à Po à isso,à ua doà algu à ageà o à iol iaà à e te didoà o oà
alguém desprovido da capacidade humana, ou seja, de compreender as relações de ser uns
com os outros. Assim, não importa o quanto de força que se agrega a uma forma de violentar,
segu doà“a t eà ,àp.à à aà iol ia,àsejaà ualàfo àaà a ei aà o oàelaàseà a ifesta,à à
se p eàu aàde ota .
Para Arendt (2016, p 6) trata-seàdeàu aàfugaàdoàpe sa àasà elaç esàhu a as,àpoisà oà
problema não é que eles tenham suficiente sangue-f ioàpa aà pe sa àoài pe s el ,à asàsi à
ueà oàpe sa .àPa aàta to,àte -seà ueà essalta à ueà áàp p iaàsu st iaàdaà iol iaà à
regida pela categoria meio/objetivo cuja mais importante característica, se aplicada às
atividades humanas, foi sempre a de que os fins correm o perigo de serem dominados pelos
meios, que justificam e que são necessários para alcançá-los. .à
133

Assim, conclui-se que a violência está atrelada as mais diversas ordens do agir e do
pensar do ser humano, e não obstante, a coleta de dados junto ao 16º BMP da Patrulha Maria
da Penha do Município de Cruz Alta faz esse relato e reafirma tais posições, mostrando que
h à u àlo goà a i hoàaàseàt ilha ,à asàse àdú idasàhojeàest à aisàp i oàdoà ueào te ,à
oà ueàseà o fi aà o àoàe te di e toàdeàщesusà ,àpà à áà iol iaà o t aàasà ulhe esà à
um dos fenômenos sociais mais denunciados e que mais ganharam visibilidade nas últimas
décadas.àIssoàseàde eàaàseuàefeitoàde astado àso eàaàdig idadeàhu a aàeàaàsaúdeàpú li a.
Nesse sentido, não há como desconsiderar o grande efeito que a Lei Maria da Penha
(11.340/2006) tem repercutido na sociedade, ainda que, muitas vezes esta seja vítima de
violações, tem-se até o presente momento uma demanda crescente, de mulheres agredidas
tomando atitudes contra tal fato e procurando assegurar sua dignidade, tendo como base o
número de ocorrências fornecidos pelo 16º Batalhão da Brigada Militar do Município de Cruz
Alta.
Mister se faz salientar que o Município de Cruz Alta conta com o apoio de diferentes
órgãos a fim de combater a Violência contra Mulher, sendo, a Patrulha Maria da Penha,
conforme supracitado anteriormente, o Centro de Referência Maria Mulher e a Delegacia
Especializada da Mulher, todos objetos de pesquisa do presente ensaio.
A partir da pesquisa realizada nos órgãos mencionados foi possível concluir que os
principais motivos das agressões contra as mulheres, ainda são o álcool e a drogadição,
fi a doàe ide teà ueàoà a i hoàdeà o ateàaà iol iaà àlo goàeàp e isaàatua àe à g a deà
assa .àà

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. Da Violência. Disponível em: www.sabotagem.revolt.org. Acesso em 10 jul.


2016.

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

BRASIL. Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos
do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. 21. ed. São
Paulo: Saraiva, 2016.

___________. Lei n. 11.340, de 07 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher [...]. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
134

___________. Lei n. 13.104, de 09 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848,
de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para prever o Feminicídio como circunstância
qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, para
incluir o Feminicídio no rol dos crimes hediondos. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Atlas da Violência 2016. Brasília, DF: IPEA,
2016.

JESUS, Damásio de. Violência Contra a Mulher: aspectos criminais da Lei n. 11.340/2006. 2.
ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

RIO GRANDE DO SUL – Governo do Estado do Rio Grande do Sul, Disponível em:
http://www.rs.gov.br/conteudo/200247/cruz-alta-recebe-a-patrulha-maria-da-
penha/termosbusca=patrulha%20maria%20da%20penha. Acesso em 10 jul. 2016.

SARTRE, Jean-Paul. Situações III. São Paulo: Cosac e Naif, 2006.


135

A EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS NAS ESCOLAS COMO MECANISMO PARA


DIMINUIÇÃO DA VIOLÊNCIA

Matheus da Silva van der Ham1


Enio Waldir da Silva2

RESUMO: A escola tem um papel fundamental na vida das pessoas. Ao passo que tem uma
vasta possibilidade de atuação perante o individuo, tem demonstrado falha e insuficiência na
discussão de temas como diversidade, respeito, tolerância e dignidade da vida. Com as escolas
deixando de usufruir de discussões relevantes e necessárias, abre-se espaço para violência, o
sofrimento e o medo. Estas angústias virão refletir dentro da sociedade em diferentes
aspectos e que, na maioria das vezes, aparecem em forma de mais violência. Esta é a tese
central desse artigo, que busca demonstrar o quão significativo pode ser a inclusão de uma
educação em direitos humanos nas escolas, sendo capaz de prevenir futuras violências e
trabalhar na reparação e diminuição das já existentes. É função da escola é ensinar e incentivar
as relações humanas pacíficas, a dignidade da pessoa, o reconhecimento e a liberdade.

Palavras-chave: Escola; Estudantes. Cidadania. Cultura. Dignidade Humana.

INTRODUÇÃO

O objetivo deste texto é contribuir para as reflexões sobre a implementação de uma


cultura de paz contra a violência escolar, as causas, consequências que poderão vir a suceder
na vida em sociedade.
Observa-se atualmente dentro das escolas ocasiões em que estão presentes todos
os tipos de infrações que caracterizam uma violência, afinal, o que ocorre não é nada menos
que uma resposta à violência que fora vivenciada e exercida anteriormente sobre os próprios
alunos. Por outro lado, a escola tem se demonstrado cada vez mais incapaz de controlar as
manifestações de violência e ela mesma pratica a violência simbólica, que combinada com a
má instrução, falta de qualificação e apoio familiar, fica refém da reprodução social do que
acontece na sociedade em geral.
Muitos casos de violência escolar apresentam consequências incalculáveis, estas que
por sua vez poderiam ser evitadas caso anteriormente houvessem sido trabalhados princípios
baseados em uma cultura de direitos humanos.

1
Bolsista CNPq – UNIJUÍ. e-mail: matheus.vdh@gmail.com
2
Professor Doutor em Sociologia – Orientador do projeto de Pesquisa – Direitos Humanos na Escola e na
Educação Popular – UNIJUÍ. e-mail: eniowsil@unijui.edu.br
136

A escola é apenas mais uma instituição, que assim como a família, possui grande força
orientadora das ações dos indivíduos. No entanto seu potencial vem sendo negligenciado e
sufocado no objetivo de ensinar pelas ciências. O peso da formação social, dialógica e moral
dos estudantes não podem recair apenas sobre a família, a escola deve também assumir seu
protagonismo. Compromissos como a promoção da paz não é uma tarefa que deve ser
fragmentado entre escola e família, mas trabalhado em conjunto, realizando assim um dos
primeiros passos na colaboração para uma cultura de paz. Resta-nos pensar como a escola
pode sair desta condição de expectadora e buscar parceria com outros espaços educativos
para promover uma educação para paz.

A escola e a violência simbólica

A violência simbólica praticada pela escola refere-se às imposições culturais que


preparam as crianças e jovens a aceitarem tudo na vida como normal, como se sempre foi
assim, sempre existiu e que, portanto, temos que aceitar esta naturalização da história e dos
fatos sociais, independentemente de serem bons ou maus. Na maioria das vezes a autoridade
pedagógica – o professor – nem percebe a força que está usando neste processo de
inculcação, não percebe seu lugar na reprodução das classes sociais que se beneficiam com a
educação impositiva. Os conhecimentos científicos, artísticos, literários e os comportamentos
necessários para eles acontecerem se tornam práticas sociais que reforçam as ocultas classes
dominantes que não querem transformações sociais.
Se a escola não pode fugir de seu papel de inculcadora – currículo, disciplinas, seriação,
avaliação, comportamentalismos, burocracias, etc. - ao menos podem tornar esta violência
simbólica em uma força que conserta e não destrói. É isso que o professor pode fazer quando
ele educa e tem um ideal de sociedade oposta a esta que oprime e mantêm um mundo de
misantropia violenta.
Não podemos esquecer que a violência, além da simbólica especifica da escola, já está
presente e propagada nos mais diversos setores da nossa sociedade. Em nosso atual contexto
político e social, diariamente presenciamos os mais diversos tipos, seja ela violência explicita
ou não. Dentro do contexto escolar não é diferente, temos presentes diversas representações
de violência, porém, em proporções diferentes. A violência poderá se caracterizar de
137

diferentes formas, através da agressão física, psicológica, sexual, por negligência ou contra o
patrimônio, etc. Destacaremos aquela que consideramos a responsável por constituírem
indiretamente todas as demais, a violência psicológica pelo bullying.
As salas de aulas estão sempre cheias, sempre com novos alunos, cada um com
personalidade e vivências únicas. Em um mundo normal, todos conviveriam em harmonia,
com suas singularidades. Porém, são na falta de tolerância as diferenças que o bullying
aparece. Infelizmente, na sala de aula os alunos não são estimulados a interagirem e
expressarem seus sentimentos. Aliado a escolas mal estruturadas, falta de representação e
exclusão social, o bullying vem sendo responsável por realizar consequências emocionais
incalculáveis. Fernandes e Casari (2010, p.8) responsabilizam o modelo de produção
capitalista:

O modo de produção capitalista, tornou a educação um instrumento de reprodução


das desigualdades inerentes aos sistemas de classes. E a sociedade de consumo
trouxe consigo a ideia de concorrência, na qual os consumidores tornaram-se
mercadorias.

Violência, portanto, vem do próprio do sistema que detona com as relações humanas
na produção, na circulação e no consumo de mercadorias. A noção de mercadoria se espraia
por todo o universo social exacerbando os conflitos, tornando-os violência, uma vez que a vida
do outro se torna mais um coisa desprezada nos negócios.
Assim é a pratica do bullying: a concorrência pela estima do mais forte sobre o mais
fraco ou alguém que quer ver o outro fora do páreo, do jogo simbólico das influencias, que
quer certeza do enfraquecimento do outro para não impedir de fazer o que quero no espaço
do mercado de venda de imagens. Ali, se impede o mínimo diálogo. Ocorre é o silencio
aterrorizados e o rosnado da ameaça da agressão e da dor. O diálogo curaria a dor.
Na maioria dos casos as vitimas e os agressores sempre ficam marcados com os
resultados decorrentes do bullying. Suas consequências podem ser graves, dor, angústia,
intimidação, rebaixamento, humilhação, são apenas algumas das causas, mas já são
suficientes para provocar uma queda de autoestima descomunal aquele que está sendo
agredido, deixando-o vulnerável psicologicamente e passível de alternativas extremas.
Enquanto ao agressor poderão vir a ser adultos violentos e assediadores, se tratam de pessoas
sem empatia. Como diz Bourdieu (1983), a violência cresce com as dobras do corpo.
138

Os alvos dessa violência costumam ser identificados como pessoas mais retraídas e
com baixa autoestima. No ponto de vista do agressor, a vítima se percebe como alguém mais
fraco e diferente da maioria, qual ele ira despejar a sua intolerância com base nesses critérios.
No contexto escolar, a presença do bullying se demonstra entre os alunos que não estão
enquadrados no padrão da turma, sejam se tratando de questões físicas, raciais, gênero, etc.
Nesse momento, a escola, através de seus alunos, acaba por refletir o preconceito estrutural
presente na sociedade. Racismo, homofobia, xenofobia e machismo passam a ser legitimados
como atitudes aceitáveis, enquanto as vítimas permanecem totalmente silenciadas em um
cenário que deveria ser de discussão e diálogo.
Apesar de este fenômeno social estar presente em outros contextos além do escolar,
como prisões, o ambiente familiar e a internet (cyberbullying), ainda é no âmbito escolar que
ele tem maior destaque. Esse destaque se torna muito manifesto quando observamos a falta
de preparo, tanto dos pais como dos professores, para lidar em situações como essas. Sobre
a organização da violência psicológica nas escolas, Branco, Freire e Gonzalez (2012, p.34)
dize à ueà seà oà p e o eitoà fo à i e iadoà deà fo aà o tí ua,à aà po toà deà seà to a à u à
conceito estruturante nesse movimento desenvolvimental, ele pode acabar se tornando típico
dasài te aç esàso iaisàeà aseàpa aà o st uç esàsu jeti asàe t eàp ofesso esàdeàalu os .àPo à
isso o bullying não pode ser encarado como uma situação normalizada, um costume da escola
atual, onde qualquer esforço para combatê-lo seria inútil, desmotivando os alunos de pedirem
ajuda e os professores de intervirem por si próprios.
Encontramo-nos em uma situação escolar onde a relação entre professor e aluno é
praticamente mecânica. O aluno não tem no professor, que deve ser visto como sua maior
referência na escola, a segurança suficiente para pedir ajuda. Essa relação precisa ser
trabalhada com ações para que se estimule maior confiança entre ambos. É muito rara a
vítima de violência escolar se queixar, tanto por insegurança e por inclusive medo de se sentir
rebaixada. Criado um vínculo de confiança entre professor, aluno e família, as violências
sofridas devem vir à tona pelo diálogo e a probabilidade de que o caso seja resolvido será
muito maior. O apoio nesses momentos é de muita significância e deve ser bilateral (escolar
e familiar), abrindo-se possibilidades para aquele que antes se via completamente sozinho e
sem alternativas.
139

A violência de bullying, em determinadas situações, também podem representar


assédios morais por parte dos próprios professores e demais funcionários contra os alunos.
Apesar de soar absurdo, situações como, ameaças de reprovação, manipulação da classe em
desfavor de um aluno, negar o direito de ir ao banheiro, gritar rebaixando e menosprezando
o mesmo, são exemplos onde o próprio professor se comporta como autor da violência dentro
da sala de aula. Quando aqueles que temos como nossas maiores referências dentro da sala
de aula são os próprios agressores, percebemos a dimensão que o problema atingiu.
Apesar de compreendermos a seriedade do bullying, infelizmente não é dessa maneira
que ele vem sendo encarado. O problema está longe de ser resolvido e vem se tornando uma
bola de neve em todos os contextos sociais, pois como violência, é circular e se propaga. Por
ser um cenário que impera o desrespeito, o autoritarismo dos adultos e a diversidade social,
a escola representa nosso maior desafio. Cenário que poderia ser mudado com uma educação
que cedesse espaços para interação e diálogos sobre respeito e tolerância.
Como nos ensina Bourdieu, o professor pode ensinar novas disposições duráveis na
aprendizagem do aluno de forma que ele se torne agente de suas próprias estratégias
objetivas de liberdade e responsabilidade. Ou seja, os elementos de forças que consagram os
habitus dos jovens podem ser criados na escola pelos professores que possuem capitais
culturais e sociais para abrirem possibilidades de futuros, além daqueles que são oferecidos
pela sociedade ameaçadora.
Invertendo as funções destruidoras das violências, a escola deve reunir estas
ansiedades e conflitos para serem estruturantes de uma nova disposição de luta por uma
sociedade pacificada pela justiça social. Trata-se de uma utopia necessária, sentida pela
própria condição de percepção das crianças e jovens, pois as tematizações e diálogos cria um
saber sobre as razões que promovem a violência destruidora (BOURDIEU, 1983).
Se os conhecimentos são construções dos sujeitos para garantirem suas redes de
operação, a escola pode dispor de conhecimentos prudentes (plurais), descentes (éticos),
urgentes (agora) e emergente (novo, no local), capazes de construírem relações sociais
construtivas que vão contra a opressão, a dominação e descriminação de todas as espécies
(SANTOS, 2000). Assim é o sentido da educação em direitos humanos, tema este, que
trataremos no próximo capítulo.
140

Os direitos humanos na escola e a colaboração para uma cultura de paz

A Educação em Direitos Humanos nas escolas surge como a melhor alternativa na


luta contra as opressões e em busca do bem-estar do indivíduo. Afinal, assim está concentrado
o cerne da preocupação dos direitos humanos, que visam combater a injustiça, a desigualdade
e promover a liberdade, pois ele trata mais de relações entre pessoas e não relações entre
pessoas e coisas. Ao passo que estamos tratando da necessidade de uma educação em direitos
humanos, estamos nos referindo a uma reformulação do currículo escolar acompanhada de
uma formação mais qualificada em direitos humanos por parte do próprio educador. Dias
(2015, p.6) entende que a escola toda deverá ser reformulada:

no planejamento de ensino, a ênfase da educação em direitos humanos precisa levar


em consideração conteúdos e atividades que visem desenvolver nas crianças e
adolescentes atitudes, condutas e ações que fortaleçam os comportamentos
cooperativos, dialógicos e participativos.

Em uma realidade que observamos professores cada vez mais ansiosos com sua
qualificação, sempre insuficiente, e com medo da responsabilidade de abrir demais para
atender demandas de alunos, que temem fugir da esfera das ciências diariamente abordadas,
sobre muito pouco espaço para nascer à necessidade de um aperfeiçoamento por parte dos
mesmos no que tange aos direitos humanos. Ele nem mesmo sabe o que é direitos humanos,
além daquilo que é falado na mídia, nas situações mais densas de crimes e violências.
Toda a reformulação curricular passa pela necessidade de que a escola contribua para
estimular a consciência critica dos alunos, porém, de mesmo modo que o professor deve estar
aberto a mudar, devem estar assegurados os meios que o qualificam. Por isso, oferecer
condições para esta qualificação dos docentes é uma das politicas publicas mais urgentes
diante das inciativas de combate a violência e criação de politicas de segurança. Quando
capacitado, o professor terá o potencial necessário para contribuir na aproximação dos alunos
e na luta ao silenciamento das minorias, combatendo de forma efetiva com o bullying, a
principal violência nas salas de aula.
Percebemos que a escola abrange culturas diversificadas que refletem em uma
diversidade representada por seus estudantes, tal fato só acaba por tornar mais necessário o
incentivo ao diálogo por parte dos alunos. Afinal, a prática demonstra que o simples fato de
141

se encontrarem todos os dias não é garantia de um ambiente e relações harmoniosas. A


situação escolar se trata de uma questão estrutural, uma questão de maioria, que sem notar,
acaba por tirar o espaço de pessoas que desejam serem vistas e ouvidas do mesmo modo que
as demais. A respeito das inteirações e empatia em sala de aula, Salgado e Ferreira (2012,
p.63) dizem:

Ser capaz de perceber os argumentos do outro, ou assumir uma perspectiva de


terceira pessoa sobre um determinado aspecto, não impede necessariamente que
esse processo possa ser conduzido de um modo mecânico ou manipulador e com
pouco respeito pelas partes envolvidas.

Ao longo dos anos, os métodos tradicionais de solução de conflitos se demonstraram


ineficientes. No contexto escolar, a atual fórmula se demonstra ainda mais inadequada, tendo
em vistas que dentre os demais cenários sociais, é a escola que se configura como detentora
de maior potencial transformador dialógico. O diálogo tem capacidade transformadora, é
através dele que se garantem a superação criativa e produtiva do conflito. Temos de encarar
o outro ser humano não apenas como uma máquina pensante, programada para dar respostas
pré-prontas, e sim instiga-lo a reflexão, o questionamento e o diálogo. Deve-se buscar extrair
de cada individuo uma visão singular, um único ponto de vista, impossibilitando que venham
a se tornar meros repetidores, sem autonomia.
A autonomia da criança e do adolescente aparece como elemento fundamental na
construção de uma educação em direitos humanos. Mas a autonomia não se trata de deixar
a criança fazer o que quer e sim que a escola ofereça uma educação rigorosa pautada no
diálogo sincero, honesto, democrático e ético para que o aluno se sinta responsável por sua
formação, pronunciando-se sobre o que quer e os problemas que enfrenta. O aluno não traz
consigo a cultura do diálogo, mas a escola deve oferecê-la. Sem dialogo as pessoas não se
abrem e o resultado do silencio é a explosão, a ação violenta.
Na medida em que os professores não deixam o aluno se manifestar, impondo, assim,
suas ordens, ele está privando o aluno de exercer sua autonomia ao questionar a atividade
proposta. Deve-se permitir que o aluno expresse-se sua posição, possibilitando assim, ouvir o
que o mesmo tem a dizer antes de simplesmente acatar a ordem. Quando a voz dos alunos
encontra-se atropelada pelas vontades dos professores, demonstra-se que os professores
142

ainda tem muito aperfeiçoar no tocante a ética e moral e sobre o papel da escola no
desenvolvimento da criança para uma educação em direitos humanos.
Sobre o ponto de vista mais psicológico, sabemos da importância de categoria
fundantes como afeto e emoção visando às interações cotidianas. Ou seja, ao modo que
desenvolvemos uma cultura baseada em afeto e interação, estamos abrindo espaço para o
individuo expressar sua autonomia. Analisando dessa forma sociocultural, demonstra-se
novamente a necessidade da escola adotar em sua grade métodos de ensinos voltados para
os direitos humanos, que contribuem para esse pensamento critico proposto.
Ao tratar questões como a autonomia infantil, não estamos querendo falar da
substituição do local de fala. Sabemos que o lugar da criança é na escola, porém, o que está
sendo proposto é justamente um novo modelo de ensino-aprendizagem, que estimulem as
crianças e as envolvam mais em seu aprendizado e dentro da própria sociedade. Sobre
interações entre professores e alunos no âmbito escolar, Manzini, Leite, Cardoso, González e
Branco (2012, p.321) explicam:

A promoção de uma cultura da paz, no ambiente escolar, se inicia e se desenvolve a


partir da qualidade das relações entre os próprios educadores, e entre esses e seus
alunos. Essa construção coletiva da paz dá-se por meio do exemplo e da utilização
de toda e qualquer oportunidade de se conversar, de refletir em conjunto, de sugerir
negociações, e de discutir seriamente questões relacionadas às relações humanas,
ouvindo os alunos com respeito e dando-lhes voz para se posicionarem no debate.

De fato é este diálogo o grande desafio que obstaculiza esta aprendizagem


transformativa dos jovens, não só porque há limites formativos nos professores, mas porque
as dinâmicas estruturantes das escolas não foram preparadas para essa pratica e os alunos
estão imersos em um mundo de muita informação e pouca comunicação. Se desde os
primeiros momentos de escola a criança aprende pelo diálogo tem-se chance de quando
jovem implementar um conteúdo emancipador neste dialogo, uma vez que é na juventude
que está o momento oportuno para a incorporação de valores, adequados ou não a uma
relação construtiva dentro da sociedade.
É notória a importância do jovem na sociedade, sua educação está diretamente ligada
com o que queremos para o nosso futuro como coletividade. Diferentes discussões a cerca de
uma educação adequada estão cada vez mais contribuindo no reforço da necessidade de uma
reestruturação educacional. Ao mesmo tempo em que estamos refém de uma falta de
143

estrutura no âmbito escolar, também notamos certo conformismo daqueles que seriam os
principais responsáveis por essa mudança, e que acabam, por diversos fatores, a negligenciar
a educação dos detentores do futuro corpo social. O jovem representa uma fase de mudança,
tanto para o próprio individuo como para a sociedade. Essas mudanças não devem ser
ignoradas, mas sim trabalhadas, de forma a levar em consideração o potencial transformador
que cada geração tem em suas mãos. Não temos como mapear os pensamentos de indivíduos
com personalidades próprias, mas não devemos ignorar a perspectiva daquele que estamos
ensinando algo que também é bom e justo nos professores, tema este que será abordado no
próximo capítulo.

A educação pacificadora e a perspectiva do jovem

No Brasil, segundo estudos demográficos os jovens está cada vez mais afirmando a
necessidade de um lugar na sociedade, ressaltando sua autonomia e sua capacidade
transformacional e ao mesmo tempo imaginando o futuro. Porém, sabemos que se trata de
uma fase de mudanças, questionamentos e incertezas, onde alguém que compreenda sua
complexidade passa a ser essencial para uma formação adequada.
Em geral as transformações biológicas do ego do jovem se apresentam instáveis e
vulneráveis às pressões pulsionais e às influências externas, sendo altamente suscetíveis aos
fenômenos sociais.à A adolescência é a fase da trajetória de vida onde a pessoa está
abandonando a infância e indo ao encontro da fase adulta e é ali justamente que a escola mais
o atinge produzindo desconfortos incompatíveis com a complexidade biológica.
Por ser uma fase de passagem é uma fase de crise subjetiva, própria de um momento
rico na constituição da identidade, da personalidade. É o estatuto social do sujeito que é
provocada para que ele assuma papeis sociais que não sabem quais, pois vê os melhores
lugares sociais ocupados por sujeitos não exemplares. Estes espaços ambicionados estão
viciados e corrompidos pelo adulto de agora. Este espectro leva a um apelo a reação violenta,
a uma manifestação de indignidade, de incerteza com o futuro.
Mas é no corpo que se centraliza os aspectos das mudanças, onde se sai de si e
procura-se o outro como uma força de necessidade, de busca de satisfação de algo que não
se sabe bem o que é. É a imagem do indivíduo sobre seu corpo, sobre si mesmo e desafios de
144

ter uma linguagem que diga de si, daquilo que se destaca do corpo e vai fazer parte do
imaginário de si e de outros, nem tanto para si e muito para os outros. Buscam exemplares na
mídia, não na escola e nem na família. Desafia as estruturas adquiridas na infância e quer
sustentar outras que ainda não sabe quais.
Concentrado nos ímpetos do corpo, o adolescente se volitiva, se questiona, se sente
inseguro, teme o futuro e, ao mesmo tempo, tem forças físicas desordenadas para enfrentar
tudo, não se aquieta, luta, se excita. As respostas corpóreas o encorajam e lhe dão um
garantia. Perigos lhes rondam, pois não faltam ópios que lhes são oferecidos para criar falsas
coragens. Grande parte da violência na escola vem de alunos comprometidos com grupos fora
da escola que o oprimem no comercio lucrativo do ópio, no capitalismo de pilhagem alienante.
Mais do que consumir ele se compromete com a venda para ter dinheiro para ostentar o
consumismo. Consumismo é outro ópio que atinge indivíduos em todas as idades.
Na rede de linguagens em que indivíduo tão jovem se mostra, na rede de significantes
sociais ele produz diferentes imagens de si, inclusive, assustando professores e pais
conservadores. A sociedade teme o jovem, assim como teme toda a transformação. Ela quer
responsabilizar o jovem pelo futuro dela. Sabe que o adolescente é portador do novo, tem
poderes. O imaginário social estigmatiza o jovem e não lhes reserva lugar. A interação sujeito
e momento social tem na adolescência um momento crucial: o novo ser nada tem de seguro
ou o que lhe apresenta é nada amigável: os elogios ao corpo e ao belo, idealizado por alguns
lugares sociais já ocupados pelos adultos e servindo a objetivos instrumentais (lucro,
comercio, etc.), e, muitas vezes, longe das fontes parentais (familiares).
Neste sentido, no adolescente, o jovem, a imagem do outro é sempre força desviante
e ele se torna anormalizador: se embate com tudo e com todos, principalmente com os pais,
professores e governantes (MORIN, 2002, p.242).
Esta situação, por si só já conflitante. Essa característica de conflito deve ser
conhecida e o professor não querer que a criança e o jovem sejam um adulto. Muitas vezes é
isto que se passa: o professor toma o aluno por ele e não dialoga com a diferença. Afinal, não
estamos tratando de sujeitos já constituídos, mas de jovens em sua formação, rodeados de
questionamentos. Ao passo que se torna um desafio, também representa o momento ideal
para serem trabalhados princípios com valores pacifistas. Ao entender a perspectiva do jovem,
145

facilitasse a aproximação com o mesmo, que muitas vezes acaba respondendo em


enfrentamentos apenas a sua necessidade de ser ouvido.
Uma educação pacifista, baseada nos direitos humanos, não deve ser encarada
visando unicamente resolver os conflitos pontuais, mas vista como mecanismo para refletir
em uma geração que será responsável por mudar os estilos de vida, quebrar tabus
destruidores e moldar as gerações futuras. Sonhamos com um período de paz e esquecemos
que essa é nossa responsabilidade no momento que não trabalhamos o que desejamos para
as futuras gerações. Quando jovens são responsáveis por praticar atos violentos, não devem
ser usado como modelos para toda uma geração, e sim como exemplo de que os referencias
recebidos não foram adequados. O jovem busca atenção, uma cura para suas angustias e
respostas para suas dúvidas, quando se inibe seus impulsos e desejos essa necessidade será
respondida de alguma outra forma. Deve ser reconhecido seu devido protagonismo e ser
levado a sério. Ao compreender a complexidade de um adolescente uma educação para
direitos humanos surge como principal caminho para uma educação que priorize o jovem na
contribuição de uma cultura de paz.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diferentes estudos já abordaram questões referentes à escola e a violência, deixando


bem claro a necessidade de uma reformulação na atual metodologia de ensino. Ao passo que
concordamos que a escola é o lugar social mais importante na criação da vida civilizada,
verificamos que viemos falhando no modo que exploramos seu potencial transformador. A
escola deve ser responsável por expandir os horizontes em todo ser humano, porém, na
medida em que vem sendo sufocada por metodologias ultrapassadas, acaba por não saber
lidar com as violências praticadas no próprio ambiente escolar.
A violência é proveniente de inúmeras razões, como fatores socioeconômicos,
institucionais e culturais. No âmbito escolar, não podemos apenas culpabilizar o aluno,
quando o que observamos é uma mera resposta à violência que fora vivenciada e exercida
anteriormente sobre eles. Violências que na escola são exercidas sem motivos legítimos e
aparentes, apenas como resultado a sua própria realidade. Dentre as principais violências
escolares, destacamos o bullying, uma afronta aos direitos humanos, sendo um grande
146

violador dos princípios de dignidade da pessoa humana, responsável por atenuar angustias de
crianças e adolescentes que por si só já estão cheias delas.
Sabemos que a escola não é o único lugar para a educação, mas onde a educação
cientifica se realiza. Quando não explorado seu potencial educacional, é, ao mesmo tempo,
negligenciado o potencial do jovem, que não encontra meios de exercer sua autonomia.
Estamos falando daqueles que irão moldar as futuras gerações e merecem uma atenção
especial, pois a escola tem tudo a ver com o futuro e menos com o presente. Falta de apoio e
estrutura não podem servir eternamente como bengala para uma instituição com tamanha
responsabilidade e poder de atuação, afinal, sabemos que esses são apenas um dos fatores
que travam a implementação de uma educação que preze pela intolerância, o respeito e a
liberdade.
Uma educação em direitos humanos traria novos métodos de ensino e resolução de
conflitos. Trazendo o diálogo e a aproximação do professor e aluno para dentro das salas de
aula. O jovem está em constante formação e é essencial que nessa fase sejam trabalhados
ideais e princípios pacificadores como mecanismos para efetivar uma cultura de paz. Não
podemos omitir a responsabilidade da família nesse processo, que possui grande influência
nas ações do individuo, em um momento que as escolas vêm influenciando muito pouco na
estruturação da cultura de socialização. A promoção da paz deve ser responsabilidade de
todas as instituições responsáveis pelo futuro da sociedade, encarando o jovem como
protagonista, sabendo que assim como ele precisa ouvir, acima de tudo, precisa ser ouvido.

REFERÊNCIAS

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BRANCO, Angela; FREIRE, Sandra; GONZALEZ, Alia. Ética, desenvolvimento moral e cultura
democrática no contexto escolar. In: BRANCO, Angela; OLIVERA, Maria (Orgs.). Diversidade e
Cultura de Paz na Escola: contribuições da perspectiva sociocultural. Porto Alegre. Editora
Mediação. 2012. p. 21-49.

DIAS, Adelaide Alves. A Escola Como Espaço de Socialização da Cultura em Direitos Humanos.
2015. Artigo acessado em 11-2015 em www.dhnet.org.br/dados/cursos/edh/redh.

FERNANDES, Angela; CASARI, Melina. Educação e Direitos Humanos: Desafios para a Escola
Contemporânea. Campinas/SP. 2010.
147

MANZINI, Raquel; LEITE, Lorena; CARDOSO, Bruno; GONZÁLEZ, Alia; BRANCO, Angela. A
questão do bullying: prevenção da violência e promoção da cultura da paz. In: BRANCO,
Angela; OLIVERA, Maria (Orgs.). Diversidade e Cultura de Paz na Escola: contribuições da
perspectiva sociocultural. Porto Alegre. Editora Mediação. 2012. p. 311-327.

MORIN, Edgar. A Humanidade da Humanidade. Porto Alegre: Artmed, 2002.

SALGADO, João; FERREIRA, Tiago. Educação para paz: uma perspectiva dialógica. In: BRANCO,
Angela; OLIVERA, Maria (Orgs.). Diversidade e Cultura de Paz na Escola: contribuições da
perspectiva sociocultural. Porto Alegre. Editora Mediação. 2012. p. 51-65.

SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente – Contra o desperdício da experiência. São Paulo:


Cortez. 2000.
148

A DECRETAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA DE PARLAMENTAR (DETENTOR DE IMUNIDADE


FORMAL) PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O DIREITO CONSTITUCIONAL E
PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO: UMA ANÁLISE DE CASO COM OLHAR GARANTISTA

José Ricardo Maciel Nerling1


Regina Gütler Carvalho2

RESUMO: A prisão preventiva, embora questionada por diversos juristas brasileiros por sua
afronta ao princípio processual penal da presunção de inocência, trata-se de um instituto
jurídico em vigência no direito brasileiro, utilizado até mesmo pela suprema corte nacional.
Um caso recente (e inédito) envolvendo um senador brasileiro preso preventivamente pelo
Supremo Tribunal Federal - com base na ideia de estado de flagrância - durante o exercício de
seu mandato, coloca em xeque a previsão constitucional de imunidade parlamentar, gerando
um conflito jurídico entre normas e os poderes da República. Mais do que isso, tal decisão,
que se mostrou uma afronta à Constituição Federal de 1988, também demonstra ser um
ataque aos direitos fundamentais que preceituam o Estado Constitucional de Direito e a
democracia.

Palavras-chave: Direito Constitucional; Direito Processual Penal; Prisão Preventiva;


Imunidade Parlamentar; Direitos Fundamentais.

1 INTRODUÇÃO
O presente artigo é fruto de um estudo de caso a partir de uma decisão do Supremo
Tribunal Federal. O método utilizado de pesquisa é o qualitativo (enquanto à abordagem),
aplicado (quanto à natureza), exploratório (quanto aos objetivos), bibliográfico e documental,
por meio da utilização de livros, textos na web e decisões de tribunal (quanto ao
procedimento).
Num primeiro momento, realiza-se um estudo acerca dos aspectos da prisão
preventiva, abordando sua perspectiva legal, doutrinária e crítica. Num segundo momento,
faz-se um estudo em torno da imunidade parlamentar (material e formal), bem como uma
explanação técnica sobre a prisão em flagrante, restringindo o debate a questões de cunho
positivista. Num terceiro momento, realiza-se um levantamento de caso específico, utilizando
a decisão do Supremo Tribunal Federal em relação ao ex-senador da República, senhor

1
Mestrando em Direito no Programa de Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ, beneficiário de Taxa Integral CAPES. Graduado em Direito pela
Universidade Regional do noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ. Advogado OAB-RS. Músico, escritor
e compositor. E-mail: zejosers@yahoo.com.br
2
Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ.
Servidora pública estadual na Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, DPE-RS. E-mail:
regina.gcarvalho@hotmail.com
149

Delcídio Amaral, preso preventivamente pela corte constitucional, por meio de uma decisão
inconstitucional daquela corte. Diante disso, demonstra-se a irregularidade na instrução
daquele processo penal, adentrando, por fim, num debate acerca das garantias fundamentais,
dos fundamentos do Estado Democrático de Direito e da aplicação das normas
constitucionais.

2 Aspectos sobre a prisão preventiva

A prisão preventiva se trata de uma modalidade de prisão anterior ao julgamento do


acusado, a qual está prevista no artigo 312 do Código de Processo Penal. No teor do texto
legal,à o staà ueà aàp is oàp e e ti aàpode àse àde etadaà o oàga a tiaàdaào de àpú li a,à
da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação
daàleiàpe al,à ua doàhou e àp o aàdaàe ist iaàdoà i eàeài dí ioàsufi ie teàdeàauto ia ,àou,à
deàa o doà o àoàpa g afoàú i oàdoà es oàa tigo,àta à pode àse àde etadaàe à aso
de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas
autela es ,àouàseja,àta àseà o stituiàu aàfo aàsu sidi iaàaà edidasà autela esà aisà
brandas.
“egu doà áu à эopes,à essasà edidasà autela esà deà atu ezaà p o essualà uscam
garantir o normal desenvolvimento do processo e, como consequência, a eficaz aplicação do
pode àdeàpe a .à“ oà edidasàdesti adasà àtutelaàdoàp o esso. à ,àp.à .àIssoà ue àdize à
que a prisão preventiva (ou qualquer outra medida cautelar) não é um fim no processo, sendo,
no máximo, uma ferramenta auxiliar ao perfeito andamento do mesmo.
Nas palavras de Fernandes, as medidas cautelares, possuindo caráter meramente
instrumental,
São providências urgentes, com as quais se busca evitar que a decisão da causa, ao
ser obtida, não mais satisfaça o direito da parte, atingindo-se, assim, a finalidade
instrumental do processo, consistente em uma prestação jurisdicional justa. Em
regra, tais medidas dependem da presença de dois pressupostos essenciais: o
periculum in mora [perigo na demora] e o fumus boni iuris [fumaça do bom direito].
(2002, p. 298).

Por outro lado, embora tais institutos sejam uma realidade reiterada – seja na teoria
ou na prática jurídica - existem fortes debates em torno da (in)constitucionalidade da prisão
cautelar, tendo em vista que, segundo alguns juristas, a mesma seria uma infração à
150

presunção de inocência reconhecida pela Constituição Federal em seu artigo, 5º, inciso LVII,
o deà est à es itoà ueà i gu à se à o side adoà ulpadoà at o trânsito em julgado de
se te çaàpe alà o de at ia .àÉàjusta e teà esseàse tidoà ueàa gu e taàGo esàнilho,àpo à
meio da seguinte colocação:

As prisões decretadas anteriormente à condenação, que numa visão mais radical do


princípio [da presunção de inocência] nem sequer poderiam ser admitidas,
encontram justificação apenas na excepcionalidade de situações em que a liberdade
do acusado possa comprometer o regular desenvolvimento e a eficácia da atividade
processual. À luz da presunção de inocência, não se concebem quaisquer formas de
encarceramento ordenadas como antecipação da punição, ou que constituam
corolário automático da imputação, como sucede nas hipóteses de prisão
obrigatória, em que a imposição da medida independe da verificação concreta do
periculum libertatis. (1991, p. 65).

Dessa forma, é preciso haver uma forte vigilância em torno da utilização de medidas
cautelares mais penosas, no intuito de não se permitir que a exceção se torne a regra no
andamento do processo penal brasileiro, buscando evitar que as prisões preventivas sejam
utilizadas como instrumentos de punição anterior ao esclarecimento de todos os fatos
relacionados ao processo, ou mesmo como formas de dificultar a defesa da parte interessada.
De acordo com a doutrina, a prisão preventiva – em termos gerais – se consubstancia
nos seguintes preceitos: 1. A ideia de ordem pública, que é baseada de forma integral na
hipótese de periculosidade do agente. Tal prisão, embora haja necessidade legal de
justificativa, em grande parte das vezes se dá por meio da arbitrariedade do magistrado; 2.
Como forma de cautela instrumental, ou seja, de proteção ao andamento do processo e
proteção das provas – o que, por outro lado, também pode ferir o direito de defesa e 3. Como
cautela final, no sentido de prever a asseguração da lei penal, evitando uma possível fuga do
acusado.

3 Sobre a imunidade parlamentar e a prisão em flagrante delito

O artigo 53 da Constituição da República Federativa do Brasil estabelece uma série de


garantias e (quiçá) privilégios para os parlamentares brasileiros, sendo, conforme a própria
p e is oàfo al,à osàDeputadosàeà“e ado esà[...]ài iol eis,à i ilàeàpe al e te,àpo à uais ue à
deàsuasàopi i es,àpala asàeà otos ,àso e teàpode doàse àjulgadosàpeloà“up e oàT i u alà
151

Federal (§ 1º). Diante disso, a lei constitucional prevê aos membros das câmaras legislativas
federais o direito de livre manifestação (embora com determinados limites) e o chamado foro
privilegiado (que entrega à corte constitucional o dever de julgá-los por seus atos).
A Imunidade Parlamentar possui origem na ideia moderna de divisão dos poderes do
Estado, tendo surgido como uma forma de proteger os parlamentares contra abusos de outros
poderes, dentro da própria tripartição republicana. Dessa forma, a imunidade parlamentar
visa assegurar que os membros dos poderes Executivo e Judiciário não exerçam qualquer tipo
de jugo em torno do livre exercício das prerrogativas dos membros do poder Legislativo, uma
vez que os poderes da República são (e devem ser) independentes entre si, e é justamente
por conta dessa previsão que a lei assegura ferramentas para sua efetivação. Segundo Pinto
Ferreira, existem duas formas de imunidades:

a imunidade material que gera a inviolabilidade [que] tem o sentido de


irresponsabilidade jurídica, pela qual nenhum parlamentar pode ser
responsabilizado, criminal ou civilmente, por suas opiniões, palavras e votos, salvo
as exceções previstas na Constituição (1990, p. 623) [e] a imunidade formal (freedom
from arrest) [que] abrange a prisão penal e a civil. [Com base nesta] o parlamentar
não pode ter a sua prisão decretada nem executada, porque não pode sofrer
nenhum ato de privação de liberdade, exceto o flagrante de crime inafiançável
(1990, p. 624).

Essa segunda forma de imunidade parlamentar é visível por meio do que prevê o § 2º
do mesmo artigo constitucional (artigo 53), onde está positivado que

Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser


presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão
remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da
maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.

Vê-se que, em casos de prisão em flagrante de um parlamentar, os autos devem ser


enviados para a Câmara ou para o Senado Federal (sendo, respectivamente, o caso de um
deputado ou de um senador), para que a própria casa onde exerce seu cargo decida sobre a
confirmação ou não da prisão preventiva.
A prisão em flagrante delito, por sua vez, é um instituto jurídico previsto no artigo 301
e seguintes do Código de Processo Penal. Conforme prevê o artigo 302 do mesmo código,
Considera-se em flagrante delito quem: I - está cometendo a infração penal; II - acaba
de cometê-la; III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por
qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; IV - é
152

encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam
presumir ser ele autor da infração.

Ou seja, a prisão em flagrante é a prisão realizada no momento do ato delituoso.


P essup e,à po ta to,à i ediati idade à eà isi ilidade à doà fatoà deliti o,à oà ualà de eà se à
prontamente cessado. Segundo a Escola Mineira de Processo Penalà ,àoà flag a teà àaà
situação jurídica que autoriza por si só a intervenção em conduta alheia aparentemente
deliti aà o àoàú i oàp op sitoàdeài pedi à ueàge eàtodosàosàseusàefeitos.
Não havendo enquadramento nessas condições de flagrância, o princípio que deverá
orientar o processamento do fato delitivo é a presunção de inocência, que, segundo Salo de
Ca alhoà ,àp.à ,à i p eàaoài t p eteàu aàposiç oàati a,àouàseja,àosàato esàp o essuaisà
devem trabalhar no processo com a crença de que o réu é inocente. Apenas quando todas as
hipóteses defensivas fo e àult apassadasà à ueàaàp esu ç oàde eàse àafastada.
Assim, criar interpretações longínquas do referido dispositivo legal, art. 302 do CPP,
que prevê as possibilidades de flagrância de delito, pode gerar casos em que implique
relativização do princípio constitucional da presunção de inocência.

4 Sobre a decisão de prisão preventiva de senador da república pelo supremo tribunal


federal e considerações sobre o estado de flagrância

É cediço que a prisão preventiva, apesar de ser considerada medida cautelar


excepcional, é utilizada em grande escala em nosso sistema jurídico penal, sendo que, na
maioria das vezes, sem uma rigorosidade nos critérios para a sua aplicabilidade. Análises à
parte quanto ao justo e ao injusto acerca da aplicabilidade da prisão preventiva na realidade
da sociedade comum, o fato que acabou saltando aos olhos dos penalistas foi a prisão
preventiva do ex-senador Delcídio do Amaral (sem partido - MS), ocorrida no dia 25 de
novembro de 2015.
A prisão, autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki, e
confirmada pela Segunda Turma da casa, foi referendada posteriormente pelo Plenário do
Senado Federal, em decisão por maioria, ainda no dia 25 de novembro de 2015.
Essa data ficou marcada como a primeira vez na história em que um Senador da
República, durante o exercício de seu mandato, é preso preventivamente no Brasil. A
153

população em geral, diante de intermináveis escândalos de corrupção, demonstrou


contentamento com a medida (em meio à empolgação acerca da midiática Operação Lava
Jato) sem, contudo, questionar a possibilidade daquela prisão ocorrer, tendo em vista que os
congressistas estão sob o manto da imunidade parlamentar.
Segundo a decisão que determinou a prisão preventiva, a conduta do Senador Delcídio
estavaàe à estadoàdeàflag ia ,à istoà ueàpla eja aàaàfugaàdoàe -diretor internacional da
Petrobrás, Nestor Cerveró, caso houvesse a concessão de habeas corpus pelo Supremo
Tribunal Federal a este. Para conseguir o referido remédio constitucional, o parlamentar teria
dito, de acordo com a acusação e a partir de conversar gravadas, que usaria de sua influência
junto ao Supremo Tribunal Federal, citando nomes dos ministros que poderiam conceder o
pedido. Tratava-se, portanto, de um plano de fuga para o ex-diretor da estatal pelo Paraguai
até a Espanha, país em que este também possui cidadania. De acordo com a manifestação do
Procurador-Geral da República:

A participação de Senador da República em planejamento de fuga de preso à


disposição do Supremo Tribunal Federal constitui situação, além de
verdadeiramente vexaminosa, incrivelmente perigosa para a aplicação da lei penal,
inclusive para outros investigados e réus na Operação Lava Jato. Essa participação
traduz claro componente de incentivo ao curso de ação consistente na fuga: o
respaldo de ninguém menos que o líder do governo no Senado para estratagema
dessa estirpe funciona, potencialmente, como catalisador da tomada de decisão
nesse sentido. (AÇÃO CAUTELAR 4039, p. 169)

É importante frisar que Nestor Cerveró, engenheiro químico, como relatou o


Procurador-Ge al,à à pessoaà deà altíssi aà ele iaà oà o te toà daà Ope aç oà эa aà щato,à
consistindo em ninguém menos que o ex-di eto àdaà eaài te a io alàdaàPet o asà“á. à áç oà
Cautelar 4039, p. 171).
Em resumo, Decídio, junto a outros coautores – mais especificamente o banqueiro
André Esteves e o advogado Edson Ribeiro –, planejava a fuga de Cerveró em troca do silêncio
deste, a fim de evitar que a Operação Lava Jato os alcançasse. Além da fuga, o Senador
prometeu um auxílio financeiro para que Cerveró pudesse viver bem no país de destino.
Diante desse quadro fático, a fundamentação legal do pedido de prisão preventiva pelo
Procurador-Geral da República foi baseada no risco à ordem pública, conforme previsto nos
artigos 312 e 313, inciso I, do Código de Processo Penal. Ademais, os critérios da prova da
materialidade, bem como os indícios de autoria, foram consubstanciados pela gravação
154

ambiental efetuada pelo filho de Nestor Cerveró e de seu depoimento ao Ministério Público
Federal. (AÇÃO CAUTELAR 4039, 2015).
O crime pelo qual foi acusado o ex-senador Delcídio é o de organização criminosa,
previsto do art. 2º, §1º, na forma do §4º, II, da Lei 12.850/2012, qual seja:

Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa,


organização criminosa [...] § 1º Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de
qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização
criminosa. [...]§ 4º A pena é aumentada de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços): II - se
há concurso de funcionário público, valendo-se a organização criminosa dessa
condição para a prática de infração penal.

Esse delito é considerado um crime permanente, ou seja, um ato ilegal cuja


consumação se protrai no tempo, conforme os julgados do Supremo Tribunal Federal, sendo
inafiançável pelo próprio dispositivo legal, argumentos que embasaram a decisão do ministro
da corte constitucional pela prisão preventiva.
Com relação à prova de materialidade (gravação de escuta ambiental), o ministro Teori
Zavascki manifestou-se no sentido de que o Estado desautoriza, por meio do artigo 5º, inciso
LVI, da Constituição Federal de 1988, que sejam utilizadas provas obtidas por meios ilícitos,
o tudo,à aàg a aç oàdeà o e saàfeitaàpo àu àdosài te lo uto esàse àoà o he i e toàdosà
demais é considerada lícita, para osà efeitosà daà aludidaà edaç oà o stitu io al à áÇÃOà
CAUTELAR 4039, p.190). Tal entendimento está de acordo com diversos julgados do STF.
No entanto, de acordo com a Escola Mineira de Processo Penal (2017), a conduta do
filho do ex-diretor de gravar a conversa, sob o auxílio da polícia, poderia ter gerado
questionamentos com relação à consumação do delito, já que a súmula 145 do STF prevê que
oà h à i e,à ua doà aà p epa aç oà doà flag a teà pelaà polí iaà to aà i possí elà aà suaà
o su aç o .
Quanto à aplicação de outras medidas cautelas, o Procurador-Geral da República,
manifestou-se no sentido de que:

Outras medidas cautelares menos gravosas afiguram-se insuficientes: o Senador


Delcídio Amaral e o banqueiro André Esteves são pessoas poderosas e influentes nas
respectivas esferas de atuação e têm o interesse comum em evitar que a Operação
Lava Jato as envolva. Não há dúvida de que, fora do cárcere, os dois seguirão
dispondo de multiplicidade de meios para condicionar resultados da investigação e
da aplicação da lei penal, como concreta e demonstradamente tentaram fazer no
caso de Nestor Cerveró. (AÇÃO CAUTELAR 4039, p. 173)
155

A problemática central desse caso, no entanto, figura-se no fato de que o Senador


Delcídio Amaral era detentor da imunidade parlamentar prevista no art. 53, §2º da
Constituição Federal de 1988, já estudada acima, a qual consiste na proibição da prisão de
congressista, salvo em caso de flagrante crime inafiançável. Ou seja, não há qualquer previsão
legal ou constitucional de prisão cautelar para parlamentar em exercício.
O Procurador-Geral da República, contudo, tornando parciais em seus escritos até
mesmo os direitos fundamentais nos quais se constitui e se fundamenta a própria existência
do Estado, argumentou no sentido de que tal preceito não pode ser analisado de maneira
absoluta e que, entretanto, deve ser relativizado:

O tom absolutista do preceito proibitivo de prisão cautelar do art. 53, §2º, da


Constituição da República não se coaduna com o modo de ser do próprio sistema
constitucional: se não são absolutos sequer os direitos fundamentais, não faz sentido
que seja absoluta a prerrogativa parlamentar de imunidade à prisão cautelar. Essa
prerrogativa, embora institucional, é de fruição estritamente individual e, lida em
sua literalidade, assume, na normalidade democrática do constitucionalismo
brasileiro, coloração perigosamente próxima de um privilégio odioso. (AÇÃO
CAUTELAR 4039, p.177)

De acordo com juristas, em análise geral acerca do posicionamento do Ministério


Público,

Entende a Procuradoria Geral da República que é possível a prisão de congressista


no curso do mandato desde que: a) haja clareza probatória do cometimento de um
crime que se aproxime de uma prisão em flagrante; b) e estejam presentes os
requisitos autorizadores do art. 313 do Código de Processo Penal, que regula a prisão
preventiva em geral. Ainda, assevera que decorre tal possibilidade do poder geral de
cautela que é ínsito ao poder de julgar. (BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco.
BACHA E SILVA, Diogo. OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de., 2015)

Diante disso, salta aos olhos o entendimento do órgão acusador no sentido de que a
proibição da prisão preventiva de parlamentar em exercício não pode ser absoluta, assim
como não são absolutos (conforme sua própria declaração) nem mesmo os direitos
fundamentais!
Tal afirmação, que necessariamente gera vários questionamentos em torno da
efetivação dos Direitos Humanos e das garantias constitucionais, assim como da atuação do
Ministério Público contemporâneo, é de uma gravidade sem precedentes, visto que o próprio
156

procurador-geral da República (enquanto membro de uma instituição que tem por função
central defender os direitos basilares dos cidadãos) assume – e leva a cabo – a fragilidade dos
direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito, levando a crer, em outras palavras,
que a exceção – enquanto relativização dos direitos fundamentais e outros direitos previstos
na Constituição Federal – deve virar regra.
Esse posicionamento de desrespeito à Constituição Federal e suas garantias
fundamentais coloca em risco até mesmo a ideia de democracia, uma vez que os direitos do
Estado têm como chão os próprios direitos individuais (ainda nos pressupostos
jusnaturalistas) da pessoa humana, sendo impossível dialogar sobre a ideia de Estado sem
andar ao lado da ideia de Direitos Fundamentais. Diante disso, de acordo com o professor
garantista Alfredo Copetti Neto:

A fundamentação [...] garantista [...] encontra seu âmago na ideia de estado para os
direitos, em que o espaço daqueles direitos compreendidos como vitais assume a
conotação essencial do estado, [...] em que todos os homens são desses os únicos
titulares, o que acaba [...] por subscrever e direcionar a democracia,
substancializando–a contra restaurações e repressões que tendencialmente visem à
instrumentalização e/ou à subversão do conjunto de garantias constitucionais que
são destinadas à proteção da igualdade de todos em direitos – fundamentais. [...] a
democracia encontra na natureza rígida das constituições contemporâneas, cujo
estabelecimento se dá, especialmente, por conta da igual titularidade de todos em
relação aos direitos fundamentais – individuais e sociais –, a sua fonte de legitimação
su sta ialà ueàdete i a:à oà ueà oàpode ,àouàseja,àosàli ites,àe àfunção de sua
legiti aç oà su sta ialà egati a;à oà ueà oà podeà o ,à ouà seja,à osà í ulos,à e à
função de sua legitimação substancial positiva, aos conteúdos de toda a produção
jurídica. (2016, p. 43-44)

Dessa forma, vale dizer que o fato da Constituição Federal determinar os limites da
atuação do poder judiciário sobre um membro do poder legislativo, também é uma garantia
fundamental importante, tanto quanto qualquer direito que se estenda aos outros homens,
vez que essa igualdade é um pressuposto do Estado Constitucional de Direito, fundado na
ideia de democracia e na força normativa da constituição. Diante disso, ainda nas palavras de
Copetti Neto, a

democracia substancial avoca – como a razão social do estado e do direito [...] a


garantia dos direitos fundamentais primários de liberdade e dos direitos sociais – o
caráter normativo e projetivo – e não somente descritivo –, todavia também interno
– e não mais externo – de todo o sistema jurídico para o qual se encontra legitimada.
[...] O pacto institucional que fundamenta o paradigma do estado constitucional se
mostra destinado, assim, em virtude da sua legitimação substancial, à garantia dos
157

direitos fundamentais. Portanto, é o caráter substantivo do verbo garantir que o faz


responsável, não somente por evidenciar as inter-relações estabelecidas pelo
reconhecimento formal de direitos, no entanto, especialmente, por promover as
condições materiais necessárias para a sua realização e atuação. (2016, p. 43-44)

Desta feita, percebendo-se que os argumentos que embasam a decisão pela prisão do
Senador são o estado de flagrância, considerando o referido crime como permanente e
inafiançável, e a relativização da regra constitucional da imunidade parlamentar contra prisão
cautelar, é visível, de forma ainda mais especial, a agressão aos preceitos constitucionais que
fundamentam o Estado brasileiro.
Diante da decisão, vale a crítica até mesmo no sentido de que a própria competência
para decidir a prisão em casos como o presente – o Supremo Tribunal Federal – está
equivocada, tendo em vista que a determinação de prisão de senador da República, conforme
prevê o artigo 53, § 2º, da Constituição Federal, se trata de uma atribuição exclusiva do Senado
Federal. Destarte, importa ressaltar que

O juízo natural para o controle processual da legalidade e da constitucionalidade da


prisão em flagrante de senador, segundo a Constituição, é o Senado, casa legislativa
a que vinculado, não o STF. Falta ao STF competência para exercer esse controle,
embora possua a competência de processar e julgar o caso penal que envolva
parlamentares federais por crimes comuns (artigo 102, I, c, da CRFB). (ESCOLA
MINEIRA DE PROCESSO PENAL, 2017).

Nesse sentido, se houvesse qualquer possibilidade legal e constitucional de se realizar


prisão cautelar de parlamentar, o órgão competente não seria o STF, mas o Senado Federal,
sob pena de usurpação da atribuição da referida casa legislativa. (ESCOLA MINEIRA DE
PROCESSO PENAL, 2017).
Outro ponto que merece destaque é o fato da Segunda Turma do Supremo Tribunal
Federal ter referendado decisão do ministro Teori Zavascki sem enfrentar o fato de que alguns
ministros daquela Turma haviam sido citados pelo ex-senador como meios de garantir que o
plano de fuga alcançasse êxito, no caso, para a concessão do habeas corpus. Nesse sentido,
só esse fato eivaria de imparcialidade o julgamento daqueles que foram citados pelo ex-
senador. (BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. BACHA E SILVA, Diogo. OLIVEIRA, Marcelo
Andrade Cattoni de, 2015).
O renomado jurista Lenio Streck (2017), por fim, entende que o Supremo Tribunal
нede alàassu iuàu aàpostu aàdeà da à o eà sà oisas ,àdia teàdessaàde is o,àte doàe à istaà
158

que nunca houve prisão cautelar de parlamentar em exercício do mandato. O questionamento


que fica é com relação à repercussão dessa decisão referendada pelo Senado nas decisões
futuras. Segundo ele, o próprio Procurador-geral da República realizou um pedido contra
legem (contra a lei), pois não há previsão legal de prisão cautelar de parlamentar, e que, se o
STF tivesseàfeitoàu aàa liseà aisà o todo a ,àte iaà ejeitadoàoàpedido.àOàe te di e toàdeà
Streck é de que o Supremo assumiu um papel de dar nome aos casos inusitados e protagonizar
o oà edidaà doà di eito ,à assi à o oà P ot go asà afi ouà ueà oà ho e à à aà edidaà de
todasàasà oisas ,ài depe de teàdoàp eçoà ueàtaisàatosàpossa à usta à à‘epú li a.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Independente das questões fáticas em relação ao proceder do parlamentar do caso


em tela, às quais os juízos de valores se restringem unicamente ao processo judicial a que o
mesmo responde, ou mesmo o clamor público que reclama por medidas de combate à
corrupção a qualquer custo, por mais que isso possa custar direitos importantes para a
civilidade, é perfeitamente possível encontrar falhas procedimentais no transcorrer do
processo discutido no presente artigo.
De forma muito especial, fica demonstrado que há – mais do que uma ilegalidade –
uma forte inconstitucionalidade na prisão de um parlamentar no gozo de seu direito de
imunidade formal pelo Poder Judiciário, uma vez que, de acordo com norma da Constituição
Federal de 1988, cabe somente à casa onde serve o respectivo legislador decretar sua prisão
preventiva, em respeito às normas instrumentais de garantia do andamento do processo
penal.
Contudo, também chama a atenção o fato de a Procuradoria-Geral da República
colocar em xeque o absolutismo dos direitos fundamentais garantidos por meio da
Constituição Federal, uma vez que são justamente os direitos naturais – positivados nos
direitos individuais fundamentais – que consubstanciam a própria existência do contrato do
Estado. Destarte, não há como dizer que há Estado sem a proteção da Constituição e dos
direitos fundamentais, o que demonstra que o estado democrático de direito brasileiro ainda
sofre ataques em sua essência, nos colocando à margem de um estado de exceção, onde os
159

poderes da República ultrapassam seus limites de atuação e ferem as liberdades dos


indivíduos e dos demais poderes.

REFERÊNCIAS

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. BACHA E SILVA, Diogo. OLIVEIRA, Marcelo Andrade
Cattoni de. Empório do Direito. O Caso Delcídio – Imunidades parlamentares e princípio da
separação de poderes no Estado Democrático de Direito: Breves comentários a partir da
decisão do STF na Ação Cautelar n. 4039. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/o-
caso-delcidio-imunidades-parlamentares-e-principio-da-separacao-de-poderes-no-estado-
democratico-de-direito-breves-comentarios-a-partir-da-decisao-do-stf-na-acao-cautelar-n-
4039-por-alexandre/> Acesso em: 5 maio 2017.

BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm>. Acesso em: 6 maio 2017.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 6 maio
2017.

BRASIL. Lei Nº 12.850, de 2 de agosto de 2013. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm> Acesso em: 9
maio 2017.

CARVALHO, Salo de. As presunções no Direito Processual Penal estudoàp eli i a àdoà estadoà
deà flag ia à aà legislaç oà asilei a .à I :à BONTáTO,à Gilso à o g. .à P o essoà pe al:à leitu asà
constitucionais. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003.

COPETTI NETO, Alfredo. A Democracia Constitucional: Sob o Olhar do Garantismo Jurídico.


Florianópolis: Empório do Direito, 2016.

ESCOLA MINEIRA DE PROCESSO PENAL. A história do senador preso indevidamente por


ordem do Supremo. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-dez-03/historia-
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FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 3. ed. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2002.
FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição Brasileira. 2. ed. Artigos 22 a 53. São Paulo:
Saraiva, 1990.

GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo:
Saraiva, 1991.

LOPES JUNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da


instrumentalidade garantista. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
160

MOREIRA, Rômulo de Andrade. ROSA, Alexandre Morais da. Empório do Direito. Para (não)
entender a prisão de um Senador pelo STF. Disponível em:
<http://emporiododireito.com.br/para-nao-entender-a-prisao-de-um-senador-pelo-stf-por-
romulo-de-andrade-moreira-e-alexandre-morais-da-rosa/>. Acesso em: 9 maio 2017.

SENADO NOTÍCIAS. Senadores decidem manter prisão

STRECK, Lenio Luiz. O nome que o STF dá é o nome que fica? Eis o busílis do caso Delcídio!
Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-dez-03/senso-incomum-nome-stf-fica-eis-
busilis-delcidio> Acesso em: 5 maio 2017.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Cautelar 4039. Disponível em:


<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Acao_Cautelar_4039.pdf>
Acesso em: 26 abril 2017.
161

DESIGUALDADE DE GÊNERO: A (IN)EFETIVIDADE DO DIREITO PENAL BRASILEIRO NA


PROTEÇÃO DA MULHER

Carla Cristiane de Castro1


Natalia Letícia Mendonça2
Dhieimy Quelem Waltrich3

RESUMO: A República Federativa do Brasil é contemplada com a diretriz do código penal de


1940, representando a expressão máxima de repressão às transgressões dos valores
dispostos. Contudo, nota-se que tais normas estão impregnadas de égides do sistema
patriarcal e machista em plena contemporaneidade. Por conseguinte, há uma distinção com
relação a abordagem de gênero nas leis e a garantia de seus direitos. Visto isto, é fundamental
retomar o contexto histórico penalista que culminou no cenário atual, destacando as lutas
travadas pelas mulheres em busca da estabilização social dos gêneros na demanda de uma
sociedade justa e igualitária. Portanto, o presente trabalho expõe conhecimento de extremo
mérito social, abarcando a discriminação de gênero em âmbito penal, procurando erradicar
as desigualdades entre homens e mulheres.

PALAVRAS-CHAVES: Desigualdade; Direito Penal; Gênero; Mulher; Violência Doméstica.

1 INTRODUÇÃO

O referido trabalho traz como temática a discriminação de gênero sob a luz do direito
penal assim como seu processo gradual de construção no contexto histórico até seu estado
na sociedade contemporânea, abarcando desde os tempos antigos até a situação atual no
século XXI, assim compreendendo as diversas mudanças, de progressos a falta de efetividade,
de proteção à mulher no cenário penal brasileiro.
Embora a visibilidade feminina no complexo penal tenha progredido ao longo dos
anos, ainda é marcada por discrepâncias. Tais contrastes se devem ao fato de que o sistema
social fundamentado na égide patriarcal e machista impõe uma resistência histórica. Relata-
se que nos primórdios dos tempos, ainda na idade antiga, filósofos como Aristóteles e
Demócrito pregavam a conduta de subordinação à mulher. Esta se consagrou na Idade das

1
Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. E-mail:
carla_castro200@hotmail.com
2
Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. E-mail:
natalia.leticia@hotmail.com
3
Professora do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul- Unijuí, Mestre em Direito- UNISC. Doutoranda em Ciência Jurídica- UNIVALI. Advogada. E-mail:
dhieimy@yahoo.com.br
162

Trevas, precipuamente no movimento de caça às bruxas e nos ditames bíblicos quanto à


submissão feminina.
Apresenta-se a mulher como figura degenerada e criminosa nas primeiras
codificações, pois estas seriam as causas dos males contra a humanidade, através de condutas
como a da prostituição e sedução. Mesmo com o advento da Revolução Francesa com seus
princípios de equidade social não se equiparou homem e mulher, pois a figura feminina
dotada de orientações revolucionárias era vista com maus olhos ao se distinguir do
estereótipo de personagem doméstica e submetida. A diferença exposta é que a mulher passa
a ser descrita como vítima – contudo, apenas se alcançar certos requisitos, como a expressão
ho esta .à
Ressalva-se que estas rotulações concernentes ao gênero feminino encontram-se
arraigadas na sociedade no decorrer de toda a sua evolução histórica refletindo no panorama
atual, seja em questões culturais, econômicas, sociais ou políticas, como no Direito,
essencialmente no viés penal, que é caracterizado por seu feixe coercitivo, de poder. Portanto,
é inevitável que as codificações jurídicas, comumente, tragam referências acerca da imagem
da mulher refletida conforme a sociedade reproduz esta, através da cultura e o direito de
determinados momentos históricos. Objetiva-se, deste modo, explanar alguns dos discursos
que legitimaram a emergência destas rotulações ocupadas pelas mulheres junto ao direito
penal, bem como da figura da mulher emancipada que progressivamente ganha espaço nas
discussões criminológicas ao buscar a garantia de seus direitos.
Com base nas abordagens vistas, trazem-se os avanços quanto à visão referente ao
gênero feminino perante o direito penal, com leis de maior repressão a violência doméstica,
como a lei 11.340 de 2006, denominada lei Maria da Penha. Todavia, ressalta-se, esta luta por
empoderamento feminino contra a sociedade baseada no alicerce patriarcal e de organização
machista está longe de findar, permanecendo em progresso até o almejado equilíbrio social
entre gêneros, ainda desconhecido no Brasil.

2 Período medieval: as concepções morais como influenciadoras do tratamento social


despendido às mulheres

Precedente à perfectibilização de uma ciência de cunho criminal que se ativesse


ao crime, a pessoa do criminoso e a motivação do cometimento de comportamentos
163

desviantes, houve a tipificação de condutas baseadas na ordem moral e na principiologia


conservadora, imposta à época pela hegemonia da Igreja Católica.
A Inquisição, sistema punitivo instituído na Idade Média por volta dos séculos XIII e
XIV, consagrou uma forma de repressão, principalmente, à figura feminina que atentasse
contra a ordem moral e política alicerçada pela Igreja – a mulher era sentenciada como bruxa4
-. A respeito, o documento intitulado Malleusmaleficarum5, desenvolvido à época, segundo
SANTOS; LUCAS (2015, p.18):

[…]à Aconselhava a submeter a tormento todas as suspeitas de bruxaria. Se


confessavam, mereciam fogo. Se não confessavam, também, porque só uma bruxa,
fortalecida pelo amante, o Diabo, nas festas de feiticeiras, conseguiria resistir a
semelhante suplício sem abrir a boca.

Além do mais, ainda segundo o referido documento, a mulher, advinda de uma costela
curvilínea, se contraporia à figura homem, dotado de postura vertical. Em virtude de tal
característica, era dotada de menor fé, mais fraca perante o homem em relação a isso, e,
portanto, propícia a ofender o Criador.
Uma ordem pautada no ideal de família, de uma moral cristã, que unida a tantos
fatores sociais vigentes na época colaboraram para a dicotomia, herdada até os dias atuais,
entre homem e mulher, o que é ou não feminino. Embora a ciência tenha rompido com a
Igreja, a moral cristã relacionada à sexualidade permaneceu nas entrelinhas, facilmente
percebida nos discursos criminológicos. Discursos estes, que fizeram uso também do discurso
médico e psicanalítico acerca da sexualidade e das diferenças entre masculino e feminino,
sendo transmitido entre gerações e participando da formação cultural assimétrica que impõe
estereótipos relacionados a papéis sexuais (SILVA, 1983 apud MARTINS, 2015, p. 114).

4
ásà açasà sà u as,à o fo eàй e so à“a tiago,àe a à ondas regulares de perseguições motivadas pela crença
geral do povo, que entendia ser necessário localizar e punir bruxas que praticavam ou supostamente praticavam
ituaisà e ot i os .à áti giaà esse ial e teà asà ulhe es,à pois,à segu doà oà i sà atoli ista,à se ia à asà figu asà
femininas seres deturpados, partindo da ideia de que foi Eva quem turvou a visão racional de Adão ao morder a
maçã no paraíso. Destaca-se como um período de intensa subjugação da mulher.
5
O documento Malleusmaleficarum (traduzido para o português como Martelo das feiticeiras) representa o
primeiro modelo integrado da Criminologia e Direito Penal. Concebido durante o século XV, representou um
manual destinado aos Inquisidores, voltado a identificar e processar as mulheres acusadas de bruxaria.
164

2.1 A figura da mulher da antiguidade à primeira metade do século XIX

É comum ao estudar a sociedade antiga grega encontrá-la como uma das mais
evoluídas a seu tempo, pregando igualdade e poderio popular pelas suas ágoras. Contudo, o
que se mantêm calado é o viés essencialmente machista que esta disseminava. Através de
estudos como os de Aristóteles vê-se quão inferiorizada era a mulher. Conforme o filósofo, a
idade é relativa, pois independentemente desta, a mulher sempre se mantém inferior ao
homem. Assim, o elo feminino não tinha a capacidade racional do eixo masculino, estando
sujeita a sua sina de obediência.
Posteriormente, Demócrito apresentou os mesmos ideais, entre 460 a.C e 370 a.C. Este
classificou a mulher com o simples objetivo de satisfação carnal masculina. Condenava o que
chamava de ginocracia, o que definia como mulheres exercendo o governo que deveria
apenas ser destinado aos homens. É notável a ignorância de ambos e, principalmente, o cerne
machista de tais pensamentos.
Séculos depois, com a ascensão do capitalismo e o consequente surgimento de um
sentimento voltado à proteção patrimonial, destacou-se a concepção jurídico criminalista de
um grupo de juristas e filósofos em prol dos direitos humanitários contra as penalizações
corporais, típicas dos períodos anteriores. Emerge, nesse momento, um sistema punitivo no
qual o patrimônio e a moral viam-se tutelados por meio das leis penais. Grande parte das
codificações ocidentais inspirou-se nesse modelo. A mulher neste cenário ganhou tratamento
e destaque igual ao despendido ao homem. O que se observava eram as diferenciações
concernentes apenas à tipicidade do crime. Assim, o tipo legal da prostituição era atribuído
exclusivamente à figura da mulher.
Na Europa, no mesmo período, disseminou-se nos códigos a criminalização da
vagabundagem, homossexualidade e prostituição. Deste modo, se pode afirmar que a figura
da prostituta como degenerada moral e criminosa é a primeira referência feminina de
destaque nas codificações.
É nesse contexto que se legitima a concepção da família como instituição repressora,
uma vez que o discurso das autoridades da época explicitamente recomendava que os pais
deveriam cuidar das filhas que trabalhassem fora, pois nesses ambientes, por não serem em
165

uma totalidade decentes e em conjunto com a desestrutura familiar ou decepção amorosa


que porventura se desse, poderiam levá-las à prostituição.

2.2 A figura da mulher da segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX

Como se viu, no momento em que eclodiu o capitalismo no século XVIII, houve a


tipificação em massa dos crimes patrimoniais, buscando, sobretudo, proteger os interesses da
burguesia. A partir do século XIX, no entanto, se buscou intensificar o controle social a partir
da delegação de estereótipos, assim, se designava quais grupos temer e dos quais se proteger.
Nesse dado momento, os crimes passaram a ser justificados pela existência de tendências
biopsicossociais voltadas ao cometimento de delitos. Tal característica ressalta-se, se
desenvolvia somente nas classes menos abastadas. Assim, a mulher com maiores
probabilidades de adentrar na vida criminosa era aquela que possuía um germe criminoso
dentro de si. De degenerada moral a figura da mulher na criminologia passou para uma
anormal pertencente às classes subalternas.
áà‘e oluç oàн a esaà a ouàoàidealàdeà igualdade,àli e dadeàeàf ate idade ,àte doà
mulheres e homens lutando para o reconhecimento de seus valores. Entretanto, a realidade
destas não se alterou. A mulher revolucionária era vista com maus olhos pela maioria,
reforçando o estereótipo de que a mulher ideal seria aquela voltada à vida doméstica, que
não deixava o lar para ir às ruas, mantendo-se submissa e provida de feminilidade6.
Surge também a figura da mulher vítima, esta vinculada à imagem da mulher honesta
e dependente do homem. A mulher que, embora cometa crimes, é vítima, apresenta-se tanto
nas alegações dos advogados de defesa quanto nos próprios códigos que instituem como
atenuantes de penas questões fisiológicas e psicológicas. Independente do crime cometido,
seja por legítima defesa, furto, tráfico de entorpecentes, receptação ou estelionato, as
mulheres são postas em um papel de vítima e extrema ingenuidade, desempenhando, na
grande maioria dos casos, o papel de cúmplice do homem.

6
Rousseau, filósofo que teve seus valores como bases para os ideais da Revolução Francesa pregava a
importância da igualdade – porém exclusivamente entre homens. Conforme Jean Rousseau (apud SOUZA, 2014,
p.à à Qua doà aà ulhe à seà uei aà daà i justaà desigualdadeà ueà oà ho e à i p e,à oà te à az o;à essaà
desigualdade não é uma instituição humana ou, pelo menos, obra do preconceito, e sim da razão: cabe a quem
aà atu ezaàe a egouàdoà uidadoàdosàfilhosàaà espo sa ilidadeàdissoàpe a teàoàout o .
166

Não obstante a figura da criminosa-vítima, o código penal brasileiro instituiu a figura


da mulher vítima de crimes, vulnerável, e, portanto, carecedora de proteção. Nesse escopo,
tipificam-se os crimes concernentes à violação da sexualidade, a exemplo da época, tem-se
como crimes o abuso sexual, a sedução e o rapto. Salienta-se, no entanto, que a tutela legal
atingia tão somente a mulher dita honesta.
A exemplo, o crime de sedução que era tipificado no artigo 217 do Código Penal
(revogado apenas em 2005) procurava proteger a castidade feminina, ou seja, sua virgindade,
sendo nesta disposição classificada como menor de 18 e maior de 14 anos. Dispunha o sentido
de que a mulher seria uma figura mais vulnerável a esta violação no sentido de sua
inexperiência, ingenuidade e desmedida confiança.
Este preceito consolidava a visão machista sobre a ideia de que a mulher encontrava-
se em situação de inferioridade perante o homem, pois era incapaz de assimilar os mesmos
valores ético-sociais que aquele, sendo inocente quanto às relações sexuais e condutas
providas desta. A confiança referida ainda deliberava quanto à compreensão de que a jovem,
ludibriada pela figura masculina, cederia sua virtude em prol dos sentimentos, crendo nas
boas intenções do outrem – esta jovem, entretanto, já não era vista como ingênua, tendo seu
ato justificado somente pela incapacidade de seu sexo de discernir a má-fé do agente.
Visto isto, faz-se imprescindível asseverar que, em verdade, o que se tutelava era a
sexualidade feminina, resultado da inserção de uma cultura moral retrógada,
institucionalizada no seio familiar antes mesmo de ser objeto legislativo.
Nesse viés, o direito atua de forma parcial ao proteger, tão somente, os direitos
daquela figura de comportamento esperado e desejado pela sociedade. Julga-se, nesta
concepção, o autor do crime de acordo com o comportamento de sua vítima. A figura da
mulher vítima, portanto, não representa a institucionalização da preocupação do Estado como
os seus direitos, mas com o desejo intrínseco de dominação deste corpo e desta subjetividade.
Nesse sentido, BORGES (2011, p. 18-19) preceitua que:

Todas essas constatações confirmam a existência do sentimento patriarcal que


perdurou ao longo do tempo na sociedade e, indubitavelmente, contaminou os
ordenamentos jurídicos no Brasil. É por essa razão que se comprova ligação existente
entre o controle social informal e o controle social formal. A família, a Igreja, a mídia
e a opinião pública tratavam as mulheres como sexo inferior, e o Código Penal de
1940 reproduziu essa visão, ausente de conteúdo humanístico.
167

Corrobora, ainda, Miguel Reale Júnior (1983, p.184 apud BORGES, 2011, p. 19) que a
ulhe à doà C digoà Pe al à à oà opostoà daà ulhe à eal ,à ouà seja,à ulhe à ati aà oà o te toà
social, político e econômico, dotada de sensibilidade diversa.

3 Violência sexual: a construção histórica dos estereótipos de dominação masculina no


âmbito jurídico brasileiro

A violência sexual, em seu cerne, está vinculada a ocorrência dos tipos legais do
estupro e do atentado violento ao pudor, consagrando-se como violência de gênero.
Tem-se, como fator propulsor da incidência dessas espécies criminais a cultura
arraigada no seio social da dominação masculina sobre o feminino. O ato sexual, não difere,
sendo concebido como uma forma masculina de dominação, de apropriação, de posse de um
corpo feminino sexualmente subordinado. A construção desse estereótipo de inferioridade é
o eixo estruturante do ato sexual não consentido. A mulher, nesse cenário, é vista como objeto
sexual, despida de sua posição de sujeito de direitos.
Nilo Odália (185, p. 23 apud BORGES et al, 2011, p. 17) adverte que, muitas vezes, um
ato violento pode passar despercebido, maquiado como comportamento natural. Verifica-se
a existência de mecanismos que legitimam tais ações, pois fazem a prática cotidiana violenta
integrar as relações sociais. Este discurso que, por vezes, é social e juridicamente aceito,
deposita a culpa pelo ato, na maioria das vezes, na própria vítima.
Ainda que o Brasil compute mais de quatorze mil ocorrências de estupro por ano,
estudos realizados demonstram que somente 10% dos crimes praticados são denunciados
pelas mulheres vítimas. A estatística acima corroborada decorre, na grande maioria dos casos,
das dificuldades vivenciadas para a comprovação do ato sexual quando da instauração de um
processo criminal. Outro fator justificante é a incerteza da punibilidade. Pesquisas tem
revelado que os agentes jurídicos se utilizam de estereótipos de gênero para desacreditar,
desestimular e intimidar a vítima. Nesse sentido, quando o acusado é conhecido da vítima, é
prática comum à defesa apropriar-se do argumento de que muitas mulheres, sob
determinadas circunstâncias, se utilizam da denúncia como forma de vingança, como a
exemplo, não haver aceitado o término de um relacionamento.
áà l gi aà ju ídi aà t a alhaà at a sà doà t i ioà o po ta e toà ade uado/à
edi ilidade/ e dade ,àsegu doàoà ualàseàesta ele e àpad esàdeà o po ta e tosàso iaisà
e sexuais como possíveis parâmetros à verdade. Têm-se, portanto, que apenas determinados
168

tipos de mulheres podem ser vítimas e somente alguns tipos de homens podem atuar como
agressores. A partir disso, é que se caracteriza a violência sexual como uma necessidade
natural e instintiva masculina, e se passa a buscar no agressor comportamento de
anormalidade e perversidade.

3.1 O tratamento jurisdicional brasileiro concernente aos crimes sexuais

O agravamento penal nos casos de estupro e de atentado violento ao pudor – que por
meio de sua inclusão na lei dos crimes hediondos, além de aumentar a pena em ambos os
casos para de seis a dez anos de reclusão impossibilitou o recurso em liberdade – reitera essa
pe spe ti aà doà estup oà o oà i eà p ati adoà po à u à ho e à pe e so ,à ueà de eà se à
excluído do convívio social.
Não há, atualmente, na legislação pátria um entendimento acerca da violência sexual
como uma violência de gênero, decorrente das desigualdades econômicas, sociais, políticas e
culturais historicamente impostas às mulheres. Em virtude disso, a discriminação de gênero é
adotada nas próprias práticas institucionais.
Corrobora-se precedente jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça do estado do
Rio Grande do Sul, julgado no ano de 2004, e que versa a respeito da incidência ou não da
tipificação do crime de estupro, quando, dada uma relação conjugal, o marido se utiliza do
emprego de violência ou grave ameaça para constranger a mulher à pratica de relações
sexuais.

EMENTA: PENAL. CRIME CONTRA OS COSTUMES. ESTUPRO. EXTINÇÃO DA


PUNIBILIDADE. O restabelecimento da sociedade conjugal pré-existente entre
ofendida e o agente do delito constituiu-se, a partir da interpretação analógica in
bonan partem do artigo 107, inciso VII, do Código Penal, causa extintiva da
punibilidade. Decretaram extinta a punibilidade. Unânime. (Apelação Crime Nº
70009464470, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luís
Gonzaga da Silva Moura, Julgado em 06/10/2004)

Sobre o tema, tem-se que, doutrinadores mais conservadores, como Nelson Hungria e
E. Magalhães Noronha entendiam que tal situação não se enquadrava no ilícito penal do
estupro, vez que, para tal, a cópula deveria se dar fora do casamento. Perfectibilizado o
169

matrimônio se entendia que a relação sexual era constituída sob a forma de exercício regular
de direito, sendo, portanto, dever recíproco dos cônjuges.
Exemplo de discriminação se vislumbrava na tipificação do crime de atentado violento
ao pudor mediante fraude, no qual apenas poderia figurar no polo passivo a mulher vista
como sendo honesta perante a sociedade. Outra nomenclatura machista pertinente ao Código
Pe alàdeà àe aàaàdosà C i esà o t aàosà ostu es .àPauloàC sa àCo aàBo gesà ,àp.à
164 apudàBO‘Gй“,à ,àp.à àe pli aà ueàaàde o i aç oà ostu es à o espo diaà à o alà
pú li aàse ual . Faz-se, portanto, imprescindível na esfera penal uma reforma para a inclusão
de especificidades nos crimes sexuais. A última alteração penal, no Brasil, com o advento da
Lei n. 12.0157,àdeà àdeàagostoàdeà ,à eti ouàosàte osà ulhe àho esta ,à ulhe à i ge à
eà C i esà o t aàosà ostu es àdoàC digoàPe al,àsu stitui doàesteàúlti o,àpelaàde o i aç oà
C i esà o t aà aà dig idadeà se ual ,à u aà ezà ue,à o à osà a a ços obtidos no campo da
igualdade de gênero, ainda que insuficientes, promoveram sua inaplicabilidade jurídica.
Mas, por enquanto, têm-se redirecionado as atenções à violência doméstica e familiar,
que vem despertando grande visibilidade social no Brasil e em vários outros países da América
Latina, América do Norte e Europa.

4 Violência doméstica: a deficiência legislativa estatal no âmbito familiar

Corroborando Chauí (2013, p. 4 apud HAUSER e WEILER, 2015, p.5) a sociedade


brasileira é profundamente violenta, marcada pelo seu passado, isto porque é essencialmente
hierarquizada em seus aspectos, baseando suas relações sempre em um elo superior, que
ordena, e um inferior, que obedece. Esta é o fundamento da cultura patriarcal e machista que
subjuga a mulher ao papel de subordinação, transmitindo de geração em geração a
hierarquização de gênero. Logo, a violência contra esta é um mecanismo de assegurar a
desigualdade, a exploração e a opressão sexual.
Assim, onde se encontra esta violência evidenciada é o cenário da convivência em nível
privado e conjugal. A violência doméstica, em específico, incide sempre sobre as mesmas

7
A lei 12.015 de 2009 alterou a denominação do Título VI do Código Penal brasileiro, extinguindo a designação
Dosà i esà o t aàosà ostu es àeàadota doàoàtítuloà Dosà i esà o t aàaàdig idadeàse ual .à‘e ogouàoà i eà
de atentado violento ao pudor, ampliando a anterior abrangência do delito de estupro, que passou a abranger,
na nova redação, as figuras típicas do estupro e do atentado violento ao pudor.
170

vítimas, podendo ser habitual e crônica. A cada ano, mais de mil mulheres são mortas por seus
maridos, ex-maridos e namorados. Muitas outras perdem seus empregos, entram em
depressão, sofrem danos físicos e psicológicos irreparáveis.
A violência de gênero no espaço conjugal, nas últimas quatro décadas, sofreu
importante ruptura ao deixar de ser competência do âmbito privado, ou seja, simples briga
entre marido e mulher, para ser responsabilidade do Estado. Anterior as reinvindicações
encabeçadas pelo movimento feminista em meados de 1960, objetivando ser a violência
doméstica tratada como problema social, as autoridades e a justiça não intervinham no
problema. Foi iniciado um trabalho de mobilização que desencadeou um processo de
manifestações sociais, denúncias, congressos, publicações e reivindicações, sempre voltadas
à conscientização da sociedade e dos poderes públicos sobre a gravidade da violência conjugal
e a necessidade de criar medidas de proteção às mulheres agredidas (SAFFIOTI, 1999 apud
COULOURIS; BOSELLI, 2009, p. 134).
Apesar de toda a comoção pública gerada, o Poder Público tardou para a tomada de
providências eficazes ao combate da violência no seio doméstico e familiar. No Brasil, a
primeira legislação a tutelar a questão foi a Constituição Federal de 1988, que incluiu o
pa g afoà ºà aoà seuà a tigoà ,à esta doà assi ,à ue:à Oà йstadoà assegu a à aà assist iaà à
família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência
oà itoàdeàsuasà elaç es .àOut o a,àdeu-se a instituição da primeira Delegacia Especializada
no Atendimento a Mulheres vítimas da violência.
Cita-se, ainda, a Lei 10.455 que alterou um artigo da lei dos Juizados Especiais Criminais
(Lei 9.099/95). O dispositivo legal passou a permitir na ocorrência de infração de menor
potencial ofensivo que o juiz determinasse medida cautelar, afastando o agressor do convívio
do lar e da vítima, antes que se desse o julgamento final do processo. Sendo assim, em se
tratando de tentativas de homicídio e lesões corporais de natureza grave, a incidência do
referido artigo não poderia ser invocada, o que representou uma grande deficiência
legislativa.
Já no ano de 2004, aprovou-se a Lei 10.886 acrescendo o parágrafo 9º ao artigo 129
do Código Penal que dispõe sobre o crime de lesão corporal. O novo dispositivo passou a
tipificar a violência doméstica. No entanto, não houve, de fato, melhorias no que se refere à
punição. Isto porque, a violência doméstica continuou sendo um crime de menor potencial
171

ofensivo, passível de julgamento pelos Juizados Especiais Criminais e da incidência de


transações e penas de cunho meramente pecuniário. Além do que, restringiu a violência
doméstica ao crime de lesão corporal.

5 Lei Maria da Penha como o marco legislativo da rede protetiva à mulher e a nova lei do
feminicídio

No ano de 2006 deu-se a promulgação da Lei 11.340, comumente denominada Lei


Maria da Penha, o primeiro dispositivo legal voltado exclusivamente a tutelar à violência
doméstica no Brasil. O referido ato surgiu como uma forma de preencher as lacunas existentes
na legislação em vigor visto o significativo número de casos de violência doméstica e familiar
em território brasileiro.
Vale destacar que esta disposição apenas passou a vigorar após uma recomendação
da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, posterior ao julgamento do caso Maria da
Penha Maia Fernandes que havia sido denunciado ao Comitê Latino Americano de Direitos e
de Defesa dos Direitos da Mulher. Nesta ocorrência relata-se um extremo caso de violência
doméstica fundamentado na ineficácia judicial e na demora em ministrar justiça por parte do
Estado brasileiro.
A vítima sofreu duas tentativas de homicídio por parte de seu marido na época, Sr.
Antônio Viveiros, mantendo sequelas irreversíveis dos atentados, como a paraplegia e outras
enfermidades decorrentes de um tiro disparado pelo agressor. Portanto, nota-se que a
punição foi além do agressor, atingindo o Estado, por não adotar as medidas necessárias para
processar e punir o acusado, transgredindo os direitos da vítima de maneira contínua até a
emissão de condenação por parte da Comissão.
Essa discussão internacional denota que o enfrentamento da violência, sendo
doméstica ou não, não se faz por intermédio exclusivamente penal. Fazem-se necessárias
discussões em torno da metodologia da justiça restaurativa, bem como de meios alternativos
de solução de conflitos. No entanto, em virtude da Lei Maria da Penha ser consideravelmente
recente, tais concepções estão, ainda, em uma fase embrionária. A Lei Maria da Penha não se
reveste de exacerbada rigorosidade e punibilidade, contudo, trouxe alterações de grande valia
quanto ao procedimento, submetendo as autoridades policias a abertura de inquérito nos
172

casos de lesão corporal, bem como ao motivando a criação de Juizados de Violência Doméstica
e Familiar contra as Mulheres.
Corroboram-se alguns dos imprescindíveis ganhos ao respeito à mulher e à equidade
de gênero com o advento da Lei: coibir, nos meios de comunicação social, a partir da
disseminação do respeito, papéis estereotipados que validem ou legitimem a violência
doméstica e familiar; promoção de campanhas educativas visando prevenir a violência contra
a mulher, bem como a difusão da Lei e instrumentos de proteção à mulher; destacar em todos
os currículos de ensino as disciplinas relacionadas aos direitos humanos, à equidade de gênero
e à problemática da violência doméstica contra a mulher. Todavia, consoante Hauser e Weiler
(2015, p. 13):
Em que pese a necessidade de respostas punitivas, especialmente em relação às
situações extremas de violência, não se pode esquecer que a lógica exclusivamente
punitiva carrega um defeito extremamente perigoso, especialmente quando a
punição é vista como única ou melhor estratégia para a responsabilização dos
agressores e para o enfrentamento da violência contra a mulher.

Isto se deve ao fato de que o direito penal deve ser visto como a ultimaratio, ou seja,
como última instância de proteção e garantia da efetivação dos direitos. Seu caráter coercitivo
tem apego excessivo de punição, reforçando uma cultura de violência, pois responde esta com
mais violência e repressão, não tendo viés de prevenção, reintegração ou orientação. Assim
sendo, o aumento do rigor das leis não necessariamente atenua o número de casos de
violência contra a mulher, pois esta busca atuar nas consequências e não na causa destas
condutas. Como visto, a sustentação da violência de gênero é o sistema patriarcal e machista,
sendo que este complexo social deve ser superado.
Portanto, a solução a esta problemática não se encontra no aumento do poder
coercitivo sobre a mentalidade sexista dominante, mas na procura de libertação de tais
estereótipos por meio de políticas públicas promovidas pelo Estado, procurando sanar a
questão antes que chegue nas vias penalistas de fato, ou seja, em sua forma mais grave. Ao
romper a estrutura machista, naturalmente romper-se-á a cultura da violência. Contudo,
observa-se que este processo será complexo e extenso, necessitando de apoio de todos para
esta luta que está – e sempre estará – em permanente progresso até seu êxito no alcance da
paridade de gêneros.
173

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A sociedade, como se concebe nos dias atuais, resulta das concepções morais e
científicas de gerações anteriores, ou seja, significa dizer que o meio social extrai para si os
valores e concepções considerados corretos e imprescindíveis em determinado tempo
histórico. Em virtude do exposto, se pode observar que o instituto do Direito Penal, visando
satisfazer os anseios da população, impõe a esta, em suas codificações, os valores e a moral
consagrados no convívio em sociedade. Sob tal diretriz é possível vislumbrar que a figura
feminina, motivada por uma cultura patriarcal, por um longo período histórico, fora tratada
sob uma ótica discriminatória, condicionada a condição de inferioridade e fraqueza em
detrimento do homem.
Salienta-se que o Direito não pode ser entendido sob um viés de neutralidade, ao passo
que, é instrumento utilizado para expandir e perpetuar os interesses da classe dominante.
Nesse prisma, com o intuito de romper o status quo perpetrado na sociedade, passam a se
desenvolver teorias atreladas à Criminologia crítica, que veem o Direito como ferramenta
indispensável à transformação social, devendo, pois, romper com as perspectivas machistas
instauradas nos Códigos Penais ao longo da história, inserindo nestes, uma prospectiva acerca
da questão de gênero, e essencialmente, dos direitos humanos. Um exemplo notório de atos
discriminatórios formais, potencializadores das desigualdades sociais, é o Código Penal de
1940, ainda vigente. O referido diploma legal atenta ao principio da igualde perante a lei ao
preceituar, em inúmeras passagens, disposições machistas e moralistas conservadoras. Os
crimes sexuais, nesse sentido, não representam a tutela estatal despendida em face da
proteção à dignidade da mulher, mas sim, à sua sexualidade. A perda da virgindade da mulher
representa perante a sociedade, implicações de cunho moral, a ruptura com a pureza da alma
e do coração. A mulher, sob a ótica penal, é vista como uma figura ingênua que carece de
proteção.
Diversos fatores influenciam para o fomento de um sistema opressor à figura feminina,
como se pode observar no convívio familiar, nas instituições de ensino, no conteúdo
disseminado pela mídia, dentre os quais, se destaca o papel exercido pela religião e
exteriorizado pelos atos da Igreja. Natural, pois, que o Código penal reproduza tal visão. No
entanto, vale destacar que o art. 3º, inciso IV, da Constituição Federal de 1988, veda qualquer
emanação de preconceito, seja de origem, raça, sexo, cor ou idade, colocando todos os
174

indivíduos sob a condição de humanos, iguais perante a lei. Em vista disso, não se faz mais
viável sustentar codificações, nos diversos âmbitos do Direito, seletivos e pautados em visões
arcaicas e retrógradas.
Salienta-se que, embora a passos lentos, o sistema penal tem apresentado,
paulatinamente, progressos no que se refere ao tratamento despendido à mulher. A Lei
11.340/2006, comumente conhecida como Lei Maria da Penha, representa uma conquista à
proteção de seus direitos e à equidade de gênero. O cerne da questão está na mentalidade
patriarcal vislumbrada na sociedade civil, ainda que implicitamente, entretanto, para tal
ruptura, mais do que normas repressivas como forma de controle social, a coletividade carece
de políticas de prevenção, pautadas na discussão da igualdade de gênero.

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175

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176

OS NOVOS DESDOBRAMENTOS DA FAMÍLIA PATRIARCAL: INFLUÊNCIAS NO FEMINICÍDIO

Bianca Strücker1
Gabriel Maçalai2

RESUMO: Embora as novas e variadas concepções de família, que vêm se consolidando a


partir do mundo contemporâneo, conquistem garantias, ainda existem muitos problemas
herdados pela cultura de diferenciação entre homem e mulher e sua relação com os filhos.
Neste contexto, discute-se acerca da família patriarcal no Brasil, e de sua influencia nos dias
deàhojeà asàfa íliasà asilei as.àáàpa ti àdaàf aseà ela,à e atadaàeàdoàla ,à ueà ausouàg a desà
debates acadêmicos e informais acerca do papel da mulher nas famílias brasileiras, se traça
uma discussão sobre o patriarcado hodiernamente. Para tanto, utilizou-se de meios
bibliográficos e de reportagens de cunho jornalístico para desenvolver a presente discussão,
apontando, primeiramente, os desdobramentos da família patriarcal, e num segundo
momento, os discursos que permanecem na sociedade, ainda que as décadas passem,
amparando o estudo sobre a necessidade da tipificação do crime de feminicidio.

Palavras-chave: Mulher; Patriarcalismo; Feminicidio.

INTRODUÇÃO

A violência familiar é um problema antigo, constante e presente em diversos


ambientes. Na família, na sociedade, nas instituições e na mentalidade dos indivíduos. Ocorre
que, a medidas legais têm sido criadas pelo Estado com o intuito de utilizar o Direito Penal
como um modo de prevenção destas violências. Uma das situações propostas pelo Direito
Penal é o alei que tipifica o crime de feminicidio (Lei Federal 13.104/2015).
Inobstante, inúmeros estudos interdisciplinares vêm ocupando-se acerca da
constituição da família. Refletindo acerca da instituição familiar, podemos constatar que um
grande percentual de famílias, especialmente nas famílias brasileiras, muitas características
se perpetuaram apesar de tanto tempo decorrido, como as diferenciações conservadoras de
papéis entre meninos e meninas, a manutenção da propriedade como um dos principais
objetivos do casamento monogâmico, a sexualidade feminina fortemente controlada e a
divisão de espaços específicos para cada gênero - onde o mundo privado continua sendo

1
Acadêmica do Curso de Mestrado em Direitos Humanos do PPGD da Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, pesquisadora bolsista da CAPES, advogada. E-mail:
biancastrucker@hotmail.com.
2
Acadêmico do Curso de Mestrado em Direitos Humanos PPGD da Universidade Regional do Noroeste do Estado
do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ. Teólogo, Filósofo, Advogado, Professor Universitário, Assessor Jurídico e
procurador do Município de Inhacorá/RS. E-mail: gabrielmacalai@live.com.
177

preferencialmente o ambiente destinado às mulheres, enquanto o mundo público é destinado


aos homens.
A família apresenta-se como um fenômeno social onde os fatores históricos,
econômicos, políticos e culturais são responsáveis por acarretar inúmeras mudanças, sendo
as mesmas refletidas diretamente na sociedade como um todo. Para a compreensão de sua
composição atual e entendimento de sua evolução é imprescindível referenciar a família
brasileira às suas origens, correlacionando-as com alguns aspectos que contribuíram, e ainda
contribuem, para o seu estabelecimento no formato atual, entre eles: o patriarcalismo, o fator
econômico, o casamento com diferenciação de papéis sociais entre os gêneros.
Entretanto, embora com a evolução no conceito de família e em decorrência de
diversas mudanças sociais, a família contemporânea brasileira ainda protagoniza diversos atos
de subjugação da mulher. Também, percebe-se que ainda que existam atualmente as mais
diversas formas de núcleos familiares, há um forte resquício da herança patriarcal
colonizadora, onde se vende um ideal familiar – e de mulher, em que o homem centraliza o
poder, a função pública, e a supremacia sobre a mulher, e esta deve resguardar o lar, os filhos,
e a moral masculina.

1 Ponderações acerca do conceito de família

Ao receber nascer, o ser humano passa a pertencer a um lar, a uma família, seja ela
biológica ou afetiva. O Código Civil Brasileiro não define o que é família, entretanto, é
perceptível que sua conceituação difere-se conforme o ramo do direito em que é abordada.
Co fo eàGo çal esà ,àp.à à oàdi eitoàdeàfa íliaà ,àdeàtodosàosà a osàdoàdi eito,àoà aisà
intimamente ligado à própria vida, uma vez que, de modo geral, as pessoas provêm um
organismo familiar e a ele conservam-seà i uladasàdu a teàaàsuaàe ist ia.
O ser humano sempre viveu aglomerado, haja vista sua necessidade de estar em
comunidade, e de necessitar psicológica, social e economicamente um do outro, não sendo
possível viver isoladamente. Nesse contexto, surgem as famílias, muito antes do direito, dos
códigos e da religião. De fato, elas alternam-se a conforme o tempo, a cultura e a consolidação
de cada geração.
178

A célula básica da família, formada por pais e filhos, não se alterou significativamente
com a migração destes do meio rural para centros urbanos. Contudo, as famílias têm
apresentação distinta das antigas, especialmente no que concerne às suas finalidades,
composição e papeis dos sujeitos que a compõem (VENOSA, 2012), desafiando os juristas e a
legislação a amparar suas mais variadas formatações, tendo em vista sua função estrutural
para a sociedade contemporânea.
ássi ,àe ua toài stitutoà e ess ioà aà idaàdeà adaàsujeito,à e e eàestudo,àpoisà [...]à
a família é uma realidade sociológica e constitui a base do Estado, núcleo fundamental em
ueà epousaàtodaàaào ga izaç oàso ial. à GONÇáэVй“,à ,àp.à .àDestaàfo a,àaà o diç oà
jurídica dos filhos também assumiu papel importante no direito de família, em especial com a
implantação de novas leis, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990)
e a Lei de Alienação Parental (Lei nº 12.318/2010).
Atualmente, outras instituições (como a escola) designam atividades que
originalmente eram dos pais. Os ofícios já não são mais transmitidos de pais para filhos, a
educação cabe ao Estado, além da religião não ocupar espaço tão importante, como outrora,
nos lares. Ainda: a mudança de economia agrária para industrial fez com que homens e
mulheres disputassem o mercado de trabalho, alterando drasticamente a composição familiar
original (VENOSA, 2012).
O que se pode afirmar é que, comumente, as famílias têm uma interdependência
variável entre os sujeitos, na intenção de promover características que minimizem fatores
negativos (como conflitos emocionais ou financeiros) e, por outro lado, disparem fatores
positivos, como a melhora nas relações afetivas entre os genitores e, consequentemente, a
garantia de desenvolvimento biopsicossocial dos filhos.

2 Considerações acerca do patriarcalismo no Brasil

Patriarcalismo é o sistema caracterizado pelo poder do gênero3 masculino enquanto


categoria social, centrada na descendência patrilinear e no controle masculino sobre o

3
Po àg e oà eà efi oàaoàdis u soàdaàdife e çaàdosàse os.àйleà oàseà ela io aàsi ples e teà sàideias,à asà
também às instituições, às estruturas, as praticas cotidianas como aos rituais, e tudo o que constitui as relações
sociais. O discurso é o instrumento de entrada na ordem do mundo, mesmo não sendo anterior à organização
social, é dela inseparável. Segue-se então, que gênero é a organização social da diferença sexual. Ele não reflete
a realidade biológica primeira, mas ele constrói o sentido desta realidade. A diferença sexual não é a causa
179

feminino. Trata-se de uma forma de organização social, onde as relações são regidas pelos
preceitos de que as mulheres estão hierarquicamente subordinadas aos homens, e os jovens,
por sua vez, estão hierarquicamente subordinados aos homens mais velhos. Os valores
instituídos pelo patriarcado, que corrobora uma supremacia masculina, atribuíram maior
importância às atividades masculinas em detrimento às atividades femininas, legitimando-se
o controle do corpo, da sexualidade e da autonomia feminina, estabelecendo papéis sociais e
sexuais em que o gênero masculino possui mais vantagens e prerrogativas.
Deà a o doà o à нou ault,à oà o poà daà ulhe à foià a alisadoà –qualificado e
desqualificado- o oà o poà i teg al e teà satu adoà deà se ualidadeà [...] à ,à p.à .à
Portanto, a domesticação da mulher, vista como histérica e irracional, foi defendida como
condição de possibilidade da sobrevivência da família, que, por sua vez, passou a ser percebida
como célula matriz da sociedade.
Tomando o ponto de vista histórico e so iol gi o,àoàte oà fa ília ,àe àsuaào ige ,à
não se aplicava sequer aos cônjuges e filhos, remetendo-se somente aos escravos. Conforme
elucida Frederich Engels:

em sua origem, a palavra família não significa o ideal – mistura de sentimentalismo


e dissensões domésticas – do filisteu de nossa época; a princípio, entre os romanos,
não se aplicava sequer ao par de cônjuges e aos seus filhos, mas somente aos
escravos. Famulus quer dizer escravo e família é o conjunto dos escravos
pertencentes a um mesmo homem. Nos tempos de Gaio, a família, isto é herança
era transmitida por testamento. A expressão foi inventada pelos romanos para
designar um novo organismo social, cujo chefe mantinha sob seu poder a mulher, os
filhos e certo número de escravos, com o pátrio poder romano e o direito de vida e
morte sobre todos eles (ENGELS, 1987, p. 61).

Ao analisar os primeiros modelos familiares europeus organizados, é possível destacar


que o patriarcalismo sempre se estruturou com um mesmo conjunto de características. O pai,
figura central do núcleo, detinha o título de provedor da família, atuando principalmente no
espaço público, já o espaço privado era o ambiente reservado à mãe, a quem cabia os cuidados
pertinentes ao lar, e a educação dos filhos.

originária da qual a organização social poderia derivar; ela é antes, uma estrutura social móvel que dever ser
a alisadaà osàseusàdife e tesà o te tosàhist i os. à “COTT,à ,àp.à .
180

A partir do descobrimento do Brasil, o modelo patriarcal foi o ponto de partida da


história da instituição familiar brasileira, o qual foi importado pelos colonizadores europeus,
e adaptado às condições socioculturais brasileiras da época.

Durante os três séculos de colonização, os europeus adaptaram aqui seus costumes


milenares, incorporando-os a uma realidade vivida nos núcleos de povoamento
rurais e urbanos, interiores e litorâneos, bem diversos dos peninsulares aos quais
estavam acostumados (NADER, 2008, p.126).

A posição da mulher, na família e na sociedade em geral, desde os tempos da


colonização, também evidencia que a família patriarcal foi uma das matrizes da organização
social brasileira, onde a separação de tarefas era justificada pela natureza dos sexos,
fundamentando a divergência de qualidades físicas e psicológicas entre homens e mulheres.
Com a instauração do patriarcado no Brasil, e a instituição da família monogâmica, o controle
masculino sobre o corpo e a sexualidade da mulher ficou ainda mais evidente, através da
divisão sexual e social do trabalho, e a manutenção das riquezas familiares através de
casamentos estabelecidos a partir de interesses financeiros. Não obstante, estabelecida a
propriedade privada e conhecida a participação do homem na reprodução, as relações
passaram a ser predominantemente monogâmicas, visando garantir as heranças dos filhos
legítimos (MACHADO, 2000). A respeito, a integração à família não decorria apenas dos laços
sanguíneos, mas do beneplácito do pai, que estabelecia laços morais, religiosos e jurídicos
entre seus membros, desconsiderando os filhos ilegítimos (FUSTEL DE COULANGES, 2006).
O estilo de vida das mulheres pertencentes a famílias mais abastadas era restrito ao
lar, com poucas oportunidades de convivência em publico, a fim de manterem-se recatadas e
puras, pois o espaço público não lhes pertencia, era destinado aos homens. Por outro lado,
escravas e mestiças necessitavam trabalhar para contribuir com o sustento de suas famílias,
não tendo a faculdade de manter seu tempo igualmente ocioso, e recatar-se ao lar, e por
o taà disso,à uitasà ezesà a ega a à oà estig aà deà ulhe esà f eis ,à ueà oà to a à osà
devidos cuidados à manutenção de sua reputação, e por isso estariam suscetíveis a não ter o
mesmo respeito.
Educadas para somente saberem lidar com o ambiente doméstico, de modo a
desenvolver um perfil adequado de esposa, as moças da classe alta e média na sociedade
brasileira dos séculos XVIII e XIX viviam, desde cedo, à espera de um marido. (PONTES, 2016,
181

p. 44), pois de fato, a decência e os bons modos seriam virtudes necessárias às mulheres antes
eàap sàoà at i io.àCo fo eàMa iaàIzildaà“a tosàdeàMatosàeà‘a helà“aihetà ,àp.à ,à aà
ulhe ,à talà o oàde eàse ,àp i ipal e teàaàjo e à asada,àde eà ost a à o edi e toà osà
gestos, nos olhares, na expressão das emoções, as quais não deixará transparecer senão com
ple aà o s i ia .
A partir do final do período colonial, os valores tradicionais de submissão feminina
sutilmente passam a ser modificados, embora a autoridade permanecesse nas mãos da classe
masculina. A ausência do homem no ambiente familiar conferiu à mulher um grande destaque
no comando da família e, por consequência ou necessidade, algumas delas também
começaram a participar ativamente da sociedade através do seu trabalho, seja ele no próprio
lar ou na atuação em pequenos negócios. Entretanto, a denúncia da sub submissão feminina
só se deu com o fim de manutenção do sistema (BESSE, 1999).
A partir do século XX, o patriarca começa a perder a sua hegemonia, entretanto seu
poder é apenas diminuído, mas não totalmente diluído. No Brasil, as características patriarcais
prevaleceram, mesmo que este já não seja mais o único modelo familiar encontrado em todas
as regiões brasileiras. Tais características atravessaram os tempos e deixaram suas marcas
ainda na atualidade, o que podemos constatar se analisarmos a legislação e as conquistas
sociais que tentam postular a igualdade de direitos entre os gêneros.

3 Tempos diferentes, discursos iguais: o patriarcalismo contemporâneo

Primordialmente, a base da família brasileira era o casamento, regido pela legislação


civil instituída em Portugal. Os casamentos eram realizados preferencialmente entre pessoas
da própria família ou de famílias conhecidas, contribuindo para a manutenção do poder e do
pat i io.àDessaàfo a,àpode osà o stata à ueà oà asa e toàe aàu aàdasài stituiç esà ueà
aisà o t i uíaàpa aàaàdo i aç oàpolíti aàeàe o i aàdaàso iedadeà asilei a à NáDй‘,à ,à
p. 126).
Instituído sob uma organização social patriarcal, o casamento foi o responsável pela
delimitação de espaços de atuação entre os gêneros. O espaço comum foi dividido em mundo
público e mundo privado, diferenciando papéis sociais entre os homens e mulheres e se
espera que cada qual cumpra seu papel na sociedade (NADER, 2002).
182

A família não pode ser considerada como algo biológico ou natural. Família é uma
relação de gêneros, um produto gerado através de formas históricas de organização entre os
humanos que, motivados pelas necessidades de reprodução da espécie e condições materiais
de sobrevivência, inventaram diferentes formas de relação entre si e com a natureza.

O significado de ser homem, o significado de ser mulher, a masculinidade e a


feminilidade constituem o gênero: algo que se acrescenta ao sexo. Sexo e gênero
nem sempre coincidem completamente: pode haver mulheres com traços
o side adosà as uli os àeàho e sà o àt açosà o side adosà fe i i os ,àse à ueà
por isso deixem e ser mulheres e homens. (CASTEÑEDA, 2006, p. 69)

Neste sentido, Pierre Bourdieu (2014, p. 21) explica que a divisão entre sexos esta na
ordem das coisas, está naturalizada tanto nos lares quantos na sociedade, presente nos corpos
e nos habitus da vivencia humana.
De acordo com o sociólogo francês, a força da ordem masculina não necessita de
justificação e a visão androcêntrica se impõe neutra, sem necessidade de discursos para
legitimá-la. Deste modo, a ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que
reafirma constantemente a dominação masculina sobre a qual se encontra alicerçada, a qual
se percebe na divisão sexual do trabalho, na distribuição das atividades designadas a cada um
dos dois sexos, dos seus locais, momentos e instrumentos; bem como na estrutura do espaço,
opondo os lugares públicos, como a assembleia ou o mercado, reservados aos homens, e os
privados, como a casa, reservada as mulheres; ou ainda, no próprio lar, entre a parte
masculina, como a sala de estar, e aparte feminina, como a cozinha (BOURDIEU, 2014).
As relações do patriarcalismo são marcadas por uma lógica de manutenção do poder,
desta forma, os casamentos funcionavam como tentativas de controle de questões
econômicas e sociais. Neste mesmo sentido, Francisco Rudiger acrescenta que o casamento
[...]àe aàu aàfo aàdeàassegu a àsuste toàeàau ílioàe tre os parceiros. Os valores familiares e
patrimoniais contavam mais que os afetos. Os compromissos eram morais e coletivos, mais
ueàpsi ol gi osàeài di idualistas à ,àp.à .àOà asa e toàe aàu aàesp ieàdeà eg ioà
realizado entre pessoas de mesma etnia e mesma classe social, onde o sentimento era
considerado algo dispensável (PERROT, 2012).
Com o passar do tempo, o casamento evolui e passa a ser visto como uma associação
de livre escolha, baseada no amor recíproco e não apenas na conveniência ou interesse
183

ate ial.àássi ,à uda çaàdosà asa e tosàa a jados 4 para os de livre escolha dos noivos,
assim como as modificações na configuração dos namoros foram extremamente relevantes
para uma maior aproximação afetiva entre a família:

A sexualidade conjugal, o amor físico e o interesse em se viver uma sociedade


conjugal sem a interferência de familiares deram ao casamento, em fins do século
XIX, um contorno de relativa independência pelo fato de que a frequência da
interação social com os parentes diminui. A escolha do cônjuge torna-se mais livre e
o ajuste das relações passa a ser feito entre o homem e a mulher que se atraem
mutuamente (NADER, 2008, p. 139).

A promoção mais saudável dos instintos sexuais era considerada através do casamento
monogâmico heterossexual, tendo em vista que o mesmo era considerado como a forma ideal
e cristã, capaz de legitimar as uniões entre os sexos. Somente a partir do século XX, o
pensamento acerca do prazer feminino começa abranger e se voltar para a importância da
satisfaç oàse ualàdaà ulhe à oà asa e to,àe t eta to,àai daà espe a a-se que ela encarnasse
tanto as virtudes tradicionais de inocência, doçura, submissão e resignação quanto as virtudes
burguesas antagônicas de competência, autoconfiança, eficiência, responsabilidade e
i i iati a à Bй““й,à ,àp.à .à
A imposição de papéis diferenciados de atuação dos gêneros na família patriarcal
burguesa parece ter atravessado os séculos, em especial no que diz respeito ao fator
econômico. A figura da mulher como cuidadora do marido, do lar e dos filhos ainda hoje é
encontrada na maioria dos lares e materializada na antiga crença de que a mãe deveria
dedicar-se integralmente à criação dos filhos. Quando isso não é possível, a mãe sente-se
culpada por afastar-se desse ideal.
Hodiernamente, as famílias brasileiras ainda apresentam dentro do ambiente
doméstico antigos estereótipos, no que tange a divisão de atividades e tarefas. As tarefas
domésticas ainda são delegadas predominantemente ao gênero feminino, mesmo que a
mulher também exerça atividade remunerada fora de casa e contribua, de forma igualitária
ou superior ao homem, com o orçamento familiar. A contribuição da mulher no sustento
econômico é muitas vezes desconsiderada, enquanto o trabalho doméstico continua sendo

4
Trata-se de expressão que representa o casamento em que a iniciativa de selar a união não parte dos noivos, e
sim de seus pais, ou outra pessoa responsável. Embora, praticamente sem utilização no ocidente, ainda é comum
em outras culturas.
184

negligenciado e desvalorizado em nosso contexto social. À mulher é conferida uma posição


complementar ao homem no que diz respeito ao trabalho, mesmo que, em muitos casos, as
mulheres sejam as reais provedoras do sustento dos lares.
Embora diversas evidências empíricas apontem acerca do bem estar físico e
psicológico elevado entre mulheres que possuem um trabalho remunerado, muitos mitos e
crenças assinalam para a necessidade da permanência das mulheres em seus tradicionais
papéis de esposa e mãe de família. A mídia atua como principal reforço dessas informações
na atualidade, o que pode gerar uma enorme culpa para as mulheres que não se limitam aos
papéis patriarcais normativos permitidos ao seu gênero.

A transformação da grande maioria das escolas públicas e privadas brasileiras [até


então separadas por sexo] em mista foi um dos importantes resultados do processo
de modernização iniciado a partir dos anos de 1960. Meninas e meninos, desde a
tenra idade, passaram a dividir os bancos escolares, possibilitando, assim, que
ambos os sexos tivessem trajetórias similares nos estudos (AREND, 2012, p. 77).

Noà ueàta geàaàe p ess oàt azidaà oàtítuloà ela,à e atadaàeàdoàla à (VEJA, 2016), o
mesmo faz referência a recente manchete de notícia veiculada pela revista Veja, onde
apresenta a esposa do então Vice-Presidente da República Federativa do Brasil, Marcela
Temer. Note-se que o fato de uma mulher optar por assumir a vida do lar, ter hábitos de vida
mais discretos, casar-se, ter filhos não seria problema e objeto de discussão em diversos meios
críticos. Entretanto, quando tal expressão toma a manchete da notícia, a qual a justifica que
o marido é um homem de sorte, pelos hábitosàde,ài lusi e,à esti e tasà aisà e atadas àdaà
esposa deve-se assumir um olhar mais atento.
Durante séculos a mulher é subjugada, e lhe é imposta uma submissão aos homens,
um dever de cuidar da moral e dos bons costumes, e mesmo após anos de luta, é possível
perceber que a sociedade ainda não superou esta herança colonial do patriarcalismo. Ana
Maria Colling (2014) aponta que este é um fenômeno transgeográfico e transcultural que
resiste ao crescimento econômico e as legislações baseadas na igualdade.
O objetivo da reportagem era claro: apresentar uma boa primeira-dama, fazer sua
apresentação para a sociedade. Tal expressão, e uma reportagem de cunho extremamente
conservador, demonstram que muito embora o Brasil tenha avançado em vários aspectos com
relação à violência contra a mulher, e sua participação mais ativa na sociedade e na política –
185

exemplos são a chamada Lei Maria da Penha e cotas para mulheres na vida política, os
resquícios da formação patriarcal estão muito mais presentes do que se pensa.

A mídia é uma das maiores disseminadoras de preconceitos em nossa sociedade. As


mulheres, foram transformadas em objeto de consumo ou em escravas domésticas,
deixaram de ser pessoas. Basta assistir uma propaganda de cerveja ou de sabão em
pó para perceber isso. Ao mesmo tempo a mídia tenta criar uma falsa aparência de
igualdade entre os sexos. Assim, ratifica o machismo promovendo violências de
gênero. (CHAVES, 2010, p. 218)

I po ta teà desta a à ueà aà ideiaà deà ueà osà di eitosà daà ulhe à oà sig ifi a oà u à
ro pi e toà o àaàfa ília,à o àoàpapelàt adi io alàdeà eàeàesposa à áэVй“,à ,àp.à .à
Isto é, quando se fala em empoderamento da mulher, e a faculdade de optar-se por novas
modalidades de famílias, ou, simplesmente, abdicar-se de constituir uma, não se sustenta um
o pi e toàtotalà o àaà ha adaà fa íliaàt adi io al .àáàlutaàdosà o i e tosàfe i istasà à
de que se esta for a opção escolhida pela mulher, que de fato seja uma escolha, e não uma
imposição social.

[…]à oà e fo ueà so eà oà e pode a e toà e o he eà a importância do aumento de


poder das mulheres, tende a identificar o poder menos em termos de dominação
sobre outros e mais em termos da capacidade das mulheres de adquirir confiança
em si mesma e se fortaleceram internamente. Isso se traduz como o direito de
exercer escolhas em sua vida e de influenciar os rumos das mudanças, através da
capacidade de controlar os recursos materiais e não materiais (MOSER, 1991, apud
OAKLEY; CLAYTOON, 2003, p. 12).

Devido a constantes mudanças ocorridas no decorrer da história, o termo família tem


sido utilizado para referir-se a uma gama diferenciada de grupos sociais, em termos de sua
estrutura e função. De acordo com Pratta e Santos (2007, p. 248), tem-se que

do início do século XX até meados dos anos 60, houve o predomínio do modelo de
fa íliaà de o i adoà fa íliaà t adi io al ,à oà ualà ho e sà eà ulhe esà possuía à
papéis específicos, social e culturalmente estabelecidos. Ou seja, havia um aparato
so ialà eà ultu alà ueà esta ele iaà o oà atu ais à algu sà pap isà at i uídosà aos
homens e às mulheres (Torres, 2000). Segundo esse modelo, que seguia de perto a
di is oàso ialàdoàt a alho,àoàho e à àoà hefeàdaà asa ,àoàp o edo àdaàfa ília,àse doà
responsável pelo trabalho remunerado, tendo autoridade e poder sobre as mulheres
e os filhos, apresentando seu espaço de atuação ligado ao mundo externo, ou seja,
fora do ambiente familiar. A mulher, por sua vez, é responsável pelo trabalho
doméstico, estando envolvida diretamente com a vida familiar, dedicando-se ao
cuidado dos filhos e do marido, ou seja, a atividades realizadas no âmbito da vida
privada, do lar.
186

Assim, embora o instituto família esteja se modernizando com o passar do tempo, é


possível perceber um forte bloqueio da sociedade e da mídia – para não mencionar outras
i stituiç es,à o oàaàig eja,à oàse tidoàdeà a ute ç oàdoà odeloàdeà fa íliaàt adi io al. àáà
aprovação de leis que garantam respeito a mulher, aos filhos, ao patrimônio, a participação
das mulheres e outras minorias na política, possibilitou relevantes avanços. Entretanto, ainda
não é o bastante, a educação, e o empoderamento das mulheres é o caminho para uma
sociedade mais igual em direitos, mas que ainda sim respeite as diferenças.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A família patriarcal foi uma das heranças mais fortes deixadas pela colonização
europeia no Brasil – não que outros povos também não exerçam esta forma de poder familiar.
Mesmo com a evolução da sociedade, e dos interesses políticos, econômicos e religiosos, a
mulher permanece sendo considerada incapaz, em relação ao homem de assumir as mesmas
responsabilidades, e receber a mesma confiança, em especial quando se trata de espaço
público.
Hodiernamente se vende a ideia de que o patriarcalismo já fora superado, e que a
proposta de modelos familiares distintos deste são uma aberração, um insulto contra a
tradicional família brasileira. De fato, fora travada uma grande luta em busca do
reconhecimento dos direitos das mulheres, e dos novos grupos familiares, que não se
encaixam ao padrão heteronormativo. Porém, existe um grande esforço, para que não se
abalem as estruturas do patriarcalismo, impondo à sociedade sutilmente seus ideais
patriarcais de família e esposa.
Exemplo é a reportagem da revista Veja, que intitulou esta pesquisa, a qual retrata a
ulhe à ela,à e atadaàeàdoàla ,àafi a doà ueàseuàesposoà àu àho e àdeàso te,àpo àte à
uma mulher que resguarda-seàaoàla ,àusaà oupasà ade uadas ,àeàe àout asàpala as,àgua daà
a moral de seu marido. Por outro lado, a mulher seria de sorte por ter um marido poderoso,
chefe da família, capaz de tratar de questões públicas, enquanto a mulher ocupa-se com as
tarefas domésticas.
187

Este artigo não assume por objeto alegar que as famílias que desta maneira se
estruturam estão por completo erradas, ou que não devam ser respeitadas. Contudo, deixa-
se uma crítica, pelo antiquado ato de padronizar algo que mais do que nunca deveria ser
despadronizado: a família. Não há um ideal de mulher, de marido, de composição familiar.
Mas, não se pode aceitar que a mídia, mesmo após toda a árdua luta pela conquista de
direitos, utilize seus canais de veiculação de informação para propagar ideias que
procrastinam a evolução social e humanística no âmbito do direito de família. Finalmente,
conquanto o patriarcalismo ainda esteja presente em nossa sociedade, a luta contra os
padrões morais da sociedade também fora travada.
Tal estudo, deixa evidente a necessidade da edição de uma lei que, cada vez mais
proteja os direitos das mulheres, evitando as inúmeras maneiras de violência contra ela e a
oisifi aç o àhist i aàpelaà ualàte àpassadoàeàaà olo adoàe àposiç esàdeài fe io idadesàe à
inúmeros casos, usurpando-lhe a dignidade. O Direito Penal é um elemento importante na
batalha pela construção de uma vida digna e valorizada.

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TRÁFICO DE DROGAS NO BRASIL DIANTE DO FRACASSO DA POLÍTICA PROIBICIONISTA1

Gabrielle Scola Dutra2

RESUMO: Na perspectiva da Lei nº 11.343/2006 (Nova Lei de Drogas), no que concerne ao


tráfico de drogas no Brasil e as condutas abrangidas pelo artigo 33 do referido Diploma legal,
a presente pesquisa irá perpetrar uma crítica diante das normas excessivamente punitivas e
rigorosas em relação ao tratamento penal do sujeito ativo do crime de tráfico de drogas
t afi a te à at a sà dosà it iosà deà i putaç oà e definição do crime. Ademais,
perfectibilizado está o crescimento progressivo e as consequências nocivas às quais se
submetem indivíduos que possuem contato com as drogas. Todavia, a seletividade penal
acaba por vitimar os indivíduos mais vulneráveis, os quais tendem a ingressar no tráfico de
drogas ou no consumo, e, por conseguinte, acabam sendo presos. Para tanto, o método de
abordagem utilizado foi o hipotético-dedutivo, instruído por uma análise bibliográfica.

Palavras-chave: LEI 11.343/06; TRÁFICO DE DROGAS; SELETIVIDADE; TRAFICANTE;

INTRODUÇÃO
Cabe salientar que a Nova Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) vigente no Brasil é
aplicada em todo o território nacional, o qual compreende a União, os Estados, o Distrito
Federal e os municípios. Nesse sentido, é basilar lançar reflexões criticas a respeito da
discriminação e estigmatização imputadas ao sujeito ativo do crime de tráfico de drogas,
tendo em vista a necessidade de se instaurar instrumentos idôneos para romper o controle
do tráfico de drogas no país, bem como promover uma análise em face da ausência na
distinção entre as condutas típicas abrangidas pelo artigo 33 da Lei.
Diante disso, o presente estudo, pretende abordar de maneira contextualizada a partir
da relação causal entre o popular ja g oà pauà ueà ateàe àChi oà oà ateàe àн a is o àeàoà
agente enquadrado em um ou mais verbos nucleares do tipo elencados no art. 33 da Lei nº
11.343/06, que a Política Criminal de repressão às drogas se utiliza de uma corrente
proibicionista, a qual enfatiza uma propulsão da seletividade penal, o que acarreta um
processo de criminalização do agente.

1
Artigo relacionadoà aoà segu doà apítuloà doà T a alhoà deà o lus oà deà u soà o à oà te a:à й a e a e toà
нe i i oà peloà t fi oà deà d ogasà oà B asilà so à aà pe spe ti aà daà i i ologiaà fe i ista ,à dese ol idaà ju toà à
disciplina de Direito Penal, sob orientação da Prof. Dra. Charlise Paula Colet Gimenez.
2
Acadêmica do 9º semestre do Curso de Direito da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões – URI/ Campus Santo Ângelo-RS, estagiária de Direito na Prefeitura Municipal de Santo Ângelo, e-mail:
gabriellescoladutra@gmail.com.
191

O crime de tráfico de drogas à luz do artigo 33 da lei 11.343/06 (nova lei de drogas)

Preliminarmente, a Nova Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06) estabelece algumas


diretrizes no âmbito da repressão às drogas:

1. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD; 2.


Prescreve medidas de prevenção ao uso indevido; 3. Prescreve medidas para a
reinserção social dos usuários e dependentes; 4. Prevê os novos crimes relativos às
drogas; 5. Estabelece o novo procedimento criminal (BRASIL, 2006, s.p.).

Entretanto, a atual política criminal de repressão às drogas estabelecida no Brasil foi


inspirada por uma lógica que tem origem nos Estados Unidos. Portanto, se utiliza de duas
correntes para justificar sua atuação jurídica e social, quais sejam: um viés proibicionista que
preceitua uma ideologia enérgica de erradicação das drogas pela reprovação do consumo e
do tráfico dessas substâncias ilícitas e, ainda, institui a questão da legalidade da droga como
quesito criminalizador de condutas e a consequente cominação de penas; e, de um viés
prevencionista mais flexível, este que é aplicado ao usuário e o dependente de drogas
(WEIGERT, 2010).
Diante disso, as matrizes proibicionistas firmaram discussões em Convenções de
repressão às drogas. Assim sendo, Mariana de Assis Brasil e Weigert refere:

Vão ao encontro deste entendimento as principais convenções proibicionistas em


âmbito internacional, são elas: a) Convenção Única de Estupefacientes de Nova York
(1961), b) Convênio Sobre Substâncias Psicotrópicas de Viena (1971) e c) Convenção
Contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicoativas de Viena (1988).
Esta última, subscrita pela Espanha em 1990 e pelo Brasil em 1991, pode ser
considerada o ápice da repressão contra os entorpecentes, consolidando
definitivamente a política norte-americana de guerra às drogas (WEIGERT, 2010, p.
33).

Noàe ta to,àpe a teàtodasàasà o stataç esàle a tadasàpo àtaisàCo e ç es,à aàpolíti aà


repressiva foi abandonada somente no que tange ao usuário, tendo sido mantida e
incrementada nos casos que envolvem a produção não autorizada e o tráfico ilícito de drogas à
(BIANCHINI in GOMES (Coord.), 2013, p. 3). Pelo exposto, é imperativo que se instaure uma
análise contextualizada, a partir da conceituação da terminologia droga, bem como seja
compreendido o crime de tráfico de drogas de acordo com relações condicionantes e critérios
que demonstrem o fracasso da Lei nº 11.343/06, quando este Diploma legal é instrumento
utilizado pelos agentes públicos e pelo Poder Judiciário para fomentar a seletividade penal, a
192

criminalização de indivíduos vulneráveis e a superlotação do Sistema Prisional, um dos


maiores problemas que o Brasil enfrenta atualmente.
Ademais, contribuem Alice Bianchini e Salo de Carvalho, consoante ao insucesso do
advento do proibicionismo no Brasil, a sua aplicação sob o usuário dessas substâncias e a
contribuição dessa política repressiva no processo de criminalização do traficante. Nesse
sentido, aduzirem que:

A política proibicionista em relação ao usuário de drogas é marcada por sua


incapacidade de resolver o problema que se dispôs a enfrentar. Ela também se
destaca pelos inúmeros aspectos negativos advindos de sua utilização, dentre eles o
ingresso do sujeito envolvido com drogas no mundo da clandestinidade, o que,
tratando-se de dependente, dificulta e muitas vezes inviabiliza o acesso a programas
assiste iais.àál àdisso,àaà i i alizaç oà ape asàpote ializouàosàefeitosà olate aisà
à incriminação: à promessa de contramotivação do crime fomentou a criminalização
secundária; ao reprimir o consumo estigmatizou o usuário; e no intuito de eliminar
o tráfico ilícito deflagrou a criminalização de setores vulneráveis da população. A
manutenção da ilegalidade da droga produziu sérios problemas sanitários e
econômicos; favoreceu o aumento da corrupção dos agentes do poder repressivo.
Estabeleceu regimes autoritários de penas aos consumidores e pequenos
o e ia tes.à йà est i giuà osà p og a asà di osà eà so iaisà deà p e e ç o à
(CARVALHO apud BIANCHINI in GOMES (coord.), 2013, p. 33).

Por conseguinte, com o cunho de sanar as incongruências oriundas da Política Criminal


de repressão às drogas, alicerçado no que é preceituado no ordenamento jurídico vigente em
relação à tipificação do crime de tráfico de drogas (pena, tipos penais, restrição de direitos...)
e suas nuances sociais, o parágrafo único do artigo 1º da Lei nº 11.343/06 passa a conceituar
aàte i ologiaà d oga ,à o oàse doà [...]àasàsu st iasàouàosàp odutosà apazesàdeà ausa à
dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente
peloàPode àй e uti oàdaàU i o à B‘á“Iэ, 2006).
Dessa maneira, tal dispositivo caracteriza-se como norma penal em branco porque
somente as substâncias que constam no mencionado rol se enquadram como droga,
excluindo todas as outras substâncias que possuem características semelhantes, mas que não
estão incluídas nessa taxatividade incriminadora. No entanto, é certo que quaisquer
su st iasà ueà ause à í io,àpode à [...]àse àp os itosàpelaàauto idadeàsa it ia,ài lusi eà
o café e as bebidas alcoólicas, mas não indica se a sua aquisição e posse está ou não proibida,
pois só é possível sabe-loàap sàaà o sultaàaosàatosà o ati osàeditadosàpo àa uelaàauto idade à
(PRADO, 2016, p. 4-5).
193

Sobretudo, é pertinente mencionar que as condutas típicas que estabelecem o crime


de tráfico de drogas são elencadas no artigo 33 da Lei nº 11.343/06:

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender,
expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar,
prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que
gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500
(quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda,
oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que
gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação
de drogas;
II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-
prima para a preparação de drogas;
III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade,
posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize,
ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal
ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas.
§ 2o Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga: Pena -
detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-
multa.
§ 3o Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu
relacionamento, para juntos a consumirem:
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e pagamento de 700 (setecentos) a
1.500 (mil e quinhentos) dias-multa, sem prejuízo das penas previstas no art. 28.
§ 4o Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão
ser reduzidas de um sexto a dois terços, desde que o agente seja primário, de bons
antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização
criminosa (BRASIL, 2006).

À vista disso, a legitimidade da aplicação de tal dispositivo legal encontra-se


fu da e tadaà pelaà justifi ati aà à p oteç oà deà dete i adoà e à ju ídi o,à ualà sejaà [...]à aà
saúde pública (tutela imediata) e a saúde individual de pessoas que integram a sociedade
tutelaà ediata à CUNрáà i à GOMй“,à ,à p.à .à ássi ,à aà tutelaà doà e à ju ídi oà
sup a itadoà à a a te izadaàpo à o p ee de àu à oleti o,àa st atoàeà oài di idualizado,à aà
medida em que seà efe eà àge e alidade à WйIGй‘T,à ,àp.à .à“o etudo,à àpe ti e teà
ue,à aà saúdeà pú li aà à u à e à ju ídi oà sup a-individual que deve sempre ter como
efe iaàúlti aàosà e sàju ídi osàpessoais à CUNрáài àGOMй“,à ,àp.à .à
Destarte, no que concerne a natureza do crime e a atribuição da conduta típica aos
sujeitos, Rogério Sanches Cunha, assevera que:
194

Trata-se, em regra, de crime comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa.
Temos, no entanto, uma exceção, trazida pelo verbo prescrever, o qual exige
condição especial do agente (crime próprio), só podendo ser praticado por médico
ou dentista. Sujeito passivo primário é a sociedade, podendo com ela concorrer
criança, adolescente ou pessoa incapaz de discernimento ou autodeterminação (art.
40, VI3), e que receba a droga para consumi-la (CUNHA in GOMES, 2013, p. 164).

Nessa conformidade, a Lei 11.343/06 no tocante à relevância do tratamento penal,


fu daàu aà o se u iaàpu iti aàdeà altaà ep ess oàaoàt afi a teàdeàd ogas,à o ài posiç oà
de severo regime de punibilidade (penas privativas de liberdade fixadas entre 05 e 15 anos)
[...] à Cá‘VáэрO,à ,àp.à à sà o dutasà tipifi adasà o oà t fi oà ilí itoà deà d ogas.à ássi à
sendo, é cediço que tanto a atividade jurisdicional quanto o sistema penal ponderam o crime
deàt fi oàdeàd ogas,àdeà a ei aà ueà [...]àaàdis i io a iedadeàdoàpode à ep essi oà à aio à
oà itoà doà t fi oà deà e to pe e tes à ua doà o pa adoà aoà usoà VáэOI“à i à “рйCáI‘áà
(Org.), 2014, p. 107). Portanto, a limitação na interpretação da norma sancionadora atribuída
pelo legislador aos verbos nucleares do tipo que, embora distintos acarretam em um
pa adig aà [...]à e t eà asà ua tidadesà deà pe asà p e istasà eà daà i e ist iaà deà tiposà pe aisà
intermediários com graduações proporcionais entre os dois modelos ideais de condutas
o ioàeàusoàpessoal à[...] à Cá‘VáэрO,à ,àp.à .
Em outras palavras, Salo de Carvalho dá ênfase à repressividade sancionadora da Lei
nº 11.343/06, ao afirmar que:

Assim, entre o mínimo e o máximo da resposta penal verifica-se a existência de zona


cinzenta intermediária cuja tendência, em decorrência dos vícios advindos do
dogmatismo jurídico e da expansão do senso comum punitivo, é a de projetar a
subsunção de condutas dúbias em alguma das inúmeras ações puníveis presentes
nos 18 (dezoito) verbos nucleares integrantes do tipo penal do art. 33 da Lei de
Drogas [...] (CARVALHO, 2010, p. 201).

Ademais, o tráfico de drogas ilícitas no Brasil engloba um vasto rol de sociabilidade, ou


seja, a atividade ilegal constituià e daà satisfat iaà pa aà osà adeptos,à eà igual e teà [...]à oà
somente os fatores objetivos (desemprego, pobreza, miséria) justificam suas práticas, mas
também as circunstâncias reveladas na subjetividade – especificadamente através das
elaç esàso iais à COSTA, 2008, p. 26). Por isso, é imperiosa a analogia que se funda entre o

3
á t.à . As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois terços, se: [...] VI -
sua prática envolver ou visar a atingir criança ou adolescente ou a quem tenha, por qualquer motivo, diminuída
ou suprimida aà apa idadeàdeàe te di e toàeàdete i aç o; à B‘á“Iэ,à .
195

Sistema Jurídico Penal e a realidade social do Brasil, na medida em que se encontram


descompassadas porque quando a lei repressora não é adequada ao meio social em que
vigora produz decisões não equânimes (MORETTO, 2014).
Desse modo, com o intuito de conceituar o traficante e sua atuação no comércio
clandestino de drogas, Elaine Pimentel Costa alude que para o legislador,

[...]à à o side adaà t afi a te à ual ue à pessoaà ueà ealizaà uma das condutas
descritas na lei. Assim, é traficante de drogas, dentre outros, o agricultor que a
cultiva em suas terras, o empregado que a semeia e colhe, o caminhoneiro que a
transporta, o vendedor, seja do atacado ou do varejo, além dos chamados
aviõezinhos, que vão desde os jovens nas periferias da cidade, até as mulheres que
levam drogas para seus companheiros nos estabelecimentos prisionais. A
heterogeneidade de condutas que podem ser enquadradas como tráfico de
substância entorpecente é tão expressiva, que exige um tratamento diferenciado a
cada pessoa presa por tráfico de drogas (COSTA, 2008, p. 26).

Desse modo, a exaustividade das penas impostas ao sujeito ativo dos verbos nucleares
do tipo, elencados no artigo 33, remete a uma incongruência que ainda não foi dirimida pela
atual política criminal, qual seja: a resposta penal excessivamente repressiva ao traficante
(CARVALHO, 2010, p. 204-205). No entanto, a Lei nº 11.343/06 procurou sancionar apenas o
traficante, este que ela entende ser o exclusivo incurso e disseminador de substâncias
entorpecentes ilícitas. Amostra disso é que em nexo com o tráfico, estabelece normas
rigorosas em relação ao tratamento penal do traficante, com o objetivo de prevenir o
comércio ilegal de drogas em todo o território nacional compreendido à aplicação da norma
penal vigente (MORETTO, 2014).
Efetivamente, através da associação entre a Lei nº 11.343/06 e o poder de Punir do
йstadoàe àfa eàdoàeste e tipoàdeà i i oso àdia teàdaàso iedadeàa o dadoà aào aà Vigiar
eàpu i , Michel Foucault pondera:

O criminoso aparece então como um ser juridicamente paradoxal. Ele rompeu o


pacto, é portanto inimigo da sociedade inteira, mas participa da punição que se
exerce sobre ele. O menor crime ataca toda a sociedade; e toda a sociedade –
inclusive o criminoso – está presente na menor punição. O castigo penal é então uma
função generalizada, coextensiva ao corpo social e a cada um de seus elementos.
Coloca-seà e t oà oà p o le aà daà edida à eà daà e o o ia do poder de punir
(FOUCAULT, 2009, p.86).

N oào sta te,àaàtipifi aç oàdoà i e,àaà ualàsup eà [...]àu àa ploàe uad a e toàdeà
qualquer cidadão que tenha em depósito, traga consigo ou guarde substância entorpecente,
196

o oàt afi a te à VáэOI“ài à“рйCáI‘áà(Org.), 2014, p. 109). Contudo, diante da ausência na


disti ç oàe t eàasà o dutasàele adasà oàa tigoà ,à à e ess ioàoàesta ele i e toàdeà [...]à
diferenças entre condutas distintas, que atacam diferentemente o bem jurídico tutelado e
recebem a mesma sanç oàpe al à MO‘йTTO,à ,à p.à .à эogo,àtalà e essidadeà ju ídi aàeà
social, encontra tanto sustentação principiológica quando viola a legalidade, a qual é
caracterizada por preceitos claros e objetivos diante do vasto rol de condutas incriminadas
pela Lei, ua toàsuste taç oàf ti a,àpe fe ti ilizadaàpeloà o e toàe à ueàoà [...]àpoli ialà ueà
selecionará o futuro flagranteado, indiciado e réu do processo criminal, fará a avaliação da
o dutaàe t eàoàa ploà olàesta ele idoà[...] à VáэOI“ài à“рйCáI‘áà O g. ,à 4, p. 109).
Com base em tais constatações, Vera Pereira Andrade estabelece uma relação entre a
decorrência do crime e fatores etiológicos sobre uma minoria de indivíduos, caracterizada de
forma discriminatória conforme os estereótipos impostos pela sociedadeà o oà i i osos :

“e iaà fu da e tal,à pois,à e à oà i eà oà i i oso à po ueà eleà ,à so etudo,à


sintoma revelador da personalidade mais ou menos perigosa (antissocial) de seu
auto ,à pa aà aà ualà seà de eà di igi à u aà ade uadaà defesaà so ial .à Daíà aà teseà
fundamental de que ser criminoso constitui uma propriedade da pessoa que a
distingue por completo dos indivíduos normais. Ele apresenta estigmas
determinantes da criminalidade (ANDRADE, 1995, p. 25).

Na mesma linha, no que tange à superlotação prisional concomitantemente com o


estigma ocasionado pelos reflexos proibicionistas da Lei 11.343/06, conforme dados do
Infopen datados de dezembro de 2014, o sistema carcerário brasileiro conta com 622.202
apenados e, ainda, o perfil do preso é muito peculiar, tal que: 61,6 % são negros, 75,08%
estudaram até o ensino fundamental completo, a respeito do crime pelo qual estão
cumprindo pena privativa de liberdade: 28% dos detentos respondem ou estão condenados
por crimes relativos ao tráfico de drogas, além de ser o quarto país com maior população
carcerária do mundo (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA, 2016, s.p.).
No entanto, já asseverou o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto
Barroso, em defesa da importância de estabelecer uma distinção em relação ao tráfico
pessoal,à se oà ue àfazàissoà àaàati idadeàpoli ial.àйàelaàoàfazàdaàsegui teàfo a:àaà es aà
ua tidadeà àusoà aàzo aàsulà[doà‘io],à asà àt fi oà aàzo aà o te à Bá‘‘O“Oàapud MENA in
FOLHA DE SÃO PAULO, 2017, s.p.). Tal entendimento firmado pelo Ministro é facilmente
visível dentro do cenário social do Brasil quando a desigualdade social assola as populações
197

mais carentes, principalmente nas zonas periféricas do país, onde a droga atua com maior
intensidade.
Dessa forma, Michel Foucault, remete uma carga responsabilizadora ao legislador,
quando da aplicação da lei e a sensibilidade adapta-la ao meio social em que vigora:

Entre o princípio contratual que rejeita o criminoso para fora da sociedade e a


i age àdoà o st oà o itado àpelaà atureza, onde encontrar um limite, senão na
natureza humana que se manifesta, não no rigor da lei, não na ferocidade do
delinquente, mas na sensibilidade do homem razoável que faz a lei e não comete
delitos (FOUCAULT, 2009, p. 87).

Assim, diante do entendimento supramencionado, tal situação acarreta uma


seletividade penal, produto oriundo da desigualdade social do país, a qual pode ser
sus i ta e teàsi plifi adaà o àoàpopula àja g oà asilei o:à pauà ueà ateàe àChi oà oà ateà
e à н a is o ,à ouà seja,à supo ha-se que Chico (pobre de classe baixa) é preso com certa
quantidade de droga e enquadrado como traficante na zona norte (periferia), enquanto que
Francisco (rico de classe alta) é abordado com a mesma quantia da substância ilícita, no
entanto reside na zona sul é visto como usuário. Assim sendo, deve-se concluir que há um
processo de estigmatização determinante e contributivo no que concerne a aplicação da Lei
nº 11.343/06 em face de indivíduos de diferentes classes sociais. Sobretudo, para que a
equidade se instaure no âmbito da política criminal de drogas frente à discrepância de
tratamento entre usuário e traficante é necessário que se chegue a uma proposição
iso i a,à ualà seja:à pauà ueà ateà e à Chi oà de e iaà ate à e à н a is oà ta ,à ouà
elho ,àoà pau , que é a Lei, deve ser aplicada não de forma discriminatória, mas isonômica.
Contribui o Ministro Luiz Roberto Barroso em relação à seletividade penal no Brasil e
o impacto com que ela se estrutura:

Há uma frase que é constantemente repetida, que é a de que no Brasil a gente


prende muito, mas prende mal. Por quê? A sociedade brasileira tem duas grandes
preocupações: violência e corrupção. Temos a quarta maior população carcerária do
mundo, com cerca de 650 mil detentos, mas apenas 35% estão presos por violência:
25% deles por roubo e 10%, por homicídio. Já o percentual dos detidos por delitos
associados às drogas é de cerca de 30%. E quantos estão presos por peculato,
corrupção ativa e passiva ou fraude em licitações? Menos de 1%. E infelizmente não
é porque não aconteça esse tipo de crime, como a realidade demonstrou. Criamos
uma elite brasileira que pratica desabridamente a criminalidade econômica sem
nenhum tipo de consequência. Poucas coisas se revelaram mais evidentes para mim
nesses quatro anos em que estou no Supremo do que a perversa desigualdade do
sistema punitivo brasileiro, que é feito para punir negros e pobres em grande parte
por delitos irrelevantes. A percepção dessa desigualdade me levou a rever muitos
198

conceitos de como nós devemos tratar essa matéria, não para criarmos uma
sociedade punitiva, porque não se faz um país com exacerbação do direito penal.
Um país se faz com educação, distribuição justa de renda e debate público
democrático de qualidade, como estamos tentando fazer aqui. Mas a verdade é que
o direito penal absolutamente leniente no andar de cima criou um país de ricos
delinquentes (BARROSO apud DIAS in FUNDAÇÃO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO,
2017, s.p.).

Nessa senda, Gilberto Thums e Vilmar Pacheco reportam-se ao reconhecimento da


traficância, a qual,

[...] deve-se levar em consideração não só a quantidade de droga envolvida no


evento, mas um conjunto de circunstâncias, nos termos do art. 28, § 2.º 4 (definição
da conduta de consumo) e do art. 52, inc. I 5 (justificativa da autoridade policial para
a classificação do delito: observar a natureza da droga, produto ou substância
apreendida, o local ou as condições em que se desenvolveu a ação criminosa, as
circunstâncias da prisão, a conduta, a qualificação e os antecedentes do agente)
(THUMS; PACHECO, 2008, p. 68).

Dessa maneira, a quantidade de droga encontrada em posse do sujeito não deve ser o
único elemento cabal e contributivo à tipificação da conduta, tendo em vista que a dinâmica
social das drogas impede que o legislador se restrinja apenas ao critério da quantidade da
su st iaàap ee dida,àe uad a doàta toàoàt afi a teàdeàfatoà ua toàoàusu ioà ueàle aà [...]à
consigo mais de uma dose, sendo preso ao acaso e, mesmo assim, a autoridade faz a
tipificação no art. 33, levando e à o taà ape asà aà ua tidadeà daà d oga à e,à aà aio iaà dasà
vezes, o classificando como traficante igualmente (THUMS; PACHECO, 2008, p. 69).
Diante do ineficaz aparato legislativo incapaz de solucionar as discriminações oriundas
do processo de criminalização de indivíduos pobres pelo crime de tráfico de drogas, o Ministro
Luiz Roberto Barroso refere,

[...] nós prendemos milhares de jovens primários e de bons antecedentes por delitos
associados ao tráfico. Pequenos traficantes, de 100 g, 200 g, até 1 kg. No mesmo dia
em que este jovem entra na prisão, por questão de sobrevivência se filia a uma

4
á t.à . Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal,
drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes
penas: [...]§ 2o Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à
quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias
sociais e pessoais,à e à o oà à o dutaàeàaosàa te ede tesàdoàage te à B‘á“Iэ,à .
5
Art. 52. Findos os prazos a que se refere o art. 51 desta Lei, a autoridade de polícia judiciária, remetendo os
autos do inquérito ao juízo: [...]I - relatará sumariamente as circunstâncias do fato, justificando as razões que a
levaram à classificação do delito, indicando a quantidade e natureza da substância ou do produto apreendido, o
local e as condições em que se desenvolveu a ação criminosa, as circunstâncias da prisão, a conduta, a
ualifi aç oàeàosàa te ede tesàdoàage te à B‘á“Iэ,à .
199

facção e, então, passa a dever favor a ela, ele e sua família, que do lado de fora se
torna refém das facções que operam nos presídios. Para criar uma vaga no sistema
penitenciário, o Estado gasta R$ 40 mil e, para manter um jovem na prisão, R$ 2.000
por mês. Portanto, há um custo financeiro e, quando ele volta para a rua, há um
custo social. Mas há algo ainda pior. No dia seguinte ao que foi preso, há um exército
de reserva nas comunidades mais carentes para repô-lo. Portanto, a gente prende o
rapaz, destrói a vida dele, gasta dinheiro para mantê-lo na prisão, torna-o mais
perigoso e não produz nenhum impacto sobre o tráfico. Que política pública estúpida
é esta? (BARROSO apud DIAS in FUNDAÇÃO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, 2017,
s.p.).

Então, Luís Carlos Valois refere Gustavo Badaró quando remete ao processo penal uma
carga responsabilizadora diante da aplicabilidade da norma em relação às drogas em um
Estado Democrático de Di eito:à e p ess esà o oà p o aàeà e dade àta às oàdotadasàdeà
uma grande carga emocional o cuidado deve ser redobrado em questões em que o próprio
eioàso ialàj àseàde o st aàse sí el à BáDá‘Óàapud VALOIS in SHECAIRA (Org.), 2014, p. 107).
Contudo, o Ministro Luiz Roberto Barroso ainda refere no que diz respeito a construção
social de como a questão das drogas influência no cotidiano:

Nós temos um problema maior, que é o poder do tráfico nas comunidades carentes,
onde ele se tornou o poder político e econômico. E seu poder vem da ilegalidade. O
tráfico perpetra a maior violação de direitos humanos que há no Brasil atualmente,
que é impedir um pai ou uma mãe de família decente de criar seu filho numa cultura
de honestidade porque o tráfico alicia esses jovens pelo dinheiro, pela intimidação
ou de outra forma (BARROSO apud DIAS in FUNDAÇÃO FERNANDO HENRIQUE
CARDOSO, 2017, s.p.).

Em virtude dessa dicotomia, a Lei 11.343/06 inseriu a figura do consumo conjunto


estipulado pelo parágrafo 3º do artigo 33, o qual,à o se ue te e te,àdefi eàatosàtípi osà [...]à
intermediários entre as hipóteses de comércio e porte pessoal [...] em relação ao sujeito que
ofe e e,àe e tual e teàeàse àfi alidadeàdeàlu o,àd ogaàpa aà o su oà o pa tilhadoà[...] à
(CARVALHO, 2010, p. 201-202). Nesse diapasão, opta-se, dependentemente do caso concreto,
pelaà [...]à e essidadeàdeàdes lassifi aç oàpa aàoà o su oàpessoalàfa eà àe essi aàsa ç o à
(CARVALHO, 2010, p. 202), imposta se o agente fosse enquadrado como traficante.
Sobretudo, consoante a percepção de que há uma insuficiência por parte do legislador
em ponderar as desigualdades sociais que se instalam nos diversos cenários, Salo de Carvalho
especifica,

[...] percebe-se como notória a timidez do legislador, não apenas por olvidar a
necessidade de descriminalização de algumas modalidades de condutas, como por
deixar de efetivamente diferenciar ações substancialmente diversas em relação à
200

lesão ao bem jurídico tutelado – v.g., a distinção entre comércio atacadista e


varejista; o reconhecimento de figuras privilegiadas como o comércio de
subsistências; o fornecimento para consumo compartilhado etc. (CARVALHO, 2010
p. 202).
Nesseàí te i ,à o oà à e taàaàp oposiç oàdis i i at iaàdeà ueàaàэeiàt ataà [...]àdoà
usuário como dependente (estereótipo da dependência) e do traficante como delinquente
este e tipoà i i oso à Cá‘VáэрO,à ,à p.à ,à deà fato,à seà ousaà o lui à ueà aà políti aà
criminal de repressão às drogas fracassou, tanto no momento em que instaurou uma política
proibicionista em um país marcado pela desigualdade social e pela incapacidade do legislador
de contextualizar o nexo causal entre o crime e o meio social, quanto aplica critérios
discriminatórios no momento da imputação do tipo penal ao agente que praticou o crime
relativo às drogas, seja ele usuário ou considerado traficante.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da análise da tipificação do crime de tráfico de drogas sob a perspectiva do


artigo 33 da Lei nº 11.343/06 (Nova Lei de Drogas), constatou-se que tal paradigma social é
perfectibilizado sob as mazelas da seletividade penal que os crimes relacionados às drogas no
Brasil englobam. Portanto, tal problemática relaciona-se diretamente com os reflexos da
imposição repressiva da política proibicionista perpetrada no país, bem como o seu
consequente fracasso na esfera processual e penal.
Dessa maneira, os indivíduos que são enquadrados como traficantes, sofrem tanto
com o processo de política discriminatória no momento do flagrante e da posterior prisão,
quanto na inserção no Sistema prisional brasileiro, tendo em vista que crimes dessa natureza
têm um índice progressivo de ocorrência no Brasil. Em suma, desconstruir paradigmas
relacionados com o estereótipo criminalizador produzido pela desigualdade social, é basilar
para promover uma sustentação mais efetiva na questão de políticas públicas em relação às
drogas no Brasil através de discursos que fomentem a educação, direito inerente a todos os
cidadãos.
201

REFERÊNCIAS

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mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Revista
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e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão
à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras
providências. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-
2006/2006/Lei/L11343.htm>. Acesso em: 08 abr. 2017.

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202

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WEIGERT. Mariana de Assis Brasil e. Uso de drogas e sistema penal: entre o proibicionismo e
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203

O SUPERENCARCERAMENTO E A DECISIVA CONTRIBUIÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO


ATRÁVES DA PRISÃO PREVENTIVA

Lucas da Silva Santos1


Felipe da Veiga Dias2

Resumo: A presente pesquisa tem como escopo analisar o superencarceramento, sob


perspectiva da decisiva contribuição de grande parcela do Poder Judiciário Brasileiro, através
da banalização do uso das prisões preventivas. Assim busca-se discutir quais as possíveis
causas de expansão do poder punitivo incorporados pela Justiça Criminal Brasileira, e a partir,
do exame de dados oficias, analisar o perfil majoritário dos presos brasileiros, ou seja, sua
escolaridade, faixa etária, raça, e por qual natureza de crime estão presos. A partir disso, é
necessário debater quais são as características do modelo de Justiça Criminal Brasileiro no
qual é manifesto a expansão do poder punitivo, e que levaram à prisão preventiva uma
medida excepcional, atualmente a tornar-se regra, frente a população carcerária brasileira
estar representada por 34% de presos provisórios (sem condenação).

Palavras-Chave: Superencarceramento; Encarceramento em massa; Prisão preventiva;


Cultura da punição.

1. Introdução

O Brasil está sofrendo uma das maiores crises em seu sistema prisional, essa crise não
é atual, e sim resultado de várias décadas de abandono e omissão de políticas públicas, que
visassem maneiras e alternativas que efetivamente consolidasse melhorias reais no sistema
penitenciário. No entanto após os massacres ocorridos no interior dos presídios brasileiros
recentemente no início do ano de 2017, em Manaus/AM e Boa Vista/RR, reacenderam os
debates sobre a real situação de calamidade das casas prisionais e o gravíssimo problema da
superlotação carcerária.
Assim, o presente estudo utiliza-se do método de abordagem dedutivo, junto ao
método de procedimento monográfico, além da utilização da técnica de pesquisa da
documentação indireta, alicerçando-se nos fundamentos teóricos gerais do processo penal
para alcançar os aspectos específicos do sistema prisional e do discurso de ódio que move o
Judiciário. Posto isso se busca discutir a política criminal e modelo de justiça criminal

1
Graduando em Direito na Faculdade Meridional (IMED) – Passo Fundo. Email: lucassantospf@gmail.com
2
Doutor em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Doutorado Sanduíche na Universidad de
Sevilla (Espanha). Professor da Faculdade Meridional (IMED) – Passo Fundo. Integrante do grupo de estudos em
Temas Emergentes de Criminologia Crítica (IMED). Advogado – felipevdias@gmail.com.
204

incorporado atualmente pelo Brasil, e qual sua relação com uma sociedade fundada e
enraizada em uma cultura punitivista, e consequentemente um processo penal de matriz
inquisitorial, onde é manifesto ainda sua presença nos operadores do campo do direito.
A pesquisa ora proposta visa analisar as principais razões que levaram o Brasil a
oste ta à aà a aà deà ua taà aio à populaç oà p isio alà doà u do,à eà dis uti à a e aà dasà
características culturais, discursos reproduzidos pelo senso comum punitivo, presentes na
sociedade brasileira que acabam sendo incorporados pelo Judiciário, na tentativa ilusória de
alcançar o controle social, através da expansão punitiva, sob a justificativa de combate à
criminalidade e que, por conseguinte acarretam nos altos índices de aprisionamento, e o
acelerado e crescente ritmo de encarceramento presentes na Justiça brasileira.
Nesse sentido, a partir do exame dos dados oficias do levantamento nacional de
informações penitenciárias (INFOPEN) produzidos em dois relatórios semestrais do mês de
junho e dezembro do ano de 2014, no qual é apresentando o retrato das prisões no Brasil. Em
complemento a esses levantamentos, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apresentou no
ano de 2016, dados que confirmam o aumento das penas de encarceramento, e o relatório
produzido no início do ano de 2017, juntamente com os Tribunais de Justiça dos Estados, no
qual se apresentam os números de presos provisórios e presos condenados no Brasil, e o plano
de ação para conter tais números preocupantes.
No entanto além da enorme população carcerária de presos no Brasil, e o percentual
assustador de presos provisórios apresentados através dos relatórios, almeja-se discutir, o
perfil majoritário das pessoas em situação de privação de liberdade no Brasil, demonstrados
pelos dados oficiais. Logo, é relevante abordar as características como, faixa etária,
escolaridade, raça, e natureza do crime praticado, mostrando-se, a ação do processo de
seletividade do sistema penal, e sua busca em etiquetar determinados estratos sociais. Soma-
se ainda a definição de quais crimes receberão maior custódia/guarida, bem como após essa
defi iç oà deà e à ju ídi oà aisà alioso à dete i a à ualà e e e à aio à pe seguiç oà e,à
portanto, buscando a penalização dos indivíduos que buscarem atingi-lo.
Por fim a crítica e pesquisa visa compreender a incorporação de discursos do
medo/ódio produzidos pela mídia de grande massa, que instigam os desejos da sociedade
pela expansão do poder punitivo, e que grande parcela da Justiça Criminal do Brasil vem
adotando e reproduzindo na atualidade. Essa associação questiona a afetação do crescimento
205

das penas de encarceramento, impostas principalmente através das prisões preventivas, e em


complemento a isso, a baixa adesão da magistratura às penas alternativas que restringem
direitos da pessoa condenada, mas não a retiram do convívio da sociedade.

2. O superencarceramento: Cultura da punição e modelo inquisitório de Justiça criminal

O Brasil atualmente ostenta a marca de 654.372 mil presos, sendo desse número
433.318 (66%) são presos condenados, enquanto 221.054 (34%) são presos provisórios
(BRASIL, 2017), que ainda aguardam por julgamento, o que apresenta um quadro preocupante
quando se observa a atual postura (obcecada) priorizando a prisão, e não buscando
alternativas para estancar esses números. Desse modo, o país detém a quarta maior
população prisional do planeta, ficando atrás somente de países como Estados Unidos, China
e Rússia, no entanto o ritmo de encarceramento é acelerado, e a taxa de aprisionamento
aumentou em 119% entre os anos de 2000 e 2014 (BRASIL, 2014a).
No ano de 2000, haviam 137 presos para cada 100 mil habitantes, em 2014, essa taxa
chegou a 299,7 presos para cada 100 mil habitantes. Caso mantenha-se esse ritmo de
encarceramento, em 2022, a população prisional do Brasil ultrapassará a marca de um milhão
de indivíduos, em 2075, uma em cada dez pessoas estará em situação de privação de
liberdade. O número de presos é consideravelmente superior às quase 377 mil vagas do
sistema penitenciário, totalizando um déficit de 231.062 vagas e uma taxa de ocupação média
dos estabelecimentos de 161%. Em outras palavras, em um espaço concebido para custodiar
10 pessoas, existem por volta de 16 indivíduos encarcerados (BRASIL, 2014a).
No entanto a crise que acomete o sistema prisional brasileiro e que perdura por
décadas é fruto de uma cultura punitivista enraizada na sociedade, que pressupõe que a
pessoa em situação de privação de liberdade, mesmo sem deter condenação definitiva, deve
vivenciar no cárcere um verdadeiro inferno, mergulhadas em um abismo de constantes
sofrimentos e torturas. Por conseguinte, ao se tratar de um acusado, ou um indivíduo que
responda por um crime, ou seja, sob o viés punitivista um inimigo social, consequentemente
não deve possuir a remota possibilidade de receber tratamento digno, pois a ele deve ser
atribuído um tratamento distinto de seres humanos e que lhes refutem a condição de pessoa
(ZAFFARONI, 2007, p. 18).
206

Destarte é no mínimo preocupante quando tal discurso é posteriormente incorporado


pelo modelo inquisitório de justiça criminal nacional, reproduzido e ratificado por parte do
Judiciário, que deveria atuar conforme suas prerrogativas de forma contramajoritária, ou seja,
atue como garantidor dos direitos fundamentais, entretanto atualmente são evidenciadas
posturas inversas as suas funções, autorizando que impere o populismo punitivo e o discurso
do ódio frente às garantias individuais (LOPES JÚNIOR, 2014, p. 106).
O encarceramento em massa acarreta na transformação de casas prisionais em
e dadei osà dep sitosà deà li osà hu a os ,à ueà o se ue te e teà o i e à dia ia e teà
o àt ata e toàigualàaoàdeà efugosàhu a os à BáUMáN,à ,àp. ,àse esài desejadosàpelaà
sociedade, que convivem com supressões e violações de direitos humanos diariamente. No
entanto a massificação no encarceramento tem situação agravada pelo Judiciário por meio da
banalização das prisões preventivas, visto que sua utilização deveria ser orientada pela ideia
da ultima ratio, todavia com os expressivos 221.054 mil presos provisórios, torna-se possível
questionar se a atual política criminal apresenta um viés punitivista, transformando a exceção
em regra.
Denota-se a função da prisão na lógica punitivista, como a confirmação de um poder
punitivo, ou seja, um instrumento capaz de combater um inimigo social. Assim conforme
ensinamentos de Zaffaroni, referindo-se ao inimigo do direito penal, explica que:

O poder punitivo sempre discriminou os seres humanos e lhes conferiu um


tratamento punitivo que não correspondia à condição de pessoas, dado que
os considerava apenas como entes perigosos ou daninhos. Esses seres
humanos são assinalados como inimigos da sociedade e, por conseguinte, a
eles é negado o direito de terem suas infrações sancionadas dentro dos
limites do direito penal liberal, isto é, das garantias que hoje o direito
internacional dos direitos humanos estabelece universal e regionalmente
(ZAFFARONI, 2007, p.11).

Portanto, a face punitivista do Estado, utilizando de um modelo inquisitório que busca


um etiquetamento de estratos sociais mais baixos, como jovens pardos ou negros com baixa
escolaridade, para conferir a esta determinada camada, um perfil criminoso condizente a
determinação de um inimigo social. Reforça-se assim a imagem de um criminoso de alta
periculosidade frente à sociedade, para legitimar um tratamento punitivo não equivalente à
condição de um ser humano. Na visão de Karam, a principal função da prisão:

[...] a mais relevante função real desempenhada pela pena privativa de


liberdade, a permear toda a história, está na construção e propagação da
207

imagem do criminoso – visto como o outro, o perigoso, o inimigo, o mau -,


com o que se facilita a minimização de condutas e fatos não criminalizados
ou não criminalizáveis socialmente mais danosos, com o que se ocultam os
desvios estruturais, encobertos pela crença nos desvios pessoais, dos quais se
nutre a reação punitiva (KARAM, 2006, p.102).

Denota-se a construção de um indivíduo perigoso, um inimigo social de fácil


identificação, produzindo um perfil delinquente e definindo quais são suas respectivas
condutas desviantes, perante a sociedade, para que após essa fácil identificação do perigoso
ou inofensivo, a pena e consequentemente o encarceramento, produzam uma sensação de
segurança social, diminuição de criminalidade, e combate à impunidade frente a sociedade.
O discurso do medo, sintomas de uma matriz inquisitória são reproduzidos de forma
excessiva, buscando a distinção entre os lados, ou seja, a identificação do inofensivo ou
inimigo social, do bem ou do mal, possuindo a prisão a função de propagar, frente aos
discursos do medo e ódio, um método persecutório de aniquilamento do inimigo, criando uma
idealização de controle da marginalização, desta forma uma solução de todos os problemas,
e reposta de segurança aos desejos individuais (KHALED JÚNIOR, ROSA, 2014, p. 25; KARAM,
2009, p. 3).

3. O perfil da população carcerária brasileira: faixa etária, raça, escolaridade, natureza do


crime

A faixa etária da população brasileira acima dos 18 anos de idade está distribuída na
seguinte forma, pessoas entre 18 e 24 anos representam (11,16%), entre 25 e 29 anos (7,74%),
entre 30 e 34 anos (8,17%), acima de 35 anos (46,09%). As características étnicas, raciais e de
cor de pele da população brasileira está distribuída em (45,48%) de brancos, (53,63%) de
negros e pardos, (0,49%) de amarelos, (0,40%) de indígenas, (0,32%) outras (BRASIL, 2014b).
Embora apenas (11,16%) dos brasileiros tenham entre 18 e 24 anos, quando se verifica
a população carcerária brasileira, o perfil apontando é majoritariamente formado por jovens
entre 18 e 29 anos representando o percentual de (55,07%), para uma sobre-representação
de (61,67%) da população carcerária formada por negros, e ainda no que se refere à educação
apenas (9,54%) da população prisional brasileira possui ensino médio completo. O perfil dos
crimes praticados pela população prisional brasileira está dividido da seguinte forma, crimes
208

contra o patrimônio (46%), lei de drogas (28%), crimes contra a pessoa (13%), estatuto do
desarmamento (5%), crimes contra a dignidade sexual (4%), crimes contra a paz pública (2%),
outros (2%) (BRASIL, 2014b).
O perfil majoritário da população carcerária brasileira, mostra a manifesta relação
entre escolaridade/raça com sistema penal, através da reprodução das relações sociais e
conservação da estrutura vertical da sociedade. Encontra-se nas funções exercidas pelo
sistema penal mecanismos que visem selecionar estratos sociais inferiores, para sua
marginalização, para posteriormente definir quais delitos receberão maior proteção pelo
sistema. Resta assim notório que a partir do modelo de sociedade capitalista os crimes contra
a propriedade privada (excluindo-se aqui as demandas empresariais ou mesmo ilícitos das
classes mais abastadas) (BARAK, 2015), ou seja, os crimes contra patrimônio recebem maior
custódia, em relação aos crimes contra a pessoa, ficando explícita a relação, de quais crimes
serão selecionados para receber maior proteção pelo sistema penal, e resultante dessa
escolha, qual o perfil será selecionado para ser punido (BARATTA, 2011, p.175-176).
Diante disto, a natureza dos crimes que formam majoritariamente a população
carcerária brasileira, são os crimes contra o patrimônio, representando o percentual de 46%
de toda população carcerária brasileira (INFOPEN, 2014b). Deste modo identifica-se a
seletividade do perfil da população carcerária brasileira, a partir da seleção do bem jurídico
que receberá maior proteção do sistema penal, ou seja características de uma sociedade
capitalista avançada, que visa superior proteção aos bens patrimoniais, que interessam aos
idad osàditosàdeà e ,à o se ue te e teàse doàesseà e àju ídi o,ào jetoà ueà e e e à
maior guarida, e por conseguinte terá maior perseguição e busca por penalização dos
indivíduos que buscarem atingi-lo (ANDRADE, 2012, p.134).
Assevera o poder de seletividade do sistema penal brasileiro, uma população
carcerária formada por homens, jovens entre 18 e 29 anos, formada em sua maioria por
negros, de baixa escolaridade, Zaffaroni explica:

O poder seletivo do sistema penal elege alguns candidatos à criminalização,


desencadeia o processo de sua criminalização e submete-o à decisão da
agência judicial, que pode autorizar o prosseguimento da ação criminalizante
já em curso ou decidir pela suspensão da mesma. [...] A escolha, como
sa e os,à à feitaà e à fu ç oà daà pessoaà oà o à a didato ,à à es olhidoà aà
partir de um estereótipo) (ZAFFARONI, 2001, p. 245-246).
209

A seleção de determinados indivíduos à criminalização, é a partir de uma


preconcepção, e a escolha pela persecução, busca pela punição de determinada conduta (a
qual também passa por um processo de seleção, dentre os atos existentes), a qual é
tipicamente praticada por diversos indivíduos (nas mais diversas classes, etnias ou
características), mas que terá sua seletividade determinada com base em um perfil
marginalizado, ou seja, a aplicação de normas judiciais é aplicada de forma desigual,
dependendo do estereótipo do escolhido.
Na população carcerária brasileira apenas 9,54%, possuem ensino médio completo,
sendo 75,08% representadas por pessoas analfabetas, alfabetizadas informalmente e mais
aquelas pessoas que possuem ensino fundamental completo (BRASIL, 2014b), mostrando que
a intervenção do sistema penal começa anteriormente a prisão, ou seja, a partir de uma
descriminação social e escolar, aduz Barratta:

O cárcere representa, em suma, a ponta do iceberg que é o sistema penal


burguês, o momento culminante de um processo de seleção que começa
ainda antes da intervenção do sistema penal, com a discriminação social e
escolar, com a intervenção dos institutos de controle do desvio de menores,
da assistência social etc. O cárcere representa, geralmente, a consolidação
definitiva de uma carreira criminosa (BARATTA, 2002, p.167).

Desta forma, o processo de seletividade do sistema penal não começa no momento


em que o indivíduo é encarcerado, mas sua manifestação inicia a partir da segregação social.
Demonstração disso é apontada na intervenção dos institutos escolares, os quais acabam por
discriminar indivíduos, gerando o etiquetamento como seres desviantes, deste modo com sua
estig atizaç oà ueà us aà di idi à osà i di íduosà e à o s à eà aus .à Po ta toà talà i sà
lassifi at io à dete i aà aà egaç oà aosà aus à doà e o he i e toà deà
dignidade/oportunidades, consequentemente atribuindo-lhes tratando desigual, tendo a
prisão o simples caráter de confirmação de um inimigo social que deve ser excluído e separado
do convívio da sociedade (KARAM, 2009, p.34).
Posto isso o sistema penal atua de forma seletiva, pois busca criar uma identidade,
perfil de um criminoso, fabricado em grande parte pelos meios de comunicação de massa,
que definem esse determinado estereótipo por meio da ostentação do horror, e discurso do
medo frente a sociedade. Delineia-se assim o estereótipo que corresponde a um perfil
210

criminoso, um inimigo social que deve ser combatido, mas o mesmo o sistema penal seleciona
quais estereótipos, perfis de criminoso deve-se deixar de lado, ou seja, alguns sujeitos não
serão alvo da intervenção penal (como ocorre usualmente com as condutas de colarinho
branco ou mesmo fraudes e outras condutas no nível de classes sociais mais altas)
(ZAFFARONI, 2001, p.130).

4. A decisiva contribuição da prisão preventiva para o superencarceramento

No início do ano de 2017, após os massacres ocorridos no interior dos presídios


brasileiros em Manaus/AM e Boa Vista/RR, realizou-se um levantamento dos presos
provisórios no Brasil, através do Conselho Nacional de Justiça juntamente a vinte e cinco
tribunais estaduais brasileiros, por meio desse levantamento foi identificado que o número
total de presos no Brasil, corresponde a marca de 654.372, sendo desse número 433.318
(66%) são presos condenados, enquanto 221.054 (34%) são presos provisórios, sem
condenação definitiva (BRASIL, 2017).
O percentual de presos provisórios por unidade da federação oscila entre 15% a 82%,
sendo que sete estados brasileiros possuem uma população carcerária de presos provisórios
superior a 50%, Sergipe (82,34%), Alagoas (80,92%), Ceará (66,92%), Bahia (59,64%), Goiás
(58,00%), Rio Grande do Sul (55,68%), e Paraná (54,12%), ou seja, esses estados brasileiros,
possuem uma população carcerária formada majoritariamente por presos provisórios, isto é,
ultrapassando a população de presos que possuem condenação. Sendo que o percentual de
presos provisórios que estão custodiados há mais de 180 dias oscila entre 27% a 69%, e tempo
médio de duração de uma prisão provisória (sem condenação) no Brasil varia entre 172 dias a
974 dias (BRASIL, 2017).
A prisão preventiva é uma medida excepcional, isto é, possui um caráter de
provisionalidade, na medida que deve ser priorizado sempre a via menos gravosa, e que cause
menor limitação ao direito de liberdade, ou seja, a prisão preventiva deve ser somente
decretada quando não for possível a sua substituição por nenhuma outra medida cautelar,
ademais sua decretação exige a presença dos requisitos fumus comissi delicti e periculum
libertatis, isto ,à ua doàdesapa e idaàaàest utu aàf ti aàlegiti ado aàdasà fu aças ,àde e-se
findar a prisão imediatamente (BADARÓ, 2015, p.960; LOPES JÚNIOR, 2014, p.578).
211

Identifica-se com clareza, que com a atual postura do Poder Judiciário, não é capaz de
auferir a prisão preventiva uma medida de natureza excepcional, tendo em vista que se
ostenta uma população carcerária de 221.054 mil presos provisórios, aliado aos dados que
mostram que o Brasil possui em sete estados da federação uma população carcerária com
mais de (50%) de presos provisórios, superando a população de presos que possuem
condenação, nem se cumpre considerar uma medida de caráter provisório, pois, verifica-se
que a média de duração da prisão provisória oscila entre inicialmente com 172 dias e podendo
chegar até 974 dias, ou seja, podendo a prisão provisória chegar a mais de assustadores dois
anos e seis meses de prisão sem condenação.
Em complemento acerca da responsabilidade do Poder Judiciário no
superencarceramento, no dia 17 de outubro do ano de 2016, o Conselho Nacional de Justiça,
apresentou o anuário da justiça, no qual estatísticas revelam aumento das condenações de
encarceramento, com o objetivo de apresentar e debater os resultados do anuário justiça em
números de 2016, ano base de 2015, o relatório formulado a partir dos dados fornecidos por
Tribunais, distribuídos nos segmentos de Justiça Estadual, Justiça Federal, Justiça do Trabalho,
Justiça Militar, Justiça Eleitoral, além dos Tribunais Superiores (BRASIL, 2016).
Através do resultado do anuário justiça, foi apontado, o crescimento das penas de
encarceramento impostas pela Justiça no país. Em 2015, foram 281.007 mil penas privativas
de liberdade que começaram a ser cumpridas em todo o país, totalizando quase o dobro do
número de 2009 (148 mil). Tendo um crescimento de 6%, em relação ao ano anterior, e
crescimento de 90% em relação a 2009. A população carcerária brasileira é a quarta maior do
mundo, tendo crescido 267% nos últimos 14 anos. Além de aumentarem em termos absolutos
nos últimos anos, as execuções penais privativas de liberdade também corresponderam a
62,8% das penas iniciadas da Justiça Criminal brasileira realizadas em 2015 (BRASIL, 2016).
Os magistrados de alguns tribunais de Justiça, como os do Rio de Janeiro (TJRJ), Ceará
(TJCE) e Espírito Santo (TJES), aplicaram penas de privação de liberdade em mais 90% dos
casos iniciados em 2015. Em complemento a esses dados o anuário estatístico da Justiça
Criminal produzido pelo Conselho Nacional de Justiça, confirma a baixa adesão da
magistratura às penas alternativas que restringem direitos da pessoa condenada, mas não a
retiram do convívio da sociedade, no ano de 2015, as execuções não privativas de liberdade
representaram somente 37,1% de todas as penas aplicadas no país (BRASIL, 2016).
212

Posto isso, percebe-se que a compulsão do sistema punitivo pela prisão, é a ratificação
de um discurso do ódio, e concepção de direito penal do inimigo, que está sendo incorporado
por grande parcela do Poder Judiciário, e consequentemente, está propagando e confirmando
uma mentalidade/espírito inquisitorial de justiça criminal, ou seja, através da ostentação do
horror produzida pela mídia de grande massa, corroborando o ódio e medo na sociedade, o
Poder Judiciário acaba reproduzindo o senso comum punitivo, quando busca concretizar o
controle social através da prisão (ANDRADE, 2012, p.134).
Identifica-se através do relatório justiça, o baixo índice da utilização das medidas
cautelares diversas da prisão, e o crescimento das penas de encarceramento impostas pela
Justiça no Brasil. Tais comprovações vem fortalecer a postura de um Judiciário formado
majoritariamente por julgadores que absorvem um discurso do senso comum punitivista, isto
,àassu e àu à papel àdeà espo s eisàpo àu aà li pezaàso ial ,àouàsejaà uscando combater
a criminalidade e consequentemente diminuir a impunidade, mesmo, que para concretização
de tal resultado, seja necessário atropelar direitos e garantias fundamentais, apenas
confirmando suas mentalidades inquisitoriais (LOPES JÚNIOR, 2014, p.112).
No entanto em um Estado Democrático de Direito, onde vigora um sistema acusatório,
ou seja, um sistema onde verifica-se a clara divisão/separação de funções entre as partes e o
julgado ,à istoà ,à oà h à espaçosà pa aà juízesà ueà possue à u à uad oà e talà pa a oi o ,à
expressão de Cordero, que Coutinho utiliza para explicar posturas de juízes que por não
possuem a gestão de prova como em uma matriz inquisitorial, quando detém a possibilidade
de decidir antes, e posteriormente sair à procura do material probatório, para assim acabar
o fi a doàsuaà e s o ,à ultu aàaà ualà o e e àpelaà us aàpelaà e dade à COUTINNрO,à
2015).
O discurso do punitivismo penal é a situação, onde se pode revelar com facilidade os
intensos anseios, desejos, que buscam justificar, legitimar a punição, ainda que característico
dessa linguagem estar relacionada os melhores objetivos, como segurança, diminuição de
criminalidade. No entanto tais discursos, mesmo que tenham revestimentos das melhores
intenções, não revelam somente aquilo que exteriorizam, mas ocultam o manifesto desejo
daquilo que verdadeiramente se busca, ou seja, pelo que se luta, o desejo do controle, o
pode àdeàdefi iç oàdoà e àju ídi oà ueà e ue à aio àp oteç o,à o se ue te e teà aio esà
punições (ROSA, AMARAL, 2015, p. 57).
213

Acerca da banalização do uso das prisões preventivas, e desrespeito pelos prazos


processuais previstos no Código de Processo Penal, mostra-se a incorporação do Judiciário
dos desejos manifestos da sociedade, que claramente mergulhadas em uma cultura
punistivista, não querem esperar um processo que respeite as regras do jogo, e sim anseiam
pelaà i ediataà pu iç oà doà a usado,à i depe de te e teà ueà à dessaà a ele aç o à po à
respostas/punição, advenha supressão de garantias processuais, confirmando oà fas í io à
pelas prisões, pois, através delas, conquista-se a concretização/viabilização da punição
(KHALED JÚNIOR, 2016, p. 402; LOPES JÚNIOR, 2014, p. 140).
Posto isso, os desejos punitivos no qual busca-se atropelar, enfraquecer direitos e
garantias individuais, sob a ilusória perspectiva do sistema penal atingir a diminuição da
criminalidade. Conjuntamente a isso se intenta alcançar o controle da violência, utilizando-se
como instrumento para tal resultado, a expansão do poder punitivo como mecanismo que
visa punir com maior severidade, mostrando a confirmação de uma cultura punitivista que
possui como escopo, a inversão de direitos fundamentais, como a liberdade, e substitui-la,
pela segurança, invertendo as premissas do Estado Democrático de Direito (KARAM, 2009, p.
4-6).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa busca descrever e analisar a situação carcerária brasileira, no qual


é consabido sua precariedade, e estado de calamidade o qual lhe é característico por diversas
décadas. No entanto através do exame de dados oficiais produzidos pelo Conselho Nacional
de Justiça, e pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, é manifesto que
grande parcela dos operadores do direito, e consequentemente, os julgadores da Justiça
Criminal Brasileira, são influenciados pelos discursos de ódio disseminados pela mídia de
grande massa. Essas falas contribuem de forma decisiva para incorporação de uma cultura
encarceradora, tendo como reflexo o contexto atual, onde verifica-se a banalização da prisão
preventiva, utilizada como instrumento para viabilizar a punição, visando produzir respostas
para a opinião pública e sociedade.
Os números alarmantes de uma população carcerária brasileira formada por 34% de
presos provisórios, sem condenação, e no qual sete estados da federação possuem uma
214

população de presos provisórios superior a faixa de 50%, asseveram, o compromisso de uma


Justiça Criminal, que incorpora uma cultura da punição. De modo que preocupa-se em atender
a opinião pública, e invertendo sua função precípua de agir contramajoritariamente, na defesa
dos princípios e garantias constitucionais, garantindo o próprio Estado de Direito
Democrático, isto é, de assegurar direitos e garantias fundamentais inerentes a toda pessoa
humana, frente a busca de atender interesse da sociedade.
Posto isso, o discurso do ódio e medo, buscam justificar, legitimar a expansão punitiva
que possui o caráter instrumental de alcance do controle social. Todavia tal busca pelo
o t ole ,à i ideà so e teà e à dete i adosà est atosà so iais,à os quais são representados
majoritariamente por jovens negros, com baixa escolaridade, reforçando a seletividade do
sistema penal. Assim. por meio de uma cultura capitalista avançada, verifica-se a definição de
bens jurídicos como, o patrimônio e propriedade privada, os quais necessitam de maior
gua idaàpo àse e à aisà aliosos ,àeà ueà e essa ia e teà ue à us a àati gi-los, receberá
maior punição.
Posto isso o sistema penal atual de forma seletiva concentra-se em criar o perfil de um
criminoso, e sua fácil identificação, ou seja, fabricado a partir da contribuição de grande
parcela dos meios de comunicação de massa, um determinado estereótipo, por meio da
ostentação do horror, e discurso do medo, e que expõem para a sociedade. Ademais,
descrevem o estereótipo correspondente a um criminoso/inimigo social que deve ser
combatido. No entanto o mesmo sistema penal seleciona quais estereótipos, perfis de
criminoso devem-se deixar de lado, ou seja, alguns sujeitos não serão alvo da intervenção
penal, por não buscarem atingir o bem jurídico definido que necessita de maior custódia
(como ocorre usualmente com as condutas de colarinho branco, ou classes sociais mais altas).
Desta forma, conclui-se que o maior problema das superlotações, e seu estado da arte
inconstitucional nas casas prisionais, não são resultantes apenas da falta de alternativas,
propostas capazes de reduzir tal calamidade, pois, é consabido por todos (sociedade,
operadores do direito), a verdadeira e efetiva situação das casas prisionais, e as consequências
provocadas a partir de suas superlotações, que produzem como efeito a transformação de
presídios em verdadeiros depósitos de lixos humanos, e que consequentemente convivem
com a supressão de direitos básicos, inerentes para garantia mínima de dignidade a pessoa
humana.
215

Por fim, mesmo com alternativas/propostas que possam trazer mecanismos efetivos, e
capazes de combater, e solucionar questões das superlotações dos presídios, e combater a
visível seletividade do sistema penal para com os estratos sociais mais pobres, é importante
compreender que para ocorrer verdadeiras mudanças, e que dessas mudanças advenham
resultados eficazes, é necessário primeiramente a mudança de mentalidade. Entender que é
preciso haver uma ruptura na cultura do encarceramento presentes nos operadores do direito
e sociedade, isto é, compreender que a criação de leis ou alternativas, somente não possuem
a capacidade de transformar ou produzir mudanças de forma isolada, caso não ocorra a
ruptura com a visão punitivista e encarceradora que lesa não apenas o sistema prisional, mas
todo e qualquer sujeito que responda a um processo penal no Brasil.

REFERÊNCIAS

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da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012.

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Tradução: Juarez Cirino
dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

BARAK, Greg. The crimes of the powerful and the globalization of crime. Revista Brasileira de
Direito. v. 11, n. 2, jul-dez., 2015.

BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2005.

BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 3. Ed. Rev., atual. e ampl.- São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2015.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Reunião Especial de Jurisdição do CNJ com os


Presidentes dos Tribunais de Justiça dos Estados - 2017. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/02/b5718a7e7d6f2edee274f93861747
304.pdf>. Acesso em 03 de março de 2017.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Estatísticas revelam aumento das condenações de


encarceramento - 2016. Disponível em: < http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/83669-
estatisticas-revelam-aumento-das-condenacoes-de-encarceramento >. Acesso em 08 de Abril
de 2017.

BRASIL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – dezembro de 2014.


Disponível em: <http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-
penal/documentos/infopen_dez14.pdf > Acesso em: 28 de fevereiro de 2017.
216

BRASIL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – junho de 2014.


<http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-
feira/relatorio-depen-versao-web.pdf>. Acesso em 03 de março de 2017.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo Juiz no Processo Penal. Disponível
em: <http://emporiododireito.com.br/o-papel-do-novo-juiz-no-processo-penal-por-jacinto-
nelson-de-miranda-coutinho/>. Acesso em 23 de abril de 2017.

KARAM, Maria Lucia. Para conter e superar a expansão do poder punitivo. Disponível em:
<http://www.domhelder.edu.br/revista/index.php/veredas/article/viewFile/92/488 >.
Acesso em 20 de março de 2017.

KHALED JÚNIOR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição
inquisitorial. 2 ed. Belo Horizonte. Letramento: Casa do Direito, 2016.

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

ROSA, Alexandre Morais da, KHALED JÚNIOR, Salah H. In dubio pro hell: profanando o sistema
penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

ROSA, Alexandre Morais da, AMARAL, Augusto Jobim do. Cultura da punição: A ostentação
do horror. 2.ed. Rev. e ampl. Florianópolis: Emporio do Direito, 2015.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no Direito Penal. Tradução: Sérgio Lamarão. 2. ed. Rio
de Janeiro: Revan, 2007.

______. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio
de Janeiro: Revan, 2001.
217

A FENOMENOLOGIA DA SELETIVIDADE E A SUA RELAÇÃO COM O SISTEMA PENAL


BRASILEIRO

Alena Ocom Moreira1


Tainah Motta Nascimento2

RESUMO: Valendo-se do método hipotético-dedutivo e da pesquisa bibliográfica, analisar-se-


á o fenômeno da seletividade no sistema penal brasileiro, considerando a característica
desumana do controle e seletividade exercídos pelo Direito Penal, bem como o
funcionamento do processo de criminalização e controle das esferas economicamente
hipossuficientes da sociedade. E por fim de que forma ocorre o impacto do
superencarceramento e encarceramento em massa de pessoas pobres, negras e periféricas.

Palavras-chave: Delinquência; Sistema Punitivo; Criminologia; Direito Penal; Seletividade


Penal.

1 INTRODUÇÃO

Sob um olhar foucaultiano, podemos verificar que na obra Em Defesa da Sociedade,


ministrada no Collège de France nos anos de 1975 e 1976, o autor preocupou-se em entender
a sujeição dos corpos, transportando sua análise para as fronteiras da sociedade, para os
limites do corpo social, pois o essencial para uma análise política é compreender de que forma
se constituem os corpos de pessoas sujeitadas a uma dominação, ou seja, controlar um corpo
é controlar aquilo que é considerado perigoso para a coletividade. Para ele, o corpo é
constituído pelo poder, que atravessa o corpo com todas as suas práticas e mecanismos,
lembrando que esse poder não possui apenas efeitos negativos, mas também efeitos positivos
como a normalização e saúde do corpo social.
Os limites de uma localidade, conhecida nos centros urbanos como periferia é de
conhecimento pré-concebido da população brasileira como sendo o lugar onde reside todo
tipo deà i eàeà i i oso.à áàpe ife iaà àaàf o tei aàfísi a,à asàseàasso iaàfo te e teà o àaà
ideiaàdeàf o tei aà o alàdaàso iedade à “INрO‘йTTO,à ,àp. .àCo àoàestudoàdeàTe esaà
Caldeira (2000) é possível entender a relação entre pobreza, crime e periferia. Oà i eàeàosà

1
Bacharela em Ciências Jurídicas e Sociais – Direito, pelo Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo
- IESA.
2
Bacharela em Ciências Jurídicas e Sociais – Direito, pelo Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo
- IESA.
218

criminosos são associados aos espaços que supostamente lhe dão origem, isto é, as favelas e
osà o tiços,à istosà o oàp i ipaisàespaçosàdoà i e à CáэDйI‘á,à ,àp.à .à
Consoante Wermuth (2011) é necessário fazer uma análise de dois momentos
históricos do Brasil para comprovar o medo como mecanismo de disciplina social, que age nas
classes mais necessitadas em prol das classes conservadoras. O primeiro momento que
podemos averiguar é o período da pós-abolição da escravatura, quando a partir da
Proclamação da República procurou-se implantar a ordem burguesa, fazendo com que
su gisseàaài age àdoà aga u do ,àdoà o ioso àouà deli ue te àpa aà ueà ep ese tasse à
o inimigo da ordem social. O segundo momento, de acordo com Wermuth (2011) é quando
inicia a implementação do modelo neoliberal, no século XX, a partir da década de 80 que
perdura até os dias atuais, mesmo tendo a macrocriminalidade representada na figura do
traficante.
As estatísticas criminais no Brasil além de serem fonte para um estudo sobre a
criminalidade, são principalmente um instrumento de análise do controle e seletividade no
sistema penal. É possível, segundo Wermuth (2011) confirmar que essas estatísticas
distorceram a distribuição da criminalidade nas camadas sociais, criando uma falsa verdade
de que os crimes são originados das classes menos favorecidas, justificando a ação do sistema
penal sobre essas pessoas.
Além disso, no momento em que é apontado que a criminalidade real é extremamente
maior que a criminalidade mostrada nas estatísticas, é possível perceber que os princípios
pelos quais o sistema penal é embasado (a igualdade, segurança e direito à justiça), são
completamente corrompidos. A seletividade do sistema penal é dividida em quantitativa e
ualitati a,àaàp i ei aà ueàde i aàjusta e teàdeàsuaài apa idadeàope a io alàdeàsegui àaà
planificação do discurso jurídico-pe al à Wй‘MUTр,à ,àp.à .àйàaàsegunda, é marcada
pelaà espe ifi idadeàdaài f aç oàeàasà o otaç esàso iaisàdosàauto esà eà íti as ,àistoà ,àdasà
pessoasàe ol idas à áND‘áDй,à ,àp.à .à
O motivo da população carcerária no sistema penal brasileiro ser constituída por
pessoas quase que integralmente das classes mais baixas e com o mínimo de condições
econômicas, segundo Flauzina (2008) comprova que não existe um sistema de seleção de
atitudesà i i osas,à asàsi àdeài di íduosà ueà e e e oàoàeste e tipoàdeà deli ue tes .à
Essa seletividade, aduz Wermuth (2011), deve-se à ocorrência de que em sociedades onde há
219

desigualdades, as classes detentoras do poder têm por consequência a capacidade de coagir


o sistema para que as impunidades que ocorrem pelas suas próprias atitudes sejam ignoradas.
Osàtiposàpe aisàt àu aà elaç oàdi etaà o àosà e sàju ídi osà ueàasà a adasàdo i a tesà
daàso iedadeàp ete de àp ese a à “T‘йCы,à ,àp.à .à
Consoante Wermuth (2011), é possível afirmar que no Brasil a punição não é para
defender a sociedade dos malfeitores e a criminalidade, mas sim para fazer com que cada
classe social tolere o que lhe é conferido pelo sistema de produção em vigor. Para esse autor,
devido às reformas neoliberais ocorridas no Brasil desde as últimas décadas, a seletividade
apresenta uma extensão desmedida, uma vez que, partindo delas, reúne-se a uma população
ueà j à foià histo i a e teà pe seguidaà peloà siste aà pe al,à aà o diç oà deà esp lioà daà
escravidão os contingentes populacionais que são banidos do mercado de trabalho e da
sociedade deà o su oàpo ueà oàdisp e àdeà eiosàdeàpa ti ipaç oàefeti a à Wй‘MUTр,à
2011, p. 120). Ou seja, para a sociedade de consumo, quem não tem condições de gastar deve
ser banido, pois não tem serventia alguma para a sociedade, restando apenas a
marginalizaç o,àouà po à eioàdoàe a e a e toàe à assaàeàdaàeli i aç oàpu aàeàsi plesàaà
pa ti àdaài te e ç oà iole taàdoàsiste aàpu iti o à Wй‘MUTр,à ,àp.à .à
Desse modo, a pobreza já não é apenas uma mão de obra barata, mas sim uma
extensão de indivíduos considerados inúteis para a sociedade de consumo, e como as chances
dessa população conseguir a inclusão é remota, resta apenas que eles sejam considerados
fo teàdeàpe igoàpa aàoà esta teàdaàpopulaç o.à Éàpo àissoà ueàelesàp e isa àse àseg egados,à
inocuizados, afastadosàdosà o su ido es,àe fi ,àdestituídosàdeàpode à Wй‘MUTр,à ,àp.à
124), para que a essência do modo de vida consumista se mantenha intacta.

2 O DIREITO PENAL COMO CONTROLE SOCIAL

Como aduz Wermuth (2011), é preciso frisar que a Constituição de 1824 não abrangia
os escravos ou as pessoas livres e pobres, mas apenas aqueles que de acordo com um
rendimento previamente estipulado poderiam participar da vida política, ao mesmo tempo
e à ueàoàC digoàC i i alà a a giaàtodosàosàseg e tosàso iais à NйDER, 2007, p. 185). Desse
modo, mesmo com a influência do liberalismo, o Código Criminal de 1830 sustentava uma
série de penas cruéis dirigidas sobretudo, para os escravos, com efeito para a continuidade
220

daàpe aàdeàaçoiteàp e istaà oàseuàa tigoà ,à hu a izada à oà ueàdizà espeitoà àli itaç oàdoà
ú e oà deà açoites,à ujoà ú e oà i oà oà pode iaà ult apassa à oà deà i ue taà po à dia à
(WERMUTH, 2011, p. 98).
Verifica-se nesse período certa aproximação das elites brasileiras com a organização
europeia de justiça criminal, que apesar de ser moderna era conservadora, a sustentação
social que até pouco tempo era embasada na escravidão segue responsável pela manutenção
dosàpode esàdasàelites,à esulta teà o fo eàNede àeàCe uei aàнilhoà ,à daàpe a iaà
de uma cultura jurídico-política baseada na obediência hierárquica e na fantasia absolutista
deà u à o t oleà a solutoà so eà osà o posà dosà t a alhado es à NйDй‘à eà Cй‘QUйI‘áà нIэрO,à
,à p.à .à Noà es oà se tido,à afi aà нlauzi aà à ueà oà a ejoà doà siste aà pe al,
principalmente pela difusão do medo e de seu poder desarticulador, cumpriu um papel
fu da e talà osàp o essosàdeà atu alizaç oàdaàsu alte idade à нэáU)INá,à ,àp.à .à
Ainda é preciso atentar para o fato de o Código Penal ter nascido momentos antes da
Co stituiç oà epu li a a,àdei a doà isí el,àsegu doàнlauzi aà à ueà oàfi àdoà egi eàdeà
trabalhos forçados reclamou prioritariamente um instrumento de repressão, deixando para
segundo plano uma carta de declaração de direitos e princípios que regulamentasse a vida em
so iedade à нэáU)INá,à ,àp.à .àDestaà a ei a,à àpossí elàafi a à o soa teàWe uthà
(2011) que a troca do trabalho escravo pelo trabalho livre resultou na formação de classes,
e à ueàaà lasseàdo i a te,à e t oà ep ese tadaàpelasàoligarquias cafeeiras ligadas à áreas
mais dinâmicas do ponto de vista econômico da sociedade brasileira da virada do século XIX
pa aà oà s uloà XX à Wй‘MUTр,à ,à p.à ,à p o u ouà deà algu aà a ei aà i pedi à aà
continuidade do monopólio da opressão das esferas inferiores (ex-escravos), mantendo um
controle da ordem e dos desvios.
Nas discussões ocorridas na Câmara dos deputados em 1888, o que preocupava mais
e aà oà o ateà aà o iosidade,à dadoà oà e te di e toà deà ueà aà a oliç oà t aziaà o sigoà osà
contornos do fantasmaàdaàdeso de à CрáэрOUB,à ,àp.à -67). A preocupação com esse
assunto era tanta que para resolver o problema houve a sugestão de recrutar todas essas
pessoas libertas para o exército.
O que embasava os debates era a concordância entre as elites sobre a índole dos ex-
escravos que,
em geral pensados como indivíduos que estavam desesperados para a vida em
sociedade. A escravidão não havia dado a esses homens nenhuma noção de justiça,
221

de respeito à propriedade, de liberdade. A liberdade do cativeiro não significava para


o liberto a responsabilidade pelos seus atos, e sim a possibilidade de se tornar ocioso,
furtar, roubar etc. Os libertos traziam em si os vícios de seu estado anterior, não
tinham a ambição de fazer o bem e de obter um trabalho honesto e não eram
i ilizados à oà sufi ie teà pa aà seà to a e à idad osà ple osà e à pou osà eses.à й aà
necessário, portanto, evitar que os libertos comprometessem a ordem, e para isso
havia de se reprimir os seus vícios. Esses vícios seriam vencidos através da educação,
e educar libertos significava criar o hábito do trabalho através da repressão, da
obrigatoriedade (CHALHOUB, 2001, p. 68).

Para tal, segundo Wermuth (2011) era necessária uma justificativa ideológica para a
obrigatoriedade do trabalho nas classes baixas, a qual vai ser encontrada na noção de trabalho
o oàele e toàdaào de àso ial,àu aà et i uiç oàdoàt a alhado à àso iedade,à de tudo aquilo
ueà elaà lheà ga a te,à aà e e ploà daà segu a ça,à dosà di eitosà i di iduais,à daà li e dade,à et à
(WERMUTH, 2011, p. 102). Da mesma maneira, estabelece uma ligação do trabalho com a
moralidade, ou seja, quanto mais a pessoa trabalhar mais qualidades morais ele terá. É por
esse motivo, de acordo com Wermuth (2011), que dois anos após o fim da escravidão, em
1890, o Código Penal foi promulgado, na falta de legislação específica para os trabalhadores,
o Direito Penal ocupou a função do Direito do Trabalho, regulando as relações entre as classes
de uma forma repressiva.
Esse momento em que o Brasil começa a estabelecer um mercado de trabalho livre,
oàaugeàdaài pla taç oàdoà apitalis o,à oài di íduo,à esteà o te to,àouàe aàt a alhado àouà
era vadio e, conse ue te e te,à pe igoso,à de e do,à po ta to,à se à ep i ido à Wй‘MUTр,à
2011, p. 102). Sobre essa questão da ociosidade Chalhoub (2001) ressalta que a mudança do
trabalho escravo para o trabalho livre implicou em uma necessidade de transformação da
mentalidade das elites brasileiras, com relação ao trabalho que antes os senhores eram donos
dosàes a osàeà o se ue te e teà oà u doàdoàt a alhoàesta aào ia e teà i u s itoà à
esfe aà aisà a plaà doà u doà daà o de ,à ueà o sag a aà oà p i ípioà daà p op iedade à
(CHALHOUB, 2001, p. 103).
Outra situação que piorou com a abolição da escravatura foi que embora os ex-
escravos estivessem livres para o mercado de trabalho, eles foram descartados da maioria das
profissões por serem analfabetos e sem qualificação necessária, assim sendo eles ficavam com
osà t a alhosà is,à alàpagosàeàse àp o essaàdeàas e s oàso ial à NйDй‘àeàCй‘QUйI‘áàнIэрO,à
2006, p. 28), nas palavras de Chalhoub (2001) o negro apenas passou de escravo a trabalhador
livre, mas isso não mudou absolutamente nada na constituição da estrutura social.
222

Chalhou à à ha ouàdeà edoà a o àoà ueàa o te euà oàpe íodoàp s-abolição


no Brasil, aconteceu devido ao medo que a população branca tinha de que os negros fizessem
uma rebelião diante das péssimas condições de vida em que estavam inseridos, o medo das
classes economicamente autossuficientes de desfazer-se do poder e controle que exerciam
sobre os negros, passou segundo Flauzina (2008), a ser a maior investida para a repressão.
Como destaca Batista (2003a),

esse medo branco que aumenta com o fim da escravidão e da monarquia produz
uma República excludente, intolerante e truculenta com um projeto político
autoritário. Essa foi sempre a síndrome do liberalismo oligárquico brasileiro, que
funda a nossa República carregando dentro de si o princípio da desigualdade legítima
que herdara da escravidão (BATISTA, 2003a, p. 37).

Conforme Wermuth (2011) é necessário deixar claro que todo esse discurso brasileiro
era ancorado no pensamento europeu onde a Criminologia surgia como ciência, com a
justificativa sociológica e psicológica de garantir que a elite prevalecesse, foi assim que surgiu
oà i i osoà asilei o à ueà ga houà o osàade eços,à ela io adosà sàtesesàdaà is ige aç oà
racial e às elucubrações sobre a presença de ex-escravos de origem africana nas cidades
asilei as à NйDй‘àeàCй‘QUйI‘áàнIэрO,à ,àp.à .àй p eàWe uthà 2011) que,

é, portanto, da soma desses fatores – e essidadeà deà i posiç oà doà o t ole à daà
população de ex-es a osàpo à eioàdoàt a alhoàeà edoà a o àdeàu a possível
insurreição negra – que, à luz da criminologia racista- iologistaà àlaà asilei a ,àsurge
aà figu aà doà ala d o ,à ouà seja,à doà adio ,à o oà p i ei aà figu aà pe seguidaà
majoritariamente pelo sistema punitivo brasileiro. É por isso que o Código Penal de
1890 tipifica como crime, em seu artigo 399, a vadiagem, e, no artigo 206, criminaliza
a greve (WERMUTH, 2011, p. 107).

й àout asàpala as,à aàtipifi aç oàdaà adiage àeàdaàg e eà ep ese taàu aàte tati aà
das classes dominantes da época de impor àquela população, por meio do Direito Penal, a
o de àso ial à Wй‘MUTр,à ,àp.à .àDestaàfo a, buscou-se o adestramento dos corpos
que agora eram livres, por meio da ordem e da disciplina, para o trabalho industrial, pois havia
no momento o estabelecimento de uma economia de mercado. Como afirma Chalhoub (2001)
oào iosoà àa ueleài di íduoà ue,à egando-se a pagar sua dívida para com a comunidade por
meio do trabalho honesto, coloca-seà à a ge àdaàso iedade à CрáэрOUB,à ,àp.à .à
Desta forma, caracterizar a vadiagem como crime, para Wermuth (2011), pretendia
garantir a abolição da escravatura, que os negros continuassem de alguma forma sujeitados
aoàt a alhoàeà o seguisse àoà o t oleàdessaàpopulaç oàespe ífi a,àat a sàdaà est at giaàdaà
223

suspeição generalizada, com os afro- asilei osà istosà o oà suspeitosà p efe e iais à
(BATISTA, 2003a, p. 38). Portanto devido ao medo das elites de que as classes populares se
revoltassem, isso passou a ser aniquilado com o medo que as pessoas começaram a ter do
Direito Penal, pois a eficácia desse sistema segundo Neder (1995) apenas se baseia na
intimidação das classes subalternas. Quando não foi mais possível manter a produção na
p op iedadeà pelaà pessoaà doà t a alhado ,à su giuà aà teo iaà daà suspeiç oà ge e alizada à asà
palavras de Chalhoub (2001) e Batista (2003a),

passou a fundamentar a invenção de uma estratégia de repressão contínua fora dos


limites da unidade produtiva. Se não era mais viável acorrentar o produtor ao local
de trabalho, ainda restava amputar-lhe a possibilidade de não estar regularmente
naquele lugar. Daí o porquê, em nosso século [XX], de a questão da manutenção da
o de à se à pe e idaà o oà algoà pe te e teà à esfe aà doà pode à pú li oà eà suasà
instituições de controle – polícia, carteira de identidade, carteira de trabalho, etc.
Nenhum desses elementos estava no cerne da política de domínio dos trabalhadores
na escravidão; na verdade até 1871, não existia sequer algum registro geral de
trabalhadores (CHALHOUB, 1996, p. 24).

Na década de trinta do século XX começaram as análises do Código Penal de 1940


a a te izadoà peloà te i is oà ju ídi o ,à ueà oà passaà deà u à positi is oà ju ídi oà
legiti ado àdoàsiste aàpe alàeà egoàpe a teàseuà ealàdese pe hoàeàsuasàfu ç es à BáTI“Tá,à
2002, p. 153). Isso demonstra que não ocorreu nenhuma mudança de um Código para o outro
com relação à seletividade no sistema punitivo, apenas confirmou que o sistema brasileiro
está totalmente estruturado na forma de seleção de indivíduos. De acordo com Andrade
(1997) pode-se assegurar que a tipificação de uma conduta delituosa não se esgota no
momento de aplicação de sua norma co espo de te,à peloà o t io,àaàleiàpe alà o figu aà
um marco abstrato de decisão dentro do qual as agências do sistema penal gozam de uma
a plaà a ge àdeàdis i io a iedade à Wй‘MUTр,à ,àp.à .à
Essa seletividade do sistema penal surgiu principalmente devido ao papel da
Criminologia Crítica, com o colarinho branco e as cifras ocultas da criminalidade, desta
a ei aà a tesà deà seà ap ese ta e à o oà fo teà deà estudoà daà i i alidadeà e à si,à asà
estatísticas criminais transformaram-se em um hábil instrumento para a investigação da lógica
doà o t oleàso ialàle adoàaà a oàpeloàsiste aàpe al à Wй‘MUTр,à ,àp.à . Ao passo em
que o Estado não assegura a segurança e os direitos de certo número de indivíduos originados
224

das camadas mais necessitadas, o sistema penal os reencontra como objetos que não são para
garantir os seus direitos, mas para fortalecer os direitos das vítimas em potencial.
Por este ângulo é possível observar que para Andrade (1997) o processo de
criminalização não faz mais do que aumentar a especialidade seletiva do Direito Penal, pois as
aio esàp o a ilidadesàdeàse àsele io adoàpa aàfaze àpa teàdaà lie telaàpe alà eàse àsujeitoà
de sanções, especialmente as estigmatizantes, como a prisão, aparecem, de fato,
concentradas nos níveis mais baixos daà es alaà so ial à áND‘áDй,à ,à p.à .à ái daà deà
acordo com a autora, a posição incerta no mercado de trabalho e os problemas na constituição
familiar e escolar, são características dos indivíduos das camadas mais necessitadas e que para
a Criminologia positi istaàs oàasà ausasàdaà i i alidade.àássi àse do,à aà a i elàp i ipalàdaà
distribuição desigual do status de delinquente parece indubitavelmente ser, à luz das
i estigaç esà e e tes,àaàposiç oào upadaàpeloàauto àpote ialà aàes alaàso ial à Bá‘áTTA,
1982b, p. 171-172).
Através desse fundamento, podemos ver o Direito Penal como uma ideologia
extremamente sedutora, onde temos ao mesmo tempo a liberdade e a defesa da sociedade.
йà o àoàfo tíssi oàapeloàlegiti ado àat a sàdoà ualàoàsiste aàpe alàp omete, em suma, que
oàpa aísoàpassaàpelaàsuaà ediaç o à áND‘áDй,à ,àp.à .àPa aàfaze àjusàaàessasàp o essasà
o sistema penal coloca em prática um conjunto de mecanismos técnicos que irá substituir o
o he idoà a as o.à ‘e o duzi doàaoà o t oleàso ialàglobal, o sistema penal aparece, por um
lado, como filtro último e uma fase avançada de um processo de seleção que tem lugar no
o t oleà i fo alà fa ília,à es ola,à e adoàdeàt a alho à áND‘áDй,à ,à p.à .à Po à
esses mecanismos de controle atuam lado a lado com o controle penal efetivo, dentro de um
grande sistema de poderes.

2.1 O CENÁRIO DO ENCARCERAMENTO EM MASSA E A SUPERLOTAÇÃO NO SISTEMA


PRISIONAL BRASILEIRO

Conforme Nilo (2002) quando se fala da virada do século XIX para o XX e as


providências com relação à segurança, as elites neoliberais precisavam que a pena fosse uma
atitudeà pa aà al à daà o dutaà des iada:à aà ideiaà deà o dutasà deso dei asà ouà a tiso iaisà
criminalizadas resultou em seletividade, estigmatização e criminalização dos pobres em todo
225

oà u do à BáTI“Tá,à ,àp.à . Pa aàaà efe idaàauto aàfoiàessaàideologiaàdeà leiàeào de à ueà


deu embasamento para que o processo de criminalização gerasse o encarceramento em
massa de quem não era útil ao mercado de trabalho.
De acordo com dados do Relatório Temático: Quando a liberdade é a exceção: a
situação das pessoas presas sem condenação no Rio de Janeiro (2016), uma realização da
organização não governamental de direitos humanos, Justiça Global, juntamente com o
Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ),
podemos verificar que o Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, segundo
o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), com 622. 202 presos. Esses
dados são de dezembro de 2014 e só foram divulgados em 2016 pelo Ministério da Justiça.
Outro ponto importante que podemos observar no relatório mencionado é a rapidez
com que acontecem os aprisionamentos no Brasil, quando em 1990 tínhamos 90 mil pessoas
presas, chegamos em 2014 com 622 mil indivíduos encarcerados. Comprovando que o
supe e a e a e toà oàalte ouàosàí di esàdeà iol iaà oàpaís,à oàB asilàau e taàe à %àoà
número de presidiários anualmente, chegando hoje à medida de quase 300 pessoas presas
pa aà adaà à ilàha ita tes,àoàdo oàdaàta aà u dial,à ueà àdeà àpo à à il à INнOPйN,à
2014, p. 8).
Em conformidade com o Relatório Temático (2016) a cultura do superencarceramento
é um dos fato esàdesseà ú e oàassustado àdeàp esos,à oàap isio a e toàe à assaàsupe lotaà
asàu idadesàp isio ais,à ueà e ep io a àasàpessoasàe à o diç esà adaà ezàpio es à ,àp.à
29). E os indivíduos que são inseridos nessas crueldades são em sua maioria jovens, negros e
pobres. Durante todos esses anos foi possível observar, conforme o Relatório Temático
,à aà supe lotaç oà eà oà e a e a e toà e à assaà oà siste aà pe alà asilei o,à à
alarmante que 3.600 homens entrem no sistema prisional do Rio de Janeiro todos os meses.
Issoàe ui aleàaà . à o osài te osàdoàse oà as uli oàpo àa o à ,àp.à ,à ost a doà
desta forma a grandiosidade que o choque do superencarceramento produz na população,
mencionando também que esses números aumentam em datas como Copa do Mundo e
Olimpíadas.

Não bastasse o enorme contingente de pessoas presas, é assustador observar que


os grupos histórica e violentamente alijados do processo democrático brasileiro são
os alvos preferenciais, senão exclusivos, da política criminal. A seletividade penal se
apresenta com aprisionamento massivo de jovens negros, pobres e periféricos,
sendo certo que as chances de uma pessoa neste perfil ser privada de sua liberdade
226

é muito maior do que a de indivíduos brancos e pertencentes a grupos socias


tradicionalmente privilegiados na sociedade brasileira. Destaca-se, ainda, o
encarceramento de pessoas em sofrimento psíquico, bem como o aumento na taxa
de encarceramento de mulheres, ainda que gestantes, lactantes e com filhos
pequenos (2016, p. 75).

O Relatório Temático (2016) expõe que a prisão influência de diversas formas a vida
deà ulhe esà eà ho e sà eà seusà fa ilia es,à oà des asoà à p ese teà j à osà p i ei osà diasà deà
privação de liberdade e também se verifica na desassistência à família do detento,
evidencia doàaà iol iaài stitu io alizadaàdoàйstadoà asilei o à ,àp.à .àál àdoà ais,à
o encarceramento em massa e as superlotações no sistema prisional não mudam em nada os
níveis da violência, mas pelo contrário, vemos no sistema carcerário diversos tipos de violação
aos Direitos Humanos, e o Estado aparece como principal personagem desse controle.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando os aspectos observados, compreendemos que a questão do controle e


disciplina das classes mais humildes, percorre a história republicana brasileira, com seu
nascimento no momento de transição entre o período monárquico para o republicano, onde
a criminalização totalmente desigual no sistema penal, fez com que a pobreza fosse
criminalizada. Razão pela qual, a maioria da população carcerária em nosso país, ser composta
por pessoas das classes mais baixas, motivo que sem dúvidas, confirma que não existe um
sistema de seleção de comportamentos criminosos, mas sim, de pessoas que terão o
este e tipoàdeà deli ue te .à
A maneira como as grandes civilizações são estruturadas mostra que ao passo em que
os bairros mais ricos e centrais são os mais valorizados, transformando-se em objeto de
investimento por parte das classes poderosas, os territórios marginalizados constituem áreas
de expressiva ameaça para o restante da população, por gerarem um medo coletivo. Dessa
forma, o Direito Penal foi utilizado para combater as classes consideradas perigosas pela
so iedade,à eà e à o se u iaà disso,à aà p is oà passouà aà se à aà lataà deà li o à hu a oà do
Judiciário.
As classes sociais surgiram em decorrência da substituição do trabalho escravo pelo
trabalho livre, nessa conjuntura, a classe dominante era composta pelas oligarquias cafeeiras
mais dinâmicas do ponto de vista econômico da sociedade. Essas, procuraram de alguma
227

maneira impedir a continuidade do monopólio da opressão das esferas de ex-escravos,


mantendo um controle da ordem e dos desvios. O negro então, passou de escravo a
trabalhador livre, entretanto, essa perspectiva não modificou absolutamente nada no que
tange a constituição da estrutura social da época.
Outro ponto importante observado, foi a celeridade com que ocorrem os
aprisionamentos no Brasil, na década de 1990, o Brasil contava com 90 mil pessoas no sistema
carcerário, chegamos em 2014 com 622 mil indivíduos encarceramos. De acordo com o
relatório do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça, no ano de 2014, a
maioria dos indivíduos estavam nos presídios em decorrência de prisões por tráfico de drogas.
No sentido de expor a grandiosidade do baque que o superencarceramento produz na
população, é importante frisar que mensalmente, mais de 3.600 homens entram no sistema
prisional do Rio de Janeiro e que isso se traduz, anualmente, em 43.200 novos internos do
sexo masculino.
Para demonstrar o desfavor realizado pela institucionalização repressiva do sistema
penal em uma esfera social específica, foram salientadas as graves violações praticadas contra
indivíduos socialmente estigmatizados. Dessa forma, buscou-se não somente criticar nosso
sistema punitivo, mas sim, apontar suas falhas que se constituíram e solidificaram
historicamente, para possibilitar que fosse em certa medida ou escala, repensado e
reformulado, considerando nosso contexto histórico atual.

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direitos/politica-penal/infopen_dez14.pdf, p. 42> Acesso em 09 nov 2016.

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Departamento Penitenciário Nacional. Disponível em <http://justica.gov.br/seus-
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NEDER; CERQUEIRA FILHO, Gisálio. Criminologia e poder político: sobre direitos, história e
ideologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

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Sociologias/Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós Graduação em


Sociologia. – Vol. 1, nº 1 (jan./jun. 1999) Porto Alegre: UFRGS.IFCH, 2005.

STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do júri: símbolos e rituais. Ed. 3. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 1998.
229

AS MÍDIAS INDEPENDENTES E O FORTALECIMENTO DOS DIREITOS HUMANOS

Vinicius Bindé Arbo de Araujo¹

RESUMO: O presente artigo busca trazer elementos acerca das novas mídias, a partir do
debate sobre a sociedade em rede e do avanço no Brasil, no último período, de mídias
alternativas e independentes, que enfocam pautas relacionadas aos direitos humanos, a partir
de reportagens investigativas e de um trabalho colaborativo e multiprofissional, se
contrapondo ao trabalho da mídia tradicional. Essas novas mídias se beneficiam dos recursos
tecnológicos e realizam um trabalho plural, inclusive com olhar atento para os excessos
cometidos no que tange à justiça criminal, o que acaba por ferir, em diversos momentos, os
mais elementares direitos fundamentais e humanos.

Palavras-chave: Sociedade da informação; Novas mídias; Direitos humanos; Mídias


independentes; Cultura da convergência;

1 INTRODUÇÃO
Entre os direitos humanos e fundamentais também se encontra o direito à
comunicação e informação: livre, democrática e plural. No Brasil, a dificuldade de se efetivar
esse conceito é histórico, devido ao poder construído por grandes oligopólios midiáticos,
concentradores de recursos, meios e métodos, e que barram qualquer processo de avanço na
construção de um novo conceito regulamentado de mídia, mais adequado aos dias atuais.
Para entender de que forma esse processo pode avançar, este artigo estará analisando
a moderna sociedade da informação, baseada em uma estrutura de relacionamento em rede,
viabilizada através dos recursos tecnológicos que estão acessíveis para boa parte da sociedade
e que beneficiam o surgimento de novas mídias e, ao mesmo tempo, auxiliam no
fortalecimento do conceito e da visão sobre direitos humanos.
Mídias alternativas e independentes, que se expandem e se consolidam no Brasil,
serão exemplificadas e interpretadas, a fim de que se possa demonstrar a importância que a
comunicação social possui para aprofundar a proteção aos direitos humanos em um país ainda
carente dessa cultura de respeito aos direitos mais elementares de qualquer cidadão ou
cidadã.
Poder interligar os direitos humanos, o jornalismo, a cidadania e a construção de uma
proposta que dignifique a luta de tantos envolvidos com esses setores, é um caminho
importante para a ampliação da análise e do aprofundamento sobre um tema essencial na
atualidade.
230

2 SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA

A segunda metade do século XX produziu a ascensão de uma nova forma de interação


entre a sociedade, através de meios tecnológicos cada vez mais modernos, relações virtuais
que evitam fronteiras materiais, multiplicidade de compartilhamentos, tanto de ideias como
de observações, onde o dinamismo da comunicação demonstra-se cada vez mais forte.
Denominada como sociedade em rede, praticamente todas as formas de comunicação
e interação hoje existentes podem ser consideradas vinculadas a este formato, que não é
estático, mas que está em constante transformação e movimento, garantindo amplas
possibilidades de contato a setores sociais que estejam interligados de alguma forma.
Pa aà Ma uelà Castellsà ,à p.à à u aà so iedadeà e à edeà à u aà so iedadeà ujaà
estrutura social é construída em torno de redes ativadas por tecnologias de comunicação e de
informação processadas digitalmente e baseadas na microelet i a.
Essa percepção caracteriza que uma base social que possui infraestrutura baseada em
redes digitais possui uma capacidade potencial de ser global. Ainda segundo a avaliação de
Cá“Tйээ“à ,àp.à ,à asàp i ipaisàati idadesà ueà olda àeà o t olam a vida humana em
todos os cantos do planeta estão organizadas em redes globais: [...] a mídia de massa, as redes
daài te et .
A partir desta revolução tecnológica, abrem-se as possibilidades para um
aprofundamento das novas mídias, favorecidas por meios de veiculação mais dinâmicos,
menos custosos e com grande alcance social, contrapondo-se ao trabalho dos meios de
comunicação tradicionais, dependentes da sustentação econômica proveniente de
patrocinadores e, portanto, também dos interesses destes, que acabam por impor limites ao
trabalho jornalístico amplo e irrestrito.
Outro conceito que deve ser realçado, diz respeito à cultura de convergência, termo
este cunhado por Henry Jenkins, a partir de uma obra publicada em 2008, e que se relaciona
diretamente com três fatores: convergência dos meios de comunicação; cultura participativa
e inteligência coletiva. São elementos que se ligam com aquilo que este trabalho se propõe a
trabalhar.
Esta concepção apresenta um olhar a respeito do cruzamento entre mídias alternativas
e mídias de massa, que se tornam receptivas através de variados suportes tecnológicos,
231

demarcando aquilo que se convencionou dizer como era da convergência midiática. E também
expande a mobilização social no campo da comunicação, para além da luta contra a
concentração midiática, como JENKINS (2008, p. 331) expõe neste trecho:

A luta contra a concentração de poder na mídia é apenas uma das batalhas que
deveriam preocupar os reformadores dos meios de comunicação. O potencial de uma
cultura midiática mais participativa também é um objetivo pelo qual vale a pena lutar.
Neste momento, a cultura da convergência está provocando constantes flutuações na
mídia e expandindo as oportunidades para os grupos alternativos reagirem aos meios
de comunicação de massa. [...] promover formas de educação e letramento midiático,
que auxiliem as crianças a desenvolver as habilidades necessárias para se tornarem
participantes plenos de sua cultura.

Esta proposta de pensamento valoriza sobremaneira a participação do indivíduo em


um novo marco de relação com as mídias, onde a participação do público é fundamental, a
partir dos meios de interação que estão disponíveis e do entendimento de que a cultura
popular deve ser protagonista, a partir de sua realidade e seus anseios, propondo e
construindo, em conjunto com as estruturas midiáticas, aquilo que é veiculado.
As novas mídias digitais proporcionam um cenário onde qualquer indivíduo, com
mínima instrução no mundo da informática, possui plenas condições para produzir e
disseminar vídeos, imagens, sons, entre outros conteúdos. Podem, inclusive, reaproveitar as
produções da mídia tradicional, dando a estas um novo significado.
O teórico da sociedade da convergência defende a ideia de que todas as principais
mídias estão, de alguma forma, convergindo para a internet, permitindo que usuários
compartilhem experiências, gerando troca de conhecimento e comunicações variadas. A
informação passa por diferentes canais midiáticos, integrando diferentes meios nesse
p o esso.à álgumas ideias se espalham de cima para baixo, começando na mídia comercial
[...]à out asà su ge à deà ai oà pa aà i a,à aà pa ti à deà iosà po tosà daà ultu aà pa ti ipati a ,à
afirma JENKINS (2008, p. 341).
Esta constatação da importância de se compreender e desenvolver a sociedade da
informação é necessária, pois as trocas culturais, o aprofundamento de conhecimentos e as
novas formas de relacionamento se vinculam a esta nova configuração social, que também
precisa estar sintonizada com os direitos humanos.
Cicília Peruzzo (2002, p. 45) tece comentário a respeito das mudanças que advém deste
processo revolucionário das novas tecnologias:
232

Na última década do século XX, uma nova grande mudança chega com as redes
cibernéticas que vêm revolucionar todo o status quo conhecido até então, da
economia às comunicações, passando a configurar uma realidade que passou a ser
chamada de sociedade da informação, ou a era da informação.

Todas as sociedades ditas civilizadas estão de certo modo dependentes deste sistema
de informação e tecnologia, em que a interação tornou-se instantânea. São novos formatos
de comunicação, com uma variedade infindável de opções para a grande massa, onde se veem
excessos, mas também onde se constrói muitas alternativas, se for pensado na questão de
fortalecer as ações e as iniciativas que buscam os diversos caminhos dos direitos humanos.
Porém, esta aproximação das redes e esta tomada de conhecimento ainda não estão
acessíveis para a totalidade da população. Este paradigma é que deve servir para a utilização
da comunicação e informação a favor da visão humana.

Alimenta-se a ideia ilusória de que a globalização e as tecnologias de informação e


comunicação estão colocadas para todos com a mesma disponibilidade e que os
limites e as diferenças entre os povos estão se dissipando. Ao contrário, a produção
de tecnologia é um requisito para manter a hegemonia e a centralização de poder.
Esta mesma tecnologia, entretanto, também pode vir a ser um suporte para quebrar
esta condição, pelo viés de sua utilização para a informação (RADDATZ, 2012, p. 308).

Resta claro que com a expansão das tecnologias, o poder do grande capital acaba por
também se afirmar a partir destas premissas, com concentração de tecnologias e de métodos
para deter o maior número possível de informações, o que acaba sendo um risco para a
soberania de muitas nações e para os direitos individuais de cada cidadão.
Casos como o WikiLeaks, uma organização transnacional sem fins lucrativos, sediada
na Suécia e que faz a publicação de documentos e informações oficiais, vazadas de governos
ou empresas, demonstram o grau de dificuldade para a limitação de algumas ações e, ao
mesmo tempo, a importância de mecanismos como esses para a transparência em setores
altamente protegidos, mas que muitas vezes são de interesse público.
A organização afirma defender a liberdade de imprensa e define-seà o oàu à g upoà
global e independente de pessoas com longa história de dedicação à ideia de uma imprensa
li eàeàdaàt a spa iaà ueàdelaàad àpa aàaàso iedade à WIKILEAKS, 2010, tradução nossa).
Esse debate, a partir do caso WikiLeaks, reacende o debate acerca do respeito,
autonomia e liberdade dos usuários, pois o projeto suscita críticas, tentativas de impedimento
233

e fica a mercê das estruturas que são de propriedade das grandes corporações e de seus
vínculos com governos e empresas poderosas.
No Brasil, desde a segunda metade dos anos 2000, cresce o número de novas mídias
dispostas a romper com o padrão tradicional de coberturas jornalísticas, influindo
diretamente no direito à informação e na liberdade de expressão e de comunicação. Mídias
que aproveitam as novas modalidades tecnológicas, a partir da expansão da internet, e que
aprofundam o debate a respeito de diferentes temáticas que se ligam diretamente aos
direitos humanos.
John Downing (2002, p. 49), em sua principal obra, realizou uma pesquisa consistente
que interpreta as mídias alternativas através do modelo de contra-informação, em que a mídia
adi alà u p eàaàfu ç oàdeà ue a àoàsil io,à efuta àasà e ti asàeàfo e e àasà e dades .à
Essa afirmação do teórico é realizada a partir da realidade de países ditatoriais e opressores.
Em regimes democráticos mais consistentes, como no Brasil, sua percepção é a seguinte:

a mídia radical tem a missão não apenas de fornecer ao público os fatos que lhe são
negados, mas também pesquisar novas formas de desenvolver uma perspectiva de
questionamento do processo hegemônico e fortalecer o sentimento de confiança do
público em seu poder de engendrar mudanças construtivas (DOWNING, 2002, p. 50)

Essa constatação está nítida no Brasil, pois é justamente a partir da ascensão de novas
mídias alternativas, que buscam pautas e informações que fogem da visão factual e pré-
produzida, que começam a brotar ações e movimentos que buscam contestar aquilo que é
entregue pela grande mídia. A própria democratização dos meios de comunicação começa a
ser tratada e entendida de uma forma mais clara por boa parte da sociedade.
O sentido de cidadania se reforça a partir do trabalho que apresenta uma perspectiva
diferente daquela costumeiramente apresentada. É nesse contexto que as novas mídias
ganham fôlego e se mostram necessárias para uma sociedade que necessita cada vez mais
discutir direitos humanos em sua plenitude.

3 MÍDIAS INDEPENDENTES E O FORTALECIMENTO DOS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

Hoje, o volume de informações é vasto e sem limite, o que acaba prejudicando, de


certa forma, a interpretação e seleção daquilo que realmente faz sentido ou tem importância.
234

Além de receber a informação, o cidadão deve situar onde pode ter participação efetiva, não
apenas como sujeito passivo, mas também atuante. A partir disso, MARTÍN-BARBERO (1998,
p. 07) merece ser destacado, pois faz uma reflexão acerca do sentimento que muitas vezes
engana a interpretação social nos tempos atuais:

De outro lado, a informação tem passado a simular o social, a participação. Ao sentir-


me informado do que acontece, tenho a ilusória sensação de estar participando,
atua doà aàso iedade,àdeàse àp otago ista,à ua doà sa e os à ueàosàp otago istasà
são outros e bem poucos. Pois se é verdade que as novas tecnologias descentralizam,
é certo que não estão fazendo nada contra a concentração de poder e capital, que é
cada vez maior.

A democratização dos meios de comunicação precisa avançar e precisa ser entendida


como essencial pela sociedade, ampliando a oportunidade de acesso a diferentes setores
sociais de serem protagonistas da mídia, com independência e reponsabilidade.
Talvez resida neste particular a importância que se observa nos últimos anos da
expansão e fortalecimento das mídias alternativas e independentes, especialmente em países
da América do Sul, ganhando força na pauta principal destes veículos de comunicação temas
importantes para a consolidação e democratização dos direitos humanos, conceito que
enfrenta muitas resistências em setores que apenas absorvem as informações e conclusões
apresentadas pelos meios tradicionais de mídia.
As novas mídias, a partir de um trabalho que articula as tecnologias, a interação e o
compartilhamento de informações e de ações, produz, de certo modo, uma nova
transparência para o trabalho de comunicação, com uma pluralidade efetiva e com uma nova
ética jornalística, a partir da apuração detalhada de temas que são sensíveis, polêmicos e que
muitas vezes sofrem blindagem de setores estratégicos em termos econômicos e financeiros.
No Brasil, experiências como da Agência Pública, da Mídia Ninja, da Ponte Jornalismo
e do Repórter Brasil, são exemplos inequívocos de que os direitos humanos podem estar
protegidos e valorizados, a partir de um trabalho que reúne pautas jornalísticas fora da
normalidade que a população está acostumada a acompanhar nas grandes mídias, com um
olhar diferenciado sobre diferentes temáticas.
A Agência Pública, um modelo de comunicação que não visa lucro, é o grande modelo
ueàpodeàse à istoà oàB asilàatual e te.àDeàa o doà o àaàp p iaàdes iç oàdoàsite,à todasàasà
nossas reportagens são feitas com base na rigorosa apuração dos fatos e têm como princípio
235

a defesa intra sige teà dosà di eitosà hu a os .à Osà p i ipaisà ei osà i estigati osà s o:à osà
impactos dos megaeventos esportivos; tortura e violência dos agentes do Estado;
megainvestimentos na Amazônia; crise urbana; e empresas e violações de direitos humanos.
Para fortalecer o ideário da mídia independente e propagar o bom trabalho
desenvolvido por profissionais em diferentes partes do Brasil, a Pública divulgou o mapa do
jornalismo independente, listando uma série de veículos de comunicação comprometidos
com pautas sociais.
Modelos como esse, em que as pautas são construídas de forma coletiva, com
interesse público e cidadão, visando aprofundar temas que não são abordados no cotidiano
do jornalismo e que servirão como matérias gratuitas para serem veiculadas por qualquer
veículo de comunicação parceiro, demonstram o acerto em apostas alternativas e
independente como essas, sintonizadas com o mundo atual.
A visão de Juremir Machado da Silva (2001, p. 129), apresenta uma crítica contundente
ao jornalismo protagonizado por grandes redes, detentoras de poder e concentração
econômica:

Ironicamente, pensar tornou-se sinônimo de ressentimento. O intelectual deve aceitar


a sua própria marginalização para ousar dizer o que pensa. Contra o jornalismo de
serviço e de entretenimento, o intelectual precisa defender um jornalismo de idéias e
de interpretação. Contra o jornalismo de distinção social e de marketing, o intelectual
precisa sustentar a análise e a reflexão. Nada disso implica a recusa do humor, da
irreverência ou do espetáculo. Em contrapartida, rejeita-se a uniformização pelo
pitoresco.

Apesar de ter avançado nesta segunda década do século XXI, acompanhando o


desenvolvimento frenético das novas tecnologias, que possibilitam uma maior participação
da sociedade na interação com quem constrói e publica as informações e notícias importantes
para o conjunto da sociedade, é preciso admitir que muito ainda precisa ser percorrido para
que estes novos caminhos de mídia possam ser acompanhados de forma diária e permanente
por um conjunto maior da sociedade, assim como os veículos tradicionais de comunicação.
A ONG Repórter Brasil, liderado pelo jornalista Leonardo Sakamoto, é outro modelo
que precisa ser citado. Organizada a partir de uma variedade de profissionais, de diferentes
áreas do conhecimento humano, centra o foco nas denúncias contra o trabalho escravo no
Brasil. Suas reportagens, investigações jornalísticas, pesquisas e metodologias educacionais
236

têm sido usadas por lideranças do poder público, do setor empresarial e da sociedade civil
como instrumentos para combater a escravidão contemporânea, um problema que afeta
milhares de pessoas.
Outro trabalho que ganhou repercussão e se consolidou como referência em matéria
de comunicação alternativa, é a Mídia Ninja, criada a partir da rede de comunicadores do Fora
do Eixo, rede de coletivos políticos e culturais, espalhada pelo Brasil. Durante as
manifestações populares de 2013, a Mídia Ninja se estabelece, acompanhando em tempo real
os protestos, denunciando abusos e debatendo questões que também versam sobre direitos
humanos e cidadania.
Já a Ponte tem como foco, pautas ligadas à segurança pública, com enfoque na justiça
eàdi eitosàhu a osà ueàsu giuàdaà o i ç oàdeàu àg upoàdeàjo alistasàdeà ueàjo alis oàdeà
qualidade sob o prisma dos direitos humanos é capaz de ajudar na construção de um mundo
aisàjusto ,àte doàsu gidoàaàpa ti àdoàapoioài stitu io alàdaàág iaàPú li a.
O seu trabalho jornalístico é desenvolvido a partir de investigações sobre gênero,
racismo, violência policial, entre outros temas, praticamente proibidos de serem tratados de
forma isenta em grandes redes de comunicação comerciais.
Esses novos olhares possibilitados através de mídias alternativas, passam cada vez
mais a ganhar o respeito e a apreciação de um público numeroso e qualificado. Mas esse
processo somente poderá se solidificar a partir de uma formação educacional e humana das
pessoas, construindo sujeitos ativos que saibam a importância da consolidação de seus
direitos. RADDATZ (2014, p. 116) apresenta considerações que dialogam com essa
problemática:

O direito à informação é fundamental para o exercício da cidadania e a consolidação


da democracia. Porém, não basta uma lei em vigor para garantir esse direito, mas o
estabelecimento de políticas públicas eficientes que possam erigir uma educação
que prepare os cidadãos para fazerem uso desses direitos, ou seja, uma educação
baseada na ética, na responsabilidade e na autonomia, como propõe Paulo Freire
(1996).

Não bastam apenas as normas para fazer valer os direitos. É preciso um conjunto de
planejamento e de ações públicas, de incentivo à democratização dos meios de comunicação,
para que realmente sejam implementadas as mudanças.
237

O processo de dinamização das comunicações é rápido e necessita ser compreendido


por aqueles que são responsáveis em pensar as políticas públicas que possam reforçar a
cidadania e a democracia no país. Expor essa dificuldade que o Brasil enfrenta de avançar
nessa temática e buscar a apresentação de alternativas que possibilitem a afirmação de um
novo sistema de mídia, estruturada através de sustentáculos coletivos, é um grande desafio.
O argentino Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz, faz uma crítica consistente a
respeito da grande mídia, sendo que a partir desta, pode-se interpretar ainda mais claramente
a importância do processo de dinamização social das novas mídias:

Nenhum meio informativo é asséptico, mas eles deveriam basear-se na ética e no


serviço aos povos, em vez de servirem-se dos mesmos. Grandes conquistas das lutas
sociais foram a liberdade de imprensa e o direito de informar e ser informado, mas
os grandes monopólios econômicos, ideológicos e políticos que controlam os meios
de informação acabaram por matar a liberdade de imprensa, querendo, inclusive,
confundi-la e reduzi-laàaà li e dadeàdeàe p esa .àáà o ta i aç oàdaàpala aàeàdaà
propaganda midiática chega a tal extremo que não permite ver com claridade onde
está a veracidade informativa. A ética e a busca pela verdade estão ausentes,
prevalece a distorção da realidade. (ESQUIVEL, 2010)

Apontamentos como esse demonstram a importância desse debate a respeito dos


novos modelos de mídia que estão sendo propostos, que garante uma cidadania plena para o
tecido social e uma democracia mais robusta.
Um dos maiores pensadores do século XX, BOBBIO (1992, p. 01) reforça esse
pensamento de enfrentamento ao status quo:

[...] sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem


democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos.
Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam
cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais; haverá paz
estável, uma paz que não tenha guerra como alternativa, somente quando existirem
cidadãos não mais apenas deste ou daquele Estado, mas do mundo.

O grande desafio hoje, parece estar na consolidação e garantia dos direitos humanos,
a partir de uma pluralidade que possa convergir de forma positiva. Onde a cidadania seja
proativa, na busca por ações que não sejam omissas perante retrocessos.
As novas mídias e o papel das mídias jornalísticas independentes e alternativas, podem
ser caminhos preciosos para se alcançar um patamar digno de respeito às diferentes versões
do cotidiano que nos cerca.
238

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

É vital que a construção de uma cidadania plena e de uma sociedade efetivamente


democrática, tenha como um dos pilares de sustentação, um setor midiático que esteja
pluralmente ocupado, com diferentes visões e vozes. Um processo que demanda muito
trabalho e diálogo, mas que, a partir do que se verifica, é cada vez mais urgente e necessário.
A democratização dos meios de comunicação no Brasil é uma necessidade, e as novas
mídias, especialmente aquelas independentes e alternativas, estão demonstrando que a
urgência para esse processo de democratização é cada vez maior, para que haja uma garantia
efetiva do direito humano à informação, com espaço para denúncias e investigações sobre
ações que violem a dignidade da pessoa humana, além de espaços para expor ações positivas
que se vinculem às minorias e aos setores historicamente oprimidos da sociedade.
A evolução tecnológica, com múltiplas opções de comunicação, que não dependem
das estruturas tradicionais, mas que podem se reinventar a partir de um trabalho comunitário,
coletivo e compartilhado, aparece como aliada de uma nova ética da comunicação, vinculada
com a cidadania, com o respeito e a promoção dos direitos humanos, com olhares
diferenciados sobre temas que são sempre tratados da mesma maneira.
Muitos projetos de mídia que estão sendo realizados no Brasil demonstram que este é
um caminho que cada vez mais será seguido, para o bem do conjunto geral da sociedade. A
comunicação precisa ser cada vez mais plural. Os direitos humanos precisam cada vez mais
estar presentes nos meios de mídia, de uma maneira que também estejam sendo protegidos.

REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 17 ed. Rio de
Janeiro: Editora Campus, 1992.

CASTELLS, Manuel. O poder da comunicação. Rio de Janeiro : Editora Paz e Terra, 2015.

DOWNING, John D. H. Mídia radical: rebeldia nas comunicações e movimentos sociais. São
Paulo : Senac, 2002.

ESQUIVEL, Adolfo Pérez. La contaminación informativa. Agencia Latinoamericana de


Información, 1 de setembro de 2010.

JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. 2 ed. São Paulo: Editora Aleph, 2012.
239

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Comunicação e Cidade: entre Meios e Medos. In: Grupo de Estudos
sobre Práticas de Recepção a Produtos Mediáticos, I, n. 01, 1998. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/novosolhares/article/view/51311/55378>. Acesso em:
01/05/2017.

PERUZZO. Cicília M. Krohling. Sociedade da Informação no Brasil: desafio de tornas a Internet


de todos para todos. 2002. Disponível em:
<http://www.eca.usp.br/associa/alaic/material%20congresso%202002/congBolivia2002/tra
balhos%20completos%20Bolivia%202002/GT%2018%20cecilia%20peruzzo/Cici-
A%20sociedade%20da%20Infoma%C3%A7%C3%A3o....doc> Acesso em: 02/05/2017.

RADDATZ, Vera Lúcia Spacil. Direito à informação para o exercício da cidadania. Revista
Científica Direitos Culturais. Santo Ângelo, v. 9, n. 19, pp. 108-117, 2014.

SILVA, Juremir Machado da. A miséria do jornalismo brasileiro. In: As (in)certezas da mídia. 2
ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
240

TERRORISMO DE ESTADO: As graves violações aos Direitos Humanos

Aline Patrícia Klinger1


Joice Graciele Nielsson ²

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo analisar a luta dos movimentos sociais contra
as arbitrariedades impetradas pelo governo ditatorial militar, assim como, resgatar a memória
histórica do Brasil e ressaltar a importância das Cortes Internacionais na busca da verdade e
aplicação da justiça. Para tanto, a metodologia adotada para elaboração da pesquisa é do tipo
exploratória, utilizando-se no seu delineamento a coleta de dados em fontes bibliográficas
disponíveis em meios físicos e na rede de computadores.

Palavras–chave: Ditadura militar. Direitos Humanos. Movimentos Sociais.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Importante é a reflexão trazida pelo professor José Damião de Lima Trindade (2002)
ao relatar que desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, na França,
uitosà algozes,à ditado es,à auto atasà seà utiliza à daà e p ess oà Di eitosà рu a os à pa aà
falsear suas verdadeiras intenções e espalhar terror e sangue. Assim aconteceu com Hitler,
que declarava em seus comoventes discursos que os Direitos Humanos estavam acima dos
Direitos do Estado, Osà Estadosà U idosà daà á i a,à paísà ueà e si aà seusà estuda tesà aà
repetirem de memória passagens libertárias de sua Declaração da Independência, não
hesitaram em apoiar ou instalar ditaduras ao edo àdoà u doà ... (TRINDADE, 2002, p. 15).
No Brasil, não ocorreu de forma diversa, os militares ao oficializar o golpe de 64, com a
publicação do Ato Institucional nº 1, declararam que o faziam para assegurar a ordem
democrática, a liberdade e a dignidade da pessoa humana, no entanto, macularam a
democracia, oprimiram a população e negaram a verdadeira memória histórica da nação.
Com a independência sendo adquirida, através de árduas lutas dos movimentos
sociais, pelas ex-colônias, a partir do século XIX, as grandes potências, ex-metrópoles, viram-
se obrigadas a mudar sua estratégia de controle, substituindo a dominação colonial pela
subordinação econômica, ou, nas palavras de José Damião Trindade (2002, p.196).

1
Bacharel em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUI), e-mail:
(aline_klinger@hotmail.com).
² Professora do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade Regional do Noroeste do Estado
do Rio Grande do Sul (UNIJUI), Doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS/FURB,
e-mail: joice.gn@gmail.com
241

Essa modalidade não-colonial de dominação imperialista (...) dá conta do que


realmente interessa às matrizes: assegurar o afluxo ininterrupto de capitais aos
países dominantes, na forma de lucros (remetidos pelas filiais de suas empresas),
juros (por empréstimos sacados por países dependentes) e royalties (pagos quase
pelo mundo inteiro por uso de patente de todo tipo).

Segundo Roque Collage Neto (2002, p. 183), o governo de JK inaugurou o processo de


subordinação econômica, subdesenvolvimento, através do Plano de Metas, ao qual o autor
atribui a definição de o t ole do Estado sobre a Sociedade Civil pelo conceito de eficácia
operacional – depois muito utilizada nos 22 anos de Segurança Nacional – também chamado
deàte o a ia . O Plano de Metas desenvolvimentista foi elaborado pelo Instituto Superior
de Estudos Brasileiros (ISEB), órgão criado em 1955, ligado ao Ministério da Educação, que
seguia a ideologia de estruturação econômica latino-americana da Comissão Econômica para
América Latina das Nações Unidas (CEPAL), narra José Murilo de Carvalho (2010). Tal ideologia
foi a implantação de um pacto subdesenvolvimentista de industrialização conflitante que
legou regressão e dependência da sociedade, conforme entendimento de Roque Collage Neto
(2002).
Após a Segunda Guerra Mundial, outra ideologia econômica e de dominação começou
a ser difundida, apoiada e instalada pelos Estados Unidos com o objetivo de liquidar o regime
jurídico democrático dos países em subdesenvolvimento e extrair o máximo de lucros para,
então, retornar ao regime usurpado, ta efaà ueàdese pe ha am com aplicada, metódica e
si ist aà o pet ia ,à (TRINDADE, 2002, p.199). Era a doutrina de Segurança Nacional,
insuflada pelo Departamento de Defesa dos EUA aos militares que combateram ao lado do
exército estadunidense na segunda grande guerra. Ressalta ainda o referido autor, que nos
a osà à uaseàtodosàosàpaísesàdaàá i aàCe t alàeàэati aà i e a àso à egi eàditato ial,à a osà
deà hu o .
A Escola Superior de Guerra (ESG), criada em 1949, foi projetada por um grupo de
militares norte-americanos e liderada pelo general Oswaldo Cordeiro de Farias, seguia a
ideologia da Guerra Fria e tinha por objetivo ser um centro de pesquisas sobre segurança e
desenvolvimento do Brasil. A ESG era vinculada ao ministro de Estado, chefe do Estado-Maior
das Forças Armadas, e financiada pelos EUA, explana a Comissão Nacional da Verdade (2014,
vol. I). Foram inúmeras as tentativas de golpe promovidas com influência da ESG, 1945, 1951,
1954, 1956, 1961 e, por fim, 1964, quando conseguiu colocar em prática sua ideologia com
ajuda de vários setores da sociedade civil, latifundiários, empresários, políticos liberais de
242

extrema direita, militares adestrados pela doutrina estadunidense, multinacionais, noticiam o


Tribunal Superior Eleitoral (2014), José Murilo de Carvalho (2010) e José de Lima Trindade
(2002) e Comissão Nacional da Verdade (2014, vol. I).

2 GOVERNO QUE ANTECEDE AO GOLPE DE 1964

Para melhor elucidar o contexto histórico em análise, faz-se necessário expor os


acontecimentos que antecederam ao golpe. O governo de João Goulart, que se inicia após
renúncia de Jânio Quadros ao cargo de Presidente da República, pautada na justificativa de
que forças terríveis o impediam de governar. Segundo o entendimento de José Murilo de
Carvalho (2010), a renúncia à Presidência da República não passou de mero estratagema
político que resultou em fracasso.
A época da renuncia de Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961, João Goulart, Vice
Presidente, estava na China em visita oficial, assumindo o governo de forma interina o então
presidente da Câmara, Ranieri Mazzili. O Congresso e as Forças Armadas se dividiram, de um
lado, udenistas e militares, antivarguistas, que queriam impedir a posse de Jango à
Presidência, pregavam que este transformaria o Brasil em um país comunista, de outro lado,
legalistas e populistas lutavam para garantir a posse do novo Presidente, conforme
determinava a Constituição Federal de 1946.
O governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, e o comandante do III Exército,
Ge e alàMa hadoàэopes,ài i ia a àfe o osaà Ca pa haàdaàэegalidade à ueàlogoàseàespalhouà
pelo país. A rede da legalidade tinha por objetivo mobilizar a população para garantir a posse
do Presidente Jango e impedir o golpe dos militares. Po àdezàdias,àoàpaísàseà iuà à ei aàdaà
gue aà i il , (CARVALHO, 2010, p. 235), e, no dia 7 de setembro de 1961, João Goulart assume
a Presidência da República sob imposição condicionante de um sistema parlamentarista de
governo.
O governo que antecede ao golpe militar é marcado por ideias revolucionárias,
relegadas desde 1930, e que entram em colisão, resumindo o dilema em uma disputa entre
esquerda e direita. José Murilo de Carvalho (2010) elenca as principais organizações sociais
que surgiram nesse período, sendo que muitas destas continuaram seu trabalho,
clandestinamente, após o golpe de 64, numa tentativa de resgatar os direitos civis, sociais e
243

políti osà egadosàpeloàestadoàdeàe eç o.àDoàladoà Di eito ,à o t iosàaoàgo e oàdeàщa go,à


despontaram organizações como o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), Instituto
Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), Ação Democrática Parlamentar (ADP), associações
comerciais e industriais, associações de proprietários rurais, parte da hierarquia da Igreja
Católica, programa Aliança para o Progresso e a Escola Superior de Guerra (ESG), todos
financiados ou/e apoiados pelas grandes empresas estrangeiras, os Estados Unidos da
á i a,àhie a uiaàdaàIg ejaàCat li aàeàUDN.àDoàladoà йs ue do ,àfa o eisàaoàgo e oàeà
populistas, exsurgiram organizações como o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), Pacto
de Unidade e Ação (PUA), União Nacional dos Estudantes (UNE), Grupo dos Onze, Frente
Parlamentar Nacional (FPN), Ação Popular (AP), Juventude Universitária Católica (JUC),
Movimento de Educação de Base (MEB), Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e Liga
dos Camponeses, financiados ou/e apoiados pelo Ministério da Educação, Ministério do
Trabalho, parte da Igreja Católica, Partido Comunista do Brasil (PC do B) e, no caso da Liga
Camponesa, Cuba.
Após o restabelecimento do sistema presidencialista de governo, Jango, em março de
1963, promulgou o Estatuto do Trabalhador Rural, estendendo os direitos sociais e sindicais
aos trabalhadores do campo; em dezembro de 1963, estabeleceu o monopólio sobre a
importação do petróleo; e, em janeiro de 1964, o controle sobre os lucros que as
multinacionais mandavam para fora do País, nos contam José Murilo de Carvalho (2010) e
Comissão Nacional da Verdade (2014, vol. III).
Em 13 de março de 1964, Jango realiza grande comício, na cidade do Rio de Janeira,
no qual discursou sobre as reformas de base, entre elas, reforma eleitoral, reforma
educacional, reforma universitária, reforma bancária, reforma urbana e reforma agrária.
Neste ato, Jango assinou dois decretos u àdelesà a io aliza do uma refinaria de petróleo, e
outro desapropriando terras às margens de ferrovias e rodovias federais e de barragens de
i igação , (CARVALHO, 2010, p.142).
A partir desse comício, os acontecimentos se aceleraram, os opositores, que desde a
criação da ESG, em 1949, já tinham planos baseados em ideologia norte americana, se
apoia a à osàйUáàeà al a a àseuàdis u soà aà defesa àdaàde o a ia,àdaàfa íliaàeàdaà eligi o,à
criando um inimigo interno, o povo que desejava reforma agrária e que agora era acusados
de traidor comunista, como bem observou o Assessor Nacional da Comissão da Verdade,
244

André Botelho Vilaron, em audiência Pública da Comissão Nacional Verdade, realizada na


cidade de Três Passos RS, em 30 de junho de 2014:

(...) o apoio dos Estados Unidos muito forte ao golpe de Estado de 64 e com o
discurso muito bem construído e vitorioso, sem dúvida, de defesa de democracia.
Então, você usurpa a democracia, você rasga a Constituição de 46, em nome da
democracia (...) então, como você não tinha inimigo externo, que seria a construção
do subversivo, se construiu um inimigo interno que foi taxado do comunista (...) se
construiu uma ideia de que quem lutava contra o golpe de 64, na verdade, queria
impor um regime estrangeiro, que não era nacionalista e nessa figura do comunista.

Em resposta ao comício de 13 de março de 1964, ocorreram várias manifestações,


entre elas, ressalta José Murilo de Carvalho (2010), a Marcha da família com Deus pela
liberdade, no dia 19 de março, em várias capitais, inspirada por um padre norte-americano e
que tinha por objetivo difundir a ideia de perigo comunista vindo do governo federal; a revolta
dos marinheiros e fuzileiros navais, na cidade do Rio de Janeiro, no dia 26 de março, liderada
pelo cabo Anselmo, agente infiltrado da CIA americana, aponta o referido autor.
Mas o estopim veio com o discurso proferido pelo Presidente na reunião de sargentos
da Polícia Militar do Rio de Janeiro, no dia 30 de março, a contrassenso de seus aliados. Neste
pronunciamento, transmitido em rede nacional, Jango critica os conspiradores de se
utilizarem da uma crise militar, assim como, dos sentimentos nobres vinculados à religião para
mobilizar a população contra o governo. Também, divulgou as reformas pretendidas e pediu
o apoio das Forças Armadas, conta a Comissão Nacional da Verdade (2014, vol. I). нezàu à
dis u soà adi alà ... àнoiàaàgotaàd’ gua (CARVALHO , 2010, p. 143).
No dia seguinte, 31 de março, tropas do Exército, lideradas pelo general Olímpio de
Mourão Filho, saíram de Minas Gerais em direção ao Rio de Janeiro para depor o Presidente
João Goulart. Na mesma noite, o governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, divulgava
pela rádio um manifesto contra Jango. No dia 1º de abril, o Presidente Goulart parte para o
Rio Grande do Sul, onde se encontra com Leonel Brizola que tenta mobilizar uma resistência
à intervenção militar, mas já era tarde e Jango declara que não queria derramamento de
sangue em uma guerra civil, então, no dia 4 de abril, parte para o exílio no Uruguai, relatam
Comissão da Verdade (2014, vol. I) e José Murilo de Carvalho (2010).
Na noite de 1º de abri de 1964, o presidente do Senado Federal, Auro de Moura
Andrade, declara vaga a Presidência da República, empossando o presidente da Câmara,
245

Ranieri Mazzilli e, em poucas horas, o presidente norte-americano, Lyndon Johnson,


reconhecia o governo revolucionário, observa a Comissão Nacional da Verdade (2014, vol. I).
Relata a referida Comissão da Verdade (2014, vol. I), que desde as primeiras horas as
quais sucederam o golpe, ocorreram perseguições e forte repressão aos lideres e integrantes
dos movimentos civis e militares, mais de 6 mil militares expurgado das Forças Armadas e
cerca de 5 mil pessoas foram presas e torturadas, sob acusação de subversão e conspiração,
nos primeiros 10 dias. O Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964, inaugura oficialmente
essa nova fase de terror, no dia 10, o governo publica lista com os nomes de 102
parlamentares cassados e, no dia 11, o Congresso, desfalcado, elege o novo Presidente da
República, marechal Humberto Castelo Branco.
Entre os anos de 1946 e 1964, o Brasil teve sua primeira experiência democrática, que
era frágil, tímida e influenciada por interesses de classes dominantes oriundas da velha
configuração, grandes proprietários rurais e oligarquias, e de novos atores, grandes indústrias
e organismos internacionais. No entanto, por mais instável que fosse a democracia, ainda era
melhor que a ditadura de terror instaurada em abril de 1964 e que perdurou por 21 anos,
cessando apenas em 1985.

3 OS ANOS DE CHUMBO NO BRAIL

O golpe que se instala, denominando-se de Mo i e toà e olu io io , viola


preceitos fundamentais da Democracia, concentrando o poder na cúpula do Alto Comando
dasàнo çasàá adas,ài stitui doà a tutela sobre a classe política e o controle policial e judicial
dos movimentos sociais ,à CNV,à ,à ol.àI,àp.à .àPa aào ulta àsuaàfa eàauto it iaàeà a te à
uma imagem democrática perante organismos internacionais, o governo manteve,
inicialmente, a Constituição de 1946, a existência de dois partidos políticos e o funcionamento
do Congresso Nacional, que como bem observa Argemiro J. Brum (2013) estava esvaziado de
seus poderes.
Para o sociólogo José Murilo de Carvalho (2010) o período de governo militar pode ser
dividido em três fases: 1964 a 1968, governo do Marechal Humberto Castelo Branco e
primeiro ano de governo do Marechal Artur Costa e Silva; 1968 a 1974, governo do General
246

Garrastazu Médici; 1974 a 1985, governo do General Ernesto Geisel e do General João Batista
de Figueiredo.
A primeira fase da ditadura, 1964 a 1968, foi marcada por intensa repressão e
perseguição. No governo do marechal Humberto Castelo Branco, 378 pessoas tiveram seus
direitos políticos cassados, 10.000 funcionários público perderam seus cargos e 40.000
pessoas foram investigadas em decorrência da instauração de 5.000 inquéritos, aponta
Comissão Nacional da Verdade (2014, vol. I).
Do ponto de vista social econômico, denunciam José Murilo de Carvalho (2010) e
Comissão Nacional da Verdade (2014, vol. I), que essa fase foi evidenciada pela anulação das
reformas estabelecidas no governo de Jango, revogação dos decretos de nacionalização das
refinarias e de desapropriação para fins de reforma agrária assinados no dia 13 março de 1964,
troca da estabilidade trabalhista pelo Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), queda
do salário mínimo, autos níveis de inflação e abertura para o mercado internacional sem
limites para remessa de lucros ao exterior.
Também, foram instituídos o AI2, o AI3 e o AI4, que deram amplos poderes ao
Presidente da República perante o Congresso Nacional, designaram a competência da Justiça
Militar para julgar os crimes contra a Segurança Nacional, extinguiram os antigos partidos
políticos dividindo-os em dois, ARENA e MDB, como forma de controle dos parlamentares
contrários e a favor do governo, determinaram eleições indiretas para os governadores,
nomeação dos prefeitos das capitais e revogação definitiva da Constituição Federal de 1946
pela promulgação de uma nova Constituição de iniciativa presidencial, narra a Comissão
Nacional da Verdade (2014, vol. I).
Em 15 de março de 1967, assume a Presidência da República o Marechal Artur da Costa
e Silva, eleito indiretamente pelo Congresso Nacional. O primeiro ano de governo foi marcado
por greves operárias, manifestações estudantis e a insatisfação do Congresso Nacional. Em
uma das manifestações pela democratização, promovida pela UNE, na cidade de São Paulo, o
estudante Edson Luis foi assassinado pela polícia, gerando grande comoção popular. Para
reiterar a dominação exercida pelo governo militar, o Marechal Costa e Silva decreta o AI5 e
fecha o Congresso. Declara Costa e Silva Qua tasà ezesàte e osà ueà eite a àeàde o st a à
ueàaàRe oluçãoà ài e e sí el? ,à(CNV, 2014, vi. I, p. 100).
247

O Ato Institucional nº5, decretado em 13 de dezembro de 1968, marca o início da


segunda fase de terror do governo militar, considerada a mais brutal e truculenta, com ampla
repressão e restrição dos direitos individuais, sociais e políticos. Acrescenta José Murilo de
Carvalho (2010, p.158) que oàpe íodoà o i ouàaà ep essãoàpolíti aà aisà iole taàj à istaà oà
paísà o à í di esà ta à ja aisà istosà deà es i e toà e o i o . Em contra partida, o
salário mínimo continuava a decrescer.
O referido Decreto dá poderes ao Presidente da República para fechar as casas
legislativas, cassar mandatos, suspender direitos políticos e a garantia constitucional de
habeas corpus. Sem o habeas corpus os perseguidos políticos perderam seu principal
instrumentos de proteção à vida e à liberdade. Como se não bastasse, declara que os atos
praticados pelo Chefe do Executivo eram isentos de apreciação judicial.
Como efeito, as cassações de mandato, suspensões de direitos políticos,
aposentadorias compulsórias, demissões sumárias, perseguições e prisões se intensificaram.
Cerca de 450 políticos tiveram seus mandatos cassados e direitos políticos suspensos, 03
ministros do STF foram aposentados e, entre os inúmeras presos, o ex-Presidente Juscelino
Kubitschek. Como extensão da arbitrariedade, o Ato Institucional nº7 é decretado, em
fevereiro de 1969, que suspende as eleições para os cargos executivos em todas as esferas,
revela a Comissão Nacional da Verdade (2014, vol. I).
Ardilosamente, em outubro de 1969, o Congresso foi reaberto com intuito de mascarar
a inexistência de um governo democrático, referendando a escolha do novo Presidente da
República, o General Garrastazu Médici. Segundo José Murilo de Carvalho (2010, p.162), “o à
o general Médici, as medidas repressivas atingiram seu ponto culminante. Nova lei de
segu a çaà a io alà foià i t oduzida,à i lui doà pe aà deà o teà po à fuzila e to . A Comissão
Nacional da Verdade (2014, vol. I, p.102) contextualiza o governo de Médici da seguinte forma:

Com Médici, o regime ditatorial-militar brasileiro atingiu sua forma plena. Criara-se
uma arquitetura legal que permitia o controle dos rudimentos de atividade política
tolerada. Aperfeiçoara-se um sistema repressor complexo, que permeava as
estruturas administrativas dos poderes públicos e exercia uma vigilância
permanente sobre as principais instituições da sociedade civil: sindicatos,
organizações profissionais, igrejas, partidos. Erigiu-se também uma burocracia de
censura que intimidava ou proibia manifestações de opiniões e de expressões
culturais identificadas como hostis ao sistema. Sobretudo, em suas práticas
repressivas, fazia uso de maneira sistemática e sem limites dos meios mais violentos,
como a tortura e o assassinato.
248

Com Médici no poder o sistema de repressão foi aperfeiçoado, tornando-se


institucionalizado, tinha-se o controle total de todas as estruturas políticas e sociais do Estado.
A repressão atingia, sobretudo, g uposàouài stituiç esà ueàp o u a a ào ga iza àasà lassesà
populares: sindicatos de trabalhadores urbanos e rurais, associações de moradores em bairros
po esàeàai daàoàt a alhoàdeàpad esàeà eligiososàju toàaàessesà es osàg upos , (CNV, 2014,
vol. I, p. 104).
Ao final dos anos 60, com a censura e fechamento dos canais de acesso ao Estado para
os segmentos populares, grupos guerrilheiros, urbanos e camponeses, começaram a se
formar, lutavam pelo fim do governo de opressão e redemocratização do país. O Movimento
de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) é exemplo de uma rede de solidariedade na defesa dos
direitos humanos e seu trabalho abrangia, especialmente, a denúncia dos crimes cometidos
pelo estado de exceção, a retirada de militantes perseguidos do país, assim como,
proporcionava abrigo aos militantes perseguidos políticos de outros países. Enrique Serra
Padrós e Jorge Eduardo Enríquez Vivar (2013, p.21) descrevem a atuação do MJDH da seguinte
forma:

(...) Movimento de Justiça e Direitos Humanos, cuja atuação contribuiu para a


retirada de centenas de perseguidos políticos do Cone Sul. Uma das suas principais
missões foi a de viabilizar a obtenção de asilo às vítimas de perseguição política, as
quais eram levadas a determinados países europeus, em estreita colaboração com o
Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) (...) MJDH contribuiu
para informar à imprensa e à opinião pública internacional o grave desrespeito dos
direitos humanos que se produzia em todo o Cone Sul.

A partir de 1970, militantes do movimento guerrilheiro da Vanguarda Popular


Revolucionária (VPR) desenvolvem uma série de sequestro de diplomatas com o objetivo de
barganhar a liberdade de presos políticos. O governo respondeu à ousadia dos movimentos
guerrilheiros de forma violenta, assassinando Carlos Marighella, líder da Aliança Libertadora
Nacional (ALN), Mário Alves, líder do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR),
Carlos Lamarca, líder da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Stuart Edgard Angel Jones,
líder do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8), rememora a Comissão Nacional da
Verdade (2014, vol. II).
Em 1972, o governo executa operação para exterminar com o movimento conhecido
por Guerrilha do Araguaia, liderado pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e, em 1975,
todos os integrantes do movimento estavam mortos ou presos. Denuncia a Comissão Nacional
249

da Verdade (2014, vol. III) que na operação referida foram utilizadas inúmeras técnicas de
guerra e tortura contra integrantes do movimento, camponeses e silvícolas. Conclui, ainda, a
referida comissão, após análise de documentos elaborados pelo governo militar:

Portanto, pouco mais de cinquenta (50) brasileiros e brasileiras, que se opuseram ao


Estado Ditatorial miliar e se embrenharam na região do Araguaia em resistência
armada, transformaram-se em alvo de treinamentos militares, de exercícios
operacionais que mobilizaram, como foi visto, e comprovado, mais de 2000 agentes
públicos militares, dotados de estrutura e equipamentos bélicos incomparavelmente
superiores aos dos guerrilheiros, mas, e como mesmo atestam os documentos,
tratava-se de exercitarem-seà e à ope aç oà deà li peza,à eli i a do-se esses
opositores. A brutalidade, estampada na gritante desproporção de forças e o
tratamento deferido aos opositores – eliminação sumária ou aprisionamento ao
completo arreio do sistema legal – marcam o desatino do Estado Ditatorial militar,
(CNV, ARAUAIA II, p.4).

Importa ressaltar que com os mecanismos do AI5 e do Decreto-lei nº 1.077/70, que


introduziram a censura prévia em todos os meios de comunicação, o governo golpista se
blindou contra as denúncias que se tornavam frequentes no contexto internacional, pois
enquanto ocorriam violações aos direitos humanos, perseguições, torturas e mortes, os
jornais, as revistas, os livros e os programas televisivos esboçavam apenas notícias boas.
Com a posse do General Ernesto Geisel ao cargo de Presidente da República, em 15 de
março de 1974, inicia-se a terceira fase da ditadura, caracterizada pelo discurso de
liberalização do sistema, crise econômica, reflexo da crise do petróleo e a continua
desigualdade social, menciona José Murilo de Carvalho (2010).
Apesar do discurso de lenta liberalização, as graves violações aos direitos humanos,
perseguições, prisões e mortes dos remanescentes dos movimentos armados permaneciam.
A Comissão Nacional da Verdade (2014, vol. III) informa que no governo Geisel, apenas em
1974, há registros de pelo menos 50 mortos e 54 desaparecidos políticos oriundos dos grupos
armados do interior do país. Foi no governo de Geisel que a operação de extermínio à
Guerrilha do Araguaia, iniciada no governo Médici, foi concluída, resultando no
desaparecimento e morte de dezenas de integrantes e dirigentes do PCdoB.
Em 26 de outubro de 1975, a morte do diretor do Departamento de Jornalismo da TV
Cultura de São Paulo, Vladimir Herzog, nas dependências do DOI-COD, causa forte comoção
social, gerando greves e manifestações que mobilizaram universitários, jornalistas, religiosos,
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) na tentativa de abrir inquérito para averiguar as razões
da morte do jornalista. No dia 17 de janeiro de 1976, assim como Herzog, Manuel Fiel Filho,
250

metalúrgico, teve o fatídico destino e, em ambos os casos, o Exército divulgou que a morte
era decorrente de suicídio, explana a Comissão Nacional da Verdade (2014, vol. II).
A perseguição, cassação de mandato, suspensão de direitos políticos e prisão de
políticos opositores ao governo ocorreram de forma expressiva, apesar das promessas de
abertura do sistema repressivo. Em protesto, no dia 8 de abril de 1977, o MDB lança,
simbolicamente, candidatos para presidente e vice-presidente, general Euler Bentes e Paulo
Brossard, ocasião em que a Arena segue a indicação proferida pelo Presidente Geisel de
empossar como sucessor ao cargo presidencial o general João Baptista de Oliveira Figueiredo.
Ainda no governo Geisel, em outubro de 1978, é aprovada a Emenda Constitucional
nº11 que, entre as diversas medidas adotadas, revogava o AI5, extinguindo a autoridade do
presidente para colocar o Congresso em recesso, cassar parlamentares ou privar os cidadãos
dos seus direitos políticos, assim como, restabelecia o habeas corpus para crimes políticos e
abolia as penas de morte, prisão perpétua e banimento, ressaltam José Murilo de Carvalho
(2010) e Comissão Nacional da Verdade (2014, vol. I).
O general João Figueiredo assume a Presidência da República no dia 15 de março de
1979. A crise econômica, a eclosão dos movimentos sociais, as divergências dentro das Forças
Armadas e a pressão internacional são características deste governo conturbado.
À época, foram muitas as vítimas da tirania do Estado repressivo e, mesmo aqueles
que com muito sacrifício conseguiam fugir e se refugiar em outros países, continuavam sobre
constante controle do governo militar. Conclui o relatório de investigação da Comissão da
Nacional da Verdade (2014, vol. I) que o Brasil, por intermédio dos Consulados, obtinha a
constante vigilância dos brasileiros que estavam no exterior. Cada passo era informado.
Alguns Estados, como Uruguai, Chile, Argentina, França, Alemanha, Portugal, atendendo ao
pedido do governo brasileiro, detinham documentos, negavam a renovação de passaportes e
procediam a interrogatórios.

Essa colaboração com a repressão ilegal ocorreu por meio de duas vias principais.
Primeiro, a omissão em diversos incidentes envolvendo cidadãos brasileiros; por
exemplo, diante dos brasileiros detidos no Estádio Nacional de Santiago de Chile,
depois do golpe militar de 1973. Quando as autoridades chilenas pediram salvo-
condutos para libertar os brasileiros, cuja detenção não mais lhes interessava, o
governo brasileiro, em vez dos salvo-condutos, enviou equipes de militares e
policiais para interrogá-los e, segundo depoimentos, torturá-los, com total descaso
pela proteção de nacionais, enfrentando situações de risco fora do Brasil. Segundo,
o MRE atuou de forma direta, como no Chile, na cooperação internacional com
ditaduras do Cone Sul – a Operação Condor; fornecendo lista de centenas de
251

passapo tesà e t a iados à aà paísesà o oà aà ‘epú li aà нede alà daà ále a ha;à ouà
monitorando a entrada e saída de nacionais fora do país. Ao compartilhar tais
informações com o aparato repressivo, o MRE colocou em risco a vida de muitos
cidadãos brasileiros, em alguns casos, destinados ao assassinato por agentes de
Estado. E, no âmbito da Operação Condor, também a de estrangeiros no Brasil. (CNV,
2014, vol. I, p.212).

No dia 28 de agosto de 1979, o Presidente sanciona a Lei de Anistia, Lei nº 6.683, fruto
de uma luta que se iniciou com a formação do Movimento Feminino pela Anistia, em 1975, e
que ganhou força com a criação do Comitê Brasileiro pela Anistia, em 1978, com
ep ese taç oà e à di e sosà estadosà eà e à out osà países,à ei i di a doà u aà a istiaà a pla,à
ge alàeài est ita .àáà efe idaàleiàte eàduploàefeito,àseàpo àu àladoà e efi ia aàaosà o de adosà
por crimes políticos ou conexos, por outro lado, impedia a responsabilização dos agentes que
violaram os direitos humanos em nome do Estado. A Comissão Nacional da Verdade (2014,
vol. I) anuncia que, no momento de sua promulgação, a Lei beneficiou 4.650 pessoas que
estavam presas, cassadas, banidas, exiladas ou destituídas dos seus empregos, como por
exemplo, Luís Carlos Prestes, Leonel Brizola, Miguel Arraes e Francisco Julião.
Apesar da contrariedade de parte das Forças Armadas com os pacotes de liberalização
do sistema repressivo, em novembro de 1979, foi aprovado lei que extinguiu os partidos
criados pelo governo militar, Arena e MDB, autorizando a criação de novos partidos, então,
surgiram o PDS, PMDB, PP, PTB, PT e PDT.
O início da década de 80 é marcado por diversos eventos terroristas da ala insatisfeita
das Forças Armadas. Em agosto de 1980, foram enviadas cartas-bombas ao vereador do Rio
de Janeiro, Antônio Carlos de Carvalho, do PMDB, e ao presidente da Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB). Em 30 de abril de 1981, ataque terrorista com explosão de duas bombas em
um evento que reunia cerca de 20 mil pessoas, no Riocentro, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro.
O regime procurava monitorar o processo político, mas, na esfera pública, as
movimentações na sociedade civil já haviam adquirido vida e força consideráveis. A
partir de janeiro de 1980, e durante vários meses, o país assiste a uma série de
manifestações terroristas de direita, em oposição a essa vaga liberalizante (CNV,
2014, vol. I, p.107).

Em meio a inúmeras reformas eleitorais que, em certos momentos, avançavam com o


liberalismo do sistema e, em outros, retrocediam, no dia 15 de janeiro de 1985, o Congresso
Nacional elege o novo Presidente da República, Tancredo Neves, e o Vice-Presidente, José
Sarney. Esta eleição é o marco da Nova República, pois Oàpaísàpassa ia,àassi ,àdasà ãosàdeà
um general presidente para as de dois civis, veteranos representantes da classe política
252

brasileira, cujas carreiras haviam se iniciado praticamente nos primórdios do exercício da


Co stituiçãoàdeà1946 (CNV, 2014, vol. I, p. 109).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Infelizmente, a redemocratização não foi a garantia da implantação de um sistema de


esclarecimento, reparação e justiça. Embora a Lei de Anistia tenha sido um marco de transição
na retomada da democracia, ela estabeleceu um perdão geral e a impossibilidade de se
averiguar os crimes cometidos neste período pelo Estado e seus agentes, assim, perseguidos
políticos continuaram afastados de seus cargos, familiares sem notícias de seus desaparecidos
e as atrocidades cometidas permaneciam no esquecimento. A luta das vítimas do governo
terrorista foi longa até obter os primeiros frutos, que só surgiram com a estabilidade do
regime democrático e a perda de posição dos militares no cenário político, recorda Glenda
Mezarobba (2010).
À vista disso, a luta dos familiares dos desaparecidos político, vítimas da operação
limpeza do movimento Guerrilha do Araguaia, teve início em 1982, somente obteve uma
resposta satisfatória em 2010, com a sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos que declarou a responsabilidade do Estado brasileiro pelos atos de terrorismo
cometidos contra os princípios fundamentais de dignidade, vida e liberdade constantes na
Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, e demais tratados internacionais de
direitos humanos ratificados pelo Estado violador, expõe a Comissão Nacional da Verdade
(2014, vol. I). Também, foram feitas considerações que impuseram medidas de adequação do
Brasil à Convenção Americana de Direitos Humanos, entre ela:

1) conduzir eficazmente perante a jurisdição ordinária a investigação penal dos fatos;


2) realizar todos os esforços para determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas
e, se for o caso, identificar e entregar os restos mortais a seus familiares; 3) oferecer
o tratamento médico e psicológico ou psiquiátrico que as vítimas requeiram; 4)
realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional a
respeito dos fatos do caso; 5) levar adiante as iniciativas de busca, sistematização e
publicação de toda a informação sobre a Guerrilha do Araguaia, bem como das
demais informações que digam respeito a violações de direitos humanos ocorridas
durante o regime militar; e 6) pagar indenização pelos danos materiais e imateriais
decorrentes dos fatos. (CNV, 2014, vol. I, p. 716).

Como cumprimento das medidas impostas pela sentença, o governo brasileiro


promulgou a Lei de Acesso à Informação, Lei nº 12.527 de 2011, que garante o acesso dos
253

cidadãos às informações da atuação do governo, e a Lei nº 12.528 de 2011 que criou a


Comissão Nacional da Verdade.
A Comissão Nacional da Verdade, instituição temporária, teve por objetivos esclarecer
os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações aos direitos humanos; promover o
esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados,
ocultação de cadáveres e suas autorias; identificar e tornar público as estruturas, os locais, as
instituições e as circunstâncias relacionadas à prática de violações aos direitos humanos;
recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir a violação aos direitos
humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional; e
promover a reconstrução da história dos casos de graves violações aos direitos humanos, bem
como, colaborar para que seja prestada assistência às vítimas de tais violações, conforme
dispõe a Comissão Nacional da Verdade (2014, vol. I).
Ao final do ano de 2014, a Comissão Nacional da Verdade entregou relatório final
contendo o resultado de todos os crimes investigados, assim como, da reconstrução da
memória histórica do Brasil. Constituindo-se em um rico acervo histórico de interesse público
e social, o qual foi amplamente utilizado na elaboração deste trabalho.

Referências

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HUMANOS NA CONTEMPORANEIDADE

Aline Ferreira da Silva Diel1


Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth2

RESUMO: As sociedades contemporâneas apresentam-se estritamente condicionadas a


diferentes fatores regulatórios, oriundos de uma forma de controle e gerência governamental
que Michel Foucault (1989) denominou de biopolítica. Imarcescível à sua operacionalidade
catalisam-se diversos conjuntos de relações/te ologiasàdeàpode àaptasàaà egula àeà do iliza à
as massas e investir na vida, em busca do desenvolvimento humano e do capital, adstritos ao
paradigma do progresso, protagonizando neste cenário as relações disciplinares e a
biopolítica. Notadamente, estes o ju tosà egulat iosà te de à aà des a ta à asà idasà
sup fluas à à suaà o jeti idade,à seg egado-as a espaços marginalizados e esteticamente
caracterizados pela exceção jurídica. Deste modo, questiona-se: como as relações de poder
que permeiam a biopolítica influenciam a constituição do discurso jurídico-penal e quais as
implicações para a realização dos direitos humanos na sociedade contemporânea? Para
efetivar esta abordagem, utilizou-se o método de pesquisa fenomenológico, na medida em
que busca analisar os fenômenos concernentes a temática em seu campo de atuação.

Palavras-chave: Biopolítica; Direitos Humanos; Direito Penal.

1 INTRODUÇÃO

As relações de poder estudadas por Michel Foucault (1988) perpassam a relação


verticalizada entre soberano e súdito em seu direito de vida e morte, e deságuam na moderna
aplicação das tecnologias dos poderes disciplinares (administração dos corpos) e da gestão
das massas (gestão calculista da vida), constituindo o que o autor denominou de biopoder,
a a te izadoà peloà seuà i esti e to à so eà aà idaà deà dadaà populaç o.à Nesteà eioà est oà
inseridos os modernos discursos constitutivos de normalidades, aplicados não apenas em
amplas relações de poder através do Estado, instituições ou organismos internacionais, mas

1
Bacharel em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, URI, campus Santo
Ângelo/RS (2014). Mestra em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul,
UNIJUÍ, campus Ijuí/RS. Advogada. E-mail: alinefsdiel@gmail.com
2
Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS (2014). Mestre em Direito pela
UNISINOS (2010). Pós-graduado em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Regional do
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ (2008). Graduado em Direito pela UNIJUÍ (2006). Professor do
Curso de Mestrado em Direitos Humanos da UNIJUÍ. Professor dos Cursos de Graduação em Direito da UNIJUÍ e
da UNISINOS. E-mail: mdwermuth@gmail.com
256

no seio da sociedade, em suas microrrelações de poder, que influenciam na constituição do


sujeito e suas singularidades padronizadas e normalizadas.
Para Foucault (1998, p. 136) é dentro destas relações de poder (compreendidas na
relação biopoder/biopolítica) que se encaixam os cálculos explícitos do poder soberano na
gest oàdaà idaàdeàdadaàpopulaç o,àpoisà foiàaà ida,à uitoà aisàdoà ueàoàdi eito,à ueàse tornou
o objeto das lutas políticas, ainda que estas últimas se formulem através de afirmações de
di eito. àNesteà o te to,àнou aultà ,àp.à àa gu e taà ueà oàho e ,àdu a teà il ios,à
permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência
política; o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em
uest o. ààÉàdestaàfo aà ueàaàgest oàdaà idaàpassouàaàse àoàte aà e t alàdaà ode aàpolíti aà
ocidental, constituindo a fórmula essencial do poder soberano na manutenção das condições
essenciais da vida da população.
Neste sentido, esta gestão calculista da vida contemporânea tona-se, em parte,
gerenciada pelo sistema penal, enquanto integrante das relações de poder oriundas do
Estado, constituindo elementos normativos que formam subjetividades posteriormente
entendidas como óbices na consolidação do desenvolvimento social. Desta forma, o saber
biopolítico empreendido pelo Estado, acaba selecionando os sujeitos adequados para a
relação produção/consumo, utilizando o discurso jurídico-penal como elemento necessário
para este desenvolvimento, na medida em que segrega estas subjetividades manifestadas
como entraves.
A partir desta perspectiva, o problema orientador deste ensaio reside no
questionamento: como as relações de poder que permeiam a biopolítica influenciam a
constituição do discurso jurídico-penal e quais as implicações para a realização dos direitos
humanos na sociedade contemporânea?
Conjectura-se, inicialmente, que estas relações de poder, considerando a amplitude
teórica extraída das teses de Michel Foucault, Hannah Arendt e Giorgio Agamben, exercem
ampla influência na constituição das regulações de controle social, com o fim explícito de
promover a vida de determinada população, na medida em que seleciona e segrega as
precedentes subjetividades manifestadas normativamente, ocasionando uma ruptura
i isí el à o àasà o asàp o e ie tesàdosàdi eitosàhu a os.à
257

Para analisar a problemática arguida, este trabalho adota o método fenomenológico,


compreendido enquanto revisão crítica dos temas centrais transmitidos pela tradição
filosófica através da linguagem, por meio do qual se torna possível descobrir um indisfarçável
projeto de analítica da linguagem, em uma imediata proximidade com a práxis humana, como
existência e facticidade. Nesse sentido, a linguagem – o sentido, a denotação – não é analisada
a partir de um sistema fechado de referências, mas, sim, no plano da historicidade, visando a
uma aproximação do sujeito (pesquisador) com o objeto a ser pesquisado.
O trabalho aborda, respectivamente: (a) como são constituídas as relações de poder
descritas por Michel Foucault em conjunto com as análises sobre o tema desenvolvidas por
Giorgio Agamben e possíveis releituras a partir das teses arendtianas para, por fim, (b) analisar
a constituição do discurso jurídico-penal a partir da biopolítica e suas implicações éticas para
os direitos humanos na sociedade contemporânea.

2 A GESTÃO DAS MASSAS E A DOCILIZAÇÃO DOS CORPOS: A BIOPOLÍTICA NO DISCURSO


JURÍDICO-PENAL E OS DIREITOS HUMANOS

A conceituação de biopolítica desenvolvida por Michel Foucault (1988, 1999, 2008a)


enraíza-se em estudos precedentes acerca do poder na sociedade clássica e moderna, e que
formam a nascente que acaba por desaguar nas complexas relações entre Estado e sociedade
que o autor denominou de biopoder. Notadamente, a conceituação e exposição temporal do
te oà iopolíti a ,à ta toà e à suaà o ige ,à asà o asà deà нou ault,à ua toà e à a lisesà
posteriores, presentes nas obras de Giorgio Agamben (2002, 2004) quanto possíveis (re)
leituras a partir da tese arendtiana, permitem articular o contemporâneo desenvolvimento
dos fatores penais de controle e regulação social, bem como os consequentes resultados das
políticas penais expansivas. Necessário articular, desta maneira, como as relações de poder
são analisadas na obra de Foucault, antes de tratar, de forma específica, da biopolítica e seu
modus operandi, a partir do direito penal contemporâneo.
Foucault (1988), ao analisar as relações entre súdito e soberano na idade clássica,
percebe que existem relações de poder que se disseminavam de diferentes polos, e que não
eram exclusivamente relacionadas ao Estado como detentor do monopólio de controle e
regulação social. Desta forma, antes de adentrar nas especificidades criadas pelas tecnologias
258

de poder (relação entre súdito e soberano, através do direito de causar a morte ou de deixar
viver, as disciplinas do corpo e, por fim, a biopolítica), Foucault (2003) analisa como o poder
em si é constituído dentro da sociedade e suas consequentes transformações e efeitos,
buscando revelar os mecanismos de poder que se escondiam em lugares dissimulados,
constituindo uma rede que comporta variadas formas de relações, tanto entre súdito e
soberano, quanto dentro da própria organização social e suas instituições.
É a partir destas primeiras escavações que Foucault percebe que as relações de poder
analisadas não são meramente constituídas como uma relação de força que se desloca
unicamente de forma vertical, possuindo o Estado como nascente reprodutiva através de uma
iol iaà i stitu io alizadaà eà legal,à asà oà pla oà dasà dis ipli asà eà deà seusà efeitosà deà
o alizaç oà eà o alizaç o à нOUCáUэT,à ,à p.à .à Oà se tidoà deà pode ,à assi ,à e à
нou ault,à seà ealizaàpo à eioàdeàpositi idades,àeà oàdeà ep ess esàeà egati idades à BOнн,à
2008, p. 190). Importante salientar que Foucault não buscou arquitetar uma teoria do poder,
mas unicamente expor como as relações que o envolvem se aplicam de forma orquestrada na
sociedade, através de diferentes polos propagadores. Desta forma, o conceito de poder para
o filósofo francês

não deve ser equivalente aos conceitos de repressão, lei, soberania, instituições e
aparelhos do Estado como comumente é analisado. Foucault não se refere a uma
forma de sujeição realizada por leis e regras, nem a um sistema de dominação de
uns sobre outros. Ao contrário, poder é entendido como multiplicidade de
correlações de forças, como jogo, estratégias móveis. Ou seja: poder visto como
potencialidade criadora, própria do ser humano, que se faz aparecer nas práticas e
nas relações humanas. Falamos em poder enquanto relações de forças, enquanto
prática, enquanto poder circulante, não estático e nem centralizado em um ponto.
Falamos de exercício de poder e não de aquisição do mesmo. O poder também não
pertence a alguém, isto é, não provém de uma relação entre dominados e
dominadores; não é uma instancia dual, binária, mas sim uma instância onipresente,
isto é, se produz a cada instante, em todos os pontos, em todas as relações (BOFF,
2008, p. 190).

O sentido primordial do poder que marca a característica das relações/tecnologias de


poder posteriormente desenvolvidas é um poder que, ao contrário de simplesmente reprimir,
cria mecanismos de atuação que envolve a vida social para uma forma de continuidade, de
potência e maximização das ações humanas. Trata-seà deà i duzi ,à deà ia à desejos,à ia à
vontades de ser tal ou qual modo [...]. Trata-se de criar um discurso eloquente que seja aceito
o oà e dade à BOнн,à ,àp.à .àáàt i aàdoàpoder se desenvolve, neste sentido, através
259

deà i flu iasà dis u si asà dotadasà deà e dades à e iadasà po à siste asà deà pode à ueà asà
disseminam, tonando-as padronizadas dentro do núcleo social e, consequentemente,
normalizadas.
Foucault, desta forma, acaba desmistificando as relações de poder e descentralizando-
as. Suas escavações genealógicas permitem, desta forma, identificar variadas linhas
hierárquicas e diversas formas de exercício de poder que não se constituem com exclusividade
através de um único polo, mas que se enraízam em inúmeras formas e domínios sociais. E é
a partir desta análise geral acerca das relações de poder que Foucault (1988) identifica na
teoria clássica da soberania uma primeira forma de tomada de poder, marcadamente
centralizada e hierarquizada, constituída como uma das características – e um dos privilégios
– doàpode àso e a oàpo à uitoàte po,à ueàfoiàoàdi eitoàdeà idaàeà o te,àouàseja,à oàdi eitoàdeà
causar a morte ou de deixar i e à– característica primordial da relação súdito/soberano. Esta
elaç oàdeàpode àsig ifi aà ueà oàsúditoà oà ,àdeàple oàdi eito,à e à i oà e à o to.àйleà ,à
do ponto de vista da vida e da morte, neutro, e simplesmente por causa do soberano que o
súdito tem direito de estar vivo ou tem direito, eventualmente, de estar morto (FOUCAULT,
1999, p. 286).
Na época clássica, estas relações de poder sofrem considerável transformação, agora
a a te izadasà oà aisà po à suaà e t alidadeà asà po à seà e aiza e à e à luga esà
heterogêneos e dispersos, espalhando-se por toda aà so iedade à DUá‘Tй,à ,à p.à .à
Surge, então, o que se pode denominar, a partir das percepções de Foucault (1988), uma
segunda fase dos mecanismos de poder, que se desenvolveu a partir do século XVII. É neste
o e toà ueà oà di eitoà deà o teà te de à a se deslocar ou, pelo menos, a se apoiar nas
e ig iasà deà u à pode à ueà ge eà aà idaà eà aà seà o de a à e à fu ç oà deà seusà e la os à
(FOUCAULT, 1988, p. 128).
Nesteàpe íodo,àoàdi eitoàdeà idaàeà o teà àsu stituídoà po àu àpode àdeàcausar a vida
ou devolver à mo te. à ,àp.à - .àйsseà o oà pode àso eàaà ida ,àdi idiu-se em dois
polos de desenvolvimento interligados: no primeiro

centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas


aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e
docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos. Tudo
isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas:
anátomo-política do corpo humano (FOUCAULT, 1988, p. 131).
260

Esse primeiro polo marca as disciplinas do corpo.3 Segundo analisa Boff (2008, p. 191),
esteàpe íodoà ueàa a geàta àoàs uloàXVIII à seàte àu aàespe ialàdes o e taàdoà o poà
enquanto objeto de poder. O corpo passa a ser manipulado, moldado, treinado, docilizado e
utilizadoàpeloà o t oleàdasàideias. àнou aultà ,àp.à àpe e eà ueàaàdis ipli aàdosà o posà
a a gia,à todosàa uelesàp o edi e tosàpelosà uaisàseàassegu a aàaàdist i uiç oàespa ialàdosà
corpos individuais (sua separação, seu alinhamento, sua colocação em série e em vigilância) e
aà o ga izaç o,à e à to oà dessesà o posà i di iduais,à deà todoà u à a poà deà isi ilidade. 4

Co fo eà o se aà нou aultà ,à p.à ,à esteà pe íodoà oà o poà hu a oà e t aà u aà


maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe.
Já na metade do século XVIII, formou-seà oà segu doà poloà doà pode à so eà aà ida ,à
centrado agora no corpo-espécie da população, uma tecnologia que se volta para a
multiplicidade dos homens, na forma de uma massa global, afetada por um conjunto de
processos intrínsecos à vida, como a morte, a produção, a doença, etc. (FOUCAULT, 1999, p.
289). йssesàp o essosàs oà assu idosàmediante toda uma série de intervenções e controles
egulado es:à u aà iopolíti aà daà populaç o. à (FOUCAULT, 1988). Essa outra tecnologia de
pode ,à ueà e t aà oà segu doà poloà deà pode à so eà aà ida ,à eà oà ualà нou ault ,à à
denomina de biopolítica, não exclui a técnica disciplinar, mas

3
As disciplinas do corpo marcam as características da sociedade disciplinar que, conforme lecionam Hardt e
Negri (2001), ilustra toda a primeira fase de acumulação capitalista (na Europa e em outras partes) excedendo a
ilustração limítrofe acerca do poder disciplinar na sociedade francesa clássica, como referenciado por Michel
Foucault. É de Hardt e Negri (2001, p. 42, grifos no original), também, que se pode compreender a sociedade
dis ipli a à o oà a uelaà aà ualàoà o a doàso ialà à o st uídoà edia teàu aà edeàdifusaàdeà dispositivos ou
aparelhos que produzem e regulam os costumes, os hábitos e as práticas produtivas. Consegue-se pôr para
funcionar essa sociedade, e assegurar obediência a suas regras e mecanismos de inclusão e/ou exclusão, por
meio de instituições disciplinares (a prisão, a fábrica, o asilo, o hospital, a universidade, a escola e assim por
dia te à ueàest utu a àoàte e oàso ialàeàfo e e àe pli aç esàl gi asàade uadasàpa aàaà az o àdaàdis ipli a. à
4
Co fo eà e elaàнou aultà ,àp.à à em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes
muito apertados, que lhe impõe limitações, proibições ou obrigações. Muitas coisas, entretanto são novas nessas
técnicas. A escala, em primeiro lugar, do controle: não se trata de cuidar do corpo, em massa, grosso modo,
como se fosse uma unidade indissociável, mas de trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção
sem folga, de mantê-lo ao nível mesmo da mecânica – movimentos, gestos atitude, rapidez: poder infinitesimal
sobre o corpo ativo. O objeto, em seguida, do controle: não, ou não mais, os elementos significativos do
comportamento ou a linguagem do corpo, mas a economia, a eficácia dos movimentos, sua organização interna;
a coação se faz mais sobre as forças que sobre os sinais; a única cerimônia que realmente importa é a do
exercício. A modalidade enfim: implica numa coerção ininterrupta, constante, que vale sobre os processos da
atividade mais que sobre seu resultado e se exerce de acordo com uma codificação que esquadrinha ao máximo
o tempo, o espaço, os movimentos. Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo,
que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que
pode osà ha a àasà dis ipli as .àMuitosàp o essosàdis iplinares existiam há muito tempo: nos conventos, nos
exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas
ge aisàdeàdo i aç o. à
261

a embute, que a integra, que a modifica parcialmente e que, sobretudo, vai utilizá-
la implantando-se de certo modo nela, e incrustando-se efetivamente graças a essa
técnica disciplinar previa. Essa nova técnica não suprime a técnica disciplinar
simplesmente porque é de outro nível, está noutra escala, tem outra superfície de
suporte e é auxiliada por instrumentos totalmente diferentes (BOFF, 2008, p. 194).

A biopolítica, nestes termos, é uma tomada de poder massificante que se dirige ao


homem-espécie; lidaà o à aà populaç o,à eà aà populaç oà o oà p o le aà políti o,à o oà
problema a um só tempo científico e político, como problema biológico e como problema de
pode à нOUCáUэT,à 1999, p. 293), que busca assegurar a normalidade desta população,
tonando-se mais fácil controlá-la para obter-se uma maior produtividade (BOFF, 2008, p. 194).
Ha ahàá e dtà a ,à ueàe o aà oàutilizeàaà f ulaà iopolíti a àpa aàe p essa à
suasà o i ç es,àa a a,àdaà es aà a ei aà ueàнou ault,àpo à o stata à que a vida humana
se tornou o objeto a ser administrado na sociedade moderna, suplantando a política como
espaço de deliberação e auto-gest oàdosàsujeitos à ‘UI),à a .àÉà aà o eituaç oàdaàvita
activa – que marcam as três atividades humanas fundamentais: labor, trabalho e ação5 – que
Arendt delimita a intervenção política nos diversos processos da vida, como o nascimento, a
morte, a natalidade e mortalidade, produtos, por excelência, da biopolítica. Para a autora
(1989a, p. 16-17), estas três atividades

e suas respectivas condições tem íntima relação com as condições mais gerais da
existência humana: o nascimento e a morte, a natalidade e a mortalidade. O labor
assegura não apenas a sobrevivência do indivíduo, mas a vida da espécie. O trabalho
e seu produto, o artefato humano, emprestam certa permanência e durabilidade à
futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano. A ação, na medida
em que se empenha e, fundar e preservar corpos políticos, cria a condição para a
lembrança, ou seja, para a historia. O labor e o trabalho, bem como a ação, têm
também raízes na anualidade, na medida em que sua tarefa é produzir e preservar o
mundo para o constante influxo de recém-chegados que vem a este mundo na
qualidade de estranhos além de prevê-los e levá-los em conta.

5
Pa aàá e dtà a,àp.à ,à oàla o à àaàati idadeà ueà o espo deàao processo biológico do corpo humano,
cujos crescimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio têm a ver com as necessidades vitais produzidas
e introduzidas pelo labor no processo da vida. A condição humana do labor é a própria vida. O trabalho é a
atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, existência essa não contida no eterno ciclo vital
daàesp ie,àeà ujaà o talidadeà oà à o pe sadaàpo àesteàúlti o.àOàt a alhoàp oduzàu à u doà a tifi ial àdeà
coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras habita cada vida
individual, embora esse mundo se destine a sobreviver e a transcender todas as vidas individuais. A condição
humana do trabalho é a mundanidade. A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem
a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e
oàoàрo e ,à i e à aàTe aàeàha ita àoà u do.
262

Arendt (1989a) foca na politização dos processos vitais da vida de uma dada
população, nos quais a vida do sujeito e, consequentemente, da população, acabam inscritos
osà l ulosàe plí itosàdoàpode ,àouà oà ueàнou aultà àde o i ouà o oà assu ç oàdaà
idaàpeloàpode àouà u aàto adaàdeàpode àso eàoàho e àe ua toàse à i o,àu aàesp ie
deà estatizaç oà doà iol gi o .à Notada e te,à esteà pode ,à pa aà á e dtà ,à p.à ,à
o espo deà àha ilidadeàhu a aà oàape asàpa aàagi ,à asàpa aàagi àe à o e to.àOàpode à
nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência
apenas na medida em que o grupo conserva-seàu ido. 6

É nesta tomada de poder que se insere o animal laborans da tese arendtiana,


o eituadoà aà pa ti à doà ho e à o te po eoà o e idoà o oà t a alhado à
constantemente empenhado na manutenção do ciclo vital da espécie e da própria sociedade
e à ueà i e à DUá‘Tй,à ,à p.à à é o sujeito exórdio dos pilares da vita activa. É no
trabalho na sociedade moderna que Arendt percebe a administração da vida dentro da
políti a,à o oàdesta aà‘uízà àeà aà ualà oàt a alho,à ueà o ti uaàaà ep ese ta àoà i loà
reprodutor da vida (produção e consumo) deixou de ser uma atividade banal de pura
e essidadeà a i alà eà foià e alte idaà o oà atego iaà e t alà daàhu a izaç o. à 7 O discurso

6
A análise arendtiana acerca do poder, corresponde em linha com a arqueologia desenvolvida por Michel
нou ault,à o fo eàpo de aàэafe à ,àp.à ,àg ifosà oào igi al .àá e dtà eto aàsuaà efle oàso eàoàpode à
afirmando que ele não é opressão nem coerção, mas sim a aptidão humana para agir em conjunto. Trata-se de
um fenômeno coletivo – plural – que surge da comunicação entre os homens, ensejando a concordância quanto
a um caminho comum de ação. O poder reside no povo – poestas in populo – e, para Hannah Arendt, esta
premissa é não só teórica quanto prática. Para ela o poder e sempre potencial, como se vê nas palavras
correspondentes em grego, dynamis, e em latim, potentia. O poder fala a linguagem da persuasão, dando
Hannah Arendt realce, na sua análise ao processo de geração do poder. É por isso que contesta a distinção entre
governantes e governados, que cuida apenas do emprego e da manutenção do poder – o que para ela, é um erro
conceitual, pois o poder pode ser atualizado ex parte populi através da geração de mais poder, mas não pode ser
estocado ex parte principis para ser empregado ou mantido.
7
Co fo eàdesta aà‘uízà ,às.,àp. àá e dtàde a aàsuaàpes uisaà o àaàdisti ç oà e t eàosàte osàt a alhoàeà
labor. O termo trabalho era utilizado na antiguidade greco-romana para designar o esforço realizado para a mera
sobrevivência humana. O trabalho se restringe ao ciclo vital da produção e o consumo, ao qual os seres humanos
estão presos enquanto seres biológicos que necessitamos subsistir. O trabalho representa o ciclo reprodutor da
vida; nele só se reproduzem as necessidades vitais, animais, da mera sobrevivência. Por esse motivo, para os
antigos, o trabalho não dignificava nem conferia humanidade para o ser humano. Pelo contrário, quanto mais os
seres humanos estivessem obrigados a ficar circunscritos às tarefas do ciclo de produção e consumo, mais
cooptados estavam pela necessidade natural e menos humanos eram, porque ficavam no espaço da mera
reprodução da vida natural, zoe. O trabalho era uma atividade que embrutecia porque limitava a vida à mera
reprodução cíclica do consumo daquilo que produzia, a vida natural. O trabalho, para os antigos, escraviza, não
humaniza. Por limitar a vida humana ao ciclo reprodutor do consumo, o trabalho é o meio de escravizar-se. Para
ser humano, haveria que sair do ciclo de produção e consumo imposto pelo trabalho. Os cidadãos livres da polis
acharam a solução para se libertar do trabalho transferindo essa ocupação para os escravos. O trabalho escraviza
263

moderno em torno do trabalho passou a ser de dignificação, que acaba selecionando o sujeito
útil ao sistema de gerenciamento da vida, processo lógico da biopolítica.
A tese arendtiana se enquadra, desta forma, no conceito de biopolítica na medida em
ueà de o st aà eà a alisaà asà p i ipaisà isesà políti asà daà ode idadeà ta dia,à asà uaisà
experimentamos a política sob diferentes modalidades da violência, seja ela a violência
extraordinária do totalitarismo, ou a violência ordinária levada a cabo por meios burocrático-
poli iaisà asàde o a iasà eal e teàe iste tes à DUá‘Tй,à ,àp.à .à
Logo, o caráter específico de gerir a vida abrange, no sentido biopolítico, a morte de
um contingente de indivíduos que representam uma ameaça a determinado grupo – entende-
se população, massa – se doàestaà o teà a a te izadaà o oàu aà elho iaàso ial ,àdeàfo aà
ueà aà o teà doà out oà oà à si ples e teà aà i haà ida,à aà edida em que seria minha
segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do
degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais
pu a à нOUCáUэT,à ,àp.à .
A morte social não se cara te izaàpeloàassassi atoàdi etoàdosài di íduos,à asàtudoàoà
que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco
deà o teàou,àpu aàeàsi ples e te,àaà o teàpolíti a,àaàe puls o,àaà ejeiç o,àet à нOUCáUэT,à
1999, p. .à “ oà o tosà legiti a e teà uelesà ueà o stitue à u aà esp ieà deà pe igoà
iol gi oà pa aà osà out os à нOUCáUэT,à ,à p.à .à ássi ,à aà iopolíti aà eà seuà pa ado alà
modus operandi, o qual, para produzir e incentivar de maneira calculada e administrada a vida
de uma população, pode vir a promover o genocídio sobre um corpo populacional

e por isso o trabalho, para os antigos, era ocupação dos escravos. Escravo é aquele que não tem possibilidade de
sair do trabalho. O trabalho escraviza porque embrutece e por isso reproduz sua condição de escravo. Tudo o
que os seres humanos tinham em comum com as outras formas de vida animal não era considerado humano,
mas meramente natural. Humano era aquilo que podia ser construído para além da mera vida natural. Aristóteles
não negava aos escravos a capacidade de serem humanos, mas só poderiam ser humanos quando conseguissem
se libertar do trabalho que os mantinha sujeitos à reprodução das necessidades, presos à condição de mera vida
atu al,àzoe. àNesteàse tido,àoàauto àai daàdesta a,àe à o ple e toà àa liseàa e dtia a,à ueàэi eà àa ueleà
que pode sair do ciclo reprodutivo do trabalho para exercer a ação, ou seja, a práxis criativa e o logos
emancipador. A liberdade dos antigos era concomitante à superação do ciclo de produção e consumo a que
estavam submetidos pelo trabalho aqueles que tinham que dele sobreviver. Contudo, faziam da austeridade uma
técnica para libertar-se do ciclo de consumo e produção. Arendt propõe o conceito de labor para designar as
atividades que vão além do mero ciclo de produção e consumo e está destinado a construir o mundo, a
permanecer no mundo, a criar um mundo. O labor constrói para além do consumo com expectativa de
durabilidade. Embora não seja a ação própria da política entre seres humanos, é uma atividade que possibilita
criar o mundo em que vivemos e criar o mundo como desejamos. Ele é a atividade que vai além da necessidade
imposta pelo ciclo da produção e do consumo, próprio do trabalho.
264

o side adoàpe igoso à DUá‘Tй,à ,àp.à ,àg ifosà oào igi al .àCo fo eàdes e eàCast oà
(2014, p. 49), Foucault faz uma ressalva ao afirmar que

la biopolítica no se apropiaàdeàlaà idaà pa aàsup i i la , sino para administrarla en


t i osà egulati os.àYàag ega,àade s,à ueà oàseàt ataàdeà ha e àjuga àlaà ue teàe à
el campo de la soberanía, sino de distribuir lo viviente en un dominio de valor y de
utilidad .

Quando não se pode produzir um sujeito útil, em domínios de valor e utilidade em


determinada população, resta a indistinção entre mera vida e vida política. Surge, neste
contraponto, o que Agamben (2002) denominou de vida nua, ao tecer um ponto de encontro
entre os estudos delineados por Foucault e Arendt. Para Agamben, conforme destaca Duarte
,àp.à ,àaàpolíti aà o oà iopolíti aàp oduzàaà idaà ua,à aà idaà ueàso e teà aià aàesfe aà
da política na medida em que dela pode ser eliminada sem que com issoàseà o etaàu à i e. à
ága e à ,àp.à ,àpo àsuaà ez,à o side aà ueà aài pli aç oàdaà idaà uaà aàesfe aà
política constitui o núcleo originário – ainda que encoberto – doàpode àso e a o. àOàse tidoà
primordial da afirmação de Agamben, reside no poder, aqui exclusivo, do soberano em
conceder ou retirar direitos, as vestes de graça que compõem todo o campo de saber que o
afirma como ente hierarquicamente responsável pela gestão da vida. Agamben (2002, p. 274),
assi ,àafi aà ue,à olo a doàaà idaà iol gica no centro de seus cálculos, o Estado moderno
oàfazà ais,àpo ta to,àdoà ueà e o duzi à àluzàoà í uloàse etoà ueàu eàoàpode à à idaà ua .8
Para fundamentar as complexas relações biopolíticas que permeiam o Estado
moderno, Agamben recorre ao direito arcaico romano, trazendo à lume a paradoxal relação
entre zoé e bios e seu habitante: o Homo Sacer. Em uma análise inicial, Agamben (2002),
distingue zoé e bios, na qual a primeira é a vida comum a todos os seres vivos (animais,
homens ou deuses), enquanto a segunda, é a forma ou maneira de viver própria de um
indivíduo ou de um grupo. A zoé é a vida livre, natural e ordenada pelas regras da natureza; é
a vida nua. Bios àaà idaà iada àpeloàho e àe ua toàse àso ial;à àaà idaàpolitizada.à

8
Conformeàdes e eà‘uizà a,àp.à à aào aàdeàága e àfazàu aài u s oàepist i aà oàdi eitoàeà aàpolíti aà
pelo viés da vida humana. Ela tenta captar (e capturar) uma tensão muito pouco percebida pela qual o direito e
a política ocidentais existem correlacionadas com a captura da vida humana. Neste ponto, Agamben dissente de
Foucault ao afirmar que a biopolítica não é uma característica da modernidade, mas algo inerente à política
ocidental desde suas origens. Embora concorda com Foucault que a modernidade expandiu a biopolítica de
forma capilar ao tentar governar de forma útil e produtiva, objetivando-a para tanto como um mero recurso
atu al.
265

No processo em que a vida individual e em comunidade entra para os cálculos


explícitos da biopolítica, todos os mecanismos que compõem as relações de poder são
acionados. No campo da vida politizada, permanece todo o constitutivo do progresso e
desenvolvimento, permeado pelos indivíduos passíveis de controle e utilidade, ao mesmo
tempo em que a vida natural, via de regra, inóspita para as técnicas de controle, constitui-se
daà e lus o ,à a io adaà peloà i pe ati oà daà i dis ipli aà eà i su o di aç o,à a uià e te didasà
como fatores contrários à efetividade da gestão das massas. Estes dois campos demarcam a
escolha dos indivíduos úteis ao sistema, que permanecerão dentro da bios e,
consequentemente, seu antagonismo será excluído para a zoé. Esta exclusão é associada à
figura arcaica do direito romano: o Homo Sacer.9 Este personagem, segundo apresenta Ruiz
(2013a, p. 33), a partir da teoria de Agamben, é uma figura

jurídico-política pela qual uma pessoa, ao ser proclamada sacer, era legalmente
excluída do direito (e consequentemente da política da cidade). Tal condição de
sacer impedia que ela pudesse ser legalmente morta (sacrificada), porém qualquer
um poderia matá-la sem que a lei o culpasse por isso.

Assim, Sacer é a vida abandonada pelo direito pelo fato de não se ter adaptado à
organização política-social. O Homo Sacer constitui a vida que não vale a pena ser vivida,
devendo ser excluída da vida em comunidade, ensejando uma morte simbólica. O indivíduo
declarado sacer deixa de constituir a bios,àouàaà idaàe à o u idade;à uma vida matável por
esta àfo aàdoàdi eito,à asàpo àissoà es oàelaà oàpodeàse à o de adaàju idi a e te .àйsteà
abandono se caracteriza pela e posiç oà à ul e a ilidadeàdaà iol iaàpo àse àdesp o idaàdeà
ual ue àdi eito,àse doà ueàtalà ul e a ilidadeàseàde i aàdeàu àatoàdeàdi eitoà ueàaàe luiu à
(RUÍZ, 2013a, p. 33).
Arendt, na explanação de Ruiz (2012), percebe este limiar na constituição do Animal
Laborans eà aàa uies iaàdaà e oluç o àdaà e aà idaà àvita activa, como observa o autor:

A exaltação do trabalho como atividade humanizadora implica numa humanização


da zoe, ou, uma assimilação do humano à mera vida natural. A elevação do trabalho
à categoria de humanização da zoe é talvez umas das inversões mais engenhosas da
biopolítica moderna. O trabalho moderno continua a representar, na sua essência, a

9
Ruíz (2013a, p. 33) complementa que a figura do homo sacer é um conceito-limite do direito romano que
delimita o limiar da ordem social e da vida humana. Nele transparece a correlação entre a sacralidade e a
soberania. Ambas são estruturas originárias do poder político e jurídico ocidentais porque revelam os dois
personagens que estão fora e acima da ordem: o homo sacer e o soberano.
266

reprodução do ciclo vital: produção e consumo. A elevação categorial do trabalho


como atividade produtora da humanidade fez da necessidade da reprodução do ciclo
vital, a mera animalidade da zoe, o objetivo do humano. O enaltecimento do
trabalho reprodutor da necessidade e do consumo, longe de possibilitar a
construção política de uma bios humana, como os antigos almejavam, reduz a vida
humana a pura vida natural. Nessa lógica, fecha-se o circulo da biopolítica moderna
que achata a vida humana à mera vida natural através da identificação do humano
com a reprodução das necessidades vitais da zoe.

O sujeito consumidor não é apenas aquele passível de consumir, mas precisamente,


aquele útil na co t i uiç oàdoà dese ol i e toà o su ido .àNaà efe iaàdeàá e dt,àaàzoé
entra na circunscrição política como forma produtora de desenvolvimento. A mera vida do
homo sacer só terá seu valor contíguo à bios no momento em que passa a ser relevante
enquantoà p oduto à desteà dese ol i e toà o su ido .à áoà te poà e à ueà seà desta aà
essaàa i al iaàdeàutilidade,àoàйstadoà esteàoàsujeitoà o à t ajesàglo iosos àdeàdi eitosàeà
ga a tias,àpassa doàaàte à di eito àdeà i ula àde t oàdoà ú leoàso ialà o oàsujeitoàaceitável.
Neste sentido, a biopolítica e toda a complexidade que a circunda permite
compreender a hodierna expansão punitiva que caracteriza o Estado penal contemporâneo e
todosàosàsujeitosàpassí eisàdeà ai àe àsuaà ede .àOàpode ,à o fo eàa alisadoàpo àFoucault,
que embora não seja uno e verticalizado, permite uma violência institucionalizada no que cabe
ao seu exercício por parte do Estado, expandindo-se nas microrrelações de poder dentro da
sociedade que ratificam a caracterização e diferenciação do sujeito útil ao sistema, do homo
sacer. Neste cenário, os fatores penais são transformados em biopolítica, na medida em que
busca, através do discurso da prevenção geral e especial propagado pelo direito penal, a
normalização e gestão dos corpos e das massas, ao mesmo tempo em que, dado seu caráter
seletivo enunciado pelos discursos normalizadores, caracteriza e exclui o sujeito considerado
a o al àdeàsuaà edeà o u it ia.
Oàsujeitoàe luídoà àe ol idoàpeloàdis u soàdoà i i igo ,à ueàseàto aà espo s elàpor
propagar o medo e pela crescente violência, devendo ser controlado pelo direito penal, que
seàjustifi aà o oàu à eioàdeàdefesaàso ialà o t aàessesà se esàpe igososà ueàseàapa ta àouà
que apresentam a potencialidade de se apartar do normal (prognóstico científico de
pe i ulosidade à ha e doà ueà osà esso ializa à ouà eut aliza à áND‘áDй,à ,à p.à -38).
Nesta esteira, Pavarini (2009, p. 177) entende que,
267

el sistema de la justicia penal, en su efectivo operar selectivo, recluta, trata y


condena como enemigos sólo o fundamentalmente a aquellos que, así
seleccionados, tratados y condenados, son construidos socialmente como enemigos.
La sociología de la pena y los estudios penológicos desde hace algún tiempo nos lo
dicen: la función latente del sistema de justicia penal es fundamentalmente la de
transformar a los transgresores de la norma penal en criminales, es decir, en sujetos
peligrosos y por ende enemigos. El derecho penal efectivo, esto es el de la prisión,
es siempre en los hechos un sistema de producción y exclusión de enemigos. De
todas formas, quien sufre la pena legal la percibe siempre como una hostilidad.

As técnicas biopolíticas, aplicadas ao sistema penal, procuram neutralizar,


objetivamente, os sujeitos que não se constituem como benéficos ao desenvolvimento de
determinada comunidade. Nos termos regulatórios, o Estado, em seus mecanismos
biopolíticos e usando de suas relações de poder, utiliza o direito penal no controle destes
indivíduos, tendo como pressuposto de base à defesa social, para a qualà a pena deve aspirar
a surtir efeito sobre o delinquente para que não volte a delinquir, ou seja, como prevenção
especial. Para estes, a pena deve dirigir-seà aosà ueà deli ui a à ZAFFARONI; PIRANGELI,
1999, p. 89).
A delinquência, a seu turno, passa a ser produzida como forma de gerir um sistema
centrado no desenvolvimento, sobretudo, econômico. Como destaca Candiotto (2012, p. 22):

a questão, portanto, não é eliminar a delinquência, mas normalizá-la, torná-la


economicamente útil, politicamente favorável ao lucro fácil e escuso. O delinquente
não seria o efeito negativo do fracasso prisional, mas o resultado positivo de uma
sociedade burguesa que se alimenta da acumulação legal e ilegal do capital.

Notadamente, o mesmo sistema gere medo e insegurança, perfazendo a busca


incessante por um Estado policialesco que reprima o sujeito que não se adequou ao sistema
iopolíti oà deà o t ole.à We uthà ,à p.à à a gu e taà ueà e à talà o te to,à oà edo,à
compreendido como sentimento de vulnerabilidade, converteu-se em um condicionante
i po ta teàdasàpolíti asàdeàsegu a ça ,

o que significa que, com a administração especializada, despolitizada e socialmente


objetiva e com a coordenação dos interesses como nível zero da política, a única
maneira de introduzir paixão nesse campo e de mobilizar ativamente as pessoas é
através do medo, um elemento constituinte fundamental da subjetividade de hoje.
Por isso a biopolítica é em última instância uma política do medo que se centra na
defesa contra o assédio ou a vitimização pote iaisà õIõйы,à ,àp.à .
268

O direito penal, e sua consequente engrenagem normativa, surgem, enquanto


políticas de segurança, como o veículo adequado no tratamento destes potenciais medos:
medo de imigrantes, medo da criminalidade, medo de uma depravação sexual ímpia, medo
do próprio excesso de Estado e da sua carga tributária elevada, medo da catástrofe ecológica,
edoàdoàass dio à õIõйы,à ,àp.à . A gestão destes medos acaba sendo gerenciada pela
prisão, que assume nas técnicas biopolíticas, a função primordial de afastar os seres
i o e ie tesà doà e t oà daà o alidade ,à o st uídoà pelosà dis u sosà iopolíti os.à Co oà
percebe Bauman (1999, p. 131), os

alarmes contra assalto, bairros vigiados e patrulhados, condomínios fechados, tudo


isso serve ao mesmo propósito: manter os estranhos afastados. A prisão é apenas a
mais radical dentre muitas medidas – diferente do resto pelo suposto grau de
eficiência, não por sua natureza. As pessoas que cresceram numa cultura de alarmes
contra ladrões tendem a ser entusiastas naturais das sentenças de prisão e de
condenações cada vez mais longas.

Ca alhoà ,à p.à à e te deà ue,à aoà des a ta à aà pessoaà sup flua ,à oà йstadoà
recorre à maximização dos apa elhosà ep essi osà deà o t oleà pe alà eà a e io,à logo,à aà
alte ati aàaoàйstadoàp o id ia,àpo ta to,àpassaàaàse àoà йstadoàpe it ia ,à o figu a doà
uma máxima que parece ser a palavra de ordem na atualidade: Estado social mínimo, Estado
penal máxi o. àDestaàfo a,àCa diottoà ,àp.à -23) vê a alte iaàe t eàesta àde t oà
e fora da prisão, [...] como um fator não desprezível de produção da insegurança social, a qual,
por sua vez, desperta na população a demanda pelo controle policial ostensivo. à йà de t oà
desteàsiste a,à estaà u aàsaídaàplausí elàpa aàa uelesà ueàfo a àdestituídosàdaà idada ia:àaà
marginalização social potencializada pelo incremento da máquina de controle penal,
so etudoà a e ia à Cá‘VáэрO,à ,à p.à .à Oà o t oleà pe alà a ontece a partir do
consenso de grande parte da população, a qual pensa que, conforme argumenta Candiotto
(2012, p. 22-23),
o policiamento e o encarceramento são mecanismos de combate à delinquência.
Raramente levam em conta que eles são mecanismos produtores da insegurança ao
se valerem da normalização e regulação da delinquência para gerir e pulverizar as
manifestações políticas e sociais, mas também para legitimar de fato a atuação,
muitas vezes ilegal, do estado e seus aparelhos repressivos.

A expansão do estado punitivo se verifica a partir da ampliação e criação de


o atizaç esà i i aliza tes,à poisà aà faseà dadaà aosà is os/pe igosà daà i i alidadeà aà
269

contemporaneidade gera um alarmismo não justificado em matéria de segurança, que


redunda no reclamo popular por uma maior presença e eficácia das instancias de controle
so ial à CANDIOTTO, 2012, p. 22-23), que são geradas a partir de um simbolismo normativo e
da irracionalidade das leis penais.
As estratégias punitivas simbólicas expandem-se sem limites, fazendo com que a
sensação de impunidade cresça e, consequentemente, aumentem as alternativas penais
justificadas na contenção de indivíduos que, supostamente, não concordam com as regras
normativas estabelecidas pela sociedade, sendo declarados como inimigos que devem ser
combatidos através da exclusão social. Resta claro que o direito penal acaba por produzir um
Estado fortemente endurecido no trato com seus cidadãos, formando um óbice na efetivação
dos direitos humanos e gerando, em consequência, uma insegurança de ser decretada a vida
nua para qualquer sujeito.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As relações de poder que permeiam a sociedade contemporânea orientam o Estado


na realização da promoção da vida, dentro de sua objetividade biopolítica. Nesta esteira, a
amplitude normativa de regulação social torna-se o veículo adequado para a consolidação do
faze à i e ,àeà à esteà o te toà ueàseài se eàoàsiste aàpe al,à ueàp o o eàaà seleç o àdosà
sujeitosà úteisà pa aà oà dese ol i e toà doà siste aà o ga izado,à poisà osà dispositi osà
disciplinares e biopolíticos se convertem nas novas técnicas políticas, necessárias para
governar as multiplicidades urbanas e ajustá-las à dinâmica de produção e consumo de uma
so iedadeài dust ialàeà apitalista. à Cá“T‘O,à ,àp.à .à
O controle da vida e sua organização pressupõe a inserção do sujeito
produtor/consumidor, encarregado em auxiliar no desenvolvimento do soberano, que
promove esta vida útil e a abandona quando inútil. As teses levantadas por Hannha Arendt,
acerca de a condição humana consolidar-se através do trabalho na contemporaneidade,
demonstram o caráter seletivo do sistema biopolítico, o que deságua na produção da vida nua
e na caracterização do homo sacer conceituados por Giorgio Agamben.
Ao abandonar a vida inútil para o seu desenvolvimento, o Estado e sua
operacionalização biopolítica, entrega à desordem um amplo contingente populacional que
270

permanecerá na marginalidade, sem alcance efetivo de direitos fundamentais


o e io adosà peloà p p ioà йstado,à poisà asà elaç esà deà pode à ueà oà pe eia à te à talà
alcance e está tão disseminado nos múltiplos lugares da vida social que, em certos casos, pode
levar a abusos e patologias do poder que estão conectadas ou sintonizadas com segmentos
i po ta tesàdoà u doàso ialàeàpolíti o. à Cá“TйэOàB‘áNCO,à ,àp.à .
Desta forma, verifica-se que as relações de poder que permeiam as técnicas
biopolíticas orientadas pelo Estado, influenciam de forma contundente o discurso jurídico-
penal que acaba por assumir a responsabilidade em gerenciar a desordem produzida a partir
da exacerbação punitiva, formando um óbice para o alcance e atuação dos direitos humanos
na contemporaneidade.

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273

INSIGNIFICÂNCIA E REINCIDÊNCIA: A APLICAÇÃO DA ATIPICIDADE MATERIAL FRENTE À


REITERADA CONDUTA DELITIVA DO AGENTE

André Giovane de Castro1


Yana Paula Both Voos2

RESUMO: O princípio da insignificância tem suscitado expressivos debates no campo do


Direito Penal. A aplicabilidade da bagatela em determinados delitos, por irrisória relevância e
prejuízo ao Estado e à vítima, vem sendo enfrentada pelos tribunais no tocante ao conflito
com a reincidência criminal. Por meio do método de abordagem hipotético-dedutivo, com
base em pesquisa doutrinária e jurisprudencial, em material físico e digital, a pesquisa discorre
sobre ambos os institutos e os posicionamentos dos magistrados na direção de se analisar o
caso concreto, considerando os efeitos da conduta criminosa e a condição subjetiva do
agente, e não impondo uma definição absoluta de aplicabilidade, ou não, da insignificância
face à reiterada ação delitiva.

Palavras-chave: Direito Penal; Jurisprudência; Princípio da Insignificância; Reincidência.

INTRODUÇÃO
O Direito Penal é o instrumento utilizado pelo Estado para promover a harmonia social.
A regulação das condutas consideradas puníveis por transgredirem a ordem de boa
convivência está abarcada juridicamente na legislação brasileira. O Poder Judiciário é
convocado a dirimir os conflitos tipificados no ordenamento legal e promover, quando
devidamente instruído e comprovado na persecução penal, a punição do agente.
O princípio da insignificância, que encontra seu respaldo e aplicação no seio material
e processual penal, é corriqueiramente abordado nas teses defensivas. De ordem garantista,
o referido mandamento, que não encontra guarida legislativa, vem sendo constantemente
debatido na seara doutrinária e jurisprudencial ao lado do instituto, previsto no Código Penal,
da reincidência.
A contraposição entre um princípio absolutório e uma agravante ou circunstância
desfavorável ao réu, qual seja, a conduta criminosa reiterada, é levada aos tribunais brasileiros
com expressiva frequência. Os julgadores, pois, precisam analisar o caso e definir quanto à
aplicabilidade da bagatela ou sua objeção quando enfrentada, de forma fática, com a
reincidência.

1
Aluno do Curso de Graduação em Direito na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do
Sul (UNIJUÍ). E-mail andre_castro500@hotmail.com
2
Aluna do Curso de Graduação em Direito na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do
Sul (UNIJUÍ). E-mail: yanapaula04@hotmail.com
274

Assim, o objetivo desta pesquisa é discorrer sobre as conceituações do princípio da


insignificância e do instituto da reincidência, ambos recepcionados pela legislação penal
brasileira, bem como analisar, a partir de casos práticos, as decisões dos tribunais no tocante
à possibilidade de aplicação da bagatela em situações que o acusado, embora tenha cometido
crime com prejuízos irrelevantes, ostenta extensa ficha criminal.

1 AS NUANCES FÁTICAS DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

A vivência dos indivíduos em sociedade provoca conflitos. A formação do Estado veio


justamente com o intuito de criar um sistema para regular a harmonia entre os cidadãos. O
ordenamento legislativo, nas suas mais diversas áreas, tem a incumbência de promover
embasamentos legais para a atuação do poder público e, também, do Judiciário, responsável
por dirimir eventuais transgressões normativas.
O Direito Penal é o segmento jurídico destinado às demandas de cunho mais severas,
uma vez que atende aos delitos tipificados pelo ente estatal como puníveis. Todavia, algumas
ações, mesmo reguladas pelo ordenamento pátrio, são analisadas de modo fático, a partir do
que perdem as suas características de ilicitude e se tornam, ademais, atípicas, isto é,
protegidas de sanção do Estado-juiz.
Este é o caso, por exemplo, do conhecido princípio da insignificância delitiva. Segundo
Ceza à‘o e toàBite ou tà ,àp.à ,àoàte oà foià u hadoàpelaàp i ei aà ezàpo àClausà‘o i à
em 1964, que voltou a repeti-lo em sua obra Política Criminal y Sistema del Derecho Penal,
partindo do velho adágio latino mínima non curat praetor .à ái da recente no direito, o
mandamento é abarcado majoritariamente pela doutrina e pela jurisprudência.
Dessaà fo a,à oà Di eitoà Pe alà o oà ulti aà atio à não deve se preocupar com
bagatelas, exigindo um mínimo de ofensa de gravidade aos bens jurídicos por ele protegidos.
Assim, Klaus Tiedemann (apud Bitencourt, 2011, p. 51) chamou de princípio da bagatela,
preceituando ser imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta a
qual se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal.
Para Carlos Vico Mañas (apud SANCHES, 2016, p. 72):
275

O princípio da insignificância surge como instrumento de interpretação restritiva do


tipo penal que, de acordo com a dogmática moderna, não deve ser considerado
apenas em seu aspecto formal, de subsunção do fato à norma, mas,
primordialmente em seu conteúdo material, de cunho valorativo, no sentido de sua
efetiva lesividade ao bem jurídico tutelado pela norma penal, o que consagra o
postulado da fragmentariedade do direito penal [...] Funda-se na concepção material
do tipo penal, por intermédio do qual é possível alcançar, pela via judicial e sem
macular a segurança jurídica do pensamento sistemático, a posição político-criminal
da necessidade de descriminalização de condutas que, embora formalmente típicas,
não atingem de forma socialmente relevante os bens jurídicos protegidos pelo
Direito Penal.

O entendimento é corroborado pelos ensinamentos de Fernando Capez (2010, p. 29),


oà ualàp e eituaà ueà oàpode àse àad itidosàtiposài i i ado esà ueàdes e a à ondutas
i apazesà deà lesa à oà e à ju ídi o .à N oà à ad issí el,à dia teà disso,à ueà ual ue à o dutaà
legalmente prevista seja, sem análise das circunstâncias práticas, suficiente para configurar
um crime, quando houve uma mínima ou irrelevante lesão ao bem jurídico tutelado.
A partir disso, consoante Bitencourt (2011, p. 327), é necessário verificar a
proporcionalidade entre a gravidade da conduta a que se quer punir e a drasticidade da
intervenção do Estado. Ou seja, mesmo que a ação se enquadre em algum tipo penal, muitas
vezes não apresenta relevância material, pois não configurou ofensa ao bem jurídico
protegido, sendo passível o afastamento liminar da tipicidade delitiva.
O Superior Tribunal de Justiça tem reconhecido a tese de exclusão da tipicidade nos
casos chamados de delitos de bagatela, aplicando-lhes o princípio da insignificância desde que
ínfimos os prejuízos. Nesse sentido, Capez (2010) aduz que o Supremo Tribunal Federal
determinou certos elementos importantes para se aferir o relevo material da tipicidade, quais
sejam: mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação,
reduzíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica
provocada.
Por sua vez, Guilherme de Souza Nucci (2011, p. 231) afirma que devem ser seguidas
três regras para a aplicação do princípio da insignificância. São elas: 1) consideração valorativa
do bem jurídico em termos concretos, certificando-se do valor do bem discutido à luz do
agressor, da vítima e da sociedade; 2) análise da lesão ao bem jurídico em visão global, isto é,
não o prejuízo unitário, mas, sim, a totalidade; e 3) verificação particular aos bens jurídicos
imateriais de expressivo valor social, quando eles não possuem um valor específico e
determinado, como, por exemplo, meio ambiente e moralidade administrativa.
276

Não há que se falar, entretanto, da aplicação irrestrita do princípio da insignificância


nos crimes de menor potencial ofensivo simplesmente por assim serem definidos. O artigo 61
da Lei 9.099/95 proclama que se tratam de delitos de menor potencial ofensivo as
contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos,
cumulada ou não com multa (BRASIL, 1995).
O fato de uma conduta ser de menor potencial ofensivo, conforme Bitencourt (2011,
p. 51), não significa dizer que se amoldura à ideia de bagatela. Os delitos de lesão corporal
leve, ameaça e injúria, exemplificativamente, embora sejam menos importantes se forem
comparados com a vida e a liberdade social, são so ialàeàpe al e teà ele a tes ,àpoisàsuaà
gravidade é perceptível socialmente.
Ademais, não se pode aduzir que todas as contravenções penais são irrelevantes, uma
vez que varia conforme o caso concreto. Nos ensinamentos de Capez (2010, p. 30), por
exemplo,à aà o dutaàdeàa da àpelasà uasàa adoà o àu aàfa aà àu àfatoà o t a e io alà
ueà oà podeà se à o side adoà i sig ifi a te .à áà estesà asos,à apli a-se o procedimento
sumaríssimo do Juizado Especial Criminal, regulado pela Lei 9.099/95, com as benesses dos
institutos despenalizadores, como a suspensão condicional do processo, a transação penal e
a composição dos danos civis, mas sem retirar-lhes a tipicidade.
Dessa forma, o princípio da insignificância deve ser analisado pelo julgador em cada
caso concreto, pois,à o fo eàBite ou tà ,àp.à ,à aài ele iaàouài sig ifi iaàdeà
determinada conduta deve ser aferida não apenas em relação à importância do bem
juridicamente atingido, mas especialmente em relação ao grau de sua intensidade, isto é, pela
exte s oàdaàles oàp oduzidaà[...] .
Nos crimes contra Administração Pública, exemplificativamente, deve ser levado em
conta a lesão provocada ao erário. Assim, se o prejuízo for de ínfima monta, como a
apropriação, por funcionário público, de alguns clips ou uma borracha, conforme Capez (2010,
p. 31), exige a aplicação da bagatela. Nos delitos de lesão corporal, se o ferimento não afetar
a integridade corporal, também prospera a aplicação (BITENCOURT, 2011, p. 52).
A doutrina moderna convencionou fazer uma diferenciação entre o princípio da
insignificância ou da bagatela própria e da bagatela imprópria. Conforme aduz Rogério
“a hesà ,à p.à ,à aà agatelaà p p iaà oà seà apli aà oà Di eitoà Pe alà e à az oà daà
insignificância da lesão ou perigo de lesão ao bem tutelado .àássi ,àoàatoà àt oàí fi oà ueàaà
277

vítima não sofreu nenhum dano ou ameaça de lesão relevante, configurando-se a atipicidade
e a não justificação da aplicação criminal.
Já na bagatela imprópria, Alice Bianchi, Antonio García-Pablos de Molina e Luiz Flávio
Go esà apudà“áNCрй“,à ,àp.à àp e eitua à ueàdizà espeitoà uelaà ueà as eà ele a teà
para o Direito Penal [...], mas depois se verifica que a incidência de qualquer pena no caso
concreto apresenta-seà total e teà des e ess ia .à Desseà odo,à i pe a a importância de
aplicar a lei, mas não de punir o agente, uma vez que não atende à proporcionalidade.
O Supremo Tribunal Federal, a partir dos julgados criminais, tem firmado o
entendimento de que o princípio da insignificância, da bagatela ou preceito bagatelar, guarda
fundamento na retirada da própria tipicidade penal da conduta, descaracterizando a moldura
existente entre o fato e a norma. O resultado é, pois, a absolvição do réu, por absoluta
irrelevância do caso para a persecução penal.
Verifica-se, portanto, que a doutrina e jurisprudência, de forma majoritária, defendem
o instituto da insignificância para o afastamento da tipicidade criminal. Assim, o juiz traz para
as partes uma sentença penal absolutória, não sendo imputado ao réu qualquer consequência
prevista na legislação penal, visto que nulla poena sine crime ,àouàseja,à oàh à ueàseàfala à
em aplicação de pena sem haver um crime que deva ser punido.

2 O INSTITUTO DA REINCIDÊNCIA E SUAS DISCUSSÕES

O instituto da reincidência consiste no agente praticar uma infração penal após ter sido
condenado definitivamente, isto é, com sentença transitada em julgado. Segundo o artigo 63,
doàC digoàPe al,à erifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de
transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime
a te io .
Nesses termos, faz-se necessário que o indivíduo tenha praticado um delito anterior,
já com prolação de sentença condenatória sem possibilidade de interposição de recurso, bem
como tenha ele, na sequência, infringido novamente a lei penal. As especificações são
legalmente prescritas no Diploma Penal. O artigo 64 declara que o novo crime deva ocorrer
dentro de cinco anos após o trânsito em julgado, com cumprimento extintivo da pena, uma
vez que fora desse lapso desencadeia-se a perda da eficácia e aplicabilidade da reincidência.
278

Assim, o artigo 64 do Código Penal proclama:

Art. 64 - Para efeito de reincidência:


I - não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção
da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco)
anos, computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se
não ocorrer revogação. (BRASIL, 1940).

Nota-se, diante disso, que a prática delitiva no prazo superior a cinco anos traz ao
agente a condição de primariedade. Essa situação é corroborada por Nucci (2011, p. 488), ao
e io a à ueà àp i ioà ue à oà à ei ide te;àeste,àpo àsuaà ez,à àa ueleà ueà o eteà
novo delito nos cinco anos depoisàdaàe ti ç oàdaàsuaàúlti aàpe a .à“alie ta-se, porém, que o
marco de contagem diz respeito ao cumprimento ou extinção da última pena, e não do
trânsito em julgado da sentença condenatória.
A aplicação da reincidência na dosimetria da pena gera muitas discussões, uma vez que
esta ia,à e à tese,à o t adita doà o à oà p i ípioà doà eà isà i à ide , ou vedação da dupla
punição pelo mesmo fato, ou seja, a primeira ação delituosa não deveria servir de agravação
para a pena de outra. Porém, esculpido no seio penal, o instituto da reincidência é aplicável
nas sentenças e tais decisões são aceitas majoritariamente pelos tribunais.
Além disso, a “ú ulaà àdoà“upe io àT i u alàdeàщustiçaàp ofe eà ueà aà ei id iaà
penal não pode ser considerada como circunstância agravante e, simultaneamente, como
i u st iaàjudi ial à B‘á“Iэ,à .àNesseàse tido,àoàjuiz,à o soa teàNu ià ,àp.à à
podeàle a àe à o side aç oàosà ausàa te ede tesàeàaà ei id ia,àdesdeà ueà oàte ha ,à
como base fática, as mesmas condenações .
Constata-se que o instituto da reincidência gera consequências negativas para o réu.
Os efeitos, segundo Nucci (2014, p. 386), são os seguintes: a) existência de uma agravante que
prepondera sobre outras circunstâncias legais; b) possibilidade de impedir a substituição da
pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou multa; c) quando por crime doloso,
impedimento à obtenção do sursis; d) possibilidade de impedir o início da pena nos regimes
semiaberto e aberto; e) motivo para aumentar o prazo de obtenção do livramento
condicional; f) impedimento ao livramento condicional nos casos de crimes hediondos,
tortura, tráfico de entorpecentes e terrorismo, tratando-se de reincidência específica; g)
aumento do prazo de prescrição da pretensão executória em um terço; h) causa de
interrupção do curso da prescrição; i) possibilidade de revogação do sursis, do livramento
279

condicional e da reabilitação; j) aumento de um terço até a metade da pena de quem já foi


condenado por violência contra a pessoa no caso de porte ilegal de arma; l) integração ao tipo
da contravenção penal de ter consigo material utilizado para o crime de furto, por quem já foi
condenado por crime de furto ou roubo; m) não permissão de concessão do furto privilegiado,
do estelionato privilegiado e das apropriações privilegiadas; n) possibilidade de causar a
decretação da prisão preventiva; e o) impedimento dos benefícios da Lei 9.099/95 (Juizado
Especial Criminal).
Apesar de se tornar evidente o prejuízo para o réu, o índice de indivíduos reincidentes
é expressivo na sociedade brasileira. A razão disso, nos ensinamentos de Bitencourt (2011, p.
,àgua daàp i o dialà elaç oà o àaà o p o aç oàdoàefeti oàf a assoàdaàpe aàp i ati aàdeà
li e dade ,à istoà ,à aà i efi i iaà doà йstado,à po à eioà doà sistema carcerário, de garantir o
almejo maior, qual seja, a reeducação e ressocialização do apenado.
O método atual de punição, eleito pelo Direito Penal, que privilegia o encarceramento
de delinquentes no sistema penitenciário tradicional não estaria dando resultados
pretendidos, mas, sim, conforme Bitencourt (2011, p. 125), servindo como fundamento fático
pa aà efo ça àosà alo esà egati osàdoà o de ado ,àaoài sàdeàp o la a àaà ei se ç oàdoà
cidadão no meio social com a reabilitação pretendido mediante a segregação.

3 AS CONFRONTAÇÕES DA INSIGNIFICÂNCIA E DA REINCIDÊNCIA NA JURISPRUDÊNCIA


BRASILEIRA

A persecução penal tem o objetivo de garantir ao Estado o seu poder de regular o


convívio harmônio e social. A transgressão de norma jurídica tipificada como delitiva enseja
ao órgão estatal a responsabilidade de pleitear, junto ao Poder Judiciário, a resposta que a
sociedade deseja receber, assim como a sanção, benéfica ou não, para o agente que atuou
em violação a dispositivo legal.
Há situações, no entanto, em que o magistrado verifica a atipicidade da conduta. Duas
são as circunstâncias que podem provocar a isenção condenatória. São elas: atipicidade
formal e atipicidade material. Enquanto naquela se fala na própria falta de enquadramento
do fato à norma, ou causa excludente do tipo delineada na legislação penal, nesta se diz em
relação aos elementos práticos do caso, que o direcionam à insignificância do direito de punir.
280

Nesse sentido, Luiz Flávio Gomes e Christiane Parisi Infante (2010) afirmam que o
direito brasileiro, por meio de seus doutrinadores e julgadores, tem calcado o entendimento
de que o princípio da insignificância é uma causa supralegal de exclusão da tipicidade. Assim,
embora haja previsão legal, o fato praticado, consoante as características já descritas, é
irrelevante para o direito penal.
Todavia, a jurisprudência nacional tem discutido constantemente acerca da
aplicabilidade da referida bagatela criminal. Nem sempre o réu é primário e cometeu um
delito de menor potencial ofensivo ao patrimônio de outrem. Por vezes, a coisa furtada,
exemplificativamente, é irrisória, mas, de outra banda, o acusado é assíduo no crime, ou seja,
é reincidente ou registra maus antecedentes criminais.
Nessa seara jurídica, Luiz Regis Prado (2010, p. 158) proclama:

A restrição típica decorrente da aplicação do princípio da insignificância não deve


operar com total falta de critérios, ou derivar de interpretação meramente subjetiva
do julgador, mas ao contrário há de ser resultado de uma análise acurada do caso
em exame, com o emprego de um ou mais vetores [...] tidos como necessários à
determinação do conteúdo da insignificância.

O juiz deve, pois, conforme o supramencionado entendimento, verificar as nuances


fáticos do caso em comento e definir acerca da viabilidade de absolver ou não o réu com fulcro
na atipicidade material. Não é somente o valor obtido ou pretendido do produto do crime,
assim, que precisa nortear à decisão absolutória, com o risco, se dessa forma não o fizer, de
assegurar a impunidade sem critérios.
No entanto, a doutrina diverge nesse aspecto. Vinicius de Toledo Piza Peluso (2001, p.
àasse e aà ueà oàp i ípioàdaài sig ifi iaàte àaà atu ezaà e a e teào jeti a,àse doàe oà
procedimental grave a análise de elementos subjetivos, pertencentes à culpabilidade do
age teà espe ifi a e teà aà p i a iedade,à oà o e toà daà alo aç oà doà efe idoà p i ípio .à
Para Peluso (2001), então, a irrelevância penal do fato criminoso é o bastante para a aplicação
da bagatela.
Sob esse mesmo viés, Julio Fabbrini Mirabete e Renato Fabbrini (2012, p. 103):

[...] Ou o fato praticado pelo agente, objetivamente e em si mesmo considerado, é


contrário ao Ordenamento Penal ou não é. [...] A controvérsia tem se evidenciado,
sobretudo, nos casos de maus antecedentes, reincidência, habitualidade ou prática
reiterada de delitos que individualmente seriam considerados de bagatela, mas que
281

em seu conjunto apontam para um maior grau de reprovabilidade ou de


periculosidade social. [...] A insignificância há de ser aferida de forma objetiva,
porque a antijuridicidade é uma medida objetiva, diante do caráter de validade geral
da norma e porque a verificação da contrariedade ou não de um fato ao
Ordenamento independe de quem o praticou.

O Supremo Tribunal Federal tem consolidado as suas decisões, no que tange à


adequação da insignificância no âmbito penal, a partir de alguns requisitos, quais sejam:
mínima ofensividade da conduta; nenhuma periculosidade social da ação; reduzidíssimo grau
de reprovabilidade; e inexpressividade da lesão jurídica. Tais requisitos, segundo Paulo
Queiroz (2010, p. 63), formam um círculo fechado e tautológico na condução da atipicidade.
A Corte Suprema decidiu, dessa forma, ao julgar o Habeas Corpus 123108, proveniente
de Minas Gerais e relatoria do ministro Roberto Barroso:

PENAL. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CRIME DE FURTO SIMPLES. REINCIDÊNCIA.


1. A aplicação do princípio da insignificância envolve um juízo amplo
o glo a te ,à ueà aiàal àdaàsi plesàafe iç oàdoà esultadoà ate ialàdaà o duta,à
abrangendo também a reincidência ou contumácia do agente, elementos que,
embora não determinados, devem ser considerados. 2. Por maioria, foram também
acolhidas as seguintes teses: (i) a reincidência não impede, por si só, que o juiz da
causa reconheça a insignificância penal da conduta, à luz dos elementos do caso
concreto; e (ii) na hipótese de o juiz da causa considerar penal ou socialmente
indesejável a aplicação do princípio da insignificância por furto, em situações em que
tal enquadramento seja cogitável, eventual sanção privativa de liberdade deverá ser
fixada, como regra geral, em regime inicial aberto, paralisando-se a incidência do
art. 33, § 2º, c, do CP no caso concreto, com base no princípio da proporcionalidade.
[...] (BRASIL, 2015).

O STF, diante disso, firmou o entendimento de que a reincidência não é elemento a ser
isoladamente considerado como óbice à aplicabilidade do princípio da insignificância,
cabendo ao magistrado confrontá-la com os demais elementos subjetivos e objetivos do caso
em discussão. Aliás, o Superior Tribunal de Justiça tem decidido as suas demandas com base
nessa interpretação, conforme Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial
2016/0301691-0, com relatoria do ministro Jorge Mussi:

REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. FURTO. PRINCÍPIO DA


INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE, NA ESPÉCIE. REINCIDÊNCIA. INEXPRESSIDADE
DOS BENS SUBTRAÍDOS. MEDIDA SOCIALMENTE RECOMENDADA. RECURSO
IMPROVIDO. 1. A aplicação do princípio da insignificância reflete o entendimento de
que o Direito Penal deve intervir somente nos casos em que a conduta ocasionar
lesão jurídica de certa gravidade, devendo ser reconhecida a tipicidade material de
perturbações jurídicas mínimas ou leves, estas consideradas não só no seu sentido
econômico, mas também em função do grau de afetação da ordem social que
282

ocasionem. [...] 3. A reiteração criminosa inviabiliza a aplicação do princípio da


insignificância, salvo se verificado, no caso concreto, ser a medida socialmente
recomendável. 4. Na espécie, as peculiaridades do caso denotam a possibilidade
excepcionar de conferir ao recorrido o benefício da bagatela, uma vez que foram
subtraídos gêneros alimentícios (arroz feijão e latas de óleo), cujo valor se mostra
irrisório em comparação com o salário mínimo vigente à época, circunstância que
não indica a reprovabilidade do comportamento, suficiente e necessária a
recomendar a intervenção estatal. [...] (BRASIL, 2017).

Verifica-se, diante do exposto, que, embora presente a agravante da reincidência, os


julgadores mantiveram a insignificância como causa excludente da tipicidade, pois o fato
praticado foi economicamente irrelevante, não demonstrando prejuízo substancial à vítima.
Ademais, a punição em segregação da liberdade não seria, na situação em voga, uma medida
necessária e adequação, razão pela qual se proclamou a absolvição com base na bagatela.
Já o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, com posicionamentos mais
severos, tende a considerar os maus antecedentes e a reincidência como razões que obstam
o reconhecimento da insignificância. É o que se constata no julgamento da Apelação
70067954123, com relatoria da desembargadora Isabel de Borba Lucas:

APELAÇÃO CRIME. CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO. FURTO QUALIFICADO PELO


CONCURSO DE AGENTES. TENTATIVA. PROVA. CONDENAÇÃO MANTIDA. PRINCÍPIO
DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. [...] O princípio da insignificância não é
aplicável, no caso, já que a res foi avaliada em R$ 120,00 (cento e vinte reais),
montante superior a 10% do salário mínimo vigente à época dos fatos (R$ 678,00).
Além disso, para o reconhecimento da insignificância, colocando em tela a
atipicidade da conduta dos réus, deve ser levado em consideração o desvalor dos
réus que, observando as suas certidões de antecedentes criminais, ostentam
condenações pelos delitos de furto qualificado e roubo majorado, não sendo
possível a aplicação do princípio da insignificância ou bagatela, na espécie. [...] (RIO
GRANDE DO SUL, 2017).

Há no sistema judiciário brasileiro, a partir dessa análise doutrinária e jurisprudencial,


o entendimento majoritário de que a aplicabilidade da insignificância ou bagatela decorre de
uma conjunção de elementos objetivos e subjetivos. A responsabilidade discricionária, por
vezes, de decidir sobre o seu reconhecimento ou não no caso em tela é do julgador, que
precisará se ater às circunstâncias fáticas e à personalidade do agente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Estado brasileiro, por meio de sua legislação penal, tem encontrado grandes
debates acerca da punibilidade dos agentes transgressores da lei. As sanções impostas pelo
283

Poder Judiciário, muitas vezes privativas de liberdade, teriam o condão de promover a


ressocialização e reeducação do apenado para o convício em sociedade. A realidade, no
entanto, é diferente.
Diante disso, a doutrina e a jurisprudência têm construído o princípio da insignificância,
o qual é frequentemente recepcionado pelo julgador. A intenção de retirar a tipificação
material do delito, tornando-o, em tese, insuscetível de sanção, é uma ideia garantista voltada
aos indivíduos que, às vezes sem o interesse de delinquir, infringem a lei, mas sem provocar
um prejuízo relevante para a vítima.
De outra banda, a tese da bagatela, nas alegações de defesa, às vezes, extrapolam a
razoabilidade e vem sendo ilimitadamente disposta nos processos penais. Exemplo disso é a
busca de incidi-la nas situações em que o réu ostenta um rol de condutas reiteradas no crime,
ou seja, é reincidente. A indagação, pois, é resolvida pelos magistrados, que precisam analisar
as nuances concretas para verificar a possibilidade, ou não, da aplicação principiológica.
Os tribunais brasileiros, à vista disso, apresentam decisões, por vezes, divergentes. Em
suma, no entanto, com fulcro na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a constatação
de reincidência não é óbice suficiente para impedir a aplicabilidade da insignificância. Assim,
os julgadores caminham no sentido de aderir à proporcionalidade, considerando a condição
subjetiva do agente, bem como a objetividade da ação delitiva.

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a_processo.php%3Fnome_comarca%3DTribunal%2Bde%2BJusti%25E7a%26versao%3D%26v
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8&numProcesso=70067954123&comarca=Comarca%20de%20Uruguaiana&dtJulg=26/04/20
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286

REFLEXÕES ACERCA DA MANIFESTAÇÃO DA CULTURA DO ESTUPRO NA ATUALIDADE

Bruna Schmidt Bronzatto1


Joice Graciele Nielsson2

RESUMO: Esse artigo apresenta uma análise sobre a manifestação da cultura do estupro,
trazendo aspectos introdutórios sobre a relação entre a cultura e a perpetuação da prática do
estupro, bem como destacando aspectos históricos acerca da constituição e da prática dos
crimes sexuais, em específico a respeito do crime de estupro. Do mesmo modo, busca
empreender uma breve discussão sobre a cultura do estupro e especialmente os
comportamentos cotidianos que a reforçam e naturalizam, abordando o assédio sexual, a
construção da verdade nos casos deàestup o,àoàdes espeitoàaoà o àfe i i o,à o side a doà
que todos estes fatores são decorrentes da cultura patriarcal que, através de estereótipos de
gênero produz a objetificação da mulher. Para tanto, a pesquisa foi desenvolvida com base no
método hipotético dedutivo e na técnica de revisão bibliográfica.

Palavras–chave: Cultura do estupro. Comportamentos. Violência contra mulher.


Culpabilização da vítima.

1 Introdução
A prática de todas as formas de violência de gênero tem se tornado uma constante na
realidade brasileira, ademais dos vários instrumentos legais disponíveis no intuito de sua
coibição. Vários são os casos com os quais nos deparamos no dia a dia, e uma das mais
destacadas, embora a mais envolta em preconceitos seja a violência sexual, mais
especificamente o crime de estupro.
Em comum, a grande maioria dos casos apresenta uma dimensão simbólica que tende
a promover a relativização, a justificação e a consequente naturalização da violência,
mediante a inversão que passa a questionar a palavra da vítima, ou mesmo justificar, em
algum comportamento desta, a ação do agressor, tida como natural de seu gênero. Todos
estes fatores fazem parte de um processo simbólico e subjetivo de perpetuação da cultura do
estupro, que se reproduz através de atitudes de cada um que contribuem para a reprodução
de comportamentos que passam a ser vistos como naturais, em vez de serem observados
através da perspectiva cultural na qual estão inseridos.
Neste sentido, o presente artigo pretende analisar a manifestação desta cultura na
atualidade, suas principais características, formas de manifestação e impactos que provoca

1
Acadêmica do Curso de Direito da UNIJUÍ. brubronzatto@hotmail.com
2
Professora do Curso de Direito da UNIJUI, Doutora em Direito pela UNISINOS. joice.gn@gmail.com
287

em uma cultura que ainda constitui-se em machista e patriarcal, atribuindo a naturalização da


prática do estupro, e a culpabilização da vítima.

2 A cultura e os crimes sexuais

A cultura é o aspecto mais significativo no estudo de violência, principalmente no que


se refere a de gênero, pois por mais que predetermine comportamentos nas pessoas ela não
é notada, atuando de forma silenciosa.
A primeira definição de cultura que não trouxe a ideia de determinismo biológico foi
sintetizada por Edward Tylor (1832-1917), onde a partir do vocábulo Culture, determina que:

cultura ou civilização, tomada em seu mais amplo sentido etnográfico, é aquele


todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e
quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de
membro da sociedade. (apud LARAIA, 2009, p.25)

Assim, foi sendo debatida a definição de cultura e o impacto que ela gera nas
comunidades. Mais tarde, Teixeira Coelho (1997, p.103,) através do Dicionário Crítico de
Políticas Culturais, observa que o termo cultura possui várias designações:

Em sua conceituação mais ampla, cultura remete a ideia de uma forma que
caracteriza o modo de vida de uma comunidade em seus aspectos global,
totalizante. Num sentido mais estrito, como anota Raymond Williams, cultura
designa o processo de cultivo da mente nos termos da terminologia moderna e
cientificista ou do espírito para adotar um ângulo mais tradicional. Sob esse aspecto
o termo aponta para: 1. Um estado mental ou espiritual desenvolvido, como na
e p ess oà pessoa deà ultu a ;à .à Oà p o essoà ueà o duzà aà esseà estado,à deà ueà
são parte as práticas culturais genericamente consideradas; 3. Os instrumentos (ou
os media) desse processo, como cada uma das artes e outros veículos que expressam
ou conformam um estado de espírito ou comportamento coletivo.

E, finalmente, uma relação que nos permitirá analisar de uma forma ainda mais
concreta o papel que a cultura exerce sobre os sujeitos, em especial no âmbito da violência
deàg e oà àaàdeàDe sàCu heà ,àp. ,ào deàafi aà ueà a noção de cultura se revela
então o instrumento adequado para acabar com as explicações naturalizantes dos
comportamentos humanos. A natureza, no homem, é inteiramente interpretada pela ultu a .
Logo, com todas essas observações atemporais a respeito de cultura, podemos afirmar
que é um compilado de características e comportamentos que se colocam sobre o homem
288

dentro de um grupo social. Tais comportamentos, apesar de serem vistos como naturais pela
comunidade a qual a cultura pertence, estão condicionados a essa cultura, e por ela foram
construídos.
Este aspecto cultural, no que tange ao tema deste estudo, se alia à prática de crimes
sexuais. O histórico dos crimes que hoje são designados crimes sexuais já foi muito
controverso. O Código Penal da República de 1890 trazia essas tipificações no título Dos crimes
contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor. Isso,
ju ta e teà o àaàtipifi aç oàdeà deflo a e to à ueàt ata aàespe ifi a e teàso eàaàpe daà
da virgindade e somente era considerado crime com um exame moral do comportamento da
vítima, reproduziu a impunidade nos crimes sexuais, na maioria das vezes culpabilizando a
vítima.
No Código Penal atual que entrou em vigor em 1940, tais crimes estavam presentes
nos crimes contra os costumes, aspecto que somente em 1980 foi problematizado pelo
movimento feminista. A reivindicação era para que fossem incluídos no capítulo Dos crimes
contra a pessoa, o que não foi exatamente a alteração feita. Somente mais tarde, em 2009,
com a Lei 12.015/09, tivemos o título alterado para crimes contra a dignidade sexual. Dessa
maneira, tivemos um grande avanço dos direitos individuais das mulheres.
De todas essas tipificações, o objeto desse estudo é o crime de estupro. Previsto hoje
no Código Penal Brasileiro e àseuàa tigoà àte àoàsegui teàtipoàpe al:à constranger alguém,
mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com
eleàseàp ati ueàout oàatoàli idi oso .àNesseàse tido,àaà o dutaà i i osaà àa pla,àa o da doà
qualquer ato que seja libidinoso.
Todavia, o pensamento de permeia a sociedade, inclusive as instituições protetivas, é
de que o estupro deve ser necessariamente um ato violento. E, ainda, que somente marcas
físicas de violência são meio de prova do não consentimento. Nesse sentido, confirma Daniella
Georges Coulouris (2004, p.6), onde não há grave violência não há estupro: ou a mulher é
vítima e seu comportamento ou as marcas de agressão comprovam sua passividade, ou a
mulher é cúmplice de sua própria denúncia
289

3 Cultura do estupro e os comportamentos culturais

A expressão cultura do estupro foi utilizada pela primeira vez por feministas norte-
americanas na década de 70 e sugere que a sociedade cultiva crenças e convenções que
naturalizam a violência sexual contra as mulheres (FERREIRA JÚNIOR, 2015). A ideia da palavra
cultura é justamente demonstrar que esses comportamentos não devem ser vistos como
naturais.
Ao analisarmos os casos de estupro podemos notar padrões de comportamento que
são comuns à grande maioria deles. Conforme dados levantados na Nota Técnica nº11 do IPEA
(2014), mais da metade dos casos de estupro praticados contra crianças e adolescentes foram
cometidos por pessoas conhecidas, como pais, padrastos, tios, namorados e amigos. Ainda,
nos crimes que vitimam adultos, os conhecidos são autores em 40% dos casos.
Além disso, a mesma pesquisa evidencia que a vítima, em 88% dos casos é mulher,
enquanto a figura do agressor é o homem em 90% das vezes. Não é coincidência que mulheres
são basicamente as vítimas à medida que os homens são os agressores. Isso significa que o
papel da cultura em naturalizar comportamentos e papéis de gênero, o qual ratifica a
hierarquia que coloca o homem em posição de superioridade sobre a mulher, contribui de
forma muito significativa para a violência de gênero.
Neste sentido, pode-se elencar muitos comportamentos sociais que evidenciam,
naturalizam, permitem e até mesmo promovem a permissividade de invasão à liberdade
sexual das mulheres.

3.1 Assédio sexual

O assédio sexual é uma prática muito presente na sociedade atual e é amplamente


discutido no espectro do direito quando está relacionado ao trabalho e assim é definido por
Marie-Grance Hirigoyen (2010, p.65) como:

[...] toda e qualquer conduta abusiva manifestando-se sobretudo por


comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer dano à
personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr
em perigo seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho.
290

Apesar de ser amplamente discutido o assédio sexual no trabalho, ele está presente
em todos os lugares, principalmente nas ruas. Caracteriza-se por ser toda a manifestação de
que atente contra a liberdade sexual da mulher. Assim, partindo do pressuposto que a mulher
tem a liberdade de escolher com quem e quando quer ter relações sexuais, qualquer
p o i idadeà a ide tal à oàt a spo teàpú li oàeà ual ue àasso ioà aà uaàs oà o side adosà
assédio sexual.
Dessa forma, quanto a esse comportamento, é imprescindível a reflexão de que essas
situações ocorrem de maneira tão incessante que acabam por tornarem-se invisíveis, levando
aà ualidadeà ueà o ais .àCo stitui do-se, assim, parte da própria cultura, o que dá origem
a cultura do estupro.

3.2 Construção da verdade nos casos de estupro

Outro dado relevante que a Nota Técnica nº11 do Inep aborda é a estimativa de que
apenas 10% do número de casos de estupro que são denunciados pelas vítimas. Esse baixo
índice pode ser atribuído a vários fatores, como a exposição que a vítima sofre ao denunciar,
a violência moral e psicológica que ela sofre por parte do agressor, através de ameaças e até
mesmo por não receber apoio da própria família para denunciar, considerando que muitas
vezes o agressor é um familiar.
O que gera repúdio em relação a isso, é que nesses raros casos em que a mulher faz a
denúncia, ela enfrenta o descrédito da própria justiça, que é ainda mais relutante em acreditar
aà ulhe à ua doà oà ag esso à oà pe te eà aoà este e tipoà doà estup ado .à Te de-se a
acreditar que quem pratica violência sexual contra uma mulher é um se à a o al ,àisoladoà
da sociedade, com problemas psicológicos e usuários de drogas ou alcóolatra.
Nesse sentido, afirma Daniella Georges Coulouris (2004, p.4-5):

[...] percebemos que a justiça é mais resistente em acreditar na mulher quando o


suspeito oàseàe uad aà oà este e tipoàdoàestup ado .àй t eta to,àasàde ú iasà
contra homens com este perfil são minoria. A maioria dos casos encontrados refere
- se a denúncias contra patrões, padrastos, primos, parentes, ex-maridos, etc.,
denúncias contra pessoas que comumente são descritas pelas testemunhas como:
idad osàdeà e ,àpaisàdeàfa ília,à o sà hefesàouàe ele tesàt a alhado es.
291

Em seguida, a autora conclui que considerando o grande volume de arquivamentos e


absolvições referentes às denúncias, a palavra da vítima parece não ser suficiente frente à
o de aç oà deà ho e à t a alhado à ouà deà u à jo e à o à u à futu oà pelaà f e te à
(Coulouris, 2014, p.106). É necessário observar que, ainda que a justiça deva zelar pela não
condenação de um inocente, é igualmente importante que a vítima não seja injustiçada.
Ainda, trata-se de um crime praticado geralmente sem testemunhas e sem provas
materiais, um processo de estupro se desenvolve em torno do confronto entre a palavra da
vítima e a palavra do acusado, conforme Daniella Georges Coulouris (2010, p.20). Dessa
maneira, frente a essas barreiras, no que tange à comprovação da existência do crime:

a palavra da vítima é considerada pela jurisprudência do assunto como um dos


elementos mais importantes do processo, sendo inclusive, considerada suficiente
para sustentar condenação do réu na falta de provas mais consistentes. Mas o que
fica explícito durante a análise dos processos é a dificuldade de obter a condenação
do acusado devido à falta de provas materiais que certifiquem os depoimentos das
vítimas, muitas vezes descritas durante os processos como não – confiáveis por seu
comportamento social, por possuir alguma passagem por instituição psiquiátrica,
po à se e à ai daà uitoà o asà eà sujeitasà à fa tasias à eà por outros motivos
mencionados para justificar o arquivamento do processo ou a absolvição do acusado
(Coulouris, 2004, p.104-105).

Segundo Esteves (1989), em todos os discurso jurídicos do final do século XIX e início do
Século XX, o padrão de honestidade estava associado ao comportamento e à conduta social
(apud Coulouris, 2004, p.120). Nesse processo, uma conduta exemplar, suficiente para
inocentar um homem dizia respeito à sua relação com o trabalho, onde bastava-se comprovar
esta àt a alha do,à se àt a alhado .àй ua toàisso,àaà o dutaàdaà ulhe àesta aà ela io adaà
à sua vida sexual, onde qualquer comportamento que não se enquadrasse na moralidade da
época, automaticamente a culpava pelo fato (COULOURIS, 2004).
Hoje, ainda é possível identificar vestígios desse modelo, principalmente quando a
vítima é desacreditada pela própria sociedade, que muitas vezes encontra maneiras de culpá-
la pelo crime, seja pelas roupas que usava, pelo local que estava ou pelo fato de ter ingerido
bebida alcóolica. Dessa forma, Lívya Ramos Sales Mendes de Barros e Alline Pedra Jorge-Birol
(2007, p.24) afirmam:

Quando não há nem a justificativa nem a suposta provocação da vítima, busca-se


ainda imputar a mesma características negativas, no intuito desmerece-la, e torna-
la de alguma forma merecedora da violência que lhe abateu. É como se a sociedade
tentasse aliviar sua própria culpa, e responsabilizasse a vítima individualmente. [...]
Seja no comportamento da vítima ou na suposta patologia do agressor, a
292

necessidade de atribuição de responsabilidade ao outro, torna a questão da


violência sexual banalizada, vulgar, desmerecedora de atenção.

Quanto ao Judiciário, ainda temos julgamentos dos crimes de estupro pautados não
pelos fatos e pela lei, mas sim pela posição ocupada pelas partes envolvidas na sociedade e
no julgamento moral que o modelo patriarcal estabelece. Por isso, a composição desigual da
verdade num crime, que por si só já é extremamente cruel e traumático para a vítima,
contribui para a perpetuação da cultura do estupro.

. àOà o se ti e toàeàoàdes espeitoàaoà o

O crime de estupro é previsto no artigo 213 do Código Penal (BRASIL, 1940) e consiste
e à o st a ge à ulhe à à o ju ç oà a alàso à iol iaàouàg a eàa eaça .àй plí itoàta à
é o bem jurídico protegido pelo Código Penal: a liberdade sexual. Logo, o consentimento
torna-se indispensável à proteção desse direito.
Out oà o po ta e toà ueàest à uitoàp ese teà oàu i e soàfe i i oà àte àoà o à
dito ser totalmente desconsiderado. Existe o entendimento de que quando uma mulher nega
as investidas de um homem ela está apenas fazendo um jogo de sedução, onde ela, na
verdade, quer, mas diz que não para que o homem insista. Entretanto, sabemos que o crime
se consuma no momento em que a vítima expressa o não consentimento, inclusive,
entendimentos mais atuais consideram que basta não haver consentimento expresso para
ocorrer o crime.
Nesse sentido, entende-se que mesmo em um cenário onde a mulher na iminência do
ato sexual consentido, desista ou manifeste negativa, mesmo tendo consentido até certo
ponto, não se pode falar em ato sexual cometido, e sim em estupro. Ainda, tratando-se de
situação onde a mulher não consiga expressar o consentimento, como, por exemplo, estando
desacordada ou sob efeito de alguma substância entorpecente, também caracteriza-se crime.
Então, o consentimento é fundamental para a ocorrência de qualquer relação sexual.
Quando a mulher não consegue manifestar seu consentimento, ou ainda, mesmo o
desinteresse e tendo sua vontade desconsiderada por parte dessa interpretação de que ela
desejaà se à o e ida ,àelaàte àsuaàli e dadeàse ualàlesada.àйsseà o po ta e toàp ati adoà
pelos homens reforça a existência de cultura do estupro, visto que desrespeita a escolha da
mulher e fere sua dignidade.
293

3.4 Objetificação da mulher

Para uma melhor compreensão do que, precisamos inicialmente discutir a definição


formação de estereótipos que embasam nossa sociedade. Conforme Jablonksi (2010):

estereótipos remetem à generalização. Trata-se de crenças amplamente


compartilhadas sobre uma pessoa ou um grupo de pessoas, que se referem não uma
visão sobre elas em particular, mas ao que é julgado mais similar ou repetido no
grupo ao qual elas pertencem. Sendo assim, os estereótipos podem induzir a uma
concepção enganosa a respeito de quem é o alvo da percepção (apud LOURENÇO,
ARTEMENKO e BRAGAGLIA, 2014)

Vinculado a esse conceito está a objetificação. Para Caroline Heldman (2012) a


e p ess oà o jetifi aç oà se ual à o sisteà e à a alisa à algu à oà í elà deà u à o jeto,à se à
considerar seus atributos emocionais e psicológicos, que serve para proporcionar prazer a
outro. Em propagandas, pode-se observar esse fenômeno quando da existência, por exemplo,
de apenas partes do corpo feminino sexualizadas (HELDMAN, 2012).
Assim, a objetificação da mulher ocorre quando ela é vista somente a nível de objeto,
desconsiderando-se seu emocional ou psicológico, ou seja, sua humanidade, e ainda reduzida
à função de apenas despertar o desejo sexual do homem. Segundo Araújo (2000, p.144):

[...] apesar de algumas concepções apresentarem contornos mais expansivos em


relação à compreensão do corpo, ainda permanece em nosso imaginário, marcas
acentuadas dos modelos emblemáticos difusores de valores, crenças e posturas que
abordam o corpo como mero objeto, extensão, máquina, instrumento, também,
como reduto pecaminoso, coisa domesticável e controlável.

Esse fenômeno ocorre principalmente nos meios midiáticos, onde se apela para o
corpo feminino, na maioria das vezes quase desnudo e em posições degradantes a fim de
chamar a atenção masculina para o produto. De acordo com Bourdieu (1999),

para se compreender a dominação masculina é importante analisar as estruturas


inscritas na objetividade e na subjetividade dos corpos, pois quando uma mulher
expõe seu corpo nas propagandas ele está repleto de significados e valores que
precisam ser analisados com referência a quem eles estão de fato favorecendo com
a sua exposição.

E, ao considerarmos o impacto que a mídia, em suas diversas formas, exerce sobre as


construções sociais, é incontestável que a publicidade reforça o machismo, contribuindo para
a perpetuação do imaginário da mulher como a cultura do estupro.
294

Todo esse processo que está perpetrado na sociedade atual faz com que o homem veja
a mulher como um objeto. Isso acaba refletindo no pensamento de que a mulher pode
pertencer ao homem, o que gera um grande índice de violência doméstica, visto que se a
mulher é um objeto, não possui opinião ou vontade, e como pertence ao homem cabe a ele
fazer com ela o que ele bem entender.

Conclusão

Como conclusão deste estudo, pode-se observar que a cultura na qual estamos
inseridos reforça papéis e naturaliza comportamentos desrespeitosos promovendo a
desigualdade e a violência de gênero. Esta cultura, portanto, faz parte de uma construção
cultural machista e patriarcal que vem se desenvolvendo há muitos séculos, e se perpetua até
a atualidade.
Estamos sempre presenciando os comportamentos discorridos nesse trabalho e o fato
de não prestarmos nem atenção a esse tipo de atitude é o que permite a reprodução da
violência, assim, negamos a liberdade sexual da mulher e ainda permitimos que ela seja
considerada culpada por isso. Esse fenômeno configura-se na naturalização da cultura do
estupro, que faz com que todos nós convivamos com ela, e normalizamos a sua existência.
Portanto, por mais controversa e questionável que possa ser a afirmação da existência
da cultura do estupro na atualidade, é importante observar que a sua formação advém
justamente através da naturalização dessas condutas. À medida que todo esse contexto for
problematizado, assim como vem fazendo o movimento feminista, poderemos acreditar em
uma futura igualdade de gênero e uma considerável redução nos índices de violência.

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Intercom. 2014. p. 1-15.
297

CRIMINALIZAÇÃO DA LOUCURA: ENTRE MUROS E GRILHÕES

Carhla de Oliveira Alves1


Bruna Garzella Michael2

Laàse si ilidadàdeàlosài te osàdeàu à a i o ioàesà egada,à


no como cura sino para ga a tiza àelà o t ol àLuisàál e toàWa at

RESUMO: Cada período histórico produziu e legitimou mecanismos de marginalização,


exclusão e segregação de determinadas categorias sociais. O louco é considerado alguém
perigoso e menos humano, o qual carrega uma marca histórica da união das duas maiores
categorias de exclusão social, quais sejam, crime e loucura. Dessa junção resultou, como
resposta normativa, a medida de segurança, segregação da convivência social que se dá atrás
dos muros do manicômio judiciário, tendo em vista que os recursos substitutivos são raras
vezes acionados. Dessa forma, questiona-se: Até quando a loucura será tratada como uma
anomalia e a segregação como uma necessidade? O objeto de análise da presente pesquisa é
demonstrar a ressignificação da loucura e os objetivos e impactos da Reforma Psiquiátrica -
Lei 10.216/01 - na busca pela garantia da dignidade humana e, consequentemente,
concretização da cidadania dos pacientes mentais.

Palavras-chave: Direitos Humanos; Medida de Segurança; Loucura; Reforma Psiquiátrica;


Cidadania.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A história da loucura, de Michel Foucault, é a base para entender o processo de


transformação da loucura em doença mental e, consequentemente, seu encarceramento na
Idade Clássica. Foucault apresenta a loucura desde o renascimento até sua concretização na
sociedade, bem como a transformação de como o ser humano passou a lidar com a loucura
com o passar dos séculos, e também o modo que a loucura foi encarada pela razão.
Os loucos habitavam normalmente o mesmo espaço social que as pessoas
o side adasà o ais à oài í ioàdoàs uloàXVIII.àNoàp i ípioà oàe istiaàaà e essidadeàdeà

1
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Direito Mestrado e Doutorado, pela Universidade Regional
Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI) Campus Santo Ângelo - RS. Bolsista CAPES no programa acima
referido. Pós-graduada em Direito Eleitoral pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Advogada voluntária
no Serviço de Assessoria Jurídica Universitária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (SAJU/UFRGS),
especificamente no Grupo Anti-Manicomial de Atenção Integral (GAMAI). E-mail: carhlaalves@hotmail.com
2
Graduada em Psicologia pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
(UNIJUI) Campus Santa Rosa/RS. Psicóloga. E-mail: brunagmichael@hotmail.com
298

segregação da loucura, pois esta era considerada como uma particularidade do ser humano,
era constituída como um erro, falha da razão, ou ilusão (FOUCAULT, 2008). Ocorre que,
segundo Foucault, na Idade Clássica os insanos passaram a ocupar o lugar de exclusão que
antes, durante a Idade Média, era ocupada pelos leprosos. Quando a ameaça que a lepra
causava foi afastada, os espaços físicos, leprosários, bem como os espaços sociais e
ideológicos, vieram a ser preenchidos pelos loucos. Mudou-se o enfoque de exclusão.
O conceito de loucura era restrito, definia-se a partir do aspecto físico e
comportamental da pessoa, não existindo, ainda, avaliação médica para constatar ou não o
diagnóstico. Não existia o estigma de doente mental, a loucura era entendida como uma
expressão das forças da natureza. O louco era considerado uma pessoa possuída por espíritos
demoníacos, ou por manifestações paranormais, os quais precisavam ser tratados pela Igreja,
a partir de rituais e rezas. Em alguns momentos, foram marcados pela exclusão e, em outros,
por piedade.
Entretanto, é a partir do início da Renascença que a loucura deixa de ser considerada
uma particularidade do ser humano, e de ter relação com a natureza ou forças divinas. A partir
desse momento a loucura é vinculada a não razão e, consequentemente, o louco passa a ser
um infringente da moral. Ou seja, a loucura ganha um caráter moral, e os loucos não podiam
mais ocupar os espaços sociais como antes. Observa-se, desse modo, que por meio de
edidasà ep essi asà ueàesseà p o le aàso ial à eioàaàse à esol ido.àásài stituiç esà eligiosasà
não tinham função curativa, mas puniam a ociosidade, pois o louco era visto como um
des ia teàdaà az o,àeà oà o oàu àdoe te,à o e toà ueàнou aultà o eiaà o oà G a deà
I te aç o .
Portanto, a justificativa da presente pesquisa encontra-se em desvendar os contrastes
entre a lei e a prática. Até quando a loucura será tratada como uma anomalia e a segregação
como uma necessidade? O objeto de análise da presente pesquisa é demonstrar a
ressignificação da loucura e os objetivos e impactos da Reforma Psiquiátrica - Lei 10.216/01 -
na busca pela garantia da dignidade humana e, consequentemente, concretização da
cidadania dos pacientes mentais.
Para o objetivo deste estudo se requer ainda, como método de abordagem o
hipotético-dedutivo. O método de procedimento utilizado nesse artigo consistirá em uma
abordagem bibliográfica em fontes variadas, a partir de livros, revistas, artigos, e análises
299

comparativas, a pesquisa compreenderá também compilação de dados e informações e


análise dos mesmos.

2 DESENVOLVIMENTO

A noção de doença mental foi construída de forma nociva, de modo que o único modo
de proteger a sociedade e impedir a desintegração das instituições é a partir da psiquiatria. O
louco é estigmatizado como alguém violento, e ao estar à margem da sociedade, acaba por
seàto a àu ài dig oàdeàte àu aà idaàe à o u à o àosàditosà o ais à “)á“),à .àOà
mundo da loucura acaba por se tornar o mundo da exclusão.
Somente a partir da Revolução Francesa, com ideias de liberdade, igualdade e
fraternidade, bem como a declaração dos Direitos Humanos, que as internações arbitrárias
passaram a serem denunciadas. Nenhum cidadão mais seria encarcerado, a não ser o louco,
tendo em vista serem pessoas perigosas, que não poderiam conviver em sociedade. Nas
palavras de Foucault:

(...) restituídos à liberdade, podem tornar-se perigosos para sua família e o grupo no
qual se encontram. Daí a necessidade de contê-los (...) as antigas casas de
internamento, sob a Revolução e o Império, foram paulatinamente reservadas aos
loucos, mas desta vez aos loucos apenas. Os que a filantropia da época liberou são
então todos os outros, exceto os loucos; estes encontrar-se-ão no estado de serem
os herdeiros naturais do internamento e como os titulares privilegiados das velhas
medidas de exclusão (FOUCAULT, 1994, p. 81).

É nesse momento que a loucura passa a ser considerada uma doença, e é quando
acontece o nascimento do manicômio, após a publicação da obra de Philippe Pinel (1745-
1826), conhecido como pai da psiquiatria. Pinel rompe com a tradição demoníaca da loucura
e passa a considerá-la como doença mental, pois acreditava que o louco precisava de
cuidados, remédios e, principalmente, apoio das outras pessoas. Várias experiências e
tratamentos são desenvolvidos e difundidos pela Europa. É nesse momento que surge a
primeira revolução psiquiátrica, fazendo com que o século XIX fosse considerado o século dos
manicômios, tendo em vista a quantidade de hospitais psiquiátricos que, em decorrência da
loucura, foram construídos.
O tratamento nos manicômios, defendido por Pinel, baseia-se principalmente na
reeducação dos alienados, no respeito às normas e no desencorajamento das condutas
300

inconvenientes. Para Pinel, a função disciplinadora do médico e do manicômio deveria ser


exercida com firmeza, porém com gentileza. Permanecem as ideias corretivas do
comportamento e dos hábitos dos doentes, porém como recursos de imposição da ordem e
da disciplina institucional. No século XIX, o tratamento ao doente mental incluía medidas
físicas como duchas, banhos frios, chicotadas, máquinas giratórias e sangrias.
Os conceitos, antes religiosos, são substituídos por saberes científicos, pois a loucura
passa a ser uma enfermidade, e seu diagnóstico resultava em um tratamento adequado, em
um lugar adequado. Segundo Birman (1978), é por meio do discurso de enfermidade que se
autoriza a segregação e exclusão social do louco, com o objetivo de curá-lo e reinseri-lo na
sociedade. Ou seja, o manicômio, ao invés de ser um lugar de enclausuramento, passou a ser
instrumento de cura.
Esse novo tratamento não rompe com as práticas antigas de internamento, mas
est eita -seàe àto oàdoàlou o à нOUCáUэT,à ,àP.à .àOs loucos ganharam o direito do
cuidado, mas, em contrapartida, perderam sua cidadania, sendo excluídos do espaço social.
A loucura passa a ser objeto construído de conhecimento, e a existência do louco não é
excluída, como uma peste, mas confirmada e dominada.
Conforme Goffman (1961), o manicômio era considerado uma instituição fechada,
caracterizada como uma instituição total, que tem por único e exclusivo objetivo a exclusão
social. Nesse sentido:

A instituição psiquiátrica, de inspiração manicomial, e toda lógica asilar que lhe


fundamenta, configura-se como um lugar de segregação, expurgo social, onde são
confinados, na maioria das vezes sem o direito de escolher, aqueles que, desviantes
do padrão de razão ocidental, não correspondem às expectativas mercantilistas da
sociedade. A institucionalização da loucura, que tem no Manicômio o seu maior
expoente, através de uma cultura asilar, cujo tratamento moral, com seus ideais de
pu iç o,à egulaç oàeàso ia ilidade,àp o o eàoàsu gi e toàdeà e dadei asà f i asà
deà lou os ,à ep oduto asà deà u aà o epção preconceituosa e totalitária, que
discrimina, isola, vigia e tem, na doença, o seu único e absoluto objeto. Os hospitais
psiquiátricos são comparados a grandes campos de concentração, devido à miséria
e maus tratos a que são submetidos os internos. Se é possível afirmar que com Pinel
o louco é libertado das correntes e dos porões, pode-se também dizer que este não
é libertado do hospício. Esta é a liberdade intra-muros, ou seja, o alienado é privado
da liberdade para ser tratado, devendo ser dobrado, tutelado, submetido e
administrado (ALVES, 2009, p. 88)

Com a junção dos campos jurídico e penal, dá-se a criação de outra instituição, os
chamados manicômios judiciários, tendo em vista os loucos infratores. Birman (1978) afirma
301

que a separação entre loucos delinquentes e loucos dóceis justificava-se por razões de ordem
pú li a,àassi à o oàdeàsegu a ça.àй,àpa aàCa a a,à aàideiaà e t alà àdeà ueàlou osàpe igosos,à
ouà ueàesti esse àe ol idosà o àaàjustiça,àde e ia àse àsepa adosàdosàalie adosà o u s à
(1998, p. 148).
Da união dos saberes da psiquiatria e do Direito Penal, nasceu o rótulo da
periculosidade, utilizado até os dias de hoje, como forma de classificação e qualificação dos
indivíduos que possam ameaçar a segurança (FOUCAULT, 1994). Os termos periculosidade e
perigoso são comuns nos discursos para qualificar pessoas que cometeram crimes e estão
atrelados a noção de risco. Desse modo, a periculosidade acaba tornando-se a principal
característica do louco, inaugurando a diferença entre imputabilidade e inimputabilidade,
tendo em vista a necessidade de separação do ambiente social, em busca de defesa, que
acaba resultando no surgimento das denominadas medidas de segurança (FOUCAULT, 1994).
As demandas jurídicas resultantes de delitos praticados pelos loucos acabam
aproximando os saberes da psiquiatria à criminologia, momento em que nasce uma nova
etapa, onde além de descobrir o autor e classificar o delito, é necessário desvendar qual é o
nível de realidade do crime cometido, ou seja, há que se conhecer a origem do crime, mas
além disso, como punir? (FOUCAULT, 2008).
A psiquiatria acaba assumindo uma função sanitária, tendo por alvo a higiene do
espaço público. A loucura estava atrelada à miséria e as consequentes epidemias resultantes
da urbanização. A punição estava relacionada com a natureza e identidade do infrator, e não
com o crime praticado. Conforme relatado por Foucault, o que se tentava investigar era
ue à à o ? ,àte doàe à istaà ueàoà i eàe aà o etidoàse à az o,à us a a-se, portanto,
uma explicação sobre quem era o criminoso. Punia-se por conta do que tornava a pessoa
criminosa, ou seja, pela loucura, já que a conduta era reflexo do que ela era: louca. E é a partir
desseà o e toà ueàsu geàaà lassifi aç oàdeà i di íduoàpe igoso ,à ueà e àaàse o principal
objeto da ação punitiva desde o século XIX (FOUCAULT, 2010).
Os criminólogos positivistas, Enrique Ferri (1856-1929), Cesare Lombroso (1835-1909)
e Raffaele Garofalo (1851-1934), defendiam a patologia psicológica nata do criminoso.
Lombroso, na busca do entendimento da criminalidade, apoiou-se em aspectos biológicos e
sociais. Estabeleceu padrões comportamentais, psicológicos e físicos, tais como assimetrias
cranianas, tamanho dos ossos, tatuagens, cabelos escuros, entre outros. Sua teoria defendia
302

aàe ist iaàdeàu à i i osoà ato ,àalgu sài di íduosàe a à iologi a e teàp epa adosàpa aà
delinquir, e através dessas características seria passível de reconhecimento, e passível de
segregação e cura (MATTOS, 2006). Garofalo, por sua vez, nomeou seus estudos a categoria
de delito natural, classificava os criminosos através de elementos físicos e comportamentais.
Já Ferri acreditava que o delito era consequência de uma combinação de fatores, e não
exclusivo de uma patologia individual.
A partir de debates dos profissionais da saúde, criou-se o Manicômio Judiciário no Rio
de Janeiro, inaugurado em 1921. Os loucos criminosos não poderiam mais se alojar em
hospícios, precisando, portanto, de uma prisão de caráter especial, que atendesse suas
necessidades, também especiais. E assim iniciou-se a criação de outros manicômios, além de
outras propostas de asilamento como, por exemplo, as colônias agrícolas de tratamento. Foi
então que a Liga Brasileira de Higiene Mental, juntamente com o movimento dos
trabalhadores da saúde, e logo em seguida o Movimento Reformista, que propunha a
antipsiquiatria, inspirado nos modelos da Itália, que os loucos passaram a serem vistos como
portadores de transtornos mentais.
Após a criação dos manicômios judiciários, e com o advento do Código Penal de 1940,
nasce a medida de segurança, destinada a loucos infratores, com o intuito de prevenção e
tratamento dos indivíduos que apresentavam um alto grau de periculosidade. Para
determinar o cumprimento da medida de segurança, é necessário, além do requisito de
periculosidade, a prática de um delito penal, sendo que seu cumprimento será em hospitais
de custódia, não mais denominados manicômios judiciários, mas na realidade altera-se
somente a nomenclatura. Nas palavras de Carvalho:

Lembra Bitencourt que a mudança na nomenclatura ocorrida na Reforma de 1984 –


substituição do termo manicômio judiciário por hospital de custódia e tratamento
psiquiátrico – em nada alterou a realidade do sistema de sanção aos inimputáveis,
pois as características manicomiais seguem presentes no sistema atual (CARVALHO,
2013, p. 507).

A segunda espécie de medida de segurança denomina-se tratamento ambulatorial,


ueà aià depe de à daà pe i ulosidadeà daà pessoaà eà doà asoà o etoà doà i e,à aà p i ipalà
característica do tratamento ambulatorial é a imposição do acompanhamento médico-
psi ui t i oà se à aà o igato iedadeà deà ueà oà pa ie teà pe a eçaà e lusoà aà i stituiç o à
(CARVALHO, 2013, p. 507).
303

“egu doàaàdefi iç oàdoàdi io io,àaàpala aà pe i ulosidade àdizà espeitoàao estado


ou qualidade do que ou de quem é perigoso, nos termos penais, significa o conjunto de fatores
que revelam qual a probabilidade de alguém praticar um crime (FERREIRA, 2014). Portanto,
t aduzi doà u aà ideiaà deà is o,à o fo eà нe a ià esta ele e,à u à isco representado por
circunstâncias que prenunciam um mal para alguém, ou para alguma coisa, resultando
a eaça,à edoàouàte o à àso iedade à ,àp.à .à
Tem-se a ideia de risco e, consequentemente, imputa-se um efeito de sanção a uma
medida que tem intuito terapêutico. Entretanto, ser portador de um transtorno mental não
constitui nenhum crime, até mesmo porque nem todos portadores dessa patologia precisam
ser submetidos no sistema penal (LEBRE, 2013, p. 276). O crime não é um privilégio dos
a o ais , nas palavras de Foucault, e nem sempre o crime do doente mental tem alguma
relação com sua patologia. Não há, portanto, de se falar em predisposição para o desvio.
O fato praticado pelo doente mental é de pouca relevância jurídica para o Direito
Penal, pois é sobre o autor, indivíduo socialmente perigoso, que a autuação recai. E é isso que
a história demonstra, pois, cada período histórico produziu e legitimou mecanismos de
marginalização, exclusão e segregação de determinadas categorias sociais: leprosos,
e digos,à u as,àp ostitutas,àto i a os,ài ig a tes,àeàdoe tesà e tais.à áàp ti aà ealàdoà
poder sempre imputou a certo grupo de indivíduos a carapuça da periculosidade, conferindo-
lhesàse p eàu àt ata e toà igo osoàeàpu iti o,àtípi oàdeàu ài i igo à LEBRE, 2013, p. 277).
Verifica-se, no final das contas, que o argumento da periculosidade recai como forma de
controle social do indesejado, como uma medida de defesa social que restringe a liberdade
dosà est a hos ,à asàpala asàdeà“a tosàeàэu as:

Desde a Revolução Francesa fala-se da igualdade de todos os cidadãos; da submissão


igualitária de todos frente à lei. A partir disso, numa instituição imaginária da
sociedade, todos passam a ter o direito a que a lei não lhes seja aplicada
arbitrariamente, mas nada se diz da igualdade de participação efetiva na formação
das leis, nem tampouco do direito de todos a que sejam respeitadas suas diferenças.
O resultado dessa fantasia igualitária moderna é que o tratamento dos indivíduos
com uma total ignorância da diferença de seus desejos significa, utilizando Warat,
ig o -los e submetê-los a certos desejos institucionalmente triunfantes.
Psicanaliticamente falando: ignorar que os outros são diferentes é aniquilá-los como
se esà o àe ist iaàaut o a à ,àp.à .

Na legislação brasileira, encontram-se as sanções penais divididas em duas espécies:


as penas e as medidas de segurança. Segundo Salo de Carvalho:
304

Neste cenário, o direito penal brasileiro trabalha com distintas respostas jurídicas
aos autores de condutas consideradas ilícitas: primeira, aplicação de pena ao
imputável; segunda, aplicação de pena reduzida ou de medida de segurança ao
semi-imputável; terceira, aplicação de medida de segurança ao inimputável
psíquico; quarta, aplicação da medida socioeducativa ao inimputável etário
(adolescente em conflito com a lei) (2013, p. 500).

Conforme determina o Código Penal vigente, no artigo 97, quando a infração cometida
for apenada com reclusão, a internação ocorrerá de forma compulsória, e se a pena for de
detenção, poderá o juiz determinar tratamento ambulatorial. Quando se comete um crime e
a pessoa acusada alega não ter responsabilidade do ato delituoso cometido, por ser portador
de algum transtorno mental, será considerada inimputável, e irá ser submetida a medida de
segurança, conforme prevê o artigo 26 do Código Penal. Para melhor entendimento, ressalta-
se a importância dos termos imputabilidade e inimputabilidade.
O termo imputar significa atribuir culpa a outro, portando, é imputável alguém que
compreende seus atos, que tem um senso de responsabilidade. Já os inimputáveis
subdividem-se em duas categorias, quais sejam, inimputáveis e semi-imputáveis. Os semi-
imputáveis, formados por pessoas que não são inteiramente capazes de entenderem seus
atos, são indivíduos incapazes, isentos de pena, mas não de culpa, tendo sua pena reduzida
ouà su stituídaà po à edidaà deà segu a ça,à aà se i-imputabilidade é uma categoria
i te edi iaà e t eà aà apa idadeà eà aà i apa idadeà ple as à Cá‘VáэрO,à ,à p. .à Osà
inimputáveis são formados por pessoas que não possuem nenhuma capacidade de
compreender seus atos, e consequentemente, a natureza do ato delituoso, sendo
considerados totalmente incapazes. São inimputáveis aqueles que comprometem sua
capacidade de imputação, parcial ou total em função de:

...art. 26: 1. Causas. Doença Mental ou desenvolvimento mental incompleto ou


retardado. Cumpre observar que o nosso Diploma Penal não incida quais seriam
essasà doe çasà e tais ,à a e doà à psi uiat iaà defi i-las [...] 2. Consequências.
Incapacidade completa de entender a ilicitude do fato ou de determinar-se de
acordo com essa compreensão. 3. Tempo. Os dois requisitos anteriores devem
coexistir ao tempo da conduta. Assim, não basta a presença de um só requisito
isolado. Necessário se faz que, em razão de uma das duas causas (requisito 1),
houvesse uma das duas consequências (requisito 2), à época do comportamento do
age teà e uisitoà à DйэMáNTO,à àp.à .

Portanto, constatando-se a inimputabilidade do indivíduo, instaura-se a medida de


segurança, com o objetivo de cessar a periculosidade do infrator, para que, quando seu
305

potencial de perigo não for mais passível, o indivíduo consiga retornar ao convívio social.
Co fo eà p e à oà a tigoà ,à pa g afoà ºà doà C digoà Pe al,à aà i te aç o, ou
tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for
averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade. O prazo mínimo deverá
se àdeà à u àaà à t s àa os .àU aàdasà aio esàdis uss esàdaà edidaàdeàsegu ança está no
seu caráter temporal, pois a medida tem tempo mínimo e não possui um tempo máximo, o
condenado não sabe a duração de sua penalidade.
A punição ao louco é muito mais rigorosa que a punição imposta às pessoas ditas
normais, uma vez que a internação não tem prazo para acabar. É uma espécie de prisão
perpétua sujeita à condição resolutiva da cura improvável, sujeita a uma condição quase
impossível (JACOBINA, 2008). Conforme Salo de Carvalho

A indefinição do limite máximo da medida de segurança – situação que legitima, na


realidade do sistema manicomial brasileiro, a possibilidade de perpetuidade da
sanção – não inibe, porém, a determinação de um prazo mínimo. A previsão legal
deste limite para a execução da medida de segurança demonstra, em realidade, a
inserção (subliminar) de uma tarifa retributiva de sanção aos inimputáveis pelo
cometimento do ilícito, visto que mesmo ocorrendo a cessação de periculosidade
antes deste prazo, fato que tornaria sem sentido a manutenção da medida em sua
finalidade terapêutica, o paciente deve necessariamente permanecer submetido ao
controle penal (2013, p. 503)

Oàdo u e t ioà asilei oà áàCasaàdosàMo tos ,àp oduzidoàe à ,àpelaàa t op loga,à


documentarista e professora Débora Diniz, traz a visão acerca da realidade vivenciada pelos
internos de um Hospital de Custódia e Tratamento na Bahia, destinado àqueles que
cometeram algum crime e possuem alguma espécie de sofrimento psíquico. Com a narração
de um poema escrito por um dos internos, Bubu, folclórico famoso, com doze internações em
manicômios judiciários, o documentário relata a história de três custodiados e suas trajetórias
por esta instituição total. Em síntese, eles se expressam em um personagem: o louco infrator
que foi depositado e esquecido atrás dos muros do HCT, cumprindo uma medida, não
considerada pena, sem previsão de liberdade, como ressaltam em seus depoimentos.
O interno e personagem Almerindo estava há mais de 20 anos institucionalizado, e
a a ouàsof e doàoà ueàGoff a à ha aàdeà i stitu io alizaç oàdoàeu ,à esultadoàdaàa eitaç oà
do mundo hospitalar, que se dá gradativamente, e das regras do estabelecimento, tendo a
perda dos laços afetivos fora do muro. O paciente do manicômio judiciário, paga com a
306

própria vida pelo crime cometido, uma espécie de morte em vida, uma vez que a possibilidade
de sair da instituição de tratamento é mediante a sua cessação de periculosidade.
Como se percebe, esse tipo de internação compulsória acaba se tornando perpétua,
já que tem prazo mínimo, mas não tem limite máximo. Ainda nos dias atuais, os manicômios
judiciários são mantidos no Brasil, com características de uma instituição híbrida, e
misturando funções de instituições hospitalares e prisionais. Historicamente as medidas de
segurança foram aplicadas a partir de uma cultura de exclusão daquilo que a loucura
representa para a sociedade, e que acaba por buscar proteção por meio do exílio perpétuo
no manicômio judiciário (DELGADO, 1992). A loucura vem escancarar a impossibilidade da
sociedade de aceitar que não existe uma cura, um remédio que a solucione definitivamente,
ou seja, a loucura entra como um freio ao discurso social e a ilusão de que podemos saber e
curar tudo.
A realidade social manicomial necessita ser compreendida, assim como o conjunto de
relações existentes entre crime e loucura. A necessidade de transformação do modelo de
atenção à saúde mental no Brasil, a Reforma Psiquiátrica surge de uma confluência política,
onde a rápida privatização da saúde, a partir da década de 60, acaba transformando a loucura
em um comércio. Na década de 70 formou-se no Brasil o Movimento dos Tratamentos em
Saúde Mental, protagonizando o movimento da reforma nacional, questionando a função
asila à oà t ata e toà eà seuà efeitoà te ap uti o,à o à oà ja g oà po à u aà so iedadeà se à
a i ios à áMá‘áNTй,à .à
A desconstrução do manicômio e a desinstitucionalização da loucura requer a
des o tage àdeàu àapa atoà ate ial,àeàta àte i oà o eitual.àCo fo eàBi a ,àosà
saberes psiquiátricos tradicionais passam a ser questionados, ao mesmo tempo em que
emergem novas formas de se conceber a saúde, a doença e a própria ciência (1999).
O Deputado Paulo Delgado (PT-MG) apresentou, em 1997, ao Congresso Nacional, um
projeto de lei versando sobre a desospitalização e os direitos correspondentes às pessoas
portadoras de transtorno mentais, catalizador nos debates no Brasil, o qual foi inspirado pelos
movimentos sociais e pelos usuários dos hospitais psiquiátricos.
Encontra-se ressonância nas políticas de saúde do Brasil que tiveram um marco teórico
e político na 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), na 1ª Conferência Nacional de Saúde
Mental (1987), na 2ª Conferência Nacional de Saúde Mental (1992), culminando na 3ª
307

Conferência Nacional de Saúde Mental (2001). Historicamente, se pode situar as décadas de


1980 e 1990 como marcos significativos nas discussões pela reestruturação da assistência
psiquiátrica no país.
É a partir da assinatura da Declaração de Caracas e, também, pela realização da II
Conferência Nacional de Saúde Mental, que são regulamentadas as primeiras normas federais
e os serviços de atenção diário entram em vigor em todo país, fundadas a partir da experiência
do CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), e as primeiras normas para fiscalização dos
hospitais psiquiátricos.
Resultado de uma luta política nasce a Lei da Reforma Psiquiátrica, Lei 10.216/2001,
conhecida também como Lei Antimanicomial que se prolongou por quase 12 anos, e que
sofreu diversas modificações,. Muitos foram os pareceres contrários à Lei, principalmente no
que dizia respeito ao referencial teórico que reestruturava o sistema de saúde mental,
reduzindo as doenças mentais em consequências da chamada repressão político social
dominante, além do atendimento comunitário (MUSSE, 2008), ou seja, pauta-se pela
transição de um modelo assistencial centrado no hospital psiquiátrico, para um modelo de
atenção comunitária e com estratégias de redução progressiva de internação, a partir dos
hospitais de grande porte. O CAPS deve ser substitutivo e não complementar ao hospital
psiquiátrico.
O maior destaque foi a garantia de que a internação seria realizada como uma medida
excepcional, autorizada somente em último recurso. Portanto, nesses casos considerados
e t ao di ios,à aà seg egaç oà de e iaà e glo a à se içosà di os,à deà assist iaà so ial,à
psi ol gi os,à o upa io ais,à laze à ofe e e doà a pa oà aà pessoaà o à sof i ento mental
(BRASIL, 2001).
A lei da Reforma Psiquiátrica estabeleceu três tipos de internação, quais sejam, a
voluntária ou consentida; a involuntária, quando o pedido é feito por um terceiro, pois não
há consentimento do sujeito; e compulsória, que é determinada pelo Poder Judiciário.
Também proibiu a internação em instituições com características asilares, enumerando
direito e garantias a serem observados dentro e fora do ambiente hospitalar. Ocorre que a
medida de segurança, prevista no Código Penal, no Código de Processo Penal e na Lei de
Execução Penal, vai contra o que a Lei Antimanicomial e a Constituição Federal defendem,
começando pelo caráter compulsório e pelo prazo indeterminado da internação, que é
308

aplicada aos inimputáveis. A Legislação Antimanicomial prevê que a internação é uma medida
excepcional, e só será aplicada quando esgotadas as tentativas de tratamento extra-
hospitalar. Ademais, a Constituição Federal proíbe penas de caráter perpétuo.
A partir do julgamento do Habeas Corpus 84.219/SP em 2005, o Supremo Tribunal
Federal firmou entendimento que a medida de segurança não poderia ter duração superior a
30 anos, tendo em vista que, de acordo com o Código Penal, esse é o tempo limite para o
cumprimento de uma pena privativa de liberdade. E, de acordo com o artigo 5º, inciso LVII,
alínea b, que proíbe pena de caráter perpétuo no Brasil, estendendo o limite fixado como
parâmetro temporal para a medida de segurança. Além do mais, a dignidade e a cidadania
são fundamentos do Estado Democrático de Direito, elencados na Constituição Federal de
1988, que tem também como garantias fundamentais os direitos à liberdade e igualdade.
Ademais, a saúde é direito de todos e dever do Estado, conforme estipulado no texto
constitucional, e esse conjunto é o que forma a rede de proteção do louco infrator.
Aderindo aos preceitos da Reforma Psiquiátrica, os profissionais da saúde
desenvolvem propostas como, por exemplo, centros de cultura e convivência, e programas
de inclusão social por meio do trabalho, como forma de buscar acessibilidade aos usuários da
edeàpú li aàdeàsaúde.àNas e a àp og a asà o oàoà Deà oltaàpa aà asa ,ào deàpa ie tesàdeà
longa internação, institucionalizados nos hospitais, recebem auxílio para reencontrar suas
famílias ou novas residências. Oco eà ueàtalàp opostaàpossuíàalgu asàfalhasàest utu ais,à aà
desospitalização após uma medida de segurança não deve depender somente do Estado. Caso
a família não aceite o infrator em casa, rege-se uma nova medida, a medida de segurança
administrativa opera deà fo aà aà dei a à oà pa ie teà o oà o ado à daà alaà psi ui t i a à
(CAIXETA, 2012, p. 70).
Conforme Goffman (1961), reintegrar o louco infrator funciona com o intuito de
reatualizar e reaprender a interagir no social, fora dos muros, rompendo a sequência dos
papeis representados pelo louco infrator e pela sociedade, tendo em vista que as instituições
limitam as regiões de sua atuação, através de um ato continuo de totalização. Muitas são as
barreiras existentes, ainda, no campo jurídico junto a esfera da saúde mental relacionando a
Reforma Psiquiátrica.
Observa-se, no entanto, que as normas de direito e garantias previstas no sistema
jurídico não estão sendo amparadas, pois não têm sido utilizadas como proteção da
309

população de loucos infratores, pois estes continuam segregados pelo marco normativo
hegemônico, pelo estigma da doença mental e do perigo eminente, e suas existências são
esquecidas. O acesso a direitos, no campo da loucura criminosa, não é igualitário.
Os hospitais forenses, por não estarem submetidos as leis e bases do Sistema Único de
Saúde (SUS), não se caracteriza por uma instituição que visa a saúde do paciente. Sendo então,
uma instituição penal, que não tem um tempo máximo de permanência, onde o sujeito dito
louco não fica aos olhos da sociedade. Uma saída viável seria a revisão do hospital forense não
mais como uma instituição penal, mas uma instituição de saúde. Um sistema de assistência
orientado pelos princípios fundamentais do SUS, quais sejam, universalidade, equidade e
integralidade, vem sendo construído, assim como a proposta de desinstitucionalização,
ultrapassando limites das práticas e atingindo o imaginário social, assim como as formas
validas, culturalmente, de compreensão da loucura.
A punição do louco infrator é a de ser submetido à marca da periculosidade, bem
como, a enclausura da medida de segurança que visa um tratamento. Sendo assim, duas
perguntas são necessárias: por que o tratamento em hospitais forenses não acompanha o
mesmo giro que outras instituições de saúde mental deram após a reforma psiquiátrica?
Podemos pensar em tratamento onde não há interação social e manutenção de laços
afetivos?
A psiquiatria falhou com a cura da loucura - justamente porque esta cura não existe -
seus tratamentos não fizeram nada além do que apagar as nuances da humanidade que ainda
restava em seus pacientes. Para a psicanálise, não há uma cura para a loucura, sendo esta
uma forma de ser no mundo diferente da dos sujeitos ditos normas, ou seja, os neuróticos.
Mas qual seria, então, uma forma de tratamento possível?
Exige-se, portanto, imaginação, criatividade e reflexão crítica, na formação de
profissionais dotados de sensibilidade, bem como o comprometimento da sociedade, que
segundo Frichembruder e Cruz (2001):

...envolve, necessariamente, o desafio do convívio com a diferença, com os medos


mais íntimos que a loucura nos revela. Significa, da mesma forma, romper com os
muros do desconhecido que nos inquieta, fascina e apavora e que o manicômio,
enquanto construção da sociedade, ocupou nesta inscrição na cultura a função de
esconder durante todos estes anos. No entanto, para os moradores, este
rompimento tem um significado muito maior, já que esta mudança significa antes
de tudo olhá-los enquanto sujeitos, construindo esperanças, propondo o desafio de
retorno à vida nas várias implicações que ela nos traz, afinal.
310

Só isso permitirá esperança. O movimento antimanicomial é uma das formas de luta


contra a exclusão e a favor da tolerância e respeito pela diferença, contribuindo para a
descentralização da assistência, voltada para a melhoria da qualidade de vida do portador de
transtorno mental e favorecendo a inclusão social dos pacientes, favorecendo a busca por sua
cidadania, pois só assim será possível evitar, ao máximo, o estigma que o direito penal impõe
ao sujeito.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos que o discurso da enfermidade autoriza a segregação, sendo o manicômio a


proposta de um lugar de cura. Ao longo dos anos, a ideia de segregação e higiene social ganha
mais um segmento, desta vez separando os loucos criminosos dos demais loucos, ficando os
primeiros em instituições totalitárias, chamadas de manicômios judiciários.
O sujeito louco que comete uma infração, não é punido pelo crime cometido, mas pela
sua subjetividade, sua identidade. Caracterizado como perigoso, o louco tem sua punição
através da medida de segurança, sob a marca da periculosidade, com tempo mínimo e sem
tempo máximo de permanência no manicômio judiciário. Em regime intra-muros, o paciente
psiquiátrico jurídico perde seus laços afetivos, corroborando em uma institucionalização do
eu. Nesse cenário, nasce a luta antimanicomial, culminando na Lei da Reforma Psiquiátrica,
que tem por objetivo a desospitalização e a reestruturação da assistência psiquiátrica do país.
Porém, a medida de segurança, prevista no Código Penal, no Código de Processo Penal
e na Lei de Execução Penal, contraria o que a Lei Antimanicomial e a Constituição Federal
defendem, em princípio pelo caráter compulsório e pelo prazo indeterminado da internação,
que é aplicada aos inimputáveis. A Legislação Antimanicomial prevê que a internação é uma
medida excepcional, e só será aplicada quando esgotadas as tentativas de tratamento extra-
hospitalar. Ainda, a Constituição Federal proíbe penas de caráter perpétuo.
Desta forma, apontada a incoerência entre, de um lado o Código Penal, o Código de
Processo Penal e a Lei de Execução Penal, e de outro, a Lei Antimanicomial e a Constituição
Federal, bem como por não estarem submetidos as leis e bases do Sistema Único de Saúde
(SUS), entende-se que os hospitais forenses não se caracterizam por uma instituição que visa
311

a saúde do paciente, sendo necessário uma forma outra de cuidado e atenção com o louco
infrator.

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primeiros do Código Penal e o último da Lei de Execuções Penais devem fazer-se considerada
a garantia constitucional abolida das prisões perpétuas. A medida de segurança fica jungida
ao período máximo de 30 anos. Habeas Corpus 84219-4. São Paulo. Paciente: Maria de lourde
Figueiredo ou Maria de Loudes Figueiredo ou Maria das Graças da Silva. Impetrante: PGE-SP
– Waldir Francisco Honorato Junior. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Relator: Ministra
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312

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314

UMáà MOйDáàDйàT‘OCá àNá“àPйNITйNCIã‘Iá“:àO DIREITO À SAÚDE DOS TRANSEXUAIS


NO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO

Carolina Andrade Barriquello1


Kaoanne Wolf Krawczak2
Janaína Machado Sturza3

RESUMO: O presente trabalho tem como viés estudar a saúde pública dos transexuais no
sistema carcerário brasileiro. De modo que a saúde, enquanto direito social fundamental,
deve ser garantida a toda a população, independentemente de seu status social ou,
principalmente de seu gênero, devendo ser garantida aos transexuais, da mesma forma como
é garantida a qualquer cidadão. Ao passo que o direito à saúde dos transexuais deve ser
respeitado e garantido inclusive dentro do sistema penitenciário brasileiro. Pois os transexuais
são sujeitos de direitos e merecem todo o respeito quanto à sua identidade de gênero, sendo
inclusive permitido que eles continuem seu processo hormonal dentro do cárcere.

Palavras-chave: Direitos Humanos; Direito à Saúde; Sistema Carcerário Brasileiro;


Transexuais.

INTRODUÇÃO
Os anos iniciais do século XXI no Brasil vêm sendo marcados por diversas mudanças
sociais e culturais, as quais são consequências do próprio movimento de universalização dos
conceitos de direitos humanos e dignidade da pessoa humana. Isso traz à tona estudos como
o ora apresentado, sobre os direitos que devem ser assegurados à população e as garantias
de defesa dos cidadãos como um todo, sem excluí-los por suas diferenças. É nesse debate que
entra o estudo do direito à saúde.
Assim, tem-se que o direito à saúde no Brasil está garantido na Constituição e é
decorrência da grande mobilização política da sociedade, que envolveu e comprometeu as
instituições públicas e o conjunto da Assembleia Nacional Constituinte, luta esta que ganhou
oà o eà deà Mo i e toà pelaà ‘efo aà “a it ia à asilei a.à Dessaà fo a,à aà pa ti à daà
Constituição de 1988, a saúde passou a ser integrante do Sistema de Seguridade Social em
função do conceito de saúde adotado, ou seja, o de que a saúde é o resultado do acesso das

1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Curso de Mestrado da UNIJUÍ. Bacharel em Direito
pela UNIJUÍ. Advogada. Email: carolina_barriquelo@hotmail.com;
2
Bolsista Integral CAPES e Mestranda no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Curso de Mestrado da
UNIJUÍ. Pós-graduanda em Direito Civil pela Universidade Anhanguera – UNIDERP. Bacharel em Direito pela
UNIJUÍ. Email: kaoanne.krawczak@gmail.com;
3
Doutora em Direito (Univerisità Roma Tre), Mestre em Direito (UNISC) e Especialista em Demandas Sociais e
Políticas Públicas (UNISC). Professora na graduação em Direito e no Mestrado em Direitos Humanos da UNIJUI,
Professora na graduação em Direito da Faculdade Dom Alberto. Advogada. E-mail: janaina.sturza@unijui.edu.br.
315

pessoas e das coletividades às políticas, aos bens e serviços sociais que promovem a qualidade
de vida.
Nestes termos, é sabido que os direitos humanos têm sido um tema recorrente na
América Latina desde os primeiros movimentos de redemocratização experimentados pelos
países do continente meridional. Por ser relevante para alcançar alguns dos principais direitos
individuais fundamentais do ser humano, a discussão de temas como direitos sociais, direitos
econômicos e culturais tornou-se uma indicação da democracia. Assim, neste cenário passou
a ser discutido o papel do estado social na vida de todos os cidadãos, sem diferenciá-los de
forma injusta e precipitada, sem desprezá-los à condição de pseudocidadãos quanto à sua
participação ativa e prolongada na vida em sociedade.
Entretanto, a saúde nem sempre foi tratada com zelo e preocupação por parte de
quem detinha o poder, contudo, a partir da Constituição da Organização Mundial de Saúde de
1946, tentou-se mudar essa perspectiva, ao conceituar pela primeira vez o direito à saúde, e
promover a garantia desse direito fundamental à população. De modo que o Brasil, com
considerável atraso, aderiu a essa proteção em 1988 com a Constituição Federal, garantindo
acesso à proteção, promoção e recuperação da saúde.
Sendo assim, a saúde pública se tornou o cerne de diversos debates, contudo, apesar
das diversas tentativas, ainda não foi capaz de atingir sua plenitude e garantir o efetivo acesso
aos cidadãos em geral. Nesse sentido, percebe-se a dificuldade de implantar esse direito de
forma efetiva em vários setores da sociedade. E é justamente aí que entra o estudo do direito
à saúde no sistema prisional, e no caso do deste artigo, tratando-se especificamente da saúde
dos transexuais que se encontram no cárcere.
Assim cabe referir que a transexualidade e a travestilidade são experiências
relacionadas à identidade e foram socialmente construídas, da mesma forma que a identidade
de homens e mulheres. Entretanto, ao serem formadas em resistência às normas de gênero,
são socialmente marginalizadas e acabam restando vulneráveis a violências físicas e
simbólicas. De modo que no caso das penitenciárias, isso não é diferente, e os transexuais
tendem a passar por ainda mais dificuldades que o restante da população carcerária, devido
ao preconceito largamente difundido em nossa sociedade, ainda mais em uma sociedade
marginalizada, como é o caso da população que vive nas prisões.
316

1 O DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE

A Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 1946 designou o primeiro


o eitoàdeàsaúde,à o oà estadoàdeà o pletoà e -estar físico, mental e social e não apenas
aàaus iaàdeàdoe ças .àáàpa ti àdaí,à iou-se a noção de que além de curar os doentes, deveria
haver cuidado com todos os seres humanos, a fim de evitar o adoecimento e, ainda, de manter
o equilíbrio do homem, entre seu corpo e sua mente. Assim, o ordenamento jurídico brasileiro
reconhece a saúde como direito fundamental, porém, foi apenas em 1988, com notório atraso
em relação as ordenações mundiais, que este direito apareceu de forma direta e específica,
garantida pela Constituição Federal. Nesse momento, o direito à saúde foi alocado como
primeira garantia fundamental social da Carta de 1988, prevista em seu artigo 6º e em seus
artigos 196 a 200. A partir disso, percebe-se que nossa atual Constituição, de forma inovadora,
tratou com zelo tal direito, tornando-o uma das principais prestações devidas pelo Estado.
De forma que a saúde é um tema presente no dia a dia de toda a sociedade, seja pela
busca de mecanismos para sua manutenção, seja em busca de tratamentos para cura de
moléstias já adquiridas por variados fatores. Conforme Dallari (apud SCHWARTZ, 2001, p. 42-
à aàsaúdeà àa tesàdeàtudoàu àfi ,àu ào jeti oàaàse àal a çado.àU aà i age -horizonte à
da qual tentamos nos aproximar. É uma busca constante do estado de bem-esta ,à isa doàaà
garantia da qualidade de vida aos cidadãos.
Nesse sentido, Schwartz (2001, p. 39- àasse e aà ueàassi à o oàaàsaúde,à etaàaà
ser alcançada e que varia de acordo com sua própria evolução e com o avanço dos demais
siste asà o àosà uaisàseà ela io a,àe àespe ialàoàйstadoàeàaàp p iaàso iedade ,àaà ualidadeà
deà idaàta à àu àp o essoàsist i o,àse doà ueà oà o eitoàdeàsaúdeàageàdi eta e teà
sobre o conceito de qualidadeàdeà ida .àÉàpossí el,àai da,à ita àCu à ,àp.à ,àaoà efe i -
seà ueà oàdi eitoà àsaúdeà[ ]àoàdi eitoàso ialà aisài po ta te,à ue àat a sàdeàsuaàpassage à
histórica, quer através de seu alto grau de normatização, tanto no âmbito internacional como
no i te o .àTe doà i iaàdisso,àpode-se afirmar que é um direito de grande dimensão social
que prevê a garantia de cidadania plena ao homem lato sensu.
Assim, tem-se que o acesso à saúde deve indubitavelmente ser garantido aos cidadãos
como preceito máximo da garantia do direito à vida e à dignidade, o que não pode ocorrer,
portanto, é o atendimento de forma desigual e individual em detrimento dos demais cidadãos,
317

pois se é direito de todos, a todos deve ser garantido ao menos o mínimo acesso à saúde e as
necessidades básicas para a real efetivação desta.
Portanto, para a efetivação deste direito, previu-se expressamente no texto da
Constituição Federal de 1988, a criação de políticas sociais, dentre as quais está a
implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) com a previsão de princípios e diretrizes a
serem seguidos. Além disso, a Lei n° 8.080/90 instituiu a regulamentação infraconstitucional
do Sistema de Saúde. Essa evolução ocorrida com a implementação do SUS se deu
principalmente devido ao fato de que o Sistema Nacional de Saúde vigente até então, não
teria se mostrado eficiente.
Dando seguimento, Carvalho e Santos (2001, p. 55), conceituam o Sistema Único de
“aúdeà “U“ ,à o oàoà o ju toàdeàaç esàeàse içosàpú li osàdeàsaúdeàe e utadosàouàp estadosà
por órgãos, entidades ou instituições federais, estaduais e municipais da administração direta,
i di etaàouàfu da io al .à áde ais,à à sa ido,à ueà oàdi eitoà à saúdeà à u à di eitoà hu a oàeà
fundamental indisponível, que é garantido pela nossa Carta Magna de 1988 e previsto na
Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS), devendo ser assegurado pelo Estado.
ál à disso,à aà saúdeà [segu doà Neu a ],à à oà e à aisà aliosoà doà se à hu a o,à oà
i po ta doàseuàstatusàso ial. à CU‘Y,à ,àp.à .
De modo que a saúde possui claramente caráter de universalidade, sendo um direito
de toda e qualquer pessoa, brasileira ou não. Sendo que, para Carvalho e Santos (2001, p. 71-
72), deve-seàassegu a àaà u i e salidadeàdoàa essoàaosàse içosàdeàsaúdeàe àtodosàosà í eisà
de assistên ia ,à o oàu aàga a tiaàdeàtodosàosà idad osài depe de te e teàdeà ual ue à
requisito. Além disso, a assistência remete à atenção individualizada, de acordo com as
exigências e necessidades de cada caso, empregando-se os meios necessários para a
efetivação doà di eito.à áoà passoà ueà pa aà “a letà eà нiguei edoà ,à p.à ,à asà aç esà eà osà
serviços de saúde devem ser [...] articulados e integrados em todos os aspectos [...] e níveis
deà o ple idadeàdoà“U“ .
Contudo, nos últimos anos, o Brasil tem passado por uma grande dificuldade na
garantia de acesso à saúde pública à população, o que se dá por diversos fatores, seja o
aumento populacional, a carência de recursos, o aumento da demanda, ou a utilização do
método de recuperação da saúde em detrimento da promoção e proteção. Essa dificuldade,
no entanto, não exclui a população carcerária do direito ao acesso à saúde, devendo estes ter
318

os mesmo direitos em relação a prestação de serviços de saúde, assunto este que será
abordado no próximo tópico deste artigo.

2 O DIREITO À SAÚDE NO SISTEMA CARCERÁRIO

Com base nas considerações feitas anteriormente, pode-se afirmar que o direito à
saúde, enquanto direito fundamental de prestação positiva compreende também a população
carcerária, que será abrangida pelos programas e políticas públicas dirigidos aos cidadãos,
devendo ter acesso a meios que possibilitem o cuidado prévio e a recuperação da saúde.
Assim, no sistema prisional, foco do presente estudo, é relevante destacar que
inúmeras são as carências da população carcerária, que vão desde carências sanitárias à
dificuldade de acesso à saúde. Isso se explica pelas superlotações e pelos escassos recursos
para atender esta população, que cresce a cada dia. Nessa linha, Santos (2010, p. 28) aduz que
aàsaúdeà àu aà uest oà o plexa, por ser um conceito difuso, por não resultar apenas de
fatores biológicos e genéticos, decorrendo também de fatores socioambientais, econômicos
eà ultu aisàeàdoàestiloàdeà idaàaà ueàaàpessoaàest àe posta .
Diante disso, deve-se avaliar a saúde pelo viés da dignidade da pessoa individualmente
apreciada, não se desconsiderando a dimensão social que a dignidade abrange. Nesse ponto,
a Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDр,àe àseuàp e ede teà Niñosàdeàlaà alle à
identifica o direito à vida com dig idadeà o oàse doà oàape asàaào igaç oà egati aàdeà
não privar a ninguém da vida arbitrariamente, senão também a obrigação positiva de tomar
asà edidasà e ess iasà pa aà assegu a à ueà oà sejaà ioladoà a ueleà di eitoà si o .à
(FIGUEIREDO, 2007, p. 55). Nesse sentido, fica evidente que a saúde deve ser garantida a
todos, independentemente de seu status social, como aduzido anteriormente.
Sendo que a saúde tem como escopo, segundo Rodrigues (2000), efetivar a
socialização, através de programas especiais do Estado em relação ao cidadão encarcerado,
não o excluindo de suas prestações em razão da reclusão. Com base nisso, aduz-se que a
população encarcerada inclui-se no direito à ter saúde, o qual é garantido a todos os cidadãos,
brasileiros ou estrangeiros residentes no país. Portanto, em razão disso e pelo fato de o
Estado, quando priva seus cidadãos da liberdade, ter responsabilidade por estes, é que a
garantia deverá ser assegurada de forma igualitária.
319

Nestes termos, essa garantia tem como fundamento humanizar o sistema carcerário e
manter a saúde da população em geral em boas condições, a fim de que se garanta o direito
humano à vida do encarcerado e não haja transmissão de doenças para o restante da
sociedade por maus cuidados com os reclusos. Com o objetivo de garantir esses cuidados, a
O ga izaç oàdasàNaç esàU idasà ONU àe àsuaàCa tilhaà ‘eg asàdeàMa dela:à‘eg asàMí i asà
dasàNaç esàU idasàpa aàoàT ata e toàdeàP esos àdefi iuàe àsuaà‘eg aà . à ue

O provimento de serviços médicos para os presos é uma responsabilidade do Estado.


Os presos devem usufruir dos mesmos padrões de serviços de saúde disponíveis à
comunidade, e os serviços de saúde necessários devem ser gratuitos, sem
discriminação motivada pela sua situação jurídica.

Esta mesma cartilha, definiu ainda, em sua Regra 101. à ueà ásàp e auç esàfi adasà
para proteger a segurança e a saúde dos trabalhadores livres devem ser igualmente
o se adasà asà u idadesà p isio ais. à Po ta do,à dia teà dessasà ‘eg asà daà ONU,à hega-se à
conclusão do dever do Estado de zelar e resguardar a saúde da população encarcerada, da
mesma forma que trata da saúde da população em geral. Além disso, é um direito assegurado
pelaàэeiàdeàй e uç oàPe alà эeià . / àe àseuàa tigoà ,àaoàaduzi à ueà Co stitue àdi eitosà
do preso: [...] VII - assist iaà ate ial,à àsaúde,àju ídi a,àedu a io al,àso ialàeà eligiosa .
Portanto, não resta dúvidas que é imprescindível um serviço de saúde eficiente e
adequadamente equipado nas penitenciárias, a fim de garantir as necessidades da população
encarcerada. Para efetivar essa garantia, as Regras Mínimas da ONU preconizam que cada
estabelecimento penitenciário deve dispor dos serviços de, pelo menos, um médico, com
conhecimento de psiquiatria e que os serviços médicos devem ter sua organização
estreitamente relacionada com a administração geral dos serviços de saúde da comunidade
ou da nação, sendo assegurado que todo o preso poder valer-se dos cuidados de um dentista
devidamente habilitado.
Conforme referido anteriormente, fica evidente que o Estado possui obrigação de
preservar e restaurar a saúde das pessoas privadas de liberdade, pois estão sob sua
responsabilidade. É importante mencionar, que as condições em que a população carcerária
é mantida, possui grande influência sobre sua saúde e bem-estar. Por esse motivo, as
administrações penitenciárias, segundo Coyle (2002), devem assegurar os padrões adequados
para garantir a saúde e a higiene dos presos, contribuindo para que as pessoas que não se
320

encontram em bom estado de saúde se recuperem e para a prevenção da propagação de


doenças e infecções.
Assim, tem-se que um bom estado de saúde é muito importante, pois além de
assegurar a qualidade de vida, afeta o modo como às pessoas se comportam e sua capacidade
de atuarem como membros da sociedade. Dessa forma, é extremamente adequado e
importante que o preso não saia do presídio em uma condição pior do que quando entrou, o
que vale, também, para todos os aspectos da vida na prisão, sendo imprescindível um
adequado regime sanitário dos estabelecimentos prisionais. (COYLE, 2002)
Ainda, é fato que muitos presos ingressam no sistema prisional com problemas de
saúde pré-existentes, causados por negligência, maus tratos ou por seu estilo de vida, o que
não é difícil prever, pois na maior parte das situações os presos emanam de segmentos mais
pobres da sociedade, o que reflete diretamente em sua condição de saúde. De modo que
muitos levam consigo doenças não tratadas, vícios ou até mesmo problemas de saúde mental,
o que tornará necessário o atendimento específico. Além disso, inúmeras são as situações em
que há a afetação da saúde mental dos cidadãos justamente pelo fato de estarem presos.
(COYLE, 2002)

3 DIREITO À SAÚDE DOS TRANSEXUAIS NO SISTEMA CARCERÁRIO

A partir de tudo que foi exposto até aqui, cabe agora tratar do assunto principal deste
artigo: o direito à saúde de transexuais nas penitenciárias brasileiras. Em um primeiro
momento, importante trazer um conceito a respeito do que são transexuais, a fim de elucidar
melhor o assunto. Nestes termos, Diniz, citada por, L. Araújo (2000, p.28), define o transexual
como

1. Aquele que não aceita o seu sexo, identificando-se psicologicamente com o sexo
oposto [...] sendo, portanto, um hermafrodita psíquico [...] 2. Aquele que, apesar de
apresentar ter um sexo, apresenta constituição cromossômica do sexo oposto e
mediante cirurgia passa para outro sexo [...] 3. [...] é o indivíduo com identificação
psicossexual oposta aos seus órgãos genitais externos, com o desejo compulsivo de
mudá-los [...]

Já na con eituaç oàdeàViei aà ,à t a se ualà à e te didoà o oà oài di íduoà ueà


possui a convicção inalterável de pertencer ao sexo oposto ao constante em seu Registro de
321

Nascimento, reprovando veementemente seus órgãos sexuais externos, dos quais deseja se
livra àpo à eioàdeà i u gia. àValeà essalta ,àai da,àoàe te di e toàdeàыla i à apudàá‘áÚщO,à
L., 2000, p. 29), que concebe o transexual como

um indivíduo, anatomicamente de um sexo, que acredita firmemente pertencer ao


outro sexo. Essa crença é tão forte que o transexual é obcecado pelo desejo de ter o
corpo alterado a fim de ajustar-seà aoà e dadei o à se o,à istoà ,à aoà seuà se oà
psicológico.

A partir destas conceituações pode-se observar que estes sujeitos que apresentam
u aà i o pati ilidadeàe t eàoàse oà iol gi oàeàaàide tifi aç oàpsi ol gi a à “UTйй‘àapudà
ARAÚJO, 2000, p. 29), ao apresentarem estas duas características juntas, é que são definidos
pela sociedade como pertencedores do transexualismo. Temos também que, essa falta de
identificação acaba causandoà osài di íduosàu à p o essoàa gustioso,à o fliti oàeàdeli ado à
á‘áÚщO,àэ.,à ,àp.à ,àoà ueàge aàu àsof i e toài te so,àpoisàosàt a se uaisà i e à oà
o flitoàdeàpossui àu aàge it liaàest a haà sàsuasàse saç es,àdesejosàeàfa tasias .à á‘áÚщO,à
L., 2010, p. 55)
Esse processo de angústia se torna ainda pior em relação aos transexuais que se
encontram no sistema prisional, pois são os sujeitos que mais apresentam vulnerabilidades
de t oàdoà e e.à Nesseàse tido,àoàa ie teàp isio alàde a daàu àp epa oàespecífico para
lidar com a população LGBT, de forma a garantir direitos básicos à dignidade, liberdade, à
saúdeàeà[...]à àsegu a çaàpessoal .à “й“TOыá“,à ,àp.à .àDeà odoà ueà aà oo de ado aàdeà
Diversidade Sexual do governo de Minas, Walkíria La Roche, declarou que `dentro das cadeias,
osàt a estisàs oàusadosà o oà oedaàdeàt o aàe t eàosàp esos´ .à “й“TOыá“,à ,àp.à
Além disso, o sistema penitenciário brasileiro apresenta problemas no acolhimento de
presos, e com relação aos transexuais, a questão é ainda pior, conforme aduz Rosa (2016, s.p.)

No Brasil, o quadro é [...] grotesco em razão da falência do sistema prisional, com os


problemas já conhecidos de superlotação, falta de estrutura decente, falta de
trabalho e de reeducação, tráfico de drogas, falta de acompanhamento sensato das
execuções penais. Além das violações de Direitos Humanos que acometem a todos
os presos brasileiros, as mulheres transexuais e travestis, nos presídios masculinos,
ainda sofrem humilhações; torturas; estupros; exposição de sua intimidade a uma
população diferente de seu gênero, por exemplo, a obrigatoriedade de a presa
transexual tomar banho de sol sem camisa, expondo seus seios; o corte obrigatório
dos cabelos femininos nos presídios masculinos; a proibição do tratamento com
hormônios; a revista íntima vexatória.
322

Ainda, é evidente que o Brasil apresenta um despreparo gigantesco no acolhimento da


população transexual, conforme preleciona Paixão (2017, s.p.),

O despreparo do sistema penitenciário para acolher a população transexual,


submetendo esse grupo a situações de desrespeito, é tema que aparece sem grande
esforço ao conversar com uma mulher ou homem transexual que já transitou pelo
sistema carcerário.

Neste sentido, conforme Sestokas (2015, p. 2), não permitir que estes sujeitos
expressem sua orientação de gênero constitui uma conduta discriminatória e uma violação à
diversidade e à dignidade, constituindo também uma violação não permitir aos transexuais a
continuidade do processo de adequação social, não interromper seu tratamento hormonal,
assim como poder utilizar roupas de acordo com seu gênero.
Existem casos notórios e chocantes que exemplificam bem essa violação dos direitos
humanos dos transexuais dentro das penitenciárias brasileiras, um deles ocorreu no ano de
2015 no Estado do Ceará, onde

uma transexual foi levada à audiência de custódia, ocasião em que, com marcas de
espancamento, chorando e vomitando, ela relatou que não queria voltar à prisão, e,
se isso acontecesse, ela se mataria. Isso porque passou 20 dias presa na Penitenciária
masculina de Caucaia, sendo espancada e estuprada por quatro detentos. Durante a
audiência de custódia, um dos presos disse ao juiz que ouviu os gritos da transexual
durante a noite pedindo socorro. O caso ainda está sendo apurado. (ROSA, 2016,
s.p.)

Outro exemplo que gerou muita repercussão, e levou o Estado de Minas Gerais a criar
uma ala específica para gays – tornando-se o primeiro estado brasileiro a ter uma ala
específica para transexuais no Brasil – é o de Vitória R. Fontes que mutilava seus braços para
chamar a atenção da administração do presídio masculino onde estava presa. Através do
relato da própria Vitória fica evidente a gravidade da situação.

[...] era obrigada a ter relação sexual com todos os homens das celas, em sequência.
Todos eles rindo, zombando e batendo em mim. Era ameaçada de morte se contasse
aosà a e ei os.àChegueiàaàse àleiloadaàe t eàosàp esos.àU àdelesà eà e deu àe à
troca de 10 maços de cigarro, um suco e um pacote de biscoitos. [...] Fiquei calada
até o dia em que não aguentei mais. Cheguei a sofrer 21 estupros em um dia. Peguei
hepatite e sífilis. Achei que iria morrer. Sem falar que eu tinha de fazer faxina na cela
e lavar a roupa de todos. Era a primeira a acordar e a última a dormir .à ‘O“á, 2016,
s.p.)
323

Com relação a experiências positivas de tentativas de proteger os transexuais dentro


do sistema penitenciário, tem-seà ueà й à ,àasàNaç esàU idasàadota a àosàP i ípiosàdeà
Yogyakarta sobre a Aplicação da Legislação Internacional de Direitos Humanos em relação à
O ie taç oà“e ualàeàIde tidadeàdeàG e o .à ‘O“á,à ,às.p. àCo àoà es oào jeti o,à й à
2011, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas adotou a Resolução 17/2019 sobre
Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero, da qual o Brasil participou e
otouàfa o a el e te .à ‘O“á,à ,às.p.
Enquanto que no Brasil, diante destas violações em relação aos direitos dos
transexuais dentro do sistema penitenciário e em razão da inércia estatal quanto ao
fornecimento de tratamento adequado às pessoas trans e lusas,à ueài pli a àe à iolaç oà
de direitos humanos da pessoa transexual, tanto no aspecto de proteção da saúde quanto,
so etudo,àdaàdig idadeàhu a a à PáIXÃO,à ,às.p. ,àalgu sàestadosà asilei os,àe t eàelesà
o Rio de Janeiro e São Paulo, editaram resoluções – Resolução 558/05 e Resolução 11/14 –,
dispondo a respeito da atenção e estabelecendo diretrizes para o tratamento de pessoas
transexuais no sistema penitenciário de seus estados.
Com o mesmo objetivo, foi editada, em janeiro de 2014, a Resolução Conjunta de n° 1
doàCo selhoàNa io alàdeàCo ateà àDis i i aç o,à o ào jeti oàdeàesta ele e à u aà o aà
ealidadeàde t oàdoàsiste aà a e ioà a io al .à CO‘‘Êá,à ,às.p. .àTalà esoluç oà us aà
defi i à aà fo aà o oà a olhe à oà g upoà эGBTà asà p is es à PO‘Táэà B‘á“Iэ,à ,à s.p. à eà
detalhaà uda çasà aà fo aà deà t ata e toà dosà o po e tesà doà g upoà эGBTà p esosà asà
u idadesà pe ite i iasà doà B asil .à PO‘Táэà B‘á“Iэ,à ,à s.p. à ássi ,à segu doà oà te toà daà
Resolução Conjunta n°à ,à t a se uaisà as uli asàeàfe i i asàde e àse àe a i hadasàpa aà
as unidades prisionais femininas, e o Estado deverá garantir tratamento igual às mulheres
t a se uaisàaoàdasàde aisà ulhe esàe àp i aç oàdeàli e dade .à PO‘TáэàB‘á“Iэ,à ,às.p.
Em consonância, nestas resoluções fica determinado que

[...] pessoas privadas de liberdade ou visitantes das pessoas presas devem ter
preservado o direito à sua orientação sexual e à identidade de gênero, incluindo o
direito ao tratamento pelo nome social. Às pessoas que passaram por procedimento
cirúrgico de transgenitalização é previsto o direito de serem incluídas em Unidades
Prisionais do sexo correspondente. O setor de saúde da unidade prisional deve
atenção à saúde e cuidado às pessoas presas transexuais e travestis, conforme suas
necessidades. Ainda, deve ser assegurada a participação de pessoas presas LGBT nos
ambientes internos de trabalho e nos cursos de educação e qualificação profissional
e no ambiente de trabalho. (SESTOKAS, 2015, s.p.)
324

Ainda, nas palavras de Sestokas (2015, s.p.) tem-se que

no caso de visitantes travestis ou transexuais, os procedimentos de ingresso na


unidade prisional serão realizados por agente de segurança penitenciária conforme
sexo biológico, salvo se a pessoa visitante tenha feito cirurgia de transgenitalização.
Este artigo trata a identidade sexual como condicionada à genitália, o que dá
abertura para que uma pessoa que se identifique como mulher possa ser revistada
por um agente homem.

No mesmo sentido, as resoluções p e ee à aà iaç oà deà u aà o aà alaà asà


penitenciárias, destinada a gays, bissexuais e travestis; a possibilidade de transexuais
u p i e à pe aà e à esta ele i e tosà fe i i os à CÔ‘‘йá,à ,à s.p. ,à [...]à pode do,à
ta ,à esti -se, apresentar-se e nomear-se conforme sua identidade de gênero na
so iedade .à CÔ‘‘йá,à ,às.p.
Em relação à criação destas alas separadas nos presídios brasileiros, tem-se que
ape asàosàйstadosàdeàMi asàGe ais,à‘ioàG a deàdoà“ul,àMatoàG ossoàeàPa aí aàpossue ,àe à
alguns estabelecimentos penais, uma ala específica para homossexuais, travestis e
t a se uais,à ostu ei a e teà ha adaàdeà ala gay à ‘O“á,à ,às.p. .àái da,àOàйstadoàdaà
Bahiaàj àfi ou,àe à ,à o p o issoà oàse tidoàdeà ia àtaisàespaços à ‘O“á,à ,às.p. ,à
o que evidencia que apesar da edição de diversas resoluções para proteger os direitos das
transexuais no sistema carcerário brasileiro, apenas alguns Estados assumiram esse
compromisso na prática.
Um exemplo notório dessa violação aos direitos humanos dos transexuais é o que
ocorreu com Verônica Bolina no ano de 2015 em São Paulo, apesar de já estar em vigência
uma Resolução que protegia seus direitos. Assim, nas palavras de Rosa (2016, s.p.),

Verônica Bolina, já sob a vigência da Resolução 11 da SAP, foi gravemente espancada


e teve suas imagens com o corpo seminu, seios à mostra, sem os apliques de cabelos,
algemada com as mãos para trás, os pés amarrados e com o rosto completamente
desfigurado, sentada ao chão cercada de policiais civis, divulgadas na internet.

Ao passo que, em relação ao desrespeito à saúde dos transexuais no sistema


penitenciário, tema central de nosso artigo, a principal queixa se refere a ausência de acesso
aos hormônios - aos quais os transexuais estão sendo submetidos no processo de
hormonote apia,à o à oà o jeti oà deà i duzi à oà dese ol i e toà deà a a te ísti asà se uaisà
325

se u d iasà o patí eisà o àaàide tidadeàdeàg e oàdaàpessoa à PáIXÃO,à ,às.p. à– o que


acarreta o retrocesso em relação às características já adquiridas.
ái da,à oà aio àmedo das transexuais e travestis, quando reclusas, é o corte de cabelo
aoà ualà s oà su etidas .à PáIXÃO,à ,à s.p. à Out aà uest oà ueà e ol eà aà saúdeà daà
população carcerária trans é o tratamento que estas recebem por parte dos agentes
penitenciários, que se apresentam, em sua maioria, com atitudes de violência, tanto física
o oàpsi ol gi a,àpoisà asàpessoasàs oàt atadasàdeàa o doà o àseuàse oà iol gi o,àeà oàpeloà
o eàso ial .à PáIXÃO,à ,às.p.
Assim, fica clara a importância e a obrigação dos sistemas prisionais de atender e
aplicar as diretrizes e determinações previstas na Política Nacional de Saúde Integral de
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, formulada pelo Sistema Único de Saúde,
de modo a fornecer um tratamento adequado aos transexuais, respeitando suas
especificidades e implementando políticas públicas para melhor atendê-los, e direcionando
i esti e tosà e à fo aç oà p ofissio alà fo adaà oà dese ol i e toà deà o pet ias,à
possi ilita doà aio àefi iaàdaàpolíti a .à “OU)á,à 15, p. 222). Pois, conforme aduz Souza
(2015, p. 223)

A Política nacional de saúde integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e


transexuais constitui-se como uma política federal, a qual está sob a
responsabilidade do Ministério da Saúde, tendo sido iniciada no ano de 2008. Sua
formulação seguiu as diretrizes de governo expressas no Programa Brasil sem
Homofobia, que foi coordenado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da
Presidência da República (SEDH/PR) e que atualmente compõe o Programa Nacional
de Direitos Humanos (PNDH 3).

Nestes termos, a Política de Saúde LGBT, por meio dos seus nove artigos, indica as
responsabilidades de cada esfera de gestão (federal, estadual e municipal) para execução de
ações que tenham por finalidade a garantia do direito constitucional à saúde pela população
LGBT com qualidade, acolhimento e humanização. (BRASIL, 2013)
Mas, de acordo com Lionço (2009), o ideal seriam iniciativas transversais entre
diferentes políticas de saúde, a fim de otimizar a implementação de ações em saúde já
estimuladas no SUS de acordo com as especificidades de transexuais, não apenas entre os
recortes de gênero, mas incluindo também e principalmente a questão da saúde no sistema
326

penitenciário. A demanda identitária vem responder a um anseio por reconhecimento, em


detrimento da complexificação e qualificação das estratégias e ações em saúde.
Pois o desafio da promoção da equidade para a população LGBT deve ser
compreendido a partir da perspectiva das suas vulnerabilidades específicas, com iniciativas
políticas e operacionais que visem à proteção dos direitos humanos e sociais dessas
populações. Com a ampliação da atual perspectiva da integralidade da atenção à saúde desses
segmentos populacionais brasileiros, é reconhecido que a orientação sexual e a identidade de
gênero constituem situações muito mais complexas e são fatores de vulnerabilidade para a
saúde.
Por conseguinte, tal reconhecimento deve-se não apenas por implicar em práticas
sexuais e sociais específicas, mas também por expor a população LGBT a agravos decorrentes
do estigma, dos processos discriminatórios e de exclusão social, que violam seus direitos
humanos, entre os quais, o direito à saúde, à dignidade, a não-discriminação, à autonomia e
ao livre desenvolvimento (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2008), o que agrava ainda mais a situação
dos transexuais reclusos nos sistemas penitenciários brasileiros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do que discorreu-se até aqui, conclui-se que o processo de produção de saúde
é uma tarefa que envolve diversos recursos e áreas para sua efetivação. Pois o campo das
Políticas Públicas de Saúde é coletivo, não só porque Saúde Pública é, entre nós, Saúde
Coletiva, mas, sobretudo porque não há como pensar os problemas que aí se colocam sem o
esforço de diversos profissionais. Portanto, diante de todo exposto no decorrer deste artigo,
ressalta-se que as demandas por direito à saúde para pessoas lésbicas, gays, bissexuais,
travestis e transexuais (LGBT) é um dos eixos necessários a serem incorporados para o
aprofundamento da democracia.
A partir do estudo ora efetuado, constata-se que a saúde ainda não está efetivamente
garantida aos transexuais nas penitenciárias brasileiras, uma vez que muitos transexuais tem
suaà i ti idadeà ioladaà aoà se e à t atadosà o oà oedaà deà t o a à pelosà de aisà dete tos,à
sendo estuprados e em muitos desses casos, não bastasse o sofrimento dessa violência, ainda
adquirem doenças sexualmente transmissíveis.
327

Outro ponto que chama atenção é o fato de os transexuais, por serem vítimas do
preconceito em nossa sociedade que ainda tem grande dificuldade de aceitá-los, serem
frequentemente vítimas de violência física e psicológica nas penitenciárias, tanto por parte
dos detentos, quanto por parte de agentes, fato inúmeras vezes já debatido em noticiários e
matérias bibliográficos que tratam do tema, o que afeta diretamente seu direito fundamental
à saúde. Ademais, em relação aos transexuais submetidos ao processo de transgenitalização
e/ou hormonoterapia, a principal queixa, conforme mencionado anteriormente, refere-se à
ausência de acesso aos hormônios, interrompendo seu tratamento, o que designa uma clara
violação do direito ao acesso à saúde.
Diante disso, pode-se afirmar que o trabalho no sentido de garantir a efetivação do
aceso à saúde aos transexuais reclusos está apenas em seu início, pois tem um longo caminho
a percorrer até chegar-se a plena efetivação desse direito assegurado pela Carta Magna de
1988 e que ainda possui severos problemas de aplicabilidade, bem como da dificuldade de
atendimento das diretrizes e determinações previstas na Política Nacional de Saúde Integral
de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, formulada pelo Sistema Único de Saúde.
Assim sendo, o presente estudo não pretende esgotar o tema, e sim, demonstrar um
problema recorrente e não tão atual quem vem sendo enfrentado em nosso país, a fim de
evidenciar que os transexuais devem ter seus direitos assegurados como todo o restante da
população. Porém, esta garantia é ainda mais difícil nas penitenciárias por tratar-se de uma
população marginalizada que já não teve auxílio anteriormente, seja da família ou do Estado
e, por necessidade, viveu diretamente a influência da violência, e ao chegar às penitenciárias
tem este problema ainda mais forte e se vê diante do problema da dificuldade de ver
assegurado um direito básico como a saúde, a fim de garantir um pouco de dignidade.

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Acesso em: 09 Mar. 2015.
331

SECULARIZAÇÃO, LAICIDADE E LAICISMO: DELINEANDO CONCEITOS E AMPLIANDO O


DEBATE

Celso Gabatz1

RESUMO: O objetivo desta abordagem é aprofundar algumas prerrogativas conceituais


inerentes aos processos de laicização, laicismo e secularização na contemporaneidade.
Enfatiza-se que cada uma das referências evidencia aspectos concernentes a um projeto
civilizacional e cultural, bem como, uma concepção de mundo baseada em valores de cunho
secular. Distingue-se laicidade de laicismo, demonstrando que este último procura retirar a
premissa religiosa da vida social. Trata-se de uma postura anticlerical. A abordagem sugere
que a laicidade deveria ser compreendida de acordo com características históricas, culturais
e religiosas inerentes a cada nação.

PALAVRAS-CHAVE: Laicidade; Laicismo; Secularização.

INTRODUÇÃO
Ao contrário do que ocorria em tempos passados onde havia uma grande afinidade
entre o Estado e a religião, a ponto de legitimar uma ordem social, o que pode ser observado
nos dias atuais, na maioria das sociedades ocidentais, é a existência de uma separação entre
a esfera religiosa (espiritual) e a esfera secular (temporal). Poucos são os Estados
confessionais, ligados a um determinado grupo religioso.
Por outro lado, é preciso salientar também que a religião não tem hoje a influência e
domínio que possuía em tempos passados, como, por exemplo, no medievo ou na antiguidade
clássica. O que vemos na contemporaneidade remonta a pluralidade das expressões religiosas
com um conseqüente enfraquecimento de tradições e dogmas consolidados nos percursos da
história.
Para analisar os processos sociais e históricos de enfraquecimento das instituições
religiosas e a separação entre o Estado e os diversos grupos religiosos é que surgem os
conceitos de secularização, laicismo e laicidade. É preciso salientar, contudo, que uma grande
parcela dos cientistas sociais, historiadores, juristas e filósofos acabam alinhados com o senso
comum ao descortinar diferentes premissas conceituais como sinônimos que, supostamente,
fazem referência a um mesmo fenômeno. Trata-se de conceitos distintos mesmo fazendo

1
Doutor em Ciências Sociais (UNISINOS). Mestre em História Regional (UPF). Pós-Graduado em Ciência da Religião e
Docência no Ensino Superior. Graduado em Sociologia (UNIJUI), Teologia (EST) e em Filosofia (CEUCLAR). Contato:
gabatz12@hotmail.com
332

parte dos processos que ocorrem no contexto da modernidade e de se relacionarem com a


autonomia das diversas esferas da vida social no que tange ao controle e tutela da religião.

1. O CONCEITO DE SECULARIZAÇÃO

A religião na contemporaneidade já não é mais o único elemento estruturador da


ordem social. A arte e a cultura não expressam tanto os conteúdos de uma realidade teológica,
dogmática, sacral. Os valores e as normas que orientam os comportamentos distanciam-se
das referências de cunho religioso. Os diversos domínios da vida social acabam sendo regidos
por regras sem uma ligação com princípios religiosos. A religião tende a privatizar-se,
deslocando-se da esfera pública para a esfera privada.

A religião na sociedade moderna, a religião institucionalizada, ainda segue sendo a


forma social predominante da expressão do religioso, mas perdeu capacidade
normativa e interpretativa. Nem a cosmovisão, nem os valores vêm determinados
pela religião institucional. Neste sentido, a sociedade se secularizou e o mundo se
dese a tou .à áà eligi o,à aoà pe de à oà pesoà so ial,à t o a-se invisível (em suas
funções tradicionais de integração social, sentido, etc.) e se refugia no indivíduo. A
religião se privatiza (mais do que se seculariza a sociedade) e a pessoa e a religião
parecem estar separadas da sociedade. A manifestação mais real desta privatização
não é uma total ausência das dimensões sociais na religião, mas a fragmentação e
instabilidade de sentido (MARDONES, 1994, p. 147-148).

Este processo de diluição e deterioração da influência dos valores, símbolos, práticas


e instituições religiosas é um conceito polissêmico e multifacetado. Do ponto de vista
histórico, a secularização se relaciona com o direito canônico e sua passagem de um Estado
religioso regular para um Estado secular. O conceito também se vinculava ao ato de
expropriação dos domínios e propriedades da Igreja Católica pelo príncipe dos Estados
protestantes (MARRAMAO, 1997).
O fenômeno histórico e social da secularização está intimamente relacionado com o
avanço da modernidade. O direito, a arte, a cultura, a ciência, a educação e outros campos da
vida social se consolidam a partir de valores seculares, não religiosos. As bases filosóficas da
modernidade revelam uma concepção de mundo e de ser humano que contrasta com o
universo permeado pelas forças divinas das sociedades tradicionais e primitivas. O
desenvolvimento da ciência e do racionalismo fez com que as concepções religiosas fossem
adquirindo outras conotações para os indivíduos (RHONHEIMER, 2009).
333

Neste processo onde as esferas religiosas e políticas passam a disputar o controle da


vida social, José Casanova (1994) propõe uma distinção analítica entre o conceito de
secularização e o conceito de secularismo. Sugere que o paradigma weberiano da
secularização estaria constituído de três proposições distintas que deveriam ser tratadas de
maneira separada: a primeira, diz respeito ao declínio do religioso; a segunda, à diferenciação
das esferas; a terceira, à privatização da religião. Em seu argumento, o autor sugere que a
presença cada vez mais atuante das religiões na esfera pública contemporânea fragiliza o
paradigma da secularização, sobretudo, em relação ao suposto declínio do religioso ou de sua
restrição à esfera p i ada.à Desseà odo,à se iaà p e isoà epe sa à elho à aà uest oà dasà
mudanças nas fronteiras entre esferas e o papel estruturante da religião nessas diferenciações
eà oàdesafioà sàp p iasàf o tei as à p.à .à
A secularização se caracterizaria, portanto, pelo declínio da religião, pela perda de sua
posição determinante e de referência, pela autonomia das diferentes esferas da vida social. A
religião perde força e autoridade sobre a vida privada e cotidiana (PIERUCCI, 1997). De acordo
com Peter Berger (2003, p.1 ,à aà se ula izaç oà à esteà p o essoà peloà ualà seto esà daà
so iedadeà eà daà ultu aà s oà su t aídosà à do i aç oà dasà i stituiç esà eà sí olosà eligiosos .à
Berger entende que a secularização se manifesta com a retirada das igrejas cristãs, no mundo
o ide talà de áreas que antes estavam sob seu controle ou influência: separação da Igreja e
do Estado, expropriação das terras da Igreja, ou emancipação da educação do poder
e lesi sti o .
A secularização é um processo pelo qual pensamento, práticas e instituições religiosas
perdem sua significação social. Os valores fundamentais que regem as sociedades já não
derivam de preceitos religiosos (WILSON, 1969). Neste sentido, cabe salientar que a
secularização traz consigo uma série de conseqüências. Todavia, mesmo com esta suposta
neutralidade do Estado em relação à religião, fundamentada na separação entre o poder
temporal e espiritual, como observa Ricardo Mariano:

[...] não há como deixar de notar que inexistem exemplos históricos concretos de
países, por mais politicamente liberais que sejam em que tenha sucedido plena
neutralização da ação estatal na economia religiosa (2001, p. 118).

A teoria da secularização é também contestada diante do surgimento de novos


movimentos religiosos, do revigoramento dos fundamentalismos e da maior penetração do
334

âmbito religioso no espaço público. Todavia, para Ernst Gellner, a secularização ainda seria
uma realidade presente em grande parte das sociedades ocidentais.

Em termos gerais, a tese da secularização mantém-se, de fato, firme. Alguns regimes


políticos estão abertamente associados a ideologias secularistas e anti-religiosas,
enquanto outros estão oficialmente desvinculados da religião, praticando o
secularismo mais por defeito do que por afirmação ativa. No entanto, poucos são os
Estados formalmente ligados à religião e, se o estão, trata-se de uma ligação frágil
que não é levada muito a sério. A observância e a prática religiosa são reduzidas e os
seus eventuais níveis elevados ficam a dever-se, com frequência, ao cariz
eminentemente social e não transcendente dos conteúdos religiosos. A doutrina
formal é, por isso, ignorada, sendo a participação encarada como uma celebração da
comunidade e não como convicção. Os assuntos religiosos raramente merecem
destaque (1994, p. 16).

Cabe aqui ressaltar que a secularização não pode ser confundida com
desencantamento do mundo, nos termos daquilo que havia sido preconizado por Max Weber.
Tal compreensão é descrita por Antônio Flávio Pierucci de forma bastante incisiva:

É básico para um cientista social que se pretende especializar no estudo das religiões
entender, por exemplo, que desencantamento em sentido técnico não significa
perda para a religião nem perda de religião, como a secularização, do mesmo modo
que o eventual incremento da religiosidade não implica automaticamente o conceito
de reencantamento, já que desencantamento em Weber significa um triunfo da
racionalização religiosa (2003, p. 120).

O desencantamento do mundo deve ser entendido como desmagificação. Significa,


portanto, a rejeição da magia presente nos ritos sacramentais como vias de salvação. Trata-
se da luta secular da religião racionalizada em oposição a uma concepção exacerbada por uma
atitude da fé em termos transcendentes. O desencantamento do mundo também diz respeito
à ação da ciência capaz de transformá-lo a partir de um ordenamento dotado de sentido. Um
mecanismo causal capaz de ser dominado e explicado em termos científicos e racionais.

2. O CONCEITO DE LAICIDADE

No Brasil, nos dias atuais, muito se tem debatido acerca de um Estado laico, de uma
escola pública com caráter laico, da autonomia estatal ao fomentar políticas públicas de
inclusão e cidadania. No entanto, é preciso referir que não há tanta clareza ou discernimento
no que tange ao significado de laicidade. Trata-se, pois, de um processo social estreitamente
335

relacionado com a esfera política. Refere-se à formação de um Estado desvinculado de


qualquer grupo religioso. Objetiva um espaço público capaz de garantir e resguardar a
participação de todas as denominações religiosas sem privilégios a uma tradição de fé, mesmo
que esta represente, historicamente, uma maioria.
De acordo com Daniel Sarmento a laicidade adotada na maioria das democracias
contemporâneas opera em duas direções:

Por um lado ela salvaguarda as diversas confissões religiosas do risco de intervenções


abusivas do Estado nas suas questões internas, concernentes a aspectos como os
valores e doutrinas professados, a forma de cultuá-los, a sua organização
institucional, os seus processos de tomada de decisões, a forma e o critério de
seleção de seus sacerdotes e membros [...]. Mas, de outro lado, a laicidade também
protege o Estado de influências indevidas provenientes da seara religiosa, impedindo
todo tipo de confusão entre o poder secular e democrático, em que estão investidas
as autoridades públicas, e qualquer confissão religiosa, inclusive majoritária (2008,
p. 190-191).

A laicidade pode ser diretamente relacionada a dois direitos fundamentais do


constitucionalismo contemporâneo: igualdade e liberdade de crença. (CANOTILHO, 1993). Em
uma sociedade pluralista como a brasileira, com tantas crenças e opções religiosas, o princípio
da igualdade converte-se em um instrumento indispensável ao tratamento de todos os seus
indivíduos com respeito e equidade. Já em relação à liberdade religiosa individual, ainda que
haja garantia constitucional, a laicidade caracteriza-se como uma diretriz capaz de interditar
a promiscuidade entre os poderes públicos e algumas doutrinas religiosas (MARTINS FILHO e
NOBRE, 2011).
Convém esclarecer e enfatizar que a laicidade é uma premissa que se liga ao político e
não a um problema de ordem religiosa. Ela deriva do Estado e não da religião como, às vezes,
se difunde de forma equivocada. É o Estado que ao cumprir as suas atribuições afirma e
garante a laicidade (BRACHO, 2005). Neste sentido, a iniciativa de um processo de laicização
pode ter como ponto de partida determinados setores da sociedade, mas, em geral, o que
ocorre é uma mobilização e mediação do político para que as intenções se operacionalizem e
se realizem.

A laicidade, ao condizer com a liberdade de expressão, de consciência e de culto, não


pode conviver com um Estado portador de uma confissão. Por outro lado, o Estado
laico não adota a religião da irreligião ou da anti-religiosidade. Ao respeitar todos os
cultos e não adotar nenhum, o Estado libera as igrejas de um controle no que toca à
336

especificidade do religioso e se libera do controle religioso. Isso quer dizer, ao


mesmo tempo, o deslocamento do religioso do estatal para o privado e a assunção
da laicidade como um conceito referido ao poder de Estado (CURY, 2004, p. 183).

A laicidade é uma noção que implica a neutralidade do Estado em matéria religiosa.


Esta posição consolida-se mediante dois sentidos. O primeiro, como já mencionado, supõe a
exclusão da religião no âmbito do Estado na esfera pública. Significa uma garantia da
neutralidade. O segundo sentido refere-se à imparcialidade do Estado com respeito às
diferentes denominações religiosas. Compete ao Estado, portanto, a garantia do tratamento
igualitário a todas as religiões. Trata-se, neste caso, de um sentido de neutralidade e também
imparcialidade (BARBIER, 2005).
Importante observar que a laicidade é assimilada quando o poder político não é mais
legitimado pelas diretrizes ou prerrogativas eclesiásticas. Quando não há domínio decisório
da religião no âmbito dos poderes constitutivos do Estado e na sociedade. Quando existe a
autonomia do Estado, dos poderes e das instituições públicas em relação às autoridades
religiosas e também um afastamento das leis civis das normas, condutas ou dogmas religiosos
(SABAINI, 2010).
É pertinente destacar que a contemporaneidade tem sido marcada, em grande
medida, pela ciência e pela técnica, pelos nacionalismos e a intolerância. A comunicação em
suas diversas possibilidades pode favorecer o intercâmbio cultural e religioso. Tais
transformações impactam também no modo como as pessoas cultivam sua religiosidade e
consolidam suas verdades e valores (BURKE, 2006). Muito do que acontece hoje escapa às
concepções usuais. Há que se ter uma análise mais aprofundada e abrangente para dar conta
da realidade que se apresenta.

O que acontece no campo religioso hoje, longe de ser um movimento único,


organizado, com filosofia e propósitos definidos, tem muito mais a ver com a ideia
de mudança, algo em constante movimento. A religião não fica mais somente na
igreja e na comunidade original, mas se desloca para outros lugares, assume novas
feições e formas de vivência. [...] A religião encontra-seà„e àtudo‟,àpe et a doàasà
múltiplas dimensões de vida do sujeito, do cuidado da saúde à busca de novos laços
societários, ampliando as experiências singulares e realçando as adesões provisórias.
(GUERRIERO, 2006, p. 24).

A laicidade não se confunde com a liberdade religiosa, o pluralismo e a tolerância. Pode


haver liberdade religiosa, pluralismo e tolerância sem que haja laicidade, como é o caso, por
337

exemplo, dos países escandinavos (BARBIER, 2005). No Brasil, a constituição imperial de 1824
lançou as bases para as garantia e o direito à liberdade religiosa a outras denominações além
do catolicismo. Apesar da união entre Estado e a Igreja, existia um sentido mínimo de
liberdade religiosa (MARIANO, 2001).
Tanto a laicização como a secularização são processos que não podem ser
generalizados e nem universalizados, mas, contextualizados na sua perspectiva e amplitude
histórica, cultural, religiosa e social. São fenômenos que não ocorrem de forma idêntica em
diferentes países. Há sempre um conjunto de características e circunstâncias que possibilitam
formas variadas de consolidação. Uma das preocupações neste sentido é descortinada por
John Rawls (2001), para quem o grande desafio é que:

Doutrinas abrangentes razoáveis, religiosas ou não-religiosas, podem ser


introduzidas na discussão política pública, contanto que sejam apresentadas, no
devido tempo, razões políticas adequadas e não razões dadas unicamente por
doutrinas abrangentes para sustentar seja o que for que se diga que as doutrinas
abrangentes introduzidas apoiam. Refiro-me a essa injunção de apresentar razões
políticas adequadas como proviso, e ela especifica a cultura política pública em
contraste com a cultura política de fundo (p. 200-201).

A laicidade, mais do que garantir direitos aos cidadãos e cidadãs, obriga o Estado a
protegê-los. Para tanto, são princípios inalienáveis a todo indivíduo, ter crença religiosa ou
não; praticar uma religião, caso a tenha; trocar de religião; não ser perseguido nem ofendido
por práticas religiosas; decidir acerca da educação religiosa, ou não, na família; o respeito às
convicções religiosas pessoais e a não discriminação por outros indivíduos, organizações ou
mesmo pelo serviço público em função de sua(s) crença(s).

3 O CONCEITO DE LAICISMO

O laicismo compreende que a religião é um sentimento que deveria se manifestar


única e exclusivamente na esfera privada de cada indivíduo. Reforça a separação entre o
espaço público e o espaço privado, de forma que as duas esferas não tenham uma ligação ou
comunicação. Propõe que a dimensão pública permaneça neutra ou intocada por qualquer
denominação religiosa, constituindo-se como um lugar de respeito e exaltação a um
simbolismo civil, republicano, não confessional.
338

Para compreender o laicismo de forma mais profunda é importante observar que ele
não busca uma não confessionalidade passiva do Estado, mas uma não confessionalidade
ativa definida no compromisso de criar e sustentar um espaço cívico e político delimitado pela
ética e o simbolismo civil, afastando desta maneira toda e qualquer ação politica derivada de
intenções ou influências de cunho religioso (OTAOLA, 1999, p. 11).
O laicismo adota uma postura na qual desconsidera a importância da dimensão
religiosa na sociedade. Compreende a religião como algo capaz de alienar e que, portanto,
necessariamente, não deveria fazer parte do cotidiano da esfera pública, já que o Estado por
ser laico não poderia (ou deveria) permitir que assuntos de ordem religiosa viessem demarcar
discussões públicas. Trata-se de um radicalismo civil, hostil e de perseguição à religião, sob o
argumento de uma pretensa garantia de preservação da liberdade, da imparcialidade e do
estabelecimento de uma ordem jurídica exclusivamente neutra e alheia às interferências de
qualquer fundamento religioso (ALVAREZ, 2010, p. 55).
Pa aà ‘afaelà Cifue tesà ,à p. à e iste,à po ta to,à e t eà Ig ejaà eà йstado,à e t eà
religião e política, uma separação lícita e necessária, a laicidade, e uma separação
i dife e tistaàeài suste t el:àoàlai is o .àйleàe te deà ueàaàlai idadeà àu aà p e ogati aà
consubstancial à ordem autonômica do Estado e o laicismo supõe a ruptura arbitrária e
artificial do elo essencial que une toda a atividade com a ordem teonô i a à p. .
É importante destacar as questões pontuadas por Carl Schmitt que concebe uma
neutralidade do Estado no século XIX como não intervenção, desinteresse e tolerância passiva.
A neutralidade do Estado frente às religiões seria um dos aspectos determinantes nos ideais
propostos pelo liberalismo que almejava uma absoluta liberdade para as religiões, inclusive,
para os ideais contrários à religião e o tratamento isonômico para todos.

Em última conseqüência este princípio tem de conduzir a uma neutralidade geral


frente a todas as concepções e a todos os problemas e a um tratamento
absolutamente igual, quando então, por exemplo, o que pensa em termos religiosos
não pode ser mais defendido do que o ateísta [...]. Daí se segue, além disso, liberdade
absoluta para toda espécie de propaganda, tanto da religiosa quanto da anti-
eligiosaà[...].àйstaàesp ieàdeà йstadoà eut o à àoàstatoà eut aleàeàag sti oà ueà oà
faz mais distinções e é relativista, o Estado sem conteúdo ou mesmo um Estado
reduzido a um Minimum de conteúdo (1992, p. 124).

A concepção liberal se articulava em torno de três eixos: a) a premissa de que as


convicções e práticas religiosas se referem à esfera privada; b) a neutralidade do Estado em
matéria religiosa; c) separação entre Igreja e Estado (BURITY, 2001). A religião teria, segundo
339

a visão liberal, uma função subordinada, sendo a esfera política autônoma e independente.
As demais esferas da vida social, como o ensino e as políticas de inclusão e cidadania, por
exemplo, também deveriam ser autônomas e não subordinadas aos valores religiosos.
A educação e o ensino deveriam estar a serviço dos valores cívicos e seculares, pois as
referências religiosas, em última análise, são concernentes ao foro íntimo de qualquer
indivíduo. A dissociação e a autonomia das diversas esferas da vida social: política, educação,
arte, ciência, direito é um dos elementos fundamentais do ideário liberal. Cabe destacar que,
e à algu sà países,à esteà idealà a a ouà seà t a sfo a doà asà e essidadesà deà ep oduç oà doà
cont atoà so ialà eà deà justifi aç oà doà papelà hist i oà daà Naç oà sa aliza doà oà p ofa o à
(CATROGA, 2006, p. 143). Concretamente, a laicidade não se expressa, portanto, a partir de
uma neutralidade, pois, na sua essência, revela uma visão de mundo, um conjunto de crenças
e valores.
Esta relação entre o poder político e os grupos religiosos sempre foi marcada pelos
o flitosà aà edidaàe à ueà e isteà oài te io àdeà uaseàtodasàasà eligi esàu aàte d iaàaà
e usa àaàlai idade à DйэáCáMPáGNй,à ,àp. .àPo àout oàlado, em muitos casos os grupos
laicistas se mostraram anticlericais e carregados de preconceitos ao fazerem uma defesa, por
vezes intransigente, da exclusão da esfera da religião da vida social e cotidiana. Algo que
acabou suscitando, inclusive, perseguições violentas contra instituições, pessoas e símbolos
religiosos.

O laicismo é uma expressão do anticlericalismo decimonômico, que propõe a


hostilidade ou a indiferença perante o fenômeno religioso coletivo que pode acabar
radicalizando a laicidade, sobrepondo-a aos direitos fundamentais básicos como a
liberdade religiosa e suas diversas formas de expressão. Poderia se dizer que consiste
em uma grande forma de sacralização da laicidade que, por isso, caba por negá-la
(HUACO, 2008, p. 47).

Brechón (1995), Peiser (1995) e Willame (2003), estabelecem uma distinção entre a
laicidade de combate, mais agressiva, que busca uma posição contrária a esta influência da
religião e dos sacerdotes e uma laicidade de coabitação ou laicidade de tolerância e flexível
que pe iteàu à aio àespaçoàpa aàoà eligiosoà aàesfe aàpú li a.àNaà lai idadeàdeà o ate àaà
religião é excluída do universo escolar.

Exterminar a religião, fazer desaparecer da vida social e erradicá-la das consciências


individuais. Daí a importância da laicização da escola. Esta laicidade de combate
340

substitui a religião divina por uma religião secular, como os seus grupos de
pensamento e seus rituais. Certas crenças são enaltecidas: a razão, o progresso, o
bem da humanidade, a livre discussão. (BRECHÓN, 1995, p. 5).

Há que se enfatizar ainda que laicidade e a secularização são termos que não se
referem a idênticos processos históricos e sociais. De acordo com o jurista português
Fernando Catroga (2006), observam-se em diversos países europeus, sociedades altamente
secularizadas como a Inglaterra e a Dinamarca, onde as práticas e os comportamentos
religiosos declinam, mas, entretanto, sem que se trate de Estados laicos. Há também países
nos quais há uma quase laicidade. Exemplos são a Alemanha, a Bélgica e a Holanda. Trata-se
de Estados não confessionais, mas que apoiam e subsidiam as religiões.
Em países como Portugal, Espanha e Itália, configura-se um Estado laico juridicamente,
mas, capaz de celebrar tratados que acabam privilegiando grupos religiosos majoritários.
Trata-se de nações altamente religiosas, não secularizadas, e, sob o enfoque jurídico, laicas.
Os processos de laicização e secularização, de emancipação das diversas esferas da vida social
da religião, apresentam-se de forma diferenciada nos países católicos e nos países
protestantes. Nos países católicos a emancipação é marcada pelo conflito entre grupos
clericais, religiosos e grupos laicistas, anticlericais (MACLURE; TAYLOR, 2011).
Segundo Françoise Champion (1999, p. 8), a lógica que prevaleceu nos países católicos,
àu aàlai izaç oà aà ualà oàpode àpolíti oàfoià o ilizadoàpa aàsu t ai ,à o pleta e teàouà
pa ial e te,àasàpessoasàeàasàdife e tesàesfe asàdaàati idadeàso ialàdaài flu iaàdaàIg eja .à
Desta forma a religião foi relegada à esfera privada. Nos países protestantes, por sua vez, não
se configurou a oposição entre dois campos, religioso e laicista, mas a emancipação da religião
ocorreu segundo uma lógica de secularização, de forma menos conflituosa do que a
perspectiva laicizante. As igrejas protestantes, em suas diversas ramificações, se tornaram
subordinadas ao Estado. Nos países protestantes, a igreja não amplia a sua concorrência com
o Estado, tal como em países de maioria católica, mas reforça a prerrogativa de uma
instituição ligada ao Estado, assumindo responsabilidades particulares.
No caso brasileiro há uma semelhança com o que ocorreu em países da Europa que
tiveram uma grande influência católica no tocante às relações entre Estado e Igreja,
configurando-seà o oàu aà uaseàlai idade à CáTROGA, 2006). É importante sublinhar que
ao longo da história brasileira, mesmo com a separação formal entre o poder político e a
o ga izaç oà eligiosaà ajo it ia,à se p eà hou eà í ulos,à o p o issos,à o tatos,à
341

cumplicidades entre autoridades e aparatos estataisàeà ep ese ta tesàeài stituiç esà at li as à


(GIUMBELLI, 2000, p.155).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível afirmar que secularização e a laicidade são conceitos e processos sociais


distintos. A secularização se refere ao declínio da religião na sociedade moderna e a perda de
sua influência e de seu papel central e integrador. O processo de secularização relaciona-se
com o enfraquecimento dos comportamentos e práticas religiosas. A laicidade é, sobretudo,
um fenômeno político, vinculando-se com a separação entre o poder político e o poder
religioso.
As controvérsias suscitadas chamam a atenção para o papel do Estado e para o
ativismo político de grupos religiosos na configuração de demandas politicas, na regulação da
ocupação religiosa de espaços públicos, na aquisição e concessão de benefícios. Também,
lança luz à existência de múltiplos sentidos da laicidade quando se permite aos diversos
agentes demarcar, subjugar e manipular a laicidade, através de muitas fronteiras. Um dos
grandes desafios, neste sentido, é a afirmação da neutralidade do Estado frente aos grupos
religiosos ou a exclusão da religião da esfera pública.
Há que se distinguir laicidade de laicismo. O laicismo é uma forma por vezes, agressiva
e até combativa de laicidade que procura eliminar a religião da vida social. O laicismo se
mostrou na história política de diversos países fortemente anticlerical e até anti-religioso.
Pode haver países secularizados, como a Inglaterra e a Suécia, mas que não são de forma
alguma Estados laicos. Por sua vez é possível a existência de Estados laicos, em sociedades
pouco secularizadas como no caso dos Estados Unidos.
Cabe enfatizar ainda que secularização e laicização são fenômenos sociais que surgem
com a modernidade. A modernidade como um projeto civilizacional que se caracteriza pela
emancipação e autonomização das diversas esferas da vida social do controle da religião.
Tanto a secularização como a laicidade expressam as lutas de atores sociais na construção de
uma ordem social baseada na razão e na ciência, não legitimada por um poder religioso.
342

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344

WILSON, Bryan. La religión en la sociedad. Madrid: Editora Labor, 1969.


345

VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS PELAS EMPRESAS TRANSNACIONAIS E OS


MECANISMOS JURÍDICO-NORMATIVO

Fernanda Barboza Bonfada1


Mateus de Oliveira Fornasier2

RESUMO: O presente trabalho traz à academia dados e situações capazes de uma reflexao
sobre como atores internacionais privados (empresas transnacionais) em uma sociedade
mundial globalizada se desenvoveram de forma tão agressiva, que violam diretos humanos
visando apenas os seus interesses econômicos. Não havendo neste momento uma
normatividade capaz de impor sanções às corporações quando estas violam direitos
fundamentais, pelo contrário, a situação se torna alarmante ao perceber que são as próprias
empresas que desenvolvem e aplicam s normas as quais estão vinculadas.

Palavras-chave: Violação; Direitos Humanos; Empresas Transnacionais; Códigos de Conduta.

1 INTRODUÇÃO
Estamos na era da globalização, na qual não há limites territoriais para as
comunicações, capital, ciência, tecnologia, as quais tem o poder de conectar o mundo em
tempo real, às fronteiras territoriais estão enfraquecendo diante desta nova conjuntura social,
podendo-se afirmar que vivemos em uma sociedade mundial.
Em uma sociedade mundial globalizada, a qual é guiada pelos interesses econômicos,
atores privados, como é o caso das Empresas Transnacionais (ETNs) tem um campo fértil para
o seu desenvolvimento e expansão. Desenvolvimento este, que devido às estruturas jurídicas
e políticas dos Estados- nação e do direito internacional não se consegue ter um controle
efetivo destes atores, gerando consequências graves aos direitos humanos.
A pesquisa se direciona a analisar situações fáticas de transgressões aos direitos
humanos pelas Empresas Transnacionais, sob um plano normativo extra-estatal (mais
especificadamente os códigos de conduta/ códigos corporativos desenvolvidos pelas
empresas transnacionais).
Na atual conjuntura social, pode-se alegar que o Estado-nação é capaz de impor
mecanismo de controle normativo às empresas transnacionais para que se busque uma
efetividade ao respeito aos direitos humanos? Por muito tempo os direitos humanos foram

1
Acadêmica do Curso de Direito da UNIJUÍ/RS. Bolsista PIBIC/UNIJUÍ/RS. E-mail: fer.bonfada@gmail.com
2
Doutor em Direito (Unisinos/RS). Professor do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos (Mestrado)
da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ/RS. Advogado.
346

arquitetados por organizações internacionais com intuito de buscar uma uniformidade global
em respeito a direitos fundamentais inerentes aos indivíduos, contra práticas dos Estado-
nação, mas atualmente este ator não é o único responsável por transgressões, devido a busca
incessante por lucro das corporações, estas sobrepõem seus interesses acima do respeito aos
direitos humanos. As ETNs desenvolvem normas jurídicas-códigos de conduta, os quais são
normas desenvolvidas por elas e para elas, sendo estes apenas uma cortina de fumaça, não
havendo uma efetividade contra as violações dos direitos humanos.
Será analisado previamente o que são os direitos humanos e casos fáticos e reais de
transgressões a estes pelas empresas transnacionais em um cenário global, e a sobreposição
de interesses de vários sistemas da sociedade. Por conseguinte, será visto como se desenvolve
a estrutura jurídica-normativa desenvolvida e aplicada pelas ETNs, e a sua relação com as leis
do Estado-nação e de Direito Internacional.
Para o desenvolvimento deste trabalho utilizou- se o método de abordagem
hipotético-dedutivo, com uma pesquisa exploratória de bibliografias e autores relacionados
ao tema proposto e que tivessem propriedade sobre o tema. Assim, a partir das bibliografias
encontradas, foi possível a descrição de casos reais de transgressões cometidas pelas
empresas transnacionais e como estas organizam a sua estrutura jurídica-normativa.

2 VIOLAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS PELAS EMPRESAS TRANSNACIONAIS

Para melhor situação das violações dos direitos humanos, será intentado uma breve
explicação sobre tal. Podemos dizer que Direitos Humanos é uma nomenclatura para os
direitos fundamentais inerentes ao ser humano. Tudo que esta nomenclatura representa,
começou a ter respaldo jurídico a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos aderida
pela Assemblei-Geral da ONU em 1948. Esta declaração não visa a criação de novos direitos,
mas o reconhecimentos dos direitos fundamentais já existentes. Para John Gerard Ruggie
,àp. ,à [...]àosàsiste asàdeàdi eitosàhu a osàdaàONUàeàoà egio al,àaliadoà sà o e ç esà
da OIT e do Tribunal Penal Internacional – formam o que normalmente é chamado de
e oluç oàdosàdi eitosàhu a os àdoàs uloà .
O sistema não é uma norma nuclear para todos os Estados- Nações, devido ao fato de
que são tratados voluntários, os países os ratificam conforme suas vontades e interesses; e
347

hoje ainda não há um mecanismo internacional de real efetividade para solução deste conflito
de padronização. (RUGGIE, 2014) Como resultado, veremos a seguir as violações das empresas
transnacionais.
Gunther Teubner (2016a) relata o caso do Endronax, uma droga antidepressiva,
fabricada pela Pfizer, que continha em sua fórmula o Reboxtine, licenciado na Alemanha e na
União Europeia, embora falhada a tentativa de licenciamento da droga nos Estados Unidos. O
British Medical Journal, em 2010, revelou que nem todos os testes sobre esta droga haviam
sidos publicados, pelo contrário, foram publicados devidamente somente os testes positivos.
Os quais não mencionavam que em comparação aos placebos o medicamento era ineficaz e
possuía efeitos colaterais.
Outro caso é da BASF e Dong, a Boots Pharmaceuticals (agora a Knoll Pharmaceutical
Company), uma subsidiária da BASF, encomendou uma pesquisa do cientista Betty Dong da
Universidade da Califórnia em San Francisco para investigar a eficácia do Synthroid, um
medicamento frequentemente utilizado nos EUA para o tratamento de tireóide. Porém, no
contrato havia cláusulas de que o contratado não poderia publicar resultados negativos do
estudo, sem o consentimento da contratante. Foi verificado que o medicamento não continha
eficácias vantajosas frente a outros medicamentos genéricos com a mesma finalidade. O caso
veio a público pelo Wall Street Journal, em 1996, e a BASF teve que enfrentar ações coletivas
de aproximadamente cinco milhões de reclamantes por supressão inadmissível do estudo,
práticas de concorrência desleal e violação dos regulamentos de proteção ao consumidor. A
BASF chegou a um acordo final.
Percebe-se que não são fatos isolados, há um histórico significativo a serem
considerados, sobre as violações das indústrias farmacêuticas. As informações farmacêuticas
que chegam ao consumidor final são seletas, há uma ausência de informações quanto as
consequências e malefícios das drogas comercializadas. Teubner (2016a) nos traz que, estas
manipulações ocorrem de diversas formas, sendo as mais corriqueiras através de cláusulas de
censura em contratos de pesquisa, o uso de escritores-fantasmas, a pressão em investidores
para impedir a realização de estudos, ou até mesmo a demissão de pesquisadores. Há um
conflito sobre o viés de publicação, quando dados são publicados de forma suprimida ou
manipulados. Estudos empíricos apontam que o viés de publicação é um problema mundial,
em decorrência dos conflitos de interesses entre as industrias farmacêuticas, sistema de
348

saúde, editoras, investidores e órgãos políticos de regulação. As consequências aqui não são
sobre o capital e livre concorrência, mas principalmente de saúde e de vidas, que não são
mensuráveis em dinheiro.
Há um choque entre vários grupos distintos, entre os grupos farmacêuticos
transnacionais - no sucesso da venda de seus produtos; os interesses da comunidade de
pesquisas – para que não haja barreiras na publicação de seus resultados; e o interesse dos
consumidores/pacientes- na proteção efetiva da saúde. O viés da publicação não pode ser
tratado apenas como corrupção, a ser controlada por órgãos dos governos estatais. Com base
nas atividades mundiais das grandes empresas farmacêuticas e pesquisas acadêmicas, há um
conflito transnacional e ao mesmo tempo estrutural na sociedade, o qual só poderá ser
tratados em fatos isolados, sem uma efetividade no tratamento do problema, visto que é um
conflito entre diferentes sistemas sociais.
As violações aos direitos humanos não são apenas da indústria farmacêutica, mas de
empresas transnacionais atuantes em todos os setores. Outro caso que nos permite
vislumbrar como um ato ou omissão acarreta consequências gravosas a vida de toda uma
comunidade, como é o caso do desastre ambiental da Shell no Delta do Rio Níger na Nigéria.
A Shell é uma das empresas com maior representatividade de exploração de petróleo
cru na Nigéria, enquanto ela ganha milhões sobre os barris de petróleo seus trabalhadores da
região local recebem míseros salários, dos quais mal subsidia a alimentação. Ainda, ela é
responsável pelo vazamento contínuo de petróleo sobre os rios da região local, o
derramamento de óleo por ano é equivalente ao desastre da Exxon Valdez no Alasca. A
população que vive em torno do Delta do Níger teve sua expectativa de vida diminuída para
40 anos, não há mais água potável para consumo, não há mais peixes nos rios, sendo que a
pesca era uma das formas de sobrevivência de parte da população deste local. Estudos
mostram que a recuperação do local demoraria cerca de 30 anos e custaria milhões. Porém a
Shell empurra sua culpa para outros atores, alegando sabotagens.
No caso em tela, está claro que os interesses econômicos subtraíram todas as formas
de dignidade desta população, desde a questão salarial, mas principalmente a questões
ambientais que afetam a todo o globo terrestre, diminuindo o acesso da população a água
potável que é fonte da vida, como outras questões de sobrevivência.
349

O que alarma ainda mais a situação, é que tal catástrofe não é noticiada em massa
como aconteceu no caso da Exxon no Alasca, ou o derramamento de óleo no Golfo do México.
Mas qual o motivo? Será que é por se tratar de um país pobre? Que é visto apenas para
subtração de bens naturais e tem uma população que tem dificuldades de reinvindicações
sociais?
O caso se torna ainda mais alarmante e preocupante, quando não há esfera estatal
capaz de buscar reparação por parte da Shell, visto que o governo passa pelas mãos dos
ditadores militares, os quais realizam leis e contratos com as empresas petrolíferas as dando
poderes absolutos para a extração do petróleo.
Conforme Teubner (2016b) houve uma série de escândalos envolvendo as empresas
transnacionais quanto a violação de direitos humanos. Podemos os relacionais com as
decisões tomadas pela Organização Mundial do Comércio (OMC), decisões essas que
ameaçam o meio ambiente e a saúde das pessoas em nome do livre comércio, informações
que podem prejudicar a esfera privada e riscos nos mercados financeiros.
Taisàa o te i e tosà [...]àaumentaram drasticamente a consciência pública sobre os
efeitosà egati osà de o e tesà daà t a s a io alizaç oà deà e p ee di e tosà o e iais.
(TEUBNER, 2012, p.109) Levando ao movimento de grupos da sociedade civil pela busca de
uma adequação das condutas das ETNs.

3 CÓDIGO DE CONDUTAS DAS EMPRESAS TRANSNACIONAIS

As ETNs são vistas aqui como corporações pertencentes aos seus acionistas que
tiveram uma oportunidade de expandir seus interesses a partir de um processo de
globalização da sociedade, e nesta senda

Elas conseguiram tecer núcleos de atividade econômica transnacionais, sujeitos a


uma única visão global estratégica, operando em tempo real, conectadas e ao
mesmo tempo ultrapassando economias mera e teà a io ais àeàsuasàt a saç esà
internacionais. Logo, metade do comercio mundial era composto por transações
i te as à de t oà deà edesà deà e tidadesà o po ati asà ela io adas,à eà oà pelosà
t adi io aisà eg iosà e te os àeài pa iaisà ealizadosàe t eàpaíses. (RUGGIE, 2014,
p. 17)
350

Elas estão sujeitas às ordens jurídicas dos Estados onde mantém sua sede e de onde
exercem suas atividades (FERREIRA; FORNASIER, 2015), porém os Estados não possuem
mecanismos regulatórios ou fiscalização suficientemente capazes de restringir ações das
ETNs, ainda mais quando se trata de países emergentes. Neste sentido

Um novo tipo de diferenciação interna do direito é perceptível. Durante séculos sua


diferenciação interna seguiu a lógica política dos Estados-nação e se manifestou na
multiplicidade das ordens jurídicas nacionais, cada uma com sua própria jurisdição
territorial. Mesmo o direito internacional público, que se considerava o direito
contratual dos Estados-nação, não rompeu com essa forma de diferenciação interna
da lei. A ruptura final com tais concepções foi apenas assinalada no século passado
com a rápida aceleração da expansão das organizações internacionais e iniciativas
politicamente iniciadas regimes reguladores, que, em forte contraste com sua
gênese dentro dos tratados internacionais, se estabeleceram como ordens jurídicas
autônomas. O sistema interno a diferenciação do direito ao longo das fronteiras
nacionais é agora superada pela fragmentação setorial. (TEUBNER, 2012b, p. 6)

Os códigos corporativos ou códigos de conduta das empresas transnacionais são


ordenamentos jurídicos- o ati oà oà estatais,à dese ol idoà deà fo aà espo t ea à aà
partir de uma pressão social) para preencher lacunas deixadas pelas legislações dos Estados-
nação e Direito Internacional. São normas criadas pelas ETNs e para as ETNs e sua rede de
comunicações. Os códigos podem ser vistos como manuais de referências de condições de
trabalho, qualidade dos produtos, políticas de meio ambiente, direitos humanos e proteção
ao consumidor (TEUBNER, 2011). Dependendo da política adotada pela empresa, os códigos
de condutas podem ser apenas recomendações, ou podem ser impositivos, os quais
descumpridos geram sanções. Eles adquirem duas funções: estabilizam normas
constitucionais e limitam regras que poderiam ser tendenciosas.
Neste contexto há duas formas diferentes de códigos: o primeiro desenvolvido pelas
instituições globais estatais (ONU, OCDE, UE, OIT), são códigos públicos de comportamento
para as empresas, são vistos como soft law (lei branda) pois funcionam com meras
recomendações, não tendo força de lei que produza sanções – embora seja algo controverso.
O segundo e mais difundido, são códigos privados, desenvolvidos pelas próprias
corporações, os quais formulam declarações auto-vinculativas que prometem ao público sua
implementação e eficácia. Possuem caráter de hard law (lei pesada/ lei dura), leis precisas e
vinculativas. (TEUBNER, 2016c)
351

Ocorre uma constitucionalização da economia pelos setores privados transnacionais,


os atores coletivos corporativos que irão decidir se tais códigos serão produzidos, qual o seu
conteúdo e a forma de sua legal de aplicação. Com essa transferência constitucional do
público para o privado, as ETNs se tornam autoridades, por meio de declaração unilateral de
auto-obrigações. (TEUBNER, 2016C)
Para falar de uma constitucionalização dos códigos corporativos é necessário que se
observe algumas questões. os códigos são regras secundárias, que dependem de identificação
e interpretação, que serão delegadas pelas regras primárias. As regras do topo contêm
princípios gerais de conduta, o nível intermediário regula a aplicação e monitoramento e os
níveis inferiores regulam instruções concretas de conduta. O duplo caráter dos códigos de
conduta surge quando se transformam normas secundárias em normas constitucionais. As
constituições sociais são funcionais equivalentes às constituições dos Estados, e os códigos
corporativos equivalem a aplicação de características constitucionais. (TEUBNER, 2012a)
Com tamanha autoridade, poder econômico e de mercado das ETNs, muitas vezes
exigem que para o estabelecimento de contratos tanto com fornecedores, prestadores ou
outras empresas que fazem parte da sua rede de comunicação, estas também a adesão ao
seu código de conduta. E caso não haja o cumprimento de determinadas normas, no próprio
instrumento contratual há clausulas que prevêm sanções, e a forma como as demandas serão
julgadas, geralmente por corte arbitral especializada e previamente definida, podendo
acarretar no rompimento do contrato.
Mesmo havendo os códigos de conduta e estes serem regras que transcendem
fronteiras territoriais e são disseminados nas redes de comunicação das corporações, poderá
se chegar num ponto de conflito, e que até o momento não há uma regra específica para a
solução deste. Visto que cada setor transnacional irá desenvolver suas próprias regras,
conforme suas necessidade e interesses.
Ao que parece o melhor seria a criação de uma constituição mundial, que seria algo
mais próximo do nosso ordenamento estatal e que possui uma certa concretização de seus
objetivos. Porém, esta é uma ideia totalmente errônea, sem fundamentos e incapaz de
suprimir a necessidades jurídicas criadas a partir de uma fragmentação do direito em nível
global. Na sociedade mundial não há um órgão ou jurisdição acima dos Estados-nação (que se
valem do princípio da soberania e territorialidade), e de atores internacionais privados,
352

podemos até ousar falar uma horizontalidade de autonomias. Ainda, ao que parece uma
constituição mundial não seria capaz de estabilizar conflitos entre normas, visto que olhará
sob um único viés a todos os casos de uma sociedade complexa.
O ideal é utópico, no qual todos os conflitos devessem ser dirimidos a partir de uma
preponderância dos direitos humanos, ou seja, quando houvesse um conflito entre normas, a
regra a ser utilizada é aquela mais benéfica aos direitos fundamentais, quando estes tivessem
sido envolvidos. No entanto, encontramos estes conflitos nos tribunais quando estão
buscando a tutela de seus interesses exclusivamente econômico.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por muito tempo buscou-se a concretização dos direitos humanos frente apenas aos
Estados-nação, esquecendo-se por vezes de outros atores sociais que por meio de uma
complexificação social e pelo fenômeno da globalização tiveram a oportunidade de
crescimento: as empresas transnacionais.
As empresas transnacionais foram uma criação da própria sociedade para suprir
atividades que não estariam sendo desenvolvidas pelos Estados, Porém, ela foi tomando
forma e poder que o próprio Estado não possui mais o seu controle. Ela foi estruturada para
atender as necessidades de seus acionistas, que nada mais é o do que o lucro, o capital.
Diante dos casos apresentados, percebe-se que as corporações não mediram as
consequências e seus atos para conquistarem seu objetivo, e aqui não há de se falar em
objetivo final, de que um lucro alcançado em determinado mês será o ponto final, pelo
contrário, é um objetivo incessante, que nunca termina, e que consome cada vez mais da
sociedade e dos recursos naturais. Não levando em consideração os meios para alcançar.
Diante de lacunas normativas entre o Estado-nação e Direito Internacional,
desenvolveu-se com autonomia os códigos de condutas empresarias, a partir de uma pressão
social, quando estas restaram escandalizadas pela onda de violações aos direitos humanos
pelas corporações.
Enquanto as normas do Estado possui apenas recomendações às ETNs, os códigos
corporativos foram desenvolvidos com normas duras, porém o ponto que precisa ser
observado é que estas normas são desenvolvidas pelas próprias empresas (levando em
353

consideração seus interesses econômicos) e também são aplicados por ela. E outro ponto, é
que não há um mecanismo eficiente desenvolvido para fazer cumprir suas regras. Muitas
vezes quem faz o papel de fiscalização são as ONGs, os grupos da sociedade civil, que por sua
vez não possuem recursos suficientes para tal.
Não há uma resposta fácil para buscar a concretização dos direitos humanos pelas
empresas transnacionais, enquanto a sociedade mundial for movida apenas pelo interesse
econômico. Também não será por meio de uma constituição mundial que os problemas serão
solucionados – até porque não há de se considerar que haveria um consenso mundial quando
levando em consideração interesses econômicos e culturais. O mais próximo, mas ainda não
o ideal seria o caminho de uma normatividade global e setorial, que analisasse cada sistema
social.
Contextualizar os direitos constitucionais não deve limitar-se a adaptar esses direitos às
particularidades do direito privado. Deve ir além disso e levar em conta as normatividades
particulares das instituições sociais autônomas que estão em risco. Em vez de impor deveres
para proteger exclusivamente os atores estatais, deve-se abordar os atores privados que
violam os direitos constitucionais e, ao mesmo tempo, ativar a sociedade para que se una e
lute contra as empresas violadoras, pois uma comunidade é capaz de determinar o futuro de
uma corporação em determinado local.
Direitos humanos devem ser vistos de forma horizontal, em que todos os atores sociais
devem respeitar e prezar, deve ser a diretriz de todas as relações jurídicas. Porém, ainda não
há mecanismo eficientes e capazes de seguir esta linha. Há uma longa luta pela concretização
dos direitos humanos por todos os atores sociais, principalmente quando estão em jogo os
interesses econômicos. Enquanto as corporações visarem apenas o lucro sem a pretensão de
serem aceitos socialmente como cidadãos-corporativos da sociedade e tomar ciência da sua
responsabilidade como tais, os códigos de condutas serão apenas cortinas de fumaça, que
estarão apenas para servir os interesses das corporações, sem um respeito aos direitos
humanos.
354

REFERÊNCIAS

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transnacionais entre as ordens jurídicas estatais e não-estatais. Revista de Direito
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Philippe Robé (Org.) Constitutionalisation of the World Power System. Ashgate, Farnham,
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SCHWARTZ, Germano (Org.). Juridicização das esferas fragmentadas do direito na sociedade
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TEUBNER, Gunther; KORTH, Peter. Two Kinds of Legal Pluralism: Collision of Laws in the
Double Fragmentation of World Society In: YOUNG, Margaret (Org.). Regime Interaction in
International Law: Theoretical and Practical Challenges. Cambridge: Cambridge University
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355

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: UMA LEITURA A PARTIR DE IMMANUEL KANT

Jaime Lisandro Martini1

RESUMO: Atualmente o conceito social, com fundamentos na moral e nos bons costumes,
vem aos poucos perdendo seus valores humanos, com o passar do tempo. A teoria fundante
de um conceito moral e ético, criado por Immanuel Kant, a partir de um pensamento
relacionado a dignidade humana. Os imperativos, impotéticos e categóricos, por definição de
vontade, pura ou não determinam as ações do ser humano, sendo estas a direção de sua
conduta, que reflete, efetivamente, no meio social.

Palavras-chave: IMPERATIVO CATEGÓRICO; IMPERATIVO IPOTÉTICO; MORAL; VONTADE.

INTRODUÇÃO
A busca incessante pela melhor qualidade de vida, pela felicidade e, modernamente
pelo direito de ser e estar em um momento de liberdade constante, vem conduzindo o ser
humano, desde os primórdios, a uma atividade cognitiva que o leve a tal conhecimento. A
filosofia, como forma de pensar o conhecimento a partir da sua ignorância, traz consigo a
necessidade de atividade intelectual, sendo somente propiciada ao ser humano, devido a ser
racional, fato que o torna soberano em relação a suas vontades, vontade esta, a partir do
contrato social, intrínseca a moral que acompanha a constância da evolução social.

1 DIGNIDADE HUMANA EM KANT

Para Immanuel Kant, todo ser humano é dotado de razão, sob tal aspecto isto lhe
pe iteàu aà efle o,àe àыa tà ...aà az oà osàfoiàdadaà o oàfa uldadeàp ti a,àistoà ,à o oà
fa uldadeà ueàde eàe e e ài flu iaàso eàaà o tade... à ыáNT,à ,àpg.à ,àassim nosso
querer é diretamente ligado a nossa forma de pensar para que possamos decidir sobre a
vontade, e sob seus atos, assim as pessoas decidem, e, sobre seu querer, podem protagonizar.
Ademais as ações humanas passam pelo crivo das vontades, sendo a formação destas, em
conformidade com o desenvolvimento moral atinente ao indivíduo.

[...] seu verdadeiro destino deverá ser produzir uma vontade, não só boa quiçá como
meio para outra intenção, mas uma vontade boa em si mesma, para o que a razão
era absolutamente necessária, uma vez que a natureza de resto agiu em tudo com
acerto na repartição das suas faculdades e talentos. Esta vontade não será na
verdade o único bem nem o bem total, mas terá de ser contudo o bem supremo e a
condição de tudo o mais, [...]KANT (2007, p. 25-26):
356

Na Grécia antiga, Sócrates (KANT, 2007, P.36) dizia que todo homem era naturalmente
dotado de virtude, e quem naturalmente não a tivesse, não fosse agraciado com tal dom
natural quando do nascimento, deveria servir aquele que o tinha naturalmente adquirido,
sendo que, para a sociedade, cultura da época, a pessoa sem virtude, não era considerada
o oàpessoa,àeàassi àde e iaàse àape asàu ài st u e toàdeàse id oàpa aàoà se à i tuoso ,à
pois este sim nasceu com finalidade superior.
Em contraponto a este entendimento, Immanuel Kant dizia que, todo ser humano é
dotado de capacidade reflexiva, e, portanto um ser racional, cabendo a cada um, a
possibilidade de buscar este dom chamado virtude. Buscar este atributo positivo, pela razão,
para que assim pudesse ser reconhecido como pessoa, e, buscar uma igualdade, ser visto e
reconhecido, e fazer parte de uma sociedade, era na época necessário para ser reconhecido
como pessoa, ser dotado de capacidade e querer.
O texto Kantiano traz na ideia de dignidade humana um pensamento ligado a boa
vontade, em que a pessoa, ser racional é capaz de refletir e tomar uma atitude, esta ação, em
seu objeto finalístico é que determina a questão moral.

A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para
alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão somente pelo querer, isto é em si
mesma, e, considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais alto do
que todo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer
inclinação [...] (KANT, 2007,p.23)

A boa vontade é uma ação, sem finalidade em si mesma, mas simplesmente pela razão
natural de ser, que a torna pura e simples em seu momento, espontânea, que é simplesmente
o sentido natural desta. Não busca uma finalidade de satisfação, um agir condicionado a
determinado retorno, mas pura e simplesmente o agir pelo agir, pois assim deve ser.

[...] a razão, que reconhece o seu supremo destino prático na fundação duma boa
vontade, ao alcançar esta intenção é capaz duma só satisfação conforme à sua
própria índole, isto é a que pode achar ao atingir um fim que só ela (a razão) //
determina, ainda que isto possa estar ligado a muito dano causado aos fins da
inclinação. (KANT, 2007, p.26)

Para Kant uma ação praticada somente por dever, sem uma finalidade egoísta,
simplesmente por realiza-la, é uma ação de boa vontade, pois nesta não existe uma finalidade
de interesse, apenas a ação, espontânea a sua razão de ser, que como tal deveria ser realizada,
357

conforme sua convicção natural, uma simples ação por dever, uma boa ação, pois esta ação
tendo como finalidade determinada, terá a questão moral viciada, pois seu agir é para atingir
tem um propósito pessoal, egoístico.
A filosofia de Kant divide os imperativos em hipotético e categórico, sendo o primeiro
refere-se a uma necessidade prática da ação, como um meio para alcançar algo desejado, um
objetivo final; e o segundo uma ação necessária por ela mesma não buscando uma finalidade,
um fim como objeto da ação.

[...] todos os imperativos ordenam ou hipotética- ou categoricamente. Os


hipotéticos representam a necessidade prática de uma acção possível como meio de
alcançar qualquer outra coisa que se quer (ou que é possível que se queira). O
imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma acção como
objectivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra
finalidade. (KANT, 2007, p.50)

‘ela io adoàaosài pe ati os,à efleteàVi e teàdeàPauloàBa ettoà ,àp. ,à ueà Oà


imperativo categórico quando representa uma ação como, objetivamente, necessária, sem
elaç oà o à ual ue àfi ;àaàaç oà à ep ese tadoà o oà oaàe àsià es a .àá o pa ha,àassi ,à
o pensamento de Kant uma liberdade, moralmente consciente e justa, quando se age por
dever.
A boa vontade no agir, simplesmente pelo agir, pois assim definido pela sua conduta
moral, deve ser base de convivência para um bom entendimento social, para que possamos
pensar no semelhante, como ser que vive na sociedade e dela deseja um vida de bem comum,
pois o pensamento egoístico retira o princípio social que liga todas as pessoas em um convívio
harmonioso e pacífico, desejado pela sociedade, em busca de uma paz social.
Para Immanuel Kant (2007, p. 46):

[...] todos os conceitos morais têm a sua sede e origem completamente a priori na
razão, e isto tanto na razão humana mais vulgar quando na especulativa em mais
alta medida; [...] que exatamente nesta pureza da sua origem reside a sua dignidade
para nos servirem de princípios práticos supremos; [...] as leis morais devem valer
para todo o ser racional em geral, é do conceito universal de um ser racional em
geral que se deve deduzir.

Ao pensamento de Immanuel Kant, compartilham alguns pensamentos autores, como


Paulo Vicente Barreto, Ingo Wolfgang Sarlet, Costas Douzinas, que, a partir do conceito da
moral Kantiana e da boa vontade chega-se a um liame de sujeição entre liberdade e dever,
poisàle io aàBa eto,à Oàde e à à ueài àpe iti à ueàseàto eà oaàaà o tadeà osàse esàfi itos.à
358

Por sua vez, a boa vontade reide em cumprir o dever pelo respeito ao dever (e não pelo
espeitoàaàlegalidade .à Ba etto,à ,àpg. .àássi àp essup e-se chegar a ações de justiça,
pois sem interferência apenas se busca, a partir de uma ética/moral, cumprir com seu dever,
ações livres de finalidade, age-se somente pelo agir, de forma correta com o dever.
Costas Douzinas (2009, p. 200), por sua vez, refere que

A vontade moderna estará sempre dirigida a um exterior; a ação projeta o Eu


soberano em sua orientação para outros e em sua operação, que outorga valor a
natureza. O poder da vontade é único; não está mais inserido no mundo natural, não
brota das emoções nem da inteligência pura, mas obedece aos desejos e interesses
do sujeito.

Os pensamentos de Kant e Barreto remetem às ações humanas ligadas à razão, logo


antes do agir deve usar de capacidade cognitiva para arrazoar suas consequências, sendo que
o ser humano possui valores, não permitindo assim que se trata outro ser humano como meio
para conseguir determinada finalidade, assim agindo teremos um agir fora de um dever moral,
um pensamento egoísta, assim retirando a liberdade.

1.1 Concepção de dignidade humana

A modernidade marcou o ser humano, em sua concepção e característica humana,


estaà po aàoà u doàfoiàsu jeti ado.àáàpessoaàpassaàaàe isti àpe a teàasàleis,àse doàseuà йU ,à
sujeito de direitos, aparece o sujeito de um lado e o direito de outro, havendo ai, um encontro,
e deste, concebe-se uma ética/moral, subjetivo ser de direitos objetivos.
Co à oà ad e toà doà hu a is oà te osà aà e te io izaç oà doà йU ,à aà p oteç oà aà
característica da humanidade, que o diferencia dos outros seres vivos, humanos e animais,
assim para que haja direitos humanos deve existir o ser humano, sendo este o detentor de
taisà di eitos,à poisà afi aà Douzi asà ,à p. ,à ap sà apa hadoà hist i oà ue,à áà
modernidade é a época de uma subjetividade juridicamente induzida e, nessa medida, a
e essi aà legislaç o,à [...] .à ássi à aà leià a a geà a a te ísti asà hu a asà o à oà di eito,à e à
como as coisas de maneira geral, porém fundamenta-se na liberdade de escolhas dentro da
legalidade de dever, imposto pela lei moral.
A Dignidade Humana, tema atual, dinâmico e de constante evolução, é amplamente
discutida em nível global, com diversos entendimentos, mas sempre voltado aos anseios de
359

não sofrimento da pessoa, em tais níveis que, mesmo em países adeptos a pena de morte, se
pensa em evitar sofrimento daàpessoaàeàassi àp opo io a àu àsa ifí ioà dig o .àÉàu à oà
sofrer, com objetivo de trazer o ser humano ao seu mínimo existencial, o que possui de mais
precioso a sua integridade da característica humana, seu sentir, maneira como é visto por seu
semelhante, garantia a sua integridade física, incluindo até mesmo a disponibilidade de sua
estrutura corporal.
Conforme Dürig (-apud SARLET, 2015, p. 68):

[...]àaàdig idadeàdaàpessoaàhu a aàpode iaàse à o side adaàati gidaàse p eà ueàaà


pessoa concreta (o indivíduo) fosse rebaixada a objeto, a mero instrumento, tratada
como uma coisa, em outras palavras, sempre que a pessoa venha a ser
des a a te izadaàeàdes o side adaà o oàsujeitoàdeàdi eitos.

No Brasil, a Dignidade da Pessoa Humana encontra-se, expresso e imutável, no texto


constitucional, em seu art. 1º inciso III, sendo princípio norteador do ordenamento jurídico
pátrio, seguindo em seu texto vários aspectos de proteção a dignidade da pessoa humana, na
forma de direitos fundamentais, proporcionando uma existência digna, o que em tese, não
seria somente um direito a vida, mas o direito a uma vida com a satisfação de necessidades
básicas, proporcionando assim uma vida boa.
O Estado, a partir do contrato social, é quem detém o poder, ele é quem cuida das
necessidades básicas de toda a população, assim primando por uma distribuição de meios que
garantam a todos esta vida com dignidade.
Para Ingo Wolfgang Sarlet (2015, p. 136):

[...] buscando assegurar uma existência com dignidade, constatação esta que, em
linhas gerais, tem servido para justificar um direito fundamental (mesmo não
expressamente positivado, como já demonstrou a experiência constitucional
estrangeira) a um mínimo existencial, compreendido aqui – de modo a guardar
sintonia com o conceito de dignidade proposto nesta obra – não como um conjunto
de prestações suficientes apenas para assegurar a existência (a garantia da vida)
humana (aqui seria o caso de um mínimo apenas vital), mas sim, bem mais do que
isso, ou seja, uma vida com dignidade, no sentido de uma vida saldável como deflui
do conceito de dignidade adotado nesta obra, ou mesmo daquilo que outros tem
designado de uma vida boa.

A segurança pública, dever do Estado, é exercida pelas polícias, e, conforme expresso


no artigo 144 da Constituição Federal. Possui o objetivo de uma convivência harmoniosa e
pacífica do povo, em uma convivência social em que todos tenham garantido seus direitos,
360

para que assim possam usufruir de uma coexistência, com liberdade a nível que possibilite um
desenvolvimento social coeso com os princípios norteadores do Estado Democrático de
Direito, para um saudável exercício de seus direitos e deveres, para possibilitar relações
interpessoais, independentes de vontades absolutas singulares.
A polícia, braço do Estado, age através de seus agentes, pessoas do convívio social, da
comunidade, que investido do cargo, e, dentro da legalidade, fazem cumprir as leis e
regulamentos, para que a população conviva com a desejada harmonia e um relativo
sentimento de segurança, para assim exercer a plenitude de sua cidadania, exercendo seus
direitos e deveres, os quais são assegurados, inicialmente pela atividade de polícia, pois desta
relação estado/povo, é a polícia, a mais presente para o povo, cidadão, e que deste emana
todo poder do Estado Democrático de Direito, garantido o exercício pleno pelo poder
Judiciário.
Versa Vicente de Paulo Barretto (2001, p. 49-50):

O princípio da autonomia da vontade consiste na sujeição do homem à lei moral, que


o torna livre na medida em que se submete a sua lei própria, no entanto lei Universal
[...] A coercitividade, nesse contexto, seria o instrumento dessas vontades
autônomas a serem exercidas de acordo com a lei por elas criadas.

A pessoa, do policial, investido do poder do estado, perde neste momento sua


condição de ser social, visto que é Estado, mas também é povo, e, neste meio submetido a
regras rígidas, que o desgastam para com seu povo, e sofre o peso do braço Estado.
O povo é constituído de pessoas, cidadãos, que aderiram ao dever de obediência as
leis e regulamentos, com o contrato social, atualmente Estado Democrático de Direito.
Pessoas que abriram mão da liberdade total para que pudessem andar e expressar-se
livremente. Pessoas que conforme explica Kant, são seres racionais, medidos por uma moral
que os guia no convívio social agindo com ética e buscando sempre uma boa vida, com
dignidade, para que possa haver um convívio harmonioso, seguro, tranquilo e feliz.
No entender Barretto (2013, p. 73):

Em cada pessoa reside, portanto, a humanidade, que se constitui no objeto de


respeito a ser exigido de todos os outros homens. A dignidade se encontra no
respeito antes de tudo que cada pessoa tem para consigo mesma, como pessoa em
geral e como homem.
361

O cidadão, investido do Estado, busca o cumprimento do seu papel, como agente de


polícia, amparado e cobrado pelo Estado, na sua atividade, usa dos princípios que o
constituem como cidadão, questões culturais, que formam sua moral, que refletirão em suas
ações, estas praticadas por dever, não em seu simples propósito, mas porque assim deve ser,
e assim age com ética dentro dos limites que a lei impõe para que haja um desempenho
satisfatório de seu trabalho.
Para Immanuel Kant (2007, p. 26):

Os homens conservam a sua vida conforme //ao dever, sem dúvida, mas não por
dever. Em contraposição, quando as contrariedade e o desgosto sem esperança
roubaram totalmente o gosto de viver; quando o infeliz, com fortaleza de alma, mais
enfadado do que desalenta ou abatido, deseja a morte, e conserva contudo a vida
sem a amar, não por inclinação ao medo, mas por dever, então a sua máxima tem
um conteúdo moral.

A ética do policial é o fiel cumprimento das leis e regulamentos, sendo que estes
refletem diretamente em suas ações, e buscam, acompanhados de uma moral social e própria,
assegurar o bem estar do povo. Sendo que a ética do cidadão está no fiel cumprimento das
leis e regulamentos, pois este é o regramento social, e este é o modo de vida, tanto do povo
quanto do agente de segurança pública, pois somente um entendimento plural dos princípios
éticos e morais é que farão a estrutura estatal, leis e regulamentos terem efetividades, pois o
fim é direito e dever, do Estado e do Povo.
As relações interpessoais existentes dentro das corporações policiais, todas com a
missão de proteger o povo e manter a ordem pública, são em regra de subordinação,
acatamento a ordens e seu cumprimento, agindo assim presume-se ética profissional, tal
comportamento se faz necessário para a manutenção da instituição.
O cumprimento destes preceitos, afirmando leis e regulamentos, enseja uma
animosidade entre povo e estado, visto sua atividade coercitiva ligada a função de controle
social, sendo que, esta animosidade, possui como primeiro interventor o policial, este é povo,
mas também é estado. Se faz necessário a flexibilidade do agente, para análise de casos
específicos à sofrerem intervenção, de até mesmo atos incoerentes do Estado, pode terminar
por não prestar o devido auxílio a este cidadão, e, ao próprio policial, pois, o que em muito se
percebe é o povo, objetivando a satisfação de interesses próprios, e acabam por não agir com
a necessária ética.
362

Ressalta Soares (apud SCHNEIDER, 2016, p. 160):

Descentralização; valorização do trabalho na ponta; flexibilidade no processo


decisório nos limites da legalidade, do respeito aos direitos humanos e dos princípios
internacionalmente concertados que regem o uso comedido da força; plasticidade
adaptativa às especificidades locais; capacidade de interlocução, liderança,
mediação e diagnóstico; liberdade para adoção de iniciativas que mobilizem outros
segmentos da corporação e intervenções governamentais intersetoriais.

A atividade de polícia, em interação mais direta com a comunidade, em níveis de


policiamento comunitário, em locais mais específicos, visa aproximar o ser humano policial e
a própria instituição de segurança, com a sociedade. Se faz necessário para isto uma bagagem
de conhecimento moral e profissional, aflorando dentro da própria segurança pública,
concepções afirmadas por Soares. Entretanto o que é determinado não pode ser cumprido de
forma a melhor ou pior entendimento, apenas é cumprido, sendo que a autonomia efetiva
reside no comportamento, analítico e reflexivo de cada situação, fato diretamente ligado ao
conhecimento humano que o agente traz da própria sociedade, de casa, da família e seu
convívio.
Neste ponto comenta, Elmir Jorge Schneider (2016, p. 163):

A importância do constante treinamento da atividade policial reflete diretamente na


i age à p ojetadaà pelaà so iedadeà o à elaç oà à atuaç oà daà polí ia,à [...]à poisà
procedimento não é uma ordem a ser seguida e sim uma conduta a ser introduzida
o oà u à o po ta e toà efle i oà doà poli ial,à e à seuà t a alhoà otidia o à pi ,à
2011, p. 18). De modo que qualquer alteração na forma de atuação do trabalho
policial requer um longo período de adaptação e um constante treinamento.

O policial, no atual sistema democrático, pensando-se em uma evolução cultural, deve


primar pelo bem estar, não só na legalidade de seus atos, mas possuir discricionariedade e vir
de uma conduta social ilibada, trazendo em si uma bagagem moral, ética, e que assim possa
ser um promotor de um bem estar social, pois é o mais perto que o Estado chega da pessoa,
povo, e ali o simples atendimento, tratamento faz a diferença.
Para Costas Douzinas (2009, p. 325):

[...] nas sociedades pós modernas ocidentais, autorrealização e a autossatisfação


tornaram-se uma aspiração do Eu e da república. Em uma sociedade em que cada
desejo é um direito em potencial, é proibido proibir. [...] suas ideias simplistas de
o u h oà o àu aài ef elàal aài te io ,àouàdeàali ia àoà e dadei o àйuà ueàfazà
escamoteado ou revestido de convenção sociais e leis.
363

Em um sistema democrático onde tudo é concebível, e juridicamente possível, espera-


seàpeloà di eito ,àat à es oào deà oàseà islu a,àpoisàaàde o a iaà hegaàaàtalàpo toàdeà
garantir até mesmo o que não pode viabilizar, assim compara-se tal dignidade, a pessoa do
policial e a pessoa personificada. Em um ambiente social em que se pensa que tudo pode, e
ao mesmo tempo nada pode, beira uma insegurança jurídica a tal nível, que o próprio
legislador, talvez, não consiga acompanhar o processamento das leis, e assim aos poucos se
esvai um entendimento linear sofre fatos, contudo a dignidade deve permanecer, pois é
sempre a partir do bem estar do ser humano que novos direitos são criados, pois se fazem
necessários.
A democracia é o governo do povo, exercido por seus representantes, que após eleitos
representam o povo em suas opiniões, ações decidindo assim a direção social a ser tomada,
sempre devendo pensar no bem estar comum a toda sociedade, e, em seu nome o direito a
um mínimo existencial, uma espécie de soberania do ser humano em relação a seus anseios
de proteção, psicológica e física.
Nesse sentido refere-se Paula Becker (2011, p. 06):

Direitos humanos são mais do que apenas uma componente da democracia. Eles são
a pré-condição para o funcionamento de um sistema democrático. O
desenvolvimento e a consolidação de direitos humanos é apenas possível, quando
as pessoas vivem numa democracia, porque só aí elas próprias concebem as suas leis
e conseguem controlar publicamente os três poderes [...].

A busca pela proteção, exercida pelo ser humano desde épocas longínquas, sempre
teve seu pilar de sustentação, para tomada de decisões, o não sofrimento do próprio ser, e
apenso a este sentimento ocorreram as maiores guerras, os maiores massacres de seres
humanos, as maiores barbáries inerentes a inércia de um pensar no semelhante, refletindo
hodiernamente em direitos humanos e fundamentais, na dignidade da pessoa humana, pilar
das sociedades democráticas.
Para Eugenio Raul Zafaroni (1997, p. 66):

Cada atrocidade foià o etidaà e à o eà daà hu a idadeà eà daà justiça .à Cadaà u à


diziaà ueà ue iaà li e ta à oà ho e à oà supe -ho e à iado à doà itoà
de o ti o ,àouàli e ta àtodosàosàho e sàdaàe plo aç oàdoà apitalàouàdoàйstado .à
Cadaàideologiaàti haà sua àideiaàdoàho e àe,àna medida em que a realizava, tudo
364

estava justificado pela necessidade. Daí que nenhuma delas pudesse deter-se em
o st ulosàfo aisàeàseào ie tasseàpo àseuàp p ioà di eitoà atu al .

Neste aspecto, Ingo Wolfgang Sarlet (2015, p. 95):

[...]na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado,


razão pela qual se chegou a afirmar que o princípio da dignidade humana atua como
alfaà eà ega à doà siste aà dasà li e dadesà o stitu io ais[...]à ossoà
constitucionalismo, igualmente caracterizado por uma Constituição de cunho
marcadamente compromissário, mas que – como já frisado – erigiu a dignidade da
pessoa humana à condição de fundamento de nosso Estado Democrático de
Direito[...].

Na busca pela liberdade o ser humano, em inúmeras vezes, foi capaz de sepultar seus
próprios princípios de soberania e bem estar humano, e, sempre estes atos foram para
ratificar sua característica humana, sua necessidade humana de afirmar sua humanidade. A
democracia é o resultado desta afirmação de humanidade, uma liberdade intrínseca ao
humano a sua capacidade cognitiva, expressa na razão, pois ao abrir mão do Estado de
Natureza, e, escolher alguns do povo para sua representação, mostrou seu espírito coletivo
humano.

CONCLUSÃO

O exercício do controle social necessário para a manutenção do Estado, prescinde de


atos legais e dignos moralmente em questão cultural, e, sempre considerando soberana a
característica humana e a liberdade, princípios por vezes em choque, porém o próprio embate
princípio/lógico se faz necessário para suprimir determinadas vontades de agir, pois estas não
fazem parte da expectativa social, sendo que o Estado faz uso dos meios, seus agentes de
segurança pública, muitas vezes em atuação coercitiva para a prevalência do estado de paz
social.

REFERÊNCIAS

BARRETO, Vicente de Paulo. O Fetiche dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, Editora, 2013.
365

BECHER, Paula. O que é Democrácia. – KMF-CNOE & NOVA STELLA. Luanda 2011. Disponível
em: <http://www. http://library.fes.de/pdf-files/bueros/angola/08202.pdf>

BRASIL. Lei nº 10990, de 18 de agosto de 1997. Altera a legislação tributária federal. ESTADO
DO RIO GRANDE DO SUL ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA Gabinete de Consultoria Legislativa.
Disponível em: <http://ungovernable/mp_leis/leis_textos.asp?Id=LEI%209887>. Acesso em :
22 dez. 1999.

DOUZINAS, Costas. O Fim dos Direitos Humanos. São Leopoldo: Unisinos, Editora, 2009.

GUIMARÃES, Yuri da Silva. Assédio Moral à Luz do Direito Militar: Forças Armadas. Trabalho
Final de Curso – Universidade Castelo Branco. Rio de Janeiro, 2009. Disponível em:
<http://www.conteudojuridico.com.br/vdisk3/data/MonoYuriDMilitar.pdf>

KANT, Immanuel. Fundamentação Metafísica dos Costumes. Tradução de Antônio Pinto de


Carvalho. 3. ed. São Paulo: Martins Fonte, 1998. Disponível em:
<http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_kant_metafisica_costumes.pdf>
Acesso em: 30 Out. 2016.

SARLETT, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2016.

SCHNEIDER, Elmir Jorge. Direitos Humanos, Atuação Policial e Violência. Ijuí: UNIJUÍ, 2016.
366

áàPй‘“PйCTIVáàDáàCLÍNICáàáMPLIáDáàNOàCONTйXTOàP‘I“IONáL:à P‘ODU)INDOà
LIBй‘DáDй“

Karine Müller Dutra1


Liamara Denise Ubessi2

RESUMO: Este estudo objetiva cartografar a construção do processo de individualização da


pena de pessoas privadas de liberdade, sob a perspectiva da Clínica Ampliada no Presídio
Estadual de Santo Cristo. Trata-se de um estudo qualitativo, descritivo e cartográfico. O
desenho do caminho se deu por pistas - os afetos e os efeitos apresentados em um mapa
movimento, descrito e analisado no diálogo com as políticas sociais e autores no campo da
saúde mental, direitos humanos e da filosofia da diferença. São apresentados em três eixos:
o nascedouro da questão de estudo; um território fixo em movimento; e a descrição do
processo de reinvenção da individualização da pena. Os afetos vividos nos encontros
propuseram significativas trocas e possibilitaram novos arranjos de cuidado no cárcere.
Portanto, a confiança no que se estava desenhando foi determinante para um processo
de o i adoà p oduç oàdeàli e dades .

Palavras-chaves: Individualização da Pena; Pessoa Privada de Liberdade; Clínica Ampliada;


Produção de Liberdades.

INTRODUÇÃO

No cenário atual das políticas penais é possível encontrar diferentes discursos que
favorecem o aumento da população carcerária e que colocam a necessidade da construção
de novos estabelecimentos prisionais em detrimento às intervenções voltadas ao cuidado das
pessoas privadas de liberdade. Dado a isso, os altos índices de aprisionamento não foram
acompanhados de melhorias, na magnitude em que eram necessárias, das condições físicas,
humanas e estruturais das prisões, ferindo os princípios constitucionais da dignidade humana
e da individualização da pena (BRASIL, 1988).
Embora a individualização da pena seja um direito constitucional previsto no art. 5º,
XLVI, da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), despontado o presídio como o local
p p ioàdoà out o ,àda ueleà ueà o peà o àoàpa toàso ialàeà ueài stau aàaàdeso de ,à eleà

1
Técnica Superior Penitenciária – Psicóloga da SUSEPE, com formação em Psicologia e Especialista em Gestão de
Pessoas pela URI - Campus Santo Ângelo, Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos pela Faculdade
de Direito de Santa Maria (FADISMA) e Especialista em Saúde Mental pela UNIJUÍ.
2
Psicóloga, Enfermeira, Sanitarista, Mestre em Educação nas Ciências pela UNIJUÍ e doutoranda em Ciências:
Práticas Sociais em Saúde e Enfermagem pela UFPEL, ênfase em Saúde Mental Coletiva.
367

são atestadas as mais severas violações de direitos fundamentais, sem que estas importem
em um maior questionamento acerca de seus efeitos ou significações.
Está previsto que o processo de individualização da pena ocorra em três momentos: o
primeiro, no legislativo em que se observa a gravidade do ato cometido pela pessoa privada
de liberdade versus a sanção penal. O segundo é da individualização judiciária em que se
aplicam e determinam o modo de execução das penas. E o terceiro, consiste na execução das
mesmas, chamado individualização executória, em que se determina o cumprimento
individualizado da sanção aplicada (MIRABETE, 2004).
Ao passo que a Lei de Execuções Penais – LEP3 garante em temos de legislação o
T ata e toà Pe alà I di idualizado à eà oà a essoà aosà di eitosà hu a osà eà so iaisà dasà pessoasà
privadas de liberdade, há uma dificuldade por parte dos diferentes operadores que atuam no
sistema prisional em lograr êxito ao que se propõe a referida Lei, tendo em vista as complexas
condições do cárcere em total descompasso com os princípios dos direitos humanos
(DEMARCHI, 2008).
Para tanto, seria necessário que o sistema prisional repensasse as práticas nesse
campo. Emerge a necessidade de se questionar e refletir sobre em que efetivamente consiste
a atuação dos diferentes operadores envolvidos no trabalho prisional (agentes penitenciários,
agentes penitenciários administrativos e técnicos superiores penitenciários), pensando-se
numa prática que possa ir além daquela que já se exerça e que, muitas vezes, restringem-se
as demandas imediatas da instituição prisão.
Acresce-se a isso o fato de que a institucionalização tende a produzir a perda da
identidade e referência, produzindo efeitosà o tifi ado esà doà eu ,à o oà aà o se ü iaà
psi ol gi aà daà pe a iaà e à i stituiç esà totais à GOннMáNN,à .à Nasà i stituiç esà
totais, como os presídios, estão presentes as formas mais acabadas de controle sobre os
indivíduos (RAUTER, 2003). Ainda referindo-se a Goffmann (2008) uma das características é
dispor de um plano reacional único, supostamente planejado para atender aos objetivos da
própria instituição.
áài di idualizaç oàdaàpe aàpodeàse àu aàfo aàdeà e upe aç o àdaàpessoaàp i adaàdeà
liberdade. Contudo, para tanto, é necessário considerar e negociar com seus desejos,
vontades, necessidades individuais e coletivas e com os seus valores socialmente construídos.

3
Lei de execução Penal Nº 7.210, promulgada em 1984.
368

Recomenda-seà ueàaà i di idualizaç o àsejaàt a alhadaàdesdeà aàpo taàdeàe t ada àda pessoa
no sistema prisional. As ações relacionadas à individualização da pena precisam implicar cada
sujeito na sua construção, para que faça sentido em sua vida, resgatando o seu protagonismo.
A execução penal não pode ser igual para todos – justamente porque não são iguais e
tampouco a execução ser homogênea no período de seu cumprimento (MIRABETE, 2004).
Soma-se a isso, que em 2003, no Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário
(PNSSP, 2003), firmou a necessidade da organização de ações e serviços de saúde no sistema
penitenciário com base nos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), dentre
eles o da universalidade (BRASIL, 1990). Deste modo, o PNSSP fomentou a responsabilização
conjunta das políticas sociais de saúde e de segurança, sendo sua proposta voltada para a
garantia de ações integrais de saúde, enfatizando, além da assistência, a prevenção e a
promoção de saúde às populações masculina, feminina e das medidas de segurança, que são
também formas de produção de saúde mental (OMS, 2001).
Ainda, pelo PNSSP, pela primeira vez, a população confinada nas unidades prisionais é
objeto de uma política que possibilita o acesso a ações e serviços de saúde que visam a reduzir
os agravos e danos provocados pelas atuais condições de confinamento em que se encontram,
ao encontro do que propõe o Sistema Único de Saúde - integralidade, equidade e
universalidade (BRASIL, 1990). É nesta esteira, de garantia dos princípios sanitários, que se
propõem a Humanização em qualquer serviço de saúde (BRASIL, 2003, 2010), à qual se
viabiliza também pela incorporação do conceito de Clínica Ampliada (CUNHA, 2005).
A Clínica Ampliada foi proposta Gustavo Tenório Cunha na relação com a Atenção
Básica (CUNHA, 2005), a partir das proposições de Eduardo Campos aào aà “aúdeàPaid ia à
(CAMPOS, 2003). Opera com a situação de saúde da pessoa e o processo de trabalho dos
profissionais que atuam no cuidado a saúde humana. Sob esta perspectiva, o mesmo também
pode ser utilizado no sistema prisional, dado que passa a considerar a pessoa em privação de
liberdade em sua singularidade e contexto de vida, contribuindo para que construa outras
possibilidades de existência, que se articula com o viver no ambiente da prisão e fora do
mesmo.
Ao considerar o exposto, sob implicação com processos de produção de subjetividade
e humanização, mobilização com o formato até então desenvolvido no sistema prisional
quanto à homogeneidade no processo de individualização da pena, da baixa efetividade do
369

mesmo, e do contato com o conceito de Clínica Ampliada, deflagrou-se a ideia de


experimentar outro modo de desenvolvimento da individualização da pena. Sobre esse
odo ,àseài dagaà– oà ueàpodeàu aàaç oàso àaàpe spe ti aàdoà o eitoàdeà Clí i aàá pliada à
no processo de individualização da pena de pessoas em situação de privação de liberdade?
Neste contexto, para instrumentalizar a prática de individualização da atenção à
pessoa privada de liberdade, na perspectiva teórico-conceitual e de práticas no campo da
saúde mental coletiva e direitos humanos, reconheceu-se a necessidade do engajamento de
todos os atores envolvidos nesse processo, visando alterações nas práticas institucionais e
vida das pessoas envolvidas. Ao considerar o exposto, o objetivo deste estudo consiste em
cartografar a construção do processo de individualização da pena de pessoas em situação de
privação de liberdade, sob a perspectiva do conceito da Clínica Ampliada no Presídio Estadual
de Santo Cristo.
Trata-se de um estudo qualitativo, descritivo e cartográfico. A opção pela pesquisa
qualitativa se dá pelo interesse no aprofundamento da compreensão de um determinado
campo social exigindo do pesquisador uma série de informações sobre o que deseja pesquisar,
preocupando-se, portanto, com aspectos da realidade que não podem ser quantificados,
centrando-se na compreensão e explicação da dinâmica das relações sociais. Para Minayo
(2001), a pesquisa qualitativa trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações,
crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações. Logo
consiste numa modalidade que melhor se aplica para perceber, sentir, decifrar, descrever e
cartografar movimentos de uma determinada realidade (TRIVIÑOS, 1987).
A cartografia é um conceito (e) método, cunhado pelos autores Gilles Deleuze e Félix
Guatta ià aào aàoà Oàá ti-Édipo .àO upa-se com a produção de realidades, que podem ser a
partir da implicação com alguma problemática da vida cotidiana na relação com outras
pessoas, objetos, acontecimentos, enfim, o que de algum modo, afeta quem se dispara e se
coloca a caminhar como um cartógrafo, no caso quem pesquisa. Este por sua vez, acompanha
e (se) co-produz (n)o movimento do território campo de estudo (DELEUZE, 1992; GUATTARI,
1993; ROLNIK, 2007). Então, esta pesquisa é implicada, na qual em determinado momento
misturam-se sujeito e objeto de estudo (PASSOS; KASTRUP; ESCOSSIA, 2015).
A cartografia incide na expressão dos afetos, entendidos na perspectiva do encontro
com pessoa ou algo, que ativa o pensamento, o corpo todo na relação com o vivido, que move,
370

como sujeito implicado nos processos que agencia (SPINOZA, 2007). Os afetos tendem serem
os impulsionadores de pesquisas com essas características, assim como o foi este estudo,
deflagrado a partir da inserção como servidora penitenciária, com formação e na função de
Psicóloga na 3ª Delegacia Penitenciária, mais especificamente atuando junto ao Presídio
Estadual de Santo Cristo, que compreende o território escolhido para o diálogo entre o afeto
de uma inquietação despertado aàa ade iaàeàoà a seio àpo à esposta,à i idoà aàp ti aàdoà
contexto funcional.
Sendo assim, o estudo refere-se à narrativa de uma experiência de construção de um
programa individualizador de atenção à pessoa privada de liberdade, juntamente com um
coletivo de servidores na Superintendência dos Serviços Penitenciários – SUSEPE, no período
de 08 de novembro de 2015 até 02 de dezembro de 2016, junto ao Presídio Estadual de Santo
Cristo. Cabe salientar que na referida unidade prisional já se vivia a preocupação em pensar o
processo de individualização da pena, mas sem respostas efetiva.
Deste modo, a pesquisadora levou consigo como ferramentas – seu desejo de
mudanças e o conceito da Clínica Ampliada. O caminho da pesquisa foi narrado na forma de
escrita em diário de campo, que se pautou, na escrita sobre o vivido, desde o início deste
trabalho de reinvenção do processo de individualização da pena, junto ao Presídio Estadual
de Santo Cristo.
O conceito da clínica ampliada ao encontro do vivido foi o disparador para esse
movimento de reinvenção da individualização da pena no sistema prisional, e é isso que se vai
apresentar, de modo cartográfico, como um recorte dessa realidade vivida, por meio da
descrição desse processo, apresentação de seus efeitos via escrita e uso de documentos,
fotografias e jornais desde que disponíveis de forma pública, respeitado aos preceitos éticos
em pesquisa (BRASIL, 2012).

O NASCEDOURO DA QUESTÃO

Trabalhar no sistema prisional consiste num árduo desafio, proporcionando uma


caminhadaà oàdes o he idoàe,à uitasà ezes,àse à ho izo tes .àй à o t apa tida,àosàdesafiosà
p opo io adosàpeloà otidia oà e ete à o sta te e teà à us aàdeàu aà e telhaàdeàluz ,à
de modo a criar dispositivos que acionem novos processos de subjetivação que potencializem
371

a vida das pessoas privadas de liberdade, bem como, dos demais atores envolvidos na
questão, e de si mesmo.
A intenção de pesquisar geralmente tem a ver com a trajetória profissional. No caso,
atuando como psicóloga no âmbito prisional, em uma jornada profissional de
aproximadamente doze anos, capturada pelas rotinas, muitas vezes, mecanicistas e
laudatórias a serviço do judiciário e, muito distante do trabalho em equipe. A psicologia
sempre ingressou no sistema prisional sob o viés avaliativo e pericial, diretamente vinculada
à injunção legalista da Lei de Execuções Penais (LEP), bem como sob a concepção de sujeito
psicológico centrado, onisciente e racional, tendo como pano de fundo pregações positivistas
de busca da ordem social.
Esgotada dessa prática impetuosa, via a necessidade de buscar novas perspectivas com
intuito de minimizar as consequências do conflito ético que vivenciava. Sentia que precisava
exercitar a análise do que estava produzindo/reproduzindo e qual o sentido de meu trabalho,
quais os efeitos do mesmo, e nessas indagações, estava a buscar sempre possibilidades para
uma atuação eticamente em prol do outro e de si, dado que nos tornamos aquilo que somos
a partir das relações estabelecidas (FOUCAULT, 2006; DELEUZE, 1992).
Foram esses momentos de busca e angústia que me despertaram para algumas ações
de cuidado. Durante o percurso no curso de pós-graduação e participação no Núcleo do
Sistema Prisional do Conselho Regional de Psicologia com subsede em Santa Maria - RS, essas
intenções de reinvenção do cotidiano e de si ganham corpo, clareiam-se trajetórias e
movimentam-se fluxos de ideias para construir uma proposta de cuidado e atenção, no
âmbito prisional. Soma-seàaàisso,àoà o eitoàdeà Clí i aàá pliada àeàoàage ia e toàdeàu à
colegiado de servidores penitenciários no Presídio Estadual de Santo Cristo para construção
de um Programa Individualizador da Pena.

UM TERRITÓRIO FIXO EM MOVIMENTO

O Presídio Estadual de Santo Cristo – PESC localiza-se no município de Santo Cristo, na


região noroeste do estado do Rio Grande do Sul. Está sob a responsabilidade da 3ª Delegacia
Penitenciária Regional da Superintendência dos Serviços Penitenciários - SUSEPE e tem como
comarcas de abrangência os municípios de Santo Cristo e Porto Xavier. O PESC possui a
372

capacidade para 60 pessoas e, atualmente, conta com 57 pessoas privadas de liberdade, 30


em regime fechado e 27 em regime semiaberto.
No que tange a estrutura física considera-se um presídio de pequeno porte, com
instalações muito reduzidas. Possui cinco celas para o regime fechado e um alojamento
coletivo para aqueles que desfrutam do regime de semiliberdade. A parte administrativa é
dividida em duas salas, uma para administração prisional juntamente com o serviço técnico
(Serviço Social) e outra sala que acomoda a secretaria. Na entrada da unidade prisional
localiza-se a inspetoria dos Agentes Penitenciários por onde ocorrem todas as movimentações
das pessoas privadas de liberdade, bem como, das demais pessoas envolvidas na rotina
prisional diária.
Outras instalações são o pátio que possui uma quadra esportiva onde as pessoas
privadas de liberdade desfrutam do horário de sol e também recebem suas visitas duas vezes
na semana. Além disso, possui uma sala de aula em que se concentram atividades de estudos
e grupos operativos desenvolvidos pelo corpo técnico da casa prisional. Cabe ressaltar, que
possui duas cozinhas, uma para as pessoas privadas de liberdade preparar três refeições
diárias e outra para os servidores penitenciários. O presídio oferece poucas alternativas de
trabalho prisional, reduzindo-se a vagas na limpeza, conservação, manutenção e cozinha.
Em relação à assistência à saúde das pessoas privadas de liberdade, desde abril de
2012, conforme a Resolução 168/2012 – CIB/RS, foi pactuado com a Unidade de Saúde de
Santo Cristo atendimento odontológico, médico e consultas de enfermagem. Sendo assim,
conforme essa pactuação, nas unidades prisionais com até 100 pessoas, o atendimento deve
ser realizado pela Unidade Básica de Saúde territorial. Ou seja, nas instituições penais com
menor população, não há necessidade de se ter uma Unidade de Saúde com equipe
permanente, mas o acesso à saúde deve ser garantido pela rede de serviços de saúde do
município onde se situa a prisão (BRASIL, 2003).
Ademais, a inclusão de outros profissionais de saúde, como os psicólogos e assistentes
sociais, por exemplo, além da questão técnica destas áreas, necessárias a manutenção da
estrutura prisional, mostra uma visão mais ampliada de saúde e esses serviços geralmente são
ofertados pela própria instituição prisional. No caso de Santo Cristo, o profissional do Serviço
Social está lotado na unidade prisional permitindo um trabalho mais consistente. Já o
373

atendimento psicológico ocorre quinzenalmente, quando a profissional da psicologia desloca-


se da 3ª Delegacia Penitenciária Regional de Santo Ângelo para atender a demanda solicitada.
Em relação a outras redes externas, o PESC conta com o Conselho da Comunidade o
qual realiza visitas de inspeção que ocorre bimestral ou trimestral. Nas visitas o Conselho além
de dialogar com a administração do presídio e verificar as dependências, também conversa
com as pessoas privadas de liberdade. Dessa forma, com as necessidades elencadas, o
Conselho busca recursos na comunidade local através de projetos e muito pouco se discute
sobre a responsabilidade do Estado no financiamento do sistema prisional, bem como, formas
de reinserção social.

NOà P‘OCй““Oà Dйà ‘йINVйNÇÃOà Dáà INDIVIDUáLI)áÇÃOà Dáà PйNá:à P‘ODUÇÃOà Dйà
LIBй‘DáDй“

A construção do Programa Individualizador de Atenção a Pessoa Privada de Liberdade


(PIAPPL) surgiu durante a experiência viva e pulsante no agenciamento dos servidores
penitenciários do Presídio Estadual de Santo Cristo.
Confiante que poderia dar sequência ao trabalho dialogou-se com as pessoas inseridas
neste novo processo de intervenção tendo como horizonte a perspectiva da Clínica Ampliada,
para cumprir com o princípio da individualização da pena que preza por um plano terapêutico
singularizado. Deste modo, ao encontro do que propunha Rolnik (2007), Passos, Kastrup,
Escóssia (2015), foi preciso deixar-seà e ha a à pelasà i iasà oà e ioà e à ueà esta aà
vivendo, atuando, pesquisando, aberta aos afetos que poderia sentir em decorrência dos
encontros de construção dessa proposta, de captar no movimento a produção de vida e de
conhecimento.
O cenário vivido foi norteador para a construção/elaboração de cada momento do
processo. Desde então, se constituiu um colegiado de servidores penitenciários que se
dispuseram vivenciar momentos de trocas, foi-se movimentando fluxo de ideias e as primeiras
pistas foram surgindo. Partimos do encontro com o conceito da Clínica Ampliada que veio a
despertar as primeiras inquietações: Como produzir as mínimas condições de saúde num
espaço tão punitivo como o cárcere? Como trabalhar em equipe num ambiente totalmente
hierárquico, dono de um saber altamente influenciado pelo sistema punitivo? Aflições essas,
374

que vão ao encontro do conceito da Clínica Ampliada, ou seja, como produzir liberdades em
um local, a princípio, pelas suas características, avesso a essas possibilidades? Como construir
um modelo de se atuar e gerir saúde de forma qualificada e dialogada através de uma equipe
de referência?
Das inquietações compartilhadas surgem outras pistas e novos rumos passam a ser
estudados. O cenário favoreceu o entendimento da proposta e constituição de uma Equipe
de Referência no Presídio Estadual de Santo Cristo dando significado e importância para as
pessoas que ali se inseriam no processo de construção. Logo, tudo se tornou inovador,
inclusive a quem pesquisa, impressionada com a movimentação da equipe em prol de uma
mudança de pensamento/estratégia, ou seja, torção do olhar punitivo para o do cuidado.
O entendimento do trabalho em equipe entre os servidores envolvidos na rotina
prisional, mais especificamente, o administrador, a agente penitenciária administrativa, a
assistente social e o agente penitenciário responsável pela segurança institucional do PESC
compuseram uma Equipe de Referência (ER), sendo que essa passou a se responsabilizar pela
atuação no cuidado a pessoa em situação de privação de liberdade.
Além da Equipe de Referência, também se constituiu uma Equipe de Apoio, que é outro
dispositivo da Clínica Ampliada, composta por profissionais da 3ª Delegacia Penitenciária
Regional de Santo Ângelo, incluso quem pesquisa, juntamente com outros atores (uma
psicóloga e uma advogada). A função da Equipe de Apoio não é fazer pela Equipe de
Referência, mas estar junto, sempre que necessário, nas discussões dos casos, garantido a
autonomia e o espaço protegido singular da Equipe de Referência. Com isso, a Equipe de
Referência e de Apoio é utilizada neste processo como possibilidade de ampliar as
possi ilidadesàdeà a pliaç oàdaà lí i a àaoàe o t oàdoà ue propõe Campos e Domitti (2007),
ou seja, no caso do sistema prisional de garantir a singularização do processo de
individualização da pena.
Por este viés, viu-se a construção de ações pautadas na lógica da interdisciplinaridade
possibilitando espaços de troca entre as Equipes a fim de se articular estratégias de cuidado
juntamente com pessoas em cumprimento de pena, o que proporcionaria a pessoa em
desacordo com a lei uma nova experiência, dando voz à mesma e acima de tudo respeitando
sua singularidade. Gálvan (2007) refere que a interdisciplinaridade não anula a
disciplinariedade, pois implica em uma consciência dos limites e potencialidades de cada
375

campo do saber, na busca de um fazer coletivo. E do mesmo modo, não anula o saber popular,
ao contrário, o inclui.
Contudo, há diversas formas de se buscar a interlocução necessária para a realização
de um trabalho mais amplo e consistente. Porém, quando se fala no trabalho em equipes,
sabe-se que este não é um caminho que se constrói sem percalços, principalmente em relação
aos entraves que o sistema prisional provoca. E de fato, a primeira dificuldade elencada pelos
servidores surge quando a equipe convida a pessoa privada de liberdade para participar do
encontro de equipe a fim de estruturar uma proposta de intervenção.
Percebe-se que diferentes sentimentos se atravessam, já que questões de seguranças
emergem, por exemplo, uma pessoa privada de liberdade dependente química, usando
drogas na instituição. Como trabalhar isso em equipe? Como desconstruir
situações/intervenções altamente punitivas num trabalho em equipe? Como os agentes de
segurança podem interpretar isso? Visualizava-se um conflito ético-moral instaurado a partir
de uma demanda revelada pela pessoa privada de liberdade, no que se observa que povoa o
se soà o u à efo çadoàpeloà odeloàpu iti o.àNu aàsituaç oà o fliti aàe t eà e osàdaà
equipe, como prosseguir?
Assim, durante todo o processo de construção, muitas incertezas ganharam evidencia,
dificuldades soavam, no entanto a coesão do encontro se mantinha presente. Momentos de
estudos, busca de estratégias, novos arranjos, foram às alternativas encontradas na busca de
respostas ao desconhecido. A partir da leitura da demanda encontrada, viu-se, também, a
necessidade de buscar no território, na comunidade, na família mais elementos de vida dessas
pessoas. Com isso, sentia-se a necessidade de articulação com outros saberes em igualdade,
de familiares, comunidade, escola, serviços de apoio social, serviços de saúde e tantos outros.
A realidadeàdasà pessoasà p i adasàdeà li e dadeàdesi estidasà deà uaseà tudo à o à oà
qual as Equipes precisam lidar, consiste num constante exercício de persistência e tolerância
visto que o cárcere reduz a identidade dessas pessoas ocorrendo um processo que Goffman
àdefi iuà o oà despe so alizaç o .àássi ,àu ài di íduoà oà à aisàu ài di íduo;àeleà
passa a ser uma engrenagem no sistema da instituição, e a obedecer a todas as regras da
mesma; caso não o faça, será "reeducado" pelos próprios companheiros ou pela equipe
dirigente. É como se lhe tirassem as próprias memórias e as substituíssem por memórias da
própria instituição que visam à padronização dos sujeitos.
376

Neste contexto enfrentar tal realidade juntamente com a pessoa privada de liberdade
nos convida a reconstruir a identidade perdida e a de quem se envolve, através de novas
formas de cuidado, contando, inclusive com outros territórios do entorno. Neste viés,
vislumbra-se o acontecimento em ato da proposta da Clínica Ampliada aonde se abraça o
investimento na tecnológica do cuidado. A Clínica de que se fala, consiste em uma interação
complexa entre sujeitos (CUNHA, 2005) que, no âmbito prisional, se desenhou através do
movimento de todos os atores inseridos num mesmo processo de construção. A participação
da pessoa privada de liberdade foi vista como uma experiência potente e inovadora,
oportunizando a mesma um espaço de fala, escuta e visibilidade.
Neste ponto de atenção, verifica-se que as visitas às famílias das pessoas privadas de
liberdade, possibilitaram as equipes de Referência e Apoio uma proximidade diferenciada
como um recurso importante de acesso à dinâmica familiar. Este foi o fio condutor desta
clínica, de fato, ampliada, expandida, que atravessou os muros do cárcere a fim de percorrer
o território da pessoa privada de liberdade.
No caminho percorrido entre facilidades e dificuldades, o trabalho interdisciplinar na
ampliação do cuidado remetia-se constantemente para árduos desafios. Via-se a necessidade
no fortalecimento do espaço de discussões entre a área da segurança e a área técnica, a fim
de desencadear novos deslocamentos, tencionando ampliação da concepção do cuidado em
saúde, em especial para o trabalho em rede. Entretanto, pode-se considerar que a
heterogeneidade de saberes seria capaz de criar possibilidades para a construção de outros
faze es,à a i doà u aà pe ue aà f esta à pa aà aà o posiç oà deà o asà p ti asà oleti asà deà
integração disciplinar, na tentativa de envolver o todo, através da junção das partes, dos
diferentes olhares sobre um mesmo fenômeno.
No fundo do olhar das equipes via-se a grandeza das possibilidades que a perspectiva
da Clínica Ampliada poderia acrescer num ambiente desprovido de olhares. Aos poucos as
equipes foram conseguindo contornar e trabalhar com suas dificuldades o que tornava o
processo de construção cada vez mais empolgante, principalmente quando os diferentes
saberes que circulam no cárcere e que estavam, quiçá, pela primeira vez, dialogando de um
modo diferente.
Quando os primeiros efeitos da equipe começaram a surgir, a equipe de referência do
presídio se mostrou com vontade de divulgar os primeiros resultados ao judiciário. Assim, em
377

setembro do corrente ano, foi realizada uma visita de rotina pelo juiz da Vara de Execução
Criminal a unidade prisional de Santo Cristo. Ao mesmo, foi apresentada pelas Equipes de
Referência e de Apoio, a proposta de trabalho que já se desenhava na instituição prisional na
fo aàdeàu à P og a aàdeàáte ç oà àPessoaàP i adaàdeàэi e dade .àáài te ç oàfoià ost a àosà
efeitosà ueàaàpe spe ti aàdaà Clí i aàá pliada à i haà epe uti doà oà o te toàp isio alàda doà
conta do processo de individualização da pena como uma inovadora possibilidade de
intervenção, incluindo a importância de todos os saberes que compõem as equipes,
principalmente o da pessoa em situação de privação de liberdade.
áà g a de àsu p esaàfoiàoàe ol i e toàdoàpode àjudi i ioàapoia doàaà o aàp opostaà
de trabalho, dando voz ao Programa nas redes sociais, jornais locais e concedendo entrevista
a Rádio Justiça do Supremo Tribunal Federal, onde esclareceu a importância desse tipo de
iniciativa no âmbito prisional (Anexo A). Tal impulso do Judiciário fortaleceu a equipe
enquanto grupo de trabalho comprovando que, quando se deseja algo construído em equipes,
dentro de um compromisso ético, se produz liberdades ainda que mínimas, mas consistentes
e necessárias.
Após apresentação do Programa ao Judiciário ocorreu um misto de sentimentos: alívio
pela aceitação da proposta que passou a ser formalmente aceita, mas ao mesmo tempo medo
do desconhecido, já que o Judiciário depositou confiança na equipe em apresentar a proposta
para o Ministério Público e Defensoria Pública de Santo Cristo, assim como, propagar o
Programa para demais casas prisionais da região.
Neste contexto, abrolha momentos de reflexão entre as equipes e,
consequentemente, o aperfeiçoamento daquilo que está em construção, ou melhor, em
p oduç oàdeàli e dades àe àsi,àpa aàp oduç oàdeàli e dadesà out osà o te tos,àpassaàaàse à
mais dialogado/discutido/refletido.
Pelas circunstâncias do novo momento, outras pistas surgiram/surgem ao mesmo
tempo em que novas contribuições delineavam-se. Tempo atravessado continuamente por
descobertas, impedimentos, novas percepções e, consequentemente, redirecionamentos.
Após esses efeitos e desfechos, as equipes se reuniram em prol da organização logística do
Programa, desenhando um roteiro de ações, um fluxograma, tendo em vista a
o p ee s o/se si ilizaç oà dosà g a desà ope ado esà doà di eito ,à ouà seja,à pa aà ueà oà
378

Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública entendessem o valor da proposta, já


compreendido, num primeiro momento, pelo Juiz de Direito de Santo Cristo.
Co à aà ap ese taç oà doà P og a aà aà essesà ope ado esà doà di eito ,à asà e uipesà
experimentaram um processo de transformação ao qual foram partícipes desde o seu início.
No processo de construção e apresentação, a potência do encontro parece precursora aonde,
pela primeira vez, houve diálogo de vários seguimentos do entorno prisional sensibilizados a
esta proposta inventiva na individualização da pena. Potencializar-se com a montagem
experimental é estar próximo à linha limítrofe entre o conhecimento duro – metodológica e
teoricamente estabelecido – e ousar criar outras maneiras de pensar.
A vivência experimentada acendeu modos de pensar e possibilidades de entender
novos conceitos, dispositivos, ferramentas, algo que foi constantemente adaptado, criado,
produzido, a partir das condições dadas e que operou no âmbito prisional de forma intensa
entre as equipes de apoio e referência, refletindo assim, na produção de liberdades. Sendo
assim, considera-se a subjetividade como um fluxo contínuo de sensações, modos de existir,
amar e comunicar, de imagens, sons, afetos, valores fabricadas no entrecruzamento de
instâncias sociais, técnicas, institucionais e individuais. No limite, é possível talvez considerar
que todos os sujeitos e coletivos humanos, institucionalizados ou não, com maior ou menor
grau de instrução e de conhecimento tecnológico, são produtores de subjetividade e, no
presente estudo, são produtores de liberdade!

CONSIDERAÇÕES FINAIS

йsteàt a alhoàde o st ouàaàpot iaàdaàaç oàso àaàpe spe ti aàdoà o eitoàdeà Clí i aà
á pliada à aà ei e ç oàdoàp o essoàdeài di idualizaç oàdaàpe aàdeàpessoasàe àsituaç oàdeà
privação de liberdade, como potente dispositivo na relação com a saúde mental, via produção
de existência. É o efeito dos afetos mobilizados pelo desejo de reinvenções no sistema
prisional.
A partir da experimentação do conceito de Clínica Ampliada, percebeu-se que para
construir um projeto de individualização de pena era preciso produzir liberdades, necessidade
esta, conhecida no caminho. Liberdades no sentido de se libertar de algumas padronizações,
conceitos que sustentavam a aplicação do mesmo plano para todos. Liberdades de se dispor
379

a estar com outros atores e dialogar, pensar junto, planejar, e executar de modo a gerar
processos de inclusão.
O enveredar-se por caminhos novos e paisagens desconhecidas requeriu coragem e ao
mesmo tempo persistência para seguir, mas foi justamente o que estimulou a caminhada.
Assim, apesar de toda complexidade instituída por uma instituição total, como a prisão, a
experiência iniciada a partir do conceito da Clínica Ampliada constituiu-se em potente
opo tu idadesà deà p oduç oà deà li e dade à pa aà o po à o osà e ios,à e à o o,à testa à
novos dispositivos de cuidado dando voz às pessoas pelas tecnologias de cuidado inseridas
durante todo o processo de construção.
Em nenhum momento do presente estudo houve o desejo de esgotar a discussão
acerca da proposta da Clínica Ampliada no processo de individualização da pena, até porque
isso seria sua mortificação, dado que a produção de liberdades consiste nesta potente
movimentação, conforme conhecemos seus efeitos. A ativação do desejo de mudança
contribuiu para avançar e pensar noutras possibilidades de intervenção, em que novos
arranjos foram criados e serão recriados na ativação/agenciamento de outros setores/pessoas
a fim de que a Clínica esteja constantemente em ampliação.
Por fim, torna-se imprescindível revelar o quão rica foi à experiência de vivenciar a
criação de um movimento de transformação no cárcere, iniciado com a pessoa privada de
li e dadeàeà hegadoàaosà ope ado esàdoàdi eito .àйà ua doàseàfalaàe àp oduzi àli e dades, é
justamente fazer com o outro, e para o outro, e para si, formando um complexo enredo de
relações em um cenário vivo e pulsante que a todo o momento se movimenta. Isso é produção
de liberdade!

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380

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382

O IMPACTO DO PROCESSO DE PRECARIZAÇÃO DAS RELAÇOES DE TRABALHO SOBRE A VIDA


DAS TRABALHADORAS BRASILEIRAS DO SÉCULO XXI1

Letícia Baptista Fagundes2


Joice Graciele Nielsson3

RESUMO: O presente trabalho investiga de que modo o processo de flexibilização das relações
trabalhistas em curso no Brasil, especialmente com a aprovação do PL nº 4.302/98, afeta o
ingresso, a permanência e a condição das mulheres no mundo do trabalho. Neste sentido,
avalia que as relações de trabalho e gênero vêm se transformando ao longo do tempo, de
modo que as mulheres, inicialmente responsáveis pelas atividades privadas e não
remuneradas do cuidado, passaram a ocupar cada vez mais o espaço público e o mundo do
trabalho, o que, no entanto, não representou uma alteração significativa na relação de
responsabilidade dentro do lar. A presente pesquisa utilizará o método histórico, e como
técnica de pesquisa, a documentação indireta.

Palavras-chave: capitalismo; gênero; mulher; precarização; trabalho.

1 INTRODUÇÃO
A desigualdade de gênero foi construída e legitimada historicamente, colocando a
mulher em uma posição inferior ao homem e reservando à ela poucas funções reconhecidas
na sociedade. Diante desse cenário, à mulher sempre foi atribuídas as atividades domésticas
e relacionadas ao lar como responsabilidade natural, enquanto ao homem foi reservado o
espaço público, através da execução de atividades de maior prestígio social.
Esse contexto, é a base da divisão sexual do trabalho, reservando para as mulheres
espaços específicos no mundo do trabalho, caracterizados, geralmente, por menores salários,
posições inferiores e precarização. Essa situação foi acentuada, pois a entrada das mulheres
no mercado de trabalho se deu conjuntamente com o processo reestruturação produtiva do
capital a partir da segunda metade do século XX. Esse processo trouxe inúmeras mudanças
ao mundo do trabalho, tornando as relações de trabalho cada vez mais flexíveis, através do
aumento de postos de trabalho precários.
Desta forma, o presente estudo aborda a desigualdade de gênero e seu impacto nas
relações de trabalho no cenário brasileiro da atualidade, buscando averiguar de que modo a
divisão sexual do trabalho e a reorganização capitalista ocorrida no final do século XX, que se

1
Este artigo é fruto do Trabalho de Conclusão de Curso, homônimo, desenvolvido como requisito para colação
de grau no Curso de Direito da UNIJUI.
2
Acadêmica de Direito do 9º Semestre da UNIJUÍ. E-mail: letiiiciabf@gmail.com.
3
Doutora em Direito pela UNISINOS. Professora do Curso de Direito da UNIJUÍ. Orientadora da pesquisa. E-mail:
joice.gn@gmail.com.
383

intensificou no Brasil no século XXI ocasionando a precarização das relações trabalhistas tem
afetado a situação das mulheres trabalhadoras, especialmente com a aprovação do PL nº
4.302/98.
Diante deste cenário, o artigo analisa incialmente, como a construção social do gênero
e a dicotomia público-privada tem impacto direto na divisão sexual do trabalho. Na segunda
etapa, analisa como se deu a inserção das mulheres no mercado de trabalho e o processo de
precarização das relações e direitos de trabalhistas. Por fim, na última etapa, analisa de que
modo este processo atinge a condição das mulheres trabalhadoras, um grupo já
tradicionalmente discriminado no mundo público do trabalho.

2 A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO GÊNERO E A DICOTOMIA PÚBLICO-PRIVADA: SEUS


IMPACTOS NA DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO.

A análise acerca da construção social do gênero tem grande influência no debate a


respeito da divisão sexual do trabalho. Esta tem seu fundamento nas desigualdades entre os
sexos, fruto da socialização do gênero feminino e masculino. Desta forma, dizer que o gênero
é uma construção social, significa afirmar que a condição de ser homem ou mulher, não está
ligada a um fator biológico, mas sim uma característica que lhes é imposta pela sociedade
(BEAUVOIR, 1967).
A construção do gênero se dá, na medida em que durante toda a sua vida, a mulher é
ensinada a se guardar para o outro, fazer-se obediente, mostrar-se frágil e renunciar sua
autonomia, para que seja aceita pela sociedade e por um bom marido. Enquanto o homem é
influenciado a ser livre, forte e almejar as funções de maior prestigio social (BEAUVOIR, 1967).
Nesse contexto, a mulher é condicionada ao desenvolvimento de habilidades voltadas
ao trabalho doméstico, relacionados ao cuidado do marido, dos filhos e do lar, enquanto o
homem é orientado a aprimorar atividades e habilidades reconhecidas pela sociedade, tendo
acesso, portanto, aos melhores recursos (BIROLI, 2014). Simone de Beauvoir (1967, p. 27),
bem descreve como essa construção ocorre:

Grande parte do trabalho doméstico pode ser realizado por uma menina muito
criança; habitualmente dele os meninos são dispensados; mas permite-se, pede-se
mesmo à irmã, que varra, tire o pó, limpe os legumes, lave um recém-nascido, tome
conta da sopa. A irmã mais velha, em particular, é assim amiúde associada às tarefas
384

maternas. Por comodidade, hostilidade ou sadismo, a mãe descarrega nela boa parte
de suas funções; ela é então precocemente integrada no universo da seriedade; o
sentido de sua importância ajudá-la-á a assumir sua feminilidade, mas a gratuidade
feliz, a despreocupação infantil são-lhe recusadas.

Diante disso, o papel da mulher na sociedade sempre foi restrito à esfera privada,
enquanto ao homem foi reservada à esfera pública. Nessa senda, as teorias feministas
afirmam que a mulher nunca alcançará sua plena autonomia enquanto sua imagem estiver
associada a família e ao lar. Destarte, Flávia Biroli (2014, p.34) aponta que:

A crítica às desigualdades de gênero está geneticamente ligada à crítica às fronteiras


convencionais entre o público e o privado nas abordagens teóricas, na práticas
política, nas normas e nas instituições. A garantia de liberdade e autonomia para as
mulheres depende da politização de aspectos relevantes da esfera privada –
podemos pensar, nesse sentido, que a restrição ao exercício de poder de alguns na
esfera doméstica é necessária para garantir a liberdade e autonomia de outras.

Essa segregação entre o público e o privado disfarça a sua acentuada contribuição para
a desigualdade de acesso a oportunidades para os indivíduos, figurando como o centro das
desigualdades de gênero, representando perversas consequências para as mulheres (BIROLI,
2014). Isso pois, a naturalização do papel tido como feminino, inviabiliza o acesso à esfera
pública pelas mulheres pois, vistas pela sociedade como inadequadas ou incapazes para essa
ocupação por serem subordinadas aos homens e à família (OKIN, 2008).
Diante dessas circunstâncias o mundo do trabalho se constituiu, uma vez que há a ideia
universal de que os homens inseridos na cadeia produtiva têm mulheres em casa, as quais
cuidam do lar para que eles possam provê-lo,à assi à oà o t oleà deà e u sosà ate iais
permanece nas mãos dos homens, mesmo que dedicação e a rotina de que são fruto
depe da àdoàt a alhoà oà e u e adoàdo sti oàdaà ulhe à BI‘OэI,à ,àp. .à
Foi com a ascensão do movimento feminista na década de 1970, que o conceito de
divisão sexual do trabalho passou a ser estudado e debatido. Nesse período, houve uma
conscientização geral da exploração sofrida pelas mulheres. O movimento feminista
compreendeu que uma grande porcentagem de trabalho é realizado de forma gratuita pelas
mulheres, um trabalho não reconhecido pela sociedade, e realizado para outros, em razão da
ideia universal de que a mulher é a responsável natural pelo trabalho realizado dentro do lar
(HIRATA; KERGOAT, 2007).
Desta forma, compreende-se a divisão sexual do trabalho como sendo:
385

[...] a forma de divisão social decorrente das relações sociais entre os sexos; mais do
que isso, é um fator prioritário para a sobrevivência da relação social entre os sexos.
Essa forma é modulada histórica e socialmente. Tem como característica a
designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera
reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com
maior valor social adicionado (políticos, religiosos, militares, etc). (HIRATA;
KERGOAT, 2007, p. 599).

Hirata e Kergoat (2007), explicam a divisão sexual do trabalho a partir do princípio da


separação e do princípio hierárquico. O primeiro significa a designação de trabalhos diferentes
aos homens e às mulheres, a partir da ideia de funções naturais de cada sexo e o segundo
explica a valoração dada ao trabalho do homem em detrimento ao da mulher. Ainda, segundo
os autores (2007, p. 599):

Esses princípios são validos para todas as sociedades conhecidas, no tempo e no


espaço. Podem ser aplicados mediante um processo específico de legitimação, a
ideologia naturalista. Essa rebaixa o gênero ao sexo biológico, reduz as práticas
so iais,àaà pap isàso iais àse uadosà ueà e ete àaoàdesti oà atu alàdaàesp ie.

Embora a aplicação desses princípios em todos os períodos da história, eles não


tornam a divisão sexual do trabalho um fator imutável, contudo, ela se adequa e se reproduz
de acordo com cada período vivido pela sociedade, penalizando as mulheres e perpetuando
as desigualdades de gênero.

3 A ENTRADA DAS MULHERES NO MUNDO DO TRABALHO FORMAL NO BRASIL E A


PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO
De acordo com Maria Rosa Lombardi (2010, p.33) a inserção das mulheres em todas
as atividades econômicas e profissionais no mundo do trabalho se iniciou no século XX, sendo
esse fenô e oàde o i adoàdeà fe i izaç o àdoà e adoàdeàt a alho.àйsseàp o essoào o euà
principalmente, em razão do advento do movimento feminista e da reestruturação produtiva.
Na década de 1970, o capitalismo passou por sua segunda grande crise depressiva,
desencadeada pela escassez do modelo de organização produtiva da época. Diante disso, os
países capitalistas promoveram um novo processo de reestruturação produtiva, baseado em
um modelo de acumulação flexível, causando efeitos complexos nas relações de trabalho
(PEDROSO, 2015). Nesse mesmo período, os movimentos feministas passaram a ganhar força,
principalmente, nos Estados Unidos e na Europa, momento no qual iniciou o debate acerca
386

das questões relacionadas ao papel da mulher na sociedade, com a reivindicação de um


espaço no mercado de trabalho (NOGUEIRA, 2004).
No Brasil, esse processo se consolidou entre as décadas de 80 e 90, quando as
mulheres passaram a representar grande parte da mão de obra trabalhadora, seguindo em
constante crescimento a taxa de ocupação feminina (NOGUEIRA, 2004). Porém, esse
fenômeno quando observado detalhadamente, mostra não ter sido capaz de alcançar às
mulheres sua autonomia e um espaço de igualdade na sociedade, pelo contrário, acentuou as
desigualdades de gênero, com a reprodução da divisão sexual no mundo do trabalho formal.
Isso ocorreu, principalmente em razão do novo modelo de organização produtiva, que
a partir do desenvolvimento de formas flexíveis de trabalho, apropriou-se da mão de obra
feminina, ao mesmo tempo em que precarizou o emprego, concentrando grande parte das
mulheres trabalhadoras em posições vulneráveis e mal remuneradas do mercado de trabalho.
Além de promover a segregação setorial, marcando a ocupação da mulher em funções
consideradas naturalmente femininas. Diante desse cenário, pontua Araújo (apud NOGUEIRA,
p.67, 2004):

Mudanças significativas no emprego da mão-de-obra feminina foram observadas, a


partir de 1990, no Brasil, quando começou a se falar em feminização do mercado de
trabalho. Estas mudanças recentes na ocupação feminina só podem ser entendidas,
como parte de um processo mais amplo de transformação do capitalismo [...].

Com a entrada do século XXI, esse processo perdurou. De acordo com os dados
divulgados pelo IBGE, no ano de 2008 da porcentagem de pessoas ocupadas em seis regiões
metropolitanas investigadas pela pesquisa mensal de emprego, 44,4 % eram mulheres. Em
que pese, o grande percentual de mulheres no mercado de trabalho no século XXI, as
desigualdades continuam sendo verificadas.
Conforme os dados do IBGE, no ano de 2012 do total de trabalhadores domésticos no
Brasil, 92% eram mulheres. Além disso, observou-se que, no ano de 2014, 64,6% das mulheres
formalmente contratadas, estavam trabalhando em setores relacionados à saúde, educação
e administração pública. Esses dados, demonstram que apesar de todas as modificações
ocorridas no mercado de trabalho e na sociedade, a divisão sexual do trabalho segue, sendo
refletida nas segregações setoriais pois, as mulheres são colocadas em posições em que sua
387

presença já é tradicional, como por exemplo o serviço doméstico, o qual tem grande peso para
as mulheres no mercado de trabalho. Segundo Maria Betânia Ávila:

A disponibilidade permanente para servir aos outros é constitutiva da noção do


trabalho doméstico como trabalho das mulheres e isso é uma tenção na relação
social de sexo. O trabalho doméstico, quando feito através de uma relação salarial,
como um emprego remunerado, leva consigo a referência da disponibilidade
permanente como constitutiva do que se espera de uma trabalhadora doméstica.
Esse me parece um problema importante na reflexão sobre emprego doméstico no
Brasil, uma vez que um elemento fundamental dessa relação de exploração é a
extensão da jornada de trabalho, em geral extensa e intensa. (ÁVILA, 2010, p.131).

A desvantagem da mulher no mercado de trabalho também pode ser verificada nas


diferenças remuneratórias, em 2015 as trabalhadoras recebiam cerca de 76,1% do
rendimento habitual dos homens (PNDA/IBGE, 2015). Isso ocorre, principalmente, porque o
trabalho da mulher ainda é visto como inferior ao do homem e seu salário é posto como um
complemento à renda familiar
É nesse contexto que a mulher se encontra em posição de vulnerabilidade no mercado
de trabalho. A segregação setorial e as remunerações relativamente baixas, demonstram que
a mão de obra feminina ainda é desvalorizada, bem como a precarização de seu trabalho.
Além disso, as mulheres são a maioria nos serviços terceirizados, no setor de prestação
de serviço, bem como no trabalho informal. Formas de emprego, advindas da reestruturação
produtiva, que tem como característica romper com a relação de trabalho formal, sob a
proteção de alterações nas legislações trabalhistas, com o fim de aumentar o lucro das
grandes empresas.

3 O TRABALHO DA MULHER NO BRASIL E AMPLIAÇÃO DA SUA VULNERABILIDADE

A posição da mulher desde sua entrada no mercado de trabalho, sempre esteve


marcada pela precarização, uma vez que a divisão sexual do trabalho tende a se reproduzir e
as trabalhadoras acabam cada vez mais desprotegidas, sob o manto de novas relações
contratuais protegidas pela legislação. Nesse senda, Felipe e Queiroz enfatizam (2015, p. 284):
388

É importante ressaltar que apesar das mulheres terem conquistado avanços por
intermédio da sua inserção no mundo do trabalho e em outros espaços da vida
social, esta ainda se dá de forma precarizada e subordinada em relação aos homens,
à exemplo das atividades desenvolvidas pelas mulheres estarem voltadas à
dimensão da prestação de serviços a outrem, terem um caráter complementar ao
trabalho dos homens, pouco prestígio social e aferirem baixa remuneração em
relação ao trabalho masculino.

Nesse quadro, compreende-se que as atividades terceirizadas para grandes empresas,


setores públicos, microempresas ou trabalho em domicílio concentram um grande número de
mulheres trabalhadoras. Na medida em que os contratos de trabalho se tornam mais flexíveis,
o número de trabalhadoras aumenta, como é o caso dos setores de limpeza e conservação,
de modo que:

É relevante pensar também todo o processo de terceirização. Atualmente a


informalidade se encontra no coração da formalidade, por meio dos processos de
flexibilização e da terceirização. Ela se apresenta como um componente
imprescindível do processo de acumulação e da busca por maior produtividade,
redução de custos e maiores lucros. Dessa maneira, constituem-se novos e velhos
cenários de formas de trabalho precárias, lastreadas no uso intensivo do fator
humano e na incorporação de segmentos antes deixados à parte desses processos,
como no caso dos ex-formais ou das mulheres. (ARAÚJO e DURÃES, 2010, p. 91).

Assim, diante do contexto em que a mulher foi inserida no mundo do trabalho e da sua
divisão sexual, onde persistem as formas de desigualdade de gênero e de práticas informais
de trabalho, nas quais estas representam a grande maioria dos trabalhadores, têm-se como
uma realidade que o processo de flexibilização da legislação trabalhista no Brasil, agravado
mediante a aprovação do PL 4.302/98, irá atingir de forma mais acentuada os direitos e
garantiras trabalhistas da mulher trabalhadora.
O projeto de lei nº 4.302/98, aprovado pela Câmara dos Deputados em 22 de março
de 2017 e convertido na Lei Ordinária nº 13.429/17, liberou a terceirização irrestrita para
empresas, atribuindo responsabilidade subsidiária à empresa contratante quanto às
obrigações trabalhistas oriundas do período no qual ocorrer a prestação de serviço, além de
permitir a subcontratação pelas empresas prestadoras de serviços de outras empresas para a
realização dos serviços que oferecem, entre outras medidas (BRASIL, 2017).
Nessa senda, compreende-se que a terceirização é uma das formas de empregos mais
precárias do mundo do trabalho, a partir dela uma empresa transfere a outra a
responsabilidade pela realização de tarefas necessárias ao funcionamento das atividades
389

empresariais. Segundo compreendem Wilson Ricardo Buquetti Pirotta e Kátia Cibelle


Machado Pirotta (2002, p. 10):
A terceirização torna precária a situação do trabalhador de diversas maneiras: cria
novas categorias profissionais menos organizadas, com sindicatos mais fracos e
menor poder de barganha; aumenta a rotatividade nos postos de trabalho, já que as
empresas terceirizadas são contratadas por determinado período de tempo, nem
sempre sendo renovado o contrato ao seu término; expõe o trabalhador a fornecer
sua força de trabalho para empresas com escasso patrimônio, sendo de difícil
execução as sentenças trabalhistas contra tais empresas, em caso de
inadimplemento das obrigações trabalhistas e recurso do trabalhador ao judiciário.

Nesse contexto, as mulheres que sempre estiveram nos setores mais precários do
mercado de trabalho, serão as mais afetadas pela publicação da Lei da Terceirização, pois as
desigualdades já verificadas tendem a se acentuar. Até a aprovação do projeto de lei a
terceirização estava limitada apenas aos setores de vigilância, limpeza e conservação, bem
como para prestação de serviço relacionada às atividades-meio das empresas, por força da
súmula 331 do TST.
Nesse quadro, de acordo com os dados fornecidos pela DIEESE (2017), em 2014
existiam cerca de 12,4 milhões de trabalhadores terceirizados no Brasil, desse número as
mulheres correspondem a aproximadamente 1/3 (TEIXEIRA, 2015). Os trabalhadores
terceirizados são penalizados com as remunerações relativamente mais baixas, com a alta
rotatividade e com jornadas de trabalho mais longas e exaustivas.
No ano de 2014, a diferença salarial entre um trabalhador terceirizado e um
trabalhador contratado diretamente pelo tomador era cerca de 27%. Enquanto o primeiro
recebia em média R$ 2.639,00, o segundo recebia cerca de R$ 2.021,00 (DIEESE, 2017). Essa
é uma questão preocupante pois, o salário da mulher que já tende a ser menor mesmo quando
contratada diretamente pelo empregador, poderá ser reduzido ainda mais quando contratada
por empresas terceirizadas. No ponto de vista de Felipe e Queiroz (2015, p. 286):

O salário daà ulhe àe àg a deà edida,àai daà à istoà o oàu aà ajuda àeàseuàpapelà
reprodutivo que implica em fatores domésticos e familiares causam interferência em
sua inserção no mercado de trabalho. Sendo assim, a divisão sexual do trabalho
separa locais de homens e mulheres no mundo do trabalho encarregando-as pelo
trabalho doméstico e desvalorizando as atividades por elas realizadas.

Nessa senda, a pesquisa demonstrou, ainda, que aquela proporção é aprofundada


quando se observa apenas o salário das mulheres visto que, a diferença salarial entre as
390

trabalhadoras terceirizadas e as contratadas diretamente pelo tomador chega ao percentual


de 29,5%. Diante desse quadro, notou-se que os trabalhadores terceirizados homens se
encontravam nos estratos intermediários de rendimentos, enquanto as mulheres estavam
concentradas nos menores rendimentos salariais (DIESSE,2017).
Outrossim, a alta rotatividade também é um problema que afeta os trabalhadores
terceirizados, uma vez que esses vínculos duram em média 02 anos e 10 meses (DIEESE, 2017).
Em estudo acerca das condições nas quais laboravam as trabalhadoras terceirizadas na
Universidade Federal da Bahia (UFBA), Eliane Silva de Souza (2010) verificou que entre os anos
de 2006 e 2010 as trabalhadoras analisadas foram contratadas e recontratadas por cinco
diferentes empresas interpostas. A autora pontuou que as alterações das empresas
geralmente ocorriam antes que as trabalhadoras completassem 01 ano de serviço com a
contratante anterior, ocasionando a perda de direitos, como as férias e o 13º salário. Segundo
Chaves (2014, p. 16):

A elevação de nível de rotatividade no emprego é um mecanismo que as empresas


utilizam para demitir e contratar com salários mais baixos. Significa dizer que
trabalhadoras(es) são demitidas(os) e contratadas(os) pela mesma empresa ou por
empresa diferente em um curto espaço de tempo, inviabilizando o direito às férias.
As férias são um direito constitucionalmente protegido e uma necessidade para a
saúde física e mental da classe trabalhadora. Com o objetivo de proporcionar
descanso após um período determinado de atividade, as férias não podem ser
suprimidas nem mesmo por vontade própria da(o) trabalhadora(or), devendo ser
usufruído no mínimo 1/3 de seu período a cada ano de acordo com a legislação
brasileira.

Por outro lado, em pesquisa realizada no ano de 2014 com as trabalhadoras de limpeza
do campus da Universidade Federal do Paraná, observou-se que as empresas terceirizadas
contratantes dessas funcionárias permanecem na instituição por um período aproximado de
cinco anos. No entanto, a rotatividade das trabalhadoras se mostrou elevada, visto que quinze
das colaboradoras estavam prestando serviços para a empresa a menos de dois anos (DRESCH;
ZANARDINE; FAUX, 2014).
Durante o estudo, constatou-se que as demissões não ocorriam por solicitação das
funcionárias, sendo a maioria dispensadas pelas empresas sob pretexto de serviço mal
prestado. Diante disso, as pesquisadoras observam que o elevado nível de rotatividade é uma
das características da precariedade dos serviços terceirizados (DRESCH; ZANARDINE; FAUX,
2014). Assim, afirma Ferreira (apud FELIPE; QUEIROZ, 2015, p. 281):
391

Em função da divisão sexual do trabalho, as mulheres já entram em desvantagem


nas atividades remuneradas Para agravar a situação os postos de trabalho assumidos
pelas mulheres são, hoje, os mais precários, como por exemplo: [...] no trabalho
terceirizado (empresas de limpeza, por exemplo); no setor de serviços (comércio,
telemarketing); nos serviços mais precários (diaristas, por exemplo). A maioria
destas mulheres, sobretudo nas áreas urbanas, estão desprotegidas socialmente.

Ademais, Dresch, Zanardine e Faux (2014), observaram que a flexibilização da forma


terceirizada do trabalho prestado pelas trabalhadoras respondentes se refletia na jornada de
trabalho, uma vez que o primeiro turno das funcionárias de limpeza da UFPR se iniciava às
06h30min da manhã e o segundo se encerrava às 22h30min da noite. Para as pesquisadoras
essa flexibilização dos turnos de trabalho revela, mais uma vez a precariedade do trabalho
dessas mulheres, pois:

Dezenove das participantes moravam na região metropolitana e havia três em


Curitiba, que moravam em bairros afastados do centro: Vila Sandra e Bairro Alto.
Isso demonstra que elas precisam de uma quantidade considerável de tempo para
chegar até o trabalho. Uma delas, por exemplo, relata que precisava sair de casa às
quatro horas da madrugada para bater o ponto no horário. No entanto, muitas
citaram que o horário era um ponto positivo, porque assim elas poderiam buscar os
filhos e filhas na escola e realizar outras tarefas. É relevante citar que todas elas eram
mães. Essa avaliação delas, sobre o horário deixa bastante clara, mais uma vez, a
relação entre trabalho, precarização e gênero, pois a função de cuidar das crianças
é predominantemente atribuída às mães. (DRESCH; ZANARDINE; FAUX, 2014, p.
130).

Em análise realizada pelo IPEA (2017), foi demonstrado que a jornada semanal total
média de trabalho das mulheres – somando o trabalho remunerado e afazeres domésticos –
em 2015, foi de 53,6 horas, enquanto a dos homens era de 46,1 horas, ou seja, as mulheres
trabalham em média semanalmente 7,5 horas a mais que os homens.
Essa circunstância relacionada ao trabalho da mulher e suas atividades domésticas,
ocorre pois, conforme pontua Renata Gonçalves (2003), a precarização das condições de
trabalho acontece sem que haja uma desconstrução dos papéis atribuídos à mulher. Desta
forma, a jornada de trabalho daquelas é sempre justificada pelo discurso de conciliação entre
oà t a alhoà fo alà eà oà t a alhoà deà asa ,à situaç oà ueà o t i uià ta à pa aà ueà suaà
inserção se dê em condições precárias e inseguras, geralmente levando à intensificação da
392

a gaàdeàt a alho,à à eduç oàdaà e u e aç oàeà àpe daàdaàp oteç oàofe e idaàpelaàlegislaç o à
(SEADE apud GONÇALVES, 2003).
Nesse contexto a situação das mulheres que já não é favorável se agrava quando se
trata de trabalhadoras terceirizadas, visto que de acordo com dados divulgados pela DIEESE
(2014) os trabalhadores terceirizados trabalham semanalmente cerca de 3,0 horas a mais em
relação aos trabalhadores tipicamente contratados, ou seja, a dupla jornada de trabalho se
torna mais exaustiva ainda para a mulher que possui uma ocupação terceirizada.
Observa-se então, que a precarização das relações de trabalho coexiste com a divisão
sexual do trabalho. Nesse contexto, a terceirização é a forma que mais se destaca nesse
processo atualmente tendo em vista sua expansão, representado sérias consequências aos
trabalhadores brasileiros, sobretudo, às mulheres.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A construção social de gênero, tem impacto negativo no gênero feminino, tendo em


vista que naturaliza as diferenças entre os sexos e coloca a mulher em uma posição inferior
ao homem, consolidando a divisão sexual dos papéis de gênero, atribuindo à mulher as
responsabilidades dentro do lar, tendo no homem o seu provedor. Desta forma, a
desigualdade de gênero está diretamente ligada a dicotomia público-privada, tendo em vista
que enquanto os homens são orientados a desenvolver atividades valorizadas pela sociedade,
as mulheres são obrigadas a criar uma expectativa de únicas responsáveis pelo lar.
Foi diante desse contexto que a divisão sexual do trabalho se consolidou, baseada na
naturalização das diferenças hierarquizadas entre os sexos, relegado à mulher dificuldades de
acesso a oportunidades e recursos. Porém, foi na década de 1970, paralelamente à ascensão
do movimento feminista e reestruturação produtiva do capitalismo, que as mulheres
passaram a ingressar de forma intensa no mundo de trabalho. No Brasil, esse processo se
consolidou entre as décadas de 1980 e 1990.
Contudo, grande parte das trabalhadoras foram inseridas em setores precários e mal
remunerados, sendo alocadas em funções consideradas tradicionalmente femininas como o
emprego doméstico e outras tarefas relacionadas ao cuidado. Isso ocorreu, em razão do
processo de reestruturação produtiva que ganhava força no Brasil, o qual baseado num
393

modelo de acumulação flexível, modificou as relações de trabalho, criando novas formas de


ocupação precárias e vulneráveis, concentrando grande parte da mão de obra feminina nesses
serviços. Desta forma, a divisão sexual do trabalho continuou sendo reproduzida, refletida nas
segregações setoriais e marcada pela precariedade.
Esse cenário persistiu com a entrada do século XXI e o processo de reestruturação
produtiva significou a relativização dos direitos dos trabalhadores no Brasil, através da
manutenção das leis trabalhistas. No caso mais recente, a aprovação do PL nº 4.302/98 que,
na prática libera a terceirização para todas as atividades das empresas contratantes, significou
um grande retrocesso aos direitos dos trabalhadores. Nesse contexto, as mulheres por serem
as mais vulneráveis no mundo do trabalho, serão as mais afetadas pela liberação irrestrita da
terceirização.
A precariedade das relações de trabalho terceirizadas se refletem na alta rotatividade,
nas baixas remunerações e nas extensas jornadas de trabalho. Todas essas circunstâncias
penalizam ainda mais as mulheres, tendo em vista que sua posição no mercado de trabalho já
é vulnerável, sua remuneração tende a ser mais baixa quando comparada aos homens e a
jornada de trabalho é ainda mais extensa em razão da divisão sexual do trabalho que atribui
a mulher às responsabilidades domésticas, relegando à ela uma dupla jornada de trabalho
naturalizada pela designação dos papéis de gênero na nossa sociedade.
Desse modo, a aprovação do PL nº 4.302/98, com a publicação da chamada Lei da
Terceirização, não trará nenhum benefício para as mulheres, muito pelo contrário ira atingi-
las de forma mais acentuada. A nova lei representa apenas uma resposta aos anseios do
capitalismo de gerar lucro em detrimento dos direitos do trabalhadores, mediante exploração
e opressão. E sendo característica do capital reproduzir as desigualdades de gênero, mais uma
vez irá sugar a dignidade das mulheres trabalhadoras, fragilizando ainda mais essa classe que
já se encontra vulnerável no mundo do trabalho.

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em: 13/05/2017.
396

A VERDADE POR TRÁS DOS BASTIDORES: A DITADURA MILITAR NÃO MATOU


VAGABUNDOS, BANDIDOS, IMINIGOS INTERNOS E TERRORISTAS1

Luane Flores Chuquel2


Alef Felipe Meier3
Ivo dos Santos Canabarro4

RESUMO: A ditadura militar brasileira foi marcada por um regime autoritário, repressivo e
punitivo que confrontava e desrespeitava os direitos humanos e a dignidade humana. As
pessoas que eram contrárias às ideologias impostas à época e denunciavam as barbáries
causadasàpeloàapa elhoà ep esso ,àe a à o side adosàpelosà ilita esà o oàse doà i i igosà
i te os ,à aga u dos ,à a didos à eà te o istas .à эogo,à e a à al osà deà pe seguiç es,à
detenção arbitrária, tortura, morte e a ocultação de cadáver eram sistematicamente utilizadas
contra aqueles que se revoltassem, objeto de abordagem do presente trabalho. Para tanto,
utiliza-se o método de abordagem dedutivo, enquanto método de procedimento
monográfico.

Palavras-chave: Direitos Humanos; Ditadura Militar; Violações; Vítimas.

1 INTRODUÇÃO
O Golpe Militar de 1964 consistiu em um período de extrema repressão e
autoritarismo, na medida em que houve a ruptura dos direitos individuais e sociais, ferindo,
automaticamente, direitos humanos e fundamentais. As Forças Armadas tinham como vítimas
cidadãos comuns, que sonhavam e idealizavam em um país justo e igualitário, onde o direito
à expressão, o direito à dignidade da vida humana, o direito à liberdade, o direito individual,
o direito social, o direito à manifestação e voto direto fossem respeitados e garantidos pela
Norma Constitucional.
Nesse sentido, milhares de cidadãos foram alvos dos agentes de Estado, considerados
pelos militares como sendo inimigos i te os 5,à aga u dos ,à a didos àeà te o istas , sofrendo

1
Este artigo é resultado de um recorte teórico no qual se pretende desenvolver o Projeto de Dissertação
vinculado ao Programa de Pós-Graduação stricto-sensu, Mestrado em Direitos Humanos, da Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, UNIJUÍ, Ijuí/RS. Este trabalho foi desenvolvido com o apoio
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.
2
Bacharel em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - URI, campus Santo
Ângelo/RS. Mestranda em Direitos Humanos na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do
Sul - Unijuí, Ijuí/RS. Bolsista Capes, e-mail.: luanechuquel@hotmail.com.
3
Mestrando em Direitos Humanos no Programa de Pós-graduação stricto-sensu em Direito da Universidade
Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ - Brasil), graduado em Direito pela mesma
instituição, e-mail: aleffelipe93@hotmail.com.
4
Professor orientador, Doutor em História, Docente do Curso de Mestrado em Direitos Humanos da UNIJUÍ, e-
mail.: icanabarro@yahoo.com.br.
5
Considera-seà i i igoà i te o à todasà asà fo çasà so iais,à ope ios,à a po eses,à estuda tesà eà soldados,à
juntamente com pequenos partidos e parlamentares nacionalistas e esquerdistas eram consideradas perigosas
397

sob as mãos dos torturadores violências físicas, psíquicas e sexuais. Havia a implantação do
medo e do terror utilizando-se da prática de tortura, sequestros, desaparecimentos, mortes,
ocultação de cadáver e exílio. Essas práticas eram justificadas pelo governo com o fim de
combater subversão e instaurar a Segurança Nacional no país.
A partir da elucidação dos fatos, mostra-se o total desrespeito aos direitos humanos,
visto que milhares de pessoas ainda encontram-se desaparecidas; sabe-se, também, que em
determinados casos o aparelho repressivo atestou versões falsas sobre as causas que
ensejaram o óbito de certas pessoas. Ainda há a ocultação de cadáver.
Importante salientar que, o regime militar brasileiro criou fantasiosamente e mentiu
para a população brasileira ao justificar seus atos repressivos era uma forma de deter os atos
deà a dalis o,àte o is oàeà a ditis o,à ealizadosàpelosà i i igosài tei os .àáfi a a à ue,à
apenas estes grupos eram alvos de repressão, com o objetivo de manter a ordem interna
Nacional.
Sabe-se que, as pessoas que lutavam por um país mais justo, digno, igualitário, livre e
com mais direitos, que denunciavam as atrocidades cometidas pelos Agentes dos estados não
eram inimigos i te os ,à aga u dos ,à a didos à eà te o istas , mas sim estudantes,
universitários, jornalistas, atores, cantores, trabalhadores em geral, professores, etc.; todos
assassinados voluntariamente e covardemente pelos Agentes dos Estados.

2 AS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS OCORRIDOS NO BRASIL DURANTE OS ANOS DE


1964 À 1985

Durante o regime militar ditatorial, normas e premissas fundamentais foram violadas


e direitos individuais indisponíveis foram brutalmente suprimidos. Neste lapso temporal, a
prática da tortura era sistematicamente aplicada, as detenções eram arbitrárias, os
desapa e i e tosà fo jados,à aà e su aà i piedosa e teà ep essi aà eà aà [...]à pe seguiç oà
político-ideol gi a àe aà ealizadaàdeà a ei aà la desti aà PIOVй“áN,à ,àp. .

e subversivas ao sistema. A Doutrina de Segurança Nacional, comprometida com a expansão do capitalismo,


atrelado aos interesses norte-americanos, e também comprometida com a retirada de obstáculos ao seu pelo
desenvolvimento, considerava a necessidade de conter o avanço dessas forças sociais que representavam
i i igos à u aàgue aà Wá““й‘MáN;àGUá))йээI,à ,àp. .
398

Segundo informações prestadas pela Comissão Nacional da Verdade, a ruptura dos


direitos humanos consistiu em:

[...] opositores políticos do regime – e todos àqueles que de alguma forma eram
percebidos por este como seus inimigos – foram perseguidos de diferentes
maneiras. Os exemplos são muitos: cassação de mandatos eletivos e de cargos
públicos censura e outras restrições à liberdade de comunicação e expressão,
punições relativas ao exercício da atividade profissional (transferências, perda de
comissões, afastamento, demissões) e exclusão de instituições de ensino (2014,
p.278).

Reconhece-se, outrossim, outros métodos utilizados no período ditatorial como


violação aos direitos humanos, a saber: à prisão ilegal e arbitrária; à prática de violência
se ual;à [...]àto tu a;àe e uç oàsu ia,àa it iaàouàe t ajudicial e outras mortes imputadas
aoà йstado;à eà desapa e i e toà fo çado à COMI““ÃOà NáCIONáэà Dáà Vй‘DáDй,à ,à p. -
280).

Todo um aparato técnico de informações e ações organizadas foi montado e


colocado a serviço de crimes em massa como: [...] torturas e sevícias cruéis que
deixaram sequelas permanentes ou resultaram em mortes; seqüestros de crianças,
pais, mães e filhos; assassinatos e desaparecimentos; monitoramentos e ameaças
constantes que resultavam em prisões e mortes; banimentos e pessoas compelidas
ao exílio (SILVA FILHO, 2008, p.156).

Observa-se que durante o regime militar brasileiro houve a ruptura desses direitos
básicos que deveriam ser tutelados pelo Estado, como, por exemplo, normas fundamentais à
dignidade da pessoa humana que, no entanto, n oàe a àzelados.àPo àassi àdize ,à áàto tu a,à
asàpe seguiç esàeàassassi atosàp ati adoàpeloàйstadoàeàpo àg uposàpa a ilita es àfo a àu aà
prática comum no Brasil (MAGALHÃES, 2000, p.35). Nesse diapasão:

La tortura es una violación fundamental de los derechos humanos, condenada por


La comunidad internacional como una ofensa a la dignidad humana y prohibida en
toda circunstancia por El derecho internacional (AMNISTÍA INTERNACIONAL, 2001,
p.109).

Assim, mostra-se evidente a ruptura dos direitos humanos, constituindo-se,


principalmente em danos morais, imateriais, danos físicos, psíquicos e danos materiais, tanto
para a vítima como sua família. Verifica-se, portanto, inúmeras violações durante o período
399

ditatorial, em que os considerados opositores do regime foram alvos de barbáries em série,


ficando marcados para sempre em sua memória e na de todos que vivenciaram esta época.

2.1 TORTURAS, DESAPARECIMENTOS, SEQUESTROS, MORTES E OCULTAÇÃO DE CADÁVERES

Fala-se em revanchismo, talvez vingança, mas a verdade não é nenhum dos dois. Para
ue àsof euà aàpele àaàsel age iaàdeàu àestadoàdeàe eç oà utal,àouà es oàosàfa ilia esà
que passam pela dor de perder seu ente querido que, em diversos casos, não puderam nem
ao menos enterrá-los, a palavra revanchismo não se justifica. Alguém precisa ser
responsabilizado.
Havia um objetivo para sequestrar, torturar, matar e sumir com os corpos. Estas
práticas marcaram este período, não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina.

O desaparecimento de presos políticos foi moeda corrente na América Latina dos


anos 70, principalmente no Cone Sul. Essa prática consistia em sequestrar e fazer
sumir opositores políticos dos regimes ditatoriais. No Brasil, o processo não foi
diferente. Com o desaparecimento, não havia como acionar qualquer dispositivo
legal para tentar salvar a vida das vítimas. Não havia vestígios, nem provas. Em
muitos casos comprovados, a pessoa desaparecida permaneceu semanas ou meses
em local incerto, sendo torturada por seus algozes. Assim, os órgãos de repressão
podiam dispor sobre a vida e a morte dos presos políticos. Não necessitavam de
nenhuma justificativa para seus atos. Prendiam, torturavam, executavam e faziam
desaparecer os corpos das vítimas, sem dar satisfação a tribunais, advogados,
familiares, amigos e a nenhum setor da sociedade civil. As próprias leis
inconstitucionais do regime eram violadas rotineiramente. A perpetuação do
sofrimento dos familiares e a incerteza sobre o paradeiro de seus entes queridos
levaram a uma situação de prolongada insegurança. Foi uma outra forma de tortura
permanente, levada a cabo pelo Estado policial. A CEMDP computou, como saldo de
suas investigações, cerca de uma centena e meia de desaparecidos políticos. Muitos
deles foram vistos em dependências policiais por outros presos, que testemunharam
sobre sua prisão e tortura. De outros não se têm notícias, nem das suas passagens
por prisões. Eram, quase sempre, ativistas políticos notoriamente perseguidos pelos
órgãos de segurança. Vários estavam submetidos a processos judiciais. Seus últimos
contatos foram com companheiros de suas organizações. Depois, sumiram. Nunca
mais foram vistos (COMISSÃO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS
POLÍTICOS, 2007, p.48-49).

Durante a ditadura civil-militar no Brasil, centenas de pessoas foram vítimas fatais do


400

egi e.àN oào sta te,à [...]àu à ú e oà uitoà aio àdeàpessoasàfo a àp esas,àto tu adas,6
perseguidas, impedidas de trabalhar, exiladas e banidas, mas que não chegaram a morrer
di eta e teàpelaàaç oà ep esso a à COMI““ÃOàй“PйCIáэà“OB‘йàMO‘TO“àйàDй“áPá‘йCIDO“à
POLÍTICOS MINÚS SILVA FILHO, 2008, p.155).
A ocultação dos cadáveres, consequentes das práticas de tortura impostas, consistia
em uma espécie de proteção do Estado e de seus aliados (torturadores) como forma de evitar
futuras represálias. Neste interim:

Para não deixar rastros, os Estados ocultavam os corpos das vítimas – por meio, entre
outros, da criação de cemitérios e valas clandestinas; da identificação das pessoas
como indigentes; e do despejo de corpos no fundo de lagos, de rios ou do mar
(atirados de aviões e helicópteros). Milhares de presos políticos morreram assim, e
até hoje, na maioria dos casos, não se tem notícias do seu paradeiro (COMISSÃO
NACIONAL DA VERDADE, 2014, p.290).

Em conjunto com os sequestros e a ocultação de cadáveres, o desaparecimento


forçado7 e a privação de liberdade fundam as outras características do regime ditatorial. De
outra banda, sob a ótica da Comissão Nacional da Verdade considera os desaparecimentos
forçados8 o oàse doà [...]àosà asosàe à ue,àe o aàe ista àdo u e tosàofi iaisàatestando

6
Entende-seàa uiàpo àto tu aà ual ue àatoàpeloà ualàdo esàouàsof i e tosàg a es,àdeà atu ezaàfísi aàouà e tal,à
são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou
confissões; [...] castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter
cometido; [...] intimidar ou coagir essa pessoa ou outras pessoas, ou por qualquer motivo baseado em
discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por funcionário público ou
outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou
a uies ia à нOэйYàáPUDàá‘áNTй“,à ,àp. .àáàe e ploàdisso,àe à àdeà aioàdeà ,à aà idadeàdeà‘e ife,à
o padre Antônio Henrique Pereira Neto, coordenador de Pastoral da Aquidiocese de Olinda e Recife, professor e
especialista em problemas da juventude, foi sequestrado. A tragédia aconteceu em razão de que a vítima,
juntamente com o arcebispo Dom Hélder Câmara, denunciaram os métodos de repressão que eram utilizados
peloàpode à ige te.àDiasàdepois,àseuà o poàfo aà e o t adoàpe du adoàdeà a eçaàpa aà ai oàe àu aà o e,à
com hematomas, queimaduras de cigarro, cortes profundos por todo o corpo, castração e dois ferimento
produzidosàpo àa aàdeàfogo ,àe àu à atagalàdaàCidadeàU i e sit iaàdeà‘e ifeà COMI““ÃOàй“PйCIáэà“OB‘йà
MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS, 2007, p. 96).
7
Nesse sentido, a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas de 1994, conceitua
o desaparecimento forçado, por assim entender: [...] a privação de liberdade de uma pessoa ou mais pessoas,
seja de que forma for, praticada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas que atuem com
autorização, apoio ou consentimento do Estado, seguidas de falta de informação ou da recusa a reconhecer a
privação de liberdade ou a informar sobre o paradeiro da pessoa, impedindo assim o exercício dos recursos legais
e das garantias processuais pertinentes (artigo 2º).
8
[...] a) casos derivados de detenções não reconhecidas oficialmente, seguidas pela negação de informações
sobre o paradeiro da vítima: trata-se do modelo de desaparecimento que se tornou padrão, entre os anos 1973
e 1974, em que militantes eram capturados pelos órgãos da repressão em um contexto de operações de
inteligência em torno das organizações e do intenso monitoramento sobre os militantes, muitas das vezes na
clandestinidade; b) casos derivados de detenções oficialmente reconhecidas, seguidas de negação de
401

a morte da vítima,9 seusà estosà o taisà oàfo a àe o t adosàouàple a e teàide tifi ados à
(2014, p.294).

. àOà‘йGIMйàMILITá‘àB‘á“ILйITOàNÃOàMáTOUà BáNDIDO“ ,à VáGáBUNDO“ ,à INIMIGO“à


INTй‘NO“ àйà Tй‘‘O‘I“Tá“

Durante o Regime de Exceção, os brasileiros puderam vivenciar um Estado totalmente


disforme, visto que as normas constitucionais foram violadas e as premissas fundamentais de
proteção aos direitos individuais e coletivos, foram totalmente atingidas e desrespeitadas.
Qualquer cidadão que se opusesseà sà eg asà e aà pe seguido,à te à i í ioà aà ope aç oà
li peza 10.

A ordem era de que quem praticava a censura, seja por meio da imprensa, do teatro,
da música, da literatura e das artes, ou, ainda, quem possuísse amizades com políticos
influentes exilados, seriam alvos de torturas11, sequestros, desaparecimentos, mortes e
ocultação de cadáver ou exilados.
áàde o i aç oàdeà te o istas ,à aga u dos ,à a didos ,à i i igosài te os à oà
condizem com quem lutou por um Brasil melhor, sem desigualdades e injustiças e pagou com

informações sobre o paradeiro da vítima: embora raros e esparsos, tais casos ocorreram em relação a militantes
que não viviam na clandestinidade e cuja morte, aparentemente não planejada, não poderia deixar rastros; e c)
mortes oficialmente reconhecidas, com ausência de plena identificação dos restos mortais: trata-se de padrão
que pretendia eximir a responsabilidade do órgão de repressão, com montagem de versões oficiais falsas para
mortes causadas por tortura. Essas versões sustentavam-se, por um lado, pela participação de médicos-legistas
que não faziam registrar as marcas de tortura, por meio da reprodução a crítica da narrativa oficial pela imprensa
e, especialmente, pelo sepultamento como indigentes, impedindo a identificação das vítimas pelos familiares
(COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p.294).
9
o oà e tid oàdeà ito,àlaudoà ada i o,àde la aç esàfo aisàdeàauto idadesàestataisàouàfotosàdoàI stitutoà
Médico-эegalà IMэ à COMI““ÃOàNáCIONáэàDáàVй‘DáDй,à ,àp. .
10
Em 1967 o Colégio Militar elegeu Arthur da Costa e Silva como presidente da República. Neste governo foi
i stau adoà oà áIà º à ueà da aà p e ogati asà ditato iaisà aoà p eside te,à o oà o fis a à e sà e à asoà deà
e i ue i e toà ilí ito ,à eà oà o ede à habeas corpus aos indivíduos enquadrados na Lei de Segurança
Na io al à “CрNййBй‘Gй‘,à ,àp.à g ifo .àUtiliza do-se das prerrogativas dispostas no AI nº 5, Arthur da
Costa e Silva prendeu milhares de pessoas em todo o país, fechou o Congresso Nacional por prazo indeterminado,
cassou os mandatos de 110 deputados, afastou ministros do Supremo Tribunal Federal. Após sofrer problemas
de saúde, o General Costa e Silva é substituído. Quem assume o governo é Garrastazu Médici (1969 a 1974),
marcado pelo ápice das torturas e desaparecimentos; foi o período de maior violência de todo regime militar
(SCHNEEBERGER, 2006, p. 331). Posteriormente, sucedeu na presidência da República Ernesto Geisel (1974 a
1979), marcado pela ação democratizante, visando retirar a severa censura imposta aos meios de comunicação
e extinguiu todos os atos institucionais que vigoraram na imposição arbitrária da ditadura.
11
Osà todosà o u sàutilizadosàpa aàaàp ti aàdeàto tu aàeàdeà ausàt atosà o oà [...]à ho uesàel t i os,[...],à
suspensão do corpo, bater nas solas dos pés, sufocamento, falsa execução de morte ou ameaça de morte e
confinamento prolongado em solitária. [...], su e s oàe à gua,à olo a àto osàdeà iga oàa esoà oà o poà[...] à
(ANISTIA INTERNACIONAL, 2000, p.18).
402

a vida12. Com certeza os atos praticados no período ditatorial não foram razoáveis, justificando
assim a busca pela verdade e a consequente reparação aos atos desumanos praticados.
Dentre as tantas vítimas da sombria época da Ditadura Militar local, está o assassinato
de Vladimir Herzog13 [...]à to ou-se uma personagem icônica da História do Brasil e da
o st uç oàdaà ossaàde o a ia .

[...] foi assassinado no dia 25 de outubro de 1975, sábado, num antigo prédio da rua
Tomás Carvalhal, no Bairro do Paraíso, em São Paulo, onde funcionava o
Destacamento de Operações de Informações (DOI), departamento do Centro de
Operações de Defesa Interna, (CODI), órgão subordinado à Segunda Divisão de
Exército, parte da organização hierárquica do Comando Militar do Sudeste, sediado
na capital paulista (TOJA, 2017, s.p.).

Seu desaparecimento tornou-se um mistério, em virtude de o governo militar ter


de la adoà ofi ial e teà ueà oà es oà [...]à teria se enforcado com o cinto do macacão de
p esidi io .à Toda ia,à segu doà osà teste u hosà deà щo geà Be ig oà щatha à Du ueà йst adaà eà
Rodolfo Konder, ambos jornalistas e [...]àp esosà aà es aà po aà oàDOI-Codi, Vladimir foi
assassi adoàso àto tu as .àOà a i oà“he aàыadish,àdoà o it àfu e ioàjudai o,àaoà e e e àoà
corpo e prepará-loàpa aàoàfu e al,àpe e euà [...]à ueàha iaà a asàdeàto tu aà oà o poàdoà
jornalista, uma evidência de que o suicídio havia sidoàfo jado à TOщá,à ,às.p. .
Após o triste assassinato que chocou os brasileiros na época, fato este que marcou a
História da Ditadura no Brasil e serviu para impulsionar

[...] a luta pela redemocratização do país, a começar pelo ato ecumênico realizado
na Catedral de São Paulo seis dias depois de sua morte, conduzido pelo cardeal D.
Paulo Evaristo Arns, pelo rabino Henry Sobel e pelo pastor James Wright, no qual
oito mil pessoas enfrentaram o medo e os cercos militaresàpa aàdize à asta àdeà i aà
oz.à á ueleàfoiàu à o e toàdeàu i oàdeàfo çasàaàpa ti àdoà ualàfi ouà la oàpa aàoà
regime que a sociedade civil caminharia determinadamente para a reconstrução da
de o a ia ,àdizàáud lioàDa tas,àe t oàp eside teàdoà“i di atoàdos Jornalistas e um
dos articuladores daquela manifestação (INSTITUTO VLADIMIR HERZOG, s.a, s.p.).

12
Estudos estatísticos apontam que cerca de 56% (cinquenta e seis por cento) dos presos a partir da implantação
do AI- àe a à [...]àestuda tesàu i e sit iosàouàdete to esàdeàu àdiplo aàdeà í elàsupe io à OэIVйI‘á,à ,à
p.11). O perfil dos torturados, no entanto, advinda das mais variadas classes sociais, a saber: sindicalistas, esposas
de aprisionados, professores universitários e/ou de educação básica, políticos, mulheres grávidas, estudantes,
sindicalistas, crianças, profissionais liberais, membros da igreja católica, jornalistas, artistas que sofriam
repressão, dentre outros (ARNS, 1987, passim).
13
Nascido em 1937 em Osijsk, antiga Iugoslávia, foi jo alistaà doà jo alà Oàйstadoà deà “ oà Paulo à e à à eà
professor da Universidade de São Paulo (USP). No começo da década seguinte casou-se com Clarice. A partir do
Golpe de 1964, o casal foi para a Inglaterra, onde Vladimir arrumou um trabalho na BBC de Londres. Após quatro
anos voltou para o Brasil, onde então, no ano de 1975 iniciou a direção do jornalismo da TV Cultura (TOJA, 2017,
s.p.).
403

Em 1979 a família de Vladimir ingressou com um processo judicial onde se buscava a


responsabilização do Estado brasileiro pela morte daquele, momento em que o magistrado
Márcio José de Morais deferiu os pedidos da inicial ao reconhecer, condenar e responsabilizar
a União, em nome dos Agentes do Estado, pelo assassinado de Vladimir Herzog (INSTITUTO
VLADIMIR HERZOG, s.a., s.p.).
Além do reconhecimento oficial, da condenação e da responsabilização, busca-se o
direito de desvendar à verdade real e de se fazer justiça sobre o presente caso, pois:

Apenas em 2013, a família teve nas mãos uma nova certidão de óbito, na qual a
morte foi registrada como resultado de les esà eà ausà t atos à i fligidosà oà IIà
Exército (DOI-CODI à – um eufemismo ainda para abuso, tortura, homicídio, mas
mesmo assim significativo de uma enorme transformação política ocorrida no Brasil
com o impulso das forças democráticas que não esmoreceram diante do poder
fardado e da violência (INSTITUTO VLADIMIR HERZOG, s.a., s.p.).

Contudo, sabe-se que, ainda hoje, familiares e amigos de Vladimir Herzog lutam pelo
direito à justiça. Nesse sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos irá analisar, entre
osàdiasà àeà àdeà aioàdoà o e teàa o,àeàa alia àaà [...]àsituaç oàdeài pu idadeàe à ueàseà
e o t a àaàdete ç oàa it ia,àto tu aàeà o te àdeàVladi i à щO‘NáэàDOàB‘á“Iэ,à ,às.a.,à
s.p.).
Manoel Fiel Filho14 foi mais uma vítima, dentre os milhares que foram covardemente
assassinadas pelo regime militar brasileiro (EBC, 2016, s.p.). De acordo com documentos
confidenciais encontrados em arquivos, localizados no antigo Dops de São Paulo, o que
justificou sua prisão arbitrária, tortura e, consequentemente, sua morte, foi de ter cometido
oà i eàdeà e e e àoàjo alà VozàOpe ia à MйMÓ‘Iá“àDáàDITáDU‘á,às.a.,às.p. .
Ainda, segundo informações contidas no Relatório do Ministério Público Federal, [...]à
um dos envolvidos no crime é o militar [...] Audi à“a tosàMa iel,à aà po aà hefeàdoàDOI ,à ue,à
emitindo ordens ao

[...] tenente Tamotu Nakao e o delegado Edevarde José conduziram as sessões de


tortura, com auxílio de outros agentes hoje já falecidos. Os agressores contaram
também com a ajuda dos carcereiros Alfredo Umeda e Antonio José Nocete, que
conduziam o metalúrgico entre a cela e a sala de interrogatório. Após a morte de Fiel

14
Operário metalúrgico que, em janeiro de 1976, fora preso por dois agentes do DOI-Codi, no local de seu
trabalho, sob acusação de fazer parte do Partido Comunista Brasileiro, dias depois, em em 17 de janeiro foi dado
como morto (TOJA, 2017, s.p.).
404

Filho, os agentes levaram o cadáver do operário para uma cela especial, onde
amarraram meias em seu pescoço e simularam um enforcamento. Na parede,
forjaram frases de arrependimento da vítima, na tentativa de tornar verossímil a
versão de suicídio. Para oficializar a falsa causa do óbito, os peritos Ernesto Eleutério
e José Antônio de Mello emitiram laudos nos quais atestaram a ausência de sinais
de agressão, apesar dos evidentes hematomas principalmente no rosto e nos pulsos
da vítima. A família do metalúrgico só conseguiu a liberação do corpo mediante o
compromisso de sepultá-lo o mais rápido possível. Fiel Filho foi velado em um caixão
lacrado, sem que os parentes pudessem ver as claras marcas de violência
(MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, p. 264, 2017).

O suicídio, leia-se, assassinato, de Manoel Fiel Filho, trouxe o afastamento do então


comandante do 2º Exército, general Ednardo D'Ávila Mello, nos quatro dias subsequentes a
divulgação do assassínio do metalúrgico (EBC, 2016). Anos depois, em ação judicial movida
pela família de Fiel Filho, a União foi responsabilizada pela prisão arbitrária, pela tortura e pelo
assassinato (MEMÓRIAS DA DITADURA, s.a., s.p.).
Outro caso emblemático e de conhecimento populacional foi a da vítima Zuleika Angel
Jones, conhecida também por Zuzu Angel15. Sobre sua morte, tem-se conhecimento de que:

Em 14 de abril de 1976, às 3 da manhã, na Estrada da Gávea, logo na saída do Túnel


Dois Irmãos (RJ), Zuzu sofreu um acidente automobilístico que lhe custou a vida. Na
época, o governo divulgou que a estilista teria dormido ao volante, fato contestado
anos depois. Posteriormente, reconheceu-se que a estilista foi vítima de um
atentado, mas até hoje as circunstâncias não foram totalmente esclarecidas (TOJA,
2017, s.p.).

Notadamente, em dezembro de 2014, a Comissão Nacional da Verdade (CNV), trouxe


a público o depoimento do então capitão reformado da Aeronáutica, Álvaro de Oliveira Filho,
qual contribuiu para esclarecimento de diversos casos, ainda obscuros e sem resposta com o
que se sucedeu com as vítimas do regime militar. Conforme a afirmativa do ex-comandante,
o corpo do filho de Zuzu, Stuart Angel Jones, militante morto sob tortura em 1971, foi
enterrado na cabeceira da pista da Base Aérea de Santa Cruz, no Rio de Janeiro (RJ)
(CARVALHO, 2014, s.p.).
Não obstante, o Ministério Público Federal, reconhece, em seu relatório apresentado
e à ,ào deàilust aàaàhist iaàeàaàt ajet iaàdeà)uzuàá gelàaoà e io a à ueà рou eà esà
que pagaram com a vida pelo seu gesto corajoso de não aceitar o silêncio e o imobilismo, [...]

15
[...] incansável oponente da violência do governo militar. Mãe de Stuart Edgar Angel Jones, torturado e
assassinado pela ditadura, Zuzu passou anos denunciando as arbitrariedades da repressão até morrer em um
a ide teàdeà a oàsuspeitoàe à à MйMÓ‘Iá“àDáàDITADURA, s.a., s.p.).
405

por denunciar o desaparecimento de seu filho, Stuart Edgar Angel Jones (1946-1971) e ter tido
aà o tadeàdeàda àu àsepulta e toàaoàseuà o po à ,àp.à .
Zuzu representa diversas mães que tiveram seus filhos vitimados pelo regime militar
que, ao invés de ficar silente, pagou com sua própria vida ao ir a público e denunciar o
desaparecimento de seu filho, Stuart Edgar Angel Jones e de lutar para esclarecer os fatos,
saber da verdade real, encontrar seu corpo e ter um sepultamento digno. A luta de Zuzu
também era a mesma de outros milhares de mães, pais, filhos, irmãos, netos, avós, esposas e
primos que, tinham como objetivo o direito à verdade e à justiça.
Outro importante cidadão que lutou contra as ideologias impostas a época do período
ditatorial, foi Honestino Guimarães16 e, como resultado de sua luta e bravura foi vítima do
aparelho repressivo. A trajetória de Honestino frente à militância estudantil iniciou-se em
1965, ocasião em que sua liderança se revelou:

[...] ações como pichar muros, participar de manifestações e distribuir panfletos


contra o governo resultaram em prisões – a primeira em fevereiro de 1966, durante
uma greve; em fevereiro de 1967 fazendo pichações; em abril de 1967, durante
manifestação na Biblioteca Central da UnB. Em agosto de 1967, na prisão pela quarta
vez [...]. Foi eleito vice-presidente da UNE em 1969, na gestão de Jean-Marc von der
Weid e em 1971 foi eleito presidente. Cumpria, na clandestinidade, suas tarefas na
UNE e militava na Ação Popular Marxista-Leninista. [...]. Há indícios de que a última
prisão deveu-se à delação de um companheiro de partido, que apavorado diante das
ameaças e da perspectiva de tortura, tornou-se informante da polícia. Os órgãos de
repressão admitiram ter prendido Honestino, mas ele nunca foi visto por outros
presos. Mesmo depois de longos anos de incansável busca, sua família não conseguiu

16
Natu alàdeàIta e aíà GO àfo aà p eside teàdoàDi et ioàá ad i oàdeàGeologiaàdaàU B àdaàU i e sidadeàdeà
B asília;àp eside teàdaà нede aç oàdosàйstuda tesàdaà U i e sidadeàdeàB asíliaà нйUB ;à p eside teàdaà U i oà
Nacional dos Estudantesà UNй àeà e oàdaàáç oàPopula à áP .àP esoàdu a teàosàa osàdeà ,à ,à àeà
.à áosà àa osàdeàidade,àfoiàp esoàpo àage tesàdoàCe t oàdeàI fo aç esàdaàMa i haà Ce i a à oàdiaà à
deàoutu oàdeà àe,àdesdeàe t o,àpe a e eàdesapa e ido .àрo estino fora um líder político importante para
o movimento universitário da época, por isso o interesse dos agentes do Estado brasileiro em investigá-lo e
controlá-lo (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p.1320). Como forma de reconhecimento pela sua luta
й Salvador, em 1979, os 10 mil estudantes universitários que se reuniram no congresso de reconstrução da
UNE enfeitaram o ambiente com um gigantesco painel estampando o rosto de Honestino, e deixaram na mesa
que presidiu o evento uma cadeira vazia em sua homenagem. O DCE da Universidade de Brasília foi batizado
com o seu nome e em 26/08/1997, o reitor João Cláudio Todorov outorgou o título de Mérito Universitário a
Honestino Guimarães. O nome de Honestino já foi conferido, em homenagem, a vários equipamentos públicos
em diferentes estados. Em São Paulo, a prefeita Luiza Erundina inaugurou o complexo viário João Dias, composto
de três viadutos. Um deles recebeu o nome de Honestino Guimarães e os outros dois de Sônia Maria de Moraes
Angel Jones e Frederico Eduardo Mayr. Mais recentemente, em 15 de dezembro de 2006, foi inaugurado, ao lado
da Catedral de Brasília, o majestoso edifício do Museu Nacional Honestino Guimarães, construído pelo Governo
do Distrito Federal e executado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, que o inaugurou no dia em que completava 99
anos. Como parte dos preparativos para comemoração do 70º aniversário de fundação da UNE, seus dirigentes
pla eja à la ça à ofi ial e teà oà Ce t oà deà йstudosà рo esti oà Gui a esà daà U i oà Na io alà dosà йstuda tes à
(COMISSÃO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS, 2007, p. 356).
406

saber o que aconteceu com ele, que passou a fazer parte da lista de desaparecidos
da ditadura de 1964 (FARIA, s.a., s.p.).

Familiares e amigos de Honestino conquistaram, apenas em 12 de março de 1996, a


admissão oficial de sua morte mediante a emissão da certidão de óbito. Importante salientar
que, até hoje não foram encontrados seus restos mortais, impossibilitando de ter um
sepultamento digno; trata-se ainda, de um caso obscuro sobre os porões da ditadura (XAPURI
SOCIOAMBIENTAL, 2017, s.p.).
Outro caso que chocou o Brasil e parou a cidade do Rio de Janeiro em protesto pela
morte do estudante Edson Luís de Lima Souto que, com 18 anos de idade e, no dia 28 de março
de 1968, participando de uma manifestação estudantil na cidade do Rio de Janeiro
(MEMÓRIAS DA DITADURA, s.a., s.p.), em que este e centenas de estudantes protestavam
contra o aumento do preço da comida que era servida no restaurante estudantil Calabouço
da cidade carioca, foi covardemente assassinado pelos militares naquele local, a saber (UNIÃO
NACIONAL DOS ESTUDANTES, s.a., s.p.):

Por volta das 18h, a PM dispersou uma manifestação que pretendia alcançar o prédio
da Assembleia Legislativa. Os estudantes se abrigaram dentro do restaurante. Às
h ,à oà te e teà áloísioà ‘aposoà o a douà aà i as o.à Deuà o de sà pa aà ue a à
tudo àeàati ouà à uei a-roupa no peito de Edson Luís. Os jovens reagiram com paus
e pedras, fazendo a polícia recuar. Para impedir que a PM desaparecesse com o
corpo no Instituto Médico Legal, os estudantes o carregaram nos braços até a
Assembleia, onde dois médicos realizaram a autopsia. Coberto com a bandeira do
Brasil e com cartazes de protesto, o corpo de Edson Luís foi velado no saguão do
prédio. [...]. No fim da tarde de 29 de março, cerca de 50 mil pessoas acompanharam
o cortejo fúnebre até o cemitério em Botafogo, onde Edson Luís foi enterrado ao
so àdoàрi oàNa io alàeàaosà adosàdeà Mata a àu àestuda te.àPodiaàse àseuàfilho .à
Naquele dia, houve manifestações de protesto contra a ditadura e greve geral de
estudantes em todo o país. O Rio praticamente parou no dia do sepultamento. Numa
alusão à violência, os letreiros dos cinemas da Cinelândia exibiam os títulos de três
fil es:à áàNoiteàdosàGe e ais ,à âàQuei a-‘oupa àeà Co aç oàdeàэuto .àOàe te oà
de Edson Luís marcou o início da ascensão do movimento estudantil no país, que iria
culminar na Passeata dos Cem Mil, em 26 de junho (Revista FORUM, 2017, s.p.).

Dessa forma, revela-se a história de mais uma vítima pelos Agentes do Estado. O
assassinato de Edson Luís emergiu a necessidade da união e o aumento de forças e resistência
daàpopulaç oà asilei aàe àple oà á osàdeàChu o .
407

Um dos mais marcantes, conhecidos e emblemáticos casos da época, foi o assassinato


do então engenheiro e deputado federal, Rubens Beyrodt Paiva17, genitor do famoso escritor
Marcelo Rubens Paiva18. Atualmente, é de conhecimento público que Rubens Paiva foi
retirado coercitivamente do seio familiar, preso arbitrariamente, torturado e,
consequentemente morto nas dependências do quartel19.
O esclarecimento e a verdade sobre este caso, deu-se graças ao trabalho de
investigação da Comissão Nacional da Verdade20, que, investigou através de documentos e
arquivos sigilosos, bem como a tomada de depoimentos dos militares envolvidos no caso
Paiva pôde solucionar o caso obscuro e reconhecer as violações aos direitos humanos sofridas
por Rubens nas mãos dos Agentes do Estado, datadas detalhadamente no relatório21,
entregue em dezembro de 2014.
Outra vítima fatal, naquele inescrupuloso período da Ditadura Militar foi:

A secretária da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Lyda Monteiro foi assassinada
em 27 de agosto de 1980, por agentes do Centro de Informação do Exército (CIE), ao
abrir uma carta-bomba, revelou hoje (11) a Comissão Estadual da Verdade do Rio de
Janeiro (CEV-Rio), vinculada ao governo do estado. A correspondência era
endereçada ao então presidente da entidade, Eduardo Seabra Fagundes, mas foi
aberta por Lyda, secretária dele. Na época, a OAB denunciava desaparecimentos e
torturas de perseguidos e presos políticos. Com base em depoimentos de
testemunhas, fotos e retratos falados, a comissão identificou a participação do
sargento Magno Cantarino Motta, codinome Guarany, que entregou a bomba
pessoalmente na sede da OAB; o sargento Guilherme Pereira do Rosário, que
confeccionou o artefato e o coronel Freddie Perdigão Pereira, que coordenou a ação
(EBC, 2015, s.p..).

17
Nascido em Santos/SP, em 26 de dezembro de 1929. Tinha na época, 41 anos(FONTELES, 2014, s.p.).
18
й àseuàli o,àtituladoà o oà нelizàá oàVelho ,à elataàdetalhada e teà e asàdeàsuaài f ia ao relembrar a
última vez que o viu, dos momentos de dor, sofrimento e angústia após ver o seu pai ser retirado coercitivamente
de dentro de seu lar e ser levado por agentes das forças armadas, no dia 20 de janeiro de 1971. Seu
desaparecimento tornou-se u à ist io,àe à i tudeàdeàoàgo e oà ilita àte àde la adoà ueàoà es oà oàseà
e o t a aàp eso ,àt oàpou oàsuaàesposaàeàfilhaà PáIVá,à ,àp. , .àátual e teàh àu àpa e e àdaàCo iss oà
Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos desvendando o lugar e as causas que ensejaram a sua morte,
es la e e doà ueàoà es oà [...]à o euà asàdepe d iasàdoàPIC;àQueàe àfu ç oàdasàes o iaç esàap ese tadasà
por RUBENS PAIVA, o declarante admite que o mesmo tenha sido torturado, evidentemente não podendo
afirmar em queàlo al à нONTйэй“,à ,às.p. .
19
[...] torturado e assassinado nas dependências de um quartel militar entre 20 e 22 de janeiro de 1971, seu
corpo foi enterrado e desenterrado várias vezes por agentes da repressão, até ter seus restos jogados ao mar,
na costa da cidade do Rio de Janeiro, em 1973, dois anos após sua morte (TOJA, 2017, s.p..).
20
A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012. A CNV
tem por finalidade apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de
outubro de 1988.
21
Apresentada em um texto assinado pelo coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Cláudio Fonteles
(BENEVENUTI, 2013, s.p.).
408

Naquela época ficou claro o grande desinteresse por parte do então governo militar
para descobrir provas sobre fatos, fazendo crer a motivação política no atentado criminoso. A
então desculpa mais admissível da morte de Lyda, foi de que o crime teria sido feito por um
então dito grupo, composto por militares que estariam insatisfeitos pela abertura política, e
também pela Lei de Anistia aprovada em 1979 (COMISSÃO ESPECIAL SOBRE MORTOS E
DESAPARECIDOS POLÍTICOS, 2007, s.p.).
Estes homens, jovens, mulheres e mães são apenas alguns dos milhares de cidadãos
brasileiros que na época foram alvos de prisões arbitrárias, desaparecimentos, torturas,
mortes e ocultação de cadáver, onde se verifica a violação da dignidade da pessoa humana,
em que eram tratados de forma violenta e covarde pelas mãos daqueles que deveriam dar
segurança.
Esse período obscuro da história brasileira merece e deve ser contado para presentes
e futuras gerações do país, incentivando, por meio de políticas públicas pelo Governo Federal
para que não caia no esquecimento do povo brasileiro. A memória é de extrema importância
na apuração da verdade e da justiça, na medida em que envolve a proteção de Direitos
Humanos como âmbito de força, refletindo na preservação da verdade e memória durante o
regime militar.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho procurou trazer à tona um pouco do que se sabe sobre aquele
soturno período ditatorial vivido no Brasil. Revelou-se que não foram exterminados tão-
somente os direitos fundamentais dos cidadãos da época, mas também, vidas de pessoas
fo a à eifadas,àpo ,à o ti ua a à i os ,àpa aà us a à espostasàso eàalgu sàdosà asosà
aqui apresentados.
O presente tema nos revela a cristalina importância acerca da história que se revela,
sua forma dolorosa que é uma evidente marca, além de toda a imposição dos então
autoritários ditadores, que faziam de si, o Estado máximo, tentando aplicar naquele tempo
uma ideologia política instável desde o seu início.
Mostrou-seà ueà oàfo a àape asà aga u dos ,à a didos ,à i i igosài te os àeà
te o istas à ueà pe de a à aà idaà a ueleà fatídi oà te po,à asà si à pessoasà deà p op sitosà
409

ímpares tais como: filhos (as), pais e mães de família, que lutaram não apenas pela
democracia, mas também pelo direito de cada um daqueles que se calaram.
A divisão deste trabalho possibilitou, analisar brevemente o período histórico da
ditadura militar brasileira (1964 à 1985), afirmando-se toda a violação de direitos
fundamentais sofridos na época, bem como, as constantes práticas de tortura, sequestro, e
mortes de alguns cidadãos brasileiros, vítimas daquele sangrento tempo vivido nesta pátria.

REFERÊNCIAS

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410

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EBC, AGÊNCIA BRASILEIRA. Manoel Fiel Filho: brasileiro, metalúrgico, assassinado. Disponível
em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2016-01/manoel-fiel-filho-
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WASSERMAN, Claudia; GAUZZELLI, Cesar Augusto Bacerllos. Ditaduras militares na América


Latina. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2004.
412

PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR: A RESPONSABILIDADE PENAL NA PUBLICIDADE ENGANOSA


E ABUSIVA 1

Natalia Letícia Mendonça2


Eliete Vanessa Schneider3

RESUMO: Aprovada em 1990, a Lei 8.078 apresenta a proteção e defesa dos consumidores no
território brasileiro. Tendo em vista que a sociedade atual capitalista é intensamente
estimulada pelo consumo, este instituto se faz de extrema relevância social, uma vez que
todos os cidadãos, conforme dispôs Kennedy em seu discurso, são consumidores. Entretanto,
embora o Código de Defesa do Consumidor brasileiro disponha da conceituação de práticas
ilícitas, observa-se que muitas ainda sucedem. Logo, é essencial destacar a gravidade do crime
de publicidade abusiva e enganosa, definindo a responsabilização penal do anunciante, ora
objetivo principal do presente trabalho.

PALAVRAS-CHAVE: Consumidor; Publicidade Abusiva; Publicidade Enganosa;


Responsabilidade Penal; Vulnerabilidade.

1 INTRODUÇÃO
Na sociedade contemporânea, no auge das relações consumeristas do século XXI, a
publicidade vem como um meio de aproximar consumidor e fornecedor, de forma que este
último anuncie seus produtos e serviços para que induza naquele o sentimento de consumo
afim de que adquira o que lhe propõe, instigando a indústria, os lucros e, consequentemente,
fomentando o desenvolvimento econômico no sistema capitalista.
É sob esta ótica das relações consumeristas, através da propagação de ofertas por
meio da mensagem publicitária, que o presente trabalho traz como temática a importância da
compreensão acerca da publicidade enganosa e abusiva, bem como seus reflexos para com
aqueles que compõe o elo mais vulnerável das relações de consumo: os consumidores.
Quanto à matéria, o Código de Defesa do Consumidor Brasileiro, Lei 8.078/90, trouxe
em seus artigos 36 ao 38, a modalidade de publicidade ilícita, classificando-a em duas formas:
a enganosa e a abusiva, sendo que esta disposição busca garantir um patamar de igualdade
entre fornecedor e consumidor, visto que este último encontra-se em posição vulnerável ao
desconhecer as informações que o fornecedor detém.

1
Artigo escrito para o II Congresso Nacional Ciências Criminais e Direitos Humanos, UNIJUÍ.
2
Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Email:
natalia.leticia@hotmail.com
3
Docente do Curso de Direito da UNIJUÍ, Mestre em Direitos Humanos pela UNIJUÍ, Advogada. Email:
eliete.schneider@unijui.edu.br
413

Observa-se que, embora a prática de publicidade enganosa e abusiva estejam


tipificadas, não são raras as vezes em que elas ocorrem. O fornecedor, através de afirmação
fraudulenta ou omissão, leva o consumidor a uma errônea interpretação, levando-o a adquirir
algo diferente do querido ou ainda que possa afetar sua própria saúde ou segurança. Objetiva-
se, desta maneira, elucidar a responsabilidade dos fornecedores que adotam as formas
tipificadas de publicidade, utilizando além de conceitos, recente decisão do STJ, quanto a
publicidade abusiva perante hipossuficientes.

2 DESENVOLVIMENTO
2.1 Contexto histórico da proteção e defesa dos direitos dos consumidores

O antigo Egito já contava com disposições referentes à relação consumerista. Nota-se,


pelas rudimentares pinturas, a concorrência entre fabricantes para melhor atrair o
consumidor, disputando assim produtos em quesitos como a qualidade, em busca de maior
satisfação dos cidadãos. Entretanto, foi apenas o Código de Hamurabi, com sua imponente
legislação, que visou defender os compradores de bens e serviços, como dispõe o seguinte
a tigoàdoàdispositi oà efe ido:à á t.à .àSe um pedreiro construiu uma casa para um homem
e não executou o trabalho adequadamente e o muro ruiu, esse pedreiro fortificará o muro às
suasà ustas. à C digoàdeàрa u a i,àapudàGUGэIN“ыI,à
Isto posto, nota-se o primeiro esboço de responsabilidade do fornecedor, pois
preocupou-se com a proteção do elo mais frágil da relação consumerista, efetivando uma
garantia quanto a danos causados aos consumidores a partir de vícios que constam em obras,
construções ou projetos.
Consoante Guglinski (2014) esta disposição foi refletida na Idade Média, quanto à
fabricação de armaduras e espadas, fomentadas pelos períodos de guerra, na qual havia uma
grande exigência por parte dos guerreiros e exércitos sobre a qualidade dos artefatos.
Diferente era no setor da economia, pois se baseava no feudalismo, em uma sistemática do
servo trabalhando para o senhor feudal em troca de abrigo e proteção.
Co fo eàPa ia elloà à Naàн a çaàdeàэuizàXI,àa ueleà ueà e desseà a teigaà o à
pedra no interior para aumentar o peso ou leite com água para aumentar o volume, era
414

pu idoà o à a hoà es alda te .à ásà pu iç esà e a à e t e a e teà igo osas,à aseadasà osà
ideais da Bíblia Sagrada.
Com a crise do feudalismo, que fundamentava-se na posse e servidão, os povos
europeus buscaram a expansão através de rotas comerciais, através dos mares, criando um
novo sistema que seria o mercantilismo. Diferentes povos iniciaram um método de compra e
venda, adquirindo produtos que não possuíam em suas localidades, dando em troca aqueles
que lhes eram comuns e raros para estes. Em 1280, Veneza tornou-se uma potência
internacional, pelas suas ligações marítimas, obtendo produtos como a seda e porcelana e
vendendo madeira e ferro. As consequências foram às grandes navegações que levaram a
colonização do Brasil, a título de exemplo (PARCIANELLO, 2013).
Por conseguinte, a área rural deu espaço ao desenvolvimento urbano, dando-se ênfase
a satisfação individualista, o que fomentou as relações de consumo. As Ordenações Filipinas
(apud PARCIANELLO, 2013), em seu quinto livro, dispunham quanto estes vínculos
consumeristas, citando que comum era a pena de morte para aqueles que infringissem os
direitos dos consumidores, assim como o envio de exílio para as terras brasileiras.

[...] Qualquer carreteiro, almocreve, barqueiro, ou outra pessoa, que houver de


entregar, ou vender pão, ou levar de huma parte para outra e lhe lançar acintemente
terra, agoa, ou outra cousa qualquer, para lhe crescer, e furtar o dito crescimento,
se o damno e perda, que se receber do tal pão, valer dez mil reis, morra por isso. E
se for de dez mil reis para baixo, seja degredado para sempre para o Brazil.

De acordo com Parcianello (2013) é na Renascença que explode o impulso de consumo,


passando o acúmulo de capitais da atividade comercial para a produção industrial. Observa-
se o início da produção em massa almejando maior desenvolvimento econômico das
sociedades e a implantação do sistema capitalista. Além do progresso técnico, com a
implementação de máquinas, encontra-se a mão-de-obra barata, advinda do êxodo rural, que
busca se adequar à nova sistemática de produção. Logo a demanda por produtos era grande,
fazendo surgir a necessidade de códigos centrados no poder estatal visando garantir a
proteção do consumidor, pois este estava sujeito a atos fraudulentos por parte dos
fornecedores. O viés que se toma na legislação é da prevenção e proteção, não da simples
punição por meio do poder coercitivo religioso aliado ao estado.
O século XX foi marcado com o surgimento do maior meio de vinculação de
propaganda, que se deu através dos instrumentos televisivos. Aumenta-se a demanda de
415

divulgação de produtos para consumo. Entretanto, o mesmo período foi marcado por guerras
e após o advento da Segunda Guerra Mundial, em 1945, os consumidores estavam cercados
pela falta de qualidade e preços altos, assim como uma escassa proteção consumerista.
(SANTANA, 2014, p. 55)

2.2 John F. Kennedy: Marco inicial de uma proteção efetiva

Co fo eà “a ta aà ,à p.à à oà a oà i i ialà daà p oteç oà o ga izadaà doà


consumidor é o dia 15 de março de 1962, data em que foi apresentada ao Congresso dos
Estados Unidos da América a mensagem que havia sido gravada pelo Presidente John F.
ыe ed .àássi ,àe o aàte ha àha idoàdisposiç esàa te io es,à e hu aàe aà egula e teà
estruturada, ocorrendo uma maior expressão apenas em 1962, quase duas décadas após a
segunda guerra mundial.
Neste período histórico, os Estados Unidos da América e a extinta União Soviética
mantinham travada uma guerra de sistemas entre o socialismo russo e o capitalismo
americano. Verifica-se que o capitalismo é uma estrutura fundamentada na livre economia,
sendo que necessita de um consumidor forte e com poderio de compra para mantê-lo. Desta
maneira, corroborando Santana (2014, p.55), a proteção e defesa ao consumidor é uma fonte
de reafirmação da economia capitalista frente a ameaça comunista – e foi esta a mensagem
passada pelo presidente John F. Kennedy.
O então presidente dos Estados Unidos na época, John F. Kennedy (apud SANTANA,
,à p.à ,à disp eà ueà o su ido es,à po à defi iç o,à so osà todosà s ,à desta a doà aà
importância do consumidor ao ser à base da economia, pois sem estes, esta não existiria.
Ressalta que os consumidores, como maior grupo econômico, deveriam ser também
contemplados com uma organização disposta a garantir seus direitos, visto que não
participam do processo produtivo daquilo que consomem. As temáticas como orientações
para o desperdício no consumo também são abordadas na mensagem, bem como produtos
de baixa qualidade e preços excessivos, comuns na época, enfatizando que tais questões são
problemáticas de nível internacional e que é necessário saná-las o mais rapidamente possível
Outra afirmação é quanto o avanço do marketing e da vinculação da propaganda,
almejando cada vez mais o aumento do consumo, avançando para a impessoalidade e
objetificando o consumidor ao inseri-lo em uma publicidade massificada, o que acarreta na
416

falta de informações quanto à qualidade, segurança e eficiência daquilo que é adquirido. A


partir destas premissas, Kennedy elenca quatro eixos de proteção ao consumidor, conforme
destaca Santana (2014, p. 56)
a) o direito à segurança – ser protegido contra a propaganda de produtos que são
prejudiciais à saúde ou à vida; b) o direito de ser informado – ser protegido contra
informações e propagandas fraudulentas, enganosas ou ordinárias e ter acesso aos
fatos necessários para que seja possível fazer sua escolha; c) o direito de escolher –
de ter assegurada, sempre que possível, o acesso a uma variedade de produtos a
preços competitivos; e naquelas indústrias, onde a competição não funcione de
forma livre e a regulamentação do governo é pouco atuante, ter garantida uma
qualidade satisfatória e preços justos; d) o direito de ser ouvido – ter garantido que
os interesses do consumidor irão receber atenção e consideração especial quando
da elaboração de políticas governamentais, além de tratamento justo nos tribunais
administrativos do governo.

Com base nos fatos mencionados, dia 15 de março é dito como o dia mundial da
proteção ao consumidor, como consequência da disposição de John F. Kennedy. Esta refletiu
no Brasil a obrigação reproduzida no art. 5º, inciso XXXII, da Constituição Federal brasileira,
que impõe ao Estado o dever de promover, na forma da lei, a defesa do consumidor e,
posteriormente, a efetivação da lei 8.078 de 1990, o conhecido Código de Defesa do
Consumidor, que está em vigência até os dias atuais que elaborou normas seguindo as
proposições apresentadas.

2.3 Publicidade enganosa e publicidade abusiva

й à o od iaà o à “il aà apudà Cá‘VáэрO,à ,à p.à à aà o e t aç oà daà fo çaà


econômica e de capitais e os monopólios na sociedade de consumo originaram um
desequilíbrio bastante evidenciado nas relações contratuais, que exigiu a interferência do
Estado at a sàdeàu aàaç oàp oteto aàpa aàaàpa teà aisàf gilàdestasà elaç es .à
Fundamentada nisto, a Constituição da República Federativa Brasileira de 1988
ga a teà aà p oteç oà aoà o su ido ,à o fo eà seuà a t.à º,à i isoà XXXII,à ueà disp eà ueà oà
Estado promoverá, aà fo aà daà lei,à aà defesaà doà o su ido à [...] .à áà pa ti à destaà p e issaà
desenvolveu-se a criação da Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990 consagrada como o Código
de Defesa do Consumidor, que trouxe consigo forte influência do princípio da vulnerabilidade
do consumidor, uma vez que o fornecedor está à frente deste dispondo de vantagem em
posições e circunstâncias perante seu cliente. Intrinsecamente ligado está o princípio da
transparência, um dos pilares da boa-fé, que impõe a obrigatoriedade de o fornecedor
417

esclarecer todas as informações acerca do produto, de forma clara e objetiva, pois, ao dispor
das informações, o fornecedor possui controle um controle maior sobre o produto que não é
conferido ao consumidor, sendo uma visível desigualdade (MACEDO, 2012, p. 277)
Co soa teàйfi gà ,àp.à àapudàCá‘VáэрO,à ,àp.à à pa aàefeitosàdaàapli aç oà
doàCDC,àoà o su ido à àp esu i el e teà o side adoà ul e elàf e teàaoàfo e edo .àáoà
se submeter a relação de consumo, o cidadão adquirente aceita as práticas de produção. Logo,
de acordo com o autor, procurando uma equidade entre estas divergências, a legislação
contempla o elo mais vulnerável, partindo do princípio de tratar com desigualdade aqueles
que são desiguais, para almejar convivências embasadas na justiça.
Assim, sancionado em 1990, entrou em vigência em março 1991 o Código de Defesa
do Consumidor no brasil – aproximadamente três décadas após o pronunciamento de John F.
Kennedy o que caracteriza uma resposta do Brasil para uma demanda tão imprescindível e
significativa – visando uniformizar a disciplina das relações consumeristas.
De acordo com o artigo 1º da legislação referida, esta estabelece que as normas de
proteção e defesa ao consumidor possuem caráter de ordem pública e interesse social,
permiti do,àsegu doàCa alhoà ,àp.à à oàjulgado à o he e àdeàofí ioà ual ue à uest oà
elati aà sà elaç esàdeà o su o,à oàseàope a doàso eàelasàoàefeitoàdaàp e lus o .àTa à
de grande importância, o artigo 6º institui, em seus incisos VI e VII, alguns dos principais
direitos básicos do consumidor:

VII - o acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas à prevenção ou


reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos,
assegurada a proteção Jurídica, administrativa e técnica aos necessitados;
VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da
prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a
alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de
experiências;

Desta forma, o Código de Defesa ao Consumidor é uma disciplina exclusiva que buscou
diferenciar a relação consumerista das relações contratuais do Código Civil brasileiro, sendo
aplicável sempre que houver uma relação de consumo, não abrangendo apenas aquelas
pertencentes exclusivamente ao Direito Privado, como a compra e venda eventual entre
pessoas físicas que não classifica nenhuma das partes como fornecedora de produtos ou
serviços.
418

2.3.1 A definição de enganosidade e abuso perante o CDC

O Código de Defesa do Consumidor dispõe, em sua seção III, a conceituação de


publicidade. O artigo 36 deixa explícita a necessidade de clareza por parte do fornecedor ao
veicular seu produto ou serviço em meio de divulgação, para que haja fácil entendimento
sobre este e suas derivações. Predispõe o artigo seguinte que

Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.


§ 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter
publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por
omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza,
características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer
outros dados sobre produtos e serviços.
§ 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a
que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência
de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja
capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua
saúde ou segurança.
§ 3° Para os efeitos deste código, a publicidade é enganosa por omissão quando
deixar de informar sobre dado essencial do produto ou serviço.

Por conseguinte, determina que a publicidade classifica-se como enganosa ao induzir


o consumidor ao erro, uma falsa ideia que o faz adquirir o produto ou serviço referido ou a
falta de informação que o conduz a uma preposição equivocada. Consoante Ana Cláudia
Macedo (2012, p. 262, grifo nosso)

Devido à força do meio de produção e consumo massificados e o uso exacerbado


que se faz da publicidade, é mais do que necessário a existência de um Código de
proteção ao consumidor, que tutele as relações de consumo e mais, que reconheça
que há uma desigualdade entre o consumidor e o fornecedor, e que aquele é a
parte mais fraca, débil da relação, que carece de uma lei protetiva.

Entende-se que a publicidade é fundamental para a divulgação dos produtos e


serviços, facilitando o comércio, suscitando um aumento de vendas e relações de consumo e,
consequentemente, desenvolvendo a economia do Estado. A problemática é sua ilicitude,
quando se difunde de forma deturpada, pois se observa que, perante a publicidade, o
consumidor é hipossuficiente. Vincula-se esta disposição ao princípio da informação, disposto
419

no inciso III do art. 6º do CDC4, que expõe o dever do fornecedor informar, clara e
adequadamente, quanto ao produto ou serviço que está a ofertar, não devendo omitir ou
alterar disposições destes.(VADE MECUM, 2016, p. 802)
Nota-se aqui a ocorrência da publicidade enganosa, disposta no parágrafo §1 e §3 do
artigo 37 que se caracteriza pela divulgação de serviço ou produto de forma que esta
mensagem possa levar o consumidor a interpretação deturpada, ao erro, fazendo com que
este adquira produto diferente do desejado. Basta que a comunicação seja capaz de induzir
ao erro para se concretizar o fato punível.
Esta subdivide-se em duas modalidades, sendo uma efetuada através de conduta
comissiva e outra, omissiva. Na primeira forma, o fornecedor expressa anúncio inautêntico,
na sua total ou parcialidade, agindo de maneira ativa para a ocorrência da falsa ideia. Assim
dispôs o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:

AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. PROMOÇÃO DA LOJA RÉ. ENTREGA DE


BRINDE (IMPRESSORA MULTIFUNCIONAL) EM CASO DE COMPRA DE UM
NOTEBOOK. PROMESSA DESCUMPRIDA. PUBLICIDADE ENGANOSA.
1. Tendo a ré anunciado uma promoção, pela qual os clientes teriam direito
a uma impressora multifuncional caso efetuassem a compra de um notebook,
há manifesta publicidade enganosa quando não cumpre o que foi prometido.
2. A leitura da oferta enseja dúvidas quanto à sua interpretação. O encarte
publicitário (fl. 07) não explicita com clareza que a impressora somente seria
e t egueà e ua toàdu asse àosàesto ues .àTalài fo aç oàest àg afadaàe à
letras minúsculas, ao final do encarte, em clara violação ao disposto no art.
54, § 4º, do CDC.
3. Além disso, como bem ressaltado pelo julgador a quo, a interpretação mais
lógica é de que a oferta estaria vigente enquanto durassem os estoques de
notebooks – que se fariam acompanhar por impressoras em igual número.
Entender de forma diversa seria ignorar o disposto no art. 47 do CDC. (TJ-RS -
Recurso Cível: 71003216363 RS, Relator: Ricardo Torres Hermann,
27/10/2011, Primeira Turma Recursal Cível)

O segundo método é da publicidade enganosa por omissão, quando o responsável pelo


produto ou serviço demandado omite, na oferta deste, informações imprescindíveis para o
consumidor, influenciando em seu poder decisório, podendo levar-lhe a adquirir algo que não
obteria se soubesse do dado devido.

4
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:(...)
III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de
quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que
ap ese te .
420

Este tipo de publicidade ilícita se difere de outra modalidade, também proibida por lei,
denominada abusiva. Embora sejam utilizadas comumente como sinônimos, não o são. Está
se dá de forma comissiva, estando disposta no parágrafo §2 do artigo 37.
Sua consumação se efetiva com a propagação de publicidade que contenha viés
discriminatório, incitando a violência, medo ou superstição, se aproveitando, desta forma, do
consumidor leigo, deficiência de julgamento e experiência de criança. Pode afetar ainda
valores ambientais ou levar o consumidor a agir de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde
ou segurança. Dispõe de um maior potencial ofensivo. (OLIVEIRA, 2015)
Com a concretização de tais condutas, o fornecedor, ou seja, o anunciante, deverá
responder por seus atos. Assim, conforme Oliveira (2015), este terá a obrigação de assumir
danos morais e patrimoniais provenientes, ensejando em responsabilização penal, civil e
administrativa. Poderá ser solidária a agência publicitária que contribuir para a efetivação do
caso, do contrário, encontrar-se-á de forma subsidiária (MACEDO, 2012, p. 285).

2.3.2 Responsabilização do anunciante: a influência do caráter penal na garantia dos


direitos dos consumidores

Na inicial de suas disposições, o Código de Defesa do Consumidor já determina a


responsabilidade civil do fornecedor, independendo o elemento do tipo, quanto a reparação
dos danos por defeitos ou informações insuficientes ou inadequadas, no artigo 14. 5
Entretanto, é de interesse desta explanação a conceituação e disposição da
responsabilidade penal a partir do CDC. Esta está disposta dos artigos 66 a 69 do Código, em
seu Título II. Ao constatar a ocorrência do crime de publicidade enganosa ou abusiva, se
imputa ao autor do dano a sanção cabível para a circunstância ilícita praticada. As imputações
variam conforme a tipicidade penal das práticas delitivas. Neste âmbito analisar-se-á a
incidência de dolo ou culpa para a imposição da pena.
Fundamentalmente frui o artigo 66 quanto a modalidade publicidade enganosa. Este
aplica a pena de detenção de três meses a um ano e multa para aquele que, sendo responsável
pela mensagem publicitária propagada, faz afirmação ou omite fato relevante a produto ou

5
O §4 do referido artigo, divergindo do seu caput, inclui uma exceção, tratando da responsabilidade pessoal dos
profissionais liberais que poderá ser apurada mediante verificação de culpa.
421

serviço, que leva o consumidor ao erro. Ainda incorrerá nesta pena aquele que patrocinar a
oferta, segundo o artigo 67. De forma atenuada será a pena daquele que incidir de modo
culposo, sendo de um a seis meses ou multa – nota-se que a multa não se soma a de detenção,
podendo sobrevir apenas esta. Visto os fatos, menciona-se

RECURSO DE APELAÇÃO CRIMINAL. ARTIGO 67 DA LEI Nº 8.078/1990 (CDC) –


PROPAGANDA ENGANOSA – REDUÇÃO DO VALOR PECUNIÁRIO SUBSTITUTIVO DA
PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE – IMPOSSIBILIDADE – NÃO COMPROVAÇÃO
HIPOSSUFICIÊNCIA – ADIÇÃO DE PARCELAS – IMPOSSIBILDIADE – COMPETÊNCIA JUIZ
DA EXECUÇÃO – SENTENÇA CONDENATÓRIA MANTIDA. Recurso conhecido e
desprovido. (TJ PR 1ª Turma Recursal - AP 000305177201381601840 PR - Curitiba -
Rel: Aldemar Sternadt – 06/11/2015)

A especificidade abusiva, penalizada pelo artigo 68, tem caráter mais severo se
comparada a anterior. Isto pois, como já dito, pode levar o consumidor a se comportar de
forma prejudicial ou perigosa para sua saúde ou segurança. Sua conceituação se dá de
ma ei aà aisàa pla,àse doà ue,à o fo eàCa alhoà ,àp.à à es oà ueà e dadei a,à
elaà oà à pe itida .à ássi ,à apli a -se-á a sanção de seis meses a dois anos e multa.
Complementa o art. 69 com a omissão ao organizar dados fáticos, técnicos e científicos que
são base da publicidade, incorrendo o responsável na pena de um a seis meses ou multa.
Outrossim, segundo o art. 6º, VI complementa que os danos morais e patrimoniais, em
decorrência da publicidade enganosa ou abusiva, devem ser ressarcidos de forma integral ao
consumidor prejudicado.

2.3.3 Responsabilização pela prática de publicidade abusiva- anunciante no caso


concreto de publicidade abusiva em face de público infantil

No ano de 2016 um importante evento marcou a disposição nacional de proteção e


defesa do direito do consumidor, especialmente na sua modalidade de condenação pela
prática de publicidade abusiva. Formulou-se jurisprudência, um novo entendimento foi
impetrado, tornando-se o julgamento histórico. No ano de 2007, entre os meses de junho e
agosto, a empresa Pandurata Alimentos LTDA, popularmente conhecida pelo seu nome
fa tasiaàBaudu o,à ealizouàaà e daàdeàp odutosàali e tí iosàdaàli haà Gulosos à oltadosàpa aà
aàte ti aàdoàte ei oàfil eàdaàs ieà “h ek ,à o àest eiaà aà po aàdosàfatos.àáà ampanha
estimulava as crianças para que adquirissem produtos da linha, sendo que ao somar cinco
422

e alage sàeàoàpaga e toàdeà‘$ , ,à ga ha ia àu à el gioàe lusi oàdoàfil eà– a coleção


constava com quatro relógios, de diferentes personagens, logo era estimulado para que se
adquirisse, no mínimo, vinte produtos, mais pagamento em dinheiro. (TJ SP, Ação Cível
Pública: 03423849020098260000 SP, Relator: Ramon Mateo Júnior, 8/03/2013)
Sua publicidade voltava-se ao público infantil, utilizando verbos imperativos – ju te à
eà t o ue à – na sua aplicação. Trava-se portanto de uma venda casada, condicionando a
o p aàdoà el gioà à o p aàdosàp odutosà Gulosos à– pois se não adquirisse um, não obteria
o outro. Sabe-se que a venda casada é vedada por lei, conforme o art. 39, inciso I, do Código
de Defesa do Consumidor. 6
O Instituto Alana, uma organização não-governamental sem fins lucrativos que atua
na área do direto à criança, através de seu programa Criança e Consumo, notificou as
empresas Bauducco, fornecedora do produto, e a Exim Character Licenciamento e Marketing,
quanto ao abuso da publicidade referida. Não houve resposta destas, o que acarretou,
consequentemente, no encaminhamento ao Ministério Público de São Paulo que propôs uma
Ação Civil Pública perante Pandurata Alimentos Ltda. Entretanto, esta foi julgada
improcedente, no ano de 2008. No ano seguinte, o Ministério Público interpôs um Recurso de
Apelação, cuja ementa segue abaixo:

Ação Civil Pública Publicidade voltada ao público infantil Venda casada caracterizada
Aquisição dos relógios condicionada à compra de 05 produtos da linha "Gulosos"
Campanha publicitária que infringe o artigo 37 do Código Brasileiro de Auto-
Regulamentação Publicitária Utilização de verbos no imperativo inadequada Proibição
pelo Conar do uso dessa linguagem em publicidade voltada às crianças Prática comum,
que deve ser repudiada Publicidade considerada abusiva, que se aproveita da
ingenuidade das crianças Sentença reformada Apelo provido Verbas sucumbenciais
impostas à ré. (TJ SP, Ação Cível Pública: 03423849020098260000 SP, Relator: Ramon
Mateo Júnior, 8/03/2013)

Com a sentença no ano de 2013, o Tribunal do Estado de São Paulo julgou,


unanimemente, favorável ao recurso, divergindo da decisão do juiz em primeira instância,
dando portanto provimento à Ação. Em vista disso, a Pandurata foi condenada a não utilizar
mais esta prática comercial, implicando em venda casada, bem como não promover

6
Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: I - condicionar o
fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa
causa, a limites quantitativos;
423

campanha de publicidade para público infantil, sem a observância de regras próprias, fixando
uma pena multa de R$50.000,00 caso a ré descumprisse o preceito. Ainda houve a
condenação na quantia de R$ 300.000,00 de indenização a sociedade pelos danos produzidos
pela sua publicidade ilícita.
Constata-se que a ré se aproveitou da inexperiência e ingenuidade das crianças, pois,
se os consumidores, como um todo, são vulneráveis nas relações consumeristas, o público
infantil, pela inocência na interpretação, torna-se ainda mais indefeso diante da conduta dita.
O artigo 37 do Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária, que normatiza
as regras ao se efetuar um anúncio dirigido à crianças e jovens, também foi violado, pois se
feriu algumas regras. Outra questão foi a divulgação do relógio o oà i de ,àse doà ueàestaà
nomenclatura pressupõe a gratuidade daquilo que será recebido.
No fim de 2013 a Pandurata apresentou Recurso Especial, visando reformular a
decisão. Em 2014, o Tribunal da Justiça negou o provimento deste, de forma que a empresa
interpôs Agravo – que foi convertido em Recurso Especial novamente em 2015.
Julgado pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 10 de maio de 2016,
com o relator Min. Humberto Martins e cinco votos favoráveis – deu-se de forma unânime –
a confirmação de publicidade abusiva por parte da Bauducco, bem como a reafirmação da
venda casada e da prioridade das crianças nas relações de consumo, manteve-se a sentença.
No mesmo ano, a empresa opôs Embargos de Declaração, sendo que o Instituto Alana e o
Ministério Público apresentaram impugnação. Culminou na rejeição, unanimemente, dos
embargos – ainda mantendo-se a decisão do acórdão. (TJ SP, Recurso Especial Nº 1558086 SP
2015/0061578-0, Relator: Min. Humberto Martins, 10/03/2016)
O Recurso Extraordinário para apreciação do Supremo Tribunal Federal foi interposto
pela Bauducco em 2016, não sendo admitido no STJ. Assim, em dezembro do mesmo ano,
apresentou Agravo em Recurso Extraordinário e o Ministério Público, em fevereiro de 2017,
apresentou sua impugnação ao Agravo. Aguarda-se, no momento, a análise do recurso no STF.
(RECURSO ESPECIAL Nº1558086 SP - PROCESSO ELETRÔNICO Petição Eletrônica (CmARE)
00040650/2017 recebida em 10/02/2017)
Observa-se que a incidência destas condenações nas relações consumeristas ainda é
insipiente, devido ao caráter destas disposições legislativas consumeristas serem recentes,
estimuladas apenas após 1962, com o advento das prerrogativas de John F. Kennedy.
424

Entretanto, embora tenha havido uma condenação na esfera civil, se dá como marco histórico
nacional visto a jurisprudência advinda desta, determinando à proibição de publicidade que
se volte ao público infantil, reafirmando a vedação à venda casada, daí vinda a importância de
abordá-la neste presente trabalho.
Todavia, destaca-se que, embora este tipo de publicidade possa ser visto como normal
e aceitável, seus elementos a tornam abusiva. É necessário que esta conduta seja repudiada
e, para a garantia dos direitos dos consumidores, principalmente daqueles que são
hipossuficientes, fazer-se efetivar a exigência de uma ação mais adequada por parte do
responsável, de modo que estas não voltem a se suceder.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das inferências trazidas pelo presente trabalho, é possível verificar a


importância da tipificação, pelo Código de Defesa do Consumidor, das práticas da publicidade
enganosa e abusiva, pois deste modo este trata com maior seguridade as relações
consumeristas, almejando uma espécie de equidade entre as partes contratuais, visto que o
consumidor, como elo leigo às constituições maiores dos produtos, é vulnerável perante o
fornecedor, detentor das informações. Logo, é imprescindível que haja uma disposição
estruturada e devidamente formulada, protegendo estas prerrogativas admitidas.
Conquanto, observa-se que a sociedade vivencia a era tecnológica, positivada nos
alicerces capitalistas, sendo que a fomentação do consumo é uma consequência natural de
suas disposições. Portanto, devido ao aumento das demandas, fez-se primordial a
implementação de Kennedy, em 1962, das ideias de proteção e defesa ao consumidor. Desde
já, concebeu o entendimento, publicamente, da modalidade de publicidade enganosa e
abusiva na busca do fornecedor, como responsável, em obter vantagem indevida sobre aquele
que adquire seus serviços ou produtos.
Partindo disto, a Lei 8.078 de 1990, através do poder que lhe foi conferido, tem a
responsabilidade de investigar as relações consumeristas, bem como aplicar punições àqueles
que são dirigentes do anúncio efetuado de forma ilícita, não podendo eximirem-se de culpa
pelo sucedido ao ser constatado que o consumidor foi levado ao erro por alguma informação
ou omissão de quem deveria garanti-la.
425

Isto posto, é cabível enfatizar a necessidade subsistente de efetivação da


responsabilidade penal do Código de Defesa do Consumidor no Brasil, dado que, conforme o
estudo do caso concreto, é necessário que esta condutas como a descrita sejam repudiadas
e, para a garantia dos direitos dos consumidores, principalmente daqueles que são
hipossuficientes, fazer-se efetivar a exigência de uma ação mais adequada por parte do
responsável.
Portanto, visto que o cenário mundial caminha para um constante progresso nas
relações de consumo, estimulado pelos desenvolvimentos das ciências tecnológicas, é
substancial que o direito penal, embora como ultima ratio, garanta que aqueles que incorram
nas condutas abordadas não saiam impunes de suas ações.

4 REFERÊNCIAS

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426

1558086 SP, Processo Eletrônico. Petição Eletrônica (CmARE) 00040650/2017 recebida em


10/02/2017

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Ação Cível Pública: 03423849020098260000 SP,
Relator: Ramon Mateo Júnior, 8/03/2013

Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Recurso Cível: 71003216363 RS, Relator:
Ricardo Torres Hermann, Data de Julgamento: 27/10/2011, Primeira Turma Recursal Cível,
Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 28/10/2011.

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427

áàP‘OBLйMãTICáàDáàP“ICOPáTIáàNáà“OCIйDáDйàйàNOàO‘DйNáMйNTOàщU‘ÍDICOà
B‘á“ILйI‘O

Pat i kàP estesàрaue stei 1


RafaellaàBaoàнi ag a2

‘й“UMO:àOàa tigoàdese ol e‐seàe à oltaàdaà P o le ti aàdaàPsi opatiaà aà“o iedadeàeà oà


O de a e toà щu ídi oà B asilei o ,à o deà te à o oà o jeti oà estuda à aà figu aà doà psi opataà
f e teà à so iedadeà eà aosà seusà p p iosà i es.à Osà estudosà fo a à e olui doà aà pa ti à deà
pes uisas,àdefi iç esàeà o eitosàj à iadosàpo àg a desàestudiososàdaàpsi uiat iaàeàpsi ologia.à
Po ta to,àoàp ese teàt a alhoà isaà efleti àso eàoà ueà àaàpsi opatia,à e à o oàdesta a àoà
is oàgiga tes oà ueàoài di íduo,àa o etidoàpo àtalàpatologia,àofe e eàaoà oleti oàso ial,àsuasà
a a te ísti as,à difi il e teà istasà se à ueà hajaàaà o se aç oà deà í i osà detalhesà e à seuà
o po ta e to,àeà todosàdeàdiag sti osàe o t adosàpo àp ofissio ais,àaàfi àdeà ueàsejaà
possí elàaàide tifi aç oàdestesàsujeitos.àCo à aseà aà o p ee s oàso eàasàteo iasàeàestudosà
ealizados,à se à esse ialà e ifi a osà o oà fu io aà oà o de a e toà ju ídi oà asilei o,à
estesà asos.à

Pala as- ha e:ààPsi opatia;àPatologia;à“e ti e tos;àйstudos;àCo se u ia.

àINT‘ODUÇÃO
Pa aà ueàseàto eàpossí elàfala àso eà áàP o le ti aàdaàPsi opatiaà aà“o iedadeàeà
oàO de a e toàщu ídi oàB asilei o ,àp i ei a e teàse àesse ialà o p ee de àoà ueà àaà
Psi opatia.àCo àesseào jeti o,àfaz‐seàfu da e talàaà o p ee s oàhist i aàdaàdes o e taàdeà
talàpatologia,àpa aàe t oàp ossegui à aàp ese teàa lise.àDesseà odo,àaàp i ei aà e ç oàdaà
ol stiaàap ese tou‐seà aào aàdeàрe e àCle kle ,àpsi uiat aàeàp ofesso àdoàMedi alàCollegeà
daàGe gia,à Theà askàofàsa it ,àe àt aduç o,à áà s a aàdaàsa idade ,à oàa oàdeà ,à aà
ualàoàpsi uiat aà itaài ú e osà asosà osà uais,àtodosàosài di íduosàestudadosàoste ta a àdeà
a a te ísti asàse elha tes,à o oàpo àe e plo,àaà apa idadeàdeà o e i e toà uitoàaltaàeà
aàaus iaàdeà e o soàouàa epe di e toàe à elaç oàasàsuasàaç es.
Poste io e te,àoàp ofesso àdaàU i e sit àofàB itishàColu iaàeàpsi logoà a ade seà
‘o e tà рa e,à ap sà a osà deà pes uisa,à fi al e teà o seguiuà eu i à iasà a a te ísti asà e à
o u àdeàpessoasà o àoàpe filàpsi op ti o,àeà o àisso,àfoiàpossí elàp oduzi àe à ,àu à
uestio ioà de o i adoà es alaà рa eà ouà Ps hopath à Che klist,à oà ualà estudaà últiplosà

1
á ad i oàdoà °àse est eàdoà u soàdeàDi eitoàdaàU i e sidadeà‘egio alàdoàNo oesteàdoàйstadoàdoà‘“ UNIщUÍ .à
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2
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428

aspe tosà daà pe so alidadeà doà i di íduo,à pa aà e t o,à ap sà aà apli aç oà deà talà i st u e to,à
defi i àseàoàsujeitoàdet àdeàt açosàpsi op ti osàouà o.
Out ossi ,à de t eà asà de aisà teo iasà eà estudosà di igidosà asà doe çasà psi ol gi asà
ela io adasà o àaàpsi opatia,à‘o aldàBla k u à iouàaàteseà ueàdi idi iaàosàpsi opatasàe à
duasà di e s es,à osà su ‐ o t olado esà eà osà so e‐ o t olado es,à su essi a e teà h à est à
lassifi aç o,à ela o ouà u aà su lassifi aç o,à aà ualà f ag e tou‐seà e t e:à Psi opatasà
pi ios,àpsi opatasàse u d ios,àpsi opatasài i idosàeàpsi opatasà o fo ados.
De adei a e te,à oà p ofesso à eà psi uiat a‐fo e seà Mi helà “to eà daà U i e sit à ofà
Colu ia,à o stituiuàoà í di eàdaà aldade àdist i uídoàe à àite s,à us a doà o p ee de àeà
disti gui à asà dife e çasà eà asà se elha çasà e t eà osà assassi atosà eà osà i di íduosà ueà osà
o e te ,à e à o oàa alisa doàoàí di eàdeà aldadeàdeà adaàfato.àNoàpa adig aà o stituídoà
peloàpsi uiat a‐fo e se,àesteàapegou‐seàh à iosàaspe tosàdosàatosà ealizadosàpelosàsujeitos,à
aisàespe ifi ada e te,àa aliouàt sàpo tosà ha esàdeà adaà aso,à uaisàseja ,àoà oti o,àoà
todoà eà aà ueldadeà e p egadaà peloà auto à pa aà o te à oà itoà aà aç oà ueà seà p op sà aà
dese pe ha .
Te do‐seà ago aà u aà e eà o p ee s oà dasà p i ipaisà teo iasà eà estudosà ealizadosà
so eàaàPsi opatia,àto a‐seà e ess ioàda ‐se‐ àPsi opatiaàu à o eito.àPo ta to,àtalàpatologiaà
podeàse àdefi idaà o oàu à alà aàfo aç oàdaàpe so alidadeàdaàpessoaà o à aseàfisiol gi a,à
ouàseja,àu aàte d iaà oti adaàpeloàsiste aà e oso,ào deàoàlo oàp ‐f o talàeàaàa ígdalaà
e o t a ‐seà e osàaptosàaài te p eta àasàelu idaç esàe o io aisàeàpa aàto a àde is esà ueà
seja àfa o eisàaoàseuà e ‐esta àpessoalàeàdeàout e .àCo oà o se u iaàte ‐seài pa toà
aosà í eisà doà siste aà e osoà e t al,à p ejudi a doà asà elaç esà i te pessoais,à afeti asà eà
o po ta e taisàdoàsujeito,à esulta doà aàalte aç oàdasàe oç esàeà az esàdoài di íduo,àoà
ualà à i apazà deà de o st a à edo,à a siosidade,à est esse,à e patia,à ulpaà eà de aisà
a a te ísti asàe o io aisà o al e teà islu adasàe àtodoàse àhu a o.
áde ais,à taisà sujeitosà opta à f e ue te e teà po à u à estiloà deà idaà a tisso ial,à
e t eta to,à oà h à e ata e teà u à o se soà e à elaç oà aoà seuà odoà deà ida,à poisà o oà
e e osà logoà adia te,à aà psi opatiaà ap ese ta‐seà e à iosà í eis,à oà ueà i pedeà u aà
o stataç oàdefi iti aàdeà o oàtaisàpessoasà i e ,àpo ,àaàfa ilidadeàe à e ti ,à a ipula à
eàasàpa ti ula idadesà o oàpo àe e plo,àaàsupe fi ialidade,àaàelo u ia,àoàego e t is o,àaà
429

egalo a iaàeàaàpo ezaàdeàe oç es,àpode àope a àdeàfo aàaà o t i ui àpa aàasà elaç esà
so iaisà o àaà o u idadeàe à ualàest ài se ido.
ál àdisso,àosàPsi opatasàte de àaàse e ài pulsi os,à o àu àauto o t oleàfalho,à o à
u aàde asiadaàfaltaàdeà espo sa ilidadeàeà o àu aàdete i adaà e essidadeàdeàe itaç o,à
oà ueà e à o ju toà o à osà de aisà t açosà de o st ados,à o e te‐seà e à at i utosà
e t e a e teà pe igososà pa aà idaà e à oleti idade.à áà psi opatiaà fi ouà a adaà o oà aà
doe çaàdosàse iaisàkille s3,àpoisàdu a teàa osàosàp i ipaisàeà aisà u isà asosàdeàassassi atosà
o etidosà oà o ide te,àfo a à o etidosàpo à sujeitosà ueàdeti ha àdestaà patologia,à asosà
o à í eisà deà aldadeà eà ueldadeà u aà a tesà istosà eà o oà de o ia,à ge a a à u aà
g a deà epe uss oàso ial,à idi ti a,àju ídi aàeà ie tifi a.
Casosà o o,àйd a dàGei ,àoàfa osoàassassi oàeàpsi opataàa e i a o,à as idoàe à à
eàte doàaàsuaà o teà o fi adaà oàa oàdeà ,àfoiàse àdú idas,àu àdosàp i ipaisàpo tado esà
daàpatologiaàestudada,àagi doàdeàfo aàt oà utalà ue,à ealizouàe t eàosàa osàdeà àeà ,à
iasà iolaç esàdeàtú ulos,àaàfi àdeàutiliza àdosà estosàdeà o posàfe i i osàe àde o posiç o,à
o oà e osà ute síliosà do sti os,à te doà o oà e e plo,à iosà o oà tigelas,à a ilos,à
a izesà eà l iosà o oà aça etasà eàpu ado esà po à todaà aà suaà esid iaà “OU)áà eà “áIB‘O,à
.àál àdisso,àйd a dàGei àfoià espo s elàpo ài ú e osàeà utaisàassassi atosàdu a tesà
osà a osà e à ueà este eà e à ati idade,à de t eà osà uais,à oà aisà a a teà eà oà ueà oà le ouà aà
julga e to,à foià oà assassi atoà deà Ma à рoga ,à suaà p i ei aà íti a,à o à aà ualà efetuouà
utilaç esà su eais,à eti a doà todaà aà peleà deà seuà o poà eà aà esti doà e à seguida,à
poste io e teàde epouàaàge it liaàdaà íti aàeàp osseguiuàsepa a doàosàossosàdoà o poàpa aà
utiliza àe àsuaà esid ia,àpa aàal àdeàout asàat o idades.
Co oà o se u iaàdeàseusàatos,àйd a dàGei àfoiàp esoàeàap sàoàde idoàp o essoàlegalà
doàsiste aàpe alàdosàйstadosàU idos,àfoià o side adoàtotal e teài apazàdeàseusàatosàpeloà
agist ado,àpo ueà aà apa idadeà e talà desteà foià ap e iadaà o oà i sa aà eà o oà pe aàfoià
e a i hadoà pa aà u aà i stituiç oà di aà o deà pe a e euà at à suaà o te,à po à oà se à
o side adoàu àsujeitoà o àpossi ilidadeàdeà eg essoàaàso iedade.
й t eta to,à de e‐seà essalta à ue,à osà psi opatasà oà s oà esse ial e teà assassi osà
u is,à asàe àge al,àsegu doàaàpsi uiat aàá aàBeat izàBa osaà“il aàe o t a ‐se:

3
Oà Ma ualà deà Classifi aç oà deà C i esà doà нBIà à defi eà oà assassi atoà se ialà o oà t sà ouà aisà e e tosà
sepa adosàe àt sàouà aisàlo aisàsepa adosà o àu àpe íodoàdeà esf ia e toàe o io alàe t eàosàho i ídios .à
(NEWTON, 2005, p.49)
430

й ol idosà e à t a sg ess esà so iais,à o oà t fi oà deà d ogas,à o upç o,à ou os,à


assaltosà à oàa ada,àestelio ato,àf audesà oàsiste aàfi a ei o,àag ess esàfísi as,à
iol iaà oà t a sitoà et .,à po ,à aà aio iaà dasà ezesà oà s oà des o e tosà e à
pe alizadosà po à seuà o po ta e toà ilí ito.à U à e e ploà típi oà deà talà
o po ta e toà à oà a usoà físi oà eà psi ol gi oà deà ulhe esà eà deà ia çasà ue,à
i feliz e teà o stituiuàt a sg ess oàdeàdifí ilà o t oleàso ial.à “IэVá,à ,àp.à

Po ta to,àaàpsi opatiaàe o t a‐seà i uladaà o à iosà a osàdoàdi eitoàpe al,àsejaà


osà i esà utais,à ou,à asà i f aç esà eà t a sg ess esà pe aisà deà e oà ueldadeà e/ouà
pote ialà ofe si o,à e à o oà e elaà u à is oà giga tes oà aoà oleti oà so ial,à poisà o oà j à
elu idadoàat àe t o,àtaisàsujeitosàage àdeàfo aài pulsi aàeà us a àso e teàsuaàsatisfaç oà
pessoal,à oàle a doàe à o taàasà e essidadesàdeàout e ,à e àasà o asà egulado asàdoà
o í ioà ha o iosoà e à so iedadeà eà uitoà e os,à sof e à o à asà deli itaç esà o aisà eà
ti asàlo alizadasà asàpessoasà ueà oàdet àdeàtalàpatologia.
“u se ue te e te,àoào de a e toàju ídi oàe o t aà aào o iaàdessesà asosàu aà
g a deàdifi uldadeàe àdiag osti a àaàpsi opatia,àpoisà oàh à oàp o essoàpe alà asilei oàu aà
faseào igat iaàdoàe a eàpsi ol gi oàouàpsi ui t i oàdoà i i osoàeà es oà ue,à o statadoà
du a teà oà p o essoà legal,à oà pode à judi i ioà depa a‐seà o à u à desafioà olossalà deà o oà
sa io a à talà i di íduo,à hajaà istaà ue,à esteà ap ese taà u aà aus iaà deà e o soà ouà
a epe di e toàe à elaç oàasàsuasàaç es.àOut ossi ,àtaisàdifi uldadesàle a àaà e ueàaàfu ç oà
so ialàeàsa io at iaàdasàpe asàdoàC digoàPe alàB asilei o.

àPsi opatiaà aà is oàfisiológi a,àpsi ológi aàeàpsi ui t i a:

áàpsi opatiaàfoiàestudadaàe à iasàesfe asàeà o e tesàdaà i iaàdu a teàa os,à o oà


aà eaà fisiol gi a,à psi ol gi aà eà psi ui t i a,à de t eà asà uaisà algu asà teo iasà eà estudosà seà
desta a a ,à o fo eàa alisa e osàaàsegui .
Patologi a e teà fala do,à aà psi opatiaà podeà e o t a à seusà i dí iosà e à uest esà
e oluti asàdoàse àhu a o,àse doà o side adaàatual e teà o oàu aà at iaà ela io adaàaoà
o po ta e toàhu a oàe oluti oàdaàesp ieàeà oà ais,àso e teàpsi ol gi oà “IэVá,à ,à
p. .àйs la e e do,à oàs uloàpassado,àasà uest esà o ais,àoàse soàdeàjustiçaàeà o pai oà
e a à o p ee didosàso e teà o oàaspe tosàpsi ol gi os,à oàe ta to,àatual e teàpes uisasà
ealizadasà oà e oà hu a o,à de o st a à oà aspe toà fisiol gi oà o oà oà alizado à e t alà
431

destasài po t iasàe o io ais,àoà ueài te fe eàdi eta e teà aà o p ee s oàdaàpsi opatiaà


o oàdoe çaà eu ol gi aàeàpsi ol gi aàeà oà ais,àu i a e teàpsi ol gi a.
Osà sujeitosà ueà det à destaà ol stiaà ap ese ta à u aà des o e oà dosà i uitosà
e e aisàasso iadosà àe oç o,à e à o oàoàseuàsiste aàlí i o4,à o postoàpo àest utu asà
o ti aisàeàsu o ti ais,àoà ualà à espo s elàpelasàe oç esàeàpelasàaç esà o ais àdeà adaà
pessoa.à Pa aà aà psi uiat aà “il aà ,à p. ,à istoà seà de eà po à ueà U aà dasà p i ipaisà
est utu asà doà siste aà lí i oà seà ha aà a ígdala.à эo alizadaà oà i te io à doà lo oà te po al,à
essaà pe ue aà est utu aà fu io aà o oà u à ot oà deà dispa o à deà todasà asà e oç es .à
Co fo eàde o st aàasàilust aç esàaà ai o:

нig.à à‘egi esàdoà e oàe ol idasà o àaàto adaàdeàde is esà o ais,àPsi opatasà‐à o oà e o he e‐losàeàseàp e e i ,àe à .

“egui doà estaà li haà deà a io í io,à estudosà ealizadosà e e te e te,à o stata a à aà
dife e çaà iol gi aàdeàu àpsi opataàe à o pa aç oàaàu àsujeitoà o u .àássi ,àasà easà ueà
de o st a a àdife e çasàfo a àoà te àp ‐f o talà e t o edialà PнC àeàasàa ígdala,àistoà
,à o oà e io adoàa te io e te,àaà egi oà espo s elàpelasàe oç es.àPa aàыoe igsà apud,à
‘OMáN)OTI,à à s oà йssasà duasà est utu asà oà e o,à ueà egula àoà o po ta e toà
so ialàeàaàe oç o,àpa e e à oàesta àseà o u i a doà o oàde e ia .

4
Sistema límbico é um grupo de estruturas no cérebro associado às emoções e impulsos. É constituído por quatro
estruturas: amígdala, hipocampo, regiões do córtex límbico e a área septal.
432

Pa aà uest esàpe ti e tesàaà lassifi aç oàdaàpsi opatiaàpelaàClassifi aç oàI te a io alà


deà Doe çasà CID ,à e à o oà pa aà oà Ma ualà deà Diag sti osà eà йstatísti oà deà T a sto osà
Me taisà D“M‐IV‐T‘ ,à aà psi opatiaà à o eituadaà o oà T a sto oà deà Pe so alidadeà
á tisso ial àeàso e teàpodeàse àdiag osti adoàassi àpa aàpessoasà aà idaàadulta,à oàse doà
lidoàpa aà ia ças.
ádia te,àaàteo iaàdaà eaàdaàpsi ologiaàdeà aio à ele iaàpa aàoàp ese teàestudoàeà
e e e teà e io adaàa te io e te,à a e eàdeàu aàa liseà aisàap ofu dada,àpo ta toà
e à ueà peseà aà йs alaà deà рa e,à ta à de o i adaà o oà Ps hopath à Che klistà ouà PCэ,à
iadaà peloà psi logoà a ade seà ‘o e tà рa e,à o sisteà e à à ite s,à osà uaisà e e e à
po tuaç oàdeà àaà àe,à ua toà aisàp i oàdeà àfo àoà esultadoàfi al,àouàseja,àaà o putaç oà
dosà alo esà e e idosàe à adaàite ,à aisàpe igosoàoàsujeitoàpodeàse .
áàPCэàe a i aàdeàfo aà i u iosa,à iosàpo tosàdaàpe so alidadeàpsi op ti a,àte doà
i í ioà osàligadosàaosàse ti e tosàeà ela io a e tosài te pessoaisàat àoà odoàdeà idaàdosà
psi opatasàeàpo àfi ,àsuaà ultu aàa tisso ialàeàt a sg esso a.àáàPs hopath àChe klistà e ifi aà
aspe tosà o o:àáus iaàdeà a ifestaç esàpsi o eu ti as;àPessoaà ueà oài spi aà o fia ça;à
нalsidadeàouài si e idade;àCo po ta e toàa tisso ialàse à oti oàapa e te;àйgo e t is oà
patol gi oà eà i apa idadeà deà a a ;à I se si ilidadeà asà elaç esà i te pessoaisà o di ias;à
й t eàout asà a a te ísti asà o po ta e tais.
áà йs alaà deà рa eà atual e teà à o side adaà oà elho à eà u i e salà e a is oà pa aà
ide tifi aç oàdeàu àpsi opataàeàte eàseuài g essoà oàpode àjudi i ioà asilei oàap sàaàteseàdeà
douto adoà e à psi uiat iaà ela o adaà po à рildaà Mo a a,à aà ualà foià auto izadaà pa aà
o e ializaç oà peloà Co selhoà нede alà deà Psi ologiaà eà to ou‐seà oà p i ei oà e a eà
i stitu io alizadoà oàsiste aàpe alà asilei o.
Out ossi ,àaàfi àdeàe e a àasà o p ess esàa e aàdosàdisti tosàe te di e tosàso eà
psi opatia,à o a e teà esta ele e e osà o tatoà o àu àestudoà e io adoàa te io e te,à
asà deà fo aà aisà detalhada.à й à ueà peseà aà pes uisaà ealizadaà peloà psi uiat aà ‘o aldà
Bla k u ,à aà ualàeleà o stituiuàaàteseà ueàdi idi iaàosàpsi opatasàe àdoisàu i e sos,àosàsu ‐
o t olado esà eà osà so e‐ o t olado esà e,à e à seguidaà aà talà otulaç o,à ealizouà u aà
su lassifi aç o,à aà ualà di idiu‐seà e t e:à Psi opatasà p i ios,à psi opatasà se u d ios,à
psi opatasài i idosàeàpsi opatasà o fo ados.
433

Oàp i ei oàg upoàs oà aisà o i tos,àe t o e tidosàeàe itadosàpa aàoà o po ta e toà


ep o el;àe t eta toàosàpsi opatasàpe te e tesàaoàsegu doàg upo,às oà aisài t o e tidos,à
depe de tesàeàdep i idos;àj àosàpsi opatasà i i idos àde o st a àt açosàtí idos,àisolados,à
o t olados,à ode ada e teàa siosos,à o à ai aàautoesti a,ào deà àpossí elàe o t a àosà
es uizoides5,à es uizotípi os6à eà passi o‐ag essi o7,à po à o à ú e osà ai osà deà
a tisso ia ilidade;àe à ua toàluga ,à e àosàpsi opatasà o t olados,à ueàs oà aisàdefe si os,à
o t olados,àso i eisàeàde o st a àaus iaàdeàa siosidade,àosà uaisàte de àaàap ese ta à
u à e o à ú e osàdeàt a sto osàdeàpe so alidade.ààà
Desseà odo,à i depe de te e teà daà i iaà ueà a alisouà aà psi opatia,à foià possí elà
e te de à ueà osà p o le asà de i adosà destaà patologia,à a a eta à e à s iosà da osà aoà seuà
po tado ,à poisà oà to aà u à i di íduoà e t e a e teà f io,à se à uais ue à estígiosà deà
se ti e toà deà ulpa,à a epe di e to,à e o so,à edoà ouà o pai oà o à oà p i o,à
pe iti doà ueàhajaàdeàfo aà al ulista,à et di a,à a ipulado a,à e ti osaàeàpe igosa,àaàfi à
deà sup i à asà e essidadesà aisà a aisà doà se à hu a o,à po à e oà p aze à ouà deslei oà o à
out e ,à oà ueà fi aà aisà f ilà deà o o e ,à seà o side a à oà a te à i pulsi oà dasà aç esà eà osà
des asoà o àasà o aisàso iaisà ueà ia iliza àaà idaàe àso iedadeàdeà odoàha o ioso,à e à
o oàosàaltosà í eisàdeà ueldadesàe e utadosà aà ealizaç oàdeàsuasàaç esà i i ais.

. .àPsi opatiaà oào de a e toàju ídi oà asilei o:

Te doàe à istaàasàa lisesàeà o p ee s esà ealizadasàat àoàp ese teà o e to,à o àaà
e pli aç oà po à di e sasà esfe asà daà patologia,à i i ia‐seà e t oà aà p i aà etapaà doà p ese teà
estudo,à aà ualà àfu da e talà o p ee de àosàefeitosàju ídi osàdaàpsi opatia,àasà uest esà
ela io adasà aà fu ç oà doà di eitoà pe al,à daà pe aà o oà e a is oà deà e upe aç oà o alà eà
so ialàdoàsujeito,à asài pli aç esà efe e tesàaà apa idadeàpe alàdoà i i osoàeàpo àfi ,àosà
efeitosà daà psi opatiaà oà pla oà daà i i ologia.à P i ei a e te,à e à ueà peseà aà fu ç oà doà

5
Pessoas com transtorno de personalidade esquizoide também tendem a ser distantes, individualistas, e
indiferente aos relacionamentos sociais. São solitárias, preferem atividades solitárias e raramente expressam
emoções fortes.
6
Transtorno caracterizado por um comportamento excêntrico e por anomalias do pensamento e do afeto que
se assemelham àquelas da esquizofrenia.
7
Caracteriza-se pela associação da passividade com a agressividade. Manifesta-se através da apatia e
desinteresse generalizados, com ausência quase completa de estímulos e incentivos.
434

Di eitoàPe al,àesteàte ‐seàoàseuàp i ipalào jeti oà aàp oteç oàdosà e sàju ídi osàesse iais,à
p ese a doà deà odoà legalà eà efi ie teà taisà pat i iosà i t í se osà aà todosà osà sujeitosà doà
йstadoà De o ti oà deà Di eito.à й à elaç oà aà fu ç oà doà Di eitoà Pe al,à ‘og ioà G e oà
o p ee deà ue:

áà fi alidadeà doà Di eitoà Pe alà à aà p oteç oà dosà e sà ju ídi osà aisà i po ta tesà eà
e ess iosàpa aàaàp p iaàso e i iaàdaàso iedade.àPa aàefeti a àessaàp oteç oà
utiliza‐seàdaà o i aç o,àapli aç oàeàe e uç oàdaàpe a.àáàpe aà oà àaàfi alidadeàdoà
di eitoàpe al.àÉàape asàu ài st u e toàdeà oe ç oàdeà ueàseà aleàpa aàaàp oteç oà
dessesà e s,à alo esàeài te essesà aisàsig ifi ati osàdaàso iedade.à G‘йCO,à....,àp.

ààààààNesteà se tido,à so eà oà Di eitoà Pe al,à Ceza à ‘o e toà Bite ou tà oà des e eà daà segui teà
a ei a:

OàDi eitoàPe alàap ese ta‐se,àpo àu àlado,à o oàu à o ju toàdeà o asàju ídi asà
ueàte àpo ào jetoàaàdete i aç oàdeài f aç esàdeà atu ezaàpe alàeàsuasàsa ç esà
o espo de tesà —à pe asà eà edidasà deà segu a ça.à Po à out oà lado,à ap ese ta‐seà
o oà u à o ju toà deà alo aç esà eà p i ípiosà ueà o ie ta à aà p p iaà apli aç oà eà
i te p etaç oàdasà o asàpe ais.à BITйNCUO‘T,à ,àp.

“e doàassi ,àoà a oàpe alàdoàdi eitoàte àoàofí ioàdeà ia iliza àaàp oteç oàdosàdi eitosà
doà idad oà asilei o,à e à o oà a te à sa io at io,à aà fi à deà pu i à asà t a sg ess esà
p ese tesà aà so iedade,à deà fo aà p opo io alà aosà delitosà o etidos,à p opo io a doà aoà
deli ue teàaàpossi ilidadeàdeà ei teg aç oà oàg upoàso ial,àap sàaàsupostaà ea ilitaç oàdoà
sujeitoà aàesfe aà o al,àso ialàeàju ídi a,àle a doàe à o side aç oà ueàtalà espo deuàpo àseusà
i es.
àáde ais,àpa aà ueàsejaà i elàaà o p ee s oàdoàta a hoàdoài passeà i e iadoàpeloà
o de a e toàju ídi oàe àjulga àosà asosàdeàpsi opatia,àfaz‐seàfu da e talàoàe te di e toà
daà fu ç oà daà pe aà eà osà esultadosà ueà est à de eà p oduzi à pa aà o à oà t a sg esso .à Naà
pe spe ti aàso ialàdaàpe a,àCesa eàBe a iaàes la e eà ueàoàDi eitoàPe alàde eàagi àdeàfo aà
p e e ti a,à o fo eàsegue:

Éà elho à p e e i à osà i esà doà ueà te à deà pu i‐los;à eà todoà legislado à s ioà de eà
p o u a àa tesài pedi àoà alàdoà ueà epa ‐lo,àpoisàu aà oaàlegislaç oà oà àse oà
aà a teà deà p opo io a à aosà ho e sà oà aio à e ‐esta à possí elà eà p ese ‐losà deà
todosàosàsof i e tosà ueàseàlhesàpossa à ausa ,àsegu doà l ulosàdosà e sàeàdosà
alesàdestaà ida.à BйCCá‘Iá,à ,àp.à
435

Pa aà‘e atoàMa oàaàat i uiç oàdaàpe a,à aiàal àdeàpu i àouàp e e i àosàdelitos,à
asàap ese ta‐seà o oàu à e a is oàdeà esso ializaç oàdoà i i oso,à o fo eàsegue:

áàe e uç oàpe alàde eào jeti a àaài teg aç oàso ialàdoà o de adoàouàdoài te ado,à
j à ueàadotadaàaàteo iaà istaàouàe l ti a,àsegu doàoà ualàaà atu ezaà et i uti aàdaà
pe aà oà us aàape asàaàp e e ç o,à asàta àaàhu a izaç o.àO jeti a‐se,àpo à
eioàdaàe e uç o,àpu i àeàhu a iza .à Má‘CÃO,à ,àp.à

ál àdaàfu ç oàp e e ti a,àasàsa ç esàpe aisàt àaào igato iedadeàdeà ei teg aç oà


eà ea ilitaç oàdoàdeli ue te,àoà ueà aàp ti aàsa e‐seà ueà oào o eàpe feita e te,à o oà
o se u iaà deà u aà o ga izaç oà p isio alà defi it iaà eà p e ia,à e t eta to,à oà fogeà dasà
osà doà йstadoà aà espo sa ilidadeà e à efetua‐la.à “u essi a e te,à aleà essalta ,à ueà osà
i i ososàdiag osti adosà o àpsi opatia,à oàap ese ta àasà a a te ísti asà si asàpa aàaà
suaà ea ilitaç oà eà ei teg aç oà aà o u idade,à po à ueà o fo eà j à e io ado,à estesà
de o st a àu aàaus iaàdeà e o so,àa epe di e toàeà ulpa ilidadeàe à elaç oàasàsuasà
aç es.
Noà se tidoà deà ulpa ilidade,à Do aldà Woodsà Wi i ott,à e o eadoà di oà
Psi a alista,àe te deà ue:

[...]à p op e,à o oà u aà esp ieà deà e s oà positi aà doà o eitoà deà se ti e toà deà
ulpa,àoà o eitoàdeàe ol i e to,à ue,à asàsuasàpala as,à o i iaàpositi a e teàoà
fe e oà ueà à o e toà egati a e teà pelaà ulpa .à Oà se ti e toà deà ulpa,à seà
a tidoà de t oà deà li itesà ple a e teà supo t eis,à à i dispe s elà aoà
dese ol i e toà doà auto o t oleà eà à atu idadeà psí ui a...“eà oà “e ti e toà deà
ulpa,àp o e ie teàdeàu àsupe egoàfle í el,àap ese ta‐seàple a e teàsupo t el,àeleà
o duzà à epa aç o.à apudà“ã,à ,àp.

Out ossi ,à e à elaç oà aà apa idadeà deà e ol i e to,à Do aldà Woodsà Wi i ott,à
o p ee deà ue:
Oà e ol i e to,à dizà Wi i ott,à à aà apa idadeà deà oà i di íduoà seà espo sa iliza à
pessoal e teàpelaàdest uti idadeà ueàe isteàde t oàdele.àй ol eàaà aio ài teg aç oà
dosài pulsosà o t adit ios,à aio àdese ol i e toàdoàse doàdeà espo sa ilidade.à
apudà“ã,à ,àp.

эogo,à pa aà рa sà Welzel a capacidade de entender a culpa era fundamental para


recuperação do criminoso, nesse sentido diz que:

Capacidade de culpa (capacidade de imputação) é, portanto, a capacidade do autor:


a) de compreender o injusto do fato, e b) de determinar sua vontade, de acordo com
essa compreensão. A capacidade de culpa tem, portanto, um elemento adequado
436

ao conhecimento (intelectual) e outro adequado à vontade (voluntário); os dois


juntos constituem a capacidade de culpa. (WELZEL, 2003, p. 235)

àCo stata‐seà assi ,à aà i po t iaà doà e ol i e toà doà deli ue teà pa aà ueà sejaà
possí elàaàsuaà e upe aç o,àpo à o oàosàpsi opatasà oàdet àdoàse ti e toàdeàe patia,à
o pai oàeàosàde aisàsup a e io ados,à uais ue à ueàseja àasàte tati asàdeà ea ilitaç oà
doàsujeitoàse oà e a e teài efi azes,àse àaà o p ee s oàdosàli itesàlegaisàdeàsuasàaç esàeà
oà àpossí elàp opo io a‐laàdesat eladaàdaà o tadeàdoài di íduoà ueàdeli uiu.
Noàe ta to,àde e‐seà o side a à ueàaàfaltaàdeà o he i e toàt i oàdaà atu ezaàeàdoà
pote ialàofe si oàdosàPsi opatas,àe p e àu aà a iaà oàsiste aàju ídi oàpe alà asilei oà
estesà asos,à oà ueà o oà o se u ia,à esultaà aà aus iaà deàpolíti asà i i aisà eà pe asà
aisàp opo io aisàaàpe i ulosidadeàdeàtaisàsujeitos.àápesa àdaào o iaàdaà i i alidadeà
se à e t e a e teà dist i uídaà e t eà i ú e osà delitos,à le a doà oà o de a e toà ju ídi oà aà
a e igua à asà situaç esà i i aisàdeàfo aà ho oge ia,à à i dispe s elà ueà oà es oàpode à
i i ieà u aà o ilizaç oàpe alà pa aà a alisa àosà asosà deà i esà efetuadosà po àpsi opatasà deà
fo aà aisà p opo io alà aoà pote ialà ofe si oà deste,à oà ueà a a eta iaà e à sa ç esà
e ui ale teàasàaç esà uitasà ezesà u isàdoàpsi opata.
áde ais,à apesa à daà afi aç oà deà ueà asà pe asà aà se e à apli adasà aà taisà i i osoà
de e àse à aisàp opo io aisàaosàseusà i esà utais,àaàp i ipalàdis uss oàdoào de a e toà
ju ídi o,à de e‐seà olta à aà apa idadeà pe alà destasà pessoasà fisiologi a e teà eà
psi ologi a e teàp ejudi adas.àOàpsi opataà ue,à o al e teà à o side adoàdeli ue teàeà
sof eà deàu àp o essoàpe alà o u ,à de eà se à o side adoà po àtodosàosà oti osà at à e t oà
e p essos,ài i put eisàouàse i‐i put eisà ua toàaà o de aç oàdeàseusàatosàilí itos,àouàseja,à
à oà sujeitoà i tei a e teà i apazà deà o p ee de à aà ili itudeà deà suasà aç esà ouà e o aà
apa e te e teàs o,à oàte àoàgozoàdaàple aà apa idadeàdeàassi ila àoà a te àilí itoàdoàfatoà
eà agi à deà a o doà o à esseà e te di e to,à eà o oà esultadoà a a aà dete i a do‐seà e à
o fo idadeà o à seuà e te di e toà i iado,à ag ega doà aà istoà aà suaà faltaà deà e patia,à
o pai o,à ulpaà eà aus iaà deà uais ue à se ti e tosà deà e o soà ouà a epe di e tos,à
agi doàdeà odoài pulsi o,àaàfi àdeàsatisfaze àseusàa seios.
й à ueàpeseàasà o epç esàso eàosàsujeitosài i put eis,àCeza à‘o e toàBite ou tà
e te deà ue:
Pode‐seàafi a ,àdeàu aàfo aàge i a,à ueàesta àp ese teàaài puta ilidade,àso à
aà ti aàdoàDi eitoàPe alàdoà asilei o,àtodaà ezà ueàoàage teàap ese ta à o diç esàdeà
437

o alidadeà eà atu idadeà psí ui asà í i asà pa aà ueà seà possaà se à o side adoà
o oà u à sujeitoà apazà deà se à oti adoà pelosà a da e tosà eà p oi iç esà
o ati os.àáàfaltaàdeàsa idadeà e talàouàaàfaltaàdeà atu idadeà e talàpode àle a à
aoà e o he i e toàdaài i puta ilidade,àpelaài apa idadeàdeà ulpalidade.àPode à
le a ,à dize os,à po ueà aà aus iaà daà sa idadeà e talà ouà daà atu idadeà e talà
o stituiàu àdosàaspe tosà a a te izado esàdaài puta ilidade,à ueàai daà e essitaà
deà suaà o se u ia,à istoà ,à doà aspe toà psi ol gi o,à ualà seja,à aà apa idadeà deà
e te de à ouà deà autodete i a ‐seà deà a o doà o à esseà e te di e to.à
BITйNCUO‘T,à ,àp.

йà oà ueàta geàosàage tesàse i‐i put eis,àoàpa g afoàú i oàdoàa t.à àdoàC digoà
Pe alàB asilei o,àoà o p ee deà o oà o agente, em virtude de perturbação de saúde mental
ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de
entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-seàdeàa o doà o àesseàe te di e to .
й ata e teàpo àdete e àdeàu àpote ialàofe si oàeàdeàu aàpe i ulosidadeàso ialà e à
supe io àaosà i i osoà o u s,àaosàpsi opatasààde e àse ài postasàasà edidasàdeàsegu a ça,à
aisàespe ifi ada e teà oà ueàdisp eàoàa t.à àdoàC digoàPe alàB asilei o,àe àseuài isoàI,à
i te aç oà e à hospitalà deà ust diaà eà t ata e toà psi ui t i oà ou,à à falta,à e à out oà
esta ele i e toà ade uado ,à po à te poà i dete i ado,à hajaà istaà ueà oà h à t ata e tosà
pa aà talà patologia,à poisà o fo eà j à e io ado,à t ata‐seà deà u à aspe toà fisiol gi o,à
psi ui t i oàeàpsi ol gi oàe à o ju to,àeàat àoà o e to,à oàh àestudosà ueà o p a a àaà
u aàpa aàoàp o le a.

. àáàatuaç oàdaà i i ologiaà aà o p ee s oàdasà o se u iasàeà is osàdaàPsi opatia:

áà di e sidadeàdeà a osà ueà aà i i ologiaà t a alhaà eà us aà o p ee de ,à o oà osàà


aspe tosàso iol gi osàdoà i e,àosà oefi ie tesàju ídi os,àal àdeà us a àestuda àaà edi i aà
legal,à aà a t opologiaà i i alà eà psi ologiaà i i al,à e à o oà de aisà i iasà à ueà faze à
pa teà daà esfe aà i i al,à fazà o à ueà aà C i i ologiaà sejaà o side adaà i dis uti el e teà
ultidis ipli a ,à se doà u aà i iaà e pí i aà eà i duti a,à ouà seja,à us aà o lus esà eà
e pli aç esàpo à eiosàse so iais,àe à o ju toà o àa alisesàdeà asosà o etos,à e à o oàdeà
dadosàpa aàati gi àasà o lus esàso eàosàte asà ueàp op e‐seàaàa alisa .
“o eàaàatuaç oàdaà i i ologia,àaàp s‐g aduadaàe àpsi ologiaàju ídi a,àNídiaàMoutaà
dizà ue:
й ua toà ueàoàDi eitoàPe alàte àaàp eo upaç oàdeài po àli itesàaoàPode àdeàpu i à
doà йstado,à at a sà deà defi iç esà p e isasà dasà hip tesesà deà i id iaà
438

o po ta e talà dosà i di íduosà ueà se oà su etidosà à pu iç o,à aà C i i ologiaà


e e gaà oà i eàu àp o le a,àe à ueàpeseàaàsuaà aseà o flitualàeàai daà asta teà
difí ilà deà se à des e dada,à poisà i pli aà oà so e teà aà i posiç oà eà aà fo aà deà
apli aç oàdaàpe a,à asàaàa liseàdoàse àhu a oà o oàele e toà espo s elàpelaà
p ti aàdoàdelito,àte ta doàdesli da àoàe ig aàdeào de àso ial,àpsi ol gi aàeàta tasà
aisà ueà justifi ue àoà ueàoàle ouàaàp ati a àoà es o.àOuàseja,ào upa‐seàdoà i e,à
doàage teà ueà o eteàoàdelito,àdaà íti aà eàai daàdoà o t oleàdoà o po ta e toà
so ialà delituoso,à te ta doà e pli a à eà p e e i à oà a o te i e toà i i osoà eà
i te i doà aàpessoaà ueàoà o ete.à MOUTá,à

й t o,àaà i i ologiaàageàdeà odoàaàa alisa àoàse àhu a oàeàsuasàatitudes,àpa aà o à


issoà o p ee de àsuasà o dutasàte de iosas,àilí itasàeàe àdete i adosà asos,à u isàeà à
e ata e teà esteà pila à e à ueà aà i i ologiaà faz‐seà fu da e talà aà o p ee s oà daà
P o le ti aà daà Psi opatiaà aà “o iedadeà eà oà O de a e toà щu ídi oà B asilei o ,à poisà
estudosà de i adosà destaà i iaà apu a à ue,à ap o i ada e teà u à ua toà daà populaç oà
a e iaà àfo adaàpo à eu ti os,àpsi ti os,àouài st eisàe o io al e teàe,àout oà ua toà
daàpopulaç oàp isio alàs oàpo tado esàdeàdefi i iaàpsi ol gi asàe/ouà e tais.
Desseà odo,àaà i i ologiaàap o i a‐seà uitoà aisàdasà o se u iasàeàdosà is osà
ueàosàpsi opatasàt aze àaoà oleti oàso ial,àdoà ueàoàDi eitoàPe alà o e ta ea e teà à apazà
deàal a ça ,àpo à ueàe ua toàaà i i ologiaàatuaàdeà odoà iopsi osso ial,àe a i a doàosà
fato esà iol gi os,àfato esàpsi ol gi os,àdeàpe so alidadeàeàso iais,àal àdeàestuda àdi e sosà
ele e tosà ueà o i a à aà ealizaç oà uelà uitasà ezesà dosà i esà eà doà au e toà
dese f eadoàdaà i i alidadeà oàpaís,àoàDi eitoàPe alàp eo upa‐seàe àsa io a àeà e upe a à
oàt a sg esso ,àse àa alisa àdeàfo aàp ofu daàasà az esàdoà i e.

.àCo side açõesàfi ais:

áà p i ei aà o side aç oà fi al,à i p e‐seà so eà oà o te toà e oluti oà dasà teo iasà eà


estudosàso eàaàpatologiaàestudada,à ualàseja,àaàpsi opatiaàouà T a sto oàdeàPe so alidadeà
á tisso ial,à poisà i i ial e teà t atadoà o oà u aà uest oà psi ol gi a,à o fo eà elu idadoà
du a teà oà t a s o e à doà p o essoà p o ou‐seà esultadoà deà u aà alte aç oà fisiol gi a,à te doà
o oà esultadoàp o le asàpsi ui t i osàeàpsi ol gi os.àOut ossi ,àfaz‐seàfu da e talàap sà
taisàe te di e tosà e o da àdoà o eitoàdaàpsi opatia,àaà ualàpodeàse à o p ee didaà o oà
esultadoà deà u aà alà fo aç oà daà pe so alidadeà daà pessoa,à po à uest esà fisiol gi asà eà
o i a doàe àefeitosà egati osà asà elaç esài te pessoaisàdoài di íduo,à o p o ete doàasà
439

uest esàpsí ui asàdoà es o,àdei a do‐oài apazàdeàde o st a à edo,àa siedade,àest esse,à


e patia,à ulpa,à e o soà ouà uais ue à se ti e tosà afetuososà ueà pessoasà se à talà doe çaà
te .à
“u essi a e te,à salie ta‐seà aà pe i ulosidadeà ueà osà sujeitosà a o etidosà pelaà
psi opatiaà ep ese ta àpa aàoà o í ioàe àso iedade,àestesà ueàage àdeà odoài se sí el,à
se à esíduosàdasàe oç esàsup aà e io adasàeàpo àisso,àatua àdeàfo asà a aisàpo à e oà
p aze ,àte doàe à istaàoà a te ài plosi oàdeàsuasàaç es.àà
Po ta to,àoào de a e toàju ídi oà asilei oàde eàela o a à edidasàeàpoliti asà i i aisà
espe ifi asàpa aàosà asosàà o àpsi opatas,àade aisàde e‐seài st u e taliza àaoàp o essoàpe alà
u aàfaseào igat iaàdeàa aliaç oàpsi ol gi aàeàpsi ui t i aà o àoàt a sg esso esàdeà i esà
utaisà ouà deà aio à pote ialà ofe si o,à pa aà possi ilita à oà o t oleà daà psi opatiaà aà esfe aà
pe alàeà aàso iedadeà asilei a,àpoisàtaisàsujeitosà o fo eàes la e idoàaoàlo goàdoàp ese teà
a tigo,à oàpode à eg essa à o a e teàaàpopulaç o,àaoà e osà osà asosàdeà i esà a ais,à
po à ueàaàfu ç oàedu ati aàdaàpe aà o àpsi opatas,à e ela‐seài efi azàeàassi ,à ia doàu à
i passeàdi eitoàpe alàeàfaze doà o à ue,àoàpode àjudi i ioàope eàdeà odoàaà ia à e a is oà
ueàpossi ilite àoà o t oleàso eàaà i i alidadeào iu daàdaàe fe idadeàe a i ada.
àPo à fi ,à faz‐seà fu da e talà u aà ap o i aç oà aisà i te saà doà di eitoà pe alà o à aà
i i ologiaàpa aàoàestudoàap ofu dadoàdaà i i alidadeà esulta teàdosàefeitosàdaàpsi opatiaà
aà so iedade,à po à ueà o fo eà de o st adoà a te io e teà essasà easà pe ais,à estuda à
fato esàdife e tes,à o ào jeti osàopostosàeàdessaà a ei aàde e àt a alha àe à o ju toàpa aà
o ga iza àeà o po àdeàfo aà aisàa plaàasàaç esàpe aisà osà asosàf utosàdoàT a sto oàdeà
Pe so alidadeàá tisso ial.

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NйWTON,àMi hael. áàe i lop diaàdeàse ialàkille s. “ oàPaulo:àMad as,à .à

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440

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deli a tes/t a sto o‐es uizotipi o>àá essadoàe :àMaio,à .

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e :à<https://saude.u o o. o . /a tigo/ o o‐ide tifi a ‐o‐t a sto o‐de‐pe so alidade‐
passi o‐ag essi a‐ .ht l>àá essadoàe :àMaio,à .

“OU)á,àBe a doàdeàáze edoàde;à“áIB‘O,àрe i ue.àйdàGei ,àoàlou oà a i ei o.à.Dispo í elà


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441

Cá‘áNDI‘U:àáà LйGÍTIMáàDйнй“á àQUйàTI‘OUàáàVIDáàDйà àDйTйNTO“

Rafaela Weber Mallmann1


Vera Lucia Spacil Raddatz2

RESUMO: Tendo como base o episódio denominado Massacre do Carandiru conhecido


ta à o oà рolo austoàdaàdete ç o àeàoà aio à assa eàdaàhist iaà a e ia ào o idoà
dia 02 de outubro de 1992, neste estudo busca-se refletir sobre como o caso repercutiu nas
mídias sociais, no que diz respeito aos direitos humanos e ao abuso de agentes do Estado
quanto ao seu poder e força. São relatadas ainda notícias publicadas em espaços midiáticos
na época do crime e discute-se quais os argumentos relacionados ao caso a partir da decisão
do relator Ivan Sartori que anulou a condenação dos PMs acusados de praticarem o massacre
que resulta em 111 detentos mortos e 84 feridos.

Palavras-chave: Direitos Humanos; Carandiru; Massacre; Legítima Defesa.

INTRODUÇÃO

Torna-se necessário a partir do caso Carandiru refletir o que representa o massacre do


Carandiru quanto à perspectiva dos direitos humanos e da cidadania e de que modo a cultura
influencia nos discursos relativos ao caso. A influência da mídia na formação de opinião dos
idad osà à la a,à o igi a doà assi à oà ha adoà se soà o u ,à de o i adoà ta à deà
o he i e toà e pí i o ,à aseadoà aà e pe i ia,à se à e essidadeà deà o p o aç oà
científica.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) promulgada em 1948, expressa
e à seuà a tigoà I,à disp eà ueà Todoà se àhu a oàte à apa idadeàpa aà goza à osà di eitosà eà asà
li e dadesà esta ele idosà estaà De la aç o,à se à disti ç oà deà ual ue à esp ieà [...] ,à oà
importando a raça, a cor o sexo ou qualquer outra característica identitária de cada um. Os
direitos humanos são, portanto, para todos. Por serem direitos inerentes ao ser humano,
todos os possuem pelo simples fato de serem humanos.
Bobbio (1992) explica que o conceito de direitos do homem ainda é muito vago, sendo
aà aio iaàdasàdefi iç esàtautol gi as.àPa aàesteàauto ,à Di eitosàdoàho e às oàosà ueà a e à

1
Acadêmica de Direito; Bolsista de Iniciação Científica Pibic/CNPq do Projeto Mídia e Sociedade: o direito à
informação com o Subprojeto Direitos Humanos na Internet: informação e cidadania, desenvolvido junto ao
PPGD – Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado em Direitos Humanos – Unijuí. E-mail:
rafa.w.mallmann@hotmail.com
2
Dra em Comunicação e Informação; Professora do PPGD - Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado
em Direitos Humanos – e dos Cursos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda, da Unijuí; Coordena o Projeto
Mídia e Sociedade: o direito à informação. E-mail: verar@unijui.edu.br
442

aoà ho e à e ua toàho e à p.à à eà oà seà efe e à aoà seuà o teúdo,à asà aoà estatutoà
desejado,à di eitosàdoàho e às oàa uelesà ueàpe te e ,àouàde e ia àpe tencer, a todos
osàho e s,àouàdosà uaisà e hu àho e àpodeàse àdespojado à p. .
Trata-se do reconhecimento da humanidade do homem, independente da cultura e
t adiç esàdeàdete i adosàg upos.àэu asà ,àp. àe pli aà ueàaà oe ist iaà o alàdeà
todos os homens, independentemente do pertencimento a determinada condição histórico-
cultural, deve orientar, de forma direta, a compreensão, também moral, dos direitos
hu a os .à Co side aà ueà essesà di eitosà de e à le a à oà ho e à à efle oà so eà aà suaà
condição última enquanto ser universal, fortalecendo a compreensão acerca de sua existência
si gula àeàele a doàoàt ata e toàju ídi oàdeàsuasà elaç esàaàu à í i oà ti o à p. .
Com o artigo XIX da DUDH é declarado o direito à liberdade de opinião e expressão,
sendo que esteàdi eitoài luiàaàli e dadeàde,àse ài te fe ia,àte àopi i esàeàdeàp o u a ,à
receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de
f o tei as .àáàpa ti àdaàglo alizaç oàeàoàsu gi e toàdaàe aàdigital,àaàso iedadeàpassa a usar os
meios de comunicação como forma principal para exercer os direitos expressos no artigo XIX
daà DUDр,à oà ueà Castellsà à ha aà deà so iedadeà e à ede ,à p oduzi doà o osà
comportamentos e relações através da Cibercultura (Lévy, 1999).
O caso Ca a di u,àa uiàa alisado,ài i iouà o àu aà e eli o à oàPa ilh oà à aàCasaàdeà
Detenção do Carandiru, localizada na zona Norte de São Paulo. Homens da Tropa de Choque,
da Ronda Ostensiva Tobias de Aguiar (ROTA), Comando de Operações Especiais (COE) e o
Grupo de Ações Táticas Especiais (GATE), invadiram a Casa para pacificar a rebelião. Essa é a
versão dada pela mídia a partir da documentação que o sistema de justiça produz até o
momento para relatar o caso.

METODOLOGIA

Esta pesquisa é um recorte dos resultados do Projeto Mídia e Sociedade: o direito à


informação, adscrito ao Programa de Pós Graduação em Direito – Mestrado em Direitos
Humanos, da Unijuí. Trata-se de uma pesquisa de caráter qualitativo e consiste na liberdade
de trabalhar com diferentes técnicas, como levantamento e análise de conteúdo na internet,
pesquisa documental e bibliográfica. O estudo debruça-se sobre sites, blogs e mídias sociais
443

a fim de observar as questões relativas aos direitos humanos. Com a inserção da palavra
di eitosà hu a os à asà edesà so iaisà Facebook, e Twitter bem como a ferramenta de
pesquisa Google, são selecionadas informações e comentários acerca do assunto. Com o
resultado da pesquisa no mês de setembro de 2016, obteve-se este assunto como o mais
comentado nas redes sociais, a partir da decisão da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça
de São Paulo, que no dia 27 de setembro de 2016 anulou o julgamento dos 74 policiais
militares condenados em primeira instância por estarem envolvidos no massacre do
Carandiru.

O JULGAMENTO DO DESEMBARGADOR IVAN SARTORI

No caso Carandiru, a defesa dos PMs pedia a anulação do julgamento. Baseado no


a gu e toà deà ueà oà hou eà assa e,à hou eà legíti aà defesa ,à oà dese a gado à I a à
Sartori (2016, on-line), ex-presidente do TJ e relator do caso, absolveu os réus. Julgados em
cinco tribunais de júri diferentes, entre 2013 e 2014, os PMs podiam recorrer em liberdade.
Pa aà“a to i,àoà ueàhou eàfoià aà o te ç oà e ess iaà ài posiç oàdaào de àeàdis ipli a .
Segundo o jurista Walter Maierovitch (2016, on-line), não se pode absolver réus
condenados por júri popular, porque "o júri é soberano". "É surpreendente o voto de Sartori,
incorreto tecnicamente e que contraria a Constituição", afirma. A lei processual penal diz que
a decisão do júri só pode ser anulada quando ela for manifestadamente contrária à prova dos
autos.
Caso seja anulada a decisão do júri popular, é necessário fazer um novo julgamento,
voltando o caso à primeira instância. É preciso calcular o tempo de pena para cada um dos 74
policiais militares para saber se os crimes irão ou não prescrever caso voltem à primeira
instância. Ainda é necessário ouvir a decisão de outros dois desembargadores que não
votaram. A partir da votação de todos será possível saber a decisão definitiva.
Segundo a Anistia Internacional (2016, on-line) a decisão do Tribunal de Justiça de SP foi um
golpe contra a Justiça e os Direitos Humanos. Para a ONG Human Rights Watch (2016, On-
line), "considerar que não houve massacre no Carandiru é uma afronta às famílias das
vítimas". A diretora do Human Rights Watch Brasil, Maria Laura Canineu (2016, On-line)
444

afirmou na mídia que se houver absolvição dos policiais acusados, haverá o reforço de que a
impunidade é regra no Brasil.

REPERCUSSÃO NAS REDES SOCIAIS

É pela comunicação cidadã que a democracia ganha forma. Dominique Wolton (2010)
ale taà ueàaà edeàpodeà ia àoà o u ita is oàeàoàdes espeitoà sàdife e çasàeà àalte idade:à áà
sociedade em rede remete ao individualismo e ao comunitarismo, desviando-se do modelo
aisà o pli adoàdaàalte idadeàeàdaàso iedade. à WOэTON,à ,àp. .àOàauto à efleteàso eà
o fato de que a tecnologização e a abundância de informações produz a incomunicação e que
é preciso valorizar a informação relacional que privilegia o outro ser humano, a convivência e
oàaài di idualidade:à Co u i a à à adaà ezà e osàt a s iti ,à a a e teà o peti ,àse doà
adaà ezà aisà ego ia àe,àfi al e te,à o i e . à WOэTON,à ,àpà .
A partir da divulgação da decisão do desembargador Ivan Sartori surgem comentários
na rede social Twitter (2016,on line) como:à 111 mortos em meia hora, média de 5 tiros na
a eçaàeà asà ostas.àái daà e à ueàfoiàlegiti aàdefesa,àse oài agi aàoà assa eà ueàse ia! ,à
o e taàoàusu ioà .àáà espostaà e àe àseguida:à aíàse iaàu àescândalo, né? Uma afronta
aosàdi eitosàhu a os ,àdizàoàusu ioà .àйàfi al e te,àoàusu ioà à o fi a:à U àes dalo,à
vergonha para o Brasil, desrespeitos aos direitos humanos! Mas foi legitima defesa, podemos
do i àt a uilos .
Segundo o Código Penal (1940, On-line àatualà й te de-se em legítima defesa quem,
usando moderadamente os meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a
di eitoàseuàouàdeàout e .à“ oàosà e uisitosàdaàlegíti aàdefesa:àaà eaç oàaàu aàag ess oàatualà
ou iminente e injusta; a defesa de um direito próprio ou alheio; a moderação no emprego dos
meios necessários à repulsa; e o elemento subjetivo.
Nu ià ,àp.à àdefi eà eiosà e ess iosà o oàse doà osàefi azesàeàsufi ie tesà
para repelir a agressão ao direito, causandoàoà e o àda oàpossí elàaoàata a te .àNu ià à
afirma que deve ser razoável a proporção entre a defesa empreendida e o ataque sofrido, que
merece ser apreciada no caso concreto, de modo relativo, consistindo na medida dos meios
necessários. Se o meio fundamentar-se, por exemplo, no emprego de arma de fogo, a
moderação basear-se-á no número de tiros necessários para deter a agressão.
445

A revista Veja veiculou no dia 01 de outubro de 2016 (On-line) relatos da reportagem


que havia publicado em outubro de 1992. Em entrevista com os detentos que participaram
do massacre, aparecem os seguintes relatos:

Quer morrer de faca ou de revólver, pergunta um policial apontando a arma para a


a eçaà deà u à dete to.à йleà oà espo deuà eà o euà deà ti o ,à le aà йd ialdoà
Perei a,à ... à йuàeàout oàp esoàfi a osàe ai oàdosàoitoà ueàelesà ata a à aà ossaà
ela ,à a aàDa iàн.àdeàэi a,à ...

Segue a narração de que há pouca luz e muita fumaça no corredor. Os PMs portavam
lanternas e assim que passavam os presos corriam entre as celas xingando os policiais.

á uià à oà ho ue ,à a u ia à osà soldadosà oà ºà pa i e to.à Chegouà aà o te ,à


gritam, raivosos e ameaçadores. São alvejados por sacos de urina e fezes. Os presos
a de à estiletesà sujosà deà sa gue.à Vo sà oà o e à deà áids ,à desafiam os
detentos. Uma saraivada de tiros ecoa pelo prédio.

Prosseguindo os relatos, é possível ver a ação violenta dos policiais. Dionísio de 29 anos
conta à Veja (On-line) que o guarda chamou o detento carioca e encostou o revólver na cabeça
dele, e àseguida,àpe gu touàseàeleàesta aàassustado,àe t oà a io aà espo deuàpedi doà peloà
a o àdeàDeusàpa aà oà o e ,àe àseguida,àoàPMàati aàt sà ezes.

йuàfi ueiàe ai oàdoà ) àeàdoàá t io ,àeleàle a.àNoà eioàdaàfuzila ia,àDio ísioà


ouve a voz de um dosàa igos.à Didi,àeuàestouà o e do ,àdizàu àdosàho e sàso àoà
ualà seà es o de.à Meà so o e,à eà ajuda ,à i plo a.à Didià espo deà u à sussu o.à
N oàposso.à“eàeuàle a ta àosàho e sà eà ata .àN oàh à aisà esist iaà aàCasaà
de Detenção. Só fuzilamentos.

Dráuzio Varella (1999, p.293), em Estação Carandiru, narra a ação dos policiais por
eioàdeàu aàe t e istaà o àosàdete tosà ueàso e i e a àaoàata ue:à Tudoàalu i a te,à aà
velocidade, e (...) o polícia não teve dúvida: parou a escada na hora e pou, pou, dois tiros, na
f e teàdeàtodoà u do .
Varella (p. 292) narra como foi a disposição no pátio interno do pavilhão

ordenaram que todos sentassem com os braços cruzados sob as coxas e a cabeça
entre os joelhos. Quem levantasse o olhar para ver o que se passava, tomava
cacetada e mordida dos pastores alemães. Ficaram horas sentados no pátio, pelados,
em silêncio, com a Pm e os cachorros excitados em volta. (...) Lá pelas dez da noite a
Pm tomou posição na escada e nas galerias e começou a recolher os presos. Subiram
446

os cinquenta ou sessenta da primeira fila. Minutos depois, mais tiros, gritos e latidos.
No pátio, com medo das balas, os homens procuravam se arrastar, discretamente,
para as filas de trás. Gaguinho, um apontador de jogo do bicho e vendedor de
maconha que trabalhava na copa dos funcionários, descreveu assim o caminho de
volta: - Na subida da escada, tem uma coisa interessante: estava lavado de sangue,
um monte de cadáver espalhado. Não podia parar a fila, os polícias mandavam correr
e ameaçavam: se alguém me espirrar sangue, vai morrer! Tinha que correr descalço
naquela sangueira, sem levantar os pés para não sujar os elementos, que eles
queriam achar pretexto pra matar.

Com a morte dos detentos e a violência praticada pela polícia, fica visível a violação
dos direitos humanos que ocorreu no massacre do Carandiru. Os direitos humanos podem ser
entendidos como direitos inerentes a todos os seres humanos. A Declaração Universal dos
Direitos Humanos (1948, on-line ,à e à seuà a tigoà Ià disp eà ueà Todoà se à hu a oà te à
capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem
disti ç oàdeà ual ue àesp ieà[...] .à
Os direitos sociais estão estabelecidos na Constituição Federal (1988) e são
considerados como dever do Estado. A situação precária que os detentos viviam, sem
condições de saneamento básico e com superlotação nas celas prejudica o direito ao bem-
estar e a segurança, o que leva à revolta dos presos.
Foi apresentada denúncia formal contra o Estado brasileiro perante a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) devido à grave violação dos direitos humanos.
Também foi mencionado o fato da morosidade da Justiça brasileira em identificar, julgar e
punir os responsáveis. A conclusão do Relatório da Comissão Interamericana de Direitos
рu a osà àapo taà ueàoà asoàde u iadoà a a te izaàu à assa eà oà ualàoàйstadoà
iolouà osà di eitosà à idaà eà à i teg idadeà pessoal à On-line). O Relatório recomenda a
investigação dos fatos, a punição dos responsáveis e a concessão de reparação às vítimas, bem
como a adoção de medidas para evitar que se repitam violações desse tipo.

RELATÓRIO DA OPERAÇÃO E DEPOIMENTOS

As informações constadas nesta seção foram retiradas do artigo Massacre do


carandiru: vinte anos sem responsabilização, visto que foi a fonte encontrada que teve acesso
e tornou público partes do relatório da operação. Elaborado no dia do evento (3 de outubro)
pelo Comando de Policiamento de Choque, o relatório indica que houve briga generalizada
447

entre gangues rivais e que por se tornar incontrolável a situação, a tropa de choque recebeu
auto izaç oà pa aà e t a à oà pa ilh o,à se doà e e idaà aà ti os,à pedaçosà deà pau,à pedaçosà deà
ferro, facas contaminadas com sangue dos aidéticos, sacos plásticos contendo urina; bem
o oà iosàpoli iaisà ilita esàe t a a àe à o tatoà o poàaà o poà o àosàp esidi ios .àOà
esultadoà daà ope aç oà foià elatadoà o oà à poli iaisà ilita esà fe idos;à à p esidi iosà
mortos; 13 revólveres apreendidos; 165 estiletes de ferro; 25 pedaços de ferro; 1 marreta de
fe o;àpo ç esàdeà o aí aàeàdeà a o ha p. .
O inquérito policial militar foi concluído em menos de um ano. Sendo juntada aos autos
uma série de laudos do Instituto de Criminalística do Departamento Estadual de Polícia Civil e
doàI stitutoàM di oàэegalàeàou idasà àpessoas,àe t eà ofe didosàp s à àofi iaisàeà àp açasà
ueàfo a àfe idosàdu a teàaàope aç o,à o oàoà el.àU i ata ;à ofe didosàdete tos à àp esosà
vítimas de fe i e tos ;àeà teste u has .àásà teste u has àfo a àdi ididasàe àt sàg uposà
p i ipais:à p açasà ueà e t a a à oà pa ilh oà à eà ati a a à ;à ofi iaisà doà atalh oà deà
ho ue à ;à eà p aças à ueà oà ati a a ,à ueà oà e t a a à oà pa ilh oà eà out asà
testemunhas civis (251).
A divergência dos depoimentos se dá entre os PMs e os presos. Os policiais dizem que
ati a a à e à e ideà sà ag ess esà ueà e e ia ,à apo ta do,à ai da,à asà difi uldadesà
encontradas no decorrer da operação, principalmente em razão da fumaça, escuridão e piso
es o egadio .à ái daà deà a o doà o à oà juiz,à ega a à te à dispa adoà o t aà p esosà ua doà
estesà esta a à oà i te io à deà suasà elas à eà i fe e‑se que os tiros que efetuaram tinham
ta àoào jeti oàdeài ti ida àosàdete tos,àfaze doà o à ueà eto asse àpa aàsuasà elas .à
Negando confronto, os presos dizem que se sentaram no chão com as mãos na cabeça
logo que a polícia entrou no pavilhão. Alguns afirmam terem visto policiais atirando
diretamente em presos, outros afirmam terem sido espancados ao andar pelos corredores em
direção ao térreo. A conclusão do exame de levantamento do local relata que a trajetória dos
p oj teisài di ouà ati ado à es àposicionado(s) na soleira da respectiva porta, apontando sua
a aàpa aàosàfu dosàouàlate ais àeà ueà oàseào se ouà uais ue à estígiosà ueàpudesse à
denotar disparos de arma de fogo realizados em sentidos opostos aos descritos, indicando
confronto entre as vítimas‑al oàeàosàati ado esàpostadosà aàpa teàa te io àdaà ela p. .
Oàlaudoà o luià ueàoài í ioàdaàope aç oàdaàPolí iaàMilita àfoià a adoàpo à tu ultoà
ge e alizado,à o àaà a e age à e t alàe à ha as àeà ueà pode‑se inferir que o propósito
448

principal da operação policial militar foi o de conduzir parte dos detentos à incapacitação
i ediata .àTa àafi aà ueàfi ouà e ide teà ueà efe idaàaç oàfoiàdi igidaà o t aàg uposàdeà
eaç oàpe seguidosàpelosàpoli iais ,àe à az oàdaà o stataç oàdeàdi e sasà elasàsem qualquer
ti oàeà seusào upa tesài lu es .à
A partir da análise dos laudos do IML que serviram de base para o parecer médico‑legal
realizado pelo Departamento de Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo e requisitado por Paulo Sérgio Pinheiro, observa-se que o parecer conclui que
grande parte dos presos mortos foi atingida por mais de cinco projéteis e que quase todas as
vítimas que receberam tiros morreram. É notável a falta de preservação do local do crime e a
incapacidade técnica do Instituto de Criminalística de realizar o laudo de confronto balístico.
Os peritos afirmaram que o local dava nítidas demonstrações de que fora violado, o
que dificultou a perícia. Também no exame das armas de fogo, a falta de cuidado com a
preservação das provas é notada. Os peritos asseguram que a pesquisa de resíduos de pólvora
o ustaà asàa asà ela io adasàfi ouàp ejudi adaà fa eàaoàte poàde o idoàe t eàaàdataàdaà
ocorrência e a do recebimento das mesmas no i.c., tendo em conta a pouca estabilidade dos
p odutosào iu dosàdaà o ust oàdaàp l o a .àOàlaudoà o lui,àassi ,à ueà aàpe í iaà oàpodeà
afi a àseàasà e io adasàa asàati a a à e e te e te à p. .
Quanto ao exame de confronto balístico, embora requerido pela autoridade militar
que conduziu o inquérito, não foi feito em razão de dificuldades técnicas apontadas pelos
peritos do Instituto de Criminalística. Com esse exame seria possível determinar de qual arma
disparou o (ou os) tiro (s) que atingiu cada detento. Sendo possível a individualização das
mortes.

A SITUAÇÃO CARCERÁRIA HOJE

Apesar das recomendações da CIDH, o Brasil continua sendo a quarta maior população
penitenciária do mundo. Em dezembro de 2014 foi publicado o último relatório do
Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). É apontado o Brasil como
um sistema carcerário com 622.202 pessoas, atrás apenas de Estados Unidos (2.217.000),
China (1.657.812) e Rússia (644.237). Outro fato alarmante é que entre os detentos
449

brasileiros, 40% são provisórios, ou seja, não tiveram condenação em primeiro grau de
jurisdição.
Analisando o perfil socioeconômico dos detentos, observa-se que 55% têm entre 18 e
29 anos, 61,6% são negros e 75,08% têm até o ensino fundamental completo. Com esses
dados é possível perceber que a grande massa presente no sistema carcerário conta com
homens, pobres, negros e de baixa escolaridade. É apto o apontamento de que as
desigualdades sociais presentes no Brasil (analisando o aspecto local e não mundial) são o
principal problema que gera criminalidade.
Quanto à natureza dos crimes pelos quais estavam presos, 28% dos detentos
respondiam ou foram condenados por crime de tráfico de drogas, 25% por roubo, 13% por
furto e 10% por homicídio. O diretor-geral do Depen, Renato De Vitto, afirmou que o
crescimento da população penitenciária brasileira nos últimos anos não significou redução nos
í di esà deà iol ia.à Peloà o t io,à es oà o à oà au e toà dosà e a e a e tos,à aà
sensação de insegurança não diminuiu. Isso significa que é preciso se repensar a prisão como
instrumento de política pública para o ate àaà i i alidade ,àdesta ou.
O diagnóstico também apontou que, se considerado o número de pessoas que
entraram e saíram do sistema penitenciário nacional ao longo de 2014, pelo menos um milhão
de brasileiros vivenciaram a experiência do encarceramento, no período de um ano. De Vitto
afi aà ueà Éài po ta teà essalta àosàda osà ueàaàp is oàa a etaà oàape asàpa aàasàpessoasà
e a e adas,à o oà ta à pa aà seuà í uloà fa ilia .à Co side aà se à p e isoà i esti à e à
soluç esà pe aisà aisà sofisti adas,à o o alternativas penais, programas de trabalho e
edu aç o,à e t eà out as,à ueà p o o a à u aà ealà ei se ç oà desseà i di íduoà à so iedade à
(2016, On-line).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das situações relatadas acima se constata a violação aos direitos e à dignidade
humana dos detentos que presenciaram o massacre do Carandiru. O direito à segurança,
saneamento e bem estar que o Estado deixou de proporcionar aos presos também é
observado em relatos da época do fato. Por conseguinte verificou-se que houve excessos no
direito de legítima defesa que foi garantido aos policiais, tornando o ato uma violência.
450

Também se verificou a dificuldade em julgar os culpados. Além da morosidade da


justiça em identificar, julgar e punir os responsáveis observa-se que mesmo após 25 anos
passados do ocorrido, a justiça brasileira não parece muito preocupada em julgar o caso,
apesar de pressionada por defensores e ONGs de direitos humanos. Compreende-se que não
é mais possível individualizar a pena de cada réu, porém, é inadmissível que os culpados pela
morte de 111 seres humanos fiquem ilesos de condenação.
Baseado neste estudo entende-se que o caso Carandiru nos aspectos em que foi
analisado leva a uma reflexão clara sobre o que a justiça está julgando, quem são os
condenados e quais não são, bem como observa-se a discrepância na velocidade do
julga e toàdeàu àpoli ialàeàdeàu à i il,à ueàpo à uitosà à o side adoà aga u do .ààйssaà
discussão aponta para a identificação de quais valores estão presentes na justiça, visto que é
clara a falta de interesse do Estado em proteger os direitos de alguns.
Com a análise do perfil socioeconômico dos presos atualmente, percebe-se que a
maioria são jovens, negros e com baixa escolaridade. O sistema carcerário hoje torna-se um
reflexo do modo que as desigualdades sociais afetam cada indivíduo. Sendo o Brasil a quarta
maior população penitenciária do mundo, é preciso refletir sobre o sistema prisional e de que
modo estão sendo aplicadas as penas a cada indivíduo, já que 40% dos presos atualmente
ainda não tiveram condenação em primeiro grau. Constata-se importante observar o quanto
o direito evoluiu com a sociedade, tendo vista que o atual código penal, apesar de várias
modificações durante os anos, é de 1940. São necessárias reflexões acerca do que houve no
dia 02 de outubro de 1992 para que este evento nunca mais se repita.

REFERÊNCIAS

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CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

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www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf. Acesso em 02 de abril de 2017.
451

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LEVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999.

LUCAS, Doglas Cesar. Direitos Humanos e Interculturalidade: um diálogo entre a igualdade e


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(Carandiru). Brasil, 2000. Disponível em:
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SARTORI, Ivan. In: Época Globo. Disponível em:


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WOLTON, Dominique. Informar não é Comunicar. Porto Alegre: Sulina, 2010.


452

PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA DOS EMBRIÕES EM FACE DA LEI DE


BIOSSEGURANÇA Nº. 11.105/05

Renata Oliveira Leal1

RESUMO: Considerando o surgimento de novas possibilidades trazidas pelos avanços da


ciência e da biotecnologia, suscitaram novos questionamentos à Bioética, entre eles, no
contexto da reprodução humana assistida, a questão do princípio da dignidade da pessoa
hu a aàdosàe i esà i utilizados à asàt i asàdeà ep oduç oàhu a aàe àfa eàdaàэeiàdeà
Biossegurança. Por essa razão, é necessário analisar a reprodução humana assistida, em
especial no contexto dos avanços científico-tecnológicos inerentes à Bioética, observando se
os direitos humanos podem servir como baliza de orientação e limitação das novas tecnologias
reprodutivas.

Palavras-chave: Embriões Excedentários; Direitos Humanos; Biodireito.

1 INTRODUÇÃO

Em razão do expansivo desenvolvimento da ciência, surgiram diversas técnicas de


reprodução humana que acarretaram inúmeras controvérsias no campo da bioética, na
medida em que contraporão aos direitos humanos, e desencadearam questionamentos sobre
a (possível) violação do direito à vida dos embriões inutilizados nas técnicas de reprodução
humana assistida.
As discussões a respeito da temática, deram-se em razão de que a ciência sempre
buscou trazer novos meios para resolver problemas da sociedade, no entanto, no que tange
à reprodução assistida, hodiernamente, os avanços da ciência e da tecnologia propiciam
conquistas até pouco tempo inimagináveis em termos de possibilidades de reprodução
humana, que não por métodos naturais.
Uma das técnicas mais utilizadas e inovadoras no âmbito da medicina reprodutiva é a
inseminação artificial assistida, ocorre que, é preciso destacar, há uma série de divergências
de entendimento se o embrião é pessoa humana desde a concepção, questão problemática
esta que está inexoravelmente atrelada ao direito à vida.

1
Mestranda em Direito no PPGD, URI campus Santo Ângelo – RS. Especialista em Direito Processual com ênfase
em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pelo Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo
(IESA). Bacharel em Direito pelo Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo (IESA). E-mail:
r_adv@hotmail.com
453

Nesse diapasão, é preciso contextualizar os direitos humanos e a bioética para que


possamos analisar as técnicas de reprodução humana assistida e examinar de que maneira é
feita a proteção do embrião humano no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que
a interferência cientifico-tecnológica vai além de sua destinação para pesquisa científica,
envolvendo também o seu descarte, atendidos os critérios da Lei nº. 11.105/2005 (Lei de
Biossegurança).
Acredita-se, inclusive, que a pesquisa é oportuna para delinear algumas notas a
respeito da temática em questão, visando contribuir para uma maior compreensão e
consciência dos direitos humanos, podendo ser mais uma fonte bibliográfica, ampliando o
material escrito existente a respeito da interferência das novas tecnologias reprodutivas no
âmbito da bioética e o direito á vida.

2 CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA BIOÉTICA E DOS DIREITOS HUMANOS

Inicialmente, para se conceituar Bioética, deve-se partir da ideia do que seja ética,
como algo construído por uma sociedade com base nos valores históricos e culturais, sendo
defi idaàhisto i a e teà aà ti aà doàg egoàethos, modo de ser) é um conhecimento racional
que, partindo da análise de comportamentos concretos, caracteriza-se pela preocupação em
defi i àoà ueà à o à MO“й‘;à“Oá‘й“,à ,àp. .à
Embora o estudo da ética exista há muitos anos, o emprego da palavra bioética foi
utilizado pela primeira vez em 1970 por Van Renssealer Potter da seguinte maneira:

Na segunda metade do século XX, em 1970, Van Resselaer Potter, bioquímico norte-
americano dedicado à investigação oncológica na Universidade de Wisconsin, em
seu artigo Bioethics, the Science of Survival (Bioética, a ciência da sobrevivência),
utiliza o termo bioética. No ano seguinte, Potter escreve a obra Bioethics: Bridge to
the Future (Bioética: ponte para o futuro), cujo o propósito primeiro era buscar uma
saída para o progressivo desequilíbrio criado pelo homem na natureza (MOSER;
SOARES, 2006, p. 19).

Acredita-se, portanto, que a Bioética, nada mais é que uma consequência das
o uistasà hist i asà daà ti a,à se doà o side adaà aà pa teà daà Éti a,à a oà daà нilosofia, que
e fo aàasà uest esà efe e tesà à idaàhu a a à “йG‘й,à ,àp. ,àte do,àassi ,àaà idaà o oà
objeto de estudo, tratando também de aspectos relativos quanto á morte no sentido em que
a Bioética:
454

[...] debate sobre as recentes descobertas tecnocientíficas da biologia, biofísica,


bioquímica, genética e das ciências médicas que levantam novos problemas às
Ciências Humanas dos valores éticos, das convicções milenares de pessoas, de
escolas filosóficas, teológicas e jurídicas que tratam do sentido da vida e da morte,
da convivência política e da relação da natureza com o homem, tornando-se,
portanto, o desaguadouro de duas grandes formas do conhecimento humano: o
saber simbólico e o saber científico (PEGORARO, 2001, p. 46).

Portanto, entendemos que a ética nada mais é que um sistema axiológico de


orientação para o ser humano, de modo que, a Bioética, de maneira análoga, guia as
descobertas tecnocientíficas, estando intimamente ligada aos direitos humanos
principalmente no que se refere ao direito á vida.
Noà ueà ta geà aosà Di eitosà рu a os,à a eà es la e e ,à po ta toà ueà s oà a uelasà
cláusulas básicas, superiores e supremas que todo indivíduo deve possuir em face da
so iedadeà ueàest ài se ido à щUNIO‘;àOэIVйI‘á,à ,àp.à ,à
Nesse sentido, o princípio da dignidade da pessoa humana, representa o valor absoluto
de cada inerente a cada indivíduo, ademais, vem consagrado no rol dos direitos fundamentais
da Constituição brasileira.
No presente trabalho, adentaremos especificamente no que diz respeito ao estudo da
Bio ti aà àluzàdesseàp i ípio,ài t i si a e teà oàdi eitoàaà ida,àte doàe à istaà ueà osàdi eitosà
humanos reconhecidos pelo Estado são denominados direitos fundamentais, vez que, via de
regra, são inseridos na norma fundamental do Estado, a Constituição à щUNIO‘àeàOэIVйI‘á,à
2016, p. 44).
Dessa forma, sendo o direito à vida, uma garantia do Estado, assegurado pela
constituição, de modo que devemos analisar os avanços científicos tecnológicos sob o prisma
de que a Bioética objetiva reconhecer os valores éticos da vida.
Apesar disso, deve-se analisar os direitos humanos refletindo e questionando da
seguinte maneira:

A grande maioria da população mundial não é sujeito de direitos humanos. É objeto


de discurso de direitos humanos. Deve, pois, começar por perguntar-se se os direitos
humanos servem eficazmente à luta dos excluídos, dos explorados e dos
discriminados ou se, pelo contrário, a tornam mais difícil (SANTOS, 2014, p. 15).
455

É sob essa ótica que é necessário analisar o tema em questão. São desafios como estes
que nos instigam e nos posicionam diante de incertezas que conduzem o mundo moderno à
frente de tantas novas tecnologias reprodutivas como é o caso dos embriões excedentários.

3 AVANÇOS CIENTIFICOTECNOLÓGICOS PERANTE AS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA

Diante de tantos avanços científicos e biotecnológicos, surgiram diversas


possi ilidadesà at à e t oà i pe sadasà peloà Di eito,à poisà aà elo idadeà o à ueà atua à asà
ciências biomédicas é simplesmente espantosa. Em tempo cada vez menor surgem, e se
sucedem, técnicas, novos experimentos e, o nosso Direito continua muito atrás de tudo isso
e,àse àdu ida,àfoiàapa hadoàdeàsu p esa à MáэUн,à ,àp.à ,à oàe ta to,àatual e teà aà
ciência está fazendo seus melhores progressos e, obviamente, colocando problemas éticos
i i agi eisàa tesàdessasàdes o e tas à Pй““INI;àBá‘CрIнONTáINй,à ,àp.à .
A ciência vem inovando ao trazer novos meios de solucionar os problemas da
sociedade moderna razão pela qual, foi necessário a criação de comissões multidisciplinares,
como é o caso do CONEP – Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, para estudar esses novos
métodos de reprodução bem como averiguar suas consequências jurídicas.
Issoà seà deuà po ueà osà p og essosà ie tífi osà dasà t i asà apli adasà à i iaà
reprodutiva e principalmente à Genética fizeram com que o homem, num espaço de tempo
muito pequeno, dominasse um setor, no qual somente as leis da natureza interferiam: o setor
daàp o iaç o à MáэUн,à ,àp.à .
A inseminação artificial, em especial a in vitro, que resulta no objeto de pesquisa do
presente trabalho, ou seja, dos embriões excedentários, faz, portanto, parte dessa revolução
científica, sendo considerada uma das técnicas mais utilizadas e inovadoras no âmbito da
medicina reprodutiva.
O papel da reprodução assistida vem estabelecido no Conselho Federal de Medicina
no artigo 1º, seção 1, da Resolução nº. 1.957/2010, que as técnicas de reprodução assistida
(RA) têm o papel de auxiliar na resolução dos problemas de reprodução humana, facilitando
o processo de procriação quando outras terapêuticas tenham se revelado ineficazes ou
consideradas inapropriadas (CFM, 2010).
456

Noàe ta to,àapesa àdeàse e à todosàlí itosàeàefi ie tesà a a eta àg a esàp o le asà


jurídicos, éticos, sociais religiosos, psicológicos, médicos e Bioéticos. Por isso, urge
regulamentar a fecundação humana assistida, minuciosamente, restringindo-a na medida do
possí elàpo ueàge a àu àfilhoà oà àu aà uest oàdeàla o at io à DINI),à ,àp.à .
áde ais,à oà o sta teà asà t i asà deà fe tilizaç o produzem milagres, mas criam
ta àdile as à MáэUн,à ,àp.à .àPois,àe àseàt ata doàdeà ep oduç oàassistidaà àluzà
dos direitos humanos, no que tange aos embriões excedentários, há uma série de discussões
nas questões não regulamentadas pelas leis brasileiras gerando divergências no sentido de
possível violação do direito à vida desses embriões, em técnicas de reprodução humana.

5 DIREITO DO EMBRIÃO, DO NASCITURO E PERSONALIDADE JURÍDICA

Com relação ao tópico sub oculis, é preciso destacar que há uma série de divergências
de entendimento se o embrião é pessoa humana desde a concepção, questão problemática
esta que está inexoravelmente atrelada ao direito à vida.
Nesse diapasão, é preciso examinar de que maneira é feita a proteção do embrião
humano no ordenamento jurídico brasileiro, onde podemos verificar que o art. 2º do Código
Ci ilà asilei oàdisp eà ueà aàpe so alidadeà i ilàdaàpessoaà o eçaàdoà as i e toà o à ida;à
mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitosàdoà as itu o .à
Em outras palavras:

Na vida intrauterina, ou mesmo in vitro, tem personalidade jurídica formal


relativamente aos direitos da personalidade, consagrados constitucionalmente,
adquirindo personalidade jurídica material apenas se nascer com vida, ocasião em
que será titular dos direitos patrimoniais e dos obrigacionais, que se encontravam
em estado potencial, e do direito às indenizações por dano moral e patrimonial ele
sofrido (DINIZ, 2010, p. 116).

Cumpre ressaltar, dessa forma, que a doutrina majoritária entende que o embrião tem
seusàdi eitosà esgua dadosàdesdeàaàsuaà o epç o,àhajaà istaàj àpossui à idaàp p ia,àpoisà aà
vida intrauterina, até mesmo em caso de fertilização assistida in vitro, dever-se-á ter o mais
absoluto respeito pela vida e integridade física e mental dos embriões pré-implantatórios ou
dosà as itu os à DINI),à ,àp.à .
457

й àseàt ata doàdaàp oteç o,àaà uest oà aià pa aàal àdoàde ateài te i elàa e aà
do estatuto ontológico do embrião humano, a ética e o direito determinam, não o que é o
embrião, mas como devemos tratá-lo. E se para isso se inspiram em um critério razoável,
devem concluir que resulta necessário respeitá-loà o oàaàu aàpessoa à áDO‘NO,à ,àp.à
267).
Nesse sentido:

O embrião-feto, desde a fecundaçãoà àu àse àhu a oàeà à u àdeà s àeàa editaà


ueà aà iologiaà à la a:à oà e i oà hu a o,à desdeà oà p i ei oà segu do,à est à
virtualmente todo o código genético e todo homem adulto, inclusive sua capacidade
de pensar. Nenhuma fase progressiva até a morte é mais importante que a outra
(MARCHIONI, 2008, p. 344).

Tem-se, pois que ao nascituro já são assegurados diversos direitos, como o direito à
vida, direito aos alimentos, à imagem, dentre outros. Não obstante, apesar da legislação
resguardar os direitos do nascituro, como pode haver simples descarte dos embriões
excedentários nas técnicas de reprodução in vitro?
Por esse motivo que, quando se trata de temas envolvendo embriões e nascituros, não
é possível deixar de mencionar alguns aspectos jurídicos atinentes à personalidade jurídica.
Nesse ínterim, há três posicionamentos da doutrina, sendo eles: natalista, condicional e a
concepcionista.
Nesse contexto, apesar do Código Civil ter se filiado a teoria natalista, quanto aos
direitos patrimoniais, haja vista assegurar que a personalidade civil da pessoa começa do
nascimento com vida, admite, entretanto, que a lei põe a salvo desde a concepção os direitos
no nascituro.
Apesar de haver muita discussão a respeito de qual teoria é realmente adotada,
verifica-se queà ua toàaosàdi eitosàe t apat i o iaisàoàC digoàCi ilàB asilei oà seàfiliouà àteo iaà
concepcionista, sob o argumento de que a parte final do art. 2º resguarda os direitos do
nascituro, desde sua concepção, contudo, tais direitos abrangem apenas os da personalidade,
se à o teúdoàpat i o ial,àpoisàestesàseàsujeita àaoà as i e toà o à ida à DINI),à ,àp.à
204).
Logo entende-se que:
458

Personalidade, neste sentido, é a aptidão, para adquirir direitos e contrair


obrigações, Esta, no entanto, de acordo com o art. 4º do Código Civil, surge apenas
a partir do nascimento com vida. O nascituro é dotado de personalidade jurídica,
posto que a capacidade de ser sujeito de direitos é uma capacidade em potencial
que se transforma em titularidade quando um direito é adquirido.
Distingue-se de personalidade física a que começa com o nascimento e retroage à
data da concepção, na hipótese de haver nascimento com vida, e a jurídica começa
na concepção. Portanto, neste sentido, não há dúvidas: o feto concebido é sujeito
de direitos, vale dizer, não se pode negar ao nascituro a condição de sujeito de
direitos, de pessoa natural.
A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 ou, pelo menos, a partir da
vigência da Lei n. 8.069/90 (ECA); só se pode sustentar a existência de uma única
teoria displinar o tema: a teoria da personalidade jurídica do nascituro, ou seja, a
teoria da concepção para designar o inicio da personalidade.
A personalidade não começa com o nascimento, mas sim no momento da
concepção. É neste momento que surge o novo ser. Tem-se o início de uma nova
vida. (MALUF, 2002, p. 56).

Sendo assim, mesmo diante do fato de que o Código Civil adotar a teoria natalista, a
teoria concepcionista também é admitida tendo em vista a parte final do artigo 2º do referido
Código, contando com diversos adeptos na doutrina.

6 DIREITO À VIDA DOS EMBRIÕES INUTILIZADOS NAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO


HUMANA

Sob a ótica do que prevê o ordenamento jurídico brasileiro, podemos verificar que,
apesar da personalidade jurídica para a vida civil iniciar após o nascimento com vida, o direito
à vida, e demais direitos, são assegurados ao nascituro desde a sua concepção. Apesar disso,
nas técnicas de Reprodução Humana Assistida são retirados e fecundados diversos óvulos e
espermatozoides, para implementação no útero da mulher, apesar de somente dois ou três
serem inseridos.
Salienta-se que esse polêmico caso dos embriões inutilizados, descartados nas
técnicas de reprodução artificial, são muito comuns durante os procedimentos de fertilização.
Nesse mesmo sentido verificamos que:

Antigamente usava-se retirar muitos pequenos óvulos e fecundar todos eles,


reintroduzindo-os todos no útero [...] Posteriormente, aperfeiçoada as técnicas e
aumentadas as probabilidades de implante no útero, foram obtidos com o sistema
precedente, muitas gestações e nascimentos de gêmeos. Por isso, o reimplante foi
limitado a um número bem exíguo de embriões. Mas foi mantida a prática de fazer
a mulher hiperovular, de obter muitos óvulos [...] e de fecundar todos eles,
459

colocando no útero alguns deles (dois ou três) e recolocando os excedentes (cinco


ou seis) em hibernação (VERCELLONE, 1990 apud RAUPP, 1998)

É sob essa perspectiva que surgem as seguintes indagações:

O primeiro ponto a merecer atenção é que admitindo-se a disponibilidade dos


genitores sobre o pré-embrião congelado, estar-se-iaà à oisifi a do à à u à se à
humano, pelo menos em potencial, ou seja, tomando-o nada mais do que uma
mercadoria inserida no patrimônio global dos pais. Depara-se neste momento, com
uma questão que incomoda não só juristas como filósofos e médicos: a partir de
ua doàoàe i oà à o side adoà pessoa ?à GOMй“,à .

Ora, se analisarmos o tema sob a perspectiva de que, se a Lei põe a salvo os direitos
do nascituro, ou seja, daquele que vai nascer, o direito a vida do embrião já fecundado, ainda
que in vitro, deveria, em tese, ser resguardado da mesma forma.
Em razão das diversas controvérsias que tem o assunto, e com o intuito de dar um
desti oàaosàe i esà i utilizados àad eioàaàэeiàdeàBiossegu a çaàpa aà egula e ta àalgu asà
questões a respeito dos embriões excedentários, prevendo em seu art. 5º o seguinte:

Art. 5º. É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco


embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não
utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II – sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta
Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3
(três) anos, contados a partir da data de congelamento.
§ 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.
§ 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia
com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à
apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.
§ 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e
sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de
1997 (BRASIL. Lei nº. 11.105, de 24 de março de 2005).

Conforme pode ser verificado, a Lei supracitada só trouxe novidade quanto à utilização
dosà e i es,à ap sà suaà i utilizaç o à de o e teà daà fe tilizaç oà i à it o,à oà a a ge doà
nenhuma questão no que se refere ao direito à vida desses embriões ou sequer alguma
regulamentação quanto à retirada de apenas o número necessários de óvulos e
espermatozoides a serem fecundados para posteriormente serem implementados.
Cabe salientar que tal artigo chegou a ser, inclusive, objeto da Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 3.510-0, julgada em 29 de maio de 2008, sob a alegação de que tal
460

artigo violaria o direito á vida e a dignidade da pessoa humana, sendo que o Supremo Tribunal
Federal decidiu pela constitucionalidade do referido artigo, com base, principalmente, no
princípio da dignidade da pessoa humana.

7 BIOÉTICA X BIODIREITO

O Biodireito e a bioética são duas áreas do conhecimento sobre o agir humano, as quais
buscam refletir sobre regras e limites no âmbito das possibilidades trazidas pela ciência
moderna. Isso porque as novas tecnologias implicam questionamentos sobre a liberdade
científica, a autonomia da pessoa, o direito à vida, entre outros. Também, porque o progresso
da técnica moderna deve vir acompanhado da reflexão ética e de um discurso regulador e
normativo, papel este que cabe ao direito. Acerca de ambas as áreas do conhecimento:

O enfoque e a metodologia divergem, mas o objeto é o mesmo. Um vê a ação


humana referida à intencionalidade da consequência moral e o outro toma em
consideração os resultados exernos de uma ação avaliados por um ordenamento
legal (...) exigem-se mutuamente. A ordem jurídica remete à ordem moral para
fundamentar a validade e a vigência das normas e dos processos jurídicos e justificar
os valores que sustentam a ordem constitucional (JUNGUES, 1999, p. 123).

É justamente devido aos grandes avanços científicos e às diversas novidades


biomédicas surgidas no cotidiano das pessoas, que se faz mister uma legislação consentânea
com os avanços da medicina, outrossim:

A realidade demonstra que os avanços científicos do mundo contemporâneo têm


enorme repercussão social, trazendo problemas de difícil solução, por envolverem
muita polêmica, o que desafia a argúcia dos juristas e requer a elaboração de normas
que tragam respostas a abram caminhos satisfatórios, atendendo às novas
necessidades ora surgidas e defendendo a pessoa humana da terrível ameaça da
reificação (DINIZ, 2010, p. 07).

O crescente avanço das técnicas de reprodução assistida trouxe algumas questões


difíceis no ponto de vista social e legislativo. É emergente discutir e criar uma legislação mais
aprofundada, que defina os questionamentos sobre o possível direito à vida dos embriões
excedentários ou, pelo menos, que sejam fecundados apenas os embriões que serão
implementados na mulher.
461

Sobre a ausência de um Biodireito que possa regulamentar os avanços científicos e


biomédicos verifica-se que:

A Bioética é uma das faces mais dinâmicas no panorama da ética atual. Ela adquiriu
metodologia e cabedal de conhecimentos éticos para analisar e avaliar os principais
problemas que afetam a vida humana. A este progresso de conhecimento ético não
correspondeu ainda uma contrapartida jurídica. A bioética, para ser eficaz e incidir
nos procedimentos que implicam a vida humana, necessita de um biodireito. Aos
poucos, acorda-se para essa necessidade e surge uma nova área nas ciências
jurídicas. É compreensível e necessário que o direito intervenha depois da ocorrência
dos fatos e sua análise ética (JUNGUES, 1999, p. 124).

Desse modo, há uma lacuna no que se refere à formulação de leis referentes às


questões bioéticas, no entanto, faz-se necessário analisar a bioética como um instrumento
que desafia os problemas da vida humana, a fim de encontrar soluções que contemplem a
harmonização do direito com as demandas sociais referentes às novas técnicas modernas,
utilizadas na reprodução assistida, sendo portanto esse o novo grande desafio do século XXI:

[...] desenvolver uma bioética e um biodireito que corrijam os exageros provocados


pelas pesquisas científicas e pelo desequilíbrio do meio ambiente, resgatando e
valorizando a dignidade da pessoa humana, ao considera-la como o novo paradigma
biomédico humanista, dando-lhe uma visão verdadeiramente alternativa que posa
enriquecer o diálogo multicultural entre os povos, encorajando-os a unirem-se na
empreitada de garantir uma vida digna para todos, tendo em vista o equilíbrio e o
bem-estar futuro da espécie humana (DINIZ, 2010, p. 895).

8 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ciência sempre buscou trazer novos meios para resolver problemas da sociedade, no
entanto, no que tange à reprodução assistida, hodiernamente, os avanços da ciência e da
tecnologia propiciam conquistas até pouco tempo inimagináveis em termos de possibilidades
de reprodução humana, que não por métodos naturais.
Uma das técnicas mais utilizadas e inovadoras no âmbito da medicina reprodutiva é a
fertilização artificial, em especial a in vitro, da qual normalmente surgem os embriões
excedentes/inutilizados. No entanto, há uma série de divergências de entendimentos acerca
dos direitos do embrião, pois se discute se o mesmo é considerado pessoa humana desde o
momento da fertilização in vitro, realizada em laboratório, ou desde a implantação do produto
da fertilização in vitro no útero da mulher.
462

Apesar da discussão existente, é incontestável que o ordenamento jurídico brasileiro


resguarde os direitos do nascituro desde a sua concepção, no entanto a questão é
problemática porque está inexoravelmente atrelada ao direito à vida.
Como forma de reflexão, é preciso pensar nas consequências destas interferências
científicas tecnológicas, haja vista a possível personalidade jurídica já adquirida pelo embrião,
ainda que in vitro, de modo a legislar, no sentido de, pelo menos, limitar a fecundação dos
embriões.
Denota-se que o presente trabalho não têm a pretensão de esgotar o assunto, mas sim
contribuir para uma reflexão acerca da questão dos embriões excedentários no âmbito da
Bioética à luz dos direitos humanos, a fim de favorecer a aproximação da ciência e do Direito,
tendo em vista a ausência de legislação específica para tratar de tal matéria, antes impensada
pelo nosso ordenamento jurídico, mas hoje presente na sociedade.

REFERÊNCIAS
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464

DO ÍMPETO DOS CONFETES ÀS AGRESSÕES CONTRA A MULHER: RECORTES DE VIOLÊNCIA


DE GÊNERO NO BRASIL DURANTE O CARNAVAL

Schirley Kamile Paplowski1


Bibiana de Quadros2

RESUMO: й o aà oà B asilà sejaà u dial e teà o he idoà o oà oà paísà doà a a al ,à essaà


festividade tem origens muito mais antigas à nossa civilização. A partir de uma breve análise
da história do carnaval, o presente artigo busca demonstrar que a violência contra a mulher,
sobretudo nas formas física e sexual, é um problema presente na festividade e também
produto de aspectos históricos e culturais construídos para sustentar interesses de uma
parcela específica da sociedade que, junto da ideia binária de gênero, foi naturalizada. A
naturalização de condutas violentas praticadas contra a mulher constitui um modo de
revigorar a então superioridade masculina, o que acaba por criar outro problema: a
culpabilização da vítima. Diante disso, pretende-se construir uma reflexão crítica acerca dessa
conjuntura, para que deixe de ser indiferente ao contexto social ou tomada como natural.

Palavras-chave: Violência contra a mulher; Naturalizações; Cultura; História do carnaval;


Brasil.

1 INTRODUÇÃO

Diferentemente de muitos países, a cultura do Estado brasileiro é ricamente


diversificada e isso se deve em grande parte por todos os povos que aqui estiveram, os quais
p opi ia a àaà is ige aç oàeà o t i uí a àpa aàoàa a joàdoà ueàhojeà ha a osàdeà pe filà
asilei o .àToda ia,àoàp o essoàhist i oàdeàfo aç oàdoàB asilà àpe passado por períodos
marcados por extrema crueldade, em especial pela colonização, na medida em que causou a
mortandade de muitos povos nativos, alguns até mesmo sendo extintos. A violência, então,
foi um traço presente no país brasileiro desde os primeiros registros que se tem dele, apesar
do primeiro contato entre os nativos e os europeus ter sido considerado pacífico.
Trazendo à lume esse contexto histórico e analisando a presença nos dias atuais de
práticas violentas, as quais, inclusive, nos remetem a tempos remotos e causam
questionamentos quanto à condição humana de quem os pratica, verifica-se o quão
pe siste teà àoàfe e oàdaà iol ia.àNoàe ta to,à apesa àdeàt oàe ide teàaàe ist iaàdeà

1
Acadêmica do curso de graduação em Direito, da Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul
(UNIJUÍ), câmpus Três Passos, atualmente no 7º semestre. Exerce estágio junto à Promotoria de Justiça de
Tenente Portela/RS. E-mail: schirleykamile@hotmail.com.
2
Acadêmica do curso de graduação em Direito, da Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul
(UNIJUÍ), câmpus Três Passos, atualmente no 7º semestre. Exerce estágio junto à Defensoria Pública de Três
Passos/RS. E-mail: quadrosbibi@gmail.com.
465

violências, o que perpassa o imaginário social do brasileiro, e que parece se estender ao redor
doà u do,à à deà ueà so osà u à paísà o dial,à ge tilà eà pa ífi o à ‘IBйI‘O,à à apudà
CADEMARTORI; ROSO, 2012, p. 398). A partir de suas variadas formas de manifestação, a
reconhecemos presente nos mais diversos setores da sociedade, e isso em nada é alterado
pela condição econômica, social ou étnica dos sujeitos envolvidos. Ainda, muito embora a
diversidade cultural e étnica seja algo tão presente no Brasil, são corriqueiros os casos
envolvendo preconceitos em virtude da cor da pele, do gênero e da opção sexual. Infelizmente
tais comportamentos não são afastados em períodos festivos, como exemplo a famosa
comemoração que é o carnaval. É neste momento que, pela lógica do vale tudo, da libertação
de eventuais concepções morais e da criação de um espaço democrático, demonstrado pela
utilização de máscaras e demais fantasias, que a própria sociedade (por nós composta) revela
a sua face, a da agressividade.
É a partir desta relação temática que no presente artigo será abordada a violência
contra a mulher, nas suas variadas formas, sob à ótica da cultura, do fenômeno em si, e mais
especificamente a partir deste movimento social festivo que é o carnaval, tendo como pano
de fundo as imposições históricas atribuídas a homens e mulheres. Para tanto, este estudo foi
dividido do seguinte modo: (a) o carnaval como festa cultural: antecedentes históricos, (b)
papéis de gênero, desigualdade e cultural patriarcal, (c) violência contra a mulher e
responsabilização da vítima e (d) a violência contra a mulher no carnaval: patriarcado,
discriminação, cultura do estupro e violência física.
ássi ,à Doà í petoà dosà o fetesà à ag ess oà o t aà aà ulhe à à u aà te tati aà deà
reflexão produzida associando o momento de festividades que é o carnaval, através dos
confetes, com as variadas formas de violência e suas diversas manifestações contra a mulher
que ocorrem neste período (assim como nos demais dias do ano), desde as relações íntimas
de afeto entre o agressor e a vítima – que atravessam até mesmo os casos nos quais o agressor
não possui nenhum vínculo com a ofendida. A tentativa se alicerça, também, em alertar e
buscar alternativas, para a presente e resistente desigualdade no Brasil entre homens e
mulheres, que produz efeitos destrutivos, ainda que invisíveis e naturalizados. Por fim,
salientamos que todas as conceituações, pesquisas e exemplos aqui trazidos não objetivam
generalizações, até porque nossa sociedade contemporânea abarca uma amplitude de
culturas e personalidades que vão além das restrições trazidas por definições.
466

2 O CARNAVAL COMO FESTA CULTURAL: ANTECEDENTES HISTÓRICOS

Carnaval: a mais popular e de maior abrangência festividade brasileira, cujo nome


parece ser patente nacional – Brasil, o país do carnaval. Embora seja notório que essa festa é
celebrada em diversos países, pouco se questionam suas origens que, naturalmente,
poderiam (ou podem) esclarecer muitos dos questionamentos que efetivamente são feitos.
Por que o carnaval aflora a promiscuidade? Qual é o sentido de mostrar-se nu aos olhos da
sociedade?
Proveniente do latim, o termo carnis levale sig ifi aà eti a àaà a e ,à ueà e eteàaoà
jejum que costumava ser feito durante a quaresma que sucedia a festividade católica. De fato,
trata-se de uma verdade pouco divulgada, embora seja mais popular do que a verdade de
fato. O evento carnavalesco é uma festividade que reporta à Antiguidade, típico das culturas
grega, romana e egípcia, que já mostravam raízes dessa tradição. O associavam com os
sucessos obtidos na colheita, para afastar demônios e também como forma de louvar
divindades. A historiadora Claudia Lima (2007) assegura que:

Dez mil anos antes de Cristo, homens, mulheres e crianças se reuniam no verão com
os rostos mascarados e os corpos pintados para espantar os demônios da má
colheita. As origens do carnaval têm sido buscadas nas mais antigas celebrações da
humanidade, tais como as Festas Egípcias que homenageavam a deusa Isis e ao
Touro Apis. Os gregos festejavam com grandiosidade nas Festas Lupercais e
Saturnais a celebração da volta da primavera, que simbolizava o Renascer da
Natureza. Mas num ponto todos concordavam, as grandes festas, como
o carnaval, estão associadas a fenômenos astronômicos e a ciclos naturais.
O carnaval se caracteriza por festas, divertimentos públicos, bailes de máscaras e
manifestações folclóricas. Na Europa, os mais famosos carnavais foram ou são: os de
Paris, Veneza, Munique e Roma, seguidos de Nápoles, Florença e Nice.

Indaga-se, entretanto, como o carnaval tornou-se um símbolo de promiscuidade e, de


e taàfo a,àu à passapo te àpa aàaào jetifi aç oà– principalmente – da figura feminina. A
questão da fertilidade, está estritamente ligada a esse aspecto. De acordo com Janice Isaac-
Flavien (2013), a adoração à deusa egípcia da fertilidade, Isis, que celebrava a fecundidade e
abundância da terra, se dava através de um ritual, em que se explorava a sexualidade como
sinônimo de fertilidade. À tradição grega, por sua vez, tratava-seàdeàu aàesp ieàdeà festi alà
religioso formal que incluía flagelação com chicotes, feitos de pele de cabra, para remissão
dosàpe ados à I“ááC-FLAVIEN, 2013, p. 43). A transfiguração dessa festividade, movida pela
467

agregação de diversas culturas, atribui ao festival valores como libertinagem, festa, banquete
e orgia.
O advento do cristianismo, no século V, certamente dá novo significado ao carnaval.
Houve tentativas de reprimir a comemoração – o que falhou, devido à sua grande
popularidade. Para suprimir o caráter subversivo da festividade a Igreja passou,
gradualmente, a atribuir nomes e significados cristãos a ela, moldando a comemoração
conforme as indigências cristãs, para fins de contenção social. Neste sentido, importante
destacar uma peculiar tradição do carnaval: a inversão de papéis que, de acordo com Janice
Isaac (2013, p. 44), tratava-seàdeàu aàesp ieàdeàe t ete i e toàe à ueà ha ia inversão de
gênero, de classe e de papéis sociais – mulheres vestidas como homens e vice-versa,
camponeses adornados como nobres. Máscaras e fantasias davam ao usuário anonimato e
li e dadeàpa aàagi à o àu aà edidaàdeài pu idade .àйssaàp ti aà e eteàaàuma importante
característica carnavalesca – a impunidade – que se pode observar ainda nos dias atuais, como
resultado de toda essa construção sociocultural.

O carnaval era teatro de rua; os atores interpretavam lutas, sítios, casamentos e


outros elementos da vida cotidiana, em tom de zombaria. Sua performance era
estruturada englobando três temas principais: comida, sexo e violência. (...). Havia
uma miríade de interessantes maneiras através das quais o sexo poderia ser
interpretado, tanto visualmente quanto em canções ou versos: símbolos fálicos
abundantes nas tradições de se mascarar (...); canções com significados ambíguos
e a ài e ti adas.àág ess oà e alàe aà li e iada ,à iol iaàe aàsu li adaà o oà
um ritual através de atividades como as zombadas batalhas e lutas, embora existam
muitos casos documentados sobre a ocorrência de sérias violências. O carnaval era
u aà po aà deà deso de à i stitu io alizada .à Noà o eçoà daà Idadeà Mode aà
Europeia, o carnaval teve três funções preponderantes: 1) entretenimento; 2) como
u aà e p ess oà deà solida iedadeà o u it iaà eà à o oà u à tipoà deà l ulaà deà
es ape ,à o à oà i tuitoà deà eduzi à i pulsosà se uaisà eà ag essi osà eà pa aà afasta à
possíveis revoltas populares (ISAAC, 2013, p. 44).

A inversão de papéis, no que dizia respeito aos negros (escravos dos senhores
europeus), se dava como uma paródia: apenas os escravos que se apresentariam eram
autorizados a participar das festividades. As mulheres negras não podiam se vestir como suas
senhoras; as mulheres brancas, por suaà ez,à estia -se como escravas negras, fingindo que
seus maridos as desejassem como, de fato, eles desejavam as mulatas. Esse exemplo ilustra
como raça, sexualidade e colonialismo se cruzam para reproduzir e perpetuar o espetáculo do
out o à рall,à , p. 24; Young, 1995, p. 170). Válido ressaltar que essa tradição permitia
468

aos jogadores desfrutar de uma liberdade que, na vida real, eles não possuíam, especialmente
as mulheres quanto à sua sexualidade.
O carnaval, portanto, alberga o heterogêneo, o assimétrico, o misógino; representa,
pa aà uitosàte i os,àaàj à e io adaà l ulaàdeàes ape àdoàe teàestatal,àutilizadaà o oàu à
mecanismo de controle da população. Mikhail Bakhtin (1985), teórico russo, compreende o
ealis oàg otes o àdoà a a alà o oàalgoà e olu io ioà– os moldes de representação das
estruturas e relações cotidianas, em que as pessoas são ambos, o assunto e o objeto do qual
se dão risadas, era parte de um processo de mascarar, assim como de desmascarar. A cultura
se transmite através do tempo e do espaço; o número de nações atingidas por essa expressão
cultural (o carnaval) cresce através dos séculos. Nesse sentido, não apenas escravos e
colonizadores foram trazidos pelas embarcações portuguesas, como também o carnaval
migrou para o Brasil. O país do carnaval, contudo, adquiriu características bastante peculiares
nesse aspecto. O Brasil herdou diversos costumes portugueses, como exemplo a própria
língua. No que tange à festividade, não foi diferente. Esse primeiro contato, todavia, era
o he idoà o oà й t udo à pala aàlati aà ueàsig ifi aà i t oduç o ,à o e latu aà ati aà
de Portugal, cuja prática, especialmente no século XVII, era típica de escravos e considerada
violenta, tanto que posteriormente foi criminalizada. A elite da época, por sua vez, valia-se
dos bailes de carnaval em ambientes fechados. Mas o caráter festivo que hoje conhecemos
provém da intensa participação do povo africano, que andava pelas ruas com música e dança.
Embora seja notória a influência da cultura afrodescendente no carnaval brasileiro, as culturas
indígena e mestiça têm sua relevância de contribuição com a comemoração. Além disso, os
aspectos europeus – sobretudo libertinagem e orgia – estiveram sempre muito presentes,
aliás, estão.
A abolição da escravidão (1888) também foi determinante no que diz respeito ao
caráter do carnaval brasileiro: as autoridades permitiram a formação de grupos de carnaval,
constituídos principalmente pelos sujeitos urbanos, inclusive os escravos libertos – então
reunidos em periferias. Muitas das características marcantes dessa festividade têm início a
pa ti à deàu aà o e o aç oà ha adaà нesti alàdeà ‘eis ,à ueà o o iaà e à ‘e ife,à o fo eà
Cláudia Lima (2007). Da popularização dessa comemoração em todo o país, criaram-se
estigmas relacionados à violência – tanto sexual, em razão da objetificação da figura feminina,
quanto física, devido à ideia de libertinagem (advinda de tempos ainda mais remotos, como
469

referido anteriormente), bem como à naturalização da violência que se intensifica e é


banalizada durante esse período.

3 PAPÉIS DE GÊNERO, DESIGUALDADES E CULTURA PATRIARCAL

Falar sobre papéis de gênero pode nos conduzir a cenários não imaginados. Isso se
de eà aoà fatoà deà ueà uitasà dasà o dutasà ueà s oà atu al e te à at i uídasà aà ho e sà eà
mulheres são, em verdade, frutos de construções históricas, imposições, melhor dizendo. Para
didaticamente adentrarmos neste aspecto, relevante se faz buscar uma definição ao termo
g e o àeàissoà e àse p eà àu aàta efaàf il.àOàg e oà àalgoàdi e soàdoàse oà iol gi o,àouà
seja, a exteriorização por intermédio da genitália. Judith Butler (DE LARA et al, 2016), feminista
contemporânea, defende que existe uma larga variedade de posições sobre gênero,
desgarrando-se do binarismo masculino e feminino, consistido na forma como determinada
pessoa se identifica. Configura-se, dentro dessa lógica binária, como uma construção social
que busca categorizar pessoas.
áà o st uç oà dosà pap isà deà g e o,à ouà seja,à oà ueà à oisaà deà ho e à eà oisaà deà
ulhe ,à seà d à desdeà aà aisà te aà idade,à se doà ueà oà dese ol i e toà daà ia çaà se à
permeado pelo o que ouve, aprende e vê sendo reproduzido no ambiente em que convive. As
diferenças surgem antes mesmo do nascimento dos pequenos, isso é demonstrado, por
exemplo, quando a mulher toma conhecimento da gestação. A partir disso há a preparação
para o nascimento, adquirindo-se o conhecido enxoval, o qual poderá ser de duas formas:
rosa ou azul, a depender do sexo do bebê, daí em diante as diferenças socialmente construídas
s às oàa e tuadas.àápesa àdeàpa e e ài ele a te,àtudoàissoà o p eàu à epe t ioàsi li oà
artificialàeàa it io 3.
O patriarcado, por sua vez, quer dizer o sistema de dominação masculina, hoje ainda
existente através de mecanismos de reprodução. Quanto ao termo, MIGUEL e BIROLI (2014,
p. 19) tecem algumas observações, especialmente com relação ao sentido de que o
patriarcado remete a sociedades pretéritas, as quais não se coadunam com a hodierna
sociedade democrática. Assim,

3
Expressão utilizada na obra #MeuAmigoSecreto: Feminismo além das redes, p. 18, com maiores informações
constantes nas referências bibliográficas, utilizada para reflexão acerca das categoriais sociais que são criadas a
partir do sexo biológico.
470

em suma, instituições patriarcais foram transformadas, mas a dominação masculina


permanece. Parte importante dessa transformação é a substituição de relações de
subordinação direta de uma mulher a um homem, próprias do patriarcado histórico,
por estruturas impessoais de atribuição de vantagens e oportunidades.

Desse modo, revestidas de caráter distinto de formas de dominação anteriores, as


atuais formas de desigualdades e discriminação por questões de gênero se encontram na
esfera do invisível, da opressão, do discurso naturalizado. De acordo com os padrões
tradicionais de gênero, à mulher é imposta a submissão, a destinação natural aos afazeres
domésticos, que estão intrinsecamente relacionados à ausência de participação nas esferas
de poder, ou seja, o ambiente público. Ao homem, por sua vez, as características de
dominação, imposição, força e virilidade são constantes. A independência também é tema
relevante, porquanto meninos são educados e preparados para serem independentes, ao
passo que meninas são invisivelmente criadas com doses minimizadas de autonomia, e isso
se reflete em simples exemplos que se traduzem em expansivas construções, como a
dependência econômica, em virtude do próprio exemplo do trabalho no lar (que não é
remunerado). Ainda, as mulheres ocupam menos espaços de prestígio social, fazendo com
que a reivindicação por políticas públicas, ações afirmativas e projetos sociais seja minimizada.
Torna-se pertinente salientar que o problema deste cenário reside na naturalização desses
papéis, que são nitidamente identificáveis nas expressões mais infantes.
Outrossim, o que significa ser homem e ser mulher é discurso que perdura de longa
data,à ... àaoà o t ioàdoà ueàoàte oà osàle aàaàpe sa ,àosà o po ta e tosà o side adosà
naturais ou imprimidos como parte de uma essência feminina são, na verdade, construções
históricas – ou seja, frutos de processos históricos eà ultu ais .à Dйàэá‘áàetàal,à ,àp.à .àà
Além das já mencionadas características ditas de mulheres como afetas ao ambiente
doméstico, a ideia de recatada também é visto como o padrão. Ser recatada pressupõe mais
do que a educação, refere-se à timidez, ao ser reservada, à castidade e também para a pureza
da mulher e isso está relacionado especialmente ao exercício da sexualidade. Embora pareça
ser algo que não mais condiz com a atual sociedade, novamente se discutiu tais conceitos a
pa ti àdoàse à ela,à e atadaàeàdoàla ,à efo çadosàpelaà ídiaàaàpa ti àdeà at iaàela o adaà
471

pela Revista Veja4 no primeiro semestre do ano de 2016, referindo-se a Marcela Temer,
esposa do então Vice-Presidente da República.

4 VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E RESPONSABILIZAÇÃO DA VÍTIMA

Em um primeiro momento pertinente se faz diferenciar crime de violência. Apesar de


aparentemente se tratarem de sinônimos, determinada conduta violenta pode ser igualmente
reconhecida como uma conduta com previsão jurídico-penal, ou seja, criminosa. Todavia, nem
sempre isso ocorre. A violência pode ser compreendida como o ato que atente contra a vida
humana, a integridade física ou psíquica, a liberdade de outrem, ofensa a seus direitos ou,
ainda, conforme Nilo Odalia (1983) propõe a refletir, consiste em qualquer ato de privação de
algo, seja de direitos, de bens, da própria vida, da condição de cidadão, da integridade e da
ealizaç oà o oàsujeito.àOdaliaà ,àp.à àafi aàta à ueàaà iol iaà oà àe ide teà
por si mesma em todas as suas manifestações, algumas das quais tão sutis e tão bem
a ejadasà ueàpode àpassa àpo à o diç esà o aisàeà atu aisàdoà i e àhu a o .
Assim, apesar de uma determinada conduta ser violenta, nem sempre ela será
considerada crime, porquanto para assim ser reconhecida necessariamente deve haver
tipificação legal e consequente violação da lei penal. Todavia, conforme assinalam
Cademartori e Roso (2012), o conceito de crime pode variar de uma sociedade a outra e o
momento histórico e político de cada grupo social determina o que é crime e o que não é,
sendo seu entendimento mutável.
Especificamente quanto à violência, ela se manifesta de variadas formas, não apenas
com os efeitos físicos, que é a forma mais comumente a ela associada. A violência no casal,
como Marie-France Hirigoyen (2006) prefere denominar, na sua manifestação física é apenas
a ponta do iceberg, ou seja, quando demais formas de agressões já ocorreram e momento a
partir do qual a vítima decide formalizar a denúncia. Hirigoyen (2006), sobre os efeitos
psicológicos da violência no casal, designa as microviolências, as quais antecedem e
p epa a à oà te e o à a tesà doà su gi e toà daà iol iaà físi a,à ueà à pa teà oste si aà doà
fenômeno. As tristes marcas que a vítima carrega no seu corpo, possuem efeitos maiores em

4
Eletronicamente disponível em: <http://veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-e-do-lar/>.
Acesso em: 26 abr. 2017.
472

sua alma. A dor imensurável de ser violentada pelo companheiro ou familiar5 trazem efeitos
extremamente penosos. Essa violência se traduz quando um dos parceiros, seja qual for o seu
sexo,

tenta impor seu poder pela força. É a proximidade afetiva que cria a gravidade dessa
violência: é de onde circulam os afetos mais fortes que podem emergir os
sofrimentos mais intensos. É uma dominação do mais forte sobre o mais fraco, e,
obviamente, a mulher é culturalmente a mais fraca (HIRIGOYEN, 2006, p. 15).

A fragilidade da mulher, que é socialmente construída a partir dos papéis de gênero, a


caracteriza como a culpada pela própria violência da qual foi vítima, responsável pelo
insucesso na relação conjugal e amorosa, aliados, ainda, a todo o processo de aniquilamento
que sofre por conviver em uma relação opressora e baseada na subordinação. Em pesquisa
realizada pelo Instituto Avon em parceria com a empresa de pesquisas Data Popular, foram
realizadas entrevistas diretamente com homens para a coleta da percepção deles acerca da
violência contra a mulher no Brasil. A pesquisa foi elaborada em setembro de 2013, em
cinquenta municípios brasileiros, entrevistando-se cerca de 1.500 pessoas com idade acima
de dezesseis anos, dos quais dois terços são homens (de classe social, escolaridade e estado
civil variados). Dentre os entrevistados verificou-se que considerável parcela não reconhecia
determinadas condutas como violentas, em especial àquelas que não implicam marcas no
corpo. Ainda, 53% dos entrevistados afirmaram que a mulher é a principal responsável por
manter um bom casamento (dos demais 27% discordaram e 20% não se posicionaram a
respeito) e 89% dos homens consideram inaceitável que a mulher não mantenha a casa em
ordem, além de diversas outras questões que reforçam os estereótipos de gênero. Do mesmo
modo costuma ocorrer qua doàaà íti aàsof eà iol iaàse ual.àCo e t iosà o oà oà ueàelaà
esta aà faze doà aà uaà esteà ho io à eà uestio a e tosà a e aà daà suaà esti e ta,à
companhia e hábitos de vida são corriqueiros. Assim reafirmou a pesquisa realizada pelo Ipea
(Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) para percepção da tolerância social à violência
contra as mulheres – no qual o número de pessoas entrevistadas foi de 3.810, de todas as
regiões do país, sendo 66,5% mulheres e 33,5% homens. Ao serem questionados acerca de

5
Ressalta-se que não se está a restringir a compreensão de violência doméstica e familiar apenas à conduta
praticada por pessoa do sexo diverso do da mulher, posto que as agressões ocorridas no âmbito das relações
homoafetivas também estão amparadas pelo Estado. Do mesmo modo, o autor do fato não apenas é o
companheiro, mas também namorado, pai, irmão, tio, filho, dentre outros.
473

seà asà ulhe esà sou esse à o oà seà o po ta ,à ha e iaà e osà estup os ,à , %à
concordaram com a afirmação. 6 Isso quer dizer que para expressiva parcela da sociedade a
ulhe à àaà espo s el,àdeàalgu aàfo a,àpeloàestup oàdeà ueàfoià íti a,à ha a osàissoàdeà
culpabilização da vítima, comportamento diretamente relacionado à cultura do estupro. (...)
a cultura do estupro pode ser definida como uma forma de violência simbólica que consiste
aàjustifi aç o,à aàtole iaàouà oàestí uloàdoàestup o à Dйàэá‘áàetàal,à ,àp. 164).
Dentre as formas de violência, além do já citado, existem variadas maneiras de
exteriorização. A física como já mencionada é a mais facilmente reconhecida e se manifesta,
a título de exemplo, através de empurrões, chutes, o ato de bater, amarrar; a psicológica, no
ato de humilhar, insultar, isolar, perseguir, ameaçar, controlar; a moral, na calúnia, injúria e
difamação; a patrimonial e econômica, nos atos de controle sobre o dinheiro da mulher, as
li itaç esà ua toà à pe iss o à pa aà ealiza à o p as,à dest ui à o jetos,à o ulta à e sà eà
propriedades e impedir que a mulher trabalhe; e a sexual, por fim, manifesta-se no ato de
pressionar, exigir prática que a mulher não goste, se negar a usar preservativo, obrigar a
manter relação sexual seja de qualquer modo, negar o direito a métodos contraceptivos,
dentre outros.
No ano de 2006 passou a vigorar a Lei de nº 11.340/2006, também chamada de Lei
Maria da Penha, que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a
mulher. Essa possui em seu artigo 7º a disposição de variadas formas de violência contra a
mulher, que são as citadas anteriormente. Dispõe também que configura violência doméstica
e familiar qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, no âmbito doméstico,
familiar e também em qualquer relação íntima de afeto, independentemente de coabitação
(artigo 5º). Apesar de ser sabido que a maioria dos incidentes ocorrem nas dependências da
moradia, ou seja, no âmbito doméstico, no presente estudo retrata-se com atenção ao
exercício da violência no ambiente externo, praticado pela sociedade (como exemplo na
culpabilização da vítima) e por quem mantém contato esporádico com a ofendida (como nas
festividades carnavalescas).

6
35,3% concordam totalmente e 23,2% concordam parcialmente. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal /images/stories/PDFs/SIPS/140327_sips_violencia_mulheres _novo.pdf >.
Acesso em 22 abr. 2017.
474

5 A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO CARNAVAL: PATRIARCADO, DISCRIMINAÇÃO,


CULTURA DO ESTUPRO E VIOLÊNCIA FÍSICA

O rufar dos tambores, a explosão dos confetes e as cintilantes vestimentas do povo


podem, em um primeiro momento, sugerir que o carnaval brasileiro seja uma festa venturosa
e homogênea. A realidade, contudo, se esconde por debaixo dos paetês que cobrem a
passista, sob a saia rodada das baianas ou até mesmo é maquiada. O carnaval abriga casos de
violência contra a mulher a cujas ocorrências não se dá tanta visibilidade – talvez porque a
i aà deà ueà oà a a alà aleà tudo ,à o st uídaà e à te posà aisà e otos,à ai daà à
intrínseca à nossa cultura.
Oà Po talàB asil ,àsítioàelet i oàdese ol idoàpeloàgo e oàfede al,àapo taà ú e osà
acerca da violência contra a mulher durante o período carnavalesco7. Em 2017, o número de
ligações telefônicas realizadas para a Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) foi superior
aos casos relatados no ano de 2016. Foram registradas 1.136 ocorrências de violência física
contra a mulher, além das ocorrências de violência psicológica (671 casos) e sexual (109
casos). Em relatório apresentado pela Fundação de Assistência Sócio Educativa e Cultural
(Fasec) sobre a violência no carnaval no ano de 2007 (p. 35), foi verificado em entrevistas
realizadas com homens e mulheres que, quando questionados sobre o que não gostavam que
ocorria na festividade, em primeiro lugar (45%) afirmaram que são as brigas, seguido pela
violência contra as mulheres (18%). Esses dados traduzem a percepção de um problema, este
relacionado a questões muito mais densas do que a simples ideia de libertinagem empregada
à festividade. Com relação à elevação de casos de violência de gênero, repousa a incerteza se
efetivamente houve aumento de ocorrências ou, em razão do advento da Lei de nº
. / àeà aio àdi ulgaç oà osà eiosàdeà o u i aç oà ua toà à de ú ia ,àasà íti asà
passaram a tornar público o sofrimento vivenciado.
Assim como a imagem traiçoeira que se capta sobre o carnaval à primeira vista, a
liberdade da mulher é outro aspecto que pode facilmente enganar aos distraídos: sustenta-se
a ideia de que as mulheres são livres para vestir e agir como quiserem, mas o que o contexto
social revela (especialmente pela culpabilização da vítima), demonstra que esse livre-arbítrio
é ilusório, uma vez que se entende que, estando o corpo feminino à mostra, ele está disponível

7
Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2017/03/mais-de-mil-relatos-de-violencia-fisica-
contra-a-mulher-foram-registrados-no-carnaval>. Acesso em: 10 abr. 2017.
475

e,à aoàmesmo tempo, as análises de gênero demonstram que esta visão da sexualidade como
impulso biológico instintivo é historicamente aplicada muito mais à sexualidade masculina,
ueàdo i a,à o t olaàeà à iole ta,àjusta e teàpo àse àdifi il e teà o t ol el à GIнFIN, 1994,
p. 150). Ademais, o exercício da sexualidade para a mulher é um campo permeado de tabus,
isso como um reflexo dos papéis de gênero, trazendo como consequência a sua repressão, a
ualà te àu aàga a tiaàhist i aàeàpolíti aà ueàaàsuste ta,ào deàpoder, saber e sexualidade
se p eàfo a ài te ligadosàpelaà ep ess o à нOUCáUэT,à ,àp.à .
A construção cultural, portanto, coloca a mulher numa posição de fonte potencial de
p aze àdispo í elàeàoàho e à u aà o diç oàdeào igadoàaàusuf ui àdesseà o jeto , já que a
ele é conexo o estereótipo da virilidade. O advento do carnaval corrobora com essa visão à
medida em que, desde as músicas até as propagandas durante esse período, se enfatiza a
ideia de que os homens estarão livres para fazer uso da figura feminina. Ruben George Oliven
,àp.à àfazàu aàa liseàdasà úsi asàpopula esà asilei asàeà o luià ue,à aà e dade,àaà
figura feminina é essencial e, ao mesmo tempo, ambivalente, representando, por um lado,
uma fonte potencial de prazer na condição de amante, mas significando também, na mesma
o diç o,àaà ulhe àpi a haà ue,àaoàa a do a àoà ala d o,àoàt a sfo aàe àot io .àáàtodoà
esse processo de desconsideração da sexualidade da mulher e sua comparação a de um
objeto, sobre o qual o sistema machista e patriarcal se impõe, MIGUEL e BIROLI enfatizam
que:

A negação da realidade do estupro decorre amplamente do fato de que a validade


do consentimento dos indivíduos é distintamente considerada se são homens ou
mulheres – e isso se agrava quando se leva em consideração a posição de classe
dessasà ulhe esà eàpossí eisà des ios àe àsuaà idaà se ualàe à elaç oàaosà digosà
morais predominantes. (...) A violência contra a mulher pode ser entendida como
uma prática social, e não individual, sistêmica porque dirigida a membros de um
grupo simplesmente porque eles são membros daquele grupo (2014, p. 112/113).

áà ultu aà doà estup o à est à p ese teà e à todasà asà esfe asà so iaisà eà otidia as,à e à
como nas atividades não tão habituais, que é o caso do carnaval. Além da repressão e do
elemento da negação, há a culpabilização da vítima:

A culpa por refugir aos padrões de controle socialmente impostos. Aos padrões de
comportamento aos quais devem estar enquadradas as mulheres nas sociedades
patriarcais: os padrões do recato, da submissão, do despoder. O estupro, então, é
praticado pelo sujeito perverso, também como modo de desempoderar uma mulher
476

que aos seus olhos lhe pareceu empoderada e desafiadora das hierarquias de poder.
O intuito não é, simplesmente, satisfazer o seu desejo em relação a ela, mas,
principalmente, desempoderá-la, destruí-la, minar a sua potência e a sua capacidade
de subverter as estruturas arcaicas do poder patriarcal. Se a intenção, fosse tão
somente de satisfazer um desejo sexual, ao invés do estupro, o seu autor poderia
dar-se ao trabalho de seduzir a mulher (CAMPOS, 2016, p. 09).

Bruna de Lara et al (2016), expõem mudanças legislativas no decorrer da história


brasileira quanto ao crime de estupro, em especial sobre alterações recentes e toda a
o st uç oàso ialàpe passadaàdesdeà o eitosàdeà ulhe àho esta àeà o p o aç oàdeàte e à
sidoà e dadei a e teà fo çadas ,à dese o a doà at à aà p e is oà atualà ue,à uitoà e o aà
tenha abolido tais informações, mantém a lógica da valoração do status da vítima, bem como
do estereótipo do agressor. Assim, na procura dos mecanismos judiciários para
responsabilização penal do violentador, a vítima se depara com o julgamento moral da sua
vida sexual, que de nada se relaciona com a prática da conduta do agressor, haja vista a falta
de consentimento. Portanto, passa a ser violentada novamente, mas dessa vez é pelo próprio
aparato social.
De outro norte, muito se diz sobre questões de sanidade mental serem conexas à
prática de estupro. Bruna de Lara et al (2016, p. 178) ao menciona pesquisas realizadas por
ыolod ,àMaste sàeàщoh so ,àafi aà ueà oàestup oà o é explicado por fatores psicológicos.
Homens não são seres que têm um impulso sexual tão forte a ponto de não conseguirem se
o t ola àe,àpo àisso,àestup a .àOàatoàdeà iol iaàse ualàpou oàte àaà e à o àoàate di e toà
de lascívias do agressor, mais se traduz na imposição da força sobre a mulher, a intimidação e
a exteriorização de masculinidade e superioridade. A tolerância social ao estupro, nos
referindo com relação aos casos em que os estereótipos de vítima não se fizeram presentes,
resiste diante da base que a alicerça, qual seja, a dominação masculina e a subjugação do
modelo machista, consistindo em uma silenciosa forma de controle sobre os corpos das
mulheres.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do liame traçado entre o contexto histórico e um hábito incorporado na cultura


brasileira, inclusive relacionado como símbolo da identidade nacional, buscamos relacionar o
carnaval como um cenário no qual também são exercidas variadas formas de violência de
477

gênero, apesar do enredo criado pelo imaginário social crer que neste momento são afastados
variados preconceitos. Assim, fatos históricos foram trazidos objetivando melhor
compreender o presente, a fim de possibilitar a construção de um futuro diverso.
A Lei Maria da Penha (de nº 11.340/2006) sem dúvida representou um grande avanço
no combate à violência de gênero, mas padece de diversas falhas, especialmente nos quesitos
de prevenção e fiscalização. Assentamos que eventual majoração de condutas típicas, por si
só, não possuirão o condão de modificar uma nefasta realidade, porquanto, como já
mencionada, trata-se de reflexos produzidos através de uma cultura patriarcal enraizada,
construída e mantida por muito tempo ao longo da história da humanidade. Neste sentido
surge uma dúvida, já trazida por Cadermatori e Roso (2012), o processo de democratização
nacional conseguiu estabelecer formas de igualdade social?
Devemos ressaltar que o clima de festa do período carnavalesco não pode, assim
como nenhuma outra atratividade, tirar a atenção da lógica de convivência humana: o
respeito ao outro, o respeito aos direitos humanos. Como medidas, acreditamos que políticas
públicas de enfrentamento da violência de gênero, que se traduzem em investimentos, são
essenciais a fim de que as ações estatais não só repousem em produções legislativas, cujas
críticas a pouco abordamos. A divulgação de medidas e o investimento em educação e
empoderamento das mulheres devem ser impulsionados, mas principalmente, conduzir à
libertação dos sexos dos papéis de gênero e estereótipos que a eles são atribuídos (a homens
e mulheres) e, desse modo, lutar pela desconstrução do sistema patriarcal, o qual mantém
tantos outros sistemas, como o da cultura do estupro. O encerramento do presente estudo
recai sobre o mesmo motivo que o possibilitou iniciar, qual seja refletir sobre a violência no
nosso país, que não se restringe a apenas uma esfera e o quão necessário é enfrentar tal
problemática sob à égide da educação.

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478

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YOUNG, Robert. Colonial Desire: Hybridity in Theory, Culture and Race. London:
Routledge, 1995.
480

MOTIVAÇÕES DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: seria possível defini-las?

Taiane Lemos Lorencena1


Dhieimy Quelem Waltrich2

RESUMO: O presente trabalho irá tratar sobre o (s) motivo (s) que levam os agressores a
praticarem violência física, psíquica, moral e sexual contra suas companheiras, onde quase
que na totalidade, são motivos fúteis, como: o ciúmes e a traição, chamados, portanto, de
crimes passionais. Além deste motivos, mostrar com os gráficos o grande número de
homicídios de mulheres, e ao mesmo tempo, tentar entender o porquê ainda não foi criado
em nosso estado e no nosso país políticas públicas voltadas ao agressor e ao todo ente familiar
que convive com estas violências, onde, na maior parte dos casos, acaba fatidicamente
ocasionando o homicídio da mulher por este agressor não ter um tratamento reabilitador
adequado, que compreenda e analise fielmente a motivação criminosa.

Palavras-chave: Ciúmes; Crime; Feminicidio; Homicídio; Traição.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O referido artigo visa abordar as motivações criminosas dos agressores que praticam
violência domestica ou familiar, verificando cada tipo de agressão, porquê ela ocorre e como
ocorre.
Também, será abordado o feminicidio, a figura legislativa criada que pune o agressor
que age motivado por razões da sua vítima ser do sexo feminino, onde a lei 13.104/2015,
alterou o artigo 121 do Código Penal, parágrafo segundo, inciso VII caracterizando o
feminicidio como homicídio qualificado, incluindo também como qualificadora dos crimes
hediondos previstos no artigo 1º da lei 8.072/1990.

2. HOMICÍDIO PRIVILEGIADO E FEMINICIDIO

Homicídio privilegiado conforme o artigo 121, parágrafo 1º do Código Penal, é definido


o oà seàoàage teà o eteàoà i eài pelidoàpo à oti oàdeà ele a teà alo àso ialàouà o al,à

1
Mestranda em Direito com ênfase em Políticas Públicas de Inclusão Social pela Universidade de Santa Cruz do
Sul- UNISC. Bacharel em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul- UNIJUI.
2 Professora de Direito Penal e Prática Jurídica Penal na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul- UNIJUÍ; Mestre em Direito- UNISC; Doutoranda em Ciência Jurídica- UNIVALI. Advogada; Endereço
eletrônico: dhieimy@yahoo.com.br
481

ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz
podeà eduzi àaàpe aàdeàu àse toàaàu àte ço .
Não se trata de elementares típicas, mas de causas de diminuição de pena, também
conhecidas como minorantes, que não interferem na estrutura da descrição típica,
permanecendo esta inalterada. (BITENCOURT, 2012, p.73).
O motivo portador de destacado valor social é o consentâneo aos interesses coletivos.
Já o motivo de relevante valor moral é aquele cujo conteúdo revela-se em conformidade com
os princípios éticos dominantes em uma determinada sociedade. Ou seja, são os motivos
nobres e altruístas, havidos como merecedores de indulgência. (PRADO, 2006, p.61-62).
Segundo o referido artigo, existe duas figuras privilegiadas, que estão relacionadas aos
motivos determinantes do crime, o valor social ou moral. O motivo determinante constitui a
fonte propulsora da vontade criminosa, não há crime gratuito ou sem motivo. (BITENCOURT,
2012, p. 73-74).
Os motivos que levam a prática do crime de homicídio podem ser morais, imorais,
sociais e antissociais. Quando os motivos têm natureza social ou moral, privilegiam a ação de
matar alguém; quando, no entanto, a motivação tem natureza imoral ou antissocial, está-se
diante de homicídio qualificado. (HÚNGRIA, 1943, p.66).
Cumpre salientar que com a figura privilegiadora, a ação continua punível, apenas sua
reprovabilidade é mitigada, na medida em que diminui o seu contraste com as exigências
ético- jurídicas da consciência comum. A relevância social ou moral da motivação é
determinada pela escala de valores em que se estrutura a sociedade. (BITENCOURT, 2012,
p.74).
Tem-se a causa especial de diminuição de pena quando o crime é praticado por
relevante valor social, os motivos que dizem respeito aos interesses ou fins da vida coletiva
revelam menos desajuste e diminuta periculosidade. O homicídio praticado por relevante
valor moral, que diz respeito aos interesses individuais, particulares do agente, entre eles o
sentimento de piedade e compaixão. Assim o autor do homicídio praticado com o intuito de
livrar um doente, irremediavelmente perdido, dos sofrimentos que o atormentam (eutanásia)
goza de privilegio da atenuação da pena. (MIRABETE, 1999, p.67).
482

Como referido, os homicídios privilegiados não deixam de aumentar as cifras de casos


levados à justiça em nosso país, sendo assim, passa-se a analisar os dados existentes na
cartografia brasileira.
Os gráficos a seguir demonstram os números que revestem a realidade brasileira, o
gráfico 3, homicídios separados por regiões e no gráfico 3a, os números auferidos nas capitais
brasileiras e demais municípios.

Segundo os gráficos apresentados, percebe-se um grande número de homicídios de


mulheres na região sul, onde mesmo com tantos projetos sociais como a Sala Lilás por
exemplo, ainda é grande o numero de homicídios, muitas vezes estes casos ocorrem pelo
simples fato de a esposa não querer mais manter o relacionamento e o seu companheiro não
aceitando a separação ou até mesmo não suportando ver sua companheira com outra pessoa,
acaba tirando a vida da sua ex companheira e muitas vezes até mesmo do atual companheiro
da vítima.
Conforme o artigo 121, parágrafo segundo, inciso VII do Código Penal, o feminicídio se
caracteriza quando;

Art 121. Matar alguém:


[...]

Homicídio qualificado
§ 2º Se o homicídio é cometido:
[...]
Feminicídio
VII – (...) contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro
grau, em razão dessa condição. (BRASIL, CÓDIGO PENAL, 2017)
483

A imagem a seguir demonstra, em síntese a configuracao do femicídio.

Feminicídio é quando crime for praticado contra a mulher por razões da condição de
ser do sexo feminino. A Lei n.o 13.104/2015 alterou o artigo 121 do Código Penal, passando o
feminicídio como modalidade de homicídio qualificado, incluindo também como qualificadora
dos crimes hediondos previstos no artigo 1º da Lei n.o 8.072/1990.
O feminicídio é a instância última de controle da mulher pelo homem: o controle da
vida e da morte. Ele se expressa como afirmação irrestrita de posse, igualando a mulher a um
objeto, quando cometido por parceiro ou ex-parceiro; como subjugação da intimidade e da
sexualidade da mulher, por meio da violência sexual associada ao assassinato; como
destruição da identidade da mulher, pela mutilação ou desfiguração de seu corpo; como
aviltamento da dignidade da mulher, submetendo-a a tortura ou a tratamento cruel ou
degradante. (BRASIL, 2013, p. 1003).
Conforme os ensinamentos de Bianchine (2015, p.3), conclui-se que:

a violência doméstica e familiar que configura uma das razões da condição de sexo
feminino (art. 121, § II-A) e, portanto, feminicídio, não se confunde com a violência
ocorrida dentro da unidade doméstica ou no âmbito familiar ou mesmo em uma
relação íntima de afeto. Ou seja, pode-se ter uma violência ocorrida no âmbito
doméstico que envolva, inclusive, uma relação familiar (violência do marido contra
a mulher dentro do lar do casal, por exemplo), mas que não configure uma violência
doméstica e familiar por razões da condição de sexo feminino (Ex. marido que mata
a mulher por questões vinculadas à dependência de drogas). O componente
necessário para que se possa falar de feminicídio, portanto, como antes já se
ressaltou, é a existência de uma violência baseada no gênero (Ex.: marido que mata
a mulher pelo fato de ela pedir a separação).

Abaixo, apontam-se as razões de gênero nas práticas das mortes violentas de


mulheres:
484

Fonte: Modelo de Protocolo, 2014.

Percebe-se que as razões que levam os agressores a cometerem o homicídio são fúteis,
em nenhuma das razões apresentadas vemos justificativa para tanto, claro que não existem
justificativas para alguém tirar a vida de outrem, mas não se pode aceitar, por exemplo, o
homicídio de uma mulher pelo simples fato de o agressor não aceitar sua esposa convivendo
com alguém ou tendo liberdade de escolher o que quer da sua vida daquele momento a
diante.
Ainda, analisa-se a perspectiva de gênero aplicada à investigação das mortes violentas
de mulheres.
485

Esta lista demonstra a necessidade de preocupação dos gestores na criação e fomento


de políticas públicas voltadas ao agressor e a todo ente familiar em que exista a prática
violenta, mesmo existindo várias projetos sociais no Estado do Rio Grande do Sul, ainda não
existe um projeto eficaz, que alcance grande parte dos envolvidos. Tem-se no Rio Grande do
Sul a Sala Lilás, onde são atendidas mulheres que sofreram ou que sofrem algum tipo de
violência no seu âmbito familiar, mas isso é pouco para toda a situação vivenciada no dia-a-
dia, deve-se ter também um acompanhamento voltado para o agressor, tentando entender o
porquê aquele fato ocorre e o que leva o mesmo a praticar tais atos, rompendo com a raiz
engatilhadora da violência.
Quem sabe analisando, estudando e sendo acompanhado por uma equipe
multidisciplinar, com assistente sociais, psicólogos e assistente jurídicos, consegue-se, ao
menos, a diminuição deste número tão grande de homicídio de gênero no estado e no país.
Em pesquisa realizada em fase monográfica, foi possível verificar, com experiência
empírica, que as motivações dos agressores são bem semelhantes e replicadas, nos casos mais
graves. Sendo assim, grande parte dos delitos, são passionais.
Conceituando o homicídio passional, Capez (2011, p. 60) afirma que:

em tese, significa homicídio por amor, ou seja, a paixão amorosa induzindo o agente
a eliminar a vida da pessoa amada. Totalmente inadequado o emprego do termo
a o àao sentimento que anima o criminoso passional, que não age por motivos
elevados nem é propulsionado ao crime pelo amor, mas por sentimentos baixos e
selvagens, tais como o ódio atroz, o sádico sentimento de posse, o egoísmo
desesperado, o espírito vil da vingança. E esse caráter de crime passional vê-se mais
nitidamente no modo de execução, que é sempre odioso e repugnante. O
486

passionalismo que vai até o homicídio nada tem que ver com o amor (CAPEZ, 2011,
p. 60).

Na seqüência, passar-se-á à análise dos elementos subjetivos do tipo penal, mais


especificamente, a tentativa de compreender ou definir as reais motivações criminosas dos
agentes.

3. CIÚMES E PAIXÃO COMO ELEMENTO DA VIOLÊNCIA

Ciúmes, segundo Ferreira; A uottià ,àp.à ,à àu àse ti e toà ueàsu geàaàpa ti àdaà
i segu a ça,à edoàdeàpe da,àdepe d ia,àsí d o eàdaài fe io idade .à
Com a manipulação social que cada vez mais nos faz desejar ter o belo ao lado,
inicialmente fortalece e traz mais autoconfiança. Mas, com o passar do tempo, o ciúme
t a sfo aà osà i di íduosà e à a io etesà doà edoà eà se ti e tosà daà dest uiç o à
(MAZZUCHELL; FERREIRA, 2007, p. 3).
O ciumento sempre desconfia da outra pessoa. Por isso jamais acredita nela, mesmo
que esta consiga provar que suas suspeitas são fantasiosas e infundadas. Por aí se pode
perceber que o ciúme se apresenta quase como um verdadeiro delírio, ainda que esse termo
seja reservado para casos mais graves, verdadeiras doenças psiquiátricas, em que a simples
desconfiança se transforma na mais absurda convicção. (SANTOS, 2007 p. 12).
Percebe-se com estes significados que o ciúme, parte do próprio medo do agressor de
perder aquela pessoa, de achar que és dono dela, e se não for sua, não será de mais ninguém,
prefere cometer o homicídio da sua companheira, do que ver ela bem, ou, até mesmo com
outra pessoa.
Em se tratando de violenta emoção, aplica-se o artigo 121, § 1º, do Código Penal:

Matar alguém: [...]


§1º- Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou
moral, sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da
vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.

Sobre a paixão, sabe-se que o homem que se torna alvo desse sentimento dominador
abandona a razão e passa agir como fantoche da paixão. E no seu interior acontece uma
mistura explosiva de sentimentos de posse, dependência, dor, amor e compulsão. Como se
487

um homem comum e racional fosse dominado por essa explosão e perdesse completamente
a razão (MAZZUCHELL; FERREIRA, 2007, p. 4).
Pla idoàeà“il aà ,àp.à àdize à ueà [...]à[ ual ue àfatoà ueàp oduzaà aàpessoaà
emoção intensa e prolongada, diz-seà pai o,à o à a te à i o .à Noà e ta toà aà pai oà
decorrente do amor não é o único tipo de paixão. Epícuro fala sobre outras três: o desejo, a
alegria e a dor. (MAZZUCHELL; FERREIRA, 2007,p.4).
Como visto, a doutrina possui vasta definição aos sentimentos e motivações trazidos
pelos agressores. Ocorre, que a ausência de políticas públicas educativas, levam a sociedade
a manter o senso comum, totalmente desprendido da razão, agindo, em seus relacionamentos
a base da emoção, o que justifica uma sociedade de jovens doentes e sem motivações
profissionais e visões de futuro.
A mídia contribui para a ridicularização da moral feminina, a publicidade dos produtos
mais consumidos por jovens e homens expõe a figura da mulher em rótulos, consome-se o
produto, com a rotulagem da mulher.
Atualmente, se vislumbra o nascimento de um movimento tendente a abolir tais
práticas, mas com certeza, será um longo caminho, e, muitas mulheres ainda terão suas vidas
ceifadas pela ilógica emocional, tão atrelada à mulher, mas que é terrivelmente praticada pelo
homem.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se verificar em cada caso estudado a importância que a lei do Feminicidio tem
no cotidiano de cada mulher.
Ademais, pode-se perceber que tanto o agressor como a vítima merecem cuidados e
respeito, sempre considerando que são seres humanos e merecem ser compreendidos e
atendidos com dignidade tanto pela sociedade quanto pelos seus familiares e amigos.
Ainda, resta necessário estabelecer que antes de qualquer julgamento, devem-se
conhecer verdadeiramente os fatos ocorridos, perquirindo-se a fundo os elementos
formadores da conduta e personalidade do agressor.
Por fim, e como parte de sua condenação, possibilitar ao agressor e suas vítimas, a
reabilitação, cumprindo-se assim o papel ressocializador e reintegrador do cárcere, sendo
488

medida eficaz no tratamento daquele conflito, doméstico ou familiar, evitando-se, assim, a


reincidência delitiva.

REFERÊNCIAS

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http:// www.institutoavantebrasil.com.br/feminicidio-entenda-asquestoes-controvertidas-
da-lei-13-1042015/. Acesso 19 de out. de 2016.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito Penal.- 16. Ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

______. Tratado de Direito Penal: Parte Especial 2; 12º Edição. São Paulo: Saraiva, 2012.

BRASIL, Senado Federal. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito. Relatório Final.Brasília,


julho de 2013.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direto Penal. V. 1. São Paulo. Saraiva. 2002.

______. Curso de Direito Penal: Parte Especial; volume 2; 9ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

______. Código Penal. São Paulo: Saraiva 2005. Disponível em


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm Acesso em:
13/03/2017.

FERREIRA - SANTOS, Eduardo. Ciúme: o lado amargo do amor. São Paulo: Ágora, 2007.

MAZZUCHELL, Camila; FERREIRA, Katia. Crime passional: quando a paixão aperta o gatilho.
Disponivel em:
<http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/view/1393/1331>Acesso em:
11 mar. 2017.

MIRABETE, Julio Fabbrini, RENATO, N. Fabbrini. Manual de Direito Penal. 26º Ed. São Paulo:
Atlas, 2010.

______. Manual de Direito Penal. Parte Especial;16º Ed. São Paulo: Atlas, 1999.

MODELO DE PROTOCOLO LATINO-AMERICANO DE INVESTIGAÇÃO DAS MORTES VIOLENTAS


DE MULHERES POR RAZÕES DE GÊNERO (FEMICÍDIO/FEMINICÍDIO). Escritório Regional para a
América Central do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos; Escritório
489

Regional para as Américas e o Caribe da Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de
Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres). Brasília: ONU Mulheres, 2014.
PRADO, Regis Luiz. Curso de Direito Penal Brasileiro. 2 v:Parte Especial: São Paulo. Revista dos
Tribunais, 2006.

WAISELFIZ, J.J. Mapa da Violência 2014 - Juventude viva: os jovens do Brasil. 2014. Brasília:
Secretaria-Geral da Presidência da República/SNJ/SEPPIR, 2014. Disponível em: <http://www.
mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil.pdf>. Acesso em: 19 abr. 2017.
490

P‘INCÍPIO“àCON“TITUCIONáI“àDOàT‘IBUNáLàDOàщÚ‘I:ài st u e tosàpa aàefeti aç oàdosà


di eitosààhu a osàeàfu da e tais

àRo e toàнagu desàáudi oà1à


E a d oàLuisà“ippe tà2
Joãoàálf edoàT elhaàGoula tà3

‘esu o:àTribunal do Júri é uma instituição historicamente reconhecida pelas constituições


brasileiras e consagrada no ordenamento jurídico pátrio como direito e garantia fundamental
do cidadão. O Júri visa, sobretudo, garantir o devido processo legal e, indiretamente, a
liberdade do acusado, que somente poderá ser cerceada pelo Estado, após o julgamento pelo
Colegiado Popular e o trânsito em julgado da sentença penal. É, também, o direito do cidadão
de participar da administração da justiça da sociedade em que vive. O escopo do presente
estudo, é evidenciar mesmo que de forma breve e sucinta os princípios básicos que devem
regrar a Instituição e os julgamentos realizados pelo Júri Popular, positivados pela
Constituição Cidadã, promulgada em 1988, os quais garantem um julgamento justo e
imparcial ao réu, amparado pelos direitos e garantias fundamentais.

Pala as- ha e:àT i u alàdoàщú i;àP i ípiosà o stitu io ais;ààdi eitoàfu da e tal.

àCo side açõesài i iais

Co sag adaàatual e teàpelaàэeiàMaio à ige te,à o oàdi eitoàeàga a tiaàfu da e talà


doàho e ,àoàT i u alàdoàщú iàpossuiàp i ípiosà o teado es,à ujosào jeti osàp i o diaisàs oà
assegu a àaoàa usadoàjulgadoàpeloàColegiadoàPopula ,àu àjulga e toàjustoàeài pa ial,à o àaà
apli aç oàdoàde idoàp o essoàlegalàeàaàga a tiaàdaàp i aç oàdeàsuaàli e dadeàso e teàap sàaà
se te çaà pe alà o de at iaà defi iti aà eà ai da,à p opo io a à aosà idad osà o u sà aà
pa ti ipa e àdaàjustiçaàdoàseuàpaís.
й o aàai daàse doàsedi e tadasàeà uitoàpol i asàalgu asàposiç esàdout i iasà
a e aà doà T i u alà doà щú i,à te ‐seà oà jú ià popula à o oà u aà i stituiç oà de o ti aà po à
e el ia,àpoisà ài pe iosoàdesta a àoàdi eitoàdoàa usado,à osà i esàati e tesàaàesteàI situto,àà
se à julgadoà pelosà seusà iguais,à ouà seja,à idad osà o u sà aà fu ç oà deà juízesà leigos,à eà ue,à
julga oàpelaàsuaààà o s i iaàeàli eàdeàfu da e taç o,àpoisàassi àest àpositi ado,àoà ue,àe à
ape tadaàsí tese,à ep ese taàaàfu ç oàju isdi io alà ealizadaàpeloàpode àpopula .à

1
Bacharel em Direito pela UNICRUZ, Pós-Graduação em Direito Penal e Processual Penal - Verbo Jurídico,
Delegado de Polícia. Contato: robertoaudino78@gmail.com.
2
Mestrando em Direito pelo PPGD – UNIJUÍ, Bacharel em Direito pela UNICRUZ, Graduado em História pela
PUC/RS, MBA em Gestão das Tecnologias de Informação e Comunicação em Educação pela PUC/RS, Pós-
Graduação em Docência do Ensino Superior pela UFRJ. Contato: evandro.sippert@gmail.com.
3
Bacharel em Direito pela UNICRUZ, Advogado. Contato: joaoalfredotrelhagoulart@gmail.com.
491

Oà p ese teà a tigoà us aà dispo ,à deà fo aà e e,à so eà asà a a te ísti asà ge aisà doà
T i u alàdoàщú i,àsuaài lus oà oào de a e toàju ídi oàp t io,àa o da doàaài flu iaà ueàaà
Ca taàMag aàpossuià so eà oà T i u alàdoà щú i.à Dispo à so eà à aà i po t iaà daà apli aç oà dosà
p i ípiosà o teado esà daà i stituiç o,à à es oà ueà deà fo aà su i ta,à aà apli aç oà deà à taisà
p i ípiosà ueà de e à eg a à aà I stituiç oà eà osà julga e tosà ealizadosà peloà щú ià Popula ,à osà
uaisààga a te àu àjulga e toàjustoàeài pa ialàaoà u,àa pa adoàpelosàdi eitosàeàga a tiasà
fu da e tais,àosà uaisàs oà asila esàdoàйstadoàDe o ti oàdeàDi eito.

àDese ol i e to
. àCo side açõesàso eàoàT i u alàdoàщú ià oàdi eitoà asilei o

Oàщú ià àu aài stituiç oàju ídi aàt adi io alà oàdi eitoàp o essualàpe alà asilei o.àÉà
u à g oàdoàPode àщudi i ioà i uladoàaàeste,à asàde idoàaoàstatusà ueàlheà o fiaàoàte toà
o stitu io al,à oàe o t aàp e is oà oàa tigoàdesti adoàaosàÓ g osàdoàPode àщudi i io,à asà
si à oà Títuloà daà Ca taà Mag aà efe e teà aosà di eitosà eà ga a tiasà fu da e tais,à oà ueà lheà
ga a teàoàtítuloàdeàt i u alàespe ial.à
Naà liç oà deà нй‘‘áщOэIà apudà эOPй“à щ .à ,à p.à ,à à oà T i u alà doà щu ià
dese pe houà u à i po ta teà papelà aà supe aç oà doà siste aà i uisit io,à te doà oà
pe sa e toàli e alà l ssi oàassu idoàaàdefesaàdoà odeloàdeàjuizà idad oàe à o t asteà o à
osàho o esàdaài uisiç o .àCo fo eàle io aàNu ià ,àp. :

Éàp ati a e teàpa ífi oà aàdout i aàse àoàjú iàu à g oàdoàPode àщudi i io,àe o aà
lheà sejaà e o he idaà aà suaà espe ialidade.à N oà o staà doà olà doà a t.à à daà
Co stituiç oàнede alà o oà g oàdoàPode àщudi i io ,àe o aàoàsiste aàjudi i ioà
oàa olhaàe àout osàdispositi os,àto a do‐oàpa teàài teg a teàdoà efe idoàPode àdaà
‘epú li a.

Daà es aà a ei a,à o fo eà oà e te di e toà deà Mossi à ,à p.à à oà щú i,à


assi ,à àdesig aç oàdadaà ài stituiç oàju ídi aàfo adaàpelosàho e sàdeà e ,àaà ueàseàat i uià
oà de e à deà julga à a e aà dosà fatos,à le adosà ouà t azidosà aà seuà o he i e to .à à ái da,à asà
pala asàdeàNassifà ,àp.à ,àaài stituiç oàdoàщú ià à

[...]àaàga a tiaàdoà idad oàse àjulgadoàpeloàpo o,à ua doàa usadoàdaàp ti aàdeàfatosà


i i ososàdefi idosàpelaàp p iaàCo stituiç oàouàe àleiài f a o stitu io al,à o àaà
pa ti ipaç oàdoàPode àщudi i ioàpa aàaàe e uç oàdosàatosàju isdi io aisàp i ati os .
492

áài stituiç oàdoàщú iàPopula àpossuiàu à a te à oàpe a e te,àpoisàesteà olegiadoà


te à idaà eà du aç oà te po iaà ua toà aà suaà o posiç o,à se doà ueà asà pessoasà ueà oà
i teg a às oà o o adasàpa aàdete i adaà po aàdeàsess es,à ua doàe t oài oài teg a àoà
Co selhoà deà “e te çaà eà assi ,à fu io a à o oà juízesà deà fatoà eà de idi à ausasà i i aisà
olo adasàe àjulga e toà aàsess oàdoàT i u alà Má‘QUй“,à .
Noà to a teà aà suaà o stituiç o,à disp eà oà C digoà deà P o essoà Pe alà ueà oà T i u alà
Popula à à o postoàpo àu àjuizàdeàdi eito,à ueà àoàseuàp eside te,àeàdeà i teàeà i oàju adosà
so teadosàde t eàosàalistados,àseteàdosà uaisà o stitui oàoàCo selhoàdeà“e te çaàe à adaà
sess oàdeàjulga e to.
“euàp o edi e toà àes alo adoàouà if si o,àouàseja,àp i ei a e teàe isteàu aàfaseà
p epa at iaàpa aàoàjulga e toàdaàde ú ia,ào deàoàjuiz,àp eside teàdoàщú i,àdizàse à a í elàouà
oà aà a usaç o,à pa aà so e teà ap s,à o o e à aà segu daà faseà doà p o edi e to,à o à oà
julga e toà doà li eloà pelosà ju adosà ueà o p eà oà Co selhoà deà “e te ça.à “o eà oà te aà
Nuo olo eàapudàMa uesà ,àp.à àes e eu:

á tesàdeàse àfo uladaàaàp ete s oàpu iti a,àde eàoàjuizàdize àdaàad issi ilidadeàdaà
a usaç o.àPa aàta to,àfo a‐seàu àp o edi e toàp eli i a à ueàseàe e aà o àoà
judi iu à a usatio is,à aà fi à deà ue,à edia teà atosà p i ipal e teà i st ut ios,à
possaà oà juizà e ifi a à seà h à p o a ilidadeà deà se à e ataà aà i putaç oà deduzidaà aà
de ú ia.àP o elàaà e a idadeàdaài putaç o,àoàjuizàde la aàaàde ú iaàp o ede teà
pa aà ueàsejaàe àseguida,àap ese tadaàeàjulgadaàaàa usaç o.

á tesàdeàse àfo uladaàaàp ete s oàpu iti a,àde eàoàjuizàdize àdaàad issi ilidadeàdaà
a usaç o.àPa aàta to,àfo a‐seàu àp o edi e toàp eli i a à ueàseàe e aà o àoàjudi iu à
a usatio is,àaàfi àdeà ue,à edia teàatosàp i ipal e teài st ut ios,àpossaàoàjuizà e ifi a àseà
h àp o a ilidadeàdeàse àe ataàaài putaç oàdeduzidaà aàde ú ia.àP o elàaà e a idadeàdaà
i putaç o,à oà juizà de la aà aà de ú iaà p o ede teà pa aà ueà sejaà e à seguida,à ap ese tadaà eà
julgadaàaàa usaç o.
Oàjuizàdeàdi eito,à o oàp eside teàdoàT i u alàPopula ,à àoàe a egadoàdaàdi eç oà
dosàt a alhos.àCa eà àp esid iaàdoàщú i,àai daà aàfaseàdeàp epa aç oàdoàjulga e to,àalista à
a ual e teàosà e osàdoà o poàdeàju ados,ào ga iza àaàlistaàdeàju adosàsuple tes,àp o ede à
aoà so teioà dosà ju adosà ueà de a à to a à pa teà doà T i u alà doà щú ià daà sess oà pe i di aà eà
493

o o a à oà щú i.à Éà oà juizà ue à i à p esidi à oà julga e to,à de idi à asà uest esà i ide tes,à
i te oga àoàa usadoàe,à o fo eàaàde is oàdosàju ados,àp ofe i àaàse te ça.
Oà p eside teà doà T i u alà doà щú ià à oà g oà pe a e te,à ue,à sal oà asosà
e ep io ais,àde eàesta ,àdu a teàtodoàoàte poàdaà eu i oàte po iaàdosàju adosàeàda ueleà
t i u al,à àtestaàdeàseusàt a alhos,à oàs ào ga iza doàoàp p ioàщú i,à o oàai daàdi igi doà
seusàjulga e tosàouàsess esà Má‘QUй“, ,àp.à .

áà i stituiç oà doà щú ià e igeà aà pa ti ipaç oà efeti aà daà so iedadeà at a sà deà seusà


idad os,à ueà ha adosàaà o po àoàT i u alàPopula àse oàde o i adosàju ados.àOà o eà
ueàlheà àdado,àju ado,àad àdoàju a e toà ueàp esta,àa tesà ueàto eàasse toà oàt i u al,à
e à i tudeàdoà ualàp o eteàdeli e a à segu doàsuaà ho a,à o s i iaà eà e dadeà dosàfatosà
MO““IN,à ,àp.à .
Oà o stitui te,àaoàela o a àaàCo stituiç oàнede alàp o ulgadaàe à àdeàoutu oàdeà
,à p o u ouà esta ele e à u à йstadoà De o ti oà deà Di eito,à o atiza doà oà T i u alà
Popula à o oàse doà aisà ueàu à g oàdoàPode àщudi i io,àt ata do‐oà o oàu aàga a tiaàeà
u àdi eitoàfu da e talàdeàtodoà idad oà eside teà oàpaís.àássi àdisp eàoàa tigoà º,àXXXVIII,à
daàatualàCa taàMag a,ào deàoàT i u alàdoàщú ià àt atadoà o à lausúlaàp t ea:

Éà e o he idaà aà i stituiç oà doà щú i,à o à asà o ga izaç esà ueà lheà de à aà lei,à
assegu ados:
a àaàple itudeàdeàdefesa;
àoàsigiloàdasà otaç es;
àaàso e a iaàdosà e editos;
d àaà o pet iaàpa aàoàjulga e toàdosà i esàdolososà o t aà idaà B‘á“Iэ,à ,à
p.à .

Oà legislado à o igi io,à aoà esta ele e à aà de o i adaà Co stituiç oà Cidad ,à


e o he euà aà i stituiç oà doà щú i,à eafi a doà asà disposiç esà j à e iste tesà a te io e teà à
o aàCa taàCo stitu io alàeài e e tesàaoàT i u alàPopula ,à e ep io a doàtodasàasàdisposiç esà
aà espeito,à o tidasà oàC digoàdeàP o essoàPe al.

.à à‘efle õesàp i ipiológi as:àpo àu aàefeti aç oàdosàdi eitosàfu da e tais

эite al e te,à o fo eàesta ele e àosàdi io iosàdeàlí guaàpo tuguesa,àp i ípioà


sig ifi aà oà o e toà e à ueà algu aà oisaà te à o ige ;à ausaà p i ia;à ele e toà
p edo i a teà aà o stituiç oà deà u à o poà o g i o;à p e eito.à щ à oà te oà o stitu io alà
494

ad à deà elati oà à o stituiç o;à o fo eà aà o stituiç o.à De ota‐se,à po ta to,à ueà


o i a doàasàduasàdefi iç esàte ‐seàaào ige àdoà ueà à elati oà à o stituiç o.
P i ei a e teà ega a‐seàoà a te àdeà o aàju ídi aàaosàp i ípios.àDe idoàaàsuaà
supostaà atu ezaà t a s e de te ,àouàe à az oàdeàseuà o teúdoàeà agueza,à oàse tidoàdeàu aà
a u iaç oàla gaàeàa e ta,à e à o oàpelaàfo ulaç oàat a sàdeàdispositi osàdestituídosàdeà
sa ç oài ediata,àe a àosàp i ípiosà ualifi adosà o oà e osàp e eitosàdeào de à o alàouà
políti a.àáàistoàseàso aàoàfatoàdeà ueàaàp p iaà o stituiç oàse ia,àjusta e te,àa ueleà o e toà
li dei oàe t eàoàso ialàeàoàju ídi o,àouàseja,àpo ueàaàp p iaà o stituiç oà oà ep ese taàu à
o poà est ita e teà ju ídi o,à apa e iaà elaà o oà oà eposit ioà atu alà dosà p i ípiosà e t oà
o side adosàdesp o idosàdeà atu ezaàe i e te e teàju ídi aà ‘OTрйNBU‘G,à .
Oà o i e toà deà e o he i e toà deà ju idi idadeà aosà p i ípios,à o fo eà afi aà
‘othe u gà àso e teà o eçouàaàse àdete tadoàap sàaài u s oàdeàй osà‘o e toàG auà
aàTeo iaàGe alàdoàDi eito,àoà ualàad e te:

Qua toà àestatuiç oà Re htsfolge,ài ju ç o ,à elesàta à o pa e e,àe o aàdeà


odoài plí ito,à oàe t e oà o plet elàe àout aàouàout asà o asàju ídi as,àtalà
o oào o eàe à elaç oàaài ú e asà o asàju ídi asài o pletas.àйstasàs oàa uelasà
ueà ape asà e pli ita à ouà oà supostoà deà fatoà ouà aà estatuiç oà deà out asà o asà
ju ídi as,à oào sta teà o figu a doà o aàju ídi aà aà edidaàe à ue,à o oàa otaà
эa e z,àe iste àe à o e oà o àout asà o asàju ídi as,àpa ti ipa doàdoàse tidoà
daà alidadeàdelasà ‘OTрйNBU‘G,à ,àp.à .

Osàp i ípios,àassi à o oàasà eg as,às oà o asàju ídi as,àdife e àape asà oàse tidoà
deà ueàestasàs oàdi etas,àouàseja,àpossue àu à e o àg auàdeàa st aç oàeàa uelasàs oà aisà
a a ge tes,àdotadosàdeà aio àg auàdeàa st aç o,à e essita doàpa aàsuaài te p etaç oàjuízoà
deàpo de aç o.àássi àle io aàBastosà ,àp.à àaà espeitoàdosàp i ípiosà o stitu io ais:

Osàp i ípiosàCo stitu io aisàs oàa uelesà ueàgua da àosà alo esàfu da e taisàdaà
o de à ju ídi a.à Istoà s à à possí elà aà edidaà e à ueà estesà oà o jeti a à
egula e ta àsituaç esàespe ífi as,à asàsi àdeseja àla ça àaàsuaàfo çaàso eàtodoà
oà u doàju ídi o.àál a ça àosàp i ípiosàestaà etaà àp opo ç oà ueàpe de àoàseuà
a te à deà p e is oà deà o teúdo,à istoà ,à o fo eà oà pe de doà de sidadeà
se ti a,à elesà as e de à aà u aà posiç oà ueà lhesà pe iteà so essai ,à pai a doà
so eàu aà eaà uitoà aisàa plaàdoà ueàu aà o aàesta ele edo aàdeàp e eitos.à
Po ta to,àoà ueàoàp i ípioàpe deàe à a gaà o ati aàga haà o àfo çaà alo ati aàaà
esp aia ‐seàpo à i aàdeàu àse ‐ ú e oàdeàout asà o as.

Naàdout i aàdeàBastosà ,àout aàfu ç oà uitoài po ta teàdosàp i ípiosà àse i à


o oà it ioà deà i te p etaç oàdasà o asà o stitu io ais,à sejaà aoà legislado à o igi io,à oà
495

o e toà deà iaç oà dasà o asà i f a o stitu io ais,à sejaà aosà juízes,à oà o e toà daà
apli aç oàdoàdi eito,àsejaàaosàp p iosà idad os,à oà o e toàdaà ealizaç oàdosàseusàdi eitosà
fu da e tais.

.à àOsàp i ípiosà o stitu io aisà oàT i u alàdoàщú i:ài st u e tosàpa aààefeti aç oàdosà
di eitosààhu a osàeàfu da e tais

“ oà osà p i ípiosà o stitu io aisà a uelesà alo esà hie a ui a e teà supe io esà aosà
de aisà e à u à o de a e toà ju ídi o,à poisà s oà eles,à aà ha eà deà todoà oà siste aà o ati o.à
á igadosàpelaàCa taàCo stitu io alàpossue àaàfi alidadeàdeàda àsiste atizaç oàaoàte toàdaà
эeiàMaio àeàse i à o oàpa et oàpa aài te p etaç esàeàeste de àosàseusà alo esàso eàtodoà
oà u doàju ídi o.
Osà p i ípiosà o stitu io aisà ueà o teia à oà T i u alà doà щú ià Popula ,à e ua toà
di eitoàeàga a tiaàdoà idad o,àest oàele adosà oàa tigoà ºàdaàCo stituiç oàнede alàdeà ,àeà
s o:àaàple itudeàdeàdefesa,àoàsigiloàdasà otaç es,àaàso e a iaàdosà e editosàeàaà o pet iaà
í i aà pa aà julga à i esà dolososà o t aà aà ida.à Taisà p i ípiosà dispostosà aà эeià Maio à
o ie ta àosàp o edi e tosà elati osàaài stituiç oàdoàщú i.àCo fo eàosàe si a e tosàdeàNu ià
,àp. :

Noà o te toàdoàT i u alàdoàщú i,ào deàosàp i ípiosàp o essuaisàdaài ediatidadeàeà


daà o alidadeà ga ha à ele o,à to a‐seà fu da e talà ga a ti à u aà defesaà justaà eà
efi az.à Oà ju adoà ueà à leigoà p e isaà se à o eta e teà i fo adoà dasà p o asà ueà
est oà osàautos,àaàfi àdeàde idi ,àpo àí ti aà o i ç o,àoàdesti oàdoài di íduoà ueà
lheà àap ese tadoàpa aàjulga e to.

й àp i ei oàluga ,àoàdi eitoà àli e dadeà àu àdosà aisài po ta tesà àe ist iaàeà
dese ol i e toàdoàse àhu a oàeàjusta e teàpo àissoà à o side adoàu àdi eitoàfu da e talà
deàtodaàpessoaàhu a a,àpoisàse àaàli e dadeàoàho e à oà o segui iaàga a ti à e à es oà
oàdi eitoà à ida.àOsàse esàhu a osà as e àli esàe,à iaàdeà eg a,àso e teàpode àse àp i adosà
destaà li e dadeà oà asoàdeà apli aç oà deà u aà pe a,à sa ç oà doà йstado,à o à aàfi alidadeàdeà
esgata à aà o de à eà aà li e dadeà e à so iedade.à ássi à oà di eitoà à li e dadeà oà à a soluto,à
e o aà u aàpe aàoàseuàaspe toàdeàfu da e talà NUCCI,à .
496

O jeti a doà oi i à osà a usosà po à pa teà doà йstadoà eà assegu a à oà dese ol i e toà
egula àdosàp o essos,àosàlitiga tesàe àge al,àaoàse e àsu etidosàaàu aàde a daàjudi ial,à
o ta à o àdoisàp i ípiosà si os,à uaisàseja :àoà o t adit ioàeàaàa plaàdefesa,àdi eitosà
ueà o siste à aàopo tu idadeàdosàa usadosàp oduzi e àp o asàaàseuàfa o àeà us a àp o a à
suaà i o ia.à O o eà ueà o side a doà asà a a te ísti asà doà T i u alà doà щú i,à aà defi iç oàà
o stitu io alàpa aàaàdefesaà àdife e iada,àouàseja,à osàp o essosàdoàщú iàelaà oà àape asà
a pla,à asàple a.àNesseàse tidoàai daàNu ià ,àp.à :

Po ta to,àapesa àdeàse àu aà ga a tiaàdeàoàa usadoàdefe de ‐seà o àa plid o,à à


a a te ísti aà fu da e talà daà i stituiç oà doà jú ià ueà aà defesaà sejaà ple a.à U à
T i u alà Popula ,à o deà seà de ideà po à í ti aà o i ç o,à se à ual ue à oti aç o,à
se àaàfeiç oàdeàse àu àT i u alàli e,àespe ial e teàpa aàoà u,à oà àu aàga a tiaà
i di idual,àaoà o t ioà àu àfa doàdosà aisàte í eis.

áàde is oà ueà o de aàouàa sol eàoà uà oà àfu da e tada,àouàseja,àosàju adosà oà


T i u alàdoàщú iàde ide àpo àí ti aà o i ç oàeàpo àissoàaàdefesaà o edidaàaoà uàe àple ioà
de eàse àdife e iada.
áàple itudeàdeàdefesaà o sisteàe àassegu a àaoà uàu aàdefesaàple a,àu aàdefesaà
i eto el,à à aisà ueàaàa plaàdefesaàp e istaà oàa tigoà º,àэV,àdaàCo stituiç oàнede alàdeà
àeàassegu adaàaosàlitiga tesàe àp o essoàjudi ialàouàad i ist ati oàeàaosàa usadosàe à
ge al,àpoisàaàdefesaàple aà àu aàdefesaà o pletaàtotal,à o oàsuge eàaàpala a.
Ple itudeà deà defesaà ue à dize à suaà e te s oà i aà ueà pe itaà ueà oà p o essoà
te haàseuàp ossegui e toàat àaàde is oàfi al,à oàpodeàte àu àse tidoàdeàe te s oài fi ita,à
ili itada,àlesa doàoàp o essoà oà ueàeleàte àdeàesse ial,à ueà àaàdes o e taàdaà e dadeà ealà
eàdeàe e tualàpu iç oàdosà o po ta e tosàa tisso iais.à
Oà it ioàaàse àadotadoàpeloà agist adoàs àpode àse àoàdaàpo de aç o,àpe iti doà
ueà seja à ult apassadosà estesà li itesà p o e ie tesà daà leià e à asosà espe ífi os,à ua doà seà
o e e ,à aseadoà e àa gu e tosà f ti os,àdaà i pe iosaà e essidadeà deà ou idaàdeà out asà
teste u has,àso àpe aàdeào o e ,à aàhip teseà o eta,àu àe e í ioài o pletoàdeàdefesa,à
ueà possaà ge a à g a eà les oà à ga a tiaà o stitu io al e teà o sag adaà daà ple itudeà deà
defesa.à Nestesà asos,à u aà a gu e taç oà si e aà eà e à oti adaà e ta e teà le a à oà
agist adoàaài ui i àu à aio à ú e oàdeàteste u hasà isa doàaàdes o e taàdaà e dadeà ealà
TщáDй‘,à .
497

Out oàp i ípioà o stitu io alà ueà alizaàosàp o edi e tosàdoàT i u alàPopula àeàdeà
g a deài po t iaà àoàdoàsigiloàdasà otaç es,à ueàte àpo ào jeti oàga a ti à ueàoàju adoàaoà
de idi àestejaàsegu oàeàli eàdeàp ess oàe te io ,àoà ueà oào o e iaàseà oà o e toàde is io,à
oà ju adoà esti esseà e à pú li o,à aà f e teà doà a usadoà eà deà todasà asà out asà pessoasà ueà
esti esse àa o pa ha doàoàjulga e to,à o oàpa e tesàeàa igosàdaà íti aàeàdoà u.
Osàju ados,àu aà ezàso teados,à oàpode oà o u i a ‐seà o àout e àeàta pou oà
a ifesta àsuaàopi i oàso eàoàp o esso.àáài o u i a ilidadeàdosàju ados,àap sàoàso teioà à
u àp i ípioà ueàest à ela io adoàaoàsigiloàdasà otaç es.à“o eàoàassu toàoàauto àPo toà ,à
p.à ,àassi àseà a ifesta:

I o u i a ilidadeàeàsigiloàs oàp e istosà o oàp oteç oà àfo aç oàeà a ifestaç o,à


li esà eà segu as,à doà o e i e toà pessoalà dosà ju ados,à pelaà i o u i a ilidadeà
p otegidosàdeàe e tuaisàe ol i e tosàpa aàa egi e taç oàdeàopi i esàfa o eis,à
ouàdesfa o eis,àaoà u,àeàpeloàsigiloàdasà otaç esàte doàga a tiaàdoà esgua doàdaà
opi i oàpessoalàeài di idual,à ueàpodeà oàse àaà ajo it ia,à ueà àaàe p ess oàdasà
de is esàdoàщú ià a t.à ;àte ,àpo ta to,àoà idad oàso teadoàpa aàoàe e í ioàdasà
ele a tesàfu ç esàdeàju ado,àe t oà aàposiç oàdeài teg a teàdeàu àdosà g osà ueà
e e e à щu isdiç oà Pe alà oà País,à ga a tiasà pa aà aà li eà fo aç oà deà seuà
o e i e toàeàpa aàe p ess oàdeàsuaàde is o.

áàpu li idadeàdosàatosàp o essuaisàp e istaà aàCo stituiç oàнede alà àu aàga a tiaà
fu da e talàdoàho e àeàdeàsu aài po t iaàe à ual ue àsiste aàju ídi oàde o ti o,àoà
ue,à aà p i ei aà ista,à suge eà u aà o t adiç oà o stitu io al,à te doà e à istaà oà fatoà deà aà
Co stituiç oà e io a àe àseuàa tigoà ,àIX,à ueàtodosàosàjulga e tosàdoàPode àщudi i ioà
se oà pú li os,à e à o oà e à seuà a tigoà º,à эX,à dispo à ueà aà leià s à pode à est i gi à aà
pu li idadeà dosà atosà p o essuaisà ua doà aà defesaà daà i ti idadeà ouà oà i te esseà so ialà oà
e igi e ,àe,àpo àout oàlado,àp es e e à ueà osàp o essosàdeà o pet iaàdoàщú iàPopula àse à
assegu adoàoàsigiloàdasà otaç es.à
O o eà ueà oà o stitui te,à o he edo à dasà a a te ísti asà doà T i u alà doà щú i,à
p i ipal e teà oà to a teà aà faltaà deà ga a tiasà aosà ju ados,à suaà i e pe i iaà eà faltaà deà
o he i e toà t i o,à p o u ouà assegu a à ueà oà julga e toà ealizadoà peloà Co selhoà deà
“e te çaàfosseàoà aisài pa ialàpossí el,àfi a doàoàp e eitoàdeà ueàaà otaç oàsejaàsigilosa,à
e o aà oà julga e toà o o aà e à pú li o,à espeita doà oà p i ípioà daà pu li idadeà ueà egeà
todosàosàatosàp o essuaisàeàest à o sag adoà aàCo stituiç oàнede alà NUCCI,à .
498

áà de is oà dosà ju adosà à sup e a,à ouà seja,à oà podeà se à odifi adaà eà de eà se à


espeitada,à à aà ha adaà so e a iaàdosà e editos.à нoià i luídoà aà Co stituiç oà нede alà pelaà
p i ei aà ezà e à à eà o sag adoà aà Ca taà Mag aà deà ,à ueà i luiuà aà so e a iaà dosà
e editosàe àseuàte toà o oàu àdosàp i ípiosà ueà ege àaài stituiç oàdoàщú i.
ápe asà oà u toàpe íodoàe t eà àeà ,à ua doà igo ouàaà egula e taç oàdoà
De eto‐эeià º.à / ,à à ueà asà de is esà doà jú ià oà goza a à doà at i utoà deà so e a asà
OэIVйI‘á,à .
Co fo eà afi aà Guilhe eà deà “ouzaà Nu i,à essaà so e a iaà ue à dize à
i depe d iaàa solutaàse à ual ue àsu iss o ,à oàpode doàoàT i u alàPopula àte àsuaà
de is oà alte adaà e à es oà peloà g oà i oà doà Pode à щudi i io,à oà “up e oà T i u alà
нede alà NUCCI,à ,àp. .
De e‐seào se a à ueàessaàso e a iaàga a tidaàaoàщú iàat a sàdaàCa taàMag a,à oà
àtotal e teàa soluta,à esseàse tidoàMa uesà ,àp.à àes e eu:

Co sisti ,à po ,à essaà so e a iaà aà i possi ilidadeà deà u à o t oleà so eà oà


julga e to,à ue,àse àsu t ai àaoàщú iàoàpode àe lusi oàdeàjulga àaà ausa,àe a i eà
seà oàhou eàg ossei oàe o ài àjudi a do?àDeàfo aàalgu a,àso àpe aàdeà o fu di ‐
seàessaàso e a iaà o àaào ipot iaài se sataàeàse àf eios.

Oà p o essualistaà f a sà рeli à apudà Ma uesà ,à afi aà ueà aà oç oà deà


so e a iaàdoàщú ià o sisteà aài possi ilidadeàdeàosàjuízesàtogadosàseàsu stituí e àaosàju ados,à
aàde is oàdaà ausa.
Dia teà disto,à pode‐seà afi a à ueà aà e dadei aà so e a iaà dosà e editosà est à aà
i possi ilidadeàdosà agist adosàdaàsegu daài st iaà odifi a àaàse te çaàp ofe idaàpelosà
juízesàleigos.àOàT i u alà oàpodeàa sol e à ua doàoàщú iàPopula à o de a ,àassi à o oà oà
podeà o de a à ua doàoà olegiadoàa sol e .àáà o pet iaàdoàT i u alàdeàsegu daài sta iaà
seà esu eàe àape asà assa àoà e editoàdosàju ados,àaàfi àdeà ueàoàp o essoà olteàaoàT i u alà
doàщú iàpa aà ueàesteà ee a i eàoà itoàeà o fo eàoà asoàp ofi aà o aàde is oàouàe t oàaà
a te ha,à o fo eàaàsuaàso e a iaà эU),à .
Destaà a ei a,à o lui‐seà ueà asà de is esà o iu dasà doà Co selhoà deà “e te çaà s oà
e o e tasà po à u aà so e a iaà o stitu io al e teà ga a tida,à asà elati a,à sujeitaà aà
i posiç es,àtaisà o o,àoà e u soàdeàapelaç oàeà e is oà i i al.
499

áoàdeli ita àosàp i ípiosà ueàde e àesta àse p eàp ese tesà osàp o edi e tosàdoà
T i u alàPopula ,àoàlegislado ào igi ioàesta ele euàaà o pet iaà í i aàp e istaàpa aàosà
julga e tosàpelaài stituiç o,à ualàseja,àjulga àosà i esàdolososà o t aàaà ida,à o su adosàouà
te tados.àÉàaà ha adaà o pet iaàe à az oàdaà at ia,à ueà oà asoàdoàщú iàPopula ,à e à
esta ele idaà aàMag aàCa ta.à“egu doàN lso àрu g iaàapudàMa uesà ,àp.à :

C i esà dolososà o t aà aà idaà oà s o,à po ta to,à todosà a uelesà e à ueà o o aà oà


e e toà o te.à“eàestaài teg aàaàdes iç oàtípi aàdeàu à i e,à e àpo àissoàseàto aà
esteàu à i eàdolosoà o t aàaà ida.àPa aà ueàassi àsejaà ualifi ado,à à e ess iaàaà
e ist iaàdeàdoloàdi eto,àe à ueàaà o tadeài i ialàeàoàe e toàseà asa a ,à isa doà
a osàaà ida.

Destaàfo a,àosà i esàdolososà o t aàaà idaà ueà o pete àaoàT i u alàPopula àoà
julga e toàs oàosàp e istosà oà apítuloàIàdoàTítuloàIàdoàC digoàPe alà asilei o,àouàseja,àosà
delitosà ujoàщú iàpossuià o pet iaàpa aàjulga às oàosà oltadosàespe ifi a e teà o t aàaà idaà
eàs o:àoàho i ídio,àoài duzi e toàouài stigaç oàaoàsui ídio,àoài fa ti ídioàeàoàa o to.
Nesteàdiapas o,à aàdout i aàdeàэopesàщ à àte osà ueàaà o pet iaàdoàjú ià à
ta ati a,àouàseja,à oàad iteàa alogiasàouài te p etaç esàe te si as,ào deà oàse oàjulgadosà
i esà o oàlat o í io,àe to s oà edia teàse uest o,àestup oà edia teàse uest oààe à ueàseà
ep oduzàoà esultadoà o te,à asà ueà oàesteja ài se idosà osà i esà o t aàaà ida.à Noà asoà
dosàdelitosà ueàs oàag a adosàpelaào o iaàdoà esultadoà o te,ààaà o pet iaà oà àdoàT i u alà
doàщú i,à asàsi àdoàjuizàsi gula .àNelso àрu g iaàapudàMa uesà ,àp.à àafi a:

Nessesà asos,àoàe e toà o te àap ese ta‐seà o oàu àe essoàdeàfi ,à o oàu à


esultadoàal àdaài te ç oàouà o tadeàdoàage te,àeàoàfatoàtotal,àsu jeti a e te,à
oà à o side adoà o t aàaà ida,à asà o t aàoà e àju ídi oàe lusi a e teà isadoà
peloà i eà ueàoàage teàseàp opuse a.

Nota‐seà ueàestesà i esà oàpossue àoàfi àespe ífi oàdeàate ta à o t aàaà ida,à asà
possue ào jeti osàout osà ueà oàaà o teàdaà íti a,à o oàsu t ai àoàpat i ioàalheio.
De e‐seào se a à ueàaàp p iaàCo stituiç oàнede alàe ep io aàaà o aàdoàa tigoà
º,ài isoàXXXVIII,àalí eaàd,à ua doàt ataàdosà asosàdeàp e ogati aàdeàfo o,àouàseja,àe iste à
auto idadesà ele adasà aà Ca taà Mag aà ueà es oà ueà o eta à i esà dolososà o t aà aà
ida,àesta oàafastadosàdaà o pet iaàdoàT i u alàdoàщú i.
500

щ à aà hip teseà deà age teà o à di eitoà aà fo oà p i ilegiadoà e à o u soà o à out oà


age teà ueà de aà se à julgadoà pelaà justiçaà o u ,à oà p e ale eà aà o aà daà o ti ia,à
de e doàse àoàp o essoà i didoà Ná““Iн,à .
Dessaà fo a,à à i dispe s elà ueà seà essalte,à aisà u aà ez,à aà i po t iaà dosà
p i ípiosà o stitu io aisàele adosà aàCo stituiç oàнede alà ueà o teia àaài stituiç oàdoàщú ià
Popula ,àdadoà ueà aàp ti a,àaàapli aç oàdestesàpa et os,àga a teà ueàoàa usadoàdeàte à
p ati adoàu à i eàdolosoà o t aà idaàte àu àjulga e toàjustoàeài pa ialàp opi iadoàpo à
seusàpa es,àaoà es oàte poà ueàefeti a àoàdi eitoàdoà idad oàdeàpa ti ipa àdaàjustiçaàdeàseuà
país.

àCo side açõesàfi ais

Oàщú iàPopula àest à o sag ado,àhisto i a e te,à aàlegislaç oà asilei aà o oàdi eitoà
eàga a tiaàfu da e talàdoàho e ,àassegu a doàaàli e dadeà ueàoàa usadoàpossuiàeà ueàs à
pode à se à e eadaà o à oà de idoà p o essoà legal,à ouà seja,à oà julga e toàdoà uà pelosà seusà
pa es,à ueà de e oà julga à oà uà espeita doà osà p i ípiosà eg ado esà doà щú i,à a alisa doà oà
i eà doà po toà deà istaà daà so iedadeà aà ualà pe te e,à fi a doà oà e à ju ídi oà ioladoà
su etidoà di eta e teà à ap e iaç oà popula à e,à esteà se tido,à à ta à oà di eitoà
fu da e talàdoà idad oàdeàpa ti ipa àdaàjustiçaà aàso iedadeàe à ueà i e,àjulga doàu àdosà
delitosà aisà ep o elàdaàso iedade,àoà i eàdolosoà o t aàaà ida.
Noà es oàse tido,àdesta a‐seàaài po t iaàdosàp i ípiosà egulado esàdoàT i u alà
doàщú iàele adosà aàCo stituiç oàdoàB asil,à osàjulga e tosàdeà o pet iaàdoàщú iàPopula .à
Taisàp i ípiosàp o u a àga a ti àaoàa usado,àsu etidoàaoàjulga e toàpopula ,àu aàse te çaà
o etaà eà i pa ial,à e à o oà ga a ti à aoà idad oà i estidoà daà fu ç oà deà ju adoà ueà oà
sof e à ep es liasàouàp ess oàe te aàdu a teàoàe e í ioàdaàfu ç oàdeàjuizàleigo.
Cu p eàsalie ta à ueàaàp ete s oàdesteàestudoà oà àesgota àoàte a,àse doà ueà e à
aoà es o,àde idoàaoàseuàsi tetis o,ààade t ouàaàte asà o oà uitoàdi e ge tesà aàdout i aà
asilei a,à o oà oà asoàdoài àdu ioàp oàso ietate,àoàusoàdeàalge asà aài stituiç oàdoàT i u alà
doàщú iàeàout osàdispositi osà ueàaosàpou osà oàse doàsedi e tadosàta toà asàlegislaç esà
ua toà oàposi io a e toàdout i ioàeàju isp ude ial.
501

Po à fi ,à s oà osà p i ípiosà o stitu io aisà doà T i u alà doà щú i,à ueà seà e o t a à
solidifi adasà algu asà dasà aisà i po ta tesà a ifestaç esà dasà ga a tiasà dosà di eitosà
fu da e taisàdoàho e .àDestaàfo a,àoàйstadoàDe o ti oàdeàDi eitoàassegu aàaoà uàsuaà
ple aà defesa,à eà aosà pa es,à aà possi ilidadeà deà ealiza à u à julga e toà deà fo aà justa,à
o sag a doàeàefeti a doàaàp o oç oàdaàdig idadeàhu a a.

‘efe ias

Bá“TO“,àCelsoà‘i ei o.àCu soàdeàDi eitoàCo stitu io al.à ªàediç o.à“ oàPaulo:àйdito aà“a ai a,à
.

BUйNO,àн a is oàdaà“il ei a.àDi io ioàйs ola àdaàLí guaàPo tuguesa.à àed./à ªàti age .à‘ioà
deàщa ei o:àнáй,à

B‘á“Iэ.àCo stituiç oàнede al.àCódigoàPe al.àCódigoàdeàP o essoàPe al.àO ga izado :àN lso à
Pai àdeàá euàнilho.àPo toàáleg e,àVe oàщu ídi o,à .

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502

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503

A APLICAÇÃO DO DOLO EVENTUAL E DA CULPA CONSCIENTE NOS HOMICÍDIOS


DECORRENTES DE ACIDENTES DE TRÂNSITO MOTIVADOS POR EMBRIAGUEZ

Bianca Pivetta Nunes1


Luis Felipe Frassoni de Abreu2

Resumo: O presente trabalho objetiva trazer em pauta os institutos do dolo eventual e da


culpa consciente como parâmetros norteadores do poder punitivo estatal frente aos
homicídios de trânsito principalmente os motivados por embriaguez. Começando pela análise
do crime de homicídio de trânsito na lei 9.503/97 – código de trânsito brasileiro, pois a partir
dele e de sua previsão somente do homicídio culposo e chegando à seara da aplicação do dolo
eventual ou da culpa consciente nos delitos de trânsito. Trazendo uma abordagem sobre
homicídio doloso bem como homicídio culposo. Por fim desenvolveremos o tema com ênfase
no homicídio na direção de veículo causado por embriaguez. O atual estudo procura buscar
uma iminente resposta para a sociedade brasileira quando falamos da imputabilidade dolosa
ou não, do agente que deu causa ao acidente de trânsito com resultado morte.

Palavras-Chave: Código de Trânsito Brasileiro. Embriaguez ao volante. Crime de Homicídio.

1.Introdução

A desenfreada e sempre crescente indústria automobilística brasileira, que ao passar


dos dias produz e fabrica cada vez mais automóvel para atender a demanda da população, faz
com que aumente a inserção de veículos no trânsito, o que causa por si só e por óbvio, um
aumento da probabilidade de acidentes, motivados por inúmeros fatores, dentre eles a
embriaguez.
Em que pese à imprudência e imperícia dos motoristas, dentre as inúmeras mortes
oriundas do trânsito estão às causadas por motoristas embriagados, pois a cada dia que passa
percebemos um grande aumento nestes tipos de delitos. Frente a isso, o legislador
preocupado com essa crescente problemática, editou e criou leis severas, como, por exemplo,
a Lei 11.705/2008, a chamada Lei seca, entretanto, mesmo com o endurecimento do Estado
não é possível dizer que os acidentes diminuíram, pelo contrário, a cada dia que passa
percebe-se um acréscimo nas estatísticas oficiais.

1
Bacharel em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (2016). Pós-graduanda
(lato sensu) em Direito de família e das sucessões pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Advogada. E-mail:
biancapivettanunes@gmail.com.
2
Bacharel em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (2016). Advogado. E-
mail: felipe_abreu99@hotmail.com.
504

Hoje, fala-se em larga escala, que as mortes decorrentes de acidentes de trânsito


motivados por embriaguez ganhou status de epidemia, tamanho é a proporção anual desses
delitos. Assim, tem-se, que o tema em voga é de suma importância para a sociedade em geral,
comunidade jurídica e estudantes da área do Direito, é um assunto atual que permeia as
discussões mais recentes dos penalistas brasileiros.
O presente estudo procura buscar uma iminente resposta para a sociedade brasileira
quando falamos da imputabilidade dolosa ou não, do agente que deu causa ao acidente de
trânsito com resultado morte. A reprovação social que se insurge diante do elevado número
de homicídios no trânsito, faz com que se busque uma resposta concreta dos legisladores e
da comunidade jurídica a respeito desse tema. A insegurança jurídica existente nos tribunais
e na doutrina, com relação aos delitos de homicídios em decorrência dos acidentes de
trânsito, se dá por não existir, hoje, uma posição concreta dentro do direito brasileiro, acerca
da aplicação do dolo eventual e da culpa consciente.
Assim, quando se fala em homicídio causado na direção de veículos automotores,
insurge buscar uma linha de aplicação da norma que satisfaça o anseio da sociedade, pautada
pela regularidade e constância das decisões judiciais, eis que, atualmente, presente está uma
diversificada linha de aplicação de um ou outro instituto. Criou-se então, uma verdadeira
loteria jurídica quando se enfrenta essas situações, pois a cada momento presenciam-se
decisões antagônicas, imprecisas, e recheadas de insegurança jurídica, mormente então, a
necessidade de se chegar a uma ideia clara e objetiva da melhor aplicação do direito frente
ao emprego do dolo eventual e da culpa em sentido estrito na modalidade culpa consciente.
No desenvolvimento foi realizado um estudo dentro da doutrina sobre a aplicação do
dolo eventual e da culpa consciente dentro dos homicídios decorrentes de acidentes de
trânsito, principalmente os motivados por embriaguez, onde foi desempenhada uma
abordagem sobre o homicídio propriamente dito, e posteriormente o estudo sobre o
homicídio doloso e culposo, seguindo-se pela análise do Código de Trânsito Brasileiro e a
tipificação prevista somente do homicídio culposo e chegando à seara da aplicação do dolo
eventual ou da culpa consciente nos delitos de trânsito.
505

2 DA APLICAÇÃO DO DOLO EVENTUAL E DA CULPA CONSCIENTE NOS HOMICÍDIOS DE


TRÂNSITO, DENTRE ELES OS MOTIVADOS POR EMBRIAGUEZ

Conforme se verá a seguir, a aplicação do dolo eventual ou da culpa consciente nos


homicídios de trânsito, principalmente nos causados pela embriaguez ao volante tem gerado
enorme divergência doutrinária e jurisprudencial, pois não há até o momento uma linha
equânime de julgados que possam trazer segurança para a comunidade jurídica.
A problemática no que concerne a aplicação do dolo ou da culpa nesses tipos de crime
é muito mais complexa do que parece, pois exige do julgador uma sensibilidade muito
o ple a,à ouà seja,à te àeleà ueà ade t a à aà psi ue à doà age teàeà defi i à oà se tidoàdaà suaà
vontade, para só então definir se aplicará um ou outro instituto.

2.1 O crime de homicídio de trânsito na Lei 9.503/97 – Código de Trânsito Brasileiro

P eli i a e te,à u p eàfaze àu aàa liseàdoà i eàdeàho i ídio,àoà ualàseà o stituià


u à i eà o t aàaà idaàe,àpu idoàdesdeà po asà aisà e otas.àátual e teàaàtipifi aç oàdoà
ho i ídioàe o t aàp e is oàe à ossoào de a e toàju ídi oà oàa t.à ,àdoàC digoàPe al.àáà
o dutaàtípi aà doà ho i ídioà seà o su sta iaà aà o dutaàdolosaàouà oàdeà ata à algu ,à
pode doàse àp ati adoà aàfo aàdolosa,àse doàho i ídioàp i ilegiadoàouà ualifi ado,àouàai daà
aàfo aà ulposa.
N oà o sta teà suaà p e is oà oà C digoà Pe al,à oà ho i ídioà ta à est à p e istoà aà
legislaç oà i ia,àp i ipal e teàpelosàaltosàí di esàdeà iol iaà oàt sitoàeàoàg a deà ú e oà
deà o duto esài f ato es.àássi ,àoàlegislado àt atouàdeài t oduzi àessaà o dutaà oàC digoàdeà
T sitoàB asilei o,àoà ualàpassouàta àaàdis ipli ‐lo,àpo àape asà aàsuaàfo aà ulposa,à
apli a do,àsa ç oà aisàg a osaàseàaà o dutaàfo àp ati adaàe àde o iaàdeàe iaguez,àpo à
e e plo.
Naàli haàdeà o p ee s oàdosà i esàdefi idosà oàC digoàdeàT sitoàB asilei oà ,à
e àli hasàge ais,àest oà o tidosà aàpa teà ueà uidaàespe ifi a e teàdaàtipifi aç oàdeà i esà
deàt sito,àoà ualà o eçaàdeà odoàge i oàaàpa ti àdoàa t.à ,àseàeste de doàaosà i esà
e àesp ieàdoàa t.à àe,ài doàat àoàa t.à .
йspe ifi a e te,à oà a tigoà ,à § ºà eà ºà doà efe idoà C digoà t azà aà tipifi aç oà pa aà oà
ho i ídioà ulposoà aàdi eç oàdeà eí uloàauto oto ,à o àaàsegui teà edaç o:
á t.à .àP ati a àho i ídioà ulposoà aàdi eç oàdeà eí uloàauto oto :
Pe asà ‐à dete ç o,à deà doisà aà uat oà a os,à eà suspe s oà ouà p oi iç oà deà seà o te à aà
506

pe iss oàouàaàha ilitaç oàpa aàdi igi à eí uloàauto oto .


§ oNoà ho i ídioà ulposoà o etidoà aà di eç oà deà eí uloà auto oto ,à aà pe aà à
au e tadaàdeà / à u àte ço à à etade,àseàoàage te:àIà‐à oàpossui àPe iss oàpa aà
Di igi àouàCa tei aàdeàрa ilitaç o;àIIà‐àp ati ‐loàe àfai aàdeàpedest esàouà aà alçada;à
IIIà‐àdei a àdeàp esta àso o o,à ua doàpossí elàfaz ‐loàse à is oàpessoal,à à íti aàdoà
a ide te;àIVà‐à oàe e í ioàdeàsuaàp ofiss oàouàati idade,àesti e à o duzi doà eí uloà
deàt a spo teàdeàpassagei os.
§ ºà“eàoàage teà o duzà eí uloàauto oto à o à apa idadeàpsi o oto aàalte adaàe à
az oà daà i flu iaà deà l oolà ouà deà out aà su st iaà psi oati aà ueà dete i eà
depe d iaàouàpa ti ipa,àe à ia,àdeà o ida,àdisputaàouà o petiç oàauto o ilísti aà
ouàai daàdeàe i iç oàouàde o st aç oàdeàpe í iaàe à a o aàdeà eí uloàauto oto ,à
oàauto izadaàpelaàauto idadeà o pete te:
Pe asà‐à e lus o,àdeà à dois àaà à uat o àa os,àeàsuspe s oàouàp oi iç oàdeàseào te à
aàpe iss oàouàaàha ilitaç oàpa aàdi igi à eí uloàauto oto à.

áàatualàlegislaç oàdeàt sitoàad iteàso e teàaàfo aà ulposaàdeàho i ídio,à o fo eà


seà e ifi aà peloà atualàdiplo aà legal,à o tudo,à o oà e e osà adia te,à ossosà T i u aisà te à
ad itidoà o i uei a e teà aà possi ilidadeà deà apli aç oà doà doloà e e tualà estesà tiposà deà
ilí itos,àe t eta to,àtalàpossi ilidadeà àad itidaà a al e teàse àle a àe à o taà it iosàpa aà
aà suaà apli aç o,à ausa doà i segu a çaà ju ídi aà e,à oà o sta te,à pe asà aisà se e asà aoà
i putado.

. Do homicídio doloso

O homicídio em suas formas admite tanto a modalidade dolosa quanto a forma


culposa. Para DE JESUS, DAMÁSIO,à 2012. p.65 . A presença do homicídio doloso
consubstancia-se em:

Oàdolo,à o oà i os,à àaà o tadeàdeà o etiza àasà a a te ísti asào jeti asàdoàtipo.à
Noàho i ídio,à àaà o tadeàdeà o etiza àoàfatoàdeà ata àalgu .àN oà àaàsi plesà
ep ese taç oàdoà esultadoà o teà ueà o stituiàsi plesàa o te i e toàpsi ol gi o.à
й igeà ep ese taç oàeà o tade,àse doà ueàestaàp essup eàa uela,àpoisàoà ue e à oà
seà o i e taàse àaà ep ese taç oàdoà ueàseàdeseja.àOàCPà asilei oàadotouàaàteo iaà
daà o tade,àpoisàoàa t.à ,àI,àdete i a:à Diz‐seàoà i eàdoloso,à ua doàoàage teà uisà
oà esultadoàouàassu iuàoà is oàdeàp oduzi‐lo .àássi ,à oà astaàaà ep ese taç oàdaà
o te,àe igi do‐seà o tadeàdeàp ati a àaà o dutaàeàdeàp oduzi àaà o teà ouàassu i à
oà is oàdeàp oduzi‐la .à

Co fo eàseào se a,àoàho i ídioàdolosoà àoà ue e àdoàage te,àaà o tadeàdaàp oduç oà


deàu à esultado,à àaàe p ess oà o po alàdoàage teà o ài tuitoàdeàp oduzi àu à esultado,à oà
507

aso,à ata à algu .à Pa aà MI‘áBйTй,à щÚэIOà нáBB‘INI,à .à p. à oà ho i ídioà dolosoà


o eitua‐seàe :

Oàdoloàdoàho i ídioà àaà o tadeà o s ie teàdeàeli i a àu aà idaàhu a a,àouàseja,à


deà ata à a i usà e a diàouào ide di ,à oà seà e igi doà e hu àfi àespe ial.àáà
fi alidadeàouà oti oàdete i a teàdoà i eàpode,àe e tual e te,à o stitui àu aà
ualifi ado aà oti oà fútilà ouà to peà et . à ouà u aà ausaà deà di i uiç oà deà pe aà
ele a teà alo à o alàouàso ialàet .

V ‐seà ue,à oà doloà oà ho i ídioà seà a a te izaà pelaà o tadeà li eà eà o s ie teà deà
eli i a àu aà idaàhu a a,àoà ueà oàseàe igeà ual ue àfo aàpa aàisso,àoàho i ídioàpossuià
fo aàli eàdeàaç o.àDestaàfo a,àdoloàde otaàf aude,àu aà àf ,àu àagi àei adoàdeà o tadeà
delituosa.àÉàu àatoà ealizadoà o s ie te e te,àu aà o tadeàdi igidaàaàu àfi àespe ialàdeà
o te ç oàdeàu à esultadoà i i oso,àouàoà is oàdeàp oduzi‐lo.
‘ealiza à u aà o dutaà o à doloà sig ifi aà dize à ueà oà age teà possuià aà i te ç oà deà
o te ç oàdeàu àdete i adoà esultadoà o àu àfi àu i a e teà i i oso,àouàseja,àpossuiàaà
o tadeàdeà ausa àu à alà ueàseà ate ializaàpeloàagi àdelituoso.àщ àpa aà BITйNCOU‘T,àCй)á‘à
‘OBй‘TO,à .àp.à àoàtipoàsu jeti oàdoàho i ídioà :
Éà po à eioà daà a liseà doà a i usà age dià ueà seà o segueà ide tifi a à eà ualifi a à aà
ati idadeà o po ta e talà doà age te.à “o e teà o he e doà eà ide tifi a doà aà i te ç oà –à
o tadeàeà o s i iaà–àdesteàpode à lassifi a àu à o po ta e toà o oàtípi o.

Oàele e toàsu jeti oà ueà o p eàaàest utu aàdoàtipoàpe alàdoà i eàdeàho i ídioà
à oà dolo,à ueà podeà se à di etoà ouà e e tual.à “egu doà aà defi iç oà doà ossoà C digoà
Pe al,àoà i eà àdolosoà ua doàoàage teà uisàoà esultadoàouàassu iuàoà is oàdeà
p oduzi‐lo à a t.à ,àI .àйssaàp e is oàe uipa aàoàdoloàdi etoàeàdoloàe e tualà[...]àPelaà
suaàdefi iç o,à o stata‐seà ueàoàdoloà à o stituídoàpo àdoisàele e tos:àu à og iti o,à
ueà à oà o he i e toà doà fatoà o stituti oà daà aç oà típi a,à eà u à oliti o,à ueà à aà
o tadeàdeà ealiz ‐la.

Pe e e‐seà ueàosàele e tosàp i o diaisàpa aàaà a a te izaç oàdoàho i ídioàdolosoà à


aà o stataç oàdosàele e tosà og iti oàeà oliti o,àouàseja,à o he i e toàdoàfatoà ueà o stituià
oàtipoàpe alàeàaà o tadeàdeà ealiza àaà o duta.

. àDo homicídio culposo

Co oàseào se aàpelaàleitu aàdoàa tigoà ,àII,àdoàC digoàPe alà diz‐seàoà i eà ulposo,à


508

ua doàoàage teàdeuà ausaàaoà esultadoàpo ài p ud ia,à eglig iaàouài pe í ia .àDesseà


odo,àosàele e tosà a a te izado esàdaàp ese çaàdeà ulpa,às oàdete i adosàpelaàp ese çaà
dessesà eios.àNo a e teàf e teàaoàe si a e toàdeà BITйNCOU‘T,àCй)á‘à‘OBй‘TO,à .àp.à
àoà ualà elataà ueàasàlegislaç esà o te po easàadota àoàp i ípioàdaàe ep io alidadeà
doà i eà ulposo:

ásàlegislaç esà ode asàadota àoàp i ípioàdaàe ep io alidadeàdoà i eà ulposo,à


istoà ,àaà eg aà àaàdeà ueàasài f aç esàpe aisàseja ài putadasàaàtítuloàdeàdolo,àeàs à
e ep io alidadeàaàtítuloàdeà ulpaàe,à esseà aso,à ua doàe p essa e teàp e istaàaà
odalidadeà ulposaà daà figu aà delituosaà a t.à ,à pa g afoà ú i o .à Co à aà si plesà
a liseàdaà o aàpe alài i i ado aà o tata‐seàesseàfe e o:à ua doàoàC digoà
ad iteàaà odalidadeà ulposaàaà odalidadeà ulposa,àh à efe iaàe p essaà àfigu aà
ulposa;à ua doà oàaàad ite,àsile iaàaà espeitoàdaà ulpa.àPo àisso,à ua doàoàsujeitoà
p ati aàoàfatoà ulposa e teàeàaàfigu aàtípi aà oàad iteàaàfo aà ulposa,à oà à i e.à

й à eg a,àdeàa o doà o àaàlegislaç oàpe alà asilei a,àoà i eàse àtipifi adoà oà odoà
doloso,à e ep io a do‐se,à po ,à ua doà oà age teà p oduzà oà esultadoà po à eglig ia,à
i p ud iaàouài pe í ia.àNasàPala asàdeà й“TйнáM,àáND‘É,à ,àp.à :

áà ulpaàéàele e toà o ati oàdaà o dutaà oàfatoàtípi oàdeà i esà ulposos.à[...]àOsà


tiposàpe aisàdosà i esà ulposos,à aà uaseàtotalidade,às oàtiposàpe aisàa e tosà oà
legislado à oàdefi eàe àdetalhesàaà o dutaàpe al e teàtípi a,àape asàafi aà ueà
ha e ́à i eàseàdete i adoà esultadoàfo àp oduzidoàaàtituloàdeà ulpa .àй́àjusta e teà
oà ueào o eà o àoàho i ídio.àй o aàoàtipoàe fatizeàoà esultado,àissoà oàsig ifi aà
ueà suaà p oduç oà sejaà sufi ie teà pa aà ueà hajaà delito.à Oà fu da e talà oà i eà
ulposoà oàéàaà e aàp o o aç oàdoà esultado,à asàaà a ei aà o oàeleào o eu,àistoà
é,àseàoà esultadoàde i ouàdeài p ud ia,à eglig iaàouài pe í iaà a t.à ,àII,àdoàCP à
.

Pe e e‐seà aà o ie taç oà a i aà ue,à pa aà aà a a te izaç oà doà i eà ulposoà à


e ess ioà apu a à o à p e is oà seà oà esultadoà o o euà pelaà p ese çaà deà i p ud ia,à
eglig iaàouài pe í ia,àele e tosài dispe s eisà aàafe iç oàdaà ulpa.à“o eàoàestudoàdaà
ulpa,àp e eituaà CáPй),àнй‘NáNDO,à ,àp.à :

“a e osà ueàoàfatoàtípi oàéà o stituídoàdosàsegui tesàele e tos:à o dutaàdolosaàouà


ulposa;à esultado;à e oà ausal;à tipi idade.à Oà doloà eà aà ulpaà s oà osà ele e tosà
su jeti osàdaà o duta.àPa aàoàDi eitoàPe alàso e teài po ta àasà o dutasàhu a asà
i pulsio adasàpelaà o tade,àouàseja,àasàaç esàdotadasàdeàu àfi .àNaà o dutaàdolosa,à
háà u aàaç oàouào iss oà olu t iaàdi igidaàaàu aàfi alidadeàilí ita;à elaàoàage teà
ue àouàassu eàoà is oàdaàp oduç oàdoàe e toà i i oso.àNaà o dutaà ulposa,àháà
u aàaç oà olu t iaàdi igidaàaàu aàfi alidadeàlí ita,à as,àpelaà ue aàdoàde e àdeà
uidadoàaàtodosàe igidos,àso e àu à esultadoàilí itoà oà ue ido,à ujoà is oà e à
se ue àfoiàassu ido.
509

Qua doà seà estudaà u aà o dutaà dete i adaà pelaà ulpa,à o oà seà à pelosà
e si a e tosàe t aídosàa i a,àpe e e‐seà ueàaàp ese çaàdaà ulpaàest àligadaàaàu aàaç oà
e i e te e teà o à u à fi à lí ito,à e t eta to,à ua doà aà u aà ue aà doà de e à deà uidadoà
pelaà o stataç oà daà p ese çaà deà eglig ia,à i p ud iaà eà i pe í ia,à te e osà o oà
o se u iaàu à esultadoà ueà es oàilí ito,à oàfoiàal ejadoàpeloàage teà ueà e à es oà
oà ue iaàeà uitoà e osàassu iuà o oàpossi ilidade.à‘efe eà CáPй),àнй‘NáNDOà ,àp.à :

Pa aà e àilust a osàaàhip teseà ite osàoàe e ploà aisà otidia o:àu ài di íduoà aà
di eç oàdeàseuàauto elài p i eà aio à elo idadeàpa aà hega à aisà pidoàaoàseuà
t a alho.àVe ifi a‐seàa uià ueàháàu aàaç oàdi igidaàaàu aàfi alidadeàlí ita,à ualàseja,à
hega à aisà dep essaà aoà t a alho;à o tudo,à po à esta à i p i i doà elo idadeà
e essi aà e à seuà auto el,à oà o segueà f eá‐loà aà te poà deà i pedi à oà
at opela e toà deà u à t a seu te.à Veja‐seà ueà oà esultadoà at opela e to à oà
oi idiuà o à aà fi alidadeà i i ialà doà age te,à ueà e aà lí itaà hega à aisà pidoà aoà
t a alho .

ái daà oà e a eà daà ulpa,à CáPй),à нй‘NáNDOà ,à p.à à aà dife e iaà deà doloà daà
segui teàfo a:
Pe e a‐seàaàdife e çaàe t eàaà ulpaàeàoàdolo.àNesteàoài di íduoà ue àouàassu eàoà
is oàdeàu à esultadoàilí ito.àй à o t apa tida,à aà ulpa,àoàage teà oà ue àja aisà
o etiza à oà esultadoà ilí ito,à e à es oà assu eà oà is o;à esteà aà ealidadeà
so e àpo àu aà ue aàdoàde e àdeà uidado.àCite osàta àout oàe e ploà
uitoà o u :à di oà ueà ealizaài te e ç oà i ú gi aàe àseuàpa ie teàse à ealiza à
osà e a esà e ess iosà à à e ifi aç oà daà possi ilidadeà dessaà i te e ç o,à i doà oà
pa ie teàaà o e .àPe e a‐seà ue,àdaà es aàfo a,à esteàe e ploàaàfi alidadeàdoà
age teàéàlí ita,à ualàseja,à u a àoàpa ie teàat a sàdeàu aài te e ç oà i ú gi a,à as,à
po àseào iti à aà autelaà e ess iaà ue aàdoàde e ào jeti oàdeà uidadoàat a sàdeà
u aà o dutaài pe ita ,à ualàseja,à oàte à ealizadoàp e ia e teàosàe a es,àad eioà
u à esultadoàilí ito,àe àdesa o doà o àaàsuaàfi alidadeài i ial.

‘essalta‐seà po à fi à ue,à pa aà aà i putaç oà doà i eà ulposoà faz‐seà e ess ioà à


p e isi ilidadeàdoà esultado,àpoisàaà ue aàdesseà alo àdeà uidadoàpo àu aàdasà odalidadesà
j à itadasàdeà ulpaà a a te iza àaàp ese çaàdoàdelitoà ulposo.

. àDoàho i ídioà aàdi eç oàdeà eí uloà ausadoàpo àe iaguez

áà O ga izaç oà Mu dialà deà “aúdeà e à à MINI“TÉ‘IOà Dáà “áÚDй,à à di ulgouà


dadosàdeà ueà ap o i ada e teà , à ilh oà deàse esà hu a osà o e a à eà de o iaà doà
t au aà oàt sito.à‘ep ese ta doàu aà diaàdeà . à o tesàpo àdia.àйsti ati asà ost a à
ueà e t eà à eà à ilh esà deà pessoasà sae à fe idasà ouà o à se uelasà i e e sí eis.à йssesà
510

ú e osà eflete à so e teà osà e ol idosà di eta e teà osà e e tosà oà t sito,à seà fo e à
a aliadosàosài pa tosài di etosà o o,ài di íduosà ue,àdeà a ei aài di eta,àap o i a ‐seàdoà
p o le aà fa ilia es,àpoli iais,àso o istas,àet . à–àosà ú e osàto a ‐seàepid i os.
Oà“iste aàdeàI fo aç oà“o eàMo talidade,àe àseuà elat ioàdeà àapo touà ueà
. à idasà s oà pe didasà oà t sitoà doà B asil,à ú e osà deà íti asà fataisà oà lo al,à asà
so adasàasà o tesàdu a teàoà esgateàeà osàhospitaisàoà ú e oàpassaàdeà . à itos.àOsà
e e tosà deà t au aà ela io adosà aoà t sitoà ep ese ta à aà segu daà aio à ausaà deà
o talidadeàeàaàse taàdeài te aç esàhospitala es.à
ái da,à efe eàoàdo u e toà ueàessesà ú e osàs oàde astado es,àse doà ueàpode à
ai daàse e à e à aio es,àj à ueà uitosàa ide tesàse à íti asàfataisà ueào o e à oài te io ,à
e àest adasà i i aisà o àt au asà e o es,à uitasà ezesà e à hega àaàse à otifi ados.
“a e‐seà ueà uitoàdosàa ide tesàpode ia àse àe itadosàseàhou esseàu aà aio àeà aisà
ígidaàfis alizaç oàpo àpa teàdosàpoli iaisàeàta àseàasàest adasàdeàtodoàoàpaísàesti esse à
e à o diç esàaptasàaoàt fego,àoà ueà e àse p eà àpossí el,àassi à o oàseàaàedu aç oà oà
t sitoàfosseà aisàefeti a.à“o a‐seàaàestaà ealidadeàoàh itoàdeàdi igi àal oolizadoàdeà uitosà
oto istas,à ueà es oà o à oà igo à daà эeià deà tole iaà ze oà eà ultasà altas,à o ti ua à
di igi doàeà ata doàpeloàpaís.
Oàdo u e toàdoàDe at a àdeà à o àu aàP opostaàpa aàoàB asilàpa aà eduç oàdeà
a ide tesàeàsegu a çaà i iaàapo ta à ue:

[...]à o side a doà oà o e toà políti oà fa o elà e à ueà out osà à paísesà seà
p op e àaàto a àu aàatitudeàpa aàaà e e s oàdaà iol iaà oàt sitoà oà u do,à à
e ess io,à oà B asil,à e f e ta à o à o age à aà ultu aà daà i pu idade,à daà ualà
pa ti ipa à idad osà eà est utu asà i pu es,à o oà osà i f ato esà o tu azes,à
e tidadesà ueàde e ia àe si a àe,àaoà o t io,ài e ti a àaàp ti aàdeàilegalidadesà
eàf audes,à g osà ueàde e ia àfis aliza àeà oàfis aliza ,àpaisàeà espo s eisàpo à
fa íliasà ueài e ti a àseusàfilhosà aàp ti aàdeà us a àfa ilidades,àe à ezàdeàe si ‐
losàaàpe o e à a i hosà ti osà[...].à3

Osà a ide tesà deà t sitoà est oà e t eà asà p i ipaisà ausasà deà itoà oà B asil,à
e ide ia doàu àg a eàp o le aàdeàsaúdeàpú li a,à oàs àpelasàpe dasàdeà idaàeàse uelasà
esulta tes,à al à dosà ustosà di etosà eà i di etos,à ueà ausa à u à i po ta teà usà pa aà aà

3
DENATRAN. Década de ação pela segurança no trânsito – 2011-2020. Resolução ONU nº 2, de 2009 - Proposta
para o Brasil para redução de acidentes e segurança viária. Disponível em:
<http://www.denatran.gov.br/download/decada/Proposta%20ANTP-CEDATT-
Instituto%20de%20Engenharia%20SP.pdf>. Acesso em: 21 set. 2015.p. 04.
511

so iedade.à йà possue à u à ag a a teà ua doà estesà a ide tesà s oà ausadosà po à oto istasà
e iagados.
Oàho i ídioà ausadoàpo àe iaguezà aà o duç oàdeà eí uloàauto oto àest àp e istoà
oàa tigoà ,à§à ºàdoàC digoàdeàT sitoàB asilei oà ,àoà ualàdete i aàu aàpe aàdeà
e lus oàdeà à dois àaà à uat o àa os,àpode doàai daàse àdete i adoàpeloàjuizàaàpe daàdaà
Ca tei aàdeàрa ilitaç oàeàdoàdi eitoàdeào te àaààpe iss oàouàha ilitaç oàpa aàdi igi à eí uloà.

Osà i esà deà t sitoà s oà uaseà se p eà t atadosà o oà fatalidadesà ua do,à aà


aio iaà dasà ezes,à s oà f utosà deà o iss esà est utu aisà ua toà sà o diç esà dasà
est adasà eà iasà pú li as,à sà o diç esà dosà eí ulos,à à fis alizaç o,à sà i pe í ias,à
i p ud iasà eà eglig iasà dosà usu iosà –à oto istasà ouà pedest es.à Todosà osà
estudiososàdaà iol iaà oàt sito,à oà asoà asilei o,à e o he e à ueàosà i esà oà
siste aà i io,à aà uaseàsuaàtotalidade,à oà espo sa iliza àosàt a sg esso esàeà e à
o o e àaàopi i oàpú li a,à o oà àoà asoàdeàout osàtiposàdeàdeli u ia.

‘йICрйNрйIM,à M.à й,à à elataà ueà e à ,à osà itosà ela io adosà aoà t sitoà
ep ese ta a à uaseà %àdeàtodosàosà itosàpo à ausasàe te asà oàB asil.àáàta aà asilei aà
e t eàosà a osàdeà àeà à , à po à . à ha ita tesàpo àa o à e aà supe io à à diaà
u dial.àáàpa ti àdeà à o eçouàaào o e àu àde lí ioàeàasàta asàpe a e e a àe àto oà
deà àpo à . .àáàposiç oàdoàB asilàpe a e euàp i aà à diaàdaàá i aàэati aàeàdoà
Ca i eà , à po à . ,à asà ai daà a i aà deà algu sà países,à o oà á ge ti aà , à po à
. à eà Chileà , à po à . ,à e o aà a ai oà deà out os,à o oà йlà “al ado à , à po à
. .àPa aàesseàauto ,àoàde lí ioàdeàap o i ada e teà %àpodeàse àat i uídoàe àpa teà
aoàC digoàNa io alàdeàT sito,àdeà ,à ueài luià oàape asàoà u p i e toàest itoàdoàusoà
doà i toà deà segu a çaà eà asà leisà efe e tesà aoà o su oà deà l ool,à o oà ta àp e à
pe alidadesàg a esàpa aàosà oto istasài f ato es.4

. à Daà apli aç oà doà doloà e e tualà eà daà ulpaà o s ie teà osà ho i ídiosà de o e tesà deà
e iaguez

á tesàdeàade t a osà aàa liseàdaài id iaàdoàdoloàe e tualàeàdaà ulpaà o s ie teà

4
REICHENHEIM, M. E.; SOUZA, E. R. de; MORAES, C. L.; JORGE, M. H. P. de M.; Jorge, SILVA, C. M. F. P. da;
MINAYO, M. C. de S. Violência e lesões no Brasil: efeitos, avanços alcançados e desafios futuros. Saúde no Brasil
5. Publicado Online em 9 de maio de 2011. Disponível em:
<http://download.thelancet.com/flatcontentassets/pdfs/brazil/brazilpor5.pdf>. Acesso em 17 set. 2015.
512

osàho i ídiosàdeàt sito,à e ess ioàseàfaze àaàdisti ç oàdaàapli aç oàdoàC digoàdeàT sitoà
B asilei oàouàdoàC digoàPe alàB asilei oà estesàtiposàdeàdelito,àdestaàfo a,à й“TйнáM,àáND‘É,à
,àp. àfazàu aàdife e iaç oà ueà e e eàse àestudada:à

I agi e,àe t o,à ueàu à e i o,àdu a teàoà o se toàdeàu àauto el,à oài te io à
deà u aà ofi i a,à oà a io eà a ide tal e te,à p o o a doà aà o teà deà seuà olegaà deà
t a alho.àрáà ho i ídioà ulposoà o u à CP,àa t.à ,à§à º àouàdeàt sitoà CTB,àa t.à
?àáà espostaàe o t a‐seà oàa t.à ºàdoàC digoàdeàT sito,àoà ualàdefi eàoà itoà
deà apli aç oà doà efe idoà diplo aà Oà t sitoà deà ual ue à atu ezaà asà iasà
te est esàdoàte it ioà a io al,àa e tasàà à i ulaç o,à ege‐seàpo à esteà C digo à —à
aput;à Co side a‐seàt sitoàaàutilizaç oàdasà iasàpo àpessoas,à eí ulosàeàa i ais,à
isoladosàouàe àg upos,à o duzidosàouà o,àpa aàfi sàdeà i ulaç o,àpa ada,àesta io a‐à
e toàeàope aç oàdeà a gaàouàdes a ga à—à§à º .àNoàe e ploàfo ulado,àpa aà ueà
oà esteàdú idaàalgu a,àoàfatoàseàsu so eàaoàC digoàPe al,à istoà ueà oà o etidoà
du a teàaà i ulaç oàdoàauto elàpelasà iasàte est esàa e tasàà à i ulaç o.à

‘estaà la oà ue,à aà apli aç oà doà C digoà deà T sitoà B asilei oà seà da à se p eà ueà oà
i di iduoà o etaàalgu àilí itoà aàdi eç oàdeà eí uloàauto oto à oà itoàdasà iasàte est es.
Deà a ei aàge al,àosàa ide tesàdeàt sitoà ueàseàtipifi a à o oà i esàdeàho i ídioà
possue àu aà o dutaà ulposaàdoàage te,àsejaà o s ie teàouài o s ie te,àe t eta to,àpode à
se à e o he idosàaà odalidadeàdoàdoloàe e tualà estesàtiposàdeàdelitos,àdesdeà ueàhajaàu à
e a eà ap ofu dadoà doà asoà o à aà pe epç oà su jeti aà daà o tadeà doà age te.à йsseà
e te di e toàte àge adoàe o eà epe uss oà oà itoàdout i ioàeàju isp ude ial,àissoà
po ue,àpa aà uitos,àoà i eàdeàt sitoàde eàse àt atadoàu i a e teàpo àlegislaç oàespe ialà
eà oàpeloàC digoàPe al.à
áde ais,à ua doàfala osà aàapli aç oàdoàdoloàe e tualàesta osàpo àafi a à ueàoà
age teà ueài ge iuà l oolàouà ual ue àout aàsu st iaàa loga,àassu eàoà is oàdaàp oduç oà
doà esultadoà o teàe àout aàpessoa,àa o te eà ue,àta àoàage teàesta à olo a doàe à
is oàaàp p iaà ida.àássi ,àseàest àp ese teà à o s i iaàeàa u iaàe p essaàdoà esultadoà
o te,àesta osàpo àa alisa àu aàte tati aàdeàsui ídio,àde idoà àa eitaç oàeàp e isi ilidadeàdoà
e e toà o teàpa aàoàp p ioà ausado .
Éà po à issoà ue,à aà a liseà daà apli aç oà doà doloà e e tualà eà daà ulpaà o s ie teà osà
ho i ídiosàdeàt sito,àp i ipal e teàosàde o e tesàdeàe iaguezàaoà ola te,àdepe de à
doàestudoàdeà adaà aso,àpoisàaàapli aç oàdeàu àouàdeàout oài stituto,àt a àaoài putadoàu aà
dife e çaà uitoàg a deà oà ueà o e eàaà ua tifi aç oàdaàpe a,àeisà ue,àseàfo à e o he idaà
aà odalidadeàdaà ulpaà o s ie te,ài idi àoàage teà asàsa ç esàp e istasà oàa tigoà àdoà
513

C digoà deà T sitoà B asilei o,à ueà p e à so e teà aà odalidadeà ulposa.à й t eta to,à seà fo à
e o he idaàoàdoloà aà o dutaàdoàage te,à espo de àeleàpelaà o i aç oàlegalà o tidaà oà
a tigoà ,àI,ài àfi i,àdoàCP,àouàseja,àho i ídioàdolosoà aà odalidadeàdoloàe e tual.5
ássi ,à aà a liseà daà o dutaà doà age teà de eà se à i u iosa,à eà à i p es i dí elà
esta ele e àu àestudoàdeà adaà asoà o eto,àpo ueàoàe p egoàdeà ual ue àu aàdasàteo iasà
e seja àaoài putadoàu aàsa ç o,àassi ,àaàapli aç oàp e ipitadaàeàe eaàdeà ual ue àu aà
delasà ausa à i justiçaà aà de is o,à o t a ia doà u à dosà p i ípiosà o teado esà doà Di eitoà
Pe alà ode o,à ualàsejaàoàdaàp opo io alidade.
NestaàBa da,àso eàoàestudoàdaàapli aç oàdoàdoloàe e tualàeàdaà ulpaà o s ie teà osà
ho i ídiosà de o e tesà deà e iaguez,à algu sà dout i ado esà t à opi adoà oà se tidoà deà
ha e àaàpossi ilidadeàdeàapli aç oàdoàdoloàe e tual,àassi à o oàp e eituaà MI‘áBйTй,àщUэIOà
нáBB‘INIàйàнáBB‘INI,à‘йNáTOàN.à ,àp. :

áào o iaàdeà o teà oàt sitoàpodeà o stitui àho i ídioà o àdoloàe e tual.àáà
ju isp ud iaà te à a eitadoà essaà teseà ua doà seà e ifi aà ue:à oà age teà esta aà
total e teà al oolizado;à esta aà so à i flu iaà al o li a,à di igi doà e à elo idadeà
i ade uadaàeà aà o t a oàdeàdi eç oà[...].

áàa liseàdosàele e tosà ueàdisti gue àaàapli aç oàdeàu àouàout o,à e ue àpo àpa teà
doàjulgado àdoà aso,àu àdetalhadoàe a eàdasàpe epç esàeàdosà oti osà ueàagi a àso eàaà
psi ueàdoàage te,àoà ueà o duzàoàjuizàaàu aàdetalhadaàa e iguaç oàdosà aisàp ofu dosàpo tosà
daà e teàhu a a.àйssaàdifi uldadeàdeàpe epç oàso eàaà o tadeài te aàdoàage teàfazà o à
ue,àe à uitosà asos,àsejaàdeàfatoàapli adaà à ulpa,àse doàoà ueàp e àoàC digoàdeàT sitoà
B asilei oà oàseuàa t.à ,àoà ualàt azàso e teàaà odalidadeàdoàho i ídioà ulposo,àdei a doà
aàapli aç oàdoàdoloàpa aàosàjulgado es.
á edita‐seà ueà aà i su g iaà pelaà apli aç oà doà doloà e e tualà estejaà fo te e teà
at eladaàaosàapelosàdaàso iedade,àpoisà astaàa i osàosàjo ais,àouàat à es oàsai osà sà
uasàpa aà ota àoà es e teàau e toàdestesàtiposàdeàdelitos.àOàg a deà ú e oàdeà eí ulosà asà
uasà eà aà f e u iaà o à ueà essesà i esà a o te e ,à pote ializadosà pelaà g a idadeà eà
eifa doà idasàdeàtodasàasàidades,àfazà o à ueàaàso iedadeàe àge alà la eàpo à aisà igo à asà
pu iç es,àoà ueàle aàalgu sàjulgado esàaà e o he e àeàapli a àtalài stituto.

5
BRASIL, Decreto Lei nº 2.848, de 7 de setembro de 1940. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm Acesso em: 17 set. 2015.
514

й t eta to,à BITйNCOU‘T,à Cй)á‘à ‘OBй‘TO,à .à p.à à o side aà ueà e t eà aà


possi ilidadeàdeàapli aç oàdoàdoloàe e tualàouàdaà ulpa,àde e àse àapli adoàoàe e toà e osà
g a osoàaoàage te:à Po àfi ,àaàdisti ç oàe t eàdoloàe e tualàeà ulpaà o s ie teà esu e‐seà à
a eitaç oàouà ejeiç oàdaàpossi ilidadeàdeàp oduç oàdeà esultado.àPe sisti doàaàdú idaàe t eà
u àeàout a,àde e ‐se‐ à o lui àpelaàsoluç oà e osàg a e:àpelaà ulpaà o s ie te .
á teà aà apli aç oà doà doloà e e tualà eà daà ulpaà o s ie te,à pa aà oà dout i ado à e à
o e to,àde e àse àapli adaà ua doàhou e àdú idaàe t eàu àouàout oài stituto,àaàsa ç oà
e osàg a osaàaoàage te,àouàseja,àaà odalidadeàdaà ulpaà o s ie te,àpoisà aàdú ida,àh àdeà
se à i o adoà oà p i ípioà asila à doà Di eitoà Pe alà doà i à dú ioà p oà eo ,à Ceza à ‘o e toà
Bite ou tà .à p.à ,à o tudo,à o oà seà e à adia te,à oà p lioà doà “upe io à T i u alà deà
щustiçaàe isteàaàpossi ilidadeàdeàapli aç oàdoàdoloàe e tualà o oào se iaàaàp i ípiosà ueà
elho àate de àaàso iedadeàdeà odoàge al.

àCo side açõesàfi ais

Co statou‐seà at a sà dessaà pes uisaà ue,à es oà ha e doà so e teà aà p e is oà daà


odalidadeà ulposaà oàC digoàdeàT sitoàB asilei o,àaàdout i aàeàespe ial e teàosàT i u aisà
ta à e o he e àaàpossi ilidadeàdeàapli aç oàdoàdoloàe e tualà osàho i ídiosàdeàt sito,à
p i ipal e teàosà oti adosàpo àe iaguez.à
Dia teàdessaà eleu aàju ídi aàa e aàdaàutilizaç oàdeàu àouàout oài stitutoà à ueàseà
deuàaàes olhaàpeloàassu toàe àestudo,àpoisàaàpa ti àdaàide tifi aç oàdoàau e toàdessesàtiposà
deàho i ídiosàeàpelaà ele iaàdaà es e teàpe daàdeà uitasà idasà oàt sito,à o statou‐seà
ueàoàte aàte àge adoà aà o u idadeàju ídi aàeàdout i iaàu aài segu a çaà uitoàg a deà
so eàaài putaç oàdelituosaàdoàage te,àpoisà oàh àai daàu aàli haàu ifo eà ueàpe eiaàasà
de is esàju ídi asàso eàoàassu to.
Oàdese ol i e toàdesteàt a alhoàseàdeuàaàpa ti àdoàestudoàdout i ioàfoiàpossí elàseà
hega à àdife e iaç oàe t eàdoloàe e tualàeà ulpaà o s ie te,àpila esàdaàdis uss oàso eàsuaà
apli aç oàde t oàdosàho i ídiosàdeàt sitoà oti adosàpo àe iaguez,àj à ue,à o oà isto,à
poisàaàdi e g iaà ueàh àde t oàdoào de a e toàju ídi oà o oàu àtodo,àa e aàdaàapli aç oà
destesàele e tosà oàpodeàse ào jetoàdeàdú idaàpo àpa teàdosàjulgado es.
515

Dia teà disso,à o stata‐seà ueà oà te aà es olhidoà foià deà g a deà aliaà pa aà oà
dese ol i e toà eà a pliaç oà doà de ateà a e aà doà doloà e e tualà eà daà ulpaà o s ie te,à
esse ial e teà po ueà taisà i stitutosà s oà alizado esà daà i putaç oà pe alà estatalà ua doà
o se a osà osà ho i ídiosà de o e tesà deà e iaguezà aà di eç oà deà eí ulo.à Oà estudoà
p opo io ouàt aze àpa aàdis uss oàaàe o eàdifi uldadeà ueàosàjulgado esàe f e ta àaoàseà
depa a à o àu à asoà o eto,àte doà uitasà ezesà ueàade t a à aà o s i iaàdoàage teà
pa aàdes o i àosàele e tosàsu jeti osà ueàpe eia àsuaà o duta,àu aàta efaàdifí ilàeà ueàdeà
e asà oà àal a çada,à asài p es i dí elàpa aàaàde is oàso eàaà espo sa ilidadeàpe alàdoà
a usado.
Destaàfo a,àpe e eu‐seà ue,àpa aàaàe ist iaàeà a a te izaç oàdoàdoloàe e tualà à
e ess ioà al à daà p e is oà doà esultadoà aà suaà a eitaç o,à se doà ueà essesà ele e tosà
so e teàse oàaufe idosà oàe a eàdaà o s i iaàdoàage te.àássi ,àe à ueàpeseàoàg a deà
ú e oàdeàde is esàa tag i asàeàdife e tes,àaàju isp ud iaàsupe io àte àseài li adoàpa aà
aàpossi ilidadeàdeà a a te izaç oàdoàdoloàe e tualà essesàho i ídios,àissoàpo ue,à o oà isto,à
ua doà p ese tesà aà ate ialidadeà deliti aà eà sufi ie tesà i dí iosà deà auto ia,à e à o oà aà
aus iaàdeà ual ue ài di ati oàdaàp ese çaàdeà ulpa,àeàpelaào se iaàaoàp i ípioàdoà i à
d ioàp oàso ietate ,àde e àoàa usadoàse àsu etidoàaàjulga e toàpeloàщuizà atu alàdaà ausa,à
ueà esteà asoàse àoà o selhoàdeàjulga e toài stituídoàpeloàT i u alàdoàщú i.

Referências

ANDREUCCI, Ricardo Antônio. Manual de direito penal/Ricardo Antonio Andreucci. 5. ed. São
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518

VIOLÊNCIA, RISCO E LEGISLAÇÃO SIMBÓLICA: A EMERGÊNCIA DO ESTADO DE EXCEÇÃO

José Francisco Dias da Costa Lyra1


Francis Rafael Mousquer2

Resumo: Este trabalho propõe-se a analisar a gênese da violência na constituição da sociedade


e do direito, num cenário em que o risco e a e a lógica do capital tem ocasionado um excessivo
simbolismo legislativo. Como metodologia para verificação das imbricações políticas, utilizou-
se o método dedutivo. O referencial teórico baseou-se numa revisão bibliográfica de cunho
jus-filosófico e sociológico sob o viés da criminologia crítica. Observou-se no arrazoado a
relação existente entre a exclusão social e a emergência de ação por parte do Estado,
principalmente no aviltamento da penalização de condutas. Como consequência, criou-se um
ambiente propício para abertura de um estado de exceção em que o paradigma de governo é
o Direito Penal.

Palavras-chave: Violência; Risco; Legislação Simbólica; Estado de Exceção.

1 Introdução

Em uma formulação social nem tão recente de sociedade, a de controle, Giles Deleuze
(1992) certifica a perda da identidade do indivíduo, tornando-o dividual, amostra, mercado
estatístico, nada mais do que uma massa populacional3. A sociedade de controle separa,
segrega. Sob essa ótica, a reflexão de Lyra (2013) reconhece que a saída mais confortável
encontrada pelas vias capitalistas foi a de catalogar o indivíduo nos chamados grupos de risco.
A sociedade pós-fordista4 vive um paradoxo, pois subordina direitos e garantias ao pleno
emprego, ao passo que estimula uma relação de produção que precariza o trabalho, formando
um suplus de mão de obra que ocasiona exclusão e contribui para a violência que subjaz aos
conflitos sociais.
Contudo, a violência não é uma mazela exclusiva da sociedade de controle, pelo
contrário, apesar de ser a causa indireta da criminalidade, a violência operou como um marco

1
Doutor em Direito pela UNISINOS-RS. Mestre em Direito pela UNIJUI-RS. Especialista em Direito pelo IESA e
UNIJUÍ, RS. Professor do Curso de Mestrado em Direito da URI-RS. Também, leciona, na mesma instituição, as
disciplinas de Direito Penal e Processo Penal. Professor de Direito Penal no IESA, Santo Ângelo/RS. Juiz de Direito.
2
Mestre em Direito pela URI-RS. Especialista em Direito pelo IDC e ANHANGUERA/UNIDERP, RS. Advogado.
3
Deleuzeà su li haà aà uda çaà pa adig ti aà asà so iedadesà deà o t ole,à o deà oà esse ialà oà à aisà u aà
assinatura e nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades disciplinares são
reguladas por palavras de ordem (tanto do ponto de vista da integração quanto da resistência). A linguagem
numérica do controle é feita de cifras, que marcam o acesso à informação, ou a rejeição. Não se está mais diante
do par massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se "dividuais", divisíveis, e as massas tornaram-se amostras,
dados, mercados ou "bancos". (1992, p. 222).
4
Nesse sentido ver: LYRA, José Francisco Dias da Costa. As mutações do leviatã no trânsito do fordismo ao pós-
fordismo: edificação da sociedade do controle e a criminologia do atuarismo penal. Revista Brasileira de Ciências
Criminais. v. 103, p. 289-321, jul./ago. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
519

fu da teà aàedifi aç oàdoàdi eitoà o te po eo,àpostoà ueà elàde e hoàtu oàsie p eà ueà
ver com la solución de conflictos que posiblemente se hubieran solucionado de manera
iole ta .à эUрáMNN,à ,àp.à .àDeàfo aàp e isa,àoàauto àalemão constata que, foi a
necessidade de se estabelecer normas como resposta a violência que levou a conquista
evolutiva e sistemática dos procedimentos a que o próprio direito estivera subordinado.

2 A configuração social e política da violência

No pensamento de Luhmann (2005) a normatização da violência, sobretudo no século


XVIII, inicia-se no momento em que se verifica o câmbio da ação satisfativa pessoal da vítima
e àdet i e toàdaàaç oàpe alàestatal;à seàleàdaàu ài pulsoài usitadoàaàlaà i i alización [...],
el derecho original de responder a la violência com violencia se ha roto: el Estado es el único
a to àfa ultadoàpa aàello .à эUрMáNN,à ,àp.à .àáà iol iaà oàpodeàse à o side adaà
apenas uma forma de auxiliar o Estado na execução do ordenamento vigente, mas também
como parte de representação do direito na vida social. Logo, o direito evoluiu numa semântica
gradual e simbólica que separaria sua produção em classificações, ambiente propício para sua
diferenciação funcional e o consequente desenvolvimento institucional normativo5. Seguindo
essa tônica, é possível que se estabeleça um ponto de aproximação entre Luhmann (2005) e
Derrida (2010) por meio das dissertações acerca da violência elaborada pelos autores. Isso
ocorre em virtude de que aspectos importantes dos dois textos podem ser incluídos na análise
da estrutura e do processo evolutivo do direito.
O desconstrutivismo é considerado o grande marco teórico de Jacques Derrida,
elemento que influencia sua obra Força de lei, na qual Derrida (2010) problematiza a
separação entre direito e justiça, e, a fim de possibilitar uma compreensão do papel da
violência nas relações jurídicas, o autor utiliza-se do estudo de Walter Benjamin6 para analisar
a constituição legal da violência. Nesse compasso, a violência funda e conserva a lei, isto é,
institui o direito e sustenta a força da lei. A violência fundadora estabelece o novo direito,

5
Pa aàGa iaàBla o,àoàDi eitoà oà puedeàe olu io a àha iaàsuàfo aà ode aàdeàa ti ula i ,àfu io al e teà
diferenciada, si la violencia no está de su lado. Ahora bien, la violencia no puede representar ya un recurso
sistemático de las propias proyecciones normativas, y como tal ha de ser disociada del derecho, adoptando la
forma de acción aislada y no jurídicamente intencionada. La evolución del derecho está vinculada, en
consecuencia, a la domesticación de la violencia". (2011, p. 458).
6
Nessa direção, consultar: BENJAMIN, Walter. Para una critica de la violencia. In: BENJAMIN, W. Ensayos
escogidos. 2. ed. México: Edicionas Coyacán, 2001.
520

posicionando-o e instrumentalizando a realização de justiça. Já a violência conservadora,


mantém, confirma e assegura a permanência e a aplicabilidade do direito, sua principal função
é evitar que uma nova violência fundadora seja perpetrada.

Ora, a operação de fundar, inaugurar, justificar o direito, fazer a lei, consistiria num
golpe de força, numa violência performativa e portanto, interpretativa que, nela
mesma, não é justa e nem injusta. (...) Nenhum discurso justificador pode, nem deve,
assegurar o papel da metalinguagem com relação a performatividade da linguagem
instituinte ou à sua interpretação dominante. O discurso encontra ali seu limite: nele
mesmo, em seu próprio poder performativo. (DERRIDA, 2010, p. 24/25).

Dessa maneira, há uma violência que constitui o direito, haja vista que não há direito
que não implique nele mesmo. Apesar de paradoxal, é com a violência proveniente da força
conservadora da lei que a Constituição pode contradizer o preceituado pelo próprio direito
fundante e se conservar. Consiste em um fator fundamental de linguagem, da construção e
imposição de certo campo simbólico. Todavia, Derridaà afi aà ueà oà йstadoà te à edoà daà
violência fundadora, isto é, capaz de justificar, de legitimar ou de transformar relações de
di eito,àeàpo ta toàseàap ese ta à o oàte doàu àdi eitoàaoàdi eito .à ,àp.à -82.), dado
que a violência que se opõe ao Estado possui a mesma natureza fundante da violência que o
concebeu7.
Ultrapassada a instância fundamental da violência - para o direito, importa observar
de que forma tal fenômeno se reproduz na sociedade. Slavoj Zizek (2014) reflexiona a
violência ao investigar de maneira inovadora suas causas e os seus diferentes gêneros. O
grande diferencial de sua abordagem é a concepção de que a violência está instalada como
uma forma de linguagem, oculta e profundamente arraigada às bases dos subsistemas
político, econômico e social. A sua análise evidencia a violência física proveniente da
criminalidade como uma forma de reivindicação dos excluídos, uma espécie de
empoderamento pela violência8. A primeira categoria de violência analisada por Zizek, a

7
Nessaàdi eç oàGa iaàBla oàle io aà ueà laà iole iaàpuedeàse àta toàu àsopo teàdelào de àesta le ido como
una amenaza para el mismo. En sí misma no contiene garantía alguna de ser el fundamento de proyecciones
normativas institucionalmente amoldables, pues también puede ser un medio de expresión e imposición de
aspiraciones normativas defraudadas por elào de àesta le ido .à(2011, p. 458).
8
Oàe pode a e toàpelaà iol iaà àdes itoàpo àBe ja i à oàt e hoàe à ueàassi àle io a:à tal ezàde aàseàle a à
em consideração a surpreendente possibilidade de que o interesse do direito em monopolizar o poder diante do
indivíduo não se explica pela intenção de garantir os fins jurídicos, mas de garantir o próprio direito. Possibilidade
de que o poder, quando não está nas mãos do respectivo direito, o ameaça, não pelos fins que possa almejar,
mas pela sua própria existência fora da alçada do direito. De modo mais drástico, a mesma suposição pode ser
sugerida pela reflexão: quantas vezes a figura do "grande" bandido não suscita a secreta admiração do povo, por
521

subjetiva, é mais apa e te,àpoisà à e pe i e tadaàe ua toàtalà o t aàoàpa oàdeàfu doàdeà


um grau zero de não violência. É percebida como uma perturbação do estado de coisas
o al àeàpa ífi o .àÉàaà iol iaàdoàdiaàaàdia,àfísi aàeàdi eta.à )I)йы,à ,àp.à -18).
Por outro lado, a violência objetiva - a qual possui dois formatos, o simbólico e o
sistêmico - é quase imperceptível, pois está enraizada à estrutura social e vinculada à
pe epç oàdeà o alidadeà otidia a.àÉàdes itaàpeloàauto àeslo e oà o oàa uelaà i e e teàaà
esseàestadoà o al àdeà oisasà[...]àáà iol iaào jeti aà àu aà iol iaài isí el,àu aà ezà ueà
é precisamente ela que sustenta a normalidade do nível zero contra a qual percebemos algo
o oàsu jeti a e teà iole to .à )I)йы,à ,àp.à .àCo t astaàdeàfo a análoga ao trabalho
desenvolvido por Pierre Bourdieu e a sua concepção de violência igualmente simbólica, a qual
pode ser entendida como uma manifestação decorrente do poder simbólico 9.
Já a violência simbólica de Bourdieu (1998; 2003), representa uma forma de violência
oculta que se impõe numa relação de superioridade e inferioridade, do tipo dominante e
do i ado,à [...]àpo à eioàdeàu àatoàdeà og iç oàeàdeà auà e o he i e toà ueàfi aàal à–
ou aquém – do controle da consciência e da vontade, nas trevas dos esquemas de habitus que
s oàaoà es oàte poàge e adosàeàge e a tes. à BOU‘DIйU,à ,àp.à -23). A conivência e a
sutileza com que as hostilidades se manifestam nas relações sociais acabam dificultando o seu
diagnóstico, tornando-a de certa forma naturalàeàsile iosa.àU àp o essoàsiste ti oàeà [...]à
suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias
puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do

mais repugnantes que tenham sido seus fins. Isso é possível não por causa de seus feitos, mas apenas por causa
do poder que se manifesta nesses feitos. Nesse caso, portanto, o poder - que o direito atual procura retirar do
indivíduo em todas as áreas de atuação - se manifesta realmente como ameaça e, mesmo sendo subjugado,
ainda assim suscita a antipatia da multidão contra o direito. Através de que função a violência parece, com toda
a razão, tão ameaçadora para o direito, tão temida por ele? Isso se mostra justamente nos casos em que, mesmo
segundo a ordem judiciária atual, o emprego da violência ainda é ad itido .à ,àp.à -163).
9
O conceito de poder simbólico é encontrado no pensamento de Bourdieu, segundo o qual pode ser definido
o oàpode àdeà o st ui àoàdadoàpelaàe u iaç o,àdeàfaze à e àeàfaze à e ,àdeà o fi a àouàdeàt a sfo a àaà
visão do mundo e, desse modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo, poder quase mágico que permite
obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica) graças ao efeito específico de
mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. Isto significa que o poder
simbólico não reside nos sistemas simbólicos em forma de uma illocutionary force, mas que se define numa
relação determinada - e por meio desta - entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos, quer dizer,
isto é, na própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz a crença. O que faz o poder das palavras
e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e
daquele que as pronuncia, e çaà ujaàp oduç oà oà àdaà o pet iaàdasàpala as .à ,àp.à -15).
522

desconhecimento, do reconhecime toàou,àe àúlti aài st ia,àdoàse ti e to .à BOU‘DIйU,à


2003, p. 7-8).
A violência sistêmica, por estar entranhada às estruturas sociais é considerada uma
sequela do sistema econômico e político, sendo comparada a violência constitucional
retratada por Friedrich Müller (1995), e que se origina na estrutura sob a qual as relações
e o i asàeàso iaisàest oàsu o di adas;à oà ài stituídaàpelaà o stituiç oàeàpeloàsiste aà
ju ídi o,à asà e à g a deà pa teà ape asà assu idaà po à eles .à ,à p.à .à Noà a poà so ialà
configura-se em pontos particulares como os direitos fundamentais, as competências
burocráticas e os procedimentos administrativos e jurídicos. Na área econômica baseia-se na
noção de que a propriedade outorga ao indivíduo a plena liberdade de dispor sobre si e sobre
suaà ida,àoà ueà o fe eà aàpou osàp op iet iosài di iduaisàoàpode àdeàdispo àli e e teàso eà
asà idasàdeàout osài di íduos .à ,àp.à .
Assim, a lógica do capital determina quais os sentidos a serem construídos para
reforçar as estruturas políticas e assim reproduzir as relações de dominação. A sistematicidade
violenta do capitalismo persegue índices econômicos, trabalha com volatilidade e
especulação, sendo capaz de violentar países e proporcionar uma severa dependência junto
ao mercado fi a ei o.àнu io aà o oàu aà at iaàes u aàdaàfísi a,àaà o t apa tidaàdeàu aà
violência subjetiva (demasiado) visível. Pode ser invisível, mas é preciso levá-la em
o side aç oàseà uise osàelu ida àoà ueàpa e e àdeàout aàfo aàe plos esà i a io ais àdeà
iol iaàsu jeti a .à )I)йы,à ,àp.à -18). Ao seu turno, o Estado age em resposta a violência
subjetiva, isto é, a violência física que atinge cotidianamente grande parcela da população. As
estruturas políticas são portadoras de uma capacidade autenticatória da violência sistêmico-
simbólica - a qual se traduz em um poder institucional e legitimado pela lei - que na maioria
dasà ezesà à e e itadaà se à ueà sejaà pe e ida,à u à eioà deà o u i aç oà ge e alizadoà
si oli a e te 10.

2.1 O silencioso eclodir da violência na legislação


A exclusão social e a falta de reconhecimento dos indivíduos, bem como o aumento
dos processos violentos no Brasil funcionam como combustível para a edificação de
legislações simbólicas. O fato é que a exclusão social, aliada a invisibilidade dos indivíduos

10
Nesse sentido ver: LUHMANN, Niklas. Poder. Brasília: Universidade de Brasília, 1985.
523

desfavorecidos, tem provocado uma batalha pelo reconhecimento, a qual é travada por meio
de instrumentos violentos. Como contra-ataque o sistema jurídico estabelece medidas
legislativas de controle e tipificação de condutas, tornando-se uma prática recorrente. Nesse
ponto, a legislação simbólica tem por escopo principal não a regulação de condutas ou a
garantia de expectativas, mas atender aos anseios do jogo político.
Nas palavras de Zapatero11, parafraseado por Hommerding (2012), as leis simbólicas
são usadas com o intuito de subornar os cidadãos com promessas ou insinuações de que os
problemas restarão resolvidos, o que denota o risco de manipulação apresentado pela
legislação simbólica. Segundo Pérez Luño (2011), a legislação simbólica possui um significado
que encobre e manipula. Quem a elabora produz uma realidade fictícia e uma falsa
consciência sobre a idoneidade dos meios jurídicos para salvaguardar a segurança dos
cidadãos, o legislativo torna-se vítima de um auto-engano, pois os políticos e parlamentares
que crêem nesse tipo de legislação acabam acreditando em respostas normativas fictícias e
puramente simbólicas.
Apoiando-se na teoria dos sistemas de Luhmann (2009), na qual o acoplamento entre
sistema político e jurídico ocorre através da Constituição, e a generalização de expectativas
na dimensão social é feita através da institucionalização das normas, é possível afirmar que a
legislação simbólica não cumpre as expectativas de redução da complexidade presentes no
ambiente, istoà ueàseàdefi eàpelaà p oduç oàdeàte tosà ujaà efe iaà a ifestaà à ealidadeà
é normativo-jurídica, mas que serve, primária e hipertroficamente, a finalidades políticas de
a te à oà espe ifi a e teà o ati oà ju ídi o à NйVй“,à ,à p.à .à эogo,à aà legislação
simbólica demarca a superioridade do simbolismo da lei (fundamentalmente político
ideológica) em prejuízo da função jurídico-instrumental (de caráter jurídico-normativo).
Naà is oàdeàMa eloàNe es,àaà a a te izaç oàdoàsi olis oàlegislati oà deve referir-se
abrangentemente ao significado específico do ato de produção e do texto produzido [...] a
referência deôntico-jurídica de ação e texto à realidade torna-se secundária, passando a ser
relevante a referência político- alo ati a .à ,àp.à /31). Os atos de produção legiferante
em conjunto com os textos normativos produzem efeitos essencialmente políticos e não

11
Nesse sentido consultar: ZAPATERO, Virgilio; GARRIDO GÓMEZ, Maria Isabel. El derecho como processo
normativo: leciones de teoria del derecho. Alcalá de Henares: Universidad de Alcalá, 2007.
524

propriamente jurídicos, pois em razão da supremacia político-ideológica, ocorre uma


deficiência de estrutura normativa.
Seguindo as lições de Harald Kindermann (1988), Marcelo Neves (2007) aduz que
determinada atividade legislativa com função fundamentalmente simbólica pode resultar em
leis que futuramente venham a adquirir uma acentuada força normativa. O oposto também
pode ser verificado, haja vista que com o transcurso do tempo, leis resultantes de atos de
legislação instrumental podem adquirir caráter predominantemente simbólico.
Kindermann (1988) sugere um modelo baseado em três proposições para as diferentes
categorias da legislação simbólica, as quais Neves (2007) traduz da seguinte forma: a) com a
finalidade de confirmar valores sociais; b) no intuito de demonstrar a capacidade de ação do
estado; e, c) como forma de adiar a solução de conflitos sociais por meio de compromissos
dilatórios.
A expressão maior de soberania do estado ocorre através da produção de confiança
nos sistemas político e jurídico, é uma forma de fazer com que os indivíduos sintam-se seguros
e de corresponder aos anseios do povo. No entanto, muitas vezes, não há condições desta
efeti aç oà o ati a,à poisà at a sà delaà oà legislado à p o u aà des a ega -se de pressões
políti asà ouà ap ese ta à oà йstadoà o oà se sí elà sà e ig iasà eà e pe tati asà dosà idad os à
NйVй“,à ,àp.à / ,à àaà ha adaà legislaç oà li i 12. O descontentamento popular diante
de determinados episódios ou através de problemas emergenciais também são formas do
йstadoà a ifesta àpo ài te dioàlegislati oà u aà eaç oàsolu io ado aài ediata .àápesa àdeà
ser duvidosa a solução instantânea das respectivas imperfeições apenas por meio de
regulamentação legislativa, o que o sistema político almeja realmente é repassar o problema
pa aàaàpopulaç oàat a sàdeàu aàlegislaç oà li i,àaà ualà se eà o oà e a is oàdeàe posiç oà
simbólica das instituiç es .à NйVй“,à ,àp.à / .
Tal orientação político-normativa do problema submete a simples convicção de que a
instrumentalidade atribuída aos efeitos das leis teria o condão de solucionar os problemas da
sociedade. Todavia, é axiomático que as leis não são mecanismos capazes de modificar a
realidade de forma direta, pois dentro de um contexto sistêmico, as variações normativo-

12
áàlegislaç oà li i,à oàpe sa e toàdeàMa eloàNe es,à de o eàdaàte tati aàdeàda àapa iaàdeàu aàsoluç oà
dos respectivos problemas sociais ou, no mínimo, da pretensão de convencer o público das boas intenções do
legislador. Como se tem observado, ela não apenas deixa os problemas sem solução, mas além disso, obstrui o
a i hoàpa aà ueàelesàseja à esol idos .à ,àp.à .à
525

jurídicas confrontam-se com variações orientadas por outros códigos que não o lícito/ilícito,
to a doà aà esoluç oàdosàp o le as da sociedade dependente da interferência de variáveis
não normativo-ju ídi as .à áà i age à deà u à estadoà ueà espo deà o ati a e teà aosà
problemas reais da sociedade é criada pela edição de legislações álibis, uma espécie de
a ipulaç oà ouà ilus oà ueà i u iza o sistema político contra outras alternativas,
dese pe ha doàu aà fu ç oà ideol gi a .à Po ,à aà legislaç oà li ià ta à podeà a a eta à
u à se ti e toàdeà e àesta àeàle a àaà esoluç oàdaàte s o.àNoàe ta to,àoàusoàe essi oà
pode induzir ao seu constante fracasso e provocar a descrença no sistema jurídico,
transformando o direito num sistema desacreditado, os políticos em cínicos e o povo em
coadjuvante. (NEVES, 2007, p. 39/41).
Contribuição significativa é igualmente tecida por Hommerding e Lyra (2014), no
sentido de que em determinados casos o legislador mesmo sem editar a lei, a legislação álibi
ta à o segueàseàdeso e a àdasàp ess esàpolíti asàpo ueàasà epassa àaoàщudi i io ,àoà
legislador evita o conflito com seus eleitores ou até mesmo com seus opositores, transferindo
a sua responsabilidade ao poder judiciário. Cria-se com isso uma situação de conveniência, o
que de certo modo justifica a crescente judicialização da política, haja vista atribuir aos
intérpretes do direito funções que precipuamente não eram suas, e sim do legislativo.
(HOMMERDING, LYRA, 2014, p. 21/22).
Há também entre as espécies de lei simbólica a legislação como expressão de
compromisso dilatório, que tem por objetivo prolongar a solução de divergências sociais
através de demorados ajustes. Tais ajustes, ou nos dizeres do autor compromissos, são
manejados consensualmente entre grupos políticos opositores através de atos legislativos que
sa ida e teà est oà ei adosà deà i efi ia.à Oà a o doà oà seà fu daà e t oà oà o teúdoà doà
diploma normativo, mas sim na transferência da solução do conflito para um futuro
i dete i ado .à NйVй“,à ,àp.à .à
Desse modo, a legislação simbólica alcança unicamente objetivos relacionados à
promoção das intenções, dos valores ou da relação do legislador com as inquietações de seus
eleitores, eximindo-o da inoperância legislativa e contribuindo para o inflacionamento do
ordenamento jurídico brasileiro. Na práxis, a atuação legiferante dos parlamentares não
atinge eficazmente os objetivos aguardados pelos grupos sociais, pois as leis simbólicas são
leis feitas para não serem cumpridas, ou melhor, para não produzir os efeitos reivindicados.
526

2.2 A urgência contingencial da sociedade de risco

Num universo sistêmico e altamente comunicacional, onde o tempo é consumido pela


sociedade e a complexidade das relações sociais aumenta numa velocidade constante, a
contingência tende a não corresponder ao elevado número de expectativas, gerando
naturalmente o risco13. Assim, corresponde ao direito penal à função de assegurar a
estabilidade do sistema social, tendo como objetivo principal a preservação da sociedade. O
direito criminal torna-se o ramo fundamental do sistema normativo, formando uma estrutura
de base social através de regras de controle coativo.
Sabe-se que, na sociedade contemporânea, o direito é tido com um subsistema de um
sistema maior que é a sociedade, e a função de todo subsistema social é reduzir a
complexidade. Dessa forma, o direito penal surge como um mecanismo de controle
regulatório apto à função de "estabilização contrafactual de expectativas de
comportamento". Expectativas que podem ser contenciosas ou não contenciosas, pois o
direito não é somente uma maneira de evitar conflitos, mas de prevê-los, prepará-los.

Esta diferencia entre expectativas contenciosas y expectativas no contenciosas


tiene, para la evolución del derecho, un significado decisivo, ya que el sistema
jurídico desarrolla su instrumental específico a partir del litigio dentro del derecho.
El resultado es que el derecho no sólo arregla conflictos, sino que también los
produce: al remitir los conflictos a su ámbito, el derecho llega a rechazar otras
exigencias y se expone a ciertas presiones sociales. El derecho, sin embargo,
presupone siempre como posible la desviación del comportamiento (por los motivos
que sean), y que sus efectos lleven precisamente a negar la perdurabilidad de las
expectativas. (LUHMANN, 2005, p. 196).

O caminho percorrido pela sociedade inclusiva à sociedade excludente14 perpassa pelo


aumento das expectativas contenciosas, gerando e produzindo conflitos a partir dos desvios

13
Para Luhmann, liberdade implica em risco, e o risco na possibilidade de que as expectativas não se confirmem,
dessaà a ei a,à aà ista da liberdade de comportamento dos outros homens são maiores os riscos e também a
complexidade do âmbito das expectativas. Consquentemente as estruturas de expectativas têm de ser
construídas de forma mais complexa e variável. O comportamento do outro não pode ser tomado como fato
determinado, ele tem que ser expectável em sua seletividade, como seleção entre outras possibilidades do
out o .à ,àp.à .
14
Jock Youg explica as ligações existentes entre as mudanças nas relações de mercado que ocasionaram o
trânsito da sociedade inclusiva à sociedade excludente, sublinhando as mutações, os entendimentos e as
expectativas de cidadania que transformaram o crescimento contemporâneo da criminalidade e de seu controle.
Nesseàse tido:à áàt a siç oàdaà ode idade à modernidade recente pode ser vista como um movimento que se
dá de uma sociedade inclusiva para uma sociedade excludente. Isto é, de uma sociedade cuja tônica estava na
assimilação e na incorporação para uma que separa e que exclui. Esta erosão do mundo inclusivo do período
527

comportamentais violentos por parte dos sujeitos excluídos do projeto universalista. Desse
modo, a busca legítima por reconhecimento-inclusivo através do direito é substituída pela
descrença no estado e consequentemente pelos conflitos por igualdade. Logo, as diversas
formas de violência impostas na e pela sociedade contemporânea são a chave para alcançar
o status e a condição social desejada. Isso ocor eàe à az oàdeà ueà aàp p iaà i i alidadeà à
uma exclusão, como o são as tentativas de controlá-la através de barreiras, encarceramento
eàestig atizaç o .à YOUNG,à ,àp.à .
Nessa esteira, certifica-se que a emergência do estado penal está diretamente ligada
ao fenômeno da exclusão. Porém, é possível que se estabeleça uma associação correlata a
outras duas abstrações: a concepção de risco e a sucessão de instantes denominada tempo.
Na sua análise sistêmica da sociedade do risco, Luhmann (1992) indica que o conceito de
risco15 está conectado a aptidão alcançada pela sociedade em refletir sobre si mesma, e, em
especial, a capacidade do direito refletir a sociedade16. Nesse contexto, a sociedade de risco17
apresenta-se inserida na modernidade reflexiva18, onde a dependência dos processos
decisórios estão cada vez mais conectados ao futuro e a incerteza, implicando numa
observação da sociedade que reflita não apenas sobre o presente, mas também na construção
da memória de seu passado e na projeção de seu futuro.
Neste fluxo, a sociedade ao acumular no presente o acervo de expectativas que antes
estava voltada para o futuro, alterou consideravelmente a percepção do tempo social.

modernista [...] envolveu processos de desintegração tanto na esfera da comunidade (aumento do


individualismo) como naquele do trabalho transformação do mercado de trabalho). Ambos os processos
resultam de forças de mercado e sua transfo aç oàpelosàato esàhu a osàe ol idos .à ,àp.à .àààà
15
Nesse aspecto, consultar: LUHMANN, 1992, p. 25-43. Ver ainda: DE GIORGI, 1998, p. 185-200.
16
áà esseà espeito,à эuh a à a ti ulaà ueà elà siste aà ju ídi oà o stitu eà u aà i age à ueà eflejaà elà sistema
sociedad: el derecho es riesgoso porque la sociedad misma lo es. O dicho de manera más exacta: el derecho está
obligado a observarse y a describirse como algo riesgoso simple y sencilamente porque esto mismo es válido
pa aàlaàso iedadà ode a .à(2005, p. 637).
17
Para Raffaele De Giorgi, a percepção do risco esta associada a incerteza e ao aumento da racionalidade, logo:
áàso iedadeà ode aà à a a te izadaàpelaàsuaàg a deà apa idadeàdeà o t ola àasài dete i aç es.àй,àassi ,àdeà
produzi-las. Este paradoxo acrescenta a necessidade de proteção e de segurança. [...] O processo de
modernização típico da sociedade industrial não seria mais capaz de controlar a si mesmo, isto teria impelido a
racionalidade para um patamar tão alto a ponto de não se poder mais detê-la. [...] Nasce assim uma segunda
modernidade que é a sociedade de risco. Esta sociedade começa ali onde falham os sistemas de normas sociais
que haviam prometido segurança. Estes sistemas falham pela sua incapacidade de controlar as ameaças que
provem das decisões. Tais ameaças são de natureza ecológica, tecnologia, política, e as decisões são resultado
deà elaç esà ueàde i a àdaà a io alidadeàu i e sal .à ,àp.à -195).
18
Para uma investigação acerca das definições e diferenças evolvendo os termos modernidade e modernidade
reflexiva, consultar: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernidade reflexiva: política, tradição e
estética na ordem social moderna. São Paulo: Unesp, 1995.
528

Descompasso temporal entre direito e tempo que pode ser observado no debate proposto
por François Ost, obra na qual as incertezas estão diretamente relacionadas com porvires que
seà ap ese ta à e dadei a e teà o ti ge tes,à eal e teà i dete i ados,à oà i sta teà
e dadei a e teà i sta t eo,à suspe so,à se à se ue iaà p e isí elà ouà p es ita .à 99, p.
324). O que se verifica é a imersão do corpo social numa realidade cultural e temporal do
imediatismo, consagrada pela consecução instantânea do objetivo, haja vista que o controle
sobre o futuro já não existe e a conquista de resultados somente interessa quando obtida no
ago a;à à oàp ese teà ueà o e t aàtodaàaà a gaàdeàe pe tati aà o al e teàla çadaàso eà
o futuro, e é na injunção imediata do instante - logo, na urgência - que a acção é chamada a
produzir-se .à O“T,à ,àp.à .
À vista disso, a formação de um estado de emergência ocorre na medida em que o
caráter emergencial permaneça atrelado a um estado de exceção e de transitoriedade, cuja
gravidade autoriza a súbita intervenção, ainda que mediante o descumprimento das normas
constitucionais. Todavia, não é este o cenário ilustrado. A decadência do Estado Social19
combinada à depreciação do ideal de controle - acontecimento indicativo da sociedade de
risco - torna o horizonte propício ao contínuo estado de urgência. Hodiernamente, as
estratégias voltadas à redução do risco giram em torno de medidas aceleradas, abalizadas
pelo discurso funcionalista do mercado de capitais, no qual a velocidade - hoje aplicada a todas
as esferas - está intimamente atrelada à eficiência20. Assiste razão a Ost ao demonstrar que a
ug iaà est à lo geà deà esol e à deà i ediatoà eà e à defi iti oà u aà situaç oà p o le ti a,à
parece comprometer-seà aà iaàdeàu àp o is ioàpe a e te ,à e ela doàpo àfi àoàp o essoà
autofágico ao qual está submetida, alimentando-se de si mesma e fazendo com que cada
resolução intervencionista necessite de uma medida subsequente. (1999, p. 356).
Em suma, o estado de urgência retrata a perda de confiança no futuro e nas promessas
democráticas, pois conserva a sociedade numa temporalidade disforme e contínua,
substituindo o Estado Providência pela Sociedade de Risco. O aumento do individualismo nas

19
Consoante a óptica de Luhmann, a crise do Estado de Bem Estar está continuamente vinculada à contrariedade
existente entre o advento da sociedade funcionalmente diferenciada - a qual não dispõe de centro ou vértice, e
a teoria política tradicional - para a qual Estado e Política são os centros de poder da sociedade. Pa aàoàauto à laà
orientácion teórica y política del presente reside entonces en ver si se puede tolerar la idea de una sociedad
carente de centro, y sin ello se pueden percibir las condiciones para una política democrática efectiva [porque]
no se puedeà e t a àso eàlaàpolíti aàu aàso iedadeàfu io al e teàdife e iadaàsi àdest ui la .à(2007, p. 44).
20
Ver nesse sentido: VIRILIO, Paul. Velocidade e Política. São Paulo: Ed. Estação Liberdade, 1996.
529

relações sociais faz com que se discuta segurança ao invés de solidariedade, e o que sobrevém,
para além das espécies de risco e os seus efeitos, é

o declino das instituições e o regresso do estado de natureza [...] o estado de


natureza da sociedade e que na ausência de normas jurídicas, transforma-se em
selva, assimila-se a lei do mais forte, e fabrica a segregação e a violência. Na ausência
de regras e de instituições estáveis, a sociedade do risco torna-se efetivamente uma
sociedade de insegurança e o individualismo faz-se negativo: declina-se então em
termos de falta - falta de consideração, falta de segurança, falta de bens seguros e
de elos estáveis. (OST, 1999, p. 376).

São os fenômenos advindos da relativização do presente21 e da insegurança quanto ao


futuro que conferem ao Direito Penal o caráter punitivo e intimidatório de que necessita para
a produção legislativa em matéria criminal. Para tal intento, utiliza-se do sentimento de
vitimização social22 para expandir o arsenal acusatório - uma característica cultural da
sociedade contemporânea.

3 Considerações finais: o permanente estado de exceção

Na sociedade de risco, devido ao controle-excludente, praticamente todos os estados


transitam pelo espaço temporal no qual reside uma nova realidade: o estado de exceção.
Giorgio Agamben (2004) constrói um novo paradigma de governo baseado na obra de Carl
Schmitt23 - na qual o chefe do executivo é soberano no veredito sobre o estado de exceção. É
marcado por momentos de crise e instabilidade política, gerando um ponto de desequilíbrio
nas democracias modernas, pois se insere em um período de totalitarismo moderno

21
A sociedade atual é qualificada por Lipovestky à o oà so iedadesà doà te poà eal ,à desti adasà aà
olatilidadeà doà te poà eà aà a ia ilidadeà dasà odas,à istoà ,à oà i p ioà doà ef e o .à Oà auto à e pli aà ueà asà
so iedadesàseàto a a à so iedades- oda ,ài de adasàaàu aà o aào ie taç oàdeàte po alidade,àa uela que
caracteriza a moda no presente, no agora. Para saber mais, consultar: LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero:
a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Cia das Letras, 2009. Ver ainda: BAUMAN, Zygmunt.
Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
22
Pa aàOst,à aàfigu aà iti izada,àju ta e teà o àaàheu ísti aàdoà edoàeàaàt sàfo asàdeà is oàs oà o se u iasà
daàso iedadeàdeà is o .à ,àp.à -347). Nesse sentido, a vitimização pode ser descrita como a permanente
sensação de insegu a çaàeà edo,àse ti e toà ueà aàaus iaàdeàpode àaspi a àaàu àtituloàge al,àu àdi eitoà
social, resta à vítima gritar a injustiça e pedir reparação ao juiz. Daí o aumento potencial correlativo da vítima na
so iedadeàdoà is o .à O“T,à ,àp.à .àá erca do medo na sociedade moderna, consultar: BAUMAN, Zygmunt.
Medo líquido. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008.
23
A obra fundamental de Carl Schmitt que influencia Giorgio Agamben na sua teorização sobre o soberano e o
estadoà deà e eç oà à Teologiaà políti a , na qual o autor alemão discute acerca do combate pela ordem em
contrariedade a anomia por meio da decisão. Nesse sentido, consultar: SCHMITT, Carl. Teologia Política. Belo
Horizonte: Ed. Del Rey, 2006.
530

acentuado pelo absolutismo que o caracteriza. A obra do autor italiano traduz de forma
definitiva a atual realidade excepcional de controle24.
A ausência de uma teoria moderna acerca do estado de exceção enseja uma discussão
sobre a legalidade e a legitimidade de sua instauração, haja vista tratar-se de uma anomia
jurídica. Agamben (2004) estabelece que os defensores do regime excepcional
fundamentaram a teoria em dois pontos capitais: nas circunstâncias de necessidade - uma vez
que a necessidade não possui lei - isto é, a necessidade cria a sua própria lei; e nas lacunas da
lei, nas quais se garantiria a vigência do ordenamento, fazendo necessária a sua suspensão
como uma ficção jurídica, uma lacuna fictícia com o objetivo de salvaguardar a existência da
norma e sua aplicação em tempos de normalidade.
Nesse sentido, o estado de exceção caracterizar-se-ia pela amplitude temporal em que
a aplicação e a norma manifestam sua disjunção, criando-se um paradoxo, pois a força da lei
aplica determinada norma desaplicando regras cuja imputação foi interrompida. Sua
instauração compreende um atroz significado biopolítico25, uma vez que a suspensão de
direitos acarreta diretamente na anulação de estatutos protetivos individuais, gerando seres
inomináveis, inclassificáveis: o homo sacer.
O homem sacro representa o excluído de hoje, um indivíduo que (sobre)vive a margem
da sociedade, onde possui uma vida matável, porém insacrificável. A ideia de homem sacro
nos remete ao direito romano arcaico, no qual o caráter de sacralidade liga-se pela primeira
vez a vida humana. Agamben (2002) procura sentido para esta enigmática e obscura figura.
Para isso, combina estudos Aristotélicos sobre politização da vida com a biopolítica de
нou ault.àDesseà odo,àaàe t adaàdaàzo à idaà atu al à oà í uloàdaàp lisà idade à assi alaà
uma transformação radical das categorias político-filosóficas do pensamento clássico ,à o oà

24
Diante do incessante avanço da guerra, da violênciaàeàe àg a deà edidaàdoà is o,à oàestadoàdeàe eç oàte deà
cada vez mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante na política contemporânea. Esse
deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo ameaça transformar
radicalmente - e, de fato, já transformou de modo muito perceptível - a estrutura e o sentido da distinção
tradicional entre os diversos tipos de constituição. O estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como
um patamar de indeterminação entre de o a iaàeàa solutis o .à áGáMBйN,à ,àp.à .
25
No sentido arendtiano, a biopolítica opera transformando a vida humana com o objetivo de reduzir a
biopolítica dos indivíduos ao mero fato biológico. No sentido focaultiano, a biopolítica atua de maneira
individualizante e totalizante, num processo de disciplinamento corporal, possuindo uma dimensão
normalizadora (medicina) e uma de controle (governo). Nesse sentido, consultar: ARENDT, Hannah. Origens do
totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; e FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade
de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
531

se a política fosse o ambiente em que o viver devesse se converter em viver bem, e a vida a
ser politizada (bíos) fosse a vida nua. (2002, p. 12-15).
A politização da vida na esfera da cidade26 estabelece o poder do soberano como
produtor da vida nua, a exceção se torna a regra. Situa-se a margem do ordenamento e
oi ideà o àoàespaçoàpolíti o,à e lus oàeài lus o,àe te oàeài te o,à íosàeàzo ,àdi eitoàeà
fatoàe t a àe àu aàzo aàdeài edutí elài disti ç o .à áGáMBйN,à ,àp.à .àáà idaà uaàdoà
cidadão, como conceito de biopolítica, traduz-se na vida matável, porém insacrificável do
homo sacer, a qual é incluída no ordenamento unicamente sob a forma de exclusão. O
significado do homem-sa oàpodeàse ài te p etadoà o oàa uiloà ueàest à so àdo í ioàdos
deuses ,àouàseja,àe t egueàaào ipot ia.àPa ado al e te,à oàpodeàse ào jetoàdeàsa ifí ioà
pelas leis estabelecidas - pois já possui a sacralidade -, mas pode ser morto, permanecendo
num linear tênue entre o ius divinum e o ius humanum, isto é, num limbo jurídico. (AGAMBEN,
2002, p. 80-81).
A consequência da criação de homens-sacros num estado de exceção constante é uma
crescente batalha emancipatória por inclusão, uma permanente busca por reconhecimento
que se traduz na forma como os indivíduos e grupos sociais se inserem na sociedade atual. A
inclusão excludente é a lógica que rege o contexto da sociedade de risco, onde o estado27 cria
suas leis baseadas na urgência, fazendo da exceção a regra, do transitório o duradouro. Em
síntese, limitam-se direitos e liberdades sob o manto da insegurança e do medo, numa
atuação voltada à criminalização e ao atuarismo penal.

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2002.

__________, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

26
Pa aàága e àaàdife e çaàe t eàaà de o a iaà ode aàe à elaç oà à l ssi a,à à ueàelaàseàap ese taàdesdeà
o início como uma reivindicação e uma liberação da zoé, que ela procura constantemente transformar a mesma
vida nua em forma de vida e de encontrar, por assim dizer, o bíos da zo . (2002, p. 17).
27
Noàpe sa e toàdeàэ a,à oàpapelàdoàйstado,àhojeàe àdia,àseàli itaàaoàe dossoàofi ialà daà e lus o,à ueàseà
tornou lugar-comum na modernidade líquida. O poder pós-panóptico do Estado não mais desenvolve suas
habilidades para incluir (veja-se que os miseráveis, na atualidade são muitos), senão para manter os indesejáveis
fo astei osàouài te os àdoàladoàdeàfo a .à ,àp.à .
532

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534

DA TIRANIA DA MAIORIA À TIRANIA DA NORMA FUNDAMENTAL

Maurício Fontana Filho1

RESUMO: As maiorias fazem a lei, não as minorias. Desta proposição deriva a investigação a
seguir concernente ao quão abrangente deve ser o alcance legislativo de uma maioria e quais
as proteções inflexíveis que devem circundar as minorias. Se por um lado uma democracia
formal é realizada pelo poderio das maiorias, a democracia substancial, por outro, abarca o
rol de limites e ela impostos. Assim, através de normas fixas cujo conteúdo sensível deve ser
estipulado com demasiado cuidado, a maioria política se encontra subordinada à garantia de
direitos, o que significa dizer que um legislador ordinário jamais poderá alterar normas
hierarquicamente superiores, mas pelo contrário, tem seu poder de criação moldado pelas
mesmas. A norma fundamental é tanto um bem como uma maldição: limita o legislar, mas é
fonte de poder arbitrário e inflexível.

Palavras-chave: Estado de Direito; Garantismo; Poder.

1 INTRODUÇÃO

Através da apropriação de poder por vias legais e democráticas, líderes de regimes


Fascista e Nazista chegaram ao poder para, em seguida, suprimir a democracia e direitos
individuais, mantendo-se no poder e utilizando-se deste de maneira absoluta (FERRAJOLI,
2014b).
Para Carl Schmitt (2009) deve ser concedido poder absoluto ao governante em casos
excepcionais, isso porque as normas jurídicas só deveriam deter validade em situações
normais, do contrário, ou seja, quando em momentos críticos, o soberano deveria se sobrepor
à validade das normas jurídicas. Em tempos anormais, cabe ao governante desativar a
validade da norma e combater sua concepção abstrata de inimigo, o qual oferece risco à saúde
do Estado.
O fim da norma fundamental2 é impedir que tiranos absolutos sejam eleitos e se
sobreponham à direitos vitais à saúde dos mais fracos. O caráter imutável do direito
fundamental elenca determinados princípios como além do alcance de qualquer governante
ou maioria política (FERRAJOLI, 2014b).

1
Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ,
RS; bolsista Fapergs no p ojetoàdeàpes uisaà Di eitoàeàй o o iaà sàVestesàdoàCo stitu io alis oàGa a tista ,à
coordenado pelo Prof. Dr. Alfredo Copetti Neto.
2
Os termos direito fundamental e norma fundamental são utilizados no decorrer do texto como sinônimos.
535

O efeito do pós-guerra proporcionado pelos movimentos Fascista e Nazista tomou a


forma de mudanças na rigidez constitucional, o que significa dizer que uma carta
constitucional que antes era flexível, podendo ser mudada por um legislador ordinário,
passara a ser rígida, tendo a alteração de seu conteúdo dificultado. As fontes normativas
também passaram a ter um filtro constitucional, o qual reduziu o poder virtualmente absoluto
detido pelas maiorias e governantes, sujeitando a ambos à norma fundamental (FERRAJOLI,
2014b).
O modelo de Estado de Direito garantista (FERRAJOLI, 2011) visa limitar todas as
esferas de poder3, sejam elas estatais ou individuais, por meio da norma fundamental, a qual
possui hierarquia superior, se sobrepondo às leis ordinárias, o que significa dizer que, segundo
эuigià нe ajolià ,à p. à [...]à ual ue à lei,à es oà ueà fo al e teà ige te,à à se p eà
suscetível à invalidação quando o seu significado for considerado conflitante com a
o stituiç o. à Oà al a eà dasà aio iasà seà ost aà est i gido, seja em âmbito privado, pela
autonomia negocial, seja em âmbito público, pela autonomia política4.

2 DESENVOLVIMENTO
2.1 POR UM CONCEITO DE TIRANIA DA MAIORIA

Para John Locke (2012) no momento em que um contrato social é estipulado, o


indivíduo aceita sujeitar-se às decisões das maiorias, desde que, é claro, estas respeitem o
chamado equivalente racional, o que significa dizer que uma decisão política será apenas
considerada válida quando os limites determinados pela lei natural forem resguardados. Em
outras palavras, se uma norma viola a vida, a liberdade e os bens individuais, esta norma será
considerada inválida.

3
Norberto Bobbio (2011) em Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política conceitua poder
como sendo a capacidade de determinar o comportamento dos outros, seja na esfera política, econômica ou
moral.
4
Autonomia é o termo utilizado por Luigi Ferrajoli (2011) para se referir a uma lacuna na liberdade que
representa o poder. A liberdade política possui um poder atrelado a si chamado de tirania da maioria; na
liberdade econômica, da mesma maneira, há um poder atrelado a si chamado acúmulo de riquezas. Philippe
Kourilsky (2013) segue a mesma lógica ao amalgamar o direito à liberdade ao dever de altruidade, ou seja, ele
reconhece a existência de lacunas na liberdade às quais adere possibilidade de responsabilidade subjetiva
individual universal.
536

De acordo com Benjamin Constant (2007, p.174-175) os direitos individuais são


constituídos por tudo aquilo que independe da autoridade política legislar sobre. No momento
em que eu não machuco outras pessoas, não devo, em decorrência, ser impedido de
prosseguir com meus hábitos e interesses; se o for haverá tirania da maioria. Isso porque
e iste àg a desà eg asà si asà ueàtodosàosàpode es apropriadamente constituídos têm que
ser incapacitados de tocar. Tais poderes juntos, entretanto, têm que ser capazes de fazer
ual ue à oisaà ueà oà o t a ieàessasà eg as.
Desta maneira, a tirania da maioria se refere ao quantitativo político se sobrepondo
àquilo que não lhe cabe discutir, analisar ou mudar. A liberdade política, que toma a forma do
uso de maneira não extremada ou viciosa do meio político é a garantia da liberdade civil
(CONSTANT, 2007), enquanto que a autonomia política é um direito-poder que toma a forma
da transcendência de liames que não devem ser superados; na liberdade política existe uma
lacuna, a autonomia, um poder que deve ser limitado (COPETTI NETO, 2016).
No momento em que uma sociedade emite ordens antagônicas aos princípios
fundamentais da boa convivência, ordens que vão além do razoável e acerca de assuntos os
quais não deveriam se intrometer e as executa, ela pratica uma tirania social que escraviza a
si mesma. O poder democrático que faculta liberdade política aos homens pode, assim como
libertá-los, torná-los servos de seus próprios preconceitos e vícios (MILL, 2011).
Existe um limite para a interferência legítima da opinião coletiva na independência
individual e, descobrir esse limite e protegê-lo contra o desejo ardente de alguns por vê-lo
restrito às suas inflexíveis formas de pensar é indispensável para a proteção do indivíduo
isolado e de suas individualidades (MILL, 2011).

2.2 DA VERDADE NA MAIORIA

O fato de uma maioria tomar corpo e decidir em uma democracia não conota, de
maneira inexorável, que a decisão seja virtuosa ou moral. Só porque a vontade da maioria é a
fonte suprema do poder político não significa dizer que não poderá ser um poder canalizado
de maneira arbitrária. Em outras palavras, não há verdade na maioria simplesmente por esta
ser quantitativamente superior (HAYEK, 1994).
537

As maiorias estão sempre certas é o grito que ecoa, mesmo que minimamente, sob a
forma do pressuposto ideológico de um sistema democrático, em razão de premiarem-se as
maiorias consolidadas enquanto que o indivíduo sozinho encontra-se em posição desfavorável
(KARSTEN; BECKMAN, 2013).
A relação entre existirem muitas pessoas que creem veementemente em alguma
doutrina e estarem certas em decorrência de seu número expressivo se mostra como erro de
pensamento, afinal, maiorias já acreditaram em tópicos contemporaneamente ultrapassados
como serem os animais imunes à dor, ser a Terra plana, ser um rei o representante de Deus
na Terra e serem negros, judeus e mulheres naturalmente inferiores em decorrência às suas
características naturais (KARSTEN; BECKMAN, 2013).
É inegável que os indivíduos devem se submeter à decisão da maioria, mas isso não
significa que tudo deve estar ao seu alcance ou que as maiorias sejam infalíveis. As maiorias
representam os mais fortes, não os mais sábios; pode até ser injusto permitir que as maiorias
decidam, mas seria ainda mais injusto permitir que minorias o fizessem. Quando a sociedade
tem de tomar uma decisão, maiorias ou minorias terão de triunfar (CONSTANT, 2007).
Um sistema democrático demanda quantidade objetiva de eleitores, enquanto que se
assenta apenas subjetivamente em sua qualidade. Em outras palavras, prima-se pela ideia de
que um homem não pode ter mais erudição do que muitos homens, afinal, não há um
requisito qualitativo para o exercício político, enquanto que o requisito quantitativo mínimo
se mostra presente (MILL, 2011).
As maiorias são as verdadeiras donas da sociedade, detendo o poder de impor seus
deuses, seus costumes e seus valores. São grupos de homens escolhidos para impor uma
concepção de bem, um juízo de valor ávido de preponderar, não apenas excluindo os demais,
mas reprimindo qualquer dissidência através da tirania da opinião. A morte da individualidade
pode se dar através do império de valores tanto moral quanto legal, e o meio democrático
ilimitado é uma forma viável de se alcançar isso (WALZER, 2008).

2.3 DO DIREITO À INFORMAÇÃO

A tirania da maioria se dá no momento em que se divide o pensamento político em


grupos baseados em seu número quantitativo, enquanto que os grupos que ainda não
538

tomaram corpo são ignorados e têm suas vozes abafadas pelos verdadeiros candidatos, ou
seja, aqueles sustentados pelo maior número (WALZER, 2008).
Para Michael Walzer (2008) o Estado deve possuir o poder de impedir que maiorias
promovam o que Karl Jaspers (2013) chama de Oligarquia de Partidos, o que significa dizer
um controle do poder político por grupos preestabelecidos de maneira a monopolizá-lo em
detrimento dos cidadãos. Assim, o Estado, por meio de sua intervenção, daria uma voz aos
grupos ainda não corporizados, de maneira a informar o eleitor e combater a tirania dos
grupos majoritários.
O número inexpressivo de um grupo tende a fomentar sua exclusão de debates
anteriores às eleições, o que restringe o ponto de vista democrático às castas dominantes e já
consolidadas, fazendo da democracia um sistema de governo de cartas marcadas e
meramente formal (WALZER, 2008).
Na eleição à presidência dos Estados Unidos da América, em 2016, o sistema
democrático impediu a participação de dois candidatos à presidência, Gary Johnson (Partido
Libertário) e Jill Stein (Partido Verde), aos três principais debates televisionados, o que já se
tornara um costume de exclusão dos partidos minoritários. O primeiro debate, ocorrido em
26 de setembro (AHMANN; WALSH, 2016), o segundo, ocorrido em 9 de outubro (RICHARDS,
2016) e o terceiro, ocorrido em 19 de outubro de 2016 (STRAUSS, 2016) foram assistidos por
pessoas em todo o mundo.
Trata-se de candidatos que representaram uma parcela ínfima dos eleitores e, em
razão disso, foram impedidos de se pronunciar nos três debates presidenciais mais
importantes do ano por não atingirem uma quota mínima de 15% dos votos. É raro que um
partido minoritário tenha acesso aos debates presidenciais norte-americanos, o que só
aconteceu uma vez, em 1992, por meio do candidato Henry Ross Perot (PETERSEN, 2016).
Ao ser restringido às ideias consolidadas e preestabelecidas, o eleitor, eleição após
eleição, estará feliz ao operar a superfície diversificada da democracia, mas sua materialidade
será unívoca. O sistema democrático, ao excluir partidos da oportunidade de serem
informativos, está a agir em fomento do formalmente diverso e materialmente unilateral
(WALZER, 2008).
O comitê de classes dominantes oferece purpurina a um homem faminto, fazendo-o
esquecer de que, muitas vezes, a diferença é palpável entre o que a sociedade quer e o que a
539

sociedade precisa. Até mesmo antitéticos. Isso porque a sociedade não possui todos os
fatores, toda a informação disponível, mesmo que acredite que o tenha, para fazer juízo de
valor acerca de quem merece seu voto (WALZER, 2008).

2.4 SOBRE A NORMA FUNDAMENTAL

Ao se assegurar poder ilimitado às maiorias seria o mesmo que colocar o bem-estar


das minorias na boa vontade questionável das primeiras (CONSTANT, 2007).
Para Edmund Burke (2016) assim como para Constant (2007, p.633) quando os homens
agem em corpo, a liberdade se torna um poder, devendo este ser limitado sob a pena de as
maiorias exercerem sobre as minorias dos cidadãos a mais cruel das opressões sempre que
prevaleçam. A liberdade é poder apenas na medida em que for visualizada como liberdade
coletiva, mas jamais como liberdade individual. Isso significa dizer que aqui há respaldo
apenas em relação à autonomia política, mas não em relação à autonomia negocial,àafi al,à aà
li e dadeà[i di idual]às à àpode à oàse tidoàdeà ueàoàes udoà àu aàa a.
Segundo Constant (2007, p.65) o problema não se encontra na aristocracia, na
de o a iaàouà aà o a uia,à asàpeloà o t io,à aà o de aç oàte à ueàse à àe te s oàdoà
poder e não àqueles que foram com ele investidos. É contra a arma e não contra a pessoa que
aà a useiaà ueàp e isa osàluta .àй iste à oisasàpesadasàde aisàpa aàasà osàhu a as. àOà
problema não se encontra nas escolhas feitas pelos eleitores, mas no poder sem obstruções
de seus representantes.
É através de uma constituição de difícil mutabilidade e de instituições de garantia que
limitem qualquer esfera de poder que é formado um modelo de democracia constitucional
garantista. São duas as concepções de democracia que se encontram inerentes à democracia
constitucional: a) a democracia formal, que toma a materialidade de uma democracia política
(direitos políticos) e de uma democracia civil (direitos civis); b) a democracia substancial, que
toma a materialidade de uma democracia liberal (o que não é permitido decidir) e da
democracia social (o que não é permitido não decidir). (COPETTI NETO, 2016).
Em outras palavras, a democracia formal remete à liberdade do povo de legislar,
enquanto que a democracia substancial remete aos limites ao poder, isto é, limite às lacunas
540

que espreitam a liberdade. Através do direito fundamental, elenca-se tudo aquilo que deve se
encontrar distante do alcance de qualquer modificação (FERRAJOLI, 2014b).
A esfera do indecidível contempla tudo aquilo que rompe com a onipotência política
das maiorias; tudo aquilo ao que é vedado decidir sobre (liberal), assim como tudo aquilo que
é obrigatório decidir sobre (social). Essa esfera, presente através das normas fundamentais,
as quais são, segundoà нe ajolià ,à p. ,à [...]à di eitosà i dispo í eis,à i alie eis,à
i iol eis,à i t a spo í eisà eà pe so alíssi os ,à sus itaà u aà s ieà deà uestio a e tosà
perigosos e complexos sobre a sua substância.
Constant (2007, p.84-85, grifo meu) nos diz sobre a materialidade do direito
fundamental:

A maioria pode apenas fazer leis para as questões sobre as quais a lei tem que se
pronunciar. Naqueles casos em que a lei não precisa fazê-lo, o desejo da maioria não
é mais lídimo que o da menor das minorias. [...] A maioria é juiz quando age dentro
de sua competência, e se transforma em facção quando excede seu papel. Não
existe força externa que impeça a maioria de sacrificar a minoria, ou que evite que
um punhado de homens, que se autoproclama de maioria, controle todos. Por
conseguinte, é vital que se compense a inexistência dessa força externa com
princípios fixos dos quais a maioria jamais se desvie.

Assim também afirma Friedrich August Von Hayek (1994) dizendo que o que tende a
impedir a chamada tirania da maioria ou movimento de facção de Constant (2007) é o
empreendimento de um programa que implique em limites ao poder do eleitor e de seus
representantes, o qual se dá através de normas fixas.
É ao conteúdo destes princípios fixos que Constant (2007, p.90) indaga:à Co oàpodeàoà
pode àse à est i gidoàaà oàse àpeloàp p ioàpode ? àáoàse àli itadoàoàpode àdasà aio iasà
através da norma fundamental, está-se a conferir poder à segunda. Quem limita o poder
daquele cujos poderes restringem poderes? Quem vigia o vigilante? Quem cuida do cuidador?
Como inspecionar aquilo que se encontra intocável? Quem limita o direito fundamental?
(BOBBIO, 2015).
áàp opostaàdeàнe ajolià ,àp. à o p ee deà ueà [...]àosàdi eitosàfu da e taisà
vêm de fato a se configurar [...] a garantia de interesses e necessidades de todos estipulados
o oà itais,àouàe ata e teà fu da e tais à aà ida,àaàli e dade,àaàso e i ia à – tanto às
de is esàdeà aio iaà ua toàaoàli eà e ado.
541

A existência de uma esfera do indecidível significa dizer que todo o governo eleito
democraticamente será submisso a determinados princípios preestabelecidos sob a forma do
direito fundamental. A abrangência da esfera do indecidível fomenta a sobreposição de
políticas valorativas e inflexíveis ao modelo de governo e ao indivíduo sob a justificativa de
haver na liberdade uma lacuna rotulada de autonomia (FERRAJOLI, 2011).
нe ajolià ,à p. à di à ueà [...]à seà ue e osà ga a ti à u à di eitoà o oà
fu da e tal à de e osà su t aí-lo da disponibilidade política e da disponibilidade do
e ado. àPoisà e ,àpasse osàaài ui i àso eàaàsu st iaàdaà o aàfu da e tal,àaà ualàseà
encontrará distante das garras da democracia, do mercado e do indivíduo.
É claro que, se de um lado o direito fundamental impede a tirania da maioria e do
governante, de outro tiraniza o indivíduo com a possibilidade de um conteúdo arbitrário
inflexível. A norma fundamental não limita a liberdade, mas sim a autonomia, ou seja, o poder;
em outras palavras, a norma fundamental limita apenas o que Ferrajoli (2014a) conceitua
como poder e protege apenas aquilo que o mesmo conceitua como liberdade. Os termos
liberdade e poder, na doutrina Garantista, são compartimentos estanques, presos às suas
definições premeditadas.
No momento em que considero o liberismo uma liberdade, como crê Hayek (1994)5, e
não um poder, como crê Ferrajoli (2014a), estarei a propor que o direito fundamental limita a
liberdade, e não o poder. A mesma lógica serve para as maiorias, as quais deverão prestar
submissão ao império dos conceitos de liberdade e poder prescritos no cerne das normas
fundamentais.
A norma fundamental oferece limites às esferas de poder, erigindo sobre si tudo aquilo
que deve ou não ser decidido; uma esfera perigosa, isso porque restringe a diversidade
política enquanto que promove um conceito de bem previamente estabelecido e unilateral
(FERRAJOLI, 2011).

5
Em O caminho da Servidão, Friedrich August Von Hayek (1994) difunde a ideia de que a intervenção do Estado
na economia é o mesmo que intervir na vida privada das pessoas, afinal, somos mais ou menos livres na medida
em que dispomos de recursos financeiros mínimos para satisfazer nossas vontades; a abstração do que significa
o termo mínimo é dever individual, não estatal. Seguindo esta lógica, a intervenção trataria indivíduos
qualitativos como quantitativos ao tentar propor uma concepção de igualdade substancial; isto é, para o Estado,
o essencial pode ser educação, saúde e segurança, mas para um indivíduo pode compreender castelos, empresas
bilionárias, etc. Assim, pessoas diferentes devem ter o poder de elencar o seu conceito de grau mínimo essencial
para usufruto de uma qualidade de vida razoável, e não o Estado.
542

O caráter inflexível do direito fundamental pressupõe a arrogância da certeza que, sob


os seus pilares a sociedade, individual e coletivamente, se erguerá de maneira razoável. Que
certezas são essas? A separação entre direito e moral (FERRAJOLI, 2014a) ocasiona, como
corolário, a morte do conservadorismo político; a autonomia política mutila os interesses das
maiorias, enquanto que a autonomia negocial rompe com o liberismo.
A norma fundamental se assemelha à vontade geral de Jean-Jacques Rousseau (2014),
no sentido de que um conceito de bem comum específico passa a ditar as regras e legitimar
as ações sem margem para dissidência. O tudo pelo bem comum evoluiu para o tudo pela
dignidade humana universal.6
Se para Rousseau (2014) a vontade geral significa o governo da nação através do bem
comum, o qual se sobrepõe ao bem-estar particular de maneira a exercer uma autoridade
ilimitada sobre a existência individual, para Constant (2007) a vontade geral deve ser guiada
pelo bem comum, mas não em detrimento do particular, e muito menos a qualquer custo. É
aqui que tomba o direito à sobrevivência de Ferrajoli (2011).
O modelo de direito fundamental de Ferrajoli (2011), reconhecido pelo próprio como
paternalista, se mostra como sendo uma ordem suprema que toma o monopólio de violência
dos Estados como um meio ávido de promover tanto a submissão individual e estatal, quanto
a do mercado aos seus juízos de valor previamente estabelecidos. O Deus-Normativo, o
imperador do liberal-socialismo ininterrupto e eterno, o autoritarismo dos mais fracos toma
o rosto da norma fundamental.
Os direitos fundamentais de Ferrajoli (2011), assim como a vontade geral de Rousseau
(2014) forçam uma concepção unívoca de liberdade goela abaixo, deixando um leve gosto de
servidão e fraqueza moral. Afinal, o paternalismo garantista pressupõe a incapacidade

6
Este é o fim proposto pela teoria Garantista, a efetivação de um mínimo material relativo à dignidade e à
subsistência individual. Em outras palavras, o acúmulo de riquezas de poucos é elencado como inviável frente à
necessidade de sobrevivência de muitos. Neste sentido, da tirania da maioria à tirania da norma fundamental,
afinal, se o interesse inicial era combater a tirania da maioria, em decorrência e através do direito fundamental
fora proposta a possibilidade de tomar de poucos tudo aquilo que satisfará os fins de muitos. Em outras palavras,
as maiorias devem ser restringidas em questões políticas, mas jamais em questões econômicas (COPETTI NETO,
2016).
543

individual, isto é, pressupõe homens-massa7 ao invés de homens-excelente8 (ORTEGA Y


GASSET, 2016). O indivíduo solitário apto a tomar uma decisão é aquele que se encontrará em
prejuízo quando tutelado por normas que visam apontar o caminho certo a ser percorrido.
Que os deixem à mercê de suas próprias individualidades e escolhas ao invés.
Um direito fundamental à vida me impede arbitrar sobre o meu próprio corpo; um
direito fundamental à sobrevivência me impede de arbitrar sobre meus próprios bens; um
direito fundamental à liberdade me impede de ser materialmente livre. Nada tornaria mais
palpável o roubo bélico de Franz Oppenheimer (1922)9 do que a ideia de um fisco mundial
(FERRAJOLI, 2011) e de um governo federado mundial (FERRAJOLI, 2014a), as quais me fazem
tremer de medo, dada a antítese à filosofia moral de Wilhelm Von Humboldt (2004).10
A confusão de Ferrajoli (2014a, p.795) ocorre no momento em que julga ser o Estado
de Direito social algo benéfico e ausente de toda e qualquer lesão. O que ocorre é uma
antítese entreà йstadoà deà Di eitoà li e alà eà йstadoàdeàDi eitoà so ial.à [...]à oà йstadoà deàdi eitoà
liberal deve somente não piorar as condições de vida dos cidadãos, o Estado de direito social
deve ainda melhorá-las; deve não somente não ser para eles uma desvantagem mas,
out ossi ,àse àu aà a tage .
O Estado de Direito liberal preserva a liberdade potencial, isto é, uma liberdade formal
que necessita de um meio para materializá-la; o Estado de Direito social incide sobre a
liberdade efetiva, isto é, a liberdade provida de um meio ávido a consumar seu exercício - a

7
Na obra A rebelião das massas, José Ortega y Gasset (2016) expõe o homem-massa não como um homem
financeiramente pobre, mas culturalmente. Em Apologia de Sócrates, Platão (2013) demonstra que a morte de
Sócrates foi consequência de sua exposição de sábios-ignorante, isto é, homens-massa, os quais beiravam sua
realidade grega. Eram mestres em uma determinada arte e, em decorrência a isso, entendiam estar em posição
propícia a opinar em uma infinidade de outros segmentos, posição esta supostamente legitimada pela possessão
de seu conhecimento específico, ao que Sócrates enxergava como errôneo. Desta maneira, o homem-excelente
não se confunde jamais com o homem-massa.
8
O homem-excelente é o oposto do homem-massa, no sentido de que não apenas sabe que não sabe, mas
transcende os liames de sua consciência terrena: trata-se de um homem que compreende a limitação de si em
determinado plano e sujeito a determinados efeitos (ORTEGA Y GASSET, 2016).
9
Em The State, Franz Oppenheimer (1922) elenca o Estado como sendo um grupo dominante e detentor de
poder político que subjuga, através deste, a casta dominada e a explora economicamente. Roubo bélico é o
produto maciço e sistemático da tomada de recursos inflexível perpetrada pelos detentores de poder político
através de seu monopólio de violência. O Estado é como um urso que cansou de destruir colmeias (sociedades)
e passou a explorar as abelhas (indivíduos), oferecendo seus serviços de segurança (contra ele mesmo) em troca
de mel (recursos).
10
Na obra Os Limites da Ação do Estado, Wilhelm Von Humboldt (2004) prega pela não intervenção do Estado
em quaisquer áreas que não aquelas relativas à segurança externa e interna, isso porque, se o fizer, o Estado
estaria a impedir o homem de evoluir. Em outras palavras, a intervenção do Estado produz um sentimento
amoral em seus cidadãos por remover destes a possibilidade de resolver seus litígios através de meios não
coercitivos; a intervenção os faz menos homens, afinal, pagam com a moeda por sua incapacidade de interação.
544

intervenção – a qual age em detrimento daqueles que já são livres efetivamente11. Em outras
palavras, a primeira liberdade faculta a qualquer homem o consumo de bens de qualidade,
mas é apenas através da segunda, ou seja, através de meios financeiros, que terá seu exercício
efetivado (BOBBIO, 2011).
Essa vantagem tira a escolha individual de tomar partido sobre ser quantificado ou
não; perder dignidade por se tornar um produto financeiro ou não; seguir a maré da norma
jurídica ou não. Pois que permitam que cada indivíduo faça juízo de valor acerca de serem
quantificados ou permanecerem como seres qualitativos, isso porque não cabe à norma, mas
a cada indivíduo conceber seu corpo como propriedade ou identidade12; cabe ao ser, e não ao
dever ser (FERRAJOLI, 2011).
Trata-se da falácia da agregação, isto é, a ideia de que podemos conceder doses de
igualdade sem mutilar a liberdade individual. Na tomada e realocação de recursos, uma parte
perde liberdade enquanto que a outra pode receber igualdade; ao impor convívio com
homens possuidores de características que os tornam repulsivos aos demais, está-se matando
a liberdade de ir e vir de uma parte, enquanto que à outra se está concedendo possível
igualdade (SCRUTON, 2015).
Existe uma antítese que compreende a liberdade e a igualdade que toma a forma de
que não se pode aumentar a liberdade sem reduzir a igualdade, assim como aumentar a
igualdade sem se reduzir a liberdade (BOBBIO, 2013).

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A norma fundamental não limita o poder, mas uma concepção de poder; não garante
a liberdade, mas um conceito de liberdade. A autonomia política é limitada, mas tudo aquilo
que não abrange o termo autonomia não é levado em consideração, o que, em decorrência,

11
A liberdade potencial é uma mera teoria, enquanto que a liberdade efetiva é a prática; teoricamente podem
todos os homens sobreviver ao inverno se bem agasalhados, mas só poderão de fato fazê-lo se detiverem de
agasalhos, recintos acalorados e meios financeiros que tornem propício sua liberdade em potencial (BOBBIO,
2011).
12
Ferrajoli (2011) acredita ser o corpo e a mente individual parte da identidade do homem, ou seja, quem cada
um é toma a forma de seu corpo e mente. Isso significa dizer que ninguém é dono do meu corpo em razão de
não se tratar de um bem, mas de quem eu sou. Por ser o homem apenas titular de seu direito à vida, não lhe
cabe prostituir-se (alugando o corpo), escravizar-se (vender seu corpo), vender seus órgãos (quantificando-os).
Devo ser livre, mesmo sendo escravo do direito fundamental que ordena um conceito unívoco de liberdade que
me aprisiona em seus liames.
545

leva a uma deslegitimação do dever cívico subjetivo – afinal já me coagem a ser altruísta -, da
democracia – afinal já estipulam qual governo e como governar.
Se uma série de princípios foi estipulada como últimos e inexoráveis à saúde da
sociedade e do indivíduo, o poder de governo e individual não apenas se encontram
enfraquecidos, mas também sua liberdade; presos, impedidos de prosseguir em meio aos
entraves proporcionados e assegurados pelo antagônico modelo de Estado de Direito
garantista.
Mais do que um atraso pernicioso à evolução da sociedade como um todo e em partes,
as dores que a tirania da maioria evoca migram para a tirania da norma fundamental, a qual
sufoca o indivíduo e o coletivo com sua substância arbitrária. Como afirma Constant (2007),
mais tirano do que o mais forte triunfar é quando o mais fraco o faz, assim, no momento em
que o direito fundamental representa a vontade dos mais fracos, o que se está a promover
são os interesses da minoria em detrimento dos da maioria.

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(RE) PENSANDO O CONFLITO SOCIAL BRASILEIRO E O TRATAMENTO POLÍTICO CRIMINAL:


UMáàáBO‘DáGйMàC‘ÍTICáàáàPá‘TI‘àDáàáNãLI“йàDáàOB‘áàCINйMáTOG‘ãнICáà ÚLTIMáà
Pá‘áà

Fernanda Licéli Lowe1


Karine de Castro Kotlewski2

RESUMO: O presente artigo aborda a temática da política criminal no contexto social


brasileiro. Oferecendo um olhar crítico sobre a obra cinematográfica dirigida por Bruno
Ba eto,à oà lo gaà et age à Últi aà Pa adaà à à aseadoà e à fatosà eais.à áà a ati aà
cronológica delineia a história de (sobre)vida de Sandro do Nascimento – representando a
realidade social das camadas pauperizadas brasileiras, intercalando sua trajetória de vida com
a de Alessandro. No que concerne aos conceitos doutrinários, de política criminal e de
criminologia, o indivíduo construído à sombra dos avanços da contemporaneidade é
delineado como o homo sacer. Frente ao exposto, revelam-se as dificuldades no íntimo do
personagem, negativamente caracterizadas pelos fatos sociais e cotidianos, bem como a
o st uç oàdeàu à sujeitoà i i oso àdia teàdaàpe spe ti aàdaà iol iaàu a a.

Palavras-chave: Análise Crítica; Política criminal; Criminologia; Direito Penal; Última Parada
174.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por escopo, apresentar algumas ponderações que, ora de
forma direta, ora de forma indireta, estão ligadas com a questão da exteriorização da violência
em nosso cotidiano e que vão muito além da simples ação ou efeito de delinquir (sendo este
o ápice de toda uma estrutura institucional, social, simbólica – designada como falha no
cumprimento de suas tarefas). A partir da análise crítica contextual da obra cinematográfica
i tituladaà Últi aàPa adaà ,à aseadaàe àfatosà eais,ààte e -se-ão algumas considerações e
críticas à forma como a própria política criminal trabalha a temática penal-social, e, então,
a a a àpo àfo e ta àoà í uloà i iosoàeà o ple oà ueà ul i aà o àasàp ti asàdelituosasà-
deà u à lado,à aà i se ç oà doà i f ato à oà papelà deà i i igo ,à deà out o,à to a do-o excluído,
anulado, objetificado à margem do convívio social, o homo sacer. Nesta linha, a crítica

1
Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijui
(Ijuí/RS). Pós Graduada em Direito Penal e Criminologia pelo Centro Universitário Internacional – UNINTER,
Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul – UCS.
2
Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul -
Unijui (Ijuí/RS). Graduada em Direito pelo Instituto Cenecista de Ensino Superior de Santo Ângelo – IESA (Santo
Ângelo/RS).
549

estabelecerá uma relação entre os mecanismos de controle social e a criação do Estado de


exceção, apontando-se para a (im)possibilidade de construção de um modelo de controle
social pautado na proteção/promoção dos Direitos Humanos, diante do contexto urbano,
político e social abordado na obra cinematográfica – negação do acesso e/ou alcance de
condições e oportunidades diversas que podem conferir novos rumos à vida e condição
humana.

. àB‘йVйà‘йLáTOà“OB‘йàáàOB‘áàCINйMáTOG‘ãнICáàINTITULáDáà ÚLTIMáàPá‘áDáà

Oà lo gaà et age à Últi aà pa adaà à à u aà o aà a io al,à di igidaà po à B u oà


Barreto, com roteiro de Bráulio Mantovani. O filme relata a história de Sandro e de Alessandro,
abordando a trajetória dos personagens a partir de uma linha temporal, cruzando-as no
decorrer da narrativa, até o fatídico dia 12 de Junho de 2000.
Inicialmente, o enredo reproduz uma favela do Rio de Janeiro, destacando a vida no
o oà o oà pa oàdeàfu do àaoà o ta àaàt ajet iaàdeà“a d o,àdesdeàosàp i ei osàdiasàdeà idaà
do personagem. Pela narrativa, Alessandro é forçosamente entregue pela mãe para Meleca,
chefe da traficância do Comando Vermelho do Rio de Janeiro, como pagamento de dívida
referente ao consumo de drogas. Na cena inicial, evidencia-se além do tráfico e da pobreza, o
consumo de bebida alcoólica e a utilização de armas como simbologia do poder local –
domínio da favela. O filme relata que o personagem Alessandro é criado pelo chefe do tráfico
(Meleca), dentro das perspectivas morais e normativas do Comando Vermelho, sendo
familiarizado com o tráfico na fase infantil.
De outra banda, seguindo a ordem temporal, a narrativa também exibe a história de
Sandro: uma criança da mesma periferia, criado pela mãe, que foi assassinada em seu
estabelecimento comercial (bar) durante um assalto noturno. Na ocasião, o fato a ser
destacado é o de que o menino relaciona o fator morte com a quebra de um copo, no
momento em que o copo cai ao chão, ele paralisa – associando o fato a um episódio
trágico/ruim.
Além de expor a brutalidade em relação aos crimes (desenvolvimento destes), o longa
delineia uma história de emoções - a intensidade do laço afetivo entre Sandro e a mãe é
perceptível durante as cenas iniciais. Posteriormente, o desmoronar dos sonhos é enfatizado
pelo autor, que destaca a negação absorvida por Sandro, que foi renegado pelo marido de sua
550

tia – as sensações de amor e ódio, revolta e abandono acompanham a trajetória do


adolescente. No filme, após fugir para Copacabana, Sandro depara-se sem dinheiro e na rua,
encontrando alento junto às crianças/adolescentes da escada da Candelária. Neste período, a
vida de Sandro toma um novo rumo: ele adota o estilo de vida destes moradores de rua,
recebe o apelido de Alê, comete pequenos delitos patrimoniais, envolve-se com o mundo das
drogas (consumo e traficância), e, principalmente, conhece Alessandro ao ser cobrado por
uma dívida do tráfico - momento no qual as duas histórias se entrelaçam.
A violência urbana é definida através do episódio da chacina da Candelária (extermínio
em massa de crianças/adolescentes de rua). Noutro momento, os personagens reencontram-
se na casa prisional, tornam-se íntimos e parceiros para a criminalidade/traficância. Durante
todo o enredo, Marisa, a mãe de Alessandro, luta para encontrar o filho. Devido ao apelido,
ál à à o fu didoàpo àálessa d o,àeà assu e àoàpapelàdesteàdia teàdasàp o essasàdaà e.àáà
história de Sandro/Alê versa sobre o amor e o apego, sobre os sonhos do jovem... O
sentimentalismo do personagem encarna a questão do viver ou morrer, e, neste contexto,
desespera-se (devido a questão do abandono) ao ser renegado pelo namorado de sua mãe
Marisa, ao ser traído pelo amigo Alessandro e também pela namorada, ao ter ameaçado
pessoas em quem confiava pelo fato de sentir-se traído. Ao final, ao entrar em um bar e
deparar-se com a cena de um copo cair e quebrar ao chão, Sandro associa o acontecido com
o dia em que coisas ruins acontecem. Devido ao fato, o acaso destina Sandro para o sequestro
do ônibus na parada 174, no dia 12 de Junho 2000.
‘efe e teà aoà e posto,à oà lo gaà et age à Últi aà Pa adaà à à aseadoà e à fatosà
reais, narra a história de (sobre)vida de Sandro do Nascimento, que aos 22 anos sequestrou o
ônibus na Zona Sul do Rio de Janeiro. Contudo, a obra reproduz o contexto social das camadas
pauperizadas brasileiras – criança pobre, negra, órfã, sem estudo e sem incentivo, com sonhos
negados/roubados, traumatizada pela morte, sobrevivente da violência urbana e traída pelo
amor - ou seja, a criminalidade de Sandro é um produto da desigualdade social.

2.2 ANÁLISE CRÍTICA DO LONGA: DA CADEIA DE ELEMENTOS SUBJACENTES (E


DETERMINANTES) DO ÁPICE CONFLITIVO REPRESENTADO PELA VIOLÊNCIA FÍSICA

Da análise de todo enredo acima descrito, e, sem negligenciar acerca dos inúmeros
enfoques a partir dos quais poderiam ser levantadas críticas e encaradas problemáticas
551

diversas, elegeu-se as seguintes pontuações para serem trabalhadas nesta observação crítica,
a citar: 1. A fragilização/desmoronamento do núcleo familiar (enquanto instituição que forma
o sujeito, lhe confere identidade, representação e referência) assim como a ausência de
instituições sociais, como circunstância propulsora da delinquência (em específico, aqui, a
juvenil). 2. Os contrastes econômicos, sociais e culturais visualizados na sociedade
contemporânea, capitalista, globalizada e sua vinculação com a acentuação dos processos de
exclusão e marginalização social. 3. A violência física, visível, como resultado de reiterados
processos de violações dos diversos campos que integram a dignidade humana no seio social.
4. A inadequação com que o Estado (enquanto detentor do monopólio da violência legítima e
da atividade jurisdicional), e, no âmbito do Direito, com que o Direito Penal e Processual Penal
lida com infrações penais e, sobretudo, com os conflitos a partir dos quais as práticas delitivas
emergem no âmbito juvenil.
Primeiramente, verifica-se, no transcorrer do longa-metragem, a desestruturação
familiar presente na vida de ambos os protagonistas, Alessandro e Sandro. Este viu a vida de
sua mãe ser ceifada por bandidos que assaltaram o estabelecimento da família. Aquele, foi
retirado à força dos braços de sua mãe, viciada em drogas e álcool, pelo seu suposto pai (um
dosàg a desàt afi a tesàdaàfa elaàe à ueà esidia ,à o oà eioàdeàpaga e to àdaàdí idaà ueà
ela possuía com o tráfico. Pequenos núcleos familiares solapados pelos males das drogas e
dos vícios, e, destruídos pelo acerto de contas, pela vingança privada, tão comum e
prevalecente em lugares aonde a tutela estatal não chega (a tempo) e o Estado-Providência
sequer deixa rastros de existência, abrindo brechas, assim, para a sedimentação de um direito
oà ofi ial,à ou,à ai da,à u à di eitoà a gi al ,à omo nomina Faria (1997), erigido sob as
pilast asàdaàleiàdoà aisàfo te/pode oso,à ujoà digoàdeà o dutaà a t àsuaàp p iaà ti a à
e,àasà pe as àpa aàsuaà iolaç oàs oà igo osas,à e tasàeàte idas.à
Após a ida dos jovens ao centro do Rio de Janeiro, mais uma vez, nota-se o afastamento
de ambos com quaisquer pessoas, ícones ou entidades/instituições forjadoras/fortalecedoras
da identidade e sociabilidade dos sujeitos, não restando alternativa aos meninos a não ser
adequar-seà à l gi aàdoàsiste a àdasà uasàe do tráfico, iniciando-se, a partir daí, o ingresso no
mundo do crime.
552

Sob uma perspectiva multidisciplinar e, valendo-se das observações tecidas por


Garapon, juiz francês que dedicou grande parte de sua carreira como magistrado à atuação
perante os juizados da infância e adolescência, nota-se que

o sujeito, privado das referências que lhe dão uma identidade e que estruturam sua
personalidade, procura no contato com a justiça uma muralha contra o
desabamento interior. Em face da decomposição do político, é então ao juiz que se
recorre para a salvação. Os juízes são os últimos a preencher uma função de
autoridade – clerical, quase que parental – abandonada pelos antigos titulares (2001,
p. 27),

de modo que, sob o prisma jurisdicional, [...] o juiz torna-se igualmente uma referência para
o indivíduo perdido, isolado, sem raízes – produzido por nossas sociedades -, que procura no
confronto com a lei o último resquício de identidade (2001, p. 24). Dell aglioàeàNa dià ,à
fazendo uma digressão teórica acerca da delinquência juvenil, valendo-se de autores tais
como Patterson, Reid, Dishion e Shoemaker, apresentaram dois modelos de abordagem de tal
temática. O primeiro propõe o desenvolvimento do comportamento antissocial em quatro
etapas: a primeira, relacionada à incidência de práticas antisociais no âmbito do próprio grupo
fa ilia à daà ia ça/adoles e te;à aà segu da,à i uladaà aoà espelha e to à daà o dutaà
antissocial ocorrida na família à instituições externas a ela, tais como a escola; a terceira etapa,
diz de uma propagação da etapa anterior, agora para outros ambientes e instituições, porém,
buscando, a criança/adolescente, identificar-se e inserir-se em grupos que convalidem e
incentivem as práticas delinquentes, conferindo-se,à destaà fo a,à u à efo çoà ide tit io à
desta natureza ao jovem; por fim, a quarta etapa, incidente no período adulto, exterioriza-se
pela continuidade das práticas antissociais, associadas a problemas com vícios, de
relacionamentos e demais campos que orbitam esta fase da vida.
O segundo modelo de abordagem trazido pelas autoras, apresenta-se em três níveis:
est utu al,à i di idualà eà so iopsi ol gi o.à Oà p i ei oà [...]à refere-se às condições sociais e
abrange a incapacidade de organizações, grupos ou indivíduos de uma mesma comunidade
pa aà esol e à oleti a e teàp o le asà o u s à ,àp.à -71). O nível individual relaciona-
se a aspectos de ordem subjetiva do jovem e que contribuem/influem para a inclinação à
práticas antissociais; o sociopsicológico:
553

[...]refere-se à autoestima, à influência dos grupos e aos sistemas de controle. Neste


nível é enfatizada a influência dos grupos, tendo em vista que o jovem autor de ato
infracional geralmente age em conjunto ou, quando age sozinho, seu
comportamento é fortemente influenciado por um grupo e pelo ambiente em que
vive (2010, p. 71).

Lecionam as pesquisadoras, ainda embasadas naqueles autores, que, para tais


condutas delinquentes, são sugestionados dois mecanismos de controle, o pessoal e o social:
aquele relativo a aspectos internos ao jovem; este, relativo à atuação das instituições sociais
em prol da definição de contornos e limites à conduta dos jovens, sendo certo que

nesse nível é dado um maior destaque para a família, pois ela é vista como a
instituição capaz de exercer maior controle sobre o jovem, tendo em vista que as
relações estabelecidas dentro da família terão implicações nas condutas sociais
futuras dos jovens e adultos (2010, p. 71).

Por evidente, portanto, que a desarticulação do grupo familiar, a ausência das


instituições que influenciam na construção dos traços de identidade e sociabilidade que irão
acompanhar o jovem durante toda sua vida são circunstâncias que corroboram com a
formação de indivíduos hiperindividualistas que, ao longo de sua existência não vêm seus
limites e desejos serem castrados pela ausência, notadamente na contemporaneidade, do que
aàpsi a liseà l ssi aàe te deàpelaà figu aàdoàPai ,à o fo eà osàe pli aàMa afo à ,àe,à
por via de consequência, no perfil de jovens desregrados, infratores, sem referências, com
extremas dificuldades de observar limites (éticos, legais e sociais) e de lidar com frustrações
e faltas que a vida nos apresenta.
Quanto ao segundo elemento, é imperioso destacar a forma avassaladora e profunda
com que vem sendo (re)produzidas e repaginadas, em nossa sociedade, categorias como
discriminação, inclusão/exclusão, tendo em conta os processos de transnacionalização e
globalização, fomentados pelo severo capitalismo vigente, que, além de colocarem em
questionamento os pilares sob os quais o Estado-nação foi erigido, promovem processos de
fragmentação do sujeito, rediscute a noção de tempo e espaço, ambiciona a propagação de
modelos de cultura e consumo homogêneos para todo o mundo, estipula padrões, tudo isto,
muitas vezes, à custa de regimes de trabalhos análogos à escravidão, da manutenção da
hipossuficiência e condições precárias de vida e desenvolvimento de parcelas populacionais
que, mesmo sem ter visibilidade, são responsáveis pelo funcionamento das engrenagens de
tal sistema.
554

Parece que categorias imprescindíveis à constituição do sujeito estão condicionadas


ao seu ingresso e participação ativa nestes processos contemporâneos (em específico, por
exemplo, no âmbito aquisitivo e de consumo), tais como a identidade e cidadania (CANCLINI,
1997). De outra banda, colocam-se em questionamento, os limites e possibilidades de
intervenção do Estado-nação para fins de equalizar tais ondas excludentes e avassaladoras
que tendem a afetar com mais vigor as populações que permanecem alheias a toda esta
lógica. Isto porque, o Estado-nação, na sua concepção tradicional, vem perdendo monopólio
de regulação, vê sua soberania sendo esmaecida, sua autonomia e seus interesses
subordinados a uma lógica supra e paraestatal, tornando-o impotente e impossibilitado de
promover as ações necessárias para fins de garantir um mínimo de acesso igualitário aos seus
administrados no que toca aos bens e interesses mais prementes e básicos ao alcance de um
ideal de vida digna.
Isto tem reflexos, igualmente, no âmbito do acesso à justiça e aos direitos e garantias
pelos cidadãos, porquanto

[...] os excluídos dos mercados de trabalho e consumo perdem progressivamente as


condições materiais para exercer os direitos humanos de primeira geração e para
exigir o cumprimento dos direitos humanos de segunda e terceira geração; tornam-
se supérfluos no âmbito do paradigma vigente, passando a viver sem leis protetoras
efetivamente garantidas em sua universalidade. Condenados à marginalidade sócio
econômica e, por conseqüência a condições hobbesianas de vida, eles não mais
aparecem como portadores de direitos subjetivos públicos. Nem por isso, contudo,
são dispensados das obrigações e deveres estabelecidos pela legislação. Com suas
normas penais, o Estado os mantém vinculados ao sistema jurídico basicamente em
suasà feiç esà a gi ais,à ouà seja,à o oà t a sg esso esà deà todaà atu eza. à нá‘Iá,à
1997, p. 50)

O item 3 é eleito como um dos que mais requer destaque no cenário do filme. Explica-
se. O emprego da violência física, brutal, bem como o sofrimento da mesma pelos
personagens é presença constante do início ao fim da história, ora como atitude ofensiva, ora
reativa. Alessandro vale-se de tal mecanismo para lograr êxito na vida de traficante, incutindo
medo naqueles que são seus devedores, mantendo-se, desta forma, no posto de relativo
p estígioà eà espeita ilidade à de t oà daà adeiaà doà t fi o.à “a d oà i i ial e teà oà pa e eà
predisposto a delinquir, malgrado o cenário de risco em que estava inserido, porque guardava
em seu íntimo, o sonho de ser um grande rapper e ver seu trabalho musical reconhecido.
Porém, em um segundo momento, ao ver cada vez mais seu sonho distando da realidade e,
555

de outro modo, ao notar as (im)possibilidades que ao fim e ao cabo lhe conferiam na


sociedade um papel marginal e corroboravam para um desfecho desviante (tais como o
afastamento da escola e da educação, a ambição pelo dinheiro, pelas posses, pelo poder etc.),
o fizeram aderir à (mais provavelmente a única) via cujas portas estavam abertas para sua
entrada, ou seja, a criminalidade, mas que cujo caminho só possuía a viagem de ida, conforme
realmente veio a acontecer ao final.
Nota-se, que a adesão, pelos personagens, à categoria da violência física constitui-se
no estopim de um processo gradual de reiterada violações e violências sofridas desde a
infância dos mesmos, muitas das quais não se revestem do elemento visibilidade que qualifica
a violência física, mas que, em virtude disso, não deixam de ser mais perniciosas à vida e à
sociabilidade do jovens. Versa-se, aqui, acerca da violência simbólica Bourdieu (1998), aquela
que, às ocultas, está presente, está articulando-se com inúmeros fatores ambientais e sociais,
está a contribuir com a desestruturação psicossocial do indivíduo, obstaculizando o alcance
de seus sonhos e metas, dificultando a assunção de sua condição de protagonista da própria
história e de agente de transformação e progresso social. Pela sutileza e complexidade que
caracteriza esta forma de violência, tal só pode ser identificada e combatida a partir de um
olhar atento e multifacetado. Disto conclui-se que, entender o que subjaz à violência física, a
explosão/exteriorização do(s) conflito(s), notadamente no que toca às áreas do conhecimento
que com a seara conflitiva, de alguma forma, trabalham (como a Psicologia, a Sociologia, o
Direito etc.) é uma proposta imprescindível e indeclinável quando se almeja não só resolver o
conflito, mas, sobretudo, evita-lo.
Por fim, o item quarto revela-se um dos mais complexos desafios, de difícil
superação. As crises e instabilidades que acometem o aparato estatal são evidentes, situação
que ganha nuances ainda mais dramáticas no cenário brasileiro, onde a transição do modelo
de Estado Liberal ao Social não foi precedida de um verdadeiro processo de transformação,
mas, antes, daquilo que Boaventura de Sousa Santos (2014) chama de curto-circuito histórico,
promovendo uma acumulação de promessas não cumpridas e um déficit assustador no que
tange à concretização de direitos aos indivíduos. As dificuldades de implementação de
políticas públicas eficazes e voltadas mais à prevenção do que à resolução de conflitos é algo
tímido em nossa prática institucional; mitos como redução da maioridade penal e a edição de
legislações (mais severas, por exemplo) só institucionalizam ou agravam o déficit de
556

institucionalidade e efetividade do Estado. A lógica presente no íntimo de um percentual


razoável de pessoas, acerca da necessidade de encarceramento deve ser combatida, haja vista
as mazelas do sistema prisional, de um lado, bem como o fato de que tal lógica, mesmo que
vinculada à função de socialização da pena, são, atualmente, propostas utópicas e que, ao
final, só contribuem com o agravamento deste quadro geral, o que pode ser constatado a
partir dos grandes níveis de reincidência, o que ocorreu, inclusive, no filme debatido.
O Estatuto da Criança e Adolescente, por exemplo, trouxe propostas interessantes
de participação multi e interdisciplinar de vários profissionais, várias áreas e sob variados
aspectos nas demandas jurídicas que envolvam jovens infratores ou em conflito com a lei,
porém, a prática integral e concreta de tais medidas é algo que, para atingir patamares
satisfatórios, requer muito esforço e empenho entre as instituições estatais e a sociedade civil
no todo. No âmbito do Direito e da prática jurisdicional, é imprescindível que o Direito
reconhece suas limitações e recepcione as contribuições que outras áreas do saber podem
ofertar no tratamento dos conflitos envolvendo menores, bem como que o Poder Judiciário
tome consciência de que o fato que a ele é submetido não apresenta apenas aquele caráter
de juridicidade, mas, antes disso, vincula-se com falhas em diversos campos sociais e pessoais,
não sendo correta, portanto, a postura jurisdicional de colonização do tratamento do conflito.
O discurso não é inédito, mas precisa ser, de forma incansável, propagado: fortalecer
as instituições tais como escola e família, abrir espaço de participação social na atividade
estatal devem integrar com prioridade a pauta estatal, de forma a resgatar os laços e
promover a aproximação dos jovens com as pessoas e instituições das quais necessitam
enquanto sujeitos sociais. Repensar, igualmente, a forma com a Justiça da Infância e
Juventude aplica e acompanha as medidas a que estão sujeitos os jovens infratores é questão
de extrema importância, já que,

a instituição que aplica a medida constitui, muitas vezes, a fonte de apoio social mais
próxima e organizada na vida do adolescente infrator, podendo favorecer uma
vinculação aisàpositi aàe t eàoàjo e àeàsuaàfa íliaà Dйээ áGэIO;àNá‘DI,à ,àp.à
74),

bem como o seio social, promovendo uma revalorização do indivíduo sobre si e suas
potencialidades, o resgate dos vínculos identitários rompidos, uma remodelação das condutas
557

antissociais, para, por fim, ser possível contar com mais um cidadão envolvido no projeto
democrático e social ambicionado pela nação brasileira, positivado em nossa Constituição.

2.3 A HOMOGEINIZAÇÃO CULTURAL E A CRÍTICA AO SISTEMA POLÍTICO CRIMINAL


BRASILEIRO – A ORDEM SOCIAL E A OBSCURIDADE DA LÓGICA EXCLUDENTE DO HOMO
SACER

Apresentados, até o momento, o enredo no qual se passa a obra cinematográfica sob


apreciação, bem como alguns dos aspectos que subjazem a história de vida dos protagonistas
e que, de uma forma ou outra, os influem na tomada de decisões que impactaram em suas
vidas. Neste último item a ser desenvolvido, impende tecer breves considerações acerca da
política criminal brasileira, considerando-se, no caso do filme - e o que se repete
cotidianamente no contexto social brasileiro, a forma negligente e/ou omissiva perpetrada
pelo Estado, no tocante àquelas pessoas em situação de risco/vulnerabilidade, bem como a
lógica de exclusão/deficiência levada a efeito pela sistemática penal brasileira.
Desta forma, devido à política criminal repressivista e o sistema econômico capitalista
que lhe subjaz, os processos de exclusão social foram culturalmente naturalizados na
sociedade brasileira. Nesta linha, Nilo Batista (2007, p. 18) cita Tobias Barreto em uma
passage à deà suaà o aà I t oduç oà íti aà aoà di eitoà pe alà asilei o ,à po tua doà ueà oà
existe um direito natural, mas uma lei natural no direito. Ou seja, não existe linguagem natural
– considerando que o homem configurado está como um produto, poisà oàe e eài dúst iaà
nem cultiva arte de qualquer espécie que a natureza lhe houvesse ensinado; tudo é produto
deleà es o,à doà seuà t a alho,à daà suaà ati idade .à Destaà fo a,à oà di eitoà à u aà p oduç oà
humana, uma construção a partir de hábitos sociais, econômicos, morais e religiosos –
minimamente estipulados pela ordem.
Outrossim, vislumbra-se a incapacidade do Estado em julgar e processar correta e
dignamente os atos, determinando brutalmente quais são os sujeitos relegados a uma vida
ua à homo sacer). Por intermédio do Estado a classe dominante fixa estes limites ao
est utu a à u aà apa elhage à deà oe ç oà eà ep ess oà so ialà ueà lheà possi ilitouà e e e à oà
poder sobre a integralidade do tecido social, de forma a submetê-loà sà eg asà políti as à
(COSTA, 2005, p. 18) - é o limiar que articula e separa aquilo que está dentro daquilo que está
fora.
558

De encontro ao exposto, a criminologia crítica busca evidenciar os tipos seletivos de


discurso criminológico e político-criminal, estabelecendo uma severa crítica às práticas
punitivas dos sistemas penais da contemporaneidade. Nesta lógica, visando a assegurar o bem
estar social, o Estado utiliza-se desta linguagem simbólica para garantir a convivência
harmônica do grupo hegemônico e (re)produzir a seletividade punitiva em relação às classes
desfavorecidas/pauperizadas. A situação decorrente deste sistema é o evidente desapego à
teoria do fato e a consolidação de um modelo de direito penal do autor. Sobretudo, a
estereotipagem desta política seletiva traduz a concentração da repressão penal, em um
a oà oà ualàoà out o à àoàest a ho,àoàdife e te,àoà i i oso,àoàdeli ue te:à àoàho oàsa e .à
Agamben (2002, p. 89) traz à baila a figura do homo sacer, discorrendo nesta nomenclatura
sobre a estrutura da sacratio – tal o oà aà o ju ç oà deà doisà aspe tos:à aà i pu idadeà daà
ata çaàeàaàe lus oàdoàsa ifí io .à

Aquilo que define a condição do homo sacer, então, não é tanto a pretensa
ambivalência originária da sacralidade que lhe é inerente, quanto, sobretudo, o
caráter particular da dupla exclusão em que se encontra preso e da violência à qual
se encontra exposto. Esta violência – a morte insancionável que qualquer um pode
cometer em relação a ele - não é classificável nem como sacrificio e nem como
homicídio, nem como execução de uma condenção e nem como sacrilégio.
Subtraindo-se às formas sancionadas dos direitos humano e divino, ela abre uma
esfera do agir humano que não é a do sacrum facere e nem a da ação profana, e que
se trata aqui de tentar compreender. Nós já encontramos uma esfera-limite do agir
humano que se mantém unicamente em uma relação de exceção. Esta esfera é a da
decisão soberana, que suspende a lei no estado de exceção e assim implica nele a
vida nua (AGAMBEN, 2002, p. 90).

Ressalta-se aqui, a obscuridade desta lógica calcada em interesses econômicos e de


poder - aà uest oà i i alà asilei aà ela io adaà est à o à aà posiç oà deà pode à eà asà
necessidades de ordem de uma determinada classe social. Assim, a criminologia e a política
criminal surgem como um eixo específico de racionalização, um saber/poder a serviço da
a u ulaç oàdeà apital à BáTI“Tá,à ,àp.à .à
Não obstante, o que subjaz ao sistema criminal brasileiro é o paradigma da seletividade
punitiva. Ou seja, para determinados contingentes popula io ais,à s à estaà à seg egaç o,à
tanto pela via da marginalização social e espacial quanto por meio do encarceramento em
assaàeàdaàeli i aç oàpu aàeàsi plesàaàpa ti àdaài te e ç oà iole taàdoàsiste aàpu iti o à
(VALENTE, 2010, p. 16). Uma vez que a política criminal foi instaurada para o maior êxito do
йstadoàdeà e àesta àso ial,àfi aà la aàaàdife e iaç oàe t eàosà o sà idad os àeàosà ausà
559

idad os .à Nesseà se tido,à oà si tag aà homo sacer nomeia algo como a relação política ou
originária – a sacralidade é a forma originária de implicação da vida nua na ordem jurídico-
políti a.àága e à àso ele aàaà ata ilidadeàdoàho oàsa e ,à o deàsa e àsig ifi aàu aà
idaà at el à- no sentido contraditório ao que é sacro.
Vinculando o exposto à doutrina de Batista (2014), é possível concluir que o exercício
do poder punitivo é constante – à essaàt a sfo aç oàdosà o posàe à o posàd eis,à essaà
do eàutilidade,à essaàdu tilidadeàdaà idaàhu a a,à ueà aiàseàesp aia àaà i ofísi aàdoàpode à
(BATISTA, 2014, p. 95). Neste i loàpu iti o,àosà so ial e teà a gi alizadosàs oà o e tidosà
em potenciais infratores e, como tal, tornam-se os clientes do controle social, seja da política
da pena e da criminalização (estigmatizados como criminosos), seja da política social e do
assiste ialis oà estig atizadosà o oà g uposàdeà is o à áND‘áDй,à ,àp.à .àOà odeloà
de justiça penal propaga a seletividade estrutural, disseminando a cultura de segurança
baseada no controle e na criminalização de camadas pauperizadas pela sociedade - além de
nitidamente calcadas na conduta de sujeitos determinados -, assoberbando o cunho de
e essi aà i i alizaç oà dia teà dasà o dutasà i di iduaisà isí eis à o t aà oà pat i ioà eà
secundariamente contra a vida, visíveis sobretudo à ação policial (primeiro filtro de ambos os
siste as ,à a à i i alidadeàfoiàse doàide tifi adaàeà o st uídaà o oàaà i i alidadeàdeà ua,à
ou seja, como a criminalidade da pobreza (dominantemente masculina e não branca) e a ela
si li aàeài stitu io al e teà eduzida à áND‘áDй,à2009, p. 05).
Neste contexto, traz-se à baila a contribuição de Eugenio Raul Zaffaroni na perspectiva
deà ueà oà pode à pu iti oà se p eà dis i i ouà osà se esà hu a osà eà lhesà o fe iuà u à
tratamento punitivo que não correspondia à condição de pessoas, dado que os considerava
apenas como entes perigosos ou daninhos. Esses seres humanos são assinalados como
inimigos da sociedade, a eles é negado o direito de terem suas infrações sancionadas dentro
dosà li itesàdoà di eitoàpe al[...] à )áннá‘ONI,à ,à p.à .àPo de a-se que a criminalidade
abordada na obra cinematográfica é objeto da construção social. A cultura da criminalização
é oriunda de processos colonizadores, como forma de reação diante de um conjunto de
relações sob as quais vivem os indivíduos, interferindo diretamente em suas ações, ditando
quais são os sujeitos aceitos ou não dentro da sociedade
Associando o exposto à doutrina de Agamben, vislumbra-seà ueàoàfil eà Últi aàPa adaà
àde o st aàte po al e teàaà o st uç oàdeà“a d oà o oàoàhomo sacer: indivíduo que
560

possui o estereótipo do negro, de classe social pobre, abandonado afetivamente e forçado a


desistir dos estudos, inserido na criminalidade infantil e produto da violência urbana,
manipulado pela lógica criminal capitalista, e, ao final, caracterizado como o inimigo.

3. CONCLUSÃO

Diante do exposto, conclui-se que a problemática que envolve a explosão conflitiva


pela exteriorização da violência, é evento que há tempos se vem gestando: acumulando
carências, violações, omissões, esquecimento, exclusão e objetificação daqueles que se
encontram em situação de risco/vulnerabilidade, relegados pelo Estado e pela sociedade. De
outra banda, também é fruto de uma lógica globalizada, consumeirista, capitalista que, para
manter-se no poder, justifica e fundamenta sua legitimidade através da criação da figura de
u à i i igo à ue,à e à i tudeà destaà posiç oà ueà o upa,à oà e e eà te à ozà e à ezà oà
o te toàso ietal.à‘eputa doàasàafi ati asà àa liseàdaào aà i e atog fi aà Últi aàPa adaà
,àe à ueàpeseàosàavanços em termos de políticas públicas e direitos/garantias jurídicas
no âmbito social (desencadeadas notadamente pelo Estado-Providência), as mazelas sociais
continuam a fazer suas vítimas diariamente - o aparato jurídico-repressivo persiste na
es olhaà deà seusà al os ,à oà fil eà ep ese tadoà oà indivíduo-alvo através do personagem
Sandro. Outrossim, a política criminal, malgrado suas potencialidades de intervir
positivamente para alteração deste status quo, ecoa e propaga a lógica perversa – e
repressivista de camadas pauperizadas, excludente e anulatória que enreda o contexto
nacional, social, institucional, político e econômico.

REFERÊNCIAS

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Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 2. ed. Rio
de Janeiro: Revan, 2006.
562

O ESTADO DE EXCEÇÃO COMO PARADIGMA DE GOVERNO NA CONTEMPORANEIDADE E O


TENSIONAMENTO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Adalberto Wolney da Costa Belotto1


Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth2

RESUMO: O presente estudo investiga as teses dos filósofos Michel Foucault e Giorgio
Agamben visando a compreender a biopolítica e a produção da vida nua na
contemporaneidade, relacionando-as ao paradigma denominado por Agamben de Estado de
Exceção. Nesse sentido, analisa quem são os indivíduos rotulados como Homo Sacer e em que
medida a expansão do Direito Penal interfere nas políticas de Segurança Pública, o que se
revela, no caso dos presídios brasileiros, na determinação do perfil da massa carcerária no
país. Com isso busca-se compreender a crise do atual paradigma de governo que vem se
implementando na contemporaneidade, o qual está utilizando estes métodos como técnica
de governo. Agamben denomina este novo modo governar a vida em sociedade de Estado de
Exceção, o qual adquire uma conotação biopolítica, estruturada em um Direito de suspensão.

Palavras-chave: Estado de exceção; Biopolítica; Vida nua; Segurança Pública; Direitos


Humanos.

1 INTRODUÇÃO

Os eventos terroristas ocorridos nos Estados Unidos no dia 11 de setembro de 2001,


com a destruição das torres gêmeas do World Trade Center, em Nova Iorque, contribuíram
com uma mudança na política criminal mundial de segurança. A partir desse marco, a América
assinala um novo paradigma político nas democracias ocidentais, marcada, na seara da
Segurança Pública, pelo recrudescimento do Direito Penal e Processual Penal e pela
relativização dos direitos e garantias constitucionais. Nesse novo paradigma mundial inverte-
se a lógica da prisão: o que era para ser a ultima ratio passa a ser a regra. Nunca se aspirou
tanto por políticas preventivas ou de segurança. Devido a um momento de alarde em torno
dos riscos vivenciados pela sociedade, o Estado, com o escopo de dar uma resposta
satisfatória aos cidadãos, os quais estão com medo da violência, passa a se utilizar o Direito

1
Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ
(2016). Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público - FMP
(2013). Possui graduação em Direito La Salle - Canoas (2010). Atualmente é advogado.
2
Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS (2014). Mestre em Direito pela
UNISINOS (2010). Pós-graduado em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Regional do
Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ (2008). Graduado em Direito pela UNIJUÍ (2006). Professor do
Curso de Mestrado em Direitos Humanos da UNIJUÍ.
563

Penal como se fosse o único meio satisfatório capaz de solucionar os problemas da Segurança
Pública.
Ainda que já decorridas quase duas décadas desse trágico ato terrorista nos EUA, seus
reflexos ainda são sentidos no mundo todo. Percebe-se que o Estado, a fim de satisfazer seus
interesses escusos, mas com o discurso político de que suas ações são de interesse público, se
utiliza de práticas biopolíticas como a vigilância e políticas de coerções, as quais privilegiam
apenas uma pequena parcela da sociedade, beneficiando tão somente as pessoas adaptadas
ao sistema capitalista em uma sociedade de consumo. Nesse ínterim, a forma como o Estado
age frente à sociedade tem sido objeto de estudo por especialistas no assunto, haja vista que
esse novo modelo de Estado de Exceção tende cada vez mais a se arraigar como um novo
paradigma de governo na contemporaneidade, gerando um cenário marcado pela
insegurança, vulnerabilidade, medo, afronta aos Direitos Humanos e à Dignidade da Pessoa
Humana. Nesse Estado de Exceção, o filósofo italiano Giorgio Agamben destaca práticas
totalitárias praticadas pelo soberano. Esta forma de agir do soberano deveria ficar restrita a
acontecimentos excepcionais, possuindo suas limitações a um determinado espaço de tempo
e lugar. Entretanto, o que era para ser exceção torna-se a regra devido ao uso permanente
das medidas exercidas no Estado de Exceção. Depreende-se que a excepcionalidade tornou-
se o paradigma adotado pelo governo na contemporaneidade como uma técnica de governo.
Nesse Estado de Exceção o poder soberano acaba por capturar a vida humana, estando
alicerçado no estado de necessidade, retornando à máxima da teoria da necessitas legem
non habet ,àouàseja,àaà e essidadeà oà e essitaàdeàlei.àNessaàa epç o,àoàйstadoàdeàй eç oà
constitui um ponto de desequilíbrio entre o direito público e o fato político.

2 DESENVOLVIMENTO

Carl Schmitt, em sua obra Politische Theologie de 1922 (FRANCO DE SÁ, 2009, p.7),
começa a desenvolver a teorização da relação do Estado de Exceção com a soberania,
(AGAMBEN, 2007), definindo o soberano, como sendo aquele que tem o poder de decidir
sobre o estado de exceção (AGAMBEN 2007, p.15). De acordo com a definição de Carl Schmitt:
“o e a oà à ue à de ideà so eà oà estadoà deà e eç o à Cá“T‘O,à ,à p. .à Oà estadoà deà
exceção é um dispositivo com o qual o poder soberano acaba por capturar a vida humana
(FOUCAULT, 2010, p.85), estando calcado no estado de necessidade retomando a máxima da
564

teo iaàdaà necessitas legem non habet ,àouàseja,àaà e essidadeà oà e essitaàdeàlei (TEIXEIRA,
2015, p.108). Nessa acepção o Estado de Exceção constitui um ponto de desequilíbrio entre o
direito público e o fato político.
O Estado de Exceção, na Alemanha, ganhou o nome de Ausnahmezustand ou
Notstand; na Itália e na França os termos empregados foram decretos de urgência e estado
deà sítioà políti oà ouà fi tí ioà état de siège fictif .à Nasà te asà o teadasà peloà direito anglo-
sa i o,àoà o eàe p egadoàfoià martial law e emergency powers (AGAMBEN, 2007, p.15).
Agamben (2014) entende que a denominação mais correta a ser empregada ao Estado de
Exceção é aquele nome batizado pela Alemanha, devido ao seu alcance ao ponto fulcral do
presente tema, definindo um conceito limite o qual delineia um limite e dois conceitos, o que
seria à mercê do direito em relação ao sujeito na qual este não encontra abrigo nas leis, dando
muito mais ênfase a uma ideia voltada ao âmbito militar bélico (CASTRO, 2015, p.86).
Com relação ao Estado de Exceção, este não diz respeito a um determinado ramo
específico do direito, mas está além deste, é algo intangível de difícil contenção, o que é
inapreensível e, segundo Agamben (2014), com relação ao Estado de Exceção ainda não se
tem uma teoria definida na esfera do direito público. Neste sentido, o Estado de Exceção se
encontra em uma situação paradoxal entre o fático e o jurídico, não se encontrando em
nenhum desses por completo, apenas em uma pequena parcela, nascendo assim a dificuldade
em situar com precisão a qual ramo do direito o Estado de Exceção pertence. Contudo,
observa-se que o Estado de Exceção possui uma importantíssima relevância ao
funcionamento do estado de direito considerando-o a base propulsora, sendo a resposta
imediata no caso de guerras, revoltas e insurreições (AGAMBEN, 2008, p.12).
O Século XX foi marcado por uma guerra civil considerada legal sob o ponto de vista
jurídico. Com a criação do Estado nazista Adolf Hitler, assim que tomou posse do poder, em
28 de fevereiro, promulgou o Decreto com a justificativa da proteção do povo alemão e do
Estado suspendendo os artigos da Constituição de Weimar, os quais previam as liberdades
individuais (AGAMBEN, 2007, p.12). Do ponto de vista jurídico, o estado nazista, ou seja, o
Terceiro Reich, é considerado o típico exemplo de um Estado de Exceção, o qual perdurou
pelo período de doze anos (TEIXEIRA, 2015, p.98), em que o totalitarismo moderno foi
implementado através do dito Estado de Exceção, legitimando todas as ações de uma guerra
civil, a qual permite o aniquilamento por completo da forma física dos adversários políticos,
565

qualquer pessoa que se opunha ao regime nazista vigente na época ou a quem de alguma
forma era indesejável ao sistema político. Os motivos do aniquilamento (FOUCAULT, 2014)
e a à osà aisà di e sos.à Po à e e plo,à p is oà deà oposito esà o u istasà eà i stalaç oà deà
t i u aisàdeàe eç o,àaptosàaà o de a ài di íduosà àpe aàdeà o te à TйIXйI‘á,à ,àp. .
Desse momento em diante, com o surgimento do Estado de Exceção, ainda que de
forma esporádica, mas voluntariamente vem interpondo-se embora não sendo declarado no
sentido técnico, é adotado e praticado pelos Estados contemporâneos, até mesmo por
aqueles os quais se declaram democráticos (AGAMBEN, 2007, p.13).
A fim de ilustrar melhor o conceito de Estado de Exceção na contemporaneidade, a
hist iaàap ese taà iosàe e plosàdeà ditadu aà o stitu io al ,àe e tosào o idosàe t eà à
e 1948, em detrimento da crise que se implementou na Europa resultando na ruína da
democracia europeia, na qual o poder executivo usurpou os poderes no âmbito do legislativo
através de emanação de leis e decretos utilizando-se da urgência para justificar tais práticas.
Desse momento em diante, as democracias ocidentais e o poder legislativo passam a ser
percebidos como apenas ratificadores dos decretos com força-de-lei (TEIXEIRA, 2015, p.94)
oriundos do poder executivo (CASTRO, 2013. p.77).
Nesse ínterim, o Estado de Exceção encaminha-se cada vez mais forte a se estabelecer
como paradigma de governo dominante na política contemporânea. Ocorre que o Estado de
Exceção deveria ser uma medida provisória e excepcional, entretanto transformou-se em uma
técnica de governo que contribuiu com mudanças drásticas em relação à distinção tradicional
das diversas formas de constituição (FOUCAULT, 2013). Nesse sentido, o Estado de Exceção
revela-se como um lugar de irresolução do que seria democrático e absolutismo (AGAMBEN,
2007, p.13). O Estado de Exceção revela-se, também, sob o prisma da ótica militar,
extravasando limites e expandindo suas fronteiras, o que outrora tratava-se de exceção,
contemporaneamente passa a ser considerado normal (TEIXEIRA, 2015, p.92).
Nesse estado de sítio político ou fictício, nota-se que o estado de exceção se direciona
p og essi a e teà à e a ipaç oà doà itoà deà gue a ,à aà ualà o stituià aà g eseà daà suaà
e ist ia.à Pa aà ága e à ,à deà fato,à oà u soà doà s uloà XX,à assisti osà aà u à fatoà
paradoxal, ao que se denominou uma guerra ci ilàlegal .à“o àessaàpe spe ti a,àoàestadoàdeà
exceção instaura-se contemporaneamente como uma guerra civil legal (CASTRO, 2011, p.76).
Segundo Agamben (2007), a exceção é um modelo de exclusão e se trata de um caso
566

singular no qual quem for excluído não está fora do alcance da norma, mas sim a norma se
mantém relacionada ao indivíduo em forma de suspensão. Um exemplo de um Estado de
Exceção contemporâneo biopolítico é o caso dos EUA, onde o direito inclui em si o indivíduo
através da própria suspensão, o queà fi aà e ide iadoà pe e pto ia e teà o à aà military
order Cá“T‘O,à ,à p. ,à p o ulgadaà peloà p eside teà dosà йstadosà U idosà e à à deà
No e oà deà à eà ueà auto izaà aà ha adaà i defi iteà dete tio à apli a do-se àqueles
cidadãos os quais são suspeitos de envolvimento em atividades terroristas, o que não se
confunde com os tribunais militares de guerra (AGAMBEN, 2007, p.14). Nesse sentido, o
“e adoàdosàйUá,àe à àdeàOutu oàdeà ,àat a sàdoà Pat iotàá t ,à o se teàat a sàdoà
procurador geral a mantença da prisão, por um período de sete dias, a todos aqueles que
forem considerados suspeitos de atividades que geram perigo à segurança nacional dos
Estados Unidos. Após esse prazo, o estrangeiro deverá ser extraditado ou acusado de violar a
lei de imigração ou alguma lei penal. O escopo da ordem é anular drasticamente todo estatuto
jurídico que proteja o indivíduo, o que consequentemente produzirá um ser juridicamente
inominável e inclassificável (AGAMBEN, 2007, p.14). As consequências para todos aqueles que
forem capturados é ficar à mercê da lei, tendo em vista não encontrarem respaldos em
nenhuma lei, uma vez que não estão amparados pela Convenção de Genebra, devido a não
ha e à ual ue à p e is oà legalà oà estatutoà dosà p isio ei osà deà gue aà POW ,à ta pou o,à
encontram respaldo na legislação Norte-Americana. Esses indivíduos que por hora não são
o side adosàp isio ei os,à e àta pou oàa usados,à asàape asàde o i adosà detai ees ,à
ou seja, apenas detidos, acabam se tornando objeto de pura dominação (FOUCAULT, 2013)
de fato e se tornando vítimas de uma detenção que não possui um tempo determinado,
estando totalmente fora do alcance de qualquer lei ou de um controle por parte do judiciário
(AGAMBEN, 2007, p.14).
A única possível comparação a essa situação jurídica e de fato é o caso ocorrido no
holo austoà эage à azista,à o e toàe à ueàosàjudeusàa a a a àpo àpe de àsuaà idada iaàeà
suaàide tidadeàju ídi a,àape asàe a àide tifi adosàpo àjudeus.à Co oàщudithàButle à ost ouà
claramente, no detainee de Guantánamo, a vida uaà ati geà suaà i aà i dete i aç o à
(AGAMBEN, 2007, p.14). Hitler, através de decreto, passa a suspender direitos e garantias
pessoaisàdaàCo stituiç oàdeàWei a .àCo oàjustifi ati aàрitle àaduzàoàes opoàdeà p oteç oàdoà
po oàeàdoàestado à Cá“T‘O,à ,àp. 6).
567

Ao se fazer uma análise da terminologia jurídica em um direito contemporâneo voltado


aoà di eitoà pú li o,à aà e p ess oà ple osà pode esà plei sà pou oi s ,à osà t azà u à se tidoà deà
Estado de Exceção, referindo-se à expansão dos poderes do soberano, atribuindo a este o
poder de promulgar decretos com força-de-lei. O próprio Schmitt reconhece a mitologema3,
kenomático, no qual surge um vazio de direito, análoga de estado de natureza (AGAMBEN,
2007, p.17).
Nesse diapasão, percebe-se que o estado de exceção passa a se tornar a regra,
posicionando-se mais como uma técnica de governo do que como uma medida excepcional
para combater situações de perigos para o estado (TACCETTA, 2015. p.94). Nesse sentido,
Agamben AGAMBEN, (2007) afirma:

O estado de exceção [...] tornou-seà aà eg a à Be ja i ,à ,à p. ,à eleà oà s à


sempre se apresenta muito mais como uma técnica de governo do que como uma
medida excepcional, mas também deixa aparecer sua natureza de paradigma
constitutivo da ordem jurídica.

O filósofo passa a compreender que o Estado de Exceção ao invés de fazer frente a


perigos de uma forma excepcional, passa a se instalar como um paradigma constitutivo da
ordem jurídica (AGAMBEN, 2007, p.18). Descrevendo ainda que a inversão ocorrida por conta
da edição de normas plenipotenciárias possibilita o executivo a se utilizar dos decretos com
força-de-lei com poder de sobrepor à lei em stricto sensu, inclusive com poder de revogá-la,
por sua vez acaba por inverter a lógica democrática, na qual o legislativo tem a incumbência
de representar o povo (CASTRO, 2013, p.94). O executivo ao usurpar a função do legislativo,
acaba desvirtuando e enfraquecendo o regime democrático fazendo com que se implemente
o Estado de Exceção como dispositivo capaz de capturar a vida humana, o que era para ser
provisório se torna uma técnica de governo (TEIXEIRA, 2015, p.94).
Agamben observa a relativa necessidade de estabelecer na constituição ou na lei a
regulamentação expressa no que diz respeito ao Estado de Exceção. É o exemplo de países
como França e Alemanha, os quais divergem da Itália, Suíça, Inglaterra e Estados Unidos, que,
por sua vez, optam pela não regulamentação do Estado de Exceção de uma forma explícita
(AGAMBEN, 2007, p.22).
O Brasil, por sua vez, segue o mesmo sistema da França e da Alemanha, passando a

3
Termo utilizado pelos juristas alemães, em especial Schmitt, o qual indica os poderes excepcionais do Reich de
acordo com a Constituição de Weimar em seu artigo 48. (AGAMBEN, 2007. p.18).
568

regulamentar de forma expressa em seu texto constitucional a possibilidade de o chefe do


executivo, ouvindo o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar o
estado de defesa, a fim de preservar ou restabelecer a ordem pública ou a paz social as quais
estão ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou, ainda, quando se
encontrarem em situações de calamidades decorrentes de fenômenos da natureza, ficando
restrito a determinados locais (PLANALTO, 2017).
José Afonso da Silva aponta que o estado de defesa pode ser entendido como a defesa
empregada no território nacional, a fim de proteger contra possíveis invasões estrangeiras,
disciplinadas no artigo 34, inciso II da Constituição Federal, podendo também se imiscuir nos
demais caso que tratam os outros incisos. Cabendo ao Presidente da República decretar o
estado de sítio, previsto no artigo 137 da Constituição Federal. Neste mesmo sentido, cabe ao
chefe do executivo a defesa da soberania nacional disciplinada no artigo 91 da Constituição
Federal e a defesa da Pátria, conforme artigo 142 da Constituição Federal, na qual o exército
está sob o comando do Presidente da República (SILVA, 2007. p.617).
José Afonso da Silva (2007) ainda complementa dizendo que o sistema constitucional
das crises estabelece diretrizes as quais tem por escopo a estabilização e a defesa da
Constituição quando se encontra em situações de riscos, processos violentos ou algo que
perturbe a ordem constitucional. De igual forma atua quando se trata de situações que
causam risco ao Estado passando, então, a se defender quando houver ameaça de guerra
externa em que a legalidade normal é suspensa passando a protagonizar a legalidade
extraordinária a qual define e delineia o chamado Estado de Exceção (SILVA, 2007, p.617 – 618).
Na contemporaneidade, o Brasil é marcado por dois episódios onde vigorou o estado
de exceção, ficando o poder concentrado de uma forma plena na figura do Presidente. O
primeiro episódio diz respeito à Revolução de 1930. Momento em que a Junta Militar obteve
sua ascensão após sua vitória. O governo foi transferido, em Novembro daquele ano a Getúlio
Vargas, que se tornou chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil.
O Presidente Vargas revestiu-se de plenos poderes passando então a governar através dos
decretos com força-de-lei. Dentre os decretos editados pelo Presidente Vargas, o Decreto de
número 19.398 adquire uma grande relevância devido ao seu conteúdo, onde dispunha a
dissolução do Congresso Nacional; a suspensão das garantias positivadas na Constituição de
1891, abrindo-se uma exceção apenas no caso do habeas corpus; afastamento da
569

competência da justiça Brasileira em julgar ou questionar os atos praticados pela Junta Militar,
O Decreto também previa que o Chefe do Governo teria o poder para nomear interventores
os quais poderiam agir em qualquer lugar do país (TEIXEIRA, 2015, p.105).
Após o conturbado período de Novembro de 1937, através de um golpe de Estado, o
Presidente Vargas, por motivos relacionados à ordem econômica, passa a implementar o
Estado Novo. O que tendencialmente aponta para uma intervenção estatal em atividades
privadas. Tais características denotam a implementação de um Estado de Exceção que
encontra respaldo nas fontes do direito através do princípio da necessidade, e quanto maior
for a necessidade maior será a intervenção estatal em atividades privadas (TEIXEIRA, 2015,
p.105).
Esse período do Estado Novo foi marcado pela dissolução do Parlamento, promulgação
da Constituição de 1937, em que previa ao chefe do executivo a amplitude e excepcionais
poderes, passando a extinguir os partidos políticos e a centralizar os poderes em si mesmo
aqueles relacionados aos Estados Federativos. Esse período também foi marcado pela
inobservância aos Direitos Humanos os quais foram feridos devido à intensa repressão contra
aqueles denominados como comunistas e rebeldes, passando à pratica constante da tortura,
declarando-se por guarida a Lei de Segurança Nacional (TEIXEIRA, 2015, p.105).
O segundo episódio está relacionado ao Regime Militar, ocorrido em 1º de Abril de
1964, o qual foi marcado também pelos Decretos com força-de-lei. Um dos seus principais
decretos é o Ato Institucional de número 1 e o Ato Institucional de número 5. O primeiro ato
foi editado logo após a tomada do poder pelos militares. Esse decreto previa em seu artigo 10
ueà oà asoà doà i te esseà daà pazà eà daà ho aà a io al,à eà se à asà li itaç esà p e istasà aà
Co stituiç o àosàCo a da tes-em-chefe tinham o poder de suspender os direitos políticos
pelo período de dez anos e, até mesmo, cassar mandatos legislativos, retirado também a
possibilidade do judiciário apreciar suas deliberações (TEIXEIRA, 2015, p.105).
Sob a vigência do ato Institucional de número I, ocorreu um número bem expressivo
de cassações. Em um balanço, chega-se a um resultado de 378 atingidos:

Três ex-presidentes da República (Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João


Goulart); seis governadores de Estado; dois senadores; 63 deputados federais e mais
de três centenas de deputados estaduais e vereadores. Foram reformados
compulsoriamente 77 oficiais do Exército. 14 da Marinha e 31 da Aeronáutica.
Aproximadamente dez mil funcionários públicos foram demitidos e abriram-se cinco
mil investigações, atingindo mais de 40 mil pessoas. Castello Branco criou a Comissão
570

Geral de Investigações (CGI) – para coordenar as atividades dos inquéritos policiais


militares, que começaram a ser instaurados em todo o país. Foi implantado, em
junho, o Serviço Nacional de Informações, cujo poder misterioso cresceria sem
interrupção nos anos seguintes (ARNS, 1986. p.61).

Com relação ao Ato Institucional de número 5, este repugnante surgimento da


repressão dispôs em seu texto o recesso do Congresso Nacional e de todos os demais
parlamentos, onde o seu retorno só seria possível no caso de uma autorização a ser dada pelo
Presidente da República. Esse decreto também previa que, durante a recessão parlamentar,
o Executivo poderia legislar em todas as matérias das esferas federativas; o Presidente da
República adquire o poder de decretar a intervenção nos Estados e Municípios caso houvesse
interesse nacional; prevê a nomeação de interventores. Também poderiam ser suspensos os
direitos políticos de qualquer cidadão pelo período de dez anos, podendo de igual forma
cassar mandatos legislativos em todas as esferas, prevendo que não haveria substituição aos
que fossem destituídos de seus mandatos. Alterando assim o quórum do poder legislativo
ficando apenas com os que efetivamente estavam preenchidos; previsão da suspensão de
direitos políticos (como votar e ser votado), proibição de exercer atividades ou manifestações
sobre assuntos relacionados à política, previsão legal da aplicação da liberdade vigiada,
restrição a frequentar determinados locais, podendo até mesmo impor a determinação de seu
domicílio, o Judiciário não tinha qualquer poder de se imiscuir nestes Atos Institucionais. No
decreto, estava previsto que o Presidente da República poderia decretar estado de sítio
(SENADO, 2017) prorrogando esse por prazo determinado, podendo confiscar bens os quais
eram entendidos como sendo adquiridos através de ilícitos, após a realização de
investigações. No caso de crimes relacionados a crimes políticos, segurança nacional, ordem
econômica e social e economia popular, poderia ser suspenso a garantia do habeas corpus
(TEIXEIRA, 2015, p. 106).
Esse paradigma de Estado de Exceção, criado no Brasil em 1964, foi marcado
drasticamente pela afronta direta aos direitos humanos e à dignidade da pessoa humana, pois
a prática da tortura foi implementada como instrumento rotineiro de interrogatórios
aplicados a opositores políticos que iam de encontro aos interesses dos militares os quais
detinham o poder de mando na época, poder esse autoritário e hipertrofiado devido à
concentração do excesso desse poder do qual dispunham (ARNS, 1986, p.53).
Com as mudanças ocorridas em 1964, surgiu um Estado mais forte que, por sua vez,
571

ocasionou grandes mudanças na estrutura jurídica do país. A repressão e o controle mudaram


radicalmente o sistema de relação entre o Executivo, Legislativo e Judiciário. Com a
monopolização da economia e o achatamento salarial e uma grande série de medidas
autoritárias e repressivas resultou em uma deterioração das condições de vida do povo
brasileiro, passando a agredir fortemente os direitos humanos e a dignidade da pessoa
humana, ocasionando a fome, bem como, o surgimento de favelas, ocorrência de
enfermidades, aumento da marginalidade em expressivos números (ARNS, 1986, p.53).
Com o fortalecimento da ditadura, edita-se o Ato Institucional de número 2, em
outubro de 1965, o que extingue com todos os partidos políticos e concede ao Executivo poder
de fechar o Congresso Nacional quando lhe for conveniente. As eleições para Presidente da
República passam a ser de forma indireta, e torna a Justiça Militar competente para o
julgamento de civis. Deste episódio em diante passam a existir apenas dois partidos políticos,
uma era governista, e o outro denominado de oposição. Nascendo assim a ARENA (Aliança
Renovadora Nacional) e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), este último passa a ter
a incumbência de fazer oposição, entretanto não era possível contestar o regime militar (ARNS,
1986, p.53).
Com relação ao Brasil na contemporaneidade, é muito corriqueiro se utilizar de
decretos com força-de-lei, dos mais diversos tipos, e demais regulamentos provindos dos mais
diversos órgãos sejam da administração direta bem como da indireta. Decretos estes dotados
com capacidade de obrigar quem estiver subordinado a sua jurisdição, com poder inclusive de
seà so epo à aosà dita esà daà lei.à Doisà e e plosà s oà pa adig ti osà esseà se tidoà deà
alargamento do Poder Executivo sobre o Legislativo e isolamento da força-de-lei da stricto
se su à TEIXEIRA, 2015, p.131).
O primeiro deles, o que causou grande alvoroço e grandes discussões no Brasil na
atualidade, foi o decreto autônomo. Esse decreto foi criado pelo Presidente da República no
governo de Fernando Henrique, no ano de 2001, e passou a regulamentar o artigo 84 da
Constituição Federal, e a dispor sobre a organização e funcionamento da administração
federal. Esse mesmo decreto dispôs a extinção de cargos públicos vagos, que anteriormente
só era possível através da lei (TEIXEIRA, 2015, p.131).
O segundo é a medida provisória, criada pelo artigo 62 da Constituição Federal, a qual
passou a regulamentar a matéria dando a medida provisória força-de-lei (AGAMBEN, 2007, p.60
572

– 61). Nessa perspectiva, o chefe do executivo poderá se utilizar deste recurso a fim de
implementar seus interesses políticos, entretanto tais ações devem ser de imediato
submetidas à apreciação do Congresso Nacional (PLANALTO, 2017). José Afonso da Silva
considera o artigo 62 como sendo demasiadamente longo e caótico em seus parágrafos e a
respeito da medida provisória não precisaria mais que o caput para sua elucidação para se
constatar a seara na qual se está se imiscuindo (SILVA, 2003, p.443,450 e seguintes). O artigo 84
em seu inciso XXVI, da Constituição Federal ratifica o artigo 62, em que se evidencia que a
edidaàp o is iaà o peteàp i ati a e teàaoàP eside teàdaà‘epú li a .
A medida provisória e o decreto autônomo são exemplos de ato provindo do Chefe do
Executivo. No Brasil, em nível nacional, estão representados na figura do Presidente da
República, estes atos por sua vez têm o poder de estar no mesmo patamar da lei, obrigando
a todos seguirem seus preceitos. Percebe-se que tanto no artigo 62 quanto no 84 da
Co stituiç oà нede al,à su geà aà e p ess oà fo çaà deà lei .à Ve ifi a-se que há uma grande
concentração de poder em uma única pessoa, na figura do Presidente da República, o qual
acaba usurpando a competência de 513 Deputados Federais e 81 Senadores da República
(TEIXEIRA, 2015, p.132).
O referido artigo 62 é composto por doze parágrafos, compete destacar dois aspectos
referentes a esses, sendo o primeiro deles o descrito no parágrafo 6º: em que a medida
provisória possui o prazo de quarenta e cinco dias contados de sua publicação, para sua
apreciação ou entrará em regime de urgência em cada casa do Congresso Nacional,
permanecendo sobrestada, até que se realize a votação e demais deliberações legislativas a
ser realizadas pela respectiva casa em que estiver tramitando. Destaca-se nesse parágrafo, a
preferência de tramitação da medida provisória, uma vez que ao ingressar no Congresso
Nacional possui preferência de votação e tramitação diante das demais, a fim de que este
ratifique ou não, seu conteúdo, com isso acaba por mudar a ordem de tramitação da Casa
(TEIXEIRA, 2015, p.132).
O próximo aspecto a ser destacado em relação à medida provisória é o filtro feito com
base na urgência e relevância, uma vez que fica a critério subjetivo do Chefe do Executivo
apontar o que é urgente e relevante. Para este pode ser urgente e relevante uma determinada
matéria, entretanto outro titular de iniciativa legislativa pode entender que a mesma matéria
não seja urgente nem relevante. Com o exposto, percebe-se a deturpação das funções
573

executivas frente às funções legislativas, é uma verdadeira usurpação de prerrogativas por


parte do Executivo (TEIXEIRA, 2015, p.132). Tais banalidades ficam evidenciadas ao analisar os
números de medidas provisórias desde a Emenda Constitucional número 32, até os dias de
hoje, 04 de Maio de 2015, foram editados 673 medidas provisórias (PLANALTO, 2017).
O exposto acima acaba por tracejar quão prescindível é a normatização no que diz
respeito ao estado de exceção, o qual se locomove com extrema destreza entre o fático e o
jurídico. Dando espaço para medidas excepcionais as quais acabam se tornando paradigmas
de gestão política Nacional em um Brasil contemporâneo onde cada vez é mais comum ao
executivo fazer uso de decretos com força-de-lei, medidas provisórias, adquirindo essas uma
forma legal amparada pelo ordenamento jurídico. Agamben aponta a existência de duas
correntes no que diz respeito à probabilidade de acrescentar o Estado de Exceção no
ordenamento jurídico. A primeira corrente entende que o Estado de Exceção é algo que deve
ser recepcionado pelo direito. A partir deste momento, subdivide-se em dois entendimentos:
o primeiro sustenta que o Estado de Exceção deve ser inserido no direito positivo, passando a
fundamentar a existência do Estado de Exceção através do princípio da necessidade; o outro
entendimento, diz respeito a um Estado de Exceção baseado em um direito subjetivo
constitucional e natural, em que o Estado se utiliza do estado de sítio promovendo sua
autoconservação (AGAMBEN, 2007, p.38).
O segundo entendimento a respeito do Estado de Exceção está relacionado a um
fenômeno puramente fatual, fundamentando que o Estado de Exceção necessita de
elementos extrajurídicos (TEIXEIRA, 2015. p.107). Nesse diapasão, o jurista alemão Julius
Hatschek expõe o seguinte a respeito dessas duas teorias: a primeira teoria conhecida como
a teoria objetiva a qual se fundamenta o Estado de Exceção a um princípio de direito
conhecido por estado de necessidade; a segunda teoria conhecida como teoria subjetiva do
Estado de Exceção que encontra guarida em um direito constitucional ou a em um direito
natural, no qual o Estado é titular deste bastando a presunção de sua boa-fé ao praticar atos
de Estado de Exceção os quais adquirem imunidade estando livre de qualquer
responsabilidade (TEIXEIRA, 2015, p.107).
Agamben sustenta que o Estado de Exceção não se encontra totalmente dentro nem
totalmente fora do direito, sendo que a suspensão da ordem não significa uma exclusão por
o pleto,à uitoà e osàu aàaus iaàdesse.à N oàh àe lus o,à asài dete i aç o,àpo toà
574

de indiscernibilidade entre o jurídico eàoàf ti o à CASTRO, 2015. p.107).


O próprio Presidente Getúlio Vargas fundamentava suas decisões na teoria da
necessidade, utilizando-seàdeàu àa io aàdeào ige àlati aà ueàdizia:à necessitas legem non
habet ,àouàseja,àaà e essidadeà oàte àleià(CASTRO, 2015. p.107). De acordo com Agamben, a
pa ti à dessaà f aseà su geà aà teseà deà ueà aà e essidadeà oà e o he eà e hu aà lei ,à eà aà
e essidadeà iaàaàp p iaàlei .àйssasàduasàtesesàseà esu e à u àestadoàdeà e essidade,à asà
quais o Estado está legitimado a implementar o Estado de Exceção estando assim justificado
em suas ações não as considerando como crime (AGAMBEN, 2007, p.38).
Agamben ao trabalhar o pensamento do jurista Santi Romano, o qual entendia que a
e essidadeàe aàaà fo teàp i iaàeào igi iaàdaàlei . Para o jurista a necessidade é um fato
jurídico (TEIXEIRA, 2015, p.109). O jurista descreve:
A necessidade de que aqui nos ocupamos deve ser concebida como uma condição
de coisas que, pelo menos como regra geral e de modo conclusivo e eficaz, não pode
ser disciplinada por normas anteriormente estabelecidas. Mas, se não há lei, a
necessidade faz a lei, como diz uma outra expressão corrente; o que significa que ela
mesma constitui uma verdade fonte de direito[...]. Pode-se dizer que a necessidade
é a fonte primária e originaria do direito, de modo que, em relação a ela, as outras
fontes devem, de certa forma, ser consideradas derivadas [...]. É na necessidade que
se deve buscar a origem e a legitimação do instituto jurídico por excelência, isto é,
do Estado e, em geral, de seu ordenamento constitucional, quando é instaurado
como um dispositivo de fato, por exemplo, quando de uma revolução. E aquilo que
se verifica no momento inicial de um determinado regime pode também se repetir,
ainda que de modo excepcional e com características mais atenuadas, mesmo depois
desse regime ter formado e regulamentado suas instituições fundamentais
(ROMANO, 1983, p.362).

Schmitt se utiliza por muitas vezes de Santi Romano e seus trabalhos, em que este
defendia que o Estado de Exceção tinha sua gênese no estado de necessidade,
compartilhando com ele a ideia de que o direito não se esgota na lei. Schmitt percebe que o
Estado de Exceção em que o Estado e o direito contrastam suas discrepâncias, o Estado de
Exceção em sua forma Estatal permanece perene enquanto o direito desaparece (SCHMITT, IN
SANTI ROMANO,1983, p.39).
Por fim, diante do exposto, nota-se que o Estado de Exceção diz respeito à captura da
vida humana (CASTRO, 2012, p.75), alicerçado no estado de necessidade retomando a máxima
daàteo iaà necessitas legem non à AGAMBEN,2007, p.11), ou seja, a necessidade não necessita
de lei. Nesse contexto, surge a figura do soberano o qual é dotado de poder em decidir sobre
o Estado de Exceção (FRANCO DE SÁ, 2009. p.4). O que constitui um ponto de desequilíbrio entre
o direito público e o fato político (AGAMBEN, 2007, p.11). Nesse Estado de Exceção, o soberano
575

passa a governar através de decretos com força-de-lei (AGAMBEN, 2007, p.11), usurpando a
função do legislativo. Ocorre que o que era para ser a exceção tornou-se a regra, constituindo
um Estado de guerra. O presente tema define um conceito limite na qual seria à mercê do
direito em relação ao sujeito, uma vez que se suspendem seus direitos deixando-os em um
vazio de direitos, uma região anômala, ou melhor, um não direito, mas ao alcance desses.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho buscou analisar as relações entre o Direito e a política, a relação


do ente Estatal com seus súditos, o direito à Segurança Pública sob o prisma dos Direitos
Humanos, fazendo-se uma análise mais aprofundada das teses foucaultianas e agambenianas,
as quais consistem na biopolítica e a produção da vida nua bem como o Estado de Exceção.
Nesse objetivo, retomaram-se as lições desses dois grandes filósofos, a partir das quais
evidenciou-se que o direito de vida e morte é uma das características do poder soberano. Sua
gênese é oriunda do Direito Romano, nesse Direito é lícito ao pai de família romana dispor da
vida de seus descendentes, bem como de seus escravos, sendo lícito tirar-lhes a vida
considerando que aquele que dá a vida tem o poder de retirá-la. Surgindo dessa forma o
direito de fazer morrer ou deixar viver. Nessa perspectiva compreende-se a implementação
do Estado de Exceção e da biopolítica na produção da vida nua. Esse paradigma de governo
cada vez mais se apresenta na contemporaneidade como técnica de governo.
Nesse Estado de Exceção Agamben denúncia as constantes práticas totalitárias
realizadas pelo soberano. Esta forma de agir do soberano deveria ficar restrita a
acontecimentos excepcionais, possuindo suas limitações a um determinado espaço de tempo
e lugar, entretanto, o que era para ser exceção torna-se a regra devido ao uso permanente
das medidas exercidas no Estado de Exceção. Depreende-se que a excepcionalidade tornou-
se o paradigma adotado pelo governo na contemporaneidade como uma técnica de governo.

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576

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TEIXEIRA, Eduardo Tergolina. O estado de exceção a partir da obra de Giorgio Agamben. São
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578

DIREITO E FEMINISMO: SUPERAÇÃO DO FORMALISMO DOGMÁTICO JURÍDICO DA


MODERNIDADE

Joice Graciele Nielsson1


Raquel Cristiane Feistel Pinto2

RESUMO: O presente trabalho aborda a relação entre o feminismo e o direito, a partir da


crítica feminista de que o direito está assentado em pressupostos liberais que privilegiam um
sujeito masculino, racional, supostamente neutro, a quem pertence o espaço público, e do
qual as mulheres estão excluídas. Sob tais fundamentos, o direito produz e reproduz
estereótipos de gênero, perpetuando a opressão das mulheres, fazendo com que qualquer
avanço, como o representado pela Lei Maria da Penha ou pela Lei do Feminicídio sejam alvos
de disputas e enfrentamentos no seio da dogmática tradicional. Contudo, acredita-se que o
direito é um campo essencial no processo de reconhecimento e emancipação das mulheres,
e que a crítica feminista pode e deve contribuir na reconfiguração da própria teoria jurídica,
na superação do formalismo dogmático do positivismo e na busca de um direito mais aberto
à realidade social.

Palavras-chave: Direito; Feminismo; Justiça; Positivismo; Crítica.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo analisa a relação entre direito, enquanto espaço institucionalizado


de normas e leis que visam garantir e protegerem as mulheres, e a crítica feminista acerca do
fenômeno jurídico e o seu papel na estruturação e perpetuação dos processos de opressão da
sociedade. Considera, nesse sentido, que o reconhecimento e a reflexão a respeito da crítica
feminista ao direito pode auxiliar este último na reelaboração de conceitos e normas, a partir
da superação do formalismo dogmático do positivismo, e sua abertura à realidade social.
Para tanto, este trabalho se estrutura em três partes. Inicialmente fará uma
abordagem do modelo liberal contratualista de organização da sociedade, produtor de um
sujeito privilegiado e excludente, e da separação entre as esferas pública e privada, que
contribuiu para a determinação de papéis previamente destinados e diferenciados para
homens e mulheres na sociedade. Como reflexo de tal matriz filosófica, têm-se um direito que
produz e reproduz estereótipos de gênero, que, no mais das vezes, privilegia alguns sujeitos,
saberes e experiências, notadamente masculinas e racionais, e age com vistas a manutenção
da dominação masculina. Qualquer tentativa de ruptura destes padrões, com a representada

1
Doutora em Direito UNISINOS/FURB. Professora do DCJS UNIJUI.
2
Mestranda em Direitos Humanos UNIJUÍ.
579

pela Lei Maria da Penha é objeto de muita disputa e enfrentamentos no seio da dogmática
jurídica. Esta será a abordagem da segunda parte.
Por fim, se apresenta um cenário de esperança, no qual se acredita que a crítica
feminista possa, a partir dos apontamentos e questionamentos feitos, contribuir para a
própria reestruturação da teoria jurídica moderna. O feminismo assim poderá contribuir para
a superação do modelo de cientificidade positivista e para a afirmação de um direito cada vez
mais voltado à realidade social e à efetivação da justiça.

2. FEMINISMO E DIREITO NA MODERNIDADE

A crítica feminista ao direito vem se desenvolvendo de forma mais contundente e


aprofundada desde a década de 1970, de diferentes perspectivas, conforme o
desenvolvimento das próprias teorias feministas3. Suas abordagens não contêm uma grande
teoria explicativa ou uma meta-narrativa feminista sobre o direito, que seria impossível dada
a grande fragmentação do próprio feminismo (SMART, 2000), mas um pensamento crítico
sobre as epistemologias jurídicas e os fundamentos filosóficos que embasaram o pensamento
jurídico ocidental na modernidade e cujos reflexos são visíveis ainda hoje.
Por isso, da mesma forma que o feminismo, a abordagem feminista do direito não é
única, variando conforme a visão do direito, a metodologia empregada e o estilo de cada
autora. Para Carol Smart (1994), por exemplo, há três formas feministas de se pensar o
fenômeno jurídico: o direito como sexista4; o direito como intrinsicamente masculino5; o
direito como sexuado6. Independentemente da versão adotada, nas suas mais variadas

3
A crítica feminista ao direito é diversa, de modo que não há uma análise única, mas várias visões, assim como
oàh à u àfe i is o.àâsà iasàpe spe ti asà ueàaàteo iaàfe i istaàdoàdi eitoàap ese ta,à o espo de àao
desenvolvimento da teoria feminista de um modo mais geral, que tem passado por várias fases, como o
feminismo da igualdade; feminismo da diferença; feminismo da igualdade/diferença; feminismo pós-moderno
(CAMPOS, 2011).
4
Que corresponderia historicamente ao feminismo igualitário liberal, que tem como focos principais de suas
preocupações a luta contra a tese da inferioridade feminina, a busca de uma igualdade formal entre os sexos e
a extensão da cidadania às mulheres, de modo que, para elas, o direito não é essencialmente masculino, apenas
o é por causa de distorções que podem ser reformuladas (NUSSBAUM, 2013 e OKIN, 2008).
5
Perspectiva vinculada aos feminismos da diferença ou radicais, para os quais o compromisso que o direito tem
com a dominação masculina e heterossexual não seria contingencial, mas faria parte da própria natureza do
jurídico (SMART, 2000).
6
Posição vinculada aos feminismos pós-modernos, interessado em compreender o modo como o gênero opera
no direito e ajuda a construí-lo (SMART, 2000).
580

expressões o feminismo sempre desenvolveu uma postura profundamente questionadora em


relação ao direito.
O alvo principal deste questionamento, segundo Rabenhorst (2009), é principalmente
o formalismo jurídico e sua representação do direito como um sistema completo, coerente,
unívoco, elaborado por um legislador racional e aplicado por um juiz neutro e imparcial. Esta
é a representação de um direito que se prende a uma técnica de controle social neutra,
universal e abstrata, quando, na verdade, de acordo com Olsen (2000), já representa um
ponto de vista previamente sexualizado. Tal visão e versão de si próprio produzida pela teoria
jurídica está fortemente vinculada aos termos fundantes da sociedade política moderna,
liberal contratualista, que sustenta o formalismo jurídico. Em seus fundamentos, o
contratualismo liberal manteve dois pilares que moldaram a sociedade política e o direito da
modernidade: a concepção de sujeito de direitos e a separação entre as esferas pública e
privada.
A teoria feminista do direito afirma, segundo Frances Olsen (1995), que o mundo foi
modelado por e para homens, e isto se deve a uma combinação de fatores relativos à teoria
política da modernidade. Na tradição ocidental, as instituições da sociedade civil, dentre elas
o direito, são fundamentados a partir de princípios políticos resultantes de um contrato social
estabelecido pelas pessoas umas com as outras, concordando em abrir mão do uso privado
da força e da habilidade de tirar a propriedade de outro em troca de paz, segurança e na
expectativa de obter vantagens mútuas (NUSSBAUM, 2013).
Tais princípios são justificados por um contrato feito em uma situação original,
supostamente justa, por pessoas imaginadas livres, iguais e independentes, como refere John
Locke (1994). Deste acordo, realizado por meio de um procedimento que não assume
vantagens antecedentes de nenhuma parte, são extraídas regras que protegerão os interesses
de todos. A possibilidade de figurar como parte contratante requer que as pessoas tenham
três características principais, segundo John Locke (1994), que fossem livres, iguais e
independentes. Ser livre, segundo Nussbaum (2013), significa que ninguém é dono nem
escravo de outrem, sendo este postulado da liberdade natural importante para a ruptura com
a tradição de várias formas de hierarquia e tirania. Para Kant, livres são as pessoas que
possuem o direito de perseguir suas próprias concepções de felicidade, desde que estas não
581

interfiram nas liberdades dos outros de perseguir um fim similar que possa ser compatível
com a liberdade de qualquer outra pessoa de acordo com uma possível lei geral.
Deste modo, de acordo Nussbaum (2013), o que pode ser exigido é que todas as
pessoas limitem sua liberdade em função da liberdade dos outros, e esse direito é entendido
pelos teóricos clássicos como um direito pré-político, pertencente a cada membro da
comunidade como ser humano, uma vez que cada um é capaz de possuir direitos. Além disso,
as doutrinas do contrato sustentam que suas partes começam a negociação em uma situação
de igualdade, não apenas moral, mas uma igualdade aproximada de capacidades e recursos
(FORST, 2010). Para tanto, todas as vantagens e hierarquias existentes entre os seres
humanos, que são criadas por riqueza, status, classe, etc. devem ser deixadas de lado,
considerando o ser humano na sua forma nua, e neste caso, não haveria grandes diferenças
entre eles no que diz respeito a poderes básicos, capacidades e necessidades. É a tese
defendida por Hobbes (1999) em seu Leviatã, e por Locke (1994).
Portanto, as grandes diferenças entre os homens seriam frutos das condições sociais,
e, basicamente, os seres humanos são portadores de uma aproximada igualdade, tanto moral,
quanto de capacidades. A semelhança de capacidades seria suficiente para o reconhecimento
do status de reciprocidade de fins em si mesmos, e tal semelhança soa como necessária para
a igualdade moral, de modo que uma desigualdade de capacidades pode autorizar um
tratamento inferior. Esta é, segundo Nussbaum (2013), a maneira incorreta de fundamentar
a igualdade moral, uma vez que esta não poderia envolver a dependência a uma suposta
igualdade de capacidades. É possível sustentar que os seres humanos sejam igualmente
morais, sem sustentar que sejam basicamente iguais em poder e capacidade, e é possível
sustentar o contrário também, uma vez que pessoas com capacidades distintas teriam
tratamento distintos das instituições da sociedade.
Além de livres e iguais, as partes do contrato social deverão ser independentes. Isto
significa que não estão sob a dominação ou assimetricamente dependentes de qualquer outro
indivíduo. Cada parte do contrato é, portanto, uma fonte independente de cooperação social,
ou, conforme Rawls ,àp.à ,à u à e oà o pleta e teà oope ati oàdaàso iedadeàaoà
lo goàdeàtodaàaà ida ,àouàseja,à aàposiç oào igi alàestasàs oà utua e teàdesi te essadas.àIstoà
não implica necessariamente egoísmo, mas preocupação em avançar com suas próprias
concepções de bem, não com as dos outros.
582

Obviamente, é clara a ausência de crianças e pessoas idosas nesta concepção, e das


mulheres, entendidas como dependentes dos homens, uma vez que suas tarefas de casa e de
cuidado não eram consideradas trabalho produtivo, portanto, não são reconhecidas nem
remuneradas. Kant (2003), por exemplo, reconhece explicitamente que, na sociedade haverá
cidadãos que não são partes contratantes ativas, e que não são caracterizados pela
independência. Tais pessoas são: a) mulheres, b) os menores, c) qualquer outra pessoa que
não possa sustentar a si mesma através de seu próprio trabalho. A todas estas, faltaria
personalidade civil, porque não são independentes, de modo que sua desigualdade de
capacidade as amaldiçoaria a um status passivo, uma vez que não podem se sustentar com
seu próprio trabalho, pois para a teoria do contrato social, cada uma das partes representa
um indivíduo produtivo que estará disposto a sacrificar algumas prerrogativas a fim de colher
as recompensas da cooperação mútua (NUSSBAUM, 2013).
Há ainda outra característica relevante atribuída aos partícipes do contrato: seu forte
racionalismo,àsegu doàoà ualàasàpa tesà o t ata tes,àpo ta toàosà idad osàdaàso iedadeà s oà
imaginados como caracterizados pela racionalidade, po à u aà a io alidadeà si aà igual
(NUSSBAUM, 2013, p. 65). Tal racionalidade acaba sendo um atributo da cidadania, um
requisito para ser um sujeito primário da justiça, gerando uma equivalência entre
racionalidade e status de cidadania. Essa equivalência trouxe sérias dificuldades para as
mulheres reivindicarem seu acesso a direitos e a justiça, uma vez que, nos termos do contrato
sexual (PATEMAN, 1993) estas seriam emotivas e não racionais. De fato, toda a luta feminista
tem passado pelo questionamento da imagem do feminino construída pela cultura patriarcal
como uma espécie de destino biológico a ser cumprido: emotivas, sensíveis e destinadas à
reprodução e ao cuidado dos outros, as mulheres devem ficar confinadas à reprodução e ao
cuidado dos outros, ao espaço da família, concebida como instituição natural. Por isso mesmo,
parte considerável do esforço teórico feminista visa descontruir esta representação e
questionar a própria separação entre as esferas pública e privada (RABENHORST, 2009).
Ocorre que, no que se refere à condição feminina, a dicotomia público-privado,
estabelecida pelo contratualismo liberal, tem a consequência de, ao mesmo tempo confinar
a mulher ao espaço doméstico, a torná-la economicamente dependente do homem, dificultar
ou restringir sua participação política e atribuir tudo isso a razões biológicas ou imutáveis de
ordem metafísica, consolidando definitivamente as desigualdades e opressões de gênero.
583

Assim, teoria do contrato social que se refere à história da liberdade, segundo Pateman (1993)
trata-se da metade da história, pois a outra metade refere-se ao pacto sexual, ou seja, o
contrato original é um pacto sexual-so ial.àPa aàPate a à ,àp.à à aàdife e çaàse ualà à
uma diferença política; a diferença sexual é a dife e çaàe t eàli e dadeàeàsujeiç o .àPo ta to,à
as mulheres não participaram do contrato social como parte, que transforma sua liberdade
natural em uma liberdade civil, pois não eram livres. A mulher participou do contrato social
como objeto, pois os homens transformaram o seu direito natural sobre as mulheres na
segurança do direito patriarcal civil. Assim, somente um sexo foi capaz de desfrutar da
liberdade civil (masculino) abrangendo o direito de acesso sexual às mulheres, portanto
paralelamente ao contrato social originador do estado, foi destinado os espaços, papéis e
comportamentos de homens e mulheres, sendo aos homens o espaço público, às mulheres o
espaço privado.
Nessa vertente, uma linha divisória separa a sociedade civil do Estado. A sociedade
representa o espaço da liberdade pessoal, a esfera em que os indivíduos experimentariam a
i depe d iaàpe feita ,àu aà ezà ueàaliàesta ia àaàsal oàdaà oe ç oàdoàйstado,à est itaà à
esfera pública (CYFER, 2010, p. 137). Foi neste espaço que as primeiras feministas guardaram
um espaço em que a mulher pudesse gerir sua conduta sem a interferência estatal na
distribuição de papéis sociais. Segundo a autora, reivindicações feministas típicas como o
direito ao aborto, ao trabalho, à liberdade sexual, entre outros, aparecem frequentemente
vinculadas a esta espécie de autonomia, de não intervenção estatal na privacidade do sujeito.
No entanto, os limites desta separação logo se demonstraram destrutivos para as
mulheres. O espaço privado foi isolado, permanecendo fora do escopo da justiça, fora do
campo de ação da sociedade política e o que acontecia no âmbito da família, passou a estar
fora da preocupação do direito, da política, ou mesmo da justiça. Mulheres, portanto, estavam
confinadas ao espaço doméstico no qual a sociedade política não poderia e não deveria
intervir, devendo nele exercer suas atividades (não remuneradas e não reconhecidas) do
cuidado, desenvolvendo sua plena essência irracional, passiva e emotiva. Desta forma,
estavam fora das qualidades necessárias à participação na sociedade política, e no direito.
Estes dois pontos fundantes da teoria normativa moderna foram desvelados pela
crítica feminista, revelando assim, os limites da justiça construída por suas instituições,
inclusive o Direito. Segundo Martha Nussbaum (2001), o que se tem como sujeito de direitos
584

é a ficção de uma idade adulta competente e produtiva, que não faz jus as condições reais da
vida humana. As pessoas reais começam suas vidas como crianças e permanecem em um
estado de extrema dependência, tanto em termos físicos como mentais, por um longo
período, e voltam a tal situação por um novo longo período durante a velhice.
Este é um problema fundamental para o feminismo, uma vez que, em virtude do
contrato sexual, em qualquer lugar do mundo, as mulheres realizam grande parte do trabalho
do cuidado, normalmente sem qualquer espécie de pagamento ou remuneração, e
frequentemente sem o reconhecimento de que efetivamente esta atividade se trata de um
trabalho. E isto faz com que elas sejam prejudicadas em várias outras esferas da vida, dentre
as quais o direito, fazendo com que suas demandas tenham, muitas vezes, ficado fora do
escopo da justiça, liberalmente e contratualmente constituídas.
Por isso, para as feministas, tornou-se importante romper com a separação
público/privada e demonstrar que a vida pessoal já é intrinsecamente construída por fatores
públicos, sendo esta uma questão decisiva para sua luta, uma vez que permite um
questionamento dos papéis sociais/sexuais, o reconhecimento do trabalho doméstico como
efetivo trabalho, a identificação das diversas situações de injustiça que ocorrem na vida
familiar, entre outras coisas. (RABENHORST, 2009).
Mais do que isto, a crítica à separação público/privado tem enorme relevância para o
direito, afinal, tal separação aparece como uma espécie de pano de fundo jamais explicitado
de muitas das categorias legais e doutrinarias do direito (RABENHORST, 2009). Permite
também compreender o desinteresse das teorias da justiça pela família, e a consequente
ausência das perspectivas feministas nas abordagens sobre o direito da família, embora esta
possa ser considerada o núcleo primário de agregação e convivência, bem como de relações
deàpode ,àouà oàluga ào deàosài di íduosàfazia àoàp i ei oàap e dizado da desigualdade e da
i justiça à ‘áBйNрO‘“T,à ,àp.à .
É a partir deste desvelamento que o feminismo faz dos pressupostos do pensamento
jurídico liberal da modernidade e, principalmente das exclusões e das estruturas de
dominação e poder por ele perpetuadas que se estruturam as mais diferentes percepções
feministas sobre o direito.
585

3 DA CRÍTICA FEMINISTA AO DIREITO ESTERIOTIPADO À SUA (RE) CONSTRUÇÃO

O longo percurso histórico de exclusão das mulheres até a contemporaneidade, fez


com que a categoria gênero fosse determinante, também para o campo normativo, uma vez
que o direito é, não só constituído pelo gênero, mas constitutivo desde (SMART, 2000).
Segundo Joan Scott (1990), gênero tanto é um elemento constitutivo das relações sociais
fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, quanto uma maneira primária de
significar relações de poder. Enquanto constitutivo das relações sociais implica em quatro
elementos: os símbolos - culturalmente disponíveis que evocam representações simbólicas
que são também opostas, como Eva e Maria, mitos de inocência e corrupção, luz e escuridão;
os conceitos normativos - expressos pelas teorias religiosas, jurídicas, educativas, científicas
limitando e contendo as possibilidades para firmar a oposição binária do sentido categórico
do feminino e masculino; a dimensão política – estruturante das relações sociais (família,
relações de parentesco, divisão sexual do trabalho, educação e o sistema político).
A segunda parte da proposição de Scott refere-se à dimensão do poder, isto é, o gênero
àoàp i ei oà eioàat a sàdoà ualàoàpode à àa ti ulado.àPa aà“ ott,à esta ele idosà o oàu à
conjunto de referências, os conceitos de gênero estruturam a percepção e a organização
si li aà deà todaà aà idaà so ial à eà aà edidaà e à ueà estasà efe iasà esta ele e à
distribuições de poder o gênero torna-se envolvido na concepção e na construção do poder
e àsià es o à “COTT,à ,àp.à . A definição de Scott permite compreender que o gênero
constitui-se através de complexas relações sociais de legitimação e construção recíproca.
Como sistema simbólico, a diferença de gênero é, segundo Harding (1996), a origem
mais antiga, universal e poderosa de muitas conceitualizações moralmente valoradas de tudo
o que nos rodeia. Portanto, a introdução do gênero como categoria de análise feminista
pe itiuàpe e e à ueàosàsiste asà o eituaisàdasà i ias àeàdasàdis ipli asàa ad i asàs oà
fortemente marcados por ele, razão pela qual a neutralidade científica não passa de
pretensão. Segundo a autora, gênero expõe a retórica progressista do cientificismo, as
práticas concretas dos cientistas e os significados simbólicos de masculinidade e feminilidade
presentes na ciência. De modo que o contexto social e político mais geral em que se produz a
discriminação contra as mulheres na ciência é parte das relações sociais marcadas pelo
586

gênero, enquanto panorama psíquico em cujo marco se desenvolve o pensamento dos


cientistas masculinos sobre si mesmos e sobre a natureza da ciência (HARDING, 1996).
Especificamente com relação à ciência jurídica, também é no simbolismo de gênero
que a doutrina positivista opera, lançando mão daquilo que Campos (2011) chama de
inúmerasà et fo asàdualistasàso eàoàfe i i oàeà as uli o .àO o eà ue,àfu da e tadoà oà
sujeito privilegiado da modernidade, e na separação entre o público e o privado, o direito,
segundo Olsen (2000), se estrutura a partir de uma série de dualismos ou de pares opostos:
racional/irracional, ativo/passivo, cultura/natureza, objetivo/subjetivo, abstrato/concreto,
universal/particular. Estes pares, embora de forma velada, estão sexualizados, ou seja, um
lado representa o masculino e o outro o feminino, e, além disto, entre eles não existe uma
relação de paridade, mas sim, uma relação hierarquizada, na qual os valores caracterizados
como masculinos são tidos como superiores aos valores caracterizados como femininos.
ássi ,à [...]à doà es oà odoà ueà osà ho e sà t à do inado e definido
t adi io al e teàasà ulhe es,àu àladoàdosàdualis osàdo i aàeàdefi eàoàout o à Oэ“йN,à ,à
p. 26). Para a autora, portanto, o direito se identifica com o lado masculino do dualismo, pois
este é definido pela tradição do pensamento jurídico como um sistema de normas racionais,
abstratas, universais, oriundas da cultura humana.
Supõe-se, portanto, que o direito seja racional, objetivo, abstrato e universal, tal como
os homens se consideram a si mesmos, e não irracional, subjetivo ou pessoal, tal como os
homens consideram que sejam as mulheres. E tal constatação leva Carol Smart7 (2000), a
afirmar que o direito é um dos sistemas (discursos) que produzem não apenas as diferenças
de gênero, mas sim, formas muito específicas de diferenças polarizadas. E o faz justamente
porque, de acordo com esta autora, o direito é um discurso particularmente poderoso devido
à sua pretensão de verdade, o que lhe permite silenciar e desqualificar a experiência das
mulheres que encontram a lei e o conhecimento das feministas que desafiam a lei (SMART,
2000). Desta forma, o direito não só desqualifica os relatos alternativos da realidade social,
como outros saberes, inclusive feministas, outras experiências, como a de grupos
minoritários, mas, pela força da sua pretensão de verdade e do seu sujeito de direitos, constrói
autoritariamente o significado da realidade social (SMART, 2000). É ao que Pierre Bourdieu

7
Cabe lembrar aqui que Carol Smart, é uma socióloga inglesa, feminista pós-estruturalista e pós-moderna, que
analisa a relação entre feminismo e direito, que a leva a propor uma reorientação da estratégia feminista, no
sentido de descentrar e desconstruir o direito, estratégia que não é adotada no presente artigo.
587

(2000) se refere ao afirmar que a força do direito depende de regras restritas sobre quem está
autorizado a falar, sobre o que se pode falar, e de que forma isso deve ser feito.
Neste sentido, Carol Smart defende que o direito não se limita a oprimir as mulheres,
mas as constrói. Ou seja, as identidades de gênero e também o corpo sexuado são
constantemente produzidos e reproduzidos através e no discurso jurídico e, portanto, para
Smart (2000), o feminismo deve explorar o modo pelo qual o direito, produz e reproduz as
mulheres enquanto sujeitos genderizados, enquanto, por exemplo, prostitutas, vítimas de
violência sexual, mães, criminosas, lésbicas ou trabalhadoras. E é na busca deste
desvelamento que a crítica feminista tem se dirigido ao direito, e é também neste campo que
se estruturam as maiores disputas teóricas e resistências8.
Isso é observável nas críticas à Lei Maria da Penha. Segundo Campos (2011), os vários
deslocamentos discursivos sobre o tema da violência doméstica, produzidos por ela são objeto
de disputa política entre posições feministas e não feministas. Esses deslocamentos são
insistentemente contrapostos, no intuito de que retornem ao seu lugar de origem, ao seu
status quo, de modo que as concepções sobre as formas de violência e o tratamento jurídico
trazido pela Lei acabam refletindo as disputas sobre quem fala e o quê se fala 9.
Nesse sentido, como lembra Campos (2011), o conceito de violência doméstica
adotado pela Lei ultrapassa a limitada noção dos crimes de lesão corporal de natureza leve ou
ameaça prevista no Código Penal. Inscrevem-se outras categorias que ampliam o conceito de
crime e essas passa à aà se à uestio adasà o oà oà ju ídi as .à Igual e te,à aà uptu aà
dogmática entre as esferas civil e penal, com a criação de um juizado híbrido, sofre
resistências, tanto de natureza teórica quanto prática. No primeiro caso, pelo questionamento

8
Rabenhorst (2010) afirma que a teoria feminista do direito permanece ignorada por juristas brasileiros de
diversos matizes. Segundo o autor, dificilmente se verifica a inclusão de textos acadêmicos feministas, ou mesmo
a discussão sobre teoria feminista do direito, em referências bibliográficas em disciplinas jurídicas.
Diferentemente de países como o Canadá, os Estados Unidos, Inglaterra, Dinamarca, dentre outros, onde a
dis ipli aà teo iaàfe i istaàdoàdi eito à àofe e idaà egula e te.à
9
Exemplar é a forçada interpretação da admissibilidade da suspensão condicional do processo em casos de
violência doméstica, proibida expressamente pela Lei 11.340/2006. O Supremo Tribunal Federal, por
unanimidade, considerou constitucional a exclusão da suspensão condicional do processo, em decisão datada
de 24/03/2011. Habeas Corpus (HC) 212106- Mato Grosso do Sul. Ou, a posição de grande parte da doutrina que
parece não compreender o deslocamento discursi oà ua doà iti aà aà e p ess oà ulhe esà e à situaç oà deà
iol iaàdo sti a .
588

dessa ruptura através do argumento da inconstitucionalidade10 e, no segundo, pelas negativas


de solucionar questões de natureza civil/familiar e penal em um mesmo juizado.
Além disso, segundo Campos, estão ainda em disputa a afirmação do discurso
feminista da violência como um problema público (de segurança, cidadania e direitos
fundamentais) e o discurso tradicional de juristas que, sob o argumento de que nossa
legislação já contava com instrumentos para a proteção das mulheres, (independentemente
de sua pouca eficiência), e, portanto, não haveria necessidade de uma legislação específica.
Ao construir uma legislação específica para nortear o tratamento legal da violência
doméstica o feminismo disputa um lugar de fala até então não reconhecido pelos juristas
tradicionais. É que a afirmação dos direitos das mulheres, através de uma legislação específica,
ameaça a ordem de gênero no direito afirmada por esses juristas, ou seja, os pressupostos
teóricos sob os quais têm se sustentado a formulação sexista sobre o que deve ou não ser
considerado um tema de relevância jurídica. E não há dúvidas de que a Lei Maria da Penha
está provocando deslocamentos discursivos que afirmam cada vez mais os direitos das
mulheres relacionados a uma vida livre de violência, rompendo com a ordem de gênero do
direito.
Mas estes deslocamentos se dirigem não apenas a uma legislação específica, mas ao
próprio modo de pensar e compreender o direito, e é através desta contribuição direcionada
à teoria do direito, que não pode mais ser pensada sobre os pressupostos de cientificidade
supostamente neutra, pura, racional que o positivismo tradicionalmente nos legou que estão
as maiores contribuições do feminismo ao direito. Não apenas o direito constrói o gênero,
mas sim as construções teóricas feministas podem contribuir para a reconstrução do próprio
direito.
Embora as críticas apontadas possam indicar um caminho irreconciliável entre o
feminismo e o direito, nos termos deste artigo, acredita-se que, ao contrário de apontar para
a desconstrução do próprio direito, o feminismo, a partir, das suas críticas e questionamentos,
pode contribuir para a superação do modelo formalista predominante na dogmática jurídica
da modernidade. Desta forma, pode-se fazer do direito um importante espaço de luta pelo

10
Logo após a edição da Lei 11.340/2006, vários magistrados arguiram a inconstitucionalidade da proteção penal
exclusiva das mulheres, do afastamento da Lei 9.099/1995 e da criação dos juizados com competência civil e
penal. Essa disputa levou a Advocacia Geral da União a ingressar com uma Ação Declaratória de
Constitucionalidade, que aguarda julgamento no STF desde 2006.
589

fim das opressões e desigualdades, tanto das mulheres, quanto de vários grupos que se
encontram nesta situação, e ao mesmo tempo, fazer do feminismo um importante
instrumento de reconstrução da teoria jurídica.
A crítica feminista ao direito não tem apenas o sentido da denúncia de um suposto
compromisso da cultura jurídica com uma estrutura sexista, mas ela passa, também, pela
exigência de que o saber jurídico seja capaz de desvelar aquilo que nele está oculto,
principalmente quanto ao sujeito que o pratica e a quem se destina. Fazendo uso mais uma
vez de Bourdieu, diríamos que antes de objetivar o mundo normativo, o jurista deveria ser
capaz de objetivar a si mesmo e de entender que seu discurso é menos sobre um objeto e
mais sobre sua relação com ele.
Desta forma, o desenvolvimento desse processo, inclusive interno, produziu um
conhecimento que não pode mais ser caracterizado como mera crítica ao malestream
(SMART, 2000), mas reflete diretamente na estrutura da teoria do direito e nas bases do
positivismo jurídico11 e sua cientificidade, engendrado a partir da Teoria Pura do Direito de
Hans Kelsen12, tornando urgente uma reaproximação entre direito, moral e justiça.
O feminismo contribui então para evidenciar que, cada vez mais sem a inclusão dos
valores no âmbito jurídico, o direito se resumiria ao que Gomes (2008, p. 216) chamou de um
a a ouçoàdeà o asàpassí eisàdeà ual ue à o teúdo,ài lusi eàda uelesà ueàaoài sàdeà
dignificar o ser humano poderiam convertê-lo em mera "coisa", como foi típico dos tempos
de es a id oà ofi ialà se p eà dis ipli adaà eà "legiti ada"à peloà o de a e toà ju ídi o ,à e à
como das desigualdades de gênero por ele perpetuadas.
Portanto, as respostas não poderão ser encontradas no formalismo jurídico, na sua
pretensão de cientificidade, racionalidade, e decisão proferida por um juiz neutro e imparcial
(fruto do sujeito da modernidade: homem, racional). Está-se diante da superação do
positivismo jurídico e seu formalismo, representada, segundo o jusfilósofo brasileiro, Albert

11
De acordo com Norberto Bobbio, o positivismo jurídico nasce do esforço de transformar o estudo do direito
numa verdadeira e adequada ciência que tivesse as mesmas características das ciências físico-matemáticas,
naturais e sociais.
12
Oà odeloàdeà i iaàdoàdi eitoàpe sadoàpo àыelse àe àsuaàTeo iaàPu aàdoàDi eito (...) é formalista (...). Para a
elaboração de normas válidas é suficiente a observância da forma prevista em norma hierarquicamente superior.
Em outras palavras: basta a observância formal do procedimento legislativo para que as normas dele resultantes
sejam válidas. (...). De acordo com ele, é juridicamente possível converter qualquer conteúdo em norma válida,
sem preocupação com a justiça ou injustiça de tal conteúdo. Desde que, é claro, sejam observadas as
formalidades previstas legalmente para a elaboração daquela norma. O procedimento normativo é suficiente
pa aàlegiti a àasà o asàdeleào iu das .à GOMй“,à ,à -137).
590

Calsamiglia pelo pós-positivismo, que é, sobretudo, uma nova forma de se pensar o Direito.
Deixa para trás todas as teorias baseadas em juízos de fato, constituindo um conjunto de
juízos de valor acerca de uma determinada realidade. Agrega o melhor do jusnaturalismo e
do positivismo13 para tornar o Direito mais flexível, mais humano, mais justo, tencionando
suprimir quaisquer possibilidades de validar ordens jurídicas ofensivas aos valores mais caros
do ser humano e da sociedade (ATIENZA, 2004).
E isto implica uma reformulação total nos pressupostos apontados por Bourdieu
(2000) sobre quem está autorizado a falar, sobre o que se pode falar, e de que forma isso deve
se àfeito.àI pli aàassi àu à desplazamiento de la agenda de problemas que interesan14 ,àaà
inclusão de novos olhares para relatos alternativos da realidade social, o reconhecimento de
outros saberes, outras experiências, outros sujeitos, não tão voltado à norma, e mais
preocupado com a realidade social.
E este reconhecimento de outros sujeitos e outros olhares implica na ruptura dos
pressupostos da teoria político normativa moderna apontados pela crítica feminista. Significa
incluir na agenda, enquanto sujeitos do processo os grupos antes ignorados, como as
mulheres, para pensar um direito que se encontre em constante diálogo com valores, com a
ética, com a moral, que seja um instrumento para a realização e concreção dos ideais, anseios
e afãs da sociedade, sendo legitimado, em parte, por elementos supralegais. É um meio cujo
fim é a paz, a equidade e a ordem, sem perder de vista a realização do ser humano (de todos
os seres humanos), em todos os contextos sociais e em todos os seus aspectos pessoais.
Radbruch (2004, p. 416), eminente jurista alemão, um dos precursores de concepções
pós-positivistas, nos ensina que Di eitoà ue àdize àoà es oà ueà o tadeàeàdesejoàdeàjustiça .
E é este anseio por justiça, por um olhar inclusivo para a realidade social que o feminismo tem
legado ao Direito, podendo com isso, representar uma verdadeira transformação no seio de
sua teoria.

13
Cabe lembrar que, de acordo com Calsamiglia, o pós-positivismo não elimina por completo as teses do
positivismo jurídico nem as ignora, mas implica uma releitura destas, principalmente a tese de distinção entre
Direito, moral e justiça como se esferas estanques e incomunicáveis fossem.
14
De acordo com Calsamiglia as características principais do pós-positivismo são a reaproximação entre direito
e justiça, e o alastramento do campo de interesse do direito e suas fontes. (CALSAMIGLIA, p. 210-212).
591

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O constante avanço que a teoria jurídica vem passando, não elimina o visível
desconforto causado pela simples menção a determinados temas que ultrapassam os
tradicionais limites do conhecimento jurídico. O saber jurídico ainda está estruturado sobre
os pressupostos liberais contratualistas da modernidade, e longe de se encontrar
definitivamente aberto a novas experiências, olhares e saberes.
Neste sentido, a crítica feminista tem sido responsável por desvelar alguns dos
pressupostos fundamentais do modelo liberal contratualista sob o qual nossa sociedade e suas
instituições estão regidos. Tal teoria político normativa produziu um modelo de sujeito
excludente, e um contrato sexual fictício que privilegiou algumas características (masculinas)
no desenvolver da nossa sociedade política. Sob tais pressupostos, segundo a crítica feminista,
o direito tornou-se pretensamente masculino, científico, neutro, racional, eficiente, que acaba
por produzir e reproduzir estereótipos de gênero, criando categorias, lugares e papéis sociais,
e reforçando a opressão e desigualdade destinadas as mulheres. Desta forma, o direito ainda
constrói, afirma e reafirma o gênero, representando com isso um campo de disputas
constantes entre o avanço e o retrocesso.
Porém, ademais de tais constatações, acredita-se que o campo jurídico é essencial para
a superação deste status, de modo que, cabe ao próprio feminismo, a partir dos
desvelamentos e das críticas elaboradas, contribuir para uma reformulação da teoria jurídica
moderna. Isto porque, considera-se que a linguagem dos direitos desempenha um papel
fundamental no processo de emancipação dos sujeitos excluídos, uma vez que, para quem
nunca teve sua dignidade reconhecida ou dela foi despojado, poder se ver como sujeito de
direito é uma aquisição fundamental no processo de emancipação.
Portanto, neste processo conexo entre feminismo e direito, mais do que o direito
construir e reconstruir o gênero, tem-se que a crítica feminista representa, ademais de todas
as resistências enfrentadas, uma fonte de transformação e reconstrução da própria teoria
jurídica. Mais do que propor uma teoria geral do direito, a crítica feminista aponta para
mudanças fundamentais na maneira como se deve perceber o direito, e o principal desafio
proposto por sua prática é fazer com que seja corrigido o olhar, buscando menos a norma
592

jurídica e mais as relações sociais, reintroduzindo assim a preocupação com a justiça no campo
normativo.

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y el gênero en el derecho. Buenos Aires: Editorial Biblos, 2000, p. 31-71.
594

ECONOMIA E PUNIÇÃO: UMA ANÁLISE CRITÍCA DA POLÍTICA CRIMINAL PUNITIVISTA

Graciana Kemp Maas1


Luiz Alberto Brasil Simões Pires Filho2

RESUMO: Este artigo busca, através de uma abordagem bibliográfica qualitativa, analisar as
influências, ainda que indiretas, da ordem econômica sobre a política criminal. Existem, de
fato, demandas sociais que clamam por uma política criminal mais severa, capaz de, por conta
de sua severidade, coibir as práticas criminosas? Demandas sociais e políticas criminais como
a da tolerância zero são impulsionadas pelo momento econômico vivido pelo país ou refletem
apenas a ideologia da população? Para encontrar uma resposta satisfatória a essas questões,
este trabalho analisa a influência da ordem econômica sobre o modelo punitivo adotado, o
estereótipo criado pela mídia e verificado nas prisões, que atuam como mantenedoras do
status quo social e a indústria sustentada pelo encarceramento de parcelas da população não
produtivas do ponto de vista econômico.

Palavras-Chave: Direito Penal do Inimigo; Política Criminal; Economia Punitiva; Sociedades


Industrializadas.

1 INTRODUÇÃO

Dentre as recentes polêmicas que ocupam o espaço da mídia nacional nos últimos
meses se destacam as atinentes às questões de política criminal. A redução da maioridade
penal, já aprovada em segundo turno pela Câmara de Deputados Federal, e as reincidentes
manchetes de bandidos que são amarrados a postes e agredidos após o cometimento de
pequenos delitos são claros exemplos de questões relevantes para o Direito Penal que
circundam a mídia e dividem a opinião pública.
Diante da relevância e da atualidade do tema, o presente trabalho trata da política
criminal, mais especificamente, se refere ao direito penal do inimigo e à política de tolerância
zero, propondo investigar e analisar a influência da ordem econômica sobre tal.
O tema é abrangente e complexo, possibilitando diferentes vertentes de análise que
vão desde a ideia de demandas sociais até a concepção de poder e como ele estrutura a

1
Acadêmica do curso de Direito da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e Missões – URI Campus
Santo Ângelo e estagiária na Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul. Endereço eletrônico:
graciana.maas@gmail.com
2
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifica Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Especialista
em Teoria dos Recursos pela Acadêmica Brasileira de Direito Processual (ABDPC). Mestre em Direito pela
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e Missões (URI – Santo Ângelo). Advogado e Professor
Universitário.
595

sociedade moderna. Para tanto, buscar-se-ão possíveis respostas trazendo recortes de uma
análise bibliográfica qualitativa de obras de Foucault, Bauman, Zaffaroni, Christie, Wacquant
e outros importantes autores da temática em questão.
Não se busca, com isso, exaurir a profundidade das obras de tais autores, mas tão
somente buscar nelas esclarecimentos acerca do assunto proposto. A análise se concentra na
possível influência que a ordem econômica vigente exerce sobre a política criminal, mesmo
que indiretamente. Há, de fato, demandas sociais que clamam por uma política criminal mais
severa, capaz de, por conta de sua severidade, coibir as práticas criminosas? Demandas sociais
e políticas criminais como a da tolerância zero não são impulsionadas pelo momento
econômico vivido pelo país, refletindo apenas a ideologia de uma população?
Para encontrar uma resposta satisfativa aos questionamentos suscitados, o trabalho
em questão apresenta, respectivamente, em seus capítulos: a implantação prática da teoria
do direito penal do inimigo na década de 1960, em Nova York; a conveniência econômica que
é velada pelas demandas sociais positivistas e o discurso criminológico que determina
questões de política criminal na atualidade; a relação da política criminal com a economia de
mercado; e, por fim, o aparato industrial que se alimenta do sistema punitivo atual.
É justamente no sentido de estabelecer as devidas correlações entre o modelo
econômico e as aparentes demandas sociais punitivistas com a política criminal que este
trabalho se justifica, sobretudo, com o intuito de, ao evocar diferentes nomes de filósofos,
sociólogos e penalistas, analisar o papel do criminoso e do crime, bem como o papel da
economia e das políticas criminais sobre os temas que têm dividido a opinião pública no Brasil
atual.

2 DESENVOLVIMENTO
2.1 O DIREITO PENAL DO INIMIGO

Três tendências basilares caracterizaram a evolução penal dos Estados Unidos desde a
virada social e racial esboçada no início dos anos 1960: a expansão vertical do sistema ou a
hiperinflação carcerária (as instalações carcerárias se quadruplicaram em 16 anos); a extensão
horizontal da rede penal (juntamente com o cancelamento das liberdades antecipadas) e, por
fim, o crescimento excessivo do setor penitenciário no seio das administrações públicas (entre
596

1979 e 1990, os gastos penitenciários dos estados cresceram 325% a título do funcionamento
e 612% no capítulo da construção).
Além destas, outras tendências foram observadas na prática: para reduzir o custo
unitário da detenção, as autoridades suprimiram privilégios concedidos aos prisioneiros;
inovaram a tecnologia para melhorar a produtividade de vigilância; transferiram uma parte
dos custos da carceragem para os presos e suas famílias; reintroduziram o trabalho
desqualificado em massa no seio das prisões; privatizaram o encarceramento e, por fim,
houve o ressurgimento da indústria privada carcerária e a implementação de uma política de
ação afirmativa carcerária.
O direito penal do inimigo, criação atribuída a Jakobs, segundo Meliá, é, em sua
essência, uma reação de combate do ordenamento jurídico contra indivíduos especialmente
perigosos e se caracteriza essencialmente por três elementos: (a) toma como ponto de
referência o futuro (o ato que pode ser ou que será cometido), ao invés de se articular em
perspectiva ao presente, ou ao ato cometido; (b) prevê penas desproporcionalmente altas,
não levando em conta a barreira da punição como fator a amenizar as penas previstas e (c)
relativiza e até mesmo suprime determinadas garantias processuais (MELIÁ, 2016, p. 17).
Foi a teoria da vidraça quebrada (adaptação do ditado popular quem rouba um ovo,
rouba um boi), sem nenhuma comprovação empírica, que motivou William Bratton a
reorganizar o trabalho policial no metrô de nova York a fim de refrear o medo da classe média
e alta por meio da perseguição permanente dos pobres nos espaços públicos. Foi a essa nova
política que as autoridades da cidade atribuíram a queda da criminalidade em nova York.
No entanto, a política gestada na Nova York dos anos 1960 só foi recepcionada por
diversos outros países por encontrar o interesse e a anuência de autoridades que buscavam
solucionar o problema do desemprego reduzindo seus gastos sociais através de uma política
de menos Estado que possibilitou a flexibilização do trabalho assalariado.
Torna-se cada vez mais evidente que a identificação que o ordenamento penal faz de
um infrator como um inimigo não diz respeito à fonte de perigo que ele representa, uma vez
que não o declara como um fenômeno natural a neutralizar. Pelo contrário, é mediante a
demonização do infrator que o Estado encontrou um meio de justificar seu direito de punir.
É ao aceitar o infrator como um inimigo, e aceitar como prioridade primeira a defesa
contra os riscos, que uma determinada categoria de sujeitos é excluída do círculo de cidadãos.
597

Assim a ideia de incremento da pena como único instrumento de controle da criminalidade se


adere ao direito penal simbólico, ou seja, a tipificação penal passa a levar em conta esse
princípio como mecanismo de criação da identidade social, dando origem assim ao direito
penal do inimigo como uma nova fase no desenvolvimento do direito penal simbólico e do
direito penal do século XX.
Atualmente podemos perceber, quando da criação das leis penais, duas linhas
evolutivas: a simbólica e a punitivista (as duas constituem a linha do direito penal do inimigo).
A simbólica diz respeito à função oculta por trás da criação das leis penais, uma vez que os
objetivos do legislador na maioria das vezes se ocultam sob suas declarações expressas.
O direito penal acaba por servir como construtor de uma identidade social. É ele que
representa a identidade que determinada sociedade pretende construir mediante aquilo que
condena e que julga ser louvável na medida em que não identifica somente determinado ato,
mas sim um tipo de autor, aquele que será definido como o outro, aquele estereótipo que
será visto como o que não participa da identidade social almejada. Este é, em suma, o caráter
simbólico do direito penal.
O fato é que a política da tolerância zero promove a hostilização de determinados
grupos e espaços, enquanto passa a mensagem de tranquilidade para os outros grupos sociais
(classes médias e altas, que, convenientemente, são as que participam dos processos
eleitorais).
García aponta que esta teoria é uma alternativa capaz de superar as análises
etiológicas da criminalidade, permitindo o abandono da perspectiva dos fatores
condicionantes de caráter socioeconômico e psicossocial, e servindo para encobrir a retirada
estatal do âmbito socioeconômico, na medida em que oferece aparentes prestações em
matéria de segurança (GARCIA, 2004, p. 3-5).
Tais políticas criminais, no entanto, não surgem como demandas sociais legítimas, mas
sim como resposta ao modelo econômico vigente. A política de tolerância zero visou,
sobretudo, em sua gênese, responder às desordens econômicas provocadas pela
dessocialização do trabalho assalariado e pelo empobrecimento de grande parte do
proletariado, aumentando a intervenção do aparelho policial e estabelecendo uma verdadeira
ditadura contra os pobres.
598

2.2 A CONVENIÊNCIA ECONÔMICA DAS DEMANDAS SOCIAIS PUNITIVISTAS E O ATUAL


DISCURSO CRIMINOLÓGICO

As sociedades de tipo ocidental em geral enfrentam dois problemas principais: a


distribuição desigual da riqueza e do trabalho assalariado. Os dois problemas são fontes
potenciais de intranquilidade. É esse contexto que dá espaço para o surgimento de uma
indústria do controle do crime, destinada a enfrentar tais demandas.
Não só essa indústria, que é movida pela criminalização de determinadas condutas, se
beneficia da criação de determinados tipos penais, mas além dela a ordem econômica como
um todo.

A perspectiva positivista de Durkheim, por exemplo, justifica o aumento da


criminalidade, percebida no início do desenvolvimento urbano-industrial europeu,
como decorrência da anomia desse novo sistema produtivo. Segundo Durkheim,
essa nova sociedade, recentemente envolvida pelo sistema capitalista de produção,
organizava-se ainda de forma rudimentar, pois não conhecia todos os mecanismos
dessa solidariedade orgânica. Por essa razão, sua proposta de solução para as
inúmeras convulsões sociais do momento era a confecção de um ordenamento
jurídico capaz de promover a coesão social (PASTANA, 2015, p. 2).

No decorrer de toda história a situação econômica propiciou a criação de


determinadas punições, como, por exemplo, o decreto de Bruxelas, de 1599, que estabelecia
penalidades para mendigos-aptos, serviçais domésticos que abandonassem seus senhores, e
trabalhadores que deixassem seus empregos para se tornarem mendigos tendo em vista a
necessidade que se tinha, na época, de garantir mão de obra e teto salarial em tempos de
trabalho escasso.
A mudança dos métodos punitivos no final do século XVI, por exemplo, não foi fruto
de considerações humanitárias, mas sim de certo desenvolvimento econômico que viu o
grande potencial de uma massa à disposição das autoridades, daí a substituição das penas
capitais espetaculares para a privação de liberdade (inicialmente utilizada para explorar o
trabalho forçado).
Em 1984, Anthony Fischer, o mentor de Margaret Thatcher, a fim de dar um aval capaz
de alicerçar a enérgica política de desengajamento social implementada pelo governo
republicano, pôs em circulação Losing Ground, obra de Murray, que afirma categoricamente
que o caráter sagrado do espaço público é indispensável à vida urbana, e a desordem na qual
599

se comprazem as classes pobres, por sua vez, é o terreno natural do crime (WACQUANT, 1998,
p. 14).
Atualmente, o que se percebe é o abandono do discurso criminológico ressocializador
e a consideração da punição como simples instrumento de encarceramento de uma parte da
população que não gera benefícios para a ordem econômica. O modelo capitalista que
abrange praticamente todos os países atrela o sucesso dos empreendimentos econômicos à
nova fase da política criminal, que deixa nítida uma maior preocupação com a segurança
pública.
Nesse sentido, ao analisar o papel do Governo nas sociedades contemporâneas,
Bauman chama a atenção para sua atuação no sentido de varrer das ruas os mendigos,
perturbadores e ladrões, reforçar os muros das prisões e investir na segurança pública para
obter a confiança dos investidores.

Fazer o melhor policial possível é a melhor coisa (talvez a única) que o Estado possa
fazer para atrair o capital nômade a investir no bem-estar dos seus súditos; e assim
o caminho mais curto para a prosperidade econômica da nação e, supõe-se, para a
se saç oà deà e -esta à dosà eleito es,à à aà daà pú li aà e i iç oà deà o pet iaà
policial e destreza do Estado. (BAUMAN, 1999, p. 128)

Assim, torna-se evidente que, na ausência de qualquer rede de proteção social, os


jovens que vivem em locais onde imperam o desemprego e o subemprego crônicos
continuarão a buscar os meios de sobreviver e realizar os valores do código de honra
masculino, já que não conseguem escapar da miséria no cotidiano. O crescimento espetacular
da repressão policial nesses últimos anos permaneceu sem efeito, pois a repressão não tem
influência sobre os motores dessa criminalidade em ascensão onde a economia oficial não
existe.
Implementar políticas de criminalização, nesse contexto, acaba apenas por reforçar a
impossibilidade do trabalho assalariado como a negação cívica, uma vez que por um lado
comprime artificialmente o nível do desemprego encarcerando boa parte da população que
busca um emprego, mas por outro produz um aumento de emprego no setor carcerário.
Wacquant, ao considerar as medidas que vêm sendo tomadas ao longo do tempo,
aponta claramente que as autoridades estatais não o fazem como forma de negar sua
impotência perante a delinquência, mas sim por se beneficiarem das estratégias de
responsabilização dos cidadãos ao delegar a eles o controle do espaço público, e ao fazerem,
600

promovem a expansão do tratamento penal da miséria que, paradoxalmente, decorre


justamente do enfraquecimento da capacidade de intervenção social do estado diante da
figura onipotente do mercado(WACQUANT, 1998, p. 98),.
É com esse intuito que se multiplicam as interferências e os dispositivos contratuais
que visam a reestabelecer a segurança em todos os ambientes públicos. Deve-se a isso,
também, a proliferação de medidas que buscam prevenir ou reprimir os atos que ferem o bom
agenciamento das relações em público, como, por exemplo, os decretos municipais que
limitavam ou proibiam as batidas policiais contra os sem-teto.
Se por um lado a liberalização da economia salarial com a desregulamentação do
mercado de trabalho autoriza uma maior exploração da mão-de-obra, por outro produz custos
financeiros, sociais e humanos astronômicos decorrentes da vigilância policial e do
aprisionamento da miséria.

2.3 A POLÍTICA CRIMINAL COMO INSTRUMENTO FORTALECEDOR DO STATUS QUO NAS


SOCIEDADES INDUSTRIAIS

Onde está, afinal, a correlação entre essa economia punitiva que surgiu a partir do
século XIX, ou até mesmo as políticas criminais que norteavam o sistema judiciário na época
dos suplícios e a ordem econômica vigente?
O que diferenciou e fez sobressair a obra de Foucault foi justamente a visão de que o
corpo está intimamente ligado ao campo político e por isso é usado como uma ferramenta do
poder. Para esse pensador, as práticas penais são apenas uma consequência de teorias
jurídicas, e a relação de poder que envolvem tem alcance imediato sobre o corpo e se
manifesta através dele. São as relações de poder que o obrigam a cerimônias, sujeitam-no a
trabalho, supliciam-no etc.

Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e


recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de
produção que o corpo é investido por relações de poder de dominação; mas em
compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso
num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político
cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se
é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso (FOUCAULT, 1987, p. 25 -26).
601

Os suplícios são um bom exemplo de como as práticas penais são apenas uma
consequência das teorias jurídicas e das relações de poder que permeiam. Na idade média o
processo era o mais diligente e o mais secreto que se pudesse fazer. Esta forma secreta e
escrita fazia jus ao princípio de que em matéria criminal o estabelecimento da verdade era
pa aà oà so e a oà eà seusà juízesà u à di eitoà a solutoà eà u à pode à e lusi o.à oà eià ue e iaà
mostrar com isso que a força soberana de que se origina o direito de punir não pode em caso
algum pertencer a multidão à нOUCáUэT,à ,àp.à .
Em um contexto de processos sigilosos, a verdade é produzida nas relações de poder.
Nos suplícios, o corpo do criminoso é levado a reproduzir a verdade do crime. O corpo é o
elemento que,

através de todo um jogo de rituais e provas, confessa que o crime aconteceu, que
ele mesmo o cometeu, mostra que o leva inscrito em si e sobre si, suporta a operação
do castigo e manifesta seus efeitos da maneira mais ostensiva. O corpo várias vezes
supliciado sintesa (sic) a realidade dos fatos e a verdade da informação, dos atos de
processo e do discurso do criminoso, do crime e da punição. Peça essencial,
consequentemente, numa liturgia penal em que deve constituir o parceiro de um
processo organizado em torno dos direitos formidáveis do soberano, do inquérito e
do segredo (FOUCAULT, 1987, p. 41).

O suplício imposto pelo poder judiciário da época é além de tudo um ritual político, na
medida em que faz parte de um organismo de cerimônias que manifestam o poder do
soberano sobre os corpos dos seus súditos. Essa mesma lógica é aplicada ainda hoje nas ações
penais incondicionadas. Nesses casos, o estado toma o papel da vítima porque o crime não
atacou somente a pessoa a quem se dirigiu o ato criminoso, mas sim o poder do estado que
diz através da lei a sua vontade.
Rusche e Kirchheimer, bem relacionaram os suplícios como o efeito de um regime de
produção, ou seja, como efeito da ordem econômica vigente, que na época não via utilidade
nem valor de mercado nas forças de trabalho e consequentemente no corpo humano. O que
não ocorre, contudo, em uma sociedade de tipo industrial, em que o corpo tem valor na
medida em que é importante sua força de trabalho (FOUCAULT, 1987, p. 25).
A própria natureza dos crimes tende a se modificar de acordo com a ordem econômica.
Foucault retrata que houve, durante o decorrer do século XVIII, uma modificação no jogo das
pressões econômicas e uma elevação no nível da vida que adveio de uma multiplicação das
riquezas e propriedades e da necessidade de segurança que resultou em uma diminuição
602

considerável dos crimes de sangue, e de um modo geral, das agressões físicas. Os crimes mais
violentos passaram a dar lugar a delitos contra a propriedade e crimes de roubo, isso dado à
circunstância econômica vigente.
Com a mudança na forma como era vista a propriedade e com as novas formas de
acumulação de capital, as práticas criminosas deixaram a ilegalidade dos direitos para
voltarem-se à ilegalidade dos bens, acompanhando o modelo econômico em uma sociedade
que deixou de se basear na apropriação jurídico-política para basear-se na apropriação dos
meios e produtos do trabalho. A economia da ilegalidade, de fato, passou a se reestruturar
com o desenvolvimento da sociedade capitalista.
A evolução institucional das instâncias do sistema penal, segundo García, (2004, p. 33)
se produz na mudança do Estado providencia (fordista) para o modelo Estatal atual (pós-
fordista), e na consequente substituição da concepção dos grupos sociais excluídos como
destinatários de assistência, para a concepção desses mesmos grupos como destinatários de
controle.
Essa readaptação contemporânea das funções do sistema penal baseou-se nos
mesmos princípios das ideologias que pregam, por exemplo, a desnecessidade de assistência
social aos grupos excluídos, já que isso incentivaria seu parasitismo, tendo em vista que o
trabalho é o meio para o êxito socioeconômico.
Além disso, a política de tolerância zero, ao abandonar os fins assistencialistas,
corroborou a promoção do individualismo competitivo e a culpabilização do excluído (que é
tido como o único responsável por sua situação).
Essas ideologias neoconservadoras acabaram por tirar do trabalho o status de um
direito que deve ser garantido, para impor-lhe o status de um dever que condiciona a inclusão
social (o que resulta, finalmente, na imposição do trabalho assalariado, mesmo que precário,
como forma de inclusão social).
Foi deveras alarmante para o Estado se deparar com aqueles que não mais eram
controlados por capatazes, e reclamavam por seu direito a participar da atividade de produção
para, através dela, promover sua inclusão social, que se dá, é claro, através do consumo.
603

2.4 A ECONOMIA DO ENCARCERAMENTO

Embora Christie tenha assumido que o trabalho e as condições econômicas influem no


cometimento de determinados delitos em desfavor de outros, há uma contradição que nos
faz refletir acerca da existência de uma indústria que se beneficia do crime:
contradito ia e teàasàestatísti asà i i aisàapo ta à ueà oà ú e oàdeàp esosàpodeàdi i ui à
em períodos em que, de acordo com as estatísticas criminais, as condições materiais e a
economia, deveriam ter aumentado; e podem aumentar quando, pelas mesmas razões,
deve ia àte àdi i uído à Cр‘I“TIй,à ,àp.à .
O crescimento alarmante da indústria carcerária através do aprisionamento em massa
de classes economicamente desfavorecidas deve ser determinado pelos pensamentos e
valores éticos, e não pelo impulso industrial, a tempo de evitar uma ditadura contra os pobres,
como prenunciou Wacquant (WACQUANT, 1999, p. 6).
O descontrole da indústria do crime, em uma época em que as nações industriais não
se preocupam mais com seus inimigos externos, é imprescindível para que não se deflagre
uma guerra contra os inimigos internos, afinal é sempre preciso ter um inimigo.
As maiores mazelas das sociedades atuais não advêm dos atos criminosos em si, mas
sim da luta que se estabelece contra eles, que eleva muitos Governos aos status de
totalitários. É importante tomarmos ciência de que somente é crime aquilo que definimos
como tal, e mais importante ainda é dar-nos conta de que geralmente o fizemos com o
propósito de rotular atitudes daqueles pelos quais não sentimos solidariedade.
O que ocorre é que em uma sociedade cada vez mais individualista tendemos a olhar
o outro de forma distante e fria, tendemos a nos afastar de determinados grupos sociais e
olhá-los com indiferença.

Vivemos a situação concreta do Crime como fenômeno de massa. A fúria e a


ansiedade - provocadas por atos que também poderiam ser facilmente considerados
crimes naturais nas sociedades modernas - se tornam a força motriz da luta contra
todas as espécies de atos deploráveis. Esta nova situação, que compreende uma
oferta ilimitada de atos que podem ser definidos como crimes, cria também
possibilidades inusitadas de travar uma guerra contra todas as espécies de atos
indesejáveis (CHRISTIE, 1998, p 14).
604

O motivo do alto número de presos não pode ser reduzido, no entanto, a uma crise de
solidariedade em uma sociedade individualista e competitiva, muito menos ser visto apenas
como um indicador do número de crimes. Uma série de fatores tais como a estrutura e a
distância social, as revoluções políticas, o sistema legal adotado, o interesse econômico e o
nível industrial das sociedades em questão certamente influenciam quantitativamente nos
encarceramentos.
O que não podemos desconsiderar é que prisões significam dinheiro. Elas exigem o
investimento em construções, equipamentos, administração. Elas, por mais disparatado que
possa parecer, geram empregos resolvendo assim alguns problemas comuns à maioria dos
países industrializados.

A prisão resolve, assim, alguns problemas dos países altamente industrializados. Nos
estados de bem-estar social, reduz a contradição entre a ideia de assistência aos
desempregados e a ideia de que o prazer do consumo deveria ser resultado da
produção. Também coloca sob controle direto parte da população desocupada e cria
novas funções para a indústria e seus proprietários. Em última análise, os presos
adquirem uma nova e importante função. Eles se transformam na matéria-prima
para o controle. É um mecanismo engenhoso (CHRISTIE, 1998, p. 121-122).

Nos estados em geral pode-se perceber que a prisão é um instrumento que produz
controle e tem se tornado, em si, cada vez mais uma parte do sistema produtivo. O que
acontecerá, portanto, com a política criminal se o desenvolvimento industrial se prolongar
indefinidamente? Autores como Wacquant e Bauman apontam para a generalização quase
instantânea do sistema capitalista em todo o globo, e vão além: atribuem à nova política
criminal o sucesso da maior parte dos empreendimentos econômicos.
A atenção do poder estatal para o controle penal vem se intensificando com base no
slogan difundido acerca da importância da gestão da segurança pública, como bem expressa
Bauman:

No mundo das finanças globais, os governos detêm pouco mais que o papel de
distritos policiais superdimensionados; a quantidade e qualidade dos policiais em
serviço, varrendo os mendigos, perturbadores e ladrões das ruas, e a firmeza dos
u osà dasà p is esà asso a à e t eà osà p i ipaisà fato esà deà o fia çaà dosà
i estido es à e,à po tanto, entre os dados principais considerados quando são
tomadas decisões de investir ou de retirar um investimento. Fazer o melhor policial
possível é a melhor coisa (talvez a única) que o Estado possa fazer para atrair o capital
nômade a investir no bem-estar dos seus súditos; e assim o caminho mais curto para
a prosperidade econômica da nação e, supõe-se,àpa aà aà se saç oàdeà e -esta à
605

dos eleitores, é a da pública exibição de competência policial e destreza do Estado


(BAUMAN, 1999, p.128).

O que se percebe, paulatinamente, é o abandono do discurso criminológico


ressocializador e a aceitação tácita da punição como instrumento de encarceramento de
grupos sociais considerados desviantes e perigosos que não contribuem de forma significativa
para com o atual plano econômico.
Diferentemente do que se verificava a época dos suplícios, o delinquente hoje é tido
como um jovem rebelde, predador e perigoso. O crime foi redramatizado e substituiu-se a
imagem do delinquente como um sujeito necessitado ou desfavorecido.
Este novo discurso produz, de forma indireta, revolta na população, que acaba por
exigir punições drásticas, sentindo-se cansada de viver amedrontada pelos estereótipos
produzidos.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Do exposto podemos perceber que a economia influi de fato sobre o modelo punitivo
adotado. Bauman corrobora tal ideia ao afirmar que no atual estágio do capitalismo
globalizado a economia dos Países é proporcional ao número de investimentos que estes
recebem, o que suscita uma maior preocupação com a segurança pública, a fim de conquistar
a confiança de investidores estrangeiros.
Outro aspecto a ser levado em conta é o gasto que os governos, de modo geral, têm
com a criação e manutenção de políticas públicas que visam à inclusão social. O Brasil, por
exemplo, vem fazendo grandes investimentos em programas como o FIES, Bolsa Família, Fome
Zero, PROUNI etc., com o intuito de erradicar a miséria, tirando milhões de famílias de
situações de extrema pobreza.
De fato, o grupo social menos favorecido economicamente, que é o alvo desses
projetos, como afirma Wacquant torna-se improdutivo do ponto de vista econômico, e passa
a ser visto como lixo que deve ser varrido das ruas. De outra banda, a própria população adota
essa ideia (que interessa àqueles que têm poder político e econômico). A mídia, neste
contexto, possui papel relevante, na medida em que é através da exposição exagerada de
606

determinados fatos e de determinados estereótipos que a imagem do negro é associada à


pobreza, a do nordestino é associada à preguiça, a do skatista ao usuário de drogas e etc.
O exposto evidencia que a hiperinflação carcerária, o crescimento excessivo dos gastos
públicos para com o sistema penitenciário, o desenvolvimento de tecnologias avançadas que
melhorem a produtividade de vigilância, e a objurgação de alguns privilégios dos presos não
acabaram junto com a política de tolerância zero que Bratton implementou na Nova York dos
anos 1960, se é que a própria política de tolerância zero deixou de existir em algum momento.
No mesmo sentido, tem-se a convicção de que as leis penais carregam consigo, por um
lado, a função simbólica de construir uma identidade social, e, por outro, a função punitivista
de encarcerar a parcela da sociedade tida como um inimigo em comum, um eles que não
participa da identidade social almejada, e que por isso deve ser apartado do nós, bons
cidadãos, trabalhadores e, portanto, úteis para a economia do país.
Com a constante sensação de insegurança, a sociedade acaba por reivindicar uma
política penal mais severa, para que, se não for o suficiente para coibir práticas criminosas, ao
menos sirva como vingança para uma população aterrorizada.
Tais políticas criminais, no entanto, não surgem como demandas sociais legítimas, mas
sim como respostas ao modelo econômico vigente. A política de tolerância zero visou,
sobretudo, em sua gênese responder às desordens econômicas provocadas pela
dessocialização do trabalho assalariado e pelo empobrecimento de grande parte do
proletariado, aumentando a intervenção do aparelho policial e estabelecendo uma ditadura
contra os pobres.
As sociedades de tipo ocidental em geral enfrentam dois problemas principais: a
distribuição desigual da riqueza e do trabalho assalariado. Os dois problemas são fontes
potenciais de intranquilidade. É este contexto que dá espaço para o surgimento de uma
indústria do controle do crime, destinada a enfrentar tais demandas.
No entanto, desenvolver o Estado penal, aumentando o poder de intervenção do
aparelho policial e judiciário, para responder às desordens suscitadas pela desregulamentação
da economia equivale a estabelecer (ou reestabelecer?) uma ditadura contra a pobreza com
base na dessocialização do trabalho assalariado e no empobrecimento do proletariado
urbano, como bem atesta Wacquant (WACQUANT, 1998, p. 6)
607

Atualmente, o que se pode perceber é o abandono do discurso criminológico


ressocializador e a consideração da punição como simples instrumento de encarceramento de
uma parte da população que não gera benefícios para a ordem econômica. O modelo
capitalista que abrange praticamente todos os países atrela o sucesso dos empreendimentos
econômicos à nova fase da política criminal, que deixa nítida uma maior preocupação com a
segurança pública.
A implementação de uma política de criminalização acaba apenas por reforçar a
impossibilidade do trabalho assalariado como a negação cívica, uma vez que por um lado
comprime artificialmente o nível do desemprego encarcerando boa parte da população que
busca um emprego, e por outro produz um aumento de emprego no setor carcerário.
A mudança de perspectiva com a qual se passou a aplicar a pena, pode-se perceber,
teve suas finalidades profundamente associadas à disciplina utilitarista, ou seja: o
encarceramento como um exercício continuado e ininterrupto de treinamento a fim de
corrigir-se o apenado, o que, como passar dos anos, passou a beneficiar uma indústria
carcerária que se formou graças ao aprisionamento em massa de classes economicamente
desfavorecidas.

REFERÊNCIAS
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ZAFARONI, Eugenio Raúl. A questão criminal. Rio de Janeiro: Ravan, 2013.


609

DIREITO PENAL DO INIMIGO, GUERRA ÀS DROGAS E SEUS RESULTADOS: QUAIS OS


BENEFÍCIOS DE LEGALIZAR?1

Brunno Leonarczyk Bomfim2

Resumo: Este artigo tem como objetivo tratar da política de guerra às drogas, desde sua
fundamentação teórica, até as suas causas práticas e resultados ao longo dos anos em que foi
aplicada, além de apontar, por fim, quais seriam os benefícios de uma legalização. Nesse
contexto, serão levados em conta, os princípios essenciais do sujeito contemporâneo, ou seja,
compreendido como sujeito de Direitos, dando atenção, principalmente, às suas liberdades
individuais.

Palavras-chave: Política Criminal. Violência. Direitos. Tráfico.

1 Considerações Iniciais
Desde a exclusão de direitos de uma parte dos indivíduos, até uma privação das
liberdades individuais de toda a população, tem-se um movimento chamado de guerra às
drogas, iniciado com força no Brasil a partir do início da Ditadura Militar de 1964 e presente
até os dias atuais. Inspirada na política desenvolvida pelos Estados Unidos, esta estratégia,
amplamente adotada no Brasil, tem como fundamento o combate às drogas a partir de uma
perspectiva bélica, na qual o sistema jurídico penal exerce papel fundamental, e não como um
problema de saúde pública.
Fundamentada na teoria político criminal do Direito Penal do Inimigo, de Günter
Jakobs, que retira de alguns indivíduos, aqueles que fazem parte do crime organizado, a
condição de cidadão, deixando de garantir os direitos essenciais de um Estado Democrático
de Direito, tal política relativiza valores essenciais a este modelo de organização política
sendo, portanto, incompatível com o mesmo. Quando são retirados os direitos de alguns
indivíduos, a sociedade fica a um passo de retirar o direito de todos os indivíduos.
Este artigo faz a abordagem dos temas supracitados, além de discutir, sem pretensão
de esgotar o tema, a eficácia de tais políticas. Ainda, deve-se ter em mente todos os benefícios
que a alteração das políticas públicas relativas às drogas ilícitas poderia produzir, ou em outras
palavras, os benefícios advindos da substituição de um modelo de guerra, baseado no
proibicionismo e no confronto bélico entre traficantes e policiais, por um sistema baseado na

1
Artigo Científico para o II Congresso Nacional de Ciências Criminais e Direitos Humanos, pela Universidade
Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul, UNIJUÍ.
2
Cursando da graduação de Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul, UNIJUÍ (2017),
atualmente no terceiro semestre. E-mail: bleonarczykbomfim@bol.com.br.
610

legalização das drogas e no seu tratamento como um problema de saúde pública.


Especialmente porque tal alteração poderia resultar na ampliação e na efetiva garantia do
direito à liberdade dos indivíduos, valor tão essencial das sociedades democráticas.
De forma breve, é de suma importância abordar que a presente pesquisa se utilizou de
artigos científicos de terceiros, tanto de seu texto quanto de suas informações visuais, como
gráficos, além de levantamentos nacionais, como dados da população carcerária, com o fim
de trazer informações técnicas extras na tentativa de contribuir para que o leitor ou
pesquisador compreenda o texto. O objetivo do presente artigo é realizar, em suma, uma
crítica à política criminal brasileira e, ainda, apresentar os benefícios, sociais e econômicos, de
uma eventual troca da guerra às drogas por uma política de saúde pública

2 Direito Penal do Inimigo

A Teoria do Direito Penal do Inimigo foi elaborada por Günther Jakobs, sendo de suma
importância sua discussão, pois ela nos traz uma nova forma do direito penal lidar com a
criminalidade na sociedade. O grande princípio do Direito Penal contemporâneo parece ser
o t aàoàte o àdasào ga izaç esà i i osasàoàte o is oàdoàйstado à Cá‘VáэрO,à ,àp.à
256). Jakobs analisa

a convivência em sociedade, a qual se encontra regida por direitos e deveres


recíprocos, pertencentes àqueles que dela façam parte, de maneira que o inimigo
seria aquele que transpusesse os limites do seu direito, violando, por conseguinte,
as normas do ordenamento jurídico, previstas para aquela sociedade, e o próprio
Direito, enquanto fonte da produção normativa. A infração desses direitos e deveres
produz, como qualquer outra conduta, alterações no mundo fático. Então, diante da
não observância das normas jurídicas vigentes, cabe ao Estado, por meio do seu ius
puniendi, punir o indivíduo de forma coercitiva, utilizando-se, para tanto, da
normatividade do direito penal (CAZON, 2016, p. 337).

Toda a sociedade possui valores e estes servem como base para o processo de formular
as normas jurídicas. Uma prática delitiva, quando realizada, sendo contrária à norma penal
estabelecida, chama o Estado, que é o responsável, em suma, pela ordem social a tomar uma
atitude, ou seja, encontrar uma solução para o problema. É deste pressuposto que parte a
Teo iaàdeàщako s,àpoisàeleà uestio aà oà o eitoàdeà e àju ídi oàeàaàfo aà o oàoàйstadoà
deve proceder a fim de tornar eficazes os preceitos esta ele idosàpelaà o a à DáVID,à ,à
p. 4).
611

Desde o início do direito penal, ou melhor, desde que este se torna necessário a ser
executado pelo Estado, existem bens específicos a serem tutelados, como a vida e o
patrimônio, por exemplo. O ponto principal é que existem lesões a esses bens que são
naturais, como por exemplo, uma doença que atenta contra a vida, ou a ferrugem que
deteriora um veículo. Jakobs se dá conta que o direito penal não resguarda os bens em si, mas
a ameaça de outrem a ele. Em outras pala as,à oà Di eitoà Pe alà oà isaà p otege à oà e à
jurídico de forma genérica, mas, sim, busca resguardá-lo da simples ameaça de que outras
pessoasà pode oà ata a à esteà e à ouà daà e pe tati aà deà ueà o osà ata uesà oà o o a à
(DAVID, 2008, p. 4).
Logo, é possível perceber que a proteção ao bem resguardado é relativa, uma vez que
este pode ser defendido apenas da ameaça de terceiros. Quando essa ameaça acontece, é
papel do Estado, segundo Jakobs, realizar ações coercitivas que visem a retomada da ordem,
ou seja, que tenham como papel principal a defesa da lei penal (DAVID, 2008, p.5).
A principal construção teórica de Jakobs é o estabelecimento de dois Direitos Penais.
Oà p i ei o,à di igidoà aoà idad o,à isaà eti a à osà eiosà deà dese ol i e toà ue,à apesa à deà
terem cometido um delito, não almejaram, em hipótese alguma, atingir o núcleo da estrutura
estatal à DáVID,à ,àp.à .àOàsegu do,à ha adoàDi eitoàPe alàdoàI i igo,à isaà o ate àasà
ações daqueles que perturbam a ordem social e a credibilidade estatal, estes não podem,
segu doàщako sà se à o side adosà idad os,à asài i igosàdaàso iedade,àde e doà e e e ,àpo à
parte do Estado, um tratamento diferenciado daqueles, ou seja, devem ser excluídos das
relações jurídico-so iaisàdeàfo aàdefi iti a à DáVID,à ,àp.à . Em síntese

o Estado deve legitimar dois modelos distintos de medidas coercitivas contra a


afirmação delinqüente: tanto tratá-lo como uma pessoa que cometeu um deslize em
seu comportamento (Direito Penal do cidadão), quanto como um indivíduo que deve
ser impedido de destruir a ordem jurídica (Direito Penal do Inimigo) (DAVID, 2008,
p. 6).

Portanto, o cidadão é aquele que, mesmo cometendo eventuais crimes oferece o


mínimo de garantias cognitivas de comportar-se conforme as normas, logo, teria acesso a
todos os direitos da contemporaneidade, consagrados nas constituições sob a forma de
limites ao poder de punir do Estado. Para estes a pena seria apenas para desestabilizar o fato
e fazer com que a sociedade confie na estabilidade da lei penal (CARVALHO, 2006, p. 257).
612

Entretanto, existem aqueles que não se pode confiar que respeitarão a vigência das normas,
tornando-as instáveis e enfraquecendo a ordem estatal, para estes

seria lícito realizar processo de despersonalização do criminoso, no qual a perda da


personalidade política (cidadania) deflagraria exclusão dos direitos a ela inerentes.
Co oà oà di eitoà pe alà deà ga a tiasà se iaà p i il gio à e lusi oà dosà i teg a tesà doà
pacto social, àqueles que se negam a participar do contrato ou pretendem destruí-
lo, incabível o status de pessoa (CARVALHO, 2006, p. 257).

O direito penal do inimigo visa manter a vigência da norma e a expectativa desta criada
pela sociedade. Para isso, são usadas algumas medidas fundamentais, são elas: a) progressão
dos limites da punibilidade, ou seja, pune-se não pelos atos praticados, mas sim pelos atos
que se irá praticar; b) falta de proporcionalidade das penas, com aumento expressivo das
possibilidades de intervenção penal; c) passagem da legislação de direito penal limitadora do
poder estatal a uma legislação de combate a criminalidade, pretendendo intensificar a
coerção de indivíduos delinquentes, principalmente daqueles que participam do crime
organizado, como o tráfico de entorpecentes e o terrorismo; d) supressão de garantias
processuais, pois aquele que é inimigo da sociedade não pode usufruir dos mesmos benefícios
que os membros desta (DAVID, 2008, p. 7 e 8). Isso significa que a probabilidade, mesmo que
genérica, do dano, legitimaria

aà i te e ç oà pe alà desdeà osà atosà p epa at rios da conduta (antecipação da


punição), a suspenção das garantias processuais (incomunicabilidade e ausência de
publicidade) e à imposição de sanções desproporcionais de caráter inabilitador
(preventiva de condutas futuras), [...] o inimigo não poderia usuf ui àosà e efí ios à
p p iosàdoà o eitoàdeàpessoa à Cá‘VáэрO,à ,àp.à .

A aplicação da pena no modelo de direito penal do inimigo é a principal ação prática


do Estado contra a desestabilização que o individuo que delinque causa. Segundo Jakobs, ela
consiste em coação, é uma forma de responder ao fato, de mostrar ao criminoso que suas
ações não desestabilizaram a ordem social. Em outras palavras,

aà e tezaàdaà apli aç oàdaà pe aà o oà edidaà oe iti aà à afi aç oàdeli ue teà


confirma, perante a sociedade, a expectativa normativa esperada, reafirmando a
vigência da norma e estabelecendo a segurança necessária à manutenção do
convívio social, uma vez que a pena está voltada contra um indivíduo perigoso. Dessa
forma, a punição não contempla, unicamente, um ato praticado no passado, mas,
613

também, se dirige aos atos futuros como forma de prevenir a tendência deste
i di íduoàdeàate ta à o t aàaà ig iaàdaà o aà o a e te à DáVID,à ,àp.à .

Para Carvalho (2006, p. 259) ao transformar grupos de pessoas em inimigos da


so iedadeàeàaoàdestitui àseusà o po e tesàdoàstatusàdeàpessoa,à a di a-se da própria noção
deàйstadoàDe o ti oàdeàDi eito .àápe asà osàp ojetosàpolíti osàtotalit ios,àde o i adosà
Estados de exceção, a ideia de segurança pública colocada de forma absoluta sobrepõe à
dignidade da pessoa humana. A destituição da cidadania faz com que o sujeito de direitos seja
ameaçado (CARVALHO, 2006, p. 259).

3 A história da política antidrogas no Brasil

A produção legislativa com relação às drogas começa de fato em 1921, após a primeira
guerra, quando o Brasil se vê obrigado a cumprir os tratados internacionais que já haviam sido
assinados até aquele ano. A primeira lei brasileira com relação às drogas, por sanção do então
Presidente da República Epistácio Pessoa, trata-se do decreto nº 4294, 6/07/1921
(CARVALHO, 2011, p. 8). O decreto objetivava, dentre ouras coisas,

pe aliza à ue à Ve de ,àe p à à e daàouà i ist a àsu sta iasà e e osas,àse à


legitima autorização e sem as formalidades pres iptasà osà egula e tosàsa it ios. à
o à ultasà ueà a ia a à e t eà $à aà : $ à si .à Casoà taisà su st iasà
e e osas à o ti esse à algu à tipoà deà ualidadeà e to pe e te à aà pe aà alte a aà
pa aà p is oà ellula àpo àu àaà uat oàa os .àQua toàaoà l ool, o decreto penalizava
o à ultasà ap ese ta -se publicamente em estado de embriaguez que cause
es a dalo,àdeso de àouàpo haàe à is oàaàsegu a çaàp op iaàouàalheia à Cá‘VáэрO,à
2011, p. 8).

O artigo 5º desta mesma lei foi nitidamente influenciado pela lei seca estadunidense,
uma vez que regula pela primeira vez o comércio de bebida alcoólica no Brasil. Mais tarde, em
abril de 1936, foi criada a Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE), pelo
decreto nº 780. Esta visava o estudo e a elaboração de normas com relação a todas as fazer
de produção e de comércio da droga, bem como a repressão do tráfico e do uso de
entorpecentes (CARVALHO, 2011, p. 9). Após a elaboração das leis, a Comissão às submetia
ao legislativo, e após a elaboração dos estudos, estes eram publicados no Diário Oficial ou
eram submetidos às organizações internacionais.
614

O Decreto nº 2.994 de 17 de agosto de 1938 promulga a Convenção para a repressão


do tráfico ilícito das drogas nocivas de 1936 e, em novembro do mesmo ano, o Decreto-lei nº
891 promulgava a Lei de fiscalização de entorpecentes. Esta lei, além de dizer o que é ou não
é droga, também tornou a produção, pela primeira vez, proibida em território nacional. O
usuário passa a ser tratado como doente, logo, sendo permitida a internação compulsória
(CARVALHO, 2011, p. 11).
Porém, é após o Golpe Militar de 1964, que uma política, antes apenas sanitária, passa
a ser bélica, ou seja, estruturada na perspectiva punitiva. Os entorpecentes eram associados
a movimentos de subversão ou chamadas de imundície comunista (CARVALHO, 2011, p. 15),
oà ueà fi aà e ide teà o à aà iaç oà daà эeià ºà . ,à deà à deà o e oà deà ,à ueà
reorganizava o Departamento Federal de Segurança Pública, estabelecendo uma nova
composição na estrutura da Polícia Federal, criando o SRTE – Serviço de Repressão a Tóxicos
eàй to pe e tes à Cá‘VáэрO,à ,àp.à .
Esse método de repressão que começa a ser adotado pelo Brasil não era novo, mas
sim uma influência de décadas de repressão nos Estados Unidos, que adotavam essas práticas.
Hoje, conhecemos essas ações políticas de proibição e repressão dos entorpecentes como
gue aà sàd ogas .àй à ,àoàe t oàp eside teàй estoàGeiselàsa io aàaàэeià º.à . / ,

p e e doà aà iaç o,à po à de eto,à e à seuà a tigoà º, de um Sistema Nacional de


Prevenção, Fiscalização e Repressão. Na prática, tratava-se de cumprir as
convenções de 1971 (Viena) e 1972 (Protocolo de Emendas à Convenção Única sobre
Entorpecentes de 1961 – Ge e a à Cá‘VáэрO,à ,àp.à .

O projeto nacional de políticas públicas sobre drogas, embora tenha sido idealizado no
período da ditadura, só veio a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, onde a
produção de leis com relação ao tema torna-se astronômica. Hoje, a política de combate às
drogas no país está inserida na Lei Federal nº. 11.343/06. Apesar de conter avanços com
relação às leis anteriores sobre o mesmo tema, ainda sim é uma lei muito repressiva,
espe ial e teà de idoà aoà au e toà dasà pe asà esta ele idasà eà à a plaà a ge à deà
discricio a iedadeàjudi ialàpa aàsuaàfi aç o à DáVID,à ,àp.à .
Cabe citar aqui que a Lei 11.343/06, que em seu artigo 33 reprime a produção, o
transporte e o comércio de drogas, ou seja, toda a logística do tráfico de drogas. Além disso,
o artigo 28 dessa mesma lei, embora não imponha penas privativas de liberdade a quem
615

possui drogas para si com fins de uso pessoal, ainda criminaliza o usuário. O resultado dessa
repressão são 28% das pessoas cumprindo penas em de decorrência crimes relacionados a
entorpecentes, contribuindo para o aumento de pessoas no sistema carcerário (DEPEN, 2014,
p. 33). Cabe destacar que o tráfico de drogas é equiparado aos crimes hediondos conforme a
Lei 8.077/98, o maior impacto é o maior tempo de cumprimento de pena necessário para a
progressão.

4 Alguns Resultados do Modelo Repressivo

A história tem demonstrado que a política de drogas, baseada na lógica da guerra, tem
conduzido a resultados preocupantes no campo da violência. Dados estatísticos indicam que
os períodos de maior violência coincidem justamente com aqueles momentos de maior
repressão. Conforme o gráfico a seguir, trazido por Luís Fernando Moreira (2012, p. 643) os
períodos de maior número de assassinatos nos Estados Unidos foram durante as maiores
repressões, ou seja, durante a Lei Seca e o período de Guerra contra as drogas, justamente
ua doàoà ú e oàdeàaç esàestataisà ueà isa àaà segu a ça às oà aisàf e ue tes:

O melhor exemplo de como a repressão gera um aumento significativo da violência é


a quantidade de jovens que são mortos de forma violenta no Brasil. O mapa da violência jovem
WáI“йэнI“),à à osà t azà ú e osà asso osos,à e t eà eles,à oà utalà i e e toà dosà
616

homicídios a partir dos 13 anos de idade: as taxas pulam de 4,0 homicídios por 100 mil para
75,0 aàidadeàdeà àa os à WáI“йэнI“),à ,àp.à .àйssasàs oàta asàaltíssi asà ueàgua da à
influência na repressão bélica do tráfico de entorpecentes no Brasil.
Muitos autores se referem à legalização ou descriminalização como fatores de
aumento do consumo de drogas. Entretanto, a experiência de Portugal com relação à
descriminalização das drogas, que já conta com 10 anos, não sustenta essa tese. Na verdade,
em Portugal

oà o su oàdeàd ogasàe t eàaàpopulaç oà aisàjo e àdi i uiu,àdaà es aàfo aà ueà


a mortalidade decaiu de 400 para 290, no período de 1999 a 2006, incluindo, na
estatística, a diminuição de doenças correlatas [...]. A prevalência do consumo
desceu de 14,1% para 10,6% (face a 2001) na faixa etária 13‑15 anos, e de 27,6 para
21,6% nos 16‑18 anos [...]. A ligeira subida nas faixas etárias seguintes [...] não se
prende com mais consumo, mas porque os jovens consumidores
pré‑descriminalização estão hoje mais velhos. Ou seja, se os adolescentes
consomem menos, a prazo, menos adultos consumirão (MARTINS, 2013, p. 340 e
341).

Numa eventual descriminalização ou legalização, a violência relacionada ao tráfico


ilegal diminuiria drasticamente, uma vez que deixariam de existir disputas entre traficantes,
traficantes e consumidores, bem como traficantes e polícia (MOREIRA, 2012, p. 643 e 644),
sem falar nos indivíduos inocentes que não estão envolvidos nos conflitos supracitados, mas
acabam morrendo em decorrência de uma bala perdida, por exemplo.
Diz-se que as políticas públicas adotadas pelo governo brasileiro resultam na falta da
d oga,àoà ueàele aàoàp eçoàdaà es aàeàafetaàaà ualidade,à issoàfazà o à ueà aisàpessoasà
desejem suportar o risco da atividade ilegal [...] por conta da possibilidade de lucros
crescentes organizando assim as suas atividades de modo a minimizar os riscos e maximizar
osàlu os à MO‘йI‘á,à ,àp.à .àOsàg a desàlu osàta àfa ilita àaà o upç oàestatal,à
uma vez que estes poderiam tornar o comércio mais fácil.
Infelizmente estas afirmações não encontram respaldo nos fatos, uma vez que as
políticas adotadas no Brasil são as mesmas adotadas nos Estados Unidos, sendo que há, no
asoà doà últi o,à u aà eduç oà oà p eçoà daà d oga.à Pa aà seà te à u aà ideia,à oà alo à dioà
ponderado ajustado para inflação do grama da cocaína na Europa era de US$ 175 em 1990 e
passou para US$ 87 em 2005; no mesmo período o grama nos Estados Unidos caiu de US$ 275
pa aàU“$à à MO‘йI‘á,à ,àp.à .àOà uad oàaàsegui ,àe t aídoàdoàte toàdeàэuísàнe a doà
617

Moreira (2012, p. 645), nos mostra que quanto maior era o gasto, nos Estados Unidos, com o
combate ao narcotráfico, maior era a diminuição do preço da droga.

йsseà uad oà osà o p o aà ueà seà aà ofe taà eà aà p o u aà eal e teà fu io a ,à eà


funcionam melhor ainda em mercados não regulamentados como o das drogas, então só pode
te à ha idoà e pa s oà daà ofe taà deà d ogasà osà últi osà a os à MO‘йI‘á,à ,à p.à .à Issoà
equivale a dizer que a política de guerra contra as drogas é um total fracasso.

5 Benefícios da Legalização ou Descriminalização

Segundo Luís Fernando Moreira (2012, p. 648 a 650), a descriminalização ou a


legalização das drogas pode trazer uma série de benefícios à economia, ao Estado e à
população. Este capítulo será dedicado justamente para discorrer sobre esses benefícios em
defesa de uma mudança de políticas públicas, uma vez que é evidente o fracasso da guerra às
drogas.
O Estado pode, após a liberação do consumo de entorpecentes, passar a tributá-los.
Po ,àh àdeàseàte à uitoà uidado,àpoisà aàt i utaç oàde eàse àtalà ueà i imize o consumo e
oà e adoà eg o;à e essoà deàt i utaç oàpodeà ge a à i e ti oà aoà o t a a do à MO‘йI‘á,à
2012, p. 648). A guerra contra as drogas cria oportunidades para o Estado de extrair dinheiro
618

do povo, entretanto, a tributação pode ser muito mais onerosa, além disso, esta pode ser
muito mais efetiva para redução do consumo.
Nesseà o te to,à oà efeti oà poli ialà fo a iaà aisà aà fis alizaç o,à i pedi doà aà e as oà
fiscal dos agentes econômicos produtores evitando a produção informal; noutros termos, o
aparato estatalà de e iaà se à utilizadoà deà odoà aà to a à aà p oduç oà ilegalà uitoà a a à
MO‘йI‘á,à ,àp.à .àái daàsegu doàMo ei a,à aàpa teà aisàfas i a teà à ueàaàlegalizaç oà
e a tributação das drogas poderiam permitir reduzir, por exemplo, o imposto sobre a renda
dasàpessoasàfísi asàse ài pa toàso eàaàa e adaç o à ,àp.à .
Poderia ser garantida a qualidade do produto, pois quando um produto é vendido
ilegalmente, não há controle de qualidade, inclusive, boa parte dos problemas de saúde
relacionados às drogas podem ser causados por este aspecto. As drogas, observando suas
p op iedades,à tal ezà ausasse à e osà o tesà seà oà esti esse à aà ilegalidadeà eà asà
e p esasàatua tesà esseà e adoàfosse ào igadasàaàga a ti àaà ualidadeàdeàseusàp odutos à
(MOREIRA, 20 ,àp.à .àÉài po ta teà essalta à ueàaàp oi iç oàe àsià oà aiàe ita à ueàoà
indivíduo experimente a droga, nem que se torne dependente, mas, se isso acontecer, a
probabilidade de se tornar um dependente morto é maior sob a política atual de combate ao
a ot fi o à MO‘йI‘á,à ,àp.à -649).
Pode haver um maior controle de publicidade e propaganda, pois no caso álcool e o
tabaco, que são, de longe, as duas drogas de maior impacto sobre a saúde brasileira, causa
espanto que a publicidade seja quase livre, principalmente no caso do álcool. O fato de uma
droga ter sua produção e consumo legalizados não implica total liberdade ao produtor e ao
consumidor. Poderia não ser permitida a propaganda desses produtos ou de quaisquer outras
drogas por qualquer meio, o seu consumo poderia estar restrito a certos locais como bares,
cafés, boates, shows e, obviamente, à residência de quem desejasse fazer uso delas, o
consumo na rua ou em qualquer local não permitido poderia ser punido com multas pesadas
e trabalhos comunitários (MOREIRA, 2012, p. 649).
Com a geração de empregos formais a legalização poderia ter um impacto grande
so eà aà e o o ia,à esteà se ia:à todaà aà e eitaà doà seto à atual e teà aà i fo alidadeà se iaà
edi e io adaàpa aàseto esàfo ais à MO‘йI‘á,à ,àp. 649). Além disso, novas empresas
começariam a produzir, distribuir e vender, gerando empregos. E o melhor de tudo é que todo
o dinheiro circularia de forma legal pela economia do país (MOREIRA, 2012, p. 649).
619

A população prisional é reduzida, impactando no Poder Judiciário, pois se


considerarmos que a população carcerária do Estado de São Paulo é um bom comparativo
com a do resto do país, pode-seà dize à ueà u aà e e tualà legalizaç oà dasà d ogasà te iaà oà
potencial de reduzir a população prisional em algo como % à MO‘йI‘á,à ,àp.à .àIssoà
significa uma redução considerável no gasto de dinheiro público com manutenção, tanto dos
presídios, quanto dos próprios presos.
Uma eventual queda na população carcerária significa uma redução no número de
processos que chegam ao Poder Judiciário, que é um dos fatores que causa morosidade ao
Pode ,àp ejudi a doà oà es i e toàdoàpaís,àoà ual,àde idoàu àsiste aàjudi i ioài efi ie te,à
cresce 20% mais devagar do que poderia se tivesse um sistema judiciário de primeiro mundo à
(MOREIRA, 2012, p. 650).
É importante ter em mente que boa parte da violência gerada pelo tráfico está ligada
a disputa por mercado, pois enquanto os negócios legais dependem de campanhas de
a keti gàpa aà a te àouàa plia àsuaàfatiaàdeà e ado,à oàt fico, pela sua natureza, tem
práticas como o assassinato de rivais ou de consumidores e pequenos traficantes que não
paga à pelasà d ogas à MO‘йI‘á,à ,à p.à .à Éà p o elà ue,à o à u aà legalizaç oà dasà
drogas, o tráfico de armas também pudesse ser reduzido j à ueàaàp o u aàdeàa asàilegaisà
te de iaàaàde li a àseàfosseàadotadoàu à e adoàfo alàpa aàasàd ogas à MO‘йI‘á,à ,àp.à
650). A redução da violência é, de longe, o maior benefício que o Brasil alcançaria com uma
legalização das drogas.

6 Considerações Finais

Com o advento do crime organizado, aos poucos, faz-se necessário uma teoria que
desse fundamento a ações repressivas ilimitadas por parte do Estado contra esses grupos de
indivíduos. Esta teoria é a do Direito Penal do Inimigo, que traz a ideia de dois grupos de
pessoas, o cidadão, detentor de direitos, e o inimigo da sociedade, o sujeito que faz parte de
organizações criminosas e que não tem os mesmos direitos dos cidadãos.
Essa ideia passa a ganhar um bom respaldo por parte da sociedade e por parte do
Estado, logo, não tarda sua aplicação. Assim nasce a guerra às drogas, um verdadeiro
confronto bélico contra os traficantes de entorpecentes, que acaba, na verdade, tirando vidas,
620

de todos os lados. Além disso, tal política fracassou, pois a oferta de drogas aumenta tanto
quanto os gastos extremamente altos por parte do Estado, que poderiam ser aplicados em
áreas mais importantes, como a saúde e a educação.
É importante destacar que a criminalização do porte de drogas para consumo próprio,
mesmo que não resulte em uma pena privativa de liberdade, é inadequado à luz dos direitos
fundamentais da Constituição de 1988. Isso porque o indivíduo que consome drogas não
causa mal algum aos outros, apenas a si mesmo, logo, não é um problema que deveria ser
tratado pelo direito penal, através de sanções, mas sim através da conscientização e do auxílio
médico ao dependente.
Após ser realizado este trabalho, é importante dizer que a política repressiva de guerra
às drogas, que ataca a vida humana e os direitos fundamentais dos indivíduos, ao que parece,
não funciona. O excesso de influência estatal é ruim para a dignidade humana, liberdade
individual e para a economia. Trocar a política de guerra às drogas por uma política de saúde
pública, de legalização e desestímulo gradativo do uso, pode ser extremamente benéfico e
eficiente ao Brasil.

Referências
CARVALHO, Jonatas Carlos de. Uma história política da criminalização das drogas no Brasil: a
construção de uma política nacional. In: SEMANA DE HISTÓRIA E SEMINÁRIO NACIONAL DE
HISTÓRIA: POLÍTICA, CULTURA E SOCIEDADE, 4/3., 2011, [Rio de Janeiro, RJ]. Anais
eletrônicos... [Rio de Janeiro, RJ]: [UERJ], 2011. Disponível em
<http://www.neip.info/upd_blob/0001/1170.pdf>. Acesso em: 21 de abr. de 2017.

CARVALHO, Salo De. A Política Criminal de Drogas na América Latina entre o Direito Penal do
Inimigo e o Estado de Exceção permanente. Revista Crítica Jurídica, São Paulo, v. 1, n. 25, p.
253-267, Jan/Dez. de 2006. Disponível em
<http://www.panoptica.org/seer/index.php/op/article/view/256>. Acesso em: 21 de abr. de
2017.

CAZON, Ana Paula Finger. Direito Penal do Inimigo. Raízes Jurídicas, Curitiba, vol. 8, n. 1,
jan./jun. 2016, p. 325 – 402. Disponível em
<http://ojs.up.com.br/index.php/raizesjuridicas/article/view/17/pdf_13>. Acesso em: 01 de
maio de 2017.

DAVID, Marcos Vinícius Nespolo de. Direito Penal do Inimigo: realidade e eficácia. Tese de
Conclusão de curso (Bacharel em Direito) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, 2008. Disponível em
621

<http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2008_1/m
arcos_vinicius.pdf>. Acesso em: 17 de abr. de 2017.

DEPEN. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN). Brasil, 2014. 80 p.


Disponível em <www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-
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MARTINS, Vera Lúcia. A política de descriminalização de drogas em Portugal. Serv. Soc. Soc.,
São Paulo, n. 114, p. 332-346 abr./jun. 2013. Disponível em
<http://www.scielo.br/pdf/sssoc/n114/n114a07.pdf>. Acesso em: 21 de abr. de 2017.

MOREIRA, Luís Fernando. Drogas, Economia, Tributação e a Ética Liberal. Análise Social,
Lisboa, v. XLVII, n. 204, p. 632-654, Set./Dez. de 2012. Disponível em
<http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/AS_204_d03.pdf>. Acesso em: 21 de abr. de 2017.

WAISELFISZ, Júlio Jacobo. Mapa da Violência 2014. Os jovens do Brasil. Brasília. Instituto
Sangari; Ministério da Justiça, 2014. Disponível em
<www.uff.br/observatoriojovem/sites/default/files/.../mapa2014_jovensbrasil.pdf>. Acesso
em: 01 de maio de 2017.
622

FALSAS MEMÓRIAS: UM OLHAR SOBRE O DEPOIMENTO INFANTIL NO PROCESSO PENAL

Luana Binkowski da Rosa1


Emmanuelle Malgarim2

Resumo: A prova testemunhal, muitas vezes é o único meio de prova a embasar uma acusação
e, depende exclusivamente da memória para recordar o fato delituoso ocorrido e, dessa
função recognitiva da memória é que surgem as falsas memórias, que são influências de
elementos externos e internos, permitindo alterações nas lembranças do indivíduo, podendo
não ser a memória tão confiável como se pensa. Ademais, será abordado a influência dessas
contaminações no testemunho infantil, pois aspectos como as falsas memórias,
sugestionabilidade, afetam o desenvolvimento cognitivo da criança, causando embaraço em
relatar fatos constrangedores, como suspeita de abusos sexuais e, também contribuem para
abalar a credibilidade do testemunho.

Palavras-Chave: Processo Penal; Prova Testemunhal; Falsas Memórias; Testemunho Infantil.

1 Introdução

As falsas memórias, entendidas como recordações de situações que, na verdade,


nunca ocorreram ou aconteceram de forma diversa de como lembrado pela
vítima/testemunha, influenciam diretamente na prova testemunhal produzida no processo
penal, podendo levar a julgamentos equivocados com a condenação de inocentes ou
absolvição de culpados. Desta forma, a motivação pelo assunto abordado neste trabalho foi
pela temática ser tão pouco explorada e estudada no mundo acadêmico, quase desconhecida
para alguns. Por isso, a iniciativa de pesquisar o tema foi de principalmente passar essa
informação acerca da existência das falsas memórias e a importância desse fenômeno na
prova testemunhal e, ademais, no testemunho infantil.

2 PROVA PENAL E FALSAS MEMÓRIAS


2.1 Falsas Memórias – Conceito

Pode-se afirmar que muitos foram os processos que, por falta de provas materiais
técnicas, baseou-se apenas na prova testemunhal.

1
Graduada em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ
2
Professora da Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI, Mestre em Direito Público
pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Advogada.
623

No processo penal, faz-se uma retrospecção (atividade recognitiva) do passado através


do testemunho, buscando-se reconstruir um fato delituoso acontecido, às vezes, há muito
tempo, não levando em consideração que vítima e testemunha dependem de uma memória
que guarda apenas uma lembrança3 do acontecimento, de pessoas, de lugares e de coisas.
Para entender as falsas memórias, primeiramente, não se deve confundi-la com a
mentira, pois esta é contada com plena consciência no momento da fala, a pessoa sabe que o
que está falando não é verídico. Talvez minta por algum tipo de coação que esteja sofrendo
ou porque acredita que no momento é o melhor a se fazer, mas tem a noção disso. No
entanto, pode acontecer de alguém contar por muito tempo uma mentira, e, com o passar
deste, não saber mais se aquilo que pensou e falou é realmente mentira ou verdade, não mais
os distingue, pois sua memória já armazenou aquilo como verdade, daí, surgem as falsas
memórias.
ã ilaà à o eituaà asà falsasà e iasà o oà e o daç esà deà situaç es que, na
verdade, nunca ocorreram ou aconteceram de forma diversa de como lembrado pela
vítima/testemunha e essa interpretação errada de um acontecimento também pode
dese adea à esseà p o esso .à й o aà oà ap ese te à u aà e pe i iaà di eta,à asà falsasà
memórias representam a verdade como os indivíduos as lembram, podendo surgir de duas
formas: espontaneamente ou através de uma sugestão externa.
Elizabeth Loftus4 é uma psicóloga norte-americana, especialista em memória humana
que desenvolveu uma extensa pesquisa, desde a década de 1970, acerca da natureza das
memórias falsas. Loftus tentou demonstrar que as memórias falsas existem e que é possível,
em certos casos, serem criadas e implantadas na mente dos pacientes até pelos próprios
terapeutas. Se puderem ser implantadas por terapeutas, no mesmo sentido, por autoridades

3
“egu doàI a àIz uie do,àaàle a çaà oà àigualà à ealidade:à aà e iaàdoàpe fu eàdaà osaà oà osàt azàaà
rosa; a dos cabelos da primeira namorada não a traz de volta, a da voz do amigo falecido não nos recupera o
a igo .à ái da,à a es e ta:à oà e oà o e teà aà ealidadeà e à digosà eà asà e o aà po à eioà deà digos .à
(IZQUIERDO, 2006, p. 17).
4
Elizabeth Loftus é professora de psicologia e professora auxiliar de Direito na Universidade de Washington. Ela
recebeu o PhD em Psicologia da Universidade de Stanford em 1970. Sua pesquisa concentra-se em memória
humana, depoimento de testemunha ocular e procedimentos de Tribunal. Loftus publicou 18 livros e mais de
250 artigos científicos e serviu como especialista ou assessora em testemunhas em centenas de julgamentos,
inclusive no caso de molestamento na pré-escola McMartin. Seu livro Eeitness Testimon ganhou o National
Media Aard da Fundação Psicológica Americana. Ela recebeu doutorados honorários da Universidade de Miami,
Universidade de Leiden e da Faculdade John Ja de Justiça Criminal. Loftus foi eleita presidenta da Sociedade
Psicológica Americana recentemente.
624

policiais, por advogados de defesa, pelo Ministério Público, pelos Magistrados e outros
interrogandos.
Loftus (2016), na pesquisa da distorção da memória remonta os estudos ao efeito da
informação incorreta, alegando que, quando as pessoas que testemunham um evento são
posteriormente expostas a informação nova e enganosa sobre ele, as suas recordações
frequentemente se tornam distorcidas5, mostrando, assim, que a informação enganosa pode
mudar a memória de um indivíduo de um modo previsível e às vezes muito poderoso.
áài duç oàouàsugestio a e toàpodeàa o te e àta toà aài ui iç oàdasà íti asàeàdasà
testemunhas, através de questionamentos com viés eminentemente acusatório, como
também através da mídia,àaà ualàp o u aàse p eàfaze àdoà i eàu àespet ulo à DIàGй“U,à
2010, p. 129). O cenário midiático faz com que muitas vezes a pessoa misture o que viu e ouviu
na televisão, rádio ou internet com seus pensamentos, causando distorções nos fatos e
levando a erros.
De modo a ser importante a maneira como lhe é perguntado algo, como lhe é
insinuado à questão a ser respondida, principalmente para crianças6, pois estas são mais
suscetíveis à criação de falsas memórias, para que, também, a pessoa no momento que
contará a respeito do fato, não se sinta coagida com a pergunta e, seu estado emocional se
altere, gerando confusões e falsas memórias, dificultando até mesmo, o reconhecimento de
coisas e pessoas. A tensão emocional, combinada a pressão social e a indução, é capaz de
distorcer a memória a ponto de fazer com que as pessoas acreditem erroneamente que
cometeram um crime ou que presenciaram fatos que não viram.

2.2 O Reflexo da Falsificação das Lembranças no Ato de Reconhecimento

Segundo Di Gesu (2010, p. 129) no ato de reconhecimento uma pessoa é levada a


perceber alguma coisa e, recordando o que havia percebido em um determinado contexto,

5
Em um exemplo, participantes viram um acidente de automóvel simulado em um cruzamento com um sinal de
Pare. Depois do ocorrido, metade dos participantes recebeu uma sugestão de que o sinal de tráfego era um sinal
de passagem preferencial. Quando perguntados posteriormente que sinal de tráfego eles se lembravam de ter
visto no cruzamento, os que haviam sido sugestionados tendiam a afirmar que tinham visto um sinal de
passagem preferencial. Aqueles que não tinham recebido a falsa informação eram muito mais precisos na
lembrança do sinal de tráfego. (LOFTUS, 2016).
625

compara as duas experiências. O responsável pela diligência pergunta se o sujeito está frente
ao mesmo objeto (pessoa ou coisa). (FRANCO CORDERO, 2000, p. 106).
A exatidão da percepção e a capacidade de distinguir detalhes depende, geralmente,
do conhecimento prévio acerca do objeto ou da pessoa a ser identificada, trata-se da
percepção precedente, a qual pode, inclusive, ser fomentadora de erros 7, sendo que a
importância da percepção precedente para o processo penal está justamente no
reconhecimento de objetos e de pessoas (DI GESU, 2010).

Elementar que a vítima de um delito e eventual testemunha presencial – as quais


tiveram contato direto com o imputado, tendo a oportunidade de observá-lo porque
o rosto ou parte dele estava descoberto -, tenham mais facilidade de reconhecê-lo
posteriormente. O mesmo ocorre com a identificação de objetos, na medida em que
esta é facilitada se efetivamente pertenciam à pessoa ofendida, devido ao contato
prévio. (DI GESU, 2010, p. 130).

O procedimento descrito no artigo 226 do Código de Processo Penal é claro em ser o


reconhecimento de pessoas e coisas feito pessoalmente, ao vivo, cujo suspeito é colocado
entre outras pessoas para que a vítima/testemunha direcione seu reconhecimento ao
suspeito ou não, pois a prova por reconhecimento fotográfico é meramente inominada8 e,
não pode ela isolada ser base para sentença condenatória.

Se por algum motivo o ofendido ou a testemunha não conseguiu, no momento do


crime, captar a imagem do suspeito – de idoàaoàefeitoà fo oà aàa a à 9 porque ele
estava com o rosto encoberto por touca ou capacete; ou porque não obteve contato
direto com o envolvido, entre outras diversas moduladoras que concorrem para
piorar a qualidade da identificação, tais como o tempo da exposição da vítima ao
crime e ao contato com o agressor, a gravidade do fato, o intervalo de tempo entre
o delito e a realização do reconhecimento, as condições ambientais (visibilidade,
aspectos geográficos), as condições psíquicas da vítima (memória, estresse,
nervosismo), a natureza do delito, ente outros – poderá fixar na memória a
fotografia anteriormente vista, sendo induzido a posterior reconhecimento pessoal.
(DI GESU, 2010, p. 131-132).

7
й i oàálta illaà ,àp.à àe e plifi aà e àaà uest o:à Ped oàeàPauloà e àdeàlo geàoà es oào jeto.àPed oà
já o viu de perto outras vezes, Paulo nunca o viu. Pedro distingue nele detalhes que Paulo não vê. E, no entanto,
nenhum deles têm melhor vista do que o outro. A conclusão que se impõe e, antes de mais nada, que Pedro não
teria uma sensação visual tão distinta do objeto se não o tivesse visto de perto, por diversas vezes; em segundo
lugar que as sensações ou percepções visuais das partes que são confusas para Paulo, e que o seriam igualmente
para Pedro se não tivesse já visto o objeto de perto, se tornam mais claras e distintas para Pedro em virtude das
i age sà ueàdespe ta àeà ueàasà efo ça .
8
É aquela prova que, apesar de não se encontrar relacionada na lei, é admitida pelo juiz na composição do
processo.
9
Redução da capacidade de identificação, pois a tendência do ofendido é se fixar na arma e não nas feições do
agressor.
626

Di Gesu (2010, p. 132) sustenta que, além disso, muitos reconhecimentos são positivos
justamente devido à crença das pessoas de que a polícia somente realiza um reconhecimento
quando já tem um bom suspeito.
A principal causa do erro de reconhecimento se encontra na semelhança entre as
pessoas e a sensação de já tê-la visto antes, o que leva, da dúvida de ser tal pessoa de fato o
criminoso, sujeita a contaminação de transcurso de tempo, até a certeza de que tal pessoa é
eal e teàoà i i oso.àNasàpala asàdeàэoftusà ,àdoà esseà àoà ueà aisàseàpa e e à aoà
olha à pa aà aà foto à pa aà euà te hoà aà a solutaà e tezaà ueà à esseà oà ho e à aoà -lo
pessoalmente)10.
Ademais, diante do excesso de formalismo do artigo 226 do Código de Processo Penal,
falte a estrutura necessária para seu cumprimento, na medida em que deveria se ter pessoas
semelhantes ao acusado no momento do reconhecimento visual pelo ofendido, a fim de que
se evitem ao máximo as falsas memórias e o reconhecimento seja o mais certo possível.
Como expressa Di Gesu (2010, p. 132-133):

й à ueàpeseàaàlegislaç oàp o essualà asilei aàfaze à e ç oà à possi ilidade àdeàaà


pessoa ser reconhecida ser colocada ao lado de outras que tenham as mesmas
características físicas, defendemos a obrigatoriedade do procedimento, tendo em
vista se tratar de ato formal. Neste caso, a interpretação da lei deve ser restrita, pois
somente desta forma estar-se-á garantindo a observância das regras do jogo – não
devemos nos esquecer que a forma do ato é garantia para o processo – e,
principalmente, evitando à formação de falsas memórias.

Então, para que os requisitos do art. 226 sejam seguidos criteriosamente, o


reconhecimento do acusado deve ser realizado com precaução e de maneira mais rápida
possível para que se minimizem as contaminações e as falhas inerentes à memória humana e,
posteriormente a decisões judiciais erradas.

2.3 Fatores de Contaminação da Prova Oral

A testemunha/vítima de um fato delituoso se vale de suas recordações ao narrar os


fatos do crime, entretanto, como já fora visto, a lembrança não reconstrói o fato fielmente tal

10
Caso de Steve Titus, estudado por Elizabeth Loftus.
627

qual aconteceu na realidade (processo mnemônico11), principalmente da maneira como a


prova é colhida. Além disso, há diversos fatores de contaminação da prova oral para criações
de falsas memórias, como será visto.

2.3.1 Transcurso do Tempo

O fator de transcurso do tempo é o de maior atenção, pois quanto mais o tempo passa,
maior o esquecimento e, consequentemente, maior a possibilidade de a testemunha ser
induzida por fatores internos e externos.
É sabido que o tempo do direito não acompanha o tempo social, pois este está sempre
em constante mutação. Ambos correm em velocidades diferentes (DI GESU, 2010, p. 138).
Ainda assim, o direito não pode estar alheio, mas sim atento às transformações do
meio social, e, é por isso, que o processo cria e está sempre tentando criar mecanismos
artificiais de adaptação do direito ao tempo social, como forma de dar uma resposta rápida e
condizente com a aceleração dos ritmos temporais, relativizando-se. (DI GESU, 2010).
O artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal de 1988, assegura a razoável
duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação em garantia
dos princípios fundamentais.
Em relação ao que o efeito do transcurso de tempo gera em relação aos
acontecimentos armazenados na memória, enfatiza (DI GESU, 2010, p. 141):

Com efeito, o transcurso do tempo é fundamental para o esquecimento, pois além


de os detalhes dos acontecimentos desvanecerem-se no tempo, a forma de retenção
daà e iaà à asta teà o ple a,à oàpe iti doà ueàseà us ueàe àu aà ga eta à
do cérebro a recordação tal e qual ela foi apreendida. E, a cada evocação da
lembrança, esta acaba sendo modificada.

Os acontecimentos se perdem, as imagens não se fixam na memória por muito tempo,


após o acontecimento, ficam apenas as recordações reconstruídas, pois o tempo passa muito

11
Segundo Nereu José Giacomolli e Cristina Carla Di Gesu (2016), o complexo processo mnemônico é dividido,
em três momentos: aquisição, retenção e recordação: aquisição destaca que as recordações não são réplicas de
acontecimentos percebidos, por serem limitados pela natureza do fato (tempo de observação, luminosidade,
atenção aos detalhes, existência de violência, caráter estressante), e nem pelas próprias características e
limitações da testemunha, tais como expectativas, estresse emocional, entre outros. Na retenção, a informação
é menos completa e exata, relacionando-se com o transcurso do tempo entre a observação do episódio e a
recordação posterior, bem como com as informações obtidas após o fato.
628

rápido para conservar os fatos na memória como eram no momento do acontecido e, a


influência existente entre o transcurso do tempo, a memória e a possibilidade de
contaminação da prova oral, é menor quando o intervalo de tempo entre o fato delituoso e
as declarações das vítimas e das testemunhas, com menos possibilidades de haver
esquecimentos e/ou influências externas na memória do depoente.

2.3.2 O Hábito e a Rotina

Segundo, Di Gesu (2010), neurologicamente falando, muitas memórias podem ser


adquiridas por intermédio da associação de estímulos e de um estimulo a uma resposta12. O
reflexo resulta da ligação entre um estímulo e uma resposta. A neurologia concebe formas de
aprendizado associativo como reflexos condicionados e o cotidiano nos trás exemplos de
reflexos condicionados instrumentais,

Tais como chamar um garçom em restaurante para que traga comida, o choro do
bebê para que a mãe lhe dê leite, evitar colocar os dedos em uma tomada para não
levar um choque. Entretanto, a repetição de estímulos condicionados sem o seu
efo ço ,àistoà ,àse àoàestí uloài o di io ado,àp o o aàaàe ti ç oàdaà e ia.
Assim, se percebemos que com o choro não conseguimos o leite, paramos de chorar
(DI GESU, 2010, p. 146).

No processo da dimensão da percepção, a pessoa constantemente estimulada sobre


um determinado ponto diminui gradualmente a resposta, considerando já ter se habituado
(DI GESU, 2010).
Pode-se observar que é grande a influência da rotina e do hábito na percepção acerca
de um determinado acontecimento, pois tudo o que foge dessas influências, faz com que
enfraqueça a percepção do que a testemunha/vítima viu ou ouviu do ocorrido.

2.3.4 A Linguagem e o Método do Entrevistador


2.3.4.1 Viés do Entrevistador

12
й pli aàI)QUIй‘DOà ,àp.à ,à ueàaà e ti ç oà ,àassim, um fenômeno semelhante à habituação: perante a
repetição de um estímulo condicionado, deixamos de repetir a resposta correspondente. Na habituação,
paramos de responder, porque isso não é necessário: o estímulo nunca é pareado com outro. Na extinção,
pa a osàdeà espo de ,àpo ueàistoàj à oà à aisà e ess io:àoàestí uloài o di io adoàj à oà e à ais .
629

É através da entrevista que o entrevistador busca informações sobre determinado


evento ocorrido, fazendo perguntas a vítima e testemunhas, sendo um momento
importantíssimo para o processo, devendo ser estudado a linguagem e o método usados para
tal entrevista, a fim de que os relatos sejam os menos influenciáveis possíveis. Pois, se o
entrevistador já está convicto em relação a determinado evento ocorrido, deixando
transparecer, acaba por insinuar perguntas condizentes com sua convicção.
A exatidão das declarações, principalmente no que concerne ao testemunho infantil,
pode ser seriamente maculada, em razão do como a criança é entrevistada e em função de
seu alto grau de sugestionabilidade, fomentando a formação de falsas memórias, pois crianças
são mais suscetíveis à falsificação da lembrança (DI GESU, 2010).
Explica Osnilda Pisa e Lilian Milnitsky Stein13 (2006, p. 221) que o viés do entrevistador
pode ser observado em comportamentos sutis, como um sorriso, um movimentar de cabeça,
o tom da voz ou a forma de formular uma pergunta, que pode ser em tom acusatório,
desculpador ou neutro.

2.3.4.2 Repetição de Entrevistas

Pisa e Stein (2006) baseadas em pesquisas sobre a memória, que sustentam que a
repetição de entrevistas é uma forma de efeito benéfico, de prevenir o esquecimento e, de
acordo com esse entendimento, seria importante a testemunha repetidamente recordar os
detalhes do evento de forma a não esquecê-los.

A literatura também aponta que a formação de uma memória (isto é, sua


consolidação) é facilitada quando a primeira recordação acontecer em seguida ao
evento. Nos estudos sobre a memória e em situações mais naturalistas (onde
sujeitos recordam uma série de eventos ou um episódio), alguns destes veredictos
(facilitar a consolidação da memória e evitar o esquecimento) são reproduzidos.
Especificamente quando são solicitadas recordações livres, tanto crianças como
adultos lembram novos detalhes com entrevistas adicionais, fornecendo
informações além das descrições originais. Assim, a repetição de entrevistas com
crianças é associada a efeitos benéficos. De outro lado, considerando que o decurso
do tempo enfraquece o traço da memória original e, em consequência, intrusões
podem ser implantadas na memória, os autores destacam que entrevistas repetidas
também estão associadas a efeitos perniciosos. (PISA e STEIN, 2006, p. 224).

13
PISA e STEIN falam sobre pesquisas realizadas com crianças em entrevistas, ao qual será abordado no Capitulo
3 (três) do presente trabalho.
630

Aos efeitos perniciosos discorre Di Gesu (2010, p.151):

Os efeitos danosos da repetição das entrevistas estão associados a incorporação de


informações falsas nos relatos subsequentes das crianças, as quais, inclusive,
utiliza a à e à seusà o a ul ios,à te osà doà e t e istado .à ássi ,à se do,à asà
entrevistas sugestivas múltiplas podem ter efeitos danosos não só por causa de sua
quantidade, mas também porque a cada entrevista sugestiva adicional aumenta o
de u soàdoàte poàe t eàoàe e toào igi alàeàoà elatoàdaà ia ça .

Em relação à repetição dos mesmos questionamentos na entrevista, entende Pisa e


Stein (2006, p. 226):

Ao entrevistar crianças, muitos adultos, frequentemente repetem uma pergunta por


que a primeira resposta da criança não pode fornecer suficientes informações. Em
entrevistas forenses, perguntas podem ser repetidas para verificar a consistência das
declarações da criança. Às vezes, a repetição de perguntas é sinal de enviesamento
dos entrevistadores. Alguns entrevistadores parecem continuar perguntando a uma
criança a mesma pergunta até que recebam a resposta que estão esperando. Vários
estudos mostram que quando fazemos, mais de uma vez, a mesma pergunta dentro
de uma entrevista, a uma criança tende a mudar sua resposta.

Normalmente há a repetição de um questionamento a fim de se obter novas


informações da criança e para verificar a consistência desse depoimento, o que pode
ocasionar a mudança de resposta devido o aumento das falsas memórias, pois ela pode
entender que a repetição da pergunta seria uma insatisfação por parte do entrevistador com
a resposta por ela dada.

2.3.5 Mídia

A investigação criminal além de dolorosa passou a ser um entretenimento as pessoas.


Telejornais ocupam grande parte de sua programação com reportagens de delitos, pois dá um
alto índice de audiência, principalmente aqueles relacionados à crianças14, causam bastante
repercussão nacional.
Giacomolli e Di Gesu (2017) alegam que a mídia acaba familiarizando a população
revelando trechos das investigações policiais, com as decisões acerca de buscas e apreensões,
prisões cautelares, concessões de liminares e habeas corpus, entre outras, induzindo-a,

14
Como foi o caso do homicídio da menina Isabela Nardoni e do menino Bernardo, ambos assassinados por
pessoas da família e, que geraram grande comoção nacional.
631

sempre de forma parcial, sem que se tenha conhecimento acerca da realidade que foi careada
ao processo, gerando um imenso grau de contaminação, pois com o cenário imposto pela
mídia pode confundir a testemunha sobre aquilo que efetivamente percebeu no momento o
delito, com o que leu sobre o fato ou com o ouviu posteriormente.
A fragilidade do depoimento colhido por profissional despreparado (seja no momento
do inquérito policial ou na instrução do processo) pode demonstrar que a prova talvez não
seja suficiente para embasar uma condenação exclusiva nesse depoimento. Pois devido a falta
de preparo do entrevistador e, também, a indução presente nos questionamentos (resquícios
do sistema inquisitorial), através das entrevistas e também, ao que é visto através da mídia
(quando o caso gera repercussão) leva a formação de falsas memórias nos entrevistados, pois
a pergunta induzida ou mal formulada, juntada as emoções do depoente, gera depoimentos
imprecisos e incertos, o que faz com que o juiz elabore sua convicção somente no
depoimento oral, muitas vezes, por falta de provas materiais técnicas, sendo que o perigo
reside em pessoas expostas a emoção, pois são mais vulneráveis, principalmente crianças.
Enfatizar-se-á assim, no capitulo seguinte, o depoimento infantil, pelo simples fato de crianças
serem mais suscetíveis a indução, e serem estes os casos, mais difíceis de serem analisados
no processo.

3 O Testemunho Infantil no Processo Penal

O Código de Processo Penal admite em seu artigo 208 o depoimento de crianças


menores de catorze anos como meio de prova, mas, ademais, lhe será dispensado o
compromisso legal, devido esse depoimento ser cheio de incertezas.
Por crianças serem imaturas devido a sua idade, com alto grau de imaginação e mais
suscetíveis a sugestionabilidade, o seu depoimento deve ser tomado com cautela, mas não
torná-las incapazes para depor, apenas, não pode ser recebido com plena certeza pelo juízo
antes de ser analisado.
Pisa e Stein (2006, p. 218) discorrem sobre a qualidade do testemunho das crianças:

O vasto número de pesquisas científicas desenvolvidas para melhorar a


confiabilidade das declarações de crianças é proporcional à relevância que a palavra
da vítima assume nos crimes contra a liberdade sexual, crimes estes geralmente
cometidos às escondidas e na maioria das vezes sem evidências físicas. O fato de a
632

vítima ser criança não retira o valor de suas declarações. No entanto, vários fatores
como desenvolvimento cognitivo, linguagem, coação, fantasia, memória e
sugestionabilidade podem comprometê-las.

No mesmo sentido expressa Sarah Eidt Stefanello (2016):

Um dos pontos centrais do desenvolvimento cognitivo consiste na representação,


ou seja, como as crianças de diferentes idades representam o seu mundo. A análise
deste aspecto é crucial para entender a capacidade de evocação das mesmas, pois
ao examinar como indivíduos interpretam os eventos diários, bem como a forma
como são capazes de expressá-lo, torna-se possível avaliar a confiabilidade de seu
depoimento.

Segundo Stefanello (2016) crianças têm dificuldades entre distinguir aparência e


realidade, já os adultos conseguem discernir com facilidade que determinados objetos ou
pessoas não são quem aparentam ser, ou ainda, não necessariamente correspondem à
realidade. Já crianças em idade precoce não conseguem diferenciar a realidade da fantasia,
pois são mais propensas a crer em figuras irreais como monstros, super heróis, papai Noel e
fadas em relação às crianças mais velhas.
Pisa e Stein (2006, p. 219) baseadas nas pesquisas de Ceci e Bruck salientam:

Reconhecem esses pesquisadores que obter informações precisas de crianças não é


uma tarefa fácil, por que (1) crianças não estão acostumadas a fornecer narrativas
elaboradas sobre suas experiências; (2) a passagem do tempo dificulta a recordação
dos eventos; e, (3) pode ser muito difícil reportar informações sobre eventos que
causam estresse, vergonha ou dor.

O crescente número de acusações por delitos sexuais levou os pesquisadores a


estudarem mais sobre como as entrevistas com crianças são conduzidas. A partir daí, segundo
Pisa e Stein (2006, p. 220, grifo do autor):

Estudos sugerem que as repostas das crianças para perguntas dos adultos podem,
às vezes, refletir o que elas pensam que o adulto quer ouvir, no lugar do que elas
lembram. Na tentativa de demonstrar sua cooperação com o adulto, a criança
a a e teà espo deà euà oàsei ,à es oà ua doà oà o p ee deàasàpe gu tas.à
Para demonstrar que são companheiros sociáveis e cooperativos dos adultos,
quando a mesma pergunta é formulada mais de uma vez, a criança seguidamente
muda sua resposta. As crianças parecem interpretar a pergunta repetida como eu
devo não ter dado a resposta correta, então para ser agradável, eu devo fornecer
novas informações.
633

Segundo Lisboa (2017) recomenda-se a realização de perguntas abertas (do tipo "como
tal coisa aconteceu?" ou "descreva como foi aquele dia"), que não conduzam a criança à
resposta "desejada". Outras técnicas, como desenhos e atividades lúdicas em geral, também
podem ajudar no processo de investigação. De toda a forma, a possibilidade de erro - ou seja,
de que a pessoa acusada seja inocente - não pode ser descartada. Isto não significa
desacreditar a vítima, mas entender que as pessoas em geral, e especialmente crianças,
podem fantasiar situações.
Como expressa Pisa e Stein (2006, p.234) de que é mais provável a criança acreditar
em adultos que em outras crianças, e elas estão mais dispostas a aceitar os desejos e a
incorporar convicções dos adultos em seus relatos. As crianças desde pequenas supõem que
adultos têm mais conhecimento que elas, motivo pelo qual podem tornar-se altamente
sugestionáveis quando alguma questão lhe é imposta (STEFANELLO, 2016).
A criança pode, também, ser sensível para status e poder diferente no meio de adultos,
como de policiais, juízes, e pessoas da área médica (PISA E STEIN, 2006, p. 235). Completa
Stefanello (2016) que esta variável é considerada recorrente entre crianças, especialmente
nos tribunais, que acabam expondo o infante a uma situação de excessiva inferioridade em
relação ao entrevistador. Por isso é de essencial trabalhar o viés do entrevistador perante a
criança.

Conclusão

A prova testemunhal é um meio de prova de suma importância para o processo penal,


principalmente para aqueles crimes que não deixam vestígios e, dificultam saber a autoria,
mas, em detrimento do seu potencial a prova oral depende do funcionamento da memória
(principalmente a função recognitiva) e as possibilidades que esta tem de falsificar
lembranças, refletindo na realização do reconhecimento de pessoas para acusação.
Através da manifestação de provas no processo, muitas vezes, o juiz toma suas
conclusões, só pelo depoimento da testemunha/vítima e profere sua sentença condenatória
ou absolutória motivado apenas nisso. Muitos já foram os erros de condenação devido a
valoração da prova testemunhal, e muitos já foram os inocentes presos.
634

Mesmo reconhecendo sua existência e aplicabilidade prática, o fenômeno das falsas


memórias está longe ainda de ter maior efetividade no processo penal, visto que o interesse
pelo assunto é pouco e a falta de profissionais preparados nesta área acompanhando os
testemunhos, não acontece como deveria, pois a justiça brasileira não está apta para
enfrentar o problema das falsas memórias, principalmente no testemunho infantil que deve-
se ter maior cuidado ainda, pois crianças devido a sua imaginação são mais suscetíveis à
criação de falsas memórias, devendo-se ter um preparo muito grande nessa área para coletar
as informações de seu testemunho.

REFERÊNCIAS

ALTAVILLA, Enrico. Psicologia Judiciária. Vol. 1. Tradução de Fernando de Miranda. 2. ed. São
Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva Editores, 1945.

ÁVILA, Gustavo Noronha. Psicologia do testemunho: as falsas memórias no Processo Penal.


2016. Disponível em:
<http://justificando.com/2015/09/10/psicologia-do-testemunho-as-falsas-memorias-no-
processo-penal/> Acesso em: 04 out. 2016.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 19. ed. São Paulo: Editora
Saraiva, 2016.

CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. Tomo II. Trad. Jorge Guerrero. Santa Fé de Bogotá –
Colômbia: Editorial Temis, 2000.

DI GESU, Cristina. Prova penal e falsas memórias. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010.

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Testemunhal. 2016. Disponível em:
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GIACOMOLLI, Nereu José; DI GESU, Cristina. As falsas memórias na reconstrução dos fatos
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Acesso em: 10 out. 2016.

IZQUIERDO, Ivan. Memoria. Porto Alegre: Artemed. Reimpressão, 2006.

LISBOA, Felipe Stephan. Psicologia dos Psicólogos. 2014. Disponível em:


<http://psicologiadospsicologos.blogspot.com.br/2014/08/resenha-do-filme-caca.html>.
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635

LOFTUS, Elizabeth F. Criando Memórias Falsas. Fonte: University of Washington. 2016.


Disponível em: <http://ateus.net/artigos/miscelanea/criando-memorias-falsas/>. Acesso em:
04 out. 2016.

LOFTUS, Elizabeth. A ficção da memória. 2016. Disponível em:


<https://www.ted.com/talks/elizabeth_loftus_the_fiction_of_memory/transcript?language=
pt-br> 2013. Acesso em: 11 out. 2016.

PISA, Osnilda e STEIN, Lílian Milnitsky. Entrevista Forense de Crianças: técnicas de inquirição
e qualidade do testemunho. Revista da AJURIS, v. 33, nº 104. Porto Alegre, 2006.

STEFANELLO, Sarah Eidt. Variáveis De Influência No Depoimento De Crianças Vítimas De


Violência Sexual. 2010. Disponível em:
<www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/...2/sarah_stefanello.pdf>.
Acesso em: 16 out. 2016.
636

PRODUÇÃO DE PROVAS PENAIS E A INDETERMINAÇÃO INTERPRETATIVA: A ALTERNATIVA


DOS STANDARDS PROBATÓRIOS

Rafael Giorgio Dalla Barba1


William Galle Dietrich2

RESUMO: o artigo propõe uma aproximação entre a doutrina dos standards probatórios
oriunda do direito norte-americano com o modelo de valoração probatória vigente no sistema
processual penal brasileiro, demonstrando sua contribuição no que concerne à elucidação dos
limites da atuação judicial para avaliação de provas. O estudo se orienta na linha desenvolvida
por Lenio Streck, denominada Crítica Hermenêutica do Direito, preocupada sobretudo pela
delimitação do campo de atuação legítimo do Poder Judiciário dentro do Constitucionalismo
Contemporâneo, de modo a encontrar parâmetros dos quais se possa considerar adequada –
e não puramente discricionária – a avaliação judicial da prova. Como elemento adicional, será
exposta uma investigação empírica demonstrando que a problemática probatória no processo
penal atinge não apenas a doutrina, mas também os próprios tribunais brasileiros.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Probatório; Teoria do Direito; Discricionariedade Judicial;


Hermenêutica; Standards.

1 INTRODUÇÃO
A Crítica Hermenêutica do Direito, desenvolvida por Lenio Luiz Streck, vem
direcionando suas pesquisas quanto a problemática da interpretação jurídica, o que se
relaciona diretamente com os limites da atuação judicial. Ao longo do desenvolvimento de
uma teoria da decisão judicial adequada ao paradigma constitucional contemporâneo, um dos
principais aspectos envolvidos nessa atividade encontra-se precisamente no direito
probatório. Mais precisamente, nos modos pelos quais é possível (ou melhor,
constitucionalmente legítimo) realizar a valoração da prova no processo judicial.
Trata-se de uma questão decisiva, uma vez que ao juiz incumbe realizar o
procedimento de avaliação pelo qual se considera algo estar (ou não) provado
processualmente. Em seu recente livro em formato de diálogos, Streck aponta para a
expressiva omissão doutrinária em relação a aspectos fundamentais da Teoria do Direito
brasileira. Sobre a aplicação da pena criminal, por exemplo, o professor gaúcho refere que

1
Mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, como bolsista
CAPES/PROEX. Graduado em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Membro do DASEIN
- Núcleo de Estudos Hermenêuticos. Advogado. OAB/RS 102.395. E-mail: rafaelgdb1@gmail.com.
2
Mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, como bolsista
CAPES/PROEX. Graduado em Direito pela Universidade FEEVALE. Membro do DASEIN - Núcleo de Estudos
Hermenêuticos. Advogado. OAB/RS 105.413. E-mail: galledietrich@gmail.com.
637

[...]à a gente constrói doutrinas para saber o que é carnaval, o que são quesitos para
o carnaval. Nós sabemos muito mais sobre carnaval [...] mas não temos doutrina sobre
insignificância, não temos doutrina sobre a pena, doutrina sobre habeas corpus (STRECK,
2017, p. 171).
Tal gap doutrinário não poderia ser diferente no que toca à valoração probatória.
Tendo tal aspecto como base, o presente artigo busca, por meio de uma análise comparativa
com um dos modelos norte-americanos, trazer um contraponto ao modelo dominante de
valoração probatória em matéria criminal que se estrutura sob uma série de jargões retóricos
o oà oà p i ípioà daà e dadeà eal ,à aà li eà ap e iaç oà daà p o a ,à oà li eà o e i e toà
oti ado ,à et .à Naà p ti aà judi i ia,à taisà p e eitosà fu io a à ape asà o oà ai os à
retificadores do elemento discricionário do qual o juiz se valeu para valorar a prova,
flexibilizando direitos e garantias fundamentais e trazendo enorme instabilidade jurídica.
A partir desse ponto de partida, o modelo de valoração probatória orientado por
standards probatórios permite trazer contribuições significativas ao debate processual
brasileiro, além de convergir com o modelo proposto pela Crítica Hermenêutica do Direito.
Com os cuidados que devem ser tomados com a importação de qualquer teoria alienígena ao
modelo brasileiro, o artigo pretende demonstrar que há, nesse contexto, compatibilidade
entre esses dois cenários. E essa proximidade se dá na medida em que os standards
probatórios permitem identificar com maior clareza os limites dos quais se pode afirmar que
uma fundamentação em relação à valoração probatória pode ser considerada
constitucionalmente adequada. Há, portanto, ganhos teóricos no sentido de identificar os
limites da atuação judicial em matéria probatória.
A valoração probatória é um tema complexo e, paradoxalmente, encontra-se
relativamente pouca doutrina tentando estabelecer critérios e diretrizes para uma correta
avaliação de provas. A teoria dos standards probatórios, desenvolvida no Direito norte-
americano e que tem recebido pouca atenção no Direito brasileiro3 - pode ser uma excelente
aliada à superação desse gap. Tal teoria é bastante iluminadora, na medida em que é capaz

3
Uma rara exceção nesse sentido, é a obra de Da iloà ы ij ik,à ueà defe deà aà suaà teo iaà dosà odelosà deà
o stataç o à o à aseà e à u aà az oà deà o de à políti a à eà de o ti a,à aà edidaà à ueà osà odelosà deà
constatação ou standards p o at iosà ep ese ta ,à aà suaà o epç o,à u aà fo aà deà ia iliza à oà u
mecanismo de controle numérico-quantitativo – o que seria, obviamente, irrealizável -, mas uma pauta ou
it ioà àluzàdoà ualàoàjuízoàdeàfatoàpodeàse àfo adoàeàsu etidoàaoà o t adit io .àыNIщNIы,àDa ilo.àA prova
nos juízos cível, penal e tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 37.
638

de servir não somente para um melhor controle acerca da valoração da prova, mas, também,
para explicar e justificar situações em que, por força de circunstâncias do direito material,
admite-se um grau de exigência menor para que o material probatório acostado aos autos
sirva (ou não) para fundamentar a decisão judicial.
Um exemplo clássico e repetido na prática judiciária a ponto de tornar-se quase um
fenômeno natural é a inversão do ônus probatório em matéria criminal. Não são raras as vezes
em que, ainda que reconhecida a ausência de provas, o réu é condenado criminalmente.
Motivo principal: a inversão do ônus da prova em relação ao próprio acusado. Desde os
primeiros Estados Liberais, o princípio da presunção de inocência tem sido o sustentáculo
primordial para a perpetuação de qualquer sociedade civilizada. Isso não é apenas uma figura
de linguagem, mas implica uma série de consequências e responsabilidades por parte do
Estado. Uma delas – e talvez a principal – é a necessidade de o próprio Estado ser incumbido
a produção de provas contra qualquer ato do indivíduo. É ele – Estado – o encarregado de
afastar a presunção de inocência por meio da demonstração de provas, caso deseja
responsabilizar criminalmente o indivíduo, e não o contrário. No entanto, não é esta a
realidade forense brasileira.

2 INVERSÃO DO ÔNUS PROBATÓRIO: TRIBUNAIS DE JUSTIÇA NA CONTRAMÃO DO


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O final do Século XIX trouxe para o ordenamento jurídico brasileiro o Código Penal da
‘epú li aà deà ,à ueà e à seuà a tigoà à j à a ota aà ueà e hu aà p esu ç o,à po à aisà
ee e teà ueàseja,àda àluga àaài posiç oàdeàpe a .àй àoutras palavras, não seria legítimo o
ato estatal que punisse penalmente um indivíduo por meros indícios, uma vez que seriam
considerados insuficientes para afastar a inocência presumida pela lei. Passados quase um
século, vemos que o direito brasileiro contempla expressamente a presunção de inocência no
a tigoà º,àэVII,àdaàCo stituiç oàнede al,àdispo doà ueà i gu àse à o side adoà ulpadoàat à
oà t sitoà e à julgadoà deà se te çaà pe alà o de at ia .à ái daà ueà oà p i ípioà te haà sidoà
historicamente ofuscado - como nos lembra Ferrajoli -, atualmente, no mesmo sentido da
previsão constitucional, são frequentes as referências ao cumprimento desse princípio em
639

diplomas internacionais, sobretudo na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948


e no Pacto San José da Costa Rica de 1969 (FERRAJOLI, 2010, p. 505).
Assim, em tempos de paradigma constitucional, é necessário considerar a íntima
relação entre o princípio da presunção de inocência com a incumbência do ônus probatório
no processo penal. Diferentemente da seara cível e a partir da noção do processo de cunho
acusatório, não se pode sustentar a possibilidade da inversão do ônus da prova em matéria
penal sem violar o princípio da presunção de inocência. Isso porque, como ensinam Streck e
Tomaz de Oliveira, é o p p ioàsiste aàa usat ioà ueà o sag aàoà [...]à locus onde o poder
pe se ut ioàdoàйstadoà àe e idoàdeàu à odo,àde o ati a e te,àli itadoàeàe ualizado à
(STRECK; TOMAZ DE OLIVEIRA, 2012, p. 45).
Nesse sentido, podemos afirmar que o posicionamento do Supremo Tribunal Federal
está em consonância com o paradigma constitucional, isto é, no sentido da impossibilidade
de inversão do ônus da prova na seara criminal: no HC 107.448/MG4, por exemplo, a Corte
definiu que incumbe ao Ministério Público o ônus de comprovar a imputação penal para o
crime de tráfico ilícito de entorpecentes, pois do contrário haveria afronta ao princípio da não-
culpabilidade em razão de o acusado não ter feito prova da versão que narra que a substância
apreendida se destinava ao consumo pessoal. No mesmo sentido, o STF decidiu, no HC
97.701/MS5, que não é cabível recusar o pedido defensivo de incidência da minorante do art.
33, § 4º da Lei de Tóxicos sob o fundamento de inexistir prova da primariedade do acusado,
uma vez que tal postura incorre em indisfarçável inversão do ônus da prova.
Não obstante o entendimento consolidado do Supremo Tribunal Federal, além da
previsão constitucional e internacional, por vezes a presunção de inocência parece ser uma
ilustre desconhecida em terras brasileiras, sobretudo quando percebemos amplo apoio
jurisprudencial quanto à possibilidade da inversão probatória. Em pesquisa jurisprudencial
realizada em todos os Tribunais de Justiça da Federação, somente não foi encontrada a tese

4
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 107.448/MG. Pacientes: José Rodrigues Lanes Junior e
Rogério Lugão Veltem. Impetrante: Eduardo Xible Salles Ramos e outro. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski.
Brasília, 18 de junho de 2013. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28107448.NUME.+OU+107448.AC
MS.%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/mzyslmu>. Acesso em: 23 de abril de 2015.
5
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 97.701/MS. Paciente: José Amaro da Silva. Impetrante:
Defensoria Pública da União. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília, 03 de abril de 2012. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%2897701.NUME.+OU+97701.ACMS.
%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/pvwgn78>.. Acesso em: 23 de abril de 2015.
640

da inversão do ônus probatório em matéria criminal nos Tribunais de Justiça do Amazonas e


da Paraíba6.
Da pesquisa realizada, foram encontrados diversos julgados em sentido favorável à
inversão, e dentre as principais teses apresentadas destacam-se as de que: a) no caso de furto
qualificado, quando a res furtivae for encontrada em poder do demandado, resta presumida
a sua responsabilidade penal; b) no crime de receptação, é dever do acusado apresentar
justificativa convincente sobre a origem lícita do bem apreendido; c) no delito de porte ilegal
de arma de fogo, a posse injustificada das armas já presume o crime de receptação; d) caso o
réu resuma em sua defesa a firmar que comprou arma de fogo de desconhecido sem a devida
documentação e à época do fato já respondia por outro crime envolvendo armas, evidencia-
se que não se trata de pessoa ingênua, cabendo a inversão do ônus da prova; e) no roubo
circunstanciado as alterações que o réu fizer para alterar a lógica materialidade e a autoria do
crime inverte o ônus da prova; f) no tráfico de drogas, é dever do acusado provar que os
objetos aprendidos não tinham como finalidade a preparação e/ou transformação de
substâncias entorpecentes. Em geral, os argumentos que buscam justificar esse
posicionamento se limitam a apontar a dificuldade de se comprovar o fato delituoso por parte
da acusação.
Diante deste quadro, não se pode omitir a divergência entre a posição do STF em
relação a dos Tribunais Estaduais. Ao passo que a Suprema Corte agrega a impossibilidade da

6
TJ/AC: Apelações nº 0000183-63.2011.8.01.0007, 0019450-73.2010.8.01.0001, 0012801-58.2011.8.01.0001;
TJ/ AL: Apelações nº 0033297-52.2009.8.02.0001, 0033297-52.2009.8.02.0001, 0003398-48.2005.8.02.0001;
TJ/AP: Apelações nº 0002353-74.2008.8.03.0001, 0031739-86.2007.8.03.0001, 0007972-40.2012.8.03.0002;
TJ/BA: Apelações nº 0001464-86.2009.8.05.0274, 0120422-45.2007.8.05.0001, 0003428-74.2011.8.05.0103;
TJ/CE: Apelações nº 4996609200880600011, 11762200980601211, 545278200580600641; TJ/DF: Apelações nº
2014 09 1 011323-6, 2013 09 1 030694-2, 2013 09 1 030694-2; TJ/ES: Apelações nº 0013928-71.2009.8.08.0012,
0014285-22.2012.8.08.0020, 0008739-13.2008.8.08.0024; TJ/GO: Apelações nº 447157-87.2013.8.09.0076,
403801-70.2012.8.09.0175, 59147-25.2014.8.09.0006; TJ/MA: Apelações nº 0002000-19.2008.8.10.0040;
TJ/MT: Apelações nº 119818/2014, 90972/2014, 80795/2012; TJ/MS: Apelações nº 0000632-55.2010.8.12.0005,
0003597-79.2010.8.12.0013; TJ/MG: Apelações nº 1.0474.13.004064-2/001, 1.0363.12.004795-8/001,
1.0525.13.022099-5/001; TJ/PA: Apelações nº 201330149499, 201330184487, 201230066826; TJ/PR: Apelações
nº 1287572-8, 1250688-4, 1094630-2; TJ/PE: Apelações nº 2983368, 2165722; TJ/PI: Apelações nº
201400010049905, 201100010061527; TJ/RJ: Apelações nº 0001479-23.2007.8.19.0052, 0002135-
35.2009.8.19.0011, 0000077-17.2002.8.19.0072; TJ/RN: Apelações nº 2012.018470-5, 2011.009956-8,
2010.000902-3; TJ/RS: Apelações nº 70048102735, 70056718596, 70059406819; TJ/RO: Apelações nº 0004544-
84.2010.8.22.0004, 0051826-22.2004.8.22.0007, 0016033-48.2011.8.22.0501; TJ/RR: Apelações nº
0010.13.004856-3, 0010.06.006198-2; TJ/SC: Apelações nº 2011.035774-5, 2010.027136-3, 2013.066848-6;
TJ/SP: Apelações nº 0040895-43.2012.8.26.0564, 0066635-56.2013.8.26.0050, 0032194-76.2012.8.26.0602;
TJ/SE: Apelações nº 2006309260, 2007305239; TJ/TO: Apelações nº 0007782-46.2014.827.0000,
500130031201338270000, 50009070920138270000.
641

inversão do ônus probatório em matéria criminal, considerável parcela dos tribunais estaduais
(ainda) aplicam a tese em seus julgamentos, fragilizando as garantias processuais penais
historicamente conquistadas e a própria Constituição enquanto limite (formal e material) ao
Direito Penal (FELDENS, 2005, p. 40).

3 A VALORAÇÃO PROBATÓRIA SOB A PERSPECTIVA DOS STANDARDS NO DIREITO DOS


й“TáDO“àUNIDO“àйàOàP‘OBLйMáàDáà Vй‘DáDйà‘йáL

Conforme mencionado nas linhas iniciais do presente ensaio, a teoria dos standards
probatórios pode ser uma excelente aliada da Crítica Hermenêutica do Direito na empreitada
ueà isaàaà o st uç oàdeàu aà ite iologia àpa aàaà alo aç oàjudi ialàdaàp o a.àNoàDi eitoà
norte-americano, o estudo dos standards probatórios parte do pressuposto de que o a prova
pode induzir a diferentes graus de persuasão (LEUBSDORF, 2016, p. 1595). Essa premissa
relaciona-se diretamente a outra particularidade do Direito norte-americano, a qual não
costuma receber muita atenção nos sistemas de civil law: a diferença entre ônus da prova
(burden of evidence) e ônus de persuasão (burden of persuasion). Essa distinção visa a
demonstrar que, no processo judicial, não podem ser considerados iguais o risco da não-
persuasão (the risk of non-persuasion) e o ônus de produzir provas (the bruden of evidence).
Essa divisão foi decisiva para que, naquele sistema, já se admitisse, há mais de um século, a
inversão do ônus de produzir prova (shifting of the burden) sem que isso importasse uma
manipulação do ônus de persuasão (JAMES JR., 1961, p. 51-62). Na verdade, as considerações
sobre a equanimidade (fairness) envolvem, no Direito americano, uma preocupação com o
fato de uma das partes em um caso particular ter maior acesso a determinados fatos do que
a outra, o que torna bastante aceitável uma realocação do ônus de provar, sem nenhuma
necessidade de tornar o tema alvo de grandes controvérsias (SPRUNG, 1996, p. 1307) tal qual
ocorre no Direito brasileiro.
No que diz respeito ao tema do presente ensaio, interessa destacar que, ao dar
especial atenção ao ônus da persuasão, a doutrina americana costuma surpreender a sua
análise a partir de dois componentes, quais seja, o risco da não-persuasão e o standard
probatório (SCHWARTZ; SEAMAN, 2013, p. 434). Este último acaba servindo para atender a
diferentes propósitos, dentre eles determinar como alocar os riscos entre os litigantes e
642

indicar a importância que acompanha a decisão final, na medida em que é comum estabelecer
um standard probatório mais pesado quando direitos fundamentais ou liberdades estão em
causa (SCHWARTZ; SEAMAN, 2013, p. 435). No entanto, talvez a principal referência que é
feita diante dos standards p o at iosà esideà aà e essidadeà deà o t ola à osà p o essosà
e taisàdoàjú i ,àesta ele e doàu aà edidaà e ess ia de persuasão (JAMES JR., 1961, p.
53), notadamente em razão de, no Direito americano, a atuação do júri ocorrer tanto em
causas cíveis, quanto em causas penais.
Esse detalhe é decisivo para compreender a existência de diferentes standards
probatórios e o seu longo desenvolvimento no Direito americano. É que, diante da diferença
existente entre os direitos que estão em jogo nas causas cíveis e penais, torna-se necessário
estabelecer também uma diferença quanto ao grau de persuasão exigido para cada uma
dessas causas. Nesse sentido, os standards probatórios acabam servindo como espécies de
regras de decisão tendentes a instruir o júri (e também os juízes) em casos de incerteza
(ALLEN; STEIN, 2013, p. 559). Essas regras, no entanto, pressupõem um controle racional e
intersubjetivo do convencimento que se dá a partir de uma interpretação das narrativas
f ti asàdaà ausa.àN oàseàt ata,àpois,àdeàpe segui àaà e dadeà eal à o oào o eà oàB asil,à aà
medida em que uma vez preenchido o standard necessário, tem-se uma verdade sobre um
fato, vale dizer, tem-se um fato provado. Não se recorre, assim, a verdades metafísicas
ontoteológicas7.

7
É importante distinguir a metafísica enquanto ontoteologia (que passa a ser alvo de todas as críticas do presente
ensaio) e a metafísica no sentido do segundo caminho de Aristóteles, por ele denominado de epistéme
zetouméne, ou seja, ciência procurada. Para tanto, parte-se da lição de Ernildo Stein:à ássi àse,àpo àu àlado,àaà
ontoteologia nos impõe a teoria do conhecimento para poder continuar a questionar o problema do saber na
Filosofia, podendo este, no entanto, multiplicar-se indefinidamente, sempre trazendo novos argumentos de
fundamentação; por outro, a ontoteologia nos impede uma Filosofia da finitude, na qual pudesse ser recuperada
uma nova tarefa de pergunta pelo ser. Assim sendo, não é tão inocente essa manobra que nos impõe a
ontoteologia pela teoria do conhecimento. [...]. Quando falamos em metafísica hoje, não falamos num regresso
a um nicho protetor numa atitude regressiva. Apenas é preciso ter o cuidado para saber de que metafísica
faça os.à Éà po à issoà ueà o à epeti à oà oteà deà рeidegge :à áà supe aç oà daà etafísi aà oà à oà fi à daà
etafísi a .àCo àele,àoàfil sofoàsal a a a grande metafísica de Aristóteles do platonismo, mantendo-a certamente
num movimento de abertura como ciência procurada sob dois aspectos. Primeiro, como uma ciência incompleta,
na medida em que não podia se desenvolver a partir do discurso humano da predicação de que faziam uso as
Ciências Naturais, ou então como as outras formas de conhecimento. Como o ser continuava aí, entretanto, ele
também não se podia desenvolver por meio de uma experiência direta, mas implicada no discurso humano. O
segundo aspecto pelo qual ela permanecia incompleta era porque sempre se moveria numa situação paradoxal
ou antitética. A metafísica era, por outro lado, necessária, porque a questão do ser enquanto ser acompanhava
toda a experiência, e, por outro, era impossível, porque não há uma teoria do ser como a teoria das ciências, o
ser é uno, e da unidade não se pode fazer um discurso científico. Aristóteles, porém, sustenta essa impossível
necessidade, e essa necessária impossibilidade, na medida em que lança essa questão da ciência procurada do
ser quanto ser no ideal. Mesmo que seja impossível uma ciência una do ser, a ideia de tal ciência subsiste,
643

Nessa perspectiva, costuma-se adotar para as causas cíveis o standard da


preponderância de provas, enquanto que, para as causas de natureza penal, o standard da
prova além da dúvida razoável. O standard da preponderância de provas, que também pode
se àt aduzidoà o oà aisàp o elà ueà o à more likely than not) atua para minimizar o custo
esperado de erro, na medida em que um erro contra o autor é tão caro quanto um erro contra
o réu. Enquanto isso, o standard da prova além da dúvida razoável significa um ato grau de
probabilidade e serve para minimizar a expectativa do custo de erro uma vez que o custo de
condenar um inocente é especialmente caro (CLERMONT, 2009, p. 469).
Com efeito, nessa perspectiva que é possível compreender a adoção de diferentes
standards probatórios para processos cujo resultado pode levar a consequências distintas,
mas que podem, eventualmente, lidar com narrativas a respeito dos mesmos fatos, como, por
exemplo, é o caso do processo penal e do processo civil. No final das contas, a construção
intersubjetiva dos standards probatórios não são outra coisa senão a tradição, no sentido
empregado pela CHD. Escutar o standard probatório na valoração de uma prova é escutar a
t adiç o,à ueà a a a à oà i t p ete,à i pedi doà ueà eleà digaà ual ue à oisaà so eà
determinada prova.
É interessante notar que, apesar de os sistemas de common law adotarem os referidos
standards probatórios, eles não o fazem com vistas a uma busca quase que obsessiva pela
verdade. A teorização acerca do tema está muito mais voltada ao estabelecimento de
mecanismos de controle do convencimento do júri e dos juízes e à necessidade de exigir
provas mais robustas em processos que poderão atingir determinados direitos fundamentais
como a liberdade. Essa distinção foi muito bem notada por Kevin Clermont, o qual refere que,
na tradição da civil law, costuma-se adotar nas causas cíveis o standard da íntima convicção,
que corresponderia a uma espécie de prova além da sombra de dúvida (proof beyond a
shadow of a doubt), sacrificando-se qualquer tipo de erro em prol de uma suposta legitimação
das decisões assentada no mito de que as cortes do civil law atuam apenas diante de fatos
realmente verdadeiros, e não diante de meras probabilidades (CLERMONT, 2009, p. 473).
Na tentativa de transpor o instituto para o Direito do civil law, Maria Gascón Abellán
refere que os standards deàp o aàs oà losà ite iosà ueài di a à u ndo se ha conseguido la

contudo, como um desejo, como uma exigência sempre presente. É por isso que Aristóteles afirma que o ideal
da ciência una do se à àoàidealàdeàu aà i iaà p o u ada ,àouà elho ,à ete a e teàp o u ada .à“TйIN,àй ildo.à
Às voltas com a metafísica e a fenomenologia. Ijuí: Unijuí, 2014, p. 48-50.
644

prueba de un hecho, los criterios que indican cuándo está justificado aceptar como verdadera
laàhip tesisà ueàloàdes i e à áBйээãN,à ,àp.à .àDesseà odo,àaà o st uç oàdeàdife e tesà
standards deàp o aàte iaàpo ào jeti oà e o t ar fórmulas ou critérios intersubjetivos para
e o st ui àaàjustifi aç oàdaàde is oàp o at ia à áBйээãN,à ,àp.à .àNoàfi alàdasà o tas,à
o que se verifica nessa formulação do tema é uma tentativa de controlar racionalmente a
valoração da prova, extirpando do ambiente probatório o fantasma do livre convencimento,
corolário do paradigma da subjetividade (STRECK, 2014, p. 283), que foi, inclusive, eliminado
do novo Código de Processo Civil.
Alguém poderia ainda acusar a teoria dos standards probatórios de possuir pretensões
geo t i as ,à aà edidaàe à ueà us aàdeli ea àes uad osàpa aàoà o t oleàdaà alo aç oàdaà
p o a.àPo àisso,àpode iaàpossui àu à i sà a tihe e uti o .àO a,à à e dadeà ueàtaisàteo iasà
não desenvolvem aportes filosóficos com maior sofisticação. Entretanto, como pode ser visto
ao longo do presente ensaio, estão preocupadas em contrapor justamente o cerne da (vulgata
da) filosofia da consciência que se manifesta no Direito, ou seja, possuem a ambição de conter
oà li eà o e i e to à aà alo ação da prova e tentam estabelecer um meio para tanto.
Aliás, MCBAINE (1944, p. 247) já refutou tal argumento, o que reforça a ideia de que imaginar
que tais teorias tentam repristinar a prova tarifada ou algo do gênero não aparenta ser uma
leitura sob sua melhor luz.
De mais a mais, parece inegável que a teoria dos standards probatórios não despreza
a finitude compreensiva do juiz, pois reconhece que a valoração dos fatos, na excelente
olo aç oà deà йdua doà щos à daà нo se aà Costa,à perpassa pela recomposição historial do
passado a partir dos seus vestígios sobreviventes, ou seja, a partir daquilo que Krónos [Κρόνος]
oàe goliu à CO“Tá,à .àщusta e teàpo àissoàesta ele eàosàstandards, pois é consciente
de que a busca pela verdade em estado de pureza bruta é uma empreitada fadada ao
insucesso. Daí a certeira crítica – e sua compatibilidade com a Crítica Hermenêutica do Direito
- de que é um mito pensar que juízes da civil law atua àso e teàdia teàdeàfatosà e dadei os à
e que, justamente por isso, é necessário estabelecer critérios para a valoração probatória.
Veja-se que, no processo penal em que vige o princípio constitucional da presunção de
inocência (e por isso não é possível inverter o ônus probatório aqui), é acertado falar em ampla
defesa, bem como exigir, para condenar alguém, elementos probatórios muito mais robustos
que aqueles exigidos em uma demanda de natureza cível. Elementos probatórios que sejam
645

capazes de eliminar qualquer outra possível narrativa. Há um sentido prévio e compartilhado


de que, num Estado Democrático de Direito, é necessário mais para interferir na liberdade de
um sujeito que para atingir o seu patrimônio. Isso que autoriza diferenças no tocante à
robustez do material probatório em uma ação penal e numa ação cível, permitindo que o
mesmo conjunto probatório produza resultados diferentes. Tais diferenças são evidentes
critérios que devem ser levados em conta na análise do material probatório levado à juízo.
Por isso que inverter o ônus da prova no processo penal é fazer uma má leitura do standard
probatório, que deveria ser pesado para uma sentença condenatória, mas não o foi. Como o
conjunto probatório não foi capaz de excluir outras narrativas, os tribunais invertem o ônus
da prova e invertem a presunção: de presunção de inocência, passa-se a uma presunção de
culpabilidade e o réu que passa a ter o dever de comprovar o contrário.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em sede conclusiva é preciso ressaltar que o processo judicial não serve de


instrumento para a busca de uma verdade externa, pois, na medida em que somos permeados
pela linguagem, somente é verdadeiro aquilo que o próprio contexto linguístico nos permite
afirmar (SCHMITZ, 2015, p. 98). O juiz não é (e não deve ser) um historiador que busca
esta ele e àaà e a idadeàdosàfatosàe àsuaà pu eza ào tol gi a.àPo àisso,à oàseà e o st oe à
fatosà oàp o esso,à as,àsi ,à a ati asàso eàfatos.àPode osà ha a àaàissoàdeà e o st uç oà
daàhist iaài stitu io alàdoàfe e oàso àe a e .àN oàh àu aà us aàpelaàess iaàdosàfatosà
eà uitoà e osàu aà e dade eal à o oàli haàdeà hegadaàpa aàaà alo aç oàp o at ia.àBe à
compreendida a discussão acerca dos standards probatórios, ela se coloca, como uma cadeira
e t eàaà e dadeà eal àeàoàassujeita e toàdasàp o as,àpode doà o t i ui àpa aà ueàseàpossaà
falar da prova no processo sem recorrer à nenhuma espécie de noção metafísica
ontoteológica de verdade.
É necessário que se abandone essa obsessão por verdades supratemporais que, ao fim
e ao cabo, apenas escondem o voluntarismo judicial. Veja-se que a própria concepção de
e dadeà eal à àu àp o le aà aà edidaàe à ueà oàe iste à it iosàpa aàseàdize à ueà à
isso – a verdade real. Como saber quando se atingiu essa verdade? No final das contas, a
verdade real acaba sendo aquilo que o julgador quer que ela seja. As regras processuais (que
646

muitas vezes são desrespeitadas pela busca da verdade real) e os standards probatório servem
justamente para se contrapor ao voluntarismo interpretativo e afastar problemas como o livre
convencimento judicial, a inversão do ônus da prova em matéria penal, etc.
É importante ressaltar ainda que a teoria dos standards p o at iosà oà àaà sal aç o à
para o problema de valoração probatória que ocorre no Brasil. Entretanto, tal teoria auxilia a
esclarecer o papel da tradição para a valoração da prova, demonstrando compatibilidades
com a Crítica Hermenêutica do Direito, na medida em que a exigência de observância de
standards probatórios nada mais é do que escutar o que a tradição - pré-juízos que abarcam
a faticidade e historicidade de nosso ser-no-mundo (STRECK, 2014, p. 225) – transmite ao
intérprete. Exatamente por isso que ao valorar uma prova, o juiz não pode ser surdo para tais
standards (tradição) julgando com base no seu livre convencimento. Devemos sempre nos
perguntar acerca do modo e em que condições a tradição está nos entregando os sentidos
acerca de uma narrativa. Existem, assim, razões hermenêuticas para que se diga se algo está
provado ou não no processo. E tais razões se dão de forma intersubjetiva na (e pela)
linguagem, como Wittgenstein bem referiu em relação à impossibilidade uma linguagem
privada (WITTGENSTEIN, 1994, p. 114).
O grande trunfo das teorias dos standards probatórios se liga no auxílio da
compreensão dos motivos pelos quais a inversão do ônus probatório no processo penal é um
severo equívoco no paradigma do Estado Democrático de Direito. Sob uma perspectiva dos
standards, para que alguém seja condenado é necessário que o conjunto probatório seja
robusto ao ponto de afastar qualquer outra narrativa possível. E presunção deve ser
entendida aqui como admissão que uma, dentre as várias narrativas possíveis é a mais
provável, sem que, todavia, tais narrativas estejam excluídas. Contudo, ao inverter o ônus da
prova, se está, em última instância, presumindo que o réu tenha cometido determinado ato
ilícito, cabendo a ele provar o contrário. As teorias dos standards, por outro lado, são claras
no sentido de estabelecerem que para que um indivíduo seja condenado, é necessária que
não exista nenhuma dúvida além do razoável, vale dizer, que apenas uma narrativa seja
possível – aquela cuja única conclusão plausível seja a que leva à condenação do réu.
Eis o ponto: se investigarmos a origem da formulação da inversão do ônus da prova no
processo civil – e isso nada mais é do que uma das formas de manifestação da tradição (em
sentido gadameriano da palavra) -, veremos que tal instituto é legítimo pelo fato de que, nesse
647

tipo de procedimento, o bem jurídico tutelado se refere à propriedade, e não a liberdade de


locomoção do indivíduo. Aliás, essa é a mesma razão pela qual se admite, no processo civil, a
reforma de decisões judicias de modo a agravar a situação do réu e uma interpretação
bastante diversa do princípio da legalidade. Enquanto no processo penal, a legalidade se
manifesta fortemente na ideia de nullum crime nulla poena sine legem, servindo como
elemento interpretativo norteador de qualquer aplicação da lei penal, o processo civil cada
ezà aisàseàali haàpo à o asà o àa plaàe te s oàse ti a,à o oà p azoà azo el ,à oa-
f àeà de is oàdeà itoàjustaàeàefeti a ,àp e istos,à espe ti a e te,à osàa tigosà º, 5º e 6º
do Código de Processo Civil de 2015.
Assim, a inversão do ônus da prova não se sustenta no processo penal. Esse problema
se agrava ainda pela ausência de uma teoria-base sobre a valoração da prova, ou melhor, sob
a cultura – endossada pelos tribunais brasileiros – da aposta em enunciados performativos ou
o eitosà se à oisas ,à taisà o oà aà us aà pelaà e dadeà eal ,à oà li eà o e i e toà
oti ado ,à dife e çaàe t eàdis i io a iedadeàeàa it a iedade ,àet .àáài e s oàdoà usàdaà
prova decorre, portanto, de um gap doutrinário sobre critérios de valoração probatória, sendo
apenas a outra face da moeda de tais enunciados.

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WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. Trad. de Marcos G. Montagnoli. Revisão da


tradução: Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis: Vozes, 1994.
650

O RECONHECIMENTO DE PESSOAS COMO MEIO PROBATÓRIO SUSCETÍVEL À INFLUÊNCIA


DO FENÔMENO DAS FALSAS MEMÓRIAS

Maiara Müller Vincensi1


Patrícia Borges Moura2

RESUMO: O presente artigo se propôs à análise do reconhecimento de pessoas como meio de


prova suscetível à influência do fenômeno das falsas memórias. Questionou-se a valoração
judicial desse meio probatório quando da fundamentação da decisão no processo criminal.
Partindo-se do pressuposto da função persuasiva da prova e do processo penal como
atividade (re)cognitiva, passou-se a verificar junto à psicologia cognitiva o quão falha pode ser
a memória humana, bem como que é possível ocorrer o armazenamento na mente de
lembranças falsas, o que pode se dar espontaneamente ou através de sugestões –
intencionadas ou não. Nesse contexto, foram analisados casos práticos de reconhecimentos
equivocados, a fim de tecer considerações ao valor atribuído à prova oral, sobretudo quando
o reconhecimento pessoal for o principal meio probatório a indicar a autoria delitiva.

Palavras-Chave: Processo penal. Falsas memórias. Reconhecimento de pessoas. Prova oral.


Valor probatório.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho apresenta um estudo acerca da relação do processo penal


brasileiro com o fenômeno das falsas memórias, especificamente quanto aos reflexos desse
fenômeno na prova do reconhecimento pessoal.
A relevância jurídica do tema centra-se no fato de que o Direito ainda parece caminhar
lentamente no estudo das falsas memórias e sua implicação na produção probatória, em
especial se considerando que o processo penal faz uso frequente da prova oral, sem levar em
conta sua fragilidade, em que vítimas e testemunhas utilizam suas lembranças quando narram
fatos e efetuam o reconhecimento de um suposto criminoso. Também, porque é notória a
importância de referidos meios probatórios para a atividade judicial de valoração das provas.
Nesse contexto, o presente artigo propõe-se a uma análise da compreensão do
fenômeno das falsas memórias a partir da visão da psicologia cognitiva e da neurociência, bem
como de seus reflexos no reconhecimento de pessoas enquanto meio probatório bastante
utilizado na persecução criminal brasileira. Baseado na análise de casos penais provenientes
da prática jurídica de reconhecimentos equivocados e de exemplos de formação de falsas

1
Aluna do 10º semestre do Curso de Graduação em Direito da Unijuí, mai_muller@msn.com.
2
Professora orientadora, Mestre em Direito, Especialista em Direito Público, Curso de Graduação em Direito -
Unijuí, pmoura@unijui.edu.br
651

memórias, far-se-á uma reflexão quanto à valoração judicial da prova do reconhecimento


pessoal, quando esta for a única a indicar a autoria delitiva, levando em consideração a
possibilidade de existência das falsas memórias, além de expor algumas medidas redutoras
de dano para uma melhor colheita da prova oral.

2 O RECONHECIMENTO DE PESSOAS E AS FALSAS MEMÓRIAS


2.1 O fenômeno das falsas memórias segundo a Psicologia e seus reflexos no
reconhecimento de pessoas como meio probatório

Além de todo o rol de imperfeições e vícios inerentes à prova do reconhecimento de


pessoas que podem ser citados quando em cotejo à persecução penal, recentemente alguns
doutrinadores do meio jurídico têm dado importante atenção a um tema sobre o qual a
Psicologia já tem se debruçado há mais de um século: as falsas memórias.
É pertinente questionar como a possível existência de lembranças não verdadeiras
pode afetar o processo penal, principalmente no que se refere ao reconhecimento pessoal.
Contudo, antes de expor o que são as falsas memórias e como elas podem se formar na mente
do reconhecedor, é elementar compreender alguns aspectos básicos acerca da memória e de
seu funcionamento.
Co fo eà I à Iz uie doà ,à p.à ,à e iaà sig ifi aà a uisiç o,à fo aç o,à
o se aç oà eà e o aç oà deà i fo aç es. .à Éà a uiloà ueà seà a aze aà aà e teà a e aà deà
momentos vividos ao longo da existência de alguém. Um indivíduo é constituído daquilo que
se lembra, e só se lembra daquilo que se grava. Não se pode fazer o que não se sabe,
tampouco comunicar o que se desconhece, enfim, o que não está na memória.
As memórias são suscetíveis de modulação através de emoções, de acordo com o nível
de consciência e o estado de ânimo. Desta forma, se torna fácil aprender ou evocar algo
quando se está alerta e de bom ânimo, e de outro lado, aprender qualquer coisa quando se
está cansado ou estressado é tarefa árdua. (IZQUIERDO, 2011).
A memória humana é de curto ou de longo prazo. A memória de curto prazo contempla
informações que ficam retidas por poucos momentos. Portanto, é a memória que se utiliza
para proferir uma frase gramatical que faça sentido. A memória de longo prazo abarca
informações que ficam armazenadas por mais tempo, podendo perdurar por horas, dias, anos
652

ou mesmo décadas. Esta ainda pode ser dividida em memória procedural e memória
declarativa. Aquela se vincula às memórias de capacidades ou habilidades motoras ou
sensoriais, como andar de bicicleta, nadar, entre outros; e a memória declarativa registra
fatos, eventos ou conhecimento, e é responsável pelo armazenamento de dados passíveis de
serem declarados. (IZQUIERDO, 2011).
É sobre este último aspecto da memória que se devem dirigir as implicações jurídicas.
Todos os estudos e pesquisas experimentais realizados no âmbito da neurociência e da
psicologia cognitiva apontam que a memória está sujeita a falhas. Não é possível armazenar
imagens na mente como se armazenam fotografias em um computador. Antônio Damásio
(2012, p. 105) refere exatamente isso:

As imagens não são armazenadas sob a forma de fotografias fac-similares de coisas,


de acontecimentos, de palavras ou de frases. O cérebro não arquiva fotografias
Polaroid de pessoas, objetos, paisagens; nem armazena fitas magnéticas com música
eàfala;à oàa aze aàfil esàdeà e asàdeà ossaà ida;à e à et à a t esà o à dei as à
ou mensagens de teleprompter do tipo daquelas que ajudam os políticos a ganhar a
vida. [...]. Todos possuímos provas concretas de que sempre que recordamos um
dado objeto, um rosto ou uma cena, não obtemos uma reprodução exata, mas antes
uma interpretação, uma nova versão reconstruída do original. [...]. Essas imagens
evocadas tendem a ser retidas na consciência apenas de forma passageira e, embora
possam parecer boas réplicas, são frequentemente imprecisas ou incompletas.

Também em relação ao armazenamento da memória, tem-se que uma informação


vinda do meio jamais integra o sistema cognitivo da mesma forma e com os mesmos detalhes
com que se dá na realidade, antes, sofre transformações desde os primeiros momentos. O
cérebro seleciona o que será codificado na fase de aquisição da informação. E se a pessoa, por
qualquer motivo, não estiver totalmente atenta ao que está acontecendo, muito
provavelmente não poderá dispor de recursos cognitivos suficientes para perceber a situação
com riqueza de detalhes e a memória não terá sua codificação de modo adequado.
(IRIGONHÊ, 2015).
Oà atoà deà e o da à à ha adoà deà e o aç o à pelaà Psi ologiaà eà o o eà ua doà seà
relembra do ocorrido, quando se busca o fato na memória. Este processo de evocação nada
mais é do que a reconstrução de fragmentos que formam a lembrança. Um dado
importantíssimo e à elaç oà aoà estudoà aà ueà seà desti aà esteà t a alhoà à ueà de t eà asà
características próprias do processo de evocação, encontra-se a de que o próprio ato de
e o da àpodeà odifi a àaàle a ça .à I‘IGONрÊ,à .à
653

A partir desse raciocínio, percebe-se que, diferente do que muito se acredita, a mente
humana não recorda os fatos do mesmo modo que um filme fica salvo no computador, dentro
de uma pasta, em um sistema operacional. A complexidade do modo em que ocorre o próprio
armazenamento dos fatos revela uma imensidão de variáveis que não podem ser deixadas de
lado ao se falar em memória.
Como delineado, a memória humana é suscetível a falhas. Porém, não somente o
esquecimento é um risco, como existe a possibilidade do surgimento de falsas memórias na
mente de quem precisa recordar algo.
No tocante a implicações jurídicas, há sérias consequências que podem decorrer do
fenômeno das falsas memórias quando da produção de provas orais, tal como é o
reconhecimento pessoal.
Segundo Márcia de Moura Irigonhê (2015, p. 60, grifo nosso),

Hoje em dia, dentre a comunidade científica, a noção de que a memória é um


processo essencialmente reconstrutivo e dinâmico é paradigmática e já não há mais
dúvida acerca da existência do fenômeno das falsas memórias. Há certa
divergência, todavia, nas tentativas de explicar, com uma sólida base terórica, por
que motivo e de que maneira ele ocorre na mente humana.

Para buscar entender a ocorrência das falsas memórias, deve-se ter em mente que elas
podem surgir e se manifestar das mais variadas formas. Por isso, costumam ser classificadas
conforme a origem do processo de falsificação, e recebem então a denominação de falsas
memórias espontâneas e falsas memórias sugeridas. (IRIGONHÊ, 2015).
As falsas memórias espontâneas, segundo Lilian Stein (2011, p. 23), ocorrem quando
a lembrança é alterada internamente, fruto do próprio funcionamento da memória, sem a
interferência de uma fonte externa à pessoa .àEm tal caso, a interpretação de um fato pode
se tornar a informação original, como uma substituição de dados. Um exemplo trazido pela
autora é quando se recorda de uma informação referente a um evento como pertencente a
outro, de modo que se lembra de uma história como tendo sido relatada por um amigo
quando, na verdade, os fatos são oriundos de um programa de televisão ao qual se assistiu.
Ou seja, nesse exemplo percebe-se que a falsa memória espontânea ocorre internamente na
mente do indivíduo, sem qualquer intervenção de terceiros.
As falsas memórias sugeridas advêm da sugestão de falsa informação, vindo de fora do
sujeito, de maneira externa. Segundo Stein (2011), isso ocorre quando se aceita uma
654

informação falsa após o evento, e se incorpora essa inverdade na memória original, podendo
acontecer esse fenômeno de modo acidental ou propositado. Após presenciar um
acontecimento, há um transcurso de tempo no qual uma informação nova é apresentada
como parte do evento original, o que resulta na redução das lembranças verdadeiras e
aumento das falsas.
Pode-se, ainda, questionar se as memórias então são passíveis de influência por outras
pessoas. E a resposta é afirmativa. Sim, a memória pode ser distorcida mediante sugestões
externas, posteriores aos acontecimentos. E, além disso, as percepções e as interpretações de
outras pessoas podem acabar por influenciar a forma como se recorda os fatos. (STEIN, 2011).
Deàa o doà o àI igo h à ,àp.à ,à aàsugestio a ilidadeàpodeàap ese ta -se até mesmo
nas formas mais sutis, tais como em interrogatórios sugestivos ou lendo-se e assistindo-se
notíciasàso eàu àfatoàe pe i e tado .à
A falsa memória não é uma mentira. A pessoa que narra um fato recordado – fruto,
por exemplo, de uma falsa memória sugerida – crê que aquilo é verdade. E por ser diferente
de uma mentira, questiona-se quanto à possibilidade de se reconhecer a existência das falsas
e ias,àu aà ezà ueà aàpessoaàsi e a e teàa editaà ueà i euàa ueleàfato,àeà aà e ti aà
ela está consciente de que o narrado por ela não aconteceu, mas sustenta a história por algum
oti oàpa ti ula .à áэVй“;àэOPES, 2007, p. 46).
Trazendo para o Direito todos esses estudos da Psicologia, é preciso que se admita a
necessidade de uma avaliação sobre o modo que tem se dado a coleta das provas embasadas
na memória. Gustavo Ávila e Gabriel Gauer (2009, p. 7) defendem que a interdisciplinaridade
de e iaàse à elho àt a alhadaà oà eioàju ídi o,àu aà ezà ueà oàDi eitoàe o t aàdifi uldadesà
pa aàlida à o àaà ealidadeà o te po ea .
Um tema como este é importante de ser analisado, tanto para a segurança do processo
penal, como para conscientizar os operadores do Direito, de modo que é preciso estudar a
relação das falsas memórias com a propensão de sua formação nos contextos em que se dão
os reconhecimentos pessoais, uma vez que lembranças não verdadeiras podem se formar
através de entrevistas indutivas e perguntas tendenciosas.
Além de perderem detalhes pelo esquecimento, os reconhecedores podem
acrescentar outros que não existiam, pois foram contaminados pela mídia, por interrogatórios
655

indutivos ou ainda, por terem sofrido algum trauma ao presenciar o ato, e em função disso,
criam em sua mente memórias sobre coisas que nunca ocorreram. (ALVES; LOPES, 2007).
Relevante destacar que existem muitas variáveis que influenciam a prova oral. Lopes
Jr. (2014, p. 707, grifo nosso) aborda uma problematização do reconhecimento desde a
Psicologia Jurídica, dado que é um meio de prova dependente da complexa memória humana:
[...] se devem considerar as expectativas da testemunha (ou vítima), pois as pessoas
tendem a ver e ouvir aquilo que querem ver e ouvir. Daí porque os estereótipos
culturais (como cor, classe social, sexo etc.) têm uma grande influência na percepção
dos delitos, fazendo com que as vítimas e testemunhas tenham uma tendência de
reconhecer em função desses estereótipos (exemplo típico ocorre nos crimes
patrimoniais com violência – roubo – em que a raça e perfil socioeconômico são
estruturantes de um verdadeiro estigma).

Colocado de outro modo, a instrução probatória da investigação criminal pode ser


influenciada pelos mais diversos fatores, os quais muitas vezes não são evidentes, mas
latentes na mente e na cosmovisão de cada indivíduo da sociedade, e isto faz com que se
pondere e se analise qual o peso que deve ter a prova do reconhecimento pessoal no processo
penal.
Por fim, há de se destacar um conceito muito interessante trazido por Irigonhê (2015,
p.à ,à ha adoàdeà juízoàdeàpe epç oàp e ede te ,à ueàse iaà o oàaàa aliaç oà ueàseàfazà
acerca da imagem anteriormente percebida. A testemunha analisa as feições da pessoa que
lhe é apresentada e, relembrando o que antes havia percebido em determinado contexto
empírico, compara as duas experiências.
O pressuposto do qual se parte é de que, se durante a instrução probatória a
testemunha reconhece uma pessoa, assim o faz porque o viu no momento em que o crime
ocorreu. Contudo, esta percepção precedente pode não se referir ao fato de que o
reconhecedor viu o outro cometendo o crime. Ou seja, se por qualquer motivo a testemunha
não pôde identificar na sua memória a fisionomia do autor no ato do crime, se houver contato
o àoà ostoàdoài di iadoàe à po aàa te io àaoà e o he i e to,àistoà podeà ia à aà e iaà
da testemunha ocular o juízo de identidade necessário para que o reconheça, cumprindo o
papel de misleading information e fomentando uma falsa memória oriunda de sugestão
e te a .à I‘IGONрÊ,à ,àp.à .
A partir dos conceitos apresentados é possível perceber o quão complexa é a memória
humana e que há incontáveis variáveis entre a aquisição de uma imagem, seu armazenamento
656

e sua evocação. Ademais, tem-se a espontaneidade e a sugestionabilidade como fontes para


a formação de falsas memórias, as quais podem influenciar decisivamente na produção da
prova do reconhecimento pessoal. Eventualmente, tais fatores podem causar graves danos ao
processo e à segurança jurídica. No subitem seguinte serão demonstrados casos práticos e
exemplos de como pode acontecer o reconhecimento equivocado e o que isto pode resultar
no que se refere à condenação de indivíduos inocentes.

2.2 Casos práticos de reconhecimentos equivocados e condenações de inocentes

Diante do que foi exposto, pode-se perceber que a prova do reconhecimento de


pessoas precisa lidar com inúmeras variáveis, tanto relacionadas com a memória, bem como
associadas a valores e estereótipos culturalmente construídos na sociedade atual.
Ademais, há o risco da transferência inconsciente, que ocorre na ocasião em que a
vítima ou testemunha indica uma pessoa que viu simultaneamente ao momento do crime,
como tendo sido o autor do delito. (LOPES JR, 2014). Reside aqui um sério risco ao processo
penal e uma grave insegurança jurídica, dado que se pode chegar ao ponto de condenar
alguém que é inocente.
O autor Daniel Schacter (2003) elucida que quando se trata de atribuição errada, as
implicações no meio jurídico são cada vez mais graves e frequentes. A título de exemplo, o
autor traz estes dois casos a seguir.
Em meados de 1950, após sofrer um assalto à mão armada, um agente de viagem
britânico identificou como autor do crime um marinheiro inocente. O marinheiro havia
comprado passagens do agente, por isso ele atribuiu o rosto do marinheiro, que lhe era
familiar, ao ladrão. Outra situação parecida ocorreu quando ao psicólogo Donald Thomson foi
imputado o crime de estupro, posto que a vítima lembrava nitidamente de seu rosto. O
psicólogo acabou sendo inocentado porquanto tinha um álibi irrefutável: no momento do
crime estava prestando uma entrevista na televisão (ironicamente o tema da entrevista era
acerca de quão falha pode ser a memória). A vítima assistira à entrevista e associou o rosto
de Thomson ao estuprador. (SCHACTER, 2003).
Nos dois casos houve transferência inconsciente de um rosto, inserido em um
determinado contexto, para o rosto de uma pessoa de outro contexto, o que gera uma
657

confusão de fontes. Relatos como esses espantam e fazem refletir: quantos depoimentos
contaminados já causaram a condenação de pessoas inocentes?
No Brasil também há fatos assim. Irigonhê (2015, p. 73) relata o seguinte caso:

Na noite de 10 de fevereiro de 2014, a copeira Dalva Moreira da Costa estava em um


ponto de ônibus no Bairro de Todos os Santos, na Zona Norte do Rio de Janeiro,
quando foi abordada por um homem negro, de camiseta preta e cabelo estilo black
power, o qual a empurrou com força, subtraiu-lhe a bolsa e evadiu-se do local. Na
sequência, a vítima foi acudida por um policial e puseram-se ambos a procurar pelo
sujeito. Avistaram subindo as escadas de um viaduto um homem cujos tom de pele,
cor de camiseta e corte de cabelo condiziam com os do autor do crime.
Imediatamente, a vítima reconheceu o homem como aquele que a havia roubado
momentos antes, não obstante ele não estivesse carregando nenhum dos pertences
subtraídos. Foi, então, lavrado auto de prisão em flagrante e o sujeito foi parar na
Cadeia Pública Juíza de Direito Patrícia Acioli, em São Gonçalo, na região
metropolitana do Rio de Janeiro. Assim que divulgado, o fato alcançou notória
repercussão na imprensa e em redes sociais. O motivo: o autuado chamava-se
Vinícius Romão de Souza, psicólogo que havia trabalhado como ator na telenovela
Lado a Lado, transmitida entre os anos de 2012 e 2013 na Rede Globo de Televisão.

Quinze dias após o fato, foi concedida liberdade provisória a Vinícius, com a
condicional de cumprimento de medidas cautelares. Em seguida, houve novo depoimento da
vítima fornecido pela Polícia Judiciária, onde a mesma afirmou que o local do crime não era
bem iluminado e que viu o rosto do agente por apenas alguns instantes. Admitiu a copeira
que poderia ter se enganado ao reconhecer Vinícius. Retratando-se a vítima e acolhido
parecer do Ministério Público, o Juízo determinou o arquivamento do feito em 11 de março
de2014, pois ausente justa causa para a ação penal. (IRIGONHÊ, 2015).
Um fato assim traz questionamentos indeclináveis, tais como: se tivesse outro tom de
pele,àse à ueàse iaà e o he idoàdeàfo aàe adaà o oàauto àdeàu à i e?àOuàai da,à uaisà
são as pessoas que, invisíveis e despidas da sorte de serem relativamente conhecidas em
escala nacional aportam ao cárcere e nele se mantém devido a reconhecimentos
e ui o ados? .à I‘IGONрÊ,à ,àp.à .
Quanto ao juízo de percepção precedente, conceito trazido no item anterior, tem-se o
exemplo de um taxista que foi assaltado quando fazia uma corrida. O investigador mostrou à
vítima duas fotografias de suspeitos, após o ocorrido, mas o taxista não reconheceu nenhum
dos homens das fotos como sendo um dos assaltantes. Alguns dias depois o taxista foi à
delegacia para proceder ao reconhecimento dos suspeitos, tendo identificado dois deles como
autores do delito. Contudo, os homens identificados eram exatamente aqueles das fotografias
658

que o taxista tinha dito que não eram os assaltantes. Alguns meses depois, dois rapazes foram
detidos por roubo em cidade vizinha e ao serem questionados, confessaram diversos crimes,
inclusive o assalto ao taxista. (IRIGONHÊ, 2015).
É comum nas delegacias de polícia que se apresente álbuns de fotografias às vítimas
do crime ou testemunhas, contendo fotos de pessoas que já tem passagens na polícia. O ideal,
na praxe, é que a testemunha identifique no álbum e depois confirme o reconhecimento na
linha. Porém, tem-seà e eladoà ue,à aàpa ti àdoà o e toàe à ueàaàteste u haàfo e eàu aà
identificação dentre as fotografias, há uma baixa probabilidade de que mude suas afirmações
nos reconhecimentos subsequentes, a qual diminui progressivamente à medida que o tempo
passa .à I‘IGONрÊ,à ,àp.à .
Ou seja, de acordo com Irigonhê (2015), se houver o reconhecimento de pessoa que
não era o real autor do crime na fase de apresentação da fotografia, o efeito é muito danoso,
pois faz com que a testemunha ou a vítima consolide em sua memória a imagem reconhecida
na foto, sem ter a percepção de que a imagem se remete ao momento do reconhecimento
fotográfico, e não do cometimento do delito.
ássi ,ào o eàoà ha adoàdeà efeitoà o p o isso à I‘IGONрÊ,à ,àp.à ,à ueàse iaà
o sentimento que tem o reconhecedor de apresentar consistência em suas afirmações para
colaborar com a investigação.
Necessário abordar, em virtude da temática, o paradigmático caso da Escola Base em
São Paulo, trazido por Lopes Jr. em artigo publicado no site Conjur, caso este que trouxe a
discussão acerca do papel da mídia e sua postura irresponsável, além de evidenciar o
despreparo da polícia judiciária:

Em 1994, duas mães denunciam que seus filhos participavam de orgias sexuais
organizadas pelos donos da Escola de Educação Infantil Base, localizada no bairro da
Aclimação, em São Paulo. Uma das mães disse que seu filho de 4 anos de idade lhe
teria contado que havia tirado fotos em uma cama redonda, que uma mulher adulta
teria deitado nua sobre ele e lhe beijado. A fantasia inicial toma contornos de rede
de pedofilia e, após um laudo não conclusivo sobre a violência sexual que o menino
teria sofrido (depois ficou demonstrado que tudo não passou de problemas
intestinais), é expedido um mandado de busca e apreensão que foi cumprido com
irresponsável publicidade por parte da polícia. Era o início de uma longa tragédia a
que foram submetidos os donos da escola infantil. (LOPES JR., 2014, p.1).

Além dos graves erros por parte da polícia e dos principais meios de comunicação, foi
demonstrada a implantação de falsas memórias nas duas crianças e também a manipulação
659

dos depoimentos. O modo de condução dos depoimentos impressiona, visto que as perguntas
eram fechadas e induziam as respostas, cujas crianças de 04 anos respondiam por
o ossíla osà si àeà o àouàpo à e aà epetiç oàdaàp p iaàpe gu ta.à эOPй“àщ‘.,à .
Em artigo publicado pelo Jornal Folha de São Paulo em 2015, pelo autor Guilherme
Rosa, tem-se o caso de Israel de Oliveira Pacheco, de 27 anos, que está preso há sete anos,
acusado de estuprar uma jovem no Rio Grande do Sul. Ele foi reconhecido pela vítima e por
algumas testemunhas como sendo o autor do crime, mas uma das testemunhas não manteve
o reconhecimento em juízo. Em setembro de 2015, a defesa recorreu aos tribunais, na
esperança de ser absolvido, pois um exame de DNA atestou não ser seu o material genético
correspondente ao sangue da cena do crime. (ROSA, 2015).
Também sobre esse caso supracitado, o defensor público Rafael Raphaelli que
ep ese taàoà u,àat a sàdeà otí iaà ei uladaà oàsiteà OàI fo ati oàdoàVale àpelaàjo alistaà
Natalia Nissen em 2015, trouxe informações no sentido de que o Tribunal de Justiça indeferiu
o pedido de revisão criminal e a sentença condenatória foi mantida, mesmo após a
apresentação da prova pericial (NISSEN, 2015). Contudo, segundo a notícia:

No momento do crime, a vítima teve os olhos vendados e o agressor estava de casaco


e com capuz, em um quarto escuro. Para a defesa, a vítima não tinha condições de
reconhecer o homem nessas circunstâncias. O defensor ainda acrescenta que, nos
Estados Unidos, em 75% dos casos em que o exame genético comprova a inocência
dos acusados, o processo é embasado em reconhecimento pessoal das vítimas. [...]
Pacheco não possuía qualquer condenação até este caso. Enquanto ele cumpre a
pena, já se passaram sete anos, o homem que seria o autor do crime sequer foi
denunciado pelo Ministério Público. Porém, ele cumpre pena por outros delitos:
quatro roubos e um estupro. Em relação ao crime de estupro em 2008, ele foi
condenado por receptação depois de vender os pertences levados da residência das
vítimas. (NISSEN, 2015, p.1).

й àe t e istaàaoàsiteà Ca alàCi iasàC i i ais àe à aioàdeà ,àйliza ethàэoftus,à


psicóloga cognitiva e importante pesquisadora e especialista norte-americana do tema falsas
memórias, refere que cerca de 75% dos casos de inocentes condenados resulta de falsas
memórias na identificação do acusado (FALSAS MEMÓRIAS..., 2015). Explica que a memória é
um paradoxo, que ela define quem somos e de onde viemos:

Sem memória, a vida não teria o senso de continuidade que tem. A vida consistiria
apenas de experiências momentâneas sem relação umas com as outras. Sem
memória, não poderíamos lembrar o que queremos falar e nem teríamos este senso
de continuidade para saber que somos nós. Ao mesmo tempo, como minhas
660

pesquisas mostraram ao longo dos últimos 30 anos, a memória é totalmente


maleável, seletiva e mutável. [...] Às vezes conheço pessoas que são acusadas por
crimes que nunca aconteceram e, quando conheço mais sobre seus casos, eu
geralmente descubro que a defeituosa memória humana é a maior causa destas
tragédias humanas. Para dar rosto a algumas destas pessoas condenadas
erroneamente, basta acessar o site do Innocence Project. (FALSAS MEMÓRIAS...,
2015, p.1).

O Innocence Project, que pode ser traduzido como Projeto Inocência, foi fundado em
1992 por Peter Neufeld e Barry Scheck, na Escola de Direito Benjamin N. Cardozo, na
Universidade de Yeshiva. Em 2004 tornou-se uma organização sem fins lucrativos. Sediado em
Nova York, Estados Unidos, esse projeto se intitula como uma organização de política pública
com litigância nacional. É um instrumento que busca inocentar aqueles que foram
condenados erroneamente, através de exames de DNA, para reformar o sistema de justiça
criminal e evitar futuras injustiças. Sua missão é libertar aquelas muitas inocentes pessoas que
permanecem encarceradas, trazendo mudanças para o sistema responsável por sua prisão
injusta. (ABOUT INNOCENCE PROJECT, 2016).
A condenação de inocentes no processo penal brasileiro é um risco que se corre
quando não observados os procedimentos legais para efetuar o reconhecimento pessoal.
Contudo, mesmo que se faça tudo nos moldes previstos na lei, é preciso admitir que o risco,
apesar de diminuir, não desaparece. Além disso, como demonstrado no Caso Escola Base, o
papel que a mídia desenvolve no curso de uma investigação é algo que deve ser repensado,
pois culmina em vários danos à vida daqueles que são reconhecidos ou acusados de forma
errada.

2.3 Reconhecimento pessoal como único indício da autoria delitiva e a valoração judicial

Como ensina эopesàщ .à ,àp.à ,à oàp o le aàdasàfalsasà e iasàeàdosàfalsosà


reconhecimentos é uma realidade inconteste, que deve ser considerada pelos atores
judi i ios .à Oà o jetoà oà à elege à soluç es,à poisà talà assu toà à po à de aisà o ple o.à
Entretanto se busca problematizar o tema para revelar o perigo e estimular a consciência, já
que de pouquíssima confiabilidade é a prova oral.
Tendo em vista o que foi abordado até aqui, faz-se imprescindível a busca e o uso de
técnicas redutoras de danos. Em relação à qualidade da prova oral e o fenômeno das falsas
661

memórias, Lopes Jr. e Di Gesu (2007, p. 67) afirmam que para problemas complexos não
existem soluções simples, por isso:

Deve-se pensar em medidas de redução de danos com o intuito de melhorar a


qualidade da prova oral. Dentre estas, sugerem as seguintes medidas de redução de
danos: 1) colheita da prova em um prazo razoável, objetivando diminuir a influência
do tempo; 2) adoção de técnicas de interrogatório e a entrevista cognitiva, que
permitem a obtenção de informações quantitativa e qualitativamente superiores às
das entrevistas tradicionais, altamente sugestivas; e 3) gravação das entrevistas
realizadas na fase pré-processual, principalmente as realizadas por assistentes
sociais e psicólogos, permite ao juiz o acesso a um completo registro eletrônico da
entrevista.

Entende-se que, das medidas citadas, a mais importante é a que aborda a colheita da
prova em prazo razoável. O tempo é um grande inimigo da memória, além de possibilitar o
surgimento das falsas memórias.
Tal compreensão, relacionando-se especificamente ao reconhecimento de pessoas
como meio probatório, pensa-se que a descrição do art. 226, inciso I, poderia ser gravada,
dado que a memória que irá relatar as características físicas, detalhes acerca da altura, da cor
da pele e do cabelo, está possivelmente menos contaminada do que após ver a fotografia que
lhe será mostrada ou o grupo onde pode estar o suspeito.
Stein (2011, p. 205) oferece à melhoria da coleta de depoimentos a alternativa da
Entre istaàCog iti a,à ujoàp i ipalào jeti oà à o te à elho esàdepoi e tos,àouàseja,à i osàe à
detalhesàeà o à aio à ua tidadeàeàp e is oàdeài fo aç es .àIstoàpo ue,àdeàa o doà o à
Lopes Jr. (2016, p. 515), o modo de atuar de quem conduz o reconhecimento é de extrema
i po t ia,à poisà pa aà al à daà possi ilidadeà deà ia à falsasà e iasà falsosà
reconhecimentos) de forma explícita, também existe a indução involuntária, através do
o po ta e toà e alàouà oà e al .à
Deste modo, sugere-se que nos reconhecimentos efetuados na delegacia de polícia o
investigador não esteja presente, e que a pessoa que conduzir o reconhecimento não faça
fazer parte do grupo investigatório. A intenção disso é criar condições para que o
reconhecedor receba níveis menores de indução ou contaminação. (LOPES JR., 2016, p. 515).
Além disso, conveniente apenas mencionar que há duas formas de reconhecimento
pessoal:à oà si ult eoà eà oà se ue ial.à “egu doà эopesà щ .à ,à p. ,à ossoà C digoà deà
Processo Penal, como visto, optou pelo sistema simultâneo, em que todos os membros são
662

ost adosà aoà es oà te po.à йsseà à oà todoà aisà sugesti oà eà pe igoso .à ‘efe eà ueà
atualmente, é o reconhecimento sequencial que a psicologia judicial tem apontado como mais
seguro e confiável.
De fato, é difícil ou quase impossível afirmar que o magistrado tenha a capacidade de
descobrir se o reconhecedor possui falsas memórias. Logo, o interessante é buscar evitar a
formação delas no trâmite processual, por meio da adoção das medidas citadas, como colheita
da prova em tempo hábil e inquirição do reconhecedor de modo não indutivo.
Diferente das memórias que podem ser falsas, verdadeiro é o problema causado ao
ignorá-las por completo. Deixa-se o processo nas mãos de vítimas ou testemunhas, as quais
não armazenam as informações de maneira precisa, e que podem, por suas palavras,
erroneamente subsumir a conduta de alguém em um tipo penal. Refletir acerca dos modelos
vigentes no processo penal é necessário quando se constata a condenação de um inocente,
que unicamente era culpado de ser parecido com outra pessoa e não ter um álibi conciso para
o momento do crime.
Co fo eàáu àэopesàщ .àeàále a d eàMo aisàdaà‘osaà ,àp.à ,àaà contaminação por
falsas memórias é algo ainda pouco estudado no sistema brasileiro. Uma pequena entrevista
o àp ofissio aisàde o st aàaàig o iaàso eàalgoà ueà oàpodeàse àdes o he ido .àй à
tempos atuais, isso é inadmissível por parte daqueles que têm por ofício tornar eficaz a tão
falada justiça.
É mais do que necessário, então, questionar: Como valorar uma prova que pode estar
inconscientemente contaminada? Como ter segurança jurídica diante do perigo de condenar
alguém que não era o autor de um crime? O autor Jorge Trindade (2011) refere que se deve
adotar a máxima cautela ao judicializar uma memória-fato, isto em virtude do risco de
produção de injustiças, por exemplo, ao condenar o acusado com base somente no
reconhecimento de pessoas, quando a memória era, na verdade, falsa. Da mesma forma
Lopes Jr. (2016, p. 513) se posiciona o sentido de que deve o reconhecimento pessoal ter valor
p o at ioàa e izado,à istoà ueà à e ide teàsuaàfaltaàdeà edi ilidadeàeàf agilidade .
Ou seja, o reconhecimento deve ter sua valoração relativizada, carecendo de cautela
por parte do magistrado ao analisar esse meio de prova. Em hipótese alguma pode servir o
reconhecimento, exclusivamente, de base para uma sentença de pronúncia ou condenação,
sem a corroboração de outros meios de prova, justamente por efeito da presunção de
663

inocência, do in dubio pro reo e, obviamente, da possibilidade da existência de falsas


memórias.
Portanto, faz-se mister, no âmbito do processo penal brasileiro, conscientizar os
operadores do Direito acerca da eventual presença de memórias contaminadas na mente
daqueles que procedem ao reconhecimento pessoal, para que, ao exercerem suas funções no
mundo jurídico, esses profissionais possam estar informados de todas as variáveis que
circundam a produção de uma só prova, e que, desta forma, a cada dia menos injustiças sejam
cometidas.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho analisou a prova penal do reconhecimento de pessoas e sua


elaç oà o àoàfe e oà ha adoàdeà falsasà e ias .àIssoàpo ueà oàs oà a osàosà asosà
em que se necessita do reconhecimento pessoal para identificar o autor de um crime. A
observância do procedimento legalmente previsto é essencial na tentativa de reduzir os danos
do meio de prova tal como o reconhecimento. Pois, não obstante se atente ao procedimento
legal, pode ser que haja o risco de existir falsas memórias na mente do reconhecedor, o que
torna ainda mais complexo o encargo da valoração probatória por parte do juiz.
A memória humana é por demais complexa. Há incontáveis variáveis entre a aquisição
de uma imagem, seu armazenamento e sua evocação. Tem-se a espontaneidade e a
sugestionabilidade como fontes para a formação de falsas memórias, as quais podem
influenciar decisivamente na produção da prova do reconhecimento pessoal. Eventualmente,
tais fatores podem causar graves danos ao processo e à segurança jurídica.
Nesse contexto é que a prova do reconhecimento de pessoas deve ter sua valoração
relativizada, cabendo ao magistrado muita cautela ao analisar tal espécie probatória, bem
como jamais pode servir o reconhecimento - de modo exclusivo - como base para uma
sentença de condenação, ou mesmo de pronúncia, sendo profundamente necessária à
corroboração dos fatos por outros meios de prova. Justifica-se tal afirmação com fundamento
específico nos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, somados, é claro, à
possível existência das falsas memórias.
664

REFERÊNCIAS

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666

DйCI“Õй“àQUйàPODйMà“й‘àCON“IDй‘áDá“àáTIVI“Tá“àNáàй“нй‘áàPйNáL:àáVáNÇO“àOUà
‘йT‘OCй““O“?

ààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààJoi iàá to iaà)iegle 1

àààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààààRose a aàU se 2

RESUMO: O presente artigo apresenta algumas considerações acerca do Protagonismo do


Poder Judiciário e sua ascensão nas últimas décadas, bem como decisões que podem ser
consideradas ativistas, notadamente na esfera penal. Com o Estado Democrático de Direito
instituído pela Constituição de 1988, o Poder Judiciário passou a enfrentar diversas questões
que até então não eram de sua alçada e suas decisões implicaram em um Protagonismo do
Judiciário, ou seja, um agigantamento por parte do poder judiciário decidindo questões, que,
por vezes, ultrapassam os limites de sua esfera A partir dessa ascensão do Poder Judiciário e
seu Protagonismo Judicial será construído o trabalho, tendo como pano de fundo, decisões,
que repercutiram na sociedade em geral e que podem ser consideradas ativistas pela
comunidade jurídica.

Pala asà ha e:àáti is oàщudi ial;àP otago is o;àPode àщudi i io.

INT‘ODUÇÃO

Com o surgimento de uma série de direitos fundamentais em prol dos cidadãos, a


partir da Constituição Federal de 1988, a busca pelo Poder Judiciário é cada vez mais
freqüente. Fato este, que gerou a ascensão deste Poder. No entanto, essa ascensão e
agigantamento do Judiciário, gerou também certas preocupações na comunidade jurídica, em
virtude de algumas decisões que extrapolam os limites da esfera do Judiciário e que podem
ser consideradas ativistas. A partir dessa abordagem será construído o trabalho.
Atualmente discute-se muito acerca do chamado ativismo judicial operado por
integrantes do Poder Judiciário, notadamente o desempenhado pelo Supremo Tribunal
Federal,órgão de cúpula do Poder Judiciário. Muitas críticas são feitas em relação a essa
função ativista. Argumenta-se que haveria uma extrapolação da função institucional e

1
Advogada; Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Direito pela Universidade
Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Santo Ângelo/RS. Especialista em Direito Processual
Civil pela UNISUL – Universidade do Sul de Santa Catarina; I teg a teàdoàG upoàdeàPes uisaà TutelaàdosàDi eitosà
eàsuaàйfeti idade ,à i uladoàaoàCNP ,àso àaà oo de aç oàdoàP of.àD .àнlo is alàdeà“ouzaàDel Ol oàeàdoàP ojetoà
de Pesquisa, vinculado à linha de Pesquisa Políticas de Cidadania e Resolução de Conflitos do Programa de Pós
Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - URI,
Campus Santo Ângelo.
2
Graduada em Direito pela Unijui. Mestre em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto do Uruguai
e das Missões - Campus Santo Ângelo (URI).
667

constitucional do órgão de cúpula do ordenamento jurídico nacional, seja pela ausência de


legitimidade democrática para exercício de algumas funções, seja pelo desvirtuamento de sua
competência de tribunal constitucional. Tal insurgência parte freqüentemente do setor mais
"conservador" da sociedade brasileira justamente contra decisões em questões da seara penal
e processual penal que, geralmente, pendam para a limitação e contenção do poder punitivo
esatal.

àCON“IDй‘áÇÕй“à“OB‘йàáTIVI“MOàщUDICIáL

P i ei a e teà ài po ta teàseà egist a à ueàoàfe e oàdoàde o i adoà"ati is oà


judi ial"à oà à deà e lusi idadeà doàPode à щudi i ioà asilei o.à эuísà ‘o e toà Ba osoà ,à
e io aà ueàe àdife e tesàpa tesàdoà u do,àe à po asàdi e sas,à o tesà o stitu io aisàouà
sup e asà o tesàdesta a a ‐seàe àdete i adasà o e tosàhist i osà o oàp otago istasà
deà de is esà e ol e doà uest esà deà g a deà al a eà políti o,à i ple e taç oà deà políti asà
pú li asà ouà es olhasà o aisà e à te asà o t o e tidosà aà so iedade,à oti osà essesà ueà
despe ta àaàate ç oàdosài te essesàdosà aisà a iadosàseto esàdaàso iedade.
Nessaà toada,à pa aà fala osà so eà ati is oà judi ialà à e ess ioà situa osà ua doà
te eài i ioàesseàfe e o.àCla issaàTassi a ià ,àp.à àe àsuaào aàщu isdiç oàeàáti is oà
щudi ial:àli itesàdaàatuaç oàdoàщudi i ioàsituaàoàati is oàjudi ialà olo aàdaàsegui teà a ei a:

.àйstadosàU idosàdaàá i a.àNaàdis uss oàso eàoàe possa e toàdeàWilia à


Ma u à o oàjuizàdeàpaz,àdeàa o doà o àaàdesig aç oàfei aàpeloàe t oàp eside teà
щho àáda sà sà spe asàdeàdei a àseuà a go,àaà“up e aàCo te,àpo àde is oàdoàChiefà
Justi eàMa shall,àafi aà ue,àe o aàaà o eaç oàdeàMa u àfosseài e og el,àoà
asoà oà pode iaà se à julgadoà pelaà Co te.à Éà de la adaà i o stitu io al,à po ta to,àaà
seç oà àdoàJudi ia yàá tà–à ueàat i uíaà o pet iaào igi iaà à“up e aàCo teàpa aà
ta toà‐,àso àoàfu da e toàdeà ueàtalàdisposiç oàlegislati aàa plia aàsuaàatuaç oàpa aà
al àdoà ueàha iaàsidoàp e istoà o stitu io al e te,à oàá ti leàIII.àCo àisso,àpo àu aà
de isãoàjudi ialà oàjulga e toàdeàu à aso,àsu giuàoà o t oleàdeà o stitu io alidadeà
judi ialà e ie à o te‐a e i a o.à ‘efi a‐se:à aà Co stituiç oà oà o fe iaà
e p essa e teàesteàpode àdeà e is oàdosàt i u aisàso eàaàlegislaç oàdoàCo g esso.à
D ‐seài í io,àassi ,à sàdis uss esàso eàati is oàjudi ialàe àsolo‐a e i a o.

Pa aà elho à elu ida ,à oà asoà Ma u yà o eçouà e à . . ,à ua doà u à


нede alistaà ha adoà Wilia à Ma u ,à foià i di adoà o oà Mi ist oà deà Pazà oà dist itoà deà
Colu ia.à Ma u à eà uitosà out osà fo a à i di adosà pa aà postosà doà go e oà iadosà peloà
Co g essoà osàúlti osàdiasàdaàp esid iaàdeàщho àáda s,à asàestasà o eaç esàdeàúlti aà
668

ho aà u aà fo a à o etizadas.à Osà i di adosà fi a a à oà fo a à e possados.à Pa aà ta to,à


i o a a àu àatoàdoàCo g essoàeàe t a a à o àu àp o essoàpostula doàseusàe p egosà aà
“up e aàCo te.àáàpa ti àdeàe t o,àosà i ist osàde idi a à aseadosà oàa gu e toàdeàMa shallà
deà ueàaàCo stituiç oàe aàoàdi eitoàfu da e talàdaà aç oàeàu àatoàlegislati oà ueà epudiaàaà
Co stituiç oà ài lido.àй àsu a,à ua doàaàCo stituiç o,à ueà àoàdi eitoà i oàdaà aç oà
o flitaà o àu àatoàlegislati oà–àesteàatoà ài lido,àesta ele e doàoàpode àdeà e is oàjudi ialà
daà“up e aàCo te.à
ássi ,àoàfe e oàdoàati is oàjudi ialàte eài í ioà osàйstadosàU idosàh à asta teà
te po.àNoàe ta to,à oàB asil,ào o euà e à aisàta deà o àaàp o ulgaç oàdaàCo stituiç oà
нede alà deà .à áà dout i aà asilei aà i o ouà o à oà ad e toà daà Cн/ ,à ueà at a sà daà
o stataç oà daà o o iaà deà u aà a pliaç oà doà papelà políti o‐i stitu io alà doà “up e oà
T i u alà нede al,à te doà epe utidoà so e a ei aà aà atuaç oà dosà juízesà eà t i u aisà
o asio a doàaàe oluç oàdoàati is oàjudi ial.àN oà àta efaàf ilàdefi i àati is oàjudi ial,à asà
pode osà elho à e pli a à edia teà algu sà po tosà deà a o dage à aà falaà deà йli alà daà “il aà
‘a os,àpa aàoàauto ,àoàati is oàjudi ialàseàide tifi aàe ,àaoà e os,àt sà uest es,à uaisàseja à
elas:àoàe e í ioàdoà o t oleàdeà o stitu io alidade;àaàe ist iaàdeào iss esàlegislati asàeàoà
a te àdeà aguezaàeàa igüidadeàdoàDi eitoà ,àp.à .
Nasàpala asàdeà“il aà‘a osà ,àp.à :

Po àati is oàjudi ialàde e‐seàe te de àoàe e í ioàdaàfu ç oàju isdi io alàpa aàal à
dosàli itesài postosàpeloàp p ioào de a e toà ueài u e,ài stitu io al e te,àaoà
Pode à щudi i ioà faze à atua ,à esol e doà litígiosà deà feiç esà su jeti asà o flitoà deà
i te esses àeà o t o siasàju ídi asàdeà atu ezaào jeti aà o flitosà o ati os .

Cla issaà Tassi a ià ,à p.à à t azà suaà o epç oà so eà ati is oà judi ialà se doà
et atadoà o oà aà o figu aç oà deà u à Pode à щudi i ioà e estidoà deà sup e a ia,à o à
o pet iasà ueà oàlheàs oà e o he idasà o stitu io al e te .
ààààààààààààààáà pa ti à dessesà o eitosà pode osà dize à ueà oà ati is oà judi ialà seà efe eà aà u aà
postu aà doàpode àjudi i ioàpa aà al à dosà li itesà o stitu io ais.àйssesà a a te esà daà o aà
ealidadeà o stitu io alà osà olo a àdia teàdeàu à odeloàestatalàe à ue,àaà adaàdia,àoàPode à
щudi i ioàte àassu idoà aio ài po t iaàeàa plia doàsuaàatuaç o,àde ota doàout oàpesoà
desteàPode à aà l ssi aà ala çaàidealizadaàpo àMo tes uieuàeàadotadaàe àtodosàosàйstadosà
e igidosàso eàasà asesàdoàCo stitu io alis oàMode o.
669

áoà fala à deà ati is oà judi ial,à oà ueà seà est à aà efe i à à aà ult apassage à dasà li hasà
de a at iasà daà fu ç oà ju isdi io al,à e àdet i e toàp i ipal e teà daà fu ç oà legislati a,à
asàta ,àdaàfu ç oàad i ist ati aàe,àat à es o,àdaàfu ç oàdeàgo e o.àáào se iaàdaà
sepa aç oà dosà Pode esà i po ta,à de t eà di e sosà out osà o se t ios,à aà a ute ç oà dosà
g osàdoàPode àщudi i ioà osàli itesàdaàfu ç oàju isdi io alà ueàlheà à o fiadaàeàpa aà ujoà
e e í ioàfo a àest utu adosà ‘áMO“,à ,àp.à .
“eà aà ati idadeà ju isdi io alà de eà e o t a à suaà alidadeà aàfu da e taç oà de t oà
dasà alizasàdoàp p ioào de a e toàju ídi o,àe,àseàpo àout oàlado,àoàsiste aàatualàdeà o t oleà
deà o stitu io alidadeàpe iteàa plaà a ge àdeàatuaç oàaliadoà à at ia‐p i aàpostaà àsuaà
disposiç o,à ualàseja,à l usulasàa e tasàeàp i ípiosà o stitu io aisà ujaàt aduç oàpe ite àaà
aisà a plaà a iedadeà deà o otaç esà pa e eà la aà aà o lus oà deà ueà h à espaçoà pa aà aà
e pa s oà doà ati is oà judi ial,à dia teà dessaà o aà feiç oà doà Pode à щudi i io,à istoà à fato,à
de e osào se a àalgu asàdasà az es,àal àdosà oti osàdeào de àt i o‐ju ídi a.àà
Pa aàTassi a ià ,àp.à :

Deàfato,àati is oàjudi ialàeà o t oleàdeà o stitu io alidadeàs oà uest esà ueàest oà


o e tadas,à oà se tidoà deà ueà olo a à oà ati is oà judi ialà e à uest oà ta à
sig ifi aà olo a à oà e e í ioà daà ju isdiç oà à p o a.à áà uest oà à ueà h à u aà eiaà
e dadeà estaà afi aç o,à poisà so e teà eà possí elà o side ‐laà o etaà seà
o p ee didaà ueàestaàlegiti idadeàdaàju isdiç oà o stitu io alàd ‐seà osàte osà
deàu àefeti oà o t oleàdasàde is esàjudi iais,àistoà ,àseàasàate ç esàesta e à oltadasà
pa aàasà espostasàdadasàpeloàщudi i ioàeà oàape asàpa aà o p ee de àseàoàe e í ioà
doà o t oleà deà o stitu io alidadeà à oe e teà o à aà e ist iaà deà u à йstadoà
De o ti oàdeàDi eito .ààà

Co àefeito,àpa aàTassi a ià ,àp.à ,à te ‐seàu aà o epç oàdeàati is oàjudi ialà


ueà podeà se à assi à si tetizada:à o oà aà o figu aç oà deà u à Pode à щudi i ioà e estidoà deà
sup e a ia,à o à o pet iasà ueà oàlheàs oà e o he idasà o stitu io al e te .àй te deà
aàauto aà ueàoàfe e oàdoàati is oàjudi ialàde o euàdaàsup e a iaà o edidaàaoàjudi i io,à
ujasà o pet iasàe t apola àdeàtalàfo aàseuàpode ,à ausa doàu àp o le aàju ídi oà oà
o te toàso ialàeàpolíti oàdoàPaís,àeà ueà e essitaàse à e e tido.à
áàp ofesso aàTha àPog e i s hià ,àp.à àaoàt a alha à o àoàati is oàjudi ialà
o side aà ati istaàoàjuizà ueàa àuseàoàseuàpode àdeàfo aàaà e e àeà o testa àde is esàdosà
de aisàpode esàdoàestado;à àp o o a,àat a sàdeàsuasàde is es,àpolíti asàpú li as;à à oà
670

o side eà osà p i ípiosà daà oe iaà doà di eitoà eà daà segu a çaà ju ídi aà o oà li itesà à suaà
ati idade .
áàauto a,àtoda ia,àe pli aà POG‘йBIN“CрI,à ,àp.à :

N oà ue e osà suste ta à ueà osà t sà it iosà a i aà de a à se à p ee hidosà


si ulta ea e teàpa aà ueà oàide tifi ueàu à asoàdeàati is o.àU àjuizàpodeàse à
o side adoà ati istaà peloà e e í ioà e à g ausà dife e iadosà deà uais ue à destasà
atitudesà a i aà des itas.à Po ,à aà egaç oà deà ual ue à destasà atitudesà i pli a,à
segu doà ossaàdefi iç o,à ueàeleàsejaà o side adoàu àati ista.àIstoà ,àu àjuizà ueàseà
e useà aà e e e à seuà pode à deà peloà e osà u aà dasà fo asà a i a,à oà se à
o side ado,à esteàa tigo,àu àati ista .

àái da,à Pog e i s hià ,à p.à ,à p ossegueà afi a doà ueà oà ati is oà judi ialà
i pli aàe àto adaàdeàposiç oàpolíti a;àoàjuizàati istaàdefi e‐seà o oàu àage teàpolíti o .
Em um sentido geral, de acordo com Keenan Kmiec3 (2004), a partir da exploração de
pesquisas e estudos acerca dessa temática, podem ser enumeradas em cinco as principais
acepções que giram em torno da definição do termo: a) invalidação judicial de promulgação
legislativa de outros poderes4; b) processo de ignorar ou desrespeitar o precedente5; c) leis
sendo criadas por juizes nos tribunais6; d) incapacidade de utilizar adequadamente os canônes

3
KMIEC, Keenan D. The origin and current meanings of judicial review.Califórnia Law Reviw, vol. 92, 2004.
Disponível em: < http://scholarship.law.berkeley.edu/californialawreview/vol92/iss5/4/>. Acesso em 27 jul.
2016. Disponível em: < http://scholarship.law.berkeley.edu/californialawreview/vol92/iss5/4/>. Acesso em: 27
jul. 2016.
4
Na opinião de Kmiec, esta definição condiz com a observação da separação dos poderes. Nesse sentido tal ato
ocorre quando o tribunal intervém e declara inconstitucional, ou restringe a aplicação de um ato normativo
devidamente promulgado. Ocorre que o simples fato de o tribunal decidir pela invalidação ou pela restrição de
uma lei, não quer dizer que ele é ativista, o autor cita como exemplo, o caso de uma lei vir a estabelecer uma
religião, se o tribunal invalidar essa lei claramente inconstitucional, ninguém iria sugerir que ele havia se
envolvido em ativismo judicial, em outros casos quando a constituição não proíbe claramente/expressamente a
intervenção judicial em matérias políticas, dependerá muito da interpretação do órgão julgador do texto
constitucional.KMIEC, Keenan D. The origin and current meanings of judicial review.Califórnia Law Reviw, vol. 92,
2004. Disponível em: < http://scholarship.law.berkeley.edu/californialawreview/vol92/iss5/4/>. Acesso em: 27
jul. 2016.
5
Em resumo, esse conceito traz a violação a precedente, vertical ou horizontal. Vertical é quando o tribunal
inferior deve seguir as diretrizes alinhadas pelos precedentes formulados pelo tribunal superior, ao passo que,
horizontal é a observação pelo próprio tribunal dos precedentes emanados das suas próprias decisões em casos
semelhantes. Esta definição é debatida na medida em que stare decisis em si pode ser inconstitucional, se o
tribunal fizer uma leitura errada da Constituição. Se um precedente vai na direção oposta da Constituição, os
tribunais não tem a obrigação de segui-lo, devem antes de tudo respeitar os mandamentos constitucionais.
Enfim, os precedentes não são tidos como um elemento de comando inexorável, como intuitivo, podem ser
ignorados em alguns casos. O ativismo judicial nessa situaçãodeve ser considerado à luz do fato concreto. KMIEC,
Keenan D. The origin and current meanings of judicial review.Califórnia Law Reviw, vol. 92, 2004. Disponível em:
< http://scholarship.law.berkeley.edu/californialawreview/vol92/iss5/4/>. Acesso em: 27 jul. 2016.
6
Os órgãos judiciais ao interpretar a Constituição de forma criativa atribuem outro viés, o que se supõe que
estariam criando uma nova lei que se adéque ao caso em concreto. KMIEC, Keenan D. The origin and current
671

metodológicos de interpretação7; e) intenção do julgador em alcançar um resultado pré-


determinado por ele mesmo.8
Cotejando tudo que foi dito até aqui, pode-se afirmar, teoricamente, que o ativismo
consiste em uma atuação do órgão judicial que extrapola os limites pré-definidos- seja no
momento de uma interpretação mais extensiva do texto constitucional, para adequá-lo ao
caso concreto, seja em face do controle de constitucionalidade ou inconstitucionalidade de
uma norma, seja quando julga questões sobre Políticas sociais- de forma tal que suas decisões
passam a ter repercussões na esfera dos demais poderes. Nesse sentido, Ramos afirma que
[...]àe àu aà oção preliminar ativismo judicial, reporta-se a uma disfunção no exercício da
fu ç oàju isdi io al,àe àdet i e to,à otada e teàdaàfu ç oàlegislati aà[...] à ‘áMO“,à ,à
p. 107).
Dessa forma, o Judiciário acaba, por vezes, atuando ora como Legislativo, quando
potencializa o alcance de uma norma, designando acepções que não se encaixam com a
literalidade da lei, com o intuito de adequá-la a uma situação ainda não prevista, ora como
Executivo, quando impõe ao Estado a implementação de Políticas públicas estabelecidas pela
Constituição ou quando determina a criação de uma nova Política pública.
Dessa forma, diante da omissão do Legislativo e do Executivo em efetivar direitos que
não podem mais ficar a mercê da boa vontade dos referidos órgãos políticos, foi atribuído aos
juízes e aos tribunais, na sociedade contemporânea, o papel constitucional de romper o
silêncio que paira sobre as normas da Constituição, e assim a sociedade tem a possibilidade
de ingressar com demandas que objetivam alcançar cada vez mais respostas efetivas e
adequadas às questões de cunho social, político e ideológico.

meanings of judicial review. Califórnia Law Reviw, vol. 92, 2004. Disponível em: <
http://scholarship.law.berkeley.edu/californialawreview/vol92/iss5/4/>. Acesso em: 27 jul. 2016.
7
Ativismo para essa corrente significa: a aplicação de forma equivocada dos instrumentos interpretativos postos
à disposição para extrair o exato sentido do texto constitucional, os instrumentos seriam o juiz levar em conta a
finalidade, o desenvolvimento histórico da lei, a dout i aà eà et .à [...] Embora haja alguma linha de base do
consenso, estudiosos e juristas não estão de acordo sobre o que constitui a maneira "apropriada" para
i te p eta àaàCo stituiç o .àKMIEC, Keenan D. The origin and current meanings of judicial review. Califórnia Law
Reviw, vol. 92, 2004. Disponível em: < http://scholarship.law.berkeley.edu/californialawreview/vol92/iss5/4/>.
Acesso em: 27 jul. 2016.
8
Nessa espécie de ativismo há intencionalidade, os valores, a vontade do julgador é considerada para prolatar
determinada sentença. Aqui se sobressai à dificuldade em visualizar e apontar que determinada decisão foi
ativista nesse sentido, pois há uma complexidade em detectar os elementos subjetivos utilizados pelo
magistrado em determinado caso concreto. KMIEC, Keenan D. The origin and current meanings of judicial review.
Califórnia Law Reviw, vol. 92, 2004. Disponível em: <
http://scholarship.law.berkeley.edu/californialawreview/vol92/iss5/4/>. Acesso em: 27 jul. 2016.
672

2 DECISÕES QUE PODEM SER CONSIDERADAS ATIVISTAS

Para dar ao trabalho maior consistência, é necessário exemplificar, para tanto, citam-
se algumas decisões julgadas pelo STF: menciona-se em primeiro lugar, a edição dos
Enunciados nº 11 e nº 14 da Súmula Vinculante9 que tratam da disciplina e limitação do uso
de algemas e do acesso ao procedimento investigatório pelo defensor, respectivamente. A
aprovação desses verbetes refletem o "papel emergente da Suprema Corte como último
estágio da garantia das liberdades fundamentais10.
Em relação à aprovação que disciplina o uso de algemas, identificou-se a preocupação
com o princípio da dignidade humana, onde restou patente diante da análise dos debates
acerca da aprovação do texto, especificamente ao enunciado nº 14, o Ministro Celso de Mello,
em seu voto pela aprovação do texto, evidencia a preocupação na limitação do poder do
Estado a fim de coibir potenciais abusos a serem cometidos na esfera penal. Asssim,
destacam-se as palavras do Ministro Celso de Mello:

(...) o Estado não pode ignorar nem transgredir o regime de direitos e garantias
fundamentais que a Constituição da República assegura a qualquer pessoa sob
investigação criminal ou processo penal. Ninguém ignora, exceto os cultores e
executores do arbítrio, do abuso de poder e dos excessos funcionais, que o processo
penal qualifica-se como instrumento de salvaguarda das liberdades individuais. Daí
porque se impõe, às autoridades públicas, neste País, notadamente àquelas que
intervêm no procedimento de investigação penal ou nos processos penais, o dever
de respeitar, de observar e de não transgredir limitações que o ordenamento
normativo faz incidir sobre opoder do Estado. (...) O fascínio do mistério e o culto ao
segredo não devem estimular, no âmbito de uma sociedade livre, práticas estatais
cuja realização, notadamente na esfera penal, culmine em ofensa aos direitos
básicos daquele que é submetido, pelos órgãos e agentes do Poder, a atos de
persecução criminal (...)11

9
Súmula vinculante nº 11, STF: "Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga
ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a
excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade
e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do estado";
Súmula vinculante nº 14, STF: "É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos
elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com
competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa".
10
Voto do Min. Menezes Direito, PSV 1/DF, aprovação da Súmula Vinculante nº 14, Plenário 02.02.2009, DJ
27.03.2009, DJe 59/2009.
11
Voto do Min. Celso de Mello, PSV 1/DF, aprovação da Súmula Vinculante nº 14, Plenário 02.02.2009, DJ
27.03.2009, DJe 59/2009.
673

Outra questão importante, que repercutiu na comunidade jurídica foi o


reconhecimento da derrogação parcial do art. 5º, inciso LXVII da Constituição Federal,
especificamente da prisão civil por dívida do depositário infiel12. Nessa questão, o STF
reconhece a força cogente da Convenção Americana sobre Direitos Humanos no
ordenamento normativo brasileiro, pela adesão do Brasil ao Pacto de São José da Costa Rica.
Sustentou a Corte Suprema nacional naquela oportunidade que cabia a ela extrair das
declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, a sua máxima
eficácia, "em ordem de tornar possível o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais a sistemas
institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de a
liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade humana tornarem-seàpala asà s 13.

De ressaltar que, na asserção de que o Poder Judiciário constitui o instrumento


concretizador das liberdades civis, das franquias constitucionais e dos direitos fundamentais
assegurados pelos tratados e convenções internacionais subscritos pelo Brasil. Essa missão,
que foi confiada aos juízes e Tribunais, qualifica-se como umas das mais expressivas funções
políticas do Poder Judiciário. Nessa toada, cabe ao Magistrado, o dever de atuar como
instrumento da Constituição - e garante de sua supremacia - na defesa incondicional e na
garantia real das liberdades fundamentais da pessoa humana, conferindo, ainda, efetividade
aos direitos fundados em tratados internacionais de que o Brasil seja parte.
No mesmo contexto de limitar o poder punitivo estatal, vale registrar a aplicação do
princípio da insignificância aos agentes de delitos contra o patrimônio. A jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal é pacífica no sentido que tal princípio de política criminal qualifica-
seà o oà "fato à deà des a a te izaç oà ate ialà daà tipi idadeà pe al 14. Ressaltando os
postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal, o STF
estabeleceu vetores, ou seja, verdadeiros standards determinantes da aplicação do princípio
da insignificância: "(a) a mínima ofensividade da conduta do agente; (b) a nenhuma
periculosidade social da ação; (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento;
e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada"15. O cerne de tal construção é, uma vez

12
Por todos: STF, HC nº 87.585/TO, DJU 25.06.2009 e RE nº 349.703/RS, DJU 05.06.2009.
13
Voto Min. Celso de Mello, STF, HC nº 87.585/TO, DJU 25.06.2009.
14
Por todos: STF, HC 98152/MG, DJU 05.06.2009.
15
Ibiden.
674

mais, o cidadão alvo da persecução criminal, veja-se, conforme relato do Ministro Celso de
Mello na decisão do HC 98152/MG:

(...) O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a


privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificarão
ua doàest ita e teà e ess iasàaàpŕop iaàp oteç oàdasàpessoas,àdaàso iedadeàeàdeà
outros ben jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamentenaqueles casos em que
os valores penalmente tutelados se exponham a dano - efetivo ou potencial -
causado por comportamento impregnado de significativa lesividade 16.

Também exemplo de atuação proativa do STF em prol das garantias constitucionais do


cidadão é a disciplina dos limites de atuação das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI's)
através de sua jurisprudência. Além de estabelecer vetores e limites de atuação, os arestos
pretorianos evidenciam novamente a preocupação com o poder investigativo parlamentar
que, sem controle, coloca em perigo a dignidade humana do cidadão alvo da investigação.
Especificamente sobre esse tema, ressalta-se a maciça jurisprudência da Corte suprema
acerca do reconhecimento do direito ao silêncio de investigados ou testemunhas em
depoimentos em Comissões Parlamentares de Inquérito.
Ainda, menciona-se a decisão que causou grande polêmica, no caso a discussão da
interrupção de gestação de fetos anencefálicos como situação atípica em relação ao delito de
aborto, conforme ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF nº
54), pediu-se a interpretação conforme a Constituição dos dispositivos do Código Penal que
tipificam o crime de aborto, para declarar sua não-incidência naquela situação de inviabilidade
fetal. O Supremo Tribunal Federal conheceu a ação, determinando a suspensão de todos os
processo criminais relativos a interrupção de gravidez no caso de anencefalia. Ressalta-se que
essa decisão gerou grande discussão na comunidade acadêmica, sendo considerada por
muitos totalmente ativista, pois considera-se que o STF foi além do exposto na legislação
atual, fazendo às vezes de legislador.

16
STF, HC 98152/MG, DJU 05.06.2009.
675

CONCLU“ÃO

Éà ot ioà ueà oà Pode à щudi i ioà h à uitoà e à seà desta a doà eà au e ta doà suaà
atuaç oàju isdi io alàpe iti doàu aàg a deà a iedadeàdeài te p etaç es.àOàt a alhoàa o douà
aàas e s oàdoàPode àщudi i ioàeàseuàP otago is o,à e à o oàt ou eàde is esàdoà“Tнà ueà
pode à se à o side adasà ati istasà aà esfe aà pe al.à De is esà essasà ueà epe uti a à
so e a ei aà aàso iedadeà o oàu àtodo.
àáàpa ti àdaàa o dage àdoàte to,àpode osàpe e e àaàp eo upaç oà o u àdosàju istasà
sà íti asà ati e tesà aoà espaçoà deà olu ta is osà eà de is esà desp o idasà deà a gaà
he e uti aàeà o ati a,àoà ueàdes atu aàaàfu ç oàdoàdi eitoà o oàu àsiste aà o ati oà
eà olo aàoàpode àjudi i ioàe àu aàposiç oàati ista,àdese ha doàosà u osàdaàso iedade,àpa aà
al àdasàde is esàto adasàpeloàpode àlegislati o,àoà ueàde eàse ào se adoà o àoào jeti oà
deàe ita àe essosàeàf agiliza àaàde o a ia,àpoisà osàpa e eà istali aàaà o lus oàdeà ue,àoà
te e oà àf tilàpa aàoàati is oàjudi ial.
Portanto, faz-se mister que causas justificadoras de eventuais práticas de ativismo
judicial sejam cuidadosamente analisadas, para que não sejam utilizadas pelo Poder Judiciário
como um instrumento nocivo às necessidades dos cidadão sou ao interesse do Estado, o que
ocorre quando os juízes ou os tribunais, com a sua livre e arbitrária convicção, ultrapassam as
racionalidades Políticas e jurídicas, atuando ao seu bel-prazer, gerando insegurança jurídica e
deslegitimando a Política.

‘йнй‘ÊNCIá“

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito.: o triunfo


tardio do direto constitucional no Brasil. In: QUARESMA, Regina et. alli(coord.).
Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense. 2009. p. 83/84.

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676

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677

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA: A BUSCA PELA HUMANIZAÇÃO DO PROCESSO PENAL


BRASILEIRO E SEUS REFLEXOS NO SISTEMA PRISIONAL

Luana Carolina Bonfada1


Patrícia Borges Moura2

RESUMO: A entrada em vigor da Lei nº 12.403/2011, no que tange à aplicação de medidas


cautelares, de coerção pessoal, como alternativas à prisão preventiva, não parece ter atingido
tal propósito. Perceptível essa negativa, especialmente quando se vislumbram os índices da
população carcerária brasileira, em que se constata a massiva utilização da prisão cautelar.
Nesse contexto, o presente artigo se propôs a analisar o papel da audiência de custódia que,
embora ainda sem regulamentação na legislação infraconstitucional, tem sido implantada em
vários estados do Brasil, bem como no Distrito Federal, em razão da Resolução nº 213/2015,
do Conselho Nacional de Justiça, num enfoque especial de sua importância para a
humanização do sistema processual penal brasileiro e seus impactos no que tange à vida no
cárcere.

Palavras-chave: Sistema Prisional Brasileiro; Medidas Cautelares de Coerção Pessoal;


Audiência de Custódia.

1 INTRODUÇÃO

A primordial justificativa para o tema do presente estudo é a verificação das benesses


que a audiência de custódia poderá trazer ao sistema processual penal brasileiro e ao sistema
carcerário.
Considera-se importante que, ao compreender os fundamentos que sustentam
legalmente essa medida, e perceber sua aplicabilidade, entenda-se o porquê da prisão preventiva,
que seria uma medida excepcional, tornar-se precípua, tendo em vista as demais medidas
alternativas à prisão, incorporadas ao sistema processual penal brasileiro com a Lei nº
12.403/2011. Buscando contemplar a temática de modo mais abrangente, também será analisado
o procedimento para a implementação da audiência de custódia, como instituto jurídico em prol
dos direitos fundamentais.
Por conseguinte, considerando a preocupante problemática que parcela significativa dos
presídios brasileiros enfrenta na contemporaneidade, entre os quais se destaca a superlotação
dos estabelecimentos prisionais, é essencial que se ofereça uma proposta inovadora que, acima
de tudo, vise o respeito aos direitos humanos dos apenados.

1
Aluna do Curso de Graduação em Direito, lcbonfada@gmail.com.
2
Professora do Curso de Graduação da Unijuí, Mestre em Direito, Especialista em Direito Público,
pmoura@unijui.edu.br.
678

Para tanto, faz-se necessário o aprofundamento sobre a análise da Resolução Normativa


nº 213/2015, editada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 15 de dezembro de 2015, a qual
impõe a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo máximo de 24 (vinte e
quatro) horas (principal finalidade da audiência de custódia), que está prevista inclusive na
Convenção Americana de Direitos Humanas (Pacto San José da Costa Rica) e no Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos, dos quais o Brasil é signatário.
Nesse contexto, propõe-se a estudar as benesses agregadas ao sistema processual penal
brasileiro por meio do aludido instituto, verificando suas relações com os direitos fundamentais
daqueles que vivem no cárcere.

2 DESENVOLVIMENTO

Sabendo-se da triste realidade em que se encontra o sistema penitenciário brasileiro,


é de suma importância que se aprofundem os estudos acerca de possibilidades que poderiam
tornar a vida no cárcere mais digna e compatível com os direitos fundamentais. De outra
banda, alternativas para reduzir o número de prisões desnecessárias também são essenciais,
além de verificar a legalidade das prisões cautelares e prevenir o uso da tortura policial em
proteção à integridade física das pessoas privadas de liberdade.
Antes mesmo de se ater à explanação específica sobre audiência de custódia, tema
deste trabalho, é fundamental que se entenda o que é, e como surgiu o estado de coisas
inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro. Pois bem.
O estado de coisas inconstitucional, segundo Dirley da Cunha Junior (2015), tem
origem nas decisões da Corte Constitucional Colombiana (CCC), diante da constatação de
violações generalizadas, contínuas e sistemáticas de direitos fundamentais. Tem por
finalidade a construção de soluções estruturais voltadas à superação desse lamentável
quadro de violação massiva de direitos das populações vulneráveis em face das omissões do
poder público.
Complementa Cunha Junior (2015) que o caso de coisas inconstitucional colombiano
adveio de uma demanda movida por diversos professores que tiveram seus direitos
previdenciários violados. E, no Brasil, o estado de coisas inconstitucional alegado foi do
sistema penitenciário.
679

Conforme notícia divulgada pelo Conselho Nacional de Justiça, em junho de 2014, a


população carcerária brasileira chegava a 711.463 pessoas, considerando presos provisórios
e aqueles que se encontravam em prisão domiciliar. Afirma a pesquisa que diante da utilização
da prisão domiciliar, a porcentagem de presos provisórios (sem condenação penal transitada
em julgado) passou de 41% para 32%. Mesmo assim, os números são assustadores, quando
se recorda do caráter excepcional da prisão preventiva, diante da entrada em vigor da Lei nº
12.403, em junho de 2011.
Ainda, com base nos dados (CNJ, 2014), verifica-se que o Brasil possuía, à época da
pesquisa, um déficit de aproximadamente 206.307 vagas e de 354.244 vagas, quando
computada a prisão domiciliar. Assim sendo, segundo informações do Centro Internacional de
Estudos Prisionais (ICPS), o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo,
ultrapassando a Rússia, que possuía, em 2014, 337.991 presos, incluindo aqueles em prisão
domiciliar.
O que se percebe, de forma clara, é a utilização em massa da prisão preventiva. E, com
o propósito não apenas de reduzir esses números, mas também de se buscar melhores
condições estruturais, que visem o respeito aos direitos fundamentais dos presos, e que,
evidentemente caem na inércia diante de ações e omissões dos Poderes Públicos da União,
dos Estados e do Distrito Federal, é que foi introduzida a realização da Audiência de Custódia,
ainda que não regulamentada pela legislação processual penal brasileira, mas que está em
trâmite, em razão da Resolução n.º 213/2015, do CNJ.
Segundo Moura (2016), considerando-se a realidade caótica dos estabelecimentos
prisionais do Brasil, que apresenta não só problemas estruturais, entre os quais podem ser
citadas as condições insalubres e desumanas em que se encontram os encarcerados, somados
aos casos de tortura e de maus-tratos a que ficam expostos, a medida deve também ser
considerada dentre as políticas públicas de segurança, a partir de uma perspectiva de
promover garantias para todos, e não só numa perspectiva individualista e seletiva. O enfoque
é isualiza àaàsegu a çaàpú li aà o oàu àdi eitoàdeàtodosàe,àpa aàta to,à ài po ta teà te àosà
olhosà oltados àpa aàosàt oà eglige iadosàa ie tesàp isio ais.
Outrossim, cabe ressaltar os inúmeros casos de motins e rebeliões que já aconteceram
nas casas prisionais brasileiras. Exemplo é o ocorrido no ano de 2013 no Complexo
680

Penitenciário de Pedrinhas no Maranhão, que, em consequência de motim, desencadeou


inúmeros atos de violência.
Parta Daniel Mello (2016), em notícia divulgada em março de 2016, apesar de
decorridos dois anos desse ponto de inflexão da história de Pedrinhas, mesmo que reduzido
o número de assassinatos, o quadro de tortura e maus-tratos generalizado ainda se mantém.
Percebe-se, dessa forma, que a superlotação dos presídios é um fator influente nas
práticas prisionais conflituosas. Com esse intuito, dentre os demais já citados, é que, em
setembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal deferiu, liminarmente, em apreciação à
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 347/DF, o Estado de Coisas
Inconstitucional (ECI) do sistema carcerário brasileiro. A ação foi ajuizada pelo PSOL – Partido
“o ialis oà eà эi e dade,à ujaà a gu e taç oà foià justa e teà oà estadoà deà oisasà
i o stitu io al àdoàsiste aàpe ite i ioà asilei o.à B‘á“Iэ,à .
Dentre os fundamentos da APF 347/DF (BRASIL, 2015), restou elencado que:
[...] a superlotação e as condições degradantes do sistema prisional configuram o
cenário fático incompatível com a Constituição Federal, presente a ofensa a diversos
preceitos fundamentais consideradas a dignidade da pessoa humana, a vedação de
tortura e de tratamento desumano, o direito de acesso à Justiça e os direitos sociais
à saúde, educação, trabalho e segurança dos presos.

Da mesma maneira, conforme Moura (2016), foi destacado que a União não estaria
repassando aos Estados recursos do FUNPEN – Fundo Penitenciário Nacional -, apesar de
disponíveis e necessários à melhoria do quadro. Verifica-se, então, que mesmo prevista em
pactos internacionais dos quais o Brasil é signatário, a audiência de custódia não vinha sendo
observada pelo Poder Judiciário.
O que se nota, finalmente, é que o estado de coisas inconstitucional do sistema
penitenciário brasileiro serviu de preceito para a impetração da APF 347/2016 e,
consequentemente, para destacar alguns pontos já previstos na legislação processual penal
brasileira. Exemplo disso são as medidas cautelares diversas ao cárcere que restam elencadas
no artigo 319, do Código de Processo Penal brasileiro, que, infelizmente, apesar de instituídos
com a alteração legislativa de 2011, ainda são pouco usadas, em comparação com a prisão
preventiva.
Digno de nota, como referido, que apesar de ainda não prevista pela lei processual
penal brasileira, a audiência de custódia está conjecturada em pactos internacionais
devidamente ratificados pelo Brasil.
681

Primeiramente, cabe aludir acerca de tais tratados, que a Convenção Americana de


Direitos Humanos (CADH), também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, foi
assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em 22 de
novembro de 1969, na cidade de San José, na Costa Rica, com base em informações da
Presidência da República (BRASIL, 2015).
O Brasil ratificou a CADH através do Decreto Legislativo nº 27, de 28 de maio de 1992,
e a promulgou pelo Decreto Executivo nº 678, de 6 de novembro de 1992, assumindo a
obrigação internacional de segurar o seu cumprimento, a ela vinculando-se, conforme Nereu
Giacomolli (apud NUNES; TÓPOR, 2015). Impõe, portanto, o artigo 7.5, do referido Pacto:

[...] toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença
de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o
direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo
de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que
assegurem o seu comparecimento em juízo.

No mesmo sentido, o artigo 9.3 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos,
aduz que:

[...] qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser
conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei
a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser
posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não
deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias
que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os
atos do processo e, se for necessário, para a execução da sentença.

Assinala-se, então, que o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, apesar de
ter sido aprovado em 1966, entrou em vigor apenas dez anos depois, em 1976, tendo em vista
que somente nesta data atingiu o número necessário de assinaturas para tanto, com base no
que aduz Flávia Piovesan (apud NUNES; TÓPOR, 2015). Nesse viés, destaca-se que o Brasil
ratificou o referido pacto através do Decreto Legislativo nº 226, de 12 de dezembro de 1992,
e o promulgou pelo Decreto Executivo nº 592, de 6 de julho de 1992.
Por conseguinte, o que se verifica é a precisão considerável da realização da audiência
de custódia em todas as Comarcas do território brasileiro. Primeiro, porque, apesar de não
prevista em norma infraconstitucional, está elencada em tratados internacionais de que o
Brasil é subscritor e, mesmo assim, não os cumpre de forma integral. E segundo, porque é
682

evidente a precariedade em que se encontra o sistema carcerário brasileiro, o qual necessita,


de forma gritante, de real valoração dos direitos fundamentais dos recolhidos, bem como,
consequentemente, de melhorias estruturais.
Nesse viés, em razão do reconhecimento, ainda que em caráter liminar, do chamado
Estado de Coisas Inconstitucional do Sistema Penitenciário brasileiro, é que foram traçados os
objetivos da Resolução Normativa nº 213/2015, do CNJ, dentre os quais se verifica a
necessidade da realização da audiência de custódia. Isso porque, quando se vê o indigno
estado em que se encontra o elevado número de encarcerados brasileiros na atualidade, é
inevitável o questionamento acerca de como melhorá-lo.
Primeiramente, é fundamental que se analise do que se trata, de fato, a audiência de
custódia. É, nada mais nada menos, que o contato imediato (ou melhor, em até 24 horas a
contar da comunicação do flagrante ao juiz) do preso em flagrante com a autoridade judiciária,
Ministério Público, Defensoria Pública ou advogado do flagrado para que, no ato, já se
verifique a necessidade ou não da manutenção da custódia cautelar, a possibilidade de
substituí-la pela liberdade provisória ou por qualquer outra medida cautelar de coerção
pessoal, bem como a fim de verificar eventual caso de sujeição do preso a atos de violência
policial quando da prisão.
Nesse sentido, Neemias Moretti Prudente (REVISTA SÍNTESE 93, 2015, p. 11) refere
que a audiência de custódia consiste em garantir o contato pessoal da pessoa presa com um
juiz após sua prisão em flagrante. O objetivo de tal medida, segundo ele, que tem respaldo
em normas internacionais de direitos humanos, é assegurar a integridade física, evitar abusos
e violações aos direitos humanos dos presos, além de desafogar o sistema prisional, garantir
o efetivo controle judicial das prisões e reforçar medidas alternativas ao encarceramento
provisório.
Complementando, Nunes e Tópor (2015) referem que o objetivo maior da audiência
de custódia é estabelecer a condução do preso à presença da autoridade judiciária,
fisicamente, logo após a prisão em flagrante, sendo que o mero encaminhamento do auto de
prisão em flagrante para a autoridade judicial não cumpre com a função da garantia do efetivo
controle judicial das prisões cautelares.
Aqui se tem um ponto que merece destaque: o encaminhamento do auto de prisão
em flagrante à autoridade judiciária. Bem se sabe que é esse o procedimento que ocorre, no
683

mais das vezes, diante de uma prisão em flagrante. Então, indaga-se: será que o simples
encaminhamento do auto da prisão em flagrante, ou seja, uma folha de papel contendo dados
mínimos do preso à autoridade judiciária é capaz de fazer com que o magistrado decida acerca
do melhor caminho que deve ser proporcionado àquele preso? É justamente essa a questão
que se procurará responder ao longo do presente tópico.
Ainda, com base no que ensinam Lopes Jr. e Morais da Rosa (apud NUNES; TÓPOR,
2015, p. 59), a audiência de custódia deve seguir os seguintes passos:

[...] - A prisão é legal, isto é, era hipótese de flagrante?


- Se não, relaxa-se. 2.1) Relaxada a prisão o Ministério Público pode requerer a prisão
preventiva ou a aplicação de medidas cautelares;
- Sustentando-se as razões do flagrante; 3.1) O Ministério Público se manifesta pelo
requerimento da prisão preventiva ou aplicação de cautelares ou acolhe as razões
formuladas eventualmente pela autoridade policial; 3.2) A defesa de manifesta
sobre os pedidos formulados pelo Ministério Público. Se não houve pedido por parte
do Ministério Público, o juiz não pode decretá-lo de ofício, já que não existe processo
(CPP, artigo 311).
- O magistrado decide- fundamentadamente- sobre a aplicação das medidas
cautelares diversas ou, sendo elas insuficientes e inadequadas, pela excepcional
decretação da prisão preventiva.

Nesse viés, uma vez que já plausível o conceito da audiência de custódia bem como ela
deve ser procedida é que se adentra em suas finalidades. Segundo Tópor e Nunes (2015), a
audiência de custódia possui duas finalidades: evitar prisões ilegais e prevenir maus
tratos/tortura, além de garantir os princípios do contraditório e da ampla defesa durante o
procedimento cautelar.
Considerando tais objetivos, percebe-se que na audiência de custódia prevalece o
intuito de superar a fronteira do papel, estabelecida através do encaminhamento do auto de
prisão em flagrante, haja vista a previsão imediata do encontro entre detido e juiz. Além disso,
outro propósito é evitar prisões ilegais, arbitrárias ou, por algum motivo, desnecessárias,
tendo em vista que o processo penal pode agir na contenção do poder punitivo, conforme
corroboram Tópor e Nunes (2015).
Não bastasse isso, tal contato imediato do flagrado com a autoridade judiciária está
relacionado com a prevenção de tortura policial, assegurando, pois, a efetivação do direito, a
integridade pessoal das pessoas privadas de liberdade, como colacionam Tópor e Nunes
(2015).
684

Nesse sentido, inclusive, segundo os referidos autores (TÓPOR; NUNES, 2015), decidiu
a Corte Internacional de Direitos Humanos que a apresentação imediata ao juiz é essencial
[...]àpa aàp oteç oàdoàdi eitoà àli e dadeàpessoalàeàpa aàouto ga àp oteç oàaàout os direitos,
o oàaà idaàeàaài teg idadeàfísi a .
Outrossim, no que tange aos princípios do contraditório e da ampla defesa, além de
estarem previstos na Constituição Federal brasileira, são inerentes ao sistema acusatório de
garantias. Portanto, é indiscutível a relevância da audiência de custódia também para a
valorização de tais princípios, uma vez que com o contato imediato entre preso e autoridade
judiciária se terá a possibilidade de analisar as razões de fato para manter ou não a
segregação.
Ademais, com base no sustentado por Caio Paiva (apud OLIVEIRA; MESSIAS, 2016, p.
124), a principal e mais elementar finalidade da implantação da audiência de custódia no Brasil
é ajustar o processo penal brasileiro aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos.
Percebe-se a importância do sublinhado por Paiva, uma vez que de nada adianta o país ser
subscritor de Tratados Internacionais e não utilizar as normas neles previstas.
Outro aspecto que Morais da Rosa (apud OLIVEIRA; MESSIAS, 2016, p. 125) considera
relevante acerca da audiência de custódia é a análise dos custos da condenação de um
acusado. Segundo ele, um processo judicial demanda a existência de estrutura de investigação
(Polícia Civil e Ministério Público) e também do processo judicial, restringindo-se ao Poder
Judiciário (Tribunais, Juízes e Ministério Público, Defensoria, servidores, etc.).
Além disso, deve-se considerar a estrutura carcerária necessária para que os presos se
mantenham em condições mínimas de sobrevivência. Tendo em vista, então, os elevados
gastos que advém de uma condenação, bem como a péssima infraestrutura em que se
encontra o sistema prisional brasileiro nos dias atuais, além da descrença acerca de
ressocialização do segregado com sua prisão, não seria útil que o Estado utilizasse destes
investimentos para propor medidas alternativas, que realmente visassem à reinserção do
segregado ao meio social?
Portanto, a audiência de custódia é um instrumento importantíssimo para a
humanização do processo penal, uma vez que possibilita um diagnóstico mais precioso de
eventuais práticas extorsivas, abusos e violências, além de estabelecer um contraditório
efetivo entre as partes perante o juiz, antes de ele decidir se: (1) relaxa o flagrante, diante do
685

vício de forma; (2) concede a liberdade, pura e simples, ou vinculada ao cumprimento de uma
ou mais medidas cautelares; (3) mantém a prisão, convertendo o flagrante em preventiva,
quando não se mostrarem cabíveis outras medidas, revelando-se o caráter excepcional das
prisões provisórias, conforme preconizam Tópor e Nunes (2015).
Haja vista o já ilustrado, especialmente no que diz respeito à prisão em flagrante, a
alegação do Estado de Coisas Inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro e as
irregularidades que perduram em meio às decretações de prisões provisórias é que se
concluirá o referido estudo, buscando apontar os resultados que a audiência de custódia vem
trazendo tanto para a política criminal contemporânea do Brasil, como para as políticas
públicas de segurança.
Nesse viés, entende-se relevante destacar índices apontados pelo Conselho Nacional
de Justiça brasileiro (CNJ, 2017) no que tange à realização da audiência de custódia em todo
território nacional, bem como, a partir das solenidades já efetivadas, ter conhecimento dos
percentuais de conversão em prisão preventiva ou concessão da liberdade provisória: até o
mês de janeiro do presente ano, foram realizadas em todo território nacional, nos estados os
quais já foi implantada a audiência de custódia, 186.455 (cento e oitenta e seis mil,
quatrocentos e cinquenta e cinco) solenidades, sendo que destas 85.568 (oitenta e cinco mil,
quinhentos e sessenta e oito), ou seja, equivalente a 45,89% resultaram em liberdade; ainda,
das mesmas audiências, 100.887 (cem mil, oitocentos e oitenta e sete), equivalente a 54,11%
foram convertidas em prisão preventiva. Outrossim, em 8.279 (oito mil, duzentos e setenta e
nove, correspondente a 4,68%, houve alegação de violência no ato da prisão e em 20.519
(vinte mil, quinhentos e dezenove) casos, equivalente a 11% houve encaminhamento do preso
em flagrante a atendimento social/assistencial.
O que se verifica, portanto, é que apesar de ainda ser elevado o número de prisões em
flagrantes, e consequentemente de realização de audiência de custódia, significativa parcela
destas, em alguns estados brasileiros, tiveram outro destino que não a conversão em prisão
preventiva, diante da realização de tal solenidade. Talvez a justificativa para esses resultados
possa partir da constatação de que o contato imediato do detido com a autoridade judiciária
faz com que esta tenha melhores condições de decidir, casuisticamente, qual será o destino
do preso, uma vez que o envio tão somente do auto de prisão em flagrante muitas vezes não
demonstra a real situação, tanto do flagrado, quanto das condições em que se deu a prisão.
686

Conforme Moura (2016), ainda é cedo para se poder fazer uma análise qualitativa
desses resultados, até porque, para tanto, haveria também a necessidade de que se pudesse
a alisa à oà a tesà eà oà depois ,à e assim, comparativamente, fosse possível afirmar que a
audiência de custódia de fato contribui para a redução da população carcerária no Brasil. O
que importa é que ela seja massivamente implantada, a fim de possibilitar ao juiz, ante à
apreciação de um auto de flagrante, melhores condições de analisar casuisticamente qual a
melhor medida a ser adotada para o indivíduo preso, pensando-se no que se seguirá à prisão
em flagrante.
Portanto, pode-se concluir que a audiência de custódia realmente é um importante
passo para que se atinja a humanização do processo penal brasileiro. Embora se esteja longe
deà esol e à aà p o le ti aà doà ha adoà йstadoà deà Coisasà I o stitu io al à doà siste aà
penitenciário brasileiro, ao menos se busca implantar uma medida que possa contribuir para
minimizar suas mazelas, já que um de seus maiores problemas é atingido, qual seja o da
superlotação dos presídios.
Diante dos resultados já concretizados com sua realização, sem sequer estar prevista
em lei infraconstitucional, evidencia-se que tal ato pode ser um marco na melhor utilização
das medidas cautelares diversas ao cárcere e, até mesmo das prisões preventivas, objetivo
previsto na Lei nº 12.403/2011, mas que infelizmente ainda não se alcançou plenamente.
Destaca-se que a audiência de custódia tem muito a acrescentar, tanto para o sistema
processual penal brasileiro, quanto para o sistema penitenciário do país. Verifica-se a
necessidade de sua utilização tanto para contribuir para uma política criminal alternativa,
como para garantir direitos fundamentais do encarcerado e da sociedade.
E foi com esse intuito que se abordou a audiência de custódia, desde seus fundamentos
até a necessidade de sua realização, uma vez que ao longo do desenvolvimento da pesquisa
notou-se que, de fato, este é um meio a ser utilizado que pode trazer significativas melhoras
ao sistema processual penal brasileiro, e ao sistema penitenciário. Outrossim, se verificou a
estrita relação existente entre os fundamentos da audiência de custódia e as medidas
cautelares previstas na Lei 12.403/2011, uma vez que o instituto veio a satisfazer os propósitos
da citada lei, ou seja, fazer da prisão cautelar uma medida excepcional e não precípua.
Portanto, o contato do detido após a comunicação da prisão em flagrante com a
autoridade judiciária, dentro do prazo de 24 (vinte e quatro) horas, certamente tem o condão
687

de se fazer uma melhor utilização das medidas cautelares, da prisão preventiva e até mesmo
da concessão de liberdade provisória, uma vez que o contato pessoal possibilita uma melhor
análise das reais condições do preso. Diante disso, verifica-se a relevância do estudo em
comento, inclusive da necessidade de sua aplicação nas mais diversas comarcas do Estado.
Talvez com isso se tenha um sistema penitenciário mais digno, em que o preso tenha
garantido direitos fundamentais. E, da mesma forma, possivelmente se possa ter um resultado
positivo quanto àqueles que apesar de realizada a audiência de custódia, necessária se faz sua
segregação.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A dignidade da pessoa humana, conforme previsto na Constituição Brasileira de 1988,


pressupõe, dentre outros requisitos, o bem-estar de todos os indivíduos da sociedade. Nesse
contexto, e pensando-se naqueles que vivem no microssistema social do cárcere, a
propositura de medidas alternativas à prisão provisória é um avanço para o sistema processual
penal brasileiro e para o sistema carcerário do país, possibilitando a releitura das situações e
a criação de novas oportunidades, apresentando uma conotação positiva na evolução social.
O Estado presta a tutela jurisdicional a fim de solucionar os conflitos e pacificar a
sociedade. Contudo, a utilização desenfreada das prisões provisórias, medida que deveria ser
excepcional, causa diversos percalços sociais, fazendo-se necessária a adoção de medidas
inovadoras que busquem a valorização dos direitos fundamentais do homem. É diante disso
que o presente estudo abordou a audiência de custódia, prevista na Resolução Normativa nº
213/2015, do Conselho Nacional de Justiça brasileiro.
Nesse contexto, notou-se que a audiência de custódia chega às comarcas brasileiras
primando pelo contato pessoal imediato entre o detido e magistrado, oportunizando, de tal
maneira, que o juiz analise a legalidade do flagrante, bem como as reais condições do preso,
antes de decidir qual será seu destino, quando da homologação do flagrante: se a prisão
poderá ser substituída pela liberdade provisória, por uma ou mais das medidas alternativas à
prisão preventiva, ou se, em último caso, deverá ser convertida em prisão preventiva.
Percebeu-se, então, que esse contato pessoal tem a função de ultrapassar a fronteira do
688

papel, o que ocorre ainda nos dias atuais, quando é enviado apenas o auto de prisão em
flagrante para análise judiciária.
Ademais, tendo em vista o caótico sistema penitenciário atual, é que foi arguido o
Estado de Coisas Inconstitucional do sistema prisional brasileiro, surgindo, então, os primeiros
fundamentos da audiência de custódia. Nessa senda, concluiu-se que a audiência de custódia
de fato pode amenizar, ainda que minimamente, as mazelas do sistema processual penal e
sistema penitenciário; essa afirmação se dá uma vez que o contato pessoal entre preso e
magistrado possibilita que este dê outro destino ao detento que não o cárcere, evitando, da
mesma forma, prisões desnecessárias que certamente contribuiriam para a superlotação do
presídio.
Não bastasse tais dados, verificou-se que infelizmente a sociedade livre não dispõe do
real intuito de reinserção social do preso, tampouco está preocupada com condições dignas e
seguras para a vida no cárcere. E muito menos compreende o quanto tal situação poderia
reverter em benefício do próprio corpo social, integrado pela parcela dos que vivem em
liberdade.
Diante disso, é importante que se compreenda o papel da audiência de custódia para
a política criminal contemporânea do país, bem como para a segurança pública como direito
fundamental. Pois, pensando-se no que motivou a implantação da audiência de custódia,
apenas daquilo que se constituiu, no plano jurídico, como seu discurso fundante, no sentido
deàseàde la a àoà estadoàdeà oisasài o stitu io al àdoàsiste aà a e ioà asilei o,àpa e eà
que, num primeiro momento, pode ser um avanço no sentido de estabelecer uma política
voltada para a segurança, numa perspectiva de proteção aos direitos fundamentais daqueles
que vivem no cárcere, a começar por reduzir o índice da população carcerária no Brasil.
Situações como essa não só permitem um processo penal mais humanista, em respeito
ao princípio da presunção de inocência e ao direito à dignidade da pessoa humana,
independentemente de sua condição de homem livre ou não, acusado ou não. Também, se
apresentam como um caminho para a implementação das medidas cautelares de coerção
pessoal, em substituição à prisão preventiva, quiçá reduzindo-a efetivamente às hipóteses em
que de fato se faça necessária como garantia da investigação e da instrução criminal, coibindo
o uso indiscriminado, como se tem revelado até então.
689

REFERÊNCIAS

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Dados estatísticos/Mapa de implementação.


Disponível em: http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/audiencia-de-
custodia/mapa-da-implantacao-da-audiencia-de-custodia-no-brasil. Acesso em 24 Abril.
2017.

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Estado das coisas inconstitucional. Publicado em 2015. Disponível
em: http://dirleydacunhajunior.jusbrasil.com.br/artigos/264042160/estado-de-coisas-
inconstitucional. Acesso em 24 Abril. 2017.

MELLO, Daniel. Relatório diz que presídio de Pedrinhas ainda tem tortura e superlotação.
Publicado em 01 Mar. 2016. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-
humanos/noticia/2016-03/relatorio-diz-que-presidio-de-pedrinhas-ainda-tem-torturas-e.
Acesso em 24 Abril. 2017.

MOURA, Patrícia Borges. A experiência brasileira: o papel da audiência de custódia para as


políticas públicas de segurança no Brasil. Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em
Direito. Universidade de Brasília. Brasília, 2016.

PRUDENTE, Neemias Moretti. Lições preliminares acerca da audiência de custódia no Brasil.


In: Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre: Síntese, v. 16, n. 93,
Ago./Set., 2015.

TÓPOR, Klayton Augusto Martins; NUNES, Andréia Ribeiro. Audiência de custódia: controle
jurisdicional da prisão em flagrante. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.
690

REFLEXÕES SOBRE CORRUPÇÃO COMO OBSTÁCULO À CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA E O


DESENVOLVIMENTO DE POLÍTICAS SOCIAIS

Poliana Dill1
Eloisa Nair de Andrade Argerich2

Resumo: Oàte aà ueào aàseàdis uteàfoiào jetoàdoàT a alhoàfi alà ealizadoà e e te e te,à oà
u soàdeàg aduaç oàe àDi eitoàe,àa teàsuaài po t iaàeàatualidade,à ealiza‐seàu aàa liseà
so iol gi aàso eàaà o upç o,àa a ge doàseusà o eitos,à a a te ísti asàeà ausas.àVe ifi a,à
ta ,à uaisàasàfo asà aisà o u sàat a sàdasà uaisàesteàfe e oàseà a ifesta.àйstudaà
o oàaà o upç oà à o atida,àhoje,à oà itoàdaàád i ist aç oàPú li a,àt aze doàe e plosà
dosà e a is osàdeàp e e ç o,à o ito a e to,à o t oleàeà espo sa ilizaç oà ueàj ài teg a à
oà a a ouçoà o ati oà deà defesaà daà o alidadeà pú li a,à u aà ezà ueà aisà es dalosà
e ol e doàage tesàpú li osàeàpolíti os,àale àdeàseà o stitui àe ào st uloà à idada ia,àt à
sidoàal oàdosà oti i iosàeàdaà ídiaàeàdoàMi ist ioàPú li oàнede al.

Pala as- ha e:àád i ist aç oàPú li a;àCo upç o;àCo t ole;àMo alidade;à‘espo sa ilizaç o.

àINT‘ODUÇÃO

Pa aàseàfaze àu aàa liseàso eàaà o upç oà aàád i ist aç oàPú li a,ài i ial e teà à
e ess ioàte e àalgu asà o side aç esàa e aàdaàati idadeàad i ist ati aàdoàйstado.àйlaà à
o teada,àp i ipal e te,àpelosàp i ípiosàdaàsup e a iaàeàdaài dispo i ilidadeàdoài te esseà
pú li o.à áà sup e a iaà à supe io idadeà doà i te esseà pú li oà f e teà aoà pa ti ula ,à eà aà
i dispo i ilidadeà à aà i possi ilidadeà deà oà ad i ist ado à dispo à doà i te esseà pú li oà pa aà
fa o e e àoàseuàouàdeàout e .
áà ád i ist aç oà Pú li a,à pa aà ealiza à asà suasà fu ç es,à e o e,à f e ue te e te,à à
ola o aç oà deà e p esasà p i adasà eà deà te ei os,à ale do‐seà deà e sà eà se içosà dosà
pa ti ula es.à Qua doà feitaà aç oà o ju taà doà йstadoà o à aà i i iati aà p i ada,à fo a‐seà oà
o t atoàad i ist ati oà–àajusteà ue,àaoàse àfi adoà o àoàpa ti ula àouàout oàe teàpú li o,à
possi ilitaàaà o se uç oàdeài te esseà oleti o.
Pode‐seàafi a à ueàesteà o t ato,à o àoàpassa àdosàa os,àad ui iuà aio à ele iaà
ua doàseà e ifi aà ueàoà e eàdaà uest oà ueàe ol eàosà o t atosàad i ist ati osà oàdizà
espeitoàaoàfi à ueàse àati gido,à asàsi àaàfo aà o àaà ualàeleàse à ealizado.àOuàseja,àpa aà

1
Egressa do curso de Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí);
advogada associada junto à Riboli Advocacia Empresarial, em Porto Alegre, RS. E-mail: poli.dill@gmail.com.
2
Mestre em Desenvolvimento pela Unijuí; docente do curso de Direito da Unijuí, no componente curricular
Direito Constitucional e Administrativo. E-mail: argerich@unijui.edu.br.
691

aà ealizaç oà doà o t atoà ad i ist ati o,à h à deà seà faze à p ese teà u aà s ieà deà e uisitosà eà
fo alidadesà ue,à uitasà ezes,à seà to a à aisà difi ultososà ueà aà p p iaà fi alidadeà doà
o t ato.
Nesteà se tido,à pode‐seà dize à ueà osà e t a esà u o ti osà ueà pe eia à asà aç esà
ligadasà à ád i ist aç oà Pú li a,à otada e teà o à elaç oà aosà o t atosà ad i ist ati os,à
esti ula à aà o upç o,à ueà adaà aisà à doà ueà aà iolaç oà deà u à de e à posi io al,à à aà
t a sg ess oàdeàalgu asà eg asà ueà ege àosà a gosàouàfu ç esàda uelesà ueàaàp ati a .
Pa ti doàdessasà o side aç es,à se à aà p ete s oàdeàesgota à oà assu to,àp ete de‐à seà
efetua à u aà e eà a liseà daà эeià ºà . / ,à o he idaà po à эeià á ti o upç oà ue,à
ju ta e teàaosàde aisà e a is osàdeàp e e ç o,à o ito a e toàeà o t oleàe iste tesà oà
B asil,à isa à o ate àaà o upç o,à e à o oàaà espo sa ilizaç oàdosàauto esàeàpa ti ipa tesà
deàatosàlesi osàaoàpat i ioàpú li o.

àANÁLISE DA CORRUPÇÃO E SEUS MECANISMOS DE PREVENÇÃO COM ÊNFASE NA LEI nº


12.846/2013

I p es i dí elà seà faz,à pa aà elho à o p ee s oà doà te a,à a o da à oà sig ifi adoà deà
o upç o,à ausasà eà fo asà ueà o t i ue à pa aà aà p ti aà a usi aà po à pa teà dosà age tesà
pú li osà eà políti os,à ueà ge a à des a dosà eà atosà oà o dize tesà o à osà p i ípiosà
o stitu io aisàdaàád i ist aç oàPú li a.àà
P i ei a e te,à i po ta teà efe i ,à destaà fo a,à ueà pa aà e te de à aà o upç oà
e iste teà oà seioà daàád i ist aç oàPú li a,à oà seà podeà p es i di à deà o he e à oà seuà ealà
sig ifi ado,à uaisàsuasà a a te ísti asàeà ausas.à
Oà o eitoàdeà o upç oà a iaàdeàa o doà o àaàpe spe ti aà aà ualà àe p egada,àe,à
ai da,àh àdi e g iasàe t eàosàauto esà ua toàaoàseuàe te di e to.àPo àisso,àfa ‐se‐ àu aà
a liseà aisàa a ge te;à àfato,àe t eta to,à ueàoàse soà o u àaàdefi eà o oàsi i oàdeà
ilegalidade.
Ca losàрe i ueàá o,àDese a gado àdoàT i u alàdeàщustiçaàdoàйstadoàdeà“ oàPaulo,à
aduzà ueà oàp o essoàlesi oàaoàe ioà o taà o àoà o upto àeàoà o upto,àu aà e dadei aà
pa e iaàpú li o‐p i ada,à aà ualàoàdi hei oà àdilapidadoàeàosà of esàseà esse te àdosàilí itos,à
oàe ta to,àde o a àpa aà o stata àasài egula idades.
692

Naà ealidade,à t ata-se de fenômeno social, diretamente, relacionado com a eficiência


e a credibilidade da gestão pública, razão pela qual a sua proliferação propicia não só a
eduç oàdeài esti e toà oàPaís,à o oàoàag a a e toàdasàdesigualdadesàso iais ,àentendem
Diogoàdeàнiguei edoàMo ei aàNetoàeà‘afaelàV asàdeàн eitasà(2014).
Conforme Gustavo Senna Miranda (2014) a corrupção pode ser entendida sob vários
aspectos, e assim se manifesta:

sob o prisma léxico múltiplos são os significados do termo corrupção, expressão que
se origina do latim corruptione, que dá a idéia de corromper, que por sua vez significa
decomposição, putrefação, depravação, desmoralização, devassidão, suborno ou
peita, chegando-se até a afirmar que suas raízes se insinuam no cerne da alma
humana, eis que os atos que a caracterizam se encontram ligados a uma fraqueza
moral. Assim, em resumo, a corrupção tanto pode indicar a idéia de destruição como
a de mera degradação, ocasião em que assumirá uma perspectiva natural, como
acontecimento efetivamente verificado na realidade fenomênica, ou meramente
valorativa.

Entende-se, assim, que a corrupção não é um fenômeno recente, e está relacionada


com a materialização de condutas contrárias aos padrões mínimos exigidos em uma sociedade
que acredita que os agentes públicos e políticos agem de boa fé e não tem interesse de lesar
oà pat i ioà pú li o.à à Naà e dade,à aà o upç oà est à asso iadaà à f agilidadeà dosà pad esà
éticos de determinada sociedade, os quais se refletem sobre a ética do age teà pú li o. à
(GARCIA, 2003, p. 3).
Mas não se pode simplificar a questão e aceitar que desvios de comportamento ético
possam ser vistos como condutas normais e permissíveis porque, assim, se está consentindo
com a corrupção. Ou seja, oferecer suborno que visa vaga escolar; a vantagem na tramitação
de processo judicial; e o atendimento hospitalar privilegiado são exemplos que mostram que
a corrupção faz parte do nosso cotidiano e esse fenômeno enraizado na sociedade é capaz de
atingir os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos devido ao comportamento deles
próprios, obstaculizando o exercício da cidadania (WERLE; PORTO, 2016, p. 5).
Noà ueàta geàeà oà ueàseà ela io aà o àaàád i ist aç oàPú li a,àaà o upç oàpodeàse à
defi idaà o oà oàusoàdoàPode àPú li oàpa aàp o eito,àp o oç oàouàp estígioàpa ti ula ,àouàe à
e efí ioà deàu à g upoàouà lasse,àdeà fo aà ueà o stituaà iolaç oà daà leià ouàdeà pad esà deà
ele adaà o dutaà o al. à ‘IO“,à ,àp.à .
ássi ,à àpossí elàafi a à ueàaài efi i iaàdoàйstado,àsejaà oà itoàad i ist ati o,à
693

legislati oàouàju isdi io al,àe à o ate àeàpu i àp ti asà ueàe ol e à o upç oà oàseioàdaà
ád i ist aç oàPú li a,àte àsidoàu ài duto à à o upç o.
щos àá thu à‘iosà ,àp.à ‐ àt ataàdosàdi e sosà o eitosàdeà o upç o,àfaze doà
e ç oà aosà e te di e tosà deà Ma uia elà eà Mo tes uieu.à Qua doà ela io adoà o à aà
ád i ist aç oàPú li a,àle io aà ue:

hoje,àa ultaààu aàsig ifi aç oàdoàte oà ueàa e tuaàoàaspe toàpú li o,àaàutilizaç oà


di etaàouài di etaàdoàpode àpú li oàeàad i ist ati oàfo aàdoàseuà a poàlegíti o,àaà
fi àdeà ueàoàdete to àdoà a goàouàdoàpode à us ueàaufe i à a tage sàe àp o eitoà
p p io,à ouà pa aà dist i uí‐lasà e t eà a igos,à se ido es,à pa e tes,à o f ades,à
o eligio ios,às iosàouàpa tid ios.
à
ái da,àMo tes uieuà apudà‘IO“,à ,àp.à ,à efe eà ueà i u esàaoà is o,àosàho e sà
seàati a à à us aàdoàlu o,à oà aisà espeita àasàleis.àPa aàeleàaà elho àfo aàdeàe ita àaà
o upç oàse iaàaà oltaàaosàp i ei osàp i ípios,àaà e o aç oàpe i di aàdaào de à í i a.
щ àMa uia elà apudàPOYй‘,à[s.d.],àg ifoàdoàauto ,àdefi eàaà o upç oà o oàa

deg adaç oààdosà ostu es,ààeàdes espeitoà sàleis,àeàaàpou aàaptid oàpa aàaà idaàli e,à
su geà daà desigualdadeà e iste teà e à u aà idade.à ássi ,à o upç oà podeà se à
ide tifi adaà o àoàafasta e toàdaà i t à í i aàeàdaà idaàli eà[ i e eàli e o]àeà o àaà
a e tuaç oàdaàdesigualdade.à

Co oàseàpodeà e ,àoàafasta e toàdosà alo esà í i osàeàasàdesigualdadesàesti ula àaà


o upç o,à ue nada mais é que a inversão dos princípios da supremacia e da indisponibilidade
do interesse público, onde o interesse particular prevalece.
àй,à oàseàpodeà ega à ueàosà idad osàdei a àdeàe e e àoàseuàdi eitoà à idada iaàeà
pa ti ipaç oàso ialà aà edidaàe à ueàa eita à ueàatosàdeso estosàeài desej eis,àtaisà o o,à
des ioàdeà e u sos,àsupe fatu a e toàdeào asàpú li as,àe t eàout os,àto e ‐seà o i uei osà
eà [...]àessesàdes iosà o po ta e taisà edu da àe àestí uloà àp olife aç oàdaà o upç o,à aà
edidaàe à ueàseàap ese ta à o oàp ti asà oti ei as,àai daàpossue àu aàdi e s oà aisà
delet iaàeà al fi aà ào ga izaç oàestatalà[...]. àOuàseja,à ia‐seà oà itoàdaàád i ist aç oà
Pú li aà [...]àu à digoàpa aleloàdeà o duta,à à a ge àdaàleiàeàdaà az o,à ueàpaulati a e teà
seài o po aàaoàsta da dàdeà o alidadeàdoàho oà edius. à Wй‘эй;àPO‘TO,à ,àp.à .
àássi ,à adaà ezà aisà seà o se aà ueà h à u aà tole iaà eà u aà a alizaç oà daà
o upç o,àeàissoàpassaàaàse à o side adoà o oàalgoà o alàeà o u ,àpoisàoàp p ioàapa atoà
694

estatalàp opi iaà ueàissoào o a,à ezà ueà oàh àu aàefeti aàeàsufi ie teàfis alizaç oàdoàpode .à
O se a àKátia Paulino Santos e Arley Felipe Amanajásà à ue

só uma fiscalização do poder pela sociedade pode realmente acabar com a


corrupção generalizada. O povo deve ser o juiz supremo de todos os políticos que
abusarem do poder, porque ele próprio é o maior interessado nesses crimes, é do
suor do trabalho da população que os tiranos democratas tiram o dinheiro para
financiar suas reeleições e viver em um luxo totalmente incompatível com a
realidade nacional.

Ce ta e teà ueàasà ausasà ueàp o o a àesseà o po ta e toàa ti ti oàdosàage tesà


políti os,à ossosà ep ese ta tesà eà age tesà pú li osà s oà a iadas,à eà oà astaà ape asà aà
fis alizaç oàdaàso iedadeàpa aà oi i àaào daàdeà o upç o,à ueàaà adaàdiaàseàalast aàdeàfo aà
a assalado aà oàseto àpú li oàe,àta ,àati geàoàseto àp i ado.àÉà e ess ioàu àйstadoàefi azà
eà o ài stituiç esàfo tes.
áli s,à ua doà seà fazà efe iaà sà ausasà daà o upç o,à pode‐seà ele a à o oà u aà
delasàoàe essoàdeàpode à ueàpossue àalgu sàdosàdete to esàdeà a goàpú li o.àOàe essoàdeà
pode ào o eàge al e teà ua doàosàatosàp ati adosàpelaàád i ist aç oàPú li aàseàap ese ta à
o oàdis i io iosàeàpossi ilita àu àjuízoàdeà alo àpeloàage te.à
Po àout oàlado,à ài uestio elà ueàaà o upç oàati geàdeàfo aàa e tuadaàoà a poà
e o i o,à oà e ta to,à oà seà des o he eà ueà essaà alte aç oà o po ta e tal,à ta à
o he idaà o oàpatologiaà o upti aàati geàout osàseto es.àPode‐seàdesta a à ueà oà itoà
dasàu i e sidades,àpo à eioàdoàpl gioàdeàt a alhos,àe,àat à osàdis u sosàdeàpolíti os,à o oà
o o euà e e te e teà osàйstadosàU idosàdaàá i a,à oà ualàaàesposaàdeàu à a didatoà à
P esid iaàseàap op iouàdoàdis u soàdeàMi helleàO a aàpa aàa ga ia àsi patiaàdosàeleito es.à
P ti aàdeso estaàeà o i uei aà ueà i aàaà o fia çaàdoà idad o,à ueàseào ite,à oàpa ti ipa,à
oà fazà o a ças,à poisà aà i pu idadeà te à sidoà aà aliadaà dosà age tesà políti osà eà age tesà
pú li os.ààà
ásà ausasàs o,ài lusi e,àaspe tosàsu jeti os,àpode do,àfa il e te,àse e ài flue iadasà
pelaà ultu a,àedu aç o,àpad esà ti osàeàdesigualdadesàso iaisàdeàdete i adasà egi es.àássi à
o oà oà o eito,à elasà a ia à deà a o doà o à aà a ei aà eà aà i u st iaà asà uaisà s oà
e p egadas.
Pa aàMo tes uieuà ,àp.à ,àaà o upç oàdeà adaàgo e oà o eçaà uaseàse p eà
pelaà o upç oàdosàp i ípios àe,àai da,à efe e:à
695

ueà i gu àseàad i eàseàosàsuf giosàfo e à o p adosàpeloàdi hei o.àN oàseàpodeà


da à uitoàaoàpo oàse à ueàdeleàseàti eà aisàai da;àpo ,àseàti a àdele,à à e ess ioà
de u a àoàйstado.àQua toà aisàoàpo oàpe saàaufe i à a tage sàdeàsuaàli e dade,à
aisàseàap o i a àoà o e toàe à ueàde e àpe d ‐la.àнo a ‐seàe t oàpe ue osà
ti a osà ueàpossue àtodosàosà í iosàdeàu às .àэogoàa uiloà ueà esta àdeàli e dadeà
to a ‐se‐ ài supo t el:àu àú i oàti a oàsu gi ,àeàoàpo oàpe de àtudo,àat à es oà
asà a tage sàdeàsuaà o upç o.à MONTй“QUIйU,à ,àp.à .

ásàfo asàdeà o upç oàs oàasà aisà a iadasàe,àassi à o oàoàseuà o eito,à uda àdeà
a o doà o à aà ultu a,à egi o,à í elà deà es ola idade,à et .,à deà ue à asà a a te iza.à áà B itishà
B oad asti gà Co po atio à BBCà B asil à di ulgouà u aà pes uisaà ealizadaà pelaà U i e sidadeà
нede alàdeàMi asàGe aisàeàpeloàI stitutoàVo àPopuli,ào deà uaseàu àe à adaà uat oà asilei osà
% àafi aà ueàda àdi hei oàaàu àgua daàpa aàe ita àu aà ultaà oà hegaàaàse àu àatoà
o uptoà Dйээáà Bá‘Bá,à .à O a,à da à di hei oà aà fu io ioà pú li o,à al à deà se à u aà
p ti aàeti a e teà o de el,à à i eàdeà o upç oàati a,àele adoà oàa tigoà àdoàC digoà
Pe alàB asilei o.à
áà es aàpes uisaàap ese taàalgu sàtiposàdeà o upç oà ueàfaze àpa teàdoàdia‐a‐diaà
deà uitosà asilei os,à taisà o oà oà da à otaà fis al,à da à t o oà e ado,à fu a à fila,à falsifi a à
assi atu as,à o p a àp odutosàfalsifi ados,àe t eàout as.à
De t eàasàdi e sasàfo asàdeà o upç oàpode àse àele ados,àta ,àosà i esàdeà
espo sa ilidade,àdeàe i ue i e toàilí ito,àdaàles oàaoàe ioàeàdoàate tadoàaosàp i ípiosàdaà
ad i ist aç oà pú li aà ‐à legalidade,à i pessoalidade,à o alidade,à pu li idadeà eà efi i ia.à
ái da,à osà tiposà pe aisà daà p ti aà doà su o o,à daà p opi a,à doà t fi oà deà i flu ia,à doà
epotis o,àdoàe p egoài egula àdeà e asàouà e dasàpú li as,àdoàpe ulato,àdaà o uss o,à
et .
áà o upç oà oà seà a a te izaà ape asà pelasà p ti asà tipifi adasà e à lei.à T ata‐se,à
ta ,àdasà o dutasà otidia asà ueàaàp p iaà o alà o de a.àÉàoà i is o,àoà ela a e toà
dosàp i ípios,àaàdeso de àpolíti a,àoàdes espeitoà sà eg as,àaàdeso ga izaç o.à
I te essa teà o se a à ueà oà B asilà possuià u à a a ouçoà ju ídi oà sufi ie teà pa aà
o ate à aà o upç o,à e,à i lusi e,à oà seà podeà es ue e à ueà aà p p iaà Co stituiç oà daà
‘epú li aà нede ati aà doà B asilà possuià e a is osà ueà au ilia à oà o t oleà deà p ti asà
a ti ti asàeàlesi asàaoàpat i ioàpú li o.à
Desta a‐se,à ueà aà pa ti ipaç oà doà idad oà oà t atoà daà oisaà pú li aà à u aà eg aà
696

o stitu io alà ueàpodeà o t i ui àpa aà àp e e ç oàeà o ateà à o upç o.àNoàààe ta to,àoà


ueàseà à àu aàso iedadeàdes e te,àap ti a,àdesi te essada,àu aà ezà ueàoà idad oà oà
e e eàseuàdi eitoà àpa ti ipaç oàpopula àeàsuaà o dutaàdeà e oàespe tado àdes a a te izaàaà
p p iaàde o a iaàpo àseào iti àdaàta efaàdeàfis aliza àeàe igi àe pli aç esàdoà ueàoàgo e oà
est à ealiza doàe àp olàdaà oleti idade.
àPo àout oàlado,àeàdoà es oà odo,àoà idad oà olo a‐seà o oàp otago istaàdoàp o essoà
deà o ateà à o upç oàeài p o idadeàad i ist ati a,àpa ti ipa doàdeà o i e tosàso iaisà
u a osà o à oà i tuitoà deà e igi à ueà esseà e f e ta e toà o o aà deà fo aà siste ti aà eà
o sta te.à Co fo eà á gelaà Gio a i ià Mou aà ,à p.à ,à os impactos negativos que a
corrupção imprime à sociedade, minando a dignidade dos indivíduos, corroendo a democracia
eàdete io a doàosàse içosàpú li osàp estadosàpeloàйstado às oà ultuosos,àe,àseà oàfo e àal oà
de controle, enfraquecerão ainda mais os valores éticos da sociedade.
Éà esse ialà a alisa à uaisà s o,à hojeà oà B asil,à osà e a is osà deà p e e ç o,à
o ito a e to,à o t oleàeà espo sa ilizaç oà o t aàosàatosà ueài po ta àe àles oàaoàe ioà
eà àád i ist aç oàPú li a.

2.1 A ineficácia dos mecanismos de combate à corrupção

“e iaàutopiaàpe sa àe àu àgo e oà oà ualà oàe istaà o upç o.àй,àat à es o,àpe sa à


e àu aàso iedadeàe à ueàtodosàosà o uptosàfosse àpu idos.àDeà ual ue àfo a,àe à ueà
peseàsejaàu àpla oà uaseà ueài ealiz el,àde e‐seàte ta à us ‐loàaoà i o.à
Pa aàaàefeti aç oàdeàu àgo e oàli poàeàt a spa e te,àeàpa aàaà o de aç oàda uelesà
ueàp ati a àatosàlesi osà o t aàaàád i ist aç oàPú li a,à à e ess ioàu à o tí uoà o t oleà
po à pa teà dosà g osà pú li osà eà u aà ha o iaà e t eà osà siste asà deà p e e ç o,à o t ole,à
o ito a e toà eà espo sa ilizaç o.à á e aà doà te a,à le io aà oà P o u ado à ‘egio alà daà
‘epú li a,àрu e toàщa uesàdeàMedei osà :

oà o ateà à o upç oà ài u iaàdosà e a is osà o stitu io aisàdeà o t oleà


i te oàeàe te oàdaàad i ist aç o.àT i u aisàdeà o tasàeàse eta iasàdeà o t oleàt à
de e à o stitu io alà esseà iste .à Oà Pode à эegislati o,à oà so e teà po à eioà deà
o iss esà pa la e ta esà deà i u ito,à as,à si ,à oà e e í ioà deà disti tasà
o pet iasà o stitu io aisà‐à oàape as,à asàta ,àp oduto asàdeà o asà‐à à
u àato ài po ta teàeà e ess ioà oà o ateà à o upç o.

áà o upç oà oà à u aà p ti aà e e te,à ta pou oà oà seuà o ate.à Utiliza‐seà o oà


697

e e ploàaàэeià ueà egulaàoà i eàdeà espo sa ilidade,àdatadaàdoàa oàdeà .àáàэeiàdaàáç oà


Popula ,àe t o,àdeà .àPou oàa tesàdaàCo stituiç oàdeà ,àaàэeiàdaàáç oàCi ilàPú li a,àdeà
eadosà deà .à йà assi à segueà aàte tati aà deà o t oleà eà o ateà à o upç o.àà áà p p iaà
Co stituiç oà нede alà t ou eà sa ç esà sà p ti asà deà i p o idade.à й à ,à eioà aà эeià deà
I p o idadeà ád i ist ati aà o à o i aç esà aosà age tesà pú li osà ueà e i ue e à
ili ita e te.àPou oàdepois,àe à ,àe t ouàe à igo àaàэeiàdasàэi itaç esàeàCo t atos.à
Out oà e a is oà deà o t oleà eà a o pa ha e toà dasà ati idadesà ealizadasà po à
e tidadesà doà Te ei oà “eto à ua doà fi a à o t atosà o à aà ád i ist aç oà Pú li aà à oà
o plia e.àйsteài st u e toà o sisteà u àde e àdeàesta àe à o fo idadeà o àasàleisàeà o à
asà eg asà eà e o e daç esà i te as,à ouà seja,à à oà esta ele i e toà deà digosà deà
auto egulaç oàeà ueàe igeàta àaàp e is oàdeàp o edi e tosàpa aàp o o e àaàp estaç oà
deà o tasà a ou ta ility àeà o po ta e toà ti oà OэIVйI‘á;àDIà“áэVO,à[s.d.],àg ifosàdoàauto .
й à elaç oà àád i ist aç oàPú li a,àaàte tati aàsegue.àáàpopulaç oàpede.à“u geàaàэeià
á ti o upç o,àássi ,àde e‐seà olta àaàate ç oàpa aàoà aisà o oài st u e toàa ti o upç oà
ueà e à efo ça àoàa a ouçoàlegalà asilei o,àouàseja,àaàэeià ºà . / à ueà à esultadoà
dasà a ifestaç esàeà la o esàpopula esà ueào o e a à aà etadeàdoàa oàdeà .àÉàp e isoà
ad iti ,à àlou elàoàesfo çoàdoàád i ist ado àe à o ate àasàp ti asài o aisàeàilí itasà oà
itoàpú li o.àэegislaç oà oàfalta.àDe e‐se,àago a,àp àe àp ti aàosào jeti osàpa aàosà uaisà
fo a à iadas.
Interessante destacar que a Lei Anticorrupção inova na ordem jurídica ao possibilitar
uma atuação conjunta do Poder Público com a iniciativa privada. Tal medida, até então, era
similarmente aplicada apenas em processos administrativos propostos pelo Conselho
Administrativo de Defesa Econômica (Cade), com idêntico nome. É possível mencionar,
também, que o acordo de leniência traz bastante semelhança com o instituto da delação
premiada do processo penal.
Sobre a celebração do acordo de leniência nas demandas propostas pela Lei em
análise, leciona o professor Thiago Marrara (2013):

A cooperação com o infrator que se dá por meio da leniência é a própria


concretização da supremacia do interesse público. A explicação é simples. O
legislador brasileiro, assim como o europeu e o norte-americano, percebeu que as
infrações se tornaram grandiosas, complexas e absurdamente nocivas. Percebeu que
nem mesmo os poderes investigatórios mais agressivos às inviolabilidades
constitucionais (como a busca e apreensão e as interceptações telefônicas) serão
698

capazes de trazer aos entes públicos as provas necessárias a um processo acusatório


bem-sucedido.

Ou seja, tal acordo não pode ser visto de maneira equivocada. Não há corrompimento
por parte do Estado, tampouco colaboração com os infratores. Não se está a deixar de lado a
indisponibilidade do interesse público visando beneficiar os corruptores. Marrara (2013)
prossegue:

A previsão de sanções potenciais graves não bastaria, porém, para produzir efeitos
dissuasivos intensos. De fato, pouco adianta prever sanções exemplares se vige um
clima de impunidade, não raro resultante da reconhecida incapacidade estatal de
investigar e descobrir indícios de infrações complexas. É daí que se entende a
inserção da leniência na Lei Anticorrupção. Sua função é dúplice.

A função dúplice mencionada pelo professor é a colaboração recebida pelo Estado de


provas concretas, com as quais poderá se comprovar a materialidade e, até mesmo, a autoria
daài f aç o.à Masà oà às àisso.àáàle i iaàdeflag aàu àefeitoàp e e ti oàge al.àáoàoferecer
e efí iosàaoà i f ato -a igo ,àoàйstadoài t oduzàu à í usàdeài sta ilidadeà asà elaç esàe t eà
pote iaisài f ato es. ,à efe eàMa a aà .
O acordo é, então, trazido pela Lei Anticorrupção nos artigos 16 e 17, em termos quase
que exatos aos postos no artigo 35-B da Lei n.º 10.149/2000, lei esta que instituiu pela
primeira vez o acordo de leniência no Brasil. Observando-se, portanto, tais mecanismos legais,
verifica-se que a celebração do acordo requer o preenchimento de alguns requisitos.
Os requisitos, portanto, estão dispostos nos três incisos que subseguem o § 1º do
artigo 16 da Lei Anticorrupção. Inicialmente, a pessoa jurídica deverá ser a primeira a
manifestar o interesse em cooperar para a apuração do ilícito; deverá, também, cessar
completamente o envolvimento na infração investigada a partir da data da celebração do
acordo, bem como a participação na prática do ato lesivo deverá ser admitida e a cooperação
com as investigações, plena e permanente; e, bem assim, deverá comparecer a todos os atos
processuais, sempre que solicitada, às suas próprias expensas, até o encerramento.
A celebração do acordo é de competência da autoridade máxima de cada órgão ou
entidade pública, e poderão ser beneficiárias as pessoas jurídicas que colaborarem
efetivamente com as investigações e com o processo administrativo, de modo que dessa
cooperação resulte na identificação de demais envolvidos e na obtenção célere de
informações e documentos que comprovem o ilícito objeto da investigação.
699

Ressalta-se que preenchendo os requisitos e celebrado o acordo, a pessoa jurídica será


beneficiada com isenção de algumas sanções administrativas e com redução de até 2/3 de
eventual multa. As sanções que poderão ser isentadas são: publicação extraordinária da
decisão condenatória e a proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou
empréstimos da Administração Pública direta e indireta.
Imprescindível destacar que este acordo não exime a responsabilidade de a pessoa
jurídica reparar integralmente o dano causado. Ainda, no acordo serão estipuladas condições
necessárias para assegurar efetividade da colaboração e o resultado útil do processo. O
descumprimento do acordo pela pessoa jurídica a impede de celebrar novo acordo pelo prazo
de três anos, contados da ciência pela Administração Pública sobre o descumprimento.
A proposta de acordo rejeitada não importa em reconhecimento da prática do ato
ilícito. Ademais, a celebração do acordo interrompe o prazo prescricional dos atos ilícitos.
A partir da análise realizada à Lei nº 12.846/2013 - Lei Anticorrupção, é possível afirmar
que, não obstante tenha dispositivos inovadores, se não aplicada corretamente, há grande
possibilidade de se tornar uma lei inócua e sem eficácia.
Datada de 1º de agosto de 2013, a Lei que vinha tramitando no Congresso Nacional
desde fevereiro de 2010, fora aprovada às pressas em uma tentativa de da àu aà espostaà sà
a ifestaç esàpopula esào o idas,àpo àtodoàoàpaís,à oà o eçoàdeàju hoàdoàa oàpassado. à
(MOREIRA NETO; FREITAS, 2014).
Para Fábioà Medi aà Os ioà ,à aoà o a à doà seto à p i ado,à aà pa ti à deà pesadasà
sanções, uma postura ética no relacionamento com o Estado, a lei estimula a probidade
e p esa ial,à ueàfazà o à ueàasàe p esasàassu a àu àpapelà o alizado à aàso iedade.
A Lei Anticorrupção pode ser um grande ganho na luta do combate à corrupção no
Brasil. Ingressa inovando o arcabouço normativo de proteção à moralidade administrativa,
aliada à prevenção e ao controle da Lei das Licitações e Contratos, ao monitoramento dos
Tribunais de Contas e à responsabilização da Lei da Ação Popular, da Lei da Ação Civil Pública
e da Lei de Improbidade Administrativa.
I ega el e te,àaà o upç oà àaài e s oàdeà alo es.àÉàoàdei a àdeàladoàosàp i ípiosàdaà
sup e a iaàeàdaài dispo i ilidadeàdoài te esseàpú li o,àpo doà àf e teàoài te esseàp i ado.àÉà
si i oà deà des o alizaç o,à dep a aç oà eà deg adaç o.à Dizà espeitoà à ate ializaç oà deà
700

o dutasà o t iasà aosà pad esà í i osà e igidosà pelaà so iedade,à ueà a editaà ueà oà
ad i ist ado àageàdeà oa‐f .à
áti a‐seà à us aàdoàlu o,àe àdes espeitoà la oà sàleis.àBa alizou‐seàaà o upç o,àpois,à
aliadoà aosà des iosà deà o po ta e to,à est à aà i efi i iaà doà йstadoà e à pu i à p ti asà ueà
e ol e àesteàtipoàdeà o duta.àр à ue àdigaà ueàda àdi hei oàaàu àgua daàpa aàe ita à ulta,à
po àe e plo,à oà a a te izaà o upç o.à
Não se pode deixar de mencionar que no Brasil há uma tendência muito forte e clara
em prevenir e combater à corrupção e, isto se percebe porque alguns órgãos têm sido
institucionalizados, como a controladoria Geral da União, o Tribunal de Contas da União, bem
como a implementação do Portal da Transparência do Governo Federal. São mecanismos que
permitem visualizar onde são aplicados os recursos públicos e como estão sendo aplicados.
Por último, não se pode deixar de registrar que para Célia Regina P. Lima Negrão e
Juliana de Fátima Pontelo (2016, p. 37).

A corrupção está inserida em todas as áreas, sejam elas, públicas ou privadas, em


todo o mundo. Por pressões de mercados internacionais tem-se observado que as
instituições democráticas estão cada vez mais predispostas a estabelecer medidas
com o objetivo de prevenção e combate à corrupção.

Co ti ua à asà efe idasà auto asà a ota doà ueà pe e e-se que o Brasil tem se
esforçado nesta empreitada, ao ser signatário de tratados e convenções, onde assume
compromissos perante organismos internacionais e na sanção de leis que tratam este
o p o isso. à ,àp.à .
Além disto, com a promulgação da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) e a sua
regulamentação, por meio do Decreto nº 8.420/2015, a prevenção e o combate à corrupção
tiveram relevante função, pois seu objetivo é responsabilizar administrativa e civilmente
pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, tanto nacional quanto
estrangeira (NEGRAO; PONTELO, 2016, p. 37).
Por último, o combate à corrupção, permite que se faça uma reflexão acerca dos
últimos acontecimentos ocorridos no Brasil, com a aprovação do impeachment da Presidente
da República e andamento da Operação Lava-jato, ou seja, torna-se imperiosa a necessidade
de mudanças comportamentais e funcionais, e a implementação de programas de
integridade, com " [...] a finalidade de adoção de mecanismos e procedimentos para
701

prevenção e combate à corrupção de todas as formas", uma vez que tem se mostrado como
um obstáculo à construção da cidadania (NEGRAO; PONTELO, 2016, p. 37).
Espera-se que a lei anticorrupção não seja mais uma lei no ordenamento jurídico, mas
possa ser um mecanismo ou instrumento efetivo e eficaz de geração e agregação de valores
à sociedade brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após analisar aspectos da corrupção e alguns mecanismos existentes no ordenamento


jurídico referentes ao seu combate, em um primeiro momento, constata-se que há inúmeros
instrumentos e leis acerca do assunto e que estas normas de prevenção e repressão às
infrações cometidas contra a administração pública, apresentam aspectos comuns quanto à
necessidade de proteção do patrimônio público e da moralidade no serviço público.
Uma segunda constatação é que estes mecanismos legais visam evitar a prática de atos
corruptivos, uma vez que a corrupção não é apenas um obstáculo à cidadania, mas empecilho
ao desenvolvimento de políticas públicas em áreas prioritárias para a população, como a
saúde, educação, segurança, moradia, entre outras.
Por último, a constatação mais chocante é que a corrupção está inserida em todos os
setores da vida pública e privada e que há uma banalização da o upç o,à pois,à aliadoà aosà
des iosàdeà o po ta e to,àest àaài efi i iaàdoàйstadoàe àpu i àp ti asà ueàe ol e àesteà
tipoàdeà o duta.à

‘йнй‘ÊNCIá“à

ABRÃO, Carlos Henrique. Lei anticorrupção empresarial. Disponível em:


<http://www.amb.com.br/mod/1/index.asp?secao=artigo_detalhe&art_id=2169>. Acesso
em: 11 set. 2014.

áэBUQUй‘QUй,àM ioàPi e tel;àMйDйI‘O“,àрu e toàщa uesàde;àBá‘BO)á,àM iaàNoll.àOà


papelàdoàMi ist ioàPú li oà oà o ateà à o upç o.àB asília:à[s. .],à .

B‘á“Iэ.à Leià ºà . ,à deà à deà ju hoà deà .à ‘egulaà aà aç oà popula .à Dispo í elà e :à
<http:// .pla alto.go . / i il_ /leis/l .ht >.àá essoàe : à aioà .

______.à Leià ºà . ,à deà à deà julhoà deà .à Dis ipli aà aà aç oà i ilà pú li aà deà
702

espo sa ilidadeàpo àda osà ausadosàaoà eio‐a ie te,àaoà o su ido ,àaà e sàeàdi eitosàdeà
alo àa tísti o,àest ti o,àhist i o,àtu ísti oàeàpaisagísti oàeàd àout asàp o id ias.àDispo í elà
e :à<http:// .pla alto.go . / i il_ /leis/l o ig.ht >.àá essoàe : à aioà .

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MARRARA, Thiago. Lei anticorrupção permite que inimigo vire colega. Disponível em:
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703

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POYй‘,à Ca losà Nilto .à йle e tosà deà li e dadeà eà o upç oà e à Ma uia el.à Dispo í elà e :à
<http:// .fe il a . / upe /a ais_ _ep t/PDн/ ie ias_hu a as/ _POYй‘.pdf>.à
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704

A LUTA DOS CATADORES DE RESÍDUOS SÓLIDOS DE IJUÍ NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS


SOCIAIS FUNDAMENTAIS EM BUSCA DE MELHORES CONDIÇÕES DE VIDA E RENDA DIGNA

Diéssica Rodrigues Adam1


Eloisa Nair de Andrade Argerich2

Resumo: Objetiva-se com este artigo apresentar como argumentação fundamental, na


perspectiva dos direitos sociais fundamentais, uma reflexão sobre a luta dos catadores de
resíduos sólidos de Ijuí na perspectiva dos direitos sociais fundamentais em busca de melhores
condições de vida e renda digna. Aborda-se, também, a constante luta desse segmento social
pelo reconhecimento do resíduo sólido reutilizável e reciclável como um bem econômico e de
valor social, o qual pode gerar trabalho e renda e ser promotor da cidadania, utilizando-se
como alternativa a Economia Solidária e fazendo com que os catadores caminhem em busca
da emancipação social.

Palavras-chave: Direitos sociais; Catadores; Economia solidária; Renda digna; Resíduos


sólidos.

1 INTRODUÇÃO

Embora não seja este o limite deste artigo, é o momento oportuno para consignar que
a luta empreendida pelos catadores de resíduos sólidos da cidade de Ijuí, os quais labutam
todos os dias na informalidade, em busca de melhores condições de vida e renda digna, deve
fazer parte das reflexões e atuações do poder público uma vez que àqueles vivem
precariamente em uma sociedade injusta que não consegue assegurar para esses
trabalhadores os direitos sociais previstos na Constituição Federal, bem como a dignidade
humana voltada ao mínimo existencial.
Então, neste cenário surge a Economia Solidária – ES, que pode ser o meio encontrado
para dar guarida aos interesses dos trabalhadores que se encontram em situação de
vulnerabilidade social possibilitando-lhes a busca de melhores condições de vida e renda digna
para que assim deixem de ser excluídos pela sociedade capitalista e possam ser inseridos em
uma sociedade justa e igualitária.

1
Acadêmica do 9º semestre curso de Direito da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do
Sul (Unijuí). E-mail: diessica_a@hotmail.com.
2
Mestre em Desenvolvimento pela Unijuí; docente do curso de Direito, componente curricular Direito
Constitucional e Administrativo da Unijuí. E-mail: argerich@unijui.edu.br.
705

Portanto, inicia-se o desenvolvimento deste artigo, abordando sobre os direitos


fundamentais sociais como exigência e concretização do princípio da dignidade humana, para
posteriormente adentrar em aspectos que dizem respeito à luta dos catadores de resíduos
sólidos de Ijuí, suas aspirações, problemas enfrentados na catação e armazenamento, bem
como na possibilidade de inclusão social e construção da cidadania.

2 A LUTA DOS CATADORES DE RESÍDUOS SÓLIDOS DE IJUÍ NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS


SOCIAIS FUNDAMENTAIS EM BUSCA DE MELHORES CONDIÇÕES DE VIDA E RENDA DIGNA

Importante referir que a luta dos catadores de resíduos sólidos de Ijui passa
necessariamente pela ótica dos direitos sociais fundamentais, bem como pela importância
que assume o princípio da dignidade humana, ambos inscritos na Constituição Federal de
1988 para a inclusão social e emancipação econômica dessa parcela de trabalhadores
informais.

2.1 Os direitos sociais fundamentais como exigência e concretização do princípio da


dignidade da pessoa humana

A consagração dos direitos sociais na CF/88 impõe ao Estado a realização de políticas


públicas e sociais que possibilitem a concretização do princípio da dignidade da pessoa
humana que nas lições de Ingo Wolfgang Sarlet (2006, p.110)

[...] impõe limites a atuação estatal, objetivando impedir que o poder público venha
a violar a dignidade pessoal, mas também implica (numa perspectiva que se poderia
designar de programática ou impositiva, mas nem por isso destituída de plena
eficácia) que o Estado deverá ter como meta permanente, proteção, promoção e
realização concreta de uma vida com dignidade para todos [...].

Neste rumo, a relação entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais


são indissociáveis, haja vista que em cada direito fundamental se faz presente um conteúdo,
ou ao menos uma projeção da dignidade da pessoa humana fazendo com que estes sejam
inseparáveis no Estado democrático de direito. Portanto, a dignidade da pessoa humana
pressupõe o reconhecimento e a proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões,
e se esse reconhecimento estaria negando a própria dignidade aos cidadãos (SARLET, 2006).
Com efeito, a dignidade da pessoa humana constitui-se como um valor inerente ao ser
humano, sedo irrenunciável e intrasferível. Desta forma sustenta Sarlet (2006, p. 41-42) que:
706

[...] a dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é irrenunciável e


inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não
pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar a possibilidade de
determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a
dignidade. Esta, portanto, compreendida como qualidade integrante e irrenunciável
da própria condição humana, pode (deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e
protegida, não podendo, contudo (no sentido ora empregado) ser criada, concedida
ou retirada (embora possa ser violada), já que existe em cada ser humano como algo
que lhe é inerente.

Assim sendo, a dignidade é inerente a toda e qualquer pessoa humana e independe


das circunstâncias concretas, haja vista que todos são iguais perante a lei, mesmo aos
criminosos mais cruéis é garantido o princípio da dignidade humana, pois são reconhecidos
como pessoas da mesma forma, mesmo que não se comportem de forma igualmente digna
nas relações com seus semelhantes (SARLET, 2006).
Deve-se considerar, portanto, que o princípio da dignidade da pessoa humana é um
dos fundamentos do Estado democrático de direito e está determinado no art. 1º, III, da
CF/88, segundo Eurico Bitencourt Neto (2010, p. 100-101) demostra- se que:

Tem-se, desse modo, um aparente impasse: de um lado, o princípio da dignidade da


pessoa humana impõe tarefas ao Estado, sob a forma de prestações decorrentes de
direitos fundamentais; de outro tais prestações, para que se concretizem, dependem
de interposição legislativa, o que dilui sua eficácia imediata. O impasse é aparente
porque o princípio da dignidade da pessoa humana possui uma reserva de eficácia
direta: o direito ao mínimo para uma existência digna. Assim, as hipóteses de
violência à dignidade humana, pela falta de condições materiais necessárias, que não
possam ser solucionadas por regulares prestações decorrentes dos direitos
fundamentais, são combatidas pela aplicação do direito ao mínimo para uma
existência digna.

Desta forma são os direitos fundamentais que servem de meio para que se faça a
viabilização regular da dignidade da pessoa humana, através da eficácia direta e da proteção
contra terceiros, bem como da garantia de prestações materiais essenciais, as quais
necessitam da ação positiva do Estado, seja através de prestações normativas ou fáticas. A
omissão do legislador ou a insuficiência normativa que permita que seja violado a dignidade
da pessoa humana, em razão de carência de bens ou serviços essenciais a vida digna, serão
atacadas pela invocação do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual base do Estado
democrático de direito (BITENCOURT NETO, 2010).
707

Portanto, infere-se que a dignidade da pessoa humana engloba principalmente


respeito e proteção, como por exemplo, a proibição da pena de morte e da aplicação de penas
corporais, bem como o uso de pessoa para experimentos cientifico.
A afronta aos direitos sociais previstos no art. 6º da CF/88 também é considerado uma
forma de violação a dignidade da pessoa humana, pois todos precisam de condições mínimas
para viver, bem como de uma moradia adequada, o que na prática as pessoas não tem, ou
seja, estes direitos estão garantidos porém não são efetivados, haja vista a grande disputa
entre homem e capital. Sustenta Sarlet (2006, p. 90-91) que:

Com efeito, também os denominados direitos sociais, econômicos e culturais, seja


na condição de direitos de defesa (negativos), seja na sua dimensão prestacional
(atuando como direitos positivos), constituem exigência e concretização da
dignidade da pessoa humana.

Na atualidade, não existe nem a garantia de um mínimo existencial para que as pessoas
possam ter uma qualidade de vida digna, pois as necessidades básicas não são asseguradas, o
que acaba gerando a desigualdade social. Desta forma sem que o indivíduo tenha suas
necessidades básicas satisfeitas dificilmente terá condições de usufruir de sua liberdade e
construir caminhos para o seu desenvolvimento como ser humano, como é o caso dos
catadores de resíduos sólidos de Ijuí, em que pese que todos os trabalhadores que atuam
nesta área também se encontram na mesma situação (BITENCOURT NETO, 2010).
Desta maneira o direito ao mínimo existencial é uma das manifestações da igualdade
material na medida em que assegura meios para que as situações de desigualdade sejam
pressupostos que irão gerar direitos subjetivos a abstenções ou prestações por meio do
Estado.
É incontestável que o Estado deve garantir o mínimo existencial aos cidadãos e não
poderá em processo judicial invocar a cláusula da reserva do possível.
Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal (STF) em Recurso Extraordinário com
Agravo nº 639.3337, tem um entendimento assentado sobre o assunto. Ou seja, a cláusula da
reserva do possível – que não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o propósito de
fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria
Constituição – encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo
708

existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do


postulado da essencial dignidade da pessoa humana.
No entanto, percebe-se que onde não houver respeito pela vida e pela integridade
física e moral do indivíduo, sujeito de direitos que é o ser humano, bem como onde as
condições mínimas para uma existência digna constarem nos textos constitucionais e somente
asseguradas e não efetivadas, onde não houver limitação do poder, e onde o ser humano não
tiver liberdade e autonomia e os direitos fundamentais não forem reconhecidos, assegurados
e efetivados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e este indivíduo passará
a ser mero objeto de injustiças (SARLET, 2006).
Então, na medida em que há o reconhecimento de que o homem é detentor de
direitos, deve-se lembrar que a inclusão social e, no caso em discussão, dos catadores de
materiais recicláveis é premente e necessária para que possam conviver em uma sociedade
mais justa e fraterna.

2.2 Direito à inclusão social e à emancipação econômica de catadores de materiais


recicláveis por meio da Política Nacional de Resíduos Sólidos – Lei nº 12.305/2010

A geração de resíduos sólidos tem sido um dos maiores problemas enfrentados pelas
comunidades e a Lei 12.305/2010 (PNRS), mais conhecido como a Política Nacional de
Resíduos Sólidos. A referida lei foi promulgada com a intenção de encontrar alternativas para
o reconhecimento dos catadores de resíduos sólidos, apresentando alguns dispositivos que
possibilitam a inclusão social e a emancipação social e econômica destes indivíduos.
Falar em inclusão social é um tema recorrente mas, de suma importância uma vez que
muitos cidadãos ainda encontram-se a margem da sociedade e a Lei de Resíduos Sólidos pode
possibilitar o alcance de vários benefícios aos catadores de materiais recicláveis, como a
participação nos planos de gestão de resíduos sólidos e incentivo a organização desses
profissionais em associações ou cooperativas. Desta forma, o PNRS apresenta em seu texto,
meios de valorização profissional dos catadores com intuito de inclui-los no mundo do
trabalho, mesmo que de forma informal, porém, organizados em associações.
Neste sentido, Ana Carolina Parra; Bruna Ferin; Michelle Delfito; Pricila Camila
Tedes hi;àрugoàнe a iàCa dosoà àp.à àa gu e ta à ueà aài lus oà àu àp o essoàdeà
transformação pequenas e grandes, de prazos diferentes, na mentalidade dos indivíduos. Por
709

meio desse processo, a sociedade tem condições de se preparar para incluir, em seu seio,
todasàasàpessoasàse àe eç oà[...] ,àsig ifi a doà ueàoàatoàdeài lui àest ài te ligadoà o àoà
ato de excluir que nada mais é do que deixar de fora da estrutura social minorias que são
incompatíveis com a sociedade capitalista.
Ou seja, em uma sociedade capitalista preocupada com o lucro, os catadores de
resíduos sólidos, não encontram eco para as suas reivindicações, mas a Política Nacional de
Resíduos Sólidos, estabelece como um de seus objetivos, no art. 7º, XII - integração dos
catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis nas ações que envolvam a responsabilidade
compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos (BRASIL, 2010).
Importante se faz considerar que é um dos desafios para o desenvolvimento local a
implantação de ações que visem a inserção dos catadores no meio social, consequentemente
gerando gradativamente sua emancipação econômica. Destaca-se que PNRS apresenta a
opção de inclusão social dos catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis, estabelecendo
que os municípios deverão ter um plano municipal de gestão integrada de resíduos sólidos,
[...]à pa aà o ple e ta à osà p og a asà deà sa ea e to,à efo ça à aà ga a tiaà deà di eitos,à
promover a proteção social e ge a à opo tu idadesà deà i lus oà ualifi adaà eà idada ia à
(COSTA, 2017).
A partir desse contexto é imprescindível compreender a extensão das transformações
que poderão ocorrer para as pessoas envolvidas na catação de materiais recicláveis e
reutilizáveis, uma vez que o Plano Municipal de Gestão de Resíduos Sólidos, quanto a inclusão
social e a emancipação econômica, remetendo ao Programa Socioambiental REVIVA
(Reciclagem, Vivência e Valorização), criado pela Lei Municipal nº 5.096, de 07 de outubro de
2009 que tem como público alvo os catadores de materiais recicláveis de Ijuí, com a finalidade
de promover a defesa do meio ambiente, a mudança de comportamento social e a geração
de trabalho e renda.
Pode-se dizer, que sem sombra de dúvidas que esse Programa contempla ações que
busca potencializar a geração de renda das famílias envolvidas no REVIVA, porém ainda, não
foram implementadas todas as ações previstas.
Segundo o site do Município de Ijuí:
710

- A busca qualitativa e quantitativa dos materiais destinados as associações de


catadores, através do programa de Educação Ambiental, que trabalha com a
população do município.
- Promover a construção de associações de catadores, através de Empreendimentos
de Economia Solidária, estimulando a formação técnica, política e pedagógica dos
profissionais da reciclagem. Como também potencializar a geração de renda de suas
famílias.
- Projetos para a construção de galpões de reciclagem, sendo que no total serão seis
galpões instalados, iniciando-se em 2010 Os galpões irão possibilitar aos catadores
um local apropriado para realizar seu trabalho, protegidos da chuva e frio, além de
disponibilizar os equipamentos necessários para a seleção dos resíduos recicláveis
(PODER EXECUTIVO, 2017).

Referir-se ao Programa Socioambiental REVIVA de fato é ater-se a uma concepção


restrita de inclusão social, pois envolve uma parcela pequena da população de catadores que
fazem o trabalho de recolhimento e processamento dos resíduos sólidos em Ijuí.
A luta empreendida pelos catadores de Ijuí, em busca de sua emancipação social e
econômica passa necessariamente pela implantação e implementação não apenas desse
Programa – REVIVA, mas pela elaboração do Plano Municipal de Resíduos Sólidos que ainda
está em fase de discussão e elaboração.
Ademais, constata-se que no âmbito do município de Ijuí, as políticas públicas voltadas
às atividades executadas pelos catadores de Resíduos Sólidos, ainda não foram
implementadas como previstas no Política Nacional de Resíduos Sólidos, mas a Secretaria
Municipal do Meio Ambiente, está desenvolvendo pesquisas para instituir programas para
incentivar o aumento da reciclagem, para apoiar a desativação de lixões e para melhorar a
gestão local dos resíduos sólidos, em consonância com as diretrizes, estratégias e metas deste
Plano (ADAM; ARGERICH, 2015).

2.3 A luta empreendida pelos catadores de Ijuí em busca de sua emancipação social e
econômica

Com o advento do capitalismo os trabalhadores informais, dentre eles, os catadores,


acabaram por se tornar uma categoria excluída da sociedade e com isso gerou-se um grande
problema social, que para muitos não é algo a se preocupar, porém, para aqueles que estão
na situação de vulnerabilidade é algo muito preocupa do,àpoisàestesà oàseà e ai a à oà
mercado de trabalho atual.
711

Trata-se de m mundo social criado apenas para as pessoas que possuem capital, sendo
que aqueles que não possuem ou não tem qualificação profissional, se tornam vulneráveis,
ficando à mercê da boa vontade de algum empregador. Segundo Snow e Anderson (apud
DINI),à ,à p.à à uitasà dessasà pessoasà s oà t a alhado esà e luídosà doà e adoà deà
trabalho, trabalhadores sazonais (migrantes e trecheiros), famílias que perdem a moradia,
vítimas da vul e a ilidadeàso ialà[...]
Na ótica de Ana Paula Santos Diniz (2014, p. 415)

Pode-se verificar que, nessa sociedade de exclusão e dominação, manifestam-se


cada vez mais conflitos e contradições, e o Brasil, especificamente, enquanto Estado
Democrático de Direito, deve ter em suas políticas públicas o sinônimo de superação
da pobreza e da segregação espacial e social e promoção da emancipação individual
e transformação social.

Desta forma identifica-se o Estado como o grande violador de direitos humanos, pois
existem inúmeras pessoas no mundo todo em situação de vulnerabilidade social, pelo simples
fatoàdeàse e à o side adasà i úteis àaoàsiste aàp oduti oàeà o su ido ,àse doà ueàelasà oà
se encontram em nenhum desses eixos, seja por falta de emprego formal ou do próprio capital
(DINIZ, 2014).
Nesse sentido o Estado deve buscar ações/políticas de cunho emancipatório e não
meramente assistencialista, para que os catadores consigam se auto administrar, ter sua
própria renda e por consequência obter a melhoria de condições de vida, para que assim
consigam alcançar moradia adequada, saúde, educação, lazer, trabalho, tudo isso com a ajuda
do Estado, pois estes são direitos previstos na Constituição Federal em seu art. 6º. (DINIZ,
2014).
A partir deste enfoque se faz necessário contextualizar a luta dos catadores de
materiais recicláveis e reutilizáveis do município de Ijuí para mostrar como a questão está
sendo tratada no que diz respeito a inserção destes indivíduos no mercado de trabalho em
busca de uma sobrevivência decente mesmo com rendimentos insuficientes para ter
melhores condições de vida para si e possibilitar dignidade a seus familiares.
A luta dos catadores de resíduos sólidos de Ijuí tem apoio da Incubadora de Economia
Solidária, Desenvolvimento e Tecnologia Social – Itecsol/Unijuí que por meio de projetos,
entres eles, citando-seàoàdaà й o o iaà“olid iaàeàCoope ati is oà aà egi oàdeàIjuí à ueà isaà
empoderar os atores sociais envolvidos no processo da catação, possibilitando-lhes o
712

crescimento pessoal e coletivo a partir dos princípios da autogestão, solidariedade,


cooperação, ajuda mútua, viabilidade econômica.
A Incubadora de Economia Solidária, Desenvolvimento e Tecnologia Social –
Itecsol/Unijuí é ligada a Agencia de Inovação e Tecnologia da Unijuí - AGIT, é um projeto de
extensão com características interdisciplinar e interdepartamental. As atividades iniciaram em
Abril de 2004, pensada inicialmente pela Drª Noëlle Marie Paule Lechat e pelo Profº Alceu Van
der San, a partir do antigo Departamento de Ciências Sociais, com o objetivo de fortalecer a
cultura e as ações relacionadas à Economia Solidária, também proporcionando assessorias aos
grupos de reciclagem, artesanato e agricultura familiar (ITECSOL, 2017).
Um dos principais objetivos da Incubadora é no sentido de contribuir na
implementação de condições para organização dos trabalhadores em processos coletivos de
geração de trabalho e renda, tendo como referência o movimento de economia solidária, bem
como desenvolver ações para dinamizar o movimento da ES.
A Incubadora ainda desenvolve o processo de pré-incubação, incubação e graduação;
fortalecimento dos fóruns de economia solidária local, regional e nacional; mapeamento de
empreendimentos econômicos solidários. Estão incubados os empreendimentos econômicos
solidários ACATA (reciclagem), ARL6 (reciclagem), FECONSOL (artesanato) e NATUAGRO
(agricultura familiar). No setor da reciclagem a incubadora atende diretamente 33 pessoas e
indiretamente atinge um público de 110 pessoas (ITECSOL, 2017).
ásàaç esàest oàligadasà sà etasàdoàP ojetoàdeàй te s oàde o i adoà Gest oà“o ialàeà
Cidada ia:à й o o iaà “olid ia ,à e à o oà aoà P ojetoà j à itado,à й o o iaà “olid iaà eà
Coope ati is oà aà‘egi oàdeàIjuí ,àapoiadoàpeloàCNPq e as ações do PDI institucional (ITECSOL,
2017).
Cumpre registrar que os dados coletados pela Itecsol/Unijuí sobre os catadores de
resíduos sólidos da cidade de Ijuí demonstram a importância que esses trabalhadores
assumem na perspectiva dos direitos sociais fundamentais em busca de melhores condições
de vida e renda digna, possibilitando-lhes a emancipação social, política e econômica, bem
como o empoderamento de tecnologias sociais para o enfretamento do capitalismo
devastador da dignidade do ser humano.
Desta forma, o trabalho realizado pelos catadores de Ijuí inseridos neste contexto é
bastante manual, para que assim estes consigam cumprir os objetivos específicos da cadeia
713

de reciclagem do lixo, os quais devem seguir etapas específicas, que se inicia com o despejo
do lixo pelo caminhão, para que em seguida haja a separação e classificação conforme o tipo
de material. Após essas etapas o processo continua, sendo os materiais prensados para serem
compactados, organizados em fardos e pesados, para então, por fim, serem vendidos.
Os catadores da cidade de Ijuí, ainda trabalham em condições precárias. Não possuem
alguns equipamentos, como por exemplo esteira que facilita a visualização dos produtos para
a separação adequada, bem como, há falta de outros equipamentos.
Nesse sentido, os catadores de resíduos sólidos tem o lixo como produto, pois na
medida em que ele é comercializado também torna-seàu aàfo teàdeà e daàeà so e i ia ,à
pois para eles a reciclagem é um instrumento econômico, o qual gera melhoria de renda para
si próprio e para sua família (LIMA, 2013, grifo do autor).
Portanto, se faz necessário apresentar o perfil dos catadores de resíduos sólidos da
cidade de Ijuí para compreender a dimensão social, econômica e política de atuação destes
para a melhoria da estética da cidade e para colaborar com o Poder Público Municipal dando
a destinação adequada aos resíduos sólidos.
Segundo dados publicados no Diário Oficial em junho de 2016, Ijuí conta com uma
população de 83.089 habitantes, sendo o município mais populoso da região noroeste. E
dentre estes números de habitantes encontram-se os catadores de materiais recicláveis, que
trabalham incessantemente para deixar a cidade mais limpa, decorrência do crescente
consumo de produtos reciclados e descartados pela sociedade e que possibilitam-lhes ter uma
renda digna, a qual ajude na sua sobrevivência (PODER EXECUTIVO, 2017, grifo nosso).
Afirma Maria Isabel Rodrigues Lima (2013, p. 58, grifo do autor) que:

Consequentemente, é crescente a valorização de tais produtos por parte do público


consumidor. No entanto, ainda que o consumo de produtos reciclados aponte para
níveis de crescimento, podendo vir a tornar-se sinônimo de status, os consumidores
não problematizam os valores de uma sociedade baseada no consumo de
desenfreado, o qual produz desigualdades sociais e devasta os recursos naturais.
Uma sociedade que, em nome da sustentabilidade, introduz o lixo na cadeia de
reciclagem, mas tolera e naturaliza a sobrevivência de seres humanos sob condições
de trabalho insalubres e degradantes.

É inegável que os empreendimentos solidários de reciclagem, onde trabalham os


catadores, propiciam trabalho e renda para muitas pessoas que encontram-se excluídas do
mercado de trabalho formal, e encontram ali uma chance de melhorar de vida. No entanto,
714

considera-se que os empreendimentos de reciclagem promovem mais do que o sustento de


muitas famílias, mas também promovem a reciclagem de percepções e valores, além dos
benefícios ambientais resultantes da reciclagem (LIMA, 2013).
Assim, a partir deste cenário surge uma massa de trabalhadores que atuam no setor
de recolhimento de resíduos sólidos e trabalham visando encontrar uma alternativa que ao
mesmo tempo gere melhores condições de vida e renda digna e a sua atuação contribua para
a estética da cidade, deixando-a mais limpa.
Analisando o cenário econômico e social da cidade de Ijuí observa-se que estão
inseridos no contexto da realização da catação de resíduos sólidos de forma individual e
coletiva, no setor da reciclagem, 143 trabalhadores informais, formando vínculos familiares e
sociais onde o trabalho acontece (ITECSOL, 2017).
Os dados registrados acima permite que se evidencie que o desenvolvimento das
atividades no setor da reciclagem ainda não acompanha a quantidade de material reciclável
descartado pela população, denotando um descompasso entre a realidade apresentada e as
ações promovidas em âmbito municipal.
Portanto, torna-se evidente que há necessidade de uma melhor estruturação e
organização dos trabalhadores informais na área da catação, bem como apoio incondicional
do Poder Público para a implantação de iniciativas locais, solidárias para dinamização da
atividade.
Em primeiro lugar, a mobilização da comunidade para atuar em conjunto com os
catadores e o Poder Público municipal é indispensável. Isso possibilita a articulação de
políticas públicas locais, estimulando o aperfeiçoamento dos processos de gestão,
comercialização e apropriação de técnicas e tecnologias sociais para a melhoria das condições
de trabalho daqueles que enfrentam uma rotina desgastante em condições precárias,
apresentando riscos à saúde.
Desta forma, é que surge a Economia Solidária como alternativa de melhores
condições de vida e renda digna, pois os empreendimentos que surgem dessa alternativa são
o e idosà o oà u aà p ti aà eà o oà p i ípioà edu ati o,à [...]à ujoà ho izo teà à aà iaç oà
oleti aàdeàout aà ultu aàdoàt a alhoàeàdeà elaç esàe o i asàeàso iaisà aisàjustas à эIMá,à
2013, p. 90).
715

Na medida em que os trabalhadores da reciclagem passam a atuar em conjunto,


experimentam em suas vidas o gozo de direitos iguais para todos e, segundo Paulo Singer
(2003, p. 27- à [...]àoàp aze àdeàpode e àseàe p i i àli e e teàeàdeàse e àes utadosàe,àoà
orgulho de perceber que suas opiniões são respeitadasà eà pesa à oà desti oà oleti o à
intensificando as relações sociais e as vezes contribuindo para o fortalecimento dos vínculos
familiares.
Destaca-se que em função do grau de envolvimento identifica-se em Ijuí, atualmente
dois grupos incubados pela ITECSOL, quais sejam, ARL6 e ACATA e outros dois cadastrados
legal e te,à po à oà i u ados,à s oà estes,à oà g upoà doà To h o à eà áCáN,à ueà
consequentemente não são assessorados pela Incubadora, mas sim pela prefeitura. No total
estima-se que existam em torno de 143 pessoas envolvidas no processo de catação seja direta
ou indiretamente, sendo que a quantidade de material processado e comercializado varia de
acordo com o mês e com a associação, na ACATA é uma média de 3 a 9 toneladas mensais já
na ARL6 é uma média de 19 a 25 toneladas. (ITECSOL, 2017, grifo nosso).
Deve-se mencionar que em razão da decorrência do tempo e uma maior organização
dos catadores estima-se que a renda auferida mensalmente gira em torno de R$ 100,00 a
460,00 para os sócios da ACATA, já para os sócios da ARL6 a renda gira em torno de R$ 380,00
a 530,00, a quantia varia de sócio para sócio pois é calculado conforme os dias trabalhados e
o valor do material que muda constantemente, segundo dados empíricos coletados junto as
associações, contudo, ainda não registrados (ITECSOL, 2017).
A esse respeito, destaca-se a importância que assume as pesquisas desenvolvidas pelo
p ojetoà й o o iaà“olid iaàeàCoope ati is oà aà‘egi oàdeàIjuí à oàa oàdeà / àeàai daà
não computados.
Neste compasso, os catadores passam a ser protagonistas de sua própria história
gerindo seus interesses de forma que passem a negociar coletivamente imprimindo em suas
atividades princípios de autogestão, cooperação e comprometimento. Alternativa viável em
uma sociedade consumista e individualista a ES é, no momento a que melhor se apresenta e
vai ao encontro dos interesses dos grupos excluídos socialmente.
716

2.4 A Economia Solidária como alternativa de melhores condições de vida e renda digna

Ainda, é imprescindível que se estabeleça as relações existentes entre direito ao


trabalho e a Economia Solidária como alternativa de melhores condições de vida e renda
digna, pois este direito promove situações nas quais para se atingir a proclamada justiça social,
expressa no art. 170 da CF/88, possa ocorrer de uma forma menos opressiva, e o homem
trabalhador tenha liberdade de escolha para empoderar - se de uma tecnologia social que lhe
assegure condições dignas de sobrevivência, que não ocorre no atual sistema de economia
adotada no Brasil.
Nesse aspecto, surge então uma outra economia que é totalmente adversa ao
capitalismo, pensada através dos princípios da cooperação, solidariedade, autogestão, entre
outros. Com esta outra economia, denominada Economia Solidária – ES, busca-se a inclusão
social daqueles que são excluídos do mundo capitalista, dentre eles estão os catadores de
materiais recicláveis.
Desta forma, a ES tem sua estrutura baseada na valorização do ser humano e na
redistribuição igualitária da renda, para enfim ir em busca de alternativas que levem a
emancipação social e a promoção de renda digna para todos que estão à margem da
sociedade. E, nesse âmbito se encontram os catadores de resíduos sólidos, os quais labutam
todos os dias na informalidade, em busca de melhores condições de vida e renda digna, porém
vivem precariamente em uma sociedade injusta que não consegue assegurar para esses
trabalhadores os direitos sociais previstos na Constituição Federal.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A primeira constatação a que se chega ao finalizar este artigo é que a Economia


Solidária é vista de diferentes modos, para alguns ela é a condicionadora de trabalho e renda,
bem como de inclusão social, haja vista a sua capacidade de criar empreendimentos solidários;
para os movimentos sociais, ela é tida como aquela que busca mudanças nas políticas
econômicas no país, mas, também, é vista como uma espécie de empreendedorismo social,
com capacidade de minimizar os efeitos da exclusão social trazidos pelo capitalismo, porém
essa diminuição da exclusão social seria mínima, pois a mesma não teria como enfrentar
economicamente o poder do capital internacional
717

Conclui-se, também, que os catadores de resíduos sólidos, possuem características


comuns e marcantes entre si, como por exemplo a dissolução dos vínculos familiares, a
pobreza extrema, exclusão social e a negação de seus direitos mais básicos, causando assim a
sua discriminação perante a sociedade em razão das condições precárias de vida.
Por fim, cabe enfatizar a importância dos empreendimentos econômicos solidários
para a emancipação social dos grupos envolvidos no processo, alertando para o fato de que
dentre os aspectos apontados com relação as políticas públicas municipais no setor da
reciclagem, bem como assessoramento prestado pela Unijuí não são suficientes para
promover a inserção dos trabalhadores informais no mercado de trabalho e a melhoria de
condições de renda e vida digna. É indispensável a atuação conjunta entre a sociedade, poder
público e os catadores para que a efetivação do direito social ao trabalho, da renda digna e
melhores condições de vida deixe de ser uma discussão recorrente da agenda política social
para tornar-se uma realidade voltada aos excluídos.

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Acesso em: 15 abr. 2017.

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______. Lei 12.305, de 2 de agosto de 2010. Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos;
altera a Lei n. 9. 605, de 12 de fevereiro de 1998; e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12305.htm. Acesso em: 10
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______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 639 337 em ARE 639.337 AgR,
Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 23-8-2011, 2ª T, Publicado DJE de 15-9-2011. Disponível
718

em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ARE639337ementa.pdf.
Acesso em: 26 abr. 2017.

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http://www.revistapetrus.com.br/uma-visao-comentada-sobre-a-lei-da-pnrs/. Acesso em: 20
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http://www.projetos.unijui.edu.br/cidadania/itecsol/index.php/menu-itecsol/a-incubadora.
Acesso em: 17 abr. 2017.
719

A VIOLÊNCIA NO AMBIENTE ESCOLAR E A CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA DE PAZ

Carolina Attuati1
Enio Waldir da Silva2

RESUMO: Tratamos aqui de abordar o problema do impacto da violência na escola e os


desafios de se criar uma cultura de paz. Mostramos, primeiramente, como a escola reproduz
a cultura de violência, por ser um ambiente seletivo e de convivência de pessoas com enormes
diferenças culturais, sociais, econômicas e políticas. Estas diferenças não são trabalhadas nos
fazeres educativos e pedagógicos, fazendo com que se tornem ameaças, conflitos
descontrolados, estranhamentos e intolerâncias, uma vez que a fonte do aluno para estas
situações é apenas da família e da sociedade retratadas, principalmente, em mídias.
Defendemos um debate aberto, um diálogo respeitoso e uma rigorosa metodologia de
aprendizagem colaborativa (famílias, Estado, instituições) para enraizar uma cultura de paz
nos educando que serão os reprodutores da sociedade.

Palavras-chave: Educação Escolar; Cultura de Paz; Violência; Família; Igualdade Social.

1 – INTRODUÇÃO

Convivemos diariamente com os mais diversos tipos de violência e cada vez mais a ela
se torna um fenômeno social universal, não se restringindo a determinados grupos. Estando
a violência em nosso cotidiano e expressa em diversos discursos e ações podemos dizer que
ela se tornou uma cultura (SILVA, 2012).
Inicialmente, é importante que se faça uma diferenciação entre os conceitos de
conflito e de violência, os quais, muitas vezes, são utilizados como sinônimos. Conflito indica
divergências, pontos de vistas diferentes. Segundo Ames (2012), assim, o conflito não é algo
nocivo à sociedade, mas algo que sempre vai fazer parte da mesma, pois são através de
conflitos que vão ser criadas novas relações em que os indivíduos se instituem uns diante dos
outros. O que vai regular a positividade ou negatividade do conflito é a forma como ele vai ser
tratado, pois para ser positivo ele deve ser regulado pela palavra e não pela força. O conflito
é sempre controlável, quando não o é, então é violência.
A violência está ligada à noção de força, à ideia de geração de sofrimento, de dano
físi o,àpsí ui oàouà o al.àOuàseja,àelaà à u àatoàdeà utalidade,àfísi aàe/ouàpsí ui aà o t aà

1
Acadêmica do curso de graduação em Direito da Unijuí. Bolsista PIBIC/UNIJUÍ no projeto de pesquisa: Direitos
Humanos na Escola e na Educação Popular. E-mail: carol-attuati@hotmail.com.
2
Professor do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais e do programa de Mestrado em Direitos Humanos
da Unijuí. Doutor em Sociologia. Coordenador do projeto de pesquisa: Direitos Humanos na Escola e na Educação
Popular. E-mail: eniowsil@unijui.edu.br.
720

alguém e caracteriza relações interpessoais descritas como de opressão, intimidação, medo e


te o . à “áээй“;à“IэVá,à ,àp.à .
A violência é um fenômeno intrínseco à sociedade, caracterizada pela imposição de
algo por um grupo a outro, sendo refletida em alguns grupos sociais, como a escola, a família,
o trabalho, entre outros. No ambiente familiar o jovem pode sofrer violência através de
abusos de autoridade por parte dos pais, bem como através da negligência dos mesmos, ou
seja, a falta de preocupação com as necessidades básicas dos filhos, a falta de afeto, de
carinho, os quais possibilitam um desenvolvimento saudável e se não são demonstrados
podem levar o jovem a pensar que não é importante para os pais. (SOUZA, 2008).
Os jovens estão expostos todos os dias a todo tipo de violência, mesmo que não sejam
eles que sofram diretamente. Violência física, psicológica, sexual, doméstica, policial, entre
outras, são notícias veiculadas diariamente em todos os meios de comunicação, ou mesmo
presenciadas pelos próprios jovens no local onde vivem.
A mídia tem grande papel na propagação da violência na sociedade. Ao reproduzirem
diariamente a criminalidade existente na sociedade na televisão, em novelas, em jogos de
videogame, como algo normal, os meios de comunicação colaboram para a banalização da
violência, de modo que crianças e adolescentes reproduzam atos violentos. Isso tudo, aliado
a vulnerabilidade social, na qual muitos deles se encontram, contribuem para o aumento da
criminalidade e da violência praticada por eles.
Segundo Mi ia àá a o a ,à ,àp.à ,à a violência sofrida e praticada pelos jovens
possui fortes vínculos com a condição deà ul e a ilidadeàso ialàe à ueàseàe o t a .àPa aà
aà auto a,à aà ul e a ilidadeà so ialà traduz a situação em que o conjunto de características,
recursos e habilidades inerentes a um dado grupo social se revelam insuficientes, inadequados
ou difíceis para lida à o à oà siste aà deà opo tu idadesà ofe e idoà pelaà so iedade à
(ABRAMOVAY, 2002, p.30). Ou seja, a vulnerabilidade social é o abismo entre os recursos
materiais de um grupo ou indivíduo e a possibilidade de acesso às oportunidades sociais,
culturais e econômicas disponibilizadas pelo Estado, mercado e sociedade.
Essa desigualdade social é uma das causas para o crescimento da violência na
sociedade, tendo em vista que vivemos em um mundo consumista e individualista, no qual o
te àeàoà o su i àsig ifi a status ,àpode ,à e o he i e to,à espeito,àouàseja,àu à u doà
no qual está presente a ideia de que quem tem mais é superior. Ao mesmo tempo, a nossa
721

sociedade é marcada pela concentração de renda e, consequentemente, por uma


desigualdade social. Esses dois fatores aliados podem iniciar um processo de exclusão social
nos jovens, um sentimento de não pertencimento por parte daqueles que não possuem tantos
recursos, o que pode criar um ambiente propício ao surgimento de conflitos e atos violentos.
A falta de um trabalho, de uma educação de qualidade, de um sistema de saúde
acessível contribui para a deficiência de recursos econômicos, o que, por sua vez, dificulta o
acesso a bens e serviços disponíveis na sociedade, como de lazer e cultura, os quais
possibilitam um maior desenvolvimento social e uma melhora na qualidade de vida. Isso
culmina no agravamento do processo de integração social, causando um sentimento de
exclusão e a manutenção da vulnerabilidade, o que, consequentemente, pode desencadear o
aumento da violência e da criminalidade (ABRAMOVAY, 2002).
Segundo dados do Mapa da Violência: Os Jovens do Brasil, de 2014, nas últimas
décadas, a maior causa de mortalidade entre os jovens no Brasil, que antes era epidemias e
doenças infecciosas, passou a serem as causas externas, principalmente acidentes de trânsito
e homicídios. Em 2012, dos 77.805 óbitos juvenis registrados pelo SIM (Sistema de
Informações de Mortalidade), 55.291, ou seja, 71,1% tiveram sua origem nas causas externas
(WAISELFISZ, 2014).
Isso mostra que o problema da violência na sociedade, especificamente entre os
jovens, é real e deve ser notado e resolvido, não podendo mais ser considerado com algo
banal, pois a convivência e a prática da violência causam danos psicológicos aos jovens e
diminuem seu desempenho nas atividades escolares e sociais. A escola, inclusive, é um dos
lugares nos quais essa violência social se reflete.
Dessa forma, vamos tratar aqui dos impactos da violência na escola e em seguida da
construção da cultura de paz.

2.1- O REFLEXO DA VIOLÊNCIA NO AMBIENTE ESCOLAR


Atos de violência estão cada vez mais se refletindo na instituição escolar, no entanto,
eles não são frutos desta. A violência no âmbito escolar é a expressão da violência na
sociedade. Ela se manifesta no espaço escolar de diversas formas, por diferentes razões,
promovendo uma crise na função socializadora da escola. Assim, se torna importante discutir
722

como essa violência social chega à escola e como o ambiente escolar colabora para a sua
reprodução, a fim de se evitar que ela seja compreendida como algo normal.
Segundo Mirian Rodrigues de Souza (2008, p. 123),
... àaàes olaàto a-se um local de reprodução das relações e da hierarquia social,
como espaço favorável para reproduzir valores, padrões de comportamentos e
modos de se vestir, sentir e agir, sempre de acordo com os grupos dominantes,
ola o a doàpa aàoàau e toàdaàdesigualdadeàso ial .

Ou seja, a escola sofre os reflexos dos atos de violências e desigualdades externos,


presentes no meio no qual ela está inserida e acaba por reproduzir os mesmos, bem como as
condições de dominação e subordinação de determinados grupos sociais. As origens dos atos
violentos praticados pelos alunos dentro da escola estão no próprio meio no qual ele vive. As
causas da violência escolar são diversas, não sendo, no entanto, a escola, a única responsável
por solucionar esse problema, mas sim a sociedade no geral, a família e autoridades
competentes.
Dentre os vários motivos causadores da violência escolar é possível destacar a
desestruturação familiar, bem como os relacionamentos familiares conflitivos. A imposição de
práticas disciplinares autoritárias e punitivas por parte dos pais, como castigos físicos e
emocionais, pode fazer com que esses comportamentos agressivos ocorridos no interior das
famílias se manifestem no meio social e, consequentemente, no espaço escolar (SALLES;
SILVA, 2010).
No entanto, é possível dizer que a própria escola produz e efetiva certas formas de
iol ia.à “egu doà “ouzaà ,à p.à ,à aà es olaà so ializa o indivíduo de maneira
repressiva/coercitiva, reprimindo determinadas ideias e comportamentos, tornando-se
iole ta .àOuàseja,à o fo eàaàauto a,àaàp p iaàes olaà ep oduzà o po ta e tosà iole tos,à
através da violência disciplinar, a qual se utiliza de sanções e exames para manter a hierarquia
e as regras, e da violência simbólica, a qual se caracteriza pela reprodução e imposição de
ideias e valores culturais das classes dominantes. Sendo a escola um espaço marcado pela
diversidade cultural e por diferentes códigos de conduta entre professores e alunos, simples
hábitos e ações de professores e funcionários, assim como livros e textos adotados por eles
podem caracterizar uma violência simbólica, a qual vem a gerar incivilidades no espaço escolar
se a escola não souber lidar corretamente com essas diferenças culturais e sociais presentes
nela (SANTOS, 2001 e SOUZA, 2008).
723

Ou seja, pode-se dizer que, muitas vezes, os atos de violência praticados na escola são
decorrentes de uma reação social do jovem contra ela e contra a própria sociedade, por se
sentirem excluídos das mesmas e tentarem, através desse meio, serem incluídos nelas. Isso
mostra que a violência é determinada socialmente, havendo uma relação entre ela e a
exclusão e vulnerabilidade social.

Tanto mais o público jovem é desfavorecido, em termos econômicos como


culturais, tanto mais ele se confronta com a vivência do desemprego, mais ele
experimenta uma exclusão, não só de oportunidades econômicas, mas também de
um prestígio social, o que resulta em um agravamento de sua auto-estima e de sua
pe spe ti aàdeàfutu o à “áNTO“,à ,àp. .

Outro motivo para a violência nas escolas está na perda de esperanças e expectativas
em relação ao futuro, expectativas essas que antes estavam contidas na proposta da escola.
Em uma sociedade marcada pela fragilidade do Estado e das instituições políticas, o que
culmina na desigualdade social e de oportunidades, surge o sentimento de insegurança e
pessimismo, o que faz com que as pessoas diminuam suas expectativas em relação ao futuro
(AMES, 2012). Isso reflete no ambiente escolar e a escola se torna um local de manifestação
da violência.

й àu aàso iedadeàdual,à o àf agilidadeàdasài stituiç esàeài sufi i iaàdeàpolíti asà


sociais, os jovens sentem-se estimulados a transgredir as normas, estreitando os
laços de pertencimento a espaços restritos como as gangues e organizações
mafiosas, integrando-seàdeàfo aà pe e sa à áMй“,à ,àp. .

Dessa forma, há uma perda na crença da legitimidade da escola e dos diplomas


oferecidos por ela, pois eles não seriam suficientes para a promoção da ascensão social,
havendo, assim, uma preferência ao trabalho do que ao estudo, que acaba sendo visto como
algo imposto arbitrariamente. (SALLES; SILVA, 2010). Isso culmina em um desinteresse dos
alunos em relação ao que os professores propõem ensinar, o que pode os tornar agressivos,
da mesma forma que a evasão escolar pode levá-los para o mundo do crime.
Assim, se torna imprescindível que o professor crie um bom relacionamento com seus
alunos, os tratando de forma igual, respeitando suas diferenças, promovendo um
relacionamento amigável entro os mesmos, dando espaço para que participem da aula e
buscando métodos e estratégias que tornem o conteúdo interessante e que motivem os
alunos. Visto que, quanto mais conflituosa é a relação entre alunos e professores, mais o
724

processo de aprendizagem será prejudicado e quanto mais envolvido com a escola e quanto
maior a perspectiva de desenvolvimento social que o estudante vê na mesma, menos atos
violentos ele comete.
A violência se manifesta de diferentes formas no cotidiano das escolas, desde na forma
de ameaças, agressões físicas e verbais a alunos e professores até a depredação do espaço
escolar. Entre os atos de violência contra o patrimônio escolar estão desde furtos de materiais
escolares, relógios, brinquedos, aparelhos eletrônicos até a depredação de muros, janelas,
portas, salas de aula, equipamentos audiovisuais, pichações, entre outros. Frequentemente,
esses atos são classificados como vandalismo, no entanto, o fato de que, muitas vezes, ocorre
apenas depredação, sem furto, reafirma a tese de que eles são decorrentes de uma reação
social do jovem contra a escola, por se sentirem excluídos da mesma (SANTOS, 2001).
A ameaça entre alunos e de alunos a professores também é um fenômeno presente
aà es ola.à Pa aà á esà ,à p.à ,à aà a eaçaà e t apolaà u aà o eituaç oà est itaà deà
iol ia ,àli itadaà aoàusoàdaàfo çaà uta ,àseà o figu a doà o oàu àatoà ujoào jeti oà à
amedrontar, inti ida ,à ia àu aàsituaç oàdeài segu a ça,àsu li ha àsupe io idade .àOuàseja,à
a ameaça tem como objetivo estabelecer uma relação de poder através do medo.
No ambiente escolar, o sentimento de medo, insegurança, impotência causado pela
ameaça pode ser devastador para a vítima, pois ela e seu agressor convivem cotidianamente
juntos. Muitas vezes, os motivos das ameaças são banais, o que reforça a ideia de uma
violência gratuita. Ela pode ser fruto de uma tentativa de defesa, por parte do aluno, do seu
espaço na escola, de uma necessidade de ser reconhecido por desafiar a autoridade, ou
mesmo para evitar a denúncia da prática de algum ato ilícito ou indisciplinar no ambiente
escolar. (AMES, 2012 e SANTOS, 2001).
O problema das drogas na escola também é preocupante, pois, além de prejudicar o
rendimento escolar dos usuários, pode torná-los mais agressivos. Da mesma forma, a
presença de armas, tanto brancas como de fogo na escola é um problema. Segundo a Pesquisa
Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), realizada em 2009 pelo Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE) e pelo Ministério da Saúde, com alunos do 9° ano do Ensino Fundamental
de escolas públicas e privadas das capitais dos estados brasileiros, 6,1% dos alunos
entrevistados relataram envolvimento em brigas com armas brancas e 4% em brigas com
armas de fogo (MALTA, et al., 2010).
725

A Pesquisa também aponta para o sentimento de insegurança presente no caminho


de casa para a escola e no seu interior, o que impediu 6,4% e 5,5% dos estudantes,
respectivamente, de irem à escola. Esses números variam conforme a área na qual a escola
está inserida, sendo que houve maior porcentagem de insegurança no trajeto e na escola,
assim como envolvimento em brigas com arma branca e de fogo entre os alunos de escolas
pú li asà doà ueà e t eà alu osà deà es olasà p i adas.à Issoà ost aà ueà aà es olaà e p essaà asà
desigualdades e as iniquidades na distribuição dos recursos e equipamentos sociais, tendendo
a refletir a violência presente no seu entorno, e que muitas vezes a adent a à MáэTá,àetàal.,à
2010, p. 3058).
O bullying também é uma forma de violência muito presente nas escolas. Devido ao
destaque que o mesmo vem ganhando durante o séc. XXI, pela sua presença na maioria das
escolas e graves consequências, é fundamental que se discuta sobre ele. O termo bullying é
fruto do inglês bully, palavra utilizada para caracterizar uma pessoa intimidadora, um
ale t o ,à oàpossui doàu aàt aduç oàade uadaàe àpo tugu s.àйleà o p ee de

o po ta e tosà o à di e sosà í eisà deà iol iaà ue vão desde chateações


inoportunas ou hostis até fatos francamente agressivos, em forma verbal ou não,
intencionais e repetidos, sem motivação aparente, provocados por um ou mais
estudantes em relação a outros, causando dor, angústia, exclusão, humilhação e
dis i i aç o à MáэTá,àetàal.,à ,àp.à .

Ou seja, o bullying se constitui em uma relação de poder entre o agressor, o qual


normalmente é agressivo, popular e fisicamente mais forte, e a vítima, a qual geralmente é
mais sozinha, insegura e tem baixa autoestima (SALLES; SILVA, 2010). O bullying é um tipo de
violência velada, sendo visto e considerado como uma brincadeira por parte daqueles que o
praticam. No entanto, a intenção verdadeira é de intimidar, oprimir, ameaçar, discriminar,
difamar, excluir, humilhar ou até mesmo agredir fisicamente aquela pessoa que, por algum
motivo, é considerada como diferente dos demais, seja pela cor da pele, pela condição
econômica, por uma característica física diferente, por um comportamento mais tímido, mais
introspectivo, entre outros (ROSA, 2010).
O fenômeno do bullying ocorre em todas as escolas, não sendo um episódio
esporádico, mas sim contínuo, contra as mesmas vítimas. Dessa forma, suas consequências
726

são graves e merecem uma atenção especial por parte da escola, das famílias e da sociedade
em geral.
Os danos sofridos pelas vítimas são incalculáveis, pois além dos decorrentes de
agressões físicas, também devem ser levados em conta os danos psicológicos, os quais se
tornam mais complexos devido à idade da vítima, pois crianças e adolescente ainda não
possuem completo discernimento para reagir a certas situações. As vítimas do bullying
geralmente são excluídas do ambiente escolar, ignoradas por seus colegas, sofrendo caladas,
sem contar sobre o que estão vivendo para os pais ou professores. Isso pode causar à vítima
desde dificuldades de aprendizagem e de se relacionar socialmente, até a escolha pelo suicídio
(ROSA, 2010).
Segundo dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), de 2015,
divulgados em 19/04/2017, 17,5% dos estudantes brasileiros avaliados disseram sofrer
alguma forma de bullying algumas vezes durante o mês. Entre eles 9,3% relataram ser alvo de
piadas, 3,2% disseram ser empurrados e agredidos fisicamente e 7,8% excluídos pelos colegas
(TOKARNIA, 2017).
A violência escolar é uma realidade e deve ser reconhecida como tal. É um fenômeno
social que faz parte do ambiente escolar, devendo ser discutido nos âmbitos social e escolar
e não mascarado como algo normal e corriqueiro. Sendo a adolescência um período de
grandes transformações e de vulnerabilidade às influências do meio, e sendo a escola um
espaço de construção do indivíduo, é preciso que ela se fortaleça como um espaço
multicultural, aberto ao diálogo, criador de laços sociais, de esperanças futuras e
transformador de conflitos em novas relações sociais e aprendizagens. Dessa forma, é possível
diminuir e prevenir a violência escolar.

2.2- A CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA DE PAZ

Tendo em vista as consequências que a violência no ambiente escolar traz para o


processo de aprendizagem e mesmo para as relações de socialização do indivíduo na
sociedade, é importante que seja debatida na escola e na sociedade em geral formas para a
solução e prevenção dessa violência. É importante entender o papel da escola no processo de
combate a violência, bem como as formas que a comunidade externa pode ajudar, de modo
a propiciar um ambiente de aprendizagem mais harmônico e pacífico.
727

Um meio de diminuir a violência escolar utilizado por escolas em vários países, como
os Estados Unidos, por exemplo, é baseada na repressão, no aumento da segurança através
de policiamento nas escolas, instalação de detectores de metais, câmeras de segurança, entre
outros. Essas medidas são as mais populares, pois aparentam dar resultados eficientes e
rápidos, acabando com a insegurança, no entanto, elas não reconhecem as desigualdades
socioeconômicas e as especificidades de cada aluno, escola ou situação e a utilização de
medidas repressivas para combater atos violentos pode agravar ainda mais a situação. (AMES,
2012).
Assim, uma forma de combater a violência na escola, democraticamente,
considerando as especificidades e diferenças de cada um, é através da construção de uma
ultu aà deà paz,à aà ualà p op eà uda çasà i spi adas em valores como justiça, diversidade,
espeitoà eà solida iedade,à po à pa teà deà i di íduos,à g upos,à i stituiç esà eà go e os à áMй“,à
2012, p. 13). Ou seja, essa perspectiva propõe a mudança de valores e atitudes no meio social
e escolar, com a inserção de projetos que promovam esses valores nas escolas e a participação
cidadã da comunidade externa como formas de diminuir a violência.
Pa aà“algadoàeàнe ei aà ,àp.à ,àaàedu aç oàpa aàaàpazàs oàtodasàasà i i iati asà
que visam promover a coexistência pacífica com o outro e o reconhecimento da legitimidade
da posição deste outro, seja esse outro uma pessoa, um grupo, uma comunidade, uma nação
ouà aà hu a idadeà passada,à p ese teà ouà futu a .à Ouà seja,à u aà edu aç oà aseadaà aà pazà
depende do reconhecimento das diferenças dos outros, da busca pela compreensão dessas
diferenças e do poder de nos colocarmos na posição do outro.
Um meio de se construir essa cultura de paz é através da ideia da positividade do
conflito. Em um mundo repleto de diversidade e marcado pela competição e pelo
individualismo, como o nosso, cria-se um ambiente propício a conflitos, tornando-os
inevitáveis, partes da condição humana. No entanto, nem sempre eles precisam se
transformar em violência e ter resultados prejudiciais. Os conflitos podem ser construtivos
quando se reconhece a legitimidade das outras partes, buscando-se ouvir o seu ponto de vista
e, através do diálogo, chegar a uma solução pacífica, surgindo, assim, novas relações entre as
mesmas. Dessa forma, o conflito construtivo promove o diálogo, a valorização das diferenças
entre as pessoas, bem como de seus pontos de vista. (SALGADO; FERREIRA, 2012).
728

Ou seja, para se evitar conflitos violentos é necessário respeitar o outro, ouvir o seu
lado, o seu ponto de vista e, através do diálogo, da mediação, chegar a um consenso, e assim,
à solução do conflito. Ao fortalecermos nosso lado tolerante, solidário, ético, participativo, ao
expressarmos nossa opinião sem desrespeitar o outro, estaremos contribuindo para a
construção de uma cultura de paz.
Para a construção de uma educação baseada nessa cultura de paz, é necessário que a
escola incentive relações democráticas entre seus alunos, difundindo uma ética de
solidariedade, de respeito ao outro e às diferenças, utilizando o diálogo como principal
ferramenta de combate a violência. O intuito da criação de uma escola baseada na paz não é
a eliminação de todos os conflitos e diferenças entre os alunos, mas sim a discussão desses
conflitos no interior da mesma, a fim de promover formas de resolvê-los de modo não
violento, através do diálogo e do respeito, utilizando-os como meios de criar novas relações
entre os alunos, de valorizar as diferenças, de manter a coesão social e de abrir nossas mentes
para novas ideias, novas experiências e opiniões.

йli i a à aà hete oge eidade,à ouà seja,à e lui à oà dife e teà ouà oà di e ge teà pa aà
instaurar a paz entre os iguais não significa resolver conflitos, mas ser intolerante ao
conflito e às possibilidades de negociação e ressignificação por parte de todos os
envolvidos. Nesse sentido, a eliminação ou evitação pura e simples de conflitos não
à p o oto aà deà u aà ultu aà deà paz,à uitoà peloà o t io à B‘áNCO;à MáN)INI;à
PALMIERI, 2012, p.105).

Portanto, construir uma cultura de paz não significa acabar com os conflitos, mas sim
resolvê-los de forma pacífica e democrática, pois eles são uma boa forma de refletir sobre
nossas diferenças e, assim, ampliar nossa visão de mundo. Afinal, somos seres sociais, assim,
nos constituímos como sujeitos através de nossas relações com os outros. Da mesma forma,
essas relações são fundamentais para a construção de nosso conhecimento, pois cada
indivíduo tem uma experiência de vida e uma visão de mundo diferente. Assim, sem o outro,
reduziremos nossa capacidade de conhecimento, pois sem a sua contribuição estaremos
limitados a entender o mundo a partir da nossa visão apenas, reduzindo a possibilidade de
criação de novos significados e pensamentos. Dessa forma, mais do que compreender o outro,
precisamos ser capazes de aceitar e respeitar as suas diferenças, entendendo ele como um
sujeito de direitos e deveres assim como nós (SALGADO; FERREIRA, 2012).
729

Oà o flitoà àalgoài e e teàaàu aàso iedadeàde o ti aàeàplu alista.àOà o í ioà o à


o outro nos demonstra o quanto somos diferentes e o quanto podemos crescer com
os pontos de vista diferentes, mas é necessário que saibamos ouvir o outro com
paciência, consideração e sensibilidade; sabermos expressar nossos sentimentos de
ai aàouàa siedadeàse àofe de àouàhu ilha .à áMй“,à ,àp.à .

O caminho para a construção de uma cultura de paz na escola passa pelo incentivo

à oope aç oà edia teàp ti asàso iaisàeàpedag gi asà ueàte ha à o oào jeti oà


claro promover o respeito, a tolerância e a colaboração entre os alunos. Isso, no
entanto, somente será possível se atitudes e práticas de cooperação puderem se
instaurar no contexto escolar como um todo, envolvendo professores,
coordenadores, funcionários e direção. Há de se romper com a tradição do
autoritarismo e da verticalidade para que valores e as práticas compatíveis com a
cooperação impregnem interações e experiências de comunicação entre todos os
ato esàdasài stituiç esàedu ati as à B‘áNCO;àMáN)INI;àPáэMIй‘I,à ,àp. .

Os professores, juntamente com a comunidade na qual a escola se situa, têm um


importante papel na construção dessa educação voltada para a paz, pois o estabelecimento
de um trabalho coletivo é fator fundamental para a diminuição da violência. Na escola, os
professores devem considerar o conflito como uma oportunidade de estimular seus alunos ao
pensamento aberto, flexível, respeitando os diferentes pontos de vista. Isso implica no
desenvolvimento de um espaço aberto ao diálogo no ambiente escolar, que respeite as
diferenças sociais e a diversidade de expressões culturais, que permita ao aluno falar, escrever
e publicar o que produzir, bem como dar sua opinião acerca das decisões da escola e sugestões
para o melhoramento da mesma, reconhecendo-se, assim, o multiculturalismo na escola
(SANTOS, 2001 e BRANCO; MANZINI; PALMIERI, 2012).
Os professores são fundamentais para estimular nos alunos os valores da tolerância,
da democracia, da responsabilidade, da solidariedade e do repúdio a violência. Para tanto, é
preciso que eles tenham um bom relacionamento com seus alunos, baseado no respeito e na
aprendizagem mútuos, mesmo com os possíveis conflitos que venham a ocorrer entre eles,
devido a uma diferença de opinião, de idade e de posição social, sabendo como serem
motivadores, criativos, para assim, tornar o ambiente escolar mais harmonioso e prazeroso
(ROSA, 2010). Além disso, a escola deve proporcionar a discussão de temas como violência,
desigualdade, intolerância, em sala de aula, através de palestras e debates reflexivos.
No entanto, além de professores e alunos, a escola também é feita pela comunidade
no geral. Dessa forma, o combate à violência escolar passa pela participação da sociedade e
730

da família. É na família que se inicia a educação dos indivíduos, com a aprendizagem de valores
fundamentais. A falta de um referencial familiar, um modelo positivo e não violento a ser
seguido, uma direção norteadora, uma estrutura familiar que promova o respeito através do
ensinamento de valores e princípios éticos, contribui para que o indivíduo encontre o mundo
da violência, até mesmo como uma forma de chamar atenção. Um indivíduo que não foi
educado para o respeito ao outro, que não assimilou regras básicas de convivência social,
pode achar que tudo é permitido, inclusive, banalizando o desrespeito e a violência, tendo a
mesma como uma forma de resolver conflitos pessoais (SOUZA, 2008).
Dessa forma, é necessária a aproximação entre a escola, a família e a comunidade,
sendo a escola responsável por estabelecer estratégias para essa aproximação. Entre essas
estratégias pode-se mencionar o desenvolvimento e projetos extracurriculares, como
gincanas, festas, eventos culturais e esportivos abertos à comunidade, a criação de conselhos
de pais, ações solidárias comunitárias, entre outros, a fim de se resgatar valores como
cidadania e respeito e possibilitar que a família e a comunidade tenham efetivamente uma
participação na escola, possuindo acesso a suas discussões e decisões, bem como debatendo
e sugerindo formas que colaborem para minimizar a violência escolar (PRIOTTO, 2009).
Outro aspecto da participação da comunidade na escola é a presença de profissionais,
como psicólogos na mesma, para ajudar na recuperação de alunos vítimas de violência, como
o bullying, por exemplo, bem como para ajudar as famílias a detectarem a presença de sinais
que demostrem que seus filhos estão sofrendo na escola. O envolvimento de pais em conjunto
com professores e alunos é fundamental para o desenvolvimento de projetos de combate a
violência. É importante que as famílias estejam atentas ao comportamento dos filhos dentro
de casa e na escola, como a relação dos mesmos com professores e colegas, a frequência na
escola, o rendimento escolar, a entrega de trabalhos, entre outros, pois o desânimo, a falta
de vontade de ir à escola, a queda das notas podem ser sinais que esse jovem está sofrendo
violência, e muitas vezes os pais não percebem (PRIOTTO, 2009 e ROSA, 2010).
Portanto, ações de prevenção à violência devem começar em casa, com a família,
através da educação, do ensino de valores fundamentais e através do alerta aos menores
sinais de que os filhos estão passando por algum problema na escola. Quando isso não é
suficiente e a violência chega à escola, a mesma deve estar ciente de seu papel, fazendo um
731

trabalho de apoio às vítimas e conscientização dos agressores acerca da gravidade de seus


atos, o qual deve contar com o envolvimento de toda a comunidade escolar.

Todoàeà ual ue àtipoàdeà iol iaàde eàse à o atido,à ep i ido,àto adoàtodasàasà


providências para que não se propague, considerando os fatores que originam a
violência na escola e os aspectos causados por essa, cabe refletir sobre de que forma
de eàse àt a alhadaàessaà uest oà ‘O“á,à ,àp.à .

Issoà efleteàoàpapelàdaàes olaà o oà u aàati idadeàso ialà e t alàeàp i ilegiadaà ua toà


à promoção de formas não conflituosas e pacíficas de pensar e agir perante a diferença que o
out o à ep ese ta à “áэGáDO;àнй‘‘йI‘á,à ,àp.à .

3- CONSIDERAÇÃOES FINAIS

A violência só pode ser combatida quando uma sociedade tiver claro um ideal de
vivência dos indivíduos e este ideal estiver presente na consciência de cada um, nos
referenciais institucionais, nas ações de atores e agências e quando ele fizer parte do currículo
aberto e oculto da educação escolar. Ideal de vivência significa uma proposta de sociedade
justa, fruto do diálogo e dos interesses universais bem educados. Afinal, viver em sociedade é
esforçar-se contra, às vezes, nossas próprias naturezas. Em nome do quê eu faço este esforço?
Se a resposta para esta pergunta for de que é em nome de uma vida justa para todos já
estamos no início de uma cultura de paz. A escola poderia gerar este ideal de sociedade e
assim minar as relações sociais dos futuros adultos que ali estão enrizando as mentes.
Mas a escola não pode ser este ente abandonado pela sociedade e pelo Estado. Ela
precisa ser tratada como a mais importante instituição civilizacional e estar no centro do
espaço público, para todos os indivíduos passar e levarem dela as energias para a sociedade.
Por isso que dissemos que a cultura de paz é uma responsabilidade de todos. A paz está no
interior de uma cultura de diálogo, onde cada um pode passar para o outro aquilo que tem de
melhor em si, pois se não percebermos o que de bom e de justo há em nós não conseguiremos
ver o que de bom e justo há no outro e, assim, ficaremos estranhos entre nós e não
construiremos nada juntos.
Sendo a escola um espaço marcado pela diversidade cultural e social, o qual tem
como objetivo contribuir para a formação dos indivíduos, ela deve estar preparada para lidar
732

com os eventuais conflitos que essa diversidade pode gerar. A escola deve estar consciente
que conflitos e violências são uma realidade na sociedade e no próprio ambiente escolar, e
que por isso precisam ser discutidos, entendidos e tratados e assim promover valores éticos
que une escola, família e sociedade, no processo de aprendizagem.
Portanto, para a efetividade de uma educação voltada para a cultura de paz e para o
combate da violência é fundamental a afirmação de valores como respeito, tolerância e
igualdade. Esses valores devem começar a serem aprendidos no âmbito da família e
reforçados na escola, pois somente a partir deles conseguiremos criar um ambiente
democrático na instituição escolar, que possibilite a resolução de conflitos e divergências
através do diálogo e o combate à violência. Dessa forma, a escola estará cumprindo seu papel
para a construção de uma cultura de paz, bem como se afirmando como um espaço de
valorização da igualdade e da diferença, de desenvolvimento de um pensamento reflexivo e
de reconhecimento da dignidade humana.

REFERÊNCIAS

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TOKARNIA, Mariana. Um em cada dez estudantes no Brasil é vítima frequente de bullying.


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WAISELFISZ, Julio J. Mapa da Violência: Os Jovens do Brasil. Brasília: Editora Qualidade, 2014.
Disponível em: <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil.pdf>
Acesso em: 25 abr. 2017.
734

MENORES INFRATORES E DIREITOS HUMANOS

Adriana Rafaela Paz Dias1

RESUMO: Esse artigo tem como objetivo especificar quem são os menores infratores, e de
que modo eles tornam-se infratores, o que ocorre por diversas maneiras, sendo dentre esses
(em princípio) a discriminação de classes sociais, sucede-se que os indivíduos que estão
vivendo em sociedade, vivem um exemplo de tipificação, ou seja, descrito está e bem
favorecido àquele que não possui baixa renda, pois estes são subjugados antes de serem
necessariamente/precisamente reconhecidos. Além disso, trata-se de um artigo que fala
sobre a violência das pessoas que são marginalizadas socialmente, o que elas sofrem, e
ta ,àso eàaà ha adaà p oteç oàestatal ,à ueà àaàp oteç o do Estado em relação aos
humanos que nela vivem.

Palavras-chave: Menores-Infratores; Violência; Direitos Humanos; Sociedade; Proteção


Estatal.

1. INTRODUÇÃO

Preliminarmente é importante para o início deste artigo, falar sobre o significado da


palavra i f ato ,à se doà oà títuloà su jeti o,à aoà eioà deà ueà seà ita à so e teà osà e o esà
infratores, e também explica não que todos os menores são infratores. Infrator é sinônimo de
violador, ou seja, o infrator viola, é desobediente com a Lei Penal, com o Tipo Penal.

Uma criança não ameaça ninguém. É só vida, inocência e ternura. Mais que ajudar
a outros, ela precisa ser ajudada e acolhida. (...) Cada vez que nasce uma criança, é
prova de que Deus ainda acredita na humanidade. Deus acreditou tanto que quis
nasce à ia çaà f gil,à o à osà a i hosà e fai adosà pa aà oà a eaça à i gu à-
te logoàэeo a doàBoff,àe àseuàa tigoà йspí itoàdeàNatal .à

Um menor infrator, é um individuo menor de 18 anos, por isso, denominamos e


utiliza osà oà te oà e o ,à aoà es oà te po,à esseà i di iduoà à u aà ia ça,à ueà po à
situações adversas como, por exemplo, sua cor, ou seu financeiro, encontra-se à margem da
sociedade atual ( atual, e de sempre). Como o Teólogo Boff, menciona no trecho de seu
ilha teàa tigoà …àйlaàp e isaàse àajudadaàeàa olhida ,àpa aàse àaà ia çaà ueàBoffà e io a,à
ou seja, ser uma possuidora de inocência e ternura, ela deve ser ajudada e acolhida, não há

1
Graduanda em Direito pela Universidade Regional do Alto Uruguai e das Missões- URI, campus, Santo Ângelo.
– 3° Semestre.
735

meios, muito menos outras formas de fazer uma criança ser inocente e viver a infância, sem
acolhimento e ajuda.

2. ESTADO, PROTEÇÃO DE TODOS.

O momento em que o Estado, por meio de leis e politicas públicas, mostram-se


protetor e socializador dos indivíduos que nela vivem, não é o mesmo momento em que ele
mostra-se taxativo em suas escolhas. De acordo com uma pesquisa realizada pela Folha de
São Paulo, das mortes realizadas por Policiais Militares cerca de 80% das vítimas eram negros
(Duas de cada três vítimas), e a letalidade é muito maior na periferia. Desses 80%, é primordial
sa e ,à ueà e aàdeà %àfoià e ga o .
й t o,à e aiàoàpapelàdoàйstadoà ueàseàdizàp oteto ,àeàfi aàoà uestio a e to:à Oàйstadoà
pode considerar-seàp oteto àdeà ue ? .àй ide teà ueàoàйstadoàp otegeàtodosà ueàa uiàe à
sociedade vivem, e que conhecem a Lei, além disso, os Tribunais atualmente utilizam muito a
forma de sensibilidade, ou seja, a pessoa é julgada de acordo com suas peculiaridades, por
obvio esse novo modo julgador auxilia e muito na hora de tomar decisões nos tribunais, e o
Estado se torna um legítimo protetor, fazendo a real Justiça que precisamos e necessitamos
ver e sentir. Entretanto, para tudo na vida há formas de realização de atos, como também
a ei asà e tasàdeàseàagi .àPo à io,à oàpode osà julga àu àli oàpelaà apa ,àeà o de a à
alguém somente pela sua cor, o que, pelos dados Estatísticos é muito realizado.
Logo, observamos que, principalmente nas capitais, acontece muito a morte,
entretanto evidente é, que, se há um menor infrator, deve haver medidas para que não o
sejam, e que auxiliem para que o problema seja sanado. Segundo Cury (2005), a Constituição
Federal de 1988 estabelece a condição de inimputável do menor, vez que a ele não pode ser
aplicadas penas, exigindo a criação de lei específica a fim de regularizar tal situação. A lei
específica criada foi a Lei n° 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que prevê
vários direitos conferidos ao menor, dentre eles prevê a apuração de atos infracionais, seu
procedimento, as medidas aplicadas na semiliberdade.
Ainda segundo o autor (op cit.), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê
incontáveis providências socioeducativas contra o infrator: advertência, liberdade assistida,
semiliberdade, entre outras. Até mesmo a internação é possível (e internação nada mais
736

significa que prisão), embora regida pelos princípios da brevidade e da última ratio (última
medida a ser pensada e adotada).
Manifesto é, que não pode-se utilizar as regras de outros países, exemplo é a prisão de
um indivíduo menor de 18 anos, como por exemplo Canadá, Escócia, e Estados Unidos, em
casos como do Brasil, até por que somos um País emergente e totalmente diferente desses
países de 1° mundo, entretanto os menores devem ser educados, e o Estado deve
p opo io a à essaà ha adaà edu aç o,à ofe e e doà u aà p oteç oà йstatal ,à po à eio de
ensino de qualidade, cultura, e um lazer que edifique (teatro).
Dentre os doutrinadores que defendem a redução da maioridade, leciona
brilhantemente Cavallieri:

"[...] A manutenção da idade de 18 anos para o afastamento do menor, criança e


adolescente, do Código Penal é uma bandeira de todos, menoristas e estatutistas.
[...]. Quando lutamos pela conservação dessa idade, é comum ouvir-se, até de
pessoas cultas, a afirmação de que ela é absurda, 'porque, mesmo com muito menos
de 18 anos eles [sic] sabem o que fazem. ' Não lhes ocorre que o conhecimento está
ligado à imputabilidade e que, quando os doutos afirmam que os menores de 18 são
inimputáveis, querem dizer que se trata de presunção [sic] de inimputabilidade. Mas,
porque falar-se em presunção, se temos a realidade? É obvio que a partir de tenra
idade, eles sabem o que fazem. [...]. Toda esta dúvida tem sua origem na Exposição
de Motivos do Código Penal de 1940, quando o Ministro Francisco Campos escreveu
que os menores ficavam fora daquela lei, porque eram imaturos [sic]. [...]. Segundo
ele, todos os menores de 18 anos no Brasil eram imaturos. Absurdo completo. E nós
contaminamos toda a nação com esta insólita concepção. Espero que a importância
prática de uma conceituação adequada tenha sido demonstrada. Os estatutistas
merecem todos os encômios pela elevação à Lei Magna de uma aspiração comum,
mas poderiam ter aproveitado para destruir um mito prejudicial. Eles [sic] sabem o
que fazem, mas não vão para a cadeia, pois temos solução melhor para seus crimes."
(CAVALLIERI, 1997, p. 54-56)

3. REZADEIRAS, PROTEÇÃO DOS MENORES.

No momento em que o Estado é proteção de todos sendo essa proteção taxativa, no

meio em que só são protegidos quem tem riqueza, quem é branco, e quem tem ensino de

qualidade, ao que resta aos menores, menciono somente os menores infratores, pois se

tomarmos de uma maneira geral, nem todos menores são desprovidos de proteção estatal,

em meio que os mesmos possuem aquisições financeiras graças aos seus pais. O que resta aos
menores infratores é a proteção de suas rezadeiras.
737

Diversas mulheres, de baixa renda, que moram em favelas, bairros pobres, etc. Que

são marginalizadas, tem uma rotina muito parecida, ou seja, saem as 5/6 horas, batalham e

labutam a recompensa de um pão diaria e voltam só as 22/23 horas, deixando seus filhos em

casa, sozinhos na proteção de um Estado que encontra-se ausente.

áàpolíti aàdeàate di e toàdosàdi eitosàdaà ia çaàeàdoàadoles e teàfa -se-á através


de um conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais, da
U i o,àdosàйstados,àdoàDist itoàнede alàeàdosàMu i ípios .à a t.à àйCá à

A única proteção que essas batalhadoras têm, a única proteção que essas mulheres

podem dar aos seus filhos, é a oração diária. Nesse sentido, faço alusão, então, a música de

Projota - REZADEIRA:

Po ueàeuàj à iàsuaàsituaç o,àsuasàpa elaà oàfog o


Sua chinela sem cordão, sua favela, seu colchão
Sua sequela, podridão, seu caderno sem lição
Sua rabeira nos busão, seu roubo, seu ganha-pão
Sua fuga com seus irmãos, sua comemoração
Vi seu bute bonitão, seu futebol de salão
Sua garra pela função, sua marra, sua perdição
E até chorei com a sua primeira detenção
Vagabundo vai correr, vai brincar
Vai chover, vai sujar
Deixa o menino jogar, que é Sexta-feira
Praàp otege à à ueàe isteàaà ezadei a.

As diversas rezadeiras existentes no nosso Brasil deixam seus filhos em casa, e seus
futu osàdepe de àdoà ueàelesàap e de àoà ueàge al e teà oà à o àsuasà ezadei as ,à asà
sim com as ruas, e observando nesse aspecto, ueà asà uas ,à s oà asà fa elas,à o de,à
infelizmente, existem infratores perigosos, e lá os menores, que a partir desse contato e
vivência, viram infratores, aprendem a vida, e passam sua adolescência aprendendo, o que,
por obvio, não deveria nunca ser ensinado.
As pessoas tornam-se violentas quando deixam de ter opções e, quando a sociedade
deixa de ter opções para lidar com a violência, recorre a repressão, ao controle e ao
aprisionamento. A criminalidade não é fruto do acaso. É o resultado de uma equação
complexa, mas precisa.
738

Temos certeza que a solução seja o ataque as causas profundas da criminalidade, tal
como a exclusão social, desemprego, família dilacerada, violência transmitida pela mídia, falta
de educação, fome, uso de drogas, criminalidade dos detentores do poder e do capital, ou
seja, a problemática deita suas raízes no social e não no penal.
Adolescentes carentes de comida, saúde e afeto e legião de jovens lançados no mercado
do desemprego (atualmente são 4,4 milhões de jovens desempregados) são, de fato, a pólvora
do barril anti-social. É ilógico exigir um comportamento civilizado aos órfãos da dignidade
humana. Antes de o adolescente ser autor de crime, em geral, ele foi vítima.
Nada mais assertivo do que as ilustres palavras do grande Jurista e Criminólogo, Juarez
Ci i oàdosà“a tos,àdeà ueà aàso iedadeà apitalistaàaài e saà aio iaàdosà i esà à o t aàoà
patrimônio, de que mesmo a violência pessoal está ligada à busca de recursos materiais e o
próprio crime patrimonial constituiu tentativa normal e consciente dos deserdados sociais
pa aàsup i à a iasàe o i as à “áNTO“,A Criminologia Radical,2006, p. 12. )
Também, num país impregnado pelo capitalismo, o que mais poderia se esperar! (Sobre
O Tema: PRUDENTE,Capitalismo e Criminalidade, 2007.) Ou seja, que quando mais se têm
melhor é, e evidente que os jovens são assim também, e por obvio, quem não tem condições,
e observa seus mais próximos cometendo infrações penais, faz o mesmo.

4. DIREITOS HUMANOS E GARANTIAS PROCESSUAIS DO ADOLESCENTE EM CONFLITO COM


A LEI
Os direitos humanos, também se dizem liberdades individuais ou liberdades públicas,
para significar poderes reconhecidos pela ordem jurídica a todos os indivíduos e consistente
em direitos de agir ou não agir, independentemente da ingerência do Estado. Nas primeiras
declarações, além de princípios de organização política, apareceram os direitos individuais
que constituem o cerne das liberdades públicas.
Assim, no seu irromper histórico, sendo fundamentais da liberdade humana e do estado
de direito, os direitos individuais configuraram a primeira geração de direitos, contendo as
liberdades públicas propriamente ditas: liberdades de locomoção, de reunião, de associação,
de expressão, de culto, etc. Tendo como tônica a preservação da liberdade individual,
caracterizam-se como verdadeira imposição de limites ao Estado, gerando para este
obrigações de não fazer.
739

Nesse sentido, é que se pode afirmar que o maior direito passa a ser o direito de ter
direitos, ou seja, o direito de ser sujeito de direitos, na feliz expressão de Hannah Arendt, que
já se faz cada vez mais conhecida, pela sua justeza e riqueza de expressão. (Cf. Piovesan, Flávia.
Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 2.ed. São Paulo: Max Limonad, p.
140).
Logo, é importante perceber, lato sensu, que não há sociedade que sobreviva sem a
existência de direitos. Além disso ,todos somos portadores desses direitos. E nos casos dos
menores infratores, por mais que estão à margem da sociedade, eles também são cidadãos,
de direitos, e também, de deveres. Ou seja, o Estado deve protege-los e ampara-los nas
circunstancias codificadas em lei
Indubitável é que todo ser humano tem direitos, e evidentes estão no nosso código,
dentre esses direitos, menciono, principalmente, os descritos no ART 5° da nossa Constituição
Federal, que são à vida, liberdade e segurança. Todos, somos portadores desses direitos,
todavia, não definitivamente, pois como já foi mencionado, os direitos são taxativos, a
sociedade inteira é taxativa, ou seja, optam por quem acolhem e protegem.
A garantia do direito à liberdade física de qualquer cidadão, inclusive adolescente, faz
parte de todo o regime que se diz democrático. Esse direito à liberdade, declarado pela
Constituição Federal, foi recepcionado pelo Estatuto. A Constituição especifica as limitações
que convém aos interesses sociais e estipula os meios de garantia do seu exercício. Sendo,
assim, o princípio constitucional da legalidade da prisão é, consequentemente, o princípio
estatutário da legalidade da apreensão (art. 5º, inciso LVI da CF e 106 do ECAd). Em síntese,
no caso dos menores infratores, devem ser protegidos e amparados, com iguais direitos,
independente de raça, com religião etc.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo teve como pretensão expor de forma objetiva, mas ao mesmo
tempo explanando muito bem, a atuação e situação dos Direitos Humanos, juntamente com
o menor infrator na sociedade atual, objetivando e tentando assim, esclarecer pontos centrais
que evidenciam problemas ou soluções para os mesmos. Pois não podemos descontextualizar
740

a questão dos Direitos Humanos e o menor infrator com relação à organização do estado e os
avanços das gerações.
Além disso, dar visão aos indivíduos marginalizados em nossa sociedade, como no caso
do artigo, sua principal função, foi priorizar as donas de casa que tratam e criam seus filhos
sozinhos, deixando, sem ter escolha, para o Estado cuidar, por meio das instituições de ensino,
o que não o fazem, logo trata-se de um tratamento taxativo, ao meio que dão visão e amparo
somente aos que estão corretos à lei.

REFERÊNCIAS

A PACIFICAÇÃO NO COMPLEXO DO ALEMÃO QUE DEU CERTO. Disponível em:


<https://www.vice.com/pt_br/article/a-pacificacao-do-complexo-do-alemao-deu-certo>.
Acesso em 27 de abril de 2017
CURY, Munir.Estatuto da Criança e do Adolescente comentado. 7.ed., revista e atualizada.
São Paulo: Malheiros, 2005.
IDADE PENAL: TABELA COMPARATIVA . Disponível em:
<http://www.crianca.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=323>.
Acesso em: 03 de mai. De 2017
Cf. Piovesan, Flávia. DIREITOS HUMANOS E O DIREITO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL. 2
ed. São Paulo: Max Limonad,p.140)
SANTOS,A Criminologia Radical,2006, p. 12. )
Sobre O Tema: PRUDENTE,Capitalismo e Criminalidade, 2007.
TйÓэOGOàэйONá‘DOàBOнн,àйMà“йUàá‘TIGOà ESPÍRITO DE NATAL

CAVALLIERI, 1997, p. 54-56


ART. 5º, inciso LVI da CF e 106 do ECAd
741

THE DECRIMINALIZATION OF DOMESTIC VIOLENCE IN RUSSIA

Rodrigo Tonel1
Rogério de Almeida Dilkin2

Abstract: The present research aims to address in an objective and reflective way the debate
over the issue of domestic violence, starting from its concept, pointing out the theological,
historical and cultural reasons for the propagation and acceptance of this sort of crime by
some cultures and/or countries. It also tries to point out the potential victims and the harmful
reflexes caused by this kind of violence. Besides, it discusses the legislative treatment provided
by the Brazilian and Russian legislation in the search for a solution to the problem, bringing up
the current disagreement about the decriminalization of domestic violence in Russia. Finally,
it indicates some alternative ways to fight against this criminal practice, strongly present in
our society today.

Keywords: Brazilian Law; Comparative Law; Domestic Violence; Human Rights; Russia Law.

1 INTRODUCTION
It´s historical the oppression in which the female gender is victimized, the condition
for the women commonly put them into a position of submission on the family and on the
society. It just so happens because the cultural, religious and historical influences that has
been responsible to create this scenario.
When we´re going to talk about the religious influence, for instance, it is possible to
find texts in the Holy Bible (KING JAMES BIBLE, n.d., n.p. ) such as the reference contained in
the book of Ephesians, Chapter 5, Verses 22-23 which says: " Wives, submit yourselves unto
your own husbands, as unto the Lord. For the husband is the head of the wife [...]". Nowadays,
this sort of doctrine is still taught in most Christian denominations throughout the world and
in all sorts of temples, churches and synagogues.
The history of humanity in itself proves that for centuries the highest political and
eligiousàpositio sài àso iet à ould tà eào upiedà à o e ài àaàpea efulàway without either
by sacrifices or much struggle from them in a try to get the possibility of proving equal
conditions to assume such positions. What is most regrettable about all this, it is that
so eti esà e e à he à it sà e ide tà thatà so eà o e à o e o eà the men in terms of

1
Graduating law student by the regional university of northwest of the state of Rio Grande do Sul – Unijuí;
tonelr@yahoo.com;
2
Graduating law student by the regional university of northwest of the state of Rio Grande do Sul – Unijuí;
dilkin1@hotmail.com
742

intellectual and professional skills to a certain job, they aren´t allowed to assume that job just
because, so far, it´s considered a male job.
The history is stuffed by domestic abuse and even had the approval of the law for it. In
the early Roman society, women were considered property to their husbands. The Roman law
even allowed the man to beat, divorce, and in the worst case scenario, even murder his wife
when she committed some kind of offense against his honor or when she threatened his
property rights (DAVIS, 2017).
On the other hand, on the 15th century the Catholic Church used to teach that the man
was the judge of his wife so that he could beat her with a stick whenever she committed an
act considered an offense. By this bias, according to the understanding of the church, beating
was an act used for purifying the woman and at the same time it was a demonstration of real
concern from the husband to his wife´s soul. It was also a way to keep the discipline at home
(DAVIS, 2017).

2 Gender differences

We don´t need to go to a library and read a bunch of scientific books to tell that the
man´s body is different from the women´s body, we just need to look at it to see the
differences. But anyway, it´s interesting to highlight that it is scientifically proved that the male
body is muscularly stronger than when compared with the female body (GHOSE, 2015).
In accordance with a study made by the Janssen et all. (n.p., 2000), it has been proved
that in overage the women had 40% less muscle mass than men in the upper body, while in
the lower body they had only 33% less muscle mass when compared with the men. Therefore,
[…] these findings indicate that men have more SM than women and that these gender
diffe e esàa eàg eate ài àtheàuppe à od . щáN““йNàetàall.,àn.p., 2000).
Therefore, the man´s body is constituted of a greater amount of muscles than the
woman´s body so that the great majority of women have their bodies with a smaller
concentration of muscle mass. Now, as a consequence, what used to happen is that while
during the old days on the history of humanity, where the man has always been considered
stronger than the woman, it was the man who used to do the hard and heavy work.
743

Currently, however, considering all the technology developed and available with the
goal to facilitate all the jobs that require physical strength, it is now possible to include women
to a variety of jobs. So, the old claim that oftentimes said that women were the "fragile sex"
doesn´t exist anymore. The physical strength that once generated limitations for a woman not
to work disappeared as the introduction of new technologies and machines got all the heavy
work.

2.1 Specific law for domestic violence

First of all, it´s really opportune to show a definition for domestic violence
hi hà a à eà u de stoodà asà aà diffe e tà a sà ofà eha io sà […]à usedà à o eà pe so à i à aà
relationship to control the other. Partners may be married or not married; heterosexual, gay,
o à les ia ;à li i gà togethe ,à sepa atedà o à dati g. DOMй“TICVIOэйNCй.O‘G,à .à I à thisà
sense,
many writers have used different expressions to describe violence between
intimates. For some, it is a problem of women in marital relationships being
assaulted, and the terms wife abuse or wife battering are most appropriate. Others
note that the real problem is the tacit societal acceptance of violence against
women. After all, the act of battering occurs just as frequently among couples who
are dating or living together but are not married. From this perspective, the term
iole eàagai stà o e à aptu esàtheàesse eàofàtheàp o le .àOthe s,à[…]à oteàthatà
although injuries due to violence occur disproportionately against women and that
men commit more serious violent acts, both genders engage in violence. For this
reason, proponents of this perspective favor the gender-neutral terms domestic
violence, domestic assault, intimate partner violence, or intimate partner assault
because they are intrinsically less limiti g.à […]à domestic violence is operationally
defined as violence between intimates living together or who have previously
cohabited. DйнINING…,à ,àp.à ,àe phasisàaddedà àtheàautho .

The United States Department of Justice defines domestic violence (n.p., 2016):

[…]àasàaàpatte àofàa usi eà eha io ài àa à elatio shipàthatàisàusedà ào eàpa t e à


to gain or maintain power and control over another intimate partner. Domestic
violence can be physical, sexual, emotional, economic, or psychological actions or
threats of actions that influence another person. This includes any behaviors that
intimidate, manipulate, humiliate, isolate, frighten, terrorize, coerce, threaten,
blame, hurt, injure, or wound someone.

And it complements affirming that


744

Domestic violence can happen to anyone regardless of race, age, sexual orientation,
religion, or gender. Domestic violence affects people of all socioeconomic
backgrounds and education levels. Domestic violence occurs in both opposite-sex
and same-sex relationships and can happen to intimate partners who are married,
living together, or dating. (THE UNITED STATES DEPARTMENT OF JUSTICE, n.p.,
2016).

Now, much of the current controversy regarding the criminalization or non-


criminalization for domestic violence consists in the fact that a woman has the capacity of
accepting to be led by a man, however, when it comes to a man being led by a woman, the
scenario quickly changes because it feels morally wrong in the context of a conservative
society a man being led by a woman, so it doesn´t work out because the man doesn´t seem to
accept the concept of equality.
As if it wasn´t enough, beyond all the work, tasks and chores that women have to cope
with, they still become punching bags for their frustrated, cowards and angry husbands. This
is why the existence of a law for protection is indispensable.
But the problem isn´t all about violence against women, it also reflects to the children.
I àthisà o te t,àa o di gàtoàDa isà p. ,à ,à […]àChildàa useàisà àti esà o eàlikel àtoào u à
i àfa iliesà he eàdo esti à iole eàisàp ese t.à[…]à“o sàofàtheà ostà iole tàpa ents are 1000
ti esà o eàlikel àtoà e o eà ifeà eate s.
By this bias, in accordance with The United States Department of Justice (n.d., 2016),

Domestic violence not only affects those who are abused, but also has a substantial
effect on family members, friends, co-workers, other witnesses, and the community
at large. Children, who grow up witnessing domestic violence, are among those
seriously affected by this crime. Frequent exposure to violence in the home not only
predisposes children to numerous social and physical problems, but also teaches
them that violence is a normal way of life - therefore, increasing their risk of
becoming society's next generation of victims and abusers.

Though, the women are frequently victimized by domestic abuse, we have to be


sensible enough to understand that our world isn´t constituted by robots which are
programed to have the same behavior, in other words, we´re all human beings and so it´s
absolutely reasonable that each individual has different behaviors, different opinions,
different levels of tolerance and different personalities. Therefore, we have to be aware that
domestic violence doesn´t occur only against women. Sometimes the scenario reverses and it
can happen against men as well. And of course, not always the beater has to be seen the bad
745

figure on the family because according to surveys, the most common reasons why domestic
a useà o u sà a eà gi e à à […]à fa il à d sfu tio ,à i ade uateà o unication skills,
provocation by women, stress, chemical dependency, and lack of spirituality and economic
ha dshipà[…]. à DáVI“,àp. ,à .àрo e e ,àe e àifà eà ouldàe dàthoseà easo s,àtheàdo esti à
violence wouldn´t end because the reasons cited above are just able to influence or potentiate
the abuse.
Even though, some authors believe that those measures are not necessaries,
commonly affirming that the creation of a specific law sounds more like an exaggeration or
desnecessary measure based mainly by the argument that there is already a general criminal
law for everybody and so it would be responsible for ruling all kinds of violence, including the
violence that happens at home among the family.

2.2 The situation in Brazil

Brazil is also affected by the domestic violence. It doesn´t only happen against women
but also through children. So, the Brazilian legislators created a special law to regulate
domestic violence in this country which is most known as Maria da Penha Law. This name was
given by the legislato sài àho o àofàaà o e sà ightsàa ti istàafte àsheàal ostàdiedà i ti izedà
from a violent attack given by her husband who has left her paraplegic. After this event, she
then started to seek for help but soon she found out that there wasn´t any special law to
protect women from this kind of violence (UCHOA, 2016)
Therefore, the Maria da Penha Law (Law number 11.340 from July seventh of the year
2006) got the attention of lots of scholars, criminologists, lawyers, political and juristic
scientists, researchers, among many others legal professionals. It created a reinterpretation
about the idea of men and women being considered equal under the Brazilian´s Constitution.
Theà Ma iaà daà Pe haà эa à does tà iolateà a à B azilia à o stitutio alà p i ipleà à
establishing special protection in its penal form for women. The women already tired of being
victimized by this cruel and cowardly mode of violence, which hardly ever came to the public,
and when it finally came, the authorities didn´t give any attention for it, commonly affirming
that it was a private matter until the woman dies. Now, however, with this new legislation,
lots of women can finally take a rest from being severely beating from their husbands.
746

2.3 The Russian context

The analysis of domestic violence and human rights in Russia firstly requires an
evaluation of three basic elements such as ethnics, economics and finally cultural. That´s
because those three elements interfere substantially on the full enjoyment of the universal
human rights.
To a better comprehension of the situation in Russia nowadays, regardless the
domestic violence issue, we initially have to point out that throughout the history of this
extensive country a variety of things that happened on the past were able to impact the
situation on the present. First, the former Soviet Union used to be based on a paternalist
system where the figure of man was seen as the central pillar of the family, in other words,
the man was the breadwinner and the protector of the family. The woman then was seen as
a fragile figure and had to be submissive to her husband. She, therefore, had the responsibility
ofàtaki gà a eàofàtheà hild e sàedu atio àa dàallàtheàtasksà elatedàtoàtheàho eà WйIэMIN“Tй‘,à
n.d.)
I deed,à theà ‘ussia à p o e à thatà sa sà ifà heà eatsà ou,à ità ea sà heà lo esà ou à
(LITVINOVA, n.p., 2016), first appeared on a book called До о т ойà- «[Domostroi]» which
means Household on the English language and was a very known book written by the
Orthodox Catholic Church and widely spread throughout the Russian country, demonstrated
the power that the religion had over the State, basically teaching that the pillar of the family
was the man and so the woman had to be submitted to him. Whenever was necessary to
punish her by any act considered as a fault, the man then could take the necessary measures
for it, even if beating was the only or the best available way to correct his wife. According to
the Orthodox Catholic Church the punishment inflicted on the woman had the power to heal,
purify and prepare her on this earthily life for an eternal life.
Political positions also demonstrate that gender is indeed an issue, in other words,
women who work in the higher level of a political occupation represents a quite small
percentage once compared with men. And once in awhile, some candidates during campaign
periods utilize slogans such as Гу е то — у к я от – «[Governing is a male job]»
( КО « [UNESCO] », 2005, p.43, our translation) -, reflecting gender stereotypes in
politics.
747

In this sense, in accordance with Ай о «[Ayvazova]» (2016, p. 140, our


translation),

The integration of women into the socio-political life of Russia will largely depend on
the general political context, on the direction in which the women's movement will
develop, and on the changes in the mass consciousness. Such changes are taking
place. Thus, according to various opinion polls, almost two-thirds of the respondents
are aware of the fact that men and women are unlikely to have a chance in politics,
and more than half of them are convinced that the representation of women in
power structures should be equivalent to that of men. 3

At the same way, the sociologist Michael Kimmel (2005, p.114) gives his contribution
affirming that
[…]à athe àtha à esisti gàtheàt a sfo atio àofàou àli esàthatàge de àe ualit àoffe s,à
I believe that we should embrace these changes, both because they offer us the
possibilities of social and economic equality, and because they also offer us the
possibilities of richer, fuller and happier lives with our friends, with our lovers, with
our partners and with our children. We, as men, should support gender equality—
othàatà o kàa dàatàho e.àNotà e auseàit sà ightàa dàfai àa dàjust—although it is
those things. But because of what it will do for us, as men. At work, it means working
to end sexual harassment, supporting family-friendly workplace policies, working to
end the scourge of date and acquaintance rape, violence and abuse that terrorize
women in our societies. At home it means sharing housework and childcare, as much
because our partners demand it as because we want to spend that time with our
children and because housework is a rather conventional way of nurturing and
loving.

Besides, the ео декл п ело ек «[ Universal Declaration of Human


Rights]» on its Preamble says that:

Whereas the peoples of the United Nations have in the Charter reaffirmed their faith
in fundamental human rights, in the dignity and worth of the human person and in
the equal rights of men and women and have determined to promote social progress
and better standards of life i àla ge àf eedo à[…].(О О
«[UNITED NATIONS]», n.p., 1948, our translation) 4

3
те е о е т е о-пол т е ку о - удет о о о ет от о е о
пол т е ко о ко тек т , от то о, к ко п ле удет т о е кое д е е, от
пе е е о о о . к е пе е е п о- од т. к, по оп о
о е т е оо е , по т д е т ет е по де то о о т кт е е т о у
е пол т ке олее поло у е де то , то п ед т тел т о е т укту
л т дол о т о у ко у.
4
п о е, то од О ед е подт е д л т е о е у о о е
п ело ек , до то т о е о т ело е е ко л о т оп е у е
е л оде т о т о л о у п о е у улу е у ло п ол е о оде
748

Therefore, it´s evident the international preoccupation about building a more equal
society for men and women, getting rid of all kinds of abuses and violence.

2.4 The decriminalization of domestic violence in Russia

But now, what really provoked a strong discussion and was newspaper cover all around
the world was the manifest of the Russian President Vladimir Putin who signed a law reducing
punishment for domestic violence.
During an interview with the CNN television, one of the members of the Russian Duma
Vital àMilo o à hoà asài àfa o àofàsu hàla àe e àsaidàthatà […]à hatà eà allàho eà iole eàisà
otàho eà iole eà[…] .à “йBá“TIáN;àMO‘TйN“йN,à ,à .p. .
Svetlana G. Aivazova, a Russian specialist in gender studies (apud NECHEPURENKO,
.p.,à ,à iti izedà theà attitudeà ofà theà la ake sà sa i gà thatà thisà sho sà thatà Du aà
deputiesàa eà otàsi pl à o se ati eào àt aditio al,àitàsho sàthatàthe àa eàa hai . à
According to Charlotte Alfred (2014, n.p.), the Russian Federation is among the 20
countries around the world that don´t have any law against domestic violence. The lack of
specific legislation for crimes against women was always a problem in the Russian law. Though
the У оло ыйà кодек à РФ - Russian Criminal Code, Part. VII (n.p., 1996, our translation),
regulates the crimes related to bodily injuries or other crimes as following some articles to
illustrate it better: á ti leà .àI te tio alàI fli tio àofàI ju àtoàрealthàofàá e ageàG a it ;à
[…]àá ti leà .àI te tio alàI fli tio àofàэightàI ju ;à[…]àá ti leà .àBatte ;à[...]àá ti leà .à
Th eatàofàMu de ào àI fli tio àofàG a eàI ju àtoàрealthà[…]. à 5However, those articles don´t
seem to be enough to end or at least to cut down the abuses against Russian women.
According to Natalia Tumashkova (2017, n.p.), a phenomenon that frequently happens
in Russia after a attack from domestic violence is that

[…]à theà i i alà la à o à do esti à iole eà i Russia has not worked – not only
e auseà theà poli eà efuseà toà takeà i ti s à o plai tsà se iousl ,à utà alsoà e auseà
victims frequently retract complaints. Sometimes victims cannot comprehend how
wrong it is that they have been beaten: they feel they deserve it, because something

5
т т à .à ле оеàп е еà ед е àт е т à ед à до о ;à[...]à т т à .à ле оеà
п е еà ле ко оà ед à до о ;à [...]à т т à .à о о ;à [...]à т т à .à о àу т о à л à
п е е àт ко оà ед à до о
749

is wrong with them, that they somehow provoked it. They experience feelings of
shame.

Thus,

treating domestic violence as a private matter and blaming the victims are also
common practices on the part of law enforcement officials. Women victims of
violence are often blamed for having provoked the attack. In addition, the police
rarely take complaints of domestic violence seriously. If they do arrest the
perpetrator, he is often released quickly and sometimes returns to the home even
more violent than before. Local officials often have no experience in protecting
victims from further violence and thus, the fear of further violence is a real threat to
women who file complaints. Women may also be at risk of further violence by police
officials if they go to the police station. (VIOLENCE AGAINST WOMEN IN RUSSIA, p.
308, n.d.).

Another form of domestic violence that we have to take into consideration is the
phenomenon commonly defined by Marital Rape which is not specifically considered a crime
i à ‘ussia.à Ma italà ‘apeà isà any unwanted sexual acts by a spouse or ex-spouse, committed
without consent and/or against a person's will, obtained by force, or threat of force,
intimidation, or when a person is unable toà o se t. à “T‘ITOн,à .p.,à .àO l ài à‘ussia,à […]à
à %à ofà do esti à iole eà asesà esultà i à p essu eà toà ha eà se à […]. à VIOLENCE AGAINST
WOMEN IN RUSSIA, p. 309, n.d.).
Thus,

It is extremely difficult for women to report these crimes given cultural obstacles
which dissuade them from admitting that they have been involved in any sexual
activity, forced or not. Such an admission, under traditional viewpoints, makes a
woman unmarriageable, or if she is already married, such an admission may make
her vulnerable to divorce or to further violence. One interviewee acknowledged that
the subject of violence against women, including rape, is a completely taboo subject
and it is impossible for women to talk about it. (VIOLENCE AGAINST WOMEN IN
RUSSIA, p.318, n.d.).

So basically, if a woman reports this kind of crime, she would be probably a motive for
jokes and the police officer would certainly laugh at her.
Therefore, as we highlighted before that women in Russia have little influence on
politics because it´s often considered a male job, it´s perfectly understandable why women
are suffering so much on this country. If women could get direct access on the politics and
could legislate in favor of themselves as, for example, creating new laws to protect
750

themselves, the results would be probably very different and the violence could be reduced
considerably as well. By this bias,

These gender differences in political parties, and organs of state power are in many
ways not the reason, but the result of other gender disparities, primarily economic.
Political representation is only the top of the iceberg that is based on inequalities in
the labor market, access to economic sources and property. Political processes in
modern Russia are organized in such a way that no decree can help to improve the
structure of gender political representation unless political and economic agents
who control electoral processes recognize the ability of women to express and
protect their Interests or, unless the economic independence of women creates
conditions and demands their political representation. ( КО « [UNESCO] », p.
44, 2005, our translation).6

Thus, it´s absolutely fundamental for women to take part on the political debates and
decisions. This is one of the best ways to get gender equality.

3 CONCLUSION

Jackie James (p. 11, 2017) believes that

There is no simple solution to domestic abuse. If there was such a simple solution,
the problem would have been solved long ago. It is great that we learn from the past
but it is time to deal with the present and the future. Domestic abuse can no longer
be considered a private family matter but a public problem. Every one of us will
suffer from domestic abuse. We may not be abused or we may not know anyone
directly that is being abused. However, we all pay higher taxes and rising insurance
costs as a result. We need to all realize that people are suffering. The victim may be
male or female. The victim may be a child or elderly. The victim may be your sister
or your neighbor. The abuser may be your doctor, your lawyer or your best friend.
No matter what the status or economic class of those involved, it is time to act.

We all know that cultural and religious influences might be stronger in some countries
than in other. However, it´s absolutely inconceivable to use those two influences to start

6
о т к е е де е л о т е по− л т е ко о уд т е о л т л т о оо
еп о , лед т е е д у е де д п опо , пе у о е ед ко− о е к .
ол т е кое п ед т тел т о — то тол ко е у к е , о о ко− то о о од т
е е т ке т уд , до тупе к ко о е к е у , о л де о т е о т .
о е е пол т е к п о е о у т ое т к о о , то − к к дек ет
е о о о до т е де − о о пол т е ко о п ед т − тел т до те по , пок
пол т е к е ко о− е к е л , оп едел е е ул т т лек− то л п о е о , е у д т,
то е о ут т т те е . л е пок ко о е к е о т
е е о д т у ло е пот е ует пол т е ко о п ед т тел т .
751

killing people, beating people, abusing people and committing all sorts of terrible acts,
especially against the weakest groups such as women and children.
If we are considered rational beings, so why are we still doing those kinds of things?
Until when is it considered rational to kill, beat and commit all kinds of atrocities against a
human being just to guard the dogmas created by a religion or a culture? Unless, the word
atio al àhasà ee à epla edà àa othe à ea i g,à utàsoàfa à eàk o àitàis ´tàtheà ase.àà
Educational programs would be able to change considerable the actual scenario in
Russia as well. According to е к «[World Bank]» (2006, p. 35, our translation)

[...]The proportion of women with some level of education has been steady by 54%
between 1989 and 2002. Previous data (1989) as well as current data (2002)
corroborate the fact that, except for the level of primary vocational education,
women at all other levels of education are still higher than men [...]. 7

This is a good sign, nevertheless it´s necessary a kind of education that preaches the
equality and mutual respect between genders. This is not the best way, it´s the smartest way
to grow a more equal and less violent society. Another thing that should be done is the
introduction of an appropriate gender sensitive training and education for the police in order
to cope with domestic violence in a special way.
Taking steps against marital rape and its consequently criminalization is something that
the government and the lawmakers have to take into consideration, after all no one deserves
to be treated in such a degrading way.
The Brazilian Maria da Penha Law give us a good example that a specific law for
women´s protection can really work out and bring lots of benefits women who are constantly
beating and suffer all kinds of violence at home. It also demonstrates an alternative and
different way of promoting human rights, respect and equality between men and women.

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7
[…]à ол е ед л , е о о е е е л о т л л 1989 2002 . по 54%.
е (1989 .) о лее по д е (2002 .) д е подт е д т, то кл е е те
л о оп о е о л о оо о , кол е т о е е о т л у о п одол ет
о т п е у е т о по от о е к у [...].
752

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754

POLÍTICAS PÚBLICAS, DISCURSO JURÍDICO E APROXIMAÇÃO POPULAR EM RELAÇÃO AOS


AGRICULTORES DE VIDEIRAS EM BENTO GONÇALVES, RS

Camila Paese Fedrigo1

Resumo
O presente artigo tem por objetivo discutir os mecanismos passíveis de concretizar o
reconhecimento da função socioambiental da propriedade rural apta a lidar com as
particularidades ambientais e sociais da região do entorno de Bento Gonçalves,
precipuamente o distrito de Faria Lemos, caracterizada, sobretudo, pela presença da pequena
propriedade vitivinicultora rural. O direito de propriedade passou por modificações as quais
buscaram torná-lo um direito solidário e apto a servir os interesses sociais. Face a presente
crise ecológica instalada em terrae brasilis, além do cunho social, o direito de propriedade
também tem sido compreendido sob o enfoque ambiental. Nesse viés, muito se reflete sobre
o tema, buscando-se estabelecer meio jurídicos que possam concretizá-lo. Assim, partindo-se
do reconhecimento das características próprias da região, o presente estudo visa instaurar
uma nova perspectiva acerca da função socioambiental da propriedade rural, que esteja
baseada nos princípios do direito ao desenvolvimento sustentável e da participação
comunitária. Esta cidadania, por seu turno, emerge da cultura democrática, aqui construída a
partir da concepção habermasiana sobre o espaço púbico. Nesse espaço, assim, o Direito tem
o papel de atuar como efetivo mediador no conflito ambiental existente na região. Com
relação ao método que norteia o texto, ao demonstrar-se a lógica do desenvolvimento do
raciocínio utilizado, opta-se pelo método analítico – a pesquisa é do tipo bibliográfico e
apresenta os entendimentos doutrinários necessários para demonstrar, com maior clareza, os
relevantes aspectos do artigo, com contributos de um colono da Linha Alcântara, pai da
autora.

Palavras-chave: Meio Ambiente; Bento Gonçalves; Faria Lemos; Vitivinicultura; Função


Socioambiental da Propriedade Rural

INTRODUÇÃO

Há uma profunda crise hodierna que põe em xeque o paradigma cartesiano e


desenvolvimentista proposto pela modernidade. O desenvolvimento e preservação da
natureza são termos antagônicos – o primeiro, geralmente, sobrepondo-se ao segundo.
Entretanto, os problemas ambientais que hoje vivenciamos e a certeza da finitude dos
recursos naturais impõem a necessidade de uma revisão deste conflito, com a devida
conciliação desses diferentes fatores e a proposta de alternativas ao meio produtivo atual.

1
Mestranda em Direito pela Universidade de Caxias do Sul. Pós Graduada em Direito Constitucional e
Administrativo. Pós Graduada em Direito e Processo do Trabalho. Advogada. E-mail: camila@cpfadvogada.com
755

Nessa toada, muito se discuto a respeito dos danos ambientais advindos do processo
da industrialização e da disseminação da sociedade hiperconsumista. Os dados científicos
demonstram que a crise que hoje enfrentamos traz consequências importantes para o
ambiente rural.
Esta crise ecológica no âmbito da produção rural tem reflexos significativos na Região
da Serra Gaúcha, situada no Nordeste do Estado do Rio Grande do Sul, que apresenta como
característica marcante a propriedade familiar vitivinicultora. O predomínio de uma
exploração antropocêntrico-utilitarista fez surgir uma crescente preocupação com as
consequências advindas da intervenção do homem sobre esse ecossistema regional.
Em virtude da importância da atividade rural dessa região, e, por conseguinte, da
propriedade rural, é necessário estabelecer uma releitura jurídica do seu conteúdo, visando a
sua função socioambiental. O interesse pela adoção de uma nova perspectiva no que tange às
preocupações ambientais na região é objeto de consideração desta pesquisa – a preocupação
com a preservação ecológica nessa área fomenta a necessidade de conciliar o
desenvolvimento rural com a preservação do meio ambiente, assim como os aspectos sociais
com a conscientização ambiental.
Esses conflitos também necessitam de superação pelo Direito, eis que na atualidade,
a complexidade das questões ambientais exige que os conceitos e instituições jurídicas sejam
revistos, em vista de tornarem-se aptos a proteger o meio ambiente sem, todavia, inviabilizar
as condições de produtividade dos agricultores familiares.
Sendo assim, o presente artigo tem como objetivo compatibilizar a aplicabilidade da
legislação ambiental na Região da Serra Gaúcha, principalmente o distrito de Faria Lemos que
fica no Município de Bento Gonçalves, a partir da consideração de suas características
agrárias, culturais e históricas, com o intuito de não tornar a preservação ambiental na região
um empecilho para a continuidade da atividade rural.
O tema merece destaque e aprofundamento teórico, eis que se costuma invocar o
discurso jurídico dogmático e o necessário cumprimento de normas ambientais para a
efetivação da proteção ambiental. No entanto, isso não tem se mostrado eficaz e eficiente, e,
muitas vezes, tem posto em risco a própria atividade rural no entorno de Bento Gonçalves.
Afinal, os pequenos agricultores da Região encontram dificuldades diversas para se
adequarem aos padrões exigidos pelas normas ambientais e a total desconsideração das
756

particularidades regionais – aliada, ao sempre baixo preço da uva -, comprometendo a


viabilidade econômica das pequenas propriedades agrícolas.
Trata-se, pois, de reexaminar a legislação ambiental sob enfoque da multiculturalidade
e da transdisciplinaridade, que abarque as complexidades que cercam a problemática
ambiental no meio rural desta região. Nessa senda, busca-se o princípio da função
socioambiental da propriedade rural, inserido no texto da Constituição Federal de 1988, uma
nova perspectiva, que esteja apta à compatibilização de interesses sociais e ambientais ante
as particularidades encontradas na Região do entorno de Bento Gonçalves.
Com relação ao método que norteia o texto, ao demonstrar-se a lógica do
desenvolvimento do raciocínio utilizado, opta-se pelo método analítico – a pesquisa é do tipo
bibliográfico e apresenta os entendimentos doutrinários necessários para demonstrar, com
maior clareza, os relevantes aspectos do artigo com contributos de um colono da Linha
Alcântara, pai da autora, Sr. Ildo Fedrigo. A investigação quanto à problemática apresentada
neste trabalho baseia-se na confluência de três temas distintos: a função socioambiental da
propriedade rural, a propriedade rural e o meio ambiente no contexto do entorno da cidade
de Bento Gonçalves, e finalmente o (re) pensar a função socioambiental da propriedade rural
na região citada e possíveis perspectivas rumo à construção da cidadania.
Ainda, considerando que há evidências em pesquisas cientificas realizadas pela
Secretaria Municipal da Saúde de Bento Gonçalves de que os agricultores de videiras do
distrito de Faria Lemos, em Bento Gonçalves, estão sujeitos a intoxicação e morte em
decorrência da exposição prolongada aos agrotóxicos e que a comercialização e o uso são
lícitos e ainda incentivados pelo Poder Público, como proteger juridicamente os agricultores,
sujeitos de tais lesões?
Assume-se uma ideia de que um desenvolvimento rural sustentável deve ser capaz de
trazer à tona um paradigma novo que concilie a atividade rural com a conservação do meio
ambiente e, por outro lado, acredita-se que o princípio da participação comunitária coloca a
ideia de que, para a resolução dos problemas ambientais, deve ser dado especial ênfase à
cooperação entre o Estado e a sociedade, dada pela participação dos diferentes grupos sociais
na formulação e na execução da política ambiental.
Ao fim e ao cabo, tentará se comprovar que ao adotar tais princípios como base da
função socioambiental da propriedade rural na região, ter-se-á como consequência o
757

fortalecimento de uma cidadania participativa e dialógica a qual é fundamentada no discurso


habermasiano – assim, indicasse que o ponto de convergência para os conflitos, reflexões e
discussões ambientais centra-se na prática do agir comunicativo, o que em outros termos,
significa democratizar os processos decisórios ambientais.

1 A relação homem-natureza

Com o intuito de preencher a lacuna de pesquisa sobre agrotóxicos na região de Faria


Lemos, entre teoria e prática, numa conexão entre direito e agricultura, a pesquisa realizada
neste artigo busca trazer à baila a questão de como são utilizados os agrotóxicos pelos colonos
da região de Faria Lemos, no cultivo de videiras, mormente se considerarmos a função
socioambiental da propriedade.
Quando chegaram, os imigrantes italianos estabeleceram seus lotes e dedicaram-se ao
trabalho na agricultura, cultivando produtos diversificados, e erigiram casas provisórias. Para
isso,à des a a a à aà ataà e à o st uí a à u aà esp ieà deà uo oà paese (CAPRARA;
LUCHESE, s/d).
Em Faria Lemos alguns assentaram-se e hoje encontramos uma produção agrária de
subsistência, onde a policultura prevalece e as famílias plantam para o uso próprio e para a
venda. A tradição foi mantida desde os primeiros imigrantes (CAPRARA; LUCHESE, s/d).
Juntamente, tem-se o cultivo de videiras e a produção de vinhos.
Alicerçada na produção de um bem primário, cuja oferta dificilmente permite
previsões aproximadas e cuja demanda se mostra flexível a flutuações, já que seu consumo
não integra os produtos essenciais, a viticultura apresenta problemas bastantes graves em
determinados anos, quase sempre gerados por safras abundantes não compensadas pela
comercialização do produto final. Com o objetivo de tornar mais cômoda a vida desses
colonos, e a necessidade vital de dominar os perigos naturais (PARDO, 2003, p. 109) passou a
utilizar agrotóxicos.
O homem, desde os mais remotos tempos, modifica a natureza em busca de espaço e
alimento. Nesse diapasão, o desenvolvimento agrícola pemitiu maior produção de estoque e
possibilitou o aumento dos lucros. Entretanto, a modificação da natureza para a instalação do
758

sistema de produção agrícola levou a desestruturação ecológica do meio ambiente eis que
foram removidas linhagens para o plantio do monocultivo.
O controle químico surgiu como medida corretiva para o desequilíbrio ambiental
trazido pelas pragas, assegurando a proteção contra a baixa produtividade. Variados
compostos químicos capazes de combater insetos, fungos e ervas daninhas foram criados por
meio de experimentos baseados no medo de tentativa e erro.
O debate da sociedade de risco envolve uma interdisciplinaridade típica da temática
ambiental: o relacionamento direto da filosofia, das ciências jurídicas e sociais, ciência política,
desenvolvimento sustentável, ecologia, geografia e ciências das mais variadas.
O enxofre e o sulfato de cobre, utilizados hodiernamente no cultivo das videiras, por
exemplo, já eram utilizados pelos romanos no controle das pragas, mas foi no século XIX, na
segunda metade, que começaram a ser desenvolvidos produtos sintéticos. Essas substâncias,
conhecidas como e e os à u àp i ei oà o e toàfo a àutilizadasàta à aà“egu daà
Gue aàMu dialàeàdepoisà odifi adasàeà e didasà o àoàtítuloàdeà defe si osàag í olas à sic).
Ca eàdesta a àa uiàaà o t o siaàe iste teàa e aàdaàe p ess oà ag ot i os ,à e à
como justificar a opção feita neste trabalho pelo seu uso. Há inúmeras denominações
relacionadas a esse grupo de substâncias químicas utilizadas no controle de pragas (animais
ou vegetais) e doenças que atacam as plantas, tais como praguicidas, defensivos agrícolas,
insumos agrícolas, pesticidas, remédios de planta ou simplesmente veneno.
Vários autores criticam as expressões que acabam por maquiar ou minimizar seus
efeitos tóxicos, como praguicidas ou defensivos agrícolas:

É criticável, constituindo um verdadeiro eufemismo, o uso do vocábulo defensivo


agrícola para nominar um produto químico venenoso usado na agroindústria, que já
serviu de arma de guerra. Os agentes químicos usados na lavoura têm efeitos mais
destrutivos do equilíbrio da biosfera do que defensivos. A denominação praguicida,
por sua vez, sob o ponto de vista técnico científico, é também inadequada, isto
porque não se pode chamar de pragas os organismos que circunstancialmente
prejudicam a lavoura. Mesmo que assim se possa considerá-los, com o uso de
agrotóxicos também morrem organismos e micro-organismos que, longe de serem
nocivos, não podem ser nominados pragas. A expressão pesticida, embora de uso
corrente, é também incorreta. Não se cuida, a toda evidência, de matar peste,
doença epidêmica grave e contagiosa.(VAZ, 2006, p. 22)

Enfim, na questão dos agrotóxicos que hoje são utilizados no combate às ervas
daninhas que ficam no solo onde é plantada a videira, merece destaque o glifosato, que
759

demonstra como como (não) atua o direito na proteção dos direitos e garantias
constitucionalmente previstos, reafirmando uma relação profundamente desigual entre, de
um lado, os beneficiários maiores do modelo agrícola e, de outro, os trabalhadores rurais, os
consumidores, a coletividade titular do bem ambiental.

Impasses sem-número se relacionam ao império do agronegócio, constituindo-se


próprio exemplo de como a lógica de mercado age como mecanismo de apropriação
privada do ambiente enquanto bem comum – esta apropriação, estranhamente, é
guaridada pelo Direito na medida em que são favorecidas pelos poderes públicos,
além do fato de não existirem instrumentos processuais apropriados para que seja
arguido abuso de direito no exercício da atividade econômica. (SILVEIRA, 2014, p.
183)

O paradigma de mercado, embora negue a separação entre proprietários dos meios


de produção e trabalhadores, e pregue a gestão coletiva dos resultados e decisões,
empreendimentos e economia solidária, funda-se num sistema que recompensa os
empreendimentos mais agressivos do ponto de vista ambiental e sanitário, valorizando
objetivos diametralmente opostos aos direitos humanos, e ao direito fundamental ao meio
ambiente, à vida, à dignidade e à incolumidade física. Não se trata de negar os benefícios da
tecnologia na agricultura de videiras, mas de fazer notar a abusividade que o exercício de
alguns direitos importa para os direitos de outrem (FEDRIGO; SILVEIRA, 2016, p. 526-547).
A falta de conhecimento científico acerca dos efeitos adversos dos compostos
químicos utilizados continua sendo motivo de (des)preocupação. Veja-se os casos como o do
amianto, do benzeno e do DDT, que mostram que nem sempre no momento da inovação é
possível que se elenque todos os efeitos deletérios para a saúde humana e para o meio
ambiente (INCA, 2017).

Algumas substâncias químicas têm causado danos graves na saúde humana,


provocando sofrimento e morte prematura, bem como no ambiente. Exemplos bem
conhecidos são o amianto, que se sabe ser causa de cancro do pulmão e de
mesoteliomas, ou o benzeno que provoca leucemia. Um uso abundante do DDT teve
como resultado perturbações na reprodução das aves. Embora estas substâncias
tenham sido totalmente proibidas ou sujeitas a outros controlos, as medidas só
foram tomadas depois da ocorrência dos danos, dado não se dispor de
conhecimentos sobre os impactos adversos dessas substâncias químicas antes de
estas serem utilizadas em grandes quantidades. (COMISSÃO DAS COMUNIDADES
EUROPEIAS, 2001)
760

No caso dos agrotóxicos, tal como ocorreu com o DDT, é normal que a substância seja
largamente utilizada para só então, após um longo prazo, ser banida em virtude de posterior
descoberta de riscos para a saúde ou para o meio ambiente. E com relação particular aos
efeitos dos agrotóxicos, em 1991 Pimentel já apresentava estudos demonstrando que menos
de 0,1% dos pesticidas aplicados às culturas atingem de fato as pragas-alvo, portanto, uma
grande quantidade desse produto era perdida e largada no solo durante o processo de
aplicação, descendo aos lençóis freáticos e contaminando a biota (PIMENTEL, 1995, p. 25).
O desequilíbrio ambiental faz que os animais inertes aos agrotóxicos sejam
selecionados pelo fenômeno darwiniano da Seleção Natural e se multipliquem, e os
agroquímicos vão perdendo sua eficácia, levando os agricultores a aumentar as doses ou
recorrer a novos produtos. Assim, surgem também novas pragas, ao mesmo tempo que parte
do patrimônio genético é destruído (LONDRES, 2011, p. 21). Nodari explica que por mais que
se justifique que os agrotóxicos devam ser utilizados no combate a pragas ou doenças em
plantas e animais o que se verifica é a evolução de resistência em mais de centenas de espécies
de insetos, fungos, bactérias ou de plantas aos agrotóxicos (LONDRES, 2011, p. 21).
Nesta direção, podemos concluir que uma grande parcela da população está exposta
aos efeitos nocivos de produtos agrotóxicos. A contaminação destas pessoas, muito
provavelmente, pode ser devida à maneira como, individual ou coletivamente, identificam e
se posicionam diante dos riscos a que estão expostas. Assim, o conhecimento destes riscos é
fundamental para a construção de estratégias de intervenção sobre o problema.
Há então uma perda de potencial, segundo Enrique Leff, dos países em
desenvolvimento, que é provocada pela introdução de padrões tecnológicos inapropriados,
e à o oàpelaà i duç oàdeà it osàdeàe t aç oàeàpelaàdifus oàdeà odelosàso iaisàdeà o su oà
que geram um processo de degradação de seus ecossistemas, de erosão de seus solos, de
esgotamento de seus recursos e de extermínio de suas cultu as эйнн,à ,àp.à
O imigrante que aqui se instalou muito não respeitou a legislação florestal (e ainda não
respeita) por falta de uma conscientização preservacionista. O desmatamento contribuiu para
a perda de fertilidade do solo e para o desequilíbrio da água dos rios e das fontes. Ainda,
problemas como a erosão, poluição dos recursos hídricos e a poluição atmosférica estão
presentes em grande parte da região. Para os agricultores, o segundo aspecto salientado por
Rampazzo (1998), ou seja, a erosão, teria diminuído, porém como nas últimas décadas muitos
761

deles têm intensificado o uso de agroquímicos, tem ocasionado a morte de espécimes


vegetais e problemas de saúde no homem.
A falta de rigoroso cumprimento da legislação ambiental e sanitária, incluindo a
fiscalização destas leis e das ações das empresas de agrotóxicos e seu uso, são também formas
de desrespeito aos direitos humanos à alimentação, à vida, à saúde, à água em relação aos
agricultores. Não há uma iniciativa governamental para avaliar o nível de impacto dos
agrotóxicos na saúde das comunidades rurais, e é pouco conhecido o índice de contaminação
da água, do solo e dos alimentos. A falta de proteção em relação ao uso de agrotóxicos ameaça
a adequação dos alimentos, pois por estarem cercadas pelos colonos que fazem uso de
quantidade de agrotóxicos, há fortes indícios de contaminação dos poucos alimentos que as
comunidades conseguem plantar e da água que consomem.
Destarte, se pode constatar que existe um contexto econômico e político nacional que
vulnerabiliza a saúde da população brasileira por meio da contaminação por agrotóxicos.
Ressalte-se, ainda, que a distribuição dos riscos e danos não acontece de forma homogênea
entre os diferentes grupos populacionais, caracterizando a produção de desigualdades e
injustiças ambientais que penalizam especialmente povos e comunidades tradicionais do
campo, empregados dos grandes empreendimentos agrícolas, trabalhadores e moradores em
verdadeiras zonas de sacrifício onde esses químicos são fabricados ou consumidos, no campo
e nas periferias urbanas (REDE BRASILEIRA DE JUSTIÇA AMBIENTAL, 2001).
Cabe, portanto, à sociedade questionar em que medida os marcos epistemológicos e
metodológicos com que operam a ciência moderna e sua tecnociência são adequados e
suficientes para abordar esses problemas, em cuja gênese elas mesmas contribuíram.
A ciência hegemônica hodierna, então, fragmenta a complexidade do problema – que
envolve relações econômicas, políticas, sociais, ecológicas e técnicas – e responde com o
reducionismo e a simplificação: debruça-se na definição de quantidades máximas de
agrotóxicos, que supostamente seriam compatíveis com a saúde e o ambiente, e estabelece
ú e os.à“o eàessaàpe spe ti aàeàessesà ú e os ,às oà o st uídasà o asàeà egulações que
possi ilita ia àoà usoàsegu o àdeàag ot i os,àapoiadoàpeloà o ito a e toàeà ast ea e toà
de alimentos contaminados, o uso de equipamentos de proteção individual por trabalhadores
t ei ados àeàaàfis alizaç oàa ie tal.
762

Como defende Petersen (2015), constrói-seàassi àu aà li dage àepiste ol gi a,à


ueàp oduzàaà o fia çaàpú li aàdeà ueà esta osàp otegidos à sic) e da qual resulta também
uma blindagem jurídica para as corporações responsáveis pela disseminação dos
agroquímicos, ao possibilitar que a responsabilização pelos agravos e impactos sejam
transferidas para as próprias vítimas. Muito além, tal abordagem científica, aparentemente
neutra e enunciadora da verdade, constitui-se como base para a elaboração de políticas
públicas que deveriam proteger os direitos constitucionais à saúde, ao trabalho e ao ambiente
equilibrado.
Os liames dos parâmetros estabelecidos para a exposição aos agrotóxicos não são
informados à sociedade - pelo contrário, os parâmetros são apresentados como padrões
científicos, verdadeiros, neutros e seguros.
Também não são explicitadas as incertezas relacionadas ao fato de que tais padrões
refletem o conhecimento disponível naquele momento, podendo ser alterados quando
surgirem técnicas de detecção mais precoce de efeitos ou novos estudos que alertem para
riscos não considerados.
Ainda, é de se frisar as diferentes rotas percorridas pelos agrotóxicos, quando lançado
no meio ambiente. Uma vez que a persistência, inativação, ou ação sobre organismos não-
alvo varia de acordo com a classe do agrotóxico, a estrutura molecular, o modo de aplicação,
a intensidade de uso e as práticas agrícolas ela pode se alterar.
E não precisa nem ir muito além. Letícia Rodrigues da Silva, gerente de normatização
e avaliação da Anvisa, em entrevista a IHU Online (FACHIN, 2017), exara que embora haja
fiscalizações nas fábricas de agroquímicos, de treze agrotóxicos fiscalizados, onze possuíam
alterações nas fórmulas autorizadas pela Anvisa - registravam uma formulação e depois
substituíam os componentes daquela formulação e produziam produtos com outra classe
toxicológica.
Na literatura científica internacional já se desenha, com detalhamento e farta
constatação por renomados pesquisadores, os limites planetários afetados no Antropoceno
conhecidas como fronteiras planetárias, como o aquecimento global, a acidificação dos
oceanos, a rerefação da camada de ozônio, a perda de florestas, de biodiversidade, a poluição
das águas, a poluição química, o ciclo do fósforo e do nitrogênio. A gestão ambiental não
prosperará sem que se considere estas condicionantes.
763

Segundo Rampazzo (1998), entretanto, entende-se que a inexpressiva área atual


ocupada pelas matas nativas é dada pela pressão econômica, do baixo nível educacional dos
proprietários rurais e da inexistência de conhecimentos científicos para uso sustentável da
propriedade rural.
Verifica-se uma visão ambiental ausente, sendo ausente também a preocupação com
a preservação do ecossistema para as futuras gerações. Como dito, o colonizador da Serra
Gaúcha desconhecia limitações ambientais, tendo sido orientado a ocupar o território. Ao
contrário, foi a ele dada a missão de ocupar e desenvolver um espaço ainda dominado pela
força bruta da natureza, a qual necessitava ser domesticada. Dessa forma, o colonizador-
imigrante foi ocupando as encostas dos morros, as margens dos rios, desmatando florestas,
no intuito de garantir sua sobrevivência. Hodiernamente, entretanto, a emergência da crise
ambiental impõe uma série de limitações ao exercício odo direito de propriedade, dentre as
quais a necessidade de preservação e cuidado com o meio ambiente.
Atender a função social da propriedade privada depende do cumprimento do requisito
i) econômico, que trata de níveis satisfatórios de produtividade; ii) o ecológico, segundo o qual
a propriedade deve assegurar a adequada utilização dos recursos naturais e preservação do
meio ambiente; iii) trabalhista, em que a propriedade deve observar as disposições legais que
regulam as relações de trabalho justas entre os que a possuem e os que a cultivam e iv) o
social, pelo qual a propriedade deve favorecer o bem-estar dos proprietários e trabalhadores
que nela labutam, bem como o de suas famílias (SILVEIRA, 2014).
No entanto, como visto a função socioambiental não se limita a verificar a
produtividade e a extensão de uma determinada propriedade rural, mas deve fazer que cada
porção de terra seja efetivamente aproveitado, tanto no aspecto social, como na preservação
ambiental.
Como refere Ayala, citado por Silveira, o direito de propriedade rural é uma das formas
do exercício da apropriação acerca de um bem, e não podem se desviar dos usos admitidos
pela Constituição conforme sua função social.
764

2 O reconhecimento do discurso jurídico da função socioambiental da propriedade rural e o


discurso jurídico em consonância com a comunidade local

Aqui se parte da ideia de que o meio ambiente em se tratando de propriedade rural é


um bem comum, que é paulatinamente expropriado. O modo de uso da propriedade rural,
com o uso frenético de agrotóxicos é exemplo translúcido da interferência do mercado na vida
do agricultor, que se reflete em toda a sociedade.
Não se possui dúvida de que o uso abusivo de agrotóxicos é um ato violento contra a
população em geral, ferindo a noção de um meio ambiente ecologicamente equilibrado e a
função social e ambiental da propriedade.
As intoxicações pelos agroquímicos manifestam-se na diminuição das defesas
imunológicas, na anemia, na impotência sexual masculina, na cefaleia, na insônia, nas
alterações de pressão arterial, nas distimias (alterações de humor) e nos distúrbios de
comportamento como surtos psicóticos, sendo frequentes entre os agricultores, fazendo que,
por vezes, haja proibição médica do trabalho na lavoura e orientação para outro tipo de
trabalho profissional (LEVIGARD; ROZEMBERG, 2017).
A grande utilização de agrotóxicos no meio rural brasileiro tem trazido uma série de
consequências, pois, tanto para o ambiente como para a saúde do trabalhador rural – em
geral, tais consequências são condicionadas por fatores relacionados tais como o uso
inadequado dos agroquímicos, a pressão exercida pela indústria e comercio para essa
utilização, a alta toxicidade de certos produtos, a ausência de informações sobre saúde e
segurança de fácil apropriação por parte dos grupos de trabalhadores e precariedade dos
mecanismos de vigilância. Tal quadro se agrava por determinantes sociais, culturais e
econômicas. Em pesquisa, observou-se que os trabalhadores rurais da fruticultura em Bento
Gonçalves utilizavam pelo menos doze tipos diferentes de produtos agroquímicos, com pouca
informação toxicológica disponível, inclusive produtos proibidos, como o arsênico (FARIA,
2017).
Foi feita uma pesquisa sobre a eficácia do uso de EPIs em viticultores franceses, que os
utilizavam em boas condições, ou nas condições recomendadas. A abordagem ergo-
toxicológica demonstrou a contaminação por agrotóxicos desses agricultores (BALDI; DUARTE,
2017). Pensa-se que o fato de utilizar o uniforme de proteção não parece evitar totalmente a
765

contaminação, e que havia pré-contaminação dos EPIs reutilizados, guardados em locais


previamente contaminados. A ineficácia fazia os produtores sentirem-se protegidos, o que
poderia ser traduzido na falta de atenção a certas formas básicas de precaução, por exemplo
(BALDI; DUARTE, 2017).
Evidenciada está a correlação entre o uso dos agrotóxicos nas lavouras e o aumento
da incidência de doenças pulmonares agudas em crianças menores de cinco ano – se verificou
que dentre os pesticidas mais utilizados, vários são alergênicos e irritantes pulmonares. Isso
também serve para problematizar a contaminação do leite materno das mães que
amamentam, ou a contaminação do sangue e urina dos trabalhadores que lidam com
agrotóxicos (PIGNATI; OLIVEIRA; SILVA, 2017).
Em intoxicações humanas do tipo agudo, os sintomas clínico-laborais são mais
evidentes, e facilitam o diagnóstico e tratamento. No entanto, o trabalhador agrícola se expõe
a diversos produtos ao mesmo tempo, ao longo de muitos anos e por vias de absorção de
distinta, tanto no campo, pelo preparo e aplicação dos agroquímicos, quanto em casa, através
do armazenamento inadequado e do manuseio de roupas usadas na pulverização(PREZA;
AUGUST0, 2017).. Essa dinâmica resulta em quadros sintomatológicos combinados, os quais
confundem-se com outras doenças comuns no meio rural, levando à dificuldade na definição
do quadro clínico e erros de diagnóstico, além de equivocados tratamentos
Agrotóxicos tem sido associados a diversos tipos de câncer, sendo os mais frequentes
do sistema hematopoiético, como o linfoma não Hodgkin, mieloma múltiplo e leucemias, além
de cânceres no pulmão, estômago, melanomas, próstata, cérebro, testículos e sarcomas
(RIGOTTO; SILVA; FERREIRA; ROSA; AGUIAR, 2016). Inclusive, em maio de 2017, o U.S. Right
to Know divulgou uma pesquisa, juntamente com o site Sustainable Pulse, que durante trinta
anos a Monsanto e a agência de saúde dos EUA esconderam o potencial carcinogênico do
glifosato. Essa omissão foi confirmada por documentos divulgados pelo Tribunal do Distrito
dos EUA em São Francisco. Os documentos evidenciaram que a empresa fabricante do
pesticida alterou a classificação de potencial de carcinogenicidade de C para E (U.S.RTK).
Em razão da exposição ambiental e ocupacional constante, os agricultores são os mais
expostos aos riscos químicos representados pelos agrotóxicos. Estima-se que, a cada ano,
ocorram aproximadamente sete milhões de intoxicações por agrotóxicos em todo no mundo,
766

sendo os países de baixa e média renda responsáveis por pelo menos metade destas
intoxicações e de 75% das mortes:

A OMS e PNUMA estimam que a taxa de intoxicações por agrotóxicos é de dois a três
por minuto, com aproximadamente 20.000 mortes de trabalhadores expostos todos
os anos, a maioria nos países mais pobres. Esses números são apenas a ponta do
iceberg, uma vez que as doenças crônicas associadas aos agrotóxicos são difíceis de
serem estimadas, uma vez que os efeitos dos agrotóxicos na saúde humana,
especialmente os crônicos, não têm sido caracterizados adequadamente, pois os
efeitos tardios de alguns desses químicos podem se tornar aparentes após anos de
exposição sem que sejam reconhecidos pelos profissionais de saúde e registrados
pelos sistemas de informação. (RIGOTTO; SILVA; FERREIRA; ROSA; AGUIAR, 2016)

Ou seja, são os pequenos agricultores que em geral sofrem mais os riscos da


intoxicação, tanto aguda como crônica, uma vez que nas grandes propriedades o nível de
mecanização e o uso orientado por agrônomos tende a reduzir as situações de exposição mais
graves. Corroborando essa afirmação, os dados publicados pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE no Censo Agropecuário 2006197 indicam que na maioria dos
estabelecimentos onde houve utilização de agrotóxicos não houve orientação técnica (56,3%),
o que representa 785.397 estabelecimentos agrícolas em todo o Brasil. O número de
estabelecimentos que receberam regularmente essa orientação é pouco abrangente, de
apenas 21,1% (294.498 estabelecimentos). Dado preocupante também é que o pulverizador
costal – equipamento de aplicação que apresenta grande potencial de exposição aos
agrotóxicos –, continua sendo largamente utilizado, tendo sido verificado na maioria dos
estabelecimentos que utilizam agrotóxicos (973.438 ou 70,7% dos estabelecimentos).
Os trabalhadores campesinos são o grupo de maior vulnerabilidade ao câncer,
partindo-se do contexto produtivo em que estão inseridos, lidando diretamente com tais
venenos nas diversas atividades que desenvolvem. Existe um contexto de vulnerabilidade e
nocividade que permeia o uso de agroquímicos, desde a ocultação dos danos sanitários
efetivos e ao meio ambiente, numa escala de exposição com dificuldades de efetuar o efetivo
controle e monitoramento de avaliação de riscos e danos associados à esta toxicidade, do
acesso à tecnologia de suporte inexistente ou ainda pouco disponíveis nos serviços públicos.
Frederico Peres acrescenta, nesse sentido, que nenhum outro grupo é mais vulnerável
aosà efeitosà o i osà dosàag ot i osà ueà osà t a alhado esà daà ha adaà ag i ultu aàfa ilia à
(PERES, 2009) , por diversos fatores. Dentre eles, refere o baixo acesso à assistência técnica,
767

fato agravado em razão de que, em algumas localidades, essa assistência é prestada


unicamente por técnicos vinculados ao comércio de agrotóxicos. Além disso, cita como
determinante importante a falta de clareza das informações contidas nos rótulos e bulas de
agrotóxicos, associada aos baixos índices de escolaridade desse grupo (PERES, 2009).
No Estado Constitucional, o sistema de justiça exige daquele que interpreta, uma
atitude aberta, oposta ao monopólio metodológico do direito de inspiração liberal, mormente
no trato da questão ecológica, eis que toca no direito fundamental à qualidade de vida,
remetendo inevitavelmente à função socioambiental, em contraponto ao dogma da
propriedade como direito absoluto (SILVEIRA, 2014, p. 198).
Inicialmente, cumpre informar que o acesso à educação e à tecnologia são fatores com
efeito bastante positivo enquanto a extensão de terra tem, em certa medida, efeito negativo
sobre a saúde humana do trabalhador campesino (FARIA; FACCHINI; FASSA; TOMASI). Isso
demonstra que não basta apenas uma grande propriedade rural, grandes posses para a saúde
mental do trabalhador rural, mas também a possibilidade de vencer a ignorância e desfrutar
dos benefícios sociais que tornam a vida e o trabalho coisas menos árduas. Tais aspectos
podem contribuir para a dinamização da agricultura familiar de videiras e para a fixação do
homem à terra, garantindo a melhor qualidade de vida para todos.
Ante tais circunstâncias, é necessário fortalecer o reconhecimento de uma função
socioambiental da propriedade rural partindo-se de um enfoque multiculturalista, isto é,
necessita-se que se considere as diferentes maneiras de conceber o meio ambiente e os seus
valores de acordo com as diferentes culturas. É não buscar simplesmente a aplicação da lei
ambiental de forma ampla e uniforme, mas de utilizá-la de uma forma que considere as
particularidades históricas e culturais de cada região, visando conjugar proteção ambiental e
cultural.
Conforme liça de Medeiros (2004), o multiculturalismo aparece como fenômeno
concebido de diversas maneiras. Adota-se, aqui o conceito de multiculturalidade ambiental
brasileira proposto por Santos (2005, p. 139), em que:

[...] a multiculturalidade ambiental brasileira observada é uma das dimensões


caracterizadoras e integrantes da pluralidade existente no meio ambiente cultural,
identificada pelas diversidades regionais, originárias dos distintos fatores ecológicos,
econômicos e imigratórios da ocupação humana do território nacional, que
plasmaram os diferentes modos de ser brasileiro.
768

Os colonos que se dedicam à agricultura familiar possuem carência de informações


sobre os mais diversos aspectos referentes às suas atividades, inclusive acerca do modo que
devem atuar em face da natureza. Eles encontram dificuldades para adequar suas atividades
rurais às normas e padrões ambientais, o que se deve não apenas à precária informação e às
dificuldades financeiras, mas decorre do próprio sistema agrário adotado no Brasil. Esclarece
Sass (2007) que:
Esses problemas ambientais no meio rural são cercados por complexidades que não
dizem respeito apenas à observância das normas ambientais, mas implicam em
deficiências do próprio sistema agrário adotado no Brasil e que culminam em graves
conseqüências para os pequenos produtores, que, por vezes, se vêem obrigados a
deixar o meio rural por incapacidade de continuar produzindo na sua propriedade.
A problemática ambiental nesse espaço, mais do que exigir a compatibilidade entre
preservação do ambiente e desenvolvimento sustentável, implica numa questão
agrária, porque a especificidade do processo de apropriação privada de terras
públicas no Brasil, após 1850, pode ser considerado o ponto de origem dos
problemas ambientais atuais no espaço rural. Afinal, desse período em diante, a
ausência de limites ambientais se tornou a regra principal da aliança entre a
concentração fundiária e o progresso técnico aplicado à agricultura,
comprometendo dramaticamente outras formas de acesso e, conseqüentemente, o
uso produtivo ou não-produtivo das terras e dos seus recursos naturais.

Nessa senda, as diversas variáveis que se apresentam para a aplicação da norma


ambiental no ambiente rural devem ser criteriosamente observadas, precipuamente quando
se trata de estabelecer parâmetros para indicar a função socioambiental da propriedade rural.
A busca da preservação ambiental do meio rural deve ser coadunada ao desenvolvimento
social e cultural das comunidades, não sendo admissível que soluções implique, por exemplo,
no deslocamento dos agricultores para o meio urbano por impossibilidade de compatibilizar
a atividade agrícola e a preservação do meio ambiente – é essencial que se concilie o
desenvolvimento econômico, social, cultural e ambiental ante políticas ambientalmente
aceitas. Vianna (2006, p. 49) explana que:
[...] a tutela ao meio ambiente não deve se pautar apenas na proteção dos recursos
naturais. A defesa do meio ambiente almeja, além da preservação da vida, também
uma melhora nas condições de vida, daí porque a classificação em meio ambiente
artificial, cultural e do trabalho, ao lado do meio ambiente natural. Isto apenas vem
ratificar a relevante tarefa social da tutela ao meio ambiente em consonância com
as aspirações constitucionais do Estado Democrático de Direito.

A proposta apresentada, portanto, quanto ao entendimento de uma nova dimensão


em relação à função socioambiental da propriedade rural, que considere as especificidades
históricas, geográficas, culturais, sociais e ambientais na região, exige que, no momento de
769

aplicação da norma ambiental, o seu intérprete esteja pautado pelo conhecimento da


complexidade regional, bem como imbuído dos princípios norteadores do Direito Ambiental.
E assim sendo, ainda há importância do desenvolvimento rural sustentável, em que a
escala local tem importância prioritária, eis que seus objetivos precisam articular o
conhecimento do produtor rural com o conhecimento científico – de tal encontro, é possível
construir uma outra racionalidade produtiva, baseada na sustentabilidade ecológica,
equidade social e diversidade cultural (CANDIOTTO; CORRÊA, 2004). Nesse sentido:

Uma concepção física de agricultura sustentável é a de manter a produtividade do


solo, o que altera o enfoque produtivo da relação nutrição da
planta/pragas/doenças, para o solo e suas reações às técnicas empregadas. A vida
do solo, o equilíbrio dos ecossistemas, a diversificação e o uso de matéria orgânica
são alguns dos elementos que devem ser repensados em uma nova agricultura.
Porém, são pressupostos básicos que, embora sejam necessários, não são suficientes
para impor um novo padrão tecnológico sustentável. A sustentabilidade, em sentido
pleno, além do enfoque técnico-produtivo, que envolve o econômico, não pode
prescindir dos enfoques ambiental, associado á exploração dos recursos naturais, e
social, ligado à concentração dos meios de produção (CARMO, 1998, p. 225)

O direito humano à alimentação e nutrição adequadas (DHANA) deve ser considerado


em suas duas dimensões: o direito de estar livre da fome e o direito a uma alimentação e
nutrição adequadas. Qualquer ação ou omissão que ameace ou impacte negativamente na
produção ou consumo de alimentos e que não seja coerente com os princípios de direitos
humanos, pode configurar uma violação – a contaminação por agrotóxicos, a falta de
informação, a falta de meios para produzir ou comprar alimentos, a dificuldade de acesso a
sementes, a perda da biodiversidade, a perda da cultura alimentar, por exemplo, são violações
de direitos.
Nessa toada, a compatibilização de interesses econômicos, ambientais e sociais no
ambiente da agricultura familiar adquire uma especial conotação face as dificuldades
enfrentadas pelo produtor rural, que encontra subsistência na exploração da propriedade
rural, que muitas vezes é realizada de forma predatória em razão de uma herança cultural
(v.g. caça amadora), do desconhecimento das leis ambientais e de novas tecnologias de
manejo, além da falta de recursos econômicos para adequar sua propriedade às novas
tecnologias que permitem realizar atividade agrícola sem danificar o meio ambiente.
Dessa forma, a tentativa de estabelecer um parâmetro para o desenvolvimento do
meio rural sustentável, exige normas e políticas públicas agrícolas voltadas para uma
770

sustentabilidade conjugada, com a observância da manutenção das condições do produtor


rural.
No que diz respeito ao desenvolvimento rural sustentado, urge implantar,
efetivamente, uma política agrícola diferenciada, onde se incluam as restrições
naturais no processo de decisão do uso alternativo dos recursos. Como fazê-lo?
Nesse caso, além da decisão política, parte do conhecimento teórico-metodológico
a adoção de caminhos entre diferentes formas de se interpretar e entender a
sustentabilidade ecológica. Para o estabelecimento de políticas públicas adequadas
a um desenvolvimento rural sustentado, conforme concebido anteriormente, é
fundamental relacionar as dinâmicas sociais com os sistemas técnicos ambientais
(CARMO, 1998, o. 294).

De mais a mais, é de se questionar a atuação de órgãos fiscalizadores quando exige a


observância rígida de normas ambientais sem considerar sua condição de vulnerabilidade
econômica e social: muitas vezes, as tecnologias caras, exigidas pelos órgãos ambientas, são
excludentes dos agricultores familiares, o que não impede, todavia, que existam espaços
outros de construção de um desenvolvimento sustentável no meio rural (CARMO, 1998)
Dessa forma, pode o desenvolvimento local ocorrer partindo-se de processos
articulados entre os atores estatais e sociedade civil e do capital, quando tais se dispõem e
fomentar projetos gerados a partir da negociação de interesses, mesmo que divergentes ou
em conflito. Como afirma Masiglia (1996), a lógica do desenvolvimento local imprescinde de
atores atuantes, centrados em seus territórios e dotados de capacidade de iniciativa voltada
ao protagonismo social, com o fito de capitalizar as potencialidades regionais em função da
construção de melhorias integrais na qualidade de vida de toda a comunidade.
Os fundamentos desse modo de gestão pública, em que os atores sociais conversam
entre si, são o processo democrático, cooperativo e educativo, com o fito de construir o
desenvolvimento inclusivo para todos os cidadãos que, conscientes de seu papel político nas
decisões, tornam-se efetivamente capazes de influenciar políticas públicas desde a formação
até a obtenção de resultados pretendida, de forma deliberativa, dialógica e solidária. Essa
nova cultura democrática pode ser construída através da concepção habermasiana através do
espaço público, para quem:
A esfera pública não pode ser entendida como uma instituição, nem como uma
organização, pois, ela não constitui uma estrutura normativa capaz de diferenciar
entre competências e papéis, nem regula o modo de pertença a uma organização,
etc. Tampouco ela constitui um sistema, pois, mesmo que seja possível delinear seus
limites internos, exteriormente ela se caracteriza através de horizontes abertos,
permeáveis e deslocáveis (HABERMAS, 1997, p. 52).
771

De acordo com Habermas, a esfera pública deve se pautar no agir comunicativo, isto
é, que cada cidadão, em sua ação, estará livre para buscar, através do uso da fala, o
convencimento dos demais acerca de suas pretensões e posicionamentos. É a produção de
consenso, o que pressupõe, ao contrário da ação estratégica, transparência no
comportamento do agente (GALUPPO, 2002, p. 125).
Dessa maneira, a problemática ambiental impõe uma clara necessidade de construção
de espaços dialógicos, configurando possíveis espaços de estrutura comunicacional do
sistema jurídico, que devem propiciar a reiteração desde com o sistema social. O
planejamento ambiental não pode e nem deve ser concebido de forma isolada da gestão
democrática e dos seus respectivos processos decisórios, eis que a problemática ecológica
impõe a todo contexto social a discussão acerca de sua própria sobrevivência.
Isso porque o bem ambiental, consagrado no artigo 225 da Constituição Federal
caracteriza-se como espécie diferente de bem, em consonância com a afirmação da função
socioambiental da propriedade, eis eu evidenciado o aspecto ecológico. O ambiente, pois, não
está sujeito às regras da apropriação privada, aquelas definidas pelo mercado, nem ao regime
de bens dos particulares – a função socioambiental se superpõe ainda à autonomia privada
que rege as relações econômicas, com o fito de proteger os interesses de toda a coletividade
em torno de um direito ao meio ambiente equilibrado (SILVEIRA, 2014, p. 199).
Diante das conhecidas dificuldades para a fiscalização das ações governamentais, às
vezes decorrentes do próprio desinteresse de participação da sociedade civil, os espaços
públicos com força legal para atuar nas políticas públicas através do exercício do controle
social devem servir para uma nova cultura política e novas relações entre governos e cidadãos.
Para além do significativo movimento econômico envolvido nessa grande e incipiente
de a da,àйdua doàйh lesàafi aà ueà aà es e teàp ess oàdaàopi i oàpú li aàeàdasàlegislaç esà
ambientais, tanto em relação à salubridade dos alimentos quanto à adoção das medidas mais
o patí eisà o à aà o se aç oà dosà e u sosà atu ais (EHRES, 2012, p. 97) poderá
paulatinamente conduzir a novos paradigmas para a agricultura.
Michael Pollan destaca que comer não é apenas um ato agrícola, mas também um ato
e ol gi oàeàu àatoàpolíti o:à oà u àeà o oà o e osàdete i a ,àe àg a deàpa te,àoà ueà
fazemos do nosso mundo – eàoà ueà aiàa o te e à o àele (POLLAN, 2014, p. 19).
Optar por alimentos certificados como, por exemplo, os orgânicos, e por alimentos
da época, que a princípio necessitam de uma carga menor de agrotóxicos para serem
772

produzidos é uma das soluções possíveis para esse grave problema. Procurar
fornecimento de produtos com a origem identificada, aumentando o
comprometimento dos produtores em relação à qualidade dos alimentos, com a
adoção das boas práticas agrícolas também surge como proposta e já é uma
realidade em parte do território nacional. (LUFCHTZ, 2015, p. 206)

O ponto de convergência, assim, para os conflitos, reflexões e discussões ambientais


deve estar baseado na prática do agir comunicativo, o que quer dizer democratizar os
processos decisórios ambientais – nesse contexto, determinados instrumentos jurídicos pode
não se mostrar eficazes se não forem capazes de propiciar uma gestão ambiental democrática
ou, em outros termos, se não for possível realizar o agir comunicativo entre os diversos atores
sociais.
No que diz respeito à atual conjuntura dos distritos e linhas de Bento Gonçalves, a
simples exigência quando ao cumprimento da norma ambiental, no seus sentido quantitativo
e perante a sua aplicação linear, sem diálogo com os atingidos pelas consequências da norma,
constrói um ato jurídico tirano que não é capaz de enxergar soluções contributivas para o
desenvolvimento do meio rural e proteção do meio ambiente de forma eficaz.
Como ensina Silveira (2014, p. 200):
й ua toà e à o u ,àoàa ie teàde eàse àdefe dido,àe à itoàju isdi io al,à
peloà seuà titula à Coleti o ,à segu doà p o edi e toà espe ífi o,à a autelat io,à
participativo e inclusivo, voltado à construção de uma percepção simultaneamente
social e científica acerca dos riscos ecológicos, que constituem a maior ameaça à
qualidade ambiental – e à própria desagregação social.

O agir comunicativo, pois, resulta em alguma forma de consenso – mas não é um


conceito simplificado de consenso, ou a escolha da maioria. O consenso habermasiano
importa na percepção de singularidades existentes no âmbito do conflito e da ambivalência
preente na esfera pública. Nessa toada, considera-se que o espaço público possui condições
de produzir consensos abrangentes, inclusivos, todos os mais variados argumentos devem ter
sidos suscitados e devidamente discutidos.
Assim, a adoção desse pensamento permite propiciar um desenvolvimento local
inclusivo, que transcorre em território concreto, em que os protagonistas são uma pluralidade
de atores, relacionados entre si em função de metas e objetivos comuns – aqui, diga-se, a
preservação do meio ambiente.
O direito per se é capaz de fornecer instrumentos de aplicação efetiva das concepções
teóricas formuladas pela ciência e tecnologia, formulando leis que sejam aplicáveis aos
773

pequenos produtores rurais. Partindo-se da ideia de risco emanada na lei é que o produtor
poderá buscar a melhor forma de utilizar o agrotóxico sem prejudicar o meio ambiente.
щos àйliàdaàVeiga,à oà es oà i s,àe te deà ueàoàusoàdaàe p ess oà ag i ultu aàsuste t el à
expressa a crescente insatisfação com o status quo da agricultura moderna, expansão das
pressões sociais por uma agricultura que não destrua ou contamine o meio ambiente, nem
p ejudi ueà aà saúdeà doà ho e .à I di aà oà desejoà so ialà deà p ti asà ueà si ulta ea e teà
conservem os recursos naturais e forneçam produtos mais saudáveis, sem comprometer os
níveis tecnológicos já alca çadosàdeàsegu a çaàali e ta à VйIGá,à ,àp.à
Destarte, considera-se viável a conciliação entre preservação ambiental e
desenvolvimento econômico, afirmando inclusive que o crescimento da economia exerce um
papel fundamental na preservação do ambiente. Segundo essa ótica, o aumento da renda e
da riqueza possibilita transformações estruturais nos modos de produção, mediante a
introdução de novas tecnologias capazes de conter os efeitos colaterais da expansão da
economia. O progresso científico-tecnológico sempre encontrará formas de vencer as
adversidades, promovendo as alterações que se fizerem necessárias, substituindo a eventual
escassez ou o comprometimento dos recursos naturais por outros fatores de produção,
inovando em termos de capital e trabalho humano.
Na verdade, ocorre uma crise de governabilidade e de legitimidade – a insatisfação
pela baixa qualidade de vida e falta de melhorias, conduzem à erosão da titularidade de atores
relevantes que se expressam em fenômenos como a volatilidade eleitoral e o desvirtuamento
das propostas de gestão que se baseiam no aprofundamento das práticas democráticas.
Embora reconhecendo o longo caminho a percorrer para a construção de sentidos e
para encontrar o simultâneo equilíbrio entre eficácia social e ambiental, conjugado ainda com
eficiência econômica, essa visão intermediária entende o desenvolvimento sustentável como
u aà e ess iaàutopiaàaàse àpe seguida,àu ài pe ati oà ti oàeà u aà is oàdeàfutu oàso eàaà
qual a civilização contemporânea necessita alicerça àsuasàespe a ças à VйIGá,à .àáà oç oà
de sustentabilidade, assim, é muito mais uma orientação política, de propósitos a serem
ati gidos,àdoà ueàe p ess oàdeàu aà ealidadeà ueàj àpossaàse àdes ita:àelaà su geà o oàu aà
agenda, com o objetivo ou ideal de restaurar o equilíbrio na relação homem-natureza,
principalmente após as consequências ambientais danosas provocadas pelo industrialismo e
suaà e oluç oà e de à VйIGá,à .àássi ,àpa aàal àdeà o osàpa adig asà ie tífi os,àt ata-
774

se da necessidade de fo aç oà deà u à o p o issoà políti o-social para a efetiva


i ple e taç oàdeàu à odeloàdeàdese ol i e toà ualifi adoàpelaàsuste ta ilidade àVйIGá,à
2008)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A crise ambiental vivenciada na contemporaneidade exige, cada vez mais, a solução de


conflitos relacionados com a preservação do meio ambiente. Porém, muito se discute esta
questão no que diz respeito às grandes cidades ou à degradação causada pelo setor industrial,
mas pouco se refere a problemática ambiental instaurada no ambiente rural.
Assim sendo, esta pesquisa teve por objetivo apresentar uma reflexão sobre um
conflito que vem se desenvolvendo na Região do entorno de Bento Gonçalves, no que tange
à aplicação das normas ambientais. Trata-se de uma Região caracterizada pela presença de
pequenas propriedades rurais, as quais, hoje são pressionadas a se adequarem à normativa
de proteção do meio ambiente, em que pese o fato de que, por motivos históricos e de política
agrária, foram colocadas em áreas onde se faz difícil o cumprimento desta legislação.
Hodiernamente, tal exigência, no que diz respeito às pequenas propriedades, poderá
inviabilizar a atividade rural, eis que em virtude do seu tamanho, se torna difícil adequá-las
aos aspectos quantitativos da legislação. Por outro lado, o cumprimento de determinadas
normas impõe ao produtor rural altos investimentos econômicos, os quais, são inviáveis no
contexto da pequena propriedade.
Ressaltou-se que esta opção pela pequena propriedade rural se deu, principalmente,
em virtude das condições geográficas da Região, a qual é marcada por um relevo
extremamente acidentado. Desse modo, o desenvolvimento rural do entorno de Bento
Gonçalves foi orientado pela supremacia da agricultura familiar situada em pequenos
estabelecimentos rurais.
Importa destacar, nesse ponto, que a Região é uma das poucas do país nas quais ainda
persiste a agricultura familiar em pequenas propriedades. Afinal, a conjuntura econômica
globalizada e a força das grandes empresas do agronegócio têm cada vez mais subjugado os
esforços de manutenção deste tipo de produção rural. As atuais exigências de cumprimento
da legislação ambiental, por seu turno, são mais um entrave imposto ao pequeno produtor
775

rural que, embora tenha o desejo de se adequar aos padrões ambientais, não o consegue por
falta de recursos financeiros ou pela inviabilidade do tamanho do seu estabelecimento.
Nessa senda, deve-se zelar a fim de que, a propriedade rural desenvolva-se pautada
pela sustentabilidade e o pequeno produtor rural possa participar de forma ativa da solução
dos conflitos oriundos de atividade relacionada com a preservação ambiental. A observância
dessas duas condicionantes constitui a base de uma função socioambiental da propriedade
rural apta a corroborar com a (re) construção da cidadania no ambiente rural.
Verifica-se que, até hoje, o produtor rural tem sido excluído da maior parte das
discussões sociais, geralmente voltadas para os interesses das cidades. No entanto, a própria
crise alimentar que aos poucos se anuncia, demonstra a importância das atividades realizadas
por estes pequenos produtores e a necessidade de reconhecê-los no contexto da cidadania.
Em outros termos, é salutar que ele possa participar da tomada de decisões no que diz
respeito à
realização da atividade rural.
Registra-se, que a problemática ecológica está a exigir a retomada dos espaços
dialógicos, no intuito de (re) construir um espaço público enquanto local no qual seja possível
estabelecer relações comunicacionais entre os diversos atores sociais, viabilizando-se os
canais de discussão e de tomada de decisões efetivamente democráticos.
No contexto deste paper, essa cultura democrática foi construída a partir da concepção
habermasiana sobre o espaço público. Desta forma, ao mesmo tempo em que esta nova
esfera pública corresponde a um local de conflitos, também deve se constituir num ponto de
encontro organizado entre os atores sociais, no qual, dar-se-á o debate em torno das
diferentes opções e a avaliação dos prós e dos contras de cada decisão.
Acredita-se que, desse modo, o Direito poderá efetivamente contribuir para a
sustentabilidade da Região de Faria Lemos, buscando alternativas negociadas entre todos os
atores sociais, sem, desde logo, criar uma nova margem de excluídos. Em muitos casos, a
simples aplicação da norma ambiental poderá impedir a continuidade da agricultura familiar,
o que implica em sérias consequências sociais para esta Região. Por conseguinte, a aplicação
da lei ambiental, mediante a consideração de seu caráter meramente regulatório e
quantitativo, poderá dar origem a injustiças sociais na Serra Gaúcha. Propõe-se, no
contraponto desta visão dogmática, que a interpretação da norma ambiental ocorra de forma
776

a considerar a função socioambiental da propriedade rural, tendo por premissa a gestão


democrática dos recursos naturais.
A participação assume, pois, um papel cada vez mais relevante na denúncia das
contradições entre os interesses públicos e privados e abusos que ocorrem e não são vistos
pelos órgãos fiscalizadores. Tais fatore potencializam a ampliação da consciência ambiental e
traduz-se em efetivas ações de colonos que passam a se organizar e se informar de maneira
correta, preparados para conhecer, entender, reclamar seus direitos e para exercer sua
responsabilidade.
Somente cidadãos críticos e conscientes compreendem, se interessam, reclamam e
exigem seus direitos ambientais junto ao setor social que, por sua vez, devem estar aptos e
prontos a exercer sua responsabilidade ambiental. Uma sociedade civil organizada produz
mudança, faz movimentar a roda. Tal reforça a necessidade do agir comunicativo, a
necessidade de reconhecer e identificar os papeis e as responsabilidades dos diversos atores
ante os temas ambientais e ante as leis, construindo consensos, ensinando como cumprir a
lei. Isso se a lei for exequível pelo agricultor. Daí, mais uma vez, a importância do diálogo
quando da feitura da lei, para que tenha exequibilidade.
Quanto mais o Estado ouve o colono, mais ele tem condições de criar leis exequíveis,
mas que também combatam a predação ao meio ambiente, dando respostas ao
desenvolvimento sustentável.
Mas para isso, é necessário ainda começar a empoderar o pequeno agricultor, o
colono, reforçando políticas públicas que se articulem com as esferas governamentais e
possibilitem a transversalidade. O colono não tem voz. Ele é vítima da multinacional que lhe
tolhe as sementes férteis, lhe tolhe a variabilidade genética e lhe vende sementes inférteis
juntamente com agrotóxicos que destroem o que pode prejudicar a plantação. E matam o
próprio colono: de câncer, de intoxicação.
É essencial o estímulo aos diversos atores sociais, como as organizações não
go e a e taisà ueà joga à aà a a à aà e dade,à isa doà ultipli a à i formações,
decodificando e superando os níveis de desinformação e desinteresse das pessoas.
O empoderamento torna o colono cidadão apto a dialogar com o ente público sobre
as normas regulamentadoras do uso de agrotóxicos e o deixa atento ao fato de que deve fazer
um uso moderado deste agroquímico. Caso haja uma necessidade de usar o agrotóxico, que
777

se use, mas sabendo dos riscos, e se use dentro de um liame mais ou menos decente.
Empoderar o colono significa torna-lo responsável, também, pelo dano que causa ao
ambiente, a si e a sua família e ao consumidor para quem vende o alimento.
Melhor acesso à informação e o incremento da participação social promovem
mudanças de atitude que favorecem o desenvolvimento de uma consciência ambiental
coletiva e de um envolvimento crescente da sociedade civil nos espaços deliberativos em que
pensamentos plurais se apresentam e conflitos ganham visibilidade.

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780

O QUE HÁ DE SAGRADO NA NUDEZ ABSTRATA DE UM SER HUMANO? Os movimentos


migratórios contemporâneos, as insuficiências das Declarações de Direitos Humanos e a
necessidade da justificação do respeito aos Direitos Humanos no plano moral

Anna Paula Bagetti Zeifert1


Joice Graciele Nielsson2
Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth3

Resumo: O presente trabalho tem por finalidade demonstrar como os direitos humanos dos
migrantes vêm sendo desrespeitados, particularmente em decorrência do paradigma da
soberania estatal. Isso porque há, na contemporaneidade, uma forte tendência em considerar
a populaç oà ig a teà e ua toà sup flua ,à passi a à e,à po ta to,à desti at iaà ape asà deà
medidas punitivas de cunho segregacionista, que visam a afastá-la do convívio daqueles
indivíduos que se encontram plenamente integrados na sociedade globalizada. Procura-se
esta ele e àu aà o aà o p ee s oàdoà se à ig a te,àpa ti do-se da ideia de que, para a
criação de um novo paradigma, é necessário que a vida em comunidade supere a lógica
soberana, viabilizando a integração e a promoção social dos migrantes, a partir da sua
compreensão como múltiplas potencialidades. Nesse sentido, faz-se necessário um debate
sobre a possibilidade de construção de uma base teórica moral capaz de justificar a
obrigatoriedade e universalidade dos Direitos Humanos, com vistas a criar uma nova
percepção dos migrantes na realidade social em que estão imersos.

Palavras-chave: Imigração. Soberania. Direitos Humanos.

Considerações Iniciais

A dignidade, enquanto condição ontológica do ser humano é o que confere (ou deveria
conferir) a todos a titularidade de direitos fundamentais inalienáveis. No entanto, forçoso é
reconhecer que a simples positivação ou previsão desses direitos não se mostra suficiente
para evitar a negação do valor da pessoa humana como titular de direitos.
Um campo fértil para observação dessa insuficiência encontra-se nas políticas
migratórias que têm sido adotadas na contemporaneidade por alguns países – notadamente
os que ocupam posição central na União Européia –, marcadas por um caráter excessivamente
repressivo e conservador, colocando em situação de vulnerabilidade extrema os direitos
fundamentais dos migrantes. Uma análise mais detida de tais políticas demonstra que elas

1
Doutoranda em Filosofia pela PUCRS. Professora do Curso de Graduação em Direito da UNIJUI. E-mail:
annazeifert@yahoo.com.br
2
Doutora em Direito (UNISINOS). Professora do Curso de Graduação em Direito da UNIJUI. E-mail:
joice.gn@gmail.com
3
Doutor em Direito (UNISINOS). Professor do Mestrado em Direitos Humanos da UNIJUÍ e dos Cursos de
Graduação em Direito da UNIJUÍ e UNISINOS. E-mail: madwermuth@gmail.com
781

estão, invariavelmente, baseadas/amparadas no paradigma da soberania, segundo o qual os


nacionais possuem privilégios legais em relação aos não nacionais.
Esse paradigma acaba por construir uma barreira aos imigrantes, uma vez que a
soberania divide os que estão no país entre cidadãos e não cidadãos, criando,
consequentemente, uma cesura entre os que estão protegidos pelo Direito estatal e aqueles
que não estão. A soberania estatal tem tamanha importância nesses casos que nem mesmo
os direitos assegurados em documentos internacionais são observados, ficando o imigrante à
mercê da própria sorte no seu intento migratório.
Nesse contexto, o que se observa é que os migrantes são percebidos pelos Estados aos
uaisàelesàseàdesti a à o oàu à p o le a ,à o oàu à al a ser controlado e, se possível,
contornado. Em razão disso, evidencia-se, no campo político, a criação de um discurso dirigido
à população no sentido de construção de uma imagem negativa dos migrantes, justamente
com o fim de viabilizar a implementação de políticas discriminatórias.
Diante desse quadro, o presente trabalho abordará a forma como o migrante é
percebido pelos Estados aos quais afluem com maior intensidade na atualidade. Procura-se,
em um primeiro momento, demonstrar que os imigrantes, por meio de discursos de cunho
parasitário, são apresentados à população como portadores de múltiplas ameaças: são
acusados de tomar o emprego e os benefícios sociais dos nacionais, principalmente diante da
crise financeira mundial, sendo considerados, por isso pa asitasà so iais ;à ta à s oà
acusados de aumentar a violência, pois muitas vezes são vinculados à criminalidade,
sobretudo pela mídia; além disso, a partir de setembro de 2001, eles carregam a pecha de
te o istasàe àpote ial ,àassu i do,àe t o,àaàpostu aàdeà i i igosàdoàйstado .àBus a-se,
então, evidenciar que a construção desse estereótipo negativo do migrante está relacionada
ao paradigma da soberania estatal e das insuficiências que as Declarações de Direitos
Humanos apresentam nesse contexto.
Em um segundo momento, empreende-se uma discussão acerca da necessidade de
construção de uma justificação no plano moral de respeito aos Direitos Humanos. Parte-se da
compreensão, então, de que a busca por um conceito amplo de pessoa, capaz de abarcar a
todos os indivíduos de modo independente das normas éticas assume especial relevância no
panorama atual dos movimentos migratórios pelo globo. Procura-se demonstrar que essa
acepção mais ampla de pessoa se faz necessária de modo a se reconhecer em todo ser
782

humano um membro de uma comunidade moral, independentemente do seu status na


sociedade internacional (imigrante, refugiado, nacional...). Essa necessária justificação no
plano moral de respeito aos Direitos Humanos aparece como condição de possibilidade para
uma nova percepção dos migrantes na realidade social em que estão inseridos.

A soberania estatal e suas insuficiências em face dos movimentos migratórios


contemporâneos

Os documentos revolucionários que inauguraram a Modernidade e serviram de base


para a Declaração Universal dos Direitos do Homem também consolidaram e fortaleceram a
figura do Estado, gerando uma situação paradoxal: na medida em que os direitos individuais
foram se estabelecendo, a figura do Estado também foi se consolidando como detentora da
soberania e do poder de dizer o Direito aos seus cidadãos. Assim, mesmo tendo ocorrido uma
de la aç oàdeàdi eitosà e à elaç oà à figu aàdoà ho e àu i e sal ,à oà atoà deà e u ia àessesà
di eitosà esta ele eàoàpode àdeàu àtipoàpa ti ula àdeàasso iaç oàpolíti a, a nação e seu Estado,
para tornar-seà oà so e a oà legislado .à Pa alela e te,à su geà aà figu aà deà u à ho e à e à
pa ti ula ,à ualà seja,à oà idad oà a io al,à pa aà to a -seà e efi i ioà dosà di eitos à
(DOUZINAS, 2009, p. 114).
Nesse sentido, ao passo em que as declarações de direitos proclamam a sua
u i e salidade,àoàseuàefeitoài ediatoà à esta ele e àoàpode àili itadoàdoàйstadoàeàsuaàlei .à
Issoà pe iteà aà afi aç oà deà ueà e à u à estiloà pa ado al,à essasà de la aç esà deà p i ípioà
u i e salà pe fo a àaàfu daç oàda so e a iaàlo al. à DOU)INá“,à ,àp.à .
Uma das chaves de explicação/compreensão desse paradoxo pode ser buscada na obra
do filósofo italiano Giorgio Agamben (2010). O autor utiliza a metáfora do Leviatã de Thomas
Hobbes – figura mítica que possui o corpo formado pelos corpos de todos os indivíduos que
compõem a sociedade – para retomar a discussão, na contemporaneidade, do conceito de
biopolítica cunhado na obra de Foucault (2010; 2012)4.

4
Foucault chega aos conceitos de biopolítica e biopoder quando vislumbra um câmbio operado ao longo do
século XVII e XVIII – sobretudo na virada para o século XIX – da forma como se estrutura o poder: se antes ele
era a soma de micropoderes disciplinares que tinham por objetivo a administração do corpo individual, ou seja,
que partiam de uma visão do corpo enquanto máquina – o que se vislumbra pela gradativa formação de
instituições como a escola, o hospital, o exército e a fábrica, cujos objetivos centravam-se no adestramento dos
corpos individuais e na extorsão de suas forças paralelamente ao crescimento de sua utilidade e docilidade, de
783

Na perspectiva agambeniana (2004), as declarações de direitos precisam ser


compreendias enquanto locus no qual ocorre a passagem da soberania régia, de origem
divina, à soberania nacional. Logo, essas declarações se prestam, antes de qualquer coisa, a
assegurar a exceptio da vida na nova ordem estatal que surge com a derrocada do Ancien
Régime.àCo àefeito,à àaàpa ti àdasàde la aç esàe à o e toà ueàoà súdito à aiàseàt a sfo aà
e à idad o ,àoà ue,àsegu doàága e ,àapo taàpa aàoàfatoàdeà ue,àaàpa ti àdoà as i e to,à
a vida nua natural (zoé)5 se transforma no portador imediato da soberania. Com isso, os
p i ípiosàdaà ati idadeàeàdaàso e a ia,àout o aàsepa ados,às oà eu idosà oà o poàdoà sujeitoà
so e a o ,àfu da e toàdoà o oàйstado-nação.
Nesse contexto, se as declarações de direitos podem ser compreendidas enquanto
instrumentos de garantia de direitos individuais e liberdades públicas, elas também podem
ser vislumbradas enquanto instrumentos de ressignificação e (re)investimento político da vida
nua no corpo do Estado- aç o.àCo oàsalie taàGia oiaàщu io à ,àp.à ,à ao lado da função
emancipatória das declarações de direitos fundamentais, seria também indispensável
perceber que elas integram o dispositivo de abandono da vida nua à violência dos mecanismos
deàpode .
No mesmo sentido, Roberto Esposito (2006) salienta que, a partir de Hobbes, a
questão da vida se instala no cerne tanto da teoria quanto da prática política. Afinal de contas,

modo a integrá-lo a sistemas de controle eficazes –, agora o poder disciplinador e normalizador já não mais é
exercido sobre os corpos individualizados, mas sim sobre o corpo-espécie, e tampouco se encontra disseminado
em instituições sociais. Ele passa a se concentrar na figura do Estado e se exerce a título de política estatal que
objetiva a administração da vida e do corpo da população.
Naàliç oàdeà‘e elà ,àp.à ,à e ua toàaàdis ipli aàsu ediaà o oà a to o-políti a àdosà o posàeàseàapli a aà
asi a e teà aosà i di íduos,à aà iopolíti aà ep ese ta,à po ta to,à essaà g a deà edi i aà so ial à ueà seà apli aà à
população com o p op sitoà deà go e a à suaà ida:à aà idaà faz,à daíà e à dia te,à pa teà doà a poà doà pode . à Daà
disciplina – cujo objetivo era o adestramento dos corpos – passa-se ao biopoder – cujo objetivo é o adestramento
da população, ou melhor, da vida daàpopulaç o.àDaà anátomo-política do corpo humano àpa te-seàpa aà uma
bio-política da população. à нOUCáUэT,à ,àp.à .
5
Vida nua é um conceito elaborado por Agamben (2004) para explicar a situação da pessoa desprovida de
qualquer capa de civilidade, que está entregue à zoé (a vida desqualificada), em oposição à bios (a vida
qualificada). Essa divisão da vida entre zoé e bios é proveniente da filosofia clássica. Conforme ensinamento de
Agamben (2004), os gregos utilizavam dois termos para denominar o que hoje entendemos por vida: zoé, para
denominar o simples fato de viver, comum a todos os seres vivos, e bios, para denominar a maneira de viver
própria de um indivíduo ou de um grupo. O poder político soberano é capaz de produzir a vida nua em relação a
determinadas pessoas, retirando delas toda possibilidade de uma existência qualificada. Existe uma figura-limite
da vida, um limiar em que ela está, simultaneamente, dentro e fora do ordenamento jurídico, e este limiar é o
lugar da soberania. Para Agamben a vida humana na esfera política pode ser incluída ou excluída – incluída pelo
direito ou excluída pela exceção, em razão da vontade soberana. áàde is oàso e a aàt açaàeàdeàta toàe àta toà
renova este limiar de indiferença entre o externo e o interno, exclusão e inclusão, nómos e physis, em que a vida
ào igi a ia e teàe ep io adaà oàdi eito à áGáMBйN,à ,àp.à .àà
784

é em defesa da vida que se institui o Estado Leviatã e, em troca dessa proteção, os súditos
entregam ao Estado aqueles poderes dos quais estão naturalmente investidos.
Nessa perspectiva, as categorias políticas empregadas por Hobbes e por outros autores
ueàoàsegue à o o,àpo àe e plo,àasà oç esàdeà so e a ia ,à ep ese taç o ,à i di íduo à
s o,à aà ealidade,à u aà odalidadeàli güística y conceptual de nombrar o traducir en términos
filosófico-políticos la cuestión biopolítica de la salvaguarda de la vida humana respecto de los
pelig osàdeàe ti i à iole taà ueàlaàa e aza . à й“PO“ITO,à ,àp.à .
A dificuldade lógica ou o paradoxo criado pelas declarações oriundas das revoluções
do Século XVIII foi justamente o fato de estes documentos terem sido responsáveis pela
declaração dos direitos do homem como universais e imanentes, independentes, portanto, de
condições para sua efetivação e, de outro lado, terem sido responsáveis pelo estabelecimento
do poder soberano do Estado, como única entidade apta a criar o direito. Dessa forma, o
Estado, além de criar o direito endereçado ao seu cidadão, também era o único responsável
pela proteção desses direitos. Ou seja, o homem, titular de direitos individuais, só teria
possibilidade de reconhecimento desses direitos perante o seu Estado.
Essa necessária condição de cidadania restou tão arraigada à configuração do Estado
que se pode dizer que ele não existiria sem a composição de seus cidadãos, assim como os
cidadãos não existem sem o Estado. Como consequência dessa relação de dependência
cidadão-Estado, para a realização ou efetivação dos direitos tornou-se vital essa vinculação.
Nesse sentido, Aga e à ,à p.à à es la e e:à oà siste aà doà йstado-nação, os ditos
direitos sagrados e inalienáveis do homem mostram-se desprovidos de qualquer tutela e de
qualquer realidade no mesmo instante em que não seja possível configurá-los como direitos
dos cidad osàdeàu àйstado. à
Isso fica muito evidente no caso do refugiado, que representa justamente aquele
homem que perdeu os seus direitos e garantias efetivos em virtude do fato de ter sido banido
do seu território estatal, ou que se aventura fora desse território sem estar na posse da
do u e taç oà e igida.à áà figu aà doà efugiadoà se eà pa aà ilust a à oà fatoà deà ueà oà supo teà
fundamental da cidadania permanece sendo a vida natural, o fato puro do nascimento no
território de um Estado- aç oàdete i ado. à DUá‘Tй,à2010, p. 298).
Agamben (2010, p. 128, grifos do autor) considera que os refugiados representam,
para o ordenamento do Estado-nação moderno, um elemento inquietante justamente em
785

i tudeàdoàfatoàdeà ueà o pe doàaà o ti uidadeàe t eàho e àeà idad o,àe t eànascimento


e nacionalidade,àelesàp e àe à iseàaàfi ç oào igi iaàdaàso e a iaà ode a. àNesseàse tido,à
o autor concorda com a afirmação da Hannah Arendt, no sentido de que o refugiado seria,
e dadei a e te,àoà ho e àdosàdi eitos ,àafi al,àeleà à aàsuaàp imeira e única aparição real
fo aàdaà s a aàdoà idad oà ueà o sta te e teàoà o e ,à az oàpelaà ualà aàsuaàfigu aà àt oà
difí ilàdeàdefi i àpoliti a e te. àPa aàoàauto à ,àp.à ,

o refugiado deve ser considerado por aquilo que é, ou seja, nada menos que um
conceito-limite que põe em crise radical as categorias fundamentais do Estado-
nação, do nexo nascimento-nação àquele homem-cidadão, e permite assim
desobstruir o campo para uma renovação categorial atualmente inadiável, em vista
de uma política em que a vida nua não seja mais separada e excepcionada no
ordenamento estatal, nem mesmo através da figura dos direitos humanos.

Nesseàse tido,à um homem que nada mais é que um homem perdeu, precisamente, as
qualidades que permitem aos outros tratá-lo como seu semelhante. à GUIMá‘Ãй“,à ,àp.à
26, grifo do autor). Ou, parafraseando Arendt (1990), pode-se referir que nada há de sagrado
na nudez abstrata de um ser humano.
Com efeito, a Revolução Francesa delineou, por meio do fortalecimento da figura do
Estado, o nacionalismo, o qual, a partir da demarcação de fronteiras territoriais, privilegia uma
cultura de exclusão que afronta fortemente a efetivação dos direitos humanos até hoje: a
diferença entre nacional versus não nacional, ou cidadão versus não cidadão. Isso significa que
existe uma intrínseca relação entre a questão dos direitos humanos e a emancipação nacional:
aà uedaàdaà o a uiaàa solutaàa asta aà o sigoàoàsí oloàdaà o u idadeàesse ial,àpeloà
que o único laço entre os cidadãos do Estado-Nação sem monarca parecia ser de carácter
a io al,àaào ige à o u . à GUIMá‘Ãй“,à ,àp.à .
É certo que desde a criação dos direitos humanos até os dias atuais, o Direito
Internacional já percorreu um longo caminho, sendo que hoje os Estados não são os únicos
centros de onde emanam o poder e a lei. Ao discorrer acerca de direitos fundamentais e
cidadania, Ferrajoli (2011) afirma que após o nascimento da ONU e a partir da criação de
documentos internacionais, os direitos fundamentais não estão limitados ao interior do
Estado que os criou, tendo natureza de direitos supraestatais, devendo ser considerados
direitos das pessoas, independentemente das suas diferentes cidadanias ou nacionalidades.
786

Não obstante o entendimento do jurista italiano, ainda persiste a visão do Estado como
garantidor de direitos aos seus cidadãos, o que acaba por propiciar àqueles que não possuem
essa ligação de cidadania, uma situação de desproteção, de banimento. A dificuldade de
universalização dos direitos humanos, em razão da força dos Estados como geradores e
ga a tido esàdeàdi eitos,à e eteà à efle oàdeàэu asà ,àp.à ,à ueàafi aà ueà apesa àdeà
reconhecida textualmente, a universalidade dos direitos humanos carece de uma efetividade
ta àu i e sal .à
Nesse rumo, é impossível a co p ee s oàdoàdese ol i e toàeàdaà o aç oà a io al à
e biopolítica do Estado moderno, se esquecemos que em seu fundamento não está o homem
como sujeito político livre e consciente, mas a sua vida nua - o simples nascimento que, no
processo de passagem de súdito a cidadão, é investido como tal pelo princípio de soberania
estatalà áGáMBйN,à .à р ,à a ui,à u aà fi ç oà i plí itaà deà ueà oà nascimento torne-se
imediatamente nação,àdeà odoà ueàe t eàosàdoisàte osà oàpossaàha e à esíduoàalgu . à
Desseà odo,à osàdireitos são atribuídos ao homem [...], somente na medida em que ele é o
fundamento, imediatamente dissipante (e que, aliás, não deve nunca vir à luz como tal), do
idad o. à áGáMBйN,à ,àp.à ,àg ifosàdoàauto .à
A crítica de Arendt, portanto, reside no fato de que

os direitos do homem só podem ser garantidos e tornar-se reais para um indivíduo


a quem foi primeiro reconhecido o ser-de-direito enquanto tal, o que, no mundo
moderno, equivale a reconhecer a cidadania do indivíduo, a sua pertença a uma
comunidade humana, ainda que seja a comunidade internacional. (ROVIELLO, 1997,
p. 164).

Como consequência dessa distinção de status, a cidadania, antes de um elemento de


inclusão e de igualdade, pode ser compreendida enquanto um elemento de exclusão e
discriminação, na medida em que os países se fecham aos não nacionais ou não cidadãos,
considerando que estes não têm direito a residir ou trabalhar em seu território, por não
possuírem o elo originário que os capacitaria para isso. Assim, o movimento de migração, que
ocorre atualmente em grande escala no mundo inteiro, acaba por escancarar o problema da
falta de efetividade dos direitos humanos, por meio da discriminação dos imigrantes, que são
vistos pelos Estados e por seus nacionais como intrusos.
Isso fica muito evidenciado na realidade europeia. Recentemente, em virtude das
sucessivas crises econômicas pelas quais tem passado a União Europeia, a influência da
787

economia sobre as políticas de controle dos fluxos migratórios tem se mostrado muito
evidente. Analisando a questão a partir do momento em que começa a se verificar nos países
da então Comunidade Europeia, em meados da década de 1970, a crise do modo de regulação
fordista, Brandariz García (2011, p. 17) menciona que os migrantes passam paulatinamente a
pe de àaà e t alidadeàp oduti aàe,àe àtalà edida,àta àaà e t alidadeàso ialàeàpolíti a,à deà
modo que la inmigración deja de ser contemplada primordialmente como un factor de
desarollo, y pasa ser vista ante todo como un problema, como un hecho antitético al actual
modelo de evolución social, que debe ser gestionado fundamentalmente desde la perspectiva
delà o t ol.
E as mudanças econômicas drásticas pelas quais têm passado as economias europeias
na contemporaneidade têm agravado ainda mais o quadro: a queda na oferta de empregos
em condições de exploração tem feito com que boa parte dos imigrantes se transformem em
um capital humano absolutamente descartável. Em razão disso, Saldanha (2014) adverte para
o fato de que, na contemporaneidade,

todos aqueles que mudam de lugar em busca de oportunidades de trabalho e de


ealizaç oà doà í i oà deà suaà hu a idadeà […]à oà t à e o t adoà a ie teà
favorável para a realização de tais objetivos, compondo o grupo que mais tem sido
fustigado pelas políticas nacionais, regionais e internacionais anti-imigratórias e
antiterror.

й àu àa ie teàtal,àosàdis u sosà pa asit ios àeàdeà o ate à ài ig aç oà u p e à


com uma função ideológica que é decisiva em uma época de crise econômica e de pânico
moral, qual seja: eles fornecem legitimidade simbólica para políticas de exclusão que de outra
maneira não receberiam aprovação por parte da população. Com efeito, o descaso com os
migrantes pode ser demonstrado pelas recorrentes violações dos direitos e pela morte de
milhares de pessoas que tentam entrar na Europa utilizando-se de travessias perigosas em
embarcações precárias pelo Mediterrâneo. Recentemente, uma das crises relacionadas à
imigração que ganhou grande relevância na mídia e na opinião pública foram os naufrágios
sequenciais de embarcações de imigrantes africanos na costa da ilha italiana, resultando em
centenas de mortes. Relatório divulgado pela Organização Internacional para as Migrações
(IOM) no escritório das Nações Unidas, na Suíça, em setembro de 2014, aponta elevado
número de morte de imigrantes – cerca de 40 mil pessoas desde o ano de 2000 em todo o
mundo. Ainda de acordo com o Relatório, 4.077 imigrantes morreram de janeiro a setembro
788

de 2014, um aumento de 70% em relação a todo o ano de 2013 (2.400 vítimas). Segundo o
chefe do Departamento de Pesquisa da IOM, Frank Laczko, os números podem ser ainda
aio es:à ápesa àdoàg a deà olu eàdeà e u sosàgastosà aà oletaàdeàdadosàso eài ig aç oàeà
controle das fronteiras, poucas agências reúnem e publicam dados sobre mortes de
i ig a tes .àál àdissoà– enfatizou Laczko – uitasà o tesàa o te e àe à egi esà e otas,à
eà u aàs oà egist adas .à G‘á‘CIá,à
Outra situação emblemática de desrespeito aos migrantes são os Centros de
Internação de Estrangeiros, locais para onde são levados imigrantes que entram na Europa de
forma irregular, enquanto tramita o processo de expulsão. Esses centros lembram
penitenciárias e possuem um sistema excessivamente rígido, onde os imigrantes estão quase
permanentemente em celas, em condições higiênicas deploráveis. Martínez Escamilla (2009)
ressalta que, além das denúncias – por parte de organismos de proteção de direitos humanos
nacionais e internacionais – de que muitos desses centros tem uma estrutura penitenciária
(sendo que alguns deles funcionam em antigas prisões), há graves acusações relacionadas às
o diç esàdeàhigie eàdosàCIй s,à à àali e taç o,à àfaltaàdeàassist iaà di aàade uada,à à
ausência de assistentes sociais e de intérpretes, bem como a módulos familiares apropriados.
Interessante, a propósito, o câmbio de perspectiva de análise da problemática dos
CIE´s proposta por De Giorgi (2006, p. 98):

repetiu-se e denunciou-seà i siste te e teà ueà osà e t osà deà dete ç oà pa aà


ig a tes ,à ueàfo a àdisse i adosàpelosàte it iosàdaàfortaleza europeia, são de
fato prisões e que o regime carcerário ao qual são submetidos os migrantes aí
mantidos não oferece sequer aquelas poucas garantias jurídicas de que a condição
deà dete to,à aoà e osà fo al e te,à goza .à Tal ezà te haà hegadoà oà o e to de
inverter este raciocínio e de perguntarmos se não são os próprios centros de
detenção para migrantes que constituem o novo modelo no qual, progressivamente,
as prisões pós-fordistas se inspirarão. Esses centros se configuram como dispositivos
prepostos à contenção de uma população excedente e de um surplus de força de
trabalho desqualificada; eles prescindem explicitamente da consumação de um
delito, das características individuais de quem está detido neles e de qualquer
finalidade reeducativa ou correcional, para orientar-seà oàse tidoàdaà esto age àdeà
categorias inteiras de indivíduos considerados de risco.

Diante desse panorama, a fim de enfrentar o problema de discriminação e exclusão


dos migrantes, os direitos humanos devem assumir seu caráter supraestatal, uma vez que é
de sua essência a universalidade, independentemente de condições de cidadania. Todavia, o
grande número de pessoas que buscam em outros países oportunidades de trabalho ou de
reconstrução de suas vidas devastadas por conflitos e desastres ambientais não encontra
789

guarida nos direitos humanos. Atualmente são milhares de migrantes que transitam pelo
mundo a procura de uma vida digna, por não terem condições de alcançá-la em seu país de
nascimento6. A problemática que persegue os direitos humanos é justamente sobre a
capacidade que estes têm de alcançar pessoas que necessitam de proteção em uma terra na
qual não tem condições de buscá-la por meio da cidadania.

A construção de uma justificação no plano moral de respeito aos direitos humanos

A necessidade de construção de uma justificação no plano moral de respeito aos


Direitos Humanos, buscando um conceito mais amplo de pessoa, que abrange todos os
indivíduos, independente de normas éticas, se faz necessário no contexto atual de migrações
motivadas por questões bélicas, econômicas, perseguições políticas, culturais e religiosas.
Essa noção mais ampla de pessoa reconhece todos os seres humanos como membros de uma
comunidade moral e que seguem um código moral mínimo7, independente do seu status na
sociedade internacional.
Para tanto, adotar-se-á, aqui, uma concepção de que as normas morais seriam de valor
universal, reconhecidas na comunidade de seres humanos, e capaz de atingir todos os
indivíduos. Como expõe Rainer нo stà ,à p.à ,à dife e te e teàdosà alo esà ti osà [...]à
o asà o aisàt àaàp ete s oàdeà o ta à o àu aà alidadeàu i e salàfu da e tadaà pa aà
todos ,à se à ueà sejaà e ess ioà o side a à asà oç esà ti asà ueà pe eia à dete i adaà
comunidade. Para tanto,à e te deà oà efe idoà auto ,à ueà o asà ju ídi asà pede à aà
observância de todos os parceiros do direito enquanto membros de uma determinada
o u idadeà ju ídi a, à j à asà o asà o ais,à p ete de à te à alidadeà u i e sal,à istoà ,à
vinculam todos os seres humanos enquanto membros da comunidade de seres humanos (sem
valerem no sentido jurídico-positi o .

6
Segundo dados da Comissão Europeia sobre Migração e asilo (2013, p. 3), dos cerca de 500 milhões de pessoas
que vivem na União Europeia, aproximadamente 20 milhões são cidadãos de países que não pertencem à UE.
Como consequência, destaca Linares (2008, p. 2) que, nos últimos vinte anos nos países centrais europeus, a
imigração deixou o lugar minúsculo que ocupava no ranking de importância social atribuída às distintas políticas
públicas para praticamente encabeçar esta lista hipotética.
7
A expressão trabalhada por Walzer refere-se a um conjunto de normas morais mínimas que reconhecem todos
os seres humanos como pessoas morais, independente do seu pertencimento a uma determinada comunidade
ética. Tal código deve ser observado com relação a grupos de indivíduos ou indivíduos particulares que se
encontrem na condição de estranhos, sem nenhum vínculo com uma estrutura estatal, mais especificamente
estrangeiros e refugiados. (apud FORST, 2010)
790

Nesse sentido, dois argumentos são apresentados como forma de justificar a validade
de normas universalmente, o da reciprocidade e o da universalidade, formando u aà apaà
p oteto a àaosài di íduos.àPa aàнo stà ,àp.à ,àg ifoàdoàauto ,à po à eioàdeàu àlimite de
reciprocidade e universalidade, poder-se-ia dizer, as pessoas são protegidas de serem forçadas
a adotar modos de vida que não podem ser exigidos recípro aàeàu i e sal e te.
Tais considerações são retomadas na atualidade, quando se está diante, novamente,
de indivíduos sem Estado, destituídos de seus vínculos jurídicos e imersos em um cenário que
os identifica como estranhos e intrusos (aliens). Nesse contexto, há a necessidade de, mais
uma vez, voltar o olhar para a condição de ser humano, visto que mesmo havendo o
rompimento de todos os vínculos estatais, as normas morais ainda fazem dele um sujeito de
direitos, e qualifica toda e qualquer reivindicação o à istasàdeàu à di eitoàhu a oàú i o .à
(FORST, 2010)
Com o intuito de resgatar alguns fundamentos para a presente hipótese, pode-se
afirmar que por um longo período a doutrina jusnaturalista, presente na Filosofia do Direito,
foi extremamente importante para a formação de um pensamento mais tolerante, base para
a construção de um direito positivo com um viés natural, ou seja, pautado pelos princípios da
leià atu al.àTaisàp i ípiosà caracterizam-se por duas idéias que se interligam: a primeira vem
da ética e sustenta que há princípios morais e de justiça universalmente válidos e acessíveis à
razão humana; a segunda tem origem numa concepção de justiça que faz depender as leis de
taisàp i ípios. (SAHD, 2009. p. 188-189).
Para os jusnaturalistas, existiriaà u àdi eitoà atu alà etafísi o,àa-histórico, eterno e
i ut elà ueàse eàdeà aseàaoàdi eitoàpositi o. àPo ta to,à oàse iaà e ess ioà eto a àaoà
estadoà deà atu ezaà pa aà at i ui à à leià atu alà osà de e esà doà ho e .à Ta pou oà se iaà
e ess ioà faze àdeàtodosàosàde e esàdoà idad oàasào igaç esàp es itasàpelasàleisà i is .àIssoà
po ueà oà di eitoà atu al,à segu doà G otius,à su sisteà oà seioà daà so iedadeà i ilà eà aà suaà
legislaç oàseàeste deàaosàesta ele i e tosàhu a osàfo adosàpelaà o tadeàdosàho e s. à
(SAHD, 2009, p. 189).
Segundo o jusfilósofo contemporâneo Norberto Bobbio, é possível delimitar três
pilares da doutrina jusnaturalista: Primeiro - leiàesta ele idaàpo à o tadeàdaàdi i dadeàeàpo à
estaà e eladaàaosàho e s; àSegundo - leià atu al àe àse tidoàestrito, fisicamente co-natural
aàtodosàosàse esàa i adosàaàguisaàdeài sti to; àTerceiro - leiàditadaàpelaà az o,àespe ífi a,à
791

po ta toà doà ho e à ueà aà e o t aà auto o a e teà de t oà deà si. à BOBBIO;à MáTTйUCI;à


PASQUINO, 1998. p. 656)
É por essa razão, que na esfera dos Direitos Humanos, o papel da Filosofia ganha
relevante destaque devido à sua capacidade de guiar o jurista na busca do fundamento e
universalização de suas teses. Para tanto, a pergunta que parece indispensável nesse
momento, como forma de chegar a uma fundamentação/justificação do aspecto moral dos
direitos humanos seria: como se deve compreender e fundamentar uma moral? Tomar-se-á,
como base para tal investigação, as análises proferidas pelo filósofo Ernst Tugendhat (2008,
p. 122), o qual entende ueà u aà o alà s àpodeà se à o side adaà o oà justifi adaà seàest à
igual e teàjustifi adaàpa aàtodos àeàassi à a eàpe gu ta à ualàse iaàaào ige àdessaàideiaàdeà
u aà igualà o side aç oàpa aà o àtodos àosài di íduos?à
Talvez seja nesse ponto que a teoria dos diretos humanos apresente uma maior
dificuldade em se colocar como universal, isso porque haveria a necessidade de se reconhecer
no outro, se reconhecer como igual. Este parece ser um desafio para os próprios Estados
desde a formação, na Idade Moderna, até a contemporaneidade. A possibilidade de
reconhecimento de todos os homens como seres iguais, motivados pelo princípio da igualdade
e da dignidade humana, superando qualquer forma de preconceito e qualquer tipo de
doutrina ética abrangente.
Ainda, tomando como fundamento os escritos de Tugendhat (2008, p. 123), quando
todos querem a mesma coisa pode-se dizer que há uma simetria nos interesses dos indivíduos.
“egu doàoà efe idoàauto ,à oà àalgu à ueàde ide,àse oà ueàtodosàde ide àju tosàeàistoà
significa que todos contribuem igualmente pa aàoà odoà o oàseàatua .à
Isso importaria o reconhecimento do homem enquanto sujeito de direitos e de igual
proteção por parte de todos os Estados, independentemente de qualquer outra concepção
ética. Para Tugendhat (2008, p. 123–124)

é aqui onde parece ter sua origem o conceito de igualdade. Se isto é correto, então
a igualdade tem sua origem no fato de que se uma ação comum não é decidida pelo
poder, quer dizer, determinada por alguém do grupo ou por uma parte do grupo,
então a única alternativa é que seja decidida por todos, e a qualificação de
igualmente entra aqui por necessidade, pois se a ação não estiver determinada
igualmente por todos, então, à medida que alguns não participaram igualmente,
estes seriam forçados. Sua vontade está determinada pela vontade dos outros: se
trata de poder.
792

O autor ainda vai além, ao extrai disso uma mudança significativa para a sua própria
concepção da moral. Para ele, a igualdade e a justiça não mais derivam daquilo que ele
entendia como uma justificação de uma moral. A concepção igualitária é agora o fundamento
em que se baseia uma moral. Antes o âmbito moral era o fundamental e com essa discussão
do igualitarismo instaura-se uma perspectiva em que a moral aparece agora ao lado do âmbito
político como dimensão privilegiada para essas discussões. (TUGENDHAT, 2008)
Assim sendo, analisando as questões relativas aos direitos humanos, pode-se constatar
que:

Os Direitos Humanos são humanos porque possuem uma raiz fundamentalmente


humana. Universalizá-los, transformá-los em princípios, só se alcança através do
saber que se universaliza a si próprio, enraizando esta mesma universalidade no solo
da essencialidade do ser humano e no de toda realidade. Em termos concretos, a
forma e o sentido do ser humano deverão ser sempre expressões através de
princípios inalienáveis. E assim, pode-se dizer de modo apodíctico, que a ortopraxia
em prol dos direitos humanos se confunde com o exercício da própria razão
filosófica. (MARTINS; GODINHO, 2012, p. 5-6)

Acredita-se que essa ideia da igualdade entre todos os seres humanos e a necessidade
do merecido respeito a sua dignidade possa achar raízes nas primeiras manifestações relativas
à lei natural. Por mais que a doutrina jusnaturalista tenha sofrido muitas críticas por parte dos
defensores do Direito Positivo, observa-se muitas das suas diretrizes presentes nas
construções teóricas que motivam os estudos relacionados aos direitos humanos. Isso é
percebido na própria Declaração de Diretos Humanos8, aprovada pela ONU em 19489, quando

8
áàDe la aç oà U i e salàdosàDi eitosàрu a osàdeà à esta ele euàaà pa ti àdeàu aà o de àu i e salista,àaà
garantia dos direitos fundamentais à pessoa humana. Estamos, sem dúvida, diante de um posicionamento
regulador, cujo emprego legítimo exige uma justificação metafísica. Por um lado, trata-se de reunir a
humanidade em torno daquilo que pode conferir unidade ao seu destino (significado, sentido, verdade)
estabelecendo-se as bases para uma espécie de direito público universal. Por outro lado, trata-se também de se
aceitar uma espécie de normatização como condição permanente do homem, como noção pressuposta à
a t opologiaà ueàoàfu da e ta. à MARTINS; GODINHO, 2012, p. 12)
9
Para Martins e Godinho. ,à p.à ,à ápesa à daà difi uldadeà e o t adaà pa aà esta elecer os pontos
convergentes, entre os Estados, que seriam capazes de satisfazer as necessidades humanas, a Declaração
consegue se impor, através de um só documento, formado por um Preâmbulo de 7 considerandos e por 30
artigos. Logo no artigo I, retoma os princípios axiológicos desenhados pela Revolução Francesa liberdade,
igualdade,àeàf ate idade:à Todosàosàho e sà as e àli esà eàiguaisà e àdig idadeàeàdi eitos.à“ oàdotadosàdeà
razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade .à Oà p i ípioà daà
igualdade essencial ao ser humano –que independe de raça, cor, sexo, língua, religião ou de qualquer outra
natureza –é afirmado no artigo II. A igualdade perante a lei é professada no artigo VII, reconhecendo a todo o
homem o direito de ser reconhecido como pessoa perante a lei, portanto, merece sem qualquer distinção
proteção da lei. A liberdade política é consagrada no artigo XXI, permitindo a qualquer que seja participar da vida
793

i augu aà u aà o alà u i e salistaà o stata doà ue,à apesa à dasà di e g iasà a iol gi asà eà
ideológicas entre os Estados, chegou-se ao consenso quanto às necessidades prementes dos
ho e s. à Má‘TIN“;àGODINрO,à2012, p. 12)
Por outro lado, apesar da sua relevância na esfera internacional no que tange aos
direitos tidos como fundamentais e a existência digna, ainda questiona-se a sua força
normativa, ou seja, a possibilidade desse rol de direitos humanos, presentes na Carta impor-
se de maneira universal, já que nem todos os países fizeram parte do acordo que resultou na
sua aprovação.
A procura de uma fundamentação moral em torno daquilo que parece mais essencial
e que vincularia todos os indivíduos parece estar mais próximo do conceito de ser humano
ueàpossuiàdi eitos,à oàse àhu a oà o oàtal,àistoà ,àoàse àhu a oà atu al,àoàse àhu a oà u,à
o ser humano da doutrina da classificação biológica, o ho oàsapie s. Seria a possibilidade de
edifi aç oàdeàu aà [...]ào de à o ati aàdeàpu aài pessoalidadeà ueàte àp io idadeàso eà
todasàasào de sàju ídi asàestataisà[...] àeà ueà olo a iaàoàse àhu a oà o oà e eàdoà o eitoà
deàdi eitosàhu a os .à ый‘“TING,à ,àp.à -94)
ápa e e,à esseà i s,à o oàfu da e tal,àaà e essidadeàdeà reunir a humanidade em
torno daquilo que pode conferir unidade ao seu destino (significado, sentido, verdade)
estabelecendo-seàasà asesàpa aàu aàesp ieàdeàdi eitoàpú li oàu i e sal. àOuàai da,à trata-se
também de se aceitar uma espécie de normatização como condição permanente do homem,
o oà oç oàp essupostaà àa t opologiaà ueàoàfu da e ta. à MARTINS; GODINHO, 2012, p.
12)
Nesse sentido, no entender de Martins e Godinho (2012, p. 12-13), quando se busca a
essência da natureza humana e a necessidade de um fundamento moral para a temática da
universalização dos direitos humanos, mesmo que sob o ponto de vista histórico-filosófico,
retoma-se a questão da igualdade no tratamento universal do ser humano enquanto é
simplesmente humano (nem super-hu a o,à e àsu u a o , à oài po ta doàoàluga à ueà
seàe o t e.à N oàseài te oga,àpo ta to,àso eàoàu i e salis oàdaàDe la aç oàdeà àse à
se chegar à analítica ôntico-o tol gi aàdoàho e ,à efleti doà oà e à o um.

política de seu país; a liberdade privada nos artigos VII a XIII e XVI a XX, assegura ao indivíduo a esfera de não
i te fe iaàestatal.àPo àfi ,àoàp i ípioàdaàsolida iedadeà àde la adoà osàa tigosàXXIIàaàXXVI.
794

Retoma-se, então, a obra de Agamben (2013), que se afigura de extrema importância


nesse ponto. Ao analisar a noção de comunidade, o filósofo subtrai dela qualquer fator
negativo. Expropriada de todas as identidades, a comunidade pode se apropriar do
pertencimento mesmo (existencial). O indivíduo, nesse marco, não precisa cumprir com
e hu à e uisito,à ela o a à e hu aà justifi ati a,à se oà so e teà se à talà ualà .à Daíà aà
afi aç oàdeàága e à ,àp.à à oàse tidoàdeà ueà oàse à ueà e à àoàse à ual ue , ou
seja, a única divisão admissível em uma comunidade é a divisão puramente existencial. Não
se admite, aqui, divisões e partilhas de classes de fundação comunitária (por exemplo, lugar
de nascimento, língua, raça, etc) ou a ausência genérica de condições de fundação
(comunidade negativa).
Nesseà u o,à se à talà ual à à se àe posto,à oà ueà sig ifi aàu aà idaà se p eà a e taà aà
tomar esta ou aquela forma, mas sem jamais consolidar-se de maneira permanente em uma
fo aàdeà idaàdada,àse oàse à fo a-de- ida .àDito de outra forma: em oposição às diversas
formas de vida codificadas socialmente, a forma-de-vida é aquela que não demanda a
separação entre zoé e bíos: ela conserva a potência e se encontra aberta a ser de qualquer
forma.
A melhor política migratória, aqui, se afigura justamente como aquela que não se
ocupa em definir papéis – por exemplo, relacionando ou condicionando à imigração as
exigências do mercado e trabalho e/ou ocupando-se precipuamente do controle de fronteiras
e àdefesaàdosàdi eitosàdaà idada ia àe àoposiç oàaosàdi eitosàdosàáliens. A partir de uma
política migratória assentada em uma justificação moral universal dos direitos humanos, não
se está mais diante do problema da necessidade de cumprimento da norma existente, ou da
realização desta ou daquela essência humana, desta ou daquela vocação histórica, mas sim
de uma política de liberdade, ou seja, uma política que viabiliza que todos possam
experimentar sua própria existência como possibilidade ou potência, ou seja, potência de ser
e de não ser.

Considerações Finais

No que diz respeito aos direitos do não cidadão, diante da dicotomia criada pelos
movimentos originários dos direitos humanos e que continua sendo fomentada pelos
795

sistemas nacionais de direitos, ainda há muito a caminhar até que a prevalência dos direitos
humanos triunfe e que a sua titularidade seja atrelada apenas à condição humana.
Necessário se mostra, nesse sentido, repensar a noção de cidadania e de soberania
estatal, de modo a possibilitar uma nova compreensão do alcance dos direitos humanos, a fim
de que eles sejam válidos para todas as pessoas, independentemente de sua origem ou
nacionalidade. Há que se desvincular os direitos humanos da cidadania, reconhecendo seu
caráter supraestatal, a fim de conferir-lhes a universalidade pretendida, para que possam ser
válidos tanto fora como dentro das fronteiras dos Estados.
Além da superação da noção de soberania, se faz necessária uma mudança na
percepção do migrante, a fim de que seja superada a concepção equivocada de que os
migrantes são os principais vitimados pela nova ordem mundial e ocupantes por excelência
dosà o-luga es à ese adosàaosàe luídosàdaàmultidão global. Isso significa considerá-losà talà
ualàs o ,à oàespe a doà ueàelesà u p a à o àestaàouàa uelaàfu ç oà oà o texto de uma
determinada sociedade, mas os entendendo como potencialidades.
Consoante ao que foi observado, não haveria necessidade de um documento solene,
formal e jurídico se desde o princípio os homens entendessem a sua essência e
compreendessem que os direitos humanos são moralmente vigentes e vinculam todas as
sociedades, independente da doutrina ética que se está seguindo. Assim, fica difícil fugir dessa
justificação metafísica quando se está diante de algo tão complexo e que diz respeito à
integridade de cada um dos seres humanos.

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798

UM OLHAR SOBRE O DIREITO PENAL DO INIMIGO: SUA INFLUÊNCIA E RESULTADOS NA


LEGISLAÇÃO BRASILEIRA1

Erni Bernkopf2
Braian Barros Braz3
Lisiane Beatriz Wickert4

RESUMO: O artigo visa estabelecer um parâmetro entre a teoria do conceituado professor


Gunther Jakobs, chamada Direito Penal do Inimigo, com a atuação do poder judiciário, para
então verificar se a referida teoria está, ainda que implicitamente, sendo concretizada ou não.
De tal sorte que, a priori, a teoria será analisada atentando às bases conceituais e
jusfilosóficas, que corroboraram para sua estruturação. Somado a isso, serão analisadas
condições sociais e econômicas, que auxiliam a compreender o cenário atual do sistema penal,
juntamente com a atuação e aplicação do processo penal. A sociedade, por estes fatores
segregadores, torna-se um elo contundente para agravar o sistema penal. Por fim, dados
empíricos trazem a concretude do referido trabalho, demonstrando, em estatísticas, como a
atuação penal está se valendo de práticas do direito penal do inimigo, para justificar seus atos
jurisdicionais.

Palavras-Chave: Direito Penal; Garantias; Inimigo; Iter Criminis; Jakobs.

1 INTRODUÇÃO

As normas jurídico-penais do país são consideradas de uma severidade extrema, sendo


que seu rol de tipos penais tanto no Código Penal, quanto em leis especiais, é de alta
complexidade e punibilidade. Contudo, esta que seria uma ferramenta de ultima ratio, está
sendo usada constantemente e com certas determinações, haja vista que os fatores fundantes
do colapso penal que o país vivencia hodiernamente se originam desta conduta do sistema
penal como um todo. Ademais, uma análise do direito penal do inimigo, como uma teoria que
não obteve muitos adeptos, se faz necessária, pois demonstra como o jus puniendi estatal
está se valendo de mecanismos da teoria em tela para realizar sua função jurisdicional. Não
obstante, os números ao final do artigo, denotam a veracidade dos fatos relatados, trazendo

1
Trabalho de pesquisa realizado em 2017, como parte de estudos de pesquisa independentes, com a colaboração
e orientação da professora mestra Lisiane Beatriz Wickert, elaborado para apresentação no II Congresso Nacional
de Ciências Criminais e Direitos Humanos, realizado de 23 a 26 de maio de2017 - Campi Ijuí/RS.
2
Graduando em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí/RS);
Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais (DCJS); Email: psilva139@yahoo.com.
3
Graduando em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí/RS);
Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais (DCJS); Email: braian.braz@hotmail.com.
4
Mestre em Desenvolvimento, Gestão e Cidadania pela UNIJUÍ. Pós-graduada em Instituições Jurídico Políticas
pela UNIJUÍ. Professora da Pós-graduação e graduação do Curso de Direito da UNIJUI. Advogada. E-
mail: wickert@unijui.edu.br.
799

à luz um parâmetro desesperador, cuja gênese está obscura às práticas de um direito penal
do inimigo da contemporaneidade.
A pesquisa, bem como a construção ideológica e estrutural do artigo, se fundamentou
em obras de autores atuais, bem como em uma análise à legislação vigente sobre o tema.
Todavia, uma visão crítica do atual cenário se fez necessária, pois a necessidade de se observar
as garantias do indivíduo frente ao poder do Estado se revela de grande importância.

2 DIREITO PENAL DO INIMIGO

A fim de definir a teoria de Gunther Jakobs e sua caracterização com o contexto atual
da aplicação penal brasileira, buscar-se-á de modo sintético, analisar alguns fundamentos que
embasaram a construção da teoria. Esta análise irá ajudar a entender como e porque Jakobs
sepa ouà osà idad osà dos,à segu doà ele,à i i igos .à áte ta-se também para alguns
fundamentos que tratam do objetivo da doutrina aplicada por Jakobs. De tal modo, a análise,
ainda que não aprofundada dos aspectos filosóficos e políticos da obra do referido autor,
trazem a compreensão das conseqüências de sua aplicabilidade.

2.1 Bases jusfilosóficas à teoria

Para construir a teoria do direito penal do inimigo, Jakobs retrocede ao século XVII e
XVIII, com base nas teorias contratualistas5, para então corroborar a divisão entre crime e
criminoso, cidadão e inimigo.
Esta divisão começa a ser construída, de forma institucionalizada e positiva, nos
discursos modernistas, mais enfaticamente nas obras que fundamentam o estado a stricto
sensu. Logo, diante da vigência do contrato social, qualquer indivíduo que o infringisse, não
mais gozaria das benesses do contrato, nem mais faria parte das relações jurídicosociais, ou

5
U asà dasà defi iç esà dasà teo iasà o t atualistas:à deà i ediato,à e à luga à daà pessoaà pa ti ula à deà adaà
contratante, esse ato de associação produz um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantas
são as vozes da assembléia, a qual recebe desse mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade.
Esta pessoa pública assim formada pela união de todas as outras era designada outrora pelo nome de cidade,
sendo designada atualmente pelo nome de república ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros
йstadoà ua doà à passi o,à so e a oà ua doà ati oà eà pot iaà ua doà o pa a doà aosà seusà se elha tes à
(ROUSSEAU 2013, p. 22-23).
800

seja, seria excluído daquele corpo social. Assim, segundo Rousseau (2013, p. ,à [...]à aà
conservação do Estado é incompatível com a sua e, então, é preciso que um dos dois pereça
eà ua doàseàfazà o e àoà ulpado,à à e osà o oà idad oàdoà ueà o oài i igo .à
De similar pensamento, Fichte (1973, p. 172-180), afirma que o indivíduo que se
afastasse do contrato, estaria em um estado de ausência de direitos. Justifica que o estado
tem para com seus súditos uma contrapartida, onde tem deveres provenientes do contrato (o
que lhe confere um direito de tratar com mais severidade, os que se desvinculam tanto das
leis, como do contrato), e direitos, de obrigar os mesmos às leis, e aos deveres sociais.
De tal sorte, alguns teóricos primavam que o delinquente não fosse privado de seus
direitos, pois segundo esta corrente, o criminoso deveria ser mantido dentro das proteções
do direito. Isto garantiria que este indivíduo pudesse voltar ao corpo social, e também barrar
que o mesmo indivíduo se desligasse arbitrariamente por resultado de seu ato. Contudo, se
este delinquente se afastar da autoridade do corpo social, e voltar ao suposto estado de
natureza, deverá ser considerado inimigo. De tal modo, Hobbes (2014, p. 246-247) deduz que:

[...] se um súdito, por atos ou palavras, negar, deliberadamente, a autoridade do


representante do estado (seja qual for a penalidade prevista para traição), este pode,
legalmente, fazê-lo sofrer o dano que bem entender. Negando a sujeição, o súdito
negou as penas previstas pela lei, devendo, portanto, ser penalizado como inimigo
do estado, isto é, de acordo com a vontade do representante. As penas não são
estabelecidas pela lei para os inimigos, mas para os súditos; se alguém passa a se
considerar inimigo, da mesma forma como se tornou súdito por seus próprios atos,
ao rebelar-se nega o poder do soberano.

De semelhante modo, Kant (1989, p. 199-225) dispõe que quem não participa de um
estado comunitário legal, deve retirar-se do mesmo, o que geraria um tratamento não mais
como pessoa, e sim como inimigo. Isto é, quem não se deixa obrigar a entrar em uma
constituição cidadã, deve ser expelido da mesma, e não ter um tratamento de pessoa, mas
agora em um estado de inimigo.
Com isso, se tem a visão de que todo indivíduo que por vontade, agir de modo
contrário aos preceitos e normas do contrato social, não pode ser considerado/tratado como
cidadão, e sim combatido como inimigo do corpo social.
801

2.2 A teoria segundo Gunther Jakobs6

Segundo Jakobs, o direito penal tem a primordial função de garantir a vigência da


norma, e a pena uma preservação automática ao sistema jurídico-penal, contrapondo à
prática delituosa (SILVA 2011, p. 57).
Jakobs separa o direito penal em dois segmentos diferentes, para então compreender
dois grupos de indivíduos: cidadãos e inimigos. A constituição de pessoa, para o autor, funda-
se na capacidade cognitiva da mesma, onde garanta a satisfação de um comportamento
pessoal. Se não houver esta base de entendimento do indivíduo para com a normatividade, a
resposta do direito penal, frente algum desvio às normas postas, torna-se uma ferramenta da
sociedade a este indivíduo, que agora ganha o status de inimigo. Tal dinâmica, como já fora
observado, advém das teorias contratualistas, onde a não aceitação em fazer parte deste
estado de cidadania, remete o indivíduo rebelde ao estado de natureza, sem respaldo a
direitos, tendo apenas uma perseguição estatal.
Contudo, Jakobs não generaliza a classificação de inimigos a todos os autores
delinquentes e adere ao pensamento (nesta definição) de Kant e Hobbes, que delineavam
criminosos de fatos normais, puníveis como cidadãos, e delitos de alta traição, então punidos
como inimigos.
Assim, seriam considerados cidadãos quem:

[...] é autor de crimes normais, que preserva uma atitude de fidelidade jurídica
intrínseca, uma base subjetiva real capaz de manter as expectativas normativas da
comunidade, conservando a qualidade de pessoa portadora de direitos, porque não

soM
ö
n
ch
eglad
bc
desafia o sistema social (CIRINO DOS SANTOS 2012, p. 5).

filó
Quanto ao inimigo, considerar-se-á:

[...] os criminosos econômicos, terroristas, delinquentes organizados, autores de


delitos sexuais e de outras infrações penais perigosas são os indivíduos
potencialmente tratados como inimigos, aqueles que se afastam de modo
permanente do Direito e não oferecem garantias cognitivas de que vão continuar
fiéis à norma. Desta forma, por não aceitarem ingressar no estado de cidadania, não
podem participar dos benefícios do conceito de pessoa. Uma vez que não se
amoldam em sujeitos processuais não fazem jus a um procedimento penal legal, mas
sim, a um procedimento de guerra. A característica do inimigo é o abandono

6
Nasceu em h, na Alemanha em 26 de julho de 1937. É autor de livros
de Direito, e professor emérito de Direito Penal e Filosofia do Direito. Na comunidade científica mais
ampla, ele é mais conhecido por seu controverso conceito de Direito Penal do Inimigo.
802

duradouro do Direito e ausência da mínima segurança cognitiva em sua conduta,


sendo plausível que o modo de afrontá-lo fosse com o emprego de meios de
asseguramento cognitivo desprovidos da natureza de penas (SILVA 2011, p. 59-60).

Noà ueàta geà sàpe as,àCi i oàdosà“a tosà ,àp.à ,àdes e eà ueà pa aàoà idad oàaà
pena criminal preservaria o significado simbólico de (re) afirmação da validade da norma,
como sanção contra fatos passados; para o inimigo a pena criminal teria um significado físico
deà ust diaàdeàsegu a çaàp e e ti a,à o oà edidaàpa aàe ita àoàpe igoàdeàfatosàfutu os .
Com isso, o tratamento desigual destinado por Jakobs em sua teoria, às duas
categorias, não só afetaria sua inserção no corpo social, mas também em matéria processual,
onde Jakobs concebe um duplo sistema de imputação penal e processual penal. Tal sistema
criaria duas vias de aplicação penal, uma em sentido reparatório ao cidadão delinquente, e
outra em sentido acusatório (incompatível com o atual estado democrático de direito) ao
inimigo (JAKOBS; MELIÁ 2009, p. 85-110).
Dessarte, a teoria de Jakobs, traz pontos como: o inimigo não poderá ser punido com
pena, com fim retributivo, mas sim com medida de segurança, tendo sempre como foco a
prevenção (sempre levado em consideração sua periculosidade); o inimigo perde seu status
de cidadão, tornando-se um objeto de coação estatal; quanto ao cidadão, aplica-se a norma
penal vigente, e ao inimigo aplica-se, o que autor chama de guerra ao inimigo, um intenso
combate, mesmo que as penalidades sejam desproporcionais; e uma atuação do direito penal
quanto aos atos preparatórios, afim de proteção e prevenção (SILVA 2011, p. 67).
De tal sorte, esta teoria em sua totalidade não obteve êxito em aplicação total.
Contudo, no contexto social e normativo brasileiro, as ideias de Jakobs começam a ser
implantadas. Fatores, que serão expostos a seguir, caracterizam um direito penal do inimigo
sendo desenvolvido nos campos de atuação do direito penal brasileiro, tendo com isso
resultado em um contexto fático de violações ao estado democrático de direito, por via do
direito penal do inimigo contemporâneo.

3 CONSTRUÇÃO DE ALGUNS FATORES DETERMINANTES AO CONTEXTO CRIMINOLÓGICO E


PENAL

Notadamente que o direito penal se faz presente no contexto hodierno. Todavia, sua
aplicação, seus destinatários e seu meio de atuação, estão, por demasia, ensejando um
803

cenário distante do que outrora fora idealizado no século XVIII e aprimorado ao longo do
tempo.
Para uma reflexão acerca deste tema, alguns fatores e ideologias serão analisados,
partindo de algumas situações fáticas que consubstanciam o atual contexto. Partindo de uma
visão teórica e dogmática sobre fatores – o demasiado culto à violência, produzido e oferecido
em larga escala pela mídia e seus criadores; a desigualdade econômica, em que as
concentrações se distanciam e convivem em constante conflito em seus polos; a frágil e
ineficaz educação, fruto das sucessivas más gestões, onde a formação individual dá-se instável
– que embasam as discussões sobre as garantias penais e processuais penais, e examinando
dados atuais do sistema penal, para construir um paralelo com o direito penal do inimigo. De
tal sorte, far-se-á uma análise e possível compreensão dos aspectos que estão estimulando o
contexto atual.

3.1 Fatores sociológicos

A busca do indivíduo em proteger seus bens e a si mesmo sempre fora uma


preocupação. De tal sorte, que para acabarem com este temor, os indivíduos renunciam sua
liberdade natural, cedendo uma parcela para a constituição de um grupo, onde estariam
seguros, abdicando desta e cedendo a um representante do todo, para que este cuidasse,
punisse e buscasse o bem comum de todos (BECCARIA 2015, p. 17).
Contudo, desde a criação deste contrato, a fenda que antes separava os indivíduos por
suas posses, agora se torna um abismo. E esta lacuna abissal, oriunda do modelo ocidental de
produção – o capital – e a sua busca incessante por lucro e acumulação, constituem um fator
importante para entender a atual conjuntura. Zaffaroni (2015, p. 60), observa que:

Chama a atenção o fato de que na grande maioria dos casos os que são chamados
deà deli ue tes àpe te e àaosàseto esàso iaisàdeà e o esà e u sos.àй àge al,à à
bastante óbvio que quase todas as prisões do mundo estão povoadas por pobres.
Isto indica que há um processo de seleção das pessoas às quais se qualifica como
deli ue tes àeà o,à o oàseàp ete de,àu à e oàp o essoàdeàseleç oàdasà o dutasà
ou ações qualificadas como tais (grifos do autor).

Esta realidade que hoje caracteriza o Brasil e também países da América Latina revela-
se como uma das características do sistema capitalista e da globalização em todos os
segmentos sócio-políticos. “egu doà áze edoà ,à p.à ,à dife e te e teà dos países
804

centrais, Brasil e Argentina, situados na semiperiferia do sistema capitalista, nunca contaram


com mecanismos em condições de substituir as funções exercidas pelo sistema penal, tanto
oàpla oà ate ialà ua toà oàpla oàsi li o.
Tal fator, que se enraizou nas sociedades contemporâneas, é enfatizado por Teresa
Caldeira (2000, p.134) como:

A profunda desigualdade que permeia a sociedade brasileira certamente serve de


pano de fundo à violência cotidiana e ao crime. A associação de pobreza e crime é
sempre a primeira que vem à mente das pessoas quando se fala de violência. Além
disso, todos os dados indicam que o crime violento está distribuído desigualmente e
afeta especialmente os pobres. No entanto, desigualdade e pobreza sempre
caracterizaram a sociedade brasileira e é difícil argumentar que apenas elas explicam
o recente aumento da criminalidade violenta. Na verdade, se a desigualdade é um
fator explicativo importante, não é pelo fato de a pobreza estar correlacionada
diretamente com a criminalidade, mas sim porque ela reproduz a vitimização e a
criminalização dos pobres, o desrespeito aos seus direitos e a sua falta de acesso à
justiça.

Outras áreas da superestrutura que o indivíduo se encontra inserido também são


afetadas não só pelo modelo social de formação (capitalista), mas por uma série de
deficiências que torna a construção de uma realidade social menos violenta e marginalizada,
uma utopia. Determinados fatores, abarcados pela força avassaladora da segregação do
capital, acabam construindo um contexto onde a teoria do direito penal do inimigo, por de
t sàdasà o ti as,àe asaàasàaç esà ueàhojeàs oàditasàdeà o t oleàso ial .à

Nestas sociedades, com um sistema escolar fragmentado e ineficiente, que restringe


a educação superior universitária a setores sociais reduzidos; um sistema produtivo
incapaz de garantir o acesso à renda e à seguridade social a amplos setores da
população; um mercado interno onde apenas uma pequena parcela tem acesso aos
bens de consumo; sociedades na qual quase metade da população se encontra em
condições de pobreza extrema, o sistema de justiça penal acentua sua centralidade
para a manutenção da ordem social, incapaz de manter-se através dos
procedimentos ordinários ou tradicionais de formação de consenso ou de
socialização primária (AZEREDO 2005, p. 221-222).

Destarte, o fato de que toda sociedade tem uma estrutura de poder e organização, e
esta, por segregar grupos, acaba por criar e alimentar grande parte do cenário, que
hodiernamente têm-se como realidade. Como exemplo, a midiatização em massa, que impõe
padrões sociais de conduta, sem que a sociedade sinta estar sendo manipulada, e através
deste meio, o grupo que determina os padrões, também cria inimigos comuns à sociedade,
moldando uma realidade ficta, onde a violência ganha status de ameaça a seguridade social,
805

e não mais como um problema social, a ser tratado por outras vias, ao invés de
institucionalmente (CHOMSKY 2013, p. 13-25).
Isto posto, tendo em vista o controle social exercido por determinados grupos, e suas
consequências, Zaffaroni (2015, p. 62) considera:

O certo é que toda a sociedade apresenta uma estrutura de poder, com grupos que
dominam e grupos que são dominados, com setores mais próximos ou mais
afastadosà dosà e t osà deà de is o.à Deà a o doà o à essaà est utu a,à seà o t ola à
socialmente a conduta dos homens, controle que não só se exerce sobre os grupos
mais distantes do centro do poder, como também com grupos mais próximos a ele,
aos quais se impõe controlar sua própria conduta para não debilitar-se. [...] toda
sociedade tem uma estrutura de poder (político ou econômico) com grupos mais
próximos e grupos mais marginalizados do poder [...] (grifos do autor).

Somados a estes, tantos outros fatores sociológicos, econômicos, culturais, sociais,


individuais, constroem a realidade criminal no país (também na comunidade mundial). Fatores
estes (a grande maioria), que tem sua gênese nos primeiros contatos entre grupos e culturas
de diferentes partes da sociedade antiga. Tais ações de quase extermínio, segregação de
povos e culturas, primazia dos interesses do grupo dominador, entre outras ações, fortemente
contribuíram para o estado marginalizado de determinados grupos sociais, tidos como
inimigos da ordem social (COLAÇO 2008, p. 20-29).

3.2 Fatores jurídicos

Notadamente que em termos de garantias individuais, não só a Constituição Federal


de 1988, mas também boa parte dos dispositivos legais internos e internacionais,
concernentes ao âmbito penal, têm uma vasta aplicabilidade e normatização formal. Contudo,
esta ampla gama de tipificações, aliado ao conservadorismo penal, tem corroborado e
majorado os fatores sociais, resultando tanto ao cenário penitenciário, quanto à guerra
construída às condutas ditas delituosas. Tornam-se assim, uma caracterização do direito penal
do inimigo.
Para tal apontamento, nota-se que grande parte dos casos denominados delitos, ou
indivíduos delinquentes, pertencem a setores da estrutura social menos abastado e/ou
favorecidos. Como resultado, a realidade prisional, não apenas no Brasil, mas em boa parte
do mundo, é ter estes desafortunados como massa carcerária. Isso indica, que o processo ao
806

invés de atuar sobre as condutas ou ações qualificadas como delituosas, está a selecionar
indivíduos classificados como delinquentes (ZAFFARONI 2015, p. 60).
Neste contexto, o direito penal e processual penal deveria, conjuntamente com as
previsões constitucionais, primar pelos direitos e garantias fundamentais inerentes ao Estado
Democrático de Direito, atuando contra a arbitrariedade e abusos estatais. Contudo, constata-
se, em muitos casos, o inverso, como destaca Azeredo (2005, p. 216):

Em termos gerais, a principal constatação a respeito da situação da justiça penal no


continente latino-americano, no contexto da transição democrática, é de uma
grande defasagem entre o plano do formal e do real no tocante aos princípios, entre
o dever ser e o ser. Quanto à acessibilidade, há desinformação sobre leis e
procedimentos, bem como sobremeios para buscar os direitos. Também há a perda
da confiança em razão da imagem negativa do Judiciário criada pela corrupção,
morosidade e ineficiência. Quanto à independência judicial, as decisões judiciais
estão, em muitos casos, sujeitas a pressões externas (período para exercício da
função, remuneração variável e precária, ameaças de morte, destituição de cargos)
e internas (instâncias superiores). A imparcialidade e eqüidade do juiz são atingidas
por pressões, ameaças e corrupção; suspensão de garantias processuais; expressões
vagas nos códigos que favorecem a arbitrariedade; indefinição do momento exato
do início do processo; deficiências dos sistemas de defesa. Quanto à transparência,
constatam-se deficiências na fiscalização e na informação sobre as atividades, bem
como a inexistência de controle externo.

A corroborar, a constante aplicação do direito penal do inimigo no ordenamento


brasileiro, far-se-á alusão há alguns instrumentos legislativos que consubstanciam tal teoria.
Muitos, constituem pilares do atual cenário do sistema penal.
O chamado Iter Criminis, ou o caminho do crime, pune no ordenamento penal
brasileiro, apenas a fase de execução e consumação, não tendo em regra, interesse penal na
fase de preparação, muito menos na fase de cogitação (tendo em vista o princípio da
lesividade). Contudo, há casos específicos que o legislador optou por tipificar alguns atos
preparatórios de forma autônoma, denominados de crime obstáculo. Esta exceção verifica-se
de forma expressa no art. 5º da Lei 13.260/20167, que trata dos mecanismos antiterrorismo.
Por se tratar de condutas de grande impacto quando executadas, merecem atenção, mas o
detalhe que assola o direito penal se insurge quando se corporifica a incriminação de atos
preparatórios dentro do ordenamento jurídico penal.

7
Art. 5º Realizar atos preparatórios de terrorismo com o propósito inequívoco de consumar tal delito:
Pena - a correspondente ao delito consumado, diminuída de um quarto até a metade.
807

Tal atuação da tutela antecipada enseja o que Jakobs visualizava como punição
antecipada, visto que abre precedente para tornar uma presunção de dano ou perigo, em um
objeto de reprovação pelo legislador, sendo tipificados atos preparatórios e crimes de mera
conduta. Tendo com isso uma direção, há uma tendência de reduzir e até suprimir garantias
individuais, conquistadas a duras penas, resultando em um devido processo legal falho, e uma
suposta guerra a esses inimigos (SILVA 2011, p. 68-73).
Outra alteração que denota uma tendência celetista do poder judiciário se dá em face
da nova orientação jurisprudencial que o Supremo Tribunal Federal proferiu em fevereiro de
2016, possibilitando que a condenação comece a ser cumprida já em segunda instância, sendo
que o trânsito em julgado não fora ainda efetivado, tendo com isso mudado drasticamente o
entendimento anterior, que garantia o devido processo legal e a execução da condenação
somente depois de certificado o trânsito em julgado. Tal entendimento exarado no HC
126.292, decorreu de uma condenação de cinco anos e quatro meses por roubo qualificado
(art. 157, § 2°, inc. I e II), quando então o TJ/SP negou provimento ao recurso e determinou a
imediata expedição do mandado de prisão.
Oà elato à à po a,àMi ist oàTeo ià)a as ki,àasse e ouà ueà aàe e uç oàp o is iaàdeà
acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso
especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de
i o ia .à Ta à segu doà oà e te di e toà doà i ist o,à estaàde is oà isaà ga a ti à oà jus
puniendi do Estado, diminuindo com isso, a avalanche de recursos protelatórios que almejam
a prescrição da pretensão punitiva e/ou executória.
Porém, esta decisão expressamente vai de encontro a dispositivos mundialmente
consagrados e fundantes das bases de direitos humanos, que inclusive o Brasil é signatário. O
art. 9° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, datada do séc. XVIII declara que
todoàa usadoà à o side adoài o e teàat àse àde la adoà ulpadoàe,àseàjulga ài dispe s elà
prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente
ep i idoàpelaàlei .àái da,àoàa t.à àdaàDe laração Universal de Direitos da Pessoa Humana,
dizà e à seuà §à à Todaà pessoaà a usadaà deàu à atoàdelituosoàte à oà di eitoàdeà se à p esu idaà
inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento
público no qual lhe tenham sido assegu adaàtodasàasàga a tiasà e ess iasà àsuaàdefesa .àDaà
mesma forma, o Pacto de São José da Costa Rica, estabelece em seu art. 8º, inc. I, o Princípio
808

daàP esu ç oàdeàI o ia,àaoàassegu a à ueà todaàpessoaàa usadaàdeàdelitoàte àdi eitoàaà ueà
se presu aàsuaài o iaàe ua toà oàseà o p o eàlegal e teàsuaà ulpa .
E também, a Constituição Federal de 1988 garante esse direito ao indivíduo
o de ado,àse doà ueàoàp p ioàa t.à º,ài isoàэVII,àdaàCo stituiç oàнede alàdizà ueà i gu à
será considerado culpadoà at à oà t sitoà e à julgadoà deà se te çaà pe alà o de at ia ,à
respaldado no art. 60, parágrafo § 4º, inciso IV, que define as cláusulas pétreas (invioláveis e
inalteráveis, se não por nova constituinte). Este é o principal artigo violado nesta decisão,
corroborando a aplicação dos preceitos penais do inimigo, visto que esta decisão se faz
concreta e aplicável ao indivíduo resultante das falhas sociais, promovidas pelo Estado.
Outro dispositivo criado para atender as demandas penais, dá-se diante da introdução
da Lei nº 10.792/2003, que alterou a Lei de Execuções Penais e introduziu o Regime Disciplinar
Diferenciado no ordenamento brasileiro, dispondo de aspectos referentes ao direito penal do
inimigo. Assim, o artigo 52, §§ 1º e 2º, da referida lei, expressa os aspectos da teoria do direito
penal do inimigo:

Artigo 52: A prática de fato prevista como crime doloso constitui falta grave e,
quando ocasione subversão da ordem ou disciplina interna, sujeitas o preso
provisório, ou condenado, sem prejuízo de sanção penal, ao regime disciplinar
diferenciado, com as seguintes características: § 1º O regime disciplinar diferenciado
também poderá abrigar os presos provisórios ou condenados, nacionais ou
estrangeiros, que apresentem altos riscos para a ordem e a segurança do
estabelecimento penal ou da sociedade. § 2º Estará igualmente sujeito ao regime
disciplinar diferenciado o preso provisório ou condenando sob o qual recaiam
fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em
organizações criminosas, quadrilhas ou bandos.

Tal dispositivo, embora implícito, demonstra que a punição mais severa se dá não por
tipificada na norma penal, e sim por o indivíduo apresentar uma periculosidade maior, sendo
este aspecto, fruto da teoria de Jakobs (SILVA 2011, p. 81).
A isto, podem-se acrescer algumas considerações quanto à Audiência de Custódia, que
instituída pela Resolução n° 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça, atende às orientações
do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos em seu artigo 9°8, do qual o Brasil é

8
Artigo 9
3. Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à
presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser
julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam
julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que
809

signatário, e também ao artigo 7°9 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Este novo
mecanismo do poder judiciário, segundo Carlo Velho Masi (2016, p. 182) é:
[...] o ato pré-processual onde o preso (em flagrante ou mediante o cumprimento de
ordem judicial) deve ser prontamente levado à autoridade judicial, a quem compete
verificar a legalidade/regularidade (requisitos formais) e a necessidade da prisão ou
a possibilidade de substituí-la por medidas menos gravosas. Através deste ato, cria-
se um filtro mais rígido na entrada do sistema prisional, com o propósito de qualificar
o ingresso de pessoas nos presídios, não só amenizando teoricamente a
superlotação carcerária, ao reduzir as taxas de aprisionamento cautelar, como
também reconhecendo o papel excepcional da prisão no processo penal.

Tal procedimento, sem sombra de dúvidas é um grande avanço frente à cultura de


encarceramento que o Brasil tem seguido. Sua efetivação proporciona ao juiz, que tenha de
imediato (até 24 horas da prisão em flagrante) contato com o indivíduo, para que possa ter
uma visão fática das condições pessoais do mesmo, para que não haja prisões ilegais ou atos
de tortura na ação policial, e que também proporcione um breve contraditório, em que ambas
as versões possam ser ouvidas pelo juiz. Assim, o juiz pode ter uma impressão concreta da
realidade do indivíduo que ali se encontra o que em muitos casos, só analisando os autos não
poderia compreender, podendo até determinar medidas de mediação penal, evitando assim,
a judicialização do conflito (MASI 2016, p. 43-44).
Contudo, este instrumento não conseguiu dirimir um fato preocupante das prisões em
flagrantes, o qual seja a prática de tortura ou maus tratos destes indivíduos. A baixa ou nula
atenção da justiça criminal, nestes casos, constitui um atentado aos direitos humanos
garantidos a este indivíduo. Logo, a audiência de custódia seria o momento em que estas
práticas seriam verificadas pelo juiz, o que ainda faticamente não está sendo concretizado.
Somado a isso, a sua efetivação para reduzir os números de encarcerados ainda é simbólica,
pois em mais de 50% dos casos de manutenção de custódia, a prisão preventiva está sendo
aplicada não só aos casos mais graves, inflando com isso, os números carcerários.

assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário


for, para a execução da sentença.
9
Artigo 7
5. Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade
autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito [...] a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que
prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento
em juízo.
810

4 ANÁLISE ESTATÍSTICA

Em face do apresentado, alguns dados são de extrema importância para visualizar a


real situação do contexto do sistema penal no país, o qual, explicitamente se assevera a cada
dia, tornando mais longínquo a efetivação dos direitos e garantias a todos, em especial aos
menos desafortunados. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em seu anuário, a
violência em sua efetiva concretização, alerta à frágil materialização das ações, que de regra,
deveria dirimir os conflitos. Contudo, estão em crescente desordem, criando com isso, o
cenário abissal entre as disposições constitucionais e sua efetiva aplicabilidade, ensejando e
trazendo à discussão uma aplicação do direito penal do inimigo. Tanto a sociedade quanto o
Estado corrobora essa afirmação, sendo que a análise dos dados comprova tal assertiva.
O Brasil registrou de janeiro de 2011 a dezembro de 2015, 279.567 mortes violentas,
sendo que no confronto armado da Síria no oriente médio, de março de 2011 a novembro de
2015, foram mortas violentamente 256.124 pessoas, segundo dados do Observatório de
Direitos Humanos da Síria. Só em 2015, 58.467 pessoas morreram vítimas de homicídios
dolosos, de latrocínios, lesões corporais seguidas de morte e mortes decorrentes de
intervenções policiais, das quais, 54% eram jovens de 15 a 24 anos, e 73% são pretos e pardos.
Estes dados demonstram o quão estão avançados os padrões da violência, na qual a cada nove
minutos, uma pessoa foi morta neste período, evidenciando o cenário desolador.
áàso iedade,àsegu doàoàa u io,àe à %àdosàe t e istados,à o side aà a didoà om,
a didoà o to ,à oà ueà a e tuaà aà di is oà deà щako sà e t eà idad osà eà i i igos,à aà ualà
evidencia o grau de segregação construído pelo Estado e corroborado pela sociedade diante
do indivíduo infrator. Na atuação da polícia, entre 2009 e 2015, 17.688 pessoas morreram,
porém no mesmo período, 2.543 policiais foram vítimas de homicídio.
O contexto prisional demonstra números ainda piores, sendo que o Brasil ocupa a 4°
colocação no ranking mundial de população carcerária10. De acordo com o Fórum Brasileiro
de Segurança Pública, até dezembro de 2014, somava-se 584.361 presos, dos quais 372.183
cumprindo suas respectivas condenações (incluso todos os regimes), e 212.178 prisões
provisórias, de tal sorte que a estrutura à época, proporcionava apenas 370.860 vagas, tendo

10
Segundo o CNJ, somado aos 563.526 presos – inclusas as prisões provisórias – as prisões domiciliares que
somam 147.937 presos, o Brasil ocuparia a 3° posição com mais de 700 mil presos (dados de junho de 2014).
811

com isso, 1,6 preso/vaga. Resultado este que se configura nas mais diversas violações em
direitos humanos nas prisões brasileiras, e que a cada dia se assevera por força de práticas
estatais, muitas vezes ineficientes, visando não uma possível ressocialização, mas sim uma
punição pela condição de inimigo que este indivíduo se encontra.
Tal afirmação se dá em face de que, somente 11% da população carcerária total, esteve
envolvida (até 2014), em atividades de ensino formal, e apenas 2% da mesma, em atividades
educacionais diversas. Quanto a atividades laborterápicas (trabalho), somente 19,8% dos
584.361 presos, desempenhavam tais atividades, e destes 19,8%, que somam mais de 115.700
presos, 38% não recebiam remuneração, 37,1% recebiam menos de 3/4 do salário mínimo
mensal, e somente 4,7% recebiam entre um e dois salários mínimos mensais, o que
formalmente afronta as disposições expressas de forma taxativa na Lei 7210/198411.
Com isso, não há clareza na forma e/ou método, que se utiliza o Estado, por meio de
seus poderes, para reinserir o indivíduo em seu meio social, que outrora este se encontrava.
Logo, mesmo não tendo nenhuma receptividade formal e legal da teoria de Jakobs, as ações
e resultados buscados por seus atuantes, tem se utilizado implicitamente do direito penal do
inimigo, agravando massivamente a conjuntura do sistema penal em todos seus aspectos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A situação do sistema penal brasileiro, que se considera um dos mais rígidos, constrói
uma situação de descaso sistemático e alarmante aos direitos humanos, transformando o
Estado Democrático de Direito, segundo expressão do Supremo Tribunal Federal, em Estado
de Coisas Inconstitucionais. Diante este cenário, o presente artigo trouxe uma breve reflexão
sobre a teoria de Gunther Jakobs, Direito Penal do Inimigo, e sua implícita aplicabilidade no
ordenamento jurídico-penal brasileiro. São incontestes que as ações de segregação sempre
existiram com base na teoria de Jakobs, quando o movimento contratualista já expressava as
distinções sociais, segundo seus atos. Mas Jakobs foi além, criando dois grupos de indivíduos,
os cidadãos, para os quais as punições seriam de correção, e os inimigos, que seriam
penalizados com mais rigor por serem classificados de alta periculosidade social.

11
Segundo a Lei de Execuções Penais em seu artigo 29, caput, dispõe que:
Art. 29. O trabalho do preso será remunerado, mediante prévia tabela, não podendo ser inferior a 3/4 (três
quartos) do salário mínimo.
812

Quanto ao contexto hodierno, verifica-se ainda que de modo sorrateiro, a divisão dos
indivíduos quanto ao jus puniendi estatal. Como abordado no artigo, os fatores
socioeconômicos são fundamentais para avaliar as ações do Estado, visto que a massa
carcerária compreende, em sua maioria, indivíduos oriundos do segmento mais marginalizado
e com menos poder aquisitivo, não por terem tendência ao crime, e sim por sua condição mais
favorável ao encarceramento. A isso, somam-se as diversas ferramentas do Estado, em seu
agir, que adotaram uma política penal de exclusão, notadamente fundada em pressupostos
do Direito Penal do Inimigo. A análise empírica de dados contemporâneos demonstra a
severidade e o caos que constituí a realidade penal brasileira.

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815

A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL: DIREITO À VIDA DO NASCITURO E


DIREITOS FUNDAMENTAIS DA GESTANTE
Luís Fernando Pretto Corrêa1
Graziele Strada2
Janaína Machado Sturza3

RESUMO
O presente trabalho irá discorrer sobre a descriminalização do aborto e qual a sua
importância na vida da mulher de maneira a relacioná-lo com o princípio da dignidade
humana, o qual irá embasar todo o texto constitucional e sua finalidade.A
descriminalização do aborto por vezes é tratada de forma desviante com as articulações
do Estado para efetivar o bem mais precioso do ser humano, qual seja: a vida.Quando um
governo reconhece a existência de um problema de caráter público e a necessidade de
intervir neste propósito, deve também decidir qual o curso de ações a adotar,
analisandoas opções à disposição.A Carta Magna de 1988 irá garantir o respeito ao direito
à vida como barreira ao descriminalizar o aborto em uma sociedade e sua cultura com
diversos preconceitos cravejados no cotidiano.

Palavras-chave: Direito humano; Polemica; Mulher; Estado e Sociedade.

1 INTRODUÇÃO
A Constituição Federativa do Brasil elenca como um dos seus pilares fundamentais
a dignidade humana, elemento central qual vai embasar todo o texto constitucional e sua
finalidade. Então, a consagração constitucional da dignidade da pessoa humana resulta,
pois, na obrigação do Estado em garantir o acesso à Justiça de todos os cidadãos, de forma
a efetivar esta virtude em seu sentido completo, por meio então, da ferramenta chamada:
Judiciário.
Desta forma, o cidadão detentor de direitos e garantias tem a certeza que através
do procedimento coerente chegará aos resultados dignos de ser alcançados como forma
de efetivação dos Direitos Humanos. Contudo em conflito com as profundas injustiças e
desigualdades sociais, tais primícias fundamentais para efetivação do direito devem ser
reconhecidas pelos cidadãos através de polícias públicas concretizadas pelo Estado.

1
Acadêmico do Curso de Graduação em Direito pela UNIJUI e Bolsista de Pesquisa PIBIC/UNIJUI. Contato:
pretto.feer@gmail.com.
2
Acadêmica do Curso de Graduação em Direito pela UNIJUÍ e Bolsista de Pesquisa FAPERGS/UNIJUÍ.
Contato: grazi.strada@hotmail.com.
3
Doutora em Direito pela UNIROMA III. Professora na graduação e no programa de Mestrado em Direitos
Humanos da UNIJUÍ. Contato: janasturza@hotmail.com
816

Portanto, temas de grande relevância na sociedade, como a descriminalização do


aborto as vezes é tratado de forma desviante com as articulações do Estado para efetivar
o bem mais precioso do ser humano, qual seja: a vida. Assim, quando um governo
reconhece a existência de um problema de caráter público e a necessidade de intervir
neste propósito, deve também decidir qual o curso de ações a adotar, analisando,
portanto, as várias opções à disposição para resolver o problema.
Este tem como objetivo propor uma reflexão com dados fundamentais no
momento em que se deseja discutir o caso proposto. A Carta Magna de 1988 vai garantir
o respeito ao direito a vida como barreira ao descriminalizar o aborto em uma sociedade
e sua cultura com diversos preconceitos cravejados no cotidiano. O problema trato deve
ser discutido em todas as classes para garantir a reflexão crítica da sociedade acerca dos
direitos e garantias constitucionais.

2 O DIREITO À VIDA E SUA RELAÇÃO COM A PRÁTICA DO ABORTO


O direito à vida é sem dúvida um direito fundamental supremo a qualquer outro
direito que bata de frente com este. Desta forma, analisar-se-á como o direito à vida é
visto pela doutrina.Assim, é pertinente ressaltar o entendimento de Bulos (2012, p. 540),
que relata com muita propriedade que:

O direito à vida inicia-se com a fecundação do óvulo pelo espermatozoide


resultando num ovo ou zigoto m embrião traz carga genética própria, sendo,
pois, um ser individualizado. Possui existência, a qual não deve ser confundida
com a vida de seus pais, cabendo ao jurista buscar o enquadramento legal que
deflui desta realidade.

Portanto, é imprescindível que o direito à vida tenha peso abstrato, e que seja
superior a qualquer outro interesse, pois este direito é a premissa dos direitos
proclamados pelo constituinte, sendo que não faria sentido revelar qualquer outro direito
antes, se não tivesse assegurado o direito de estar e permanecer vivo (MENDES E
BRANCO, 2012, p. 769).
Enfim, é necessário refletir até aonde se pode deixar que um direito fundamental
seja violado, e como deve-se agir perante um confronto de tais direitos, desta forma,
passar-se-á demonstrar a seguir outro direito fundamental que anda lado a lado com o
direito à vida, o direito a saúde.
817

O ser humano é, sem dúvida alguma, o centro e o fim do Direito, sendo


esta característica pautada no valor básico do Estado Democrático de Direito, que é a
dignidade da pessoa humana. Hoje, na sociedade contemporânea, estamos vivenciando
um período onde o discurso jurídico, na maioria das vezes, não condiz com tudo aquilo
que dele poderíamos esperar, já que a prática não reflete o que propõe. Portanto,

[...] vivemos hoje numa sociedade paradoxal. A afirmação discursiva dos


valores é tanto mais necessária quanto mais as práticas sociais
dominantes tornam impossível a realização desses valores (SANTOS –
2003).

Pe ple osà o àu aàso iedadeà o oà e eteàaàlet aàdeàэegi oàU a aà osàde a à


espelhosàeà i osàu à u doàdoe te ,àluta osàdeàfo aà o isaàaoàdese ol i e toàdeà
uma nação com esperanças de florescer o seu seio majestoso e lutar pelo seu princípio
cravejado na sua história. O expresso reconhecimento da dignidade da pessoa humana
como princípio fundamental apresenta, em parte, a pretensão constitucional de
transformá-lo em um parâmetro objetivo de harmonização dos diversos dispositivos
constitucionais, obrigando o intérprete a buscar uma concordância prática entre eles, na
qual o valor recepcionado no princípio seja efetivamente preservado.

Quando a Constituição elencou um longo catálogo de direitos


fundamentais e definiu os objetivos fundamentais do Estado, buscou
essencialmente concretizar a dignidade da pessoa humana. Afinal, de
nada adiantaria a simples menção ao princípio fundamental da
dignidade da pessoa humana se a Constituição de 1988 não garantisse
um núcleo básico de direitos aos cidadãos. Em suma, temos que a
unidade axiológico-normativa do sistema constitucional deve ser
aferida, essencialmente, a partir de uma tábua axiológica, em cujo cerne
se encontra a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais
[...] (MARTINS, 2003, pg.124)

A despeito desta abordagem, o reconhecimento da dignidade da pessoa humana


pela ordem jurídico-positiva não está afirmando que a dignidade da pessoa exista apenas
nas bases do Direito. Contudo, do grau de reconhecimento e proteção outorgado à
dignidade por cada ordem jurídico-constitucional e pelo ordenamento jurídico pátrio e
internacional, essencialmente irá depender sua efetiva realização e promoção, de tal
forma que se impõe uma análise do conteúdo jurídico, ou melhor, da dimensão jurídica
da dignidade no co te toàdaàa ti ulaç oà o stitu io alàp t ia,à desig ada e te,àaàfo çaà
ju ídi aà ueàlheàfoiàouto gadaà aà o diç oàdeà o aàfu da e tal à “á‘эйT,à ,àpg. .
818

Assim, perante os precedentes históricos a cultura do aborto nem sempre foi um


crime como é trato nos artigos 124 e 128 do Código Penal, pois em Roma, o aborto era
trato como um direto que a mulher tinha de cuidar do seu corpo da maneira que ela
quisesse, assim a lei das XII Tábuas e as leis da República regulamentavam o assunto.
Contudo, coma vinda do cristianismo, as mulheres que praticavam o aborto passaram a
ser punidas, pois atingia o direito do marido a ter o filho e assim o seu nascimento com
vida e o valorando como nos dias atuais como o bem mais preciso do ser humano. (CAPEZ,
2010)
A discussão do aborto sendo pauta em todos os meios da sociedade é concisa e
polêmica, uma vez que, se trata de direitos e deveres de muitos envolvidos, contudo o
que se vem discutindo no âmbito jurídico é a descriminalização de tal conduta. Este, na
legislação vigente é tratado de maneiras diversas como feito pela própria gestante
quando provoca a destruição do feto e a interrupção realizada por terceiros, assim,
somente em estado de necessidade que a mulher corra risco de vida ou a sua saúde, e
outros casos tratados na jurisprudência julgada nos tribunais ela, então, teria a permissão
de abortar. Portanto,
[...] o homem, para poder viver em companhia de outros homens, deve
ceder parte de sua liberdade primitiva que possibilitará a vida em
sociedade. Essas parcelas de liberdades individuais cedidas por seus
membros, ao ingressar em uma sociedade, se unificam, transformando-
se em poder, o qual é exercido por representantes do grupo (NETO –
2007).

Neste eixo, a Constituição Federal é garantidora da vida humana, uma vez que
consagra os direitos fundamentais e valorando o bem máximo do ser humano que é a
vida, isto, pois a sociedade através se sua cultura machista repreende a conduta. Este é
fato que recresta que o estado cuidou de regulamentar o assunto, uma vez que, a
sociedade o autorizou para organizar a sociedade que é repleta de profundas injustiças e
desigualdades sociais protegendo o homem do próprio homem, o ser racional mais
destruidor do seu próprio meio.
No Brasil, vigora na matéria o Código Penal que foi editado no ano de 1940, que
optou pela criminalização do aborto em seus artigos 124 a 128, com a seguinte redação:

Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento


Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho
819

provoque: (Vide ADPF 54)


Pena - detenção, de um a três anos.

Aborto provocado por terceiro


Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de três a dez anos.

Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: (Vide ADPF


54)
Pena - reclusão, de um a quatro anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é
maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento
é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência

Forma qualificada
Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas
de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para
provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas,
se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54)

Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro


II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de
consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Como pode-se observar, nosso Código Penal não pune o aborto quando praticado
por médico em caso de estupro ou se não houver outro meio de salvar a vida da Gestante.

3 O ABORTO E A PREOCUPAÇÃO COM A VIDA DO EMBRIÃO


Atualmente, a revisão dessas normas está empauta. O Governo brasileiro instituiu
uma Comissão Tripartite, a qual foi composta por representantes dos Poderes Executivo,
Legislativo e sociedade civil para que se repense o posicionamento do Estado sobre o
aborto, e que eventualmente, se elabore nova legislação a respeito desse assunto, tendo
em vista uma discussão sobre a viabilidade constitucional de legalização do aborto no
Brasil, a fase inicial da gestação.
Não se pode deixar de constatar que todo ano milhares de mulheres procuram
clínicas clandestinas para realizar abortos de maneira que passam a correr riscos de vida
ou até mesmo desenvolver doenças ocasionadas em decorrência de um aborto mal
concluído, como nos relata Cavalcante (2006, p.55)
820

Voltando entretanto à análise de outros enfoques, todos eles bempragmáticos


e não-ideológicos, como os que discutimos até este momento, temos a
sugestão de descriminação da interrupção da gravidez embasada na
necessidade de se poder dar assistência médica,oficial e legalmente, às
mulheres que já decidiram abortar e que realizarão essa prática, ainda que ela
seja proibida. Alega-se que muitasmulheres morrem, ou passam a ser
portadora de lesões gravíssimas, em razão de aborto mal realizado. Daí a
necessidade de elas pode e àse àa udidasà àluzàdoàdia à eà o à socapa) por
entidades públicas e privadas. Trata-se de posicionamento pragmático, que
englobapessoas até ideologicamente contrárias ao aborto e que se sustentaem
poderosas razões de saúde pública.
Outra razão, também de ordem prática, é a existência, em nosso país,
denúmero elevado de menores abandonados, vivendo à margem de uma
sociedade que lhes nega quase toda possibilidade de integração, sendo mortos
por grupos de extermínio patrocinados por pessoas incomodadas com sua
presença (às vezes, incomodadas pela simples presença de crianças
maltrapilhas, sujas, pedintes, e que podem até furtar, roubar ou matar).

Desse modo, pode-se afirmar que grande parte das pessoas favoráveis ao aborto
o veem como forma de resolver problema de cunho social ou até mesmo como uma certa
forma de apenas evitar uma gravidez indesejada, ignorando todas as formas
contraceptivas existentes e acessíveis à toda a população, muitas delas disponibilizadas
pelo Estado de forma gratuita, reafirmando o fato de que uma eventual liberação do
aborto, além do risco de esterilidade e outros problemas de saúde que podem ser gerados
a partir da prática do aborto, a mulher poderá perder também o senso de
responsabilidade nos atos e práticas de relações sexuais, em decorrência da qual ela
poderá engravidar e, posteriormente, usar o aborto como forma de interrupção da
gravidez indesejada, simplesmente.
Sarmento (2005) enfatiza, ainda nesse aspecto, que

do ponto de vista prático, a criminalização do aborto tem produzido como


principal conseqüência, ao longo dos anos, a exposição da saúde e da vida das
mulheres brasileiras em idade fértil, sobretudo as mais pobres, a riscos
gravíssimos, que poderiam ser perfeitamente evitados através da adoção de
políti aàpú li aà aisà a io al.àPo ta to,àaàlegislaç oàe à igo à oà sal a àaà idaà
potencial de fetos e embriões, mas antes retira a vida e compromete a saúde
de muitas mulheres.

Mas também pode-se afirmar que com o surgimento de novos valores sociais no
que se refere ao papel da mulher na sociedade, assim como o reconhecimento da
igualdade de gênero e a mudança de paradigma no que diz respeito a sexualidade da
mulher, hoje já se pensa em aborto sob uma nova ótica, pondo em dúvida os valores
relacionados à época de criação de nosso código penal, fazendo que que se passe a refletir
821

até que ponto o aborto deve ser considerado crime, visto sob a ótica que envolve a vida
de duas pessoas (genitora e embrião) não dizendo respeito somente apenas a vida que
está sendo gerada, mas também da vida da mulher que possa vir a gerar uma criança
indesejada.
Assim,Sarmento (2005) argumenta:

Hoje, não há mais como pensar no tema da interrupção voluntária da gravidez


sem levar na devida conta o direito à autonomia reprodutiva da mulher,
questão completamente alheia às preocupações da sociedade machista e
patriarcal do início da década de 40 do século passado. Parece assente que,
embora esta autonomia não seja absoluta, ela não pode ser negligenciada na
busca da solução mais justa e adequada para a problemática do aborto, seja
sob o prisma moral, seja sob a perspectiva estritamente jurídica.

Desse modo, passa-se a pensar que a revisão da legislação do aborto deve ser
elaborada com igual atenção aos direitos humanos básicos da mulher e não apenas sob a
ótica do direito à vida do embrião. Esse assunto vem se destacando a nível mundial desde
meados da década de 60, posto que, em sintonia com os novos valores sociais, vem se
pensando na liberalização da legislação do aborto. Assim, a legislação brasileira pose ser
caracterizada como uma das mais rigorosas do mundo no que diz respeito ao aborto.
Mas a alteração da legislação sobre a interrupção voluntária da gravidez também
envolve o cumprimento de compromissos internacionais, segundo Sarmento (2005)

a alteração do tratamento legal conferido à interrupção voluntária da


gravidez constitui também o cumprimento de compromissos
internacionais, como os estabelecidos no Plano de Ação da Conferência
do Cairo, sobre População e Desenvolvimento, realizada em 1994, e na
Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial da Mulher, ocorrida em
Beijing, em 1995, nas quais ficou assentado que a questão do aborto
deveria ser tratada pelos países como problema de saúde pública e não
pela ótica criminal.

Por outro lado, existe a preocupação com a vida do embrião. A situação jurídica e
moral do nascituro vem gerando muitas discussões, não podendo também os valores que
concernem a vida do embrião ou feto serem ignorados. Nesse sentido, Sarmento (2005)
salienta:
o entendimento que vem prevalecendo nas decisões dos Tribunais
Constitucionais de todo o mundo é o de que a vida do nascituro é protegida
pela Constituição, embora não com a mesma intensidade com que se tutela o
direito à vida das pessoas humanas já nascidas. E, por razões de ordem
biológica, social e moral, tem-se considerado também que o grau de proteção
constitucional conferido à vida intra-uterina vai aumentando na medida em
822

que avança o período de gestação.

Deste modo, sob o prisma jurídico, deve haver uma ponderação de valores
constitucionais, buscando-se um ponto de equilíbrio, para que, assim, os bens jurídicos
envolvidos sejam sacrificados o mínimo possível, e que se atente para as implicações
éticas do problema aqui equacionado.
Em seus estudos, Sarmento (2005) relata que a Corte Internacional de Direitos
рu a osà e te deà ueà aà vida intrauterina não pode ser protegida com a
es ai te sidadeà ueàaà idaàdaàpessoaà as ida. àDesteà odoàpode-se interpretar uma
recusa a qualquer equiparação entre a proteção da vida do nascituro e da criança após o
nascimento.
Pode-se então chegar ao entendimento que existe uma forte tendência à
liberalização da legislação referente ao aborto, em função da proteção dos direitos
humanos da gestante, mas que, apesar disso, também se reconhece estatura
constitucional ao interesse na preservação da vida do nascituro, a qual aumenta
conforme a gestação progride. Isso quer dizer, em outras palavras, que na maioria dos
países, tais como Estados Unidos, Canadá, Portugal, Espanha, Itália, França e Alemanha
tem em sua legislação condições para que o aborto não seja criminalizado, desde que seja
praticado no máximo até a 12º semana de gestação, ou, se posterior a isso, que seja em
função de problema de saúde do feto ou que coloque em risco a vida da gestante.
Em seus estudos, Sarmento(2005, p.22) enfatiza

Contudo, nota-se também que, de um modo geral, reconheceu-se estatura


constitucional ao interesse na preservação da vida do nascituro, que aumenta
na medida em que progride a gestação. Daí porque, apesar das variações nas
soluções perfilhadas, pode-se afirmar que, de um modo geral, o que buscam as
legislações modernas nesta matéria é um ponto de equilíbrio entre, de um lado,
os direitos humanos das gestantes, e, do outro, a proteção à vida do embrião
ou feto. Na nossa opinião, que será aprofundada nos itens seguintes, a ordem
constitucional brasileira impõe seja trilhado este mesmo caminho, já que ela
consagra a proteção de direitos fundamentais da mulher correlacionados à sua
saúde e autonomia reprodutiva, mas também protege a vida do nascituro –
embora não com a mesma intensidade com que garante a vida das pessoas já
nascidas.

A Constituição Federal de 1988 não aponta o aborto voluntário nem para autorizá-
lo, nem para proibi-lo. Porém, é nessa mesma Constituição que se deve buscar o
norteamento para o equacionamento jurídico no que concerne à interrupção voluntária
823

de gravidez no Brasil. Portanto, pode-se dizer que existem limites constitucionais a serem
observados, sejam eles os direitos fundamentais da mulher, ou a proteção ao feto.
Sarmento ainda destaca
E o melhor: trata-se de uma Constituição com características muito singulares,
que apresenta, como sua marca mais notável, a preocupação central com os
direitos humanos. Este foco se evidencia desde já pela própria estruturação do
texto constitucional: se, nas constituições anteriores, primeiro tratava-se da
organização do Estado, e só ao fim eram consagrados os direitos, agora inverte-
se esta ordem e os direitos passam a ser afirmados antes, como uma espécie
de testemunho, da sua prioridade axiológica. Na verdade a Constituição de 88
não só hospedou em seu texto um generoso catálogo de direitos fundamentais,
incorporando direitos individuais, políticos, sociais e difusos, como também
atribuiu a eles aplicabilidade imediata (art. 5º, §1º), e protegeu-os, ainda,
diante do próprio pode constituinte derivado (art. 60, §4º). (SARMENTO, 2005,
p. 23-24)

Afirma-se, então, que deve-se buscar na Constituição o norte para a resolução


jurídica que deverá ser conferida à questão do aborto no Brasil, respeitando os limites
constitucionais a serem observados, os quais incluem os direitos fundamentais da mulher,
mas que também, por outro lado, incluem a proteção ao feto.

4 A LEGALIZAÇÃO DO ABORTO E A LAICIDADE DO ESTADO


Embora a maioria das alegações que se dizem contrárias à descriminalização do
aborto sejam embasadas por motivações religiosas, e isso pode ser um problema, deve-
se pôr em questão o fato de que o Direito não pode curvar-se diante da religião para
impor coercitivamente, inclusive aos não crentes uma decisão tomada fundamentada em
cunho religioso.
A Constituição de 1988 (artigo 5º, inciso VI) proclama como direito fundamental a
liberdade de religião, não podendo, assim, ser tomado qualquer tipo de decisão de cunho
jurisdicional motivado por qualquer tipo de fé ou crença religiosa. Contudo, busca-se
delimitar espaços próprios para o poder político e a fé religiosa, de forma que eles não se
confundam, levando, assim, a sério a laicidade do Estado.
O poder político é exercido pelo Estado, na esfera pública, devendo, assim, basear-
se em razões públicas nas tomadas de decisões, para que se possibilite a aceitação do
público em geral independentemente de convicções religiosas, como afirma Sarmento
(2005, p. 25)
A laicidade do Estado não se compadece com o exercício da autoridade pública
com fundamento em dogmas de fé – ainda que professados pela religião
824

majoritária – pois ela impõe aos poderes estatais uma postura de


imparcialidade e equidistância e relação as diferentes crenças religiosas,
cosmovisões e concepções morais que lhes são subjacentes.

Por haver um vasto pluralismo político no Brasil, isso torna-se uma característica
essencial na contemporaneidade. Existe um enorme leque de religiões distintas, as quais
professam ideologias diferentes, assim como há também aqueles que não adotam
nenhuma religião. Entende-se, então, que o Estado deve respeitar essas escolhas e
orientações, não permitindo-se oprimir ou coagir o cidadão pro essa conduta, abstendo-
se, assim, de tomar quaisquer decisões norteadas por embasamento religioso, mantendo-
se neutro em matéria de crença religiosa.

5. PROTEÇÃO DA VIDA INTRAUTERINA X DIREITO À DIGNIDADE HUMANA DA GESTANTE


Não pode-se discutir a legalização do aborto sem colocar em questão a proteção
jurídica da vida intrauterina. Quando se fala em interrupção voluntária da gravidez, não
se pode deixar de relacioná-la à interrupção de uma vida, devendo-se então verificar até
que ponto essa vida recebendo proteção constitucional.
A vida humana intrauterina também é protegida pela constituição, porém, com
menos intensidade que a proteção à vida de uma pessoa já nascida. A proteção que se
confere à vida do nascituro, conforme já mencionado acima, se dá progressivamente
conforme a evolução da gravidez, na medida em que o embrião se desenvolve, torna-se
um feto, e posteriormente adquire possibilidade de vida extrauterina, o que torna o
tempo de gestação fator altamente relevante quando se mensura o nível de proteção
constitucional à vida pré-natal. Essa ideia já está claramente presente no ordenamento
brasileiro, conforme salienta Sarmento (2005, p. 29):

É o que se constata, por exemplo, quando se compara a pena atribuída à


gestante pela prática do aborto – 1 a 3 anos de detenção (art. 124 do Código
Penal) -, com a sanção prevista para o crime de homicídio simples, que deve ser
fixada entre 6 e 20 anos de reclusão (art. 121 do mesmo Código)

Cientificamente, fundamenta-se que até a formação do córtex cerebral (o que


acontece no segundo trimestre da gestação) não existe a menor possibilidade de vida
extrauterina e que, antes disso, o nascituro não é capaz de qualquer tipo de sentimento
ou pensamento, e por essas razões, afirma-se que o nascituro, mesmo já possuindo vida,
825

ainda não é considerado pessoa. O Código Civil Brasileiro também expressa em seu art.,
ºà ueà aàpe so alidadeà i ilàdaàpessoaà o eçaàdoà as i e toà o à ida;à asàaàleiàp eàaà
sal o,à desdeà aà o epç o,à oà di eitoà doà as itu o .à й,à se à t atadoà eà o side adoà o oà
pessoa é o primeiro direito humano, que significa o direito a ter direitos.
Para que melhor se entenda isso, Sarmento (2005, p. 32), aponta a lição de J.J.
Gomes Canotilho e Vital Moreira:
áà Co stituiç oà oà ga a teà ape asà oà di eitoà à ida,à e ua toà di eitoà
fundamental das pessoas. Protege igualmente a própria vida humana,
independentemente dos seus titulares, como valor ou bem objetivo (...).
Enquanto bem ou valor constitucionalmente protegido, o conceito
constitucional de vida humana parece abranger não apenas a vida das pessoas
mas também a vida pré-natal, ainda não investida numa pessoa (...). É seguro,
porém, que (a) o regime de proteção da vida humana, enquanto simples bem
constitucionalmente protegido, não é o mesmo que direito à vida, enquanto
direito fundamental das pessoas, no que respeita à colisão com outros direitos
ou interesses constitucionalmente protegidos (v.g., saúde , dignidade,
liberdade da mulher, direitos dos progenitores a uma paternidade e
maternidade consciente); (b) a proteção da vida intra-uterina não tem que ser
idêntica em todas as fases de seu desenvolvimento, desde a formação do zigoto
até o nascimento; (c) os meios de proteção do direito à vida – designadamente
os instrumentos penais – podem mostrar-se inadequados ou excessivos
quando se trate de proteção da vida intra-uterina.

Fica assim reconhecida a tutela constitucional da vida intrauterina. Porém, essa


proteção é mais delicada do que a proteção que se concede à vida após o nascimento. No
e ta to,àoàPa toàdeà“a àщoseàdaàCostaà‘i a,àe àsuaà edaç oàdispostaà oàa t.à . à todaàaà
pessoa tem direito a que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei. Em
geral, desde o momento da concepção. Ninguém poder ser privado da vida
a it a ia e te .à йssaà teseà pa teà daà p e issaà ueà aà p oteç oà daà idaà seà i i iaà oà
momento da concepção.
Porém, a tutela da vida anterior ao parto deve ser menos intensa do que a
proporcionada depois do parto, devendo haver ponderações com relação aos interesses
que envolvem outros bens constitucionalmente protegidos, tais como os direitos
fundamentais da gestante. Esses direitos da gestante também aparecem na Convenção
Interamericana de Direitos Humanos, entrando em colisão com a vida embrionária, como
é o caso do direito ao respeito à integridade física, psíquica e moral (art. 5º, 1), direito à
liberdade e segurança pessoais (art. 7º, 1) e direito à proteção à vida privada (art. 11,
2).Pode-se, então, concluir que a Constituição brasileira protege a vida do nascituro, mas,
essa proteção não é de peso maior que a proteção assegurada ás pessoas após o
826

nascimento com vida e pode ceder, quando se usa uma ponderação de interesses quanto
aos direitos fundamentais da gestante.
Existem hoje muitas controvérsias com relação aos direitos da gestante e ao
direito à vida do nascituro. Levando-se em consideração que a proibição do aborto pode
levar a muitas gestantes a procurar clínicas clandestinas para realizar o procedimento,
colocando assim em risco a própria vida, pode pensar na legalização do aborto também
como forma de proteção a vida da mulher, uma vez que, se o procedimento é realizado
em ambiente adequado, com menos riscos à saúde física e psíquica da mulher, levando
em consideração que uma gravidez indesejada levada adiante pode ser danosa à saúde
psíquica, desencadeando, assim, uma série de outros problemas.Nesse prisma, a mulher
deve ter o direito de optar pela interrupção da gestação, pois, como mencionado
anteriormente, não deve a proteção constitucional da vida do nascituro ter a mesma
intensidade que a proteção constitucional dos nascidos vivos.
Quando se reconhece a dignidade da pessoa humana como direito, pressupõe-se
que o ser humano tem direito à autodeterminação, devendo ter o poder de tomar
decisões sobre suas próprias vidas, e se comportarem de acordo com o que julguem
necessário para seu bem-estar, não devendo o Estado vir a interferir quanto a isso. Para
tanto, pode-se chegar à conclusão que uma das decisões mais importantes da vida da
mulher se concerne a ter ou não um filho, uma vez que a gestação pode ser de grande
impacto e a maternidade pode modificar radicalmente a vida da mulher.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não se conclui aqui este estudo uma vez que é apenas uma instigação acerca do
tema e os ligamentos propostos, uma concepção geral com o bem mais preciso tutelado
que é a vida nos traz claramente a respeito dos Direitos Humanos como elementos
fundamentais garantidos a luz da Constituição Federal. Um pensar do Direito deve ser
profundamente respeitado na academia para desta fomentação alcançar grandes
mudanças em uma sociedade alienada e confusa.
O Estado deve garantir através de seus mecanismos já constituídos no texto
Constitucional os meios mais eficazes se alcançar a justiça como elemento utópico, sendo
este a profunda busca pela verdade. A ciência como estudo metodológico transforma
827

correntes capazes de interpretar os códigos de modo a efetivar a concisa tarefa de um


dos três Poderes do Estado Democrático de Direito, como justiça.
Os casos da historicidade do aborto nesta pesquisa como método de trazer uma
proposta mais polemica do crime contra a vida exposto no código penal, uma vez que
causa profundos debates sobre este delito em pratica constantes que atingem a
sociedade. Os magistrados atuam, assim, observando todos os elementos centrais do
procedimento, efetivando o direito de todos mesmo em âmbitos de desigualdade.
Em última análise, cremos ser lamentável que, no cenário político nacional, muitas
vezes a crença íntima e individual de alguém seja mais importante que o debate de
propostas que alimentam o meio acadêmico pensante. Um currículo do estudante de
Direito com contato direito a temas como seria o ideal para se afirmar como legítimo
confirmador de um estado de bem-estar social.

REFERÊNCIAS

BRASIL, República Federativa. Constituição Federal. 20. Ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

BRASIL, República Federativa. Código Penal. 20. Ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, volume 2, parte especial. – 11. Ed. – São Paulo:
Saraiva, 2010

CAVALCANTE, Alcilene. XAVIER, Dulce. Em defesa da vida: aborto e direitos humanos /


(organizadoras). São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir, 2006.

MARTINS, Flademir Jerônimo Belinati. Dignidade da pessoa humana – princípio


constitucional fundamental. Curitiba: Jaruá Editora, 2003.

SANTOS, André Leonardo Copett. LUCAS, Douglas Cesar. A (in)diferença no direito. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na


Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

SARMENTO, Daniel. Legalização do Aborto e Constituição. Disponível na Internet:


http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em 01 de maio de 2017.

RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. Organização de Erin Kelly e
Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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