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ATutela Constitucional

da Autono ia Privada
2016 · Reimpressão

Ana Prata
Assistente da Faculdade de Direito de Lisboa

\ÍfÃ
ALMEDINA
A TUTELA CONSTITUCIONAL
DA AUTONOMIA PRIVADA
AUTORA
Ana Prata
Reimpressão da edição de Março de 1982
EDITOR
EDIÇÕES ALMEDINA, S.A. INTRODUÇÃO
Rua Fernandes Tomás, nºs 76, 78 e 80
3000-167 Coimbra
Te!.: 239 851 904 · Fax: 239 851 901
www.almedina.net · editora@almedina.net Escrito há décadas, a publicação deste texto ao tempo tinha apenas o
DESIGN DE C:\PA modesto propósito de abrir a investigação numa área em que ela não era
FBA. habitual. Foi o meu primeiro livro editado pela Almedina - que se tornou e
EDITOR espero que se mantenha a minha editora - e o aviso que então fiz ao Senhor
EDIÇÕES ALMEDINA, S.A.
Joaquim Machado de que ele não se venderia não o comoveu.
IMPRESSÃO E AC:\BAMENTO
Tinha, porém, mais razão do que imaginara: passados tempos, a
Janeiro, 2016 Almedina comunicou-me que, por não se vender, iria deitar o livro para
DEPÓSITO LEGAL o lixo, o que se compreende porque não havia ainda então reciclagem.
O livro não foi praticamente lido em Portugal, mas foi-o no Brasil, o
Os dados e as opiniões inseridos na presente publicação são da exclusiva
que soube há alguns anos. Imerecidamente, embora, ele continua a ser
responsabilidade do seu autor. utilizado e procurado por leitores brasileiros que compreensivelmente o
não encontram no mercado.
Toda a reprodução desta obra, por fotocópia ou outro qualquer processo,
sem prévia autorização escrita do Editor, é ilícita e passível de procedimento
Daí esta reimpressão, sugerida por Colegas brasileiros e primordial-
judicial contra o infrator. mente destinada ao público leitor brasileiro, que à Almedina - na pessoa
do Senhor Engenheiro Carlos Pinto - de novo agradeço.
Uma palavra de grande agradecimento a todos quantos me significa-
\fià I
ALMEDINA
GRUPOALMEDINA ram apreço pelo texto, o que foi, e é; muito reconfortante e estimulante.
---------------------------- ------------------------ Espero que a vida ainda me permita voltar ao tema, _o que, nesta ocasião,
BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL - CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO é impossível, dados os compromissos que já assumi.
PRATA,Ana

A tutela constitucional da
autonomia privada.
ISBN 978-972-40-6184-9

CDU 342

5
NOTA PRÉVIA

Constitui o presente texto - com alterações de pouco significado - o resultado de


um trabalho realizado num seminário de Direito Constitucional na Faculdade de
Direito de Lisboa, no ano lectivo de 79-80.
Com as suas características próprias de trabalho de investig•ação ele se assume e
deve ser compreendido.
Assim, que se trate de um texto em que, mais do que avançar soluções, se procure
inventariar problemas e recolher elementos de análise; e que, simultaneamente, se
apresente despreocupado de objectivos pedagógicos, na forma que, em conc;'eto, cor-
respondeu à sua elaboração.
Por outro lado, o seu objecto mesmo condiciona, em alguma medida, as suas
características. Os problemas da autonomia privada têm de ser hoje encarados - e
se essa é a perspectiva actual, isso não significa que seja nova - de uma forma que
excede os quadros clássicos, que os põe em causa até, mas que, do mesmo passo, não
parece susceptível de ser vertida em quadros novos que, pela clareza, nitidez e ampli-
tude, possam substituir-se aos antigos. E não só ainda o não é, como porventura o
não será no interior do enquadramento económico-social que se toma como ponto
de partida neste trabalho. ·
O que não exclui - apenas a situa e caracteriza - a utilidade da consideração
destes problemas, que, se um pouco por toda a parte têm interessado os juristas, em
Portugal não têm sido objecto da atenção que exigem.
Por isso que, com a consciência embora das limitações e defeitos des,t? texto, sé
tenha decidido a sua publicação, esperando que ele possa contribuirpara um debate
que a renovação da ordem jurídica portuguesa impõe que se alargue e aprofunde.

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Capítulo 1
Autonomia Privada: Conceito eEvolução

1. Ligação intrínseca entre o conceito de autonomia privada e o de


propriedade, e historicidade destes conceitos

1.1. A análise do conceito de autonomia privada e a sua história revelam


a inequívoca ligação deste conceito com os de sujeito jurídico e de proprie-
dade. Dessa ligação, certamente recíproca, se procurará dar sinteticamente
conta antes de serem tratados a extensão e o conteúdo da autonomia pri-
vada, historicamente marcados pelo fluir da realidade apreensível e que
nesse conceito é formalizada.
Há, desde logo, que observar que sujeito jurídico, propriedade e auto-
nomia privada não são conceitos universais: eles pertencem ao domínio
das relações entre proprietários. A atribuição de personalidade jurídica e,
consequentemente, de capacidade negocial, encontra-se estreitamente
vinculada ao surgimento da posse privada e do direito de propriedade: rei-
vindicando a posse, ou afastando «judicialmente» as turbações na posse do
bem, a pessoa a quem esse bem foi atribuído surge co~o capaz de realizar
actos produtores de efeitos jurídicos. Mas porque só a ela foi repartida-
-atribuída a posse de certa terra, só ela pode praticar esse actos que à terra
respeitam e que produzem efeitos jurídicos.
Quando a pessoa passa a poder dispor do bem - e não apen~i a ter o
poder de o usar e assegurar a sua utilização produtiva, - então ela afirma-
-se exclusiva titular de um poder de produzir efeitos jurídicos, já não só

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA: CONCEITO E EVOLUÇÃO

como meio de exclusão das restantes pessoas, mas também como meio de A implantação do modo de produção capitalista acarretou assim a neces-
transmissão do próprio bem 1• sidade de universalização destes conceitos: todos passam necessariamente
A atribuição de personalidade e capacidade jurídicas constitui o ins- a ser proprietários, ou de bens que lhes permitam subsistir, ou de força de
trumento através do qual se viabiliza a utilização privada autónoma e não trabalho que vendam. Por isso todos passam a ser sujeitos jurídicos, todos
perturbada de cada fracção da terra e a troca de bens. Por isso que elas só passam a ter capacidade negocial.
existam quando esses bens existem ou podem existir. Mas essa necessidade impõe-se contra a realidade anterior, que é a da
Mas, mesmo quando existem bens privadamente apropriados ou apro- vinculação do trabalhador à terra e ao senhor feudal: daí que, do ponto
priáveis, nem todos são ou podem ser seus proprietários, nem todos têm de vista filosófico, o ultrapassar dessa situação determine, antes do mais,
bens a respeito dos quais possam praticar actos jurídicos, nem todos são e sobretudo, o afirmar da liberdade das pessoas, da sua libertação dos vín-
sujeitos de direito 2• culos que as prendem à terra e aos senhores.
É neste momento que o conceito de autonomia privada ganha um
1.2. A separação do trabalhador dos méios de produção, característica conteúdo autónomo e operativo; e é esse conteúdo que vai investir a pró-
base do modo de produção capitalista, transforma aquele em mero deten- pria noção de negócio jurídico. Este deixa de ser visto na perspectiva de
tor de força de trabalho, em mero trabalhador potencial, e os meios de instrumento de troca de bens - na perspectiva da sua função - para ser
produção em instrumentos parados se não combinados com aquela força acentuado o seu carácter de realização da liberdade económica. O negó-
de trabalho. A ligação entre o trabalhador e os meios de produção só é cio é a afirmação da liberdade da pessoa, o negócio é o efeito jurídico da
possível pelo acordo daquele e do proprietário destes. Declarado livre o vontade livre4.
trabalhador, isto é, reconhecida a propriedade do trabalhador à sua força
de trabalho, isso impõe que lhe seja reconhecida personalidade jurídica
e dominado por ele, na medida em que todo o homem é sujeito jurídico. Esta alteração de
e capacidade negocial, para que ele possa celebrar o contrato pelo qual perspectiva é apenas aparente.
aquela ligação se mediatiza, agora necessariamente 3• Na verdade, a extensão da personalidade jurídica a todos os homens não passa pela total des-
vinculação entre personalidade e propriedade: o que sucede agora é que se reconhece a todos
1
Em Roma, dividida a terra em fracções, é a posse de cada uma destas atribuída a um cidadão os homens um direito de propriedade: o direito sobre si mesmos. O contrato de trabalho é o
para que a família de que ele é o «pater» a utilize produtivamente, dela subsistindo directamente instrumento de afirmação desta ideia: o homem pode dispor de si próprio e nessa medida ele
e. indirectamente, alimentando a comunidade. O «pater famílias», o cidadão, representa a terra, é desde logo um proprietário.
a ele cabe o poder de propor «actiones in rem». «A propriedade que cada homem tem no seu próprio trabalho é a fonte original de toda a outra
Quando da terra se destacam bens móveis e quando, mais tarde, a posse da terra se transforma em propriedade, e por isso a mais sagrada e inviolável. O património de um homem pobre consiste
propriedade, só ao representante da terra e dos bens, ao cidadão, ao «pater famílias» cabe o poder na força e destreza das suas mãos: e impedi-lo de aplicar a sua força e destreza da maneira que
de alienar, só ele é sujeito de direitos, só ele pode praticar actos produtores de efeitos jurídicos. ele acha mais apropriada, sem lesão do seu vizinho, é uma pura violação desta mais sagrada
1 Assim acontecia na Roma clássica com todos os não-cidadãos - com o escravo, a «mater» e o
propriedade. É uma intromissão na justa liberdade quer do trabalhador quer daqueles que
«filius familiae»: assim acontecia na Idade Média com os escravos e os servos da gleba. poderiam estar dispostos a empregá-lo.
De tal modo a capacidade negocial estava dependente da personalidade jurídica e esta da Tal como impede um de trabalhar no que ele julga melhor, impede os outros de empregar quem
propriedade (maximeda terra), que quando foi necessário reconhecer autonomia negocial ao eles melhor entenderem. O juízo sobre se ele é ou não apto para ser empregado pode certamente
escravo (no caso do pecúlio mercantil) ou ao «filius familiae» (no caso do pecúlio castrense ser confiado ao arbítrio dos empregadores a cujos interesses isso tão directamente respeita.
ou militar), ficcionou-se que os actos destes eram praticados por extensão e intermédio do A afectada ansiedade! do legislador, não vão eles às vezes empregar uma pessoa imprópria, é
proprietário - cidadão, «pater famílias» - que, de facto e na prática, nada tinha a ver com tais evidentemente tão impertinente quanto opressiva» - Adam Smith, An Inquhy Íllto the Nature
actos, nem sequer se repercutindo os efeitos jurídico-patrimoniais daqueles no seu património, and Causes ofthe Wealth ofNations, Londres, 1776, reprint, Londres. 1970, pág. 225/ .·
mas tão-somente no próprio pecúlio. 4
Numa análise extré:mamente interessante da evolução das posições face ao conceito de pro-
3
A propriedade passa de momento principal, mediador da atribuição de uma qualidade jurí- priedade durante o período que medeia entre a revolução francesa e a publicação do Código de
dica ao homem - a qualidade de sujeito jurídico - a um elemento aparentemente secundário 1804. Stefano Rodotá chama a atenção para que, num primeiro momento, o da elaboração da

!O li
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA: CONCEITO E EVOLUÇÃO

Procurou-se mostrar, com grande brevidade embora, que o actual A autonomia privada ou liberdade negocial traduz-se pois no poder
conceito jurídico de autonomia privada tem o seu surgimento e configu- reconhecido pela ordem jurídica ao homem, prévia e necessariamente qualifi-
ração estreitamente vinculados às condições históricas, nomeadamente da cado como sujeito jurídico, de jmidicizar a sua actividade ( designadamente,
passagem do feudalismo ao capitalismo. Ele constitui, a um só tempo, um a sua actividade económica), realizando livremente negócios jurídicos e
instrumento - o mais importante 5 - e uma consequência da transformação determinando os respectivos efeitos.
económica e social que se operou.
1.3. A elaboração de qualquer conceito jurídico implica uma opera-
ção de abstracção: afirma-se o carácter essencial de uma dada qualidade
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, as vozes defensoras da simultânea relativamente a outras, consideradas secundárias, e assim se procede à
elaboração de uma declaração de deveres eram as representativas da antiga ordem feudal. Isto é. unificação numa categoria única de um conjunto de relações de conteúdos
paradoxalmente, a primeira defesa de uma «função social» da propriedade provém dos sectores muito diversos 6•
que procuram manter a integração da propriedade numa organização social hierarquizada.
A função social, a que por esta forma a propriedade teria correspondido, teria sido justamente Ora, o seleccionar do poder jurídico da vontade livre como caracterís-
a de reintegrar o indivíduo numa organização na qual teriam podido retomar vigor os antigos tica diferenciad()ra do negócio jurídico isto é, o trazer para o primeiro
mecanismos hierárquicos de controlo. (Cfr. Poterí dei priva ti e disciplina delia proprietà in Il diritto plano da autonomia privada - é uma operação historicamente marcada. Só
privato ne/la società moderna, Bologna, 1971, pág. 381). a partir dela tem relevo conceituai jurídico a autonomia privada 7. Algumas
5
Stefano Rodotà, ao analisar a importância da propriedade, como instituto central da ordem observações se impõem:
jurídica instaurada pela revolução francesa, chama a atenção para a sua dependência do ins-
tituto contratual: «Na codificação francesa de 1804. por exemplo, o nexo central é o que liga
a propriedade ao contrato: a libertação da propriedade dos encargos feudais teria tido bem Por um lado, o conceptualizar do negócio como poder da vontade
pouco significado se não tivesse sido acompanhada pela possibilidade de fazer circular os não significa que esteja completamente arredada de tal noção a pers-
bens objecto do direito de propriedade, que era justamente garantida pela afirmação da plena pectiva fu1ncionalizadora; significa antes, isso sim, que a concepção
liberdade contratual. Assim, hoje que as investigações dos historiadores da economia trazem
novos argumentos à antiga tese de uma substancial passagem da propriedade fundiária para
a burguesia francesa já no período anterior à revolução, surge cada vez mais claramente que Em benefício da classe proprietária, o conceito de negócio jurídico opera: a) como conceito
o verdadeiro instituto revolucionário foi justamente o contrato. Por outras palavras, a real vector, para além do âmbito do contrato, dos princípios próprios deste, para uma mais ampla
inovação introduzida pelo Code Civil não foi tanto a de permitir à classe burguesa o acesso e minuciosa protecçlio dos interesses do disponente: b) corno instrumento de decomposição
à propriedade, como a de inserir plenamente os bens no fenómeno da produção e da troca" do próprio contrato, que dissolve o momento da troca e concentra a análise sobre as volições
(Il diritto privato nel/a società moderna, op cit., pág. 337). dos contraentes, cada um «de per si», que devem ser examinadas em termos de liberdade,
Francesco Galgano, por seu lado, observa a importância da função do contrato nesta época numa efectividade, seriedade, espontaneidade do querer. Mas a exaltação da vontade como criadora
perspectiva diferente, mas complementar desta: «A categoria geral do contrato, introduzida das alterações jurídkas satisfaz, ao mesmo tempo, o interesse do mercador-comprador, que
pela codificação civil francesa, tinha sido o fruto da procura de um equilíbrio entre a pretensão nada mais tem de fazer senão obter o acordo do vendedor. Construído sobre uma vontade
da classe mercantil, de apropriação dos recursos do solo. e as exigências da classe fundiária, de necessária e suficiente para produzir efeitos jurídicos, o conceito de negócio jurídico satisfaz
defesa da propriedade. O princípio do consenso como produtor, só por si. do vinculo jurídico simultaneamente - e realizando, com esta simultaneidade, a igualdade formal do direito - o
favorecia a classe mercantil na sua relação com os proprietários dos recursos e. ao mesmo tempo interesse do mercador-comprador (sendo a vontade suficiente para produzir efeitos jurídicos)
protegia os proprietários, impedindo que estes pudessem ser privados dos bens contra a sua e o do proprietário-vendedor (sendo a vontade necessária para os produzir)», II dirítto privato
vontade. O processo de abstracção prossegue na Alemanha para além da categoria do contrato. fra codice e costituzione, Bologna. 1978, pág. 67.
6
Ele leva mais longe a protecção da classe mercantil: o contrato é deslocado para fora da teoria da P. Barcellona. L'educazione dei giurista, Bari, 1973, páginas 34 e segs.
7
propriedade, deixa de ser uma categoria acessória do direito real. como único direito perfeito: V. in P. Barcellona.. L'educazione dei giurista, op. cit., págs. 40 e 41, uma análise'do método
o diferente género em que é inserido constitui um autónomo valor jurídico, em si perfeito, de abstracção generalizante da ciência jurídica e a demonstração da forma pela qual esta
colocado acima do próprio direito de propriedade, encontrando o negócio jurídico colocação escamoteia a dependência dos seus conceitos dos condicionamentos económicos e culturais
na «parte geral» do direito civil, como expressão da «capacidade natural da pessoa». historicamente referenciados.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA: CONCEITO E EVOLUÇÃO

do funcionamento económico e social parte do pressuposto que o que autonomia 'privada e liberdade de acção humana seriam uma única
negócio, como produto da autonomia privada, realiza, por si só, e coisa 10 •
automaticamente, a função que lhe é reservada. Isto é, desvaloriza- Isto não é verdade por razões de vária ordem. Por um lado, autonomia
-se a função porque se confia que o seu preenchimento resultará privada não designa toda a liberdade, nem toda a liberdade privada, nem
tão-somente da liberdade do sujeito jurídico: a utilização dessa sequer toda a liberdade jurídica privada, mas apenas um aspecto desta
liberdade basta para garantir o funcionamento em termos óptimos última: a liberdade negocial11.
da vida económica e social8 • Por outro lado, o conceito só por extensão é adequado a subsumir todas
Por outro lado, o prevalecimento da noção de autonomia no con- as situações de •:<poder contratual» dos sujeitos, pois nuclearmente, ele
ceito de negócio jurídico veio a traduzir-se no generalizar da sua apenas abrange aquelas em que se exprima um conteúdo directamente
aplicação a actos de conteúdo extremamente heterogéneo, mas em patrimonial12• Finalmente, a autonomia privada não respeita, nem exclusiva,
que tal característica de liberdade da vontade era comum. Assim, nem sequer preferentemente à actividade do homem: enquanto conceito
que actos como o casamento, por exemplo, passem a ser vistos como jurídico, ela diz do mesmo modo respeito à actividade de todas as pessoas
negociais9 • jurídicas, quer singulares, quer colectivas13 • -
Finalmente, importa acentuar que a tendência, que progressiva-
10 A autonomia-privada não é, porém, um fenómeno pré-jurídico que o direito se limite a
mente se veio afirmando, de tornar essencial para a definição do
negócio jurídico a ideia da função que ele desempenha, corresponde, receber; como observa Luigi Ferri, «o problema da autonomia é antes de tudo um problema de
limites, e de limites que são sempre o reflexo de normas jurídicas, na falta das quais o mesmo
por paradoxal que se afigure, a algum subverter do conceito. Não
problema não poderia sequer colocar-se, a menos que se queira identificar a autonomia com
porque, como já se disse, a noção clássica não contenha uma ideia a liberdade natural ou moral do homem», -(La autonomia privada, tradução espanhola. Madrid.
de função, mas porque essa noção é justamente contraditória com 1969, pág. 5).
a que hoje tende a afirmar-se. n Mas, se é certo que autonomia privada, autonomia negocial, não preenchem toda a liberdade
humana, já se poderá dizer que, em grande medida, muitas vezes esta última é que se encontra
reduzida àquela: liberdade sine qua 11011 do viver social do indivíduo/sujeito económico autó-
2. Recorte do conceito de autonomia privada e alguns dos seus nomo e independente.
12
pressupostos. A opção conceituai restrita do presente trabalho Esta ideia pode parecer hoje desajustada à realidade jurídica, por orna dupla ordem de razões:
por um lado, porque a lei qualifica como negociais actos de natureza essencialmente pessoal
( como o casamento), por outro, porque, tomando expressamente posição quanto à debatida
2.1. Poderia parecer estarmos em presença de uma realidade con-
'questão de saber se :a patrimonialidade é ou não urna característica essencial das obrigações,
ceituai ampla, qualificativa de toda a actividade livre do homem, isto é, o nosso Código Civil vem afirmar no nº 2 do artigo 398º que «a prestação não necessita de ter
':'.alor pecuniário: mas deve corresponder a um interesse do credor digno de protecção legal».
8 «Indivíduos livres e independentes, senhores absolutos da sua actividade e dos seus bens. A primeira destas questões já se fez referência.
unidos entre si apenas por relações contratuais de trocas, eis o que é para os economistas a Quanto à segunda, ela não exclui que, em última análise, a prestação possa sempre ser conver-
sociedade. E, segundo eles, do conjunto destas livres convenções, em que cada um não pros- tida num valor pecuniário, quanto mais não seja se for incurnprida a obrigação. V. Manuel de
segue senão o Seu interesse próprio, deste choque dos egoísmos individuais devem surgir Andrade, Teoria Grral das Obrigaçõô~ Coimbra. 1963, pág. 173.
infalivelmente, em virtude das leis naturais, não apenas o máximo de riquezas, mas a ordem, Ao admitir que aprestação corresponda a um interesse juridicamente relevante e, em si, despido
a felicidade e a harmonia social». E. Gounot. Le principe de /'autonomie de la volante en droit privé: de valor pecuniário, está-se tão-somente a reconhecer que a vida relacionai se encontra hoje
contribution à /'étude critique de l'individualisme- th., Dijon, 1912, pág. 42. completamente mercantilizada, isto é, que valores puramente ideais ou morais são também
9 Não me parece, porém, que a explicação da subsunção do casamento à categoria contratual aptos a eÀ'Prirnir-se num valor de mercado, a constituir objecto de troca entre os'liornens e,
seja completamente recondutível a esta força expansiva do próprio conceito. nessa medida, são valores rnonetarizáveis.
13
A verdade é que o casamento é em si mesmo - e sem curar agora de outros seus aspectos ftm- Ainda que se defenda que a personalidade colectiva corresponde a uma particular forma
cionais, essenciais do ponto de vista económico - um insrrumento de relações patrimoniais. jurídica de prossecução de interesses e actividades que, em última análise, se reconduzem a

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA: CONCEITO E EVOLUÇÃO

Ela constitui, pois, um mero instrumento jurídico de actuação/concre- subjectivo ( ou a propriedade, como seu paradigma) e a liberdade nego-
tização e tutela/defesa de interesses privados. cial. Assim, numa perspectiva ampla, poderá entender-se que a noção de
autonomia privada se desdobra nestes mesmos dois aspectos essenciais:
2.2. Qualificativo de uma dada actividade jurídica dos sujeitos privados direito subjectivo e liberdade negocial1 6 •
- a sua actividade negocial de expressão económica-, o conceito recorta, Commumente, no entanto, se faz coincidir o conceito de autonomia
ao mesmo tempo, o espaço desta actividade, contrapondo-o ao de uma privada com o segundo aspecto referido, isto é, se toma como sinóni-
outra, a actividade do Estado. mos autonomia privada e liberdade negocial17, reconduzindo assim a
Suporte e consequência de uma nítida distinção entre a actuação jurí-
dica privada e a actuação jurídica pública, a autonomia privada ( e o negócio 16 Duas prevenções são aqui, senão essenciais, talvez úteis. Por um lado. encara-se a questão
jurídico) foi considerada, por muito' tempo, exclusiva do direito privado. da autonomia privada numa exclusiva perspectiva instrumental da prossecução dos interesses
É preciso chamar desde já a atenção para uma não obstante quase evidên- dos seus titulares Po:r outro lado. e como no texto se diz. os aspectos que aí se enunciam são
os essenciais, e tão-somente. Um exemplo de perspectiva muito mais ampla é o do seguinte
cia: a separação de que se fala é uma separação operada, essencialmente, a
excerto de Salvatore Pugliatti: «A referência à autonomia privada nesta ordem de problemas,
um outro nível, o da distribuição do poder na sociedade. E essa distribui- chama a atenção para a posição de cada um no âmbito da sua esfera jurídica (liberdade dentro dos
ção opera-se, atribuindo aos sujeitos privados a propriedade e ao Estado limites do lícito: gozo e exercício dos direitos su!J·ectivos e das situações subjectivas activas; exercício
o poder político 14• dos poderes, cumprimento de ânus, e assiro por diante); e ainda relativamente a outros sujeitos
O reino jurídico dos particulares é marcado por estes referenciais incin- (sujeitos singulares, pessoas colectivas privadas, pessoas colectivas públicas), ou a colectividades
díveis, que são a propriedade e a autonomia privada15 • mais ou menos rigidamente organizadas, abertas ou fechadas, e, finalmente, relativamente à
organização ou instituição mrodma, que é. na época moderna, o Estado», (Autonomia privata,
Os mecanismos jurídicos de expressão da liberdade dos sujeitos pri-
in Enciclopédia dei Diritto, Vol. IV. Milano.1959, pág. 367).
vados na tutela dos seus interesses - isto é, os instrumentos jurídicos 17 "Um dos princípios básicos e ordenadores do direito civil é o princípio da autonomia privada.

atribuídos aos sujeitos privados para operarem essa tutela - são o direito Semelhante princípio, que constitui um dos veículos do livre desenvolvimento da personalidade
humana, e, no seu aspecto mais saliente, postula a legitimidade dos particulares pára a auto-
-regulamentação dos seus interesses, para a auto-ordenação das suas relações jurídicas, tem a
interesses e actividades do homem, há que reconhecer que, por um lado, ainda quando assim é, sua mais cabal expressão no domínio dos contratos donde derivam obrigações, assumindo-se aí
eles ganham uma autonomia e especificidade orgânica e ideológica que os diferencia, de forma como princípio da liberdade contratual», (Rui de Alarcão, Direito das Obrigações, Síntese das lições
imediata, dos interesses das pessoas singulares que directamente se encontram implicadas na ao 2º ano jurídico, copiografadas, Coimbra. 1977-78, págs.104 e 105);
organização que a pessoa colectiva representa, e que, por outro lado, grande número de pessoas «Uma das características que assinalámos ao direito das obrigações foi a da autonomia privada,
colectivas - e designadamente as sociedades - se orientam segundo critérios e em função de autonomia da ,,ontade ou liberdade negocial, que traduz a amplitude deixada aos particulares para
objectivos complementares a-humanos, na medida em que são formas jurídicas e económicas disciplinarem os seus interesses. Esta faculdade de auto-regulamentação exprin1e-se, aqui,
de organização e finalidade intrínsecas, isto é, não referenciáveis ao homem senão na medida no princípio da liberdade contratual ou da liberdade de contratar[. ..]. A regra consiste, pois, em os
em que são parte integrante de uma realidade social, obra do homem, na qual sempre se poderá particulares, na área dos contratos, poderem agir por sua e autónoma vontade. Os limites que
dizer que, em última análise, tudo se resolve. a lei imponha constituem a excepção». (Mário Júlio de Almeida Costa. Direita das Obrigações.
14
Como afirmava Portalis, «ao cidadão pertence a propriedade, ao soberano o império»: é essa Coimbra.1979, págs. 183 e 184);
operação de repartição do poder que o Code de 1804 veio consolidar. (Cfr. Stefano Rodotà. «A autonomia da vontade aumentou em extensão mas diminuiu d,e intensidade, porque é
Poteri dei privati e disciplina delia proprietà. in Il diritto priva to nella società moderna, op. cit., pág. 390). hoje mais débil, mais frouxa do que outrora. O contrato moderno [...] não constitui em muitas
15
Diz Karl Larenz: «O indivíduo só pode existir socialmente como personalidade quando lhe hipóteses o resultado de um livre debate e de uma livre estipulação. [...] Os ataques à autonomia
seja reconhecida pelos outros não apenas a sua esfera da personalidade e da propriedade, mas contratual são na verdade profundos e vindos de diversas origens. A lei limita quanto a muitos
também quando, além disso, possa em princípio regular por si mesmo as suas questões pessoais contratos a liberdade dos estipulantes ... ». (Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos em
e, na medida em que com isso seja afectada outra pessoa, possa regulamentar as suas relações geral. 3ª edição, Lisboa, 1965, pág. 60):
com ela com carácter juridicamente obrigatório mediante um acordo livremente estabelecido». «Consequência fundamental, enfim, do princípio da autonomia da vontade, é o facto de os
(Derecho de Obligaciones, Tomo I. trad. espanhola, Madrid. 1958, pág. 65). contraentes determinarem livremente o conteúdo do seu acordo. É o princípio da liberdade

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AUTONOMIA PRIVADA: CONCEITO E EVOLUÇÃO
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA

autonomia privada ao seu sentido mais literal de poder de criar normas Pretendendo, embora, evitar os equívocos conceituais mais comuns,
no estrito domínio da autonomia privada, se faz esta inicial prevenção de
negociais18 •
Prescinde-se deliberadamente de uma análise conceituai mais extensa que tal sinonímia representa uma posição redutora da noção de autono-
da autonomia em geral, da autonomia privada em particular. Não emerge mia privada; no presente trabalho - que não tem como objecto central o
tal atitude da completa inconsciência dos problemas de recorte conceituai problema do direito subjectivo, mas o da liberdade negocial e da sua tutela
que se colocam, do seu interesse, da indispensabilidade da sua conside- na Constituição - utilizar-se-á a expressão autonomia privada no seu sen-
ração até, sempre que esteja em causa a fronteira entre as várias espécies tido restrito e mais divulgado, isto é, como referindo a liberdade negocial.
da autonomia jurídica19 •
3. O interesse público como elemento intrínseco dos conceitos de
direito subjectivo e de negócio jurídico
contratual», (Gérard Farjat, Droit prive de féconomie. 2 - Théorie des obligations. Paris. 1975,
pág. 52): 3.1. A delimitação de fronteiras Estado/sociedade ou, se se quiser,
«[A autonomia da vontade] é uma teoria de filosofia jurídica, segundo a qual a vontade humana
interesse público/interesse privado, e de todas as que lhe surgem como
é por si mesma a sua própria lei. cria para si a sua própria obrigação: se o homem se encontra
obrigado por um acto jurídico, especialmente por um contrato, é porque o quis; o contrato é
consequência, não exclui, porém, que o conceito de direito subjectivo,
o princípio da vida jurídica: a vontade individual o princípio do contrato», Qean Carbonnier, como o de autonomia negocial, surjam no direito moderno como não
Droit Civil, II. Paris, 1957, pág. 313); completamente desvinculados da noção de interesse público.
«A doutrina moderna, investigando cada vez mais profundamente o conceito de negócio jurí- O direito sub:]ectivo tem a sua força vinculativa e o seu carácter jurídico
dico, encontrou, no fundo, o de autonomia privada[ ...]. O negócio é, de facto, o acto de autonomia dependentes do direito objectivo. Se é certo que toda a acção humana
privada, isto é, com o qual o sujeito privado regula por si os seus próprios interesses», (Francesco
é em si mesma afirmação de um poder da vontade, isto é, que o poder
Santoro-Passarelli, Atto giwidico, in Enciclopédia dei Diritto. Vol. IV. op. cit., pág. 206).
V. ainda Luigi Ferri, La autonomia privada, op. cit., págs. 7 a 10; Santoró-Passarelli, Dott1inegenerali
da vontade é uma essencial característica humana, ao nível jurídico esse
dei diritto civile. Napoli, 1957, pág. 243; Scognamiglio. Contributo alia teoria dei negozio giuridico, poder virtual só se efectiva na medida em que a ordem jurídica, o direito
Napoli, 1950, pág.138. objectivo, confira à vontade um poder jurídico, isto é, na medida em que
18 Expressão que não significa uma tomada de posição no sentido do entendimento de que a o ordenamento atribua ao poder virtual os meios de se transformar em
autonomia privada é fonte de direito. poder jurídico real2º.
19 «A formação histórica do conceito de autonomia coloca um problema de método que
O direito objectivo é. pois, elemento interno e estrutural do poder
interessa de modo particular e directo ao jurista moderno, que usa este termo nas acepções
mais diversas», (Francesco Calasse, Autonomia (storia), in Enciclopédia dei Diritto, Vol. IV, op. cit., jurídico da vontade (direito subjectivo) e é, simultaneamente, seu limite
pág. 349);
externo, ou seja, obstáculo externo intransponível à manifestação da von-
«Na moderna teoria geral, e no direito público em particular, o termo «autonomia» é um daque- tade fora dos qu:adros definidos pelo ordenamento.
les que requerem uma prévia análise linguística. Como vocábulo de origem filosófica, transitado
para a ciência e para a doutrina política, e depois para a ciência jurídica, ele acabou por assumir
de significados e, é o que mais interessa, suscitou uma multidão de problemas». (Salvalore
nesta tantos, diferentes significados, muitas vezes até contraditórios entre si. Sempre e seja
Pugliatti, Autonomiaprivata, in Enciclopédia dei Diritto. ibid., pág. 366).
onde for que se encontre no campo jurídico, é preciso em primeiro lugar procurar identificar
o facto que com ele se quer exprimir», (Massimo Severo Giannini, Autonomia pubb/ica, in Enc. "º Desde que, modernamente, como p1ius da vida do direito foi teorizada já não a vontade do
homem, sujeito de livre querer e centro de poderes, mas a "Vontade do Estado» (teoria do
dei Diritto, op. cit., ibid., pág. 356);
«Passando do campo da filosofia para o do direito, e aqui descendo do plano da filosofia do direito carácter estadual do direito), é lógico que seja exclusivamente esta vontade, expréssa nas nor-
para o da teoria geral e, portanto, para o da dogmática ( ou ciência) jurídica, e atravessando o mas do direito objectivo, a dar validade, verificadas determinadas situações de facto, às relações
sector - se assim se pode dizer - do direito público, para alcançar o do direito privado, o termo jurídicas, ou seja, aos direitos subjectivos e às correspectivas obrigações queridas pelos sujeitos».
«autonomia», complicando-se na fórmula «autonomia privada», adquiriu um número notável V. Cesarini Sforza. Diritto soggettivo, in Enciclopédia dei Diritto, Vol. XII, Milano.1964, pág. 665.

19
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONO.MJA PRIVADA
AUTONOMIA PRIVADA: CONCEITO E EVOLUÇÃO

Por agora apenas o primeiro aspecto interessa. Desde o momento em O~a, ~e o direito subjectivo não é concebível sem o direito objectivo,
que o direito assumiu a forma da lei, emanada estadualmente, que a neces- isto s1gmfica que «não há direito (subjectivo) que possa concentrar-se
sária mediatização do direito subjectivo não pode ser posta em causa e unicamente no interesse privado, já que o direito (objectivo) obedece fi.m-
isto muito embora, segundo a concepção jusnaturalista, o homem e a sua damentalmente a finalidades de interesse público: o direito (subjectivo)
vontade se qualifiquem como momentos jurídicos anteriores ao Estado e privado concretiza-se na protecção de um sujeito privado, mas a proteccão
dominantes deste 21, isto é, muito embora, naquela perspectiva, a legitimi- é, ela própria, de interesse público. Um direito subjectivo privado, seja q;al
dade do direito existente houvesse de ser aferida pela sua conformidade for, tem como fonte a norma que protege um interesse privado (finalidade
ao direito natural, momento de qualificação jurídica prioritário e supe- imediata) para a realização daquele interesse público (finalidade mediata)
rior. Ainda que se entendesse que a ordem jurídica se limitava a receber que se encontra na base da própria protecção, e é a razão última pela qual
em si os princípios de uma ordem natural, segundo a qual a vontade do a protecção é concedida» 23 •
homem é livre, não se podia deixar de reconhecer que esses princípios Quer isto significar, portanto, que a posição abstencionista do Estado
assim recebidos eram depois devolvidos aos homens, transformando-se face aos modos de tutela dos interesses privados operados pelos respec-
o direito natural em direito positivo. Ainda que se considerasse o direito tivos titulares nã.o significa que o interesse público seja ignorado; traduz,
natural elemento de qualificação jurídica autónomo, não podia ignorar- isso sim, uma dada concepção do interesse público, isto é, a de que este
-se, num sistema dominado pela lei, o momento devolutivo do direito coincide com o somatório dos interesses privados, ou seja, a de que a sua
natural realizado pelo direito positivo, e tanto bastava para fazer pre- prossecução corresponde à melhor prossecução daqueles interesses pri-
valecer na realidade jurídica a vontade do Estado, traduzida no direito vados e a de que esta é por definição obtida quando os seus titulares o
objectivo 22 • fazem em liberdade.
Mas também quer significar que, à conclusão de que o interesse público
21
«... A segunda perspectiva, que afirma a prioridade do sujeito, não nos explica por que é que não tem a mesma natureza do interesse privado, isto é, à reformulação da
o Estado está disposto a ceder a sua força - que consiste nos instrumentos coactivos através dos concepção do papel do Estado na sociedade, se há-de seguir - e se pode
quais se obtém a tutela jurídica - apenas em dadas condições (isto é, nas condições em que os seguir - uma intervenção estatal na vida jurídica privada, utilizando os
comportamentos havidos sejam subsumíveis a •1attispccie legais»). instrumentos próprios desta, como acontece com o direito subjectivo.
Para definir a posição do sujeito individual, é também preciso tomar em coma este dado, isto
é, que o Estado cede a sua «força» apenas em dadas condições. Estas condições concorrem,
de facto, para determinar as reais possibilidades do sujeito. O que cada um pode fazer não 3.2. Pelo que respeita à noção de autonomia negocial, pode-se, no
depende apenas da sua iniciativa e de outros factores económico-sociais que a tomem efectiva essencial, enunciar um raciocínio paralelo ao que ficou exposto. Só teo-
e eficaz, mas também da possibilidade de se prevalecer de «dados instrumentos de tutela» que ricamente se pôde afirmar que o querer humano é, por si só, idóneo para
se traduzem em meios coercitivos idóneos a realizar o interesse prosseguido», Pietro Barcellona, criar efeitos jurídicos, desde que domina uma concepção do direito recon-
II problema dei rapporto Jra soggetto e ordinamento, in Prassi e Teoria, 1974, nº 2, págs. 169 e 170. dutível ao direito legislado.
22
O debate entre «direito natural» e «direito positivo», tema dominante da filosofia jurídica do
Daí que rapidamente se tornasse dominante a concepção que enten-
século XIX, é, consequentemente, sobretudo ilustrativo das tendências, consideradas opostas,
da afirmação do indivíduo como limite superior à actividade do Estado e aã progressiva afirma-
dia ser o negócio jurídico um acto de vontade juridicamente relevante na
ção do Estado de direito, isto é, do Estado legislador que apenas encontra nas leis que produz medida em que preenche a previsão de uma dada norma, estatuindo esta
os seus limites. Mas, mesmo os defensores do direito natural não podiam deixar de considerar
os efeitos 24•
que a juridicidade, enquanto susceptibilidade de coacção, apenas estava presente no direito
estadual, não obstante entenderem que a juridicidade, enquanto legitimidade da imposição 23
Salvatore Pugliatti, Interesse pubblico e pn·vato ne/ diritto di proprietà in La Proprietà •nel nuovo
coactiva, só existia naquele direito positivo que fosse conforme - isto é, que reconhecesse - o diritto, reedição, Milano, 1964, pág. 3.
direito natural. Cfr. Vittorio Frosini, Diritto positivo e Sérgio Cotta, Diritto natura/e, in Enciclopédia 24
E, mais uma vez neste domínio, a concepção do negócio corno poder de vontade mais não
dei Diritto, Vol. XII, op. cit., respectivamente págs. 653 e segs. e 647 e segs. representa do que urna tendência expansionista do domínio da liberdade jurídica privada,

20
21
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA: CONCEITO E EVOLUÇÃO

O próprio Savigny recusava a ideia do negócio como acto meramente de interesses querido pelas partes. Isto é, sendo a lei a predeterminar a
voluntário, afirmando que, tal como ninguém pode ser juiz em causa pró- disciplina, cuja actuação a vontade tem a virtualidade de desencadear, é
pria, tão pouco poderá ser legislador. O acto de vontade não produz, pois, possível que o regulamento não se configure nos exactos termos em que
directamente, efeitos: estes decorrem antes da lei só, quando e se aquele os sujeitos privados o tinham prefigurado. Pela via legal podem, num
preencher a fattispecie desta. primeiro momento, introduzir-se elementos adequadores do regime das
A evolução teórica conduziu, portanto, à constatação de que negócio relações interpriivadas e, num segundo momento, elementos correspon-
jurídico não é uma qualquer manifestação de vontade dirigida a certos dentes à tutela de interesses supraprivados, superiores aos que a relação
efeitos, nem um qualquer acto voluntário em que se verifique uma coin- interindividual põe em jogo26 •
cidência entre a vontade e os efeitos, mas apenas aquele em que a vontade Pode, em conclusão, dizer-se que a evolução que os conceitos sofreram
integre a previsão da lei, sendo os efeitos desencadeados de acordo com estava já implícita, como potencialidade, na sua originária configuração.
a sua estatuição25 • É dessa evolução que se falará em seguida, limitando a análise ao negó-
Esta primeira forma de submissão da vontade à lei vai permitir introdu- cio jurídico e à autonomia negocial.
zir, por mediação legal, elementos novos na configuração do regulamento

dentro de um ordenamento jurídico estatal. Isto é, não constitui a negação do direito legislado, 4. A evolução dos conceitos de negócio jurídico e de autonomia privada
mas tende a conter este dentro de dados limites, excedidos os quais ele deixa de ser «legítimo»,
deixa de ser «justo», deLxa essencialmente de ser direito, mas não deixa fenomenalmente de o 4.1. Posta em causa a concepção da vida económica como resultado
ser, na medida em que existir e for aplicado.
25
automático da 2tctividade dos sujeitos privados, e a consequente ideia
Ilustração particularmente clara do que no texto se afirma é a seguinte passagem de Fran-
cesco Santoro-Passarelli: «O ordenamento jurídico, realizada imperativamente a tutela dos de que ao negócio bastava assegurar a liberdade para que um equilfürio
interesses gerais da colectividade, deixa aos indivíduos esfera de liberdade para a realização óptimo de interesses se realizasse, começa-se a pensar que o negócio há-de
dos seus interesses, e concede-lhes, ao mesmo tempo, os instrumentos através dos quais tal servir essa função, mas já não automaticamente, antes dirigida ou contro-
realização é garantida. ladamente. Porque a liberdade não é suficiente para que as necessidades
Esta esfera de liberdade, reconhecida, cora limites diversos embora, por todos os ordenamentos, de todos sejam satisfeitas, passa-se a pensar o produto dessa liberdade, o
é o âmbito no qual opera a autonomia dos privados, que é entendida como o poder de regular
negócio, como instrumento de realização dos interesses privados e não
os próprios interesses, resultante da lei e a esta subordinado.
A autonomia privada não pode ser concebida como fonte, nem sequer derivada, de normas
como afirmação da liberdade.
jurídicas. Na realidade, a vontade, no acto de autonomia privada, é idónea a produzir efeitos
26
através da sujeito, apenas porque uma outra vontade, a vontade soberana que se exprime no Como afirma Francesco Lucarelli, «quando se observa que o ordenamento jurídico se
ordenamento jurídico, a tal a autoriza», (Autonomia collettiva, in Enciclopédia dei di1itto, Vol. IV, reserva a determinação dos efeitos, chama-se a atenção do intérprete para um fenómeno mais
ap. cit., pág. 369). No mesmo sentido, E. Betti, Teoria generale dei negava giuridico, in Trattata di complexto do que o de natureza formal relativo à obrigação do sujeito de operar no plano do
diritta civile italiano, dirigido por F. Vassali, Torino, 1950, pág. 187; Scognamiglio, Contributo ... , direito positivo. Queremos referir-nos ao aspecto novo e característico na época actual (pelo
ap. cit., pág. 110. menos pelas suas dimensões) da intervenção do legislador na regulamentação das relações
Em sentido diferente, Luigi Ferri, La autonomia privada, op. cit., que, depois de afirmar que a patrimoniais entre privados: intervenção que se centra na autónoma apreciação e gestão dos
autonomia privada «não é evidentemente uma actividade originária mas sim uma actividade interesses, relativamente à fonte subjectiva da relação: fenómeno que se liga ao da instrumen-
que encontra a fonte da sua validade nas normas legais e que destas recebe as fronteiras, formais talização das funções. da autonomia privada.
e substanciais, da sua actuação» (pág. 11), observa que, embora estando o negócio regulado A interferência do ordenamento vigente, na sua função coordenadora das tarefas atribuídas à
na lei, ele não deixa de ter o carácter de fonte normativa de grau inferior (págs. 26 e 27), afir- actividade dispositiva das partes, realiza-se em duas perspectivas lógico-jurídicas;.uma orien-
mando textualmente: «Este apoiar-se o negócio jurídico numa norma supraordenada, longe de tada para a integração completa dos conteúdos da iniciativa individual; a outra para o controlo
excluir a sua natureza de fome, antes a confirma, se se admitir com Kelsen que o fundamento das vicissitudes que ocorrem durante todo o período do seu desenvolvimento», (Solidarietà e
da validade de uma norma é sempre outra norma» (pág. 29). autonomia privata, Na poli, 1970, págs. 127 e 128).

22 23
AUTONOMIA PRIVADA: CONCEITO E EVOLUÇÃO
A TUTELA CONSTITUCIONAL D,\ AUTONOMIA PRIVADA

E assim, este conceito, parecendo o mesmo, é, no entanto, diverso: a Ao Estado incumbem deveres que ele há-de prosseguir (também) através
sua característica diferenciadora deixa de ser a liberdade do sujeito, passa deste meio e des:te instrumento 3º. .
a ser a função que desempenha, a sua aptidão a produzir dados efeitos. Isto O reconhecer de que a vontade privada não tem potencialidades jurís-
genas próprias, nem ao menos subordinadas, porque t~do o preceito pri-
é, o elemento funcional no conceito de negócio jurídico era de natureza
vado, enquanto tal, se reconduz a um preceito legal, não comporta, nem
estritamente individual - o negócio constituía o instrumento adequado à
importa o entender da possibilidade - e, muito menos, da necessidade -
realização do interesse das partes, sendo estas e apenas elas os juízes de
de funcionalização do negócio jurídico. Para dar apenas um exemplo: no
tal adequação-, sendo a sua função de composição geral e adequada de
mesmo texto já citado, em que Santoro-Passarelli afirma aquela primeira
interesses dependente, subordinada e meramente acessória àquela outra,
ideia, diz adiante: «A autonomia privada, como poder de regular os pró-
de realização dos interesses individuais dos intervenientes. As limitações
prios interesses, é [... ] essencialmente livre: o preceito mantém-se porque e
à autonomia privada colocavam-se, neste contexto, como um elemento
desde que livremente querido. A autonomia privada é manifestação de liber-
externo, alheio ao conceito de autonomia e de negócio. À verificação do
dade, na satisfação do próprio interesse particular. A autonomia privada
não preenchimento automático e acessório da satisfação do interesse geral
[...] nunca tem natureza funcional face ao interesse público e no âmbito do
através do puro exercício da autonomia privada - e até da frequente inap-
ordenamento estadual. [... ] Relativamente [... ] à autonomia individual, o
tidão do negócio, mesmo para salvaguardar em casos concretos a justiça
interesse público situa-se de facto não como objecto, mas como limite dessa
na composição intersubjectiva dos interesses - sucedeu, pois, a ideia de
actividade» 31 •
que a funcionalização do negócio tem de ser encarada não numa perspec-
Mas, relembrada esta variedade de níveis de compreensão e concepção
tiva global e alheia à configuração do conceito, mas integrada na própria
possível, e existente, ainda assim se pode dizer, parece-me, que aquela
estrutura conceitual. última transforn1ação apontada rião teve como consequência a dissociação
Esta reconstrução, que se manifesta na generalidade das ordens jurídi- das ideias de autonomia privada e de propriedade: só que, como adiante se
cas actuais, radica, como Francesco Lucarelli demonstra27 , na utilização do tentará explicar, de igual modo, o conceito de propriedade não é hoje - e,
conceito de interesse como elemento básico do sistema jurídico privado em particular, na ordem jurídica portuguesa - o que era de há um século
«o papel da vontade individual fica subordinado à apreciação norma- para trás.
tiva, que está legitimada para decidir quais as representações subjectivas
que devem entender-se como merecedoras de tutela» 28 • A juridicidade 4.2. Pode-se, pois, dizer, em conclusão, que a noção de autonomia
do acto ou da relação afere-se pela dignidade do interesse em causa, e o privada não é atemporal, nem imutável. Ela ganha autonomia e relevo
juízo sob essa dignidade é um juízo normativo informado por critérios conceitual ligada à concepção jurídica do liberalismo económico, como
supraindividuais. pressuposto da noção de negócio jurídico e vai sofrendo uma desvaloriza-
Autonomia privada e negócio jurídico são hoje, como sempre, meio e ção que acompanha o transformar deste último conceito.
instrumento de composição jurídica de interesses de natureza essencial-
mente privada29, mas, diferentemente do que antes acontecia, não são um 30 O problema reduz-se, como é óbvio, em grande medida, ao da funcionalização do direito
meio e um instrumento deixados na exclusiva disponibilidade das partes. subjectivo, embora não seja esta a perspectiva em que habitualmente.ele é colocado, mas antes
e apenas, quanto ao direito de propriedade. Sobre esta questão v., por exemplo, Costantino
27 Mortati, Istituzioni di diritto pubblico, II Volume, 9° edição, Padova, 1976, págs. lll2 e lll3.
V. Solídarietà e autonomia privata, op. cit., págs. 100 a 173. 31
28 Autonomia col/ettiva, cit. in Enc. dei Dir., Vol. IV, op. cit., pág. 372. .
Ibid., pág. 102.
29 Muito embora, corno adiante se referirá, se assista hoje ao generalizar de urna tendência No mesmo sentido, Luigi Ferri, que afirma que «o campo em que actua a autonomia privada
é justamente o dos interesses privados, e os interesses privados são determinados por via de
de utilização do instrumento negocial por parte de entidades públicas, designadamente pelas
exclusão, sendo todos aqueles interesses cuja tutela o Estado não assume por si, nem impõe a
empresas públicas, sempre que os interesses em causa não se diferenciam fenornenicarnente
outros», op. cit., pág. 12.
dos interesses privados.

25
24
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA

Mas, por sua vez, essa desvalorização só existe se to~ada a sua noç:o
clássica como noção imutável; na realidade, como se vera, a transformaç:o
do conceito de negócio tem de ser acompanhada por uma transformaçao
da própria noção de autonomia privada.

Capítulo li
mreito Privado eDireito Público

1. Condições históricas do surgimento dos conceitos modernos de


direito privado e direito público

1.1. Na concepção liberal, a posição do Estado relativamente à vida


económica tem um conteúdo predominantemente negativo: a riqueza e
o bem-estar colectivos são entendidos como o somatório da riqueza e do
bem-estar individuais e estes são o resultado da actividade dos particulares,
actividade na qual o Estado se abstém de intervir.
Segundo Adam Smith, o assegurar da liberdade individual garante a
racionalização do processo produtivo e distributivo dos bens e da satisfação
das necessidades: o empresário livre, que corre o risco da sua actividade por
sua conta exclusiiva, organizará da melhor forma a sua produção, com base
na sua própria e>..'Periência e nos seus próprios problemas, pois o interesse
em que a empresa funcione em condições óptimas é o seu interesse exclu-
sivo e ninguém melhor que ele é juiz das condições da sua prossecução 32 ; o
consumidor, por seu lado, é o melhor juiz das suas próprias necessidades,
pelo que a procura livre no mercado é o melhor orientador da produção,
e, simultaneamente, das condições da oferta, pois, num mercado fluido,

32
«Quando alguém decide alguma coisa a respeito de outrem, é sempre possível que lhe faça
alguma injustiça, mas toda a injustiça é impossível quando ele decide para si mesmo», Kant,
cit. apud Gérard Farjat, Le droit privé... , op. cit., págs. 49 e 50.

27
26
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA DIREITO PRIVADO E DIREITO PÚBLICO

cada produtor tem de lutar para colocar os seus produtos a preço sempre A contraposição começou, porém, por ser mais radical do que a resul-
mais baixo e com uma qualidade cada vez maior, sem o que a sua produção tante da aplicação de um critério de objecto regulado. O direito privado
não será comprada33 · 34 • começou por ter um âmbito definido pela sua própria fonte de emanação:
O interesse público é entendido como consistindo apenas no assegurar a sociedade civil tinha as suas fontes de direito, que lhe eram inerentes,
das melhores condições de exercício e expansão dos interesses privados. e era o direito produzido por essas formas não estaduais que constituía o
Isto é, o interesse público não é concebido enquanto portador de um direito privado. O direito público era, paralelamente, definido pela sua
conteúdo de natureza diversa e contraditória com os interesses privados; produção estadual.
ao contrário, consiste e esgota-se no assegurar das melhores condições de As revoluções liberais, permitindo à nova classe burguesa o domínio dos
exercício e realização daqueles interesses privados. centros de produção do direito (Parlamento e Governo), por um lado, e a
«Na visão optimista do liberalismo económico a própria liberdade é necessidade económica (jurídica) de utilizar o contrato de trabalho como
função social e o exercício incondicionado dos poderes satisfaz a tutela do instrumento mediador do processo produtivo - com a inerente necessidade
interesse enquanto técnica ideal para assegurar a harmonia dos interesses de atribuir personalidade jurídica a todos os indivíduos-, constituem as
particulares e fundi-los no interesse geral que daí resulta automaticamente condições permissivas e impositivas da estadualização do direito privado.
realizado» 35 • A igualdade jurídica desprendeu-se do seu suporte, a propriedade, e a sua
generalização absoluta obtém-se pela referência a um padrão comum: o
1.2. No plano jurídico, a realidade aparece recortada em dois níveis Estado. Isto é, como adiante melhor se verá, a igualização dos sujeitos
rigorosamente distintos, decalcados sobre esta realidade económica. obtém-se pela sua colocação em igualdade perante uma entidade diversa:
Se o interesse privado tem uma afectação jurídica natural - o indivíduo a lei, o Estado. Este é o padrão indispensável à construção jurídica que se
que dele é portador - o interesse público tem de encontrar um titular e introduz, e, sob1retudo, ultrapassada a situação em que a hostilidade da
executante, e este é o Estado. A sociedade decompõe-se assim em socie- burguesia ao Estado se fundava em objectivas razões de não domínio dos
dade civil ( conjunto dos indivíduos, sujeitos privados) e Estado, e é esta seus aparelhos legislativos, a produção de um direito próprio revela-se
decomposição que, como diz Francesco Galgano, criou «as premissas para como um importante elemento de estabilização e manutenção da nova
uma correspondente decomposição do direito, à qual se prestavam os con- ordem económica, social e política que se instaurava.
ceitos romanistas de ius privatum e de ius publicum: o direito privado podia Abandonando assim a diversidade das fontes como critério diferencia-
ser olhado como sendo o direito regulador da sociedade civil, o direito dor dos âmbitos do direito público e privado, houve que procurar outros
público como o direito regulador do Estado» 36 • critérios - substanciais, estes de distincão.
,
O que não significou o pôr de lado por completo da ideia de autonomia
normativa do direito privado: esta subsistiu, justamente, na concepção do
33
negócio jurídico, isto é, da autonomia privada.
V. P. Barcellona, L'educavam delgiurista, op. cít., pág. 50; Teixeira Martins, Capitalismo e Con-
corrência. Coimbra, 1973, págs. 9 e 10.
34
É curioso notar as formas «desviadas» de subsistência que ideias, completamente ultrapas-
sadas como esta, assumem: o instituto da responsabilidade civil - na sua concepção também 2. O direito privado e o direito público
marcado pela ideia de liberdade económica - é hoje utilizado em alguns países ( e, particular-
mente, nos Estados Unidos) como instrumento de combate individual do consumidor contra 2.1. No sector da realização dos interesses privados, ou, o mesmo era
a degradação da qualidade nos produtos e contra as condições da produção claramente nocivas
dizer, dos interesses económicos, era o contrato que emergia cÓ'ino ins-
do bem-estar geral, da saúde pública e do ambiente.
35
Pietro Barcetlona, Diritto privato eprocesso económico, Napoli, 1977, pág. 161.
trumento privilegiado, por um lado, da configuração individual do inte-
36
Il diritto privato fra codice e costituzione, op. cit., pág. 13. resse é da escolha privada da sua forma de prossecução, e por oµtro, da

28 29
A TUTELA CONSTITUCIONAL Di\ AUTONOMIA PRIVADA DIREITO PRIVADO E DIREITO PÚBLICO

compatibilização dos interesses individuais, na medida em que nele estão 2.2. Claramente distinto deste - pela esfera de aplicações e pelos seus
presentes - e nele encontram expressão realizadora - os possíveis interes- objectivos - aparecia o direito público.
ses contrapostos. Isto é, o contrato representava o ponto óptimo de equi- «À máxima expansão do Estado-ordenamento, que estava a ser, gran-
líbrio de interesses contraditórios37 • Pressuposto do cumprimento desta diosamente, realizada com as codificações, devia corresponder, nos pri-
função era, evidentemente, a colocação dos sujeitos que contratam numa mitivos desígnios da burguesia oitocentista, uma extensão mínima do
rigorosa situação de igualdade38 e de liberdade 39 •4 º. Igualdade e liberdade Estado-aparelho, ao qual a ideologia liberal reconhecia tarefas bastante
que não tinham de ser, nem podiam ser, mais do que formais: do livre jogo limitadas, que correspondiam a insuprimíveis exigências colectivas, como
das forças individuais resultaria o seu preenchimento substancial e nesse a manutenção da ordem pública, a aplicação da lei, a defesa das fronteiras
processo não podia, nem devia, o Estado intrometer-se sem correr o risco nacionais, as relações com o estrangeiro: as mesmas tarefas, no essencial,
que a burguesia estava disposta a reconhecer ao Estado absoluto. Quanto
de falsear todo o sistema.
ao resto, a burguesia confiava em poder bastar-se directamente a si própria:
No reino jurídico da vontade privada - autonomia privada- operava o
a economia era o seu «negócio privado»; o Estado devia apenas velar - qual
contrato: este era do domínio exclusivo do direito privado.
«guarda nocturno», dirá Ferdinand Lassalle -peias liberdades económicas
dos burgueses» 41 .
37 V. supra nota 5. A ordem económica e social constituía um dado, relativamente ao qual o
38 A extensão da personalidade jurídica a todos os indivíduos, por um lado, e a construção
Estado tinha de se abster de intervir42, sendo a função da lei «a de garantia,
do conceito de personalidade colectiva, como decalque-ficção da personalidade singular, por
outro, cumprem a função de preenchimento deste pressuposto contratual. a de, quase poderia dizer-se, eliminação dos obstáculos que a regulamen-
39 Daqui toda a atenção que a lei dá à garantia das condições de liberdade e esclarecimento tação legal vinda do passado levantava à realização dessa ordem»43 •
do processo formativo da vontade e de conformidade entre esta e a declaração que dela faz o O campo do direito público, que reage sobre o direito privado, apare-
seu autor - assim, a relevância da clássica problemática da falta e vícios da vontade e da diver- cia, pois, preenchido, no essencial, por dois tipos de normas: as normas
gência entre esta e a declaração, ainda presente no direito civil de todas as ordens jurídicas de defesa dos sujeitos privados contra a acção intromissora do Estado e as
modernas e actuais. normas, de carácter excepcional, com que o Estado assegurava o criar ou
40 «No Estado de direito liberal, a ligação surge realizada pelo colocar da lei acima de tudo e
o repor das condições de funcionamento do sistema em sectores em que,
de todos, pelo atribuir à lei o carácter de comando geral e abstracto e pelo confiar ao modelo
por herança histórica ou em virtude de acontecimentos anormais, elas
contratual a tarefa de dar vida aos comandos concretos.
A função desta técnica legislativa é, realmente, a de estabelecer um limite ao poder político, apareciam como não realizadas ou se encontravam destruídas 44•
estabelecendo uma separação nítida entre esfera privada e esfera pública e atribuindo ao direito A forma jurídica que assume o Estado liberal é transparentemente
objectivo - à lei - a função única de fixar as regras do jogo, isto é, aquele mínimo indispensável, caracterizada pela ideia do Estado de direito: esta traduz-se, fundamen-
aquelas condições mínimas formais, dentro das quais o aparelho coercivo do Estado está dis- talmente, na afirmação do carácter limitado da soberania, que «não pode
posto a pôr-se em movimento para realizar os interesses do sujeito. O modelo é, praticamente, exercer-se, relativamente aos privados, senão nas formas e pelos modos
resumível desta forma: todo o direito heterónomo, isto é, o direito objectivo é caracterizado
previstos na lei; não pode traduzir-se em actos que acarretem prejuízo para
pela sua abstracção, isto é, não «ordena», concretamente, nada a ninguém; todo o direito
os interesses dos privados a não ser.para realizar específicos fins públicos,
concreto é o direito contratual, quer isto dizer que não é um direito heterónomo, mas antes
autoproduzido. Entre estes dois planos, o plano do direito heterónomo, abstracto e geral, e o que a lei confia aos poderes públicos. [... ] O princjpio da legalidade, em
plano do direito consensual e autónomo, produzido pelos contratos, a ligação é estabelecida
41
pelo reconhecimento da capacidade jurídica ( e da capacidade de exercício) a cada sujeito Francesco Galgano, Storia dei diritto commerciale, Bologna, 1976, pág.137.
42
enquanto homem. Realiza-se assim a coexistência do primado da lei e do primado do sujeito. Cfr. Ugo Coli, Proprietà e iniziativa privata in Commentario sistematico alia Costituzione italiana,
[...] Quer isto dizer que não se podem estabelecer limites ao poder privado que não derivem da diretto da P. Calamandrei e A. Levi, Firenze, 1950, págs. 342 e 343. -' ·
43
lei e a lei deve ser abstracta e geral (estabelecida pelos órgãos competentes) e portanto respeitar Tullio Ascarelli, Ordinamento giuridico eprocesso económico, in Problemigiuridici, Milano, 1959,
a todos os cidadãos», Pietro Barcellona, II problema dei rapporto fra soggetto e ordinamento, cit., in Tomo I, pág. 43.
44
Prassi e Teoria, 1974, nº 2, págs. 181 e 182. Tullio Ascarelli, Ordinamento giuridico ... in Prob!emi giuridici, op. cit., pág. 44.

30 31
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA

que se resume o conceito de Estado de direito, não respeita à actividade


pública enquanto tal, não realiza qualquer garantia da prossecução dos
fins públicos. [... ] O interesse protegido é, apenas, o interesse privado: o
princípio da legalidade, precisa Giannini, "respeita às providências já não
em si mesmas, mas na medida em que tenham como correlativo uma situ-
ação subjectiva do privado, na qual incidam com um efeito de extinção ou
de limitação"»45 •
A Constituição traduzia, por um lado, a forma de organização do. poder
político, definindo os limites à actividade do Estado, e garantia, por outro,
aos cidadãos um conjunto de direitos contra aquele, isto é, constituía o
estatuto da defesa da sua esfera de liberdade perante o Estado 46 • «Daí
que a Constituição fosse, não a lei fundamental da ordem jurídica de uma
Capítulo Ili
colectividade politicamente organizada, mas sim e apenas o estatuto da Alnterven~;ão Pública no Domímo Económico Privado
organização política da sociedade» 47 •
O direito administrativo, por seu turno, constituía a forma de concre-
tização do campo constitucionalmente atribuído à actividade do Estado, I. A transformação operada e a sua subsunção ao quadro teórico
assegurando as garantias dos cidadãos, fixando os limites do exercício dos clássico
poderes públicos e consubstanciando o fundamento da reacção contra o
expandir daquela. 1.1. A evolução que se verifica, e se acelera a partir deste século, no
sentido da acentuação do papel do Estado no domínio de actuação dos
5
-1 Francesco Galgano, II diritto privato fi-a codice e costituzione, op. cit., págs. 38 e 39.
5
sujeitos privados, isto é, no domínio económico, não parece, curiosamente,
-1 A afirmação não pretende ter um sentido absoluto, mas apenas tendencial, isto é, não visa
acompanhar-se de uma aderente reformulação dos conceitos de autonomia
negar que, no quadro das Constituições liberais, fosse viável e mesmo frequente encontrar na
violação privada de direitos constitucionalmente previstos um fundamento de sanções jurídicas. privada e de contrato48 •
Como diz Costantino Mortati, «não parece exacto sustentar que no passado as proclamações
constitucionais que visavam garantir as liberdades dos cidadãos esgotavam os seus efeitos nas
-isMuito mais rápida foi a adequação da teoria económica a esta necessidade de intervenção
estritas relações com a autoridade pública e já não naquelas que surgem com outros cidadãos, estatal. Cite-se a título exemplar o texto de Keynes de 1926, sugestivamente intitulado «The
ou relativamente às situações de submissão resultantes para os sujeitos individualmente end ofLaissez-Faire», que começa com os seguintes parágrafos: «Ponhamos completamente
considerados da sua inserção em ordenamentos jurídicos particulares. [...] A verdade consiste a claro os princípios gerais ou metafísicos sobre os quais se tem vindo a apoiar regularmente
apenas em que a alteração que se verificou no sistema dos valores fundamentais depois do ruir a defesa do «laissez-faire». Não é de modo algum verdade que os indivíduos possuam, a título
do Estado do tipo liberal levou a ampliar a esfera dos direitos individuais que devem considerar- necessário, uma «liberdade natural» no exercício das suas actividades económicas. Não existe
-se limitados na sua disponibilidade mediante o exercício da autonomia privada. De facto, nenhum «pacto» que possa conferir direitos perpétuos aos possuidores e aos que se tornam
estes já não são apenas os ligados à conservação da vida ou da integridade física, mas também possuidores. O Mundo não é de modo algum governado pela Providência de maneira a fazer
outros relativos à dignidade da pessoa, tomada agora em consideração na integralidade das sempre coincidir o interesse particular com o interesse geral. E ele também não está organizado
fundamentais necessidades físico-psíquicas, que devem ser todas elas igualmente tuteladas e cá em baixo de manei.ra Cal que os dois acabem por coincidir na prática. Não éde todo correcto
subtraídas ao poder dispositivo dos próprios interessados», Considerazioni sulla tutela de/ia liberta deduzir dos princípios da economia política que o interesse pessoal devidamente esclarecido
nel rapporti di /avaro, in Problemi di diritto pubblico ne/l'attuale esperienza costituzionale repubblicana, opere sempre em favor do interesse geral. E não é tão pouco verdade que o interesse pessoal seja
Scritti III, lvlilano, 1972, págs. 344 e 345. em geral esclarecido; acontece bem mais vezes que os indivíduos agindo isoladamente, tendo
-1
7
V. J. J. Gomes Canotílho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, Coim- em vista os seus próprios objectivos particulares, sejam demasiado ignorantes ou demasiado
bra, 1978, pág. 12. fracos para poderem sequer alcançar estes. A experiência não demonstra de modo algum que os

32 33
A INTERVENÇÃO PÚBLICA NO DOMÍMO ECONÓMICO PRIVADO
A TUTELA CONSTlTUClONAL DA AUTONOMIA PRIVADA

Esta co~oc~ç~o do _rroblema supõe pois a permanência da inatingibili-


Persiste-se no entendimento clássico destes conceitos, acreditando não
dade d~ pnnc1p10 da liberdade económica e jurídica: a intervencão estadual
só que a alteração é meramente quantitativa e que não acarreta qualquer
sobrevem_ «a posteriori para limitar, dirigir, tutelar "a dinâmica, do ordena-
transformação essencial, mas também que, e em consequência, desta sua
~e~to pr~vado"», isto é, para circunscrever a dimensão do «território do
imutada essência decorre uma capacidade expansionista e potencial-
dire1t~ pr~vado», não lhe alterando minimamente a natureza essencial de
mente abarcadora de toda a realidade, que, por si mesma, pressupõe que
conteudo~0 •
a intervenção estatal - onde foi produzida - cesse logo que desnecessária,
retomando a autonomia privada toda a sua aptidão de regulamentação
jurídica da vida económica. Tal como se começa a falar de elasticidade da 2. Formas de intervenção pública no domínio privado
propriedade, para designar a sua tendência reintegradora da totalidade
dos poderes sobre a coisa, se poderia falar de elasticidade da autonomia . 2.1. Muitas são as causas que, gradualmente, vão determinando o assu-
privada - quando uma e outra começam patentemente a entrar em crise. mir p_elo Estado de tare_fas de ordem económica e dando origem à sua inter-
vençao no campo previamente exclusivo dos.sujeitos privados. No âmbito
1.2. Daqui que se coloque o problema da intervenção estatal sempre deste trabalho, rnais do que a sua análise, importa avaliar positivamente o
sob a designação de «limites à autonomia privada», afirmando-se assim, alcance daquela intervenção.
de forma clara, que o momento principal e caracterizador da situação - o N:1m primeiro momento, o Estado vai intervir, ainda na sua missão de
seu ponto de partida e de chegada - é a autonomia privada, surgindo a fiscalizador e guardião das condições ideais do funcionamento económico
intervenção pública como mera delimitação do âmbito daquela situação, ~m termos c~n~o~enciais, Pª:ª fazer regressar o mercado ( e a produção)
delimitação, aliás, tendencialmente transitória e essencialmente excep- aquelas cond1çoes 1. Mas essa mtervenção revelou-se ineficaz, e inelutável
cional. Isto é, por maior que seja o âmbito da intervenção estatal, ela só a ~arc~a do capitalismo da sua fase concorrencial para uma fase mono-
é considerada do ponto de vista da autonomia privada, momento prévio polista~2.
e relativamente ao qual se perspectiva o momento interventor - que se
49
define relativamente a ele: como seu limite • pressupo~tos n~o sejam normalmente explicitados. Uma das primeiras razões que levam 0
EStado ª mtervir na relação contratual - e, particularmente, no contrato de trabalho - é a
indivíduos, uma vez reunidos numa unidade social, sejam sempre menos clarividentes do que constatação da. desio-ualdade
o real d as partes. O ra, e· comum encontrar nos juristas modernos,
quando agem isoladamente. É-nos pois impossível chegar a uma solução na base de princípios mes~o no~ mai~ a~eg~dos aos conceitos clássicos vindos do liberalismo económico, a utilização
abstractos, mas é-nos, pelo contrário, necessário tratar, segundo os seus méritos detalhados, da e~pres_sao «hmi~es a autonomia privada» em sentidos diversos e até contrapostos, sem que
que Burke chamava «um dos mais subtis problemas de toda a legislação, a saber a partilha a tal d~versida~e sur~a minimamente esclarecida. Fala-se em limites à autonomia privada para
0
fazer entre o que o Estado deve tomar a seu cargo para aí aplicar a sua sabedoria cívica, e aquilo qualificar as si~uaço~s-~m que a lei intervém no campo contratual, retirando aos sujeitos priva-
que ele deve abandonar à indústria dos indivíduos, evitando tanto quanto possível imiscuir-se». dos~ fo_rma~ disporub1hdade de eficácia jurídica da sua vontade; mas fala-se, simultaneamente,
Para retomar a terminologia esquecida mas útil de Bentham, nós temos de distinguir entre os em h1:1ites a autonomia privada para designar situações, como as que, paradigmaticamente,
que ele chamava os Agenda e os Non-Agenda, deb:ando todavia de lado o seu postulado inicial se verifi~am nos contratos de adesão, em que a limitação é substancial e não formal: uma das
de que toda a intervenção do Estado é no conjunto «geralmente supérflua» e «geralmente
~artestªº negoceia o conteúdo contratual porque realmente o não. pode fazer e não porque
perniciosa»·. Talvez que o principal dever dos economistas seja hoje o de repensar de novo orma m~nte ~sse poder lhe seja excluído. Cfr. Enzo Roppo, Le restrizioni de/la liberta con-
a distinção entre os Agenda incumbindo ao poder público e os Non-Agenda, enquanto a tarefa
trattuale, m ~1 dz~tto privato nella sodetà modema, op. dt., pág. 332; no mesmo sentido, LuiQi 0 Feri
paralela da imaginação política seria a de inventar as formas de governo que, no interior de um
~a autonomia pnvada, op. dt., pág. 67. '
Estado democrático, sejam capazes de levar a cabo os Agenda. :º V. Arma de Vita, La proprietà nell'esperienzagiuridica contemporanea Milano 1969' pa'g ?5
º1 Joa ui G ' ' ' ·- ·
· Manual ofPolitical Economy, 1893». ., M q n li amgues, La defensa de la competencia mercantil, Madrid , 1964
,_ , págs . 18 e se0a s.
(ln Essays in Persuasion, tradução francesa, Paris, 1972). . . ºd~o~o smo e concorrência constituem ( e assim se revelaram) dois aspectos fenomenais
Curiosamente, a tomada de consciência de alguns problemas que determinam a própria
49 mcm 1ve1s de uma mesm a rea!'d 1 ad e. A concorrenc1a
• . e,, na sua essência, a luta de cada sujeito
intervenção estadual se reflecte claramente no conceito de autonomia privada, embora os

35
34
A INTERVENÇÃO PÚBLICA NO DOMÍMO ECONÓMICO PRIVADO
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA

O bloquearnente da fluidez do mercado, a destruição da concorrência, cidadãos em secitores considerados fundamentais, prioritários, vitais54, ao
a motivação dos sujeitos económicos por objectivos diversos do da satis- mesmo tempo que lhe incumbe intervir nas relações interindividuais de
facão máxima das suas necessidades humanas 53 acarretam duas conse- forma a, pelo assegurar de valores mínimos de sãconvivencia, corrigir as
,
consequências que a situação de real desigualdade dos sujeitos acarreta.
quências:
Não parece exacto dizer, como M. S. Giannini, que «a realidade é que
A relevância assumida pela situação de desigualdade real dos sujei- o novo século, e por isso o Estado contemporâneo, não inventa novos ins-
tos económicos, que aparece agora patente em todos os sectores titutos jurídicos relativamente a tudo quanto já era conhecido no Estado
da actividade económica ( embora no campo do direito do trabalho burguês» e que apenas «estende, recodifica institutos já existentes, aper-
o fosse, desde o início e com particular nitidez, tinha sido possível feiçoa-os sob o aspecto técnico, mas sobretudo institucionaliza-os, isto é,
pensar que se tratava de um sector específico e estanque, com pro- toma-os elememos estruturais do ordenamento jurídico»55 •
blemas e soluções próprias, ideia que, em certa medida, ainda hoje De facto, as formas que a intervenção assume não revestem apenas
uma amplitude quantitativamente diversa, mas caracterizam, pela sua
se mantém);
A constatação de que o exercício da livre iniciativa económica diversidade e novidade, uma situação que me parece ser qualitativamente
privada, ao nível da produção, e da autonomia privada, ao nível da diferente.
circulacão dos bens e serviços, não asseguram a satisfação de todas
0

as nece ssidades humanas, nem sequer daquele conjunto de neces- 2.2.1. Antes de entrar na breve referência de algumas das formas que
sidades primárias e vitais, indispensáveis à sobre vivência em termos a intervenção reveste, convirá desde já delimitar - negativa e insuficien-
de garantia de um mínimo de dignidade humana. temente, porém - o âmbito de qualificação das normas de intervenção56 •
Nesse sentido, parece necessário chamar a atenção para a incorrecção das
2.2. Do Estado corno entidade necessariamente alheia ao processo
de satisfação das necessidades privadas passa-se ao entendimento de que
54
«Hoje um governo público da economia está presente, em grau diverso e com diversas
características, em todos os sistemas capitalistas; obedece a um «estado de necessidade" da
ao Estado devem ser cometidas tarefas de realização do bem-estar dos
economia capitalista, que historicamente se mostrou incapaz de se autogovernar segundo
os mecanismos internos do mercado, além de se mostrar inidónea para garantir, por si só,
económico pela preponderância no mercado face aos outros sujeitos económicos, e a luta pela um desenvolvimento económico equilibrado e coordenado com o progresso civil e social.
sua dominação do mercado, pela destruição dos concorrentes, é a luta por uma posição de Daqui resulta o univ,ersal reconhecimento de que ao Estado compete a tarefa de assegurar o
monopólio. E o monopólio, se foi determinado pelo próprio funcionamento da concorrência, funcionamento e o desenvolvimento do sistema económico, juntamente com a ulterior função
não é, na sua forma de existência, independente dela a partir da sua constituição: porque - particularmente acentuada pelas constituições mais recentes - de coordenar as exigências do
constantemente ameaçado na sua posição pelo eventual surgimento de concorrentes, etc. é desenvolvimento económico com as da justiça social e do pleno desenvolvimento da pessoa",
dominado na sua fom1a de funcionamento pelo assegurar das condições da sua manutenção (Francesco Galgano, II diritto privato fra codice e costituzione, op. cit., pág.129).
face à concorrência possível, face à ameaça de concorrência. «Em particular, o Estado prossegue o progresso .social articulando a sua acção em três directi-
s3 Originariamente, o sujeito económico é concebido como a pessoa humana, sendo a sua vas muito gerais, que dizem respectivamente respeito ao melhoramento das condições físicas,
liberdade económica condição de realização da sua liberdade humana, de livre desenvolvimento económicas, intelecu1ais e morais dos cidadãos. É em relação com este triplo objectivo, unitária
da sua personalidade, condição da sua realização como homem e a garantia da realização con- mas genericamente definido como prossecução do bem-estar colectivo, que o Estado modifica
certada de todos os homens - em luta por objectivos homogéneos. A criação das sociedades, as combinações espontâneas das forças sociais e estabelece limites cada vez mais graves no
e a atribuição a estas de uma posição de formal igualdade com a dos homens, introduziu nesta âmbito da autodeterminação individua],,, (Spagnuolo-Vigorita, L'iniziativa economica privata
concepção um elemento de distorção: os objectivos prosseguidos na vida económica deixam de nel diritto pubblico, Na poli, 1959, pág.10). , ·
55
poder ser referenciados à satisfação das necessidades humanas e nada garante pois - antes pelo Dirittopubblico dell'economia ' Boloana
b '
1977 '
páa

34
56
contrário - a adequação dos objectivos económicos, individualmente prosseguidos, ao objectivo Deixando neste momento, voluntariamente, de partes as fornias interventoras que não se
geral da satisfação de necessidades, apregoado como sendo o do mercado livre. traduzem directa ou mediatamente em normas legais.

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1\ INTERVENÇÃO PÚBLICA NO DOMÍMO ECONÓMICO PRIVADO
A TUTELA CONSTITUCIONAL Dt\ AUTONOMIA PRIVADA

posições que se traduzem em qualificar como interventoras quaisquer objectivos, em muitos casos - cujo valor de análise é nulo. Há que procurar
normas que tenham um efeito directo ou indirecto, jurídico ou puramente determinar a correspondência das formas jurídicas com as formas eco-
fáctico, nas relações entre os sujeitos económicos privados. Tais posições nómicas e sociais, analisando o sentido da respectiva evolução histórica;
partem de um ponto de vista exclusivamente metajurídico e ideológico mas, só em concreto, face a uma dada ordem jurídica, se podem analisar os
da concepção da ordem jurídica, como instrumento de formalização do quadros que ela estabelece para a actividade económica privada e só face a
modelo económico do mercado inteiramente livre. «Assim, partindo da eles é possível retirar conclusões sobre a legitimidade, e a sua medida, da
arbitrária premissa segundo a qual qualquer alteração do livre jogo das for- intervenção estatal. Mas não só isto. Face à ordem jurídica - e, prioritaria-
ças do mercado, realizada por elementos externos à vontade dos operadores mente, face ao quadro constitucional - é possível determinar,para além da
privados, representa uma forma de intervenção, julgou-se poder colocar legitimidade da :intervenção produzida, a necessidade da intervenção não
no mesmo plano da intervenção que se exprime na imposição de regras operada e, em relação à primeira, apreciar em concreto o seu conteúdo, e
de conduta, a própria influência de ordem psicológica que a autoridade do em relação à segunda, determiná-lo. Isto é, a ordem jurídica existente não
Estado costuma desencadear de forma indirecta, solicitando os privados se limita a permitir ou a impor, dentro seja de que parâmetros, a interven-
para determinados sectores de consumo ou encorajando determinados ção: permite-a ou impõe-na para prossecução-de dados objectivos que,com
investimentos ou então a actividade de poupança» •
57 maior ou menor precisão, hão-de encontrar-se apontados pela lei, maxime
Por isso, pode dizer-se que, de um modo geral, as primeiras formas pelas pela lei constitucional.
quais o Estado liberal actuou no domínio económico não são, em rigor, A intervenção não constitui, pois, uma forma de autonomia pública, no
qualificáveis como intervenções. Elas tinham em vista o favorecimento do sentido de corre:sponder a uma pura forma adaptável a qualquer conte-
desenvolvimento económico, através da realização das infra-estruturas údo; ela foi imposta, historicamente, pela pressão de certas necessidades
necessárias e da actuação de «várias formas de auxílio, como concessão de e é configurada, juridicamente, em cada ordenamento, de forma ade-
subvenções, de prémios, de isenções, de financiamentos públicos e assim quada à satisfação dessas necessidades. Pode dizer-se que a intervenção
por diante» 58 • tem - muito mais evidentemente do que os instrumentos jurídicos privados
As normas interventoras têm de assumir uma directa repercussão jurí- - uma função, que lhe é assinada pela lei, e, prioritária e superiormente,
dica na esfera de domínio da vontade privada, incidindo ou no âmbito de pela Constituição.
actividades permitidas aos sujeitos privados ou, dentro destas, no instru- Este aspecto tem uma importância decisiva para a caracterização de
mento de actuação daqueles: o negócio jurídico - na sua constituição ou um dado quadro económico-social: da verificação de que a ingerência
no seu conteúdo. pública no sector económico é um elemento constante da totalidade dos
sistemas económicos actuais nada é possível retirar para a identificação
2.2.2. Uma outra questão que deve ficar, desde já, colocada é a da deter- desses sistemas. Nem sequer pelo recurso às fórmulas gerais motivadoras
minação de critérios e sentidos da intervenção. A posição do jurista face ou legitimadoras dessa intervenção é possível obter uma clarificação das
às normas de conteúdo interventor não pode reconduzir-se, em abstracto, situações, dado o carácter vago e propositadamente disponível do ponto de
à sua defesa ou ao seu combate; essa é uma posição ideológica - que nem vista ideológico que essas fórmulas muitas vezes assumem. Só uma análise
sequer tem o mérito de ser clara e reconhecível nos seus pressupostos e dos objectivos gerais e específicos definidos em cada ordem jurídica, dos
meios e instrumentos nela previstos, do condicionalismo imposto à sua
utilização, permitirá esclarecer - caracterizadora e diferenciadoramente
57 P. Barcellona, Inten>ento statale e autonomia priva ta nella disciplina dei rapporti economia, Milano, - o sentido da intervenção estatal. _, ·
1969, págs. 11 e 12.
58 Vittorio Ottaviano, II Governo deli'economia: i principigiuridici, in Trattato di diritto commerciale,

Vol. I, La Costituzione economica, direito da F. Galgano, Padova, 1977, pág.189.

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A INTERVENÇÃO PÚBLICA NO DOMÍMO ECONÓMICO PRIVADO
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA

3. A intervenção pública nas relações interprivadas que tal mediatização assuma, o Estado pode, por duas vias, operar a sua
intervenção nas relações do mercado: negando eficácia jurídica à vontade
3.1. Aquelas tarefas são, em grande medida, prosseguidas essencial- privada quando esta se manifesta em condições de flagrante frustração dos
mente por via da utilização dos instrumentos privados de satisfação das pressupostos da sua força vinculativa ou quando dela resultam consequên-
necessidades59 , isto é, dentro dos limites do mercado. cias ostensivamente nefastas para o bem-estar social; ou conformando, de
forma correctorn, os efeitos jurídicos desencadeados pela manifestação de
3.1.1. Por isso que a intervenção se reconduza, num dos seus mais vontade, fazendo intervir no regulamento negocial interesses alheios, de
importantes aspectos, a formas de interferência nas relações interprivadas, um ponto de vista imediato, àqueles que ditaram esse regulamento.
no mecanismo próprio dessas relações, que é o negócio jurídico. Cons- Estamos, por um lado, perante os chamados limites negativos à liber-
tituindo o negócio jurídico a forma de expressão da vontade, enquanto dade contratual e, por outro, parcialmente, perante os chamados limites
preenche uma dada previsão legal, e de reconhecimento dos seus efeitos, positivos.
o que constitui a própria estatuição legal, ele é um instrumento na total
disponibilidade do Estado. Isto é, porque a vontade privada não é fonte 3.1.2. Mas n~io basta esta intervenção de recusa de juridicidade ou de
directa e imediata de efeitos jurídicos60 , mas tem a sua eficácia subordi- conteudização das relações interprivadas. Há sectores em que, estando em
nada à necessária mediatização da lei e, consequentemente, às formas causa a prestação de bens ou serviços de importância vital, pela absoluta
falta de fluidez do mercado ( situações de monopólio) ou pela carência de
bens diponíveis (por exemplo, a habitação), a situação é mais grave do
59 Intervenção estatal «reactiva», na expressão de Mückenberger e Dieter Hart (V. L 'educazione que a resultante da falta de igualdade, da falta de liberdade na contrata-
dei giurista, op. cit., páginas 70 e 71), porque o seu pressuposto continua a ser a iniciativa eco- ção: corre-se o risco de, pela recusa de fornecimento do bem ou serviço,
nómica privada, que há-de ser livre, e tão-somente objecto de correcções e reajustamentos
nos seus resultados. Daí, como notam os mesmos autores, uma certa «desjuridicização» das
medidas estadualmente adoptadas (v. op. cit., págs. 79 e 80), com o consequente implemento
eficácia dos negócios procuravam preservar a concepção antiga contra as novas necessidades
das funções executiva e jurisdicional do Estado.
60 Este problema assumiu, no século XIX, a amplitude de um largo debate sobre a fonte das
que o real impunha.
Analisando a evolução ocorrida, diz Francesco Galgano: «Ao lado da teoria da vontade, domi-
obrigações.
O crescimento e desenvolvimento da sociedade mercantil, exigindo a aceleração da circulação nante na primeira metade do século, coloca-se a teoria da declaração, que afirma a prevalência
das mercadorias, haviam trazido para o primeiro plano as exigências de certeza e rapidez do da declaração sobre a divergente vontade do declarante. A classe fundiária perdeu grande parte
tráfico, incompatíveis com os mecanismos jurídicos asseguradores da exclusiva relevância da do seu poder, é agora a burguesia industrial que domina quase sem contestação: a relação social
vontade privada. A nulidade e anulabilidade dos negócios, admitidas nos termos amplos que em que tem de se realizar uma mediação não é tanto aquela que contrapõe o empresário ao
eram impostos pela sua função de tutela da genuinidade do negócio, enquanto manifestação proprietário das matérias-primas como a relação entre o empresário e a massa dos consumi-
da vontade real do seu autor, constituíam um factor de insegurança na vida económica, que dores. A atenção do jurista encontra-se doravante orientada para o momento da circulação: o
era preciso limitar. Por outro lado, novos mecanismos jurídicos surgiam em consequência da interesse a satisfazer já não é o interesse em comprar, mas.o interesse em vender, e em vender
mesma necessidade de estabilidade e segurança: mecanismos virados para a garantia positiva na maior quantidade possível. Tem início, com a teoria da declaração, um processo de objecti-
destes valores, protectores do declaratário e do subadquirente, e que constituem os primeiros vação da troca, que tende a perder parte das suas originárias características de voluntariedade.
Este processo de objectivaçáo da troca desenvolve-se dentro da cateuoria o
do neuócio
o
1·urídico'
elementos de ruptura na concepção tradicional.
O debate sobre a fonte das obrigações - vontade ou lei - representa, pois, a formulação teórica que exerce um efeito de travão sobre o processo. Os casos em que parece oportuno reconhe-
dos problemas colocados pela realidade económica: aqueles que defendiam o primado da lei, cer a prevalência da declaração sobre a vontade, vistos na óptica do negócio jurídico, tendem
ao privilegiar o momento legislativo - remetendo a vontade para o papel de mero elemento da a configurar-se como desvios relativamente à regra, que é reafirmada sempre quê,·não surja
previsão legal, com a sua consequente desvalorização - abriam caminho às soluções exigidas por derrogada. Ou então a confiança não culposa do destinatário da declaração ou do terceiro
aquela realidade e tendentes a valorizar a declaração e a proteger o comércio jurídico; aqueles adquirente, é concebida como «equivalente» da vontade faltosa ou viciada; ú que postula a
que entendiam ser a vontade a única fonte dos efeitos jurídicos e única medida de validade e necessidade, em principio, da vontade», (ll diritto priva to fra codice e costituzione, op. cit., pág. 70).

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r 1

A TUTELA CONSTITUCIONAL DJ\ J\UTONOMIJ\ PRIVADA J\ INTERVENÇÃO PÚBLICA NO DOMÍMO ECONÓMICO PRIVADO

pela recusa de contratar, o sujeito se ver absolutamente impossibilitado 3.2. Esta intervenção estatal, corno já se disse, não pode hoje - e adiante
de o obter. Não basta aí que o Estado intervenha para conformar a relação se procurará afe:rir a veracidade desta afirmação no concreto contexto da
contratual; é preciso que a imponha. Isto é, não se substituindo a forma de ordem jurídica :portuguesa ser considerada um elemento externo ao
satisfação das necessidades, não se alterando a forma de mercado, o Estado negócio. Ela constitui um seu elemento integrador ou, melhor dizendo,
intervém, por via legislativa, utilizando o instrumento característico dessas a funcionalização de que ela é instrumento constitui um elemento da
relações, quer para o adaptar à prossecução dos fins colectivos essenciais própria noção de negócio. O facto de a intervenção, em si mesma, na sua
(funcionalização do negócio, limitação à liberdade de estipulação) quer concreta manifestação, ser acidental, isto é, de verificação não necessária,
para impor a sua utilização quando essa não é a vontade dos privados e até mesmo não muito frequente, em nada altera o que já se disse. Tal só
(obrigação de contratar) 61 • pode significar ou que ela é desnecessária para a realização do objectivo
funcional, ou que, sendo necessária, o Estado se absteve, ilegal ou incons-
61
titucionalmente62, de intervir.
E não é apenas pela sua actuação legislativa que o Estado opera esta intervenção; também ao
O sentido da intervenção pode também ele ser de cariz muito diverso:
poder judicial são fornecidos meios de prosseguir, de forma relativamente autónoma, idêntica
actividade. As chamadas cláusulas gerais do direito privado mais não são do que instrumen- a apreciação da sua legalidade ou constitucionalidade só pode, como é
tos, destinados à utilização pelo poder judicial, para intervir nas relações interindividuais, evidente, ser feita à luz das normas integrantes de cada ordem jurídica e,
fazendo respeitar aí as regras do ordenamento económico e social de uma dada comunidade nesse âmbito, ela é e tem de ser - com maior ou menor grau de dificuldade
e que constituem, na verdade, o mínimo indispensável de pressupostos de funcionamento do - passível de um juízo de apreciação.
sistema.
Numerosos são os problemas que se têm colocado ediscutido tendo como ponto de referência as
cláusulas gerais. Não sendo, evidentemente, este o lugar para os enunciar e analisar, parece-me,
todavia, útil referir dois deles, aliás intimamente interligados: por um lado, trata-se da questão 4. A intervencão estatal directa na vida económica
~

da legitimidade do recurso às cláusulas gerais - que, aliás, frequentemente, surge confundida


com problemas de oportunidade ou de utilidade - e, por outro, da de saber qual a matriz de Mas, com cada vez maior frequência, o Estado intervém directamente
conteúdo dessas cláusulas gerais. na vida económica, organizando formas de prestação directa de bens e
Pelo que respeita ao primeiro problema, é frequente ver objectar ao recurso às cláusulas serviços essenciais 63 - embora frequentemente com um carácter residual e
gerais com a exigência de certeza e de segurança jurídicas: ora, comummente, o que subjaz a
complementar ou integrador da actividade privada64 - ou assumindo auto-
tal argumentação é uma concepção do contrato como «um instituto estrutural inidóneo para
suportar determinações que não sejam recondutíveis à actividade dos contraentes, ou que por
estes não sejam previamente cognoscíveis por estarem contidas numa explícita e particular
62
previsão legislativa», (Stefano Rodotà, Le Jonti di integrazione de! contratto, Milano, 1969, pág. Consoante, em princípio, a omissão provenha de órgãos administrativos ou jurisdicionais
166). O que significa que tais objecções valem, essencialmente, o que valer esta concepção do ou dos órgãos legislativos.
63
contrato face a uma concreta ordem jurídica. Como diz André de Laubadere: «Em sentido lato, a palavra "intervenções" designa simul-
Paralelamente, a ideia dominante pelo que respeita ao conteúdo das cláusulas gerais traduz-se taneamente as medidas tomadas pelas pessoas públicas relativamente aos agentes económicos
num «reenvio para as ideias dominantes nas relações suciais ou para um genérico complexo privados, às empresas privadas (é o sentido restrito das palavras "intervenções", "intervencio-
de valores éticos prevalecentes no momento histórico considerado» (ibid., pág. 168); ou seja, nismo") e, por outro lado, esta forma de intervenção que é o assumir d,as actividades económicas
atribui-se-lhes um vaguíssimo e incerto conteúdo, que, a ser aceite tal perspectiva, bem poderia pelas próprias pessoas públicas, ou, dito de outra maneira, a gestão daquilo que correntemente
justificar as críticas de incerteza e insegurança que se enunciam. Ora, a verdade é que qualquer se chama o sector público, industrial e comercial (empresas públicas)», Droit public économique.
sistema jurídico tem os seus princípios fundamentais consagrados, traduzidos ou aflorados Paris, 1974, pág. 22.
64
normativãmente, em particular, na lei constitucional. Não pode deixar de ser com recurso a V. Francesco Galgano, Le istituzioni dell'eco11omia capitalistica, Bologna, 1974, págs: 111 e segs.
esta que se integram as cláusulas gerais, com a necessária vantagem de maior inequívocidade e Um texto legal exemplarmente ilustrativo destas características da intervenção pública na
certeza, de coerência e de unidade do conjunto, e com a necessária consequência de que, exis- economia é o número ix da Carta do Trabalho italiana, que dispunha que «a intervenção do
tindo contradição entre as concepções sociais difusas e esses princípios, hão-de estes prevalecer. Estado na produção económica tem lugar apenas quando falte ou seja insuficiente a iniciativa

42 43
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOM!i\ PRIVADA A INTERVENÇÃO PÚBLICA NO DOMÍMO ECONÓMICO PRIVADO

ritariamente a gestão de empresas ou categorias de empresas privadas65 • 5. As consequências da intervenção pública no domínio privado para
Ainda aqui a actuação estatal tem, por duas vias, uma directa relação com a distinção entre direito público e direito privado
as formas de expressão da actividade económica privada.
Por um lado, e quanto aos sectores em que coexiste a actuação privada 5.1. Nos seus múltiplos aspectos, a intervenção do Estado na vida eco-
com a actuação estatal, coloca-se o problema de saber em que termos se nómica assume formas que relevam, no essencial - quer quanto aos objec-
rege a última, ou, melhor dizendo, qual o regime a que está subordinada tivos, quer quanto à forma por que actuam -, do direito público. Mas, se
a actividade económica pública, tendo em atenção a paralela actividade esta é a natureza mais aparente e ostensiva dessas fom1as de intervenção,
privada. isso não pode levar a subvalorizar o carácter de direito privado que elas
É inegável que a não subordinação da actividade económica pública aos também assumem muitas vezes 67 •
critérios privados e às regras concorrenciais acarreta uma forte restrição, Pelo que toca às nom1as interventoras nas relações interprivadas, grande
de carácter substancial, à autonomia privada dos paralelos operadores eco- parte da doutrina tem-se orientado no sentido da qualificação publicista,
nómicos privados (66) - muito embora, e de acordo com o que já foi dito, com fundamento no carácter não privado ou, pelo menos, não individual
não possam qualificar-se juridicamente como interventoras as normas que - dos interesses tutelados. Como acentua Pietro Barcellona, a investigação
regem a actividade dos operadores públicos nestas condições. surge dificultada por este preconceito de entender que o carácter social do
Por outro lado, e quando o Estado exerce em exclusivo uma dada interesse exclui a possibilidade de uma concretização em termos indivi-
actividade, retirando à iniciativa económica privada a possibilidade de duais dos mecanismos tuteladores e de que, inversamente, a natureza
actuação nesse domínio, estamos ainda perante uma manifestação limi- individual do interesse protegido afasta a natureza pública da tutela.
tadora da autonomia privada, ou, mais rigorosamente, da iniciativa eco- «Conforme a perspectiva que se escolha, todos os interesses juridica-
nómica privada. mente relevantes podem ser considerados em termos individualistas
ou em termos sociais, e, reciprocamente, as normas que realizam a res-
pectiva tutela podem ser vistas na perspectiva publicística ou privatís-
privada ou quando estejam em jogo interesses políticos do Estado. Tal intervenção pode assumir tica, consoante se considere a estrutura da relação ou o fundamento da
a forma do controlo, do encorajamento e da gestão directa». disciplina» 68•
65 Segundo Vittorio Ottaviano, caracteriza-se o actual ordenamento das relações económicas
Por outro lado, e tomando como exemplo formas mais globalizan-
pelo facto de o Estado ter assumido por sua conta «o encargo de garantir o funcionamento e
o desenvolvimento do sistema económico e para esse fim não se limitar a salvar empresas em tes de orientação pública do sector económico, podem apontar-se os
dificuldades ou a conceder empréstimos em condições de favor, subvenções e outras formas processos para-contratuais de organização e programação económicas,
de auxilio, mas exercer um poder de orientação e fazer-se ele próprio operador económico», através dos quais o Estado assegura a colaboração dos sujeitos económi-
(in Il Governo dell'economia: i principigiuridici, op. e loc. cit., pág.193). cos privados para a execução dos seus programas económicos 69 , e, por
66 Daí que alguns autores afirmem - e justificadamente - que a subordinação das empresas

públicas a critérios de economicidade e às regras jurídicas que constituem o estatuto dos


67
operadores privados tem, para além de um objectivo interno de eficácia económica, um duplo Não se pretende, de forma alguma, tomar aqui posição - nem mesmo é esse o problema que
significado externo: por Um lado, o de que «a intervenção pública, muito embora destinada a se coloca - sobre a questão de saber qual é o objecto do direito eco11ómico, deixando-se deli-
reduzir os espaços da produção privada, não modificará o modo de produção, o qual continuará beradamente de lado, por não interessarem directamente ao objecto do trabalho, e na medida
a ser sempre, mesmo que aplicado por operadores públicos, o modo de produção capitalista»; em que não interessam, todas as formas jurídicas de organização económica assumidas petos
por outro lado, o de salvaguarda da subsistência e viabilidade das próprias empresas privadas, sujeitos económicos públicos.
68
que concorrem em situação de paridade com as empresas públicas. Isto é, a privatização das Intervento statale e autonomia privata, op. cit., páginas 17 e 18.
69
formas de actuação do Estado como operador económico constitui uma restrição importante Vide sobre a natureza destes «contratos», André de Laubadere, Droit public économique, op.
imposta a essa actuação em proveito dos sujeitos económicos privados. cit., páginas 433 a 449 e Gérard Faijal, Droit économique, Paris, 1971, páginas 205 a 210. V. ainda
Cfr. Francesco Galgano, Il diritto privato fra codice e costituzione, op. cit., págs. 133 a 136 e 138. Vital Moreira A Ordem Jurídica do Capitalismo, Coimbra, 1973, página 95.

44 45
A INTERVENÇÃO PÚBLICA NO DOMÍMO ECONÓMICO PRJVADO
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA

outro lado, a submissão, muitas vezes imposta aos sujeitos públicos, com o direito da economia72• 73 e a intervenção, sempre de direito público74,
intervenção própria na vida económica, às regras aplicáveis aos sujeitos limitava-se ao cumprimento das necessidades sancionatórias da infracção
das regras de jogo económicas. Este o ponto de partida da distinção, como
privados.
já se viu.
Mas, à medida que o modelo liberal revelava a sua incapacidade de adap-
5.2. Como consequência da crescente publicização do direito regu- tação e de explicação do evoluir da realidade económica e social, a função
lador dás relações interprivadas, por um lado, e de uma certa privatiza- da oposição direito privado/direito público ganhou uma nova dimensão.
ção das normas aplicáveis à actividade do Estado e pessoas colectivas de
direito público, por outro, tende a esbater-se, em grande medida, a nitidez
caracterizadora da distinção entre direito privado e direito público, que 72 Usa-se a expressão direito da economia, no sentido comum de regras respeitantes à actividade
se encontra hoje generalizadamente posta em causa: «... compreende-se económica, e não no sentido de direito económico. É evidente que um direito da economia
que a distinção começasse a sentir-se em dificuldades quando a distinção sempre existiu, diversamente do que sucede com o direito económico, que é um ramo cuja
dos domínios de actuação do Estado e da sociedade se foi tomando menos autonomia científica é relativamente recente e, em grande parte, se liga aos problemas que,
no âmbito deste trabalho, se procura colocar. ·
nítida, nomeadamente quando o Estado vai estender a sua actividade no
A não transparência da economia nas regras de direito no modelo liberal provinha do facto
(sobre o) domínio económico e social, e, ainda mais, quando o vai fazer sem de estas traduzirem apenas um quadro de funcionamento, isto é, de, segundo esse modelo, a
recorrer ao arsenal de meios de «império» de que se dotava para realizar economia se caracterizar justamente por uma ausência de regras, ou pelo domínio da regra
as suas anteriores funções» 70• 71 • da vontade privada, (v. G. Farjat, Le droit économique, op. cit., pág. 10 e Alex Jacquemín e Guy
Schrans, Le droit économique, Paris, 1970, pág. 24).
73
E na medida em que o direito privado era mais do que o fornecer dos instrumentos jurídicos
5.3. A, ao menos parcial ou inicial, capitulação desta distinção tem aos sujeitos privados, ele traduzia-se em normas tendência! e preferencialmente supletivas,
(e terá) consequências importantes para a forma como a autonomia pri- destinadas a actuar apenas quando os sujeitos omitissem a regulamentação de certos aspectos
vada é concebida, pois ela constituía um elemento central da concepção dos seus negócios, quando as suas convenções se revelassem incompletas - isto é, quando afi-
jurídica liberal, quer na sua elaboração, quer na sua actuação defensiva nal os sujeitos manifestassem uma vontade tácita de estabelecer um regulamento contratual
conforme com o resultante das normas legais.
face aos ataques que a realidade económica lhe movia.
Aliás, o sistema das normas supletivas nem sequer constituía um conjunto de soluções
De facto, ela representava a formalização jurídica da atribuição em «melhores» de um ponto de vista social; a proposta de regulamento de interesses que a lei
exclusivo aos sujeitos privados do domínio económico, espaço do qual o oferecia traduzia a mera formalização das regras pelas quais os sujeitos privados pautavam a
Estado estava ausente e relativamente ao qual funcionava como garantia sua actividade negocial.
do respectivo quadro jurídico de actuação. O direito privado esgotava, pois, Isto é, com o seu carácter não imperativo, a lei limitava-se a recolher e a fornecer um quadro
que era o da actividade negocial privada típica, um conjunto das fórmulas negociais mais fre-
quentes, procurando assim, e apenas, facilitar aos sujeitos a formalização dos seus interesses
de acordo com regimes que a prática negocial privada aprovara e adaptara.
74
70 V. Vital Moreira, A Ordem Jurídica do Capitalismo, op. cit., pág. 94. Direito público que, na sua origem, é também ele referenciado aos esquemas conceituais
71Numa análise exclusiva da natureza das normas que integram o campo de direito civil, afirma do direito privado, este, direito paradigmático nos seus critérios e instrumentos. O Estado,
Rosário Nticolà que «as normas de diversa inspiração e derivação se ordenam numa unidade, poder que se opõe à liberdade dos cidadãos, tem a legitimidade contratual da livre alienação
constituem o sistema normativo unitário de uma certa categoria de situações e, pela matéria desse poder pelos seus detentores, os próprios cidadãos. A esfera desse poder alienado é, no
regulada e pelo resultado que produzem, ou seja pelo seu aspecto dinâmico, elas reentram entanto, extremamente restrita: sendo a economia um negócio privado, todo o direito é, ten-
num sistema de direito civil modernamente entendido, isto é, liberto daquela preocupação, dencialmente, direito privado. , ·
frequente nos nossos estudiosos, de traçar uma tinha nítida de demarcação entre direito privado Daí que o direito público seja, na sua origem, e ainda hoje, largamente tributário do direito
e direito público e de identificar com o primeiro o direito civil», (Diritto civi/e, in Enciclopedia privado, com cujos instrumentos tem, em grande medida, de operar e a cujos esquemas tem,
dominantemente, de se subordinar.
dei Diritto, Vol. XII, op. cit., pág. 914).

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA
J\ INTERVENÇÃO PÚBLICA NO DOMÍMO ECONÓMICO PRIVADO

De mero reflexo de uma dada concepção económica do funciona- tivas e normas de direito público ou, como normalmente são designadas
mento social, ela converteu-se num instrumento defensivo dessa concep- no campo do direito privado, normas de ordem pública 77 • «Naturalmente a
ção e do seu pretenso carácter universal e a-histódco, contribuindo com inderrogabilidade denuncia muitas vezes a incidência de interesses sobre-
considerável êxito para a resistência que os sectores mais conservadores postos aos interesses individuais, mas isso pode ocorrer dentro do âmbito
manifestavam às restrições à propriedade e à iniciativa económica privada. daquele estabelecer de proporções entre interesses diversos e contraditó-
Em termos gerais, a forma como a completa separação dos domínios de rios que todos os institutos realizam, sem por isso sofrer uma modificacão
competência, reservados aos cidadãos (que estabelecem entre si rela- de natureza. Pode assim acontecer que a inderrogabilidade derive sim do
0

ções de um tipo particular, enquanto sujeitos livres e iguais) e ao Estado, carácter não individual do interesse que o legislador tinha em vista, mas
actua como suporte da coerência interna e imutabilidade do modelo pri- que esse interesse se identifique, no plano do mecanismo normativo, com
vado pode formular-se assim: as restrições que aos institutos clássicos do o interesse do indivíduo e se concretize, assim, na tutela deste último. Isto
direi~o privado a intervenção pública impõe têm um carácter anormaF5 é, pode acontecer que o interesse da colectividade exija, para ser tutelado
e uma excepcional justificação de interesse público, reconduzindo-se, e realizado, a realização e a tutela do interesse do indivíduo.
portanto, à esfera do jurídico em que este interesse se exprime - o direito A exigência supra-individual que se encontra decerto na base da norma
público. de intervenção e a inderrogabilidade da mesma não justificam porém a
O direito privado, o direito-regra, pode, pois, continuar a manter a sua conclusão de que se trata de disciplina publicística, e muito menos valem
unidade e o seu valor integrador de toda a realidade, alheado como é da para caracterizar adequadamente o fenómeno» 78 •
contingência das restrições impostas pela transformação sociaF6•
Esta qualificação publicista das normas restritivas da autonomia dos 5.4. Actualmente, como se disse, a crise da separação entre direito
sujeitos tinha por consequência uma identificação entre normas impera- público e direito privado é uma evidência imposta pela realidade jurídica79
embora as concepções mais vulgares de reintegração e «rearrumação» dos
75
dois domínios ainda se não consubstanciem num claro ultrapassar e refor-
A dificuldade em assumir (ou a deliberada recusa de o fazer) o reconhecimento da descon-
formidade do modelo com a realidade traduz-se na convicção de que todos os desvios àquele são
mular daquelas categorias conceituais: assim, a orientacão mais comum é a
recondutíveis a perturbações de natureza anormal, excepciona] e tendencialmente transitórias, que se pode rec()nduzir à fórmula «publicização do di;eito privado», mas
de forma que a disciplina por eles imposta há-de ser vertida em normas que se defende serem também não falta quem fale em recontratualização da vida económica, isto
de natureza ora especial, ora excepcional. Como diz P. Barcellona, as contradições existentes
~ ~enominação nmmas de ordem pública «é imprópria, sob um duplo aspecto: a) porque
77
ou reveladas num dado modelo económico são resolvidas ao nível jurídico «como problemas
de relações entre vários conceitos de nível diverso (mais ou menos geral)», (L 'educazione dei
o limite geral da ordem pública não se pode esgotar em pontuais limites relativos a normas
giurista, op. cit., pág. 144). espec~ficas; b) porqm!, recipr~camente, nem todas as normas cogentes podem reportar-se ao
Assim, a tendência restritiva do âmbito de eficácia teórica (e prática) das disposições limitati-
conceito de ordem pública. E necessário observar que o carácter de inderrogabilidade não
vas da autonomia dos privados foi, em grande medida, actuada pela distinção doutrinária - a é - segundo_ª doutrina comum - essencial às normas de direito público, de modo que não se
que O início da legislação interventora atribuiu particular relevo - entre lei geral e lei especial, podem considerar como pertencentes ao direito público as normas cogentes enquanto tais»,
regime-regra e regime-excepção, com as conhecidas consequências em matérias de interpre- ;alvatore Pugliatti, Diritto pubblico e p1ivato, in Enciclopedia dei Diritto, Vai. XII, op. cit., pág. 713.
8
tação e aplicação analógica. • P. Barcellona, lntervento statale e autonomia privata, op. cit., págs. 20 e 21.
9
Tomando este tipo de categorizações como um dado, procura-se hoje ultrapassar as dificuldades '. Em síntese, cite-se Stefano Rodotà: «Nem, enfim, o interesse público ou social pode ser
que ele acarreta, defendendo, por exemplo, que a proibição de aplicação analógica das normas
identificado com uma faixa externa às relações privadas, e por isso reservada á colectividade, ou
de carácter excepcional ê afastada sempre que esteja em causa o princípio geral da função social
reduzido a mero insnumento de modificação qualitativa desses mesmos interesses ín·dividuais,
(v., por exemplo, Stefano Rodota, Note e1itiche in tema di proprietà, in Riv. t1im. dir. proc. civ., 1960, pois naquele interesi;e deve sobretudo reconhecer-se o indício de uma ordem normativa que
pág. 1338, e Costantino Mortati, Istituzioni di diritto pubblico, II vai., op. cit., pág. lllS).
76
escapa doravante à esquematização tradicional direito público/direito privado», (Ideologie e
Pietro Barcel\ona, Diritto privato ..., op. cit., pág. 154. tecniche de/ia riforma dei diritto civile, in Studi in memoria di TullioAscarelli. Vai. IV, página 1857).

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A TUTELA CONSTJTUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA
A INTERVENÇÃO PÚBLICA NO DOMÍMO ECONÓMICO PRIVADO

é, numa espécie de reprivatização do direito públicoªº, ou em aparecimento «sociedade política» com a sociedade civil - é condição recíproca de exis-
de um direito comum da economia, um direito comum dos operadores tência ou, se se quiser, condição da existência da organização económica,
económicos públicos e privadosª1·ª2• 33 • social e política que o modo de produção capitalista supõe e de que não
Esta indecisão conceituai, como a preocupação reordenadora adentro prescinde, se isto é certo, então serão inúteis os esforços de qualificação
dos dois campos classicamente separados, a incapacidade, numa palavra, de
que não se situem dentro do quadro já traçado, isto é, qualquer tentativa
superação do recorte tradicional, ilude - mas, ao mesmo tempo, revela - a de ultrapassar a distinção será infrutífera.
oricrinária e persistente indissociabilidade dos conceitos direito público e
º- privado. Se é certo, como lucidamente mostra U m b erto C errom·34,
direito
que o direito público só é possível onde existe o direito privado, isto é, 6. O direito «público» e as relações económicas
que a coexistência destes dois níveis - como reflexo da coexistência da
Seja como for, o que se pode hoje tomar como assente é que o domí-
nio tradicional do direito público se acha em larga medida investido por
8o V., por exemplo, Mareei Laborde-Lacoste, Les Métamorphosesdu louage des immeublesin Mélan-

ges offerts à René Savatier, Paris, 1965, págs. 470 e segs., e autores aí citados.
problemas económicos e que a atenção dos P.ublicistas é mobilizada para
81
Cfr. Fracesco Galgano, Le istituzioni dell'economia capitalistica, op. cit., págs. 116 e segs., e M. S. uma problemática que, durante muito tempo, lhes foi alheia.
Giannini, Dlritto amministrativo, in Enciclopedia dei Diritto, Vol. XII, op. cit., pág. 866. Nas Constituições, a partir de 1919, surge recorrentemente um capítulo
2
8 «Deve no entanto observar-se [...] que a massa dos interesses públicos varia continuamente, definidor do estatuto da organização económica da sociedade nas suas
com as estruturas dos diversos agrupamentos sociais e as exigências que "vão surgindo e se linhas básicas, encontrando-se, lado a lado com os tradicionais direitos de
impõem. E assim, na época moderna, tem-se assistido a um aumento notável da esfera ~os
liberdade, um conjunto de direitos que visam a satisfação de necessidades
interesses públicos, em relação com o aumento das funções do Estado, e, pela progressiva
restrição, em geral, da esfera dos interesses privados, falou-se de uma publicização do direito
essenciais e implicam e exigem a intervenção do Estado na vida económica
privado. Mudam, porém, também os diversos tipos de interesses, as formas da sua satisfação, as e social - quer criando serviços de prestação de bens e actividades, quer
respectivas relações: daí que nem tudo se possa resolver na alternativa da correspectiva extensão orientando e controlando a actividade económica privada, quer ainda
e restrição das suas esferas, porque se pode ainda assistir ao fenómeno da expansão de uma, intervindo directamente nas relações jurídicas intersubjectivas para aí
em dados sectores, e da outra, noutros sectores. Quem queira apreender esta dinâmica deve assegurar a realização do direito ou a não afectação dele.
procurar descrever, na sua complexidade e nos seus aspectos salientes, a fisionomia de uma
Grande parte das disposições constitucionais das modernas Consti-
dada colectividade num determinado momento histórico, atribuindo às distinções, como esta
de que nos ocupamos, a modesta função orientadora que possam ter, sem perder de vista a
tuições fornece, pois, um conjunto de indicações mais ou menos precisas
realidade concreta, com os problemas que coloca e as soluções que sugere e, por vezes, impõe», no que respeita à autonomia privada, ainda quando, como é o caso da
Salvatore Pugliatti, Diritto pubblico eprivato, in Enciclopedia dei Diritto, Vol. XII, op. cit., pág. 741. Constituição portuguesa em vigor, nelas se não encontra uma norma que
8
3 Desta oscilação se tem ressentido o próprio conceito e a definição do objecto do direito expressamente a consagre, definindo o respectivo âmbito e limites 85 •
económico, que uns pretendem restringir ao direito público da economia, e outros entendem
recobrir o conjunto da vida económica em todos os seus aspectos - e, dentro destes últimos, 85
Pode dizer-se, aliás, que, de certo modo, a colocação dos problemas da intervenção estatal-
ainda é possível distinguir entre os «privatizadores», que defendem ou ser o direito económico
embora, em concreto, tenha seguido um percurso iniciado no direito privado e que deriva depois
uma mera extensão do direito comercial, ou ter ele como base não o direito comercial em sentido
para o direito público - se impôs aos privatistas em consequência do seu assumir constitucional
clássico mas o direito da empresa, e os «ecléticos», que distinguem no direito económico um
e do carácter institucional e coerente que passa a revestir. Como diz Pietro Bar-cellona, contra
sector de normas de direito público, formalizadoras da intervenção dos poderes públicos na
as objecções de fragmentarismo, contraditoriedade e, portanto, impossibilidade de identificar
vida económica e um sector misto de normas relativas às instituições jurídicas fundamentais da
uma natureza própria e consequente na intervenção, impôs-se «a indiscutível observação de
actividade económica pública e privada. V. Alex Jacquemin e Guy Schrans, Le droit économique,
que o fenómeno já assume hoje proporções imponentes e que, em qualquer caso; embora
op. cit., pág. 85. _
84
tendo as várias disposições normativas origem em casos particulares, elas vêm, no entanto,
V. La /ibertad de los modernos, tradução espanhola do original italiano, Barcelona, 1912,
a situar-se sempre dentr? do quadro geral traçado em matéria de relações económicas pelas
págs. 84 a 86.
normas constitucionais, E justamente neste quadro, de facto, que o fenómeno da intervenção

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA
A INTERVENÇÃO PÚBLICA NO DOMÍMO ECONÓMICO PRIVADO

Por outro lado, no campo do direito administrativo, é particular- 7. A importância da Constituição


mente evidente o desenvolvimento - quantitativo e qualitativo, como diz
G. Farjat86 - do direito económico. 7.1. Como já se referiu, as parcelares e localizadas intervenções legis-
Também nos ramos tradicionais do direito privado se fazem exten- lativas no domínio da área de «imunidade» dos sujeitos económicos pri-
samente sentir as consequências da intervenção estatal, traduzindo-se vados começam a ganhar um sentido de unficação e de coerência a partir
na aplicação de critérios de interesse e ordem pública ou na actuação de da expressão nas leis constitucionais de princípios que, preservando o
interesses de natureza social. mercado, legitimam a intervenção estatal essencialmente por duas for-
Finalmente, dentro do espaço específico de acção reservado aos tribu- mas88: pela interferência na sua forma de funcionamento, quer impondo
nais, encontra-se uma ampla possibilidade de controlo do âmbito e termos
da actuação resultante da autonomia privada87 • indemnização, ou ainda à possibilidade de alterar o contrato ou, pura e simplesmente, resolvê-
-lo, verificadas dadas circunstâncias.
Das três formas que a intervenção judicial pode assumir, a segunda enunciada reconduz-se
está destinado a perder as características de contingência e a assumir outra, bem mais signi- ao estudo da identificação teórica dos deveres impostos pela ordem pública, bons costumes e
ficativa, de elemento estrutural e característico do ordenamento vigente», (Intervento statale e boa fé e das consequéncias jurídicas da ofensa destes; a terceira forma centra-se no estudo da
autonomia prívata, op. cit., pág. 13). modificação ou resolução dos contratos por alteração das circunstâncias.
86
Droit économique, op. cit., págs. 32 e 33; v. também André de Laubadere, Droit public économique, Desde logo o prime:iro tipo de intervenção, de longe o mais frequente, parece comportar
op. cit., págs. 104 e segs. possibilidades à primeira vista insuspeitadas: não só quanto à interpretação do necrócio se vêm
87
Como já se referiu, não tiveram apenas formulação legislada estrita as intervenções ocorridas acentuando as tendências de carácter objecti-vista e actualista (v., por exemplo, Tullio Ascarelli,
na esfera da autonomia privada: também através das cláusulas gerais - a boa fé, a ordem pública, Norma giuridica erealtà sociale, in Problemigiuridici, op. cit., Tomo I, págs. 69 e seguintes) como, em
a equidade e os bons costumes - se tem procurado legitimar, embora com um alcance dominante matéria de integração, se ultrapassou o recurso à vontade hipotética, para se afirmar o enten-
ou quase exclusivamente negativo, a intervenção do juiz nas manifestações da vontade privada dimento de que os seus instrumentos haviam de ser recolhidos no meio jurídico, económico
incompatíveis com a ordem económica e social, que ao Estado cabe defender e assegurar. e social em que o negócio se insere e, finalmente, para a afirmação de que a integração não
Mas sempre a justificação da invocação de princípios gerais limitadores da autonomia privada se encontra dependente da existência de lacunas. Esta afirmação altera em grande medida as
radicava na defesa da própria liberdade. Ou seja, reconhecida a impossibilidade do autoequi- relações entre interpretação e integração, tendendo a distinção a ser desvalorizada ( v. Stefano
líbrio e da autodefesa do sistema, a lei (ou o juiz) intervinha, colocando barreiras ao exercício Rodotà, LeJonti di irztegrazione dei contralto, op. cit., págs. 7 a 9). É nesta linha que, se bem que
dos direitos a fim de conquistar o espaço necessário ao exercício dos direitos de todos. em termos de certo modo limitados pela própria lei alemã(§ 157 BGB), a doutrina alemã tem
Relativamente à ordem pública, diz Philippe Malaurie que dela «a primeira concepção era a defendido a legitimidade da interpretação integradora do contrato (v. Karl Larenz, Derecho de
que dominava no século XIX, em que se considerava que as restrições à liberdade apenas se Obligaciones, op. cit., págs. 117 a 121).
88
justificam na medida em que são necessárias à manutenção da liberdade»; e citando Huc: «A A importância da Constituição no domínio reservado do direito privado em geral, é acentuada
liberdade, implicando o respeito da liberdade de outrem, implica por consequência a ordem por Stefano Rodotà nos seguintes termos: «... o valor de directivas internas do sistema privatís-
pública», (L'ordre public et /e contrat, Reims, 1953, pág. 18). tico, assumido por al!.,>1.ms princípios constitucionais fundamentais, comporta a necessidade de
A intervenção do juiz tende a ser admitida com uma latitude sempre maior e ganha condições considerar justamente tais princípios com os dados fundamentais para a construcão do novo
de eficácia pelo tratamento teórico das chamadas cláusulas gerais, no uso das quais aquela sistema, alterando o critério de apreciação dos institutos que são entendidos codio sendo os
se processa. Com maior ou menor resistência, a doutrina foi sendo forçada a admitir que em fundamentais da ord,ern civilística, em primeiro lugar, da autonomia privada, da propriedade e
muitos casos só face às circunstâncias concretas se poderia formar e emitir um juízo de valor da da responsabilidade civil: estes, privados doravante daquele sicrníficado ordenador mais aeral
o o
situação, informado obviamente pelos princípios jurídicos que integram as referidas cláusulas que assumiam face a uma diferente hierarquia das fontes e a um diverso conteúdo dos textos
gerais; curiosamente, é a própria jurisprudência que mais pertinazmente tem, de uma forma constitucionais, devem ser examinados na particularidade de um ordenamento que vai muito
quer passiva quer activa, combatido a extensão dos seus poderes de intervenção. para além dos artigos do Código Civil», (Ideologie e tecniche de/la riforma de[ din'tto civile, in Studi in
A utilização dos instrumentos correctivos dos efeitos pretendidos pelos particulares por parte memória di Tullio Ascarelli, Vol. IV, op. cit., pág.1857). É este mesmo sentido de recursô e.os princí-
do juiz pode ir desde uma particular capacidade de intervenção na interpretação e integração pios constitucionais corno informadores do sistema privatístico que exprime Costantino Mortati
do regulamento contratual, à qualificação de uma situação não expressamente prevista pela lei com o conceito de ordem pública e o âmbito de utilizabilidade que lhe define, V. Considerazioni
como ilícita, com o consequente decretar da sua invalidade e/ou da existência de um direito a mlla tutela de/ia liberto. ..., cit., in Problemi di diritto pubblico ... Scritti. III, op. cit., págs. 343 e 344.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVi\Di\
A INTERVENÇÃO PÚBLICA NO DOMÍMO ECONÓMICO PRIVADO

um máximo aproveitamento dos recursos ou uma máxima produtivi- de eficácia jurídica à vontade privada no sector econo'm• _
dade dos meios de produção, quer assegurando, pelo funcionamento e1a se1a· 1m.e
· d'iata, quer mediata; 1co quer
dos mecanismos privados, uma melhor satisfação de interesses sociais l0 Identificando nas normas constitucionais os princípios de lea·t· _
de natureza essencial, quer integrando os mecanismos privados na pros- - d · - 0 1 1ma
çao a mtervençao estadual nas relacões interprívadas·
secução de objectivos globais, quer contrabalançando, pela tutela de e) Defin_ind~ os campos e_ o_s _termos e~1 que se encont;a garantida,
um dos contraentes, o «poder» da contraparte, quer salvaguardando no conS t ituci,~nalmente, a m1c1ativa económica privada e analisando-a
domínio das relações interprivadas a eficácia dos direitos fundamentais, no seu reg1me e evolução tendêncial.
quer ainda violentando a vontade, já não pelo que toca ao seu conteúdo,
mas quanto à sua própria existência; outra forma interventora consiste na
subtracção à relação de mercado de certos bens ou prestação de certos
serviços.
Costuma reservar-se a expressão «limitações à autonomia privada» para
recobrir os fenómenos de determinação, por via autoritária, da medida do
poder concedido aos privados para regular os seus interesses através do
contrato, isto é, para as formas interventoras do primeiro tipo enunciado;
mas é óbvio que as formas de retirar à iniciativa económica privada a pos-
sibilidade de se expressar em dadas actividades constituem ainda uma
manifestação de limitação daquela autonomia. A especificidade desta forma
consistirá, por um lado, no facto de ela incidir sobre sectores globais ou
tendencialmente globais, identificados pela natureza dos bens ou serviços
produzidos e, por outro, na consequência ( embora não necessária) emer-
gente da forma pública da sua gestão: a submissão a critérios produtivos
de natureza diversa do critério privado de maximização do lucro.

7.2. A questão que se coloca é, pois, a de saber se, num dado ordena-
mento e numa dada época, na lei ( e, principalmente, na lei constitucional,
a fonte do direito hierarquicamente superior numa dada ordem jurídica),
a vontade privada representa ou não o motor da produção e circulação
dos bens ou se ela é subalternizada, quer pela sua circunscrição a certos
sectores da actividade económica, quer pelo seu tratamento como um
instrumento de realização de interesses alheios aos das partes - conco-
mitantemente com a realização destes ou mesmo prescindindo desta. E
a solução para esta questão há-de ser procurada, simultaneamente, por
três vias:

a) Determinando se a autonomia privada é assumida como um princípio


constitucional, isto é, se na Constituição se encontra uma garantia

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Capítulo IV
AConstituição de 1976 eoseu Quadro Económico

1. A Constituição portuguesa de 1976 - as linhas gerais da concepção


do papel do Estado na vida económica

1.1. Na perspectiva em que a análise da Constituição portuguesa inte-


ressa ao tema de que me tenho vindo a ocupar, parece-me serem dois os
traços gerais ma:is marcantes e carregados de consequências.
Em primeiro lugar, o projecto político da Constituição de 1976 assume
deliberadamente um dado projecto económico e social como seu fun-
damento e condição. A originalidade não se situa no condicionamento
económico e social da realização dos objectivos políticos, mas no declarar
expresso desta situação que sempre é verdadeira, seja qual for o projecto
e sejam quais forem as suas condições 89 •
Em segundo lugar, o texto constitucional é também deliberadamente
um projecto e não apenas um estatuto: isto é, não se limita a definir regras

89
«Porque a economia é uma das dimensões da sociedade e porque o poder político não lhe
pode ser estranho, não há Constituição que, explícita ou implicitamente, directa ou indirecta-
mente, deixe de a considerar, seja para a conservar, seja para transformar os seus condiciona-
lismos ou a sua lógica própria. Não há Constituição em sentido material que não cómpreenda
uma Constituição económica, mesmo quando a Constituição em sentido formal ou em sentido
instrumental a parece ignorar», Jorge Miranda, Introdução aAs Constituições Portuguesas, Lisboa,
1976, pág. XXX.

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A CONSTITUIÇÃO DE 1976 E O SEU QUADRO ECONÓMICO
r\ TUTELA CONSTITUCIONAL DA r\UTONOM!i\ PRIVADA

da ~voluçã~ ~ pelo seu carácter genérico e receptivo dentro de princípios


de organização política, económica e social para a formação social p~rtu-
mmto su1:1anos de um qualquer sentido dessa evolução-, mas adaptada,
guesa, mas apela, ou melhor, impõe um programa de transformaçao d~
se cumprida, no seu objectivo normativo projectado no futuro.
sociedade. Mais uma vez, a originalidade não reside apenas no facto em s1,
mas, em alguma medida, no seu assumir deliberado: a função normativa
1.2. Porém, importa dizê-lo, existe neste ponto uma especificidade
de qualquer texto constitucional implica alguma projecção programáti~a
importante do texto constitucional português: se é verdade, como se disse
no futurn 90,91 • Toda a sociedade está em constante mutação, e a adequaçao
que a generalidade das constituições traduzem projectos de transformacã~
e longevidade de um texto constitucional dependem, em grande medida,
social ou, pelo menos, projectos abertos a essa transformação, també~ é
da sua capacidade de definir o respectivo projecto como um projecto de
certo que tais transformações são, comummente, transformacões sociais
transformação ou, ao menos, como um projecto aberto à transformação.
e económicas quantitativas e não qualitativas, o que não acon°tece com 0
Ora, na Constituição de 1976, a transformação não é apenas um pressu-
projecto transformador da lei portuguesa.
posto, nem sequer um dado: é uma realidade que se pretende conformar
Isto é, programam-se ou integram-se as alterações comportadas por um
de forma coerente com as ideias centrais que a informam. Por isso que
modelo de organização económico-social dado, mas não as que excedem
não seja uma Constituição adaptável, enquanto se demite da disciplina
esse â_mb~to, cuja instalação pressupõe, pois, uma substituição legislativa
c?n~t1tuc10nal. Ora, o que se passa na Constituição portuguesa é que ela
90 o termo programático é aqui usado na sua acepção geral, isto é, enquanto indicativo da visa JUStamente, em grande medida, uma transformacão do modelo apon-
prefiguração de uma dada orientação para o desenvolvimentode uma ordem jurídica, acepção tando no sentido da construção de um outro, de na~reza socialist~.
em que se pode dizer que todos os princípios gerais, «seja qual for o âmbito da sua eficácia e os Logo os artigos lº e 2º reflectem de forma clara o que foi dito: por um
meios através dos quais se desenvolvem», são programáticos (cfr. C. Morta ti, Problemi di diritto lado, afirma-se c1ue a República Portuguesa se encontra «empenhada na
pubblico . ... in Scritti, III, op. cit., pág. 209). sua transfom1ação numa sociedade sem classes» e que «tem por objectivo
91É, porém, necessário distinguir entre dois tipos de atitudes constitucionais, condicionadas,
assegurar a transição para o socialismo» e, por outro, desde logo se declara
respectivamente, por realidades sociais e políticas diferentes. Sobre esta questão, diz Costan-
- como elemento caracterizador do socialismo e como condição da sua
tino Mortati:
«Qualquer constituição tem a função de garantir um certo tipo de organização das relações r~a.lização - q~~ tal objectivo se alcançará criando «condições para o exer-
intersubjectivas, isto é, é estabelecida como instrumento de garantia de uma dada ordem c1c10 democrat1co do poder pelas classes trabalhadoras»· a concretizacão
económico-social. Esta função é realizada de maneira diversa, consoante a constituição surja do que sejam estas condições encontra-se com alguma ~inúcia realiz;da
num momento em que tal ordem já se tenha de certa forma estabilizado, tenha entrado num
e_m diversos momentos do texto constitucional: são elas condições polí-
estado de equilíbrio relativamente fixo, em torno de formas típicas, pacificamente aceites pela
maioria das forças sociais predominantes, ou ao contrário, surja durante um processo ainda
ticas ~v·,. por exemplo, arts. 9º alíneas a) e b), 112º, 117º, 118º), condições
não realizado de transformação, isto é, quando as velhas formas de organização social sejam econom1cas (v., por exemplo arts. 9º alíneas a) e e) 10º nº 2 50º 55º 56º
contestadas, não apenas no campo ideológico, mas no terreno da luta política, sem que, no
80º-, 81 º-, 83 ,-º n-º 1, 90º, 96º, 104º)
' e condições;culturais
' (v., 'por 'exemplo,
' '
entanto, se tenham ainda desenhado claramente de forma positiva as novas orientações e antes, arts. 73º, nºs 2 e 3, 74º).
portanto, que tenham podido tomar corpo os institutos destinados a substituir-se ao~ an~gos.
Enquanto as constituições do primeiro tipo podem prescindir de uma expressa determmaçao da
forma da estrUtura social, na medida em que esta existe de forma subtil na consciência comum,
e já não é objecto de oposição interna[...); ao contrário, as constituições do segundo tipo não
2. O significado da previsão da inconstitucionalidade por omissão
podem deixar de reflectir o contraste existente entre as forças sociais que intervêm na sua for-
mação: elas têm, portanto, de integrar elementos de duas realidades diversas: uma existente, 2.1. Como características subordinadas das que foram sumari'âmente
mas corrompida pela crítica, que mostra as suas insuficiências e pede a sua superação, e outra enunciadas, temos duas outras que, embora sem funcionarem como infor-
que ainda não emergiu nas suas linhas definitivas, mas que está viva como exigência difusa na madoras directas do quadro económico constitucional - no sentido de que
consciência comum», Problemi di diritto pubblico ... , cit., op. cit., pág. 15.
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A CONSTITUIÇÃO DE 1976 E O SEU QUADRO ECONÓMICO
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA

delas se não podem retirar indicações directas para a configuração consti- De facto, o incumprimento constitucional pode traduzir-se, de igual
tucional dos sectores de actividade económica presentes na sociedade-, modo, numa actuacão .:, positiva como numa actuacão.:, neaativa
o ' ou se1·a '
têm, no entanto, uma relação importante com alguns aspectos da regula- numa omissão ou insuficiência93 , sendo certo que este segundo tipo de
mentacão constitucional do domínio da actividade económica e, particu- inconstitucionalidades, para o comprometer da actuação e eficácia de
larme~te, com o papel que ao Estado é atribuído para realizar o projecto uma lei constitucional, será tanto maior e mais grave, quanto maior for o
desenhado na Constituição, por um lado, e com a nan1reza essencial ou carácter directivo da lei em causa94 •
acessória dos preceitos constitucionais neste domínio, por outro. A Constituição portuguesa impõe não só múltiplas tarefas ao Estado
Refiro-me, em primeiro lugar, ao mecanismo da verificação da inconsti- - cuja realização se encontra dependente de uma intervenção positiva e
tucionalidade por omissão e, em segundo, aos limites materiais de revisão normativa - como procura, pois, por esta via, controlar o efectivo desem-
constitucional.
penho dessas tarefas, confiando ao Conselho da Revolucão a faculdade 95 .
2.2. Quanto ao primeiro, importará, mais uma vez, acentuar que ele extensão deste conceito e da sua relevância jurídica a outros actos do poder político, como os
não traduz a descoberta de um fenómeno novo, mas antes que, partindo actos políticos «stricto sensu», além de não ser corrente· nas Constituicões modernas e con-
da constatacão de uma realidade recorrente em muitos sistemas constitu- temporâneas, implicaria juízos de mérito extremamente melindrosos. Daí a redução prática
cionais, rep~esenta a institucionalização de um instrumento - ainda que da inconstitucionalidade por omissão à ausência de medidas legislativas indispensáveis para
conferir exequibilidade plena a normas constitucionais», (Marcelo Rebelo de Sousa, Direito
de eficácia duvidosa92 - de combate a essa realidade. Constitucional, I- Teoria da Constituição, Lisboa, 1979, pág. 370).
Aliás, o art. 279º «par,::ce limitar a fiscalização da inconstitucionalidade por omissão aos casos de
91 Como observa Jorge Miranda, «este tipo de fiscalização assume uma acentuada complexidade, omissão de medidas legislativas, traduzindo-se em recomendações apenas aos órgãos legislativos».
por a inconstitucionalidade por omissão se situar nas fronteiras da liberdade de decretação Vital Moreira, Gomes Canotilho, Constituição da República Portuguesa Anotada, op. cit., pág. 499).
93
que é apanágio do poder legislativo e do dever de legislar a que está sujeito em alguns casos. A V. Parecer da Comissão Constitucional nº 4/77, de 8 de Fevereiro de 1977, publicado em
eficácia dos resultados dessa fiscalização vem a ser, pois, função disso: tem de se colocar muito Pareceres da Comissão Constitucional, lº Volume, Lisboa, 1977, págs. 77 e segs.; Jorge Miranda,
mais no domínio do político do que do jurídico», Inconstitucionalidade por omissão, in Estudos sobre Inconstitucionalidade por omissão, in Estudos ... , op. cit., págs. 341 a 349.
94
A questão não se esgota na dimensão negativa da inactuação de algumas normas constitu-
a Constituição, lº Volume, Lisboa, 1977, pág. 334.
Mas, como o mesmo autor nota, «nem a virtual ineficácia quer da iniciativa[...], quer da decisão cionais, pois não pode ignorar-se que esse incumprimento omissivo assume um significado
positivo de alteração constitucional tácita - V. neste sentido, C. Mortati, Appunti per uno studio
de fiscalização [...] afecta o sentido jurídico do instituto» (op. cit., pág. 340).
Além de que a importância da expressa previsão de um mecanismo de verificação das incons- sui rimedi giurisdiziona li contra comporta menti omissivi dei legisla tore, in Problemi di diritto pubblico ... ,
titucionalidades, materializadas em omissões legislativas, excede os limites da sua própria Scritti III, op. cit., pág. 926, nota 2.
95
eficácia. Ela representa um ultrapassar consequente de uma concepção recuada - ligada à de Utiliza-se o termo faculdade para designar a forma de exercício da competência de fiscali-
Estado formal de direito -do âmbito de submissão do Estado à Constituição. Não obstante a zação do cumprimento da Constituição, atribuída nos arts. 146º, alínea b) e 279º, ao Conselho
maior parte das modernas Constituições consubstanciar uma superação da tradicional fun- da Revolução, por parecer que se trata da qualificação jurídica mais correcta da situação, não
ção de limitação do poder que lhes era atribuída, a doutrina continua a manifestar extremas se querendo, no enta:nto, deb:ar sem colocação os problemas que ela envolve. E estes situam-se
reservas à possibilidade de a inactividade do legislador se encontrar submetida a um controlo em dois planos: o da iniciativa do suscitar da questão da inconstitucionalidade por omissão e o
de constitucionalidade, descurando a força das imposições constitucionais de facere e dissol- da decisão de emitir a recomendação de legislar aos órgãos competentes, visando obter o cum-
vendo aquelas num conceito de normas programáticas ex1:remamente vago e desprovido de primento constitucional. Quanto à primeira das questões, parecem admissíveis, em abstracto,
características vinculativas (Cfr. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Coimbra, 1978, duas posições: a de entender que a iniciativa da colocação da questão da inconstitucionalidade
por omissão é da competência exclusiva do Conselho da Revolução, ou a de defender que aos
págs.176 a 180 e 388 a 393).
E, note-se, este problema circunscrve-se à possibilidade de controlo da inconstitucionalidade cidadãos, individualmente, ou através de organizações representativas, cabe o dirêito de sus-
por omissão dos actos de natureza legislativa, quando é certo que não há, juridicamente, citar essas questões junto do Conselho Revolução, utilizando, nomeadamente, o instrumento
razão para operar esta restrição. «Em rigor, seria possível falar de inconstitucionalidade por que o art. 49º, nº 1 da Constituição lhes faculta. Embora de uma forma pouco clara, Gomes
omissão relativamente a actos do poder político de natureza não legislativa. Simplesmente, a Canotilho parece inclinar-se para a ideia de reconhecer «às organizações políticas e sociais

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOlvl!A PRIVADA A CONSTITUIÇÃO DE 1976 E O SEU QUADRO ECONÓMICO

de recomendar aos órgãos legislativos competentes a emissão, em tempo


razoável, das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as
normas constitucionais96 •
um papel activo no controlo das omissões legislativas, admitindo, por exemplo, um recurso
directo perante o Conselho da Revolução ... », (Direito Constitucional, op. cit., pág. 391 e nota 13
da pág. 392). O mesmo autor e Vital Moreira, na Constituição da Rep!Íblica Portuguesa Anotada,
pronunciam-se no sentido de que «a iniciativa para desencadear o processo de fiscalização da tituição, têm uma natureza diversa, sendo a primeira uma «actividade devida: o Conselho,
inconstitucionalidade por omissão compete apenas ao Conselho da Revolução», acentuando que não pode nunca tomar a iniciativa de a desenvolver, está adstrito a levá-la a cabo quando
que «nada impede, porém, que os cidadãos, individual ou colectivamente, ou através das suas a isso solicitado nos termos constitucionais», enquanto a segunda corresponde a um «poder
organizações, possam, através do direito de petição (art. 49º/l), solicitar ao Conselho da Revo- discricionário quanto à oportunidade do seu exercício - o que se justifica pela carga política
lução que tome essa iniciativa» (pág. SOO). envolvida no juízo sobre o tempo e o modo que caracterizam o incun1primento da Constituição
Esta segunda parece ser também a posição de Jorge Miranda, que, no seu já citado estudo sobre por omissão e bem assim na escolha do momento azado para tentar pôr cobro a esse incumpri-
a inconstitucionalidade por omissão, afirma: «Ao Conselho cabe a iniciativa do processo, soli- mento». Concluindo, com estes fundamentos, pelo não reconhecimento «às entidades referidas
citando à Comissão parecer sobre a existência de eventual violação de normas constitucionais no nº l do art. 281º da Constituição [d]o poder de se substituírem ao Conselho da Revolução,
por omissão; a iniciativa pode ser suscitada por exercício do direito de petição nos termos gerais na iniciativa de pôr em marcha o mecanismo previsto no àrt. 279º», admite, porém, a Comissão
do art. 49º», (in Estudos sobre a Constituição, lº Volume, pág. 339). que o Conselho da Revolução possa tornar em consideração requerimentos de cidadãos ou
A este propósito, convirá recordar a doutrina que a Comissão Constitucional tem acolhido, de organizações sociais, que, suscitando uma questão dê omissão constitucional, lhes sejam
embora em matéria de legitimidade para suscitar a questão da inconstitucionalidade por acção. transmitidos pelas entidades referidas no art. 281º, nº 1, decidindo, «por autoridade própria,
Tem entendido que a competência para solicitar a apreciação da constitucionalidade de uma debruçar-se sobre a questão». Tal orientação comporta, como é óbvio, a consequência da admis-
norma cabe em exclusivo às entidades referidas no nº l do art. 281º, excluindo a Constituição a sibilidade do suscitar directo perante o Conselho da Revolução de questões de incumprimento
possibilidade de uma acção directa de constitucionalidade exercida pelos cidadãos, individual constitucional omissivo, por parte dos cidadãos - em utilização do direito consagrado no art.
ou colectivamente, perante o Conselho da Revolução, pelo que as entidades que receberem 49º, nº 1 da Constituição-, sendo certo, embora, que o Conselho da Revolução decidirá sobre
petições, formuladoras da dúvida sobre a constitucionalidade de uma norma, não podem actuar a procedência e a oportunidade da questão e, só se o entender justificado, solicitará o parecer
como «mera instância de trânsito e de processamento das petições dos cidadãos, competindo- da Comissão Constitucional, nos termos do art. 284º, alínea b), da Constituição.
-lhes sempre apreciar da pertinência da questão», e, caso concluam pelo seu fundamento, farão Cfr. Pareceres da Comfssão Constitucional, Sº volume, Lisboa, 1979, págs. 26 e segs., e declaração
suas as dúvidas expostas, tudo sé passando como se os fundamentos do pedido de apreciação da de voto de Jorge Miranda, em sentido diverso, págs. 36 a 38.
constitucional idade fossem os da entidade competente. Justifica-se esta posição, como sendo, Por outro lado, coloca-se o problema de saber em que termos deve ser exercida a competência
a um só tempo, apta a satisfazer «tanto a necessidade de garantia (que recomenda, em caso que ao Conselho da Revolução é atribuída pela alínea b) do art. 146º da Constituição.
de dúvida fundada, que o órgão de fiscalização seja chamado a intervir) como a necessidade e Sobre esta questão pronunciou-se também a Comissão Constitucional, no seu Parecer
vantagem de não ficar este órgão repleto de petições, as quais, saturando-o, o desviem da sua nº 8/77 (publicado no lº Volume de Pareceres... , Lisboa, 1977, págs.145 e segs.), dizendo que o
actividade específica». art. 279º «deixa o Conselho da Revolução juiz da conveniência ou da oportunidade de emitir a
V. Parecer nº 2/78, de S de Janeiro de 1978, publicado em Pareceres da Comisslío Constitucional, recomendação tendente a fazer cessar a violação da lei fundamental, tal como o torna o único
4º Volume, Lisboa, 1979, págs.151 e 152; v. ainda Parecer nº 1/78, de 3 de Janeiro de 1978, ibid., juiz da conveniência ou da oportunidade de desencadear o processo tendente a apreciar a exis-
págs.139 e 140. tência dessa violação». Significa isto que, uma vez suscitada a questão, e emitido parecer pela
Sendo esta a doutrina adoptada relativamente à fiscalização da inconstitucionalidade por acção, Comissão Constitucional no sentido da existência da violação de normas constitucionais por
não se vê razão para não aplicar solução análoga quando a inconstitucionalidade se funde numa não edição de medidas legislativas, cabe ao Conselho o poder de, discrícionaríamente, ajuizar
omissão ou numa insuficiência legislativa. da conveniência de emitir a recomendação, ponderando politicamente as circunstâncias que
E, efectivamente, no Parecer nº 9/78, a Comissão coloca a questão de saber se as entidades que entender relevantes.
96
têm competência para suscitar o problema da inconstitucionalidade de uma norma, também Aliás, esta preocupação de garantia de eficácia das disposições constitucionais manifesta-
poderão levantar a questão do incumprimento de uma disposição constitucional, por carência -se também no expresso atribuir de eficácia preceptiva imediata a muitas delas,'tdiminando
de medidas legislativas adequadas a dar-lhe exequibilidade. Afirma a Comissão a este respeito liminarmente dúvidas, cujo suscitar tivesse por objectivo ou por consequência a não actuação
que «a letra do art. 281º, nº 1, por certo exclui esta solução» e que, além disso, as actividades do de normas constitucionais de importância fundamental.
Conselho da Revolução, previstas respectivamente no art. 281º, nº 1, e no art. 279º da Cons- Assim, por exemplo, os arts.18º, nº 1, e 17º.

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A CONSTITUIÇÃO DE 1976 E O SEU QUADRO ECONÓMICO

Existe, pois, na Constituição portuguesa um instrumento pre- o que, na seguinte revisão, seria já lícito proceder, sem restrições, à refor-
visto que, não representando afinal mais do que uma concretização mulação de todo o texto constitucional10°, 101 • .

do princípio da subordinação do Estado à Constituição (art. 3º, nº 4), Se assim fosse, os conceitos de revisão e substituição não seriaifi distin-
é - independentemente da sua operatividade real - um claro índice tos - e isso quer existam limites expressos, quer não os haja explicitamente
da importância que a lei atribui ao papel do Estado na realização do declarados. Sem a pretensão - que obviamente se situaria fora do âmbito
modelo económico e social previsto. Deve assinalar-se que o instru- deste trabalho - de discutir aprofundadamente o problema, sempre se
mento constitucional de controlo das omissões - com a sua limitada dirá que a evidência da dependência histórica de um texto constitucional
eficácia - tem privilegiado campo de aplicação nas chamadas omis- da subsistência na colectividade a que se dirige do projecto político que
sões absolutas, não precludindo as vias de reacção contra as omissões o informa, não basta para resolver em sentido negativo o problema do
relativas97 • carácter absoluto dos limites materiais de revisão constitucional. Mas, da
correcta concepção da inadmissibilidade de um poder constituinte que
tenha a virtualidade de, de uma vez por todas, alienar a soberania popu-
3. O significado dos limites materiais de revisão constitucional lar, impondo para todo o sempre um dado modelo político, económico e
social, não pode, com evidência, resultar que o poder constituinte de revisão
3.1. No que respeita ao estabelecimento de limites materiais de possa ser convolado num poder constituinte de supressão e substituição do
revisão constitucional, tal disposição só pode ser interpretada no sen- texto constitucional102 •
tido de que a Constituição assume e declara a sua própria identidade, Se a alguns parece correcto contestar até a possibilidade de diferenciar
especificando, totalmente ou não, os seus traços configuratórios essen- da lei ordinária a própria Constituição fundamental1º 3 compreende-se que
ciais, sem os quais não será ela uma Constituição revista, mas outra mais evidente surja a defensabilidade da posição daqueles que identificam
Constituicão 98• o poder constituinte originário com o poder de revisão. .
«Uma ;Iteração total, se faz desaparecer até o núcleo central que carac- Analise-se ta]. ponto de vista.
teriza uma constituição histórica, não pode ligar-se a esta, não bastando Desde logo, se pode dizer que ninguém duvidará que a primeira posi-
para tanto que ela tenha tido lugar segundo as formas predetermina- ção, se pretender situar-se dentro dos quadros de uma Constituicão rfaida
das por esta. A experiência histórica comprova a exactidão daquilo que , e '
não tem sentido - pois este não pode deixar de ser um sentido crítico da
se afirma e mostra como as revisões totais têm sido sempre revolucio-
nárias»99.
Neste sentido, parece difícil aderir à ideia de que a disposição do artigo
100
290º não impede a sua própria eliminação em revisão constitucional, posto Esta tese, que tern sido actualmente retomada em Portugal (cfr. Jorge Miranda, A Cons-
tituição portuguesa de .1976, Lisboa, 1978, págs. 245 a 253), tem em Itália e na Alemanha uma
já longa história - V. autores citados por C. Mortati, op. cit., pág. 23, nota 30 e pág. 226, nota
187, e por Stefano Maria Cicconetti, La revisione della Costituzione, Padova, 1972, pág. 257,
nota 114.
101
E mb ora, como d·- U R · .
1,: go esc1gno, «em termos de facto tudo seja possível, mesmo fazer uma
97
Sobre esta questão, v. C. Mortati, Appunti per uno studio ... , cit., in Problemi di diritto pubblico ... , revolução fingindo que é uma reforma, mesmo mudar o ordenamento usando os instrumentos
Scritti III, op. cit., págs. 928 e segs. d? velho ordenamento», (Costituzione italiana estato borghese. Roma, 1977, pág. 22).
98 1
Ver neste sentido Jorge Miranda, Introdução cit., página XLVIll; ver também J. J. Gomes º- Como observa J. J. Gomes Canotilho, «o poder de revisão é um poder constituído' fi: não uma
Canotilho, Direito Constitucional, op. cit., págs. 424 a 430. novação do poder constituinte», (Direito Constitucional, 2~ edição, Coimbra, 1980, pág. 490); Cfr.
99
Costantino Mortati, Studi sul/a Costituzione e sul/a revisione costituzionale, in Scritti sul/e fonti dei C. Mortati, op. e toe. cit., págs. 227 e 228.
103
diritto e sull'interpretazione, Milano, 1972, pág. 14. Cfr. Costantino Mortati, Studi sul/a Costituzione ... , op. e loc. cit., pág. 5, e autores aí citados.

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A CONSTITUIÇÃO DE 1976 E O SEU QUADRO ECONÓMICO
l
1
1
104 Daqui resulta que o poder de revisão se encontra necessariamente i
própria Constituição em causa ; assim sendo, não resulta claro porque é
que em relação à segunda a mesma evidência se não impõe.
Analisar comparativamente o conteúdo essencial do poder constituinte
situado num plano inferior ao da própria Constituição, pois desta retira a
sua legitimidade e força vinculativa, por ela se encontrando condicionado !
originário e o do poder de revisão comporta - embora, na ausência de limi- tanto do ponto de vista formal como material. Como sintoma - porque
tes fom1 ais, o problema também se coloque relativamente às Constituições consequência - deste não nivelamento, é fácil observar que «enquanto a
flexíveis 105 - o aceitar do carácter rígido da Constituição em causa. Supõe, constituição está subtraída a qualquer possibilidade de controlo, a revisão
portanto, o colocar do jurista numa perspectiva interna à Constituição e não é certamente e sempre sujeita a controlo relativamente à observância dos
numa perspectiva crítica, destituída de valor interpretativo. Ora, partindo requisitos de forma prescritos para o seu exercício e pode ser também,
de tal pressuposto, parece indiscutível que o intérprete há-de respeit~r a sem qu~ isso contraste com a sua índole de poder constituído e derivado,
submetida, sempre que o direito positivo o permita, a controlo judiciário,
lei que interpreta. A pretensão de interpretar não pode ser - de boa fe ou
não - confundida com a de criticar uma posição legal da qual se discorda, onde seja garantido o respeito pelos limites substanciais» 108 , 109 •
E, em qualquer caso, sempre se notará que a soberania popular expressa
por mais fundada que seja esta discordância. . . . .
E se não se vê o colocar em causa da necessidade de respeitar os hm1tes no voto se tradm: num mandato cujos limites hão-de ser, caso a caso, mini-
' impostos constitucionalmente como pressuposto de validade da
formais mamente reconhecíveis pelo comum dos cidadãos. Não se pode defender,
a menos que declaradamente se assuma a noção como estritamente formal
lei de revisão, não se entende porque é que o problema se circunscreve
e destinada a legitimar quaisquer decisões que à sua revelia se pretendam
ao dos limites materiais.
Mas, mesmo numa perspectiva exclusivamente teórica e desvinculada tomar, em nome da soberania popular, que o sentido declarativo que o voto
do direito positivo, não parece correcto identificar a actividade constituinte e:x1Jri_me possa ser completamente deturpado e desvirtuado. É claro que
com a de revisão. Como muito bem observa Costantino Mortati, a equiva- este e um problema que sempre se colocará, sejam ou não os representan-
tes do corpo eleitoral investidos de poderes constituintes. Mas é inegável
lência destas duas fontes pressuporia a sua concorrência. E «a concorrência
em sentido próprio existe quando várias fontes retiram imediata e directa- que neste caso ele assume uma diferente gravidade, pois os mecanismos
mente de uma fonte superior a todas elas um poder normativo dotado de de sanção política inerentes ao regime democrático podem eles próprios
uma mesma eficácia, mas em posição tal que uma não possa influir sobre ser abolidos pela «revisão» constitucional.
as formas de manifestação das outras, situadas ao mesmo nível dela» •
106 Na medida - e ela é significativa - em que este problema transcende a
Ora «esta situação não se verifica quando a possibilidade que existe para discussão jurídica, por ser essencialmente político, ele há-de assumir-se
uma de se substituir à outra na disciplina da mesma matéria se encontre como tal e expressar-se pelas formas que lhe são próprias, incluídas aqui
subordinada à vontade de uma delas e esteja confiado a esta o fixar das as formas jurídicas que lhe sejam inerentes.
condições e dos critérios para o válido exercício do poder transferido por
3.2. Concretamente, pelo que toca à estrutura constitucional na parte
esta forma» 107 . que agora nos interessa, o art. 290º preserva da revisão constitucional «os
direitos, liberdades e garantias dos cidadãos; os direitos dos trabalhado-
res e das associações sindicais; o princípio da apropriação colectiva dos
10 -1 E nem nesta perspectiva faria sentido: mas este é um problema que se deixa agora por
principais meios de produção e solos, bem como dos recursos naturais e
discutir. '
10s Cfr. e. Mortati, op. e Zoe. cit., pág. 224; há autores, porém, que entendem que o problema

da revisão constitucional só pode colocar-se relativamente às constituições rígidas - cfr. P. 108


Costantino Morta1ti, op. cit., página 15.
Biscaretti di Ruffia, Diritto Costituziona/e. X edição, Napoli, 1974, pág. 225.
109 Contra a h"1erarqu1zaçao
. - d os po d eres constituinte e de revisão, v. Stefano Maria Cicconetti,
106 Op. e /oc. cit., pág. 12. La revisione della Costituzione, op. cit., págs. 227 a 254.
1
º' Ibid.
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66
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA
A CONSTITUIÇÃO DE 1976 E O SEU QUADRO ECONÓMICO

a eliminação dos monopólios e latifúndios; a planificação democrática da Assim, por exemplo, que democracia seja pluralismo e democracia polí-
economia; a fiscalização da constitucionalidade por acção ou omissão das tica, mas estes não correspondam tão-somente a fórmulas designativas da
normas jurídicas» ( cfr. alíneas d), e),f) g) e m)) 110 • organização do poder político, antes também a uma consequência da orga-
A importância destes limites na perspectiva do presente trabalho reside nização ( e da transformação) democrática do poder económico e social.
no facto de a Constituição explicitar quais dos princípios de caracterização Assim, que socialismo seja não apenas um dado modelo de organização
do modelo económico e social que define são os essenciais, permitindo- económica ( caracterizado pela transformação das relações de produção e
-nos assim circunscrever com clareza o núcleo fundamental e identificador de acumulação capitalistas, de que fala o artigo 91º, nº 1), mas pressupo-
desse modelo. nha a institucionalização e o funcionamento do poder político em termos
E em tais princípios encontra-se efectivamente contida uma concepção democráticos. «O socialismo não é o objectivo do Estado organizado de
do papel relativo do Estado e dos sujeitos privados no domínio económico, qualquer forma, mas tão-só do Estado democrático, definido tanto formal-
que não é, de forma alguma, aquela que é típica de um modelo capitalista
de tipo liberal.
tuições, existe uma única Constituição. Nenhuma parte da Constituição pode ser sacrificada à
outra a pretexto de uma hierarquia de princípios ou de n~rmas constitucionais», Q. J. Gomes
Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, op. cit., pág. 8).
4. Caracterização do projecto constitucional: democracia e socialismo E, sendo certo, como diz Jorge :Miranda, que, sem escamotear nem ignorar os elementos especí-
ficos da interpretação constitucional, não pode o intérprete «estar autorizado senão a procurar
4.1. A caracterização do projecto político, económico e social assenta as recíprocas implicações dos preceitos e princípios em que aqueles fins se traduzem, a situá-
em duas linhas de força básicas: a democracia e o projecto socialistam. -los e defini-los na sua interpenetração e na sua inter-relacionação e a tentar, assim, chegar a
uma idónea síntese globalizante» (A Constituição de 1976, pág. 277), a verdade é que o trabalho
Democracia e projecto socialista que não assumem uma configuração autó-
do intérprete resulta em muito facilitado pelo trabalho de compatibilização e integração dos
noma, como dois elementos de proveniência histórica diversa, carregados conceitos - que, por em grande medida se não reconduzir aos esquemas clássicos, não pode
do seu sentido originário, próprio e em larga medida contraditório, justa- ser recusado - que o próprio legislador constituinte realizou.
postos como caracterizadores de projectos políticos diferentes, mas antes Vem a propósito lembrar o que sob este ponto de vista, escreveu C. Mortati sobre a Consti-
surgem integrados num projecto global e tendencialmente coerente 112• tuição italiana, contra aqueles que entendiam decorrer o não cumprimento dela do facto de o
respectivo texto se traduzir, em parte, em ideias genéricas, desprovidas de eficácia jurídica e
resultantes de urna amálgama de ideias gerais contraditórias entre si:
no A existência destes limites explícitos não exclui a coexistência de limites implícitos ( cfr. J. «Este juízo surge como bem fundado se o intérprete se orientar pelo brocardo lota lege perspecta,
J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 2• edição, op. cit., pág. 439); não parece, todavia, que sendo fácil encontrar as correlações existentes entre os vários enunciados, de forma a conferir
se justifique, no âmbito proposto, uma análise dos limites implícitos e da eventual e remota a cada um um significado preciso e a integrá-lo num sistema harmónico, no qual cada parte
incidência de alguns deles no tema geral deste trabalho. influencia as outras, de forma a poder ter-se ideia de quais os desenvolvimentos que devem
iu Cfr. Jorge l\füanda, Introdução, cit .. pág. XVIII. ser dados às disposiçôes mais particulares, a fim de que estas continuem adaptadas ao espírito
112
O carácter de Constituição compromissária é, em certa medida, inegável. Basta considerar das mais gerais.
o diversificado leque de forças políticas que intervieram na sua elaboração e a efectiva con- Este tipo de interpretação sistemática, se é sempre indispensável para apreender o significado
tribuição de cada uma para o resultante texto constitucional. Mas, se é irrecusável este dado íntimo de cada espécie de regra jurídica, tanto mais necessário é relativamente às regras cons-
de facto, parece abusivo que dele - e do seu reflexo no texto, consubstanciado na articulação titucionais, dado o ca:rácter de maior generic idade das formulações inerentes a muitas delas e o
de elementos de raiz ideológica, política e económica muito diversa - se retire, por si só, que maior relevo que assumem as proclamações de princípio, das quais se deve retirar o critério de
a Constituição traduz uma mera «justaposição de modelos políticos diferentes e por vezes graduação dos múltiplos interesses a tutelar. Como completamente infundado surge, mesmo
antagónicos», Q. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, op. cit., pág. 86). ao mais superficial exame, atribuir carácter compromissório a tais proclamações, "já: que elas
Nesse sentido, a Constituição portuguesa não é um exemplo de Constituição compromissária, resultam, se consideradas no seu núcleo essencial, corno expressão unívoca e coerente, no seu
pois «nao se trata de uma sobreposição de projectos, mas sim de uma articulação-síntese num todo, da vontade da grande maioria da Assembleia», (Problemi di política costituzionale, in Scritti,
projecto constitucional unitário e coerente [...). Não existem na C.R.P. duas ou mais Consti- IV, Milano. 1972, pág. 176).

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA

mente - através de processos democráticos - corno materialmente - através


da garantia dos direitos fundamentais e do pluralismo político; e demo-
crático, nesse sentido, tem também de vir a ser o poder dos trabalhadores
numa sociedade solidária alicerçada no trabalho» 113 •

4.2. Daqui decorrem importantes consequências no campo que agora


constitui o objecto deste trabalho. Prescindindo da análise das formas
de organização do poder político, e sem a pretensão de esgotar todos os
elementos da Constituição susceptíveis de ter uma implicação, directa
ou indirecta, no campo desta análise, podem enunciar-se três pontos
importantes:
Capítulo V
a) Consagração do tradicional catálogo dos direitos fundamentais numa Autonomia Privada eliberdade Edividual
perspectiva não apenas de defesa dos cidadãos contra o Estado, mas
como garantia da dignidade da pessoa humana, base da República
( artigo 1º) - e que o Estado tem não apenas de respeitar mas também
1. A tutela da autonomia privada na Constituição portuguesa
de garantir114 - e que, enquanto defesa, não visa apenas o Estado, mas
todas as entidades públicas e privadas (artigo 18º), ou, o mesmo é
Não obstante a nossa lei fundamental se ocupar, com uma preocupa-
dizer, que não supõe uma igualdade na sociedade civil, mas antes
ção visivelmente pormenorizadora, da definição dos quadros dentro dos
reconhece a existência de centros de poder privado ameaçadores
quais se exerce :a actividade económica dos sujeitos, quer privados quer
dos direitos fundamentais.
públicos, não é possível encontrar nela qualquer norma que, expressa e
b) Atribuição ao Estado de tarefas realizadoras de um projecto eco- inequivocamente, consagre o princípio da autonomia privada.
nómico e social, projecto que depende de uma actuação positiva,
Restará, pois, averiguar se, não obstante a sua não declaração expressa,
normativa, administrativa e jurisdicional.
tal princípio reveste dignidade constitucional por se encontrar implícito
e) Atribuição aos cidadãos, ao lado dos clássicos direitos de liberdade, num ou em vários preceitos da Constituição115
de um conjunto de direitos positivos, que reclamam do Estado uma
Procurar-se-:i justamente de seguida ver se na Constituição alguma
actividade ou prestação e não uma omissão e que se reflectem tam-
tutela da autonomia privada se encontra - e de que tipo é-, sumariando
bém no domínio das relações interprivadas.
simultaneamente algumas das indicações fornecidas pelo texto consti-
tucional relativamente à legitimidade ( ou à necessidade) de intervenção
estadual no domínio da esfera da actuação juridico-negocial dos sujeitos
privados.

115
O que não significa uma necessária opção liminar - consequente à verificação fácil da não
113
Jorge Miranda, Introdução, cit., pág. XVIII; ver do mesmo autor, A Constituição de 1976, previsão constitucional expressa do contrato como objecto de autónoma tutela 2 ,pela ideia
op. cit., pág. 518. da garantia indirecta. da autonomia privada. Bem pode concluir-se, na ausência de garantia
114
Ver J, J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, especifica, pela existência embora de uma garantia directa, desde que, em primeiro lugar, uma
op. cit., pág. 34. garantia do instituto exista, e depois, que ela assuma um carácter unitário e global.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL Dr\ AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E LIBERDADE EDIVIDUAL

2. A tutela da autonomia privada como tutela da liberdade. O con- Quando se pensal no ordenamento económico de uma sociedade capitalista
ceito jurídico de liberdade e a realidade contratual moderna não pode afirmar-se que a esfera que nele é atribuída à eficácia
da vontade privada se reconduza ao poder que aos cidadãos é reconhecido
2.1. Ao problema de saber se a autonomia privada constitui ou não de se autodeterrninarem nos vários campos da sua actividade e, portanto,
um princípio constitucional, e na ausência de disposição constitucional também na sua actividade económica. « ••• O princípio da autonomia, que
que expressamente o resolva, é comum ver dar uma resposta afirmativa, se tinha entendido como operante em relação ao indivíduo, mostrava-se
assente na concepção da autonomia contratual com uma expressão ou um operante também em relação a entidades subjectivas diversas: a autono-
dos aspectos da tutela da pessoa e da sua liberdade 116 • mia do indivíduo tornava-se autonomia do sujeito jurídico, entendida esta
«É claro que assim colocado ó problema da garantia constitucional do última expressão num sentido mais lato do que o que resultava da tradi-
poder de autonomia contratual, este encontra a sua justa colocação no cional dicotomia pessoa física e pessoa jurídica» 118 •
âmbito da linha tradicional de desenvolvimento do reverso deste poder,
que sempre consistiu em reivindicar para a vontade privada, no confronto 2.2. Por outro lado, e ainda que assim não fosse - e se pudesse, por-
com o ordenamento, de um espaço de "imunidade" em que ela seja por tanto, pensar a autonomia privada como referida a pessoas singulares, ou
si própria um critério de qualificação jurídica; deste ponto de vista, é fácil na medida em que assim se possa pensar-, não só o poder de autodetermi-
observar que o debate reflecte a perspectiva habitual à temática relativa nação económica não constitui uma manifestação ou um aspecto do mais
em geral às garantias individuais, perspectiva tendente a esgotar a teoria vasto problema da autodeterminação humana, da liberdade individual, isto
da liberdade "numa dimensão extremamente simplificada orientada no é, não só autonomia privada ( no sentido jurídico e, portanto, económico)
sentido de ver no contacto cruamente imediato do indivíduo e da única e liberdade não são conceitos confundíveis, como são, em grande medida,
colectividade soberana que é o Estado o momento resolutivo da tensão conceitos antinómicos 119• Na medida em que não exista uma real igualdade
dialéctica entre autoridade e liberdade"» 117 • económica ou contratual dos sujeitos contratantes, a livre manifestação das
O carácter falso deste raciocínio parece resultar desde logo eviden- suas vontades corresponderá necessariamente ao exercício de «liberdades»
ciado, quando ele assume uma natureza genérica, do facto de, em grande qualitativamente muito diversas 12º, Aquele que se encontra num «estado
medida, não se poder hoje afirmar que exista uma relação entre o homem de necessidade» por não ter alternativas contratuais ou que se acha numa
e a autonomia privada. Isto é, autonomia privada é a do sujeito jurídico situação de indiscutibilidade ( ou de muito restrita discutibilidade) dos
económico privado e este não é confundível com a pessoa física, nem termos contratuais, não exerce a sua liberdade ao contratar. E o prejuízo
com as pessoas físicas que o conceito de pessoa colectiva pode envolver. resultante do contrato, por sua vez - e são duas questões muito diversas-,
pode justamente reflectir-se na esfera da sua liberdade. Isto é, liberdade
contratual é muito mais criação das condições materiais ao exercício dessa
116 «Na Constituição a autonomia privada não é especificamente reconhecida, mas, vendo

bem, não se trata de uma deficiência porque, no plano constitucional, das relações, portanto,
118
entre cidadão e Estado, a autodisciplina dos interesses privados assume relevância como um Rosário Nicolà, Diritto Civi/e, in Enciclopedia dei diritto, Vol. XII, op. cit., pág. 914.
119
dos aspectos do problema geral da tutela da pessoa e da sua liberdade, entendida como livre São ou podem ser, É claro que a afirmação da autonomia privada relativamente ao modo de
disponibilidade dos interesses e inciativas; a este respeito as garantias não faltam ... », Giuse- produção feudal, corno poder de autodeterminação e de livre disposição dos bens, constitui
ppe Abbamonte, Note sul problema costituzionale deli'autonomia privata in Studi suita Costituzione, uma afirmação de liberdade. Tudo depende do quadro histórico referenciado e do conceito
Volume II, pág. 191; de liberdade, formal ou substancial, que se utilize.
«A faculdade de contratar constitui a óbvia manifestação da maior parte dos direitos fundamen- 12
° Como diz Enzo Roppo, «é o exercício da liberdade conu·atual dos contraentes e'm posição
tais, e não surge portanto como carecedora de expressa menção ou disciplina quando se declara de superioridade económica e social que provoca directamente a supressão da liberdade con-
um ou outro destes», Spagnuolo Vigorita, L'iniziativa economica privata ... , op. cit., págs. 226 e 227. tratual dos contraentes em posição económica e socialmente inferior», (Le restrizioni de/la libertà
117 António Liserre, Tutele costituzionali de/la autonomia contrattual/e. Milano, 1971, págs. 12 e 13. contrattua/e, in II diritto privato ... , op. cit., pág. 328).

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E LIBERDADE EDIVIDUAL

liberdade, entendida em termos substanciais e não formais, do que não Código de Napoleão, tem como pressuposto filosófico e como consequên-
intervenção, alheamento de uma esfera de relações em que essa liberdade cia jurídica uma concepção que representa historicamente um importante
actua121 • passo na libertação do homem.
A destruição do modo de produção feudal e a instauração de uma
2.3. As dificuldades sentidas na compatibilização da autonomia privada nova ordem jurídico-económica pressupunham a afirmação da liberdade
com a autoridade resultam da conjugação de duas erradas concepções, humana em dois: momentos essenciais.
ainda quando elas não estão explícita ou sequer conscientemente assu-
midas: a da consideração da autonomia privada como uma manifestação 3.1.1. Por um lado, a organização capitalista da produção dependia da
da liberdade individual, e a da liberdade individual como instrumento de disponibilidade de uma grande massa de trabalhadores, que se achavam
defesa do cidadão contra o Estado. ligados à terra, ou aos proprietários desta, por vínculos inerentes ao modo
A primeira consiste em erigir em ordem natural aquilo que é ordem de produção feudal. Era, pois, num primeiro momento, preciso libertar os
económica historicamente referenciada: entender que a liberdade do homens desses vínculos, destruindo a nível ideológico e político os seus
sujeito se expressa necessariamente pela celebração de negócios jurídicos pressupostos, pela afirmação da essencial liberdade humana e do seu carác-
é formalizar como princípio intemporal o que constitui uma forma rela- ter natural, eterno e, portanto, pré-jurídico, A concepção jusnaturalista
cional correspondente a situações históricas. dos direitos de liberdade do homem constitui o instrumento de combate
A segunda supõe uma separação estanque entre a sociedade civil e o à ideologia hierarquizadora e vinculadora feudal, mobilizando em seu
Estado e a consideração que dentro daquela, integrada por sujeitos iguais, torno todos aqm:!les que - por negação da situação de submissão em que
nenhuma ameaça à liberdade se encontraria - porque esta consistiria jus- se encontravam ou por necessidade de substituição do modelo que impli-
tamente na garantia da não intervenção estadual na sociedade civil. cava tal forma de submissão - pretendem destruir o sistema produtivo de
que tal ideologia é suporte.

3. A historicidade do conceito de liberdade individual subjacente à 3;1.2. Por outro lado, na forma capitalista de organização da produção,
noção de autonomia privada e a contradição que ela encerra a relação entre produtores e meios de produção não é uma relação imediata
(não jurídica), mtas tem como pressuposto necessário uma relação jurídica
3.1. Analisando brevemente a primeira questão, e recolhendo os ele- contratual, o contrato de trabalho.
mentos que já se deixaram dispersamente enunciados, pode-se dizer que A utilização do contrato de trabalho, como instrumento jurídico indis-
a noção de contrato - como categoria universal da expressão da autonomia pensável para reunir os elementos do processo produtivo, determinou a
privada-, fundamentalmente identificada com as características que ainda atribuição a tod:as as pessoas de personalidade jurídica e de capacidade
hoje lhe conhecemos, e que encontra a sua formulação mais acabada no negocial. O que implicava, mais uma vez, como postulado ideológico e
como consequência jurídica, uma reválorização da pessoa, portadora em
121
Na realidade, já no plano lógico se revelam enormes dificuldades para tornar compatível a si e por si ( em condições de total igualdade, que, por contraposição à con-
coexistência, no sistema do direito privado, do princípio da liberdade contratual - segundo o cepção feudal, só podiam decorrer da sua natureza própria, essencial) de
qual, em definitivo, se reconhece aos contraentes plena liberdade de valorar os seus próprios direitos e prerrogativas inatas 122 •
interesses a fim de adaptar para eles uma disciplina considerada conveniente - com uma con-
cepção de igualdade que, querendo tender para garantir efectivamente aos autores do contrato
uma posição de real paridade, teria de contraditoriamente consentir num controlo do mérito m «À medida que se iam transformando as estruturas económicas e sociais, que novos proprie-
da disciplina em concreto projectada pelas partes, e aí destruir eventuais abusos por parte tários se sucediam no gozo das terras, e que, numa palavra, à economia feudal sucedia o novo
do contraente (de facto) mais forte», (António Liserre, Tutele costituzionali ... , op. cit., pág. 18). modo de produção c«.pitalista, tornava-se imperiosa a necessidade de uma diversa estruturação

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E LIBERDADE EDIVIDUAL

3.2. A justificação ideológica da ruptura com a ideologia feudal e as são na realidade limites da autonomia, mas seus aspectos essenciais, reflexo
necessidades de organização da produção em termos capitalistas condu- do carácter bilateral das normas de direito civil que, quando tutelam um
ziram, portanto, à formulação de um conceito de liberdade extremamente interesse através. da atribuição daquele poder de o realizar, que é o direito
amplo, porque o seu momento criador é, a um só tempo, um momento subjectivo, têm necessariamente de criar, através de uma situação subjec-
negador ( da ordem jurídica existente) -, amplitude que é, simultanea- tiva passiva, de dever, de obrigação, de sujeição, um limite da liberdade
mente, a consequência da forma necessária da sua formulação, isto é, da dos outros sujeitos» 127• 128 •
sua recondução jusnaturalista a um momento pré-jurídico. Dito de outra
maneira, porque não havia ainda condições para combater e destruir polí- 3.3. Por outro lado, a produção capitalista não se insere num sistema
tica e juridicamente a ordem feudal, os instrumentos dessa luta e da vitória económico fechado e autárcico, como o feudal, dependendo, no seu fim-
nela são situados no domínio filosófico e ideológico, eliminando-se assim a cionamento, da circulação dos bens produzidos. Os bens são produzidos,
necessidade de justificação do concreto jurídico123 • A liberdade é um «patri- não para satisfazer directamente as necessidades dos produtores, mas para
mónio originário do homem que se contrapõe aos poderes do Estado»124•125 serem trocados. Deste modo, a relação entre os sujeitos é pressuposto
e que, no campo do direito privado, não encontra outros limites senão os necessário da satisfação das necessidades individuais: a relação laboral,
resultantes da «exigência de assegurar a coexistência das várias esferas da como condição da produção, para uma das partes, e como condição da
liberdade individual, todas igualmente dignas de respeito» 126 e que «não obtenção dos meios pecuniários necessários à sobrevivência, para a outra;
a relação entre o produtor e o comerciante e entre este e todos os sujei-
tos, que no mercado obtêm os bens que satisfazem as suas necessidades.
das relações entre indivíduos e classes e entre liberdade e autoridade; de um «novo direito»,
A troca, como forma económica destas relações, e o contrato, como sua
portanto. Um direito que não fosse expressão de uma rígida organização por status e que
pudesse ser aplicável a todos os comportamentos com base no mero pressuposto da qualidade
forma jurídica, são elevados a categorias fundamentais de relação entre
de homem, capaz de entender e de querer. as pessoas.
A esta exigência respondia de forma específica a concepção, elaborada pelo iluminismo e pelo Para que tal sistema funcione é, pois, indispensável que todos possam
jusnaturalismo, de que o homem em abstracto, considerado portanto fora de qualquer relação, contratar, e da liberdade dos termos em que esse poder se concretiza
era portador de prerrogativas, de direitos inatos.», Pietro Barcellona, Il problema dei rapporto fra depende, como já antes foi assinalado, a realização do modelo econórnico 129 •
soggetto e ordinamento, cit., in Prassi e Teoria, cit., pág. 175.
12-, A redacção proposta para o art. lº do Código napoleónico, e que não transitou para o tell.1:0

definitivo, era uma verdadeira profissão de fé jusnaturalista. Era a seguinte: «II existe un droit todos. Esta contradição reflecte-se igualmente ao nível do direito público. Na concepção dos
uníversel et immuable, source de toutes les ]ois positives: il n'est que Ia raison naturelle, en direitos de liberdade e na sua relação com o Estado: eles são, simultânea ou alternativamente,
tant qu'elle gouveme tous les hommes.» entendidos como direitos para além do Estado, expressão jurídica de uma natural liberdade,
12• A. Baldassarre, Le ideologie costituzionali dei diritti di liberta, ín Democrazia e Diritto, 2, 1976, imediatamente relativa à situação de sujeitos iguais entre si, e como direitos públicos subjec-
XVI, pág. 275. tivos, isto é, como fundamento de uma pretensão jurídica à intervenção do Estado para obter
1E A afirmação da liberdade por contraposição ao Estado é tanto mait lógica e facilmente uma sanção para as intromissões alheias na esfera de liberdade de cada um.
117
explicável quanto é certo que aos deveres pessoais coarctantes da liberdade correspondiam Rosario Nicolà, Diritto civile, in Enciclopédia dei dirítto. Vol. XII, op. cit., pág. 911.
128
direitos de pessoas híerarquico-estatuariamente superiores, que retiravam o seu fundamento Hegel, apreciando criticamente o pensamento de Fichte, diz em Diferença dos Sistemas
de uma ligação ao rei, ao poder político, ao Estado. Filosóficos de Fichte e de Shelling; «A liberdade é o que caracteriza a racionalidade; [...] Mas na
126 Nas suas fómmlas legisladas ou doutrinárias, todas as chamadas limitações à propriedade comunidade com outrem, deve ser abandonada para tornar possível a liberdade de todos os
- paradigmaticamente ao direito subjectivo, pois - são explicáveis no seu surgimento pela seres racionais que vivem em comunidade, e a comunidade é, por sua vez, uma condição da
necessidade de resolver uma contradição inerente à própria concepção individualista do direito liberdade; a liberdade tem de suprimir-se a si própria para ser liberdade» (apud Henri Denis,
privado. Por um lado, ele toma como elemento central o indivíduo isolado, com os seus direitos História do Pensamento Económico, Lisboa, sem data, pág. 409).
129
e prerrogativas, por outro lado, a vida jurídica é vida social, relacional, e por isso que o direito Aliás, a nível político, tende-se a reproduzir os mecanismos que a nível económico se intro-
de cada indivíduo tenha de ceder na medida da necessidade de garantir os direitos iguais de duzem. Tal como o livre mercado é a chave da realização do bem-estar económico colectivo -

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E LIBERDADE EDIVIDU,\L

Quer isto significar que ser «a vontade do homem [... ] o valor moral les que são directamente implicados pela organização económica, isto é, a
supremo» 130 , afirmar Kant que «uma pessoa não pode ser submetida a propriedade e a liberdade contratuaP 36 •
outras leis que não sejam aquela que ela se atribui a si próprio [ e que ]
qualquer obrigação cuja fonte não fosse ela própria seria contrária à dig- 3.4. Se, economicamente, o modelo liberal foi cedendo às necessida-
nidade do homem» 131 é uma doutrina revolucionária, porque «repudia des de transfom1ação que a realidade impunha, já a nível ideológico ele
radicalmente a ordem social do Antigo Regime» 132 , porque «constitui uma se.mostrou mais resistente, justamente porque, dadas as condições da
inversão completa da hierarquia social: as obrigações deixam de vir de cima, sua formulação, ele aparecia despido de qualquer referência temporal
de Deus e do Rei, mas passam a vir de baixo, das vontades humanas» 133, ou espacial, apresentando-se como provindo da essência intemporal do
que «enquanto que para o direito canónico, pot exemplo, a actividade homem. A identidade do sistema subordina-se à identidade do homem e
dos homens deve ser subordinada a fins superiores - o Bem comum - o quanto a esta não se admite que possa ser posta em causa a sua alteração
princípio da autonomia da vontade sacraliza a vontade do homem» 134 - tudo através dos tempos 137 •
isto é verdade. «Se a natureza é sempre a m"sma, daí resulta que os direitos' do homem,
Mas tudo isto é verdade, porque é necessário. Isto é, aquilo que constitui justamente porque naturais, não sofrem alterações» 138 •
a ideologia liberal - e que excede um pouco a visão simplíficadora a que Ora, a concepção da ordem jurídica do capitalismo é, em larga medida,
se fez este apelo exemplificativo, como já se tentou apontar - é o produto investida, corno já se viu, por um conteúdo ideológico 139 ; daí que, se, por
de necessidades económicas e sociais muito precisas e não o resultado de um lado, sofre as reflexas transformações da realidade económica e social,
elucubrações de qualquer cérebro mais ou menos imaginoso. por outro lado, conserva, enquanto modelo teórico global, as características
Daí que, se a liberdade como atributo essencial do homem encontra a conformadoras que lhe estiveram na origem e que lhe garantem a coerência
sua manifestação concretizadora em numerosos direitos pessoais, isso não e a unidade. Por isso que os privatistas se encontrem hoje a braços com uma
signifique que não «se individualize um específico conteúdo dos direitos contradição, cujos termos são a concepção do direito civil como expressão
de liberdade fundamental naqueles «private rights» em cuja tutela se faz jurídica da liberdade humana e a realidade deste ramo do direito, integrado
consistir o «bem público». Quer isto dizer, pois, que a extensão das liber- em medida cada vez maior por normas contraditórias com o princípio da
dades invioláveis tendia a coincidir com a área da autonomia privada[ ... ]: autonomia privada. Como diz Rosário Nicolà, após analisar a amplitude
assim se procurava elevar a modelo de tais liberdades a parte principal da alteração que a introdução no âmbito do direito civil de um número
dessa autonomia, isto é, a negocial e a contratual»135 • sucessivamente maior de normas «de ordem pública» determina, face a
O essencial a preservar para a sobrevivência da sociedade, organizada tal transformação coloca-se o problema de saber até que ponto é legítimo
capitalistamente, não são todos os direitos de liberdade, mas apenas aque- continuar a considerar a autonomia individual como centro do sistema
jurídico civil. E :a esta questão acaba por dar uma resposta afirmativa, já
através do livre jogo da oferta da procura - também a nível político a descoberta da verdade se
136
há-de obter através da livre troca das ideias políticas. Cfr. Baldassarre, Le ideologie costituzionali..., O que tem tido frequentes ilustrações históricas, das quais as mais claras são porventura o
in Dem. e Diritto, cit., pág. 268. nacional-socialismo alemão e o fascismo italiano.
130 Gérard Farjat, Droit prive de l'économie, op. cit., pág. 48. 137
Se, anteriormente ao capitalismo, o homem se encontrava integrado em modelos organi-
131 Cit. ibid. zatórios sociais e económicos diferentes e assentes em pressupostos diversos, isso é explicado
132 Ibid. por uma «incompreensão inerente a esses modelos do que é a verdadeira essência humana».
138
133 Ibid.. pág. 49. F. Battaglia, Dichiarazioni dei diritti, in Enciclopédia dei Diritto,
134
Ibid. Vol. XII, op. dt., pág. 410.
139
135Palavras de A. Baldassarre, ao analisar o modelo inglês, em Le ideologie costituzionali..., in Dem. e A concepção jusnaruralista dos direitos reconhecidos - e não atribuídos pelo ordenamento
Diritto, dt., pág. 270. Cfr. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 2º edição, op. cit., pág. 504. - é o pressuposto e veículo da total «ideologização» de todo o jurídico.

78 79
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E LIBERDADE EDIV!DUAL

porque a transformação não importa ainda uma reformulação essencial da autoritária na v:ida interprivada142, cuja completa autonomia constitui
conceptuologia básica deste sistema ( e nomeadamente, do conceito de condição de ópt:ima satisfação dos interesses individuais e, consequente-
direito subjectivo), já porque a aceitação de que a autonomia privada não mente, colectivos.
constitui o centro deste sistema significaria a extinção do direito civil, mas Olhando as coisas na exclusiva perspectiva da relação entre sujeitos
também «o fim, no plano ético e social, de valores ainda mais substanciais privados, nenhuma garantia especial foi julgada necessária para a realiza-
que investem a própria dignidade do homem como ser livre e dos quais o ção da liberdade dos sujeitos: esta exprimia-se na liberdade do acordo e
direito civil apenas constitui a forma jurídica»14º. as garantias desta última consubstanciavam-se na salvaguarda da genui-
Esta contradição, que tende a agudizar-se e não a atenuar-se, constitui nidade da vontade formada e no controlo da conformidade desta com a
o reflexo da contradição entre a concepção do homem como entidade declaração emitidaI43 •
individual e a inserção social real deste, e a sua resolução só pode passar Garantidas aquelas duas condições, a liberdade estava assegurada e
por uma reformulação da noção de liberdade jurídica, que não aliene a exprimia-se em os sujeitos apenas se subordinarem às regras que livre-
realidade social, que tenha em conta o carácter instrumental da liberdade mente se tinham auto-imposto.
relativamente à realização da dignidade humana, que não ignore o con- É evidente, pois, que a liberdade tem um-necessário pressuposto, que
fronto inelutável entre o exercício da liberdade por uns e a liberdade de é o da igualdade dos sujeitos.
todos numa comunidade. A ideia de que os homens são iguais radica justamente na valorização
de uma «natureí~a humana», essencialmente idêntica a si mesma, intem-
poral e pré-jurídica, que em linhas gerais, já ficou exposta a propósito do
4. A igualdade como pressuposto da liberdade contratual: a igualdade princípio da liberdade.
formal e a sua insuficiência
4.2. Juridicamente, a igualdade formaliza-se na atribuição de uma
4.1. Quanto à segunda questão que acima se enunciou, se o seu ponto qualidade jurídica a todos os homens desde o seu nascimento: a persona-
de partida é a concepção liberal da liberdade humana - como liberdade lidade jurídica. A uniformização da condição jurídica de todas as pessoas
económica-, o seu ponto de chegada há-de ser marcado pelas conclusões não depende, pois, do preenchimento de qualquer requisito suplementar
que na evolução daquela concepção se obtiverem. Não significa isto que ao da sua existência física 144 • Mas a igualdade jurídica, se tem esta forma
a resolução do conflito entre liberdade e autoridade se esgote na relação inicial e essencial de expressão, assume, decorrentemente dela, aliás, um
entre indivíduo e Estado, embora estes continuem sendo os termos em
que essencialmente a questão se coloca. 142
Ilustrativo desta iideia é o art. 10º da Constituição portuguesa de 1822: «Nenhuma lei, e
A profunda relação entre o conceito de liberdade e o de negócio jurí- muito menos a penal, será estabelecida sem absoluta necessidade.»
143
dico já foi evidenciada: o negócio constitui a expressão da autonomia mais «Duas noções são essenciais na construção napoleónica do contrato: por um lado, a exigência
do consentimento da. parte que se obriga, e por qutro lado, o controlo que o Code Civil previu
relevante no domínio relacional. O negócio jurídico é fonte normativa e
sobre a liberdade das convenções.
ao seu lado, e em plano tendencialmente equivalente, existe a norma, esta É certo, em primeiro lugar, que na primeira linha das condições ess~nciais à validade de uma
como expressão da autoridade 141 • convenção encontramos o consentimento da pane que se obriga e que "não há consentimento
Bem se compreende que o modelo económico descrito comporte uma válido se o consentimento não foi dado livremente, mas por erro, ou se foi extorquido por vio-
essencial desconfiança relativamente à lei, instrumento de ingerência lência ou surpreendido por dolo"» Q. C. Serna, Le refus de contracter. Paris, 1967, págs.13 e 14).
IH Ainda quando a lei exige, para além do nascimento, a verificação de outros pressupostos,

como a viabilidade, ou o nascimento com vida e figura humana, de que falava a doutrina no
14 º Rosário Nicolà, Diritto civile, in Enciclopédia dei Diritto. Vol. XII, cit., págs. 912 e 913. domínio do Código de Seabra (cfr. art. 110º deste), por exemplo, eles não são mais do que
141
Cfr. Stefano Rodotà, Le fonti di integrazione ..., op. cit., pág. 4. pressupostos da existência física.

80 81
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E LIBERDADE EDIVIDUAL

outro sentido: o da proibição,para o Estado, de discriminação entre os rísticas, que assume como iguais os indivíduos, isto é, é porque são iguais
sujeitos. Isto é, se juridicamente todo o homem é uma pessoa jurídica - à face da lei que eles são iguais entre si.
definida portanto pela identidade recíproca -, isto significa que perante A igualdade de todos os cidadãos é conceitualmente obtida através,
a lei todos os homens são iguais e que, consequen-temente, ela tem de pois, deste processo: porque face à lei todos os cidadãos se encontram na
os tratar a todos uniformemente, não podendo operar discriminações mesma situação, porque todos são iguais face a um terceiro, conclui-se que
entre eles 145 • eles são iguais entre si. A característica diferenciadora, conceptualizante,
Em síntese, temos pois: da igualdade é, pois, a posição de cada cidadão na sua relação com o Estado
(igual a lei); obtido assim o conceito, passa-se à sua utilização a um nível
um primeiro momento qualificador da igualdade que é metajurídico, diverso, o nível da relacão
, entre os cidadãos 146 •
prescindindo dos dados da realidade, de natureza metafísica; Este percurso corresponde à evolução do jusnaturalismo oitocentista
um segundo momento, jurídico, de reconhecimento da verdade meta- para o positivismo novecentista. Reconhecida a posição normativa esta-
física, que é o da igualdade de todos pela sua posição de paridade dual como fonte primária dos direitos, o princípio da igualdade reduz-se
face a um terceiro, que é a lei; à exigência da não discriminação pela autoridade, e a própria liberdade
um terceiro momento, em que se fecha o ciclo, que é o da afirmação deixa de ter um conteúdo positivo, para se traduzir na reivindicação da
da igualdade recíproca, porque todos estão em paridade de situação paridade de tratamento 147 •
face à lei.
146 Mas, como observa Francesco Fenghi, «o direito abstracto e igual não é apenas o resultado
A hipoteticidade, a abstracção e a generalidade, características que
de uma operação formal ou ideológica [.. ,]. Ao contrário, a igualdade jurídica é a expressão
a concepção liberal do direito atribuiu à lei, são incindíveis da noção de conclusiva de uma igualdade que, por mais mítica e fictícia que seja, já se realizou ou que,
igualdade, no sentido em que esta é seu pressuposto e sua consequência. através desta, tende a realizar-se a todos os níveis da sociedade e que representa uma caracte-
Porque todos os indivíduos são iguais, é possível aplicar-lhes a lei (hipo- rística irrenunciável do mundo capitalista de produção. O ordenamento jurídico, na realidade,
tética, abstracta e geral), mas, simultaneamente, é a lei, com tais caracte- regula a relação entr,e as mercadorias; é através das mercadorias que se realiza a paridade e a
igualdade entre os indivíduos.
Em última análise o Estado de direito burguês-liberal e o ordenamento jurídico que constitui a
145 Esta concepção não é apenas jurídico-privada, antes representa uma consequência no
sua directa emanação reproduzem o princípio em que se funda o modelo da sociedade mercantil
domínio privado de uma concepção social mais geral, que é a da organização política da demo- simples em que operam livres produtores independentes; na qual as relações entre mercadorias
cracia. Cite-se R. Saleilles, a propósito dos princípios subjacentes ao Code Civil: «Acabava de e o seu valor de troca escondem as verdadeiras relações entre homens ( e portanto a sua real
se organizar a democracia, como regime político; o Código Civil ia tornar-se o direito privado posição na sociedade), até porque nesta sociedade não existe ninguém que não seja proprie-
de uma democracia. Mas a democracia era então concebida como um regime no qual todos tário pelo menos de uma mercadoria, quanto mais não seja a sua própria força de trabalho»,
os cidadãos tinham direitos iguais na esfera dos direitos civis, e igualmente um direito igual (Programmazione económica e modo di produzione capita-listico, in Trattato di diritto commerciale e di
no terreno político. Assim, considerava-se que, no domínio do direito privado, bastava, para diritto pubblico deli'economia, diretto da Francesco Galgano, Vol I, La Costituzione económica, op.
constituir a democracia, consagrar a igualdade civil e a liberdade para todos, abolindo qualquer cif., págs. 246 e 247).
privilégio de nascimento, de sexo ou de fortuna e sobretudo impor um regime sucessório que 147 «A liberdade individual só é jurídica se é liberdade sob o domínio da lei: ou seja, ela é

não pudesse nunca conduzir a fazer reviver o regime da grande propriedade. [...] Assegurar a garantida, não porque se encontre ao abrigo das intervenções da autoridade, mas porque as
cada um, tomado em abstracto, segundo a doutrina do direito natural e a teoria dos direitos intervenções da autoridade reconhecem o seu fundamento na lei. Do ponto de vista jurídico,
do homem, o direito e a possibilidade de lutar, no terreno jurídico, com armas iguais, para portanto, a liberdade tende a coincidir com o indiferente e o irrelevante jurídico (= para o
obter uma situação no mundo, parecia nessa época, não o ideal, mas a realização definitiva da direito, para o poder público) e isto, por sua vez, pressupõe ( e as coisas só aparentêmente são
democracia. Era, podia-se crer, o único regime que, do ponto de vista teórico, era conforme à contraditórias, porque os dois conceitos são como duas faces da mesma medalha) a sua confi-
ideia de igualdade.», Le Code Civil et Ia Méthode historique in Code Civil, Livre du Centena ire, Paris, guração como direito subjectivo, e, mais precisamente, como direito que se torna significativo
1904, pág.114. na medida em que se postula em tern1os de conteúdo como direito à legalidade. A mesma coisa

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E LIBERDADE EDIVIDUAL

4.3. Mas a afirmação da igualdade dos sujeitos perante a lei não teve princípio da igu:aldade dos sujeitos privados foi operado, numa primeira
a virtualidade de uniformizar situações que em comum apenas tinham o fase, no interior do direito privado (isto é, sem pôr em causa os próprios
estarem na mesma posição relativa face a um terceiro. Daqui que, no domí- pressupostos do conceito que se revelava falso) através do tratamento da
nio interprivado -domínio em que a posição relativa dos sujeitos face à lei figura do abuso do direito.
não tem relevância central, uma vez que, em princípio, a lei está alheada Os efeitos mais chocante e flagrantemente «injustos» da desigualdade
da fonte normativa dessas relações ( ou só indirectamente está nela impli- das partes - des:igualdade que não é puramente económica, mas tem de
cada) - muito rapidamente se tenha revelado falso o princípio da igualdade. ser entendida num sentido mais amplo de desigualdade contratual (:a enti-
Falso no sentido estritamente jurídico em que existem relações jurídicas dade patronal adlquire livremente um elemento da produção, o trabalhador
de autoridade/subordinação neste domínioI 48 , mas sobretudo no sentido vende a sua força de trabalho porque, para subsistir, não pode deixar de o
em que não é, nesta sua formulação, apto a exprimir qualquer situação de Jaze1) -foram, em certa medida, combatidos pelo recurso à figura do abuso
igualdade real recíproca. do direito. O exercício dos direitos que à entidade patronal advinham do
Foi no domínio do contrato de trabalho que, neste segundo sentido, a contrato - e o próprio uso da sua posição dominante na celebração do
falsidade do princípio teve a sua revelação - e também o seu reconheci- contrato - tinha fronteiras de legitimidade e essas eram procuradas, pois,
mento - mais espectacular. O enquadramento conceituai da ruptura do nos critérios informadores do abuso do direito149 • Ainda mesmo quando
a integração do contrato de trabalho no domínio da autonomia privada,
e do direito comum portanto, cessa com o reconhecimento legal da desi-
se pode também dizer afirmando que, segundo este modelo, a liberdade jurídica resolve-se
gualdade das partes, que a aceitação do sindicato como parte no contrato
inevitavelmente no princípio da igualdade perante a lei (igualdade formal) e projecta-se, de
consubstancia150, ainda aí, o abuso do direito não perde a sua utilidade como
um ponto de vista substancial, no conceito de segurança, entendido não tanto no sentido de
"previsibilidade" e de "certeza", mas mais no sentido hobbesiano de direito de poder pacifi- instrumento de limitação da discricionaridade patronal na celebração e na
camente gozar os espaços de liberdade que o poder soberano concede», (A. Baldassarre, Lê execução dos contratos indiv:iduais.
ideologiecostituzionali..., in Democrazia, cif., pág. 284).
Ou seja, numa outra formulação, pode-se dizer que os direitos subjectivos públicos de liber-
dade se caracterizam «por um conteúdo negativo comum, que consiste na pretensão de que a
autoridade pública não intervenha ilegitimamente na esfera privada do sujeito», P. Biscaretti
di Ruffia, Dir. Costituzionale, op. cit., pág. 706.
Particularmente ilustrativa desta concepção é a disposição do art. 2Q da Constituição portu-
guesa de 1822: «A liberdade consiste em não serem obrigados a fazer o que a lei não manda,
nem a deixar de fazer o que ela não proíbe. A conservação desta liberdade depende da exacta
149
observância das leis.» Aliás, e para além da sua função restritiva do direito de propriedade, foi, e é, justamente,
Aliás, como justamente obsen'a Cláudio Rossano, esta ideia continua hoje presente no princípio corno instrumento de protecção dos contraentes débeis que o abuso do direito se tem reve-
da igualdade perante a lei, no seu âmbito de limitação das autoridades que aplicam a lei: «O lado de maior utilidade. Embora a protecção dos chamados contraentes débeis - categorias
princípio da igualdade propriamente constitui um particular aspecto da legalidade, no sentido de sujeitos ligados entre si por um dado tipo de interesses e necessidades, e situados numa
de proibir aos órgãos da aplicação ( em sentido amplo) o direito de estabelecer diferencia- posição de inferioridade ou de «fraqueza» relativamente a outras categorias com as quais têm
ções ou parificações que não se encontrem previstas nas próprias leis», (L'egualianzagiurídica de contratar - encontre actualmente na lei directas manifestações, designadamente através da
nell'ordinamento costituzionale, Napoli, 1966, pág. 252). concessão de uma mais forte tutela da posição daqueles contraentes, de forma a compensar os
148 Como diz Massimo Bianca, no âmbito dessas relações procurou-se aplicar o princípio da desequilíbrios e desigualdades reais ( e, note-se, a lei, ao proteger directamente, não prescinde,
igualdade - no momento subsequente ao do reconhecimento da relação interprivada de autori- por vezes, do apelo, na sua previsão, à noção de abuso -por exemplo, o abuso de posição domi-
dade - no mesmo sentido que ele tinha face ao Estado, isto é, no sentido de ele consubstanciar nante), a apreciação e a limitação, em concreto, do exercício indiscriminado de certos direitos
e fundar uma pretensão de uniformidade de tratamento, (Cfr. Le autorità private, Napoli, 1977, são realizadas através da utilização do abuso do direito.
150
págs. 4 e 5). Vital Moreira, A Ordem Jurídica do Capitalismo, op. cit., págs. 79, 80 e 83.

84 85
1

Capítulo VI
Autonomia Privada eIgualdade

1. A evolução fendencialmente superadora dos conceitos clássicos:


o princípio da igualdade

A tendencial superação das dificuldades referidas pemlite encontrar em


diversas Constituições actuais a consagração - com expressões formuladas
diversamente - da preocupação de garantir as condições de uma efectiva
igualdade e do real exercício da liberdade contratual - que o mercado como
fom1a de satisfaç;ão das necessidades humanas pressupõe - e da defesa da
liberdade individual, enquanto encontra a sua expressão nos chamados
direitos fundamentais, das consequências lesivas do exercício da mera
liberdade contratual formal.
Quando a Constituição italiana de 1947 afirma no art. 3º que «compete
à República remover os obstáculos de ordem económica e social, que, limi-
tando de facto a liberdade e a igualdade dos cidadãos, impedem o pleno
desenvolvimento da pessoa humana e a efectiva participação de todos os
trabalhadores na organização política, económica e social do País», está
ultrapassada a suficiência da mera concepção formal da igualdade de todos
perante a lei151 e aberto o caminho - não apenas no sentido permissivo,
note-se, mas no sentido impositivo para o Estado - para a interven~~o esta-
dual orientada no sentido «de assegurar a todos os cidadãos as condições

151
V. António Liserre, op. cit., págs. 22 e 23.

87
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E IGUALDADE

materiais que lhes permitam exercer as outras liberdades» 152 , e, no particu- _ e duvidoso é que esse possa considerar-se expresso naquele artigo 3º
lar domínio das relações interprivadas, com vista a promover a remoção dos sem mais, como se acentuou - da afirmação da igualdade de facto, e das
obstáculos de facto ao exercício da liberdade negocial. A intervenção deste tarefas que ao Estado incumbem nesse campo, é o de que a intervenção
último tipo não tem, porém - e há que acentuar claramente este ponto -, deverá assumir um carácter discriminador, no sentido de garantir a efec-
que visar a obtenção de uma igualdade real dos contraentes.Se a mera afir- tiva igualdade. Isto é, que à intervenção estatal hão-de presidir critérios
mação da igualdade dos cidadãos perante a lei comporta necessariamente a de justiça distributiva conformando-se aquela pela medida e natureza das
afirmação da sua igualdade na desigualdade fáctica que os caracteriza, não reais desigualdades fácticas existentes.
basta que ao Estado se cometa a tarefa de remover as desigualdades para
que possamos dizer que ao Estado compete reconhecer, e consequente-
mente afirmar, na sua actividade, as desigualdades que o alcançar de uma 2. A concepção da igualdade na Constituição portuguesa
efectiva e real igualdade dos homens suporia153 •
Assim, um primeiro sentido da afirmação da Constituição italiana, 2.1. A análise da forma como a Constituição portuguesa encara e trata o
no âmbito de que agora me ocupo, é o de que é tarefa do Estado repor problema da igualdade tem de situar-se em vários planos, adequadamente
a igualdade formal - com as suas inerentes desigualdades reais - que é às várias perspectivas em que a lei constitucional toma a noção.
pressuposto mesmo do conceito de autonomia privada. Neste sentido, ao Essencialmente, pode dizer-se que a igualdade na Constituição de 1976
Estado caberá assegurar a real igualdade formal em que a concepção liberal tem dois sentidos: igualdade formal perante a lei, e igualdade substancial
fundava a legitimidade da autonomia privada. Um outro sentido possível a promover pelo Estado, tomando como ponto de partida as desigualda-
des reais.
152
É esta, na expressão de Maurice Duverger, a ideia central dos direitos económicos e sociais,
( cfr. Institutions politiques et Droit coristitutionnel, 9.' edição, Paris. 1966, págs. 212 e 213). 2.2. O primeiro sentido é traduzido pela afirmação, no estilo clássico,
153
O mero enunciado do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei constitui, em certa do nº 1 do art.13º: «Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são
medida, a proibição de tratamento diferenciado, ainda que generalizado, desses cidadãos. iguais perante a lei.»
Cidadãos Que, porque são indivíduos distintos, são desiguais e que hão-de ser tratados em Afirma-se, pois, que todos os cidadãos estão em posição de igualdade
absoluto como se o não fossem. A superação daquele princípio e o apontar para uma igualdade
face à lei, ou, inversamente, que a lei tem de tratar igualmente todos os
real consubstanciar-se-á na protecção jurídica contratual de certos grupos ou categorias de
contraentes face a outros, na chamada protecção do contraente débil ( a protecção do utente ou cidadãos. Em anotação a este preceito, dizem Gomes Canotilho e Vital
do consumidor face ao monopólio legal ou ao monopólio de facto, por exemplo), mas ainda aí o Moreira: «O princípio da igualdade contém uma directiva essencial diri-
resultado obtido não consiste numa «igualização» dos indivíduos: da mesma protecção beneficia gida ao próprio legislador: tratar por igual aquilo que é essencialmente igual
o consumidor rico como o consumidor pobre, o utente rico como o pobre, etc. Finalmente, e desigualmente aquilo que é essencialmente desigual. A qualificação das
pode a afirmação do princípio da igualdade concretizar-se em critérios (legais) de tratamento várias situações como iguais ou desiguais depende do carácter idêntico ou
diferenciador dos indivíduos em função de parâmetros definidores da sua situação concreta (por
distinto dos seus elementos essenciais»154• Aderir a esta interpretação supõe
exemplo, a definição de um regime contratual diverso consoante se trate de arrendatário rico ou
pobre, de arrendamento de prédio de luxo ou não, etc.), compensando o Estado as desigualda- resolvidos em sentido afirmativo dois problemas: pode o legislador, face ao
des fáctícas existentes através de um tratamento desigual de situações ( de indivíduos) que são art.13º, nº 1, tratar desigualmente os cidadãos em razão de desigualdades
desiguais. E se ainda por esta via não se poderia obter a absoluta igualdade - porque de uma via essenciais da respectiva situação?; deve o legislador, em cumprimento da
jurídica se trata e qualquer direito que se atribua é sempre, e como todo o direito, baseado na directiva do roes.mo preceito, tratar desigualmente os cidadãos em situa-
desigualdade, na medida em que consiste na recondução a padrões comuns de indivíduos que ções essencialmente desiguais? ., ·
são desiguais - ela constituiria, por certo, uma aproximação, a maior que através da lei se pode
obter, da igualdade real. Ctr. sobre esta última questão, Tito Ravà, La bilateralità dei diritto civile,
in Studi in mem6ria di TullioAscareltí, Vol. IV, Milano, 1969, págs.1778 e 1780. 154
Constituição da República Portuguesa Anotada, op. cit., pág. 68.

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,\ TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E IGUALDADE

À primeira vista, a interpretação de um princípio como o do nº 1 do situação, promovendo progressiva realização da igualdade, até ao desapa-
art. 13º da Constituição poderia conduzir a uma resposta negativa a ambas recimento das classes sociais e à abolição da exploração e da opressão do
as questões; se a lei constitucional afirma expressamente a igualdade dos homem pelo homem.
cidadãos, esta afirmação parece ter um sentido redutor das desigualdades, Os princípios fundamentais que norteiam a actividade do Estado, cons-
que a lei não pode ignorar, pois o comando se lhe dirige. Isto é, o sentido titucionalmente definida, projectam-se em todo o texto e encontram uma
mais imediatamente decorrente do texto constitucional e mais adaptado especificação no art. 81 º, que enuncia como «incumbências prioritárias do
à sua letra é o de que a lei tem de ignorar as desigualdades situacionais, Estado», a promoção do «aumento do bem-estar social e económico do
tratando por igual todos os cidadãos 155 • povo, em especial das classes mais desfavorecidas» (alínea a)), a promoção da
Deixa-se a questão em aberto, até porque ela não prescinde em absoluto, «igualdade entre os cidadãos, através da transformação das estruturas económico-
para sua solução, de uma outra forma de encarar a igualdade presente no -sociais» (alínea e)), o «operar (d)as necessárias correcções das desigualdades na
texto constitucional. distribuição da riqueza edo rendimento» (alínea d)), a eliminação e oimpedimento
da <formação de monopólios privados», bem como a repressão dos «abusos do
2.3. Assim, no segundo sentido de que acima falava, igualdade significa poder económico» (alínea g)), a eliminação progressiva das «diferenças sociais e
remoção dos obstáculos ou fornecimento dos instrumentos adequados ao económicas entre a cidade e o campo» (alínea i)) e a protecção do «consumidor,
ultrapassar da real desigualdade entre os cidadãos. Neste sentido, toma-se, designadamente através do apoio à criação de cooperativas e de associações
pois, como um dado jurídico a situação factual e/ ou jurídica de desigual- de consumidores» (alínea m)).
dade e comete-se ao Estado a função de a superar, nomeadamente pela Pode, pois, dizer-se que, muito mais fortemente do que, por exemplo, na
transformação do modelo económico-social existente. Toda a concepção Constituição italiana, se opera uma «integração [... ] da «igualdade formal»,
da Constituição releva desta consideração, como já, de algum modo, se que se consubstancia na paridade de tratamento perante a lei, com a afir-
acentuou: o projecto que a Constituição consubstancia caracteriza-se mação da «igualdade substancial» que impõe que se actue, para as eliminar,
pela orientação de transformação da sociedade portuguesa numa sociedade sem sobre as situações de facto que impedem o efectivo gozo da primeira» 157 •
classes, através da «criação de condições para o exercício democrático do poder Quer isto significar que o princípio do art. 13º, nº 1, não pode ser
pelas classes trabalhadoras» (arts. 1º e 2º), competindo ao Estado, como sua interpretado dissociadamente daqueles a que me tenho vindo a referir, o
tarefa fundamental, a criação das "condições que permitam promover o bem-estar mesmo é dizer, que o legislador não está por ele impedido de operar dis-
e a qualidade de vida do povo, especialmente das classes trabalhadoras, e abolir a criminações, ma:s, pelo contrário, lhe é imposto operá-las, sempre que elas
exploração e a opressão do homem pelo homem» (art. 9º, alínea c)). visem a realizaç~io e a promoção da igualdade, de facto ou juridicamente,
Estas normas integram-se nos «Princípios fundamentais», onde, como inexistente.
afirma Jorge Miranda, se pretendeu «estabelecer [... ] o travejamento do
edifício da Constituição e do sistema jurídico que nela ia assentar, ou seja, 2.4. Resta, porém, uma zona por aclarar: para além dos casos em que a
as normas donde arrancassem todas as outras, as normas de que todas as discriminação legal - e também administrativa e jurisdicional158 é imposta
outras fossem o desenvolvimento»156 • ou permitida constitucionalmente, será ela lícita?
Às três disposições que se citaram subjaz transparentemente a ideia
de que a sociedade a que a Constituição se dirige não é uma sociedade de 157
Costantino Morta.ti, lstituzioni di diritto pubblico, Tomo II, op. cit., pág. 1018.
158
cidadãos iguais, e por isso que se confie ao Estado a tarefa de alterar essa Como salientam Gomes Canotilho e Vital Moreira, o princípio da igualdade perante a lei
não vincula apenas o legislador, mas «obriga todas as autoridades que aplicam a lei,,•a: proceder
como aquele, isto é, t:al princípio «assume relevo particular ( este era o significado tradicional
155
A disposição não toma como objecto situações, mas sujeitos, não discriminando entre estes. do princípio) em sede de aplicação da lei pelas autoridades administrativas ou pelos tribunais», (Cons-
156
Os Princípios fundamentais, in Estudos sobre a Constituição, lº Volume, op. cit., pág. 29. tituição da República Portuguesa Anotada, op. cit., págs. 68 e 69).

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1
A TUTELA CONSTITUCIONAL D,\ AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E IGUALDADE

Como faz notar Cláudio Rossano, a interpretação do princípio da de situações desiguais e tratamento homogéneo de situações idênticas.
igualdade perante a lei não pode alhear-se do contexto e do significado Igualdade é, pois, equivalente a proibição do arbítrio. .
históricos do seu aparecimento. É particularmente ilustrativa desta orientação em Itália a posição de
Ele surgiu «por reacção contra um passado que afirmava, juridicamente, e. Mortati164, que, depois, de «excluir que o princípio imponha o dar às leis
a desigual posição jurídica dos membros da sociedade. Face a um mundo um conteúdo igual para todos os cidadãos de tal modo que todos gozem
que admitia uma série de contínuas e graduais estratificações sociais, do mesmo tratamento», entende que não pode ser deixada ao absoluto
com consequentes privilégios e desvantagens para determinados sujeitos arbítrio do legislador a apreciação da diversidade das situações, para que
pertencentes a grupos diversos, fossem estes classes ou estados, julga-se por esta via não se acabe por esvaziar o princípio de grande parte do seu
necessário afirmar a igual posição de todos (homens ou cidadãos) face à valor, «retirando assim com uma mão o que se tinha dado com a outra» .
fonte primária do direito dos Estados: a lei» 159• Daqui que o sentido do O conciliar da necessidade de limitação do arbítrio legal com a exclusão
princípio seja, não o de excluir a possibilidade de o legislador operar dife- da apreciação de mérito das considerações realizadas pelo legislador, na
renciações, mas o de afirmar, por um lado, que a lei se aplica em termos adequação das providências normativas às situações concretas, operar-se-á,
iguais a todos os sujeitos, ninguém podendo ser isento da sua aplicação, e, segundo Mortatii, pelo vincular do legislador à «obrigação de não violar as
por outro, que ela não pode operar discriminações que não correspondam regras da lógica, que constitui um limite jurídico ao exercício de qualquer
a diferenciações fácticas reais. actividade discricionária [... ]coma consequência de considerar inválida lei
que disponha tratamentos diferenciados para determinadas categorias de
2.5. Nem todos os problemas se encontram, porém, resolvidos. Pelo relações, sempre que do seu próprio texto ou das outras disposições com ele
que respeita à questão de saber dentro de que parâmetros se pode licita- conexas resulte a inexistência das peculiaridades das relações reguladas que
mente mover o legislador ( ou os órgãos de, aplicação da lei) na apreciação sejam invocadas para justificar esses mesmos tratamentos, ou quando tais
das diferenças fácticas para delas extrair consequentes diferenciações jurí- peculiaridades surjam prima fade como desprovidas de qualquer carácter
dicas, as dúvidas ainda têm um amplo campo de sobrevivência. de «razoabilidade», de tal modo que se possa argumentar com a violação
A opinião prevalecente na doutrina alemãI 60 e na respectiva jurispru- do princípio do tratamento paritário» 165 .
dência161, bem como na doutrina italiana162, e nas jurisprudências suíça e É também neste sentido a interpretação que Gomes Canotilho e Vital
americana163, é a de que a igualdade, constitucionalmente imposta, signi- Moreira fazem do princípio do n 2 l do art. 132 da Constituição, dizendo:
fica proporcionalidade, isto é, reclama do legislador tratamento desigual «Do que se trata [... ] é de uma proibição do arbítrio legislativo, ou seja, de uma
inequívoca falta objectiva de apoio material-constitucional para a diferen-
ciação ou não diferenciação efectuada pela medida legislativa.
19
" Cláudio Rossano, L'egualianzagiuridica nell'ordinamentocostituzionale, op. cit., pág. 246. Falando Porém, a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da
das proclamações oitocentistas do princípio da igualdade, diz Cario Esposito que eram, pois,
igualdade não dimina a liberdade de conformação do legislador, pois o legis-
«proclamações ancoradas em pressupostos jusnaturalistas ou, para ser mais exacto, numa
particular concepção do direito natural, em gçral negadora da existência de homens escravos,
lador é fundamentalmente livre na determinação dos elementos de com-
inferiores, desiguais por natureza ou por nascimento, e negadora correspondentemente da
conformidade com á natureza de determinadas desigualdades historicamente existentes», Egua- 164
Posição que tem tido largo acolhimento na doutrina e que tem constituído fundamento de
lianza egiustizia nell'art. 3º della Costituzione, inLa Costituzione Italiana, Saggi, Padova, 1954, pág. 22. numerosas decisões do Tribunal Constitucional em Itália; segundo o Tribunal Constitucional,
16
° Claudio Rossano, L'egualianza ... , op. cit., págs.167 e segs. «o princípio da igualdade deveria entender-se afectado ou iludido apenas nos casos de consta-
161
Ibid., págs. 181 a 183. tada «irracionalidade do tratamento diferenciado» estabelecido pelo legislador através do seu
162
Ibid., págs. 289 e segs. Contra esta concepção em Itália, v., paradigmaticamente, a posição discricionário poder normativo (sent. 45/1967)», P. Biscaretti di Ruffia, Dir. Costituzionale, op.
de Cario Esposito, Egualianza egiustizia nell'art. 3º..., op. e loc. cit., págs. 28 a 30. cit., pág. 702. Cfr. também Claudio Rossano, op. cit., págs. 290 a 292.
163
V. Esposito, op. e loc. cit., pág. 27. 165
V. Istituzioni ... , Vo1. II, op. cit., págs. 1019 e 1020.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOl\-!IA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E IGUALDADE

paração que considera decisivos para operar a diferenciação, exigindo-se a discricionária, uma abusiva identificação dos princípios da igualdade e
apenas que esses elementos possam servir de base a critérios de diferen- da imparcialidade 171 •
ciação objectivamente adequados à prossecução da finalidade proposta. Trata-se, todavia, de questões que, quanto ao âmbito deste estudo, se
A demonstração de que também outros critérios poderiam ter sido escolhi- podem qualifica1r como relativamente marginais, pelo que não se avançará
dos para melhor se conseguir a finalidade tida em vista pelo legislador não para lá desta sua resumida colocação.
166 167
é suficiente para se produzir uma violação do princípio da igualdade» • •

2.6. Finalmente, resta ponderar brevemente os termos em que se 3. O princípio da não discriminação
coloca a questão da directa eficácia do princípio da igualdade «em sede
de aplicação da lei pelas autoridades administrativas ou pelos tribunais», isto é, 3.1. Importa agora dos princípios, diversos mas paralelos, da igualdade
o problema de saber se a actividade das autoridades administrativas e dos formal e substancial extrair as consequências e aplicações que dispersa-
órgãos juris-dicionais se pode entender como directamente vinculada pelo mente se encontram no texto constitucional.
princípio da igualdade. Quanto ao primeiro, decorre dele a regra do nº 2 do mesmo art. 13º de
Contra tal vinculação se pronuncia C. Esposito, afirmando que, estando Proibição de discriminações «em razão de ascendência ' sexo ' raca
~ '
língua
'
a actuação dos tribunais e da administração pública - quando vinculada território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instru-
esta - submetida à lei, os actos violadores da igualdade consubstanciarão ção, situação económica ou condição social».
necessária ilegalidade, ou seja, não existe espaço para uma autónoma rele- O princípio da não discriminação tem, como aliás resulta do que já ante-
vância neste âmbito do princípio constitucional da igualdade 168 • Ainda no riormente ficou dito, de ser entendido não no sentido da absoluta proibi-
sentido da irrelevância se pronuncia o mesmo autor pelo que respeita à ção de diferenciações de tratamento dos cidadãos em atenção a qualquer
actividade discricionária da administração, entendendo, porém, aqui que das razões enundadas no citado nº 2 do art. 13º - uma vez que a própria
a ineficácia do princípio decorre da expressa previsão constitucional da Constituição impõe muitas vezes discriminações no sentido de alcançar
submissão da administração pública ao princípio da imparcialidade, cuja a igualdade substancial, permitindo, genericamente, as discriminações
directa aplicabilidade exclui a concorrente subordinação ao princípio da que se justifiquem em razão de diferenças essenciais de situação e as que
igualdade 169 • tenham como objectivo a obtenção da igualdade real-, mas no sentido
Duas são as discutíveis premissas das conclusões enunciadas: pelo de que, fora dos casos em que a Constituição ou a natureza das coisas 172
que respeita à actividade judicial, uma muito restritiva concepção do seu imponham um tratamento discriminatório, não pode este existir nem no
âmbito de liberdade 17º e, quanto à actividade da administração, mormente direito nem na aplicação que dele se faz.
Há que salientar que, no conjunto de factores enumerados no nº 2
do art. 13º, para em função deles excluir a possibilidade de discrimina-
166 Constituição da República Portuguesa ... , op. cit., págs. 68 e 69. ção, nem todos têm a mesma importância e a mesma projecção. Para não
167 Para além da definição do âmbito do quadro delineado pelo princípio da igualdade perante a
lei, e a ser essa definição realizada nos termos enunciados no texto, coloca-se a questão de saber
dar mais do que um exemplo, é óbvio que a discriminação em função do
em que termos o juiz constitucional pode intervir para apreciar a constitucional idade das non- sexo não tem semelhança com a discriminação em função da língua ou
nas neste particular. Porque a questão me parece exceder o campo do presente trabalho, ela não do território de origem. Como acentua Maria Leonor Beleza, «por um
é aqui tratada. V. C. Mortati, op. cit., pág.1022, e objecções de C. Esposito, op. cit., págs. 28 e 29.
168 Cfr. op. e /oc. cit.. págs. 40 e 41.
171
169
Ibid., págs. 41 a 43. Cfr. Vital Moreira e Gomes Canotilho, Constituição ..., op. cit., págs. 69 e 462.
172
17º Ou até, para além disso, uma porventura ultrapassada noção dos parâmetros da interpre- Questão que fica •~m aberto é a de precisar melhor este critério genérico, que pode originar
tação e aplicação da lei. graves equívocos e el'ectivas violações do preceito constitucional.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E IGUALDADE

lado [... ] o sexo é um elemento essencial na vida da pessoa humana; é-se clonadas, direito que se traduz na obtenção de protecção «contra todas
e ser-se-á necessariamente diferente se se é homem ou mulher, mesmo as formas de discriminação e de opressão». Atribui-se aqui um dever ao
que a situação actual de atribuições estereotipadas a um e a outra venha a Estado - e mais diluidamente à sociedade - de eliminação das discrimi-
desaparecer. nações em razão de situações de particular desfavor afectivo e social: a
Por outro lado, esta mesma situação, que se traduz em profundas dis- orfandade e o abandono.
crimin~ções de que a mulher é normalmente a vítima, atinge um tal enrai-
zamento na vida social e nos costumes que, para a ultrapassar, não basta ir 3.1.2. Pelo que toca à interdição de discriminações em função do sexo,
eliminando as discriminações aqui e ali, mas é necessária uma acção posi- são três as disposições constitucionais que a concretizam (art. 36º, nº 3,
tiva e determinada com o objectivo de promover a igualdade efectiva dos que consagra, com dignidade constitucional, a igualdade dos cônjuges 175,
homens e das mulheres - a qual está muito para além da mera igualdade art. 52º, alínea e), que impõe ao Estado a garantia do direito ao trabalho,
jurídica»173 • O texto citado chama a atenção para a insuficiência da pers- nomeadamente pelo assegurar da «igualdade de oportunidades na escolha
pectiva do nº 2 do art. 13º - a de eliminação das discriminações - e para a da profissão ou género de trabalho e condições para que não seja vedado
necessidade de, em alguns casos, ultrapassar essa forma de colocação da ou limitado, em função do sexo, o acesso a quaisquer cargos, trabalho
questão da igualdade, isto é, para a necessidade de promover a igualdade, ou categorias profissionais» 176 e art. 53º, onde se reafirma a proibição de
o que, como também acentua Maria Leonor Beleza, não é ou pode não ser discriminação, em razão do sexo e de outros factores, quanto aos direitos
a mesma coisa174• dos trabalhadores) e duas outras, as que impõem discriminações positivas,
Mas, como também já se referiu, o promover da igualdade é um objec- justificadas pela protecção social que às mulheres - e, reflexamente, a seus
tivo central da Constituição de 1976 e dele são manifestações numerosas filhos - é devida em consequência da matemidade 177 , (art. 54º, alínea e),
disposições a que farei referência mais adiante. 1ª parte, que dispõe que ao Estado incumbe uma obrigação de proteger
Por ora, enunciarei algumas das aplicações que, concre-tamente, o texto especialmente «o trabalho das mulheres durante a gravidez e após o parto»,
consticional realiza deste princípio geral de não discriminação. e art. 68º, que protege a maternidade 178).
Para além destas, outras disposições na Constituição existem que têm
3.1.1. Pelo que respeita à proibição de discriminações em razão de uma especial incidência na situação discriminada em que se encontram,
ascendência, vem o art. 36º, nº 4 estabelecer uma regra, de grande impor- social e juridicamente, as mulheres, mas que não têm, nem apenas, nem
tância social e jurídica: «Os filhos nascidos fora do casamento não podem, expressamente, esse âmbito de aplicação: assim acontece, por exemplo
por esse motivo, ser objecto de qualquer discriminação e a lei ou as repar- com o art. 67º.
tições oficiais não podem usar designações discriminatórias relativas à
filiação.» Em consequência dela, foram, como se sabe, alteradas numerosas 3.1.3. Prosseguindo nesta análise de algumas das normas que concre-
disposições do Código Civil (Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro) tizam o princípio inserto no nº 2 do art. 13º, encontramos uma sua apli-
e redigidas conformemente com ela outras do novo Código de Registo Civil cação genérica no art. 48º, nºs 1 e 4, que, respectivamente, estipulam ser
(aprovado pelo Decreto-Lei nº 51/78, de 30 de Março).
Pode ainda referir-se como, em cena medida, ligada com o preceito em 175
Cuja situação era, do ponto de vista jurídico, profundamente discriminada. Cfr. Maria Leonor
causa, a norma do nº 2 do art. 69º, que confere um direito a uma especial Beleza, O estatuto das mulheres... , cit., in Estudos..., op. cit., págs. 75 e 76.
176
protecção por parte da sociedade e do Estado às crianças órfãs ou aban- Cfr. Decreto-Lei nº 392/79, de 20 de Setembro, que garante às mulheres a igualdade de
oportunidades e tratamento no trabalho. , ·
177
Cfr. Maria Leonor Beleza, op. e loc. cit., pág. 87.
178
173
O estatuto das mulheres na Constituição, in Estudos sobre a Constituição, lºVolume, op. cit., pág. 68. Cfr. Decreto-Lei nº 112/76, de 7 de Fevereiro, que estabelece o período da chamada licença
174
Op. cit., pág. 69. de parto.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E IGUALDADE

direito de todo o cidadão o tomar parte na vida política e na direcção dos Assim, por exemplo, o já referido art. 36º, nº 4, veda, genericamente,
assuntos públicos e o «acesso, em condições de igualdade e liberdade, às as discriminações relativas aos filhos nascidos fora do casamento, pelo que
funções públicas». Sobre a não discriminação quanto ao exercício de fun- os negócios jurídicos, em que uma discriminação desse teor seja operada
ções públicas, vem a propósito lembrar o nº 2 do art. 270º que dispõe que pelas partes ou pelo seu autor, se encontrarão feridos de nulidade. No
«os funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas não contexto do regime do contrato de trabalho - desde a sua celebração ( art.
podem ser prejudicados ou beneficiados em virtude do exercício de quais- 52º, alínea e)), aos termos em que é estipulado o seu conteúdo (art. 53º)
quer direitos políticos previstos na Constituição, nomeadamente por opção até ao condicionamento da sua extinção ( art. 52º, alínea b)) - o princípio
partidária». Paralelamente, em certa medida, a esta norma, encontra-se da não discriminação impõe-se aos sujeitos jurídicos privados, sendo a
consignado o direito dos trabalhadores - genericamente considerados - a necessidade da sua observância causa de obrigação de contratar, de alte-
não serem despedidos por motivos políticos ou ideológicos (art. 52º, alí- ração do conteúdo contratual, de invalidade total ou parcial dos negócios
nea b)), direito que ao Estado incumbe garantir. Para dar apenas mais e de nulidade da. rescisão, consoante os casos.
alguns exemplos, apontam-se os arts. 20º, nº 1-que garante o acesso à jus- Também não será legítimo duvidar da relevância da proibição de discri-
tiça a todos os cidadãos, sem dependência da sua situação económica179 -, minações no âmbito das relações jurídicas entre sujeitos privados, sempre
41º, nº 2 - onde se estatui que «ninguém possa ser perseguido, privado que aquelas se traduzam na violação de um direito fundamentaP 80 : mas tal
de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas relevância não é nesse caso directa, antes mediada pela eficácia interprivada
convicções ou prática religiosa» e 230º, alínea e) - que veda às regiões dos direitos fundamentais.
autónomas «reservar o exercício de quaisquer profissões ou acesso a qual- O problema de saber se o princípio enunciado no nº 2 do art. 13º da
quer cargo público aos naturais ou residentes na região». Constituição portuguesa pode ser considerado como directamente vincu-
lante dos sujeito.s privados reconduz-se afinal ao de determinar se existe
3.2. Procurou-se transmitir uma panorâmica geral, embora não exaus- um direito à igualdade e à não discriminação e qual o seu regime.
tiva, do sentido e consequências do princípio da não discriminação, esta- Problema que adiante se colocará.
belecido no nº 2 do art.13º da Constituição portuguesa.
A importância do princípio para o tema específico do presente trabalho
resulta, por um lado, de ele não ser constitucionalmente concebido como 4. A igualdade substancial
dirigido apenas ao legislador e aos órgãos estaduais de aplicação da lei, mas
de valer também nas relações interprivadas, incumbindo ao Estado fazer 4.1. Procura1r-se-á agora examinar os aspectos em que se manifesta o
aí respeitá-lo, e por outro lado, de - na medida em que àqueles órgãos se princípio da «igualdade substancial», formulado genericamente no texto
dirige - acabar por se vir a reflectir necessariamente nestas relações, uma constitucional como obrigação de o Estado promover a igualdade real -
vez que os critérios informadores da elaboração da lei ou da sua aplicação económica, social e cultural - dos cidadãos.
não podem ser dissociados dos objectivos da sua assunção, que são justa- A prossecução desse objectivo é encarada constitucional-mente através
mente a eliminação da licitude e da possibilidade das discriminações no de três vias:
domínio do jurídico. a) numa perspectiva de recolocação da igualdade negocial, isto é, na
perspectiva da tutela do contraente débil181 ;
179
V. Parecer nº 8/78 da Comissão Constitucional, in Pareceres... cit., Sº Volume, págs. 3 e segs.,
que se pronuncia pela tnconstitucionalidade da 2• parte do corpo do art. 262º do Código de 180 Neste sentido, C. Esposito, op. e loc. cit., pág. 45, nota 61.
181
Processo das Contribuições e Impostos, na parte em que obstava ao seguimento do recurso A noção de contraente débil não é isenta de equívocos e dúvidas; não se toma aqui como
quando o recorrente não prestasse caução, devido a insuficiência de meios económicos. sinónimo de economicamente débil, mas no sentido de contratualmente débil, isto é, de situa-

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E IGUALDADE

b) numa perspectiva social de atribuição de direitos, que se consubs- além dos pontuais - embora importantes - afloramentos de uma directa
tanciam, por via de regra, na exigibilidade de prestações positivas tutela constitucional de categorias contratuais mais fracas, pode-se extrair
estaduais por parte de dadas categorias de cidadãos ( direitos sociais); da Constituição uma orientação - que há-de ter um papel informador e
c) numa perspectiva de genérica promoção de uma real igualização-, directivo na concepção de institutos civilísticos muito importante - de
através de uma legislação discriminadora em função da consideração tutela das posições contratualmente débeis, que não pode deixar de se
de situações específicas. repercutir na forma de entendimento e de aplicação do princípio da auto-
nomia privada em termos gerais e que, em alguma medida, há-de poder
Estas três perspectivas não são estanques, comportando zonas de fron- ser directamente invocável judicialmente. Prende-se este problema com
teira e de interpenetração, em que a acção estadual se socorre de mecanis- as questões mais amplas de saber se existe um direito à igualdade - ou se
mos susceptíveis de se subsumirem aos três tipos de orientação. esta é apenas uma forma de exercer os outros direitos - e se a igualdade
tem uma eficácia preceptiva directa nas relações interprivadas. Ambas as
4.2. E das três, é evidente que a primeira é, porventura não a mais questões serão abordadas em momento posterior.
importante, mas a mais imediatamente ou mais transparentemente rele-
vante no domínio da autonomia privada. Uma imposição constitucional de 4.2.1. Por ora, apontarei - como anteriormente o fiz em relação ao
actuação estatal pautada pela remoção dos obstáculos a uma efectiva igual- princípio da não discriminação alguns preceitos exemplares desta tutela
dade entre os cidadãos não pode, desde logo, a um nível geral, deixar de constitucional do contraente débil. Neste sentido, são particularmente
determinar uma orientação legislativa e jurisdicional no sentido de integrar significativos os arts. 51º a 54º da Constituição, que atribuem aos trabalha-
as posições de desequilíbrio contratual através de medidas tuteladoras da dores um conjunto de direitos a exercer no quadro da sua relação jurídica
capacidade negocial real das partes contratualmente débeis 182• Isto é, para laborai, e ao Estado impõem um consequente conjunto de obrigações,
cuja actuação se traduz na intervenção autoritária na liberdade contra-
tual no domínio laborai, que visa a particular tutela da posição contratual
ção de restrita ou inexistente liberdade real de acerto dos termos contratuais - ou da própria do trabalhador. Assim, e decorrentemente da atribuição do direito ao
decisão de contratar - em virtude de uma necessidade absoluta ou imperiosa de obter o bem ou a
trabalho, se estabelece a proibição dos despedimentos sem justa causa
prestação da actividade e da falta de fluidez da oferta, e/ ou do poder económico da contraparte.
Como salienta Pietro Barcellona, «o problema da tutela do contraente débil foi encarado,
ou fundados em motivos políticos e ideológicos, se faz impender sobre
sobretudo pela doutrina e pela jurisprudência alemãs, com referência específica ao fenómeno o Estado a garantia de «condições para que não seja vedado ou limitado,
do contrato siandard e das condições gerais do contrato», mas é duvidoso se, para além da em função do sexo, o acesso a quaisquer cargos, trabalho ou categorias
contingência histórica de ligação a esses fenómenos resultante da produção industrial de profissionais», se garante o direito a uma retribuição do trabalhador que
massa, existirão «alguns motivos de ordem técnica para uma consideração unitária das várias assegure uma e:;1dstência condigna e se estabelece, como critério do seu
questões», (Condizionigenerali di contralto e tutela dei contraente debole, Milano, 1970, página 109).
V. sobre este ponto Guido Balzarini, La tutela dei contraente piá debole nel diritto dei /avaro, Padova,
1965, págs. 35 e segs.; C. Massimo Bianca, Le autorità private. op. cit., págs. 62 a 66. Esta limitada colocação da questão revela-se, pois, tanto mais decepcionante quando se lembra
182
Como consequência de um ponto de partida constitucional, talvez igualmente claro, mas que da nossa Constinlição é fácil retirar mais do que uma mera orientação de manifesta oposição
decerto não tão marcado como essencial, diz António Liserre que «encarar o problema da a que o princípio da :1gualdade possa vir a ser na realidade esmagado pela posição de força de
garantia constitucional do poder de autonomia contratual com o fim [...] de delinear por essa um sujeito relativamente a outro; deste ponto de vista, o remeter para o art. 3 «comina» 2º da
forma os contornos precisos de uma garantia de carácter primário, susceptível de permitir Constinlição adquire significado não apenas pela referência literal aí contida aos obstáculos que
um' controlo da disciplina ditada na matéria pelo legislador ordinário, parece uma colocação «de facto» limitam a liberdade e a igualdade dos cidadãos, mas sobretudo na medida em que
inadequada e unilateral já que se resolve na exclusiva preocupação de assegurar a integridade indicia afinal numa expressão norn1ativa de primário valor o superamento de uma concepção
de um ordenamento contratual no qual nem a todos os contraentes é possível, com efeito, da igualdade que visat assegurar a tutela apenas nos limites permitidos pelo princípio segundo
exercer plenamente a autonomia. o qual todos os cidadãos são iguais perante a lei». (Tutele costituzionali, op. cit., págs. 21 a 23).

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J
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E IGUALDADE

cálculo, a quantidade, natureza e qualidade do trabalho e «o princípio de mais consistentes com o modificar-da legislação sob o impulso da alteração
que para trabalho igual salário igual» - impondo-se ao Estado a obrigação das condições económicas e sociais - se convertem-em aplicações da nova
de estabelecer e actualizar o «salário mínimo nacional, bem como o salário regra de acordo com a qual a autonomia privada resulta profundamente
máximo, tendo em conta, entre outros factores, as necessidades dos tra- modificada. Isto constitui uma verdadeira revolução [... ] que não restringe
balhadores, o aumento do custo de vida, o nível de desenvolvimento das a autonomia privada, mas a reforça; [... ] No reequilíbrio das disparidades
forças produtivas, as exigências da estabilidade económica e financeira e a de facto a autonomia privada reencontra a sua razão de ser, porque não
acumulação para o desenvolvimento»-, se atribui um direito «à prestação faria sentido que o ordenamento abandonasse aos indivíduos a composição
do trabalho em condições de higiene e segurança», se confere um direito dos conflitos de interesses, quando esta houvesse de se estabelecer pela
«ao repouso e aos lazeres, a um limite máximo da jornada de trabalho imposição de uma das partes em vez de o ser pelo acordo das partes» 183 •
( cabendo ao Estado a fixação de um horário de trabalho nacional), ao Esta alteração de situação - com as consequentes alterações em matéria
descanso semanal e a férias periódicas pagas», e, finalmente, se incumbe de interpretação e de aplicação da lei - significa, do ponto de vista teórico,
o Estado de proteger especialmente o trabalho das mulheres durante a a necessidade de uma completa inversão de posições na apreciação da legis-
gravidez e após o parto, dos menores, dos diminuídos e daqueles que exer- lação interventora no domínio da autonomia-privada. Dela, por um lado, e
çam actividades particularmente violentas ou em condições degradadas ou da função integr:adora do princípio em si, por outro, resulta uma inevitável
perigosas. O mesmo sentido de protecção contratual é claro no elevar a reconsideração da problemática da autonomia privada, seus pressupostos e
princípio constitucional do direito de contratação colectiva das associações sua forma de actuação. Restará ver se a doutrina e a jurisprudência retiram
sindicais ( art. 58º, nºs 2 e 3). do princípio todas as suas consequências teóricas e práticas.
É igualmente o objectivo de protecção contratual que informa ainda o
nº 3 do art. 65º - quanto ao arrendamento-, o art.103º - no domínio dos
contratos de venda ou fornecimento dos produtos agrícolas - ou os arts. 5. Os direitos sociais
81º, alínea m) e 109º - no que respeita à tutela do consumidor.
5.1. A posição implicada pela concepção jurídico-económica liberal
4.3. Ficam apontados alguns exemplos de directa tutela constitucional face aos hoje chamados direitos sociais e a sua íntima relação com as noções
da posição de sectores sociais no âmbito das relações contratuais, como de liberdade e igualdade, que se procuraram esclarecer, surge exemplar-
resultado da consideração da especial debilidade da respectiva posição mente ilustrada no Mémoire que Troplong apresentou em 1848 à Academia
contratual. O mesmo problema pode, em grande medida, ser (e é-o na das Ciências Morais e Políticas sobre o «espírito democrático do Code
Constituição portuguesa) encarado noutra perspectiva, que é o da protec- Civil». Segundo ele, a democracia consiste na liberdade e na igualdade
ção através da atribuição de direitos sociais. Antes de passar à sua análise, jurídicas das pessoas: o Estado não pode, consequentemente, criar obri-
parece-me útil referir que o princípio da tutela constitucional da igualdade gações a cargo de certos indivíduos em proveito de outros. A admissão da
substancial, reflectido na protecção do contraente débil, tem, para além dos existência de obrigações provindas de fonte legal no art.1370º do Código
seus directos efeitos - existência de regras dispersas que a consagram - uma de 1804 parece-lhe extremamente perigosa, empenhando-se por isso em
importância largamente excedente desses efeitos: a alteração da natureza
dessas regras e a função integradora de todo o regime legal do negócio 183
Parità di trattamento e autonomiaprivata. Padova, 1970, págs. 42 e 43.
jurídico. Quanto à primeira, pode dizer-se com Giulio Pasetti, que, à luz No mesmo sentido, C. Massimo Bianca, Le autorità private, op. cit., págs. 73 a 79.
do princípio constitucional da igualdade substancial, as normas que visam Em sentido aparentemente oposto, Guido Balzarini, que, com o fundamento da inexistência
de uma categoria conceituai unitária e inequívoca de contraente débil, parece pronunciar-se
assegurar a paridade das partes na estipulação do contrato, adquirem «uma
no sentido da inexistência de um princípio geral de tutela daquele. Cfr. La tutela dei contrante
posição nova e diversa no ordenamento, porque de excepções - cada vez piú debele ..., op. cit., págs. 40 e segs.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMI,\ PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E IGUALDADE

defender a ilegitimidade da intervenção legal fora do quadro de conciliação tiva concretizaçào dos direitos inalienáveis do homem, foi-se afirmando
e equilíbrio das liberdades. A democracia traduz-se na igualdade perante a ideia de que o Estado tinha uma missão a cumprir no preenchimento
a lei, isto é, no direito concedido a todos à protecção da lei «nas condições de tais direitos ou, ao menos, no garantir das condições da sua efectiva
de desigualdade que produziram pelo emprego legítimo das suas forças realização185 •
naturais». Daí que as classes pobres «devam procurar na actividade indivi- A primeira vez que esta ideia emerge pode situar-se no projecto de
dual o princípio do seu progresso» e não «arrastarem-se servilmente atrás Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793 de Robespierre,
do Estado para exigir que ele as alimente». assente na preocupação de reelaborar o conceito de igualdade tornando-o
A abstenção do Estado não é pois defendida na inconsciência das indissociável do de fraternidade, numa perspectiva social e não meramente
desigualdades reais, mas, porque o instrumento da promoção humana é individualista. Isto é, o Estado aparece como agente directo do «interesse
a actividade livre individual, ela é vista como condição dessa promoção. colectivo» - com a obrigação de fornecer directamente aos cidadãos
«Foi, de facto, em consequência do seu carácter demasiado individualista meios de satisfação de necessidades - e como orientador das actuações
e sobretudo demasiado indiferente às misérias das classes trabalhadoras privadas no sentido da solidariedade, da fraternidade e da salvaguarda dos
que os primeiros ataques foram dirigidos contra o Code Civil por alguns direitos fundamentais 186 • Daí que se afirme-que a «sociedade é obrigada
dos discípulos de Saint-Simon, partidários dos princípios de autoridade e a prover à subsistência de todos os seus membros, quer fornecendo-lhes
de intervenção do Estado em matéria de legislação. A libertação da mulher trabalho, quer assegurando aos que não estão em condições de trabalhar
casada, a reforma do regime sucessório, os abusos da livre concorrência e meios para viveir»; «os socorros necessários para aquele a quem falta o
a ausência de organização do trabalho, os perigos da liberdade dos con- necessário são uma dívida de quem possui o que é supérfluo»; «compete
tratos, exercendo-se sem controlo e sem protecção para os assalariados, a à lei determinar de que modo tal dívida deve ser cumprida»; «a sociedade
necessidade da intervenção da lei para introduzir no direito privado um deve favorecer com todos os seus meios o progresso da cultura pública,
espírito novo de justiça e de solidariedade, todas estas ideias e todas estas e pôr a instrução ao alcance de todos os cidadãos»; «a propriedade é o
fórmulas tão actuais, e que somos tentados a ligar a um movimento muito direito que tem cada cidadão de gozar e dispor da porção dos bens que
recente, eram já sustentadas e desenvolvidas no período da Restauração e lhe é'garantida pela lei», não podendo este direito «prejudicar nem a
da monarquia de Julho»184 • segurança, nem a liberdade, nem a existência, nem a propriedade dos seus
A noção de direitos sociais releva, genericamente, da perspectiva critica semelhantes»187 •
que o texto de Tissier citado resume e, concre-tamente, é a consequência
do desenvolvimento de algumas das ideias que enuncia. Fundamental-
mente, a viragem operada pode traduzir-se assim: às codificações subjaz 185 «O princípio fundamental do direito social já não é o conceito da igualdade das pessoas, mas
uma ideia de direitos humanos absolutos e inegáveis pela ordem jurídica, o conceito do equilíbrio entre pessoas desiguais; o direito social caracteriza-se pela intervenção
mas desse conjunto de direitos primários do homem só dois são efectiva- cada vez mais extensa e intensa do direito público em relações tradicionalmente pertencentes
ao direito privado ... "· (Salvalore Pugliatti, Diritto pubblico e privato, in Enciclopédia dei Diritto,
mente relevantes no plano jurídico - a liberdade e a igualdade - porque
Volume XII, op. cit., págs. 702 e 703).
são estes que funcionam como condicionantes da realização de todos os 186 Léon Duguit chama a atenção para a íntima relação entre esta perspectiva e a valorização

outros, uma vez que tal realização impende sobre a actividade individual; do princípio da igualdade como igualdade substancial; diz: «Claro que a Convenção não teve a
ora, à medida que a realidade demonstrava a incapacidade da actividade concepção actual de uma obrigação directa imposta ao Estado de dar assistência aos indigentes
humana individual para vencer os obstáculos económicos e sociais à efec- e de garantir trabalho aos operários sem trabalho; mas pensava que, sendo a igualdade um
direito, todos tinham um direito a que o Estado, distribuindo socorros, garantindb·trabalho a
todos. Fizesse desapa.recer tanto quanto possível as desigualdades de facto existentes», (Traité
184
Albert Tissier, Le Code Civil et les classes ouvireres, in Livre du Centenaire du Code Civil, Paris, de Droit Consfitutiormel, Tomo II. Paris, 1911, pág.17).
1904, pág. 80. 187
Robespierre, Discours et rapports à Ia Convention, Paris, 1965, págs. 123 a 128.

104 105
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA

5.2. Estava assim esboçado o primeiro núcleo daquilo que são actual-
AUTONOMIA PRIVADA E IGUALDADE

Bastará referir que, modernamente, é no primeiro pós-guerra, e mais


l
mente os direitos sociais. A história da sua elaboração doutrinária coin- particularmente na Constituição de Weimar, que se situa o modelo desses
cide, em grande parte, com a história dos dois últimos séculos da luta dos direitos 190, muito embora a sua primeira consagração legal tenha assento
homens pela sua emancipação e pela garantia dos seus direitos 188 • Excede na Constituição mexicana de 1917.
o âmbito deste trabalho, e não parece indispensável à compreensão do seu A ideia subjacente aos direitos sociais deixa de ser a da igualdade dos
objecto, o referir dessa história189 • sujeitos, convertendo-se na de necessidade de realização do equilíbrio
entre pessoas desiguais. Como afirma Radbruch, «a igualdade deixa de
188
Para uma referência cronológica aos principais marcos legais do acolhimento dos direitos ser o ponto de partida do direito, tornando-se objectivo do ordenamento
sociais, v. F. Amâncio Ferreira, A conquista dos direitos sociais, in Fronteira, nº 5, págs. 83 e segs.; jurídico, adquirindo um conteúdo diverso: de igualdade formal passa a
V. ainda a primeira parte da obra de Etienne Grisei, Les droits sociaux, 1973, dedicada às fontes igualdade (tendencialmente) substancial» 191 •
dos direitos sociais.
189
Esta ideia articula-se com uma outra, que explica aliás a íntima cone-
História que está longe de estar encerrada, sendo a permanência da luta exemplarmente
xão entre os direitos sociais e os direitos fundamentais clássicos: a de que
ilustrada pela quantidade de problemas jurídicos controversos que o tema geral dos direitos
sociais envolve. é condição necessária do exercício destes últimos por parte de todos os
Mantém muita actualidade descritiva a colocação do problema da origem histórica dos direitos cidadãos o acesso a uma situação material, social e cultural não degradada,
sociais que Karl Loewenstein faz: «Cedendo à crescente pressão e para evitar uma violenta cabendo primariiamente ao Estado a incumbência de promover as condi-
explosão, o capitalismo de livre empresa viu-se obrigado a aceder a pouco e pouco às petições ções materiais desse acesso 192•
das massas para uma melhoria económica e de uma justiça social», (Teoria de Ia Constitucion,
Pode dizer-se que o problema dos direitos sociais na actualidade se
tradução espanhola. 2• edição. Barcelona, 1976, pág. 399).
desdobra em várias questões essenciais: o conceito de Estado Social, a
Mas esta colocação, pela sua unilateralidade, resulta, ou, ao menos, permite o entendimento
dos direitos sociais (no seu amplo significado) como elementos descendentes de uma matriz natureza dos direitos sociais, o objecto desses direitos, a medida da força
ideológica diferente, e mesmo oposta à do sistema capitalista - e cujo surgimento e sobrevivên- vinculativa das suas normas consagradoras e as relações existentes entre
cia adentro deste se explicaria tão-somente por um seu mecanismo defensivo face às pressões os direitos individuais e os direitos sociais.
das lutas sociais.
A verdade é que tal explicação não pode prescindir da consideração da medida de real desvin-
5.3. O conceito de Estado Social está longe de ser unívoco e de se
culação existente entre o moderno capitalismo e os princípios do puro liberalismo económico,
encontrarem identificadas as suas características e consequências jurídi-
e das actuais necessidades daquele - e, consequentemente, de um aspecto importante de
funcionalização dos direitos sociais a estas necessidades. cas. Parece, no entanto, possível dizer, genericamente, que o Estado Social
Parece-me particularmente claro, na caracterização da dupla função dos instrumentos «sociais»
nas sociedades capitalistas contemporâneas, o seguinte extracto de Francesco Lucarelli ( cujo
padrão referencial é o sistema corporativo italiano): é, qualitativa que não quantitativamente, contemporânea do próprio sistema capitalista: ao
«Diversa é antes a estratégia ideológica e política no controlo de luta de classes, substituindo-se Estado cabe, como sempre coube, o assegurar das condições de reprodução do capitalismo e
às escolhas autoritárias as técnicas de integração e estabilização económica do sistema, típicas da suportar os respectivos custos sociais. A estadualização - ou mais amplamente, a publicização
sociedade de bem-estar que, através da sugestão da satisfação gradual da necessidade oferecida do custo do equipamento social indispensável- é não apenas uma consequência da reclamação
às classes mais desfavorecidas, prossegue o duplo objectivo de garantir a trégua social, reali- dos trabalhadores por melhores condições de vida, mas uma pretensão directa evidente dos
zando ao mesmo tempo o natural escoamento para um mercado de bens de consumo aberto à capitalistas privados.
190
aquisição de estratos sociais receptivos à satisfação das necessidades, ainda que não primárias», V. P. Biscaretti di Ruffia, Diritto Costituzionale, op. cit., págs. 689 e 690; V. também Michal
(Solidarietà e autonomia privata. op. cit., págs. 19 e 20; cfr. também pág. 81). Staszków, Quelques rentarques sur les «droits économiques et sociaux», in Essais sur lês droits de /'homme
Complementarmente, dentro desta função de multiplicador do consumo, haverá que lembrar o en Europe, Tomo III, 1961, págs. 46 e 47.
191
papel de consumidor do próprio Estado, enquanto fornecedor de bens e actividades essenciais. Apud Salvatore Pugliatti, Dirítto pubblico e privato. in Enciclopédia dei Dirítto, Volume XII, op.
Finalmente - e este parece-me ser o aspecto mais importante - a compatibilidade da interven- cit., pág. 702.
19
ção estatal de garantia da satisfação de necessidades económicas, sociais e culturais essenciais " V. 1'1ichal Staszków, op. e loc. cit., pág. 46.

106 107
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E IGUALDADE

é aquele que assume como uma das suas componentes caracterizadoras cionalmente garantidos aos cidadãos: direito ao trabalho, direitos dos
a consagração de direitos sociais. Os direitos sociais surgem assim como trabalhadores (quanto à remuneração, às formas de organização e de
elemento identificador de um certo tipo de Estado; mas, simultânea e prestação de trabalho, quanto a repouso, etc.), liberdade sindical, direito
inversamente, eles são uma consequência desse dado tipo de Estado, cuja à contratação colectiva, direito à greve, proibição do «lock-out», direito
concepção social implica consequências diversas e mais extensas que a à saúde, à assistência social, defesa da família, da infância, direito à ins-
mera consagração constitucional de um leque mais ou menos amplo de trução e à cultura, limitações à propriedade, protecção do contraente
direitos subjectivos públicos, qualificáveis como direitos sociais. O que débil, etc.
não é de modo algum indiferente para o entendimento que estes direitos
efectivamente consagrados hão-de ter, para a forma do seu exercício e até 5.3.2. «Em segundo lugar, ao Estado é imposta uma actividade de
para a descoberta de direitos sociais não expressamente consagrados, mas igualização de possibilidades de acesso ao bem-estar social, quer através
decorrentes dos princípios informadores do Estado e, estrutural e funcio- de uma política de distribuição de rendimentos, quer por uma política de
nalmente, idênticos aos expressos. investimentos em equipamentos sociais»195 • Neste sentido, visa-se sobre-
Se, por um lado, o Estado Social se reconhece em todo aquele que tudo a política financeira e fiscal do Estado, que constitui o pressuposto
consagra direitos sociais, por outro lado, é porque o Estado se qualifica da efectiva reafü:ação de grande número de direitos sociais.
como social que dos seus princípios se retira um conjunto de obriga-
ções e tarefas que têm como contrapartida activa subjectiva os direitos 5.3.3. Finalmente, o conceito de Estado Social aponta para uma refor-
sociais193 • mulação da organização social, em termos de operar uma redistribuição
do poder social, alargando-se a todas as pessoas a sua participação neste
5.3.1. Pode dizer-se que o conceito de Estado Social apela para três poder196 • ·

ordens de ideias: por um lado, a de que ao Estado cabe «garantir a todos Este aspecto pode traduzir-se na atribuição de direitos sociais (por
os seus cidadãos um mínimo de bens materiais (e culturais), quer criando exemplo, direito dos trabalhadores ao controlo da gestão das empresas)
e propiciando as condições em que eles possam obtê-los pelo seu traba- ou em direitos políticos (por exemplo, direito das organizações populares
lho, quer, não sendo isso possível, substituindo-se-lhes, prestando ele de base territori:al, como são as comissões de moradores).
próprio os necessários meios de efectivação daquele objectivo. Nesta ideia
se incluem não só o saneamento de situações de crise ou miséria social, 5.3.4. Pode, pois, dizer-se que a noção de Estado Social é mais ampla
mas também os serviços permanentes de assistência social, saúde, etc., do que a de direitos sociais e que, no essencial, ela releva de uma profunda
bem como, ainda, as medidas de protecção do trabalho e em geral das alteração da posição do Estado face à economia, isto é, da ideia de que ao
classes economicamente débeis» 194• Neste primeiro sentido, os deveres Estado cabe «fazer valer perante o económico valores próprios do político
do Estado traduzem-se em grande medida em direitos sociais constitu- e do jurídico (justiça, igualdade, paz social, etc.)» 197 •

193
Não se quer significar - pois se trata de questão não analisada -que a mera caracterização de
195
um Estado como social, isto é, a desacompanhada existência de uma cláusula de Estado Social Vital Moreira, ibid., pág. 118.
196
baste para fazer surgir na ordem jurídica direitos subjectivos públicos, invocáveis pelos cidadãos Ibid.
contra o Estado. O problema tem-se colocado e discutido na República Federal da Alemanha e 197Vital Moreira, A ordem jurídica ..., op. cit., pág.119. Como diz K Loewenstein, caracterizando a
as posições doutrinárias relativamente à natureza e alcance jurídicos da referência ao carácter orofunda mudança de perspectiva do papel do Estado, «se no individualismo clássico o Estado
social do Estado alemão, contida nos arts. 20, alínea F, e 28, alínea 1', mantêm-se divergentes. era o inimigo contra o qual havia que defender as zonas protegidas da autonomia privada, com
Cfr. sobre esta questão, Etienne Grisei, Les droits sociaux, op. cit., págs. 105 a llO. a nova filosofia social o Estado converteu-se no amigo que está obrigado a satisfazer as neces-
194
Vital Moreira, A Ordem Jurídica do Capitalismo, op. cit., pág.117. sidades colectivas da comunidade», Teoria de la Constitucion, op. cit., pág. 400.

l08 l09
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E IGUALDADE

A noção de Estado Social serve para qualificar um Estado, cujo activo sendo a sua estrutura positiva senão a consequência desta sua função 200 ;
papel no domínio económico e social é imposto constitucionalmente e em ou se lhes encontra, mais do que um conteúdo diverso, uma natureza dife-
que - não obstante a profunda diversidade de opiniões que neste domínio rente: os direitos sociais são aqueles que têm uma mais imediata finalidade
se tem expresso sob o mesmo referencial conceituai - a intervenção não de satisfação de interesses colectivos ( e de reflexo individual), enquanto
tem um carácter arbitrário ou discricionário, antes sendo orientada no os direitos individuais são aqueles que têm como finalidade imediata a
sentido de, pela utilização de um conjunto de instrumentos de natureza satisfação de inte:resses individuais 201 • Como adiante se referirá, o primeiro
e eficácia muito diversa, prosseguir um objectivo que, sinteticamente, se critério enunciado é inadequado para, unitariamente, distinguir os direitos
pode traduzir na realização e concretização da tendencial igualdade efec- sociais, contrapondo-os aos direitos fundamentais clássicos: de facto, nem
tiva dos seus cidadãos 198• todos os direitos sociais têm por objecto uma prestação positiva a obter do
Pode, em conclusão, dizer-se que a ideia de Estado Social veicula uma Estado ou de qualquer outro sujeito passivo; pelo que respeita ao segundo
global concepção de igualdade e de liberdade, que recobre o conjunto das critério, se ele é genericamente correcto, não parece, porém, susceptível
«atitudes» que, nos capítulos deste trabalho mais directamente ligados à de, por si só, identificar com rigor mínimo a categoria dos direitos sociais,
análise da Constituição portuguesa, são tratados. dado o seu carácter difuso e impreciso2º2•

5.4. Os direitos sociais, como aspectos particularizantes e concreti- 5.4.1. No último sentido enunciado, «mais do que o direito de um
zadores desta ideia geral, partilham do seu carácter de instrumentos de indivíduo, o direito social é o direito de uma categoria social determinada,
efectivação da igualdade, embora tenham uma configuração jurídica pró- de um homem concretamente definido pela sua condição, em suma, um
pria que os identifica. direito de classe» 203 • Contra esta concepção dos direitos sociais como
Em primeiro lugar, há que saber que espécie de direitos são. A aceita- direitos imediatamente colectivos, pertencentes a categorias ou grupos
ção por grande parte da doutrina de que se trata de direitos subjectivos de indivíduos, se têm pronunciado alguns autores, que entendem que a
públicos, isto é, de que têm essencialmente a mesma natureza dos direi- atribuição de tais direitos nada tem a ver com o grupo - no duplo sentido
tos individuais tradicionais, conduz a que a sua identificação seja tentada de que não é a este, mas aos indivíduos, que pertence, e de que, na sua
normalmente a partir da sua comparação com esses. E, então, ou se diz
que os direitos sociais «designam as pretensões dos particulares face ao
.
atribuicão, não foi o interesse colectivo o momento central e conformador,
mas o interesse individual-, e «a relevância dada pelos direitos sociais à
Estado ou entidades públicas a prestações a seu favor», distinguindo-se pertença daqueles que deles são sujeitos a determinados grupos deriva do
dos direitos de liberdade «porque tendem a obter do sujeito passivo o pressuposto que essa relevância serve para identificar mais exactamente as
cumprimento de obrigações positivas de fazer» 199; ou se entende que a posições pessoais daqueles, e permite portanto uma melhor correspondên-
sua característica diferenciadora radica na finalidade que lhes é própria: o
seu objectivo final é a obtenção da segurança e de uma real liberdade, não
20
° Como diz Femicio Pergolesi, os direitos individuais gravitam sobretudo em tomo da ideia
de liberdade, enquanto os direitos sociais se movem tendencial-mi;nte em torno da ideia de
198
É neste sentido que Mazziotti define o Estado Social, dizendo que «estabelecido de facto segurança e de justiç;a social. «Os primeiros impõem ao Estado um dever de abstenção e de
o princípio de que os cidadãos são iguais nos direitos, eles devem poder participar igualmente respeito das prerrogativas da pessoa; os segundos exigem uma conduta activa ou seja de pres-
nas vantagens que lhes oferece a sociedade, e é tarefa do Estado fazer com que este seu direito tações por parte do Estado ou de outros sujeitos», (Alczmi lineamenti dei «diritti sociali», Milano,
seja respeitado, evitando que os mais fortes oprimam os mais débeis e que a desigualdade de 1953, pág. 10).
201
facto destrua a igualdade jurídica», (Diritti sociali, in Enciclopédia dei Diritto, Volume XII, op. cit., Cfr. Pergolesi, ibid.
pág. 803). 202
Neste sentido, Etienne Grisei, op. cit., pág. 94.
199
Costantino Mortati, Istituzioni..., op. cit., pág. 1133. 203
Fernando Amâncio Ferreira, Uma abordagem dos direitos sociais in Fronteira, nº 6, pág. 58.

110 Ili
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E IGUALDADE

eia das normas particulares às exigências daqueles que elas têm em vista especialmente algumas categorias de sujeitos através da atribuição de um
proteger» 204 • direito social, fá-lo considerando, não os interesses e as situações indi-
Esta última posição representa uma tentativa de salvaguardar o viduais desses sujeitos, mas tendo em atenção as características comuns
princípio individualista como elemento central e essencial de qualquer de dado tipo de situações, os interesses colectivos correspondentes a
ordenamento jurídico 205 , ainda que com algum sacrifício da concreta esses tipos, e que hão-de, tendencialmente, encontrar uma projecção,
análise daqueles em que o indivíduo não é tomado como um elemento uma correspondência, nas" situações individuais que nelas se incluem.
isolado, mas é considerado no interior da organização ou grupo social a O interesse protegido é primariamente o interesse colectivo de dados
que pertence 206 • E Mazziotti, ao tentar encontrar uma explicação para a grupos sociais - cuja situação global é de desigualdade face à de outras
relevância da integração do indivíduo no grupo, no domínio dos direi- categorias de sujeitos - e é porque pertencem, e enquanto perten-
tos sociais, acaba por reduzi-la a factor de identificação dos titulares do cem, a estes grupos que aos indivíduos que os integram são atribuídos
direito, ficando por explicar porque é que eles são identificados segundo direitos.
esse critério, isto é, qual a explicação e qual a importância dessa forma de Não se cura de saber se, em concreto, o sujeito é ou não portador do
identificação. interesse que subjaz e justifica a atribuição do direito: desde que ele per-
O direito social é, em regra 207, um direito discriminador, isto é, um tença ao grupo, em função do qual o direito foi criado, ele é seu titular;
direito que é atribuído a certas categorias de sujeitos e não a outras, que inversamente, os direitos sociais não podem ser reivindicados por 'pessoas
favorece uns em relação a outros. É, pois, um tipo de direito que tem que não se encontrem integradas nos grupos, em função dos quais eles
subjacente uma noção de igualdade diferente da ideia de igualdade for- foram atribuídos, ainda que na respectiva situação individual seja identi-
mal tradicional2°8• Ora, quando a ordem constitucional opta por proteger ficável um interesse particular idêntico.
Esta colocação do problema é particularmente clara no campo do
204
Cfr. Mazziotti, Diritti sociali, cit., in Enciclopédia dei Dilitto, cit. págs. 804 e 805. direito ao trabafüo e dos direitos dos trabalhadores, cujos mecanismos
205
V. Léon Duguit, Traité de Droit Constutíonnel, op. cit., págs. 161 a 164, sobre a desvinculação de actuação (organização sindical e contratação colectiva) a evidenciam
histórica da concepção dos direitos sociais da doutrina individualista. com notável transparência. Pode dizer-se, aliás, que aqueles direitos, pela
zor, Claro que qualquer direito, na medida em que é titulado por um sujeito, tem uma dimensão
pressão das lutas operárias, foram os que primeiro ganharam elaboração
individual. Mas não é este o problema que se coloca, embora seja com ele que os defensores da
e configuração jurídicas mais precisas, funcionando como paradigma da
perspectiva individualista procuram confundi-lo.
207
Pode assim não ser: há direitos sociais que são atribuídos a todos os cidadãos, não apenas maior parte dos direitos sociais209 • A dificuldade de transposição reside no
àqueles que se achem inseridos em determinados grupos. facto de, quanto a estes, não ser possível fazer coincidir os grupos sociais
208
Falando da posição dos autores que defendem ser a extensão deste tipo de direitos o meio
adequado de ultrapassar a desigualdade social efectivamente existente, diz Pietro Barcellona
que esses «novos direitos», os direitos sociais, «são atribuídos pela lei ao sujeito já não indivi- (a mesma pessoa, de facto, pode pertencer a classes ou categorias diversas, de acordo com o
dualmente considerado (como homem ou cidadão), mas na base da pertença a determinadas tipo de relações) - seria, portanto, o ponto de atracção das novas formas de «direito desigual»
categorias e classes sociais. Ao lado do direito abstracto - igual para todos (aplicável, portanto, que caracteriza a sociedade contemporânea; o direito desigual exprimiria, pois, no plano do
a toda a actividade humana) - viria assim a estabelecer-se toda uma série de direitos especiais ordenamento as tensões e a conflitualidade que emergem das relações sociais e confirmaria
atribuídos de modo desigual na base de particulares critérios de conexão[...). Pressuposto para a «ruptura» definitiva da categoria unificante do direito subjectivo e do sujeito jurídico. À
a referência de tais direitos ao indivíduo seria o papel, a posição que lhe respeita no contexto abstracta unificação da subjectividade ir-se-ia contrapondo de forma cada vez mais visível
social (trabalhador, rendeiro, cultivador directo)». uma pluralidade de regimes e estatutos correspondentes à estratificação social», II problema dei
E continua: «A exigência de sociabilidade e de justiça realizar-se-ia assim - através da intro- rápporto fra soggetto e ordinamento, in Prassi e Teoria, cif., págs. 190 e 191.
209
dução de formas de tutela desiguais - reequilibrando a posição de inferioridade que impede Razão pela qual ainda se podem encontrar hoje autores que circunscrevem os direitos sociais
algumas categorias de sujeitos de um efectivo exercício da liberdade garantida, através do àqueles que são titulados pelos trabalhadores por conta de outrem. V. referência a esta posição
direito abstracto, a todos os cidadãos. O status social - entendido, porém, em sentido não rígido em Etienne Grisei, op. cit., págs. 91 a 93.

112 113
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E IGUALDADE

protegidos com grupos sociais homogéneos do ponto de vista da sua situa- Finalmente, a opção referida parece também condicionar um outro
ção social e económica global. Isto é, enquanto os trabalhadores assala- aspecto: o entendimento dos direitos sociais como direitos essencialmente
riados constituem um grupo social perfeitamente caracterizado pela sua colectivos permhe adoptar em relação a eles, sempre que a sua subsistência
situação social e relativamente homogéneo, já o mesmo não se passa com ou extensão tenham uma implicação com a contratação privada, o qua-
os inquilinos, com os consumidores, com as mulheres, com os jovens, etc., dro da autonomia colectiva, que releva do campo do direito do trabalho.
relativamente aos quais a identificação colectiva corresponde ao seleccionar Isto é, justamente porque quanto ao direito ao trabalho e aos direitos dos
de interesses comuns, mas não traduz uma identidade de situacões , sociais trabalhadores parece indefensável a perspectiva individualista, ninguém
ou económicas para além dos interesses seleccionados. põe em causa a legitimidade das organizações sindicais e o esquema da
Se esta dificuldade é real, isso não obsta a que, em esquema, tenha sido contratação colectiva.
o direito ao trabalho ( e complementares) que forneceu o quadro de ela- Ora, a generalidade dos direitos sociais têm aqueles como paradigma,
boração dos direitos sociais e que da concepção daquele se possam retirar e, consequentemente, parte da doutrina tem tentado adequar o modelo
indicações sobre o carácter da generalidade dos direitos sociais. da contratação colectiva às situações em que o contraente débil pertence
E não é irrelevante a opção por uma ou outra das posições. a uma das categorias legalmente protegidas, maxime, através de direitos
Em primeiro lugar, ela comporta uma perspectiva de abordagem diversa sociais210 •
de toda a ordem jurídica em causa: que o seu ponto de partida seja de cariz
individualista ou social é uma questão que tem implicações a todos os níveis 5.5. Um outro problema que se coloca a propósito dos direitos sociais
jurídicos, constituindo um elemento central de interpretação e aplicação é o de determinar qual o seu objecto. Como se viu, a ideia comum neste
das leis e de integração das lacunas. campo é a de que eles correspondem a prestações positivas por parte do
Em segundo lugar, e ainda numa perspectiva global, ela representa uma Estado 211 , isto é, que têm a estrutura de direitos positivos.
clivagem essencial no entendimento do conceito de igualdade, o que, como
é óbvio, está loríge de ser indiferente para apreciação e interpretação do 210 O interesse desta posição não se restringe à mera tentativa de transposição mecânica do
sistema jurídico no seu conjunto, e das respectivas normas. esquema da contratação colectiva para fora das fronteiras da relação jurídica laboral ( e, na
Em terceiro lugar, e no que respeita concretamente às normas atribu- medida em que se traduz nessa tentativa, tem esbarrado com dificuldades práticas de eficácia,
justamente decorrentes da real diversidade de situações, que dificulta a organização de todos os
tivas de direitos sociais e a todas aquelas que delas constituem aplicação
componentes do grupo numa «contraparte» com a homogeneidade, a determinação colectiva e a
ou concretização, a diversidade de perspectivas enunciada tem também força necessária a enfrentar a «parte forte» -ver sobre este problema, Enzo Roppo, Le restrizioni
uma grande amplitude de consequências. A mais importante consiste na delia liberta contrattuale, in II diritto privato nella società moderna, op. cit., págs. 327 e 328). Como
determinação do âmbito da autonomia privada quando se encontram em acentua Barcellona, ela representa uma perspectiva diferente da autonomia privada: «Segundo
causa direitos sociais: a entender-se que os interesses protegidos são de esta posição, portanto, o momento de incidência seria o da relação precedente ao contrato e a
natureza individual, não se vê, na maior parte dos casos, razão para não chamada legislação especial teria a função de estabelecer um regulamento de conflitos colectivos,
isto é, de confütos existentes entre categorias co_ntrapostas (inquilinos e proprietários, forne-
admitir a sua renunciabilidade por parte dos respectivos titulares, isto é,
cedores de trabalho e prestadores de trabalho, produtores de bens ou serviços e adquirentes,
nada obstaria, nesta perspectiva, à validade das convenções privadas que etc.). Por outras pala.vras, o conjunto normativo que habitualmente. se reconduz à legislação
se traduzissem na violação ou afectação dos direitos sociais; já se se partir especial seria considerado como disciplina de conflitos sociais que têm uma dimensão colectiva,
da ideia de que os interesses são primariamente de natureza colectiva, O contrato representaria apenas o momento sucessivo, final, de constituição da relação entre
assumindo dimensão individual apenas por reflexo, se tenderá a con- o sujeito particular e o empresário», (Diritto privato eprocesso económico, op. cit., págs. 241 e 242).
211
siderar como irrenunciável pelos respectivos titulares o direito social, «O direito individual reclama para o cidadão uma zona de actividade autónoma, i'mpondo ao
Estado um dever de abstenção, de não intervenção (v. g., liberdade de expressão, de informação,
entendido este como conjunto de direitos em que a lei consagra a sua
de imprensa, de reunião, de manifestação, de associação); o direito social exige urna actividade
realização. ou uma prestação positiva por parte do Estado ( v. g., fornecimento de trabalho, seguros sociais,

114 1!5
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA

Desde logo, importa neste domínio fazer uma distinção entre os direitos
AUTONOMIA PRIVADA E IGUALDADE

pelo que a sua força vinculativa dos órgãos legislativos e executivos tem
l
sociais que têm um conteúdo positivo, e que são a maioria, e aqueles que de ser proporcionalmente reduzida à margem de discricionaridade e de
têm uma estrutura idêntica à dos direitos de liberdade, como acontece liberdade destes, no que respeita à concretização de princípios de política
com a liberdade sindical, o direito à greve, o direito à criação de comis- geral 214, 21s.
sões de trabalhadores, etc. 212• Ora, mesmo em relação aos direitos sociais, Ora, a verdade é que as normas programáticas contêm «uma disciplina
cujo objecto é idêntico ao dos direitos de liberdade - como em relação a obrigatória e as directivas por elas definidas, longe de serem meros convites
estes - não pode dizer-se que a sua realização se esgota numa abstenção para legislar, assumem o carácter de verdadeiras imposições constitucionais
por parte do Estado, pois este tem de garantir as condições do seu exer-
cício por parte dos respectivos titulares, o que supõe muitas vezes uma
actividade positiva, de carácter legislativo ou, mais frequentemente, admi- 214 É justamente esta a ideia de Vieira de Andrade, que, parecendo admitir apenas inconstitu-
nistrativo ou jurisdi-cional. Mas, relativamente aos outros, é indubitável cional idades por acção relativamente aos direitos sociais, afirma: «De facto, a Constituição dá
ao legislador o poder de determinar (dizer qual é) o conteúdo dos direitos, confiando-lhe a tarefa
que o seu cumprimento passa por uma actuação estadual, principalmente
de os proteger e prosseguir pela forma e na medida que entenda possível e conveniente. Não
de carácter legislativo, mas também administrativo e jurisdicional213 • E é podem, portanto, o juiz ou, em geral, os aplicadores da co·nstituição, substituir-se ao legislador
neste ponto que as dúvidas recomeçam, pois o questionar da eficácia das nesse juízo de possibilidade e de conveniência (afirmando que o conteúdo constitucional dos
nomrns atributivas de direitos sociais reconduz-se ao problema do alcance direitos foi ilegitimamente restringido), até porque ele envolve, como vimos, uma opção delicada
das chamadas normas programáticas ou, mais genericamente, ao problema e complexa de afectação dos recursos comunitários.
do próprio conceito de normas programáticas e da inclusão das normas É uma tarefa essencialmente política, que a Constituição atribui ao legislador, e que só ele tem
competência e capacidade para exercer», Direito Constitucional, sumários das lições proferidas
sobre direitos sociais entre estas.
ao curso complementar de Ciências jurídico-políticas da Faculdade de Direito de Coimbra no
ano lectivo de 1977-i'8, pág. 240.
5.6. A análise da questão, acima colocada, da eficácia dos direitos sociais 215 Pode mesmo afirmar-se, com alguma segurança, que é clássica a caracterização por parte

não prescinde, como já se disse, de uma - ainda que breve - incursão nos da doutrina de algumas das normas constitucionais como programáticas, sempre que se tem
problemas ligados ao conceito de normas programáticas. em vista o seu impune incumprimento. É justamente o que esclarece C. Mortati a propósito da
O conceptualizar desta categoria de normas corresponde à noção de Constituição italiana: «...a tendência para contestar a sua juridicidade, com base na consideração
da índole meramente programática, não vinculante das prescrições de que deveriam resultar,
Constituição do Estado liberal: todas as normas que excedessem o estatuto
não tem outro fundamento senão o da vontade, mal dissimulada, de iludir a sua actuação»,
organizatório do Estado e o elenco dos direitos assegurados aos cidadãos (Problemi de política costituzionale, cit., in Seriai, Vol. IV, op. cit.. pág.178). No mesmo sentido, diz
contra este tinham um cariz não preceptivo, traduzindo-se num conjunto Michal Staszów: «Em França, país das declarações dos direitos, os princípios económicos e
de declarações políticas de princípio sem força vinculativa. Actualmente, e sociais foram e:;..--posto.s no preâmbulo e tanto bastou para lhes recusar o valor jurídico atribuído às
ainda que a generalidade dos constitucionalistas não negue que as normas normas inscritas nos artigos numerados da constituição. Na Constituinte italiana havia também
programáticas são verdadeiras normas jurídicas, a ideia continua a compor- projectos de excluir os direitos económicos e sociais dos títulos e dos artigos da constituição.
Para garantir a plena eficácia de tais princípios, acabou-se por inscrevê-los no próprio texto da
tar uma desvalorização de eficácia, que se pode traduzir pela convicção de
constituição. Mas se basta fazer passar uma regra do texto da constituição para o preâmbulo para
que tais normas têm um conteúdo eminentemente político, e não jurídico, lhe retirar a sua eficáda jurídica, ao contrário, não basta de forma alguma inscrever no próprio
texto da constituição um princípio que se encontrasse no preâmbulo para lhe fazer adquirir a
força obrigatória. Aí está o exeh1plo italiano para nos dar disso uma prova evidente. Na teoria
cuidados médicos, habitação, escolas), v. F. Amâncio Ferreira, Uma abordagem dos direitos sociais, e na prática aceitou-se - com uma desenvoltura chocante para todos aqueles que estão habi-
cit., in Fronteira, nº 6, pág. 58. tuados a tomar à letra os textos legislativos - o princípio de que várias regras da constituição
212
Cfr. F. Amâncio Ferreira, Uma abordagem ... , op. e loc. cit., pág. 59. são «meramente programáticas», que não têm eficácia jurídica. Assim acontece, designada-
213Nem sempre o sujeito passivo será o Estado, bera podendo acontecer que seja um sujeito mente, com a maior parte das regras respeitantes aos direitos económicos e sociais», op. cit.,
privado. pág.48.

116 117
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E IGUALDADE

de actividade legiferante» 216 e, ainda quando se entenda que «contêm direc- normas programáticas desprovida de eficácia jurídica, como ficou refe-
tivas de natureza essencialmente política» 217, não podem deixar de estar rido. Mas, ainda quando se tenha um conceito de normas programáticas
subordinadas ao controlo da inconstitucionalidade, por acção como por que as identifique com normas não exequíveis por si mesmas, não é cor-
omissão 218 • Assim sendo, não se vê grande vantagem na distinção entre recto subsumir a esse tipo todas as normas atributivas de direitos sociais:
normas programáticas e normas não exequíveis por si mesmas - que acaba, alguns destes estão insertos em disposições constitucionais com eficácia
frequentemente, por se reduzir a uma arbitrária distinção de conteúdos-, preceptiva imediata, independente pois, de mediati-zação legislativa ordi-
já que, do ponto de vista jurídico, elas têm justamente a mesma estrutura nária - assim acontece na Constituição portuguesa, por exemplo, com o
e eficácia219 • direito de acesso à justiça, sem dependência da situação de insuficiência
A menos que se salvaguarde a autonomia conceituai das normas pro- económica (art. 20º, nº 2), o direito ao trabalho e à liberdade de escolha de
gramáticas através de um entendimento cauteloso e restritivo que as profissão ou género de trabalho, com ressalva das restrições legais ditadas
identifique com princípios gerais, de carácter vago e difuso, que assinalam pelo interesse colectivo ou pela própria capacidade ( art. 50º), o direito à
objectivos ao Estado, independentemente de qualquer concretização quer retribuição do trabalho, de acordo com a quantidade, natureza e qualidade,
dos meios quer dos órgãos a utilizar para a sua prossecução22º. com observância. do princípio de que para trabalho igual salário igual ( art.
53º, alínea a)), o direito à prestação de trabalho em condições de higiene
5.6.1. Ora, é comum ver apontar as normas constitucionais consagra- e segurança ( art. 53º, alínea e)), o direito à constituição de comissões de
doras de direitos sociais como programáticas221 ; o objectivo é, frequen- trabalhadores (a.rt,º 55º), a liberdade sindical (art. 57º), o direito de con-
temente, o de minimizar o seu alcance, pela utilização de uma noção de tratação colectiva pelas organizações sindicais ( art. 58º), o direito à greve
(art. 59º), a proibição do lock-out (art. 60º), o direito à constituição de
21
J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, op. cit., pág. 178.
"
cooperativas ( art. 61º), etc. ·
217 Marcelo Rebelo de Sousa, Direito Constitucional, op. cit., pág. 98. Da pretensa distinção entre os direitos de liberdade e os direitos sociais,
218
V. J. J. Gomes Canotilho, op. cit., págs. 178 e 179; Marcelo R. de Sousa. op. cit., pág. 98; Jorge segundo este critério, e das suas dificuldades reais, diz M. Mazziotti o
Miranda, A Constituição de 1976, op. cit., págs. 346 e 347. seguinte:
219
A distinção é, no entanto, comummente feita: v., p. ex., Jorge J\!liranda, A Constituição de «Sustentou-se (SCHMITT) que, nestes últimos ordenamentos [consti-
1976, op. cit., pág. 334, dizendo que «enquanto que as normas constitucionais que prevêm
tuições de tipo ocidental ou liberal-socialista], só os direitos de liberdade
os direitos, liberdades e garantias são sempre preceptivas, ainda que não exequíveis por si
mesmas, as normas que prevêm os direitos sociais são, em larga escala, normas constitucionais seriam verdadeiros e próprios direitos fundamentais: os direitos sociais
programáticas»; no mesmo sentido, Marcelo R. de Sousa, Direito Constitucional, op. cit. pág. 98. derivariam das leis ordinárias, enquanto que as constituições os proclama-
No entanto, esta não parece ser a orientação da Comissão Constitucional, que não estabelece
qualquer distinção dentro das normas inexequíveis por si mesmas entre programáticas e outras.
V. Parecer nº 4/77, de 8 de Fevereiro de 1977, publicado em Pareceres da Comissão Constitucional,
lº Volume, Lisboa, 1977, págs. 78 e segs. Em qualquer caso, o corolário ideológico desta orientação é a necessidade de o Estado legislar
22
º Cfr. Etienne Grise!, op. cit., pág. 99. ordinariamente, desenvolvendo os princípios constitucionais, não podendo os cidadãos invocar
221
«No entanto, algumas dúvidas se suscitaram e suscitam acerca do valor jurídico de preceitos directa e imediatamente os direitos económicos, sociais e culturais consagrados nos textos
constitucionais consagrando direitos económicos, sociais ou culturais ( como, por exemplo, o constitucionais contra os órgãos do poder político constituído», M. Rebelo de Sousa, Direito
direito ao trabalho). Em relação a esses preceitos, uma linha doutrinária considera ainda que Constitucional, op. cit., pág. 168.
a sua natureza é, em rigor, de normasfilosó.fico-poltticas e não de efectivas normas jurídicas. Esta Não parece, porém, discutível tal qualificação no circunscrito âmbito em que, por exemplo,
linha doutrinária baseia-se em duas ordens de argumentos. a situa Etienne Grise!, e que é exemplarmente ilustrado pelo preâmbulo da CQnstituição
Afirma, por um lado, que as normas em causa são estritamente programáticas. Francesa de 1946, para o qual remete a Constituição de 1958, e onde se enunciam princípios
Acrescenta, por outro lado, que os direitos económicos, sociais e culturais não constituem gerais orientadores da actividade estadual e da organização social, tais como o pleno emprego,
direitos «stricto sensu», mas garantias institucionais dos direitos políticos. o desenvolvimento do indivíduo e da família (cfr. op. cit., pág. 99).

118 119
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E IGUALDADE

riam apenas nas fom1as de princípios não accionáveis e tendo por exlcusivo 5.6.2. Colocando a mesma questão noutra perspectiva, pode pergun-
destinatário o legislador. tar-se se as normas sobre direitos sociais são directamente aplicáveis e
Esta é uma posição fundada na ideia apriorística de que o reconheci- se vinculam directamente o Estado e demais entidades públicas face aos
mento do princípio liberal torna impossível o reconhecimento, com igual cidadãos e ainda se são directamente eficazes nas relações interprivadas.
eficácia jurídica, do princípio social. Ela é contrariada pelos factos: já que Dos problemas em que a questão se desdobra, aquele que mais interessa
há direitos sociais, cuja actuação não reclama integração legislativa, como no âmbito deste trabalho é, sem dúvida, o último, isto é, o de saber se os
por exemplo, em Itália, o direito ao justo salário, que a jurisprudência direitos sociais tém efeitos nas relações interprivadas, ou seja, se eles cons-
dominante considera directamente fundado no art. 36 2 da Constituição; tituem directos limites ao exercício da autonomia privada224 .
enquanto que, se é verdade que os direitos de liberdade não requerem O problema, na ordem jurídica portuguesa, tem a sua solução par-
intervenção do legislador, mas existem desde que a Constituição os tenha cialmente dependente da interpretação do art.17º da Constituição, pois,
proclamado, é igualmente verdade que a intervenção do legislador pode na medida em que os direitos sociais sejam direitos fundamentais dos
ser necessária para os tornar accionáveis e portanto para lhes dar concreta trabalhadores ou se integrem nas «demais liberdades e [em] direitos de
garantia» 222 • natureza análoga, previstos na Constituição e na lei», aplicar-se-lhes-á o
Não pode afirmar-se, pois, com generalidade, que todas as normas con- regime dos direitos, liberdades e garantias e, designadamente, o art. 18º,
sagradoras de direitos sociais ( em sentido amplo, comportando os direitos que determina que «os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos,
que a Constituição portuguesa subdivide em direitos económicos, culturais liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entida-
e sociais) sejam inexequíveis por si próprias, havendo antes que distinguir des públicas e privadas» 225 • Mas, ainda de entre os direitos sociais que não
entre as que o são, as que o não são e outras ainda, que têm uma eficácia e se possam considerar vinculativos das entidades privadas por aplicação
uma exequibilidade imediata parcial, carecendo de mediação legal para se do art. 18º - por não terem regime idêntico ao dos direitos, liberdades e
tomarem consequente e completamente exequíveis em todos os aspectos garantias - alguns deles hão-de ter relevância nas relações entre os sujeitos
que abrangem 223 • privados.
Quanto à primeira via de solução, entende Jorge Miranda que os direi-
tos dos trabalhadores que tenham estrutura de direitos sociais não podem
221
Diritti sociali, cit., in Enciclopédia dei Diritto, Vol. XII, op. cit., pág. 806.
223
considerar-se abrangidos no art. 17º, pois isso importaria que lhes fosse
Um problema independente e subsequente é o de saber se as normas constitucionais
atributivas de direitos sociais, sempre que não sejam exequíveis por si próprias, se podem aplicável «o regime concebido nos arts. 18º e seguintes exactamente para
entender como directamente consagradoras de verdadeiros direitos subjectivos, ou se, antes, os direitos da estrutura dos direitos, liberdades e garantias, e à revelia
o fundamento destes se há-de encontrar na lei ordinária.
Etienne Grisei, referindo embora o carácter controverso desta questão, afirma que a sua solução
depende do direito positivo e, designadamente, das vias de recurso que aos titulares do direito Ao invés, configuram-se como direitos subjectivos públicos a que correspondem obrigações
são oferecidas: assim, se estes puderem suscitar o problema da inconstitucionalidade por omis- do Estado», Uma abordagem ... , op. e loc. cit., pág.. 64.
são junto das instâncias competentes, tratar-se-á da atribuição constitucional de um direito 224 «Problema que não é fácil é o da eficácia dos direitos sociais relativamente aos terceiros. Dado

fundamental; se não lhes abrir qualquer via de controlo da constitucionalidade por omissão, que o Estado actua -muitas vezes as suas obrigações sociais já não executando directamente as
só na lei podem os sujeitos privados fundar as suas pretensões e do preceito constitucional não prestações relativas, mas impondo a sua execução a outros sujeitos, nasce a questão de saber se
retiram qualquer direito subjectivo público (cfr. op. cit., págs.143 e 144). as obrigações destes existem apenas relativamente à autoridade pública ou também relativa-
Com maior - talvez excessiva - simplicidade, resolve Amâncio Ferreira a questão, assentando mente àqueles que beneficiam das prestações e, neste último caso, se o direito de que aqueles
a solução exclusivamente no carácter preceptivo das normas consagradoras de direitos sociais: se tomam titulares é o mesmo direito social fundamental que exerce a sua eficâcia também
afirma este autor que «no nosso ordenamento constitucional, os direitos sociais que se carac- relativamente a terceiros, ou um direito privado resultante da relação que liga os dois sujeitos
terizam como direitos dos cidadãos a prestação do Estado não se dissolvem em puras regras entre si», M. Mazziotti, Dbitti sociati. cit., in Enciclopédia dei Diritto, Vol. XII, op. cit., pág. 806.
programáticas sem qualquer carácter vinculativo. 225
Cfr. Gomes Canotilho, Direito constitucional, 2• ed. op. cit., pág. 512.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E IGUALDADE

ainda do art. 50º» 226 • Por isso que defenda que direitos fundamentais dos na!. A actividade do Estado que diminua aquelas condições - privatização
trabalhadores são aqueles que têm «uma natureza análoga» à dos direitos, dos meios de produção, despianificação do desenvolvimento económico,
liberdades e garantias 227 • A verdade é que, como assinalam Vital Moreira oligarquização das instituições - diminui igualmente a capacidade de
e Gomes Canotilho, esta interpretação se traduz «numa inutilização da cumprir a realização dos direitos fundamentais e, logo, configura uma
própria referência aos "direitos fundamentais dos trabalhadores", que acção inconstitucional»229 • Isto significa tão-somente o reconhecer de uma
se tornaria supérflua no art. 17º, uma vez que tais direitos viriam a estar realidade e o assumi-la expressamente: a de que os direitos sociais carac-
incluídos nas "demais liberdades" e nos "direitos de natureza análoga"» 228• terizam um dado tipo de organização económica e social, e a de que são
O critério apontado na parte final do art. 17º vale só para a identificação dois momentos simultâneos e interdependentes a realização desse projecto
de outros direitos, para além dos anteriormente enunciados, como clara- social e económico e a realização integral dos direitos sociais. Não pode
mente resulta do texto; trata-se de uma enumeração e a última categoria querer significar justamente o inverso daquilo que o legislador constituinte
sumariada ( «e ainda») é que tem como critério identificador a semelhança quis prevenir: que os direitos sociais não fossem efectivamente realiza-
da natureza. dos a pretexto de que não se encontram preenchidas as condições dessa
A posição que Jorge Miranda assume, a propósito da determinação do realização.
sentido da expressão «direitos fundamentais dos trabalhadores», usada no Aliás, a nossa Constituição tem - inerentemente ao seu carácter de
artigo 17º, importa, como consequência da sua generalização, a conclusão projecto de transformação - imanente uma ideia de progressividade, que
de que nenhum direito social é directamente aplicável, nem vinculativo parece ser também partilhada pela própria concepção dos direitos sociais
das entidades públicas e privadas, pois para eles vale o preceito do art. e emergir justamente no art. 50º; isto é, os direitos sociais não se efecti-
50º, que afirma que «a apropriação colectiva dos principais meios de pro- vam, nem todos, nem cada um de per si, de uma só vez: eles hão-de ter uma
dução, a planificação do desenvolvimento económico e a democratização actuação graduall, em consonância com a progressiva transformação da
das instituições são garantias e condições para a efectivação dos direitos sociedade que se for operando, sendo, a um único tempo, factor e conse-
e deveres económicos, sociais e culturais». Não parece que esta posição quência dessa tr:ansformação.
seja correcta nem face à letra do art.17º nem face à letra e espírito do art.
50º. Pelo que respeita a este, o seu sentido é o de que, na medida em que 5.6.3. Em suma, parece ser de concluir que todos os direitos fundamen-
os direitos sociais lato sensu fazem impender sobre o Estado obrigações de tais dos trabalhadores - e, como diz o próprio J. Miranda, «por princípio,
efectivação, estas não se restringem à sua concreta realização, mas esta todos os direitos constitucionais ( e legais equiparáveis) dos trabalhado-
há-de ser integrada num processo de transformação económica e social res devem ter-Sé! por direitos fundamentais» 230 -, os direitos sociais que
mais vasto que, genericamente, se pauta pelas indicações que o artigo 50º tenham a estrutura de liberdades (liberdade de escolha de profissão ou
fornece; e, por outro lado, «o Estado não pode invocar a falta das condi- género de trabalho, direito a constituir cooperativas, liberdade sindical,
ções referidas para se furtar à efectivação dos direitos fundamentais aqui direito de contratação colectiva) e aqueles que tenham natureza análoga
referidos. Pelo contrário: a fim de os efectivar, corno a Constituição obriga, à dos direitos, liberdades e garantias ( direito de pedir a cessação das cau-
deve proceder à realização das respectivas condições. A inacção do Estado sas de violação do ambiente e de pedir indemnização por essa violação 231,
em realizar essas condições traduz-se na sua incapacidade para promover direito ao ensine, básico gratuito, direito ao acesso aos graus mais elevados
a realização daqueles direitos e, logo, configura uma omissão inconstitucio- do ensino, da investigação científica e da criação artística) têm o regime

116 229
A Constituição de 1976,op. cit., págs. 339 e 340. Vital Moreira e Gomes Canotilho, Constituição da República Portuguesa, op. cit., págs. 136 e 137.
m lbid. 23
° Cfr. J. ivliranda, A Constituição de 1976, op. cit., pág. 339.
228 231
Constituição da República Portuguesa Anotada, op. cit., pág. 75. Cfr. A Constituição de 1976. op. cit., pág. 343.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E IGUALDADE

dos direitos, liberdades e garantias, sendo-lhes aplicável designadamente direitos de liberdade 234 - incluídas nestes a propriedade e a autonomia
o art. 18º, nº 1da Constituição 232 • privada.
Mas, ainda quanto a todos os outros direitos sociais, sempre que a A explicação desta hierarquização - que tem subjacente uma ideia
sua salvaguarda possa ser posta em causa em consequência de relações de minimização dos direitos sociais - resulta do que já foi exposto sobre
negociais, parece evidente que estas devem ceder por força do preceito a concepção da sociedade assente na liberdade e na igualdade dos seus
constitucional. membros. A verdade é que a chamada democracia clássica é hoje pacifi-
E sobretudo, na medida em que eles se traduzam em concretas medi- camente considerada insuficiente e a sua evolução é, por toda a parte, no
das legislativas com repercussões na esfera relacional plivada, «o carácter sentido da chamada democracia social. «Enquanto, de facto, as exigências
irrenunciável que tais direitos assumem, a sua estreita conexão com a do princípio da liberdade parecem hoje suficientemente garantidas pelos
tutela da personalidade»233, determinam a nulidade dos acordos que os institutos anteriormente ilustrados, as exigências do princípio da igual-
violem. dade em particular no âmbito económico-social, não se encontram ainda
integralmente conseguidas. É, na realidade, evidente que deve ser obtido
5.6.4. Mas o problema da eficácia interprivada dos direitos sociais não entre todos os membros da colectividade popular um certo grau de igual-
se esgota na dimensão negativa até agora referida. Se parece claro que os dade para poder alcançar-se uma efectiva liberdade para todos; quem, de
direitos sociais constituem limites negativos ao exercício da liberdade facto, se encontra oplimido pela necessidade não pode por certo participar,
negocial, já o não é que eles possam traduzir-se em seus limites positivos. com o peso que no entanto lhe caberia, na determinação da política geral
Isto é, quando se trate de um direito a uma prestação positiva, a sua opo- seguida pelo Governo» 235 •
nibilidade nas relações interprivadas supõe que a lei determine expres- A mera ideia de democracia não parece, pois, hoje - e só por si - legiti-
samente que um dado sujeito privado ( determinável de acordo com os mar a noção liberal de primado dos direitos de liberdade (incluindo os de
critérios nela enunciados) é sujeito passivo da obrigação que constitui a liberdade económica), pois integra uma concepção de liberdade, que é ela
contrapartida do direito. Fora dos casos de previsão legal expressa - ou própria aparente, e que supõe a liberdade da necessidade que é justamente
daqueles em que tal conclusão seja obtida através da interpretação da lei, actuada através dos direitos sociais.
tendo em consideração o direito social em causa e a forma como ele se acha «O facto de os direitos sociais terem a sua fonte no princípio da igual-
consagrado - não pode dizer-se que a eficácia interprivada dos direitos dade, o qual por sua vez é o pressuposto da liberdade, já que esta «si aequa
sociais se estenda para além do âmbito negativo. non est, ne libertas quidem dici potes» (Cícero), mostra porém, que a dife-
rença entre os dois grupos de direitos não deve ser concebida como antago-
5.7. Finalmente, importa colocar o problema da relação entre os direi- nismo e contraste resultante de uma antítese de princípio. [...] Entre as duas
tos fundamentais e os direitos sociais. categolias de direitos existe pois uma implicação recíproca: a garantia dos
A posição tradicional a este propósito é a de encarar os direitos sociais direitos de liberdade é condição para que as prestações sociais do Estado
como momentos subordinados, subestimando a sua importância face aos possam ser objecto de direitos individuais; a garantia dos direitos sociais é
condição para o bom funcionamento da democracia e, consequentemente,
232 M. Rebelo de Sousa pronuncia-se no sentido de que o regime dos direitos, liberdades e para um efectivo gozo das liberdades civis e políticas,~236 •
garantias «é aplicável não apenas aos direitos enunciados no Título II da Parte l da Constituição,
como também aos direitos fundamentais dos trabalhadores, às demais liberdades e direitos de
natureza análoga previstos no texto constitucional, no qual se incluem direitos económicos, 234 V. F. Amâncio Ferreira, Uma Abordagem ..., op. e loc. cit., pág. 62.
sociais e culturais constantes do Título III, e ainda aos direitos similares criados pela lei ordinária 235 P. Biscaretti di Ruffía, Democrazia, in Enciclopédia dei Diritto, Vol. XII, op. cit., págs. 122
(artigo 17º)». Direito Constitucional, op. dt., pág.169. e 123.
133
Mazziotti. Diritti sodali. cit.. in Enciclopédia dei Dlritto, Vol. XII, op. cit., pág. 807. 236 Mazziotti, Diritti socia/i, op. e loc, cit., pág. 805.

124 125
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E IGUALDADE

Se é certo que a realização dos direitos sociais - nomeadamente dos cratização de toda a vida económica e social, actuada por alguns direitos
direitos dos trabalhadores - importa profundas consequências restritivas sociais 2•t0, e de promoção de uma igualdade e liberdade substanciais, que
da liberdade económica - em particular da propriedade e da autonomia constitui o núcl~:o de todos os direitos sociais.
privada237 - não se vê como, a prescindir de uma ultrapassada concepção A referência aos direitos fundamentais do Preâmbulo não tem uma
identificadora da liberdade com a liberdade económica, aquela realização clara conotação limitativa aos direitos de liberdade clássicos e vem de par
faz perigar o princípio constitucional da liberdade individual. com a afirmação da intenção de «abrir caminho para uma sociedade socialista,
E, mesmo no restrito domínio económico, pouco verosímeis parecem no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país
os «aterradores» quadros que se apresentam como ilustrativos das conse- mais livre, maisjusto e mais ji-aterno». Aliás, como J. Castro Mendes salienta,
quências da consagração e efectiva prossecução de alguns direitos sociais 238 , «num plano dogmático, [... ] a Constituição estabelece o género direitos e
além de que, no âmbito da nossa lei constitucional, não podem ignorar-se deveresfundamentais e nesse género a espécie direitos, liberdades egarantias» 241 ,
os apertados limites dentro dos quais os direitos típicos do liberalismo isto é, os direitos fundamentais abarcam, como direitos comuns, os direitos,
económico são previstos. liberdades e garantias, e como direitos especiais, os direitos económicos,
Isto é, se não parece correcto entender que a concretização dos direi- sociais e culturais. Na perspectiva da Constituição, o critério distintivo
tos sociais não é incompatível, nem contraditória, com a dos direitos de seria a forma de atribuição e defesa - para uns uma atribuição genérica ao
liberdade - nem mesmo com os de liberdade económica-, ilegítimo será, cidadão e para outros uma atribuição ao indivíduo inserido socialmente de
em qualquer caso, argumentar com estes últimos sem atentar no seu esta- dada maneira -, e o seu particular objectivo, o que não prejudicaria a sua
tuto constitucional, para combater os direitos sociais que a Constituição subsunção à categoria comum de direitos fundamentais 242 •
consagra. A não reserva de competência legislativa da Assembleia da República
Aliás, e também no que se refere à Constituição portuguesa, já se disse sobre direitos sociais, mas tão-somente sobre direitos, liberdades e garan-
que os princípios democrático e socialista a informam em paralelo, o que tias não me parece comportar uma despromoção daqueles em relação a
significa que os direitos sociais - sendo um elemento central da democracia estes, mas resultar apenas da consideração pragmática de que, carecendo
social - não podem ser hierarquizados em posição de inferioridade relati- a efectivação dos direitos sociais, em muitos casos, da emissão de instru-
vamente aos direitos de liberdade, em nome de uma pretensa prioridade mentos legislativos de concretização, não haveria conveniência, em seu
ou supremacia do princípio democrático 239 • Nem isso é certo, nem a noção próprio benefíc:io, em reservar a matéria para a competência exclusiva
de democracia da nossa lei constitucional prescinde da ideia de demo- do Parlamento, órgão legislativo, por sua natureza, pouco expedito e
produtivo.
237 V. Karl Loewenstein, Teoria de Ia Constitucio11. op. cit.. pág. 401. Finalmente, quanto ao facto de os direitos sociais não se encontrarem
238
Assim, a propósito da atribuição do direito ao trabalho e dos problemas por ela envolvidos, expressamente incluídos entre as matérias salvaguardadas relativamente
diz Etienne Grisei: «Enquanto reinasse o pleno emprego, o direito ao trabalho não seria minima-
à revisão constitucional, há que chamar a atenção para que o seu núcleo
mente exercido. Uma limitada penúria de trabalho não impediria o Estado de fazer face às suas
obrigações mantendo a estrutura económica actual. Mas esta correria o risco de ser perturbada
essencial - os dh-eitos dos trabalhadores, das comissões de trabalhadores
por uma crise prolongada; isto acarretaria sem dúvida alterações políticas, que nem sempre e das associações sindicais - se inclui entre os limites materiais de revisão,
seriam reversíveis; a arma teria pois um duplo efeito, sem ser necessariamente apta a suprimir o
mal. Daí que não seja surpreendente que as iniciativas sobre o direito ao trabalho tenham sido
vigorosamene combatidas; censurou-se-lhes o abrirem uma brecha no sistema da propriedade 24
°
Como, por exemplo, o direito à constituição de comissões de trabalhadores para intervir
privada dos bens de produção, o provocarem as nacionalizações, a abrogáção da liberdade do democraticamente na vida da empresa. -· -
241
comércio e da indústria e a introdução de uma economia planificada», (op. cit.. pigs.134 e 135). Direitos, liberdades egarantias - alguns aspectos gerais, in Estudos sobre a Constituição. Volume I,
239 É esta, parece, a posição que Jorge Miranda assume em A Constituição de 1976, op. cit., op. cit. pág 95.
242
págs. 336 a 339 e 345. Cfr. ibid., págs.103 a 105.

126 127
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONO,v!IA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E IGUALDADE

por um lado, e para que, por outro, aquilo que são as condições e garantia direitos fundamentais é - e nisto todos os autores estão de acordo - o de
de todos os direitos sociais, segundo o artigo 50º - o princípio da apropria- preservar a liberdade individual, no seu diversificado conteúdo de direitos
ção colectiva dos principais meios de produção, a planificação democrática fundamentais, dos atentados não apenas do Estado, dos poderes públicos,
da economia e a democratização das instituições - figuram também entre mas de quaisquer outros que possam, actuando em nome da liberdade
os limites do art. 290º, pelo que, independentemente de, em concreto, individual, ofender esta até à sua supressão efectiva244 •
cada direito social estar salvaguardado, isto é, independentemente de o Deixarem os direitos fundamentais de ser meros instrumentos da
seu catálogo constitucional concreto ter a sua permanência assegurada, defesa da liberdade do cidadão contra o Estado é, aliás, só por si, uma
a sua existência e realização, enquanto conjunto - e enquanto elemento concepção superadora da tradicional colocação do problema da liberdade
caracterizador do quadro constitucional - estão explicitamente abrangidas como polo oposto à autoridade, por um lado, e da clássica consideração
pelo art. 290º. da posição de igualdade de todos os cidadãos no seio da sociedade civil,
Em resumo, se não parece lícito privilegiar os direitos sociais sobre os por outro.
direitos de liberdade, a orientação inversa também não resulta legítima face Aliás, as duas questões - igualdade e eficácia preceptiva imediata dos
ao texto da Constituição portuguesa em vigor, como, aliás, o não é face à direitos fundamentais - não se encontram desligadas entre si: se a primeira
noção, hoje generalizada nos países de economia capitalista, de democracia constituir um direito fundamental, o seu regime, quando não discriminado
política, como democracia social. (num sentido ou noutro), há-de acompanhar o daqueles direitos 245 •

6.2. Como já por mais de uma vez referi, o art.18º, nº 1 da Constituição


6. A eficácia preceptiva dos direitos fundamentais e o seu significado portuguesa estabelece a eficácia preceptiva imediata das normas constitu-
cionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias - e, por aplicação
6.1. Um outro aspecto, como referi, da intervenção estadual na liber- do art. 17º, também das normas relativas «aos direitos fundamentais dos
dade negocial como forma de defesa da liberdade individual e como trabalhadores, às demais liberdades e ainda a direitos de natureza análoga,
resultado da consideração da desigualdade real dos cidadãos - se pode previstos na Constituição e na lei»-, estendendo essa imedita precepti-
encontrar na afirmação da eficácia directa e genericamente preceptiva -vidade do donúnio público ao domínio privado. Significa tal extensão que
dos preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais. Este esses direitos estão defendidos de qualquer ameaça provinda do domínio
princípio encontra-se consagrado na Constituição da República Federal negocial interprivado 246, isto é, que «as entidades privadas têm de respeitar
da Alemanha (através da alteração constitucional de 19 de Março de 1956), de forma directa e necessária os direitos constitucionalmente garantidos»,
cuja doutrina se tem, aliás, ocupado em esclarecer o respectivo alcance e e não que a sua eficácia depende da medida «em que o Estado configure
consequências, nomeadamente no que respeita à vinculação directa dos
sujeitos privados 243 • 244
É sobretudo quanto à questão de saber em que medida são admissíveis estes atentados,
Sem entrar aqui nesta discussão, é inegável que o sentido da afirma-
ou antes, até onde podem eles produzir-se sem que tenha de se deixar de falar em liberdade,
ção do carácter imediatamente preceptivo das normas consagradores de e na determinação das vias de tomar operante, ou melhor, na definição dos instrumentos do
controlo desses atentados, que se situam as divergências.
Isto é, não se afirmar e:,,.-pressamente que os direitos fundamentais vinculam directamente os
243
Para urna exposição das várias correntes da doutrina alemã- cuja indiferente defensabilidade sujeitos privados legitima urna discussão que em qualquer caso, não prejudica o entendimento
face ao texto constitucional português (artigo 18º, nº 1), diverso do alemão na explicitação da (comum) de que sempre ao Estado, porque ele sim, directarnente vinculado, cabe.assegurar
imediata vinculação de entidades privadas ao respeito dos direitos fundamentais constitucional- (por via legislativa e judicial sobretudo) a protecção daqueles nas relações interprivadas.
mente consagrados, é manifestamente falsa, v. J. Carlos Vieira de Andrade, Direito Constitucional, 245
V. sobre este problema, infra., capítulo VI, nº 7.
op. cit., págs 247 e segs. 246
Cfr. J. Castro Mendes, Direitos, liberdades egarantias ..., op. cit., in Estudos ... , cit., págs. 101 e 105.

128 129
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E IGUALDADE

legalmente a situação jurídica das entidades privadas de acordo com os [... ] Isto é, a noss.a constituição recebe, como princípio de valor, a autono-
direitos fundamentais» 247 . mia privada, não deixando dúvidas que não quer destruir o livre desenvol-
vimento da personalidade, a liberdade negocial, a propriedade privada,
6.2.1. Desta directa eficácia resulta o óbvio limite negativo à autono- a família ou o fenómeno sucessório e, por tudo isso, não poderia impor,
mia privada que se traduz na nulidade dos negócios contrários aos direi- de maneira nenhuma, a aplicação dos direitos, liberdades e garantias aos
tos fundamentais, o que, evidentemente, tem privilegiadas condições de particulares nos mesmos termos em que estes se aplicam ao Estado» 251 •
ocorrência, sempre que uma das partes se encontre em situação de poder Isto é, tomando como ponto de partida uma concepção de liberdade que
relativamente à outra parte - que lhe permita ditar unilateralmente os a confunde com a autonomia privada, e a pretexto de um respeito inde-
termos do regulamento negocial, a que a contraparte tenha de se subme- clinável pelos di1reitos do homem, afirma-se que, «de maneira nenhuma»,
ter-, o mesmo é dizer, quando não exista igualdade real entre os sujeitos se pode admitir que esses direitos sejam directamente salvaguardados na
contraentes. Contra esta tomada de posição constitucional algumas vozes esfera das relações entre os particulares. A sua salvaguarda é remetida para
alam1istas se levantam, alertando para a eventual eliminação da autono- a actuação das cl:áusulas gerais, o que - dado o seu conteúdo alegadamente
mia privada, ou para a própria supressão do direito privado, que de um vago e não normativo e a relutância da jurisprudência em utilizá-las -
tão largo campo de eficácia dos direitos fundamentais poderia decor- tem por consequência a real restrição da defesa do conteúdo dos direitos
rer248. Procura-se, então, circunscrever a sua operatividade aos casos em fundamentais.
que a regulamentação legal imponha no domínio privado a sua específica Ainda mesmo que se não operasse uma oitocentista e injustificada
observância- integrada pelo recurso às cláusulas gerais do direito privado sobreposição dos conceitos de liberdade e de autonomia privada, a ten-
( ordem pública, bons costumes, etc.) 249 . Em nome da liberdade humana tativa de defender, com argumentos retirados da própria Constituição, a
recusa-se aos direitos fundamentais o carácter de princípios de direito ineficácia directa dos direitos fundamentais no domínio relacional ínter-
civil, admitindo-se assim que os aspectos em que essa liberdade humana privado não teria qualquer êxito: já porque se trata de uma interpretação
se traduz e concretiza - os direitos fundamentais - sejam impunemente restritiva que não encontra qualquer apoio literal na lei, já porque a noção
violados pelos sujeitos privados 25 º. de paridade de situações na sociedade civil que lhe subjaz é contraditó-
Vieira de Andrade, por exemplo, justifica a sua posição, dizendo que ria com a posição constitucional - reiteradamente afirmada - de conhe-
os «direitos, liberdades e garantias visam precisamente a salvaguarda da cimento e tomada em consideração das desigualdades reais, já porque,
liberdade e não podem ser transformados em instrumento da sua limitação. enfim, a concepção de liberdade utilizada também não é a da Constituição.
E, note-se, estas divergentes perspectivas não são pontuais e ocasionais:
247
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição ... , op. cit., pág. 79; no mesmo sentido, Gomes elas integram-se em divergentes concepções globais, isto é, radicam em
Canotilho, Direito Constitucional, op. cit., págs. 181 e 182. modelos essencialmente diferentes e, em larga medida, antagónicos. Cir-
248
Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ibid.; Vieira de Andrade, Direito Constítucional, op.
cunscrevendo a :atenção ao quadro constitucional, pode dizer-se que não
cit., págs. 277 a 281.
249
V. Lucas Pires, Uma Constituição para Portugal, Coimbra, 1975, págs. 88 a 90: Vieira de são independentes a previsão do art.18º, nº 1 e a concepção de liberdade e
Andrade, op. cit., págs. 291 a 309. igualdade que a Constituição toma: é porque esta reconhece as desigualda-
25
° Como diz Costantino Mortati - cujo raciocínio tem como referente um quadro legal em des, e porque assenta numa ideia de liberdade substancial e consequente,
que a eficácia preceptiva não está prevista-, «seria bem estranho que os princípios que são que nela se formula a norma do nº 1 do art. 18º.
considerados pelo ordenamento como expressão de interesses fundamentais, de tal modo que Esta é uma componente de um sistema de atribuições cometidas ao
limitam a discricionaridade do legislador e precludem a partir do momento do seu estabeleci-
Estado para fazer progredir a vida social num sentido mais livre, e·constitui
mento a possibilidade de serem derrogados, não incidam pois sobre o exercício da autonomia
privada», (Considerazíoní sul/a tutel/a delía liberta ... , cit., in Problemí dí díritto pubblico ... , Scritti, III,
op. cit., pág. 346). 251
Op. cit., págs. 292 e 293.

130 131
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONO/\IIA PRIVADA AUTONOl\llA PRIVADA E IGUALDADE

uma forma concreta de abolir, tendencialmente, «a exploração e a opressão E para a questão assim colocada, exprime Mortati a opinião de que a igual-
do homem pelo homem» ( art. 9Q, alínea e) ín fine). dade não constitui objecto de um direito subjectivo autónomo, valendo
antes como «critério objectivo que opera sobre a disciplina das relações» 253 •
6.2.2. Menos evidente será, todavia, que da oponibilidade interprivada No mesmo sentido se pronuncia Cláudio Rossano, que diz que a «a tutela
dos direitos fundamentais decorram limites positivos à autonomia negocial. jurisdicional da igualdade deve encontrar-se ~ecessariam~nte li?ada a po:i-
Desde logo, de um modo geral, os direitos fundamentais visam a salva- ções jurídicas subjectivas, da violação das quazs passa a denvar a mstauraçao
guarda de espaços de liberdade individual, isto é, requerem a abstenção, do processo principal» 254, posição semelhante, aliás, à que Léon Duguit
a não violação por outrem. Por isso que, no domínio jurídico negocial, as sustenta, ao afirmar que «a igualdade não é propriamente um direito, mas
formas típicas de violação dos direitos fundamentais sejam as emergentes no entanto ela impõe-se ao Estado: pois, se o Estado a desrespeitasse, ele
de negócios realizados e não as de omissão da sua realização. desrespeitaria necessariamente os direitos de alguns» 255 •
Não se vê, porém, justificação para excluir a eficácia limitadora positiva
dos direitos fundamentais sempre que qualquer destes se ache posto em 7.2. Quanto à segunda questão, é inegável que a sua solução tem uma
causa pela recusa de contratar, ou a sua concretização dependa da inser- larga margem de dependência da posição que se assuma - e que a lei assuma
ção de uma dada cláusula no regulamento negocial. Aliás, e mesmo para - a propósito da eficácia dos direitos fundamentais: como mais uma vez
os ultracautelosos defensores de uma eficácia dos direitos fundamentais Mortati anota, «a constituição ao conferir carácter de «inviolabilidade» aos
mediada pelas cláusulas gerais do direito civil, tal solução é indiscutível, direitos da pessoa, pretendeu subtraí-los a qualquer atentado, seja qual for
pois é por demais conhecida a abundância de limites positivos à liberdade a sua proveniência, de modo que, sempre que a exigência da paridade de
negocial que a doutrina tem retirado da aplicação daquelas cláusulas gerais. tratamento seja invocável para garantir o gozo de um dos direitos antes
referidos[ ... ] não pode deixar de ser feita valer também relativamente às
relações entre pdvados, e limitar-lhes o poder dispositivo» 256 •
7. O problema do «direito à igualdade» e o da eficácia interprivada
E ainda que a igualdade «se considere não como direito autónomo, mas
desse direito
sim como o modo de ser do exercício dos vários particulares direitos, a sua
7.1. Resta, por fim, referir duas questões que são colocadas pela dou- validade, a par da destes últimos, deve estender-se a todos os sectores do
trina a propósito da igualdade: são elas a de saber se existe um autónomo ordenamento ju:rídico» 257 •
direito à igualdade e a da eficácia preceptiva da própria igualdade nas A oponibilid.tde interprivada do princípio da igualdade tem, contudo,
relações interprivadas. o seu âmbito circunscrito às situações em que a validade da manifestação
A primeira destas questões, coloca-a Costantino Mortati assim: «Trata- de vontade privada esteja dependente de fundamentação, ou àquelas em
-se agora de ver se a garantia de igual tratamento faz surgir uma distinta que, sendo discricionária, o seu autor tenha situado a sua motivação num
situação jurídica de vantagem, ou se constitui apenas um particular aspecto fundamento contraditório com o princípio da igualdade 258 •
ou modo de ser dos direitos subjectivos. O que se pergunta, em suma, é se
um acto que contradiga o princípio da igualdade é susceptível de impug- 253
Ibid.
25
nação por parte de quem pertença à categoria afectada pela discriminação, L 'egualianza giuridica ... , op. cit., págs. 445 e 446.
'
255 Traité... , op. cit., Tomo I. pág.10 e Tomo II, pág. 16.
mesmo fora ou independentemente da pessoal e efectiva privação do bem 256 Jstituzioni..., op. cit., pág. 1026: no mesmo sentido C. Massimo Bianca, Le autorità ... , págs. 4 e
da vida que sem aquele acto teria podido obter, ou se, ao contrário, só uma
5; em sentido dubitativo, G. Pasetti, Parirá di trattamento ... , op. cit., págs. 13, 14 e 29 à.31.
privação deste género toma susceptível de ser proposta uma acção» 252 • 257 Costantino Mort:iti, Considerazioni sul/a liberta .... cit., in Problemi di dirítto pubblico ... , Scritti

III, op. cit., pág. 347.


251
Istituzioni ... , op. cit., pág. 1023. 258
Neste sentido C. Mortati, op. e loc. cit.

132 133
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA

Como se vê, para a solução deste problema da relevância do princípio


da igualdade no domínio negocial é relativamente indiferente a posição
que se assuma sobre aquele outro, que ficou anteriormente enunciado, da
qualificação da posição jurídica subjectiva de tal princípio emergente 259 ,

Capítulo VII
Autonomia Privada ePropriedade

1. A tutela da autonomia privada como tutela da propriedade

Pretende-se, frequentemente, que o poder de realização livre de negó-


cios jurídicos não carece de tutela própria, uma vez que constitui uma
mera derivação do direito de propriedade privada, e, consequentemente,
consagrada esta, estará consagrado aquele 260 •
Convém, portanto, esclarecer os termos em que esta colocação do pro-
blema é correcta, para o que é essencial, embora de uma forma necessaria-
mente sumária, examinar sucessivamente vários aspectos desta questão,
a saber:

a) A razão de ser, histórica e estrutural, do nexo estabelecido entre


propriedade e autonomia privada; a concepção da propriedade
e da autonomia privada como expressões jurídicas da liberdade
humana;
b) As faculdades integradas no direito de propriedade: o gozo e a
disposição; a relação da actuação do proprietário com terceiros. A
conexão das várias formas de exercício da propriedade com a auto-
259
nomia privada;
Assim, face à lei constitucional portuguesa, do entendimento de que existe um autónomo
direito à igualdade e à não discriminação, decorreria a integração deste na classe dos «direitos
260
de natureza análoga», de que fala o art.17º, sendo-lhe consequentemente aplicável a regra do Ver, por exemplo, Ferrucio Pergolesi, Diritto Conslituiionale, 2º Volume, 15ª ed., Padova.
nº 1 do art. seguinte. 1963, pág. 324; Spagnuolo-Vigorita, L'iniziativa económica privata ..., op. cit.. págs. 226 e 227.

134 135
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E PROPRIEDADE

e) As limitações do direito de propriedade: as que relevam no domínio um carácter absoluto, no sentido de ser um poder detido pelo titular no
negocial e as que aí não relevam; seu exclusivo interesse, comportando, consequentemente, por um lado, o
d) A funcional ização da propriedade e a sua relevância no domínio direito de repelir qualquer ingerência alheia perturbadora 262 e, por outro, o
negocial; direito do propriletário a fazer seus os benefícios económicos obtidos pelo
e) A fractura do conceito unitário de propriedade e as consequências exercício do seu direito por outrem, independentemente de esse exercício
daí resultantes para a autonomia privada; se ter repercutido negativamente no seu património, isto é, independen-
j) As propriedades ou formas de propriedade constitucionalmente temente de um empobrecimento seu; ter, internamente, uma estrutura de
previstas e o âmbito do art. 62º da Constituição portuguesa; a expro- poder sobre a coisa, no sentido de que à pessoa é atribuída uma ilimitada
priação, o seu fundamento e a sua indemnizabilidade; a questão das liberdade de utilização dessa coisa263 •
chamadas expropriações de valor;
g) A dissociação entre propriedade e autonomia privada: a propriedade 2.2. A primeira destas características recorta desde logo o âmbito do
de bens de consumo e a separação entre propriedade e gestão. conceito, limitando-o à propriedade privada. A propriedade pública é,
originariamente, um conceito diverso, recondutível à designação da situ-
ação dos bens do domínio público, e que se caracteriza juridicamente, em
2. A concepção clássica da propriedade e a sua análise parte, também d.o ponto de vista do interesse do sujeito privado - grande
parte dos bens do domínio público pertencem ao Estado ou a outras enti-
2.1. Procurou-se já evidenciar a relação lógica e histórica entre a pro- dades públicas, mas essa atribuição é funcional, não correspondendo a
priedade e a autonomia privada; tal como é um momento essencial de um poder de utilização discricionário e a um direito de exclusão de ter-
caracterização da propriedade o poder dispositivo sobre o bem, assim o ceiros relativamente à coisa, mas antes a um poder de gestão no sentido
negócio jurídico é, paradigmaticamente, a troca de bens. Isto é, a afirma- de garantir o acesso ao bem por parte de todos. O domínio público pode,
ção do poder sobre o bem, assimilável à ideia moderna de propriedade,
produz-se quando a pessoa aliena a coisa, e, do mesmo passo, esta alienação
é não só a manifestação do poder negocial livre, como a situação negocial constituía um dos meios típicos de manifestação da personalidade humana, tinha o carácter de
um direito natural, face ao qual o Estado devia assumir o dever de não intervenção, limitando-
exemplar e mais importante, a partir da qual se irá construir a noção de
-se a protegê-lo e a garanti-lo, não faltavam, no entanto, indícios, no periodo jacobino, de um
negócio jurídico. modo diverso de o entender nas relações entre sociedade e indivíduo, e que terá na evolução
A moderna ideia de propriedade - o conceito que a ciência jurídica sucessiva uma muito grande importância a este respeito», (L'egualianzagiurídica nel/'ordinamento
continua hoje a utilizar ou, ao menos, a tomar como conceito básico a partir costituzionale, op. cit., pág. 91).
do qual desenvolve um trabalho teórico de adequação ou de reformulação S. Rodotà, no seu já citado estudo sobre a evolução da propriedade no período que decorre
- tem a sua origem histórica na instauração do capitalismo. No essencial, entre a Declaração dos Direitos do Homem de 89 e o Código Civil de 1804, analisa a oscilação
principal entre a concepção naturalista e a concepção ci vi lista e os significados diversos que
ela identifica-se por três características: constituir um atributo humano,
cada uma destas assume. V. Pote1'i dei privati e disciplina della proprietà, in II diritto privato nella
pressuposto irremovível da liberdade do homem 261 ; possuir, externamente, società moderna, op. cit., págs. 380 a 391.
262 Recentemente, C. B. Macpherson caracteriza os vários tipos de propriedade justamente

261
Não pode dizer-se que este recorte do conceito tenha sido alcançado linear e pacificamente. em função de o titular ter o direito de excluir terceiros ou de poder exigir não ser ele próprio
Se ele corresponde a uma corrente que acabou por prevalecer, isso não significa que se não excluído: «a propriedade privada é criada pela garantia de que um indivíduo pode excluir os
tenham manifestado, no próprio decurso da Revolução Francesa, orientações diversas. Como outros do uso ou do proveito de alguma coisa», (Property. Toronto, 1978, pág. 5).
acentua Cláudio Rossano, «o próprio direito de propriedade, até na profunda e radical alteração Cfr. S. Pugliatti, La prnprietà nel nu ovo diritto, op. cit., pág. 21.
sofrida no decurso dos séculos XIX e XX, encontrou precedentes da sua evolução na Revolução 263
V. P. Barcellona, Diritto privato e processo económico, op. cit., págs. 150 e 151; Ugo Natoli, La
Francesa. Ainda que as correntes dominantes tenham pensado que aquele, na medida em que proprietà, I, 2.' edição, Milano, 1976, págs. 21 e 22.

136 137
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E PROPRIEDADE

pois, na medida em que for de uso comum, ser configurado do ponto de A propriedade aparece, assim, pela primeira vez, como um direito de
vista do sujeito privado como um direito de acesso ao bem, em condições todos os homens e afirma-se fundamentalmente como um poder de dis-
de igualdade com todos os outros sujeitos, um direito de não ser excluído posição: ela é, pois, indissociável do contrato. Se não for proprietário de si
da utilização comum do bem264, 265 • mesmo, o homem não pode empregar-se ao serviço de outrem, tal como o
Mas o entendimento da propriedade como atributo humano inalienável detentor de bens produtivos, se não puder dispor deles, os não pode inse-
prende-se com a generalização deste direito a todos os sujeitos: como já rir no processo produtivo, utilizando-os, através do trabalho alheio, para
atrás se salientou, a concepção do liberalismo económico radica na ideia produzir bens.
de que todo o sujeito é proprietário (: ou proprietário de bens - meios Mas o proprietário de bens de produção ou aquele a quem é atribuído o
de produção - ou proprietário de si mesmo - da sua força de trabalho) e direito sobre si mesmo não podem organizar a produção senão utilizando
de que o sistema de produção inteiramente privado assenta em exclusivo os seus bens através do instrumento contratual. Por outro lado, a produ-
na utilização da sua propriedade por cada homem. O proprietário dos ção não visa o consumo dos intervenientes no processo produtivo: nem o
meios de produção utiliza-os, constituindo com eles e com os trabalha- proprietário dos bens de produção nem os trabalhadores assalariados vão
dores que emprega uma unidade produtiva; o não proprietário de meios consumir direct:amente os bens produzidos. Estes destinam-se à venda,
de produção utiliza-se a si próprio, vendendo a sua força de trabalho ao isto é, têm um mero valor de troca. Daí que o eles serem propriedade do
detentor do capital. A realização humana depende do exercício livre das dono da fábrica tenha um significado que se, restringe ao poder que este
capacidades e potencialidades de cada um, e aquele tem de ter como tem de os vender e de apropriar o preço dessa venda.
campo privilegiado de manifestção o sector económico, fonte da riqueza A inserção da propriedade no processo produtivo - indispensável
e condição do bem estar. Cada sujeito privado é, pois, um proprietário e pressuposto do funcionamento do modo de produção capitalista - foi ope-
encontra-se na sociedade como indivíduo, separado de todos os outros: rada, pois, pelo contrato: para essa indisso-ciabilidade económico-jurídica
daí que a relação entre os homens que visa o funcionamento económico encontrou-se um fundamento filosófico comum. Assim, a propriedade e a
da sociedade haja de ser estabelecida através do instrumento contratual266 • autonomia contratual são vistas como os dois aspectos essenciais e incin-
É este que permite conjugar em unidades produtiva os bens que cada díveis da liberdade humana - liberdade que é, como se sabe, natural e
um detém privadamente: os meios de produção e a força de trabalho. originária do homem - e partilham do carácter inatacável e sagrado dessa
liberdade. Estas ideias foram limpidamente expostas por Cambacéres,
164
Usa-se aqui a expressão «domínio público» para designar uma das realidades subsumíveis no seu discurso à Convenção em 1794: «Trais choses sont nécéssaires et
à «propriedade pública»; domínio público designaria pois os bens, cuja titularidade e gestão suffisent à l'homme en société: être maítre desa personne, avoir des biens
são públicas, mas cuja afectação funciona) é a utilização comum dos particulares, excluindo, pour remplir ses besoins; pouvoir disposer pour son plus grande intérêt
consequentemente, vários sectores de bens públicos. de sã personne et de ses biens.
165
Parece possível entender que tal direito à não exclusão corresponde apenas a uma aplicação Tous les droits civils se réduisent dane aux droits de liberte, de propri-
do princípio da igualdade, ou então como Macpherson, que se trata de um direito autónomo
été et de contrac:ter.»
e caracterizador do conteúdo desta propriedade, a propriedade comum.
166
«O indivíduo, pensava-se, é livre na medida em que é proprietário da sua própria pessoa e
Esta primeira característica do direito de propriedade não o é em rigor:
das suas capacidades; a essência do homem consiste em não depender da vontade de outrem, e é antes o fundamento filosófico de uma dada concepção da propriedade 267,
a liberdade é função daquilo que possui. A sociedade torna-se assim numa massa de indivíduos
livres e iguais, em relação entre si enquanto proprietários das suas capacidades e daquilo que
167
adquiriram utilizando-as. A sociedade consiste em relações de troca entre proprietários. A O carácter co-essencial da propriedade à personalidade humana e a consequçinte identi-
sociedade política toma-se um mecanismo projectado com o fim de defender esta propriedade ficação entre propriedade e liberdade encontram-se numa relação de recíproca confirmação
e de manter uma ordenada relação de troca», Macpherson, Liberdade epropriedade nas origens do com a concepção do sufrágio censitário, isto é, com a relevância atribuída à ligação entre a
pensamento burguês, cit. apudPietro Barcellona, Diritio privato ... , op. cit., pág.105. propriedade e a titularidade de direitos políticos.

138 139
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E PROPRIEDADE

concepção que, a nível jurídico, se desdobra nos dois elementos que antes diata e automaticamente, recuperando a sua função designativa de esferas
ficaram indicados como segunda e terceira características. privadas de poder exclusivo 269 •

2.3. De um ponto de vista externo, isto é, das relações do proprietário 2.4. Finalmente, parece evidente, na sequência do que já foi dito, que
com os outros sujeitos,a propriedade caracteriza-se pelo poder que aquele se configure, internamente, o direito de propriedade como um poder dis-
tem de excluir todos os outros de qualquer ingerência na esfera do seu cricionário e ilimitado de utilização do bem pelo respectivo titular: esta
domínio sobre a coisa. A propriedade de cada um representa e delimita a terceira característica - ou melhor, segunda - não é mais do que urna con-
sua esfera de poder e desse âmbito são afastados todos os outros sujeitos, sequência da anterior. Se o direito de propriedade recorta uma esfera de
incluindo o Estado. Bem se compreende que sendo a propriedade, a um só poder do sujeito com exclusão de qualquer intromissão alheia, é evidente
tempo, fundamento e aspecto da liberdade individual, ela represente um que no interior desse domínio o sujeito tem um poder soberano de decisão.
domínio exclusivo, em que a interferência de terceiros só pode significar E, mais uma vez neste ponto - positiva, como negativamente - resulta
uma restrição à liberdade. E se o proprietário tem «armas» jurídicas para clara a incindível ligação da propriedade com a liberdade contratual.
se opor, e para reagir contra a ingerência de terceiros, quando esses sejam Positivamente, porque o poder do sujeito sobre a coisa se manifesta em
outros sujeitos privados, ele tem particular necessidade de estar «armado» grande medida pela necessária mediação do contrato: assim sucede quando
contra as ingerências públicas, que representam uma maior ameaça jurí-
dica. A consagração da propriedade como direito natural, absoluto e
indeclinável, que a ordem jurídica não atribui mas reconhece e não pode «Os limites que se vieram acumulando, especialmente em relação à propriedade da terra,
representam, singularmente e no seu conjunto, as instâncias mais vivas e imediatas do interesse
deixar de reconhecer, por um lado, e a previsão do carácter excepcional,
colectivo relativamente à terra. Assim justamente a interferência deste interesse com o inte-
da especial justificação de necessidade pública, e da necessária e propor- resse (individual) do proprietário, que é sacrificado na medida em que o interesse colectivo é
cionada indemnização para a expropriação, por outro lado, constituem os protegido, sugeriu o conceito de "limite", como expediente técnico que, exprimindo as ideias
instrumentos de defesa da propriedade privada contra a ingerência esta- acessórias de exterioridade, excepcionalidade e especificidade, podia permitir manter vivo o
tal - legislativa ou administrativa. Elas são o aspecto do poder de exclusão conceito individualista da propriedade, com o seu "conteúdo normal".»
de terceiros pelo proprietário, que a nível das relações exclusivamente Esta mesma concepção de inalterabilidade conceituai é explicada de um ponto de vista jurídico
por Anna de Vita nos seguintes termos: «A teoria clássica de uma maneira geral subvalorizou
interprivadas é tão evidente.
a ligação do perfil estático com o perfil dinâmico do instituto e, separando abstractamente o
Por outro lado, e ainda em consequência do chamado carácter aboluto direito (momento estático) do exercício dele (momento dinâmico), considerado como puro
da propriedade, se apresenta este direito como caracterizado pela «elasti- facto juridicamente irrelevante, desinteressou-se do problema do limite, colocando-o à margem
cidade». Isto é, porque o direito representa, essencialmente, a atribuição da juridicidade, enquanto acidente extrínseco relativo ao regime do bem e não ao do direito.
de um domínio exclusivo sobre um bem, sempre que sobre ele recaia um Atribuindo ao fenómeno relevância estritamente económica, daí resulta, numa concepção
outro direito real menor e este se extinga268 a propriedade dilata-se, ime- em que o direito é se:parado da economia, a asserção de que o momento do limite não altera
a estrutura jurídica da propriedade, uma vez que virtualmente as prerrogativas do sujeito
permanecem, como quer a tradição, ilimitadas.
268
A ideia de «elasticidade» tem sido também utilizada como forma de preservar o conceito No esforço de salvar o conteúdo normal do direito da fractura que çs limites necessariamente
clássico de propriedade, explicando que as limitações ao conteúdo do direito não afectam operam no seu interior, perspectivava-se assim uma solução dualista do problema, e colocava-se
a sua essência. Diz Salvatore Pugliatti: «Os limites que comprimem, reduzem ou vulneram a propriedade como instituto por um lado, e os limites definidos a posteriori por normas parti-
estas faculdades ou obstam ao seu exercício, deixam o direito de propriedade, na sua essência, culares, por outro. Agindo do exterior a limitação parecia não ter implicações com a essência
inalterado; o que resulta plenamente compreensível em virtude do carácter de elasticidade, de um direito naturalmente elástico», La proprietà ... , op. cit., págs. 87 e 88.
que constitui a essência do direito de propriedade, considerado como síntese unitária ou poder 269
Pode encontrar-se uma manifestação desta prevalência da propriedade sobre os outros
único», (La proprietà . ... op.cit., pág. 15). O mesmo autor, aliás, vem na mesma obra (págs. 285 e direitos reais no momento anterior ao da oneração do bem, justamente através do princípio
286), esclarecer o objectivo visado pela utilização das ideias de «limites» e de «elasticidade»; da tipicidade dos direitos reais.

140 141
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E PROPRIEDADE

o proprietário dispõe do bem, como quando o usa, sempre que esse uso A relação entre a propriedade e a autonomia privada depende do exer-
suponha a intervenção de terceiros. cício destas faculdades e da forma desse exercício - podendo não exj.stir
Negativamente, porque, como acentua Francesco Galgano, «a liberdade ou, existindo, configurar-se de maneiras diversas, correspondentemente
contratual era, além da faculdade de dispor da propriedade, garantia de às formas de exercício da faculdade que o proprietário adapta.
conservação da mesma: a protecção rigorosa da autonomia e efectividade
do querer[ ... ] constituía protecção do proprietário em sede de «transmissão 3.2. Pelo que respeita à faculdade de gozo, podem operar-se três
da propriedade». A liberdade contratual traduzia-se, deste ponto de vista, subdistinções segundo o critério do envolvimento de terceiros na forma
no princípio segundo o qual ninguém podia ser privado dos seus próprios de gozo do bem e da modalidade da relação com os terceiros envolvi-
bens, ou sofrer modificação da propriedade, sem o concurso de uma sua dos. Estas subdistinções interessam para caracterizar os casos em que o
vontade livre e efectiva»27º. exercício do direito de propriedade pressupõe o exercício da autonomia
negocial.
3. As faculdades de gozo e de disposição: a relação do seu exercício
3.2.1. Assim, temos em primeiro lugar o gozo imediato e directo da
com a autonomia privada
coisa que se consubstancia no seu uso ou consumo; quando a coisa, objecto
3.1. O direito de propriedade analisa-se num conjunto de faculdades do direito, é tomada pelo seu proprietário como um valor de uso, não se
que, genericamente, se podem reconduzir a duas: a de gozar e a de dispor coloca qualquer problema de relação entre a propriedade e a autonomia
da coisa271 • 272 • contratuaF73• 274 •

270
II diritto priva to ji-a codice e constituzione, op. cit., pág. 21. 3.2.2. Em segundo lugar, encontram-se as situações do chamado gozo
271
«O direito de propriedade, como todo o direito subjectivo, tem por conteúdo faculdades. indirecto: a coisa é atribuída a um terceiro pelo seu proprietário que, nor-
Não é fácil, nem possível enunciar todas as concretas faculdades pelas quais eie é integrado, já malmente, recebe uma remuneração por essa cedência275 • Neste caso, as
que positivamente ele é concebido mais como unidade de poder do que como soma de faculdades; formas jurídicas da cedência são de natureza contratual, isto é, o exercício
é, porém, possível ter como ponto de referência duas faculdades típicas: a de gozo e a de dis- indirecto do gozo da coisa pressupõe a necessária mediatização contratual.
posição, a primeira das quais "não é uma faculdade determinada, mas um complexo genérico
de faculdades, e por vezes de todas as faculdades que constituem o conteúdo do direito sub-
jectivo"». Sal valore Pugliatti, La proprietà nel nuovo diritto, op. dt., pág. IS: 273
Como mais adiante se procurará assinalar, o conceito pré-capitalista de propriedade
«O conteúdo do direito de propriedade costuma ser analiticamente decomposto em poderes ou configura-se, se não exclusivamente, ao menos fundamentalmente, como direito ao uso ou
faculdades (e este último termo parece preferível, já que o primeiro é não raras vezes adaptado consumo, o que afasta decisivamente a problemática que se procura abordar.
para indicar situações diversas), cada uma das quais, de resto, aparece como a síntese de toda Como diz António Baldassarre, «a distinção entre valor de uso e valor de troca representa,
uma série de possíveis comportamentos, recondutíveis respectivamente a um único esquema de facto, o verdadeiro fundamento económico-teorético do conceito moderno de actividade
(conforme os casos, ao do gozo ou ao da disposição) na base de certas características comuns, produtiva, como actividade do empresário-comerciante, da mesma forma que este representa
e mais especificamente na base da sua relevância prática», Ugo Natoli, La prop1ietà ... , op. cit., o fim do conceito tradicional de propriedade», (Inidativa económica privata, in Ene. dei Diritto,
págs. 86 e 87. vol. XXI, Milano, 1971, pág. 585).
272 274
É, justamente, numa perspectiva descritiva deste conteúdo a abordagem que em certas O que não significa necessariamente que essa faculdade não possa, em relação a dados
ordens jurídicas a lei faz do direito de propriedade; como diz Anria de Vita a propósito da lei tipos de bens ou em dadas circunstâncias, sofrer restrições: estas não se colocam, porém, no
civil italiana, «a norma depois de uma reafirmação do aspecto activo da posição subjectiva, âmbito negocial.
275
postula a sua necessidade de concretização no âmbito e na dinâmica geral do sistema. Não se Ao menos em algumas das situações que no texto são qualificadas de gozo indireç;to, parte da
define a propriedade como direito, mas delinea-se indirectamente o seu conteúdo atribuindo doutrina vê manifest:ações não da faculdade de gozo, mas da de disposição. V. sobre estaques-
ao proprietário um direito subjectivo que se manifesta no exercício das principais faculdades tão, Pierrô Perlingieri, Introduzione alia problemática de/ia «proprietà», Camerino, 1970, págs. 67
de gozo e de disposição», La proprietà ... , op. cit., págs. 52 e 53. e68.

142 143
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E PROPRIEDADE

que tiveram como principal expressão jurídica a elaboração do conceito de


3.2.3. Finalmente, recaindo a propriedade sobre meios de produção, abuso do direito 277 • Os primeiros problemas surgidos, a apelar para soluções
pode o seu titular utilizá-los directamente, contratando a mão-de-obra restritivas do exercício do direito de propriedade, situam-se no âmbito das
necessária a essa utilização. Neste caso, temos uma forma de gozo que chamadas relações de vizinhança e a operatividade do conceito de abuso do
implica a cooperação de terceiros, sendo esta cooperação obtida tipica- direito não se estendia, por consequência, normalmente, ao domínio con-
mente no enquadramento da relação jurídica laboral. tratual quando as questões eram daquela natureza. Como diz P. Barcellona,
« ••• a concepção da propriedade como poder absoluto não é incompatível
3.3. Pelo que respeita à faculdade de disposição 276, ela é também neces- com regras que assegurem a coexistência das várias situações proprietá-
sariamente exercida através do negócio jurídico, e isto tanto no caso deres- rias, a coexistência, podemos dizer, dos vários absolutismos. Muitas vezes
peitar ao direito na sua integral idade, como se disser respeito a algumas das estas regras são apresentadas como derrogações, compressões, enquanto
faculdades que o direito comporta ( constituição voluntária de um direito na realidade constituem uma natural consequência da própria ideia de
real menor). Também quando aliena, o proprietário o faz, exercendo em
conjunto o seu direito real e a sua liberdade contratual. 277 O instituto foi originariamente concebido como um critério limitativo do exercício da pro-

Pode, portanto, concluir-se que a conexão do exercício do direito de priedade e é essa ideia funcional que contínua, em muitas ordens jurídicas e em largos sectores
propriedade com a autonomia privada só está excluída nas situações em da doutrina, a presid:ir ao seu entendimento.
que o proprietário exerce directamente o gozo da coisa, sem mediação Mas logo a própria concepção do abuso do direito defendida nos primeiros decénios deste
nem colaboração de terceiros. século, por autores como Josserand (como a variedade de situações a que cie preconizava a
sua aplicabilidade) apontam para a ampla eficácia de actuação que o conceito veio a ganhar.
Decorre daqui, com evidência, que as restrições que o direito de pro-
E recentemente - e C> próprio Código Civil português e, em particular, o seu art. 3342, é disso
priedade foi sofrendo hão-de ter-se repercutido no âmbito da autonomia um exemplo - o abuso do direito (naquilo que doutrinariamente se tornou clássico designar
privada do proprietário. pela sua formulação objectiva) constitui um dos instrumentos jurídicos mais úteis à correcção
da concepção clássica do direito civil e à pacífica subversão dessa mesma concepção.
A ideia da principal referência do abuso do direito à propriedade presidiu manifestamente à
elaboração do Código Civil nesta matéria, e a sua persistência, explícita ou implícita, continua
4. As limitações do direito de propriedade que não se repercutem no
a explicar parcialmente a posição de muitos autores de negação de uma extensão de âmbito
âmbito da autonomia negocial do proprietário e as que aí se repercu-
de operatividade do conceito. Desta disposição dizia Antunes Varela: «Na sua aparente sim-
tem ou dela resultam plicidade, o art. 3342 do novo Código [...] constitui, na verdade, um manancial inesgotável de
soluções, através das quais a jurisprudência pode cortar cerces muitos abusos, harmonizando
4.1. Não parece necessário - nem o âmbito deste trabalho o comporta os poderes do proprietário com as concepções actuais e futuras acerca da propriedade», («Do
- acompanhar em detalhe a evolução do conceito de propriedade, pelo Projecto ao Código Civil - comunicação feita na Assembleia Nacional no dia 26 de Novembro
que se tentará assinalar apenas os passos mais importantes dessa evolução. de 1966»).
Não obstante a sua origem se encontrar directamente vinculada à evolução da concepção da
O modelo conceitual originário, que se procurou caracterizar acima,
propriedade, pode dizer-se com generalidade - mas o caso português é, porventura, particular-
comportava desde logo limitações, que, embora não fossem intrínsecas mente ilustrativo dessa afirmação, sobretudo porque, após a entrada eqi vigor da Constituição de
ao direito, se impunham como limites externos de actuação dos respecti- 1976, a maioria, senão a totalidade dos problemas respeitantes às limitações, à iuncionalizacão
vos titulares, e que tinham como objectivo compatibilizar o exercício do da propriedade, encontram nela fonte imediata de solução - que se encontra ultrapassada a
direito por todos aqueles.Já antes se referiu a existência destas limitações, ideia de que o abuso do direito constitui, prioritariamente, a expressão dos limites imediatos à
propriedade. Embora a utilidade da figura se possa em muitos casos reconduzir ou-,:eferenciar
ao exercício dos poderes de disponibilidade dos bens, o actual conceito de propriedade tende
276
Contra a posição dos autores que entendem que a disposição não é uma faculdade contida a integrar desde logo a noção da sua funcionalização, continuando, porém, o abuso do direito
no direito de propriedade, v. Natoli, op. cit., págs. 95 a 105, e Salvatore Pugliatti, op. cit., pág. 33. a encontrar um largo campo de aplicação na limitação ao exercício de outros direitos.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E PROPRIEDADE

propriedade como poder absoluto. As regras sobre relações de vizinhança Daí que, como Josserand acentua, na sua origem, a teoria do abuso do
[que] estão já presentes no Código Napoleónico[ ... ] são simplesmente um direito não pusesse em causa o carácter absoluto do direito de propriedade
modo de coexistir dos poderes dos proprietários e uma melhor possibi- enquanto o interesse privado que o legitimava e suportava fosse sério e
lidade de exercícios desses mesmos»; « ... pareceu a muitos que a ideia do legítimo: só se r,econhecia uma situação de abuso quando a intenção do
abuso do direito era já um primeiro índice de socialização do direito de sujeito proprietário fosse, não a de satisfazer o seu interesse, mas a de
propriedade. Na realidade, o abuso do direito é apenas um instrumento de prejudicar terce:lros 281 •
coexistência dos poderes dos proprietários, responde à lógica da proprie- Aliás, é esclarecedora a este propósito a posição de autores que, como
dade. As [regras sobre as] relações de vizinhança, o abuso do direito são Planiol, afim1am o absurdo da figura do abuso do direito porque, como
instrumentos de apreciação das relações com o bem, que permitem exercer dizem, «o direito acaba onde começa o abuso». Não se trata de uma «rea-
melhor, mais racionalmente o poder[ ... ] não se trata de um sacrifício do ção dos espíritos lógicos», como pretende Pereira Coelho, senão reconhe-
direito de propriedade em favor da colectividade; trata-se apenas de um cendo a sua «lógica» naquilo que é a consequente afirmação do carácter
conflito entre dois proprietários» 278• 279 • Mais, para utilizar a expressão de absoluto do direito, maxime do direito de propriedade. O colocar do abuso
René Savatier, com o abuso do direito, tal como com outras figuras que fora do próprio direito não corresponde a fazer coincidir a ilegitimidade
trduzem princípios jurídicos que a consciência social considera condições de exercício de um direito, em dado condicionalismo, com a ilicitude da
essenciais de convivência, não se prosseguia outra ambição que não fosse prática de um acto totalmente desprovido de cobertura jurídica; trata-se
a de «reforçar a liberdade individual do proprietário e do contraente» 28 º. antes de reivindicar para o direito um espaço de total imunidade dentro
do qual não há restrições ou limites 282•
Os actos do titular do direito podem ser objecto de um juízo de valor
278
Diritto privato eprocesso económico ... , op. cit... págs. 166 e 167. negativo da ordem jurídica, não porque o conceito de direito subjectivo
No mesmo sentido, Anna de Vita, La proprietà ... , op. cit., págs. 91 e 92,179 a 181.
279
seja na sua estrutura objecto de restrições, mas, e apenas porque - e na
«A Constituição do ano III, por seu lado, constitui um importante testemunho da forma
como, naqueles anos de formação da moderna disciplina do direito privado da propriedade, medida em que - o sujeito exerça a sua vontade fora do círculo de poder
eram entendidos os deveres relativos a essa propriedade. Na Declaração dos deveres, que pela que para a vontade o direito representa.
primeira vez segue a dos direitos, os artigos relativos à propriedade não prevêem qualquer Mas a figura do abuso do direito foi também desde muito cedo usada
limitação dos poderes do particular tendo em vista interesses da colectividade, antes pelo como critério de legitimidade da actuação do proprietário dos meios de
contrário, reafirmam o carácter prioritário daquele direito: juntamente com a pátria, o cidadão produção na relação contratual que ele estabelece com os terceiros que
deve defender a liberdade, a igualdade e a propriedade (art. 6º); na manutenção desta última
emprega no processo produtivo, isto é, na sua actuação como parte no
assentam o cultivo das terras, todas as produções, todos os meios de trabalho e a ordem social por
inteiro (art. 8º). Tudo isto permite esclarecer a forma pela qual deve ser referida à propriedade
contrato de trabalho. Neste domínio, o conceito opera como um correc-
a máxima "não fazer aos outros aquilo que não desejarias que te fosse feito a ti", consagrada no tor das consequências da substancial desigualdade contratual das partes,
art. 2º da mesma declaração relativamente a qualquer direito. Ela não alude a qualquer situção emergente da situação proprietária de uma delas e da específica inserção
de dever do particular para com a colectividade no seu conjunto: os limites a que aproprie- dessa situação - pela natureza do bem que é objecto da propriedade - no
dade pode ser submetida, como qualquer outro direito natural, são apenas aqueles que visam processo produtivo.
assegurar "aos outros membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos", de acordo com Se no primeiro caso - o abuso do direito como instrumento da pacifi-
a fórmula explicitamente acolhida já no art. 4º da Constituição de 1791. Tende-se, por outras
cação das relações entre proprietários - as restrições decorrentes da utili-
palavras, a individualizar a esfera de competência de cada proprietário, a indicar um critério
de resolução de conflitos interprivados, e não a estabelecer instrumentos de composição do
281
interepse individual com o social», (Stefano Rodotà, Poteri dei privati e disciplina de/ia proprietà, Louis Josserand, De l'esprit des !ois ... , op. cit., págs, 24 e 25.
282
in J/ diritto privato nelta società moderna, op. cit., págs. 386 e 387). Esta premissa está particularmente clarificada em Luigi Ferri, La autonomia privada, op. cit.,
280
Les métamorphoses économiques et sociales du droit prive d'aujourd'hui, L'universalisme renouvelé págs. 407 a 409.
des disciplines juridiques, págs. 19 e segs. Cfr. Georges Ripert, La regle mora/e dans les obligations civiles. Paris, 1949, pág.160.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMI,\ PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E PROPRIEDADE

zação da figura - ainda que venham, inciden-talmente, a repercutir-se no directamente sempre estabeleceu ao exercício do direito de propriedade 286,
campo negocial - não têm, no essencial, qualquer relação com a autonomia consubstanciado no gozo directo ou, mais genericamente, com indepen-
contratual, já no segundo se passa justamente o oposto: só na medida em dência de qualquer relação da forma de exercício do direito com terceiros.
que o proprietário dos meios de produção exerce o seu direito, inserindo Uma distinção importante a operar entre esses limites «é a que respeita
os bens no processo produtivo, isto é, na medida em que o exercício do ao objecto imediato da protecção jurídica, relativamente à qual se têm
seu direito tem implicações contratuais, é que ele é sujeito a restrições, limites de direito público e limites de direito privado»287 •
que, aliás, operam, por via de regra, directamente no domínio negocial e só Como exemplo característico de limites do segundo tipo, encontram-
indirectamente no âmbito de exercício e no conteúdo da propriedade283• -se as servidões legais: neste caso, o interesse primariamente protegido é o
Em qualquer caso, a incidência do abuso do direito no momento do interesse privado do titular do prédio em benefício do qual é constituída a
exercício daquele legitima a persistência de uma relativamente inalterada servidão, muito embora, se possa, em última análise, encontrar nesta pro-
concepção do direito - em cuja atribuição o legislador não faz relevar inte- teccão a tutela reflexa de um interesse público, genérico e difuso.
resses hetero-individuais, porventura conflituantes com os do respectivo Quanto aos limites «de direito público», importa desde logo referir
titular; diversa é a consequência que emerge da concepção da função social que as formas que reveste a tutela direta do interesse público constituem
da propriedade, como se procurará adiante demonstrar284 • as fronteiras do domínio privado - isto é, elas são inicialmente expressas
em actuações externas ao direito, maxime na eÀ'Propriação. Esta consistia
4.2. Mas, para além das implicações que o uso da noção de abuso do na transferência coactiva do direito de propriedade sobre um imóvel, em
direito teve no próprio conceito de propriedade, importa analisar, de uma razão da verifica(ção de uma necessidade de ordem pública - actuando,
forma geral, os tipos de limitações que, por via legal, se foram impondo à pois, não no interior do direito, mas do seu exterior - e não comportava
noção de propriedade. Sendo o objectivo final a análise das repercussões um desconhecimento ou uma desvalorização do direito 288, pois implicava
que essas limitações provocaram no âmbito da autonomia negocial do pro-
prietário, utilizar-se-á a distinção entre as formas de exercício do direito
acima operada. 286 Deixam-se de lado os limites convencionais, pois, como nota S. Pugliatti, não se trata aqui
de verdadeiros limites, porque não representam a «tutela jurídica de um interesse alheio
contrastante com o do proprietário, mas antes [são] efeito do exercício do próprio direito de
4.2.1. Em primeiro lugar, encontra-se o exercício do direito que ou
propriedade, que surge onerado ou comprimido por vontade do proprietário», (La proprietà ...,
se traduz no consumo do bem ou no seu gozo directo e sem mediação op. cit., pág. 115).
de terceiros. Se em relação à propriedade de consumo, não existiu - e a 287
S. Pugliatti, ibid.
situação mantém-se inalterada -qualquer restrição 285, já se referiu que o 288 Diz Salvatore Pu.gliatti: «Mesmo que a transferência seja actuada coactivamente, sem a

gozo directo da coisa sofreu desde sempre algumas restrições. Para além vontade do titular do direito, por meio de uma providência estatal, o direito não é por isso
daquelas que, singularmente, se operaram através da utilização da figura desconhecido; de facto, ele não só sobrevive, mas em virtude dessa mesma causa transmissionis,
enquanto se destaca da esfera jurídica do anterior titular, penetra na do adquirente, à qual fica
do abuso do direito, não podem desconhecer-se os limites que a própria lei
ligado. E é em virtude do direito adquirido que o novo titular, dentro dos limites estabelecidos
pela lei, pode legitimamente desfrutar a coisa que constitui o seu ol;,jecto», (La proprietà ..., op.
cit., pág. 33).
283
Determinando, por exemplo, uma redução na utilizabilidade dos bens produtivos, por C. Mortati, por seu turno, entende que há um «enfraquecimento» do direito por força do
limitação de horários de trabalho. acto expropriativo, pois o proprietário «toma-se titular de uma pretensão diversa da primeira
284
V. Anna de Vita, La proprietà ..., op. cit., págs. 191, 192 e 195. dirigida à disposição do bem, consistente no interesse legitimo a exigir o correcto exercícjo do
285
Têm-se em vista restrições com carácter persistente, pois, é claro que (de forma directa poder ex-propriativo [...], ou ainda, quando tal esteja disposto, e ao lado do próprio interesse, de
ou indirecta) se podem localizar, mesmo neste âmbito, restrições ocasionais, ditadas por um novo direito subjectivo, substitutivo do expropriado e consistente no pagamento de uma
circunstâncias transitórias. indemnização», (Istituzioni ... , op. cit., pág. lll7).

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E PROPRIEDADE

necessariamente o pagamento de uma indemnização adequada ao valor limitações estabelecidas no domínio negocial que se repercutem no âmbito
do bem289 • dos poderes do proprietário.
Uma outra forma de intervenção de «direito público» no direito de As restrições às formas de gozo indirecto do bem - forma de gozo 292
propriedade é a requisição. Dizem Pires de Lima e Antunes Varela que consistente na cedência do efectivo gozo do bem contra uma remuneração,
«as requisições tanto podem incidir sobre coisas móveis ou imóveis, como isto é, numa conversão do direito de propriedade num direito a obter um
podem consistir num «facere» (serviço pessoal), ao contrário das expro- rendimento - manifestam-se muito cedo no mútuo oneroso. A usura foi
priações por utilidade pública, que incidem sempre sobre imóveis. Além durante muito tempo proibida e à sua liberalização no século XIX suce-
disso, enquanto a expropriação é uma transferência coactiva do domínio, deu a estipulação legal de limites máximos de taxas de juros, como forma
a requisição tanto pode ter por objecto a propriedade, como o gozo ou o de proteção do capital produtivo face ao capital parasitário: esta mesmo
uso da coisa»290 • motivação desenvolvimentista se reencontrará noutros aspectos do regime
Qualquer destas restrições ao direito de propriedade não comporta, legal condicionante da propriedade e do seu exercício como adiante
normalmente, consequências no âmbito dos poderes negociais do pro- se verá 293•
prietário, como já antes se havia salientado291 • Mas o domínio em que as restrições à liberdade do proprietário de
ceder o uso da coisa iniciaram um percurso contínuo e irreversível, desde
4.2.2. O mesmo não sucede com qualquer das outras formas de exercí~ o início deste século, foi o do contrato de arrendamento. Como se verá,
cio do direito que acima se deixaram esquematizadas. Ver-se-ão de seguida perdida a esperança de suster ou inflectir tal evolução do regime do arren-
alguns exemplos de limitações da propriedade com incidência no âmbito damento, procura-se recentemente opor-lhe justamente a proteção legal
dos poderes negociais do respectivo titular, ou de situações inversas, de da propriedade, entendendo que as restrições à liberdade contratual do
proprietário constituem atentados ao próprio direito de propriedade, equi-
Ugo Natoli sustenta que a expropriação não se configura com uma limitação ao direito antes valentes - se não jurídica, ao menos economicamente - a autênticas expro-
«se apresenta (para o dominus) numa veste análoga à de um qualquer outro facto de que derive priações294.
a extinção do direito», (La proprietà. op. cit., pág. 157). Pelo que respeita ao gozo dos bens produtivos, de acordo com a sua
289
Esta noção de expropriação representa um momento histórico da evolução do conflito finalidade própria, podemos encontrar limitações que, de um lado, relevam
entre os valores individuais subjacentes à propriedade privada e a progressiva imposição de
do domínio contratual295, e de outro, confinam com as restrições à iniciativa
necessidades sociais com eles conflituantes, traduzindo, ao mesmo tempo, a ideia de que a
propriedade por excelência é a propriedade dos imóveis (maxime da terra), ou, dito de outra económica privada, isto é, à liberdade de empresa296 .
maneira, que a fornia mais importante do valor é a propriedade imobiliária. Marcelo Caetano Se as primeiras se manifestam primariamente no campo negocial, as
e;..-plica esta evolução, nos seguintes termos: «Por um lado a lei civil prescrevia que a proprie- segundas não deixam de aí aflorar também, embora muitas vezes não
dade privada, forma assumida pela liberdade individual, fosse intangível no vínculo que liga o
proprietário ao objecto. Por outro, a prática administrativa demonstrava que é necessário muitas
292
vezes sacrificar o interesse individual ao interesse geral e quebrar as resistências do egoísmo a Pode também entender-se esta forma de gozo como forma de alienação, não do bem, mas
bem da solidariedade nacional. de algumas faculdades que ao proprietário cabem:
293
Assim se chegou a um compromisso, admitindo-se que o proprietário seja privado dos imóveis Sobre esta evolução, Galvão Telles, Manual de Direito das Obrigações, Tomo I, 2~ edição,
sobre que exerce o seu direito mediante justa indemnização e apenas nos casos em que os bens Coimbra, 1965, págs. 80 a 83.
294
se destinem a um fim de utilidade pública superior à função social que estavam a desempenhar», Problema que também se tem colocado face às restrições (positivas e negativas) que a
(Manual de Direito Administrativo, 9~ edição, Lisboa, 1972, Tomo II, pág. 997). E o mesmo autor legíslação urbanística impõe, em medida sempre acrescida, em todos os países.
295
define e;..-propriação a partir das premissas históricas que enuncia, desconhecendo, portanto, Sobretudo no contrato de trabalho.
296
a evolução posterior da história e do conceito. Problema interessante e ao qual se fará uma brevíssima referência no capítulo seguinte
29
° Código Civil Anotado, volume III, Coimbra, 1972, pág. 97. é o da progressiva demarcação da fronteira entre a propriedade e a iniciativa económica
291
V. supra, capítulo VII, 3.2.1. privada.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E PROPRIEDADE

tenham expressão na margem da liberdade negocial do sujeito proprie- -dissociando as duas ideias e procurando hierarquizá-las com predomínio
tário297. da de direito subjectivo299, pode afirmar-se que hoje, com alguma genera-
lidade, o conceito de função social da propriedade se impôs. Como toda
4.2.3. Finalmente, pelo que respeita ao exercício da faculdade de dis- a evolução doutrinária no campo civilístico, também esta tem sido lenta e
posição do bem, numerosas, e em parte antigas, são as limitações impos- quase exclusivamente determinada pela força e extensão que os limites e
tas por lei: desde aquelas que afectam a liberdade de contratar - como a as obrigações impostas ao proprietário assumiram na lei. Só um precon-
obrigação de vender ou a interdição de o fazer - até às que respeitam ao ceito liberal, individualista e, mais ou menos remotamente jusnaturalista,
conteúdo dos contratos de alienação em particular, o tabelamento de explica, aliás, as resistências da doutrina. Pois se é certo que a propriedade
preços-, também neste domínio a lei tem adaptado uma posição de suces-
sivo alargamento da intervenção.
É manifesto que a pretensa incompatibilidade entre propriedade e função social deriva da
conexão persistente entre propriedade e liberdade, isto é, da concepção da propriedade como
atributo humano, condição da liberdade do homem, e, do ponto de vista jurídico, releva e
5. O problema da função social da propriedade suporta-se na rígida distinção entre direito público e direito privado - como corolário e expres-
são de dois domínios estanques de interesses e instrumentos radicalmente diversos.
5.1. Uma ideia - que, embora antiga, só em momento relativamente 29 9 Esta posição é sumariada por S. Rodotà nos termos seguintes: «Conhecemos a resposta

recente ganhou uma dimensão actuante no domínio jurídico - que vem a comum: o legislador recorreu a conceitos contraditórios, de tal modo que a solução da contra-
ter grande importância na evolução do conceito de propriedade e largas ditoriedade apenas pode resultar da prevalência reconhecida a um ou ao outro. E visto que o
direito subjectivo tem raízes mais profundas na tradição jurídica e no sentir comum, se encontra
repercussões na liberdade negocial do respectivo titular é a de função
de forma mais precisa na disciplina legislativa e continua a ser reconhecido pela constituição
social. Mais ou menos ultrapassado um período em que parte da doutrina embora em presença do conceito de função, é a ele que deve ser dada a preferência, conside-
se opôs à utilização da ideia, ou afirmando a sua incompatibilidade com rando-se a função como uma mera indicação programática ou como uma fórmula resumidora
a noção de direito subjectivo 298 ou - como aconteceu em Itália perante a de tudo quanto já prevêm outras disposições, e sem autónomo valor normativo», (Poteri dei
irremediável consagração constitucional da função social da propriedade privati ... , op. e loc. cit., pág. 397). E Pietro Barcellona expõe este ponto de vista, explicando-o da
seguinte fom1a: - Segundo uma orientação largamente difundida, a função social seria um dado
absolutamente heterogéneo relativamente à ideia da propriedade como direito subjectivo, e a
197
Como acontece, por exemplo, com os condicionamentos ou pressupostos legais de exercício sua presença na Constituição explicar-se-ia como uma concessão feita pelo constituinte às forças
de uma dada actividade económica. políticas e sociais de esquerda.[...] Percebe-se muitíssimo bem qual é o sentido desta colocação
298
Salvatore Pugliatti explica assim a questão: «Pode-se, pois, concluir[ ...] que a propriedade do problema. A função social não opera no interior da propriedade, não é a propriedade que é
não é uma função em sentido técnico. Esta existiria quando o sujeito que nela é investido tivesse disciplinada de forma a realizar a função social; ao contrário, a função social é realizada pela lei;
de agir para a actuação de um interesse alheio (para além do interesse próprio), na base de um não é a propriedade que é dirigida para a realização da função social, é a lei que actua a função
dever jurídico de exercer tal actividade na medida em que ela fosse concebida para realizar social. A função social é a ratio, a justificação das intervenções do legislador que estabelecem
o interesse público. O sujeito investido na função é pois um órgão de realização do interesse uma série de limites, que definem o âmbito dos poderes proprietários; no interior desta faixa
público. E claro que a função implica poderes, que estão conexos com deveres, mas não é um externa o proprietário continua a comportar-se como titular de uma competência exclusiva»,
direito subjectivo, que implica uma soma de faculdades livres, embora se submetidas a espe- (Dirirto privato e processo económico, op. cit.. págs.179 e 180).
cíficas limitações.» Mas a propriedade, que não é uma função social, tem uma função social, É precisamente como expressão desta concepção que ganha sentido a só aparentemente irre-
que se resolve, em cada momento histórico, nos deveres e limitações que a lei concretamente levante diferença terminologica, que consiste em afirn1ar que a propriedade tem uma função
lhe impõe. Cfr. La Proprietà nel nuovo diritto, op. cit., págs.141 a 144. Para a crítica desta posição, social, por oposição àqueles que dizem que a propriedade éuma função social. O problema está,
ver, por exemplo, Ugo Natoli, La Prop,ietà, op. cit., págs. 201, 277 e 278. pois, em que - como bem observa Anna de Vita - «a qualificação ftnalística da actividade do
Um outro argumento contra a função social da propriedade seria o carácter vago e impreciso sujeito proprietário aparece de uma forma geral como menos preocupante da transformação de
deste conceito, cuja utilização pode permitir o completo esvaziamento da propriedade, (Cfr. conteúdo do seu dire~to, cuja alteração ontológica exige uma revisão da noção tradicionalmente
C. Mortati, Istituzioni ..., op. cit., pág. lll3). acolhida de direito subjectivo», La proprietà ..., op. cit., pág. 164.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E PROPRIEDADE

é um instituto civil, é um direito atribuído pela ordem jurídica, e se se 5.2. A mais ou menos convicta adesão actual da doutrina a esta ideia não
verifica que esta o atribui dentro de dado condicionalismo e faz depender encerrou porém, o debate sobre a função social da propriedade. Mantém-
a sua subsistência, em muitos casos, de um dado tipo de conduta do seu -se em aberto, nomeadamente, a questão de saber qual é efectivamente a
titular, parece óbvio que a atribuição ( e manutenção) do direito visam a função social da propriedade. A meu ver, esta questão não é susceptível de
prossecução de um objectivo social, que, de um ponto de vista passivo, é ser resolvida em abstracto, pois se encontra indissoluvelmente dependente
cometido ao proprietário. da forma como cada ordem jurídica a coloca e a resolve em cada momento
«Se a Tício foi reconhecida pelo ordenamento jurídico a propriedade histórico. A discussão doutrinária pode encontrar plena justificação no
de um certo bem e esta propriedade tem uma disciplina inderrogável, fora interior de cada ordenamento, na concreta interpretação e apreciação dos
dos poderes do titular, fora da autonomia privada,e se em tal disciplina se seus objectivos, mas não é legítimo - nem sequer útil - extrapolar as con-
integram determinadas obrigações de comportamento por parte do pro- sequências dessa discussão para um plano geral de construção conceituai.
prietário, isso significa que este só recebeu do ordenamento jurídico aquele Isto é, se pode tomar-se como um dado que o conceito de propriedade
direito de propriedade na medida em que respeite aquelas obrigações, na comporta no seu interior a ideia de função social, ou seja, que, na genera-
medida em que respeite a função social do direito de propriedade. Se o lidade das ordens jurídicas, o direito não é atribuído e mantido incondi-
proprietário não cumpre e não se realiza a função social da propriedade, cionalmente, e que o condicionalismo dessa atribuição e manutenção visa
ele deixa de ser merecedor de tutela por parte do ordenamento jurídico, a prossecução de interesses que excedem os interesses particulares do seu
desaparece o direito de propriedade»3ºº. titular, não pode, como consequência, afirmar-se quais os objectivos que
Quer isto dizer que «a função social não pode ser construída como um são prosseguidos, embora se possa dizer, de forma muito genérica, que
dado externo, como qualquer coisa que se encontra fora da estrutura da eles têm naturez;a hetero-individual.
propriedade»30 1, mas antes que a atribuição do direito «é condicionada à A questão merece tanto maior atenção quanto é certo o carácter pouco
realização das funções, dos fins que são atribuídos a cada um no âmbito preciso e inequívoco do termo social, a sua «disponibilidade ideológica»304,
da colectividade»302 • e a efectiva utilização que dele tem sido feita 305 •
A função social tem o significado de uma expressão englo-bante e Convém, pois, aqui examinar, ainda que brevemente, as formas que
sintetizadora dos limites legais e intrínsecos à propriedade, constituindo tem assumido em concreto esta função social3° 6•
estes «limites» não uma «compressão exterior do direito do proprietário,
[uma] sanção pelo incumprimento de um dever, mas antes [um] elemento
conatural do próprio direito a fim de que seja legítimo o seu exercício» 3º3; 304
F. Lucarelli, Solida,ietá ... , op. cit., pág. 88.
mas não se trata apenas, nem principalmente, de uma fórmula designativa 305
A Declaração VII da Carta dei Lavoro italiana afirmava o princípio da função social da pro-
de limites especificados na lei: ela constitui, autonomamente, uma fonte priedade nos seguintes termos: «A ordem corporativa respeita o princípio da propriedade
privada. Esta completa a personalidade humana: é um direito e, se é um direito, é também um
de limitações, na medida em que caracteriza, por certa fom1a, o direito e
dever. Tanto que pensamos que a propriedade privada deve ser entendida como função social;
o seu exercício.
não pois como propriedade passiva, mas como propriedade activa, que não se limita a gozar os
frutos da riqueza, mas a desenvolve, a aumenta e multiplica.»
306
Por não se me afigurar que revista a seriedade mínima que é indispensável pressuposto da
discussão, não se abordará aqui a posição daqueles que defendem que a consagração da fim-
ção social da propriedade (como da iniciativa económica privada), longe de se traduzir numa
300
Pietro Perlingieri, Introduzione alia problemática delia «proprietà», op. cit.. pág. 71. restrição, antes se consubstanciaria num alargamento dos poderes proprietários, um.a vez que,
301
Pietro Barcellona, Diritto privato ... , op. cit., pág. 181. constituindo o exercido destes uma manifestação daquela função, tal exercício se encontrava
302
Pietro Barcellona, op. cit., pág. 182. por definição garantido e legitimado. V. uma referência a esta posição em Ugo Natoli, La pro-
303
Anna de Vita, La Proprietà ... , op. cit., pág. 89. prietii ..., op. cit., págs. 278, 279 e 284.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL Dr\ AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E PROPRIEDADE

5.3. A primeira ideia que neste campo é possível encontrar em diver- direito de propriedade respeita quase exclusivamente aos meios de pro-
sos ordenamentos é a da protecção da propriedade, enquanto utilização dução» (pense-se, por exemplo, nos bens culturais ou nos imóveis urba-
produtiva dos bens. Isto é, a função social consubstancia-se no interesse nos). E, de uma forma geral, como acentua Natoli, pode dizer-se que, por
social de incremento da produção e de aumento de riqueza. Ideia de que mínima que seja, a função social pode encontrar-se em qualquer situação
decorrem dois tipos de consequências (na prática, o percurso é inverso: de propriedade308 •
o surgimento dos dois tipos de tutela revela a sua ideia inspiradora): pro- O que parece poder afirmar-se é que a coincidência frequentemente
tecção do utilizador produtivo do bem e desprotecção do proprietário que operada entre função social e uma dada categoria de bens ( os meios de
não o usa produtivamente, mesmo sem coexistir outra situação jurídica produção) tem subjacente uma dada concepção da função social - a que
traduzida no efectivo aproveitamento do bem. circunscreve o seu significado ao preva-lecimento de critérios globais
Basta esta colocação do problema para ser evidente que neste âmbito o atinentes à organização privada da produção, entendida a melhoria desta
conceito de função social se acha estreitamente vinculado a um dado tipo como de exclusivo ou dominante interesse público. Posição incorrecta
de propriedade: a propriedade de bens produtivos307• Mas deixa-se por ora mesmo em abstracto, mas que o é em particular no contexto do ordena-
a análise da relevância da natureza dos bens que são objecto da proprie:., mento português.
dade no estatuto desta, muito embora queira desde já chamar a atenção Quanto à tutela do primeiro tipo enunciado - a tutela do utilizador
para o que me parece ser uma incorrecta posição de alguns autores, que produtivo do bem - são suas ilustrações relativamente antigas a elabora-
circunscrevem a função social à propriedade dos meios de produção. Se ção dos conceitos de propriedade industrial e comercial e a protecção do
é inegável que a qualificação dos bens sobre que incide a propriedade é arrendatário industrial ou comercial.
essencial, em muitos aspectos, para a determinação do exacto sentido da
função social que o direito em concreto há-de assumir (no seu «quanto» e e
5.3.1. O surgimento de novas importantes formas de riqueza, diver-
no seu «como»), e que a funcionalização - porque respeita, na sua essên- sas da imobiliária e muitas vezes conflituantes com ela, está na origem
cia, à vincu-lação dos bens detidos privadamente à prossecução de fins de dos conceitos de propriedade comercial e industrial. A elaboração destes
natureza social e colectiva - se conexiona e se referencia desde logo à rele- conceitos responde à necessidade de tutela dessas formas de riqueza, em
vância económica que esses bens comportam, não podem acompanhar-se particular quando essa tutela correspondia a uma prevalência concedida
autores, como Vital Moreira, na afirmação de que «a "funcionalização" do por lei relativamente ao direito de propriedade, tal como ele era origi-
nariamente concebido 309 • Isto é, aquilo que era susceptível de ostensiva-
1 7
·º «Deve antes de mais observar-se que relativamente aos bens de produção não pode pensar- mente surgir como uma limitação à propriedade em benefício de outros
-se numa função social da propriedade quando esta está dissociada da empresa, já que o gozo interesses privados, como o resultado de uma opção legislativa em detri-
socialmente relevante dos mesmos não pode realizar-se por ouu·a forma que não seja a da sua mento da propriedade, integra-se como uma opção entre interesses de
organização com o fim produtivo e, portanto, os limites que se podem configurar em função
dignidade semelhante, protegidos juridicamente pela mesma forma, como
daquele acabam por se identificar com os limites estabelecidos à empresa. O único caso de
uma opção entr,e propriedades. Como diz Pietro Barcellona: «Antes do
dissociação entre propriedade c empresa capaz de gerar uma responsabilidade própria do
titular do bem é o caso negativo da abstenção por parte do proprietário de qualquer espécie mais considerámos a introdução de instrumentos do tipo genericamente
de utilização produtiva [...] Está-se, em contrapartida, fora das hipóteses de responsabilidade "autoritativo" que aparentemente estabelecem limitaçoes à propriedade e
quando o proprietário se priva do poder de gestão do bem transferindo-o para outros, gratui-
tamente ou mediante compensação que não seja calculada em função dos resultados da gestão.
Costuma ainda falar-se de uma dissociação, mas aqui com referência a uma situação de facto, a 308
La proprietà, op. cit., pág. 200.
propósito do funcionamento" das sociedades anónimas em que a massa dos accionistas proprie- 309
E isto muito embora da diversidade da natureza do objecto decorram necessárias conse-
tários é praticamente estranha à empresa... », (Costantino Mortati, Problemi di diritto pubblico ..., quências jurídicas que dificultam, em larga medida, a identificação da forma de tutela. Cfr.
cit., Scritti, vol. III. op. cit., pág. 173). Salvatore Pugliatti, La proprieta - op. cit., págs. 24 7 a 252.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E PROPRIEDADE

que, na realidade, constituem mecanismos com os quais o legislador opera a elaboração do conceito de empresa, como acervo de bens e direitos, cuja
escolhas entre os interesses privados. Em segundo lugar, assinalámos 0 unidade é funcional e se consubstancia numa actividade de produção ou
fenómeno da extensão do esquema proprietário (isto é, do esquema de de distribuição de bens ou serviços314 •
tutela reservada à propriedade) a novas formas de riqueza ( os direitos Finalmente, não pode deixar-se sem referência um outro aspecto, que
sobre bens imateriais, a empresa, o estabelecimento)» 3 w. A construção - ainda quepor uma via jurídica diversa - se liga com este: o da elaboração
dos conceitos de propriedade comercial, industrial e empresarial - com do conceito de personalidade colectiva, como forma de titular as posições
todas as dificuldades que a referência do conceito clássico de propriedade jurídicas decorrentes de uma certa actividade económica e de funcionalizar
a bens de natureza inteiramente diversa, os chamados bens incorpóreos ou a propriedade a tal objectivo.
imateriais, suscita - representa, a par de uma certa incapacidade de criar
novas formas de tutela dos interesses, também qualitativamente novos, que 5.3.2. Em síntese, vê-se que o desenvolvimento económico do capita-
a extensão da produção capitalista gerara, uma via de facilitar ao Estado a lismo impôs uma evolução do próprio conceito de propriedade quanto ao
opção que tinha de fazer entre interesses privados contraditórios. seu objecto: propriedade intelectual, propriedade comercial, propriedade
A utilização produtiva de um bem alheio é pois protegida, não rara- industrial e empresa são conceitos cujo surgimento resulta da necessidade
mente, sob a designação de propriedade: assim acontece particularmente de combater, em nome do desenvolvimento económico, a propriedade que
com a empresa e com a tutela do arrendatário comercial e industrial. originariamente estava no centro do suporte teórico do próprio sistema,
O bem continua a ser objecto de propriedade do seu titular, mas, simulta- a propriedade imobiliária. Mas, se a extensão do conceito constituiu - e
neamente, integra-se num outro complexo material produtivo e gerador constitui - uma arma indispensável de combate pelo avanço do capitalismo,
de um autónomo direito de propriedade, titulado por outrem311 • 312 • É isto este tem sabido encontrar formas de domínio que, cada vez mais, prescin-
que exemplarmente sucede quando na lei surgem as primeiras manifes- dem do apelo à propriedade privada em sentido jurídico.
tações da tutela do arrendatário comercial e industrial em detrimento da As sociedades, propriedade de inúmeros accionistas disseminados e, na
posição do titular do imóvel3 13 e é também representativa desta tendência sua maioria numérica, privados de qualquer poder de controlo efectivo,
constituem a formalização de uma ruptura ( embora mais aparente do
310
que real) entre poder de direcção económica empresarial e propriedade
Diritto privato ..., op. cit., pág, 174.
311
Revestindo o interesse do comerciante e do industrial a dignidade de propriedade,
privada315 •
encontrava-se facilitada a tarefa do legislador sempre que a protecção do desenvolvimento Mas a submissão dos interesses particulares ao interesse, tido como
económico capitalista houvesse de se prosseguir em detrimento de interesses pré-capitalistas geral, do incremento da produção e da riqueza nacional - que se manifesta
e, em particular, dos interesses dos proprietários não capitalistas. Sendo a natureza jurídica
dos direitos em conflito igual, não pode censurar-se ao Estado que intervenha, fazendo ceder
um em proveito do outro. arrendado, correspondente às utilidades que dele retira o arrendatário e que se integram num
312
Pode dizer-se, pois, com Anna de Vita, que «a evolução se delinea segundo duas constantes. contexto mais vasto de uma utilização produtiva do imóvel.
singularmente contraditórias: por um lado, o enfraquecimento da propriedade-direito subjec- V. sobre esta questão, Mareei Laborde-Lacoste, Lês Métamorphoses du louage dês immeubles, in
tivo, no sentido de uma progressiva diminuição do senhorio do proprietário, de cujo direito se Mélanges offerts à René' Savatier, Paris, 1965, págs. 428 e segs.; Pierrô Barcellona, Diritto priva to ... ,
limitam os excessos, tanto jurídicos como materiais, e se desenvolve o aspecto funcional; por op. cit., pág.174; Anna de Vita, La proprietà ... , op. cit.. págs.116 a 124.
outro, a ampliação do conteúdo da propriedade, do ponto de vista objectivo, em consequên- 314
Revelador da mesma preocupação de tutela do interesse produtivo dos bens é também, por
cia da extensão da noção de bem», La proprietà nell'esperienza giuridica contemporânea, op. cit., exemplo, o regime da falência, em que a lei permite e protege de forma muito particular o acordo
págs. 35 e 36. dos credores no sentido de prosseguirem a exploração produtiva dos bens do com~rciante ou
313
Virá a propósito referir que tais manifestações são anteriores ou, ao menos, simultâneas com da sociedade, procurando evitar a desagregação desse património e a sua desfuncionalização
as de tutela da posição do inquilino habitacional, e, diversamente do que acontece com estas, produtiva.
traduzem-se num reconhecimento pelo proprietário de um verdadeiro direito sobre o imóvel 315
Cfr. V. Mückenberger e D. Hart, Ueducazione dei giurisiu, op. cit., pág. 77.

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prioritária e dominantemente no regime da iniciativa económica privada nas mãos e que lhe é reconhecido para a realização e preenchimento de
- pode não só não incluir, como até excluir, qualquer objectivo social- no certos fins, para a satisfação de certos interesses ou concretas necessidades,
amplíssimo sentido de realizador da justiça social- e, consequentemente, ordena-se a extinção do direito por prescrição ou não uso, ordena-se que
pode não só não se consubstanciar numa redução da área lícita de actuação ele se extinga pa:ra aquele titular anti-economicamente e anti-socialmente
proprietária, mas vir a traduzir-se numa ampliação dessa área, ainda que inerte e desinteressado» 318 • 319 •
em detrimento de outros interesses privados ou de interesses sociais não
coincidentes com os da mera expansão económica316 • 5.3.4. Mas, para além deste aspecto, o instrumento mais eficaz de
«sanção» jurídica da inactividade do proprietário de bens produtivos foi a
5.3.3. A forma mais evidente que assume a desprotecção da situação expropriação320 • É assim que se explica, por exemplo, o art. 838º do Código
proprietária, singularmente considerada - isto é, nos casos em que não há civil italiano, que permite a expropriação, sem p Yévia declaração de uti-
efectiva concorrência de outro direito sobre o bem-, em consequência lidade pública, de «bens que interessam à produção nacional» quando «o
do condicionamento da tutela do direito à prossecução da função social proprietário abandona a conservação, o cultivo ou o exercício [... ] de fomia
produtiva, é por certo a expropriação. Mas, fora dela, pode encontrar-se, a prejudicar gravemente as exigências da própria produção»321 •
desde logo, na possibilidade da extinção do direito por não uso - o que, Ainda na lei italiana, encontra-se, o art.1º do D.L.C.P.S., de 6 de Setem-
normalmente, só acontece acompanhado, e em consequência de uma bro de 1946, nº 89, que dispõe: «As associações de camponeses constitu-
concomitante apropriação por usucapião - um afloramento da ideia de ídas em coopera.tivas ou sob outras formas podem obter a concessão de
função social317 • «O conteúdo do direito real[...] seria uma utilização e assim, terrenos de propriedade privada ou de entes públicos, que se encontrem
pois, como são abusivas certas formas anti-económicas ou anti-sociais do incultos ou insuficienemente cultivados, isto é, em termos de aí se poderem
exercício dos direitos, assim também a inércia no exercício, a pura passivi- praticar culturas ou métodos de cultivo mais activos e intensivos em rela-
dade ou omissão, ou, na expressão de Rotondi, «o direito anti-económico ção as necessidades da produção agrícola nacional». Significa isto que «a
a ter infecunda e inactiva a propriedade» constituiria um abuso do res- actividade produtiva ( e aqui trata-se unicamente da propriedade rústica)
pectivo titular. Este, ao deixar de exercer o direito por uma certo período é relevante ainda de um outro ponto de vista, e preferida à simples titula-
de tempo que a lei considera satisfatório para apreciar do seu abandono, ridade formal, na legislação especial sobre terras incultas»322• Em Portugal,
ergue-se contra a razão própria, contra a finalidade social ou económica pode referir-se no mesmo sentido a Lei nº 1949, de 15 de Fevereiro de 1937,
desse mesmo direito, que não lhe é reconhecido para que permaneça em cuja Base XIII expressamente previa a expropriação de terrenos situados
pura inactividade; abusa da sua omissão de exercício. E por se entender em áreas beneficiadas por água de rega quando os respectivos proprietá-
que essa inactividade é incompatível com o próprio valor que lhe foi posto rios os não utilizassem, e o Decreto-Lei nº 42665, de 20 de Novembro de

316 Para este alargamento da esfera da autonomia privada, decorrente da ligação estabelecida
318
entre o interesse privado do produtor e o interesse geral da produção, assumido como interesse F. Cunha de Sá, O Abuso do Direito, in Ciência e Técnica Fiscal, números 179-180, Novembro-
do Estado, chama a atenção F. Lucarelli, ao analisar a disciplina dos actos emulativos contida -Dezembro, 1973, pág. 123.
319
no art. 833º do Cód. Civil italiano: perante este, parece legítimo entender que o proprietário O mesmo tipo de considerações pode, aliás, estar presente como pressuposto da expro-
actua licitamente - ainda que com produção de prejuízo - sempre que os seus actos não tenham priação.
320
como informadora a intenção exclusiva de causar esse prejuízo (seja ele de que natureza ou Utiliza-se o teimo «sanção» numa amplíssima acepção que não desconhece - como opor-
importância for), antes se pautem por interesses pragmáticos da produção, que, desta forma, tunamente lembra U. Natoli-que a sua aplicação prescinde «da verificação de uma-específica
não só funcionam como causa de justificação, como se caracterizam como os mais altos valores responsabilidade do próprio proprietário».
321
a preservar no sistema. Sobre esta questão, v. Salvatore Pugliatti, La proprietà ... op. cít., págs. 266 e 267.
322
317
Cuja integração se procurou operar também pela figura do abuso do direito. Salvatore Pugliatti, op. cit., pág. 267.

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1949, cujo artigo 77º determinava a expropriação por falta de exploração 5.4. Mas a função social não se esgota hoje, na maior parte dos orde-
adequada das terras defendidas e enxutas 323 • namentos jurídicos, nesta ideia de aumento da produção material, antes
A expropriação sofreu, pois, uma evolução decorrente da necessidade se manifestando, de forma prioritária - e integradora daquela - como
de a adequar a uma função instrumental da realização da função social meio de alcançar o estabelecimento de relações sociais mais justas, de
da propriedade. O seu fundamento alterou-se: da pública necessidade, promover a igualdade real e de obter um aumento de riqueza socialmente
ele foi sendo preenchido, em medida cada vez maior, pelo interesse útil e a sua distribuição em termos mais equitativos. Mas, ainda dentro
público. O seu carácter sofreu também uma transformação: de medida desta perspectiva, duas são as orientações possíveis, embora não valham
excepcional, a expropriação tornou-se meio normal e, hoje, um meio indiferentemente face a um dado ordenamento jurídico. Ou se concebe
primário de obter a prossecução do interesse público, através da utili..: a função social corno uma espécie de cláusula geral do direito privado,
zação directa de bens privados. Finalmente, da indispensabilidade de destinada a funcionar como instrumento de aferição e adequação judicial
uma contrapartida indemnizatória da expropriação, passou-se a umà dos comportamentos proprietários325 , ou se entende que a lei a utiliza
situação em que, não raras vezes, não há lugar ao pagamento de qualquer directamente para realizar a justiça social, isto é, que ela se resolve, pri-
indemnização. mariamente, em obrigações postas a cargo dos proprietários como forma
Em síntese, podem enunciar-se assim as características da expropriação: directa da satisfação de interesses não proprietários, ou, finalmente, se
«A expropriação apresenta-se [... ) hoje como meio normal e eficaz assume uma posição eclética, entendendo que é, primariamente, à lei que
para a tutela do interesse público, com subordinação do privado. Tem cabe dar conteúdo à noção de função social - que não deixa nunca de ter
por objecto imediato o direito de propriedade, como também direitos de um certo grau de indeterminação-, mas que, do mesmo passo, é possível,
natureza diferente; por objecto mediato: coisas móveis ou imóveis, corpó- a partir das disposições legais, ter uma noção de função social que serve
reas e incorpóreas; quanto à função: constitui meio de obtenção directa como instrumemo judicial de apreciação das condutas dos proprietários em
dos bens pela administração pública, ou então funciona como sanção e concreto326 •
consequentemente como meio indirecto para a obtenção desses bens; tem Os defensores da primeira posição sustentam-na, fundamentalmente,
como efeito: a transferência do direito na sua integridade, ou a constituição com o argumento de que é ao Estado que cabe a tarefa de realizar a justiça
de um direito parciário a favor do adquirente; e sobre a duração: pode ser social, isto é, deslocam completamente os conflitos internos à sociedade
perpétua, isto é, definitiva, ou temporária, isto é, provisória» 324 • para o nível do Estado, «entendido corno sujeito autónomo e superpartes, ao
qual cabe realizar as mediações, os compromissos, e prosseguir o objectivo
de satisfazer equitativamente os interesses de todos» 327 •
323
Aliás, já muito antes, e com um alcance de certo modo muito mais claramente afrontador do Só que esta solução, para além de supor uma noção fluida e indeter-
direito de propriedade, pela consideração da necessidade de protecção de interesses colectivos minada de função social - e por isso também - consubstancia-se na atri-
( que nada têm a ver com a política desenvolvimentista, mais ou menos incipiente consoante os buição ao poder judicial de uma margem de decisão e de intervenção na
casos, que explica as disposições precedentemente citadas), se pode referir a Lei nº 438, de 15
de Setembro de 1915, cujo art.15º declara a utilidade pública das expropriações a efectuar «nas
325
capitais de distrito e sedes de concelho quando as câmaras municipais previamente tenham Neste sentido se inclinava S. Rodotà em Note critiche in tema di proprietà, in Riv. trim. dir. e
feito levantar planta geral das suas respectivas cidades e vilas: proc. civite, op. cit.
a) De qualquer prédio cuja reparação ou modificações sejam deliberadas pela respectiva câmara 326
No sentido de que a função social tanto respeita à legal configuração do conteúdo da proprie-
municipal, precedendo voto da sua comissão estética ou, na sua falta, o voto da sua comissão dade como ao controlo da concreta actuação dos proprietários adentro dos limites previamente
executiva, quando o proprietário se negue a fazer as obras indicadas; estabelecidos por lei, isto é, que é simultaneamente uma restrição externa e interna, Angelo
b) De qualquer terreno confrontando com rua pública, quando o seu proprietário se negue a Lener, Problemigenerali delia prop1ietà, in Proprietà priva ta efunzione soeiale. Seminário direito dai
edificar nele, nos termos dos regulamentos e mais legislação municipal». Prof. F. Santoro-Passarelli, Padova, 1976, págs.16 e 17.
324 327
S. Pugliatti, La proprietà ... , op. cit., pág. 38. P. Barcellona, Diritto privato ... , op. cit., pág. 186.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E PROPRIEDADE

vida económica que excede em enorme medida as funções que a tal poder que pertencem :a categorias social e economicamente subalternas e que
estão atribuídas (328). já receberam um reconhecimento norn1ativo na própria Constituição.ou
Alternativamente com esse risco, faz correr um outro: o de que os tri- em leis especiais dispersas. [... ] O raciocínio é mais ou menos o seguinte: é
bunais, com o pendor restritivo do âmbito da sua própria actividade, que verdade que a p:ropriedade se encontra agora inserida numa perspectiva
em muitos países revelam, deixem na realidade sem actuação a função de socialidade que tende precisamente a dar relevo à colocação do sujeito
social, que assim se veria esvaziada do seu conteúdo e da sua finalidade. proprietário no âmbito da comunidade, mas esta comunidade não é uma
Não significa isto, porém, o defender, por contraposição, que aos tribu- comunidade abstracta, não é a colectividade nacional. Os sujeitos relativa-
nais nenhum papel cabe na apreciação das condutas proprietárias, ou que mente aos quais a função social estabelece um critério de escolha não são
tal papel se acha absolutamente (no sentido de restritivamente) vinculado todos os cidadãos da República, mas sim os sujeitos que, consoante as situa-
pelas normas em concreto consa-gradoras da função social. ções, consoante a natureza do bem, podem tirar vantagem ou desvantagem
O que se pretende acentuar é que a função social não constitui uma das escolhas que faz o proprietário. Estes sujeitos, estas categorias sociais
cláusula geral sem conteúdo normativo e preciso, cabendo aos tribunais especificadamente individualizáveis, relativamente aos vários tipos de bens
a decisão sobre a oportunidade, o sentido e a extensão da sua concreta ou aos vários tipos de relações, são aquelas que são envolvidas no processo
actuação. Antes se trata de um conceito cujo conteúdo é fornecido pela de utilização do bem[ ... ] A função social é a expressão resumidora com a
lei, e é com atenção a ele, em sua aplicação, que os tribunais intervêm; e qual se indicam os interesses dos sujeitos que estão numa posição de con-
essa intervenção, se subordinada à lei, não deixa de ser importante, impor.,. flitualidade actu:al ou potencial com os interesses proprietários» (329) ( 33º).
tância que decorrerá da correcta interpretação não restritiva das normas
consagradoras da função social. 5.5. Como se disse, só face a um ordenamento jurídico concreto é pos-
«Substancialmente diversa é, ao contrário, a concepção de quem iden- sível tomar posição quanto aos problemas que ficaram enunciados. Neste
tifica a função social com os interesses de uma determinada categoria
de sujeitos, isto é, de quem entende que a função social é uma fórmula
resumidora que serve para referir sinteticamente os interesses daqueles
329
P. Barcellona, op. cit., págs. 188, 189 e 190. Neste sentido também U.
Natoli, La proprietà, op. cit., págs. 192 e 196.
328 «Antes do mais, observa-se que esta atribuição ao juiz do poder de Ainda adentro desta perspectiva se podem encontrar duas orientações,
especificar a função social contrasta com as características do caso julgado uma mais ampla ·- em que os interesses protegidos podem ser reconduzidos
e, em particular, com o princípio da eficácia inier partes da sentença. Usa-se a vários grupos d.e sujeitos,cuja característica díferenciadora comum reside
assim um meio inadequado relativamente ao próprio resultado; se se quer na sua subalternidade económica e social - e outra mais restrita, derivada de
referir a função social ao sujeito colectivo, às instituições públicas, a missão uma perspectiva~;ão constitucional das relações intersubjectivas circunscrita
de realizar a função social não pode ser atribuída ao juiz que se move no às áreas em que existe um conflito de classe subjacente em que, portanto,
âmbito de um «processo» no qual se encontram envolvidas apenas duas partes. os interesses protegidos tenderão a identificar-se com os dos trabalhadores
Em segundo lugar, se se reconhece ao juiz a competência para controlar o assalariados. E esta segunda a orientação da Constituição italiana, de acordo
proprietário dos bens, para determinar o modelo organizativo dos interesses com a observação de F. Lucarelli, Solidarietà e autonomiaprivata, op. cit., págs.
envolvidos numa certa situação, atribui-se ao juiz a competência para fazer 58, 96, 97 e 202.
apreciações de política económica, para fazer escolhas que, pela sua própria 330
Problema que não se aborda no texto é o da forma de controlo da
natureza, se projectam para além da relação em jogo. Na realidade, o juiz não constitucional idade das leis que, pontualmente, configuram a função social
tem a competência para efectuar essas escolhas, não tem a investidura, pois da propriedade, por ele se situar fora do âmbito do tema tratado. Sobre esta
não é um representante popular, não é designado pela colectividade para ser questão, V. Stefano Rodotà, Poteri dei privati e disciplina della proprietà, in Il
intérprete da forma de entender os objectivos sociais», (Pietro Barcellona, diritto privato nellci società moderna, op. cit., págs. 401 e 402; Roberto Martinelli,
Dírítto privato .... op. cit., pág. 189). Locazioni di immobili urbani, in Proprietà priva ta efunzione sociale, op. cit., pág.183.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E PROPRIEDADE

sentido, importa, pois, examinar agora a Constituição portuguesa e retirar Numerosas são as normas constitucionais que se prendem com o dese-
dela algumas indicações quanto a eles. nho do perfil funcional da propriedade: em termos muito gerais, dir-se-á
que ela é protegida na medida em que consubstancia um valor produtivo
5.5.1. Conforme já foi, em diversos momentos, acentuado, existe na económico, muito embora este objectivo não se possa considerar desligado
Constituição uma conexão íntima entre o sistema económico - em parti- de outros - surgindo concretamente ou em paralelo, ou subalternizado a
cular entre a configuração económica da sociedade e da sua evolução - e a outros, ou, mais raramente, como valor relativamente autónomo.
realização dos seus objectivos sociais e políticos. Nesse sentido, são claros, Esta colocação do problema supõe, uma vez mais, uma chamada de
entre outros, os arts. 2º, 9º-c), 10º, nº 2, 50º, 81º e 91º. atenção para o predominante tipo de propriedade que é visado: a pro-
Bastaria este contexto geral de funcionalização das estruturas económi- priedade dos meios de produção. Mas, ainda aqui, se prescinde, mais uma
cas para não se poder conceber a propriedade - ou, pelo menos, algumas vez, de uma análise mais detalhada desta questão, que assim fica remetida
«propriedades» - como desvinculada e dissociada dos fins sociais consti'- para momento ulterior.
tucionalmente definidos, como um instituto alheado dos mecanismos de Começando pelo último tipo de situações - isto é, por observar os casos
prossecução desses fins, em que a Constituição visa claramente, como objectivo prioritário, a tutela
Mas o texto constitucional fornece claras e específicas indicações sobre da função produtiva dos bens e condiciona a manutenção do direito, ou
a propriedade, cuja análise importa tentar. orienta a acção do seu titular no sentido do desempenho dessa função -
surge-nos como :sua ilustração transparente o art. 87º da Constituição: aqui
5.5.2. Desde logo, reconhece expressamente o direito à propriedade se determina que «os meios de produção em abandono podem ser expro-
privada no art. 62º, nº 1, destacando-a da sua tradicional colocação entre os priados em condições a fixar pela lei» e que «no caso de abandono injus-
direitos fundamentais para a situar entre os direitos económicos. O signi- tificado, a expropriação não confere direito a indemnização». A novidade
ficado desta deslocação é claro no sentido da não adopção constitucional desta norma releva de dois dos seus aspectos: por um lado, generaliza-se,
da concepção da propriedade como forma de materialização da liberdade com força constitucional, a ideia a que já havia feito referência de que a
humana, como direito absoluto e incíndivel io homem, nem sequer da ideia inércia do proprietário de bens produtivos constitui um comportamento
de que a propriedade é um direito fundamental da ordem consti tucional abusivo e revelador da ausência, na esfera pessoal, do interesse em função
em geral331 • A sua colocação entre os direitos económicos tem, só por si, do qual a lei concede o direito, e da falta de diligência em razão da qual
o sentido de a afirn1ar como direito concedido pela ordem jurídica para ela o mantém333 , isto é, afirma-se inequivocamente que a propriedade de
a realização de fins económicos e sociais - em que se integram, mas que meios de produç:ão é uma situação jurídica funcional, que se analisa em dois
se não reduzem aos fins individuais do seu titular. Dito de outra forma, momentos vinculados entre si e hierarquizados: como qualquer direito sub-
a propriedade, enquanto direito económico - e não direito individual -, jectivo, é uma disponibilidade de meios para a realização de fins próprios
insere-se numa forma de organização económica da sociedade e vê a sua e merecedores de tutela jurídica do seu titular; como direito subjectivo
fisionomia alterada adequadamente ao papel que aí é chamada a desem- que envolve a permissão de utilização de um bem de importância social
penhar332. Do âmbito da garantia do art. 62º me ocuparei adiante; por ora, relevante, pela função que é apto a desempenhar, a esfera dessa permissão
há que assinalar que quaisquer indicações sobre a configuração funcional está circunscrita, e o como da sua utilização está vinculado à prossecução
do instituto na Constituição se hão-de, nos tern1os da mesma disposição, de um objectivo mais geral, à realização de um interesse que excede o do
encontrar no próprio texto constitucional.
333Questão cuja resolução me parece importante pressuposto da correcta interpretação desta
331
Neste sentido. Arma de Vita, La proprietà ..., op. cit., pág.169. norma é a de determi.nar o exacto sentido do termo abandono. Parece certa a atribuição a este
332
Cfr. João de Castro Mendes, Direitos, Liberdades e Garantias... , op. cit., in Estudos sobre a Cons- conceito do sentido de não exploração produtiva a que tais bens são adequados. Cfr. Gomes
tituição, lº Volume, op. cit., pág.105. Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, op. cit., págs. 213 e 214.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E PROPRIEDADE
l
seu titular, e que, sendo conflituante com ele, há-de prevalecer. O outro ção de lançar rnào do instrumento previsto no art. 87º, sempre que a sua
aspecto em que a disposição revela uma perspectiva relativamente nova é previsão se verifique, o que supõe a publicação de legislação que regule as
o da não atribuição de direito a indemnização pela expropriação 334, sem- condições em que a expropriação pode operar-se.
pre que o abandono dos meios de produção seja injustificado335 • Trata-se Finalmente, esta norma não atribui à função social da propriedade dos
de um elemento importante para a configuração do próprio conceito de bens de produç~io uma conotação produtiva, indiscriminadamente, com
expropriação - como já se havia assinalado - e que parece reforçar a ideia desinteresse por quaisquer outros valores: não só o incremento da produ-
do âmbito da tutela individual constitucional da propriedade. Na verdade, ção é um objectivo instrumental e subordinado a outros na Constituição,
se o titular não extrair dos bens o rendimento que eles são vocacionados mas aflora directamente no texto do artigo um elemento que permite afir-
a produzir336, não havendo para tal situação uma justificação objectiva, a mar que há valores que se sobrepõem a este designadamente, a protecção
expropriação não dá lugar a indemnização. Quer isto dizer que o inte- da propriedade-trabalho dos trabalhadores emigrantes, cuja situação espe-
resse privado digno de tutela na propriedade de meios de produção é 0 cífica reclama soluções diversas e em que, porventura, o objectivo social do
da obtenção de um rendimento desses bens e não o da sua directa gestão aumento da produção haja de ceder ou encontrar outras formas de realização.
produtiva: na medida em que iniciativa económica e propriedade de meios No âmbito da reforma agrária, a mesma orientação de incremento da
de produção se encontrem dissociadas, o interesse do proprietário juridi- produção reaparece - embora sem que ela seja concebida, como no art.
camente tutelado parece ser o da obtenção de um rendimento resultante 87º, nº 1, como uma directa e inequívoca condicionante da própria subsis-
da actividade produtiva e não mais do que isso. tência do direito de propriedade na esfera jurídica do seu titular privado: é
Questão discutível é a de saber se este artigo configura uma obrigação assim que a alínea b) do art. 96º define, como um dos objectivos da reforma
estadual ou urna mera permissão de actuação - cuja utilização dependa de agrária, «aumentar a produção e a produtividade da agricultura, dotando-
uma vontade política e legislativa discricionária. À primeira vista, a letra -a das infra-estruturas e dos meios humanos, técnicos e financeiros ade-
do próprio preceito aponta para a segunda solução. No entanto, há que quados, tendentes a assegurar o melhor abastecimento do país bem como
intepretá-lo conjugadamente com outros e desde logo com o art. 81º, que o incremento da exportação». Em sintonia com este objectivo geral, o
define as incumbências prioritárias do Estado. E neste se vêm cometer ao art. 98º vem, com ressalva do direito de propriedade, definir a orientação
Estado, entre outras, as obrigações de «promover o aumento do bem-estar da reforma agrátia nas zonas de minifúndio, e os arts. 102º e 103º, por seu
social e económico do povo, em especial das classes mais desfavorecidas» turno, consagram imperativos estatais no sentido de promover a conse-
(al. a)), de «assegurar a plena utilização das forças produtivas» ( al. b)) cução daquele objectivo.
e de «orientar o desenvolvimento económico e social no sentido de um
crescimento equilibrado de todos os sectores e regiões» (al. e)). Destes 5.5.3. Mas, de par com a noção constitucional da tutela da propriedade
preceitos, e em particular do da al. b) citada, parece emergir uma obriga- como tutela da produtividade do bem, surgem na Constituição outros
objectivos, outras funções a integrar na propriedade 337 • Sem a preocupação
334
O conceito de expropriação é aqui utilizado em sentido genérico; abrangendo a naciona~
337
lização - cuja permissão resultava já de outras disposições constitucionais, e, nomeadamente, A legitimação - ou a imposição - da intervenção estatal no domínio económico aparece,
do art. 82º. Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Ibid. de uma forma geral, posta ao serviço de objectivos produ-ti vistas, mas não só. A propósito da
335
Note-se que o nº 2 do art. 62º ressalva esta e outras disposições constitucionais, admitindo configuração dessa intervenção e dos seus objectivos na Constituição italiana, diz C. Mortati:
a expropriação sem indemnizações (v., por exemplo, art. 82º, nº 2). «As exigências que, principalmente, se teve em vista satisfazer com o autorizar da intervenção
336
Não se quer tomar posição aqui sobre a questão - cuja colocação parece legítima - de estatal nas relações económicas [...] resumem-se nestas duas: o incremento da produção e o
saber em que medida a subutilização produtiva do bem também pode ser fundamento de uma promover de uma redistribuição dos.bens, ou de uma sua organização que faça passar para as
medida expropriativa. Este problema pode vir a propósito, designadamente, da situação das mãos de quem colabora directamente na sua produtividade a propriedade ou a administração
empresas em autogestão. dos mesmos», Problemi di diritto pubblico ... , cit., in Scritti, vol. III, op. cit., pág. 19

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E PROPRIEDADE

de as esgotar, far-se-á, de seguida, menção daquelas que mais ostensiva e O que significa que, não sendo as disposições específicas nesse sentido
inequivocamente resultam da Constituição. roais do que uma manifestação da obrigação estatal de promover a igual-
Neste domínio, as duas ideias centrais a reter são as de que aproprie- dade real entre os cidadãos, será lícita a intervenção do Estado no regime da
dade constitui um instrumento de instauração de novas e mais justas propriedade fora do âmbito de aplicação daquelas disposições, sempre que
relações entre os cidadãos e de que a sua tutela supõe uma utilização dos o sentido dessa intervenção se inscreva na lógica funcional da promoção da
bens adequada à satisfação de interesses de dadas categorias de cidadãos, igualdade, ou do combate às desigualdades. Não pode, assim, concluir-se
sempre que esteja em causa a satisfação de necessidades que a Constituição pelo carácter excepcional das intervenções, antes devendo a função social
considera prioritárias e protege directamente. ser entendida como regime-regra, decorrente, além do mais, do princípio
Dentro da primeira perspectiva, podem ainda operar-se algumas subdis- fundamental da igualdade.
tinções: por um lado, visa-se a democratização da própria propriedade, por
outro, a propriedade constitui um instrumento de alteração das relações 5.5.4. O reverso desta ideia materializa-se na desprotecção da proprie-
de produção, e, finalmente, de uma forma mais geral, um instrumento de dade que, pelas suas dimensões ou pela situação particular que lhe advém
instauração de novas relações sociais. da natureza dos bens que constituem o seu o.bjecto e da forma por que são
No primeiro destes planos, são duas as linhas de orientacão constitu- geridos ( da sua posição no mercado), não tem aquele fundamento, nem
0

cional: de uma parte, protege-se, em certos casos, o acesso à propriedade aquela função, e ainda constitui um instmmento de poder económico no
privada e confere-se um especial estatuto à pequena propriedade e à seio da sociedade, susceptível de potericiar e agravar as desigualdades
propriedade-trabalho e, de outra, combate-se a grande propriedade e as reais entre os cidadãos. Daqui que ao Estado incumba prioritariamente
formas de gestão desta que se traduzam em posições económicas de poder «eliminar e impedir a formação de monopólios privados, através da nacio-
privado. Do primeiro aspecto, são exemplos ilustrativos o art. 65º, nºs 2-b) e nalização ou de outras formas 338, bem como reprimir os abusos do poder
3 ( que dispõe que o Estado deverá «fomentar a autoconstrução e a criação económico» ( art, 81º-g)) e que a lei possa determinar «que as expropriações
de cooperativas de habitação» e que «adoptará uma política[... ] de acesso à de latifundiários e de grandes proprietários e empresários ou accionistas
habitação própria»), o art. 81º, d) (que determina ser incumbência prioritá- não dêem lugar a qualquer indemnização» (art. 82º, nº 2). No mesmo sen-
ria do Estado «operar as necessárias correcções das desigualdades na dis- tido se pode entender o estabelecido no art. 97º, nomeadamente ao dispor
tribuição da riqueza ... »), os arts. 87º, nº 1 e 99º, nº 1 ( que, respectivamente, sobre a expropriação dos latifúndios e das grandes explorações capitalistas,
salvaguarda a propriedade dos emigrantes do regime geral de expropriação como via de operar «a transferência da posse útil da terra e dos meios de
de meios de produção em abandono, e garante a «propriedade da terra produção directamente utilizados na sua exploração para aqueles que a
dos pequenos e médios agricultores enquanto instrumento ou resultado trabalham» - norma que, aliás, evidencia que a distinção que acima ficou
do seu trabalho e salvaguardando os interesses dos emigrantes e dos que feita não pode ser tomada como absoluta, no sentido de que os vários planos
não tenham outro modo de subsistência»). não são estanques, antes se interpenetram, constituindo a desprotecção
Estes exemplos parecem suficientes para veicular a ideia constitucional da grande propriedade, como a protecção da pequena propriedade desti-
de que a propriedade privada é protegida enquanto tem um fundamento nada à directa satisfação de necessidades essenciais, formas de tendencial
legítimo - o de ser produto do trabalho do seu titular - e/ ou uma função superação das desigualdades sociais e, muitas vezes, de instauração de um
socialmente relevante - a de ser instmmento de satisfação de necessidades novo tipo de relações de produção.
próprias do seu titular e da respectiva família.
338 Esta corno outras das questões que no te:x1:o se abordam situam-se, em rigor;.nurna zona
Mas, como é evidente, esta forma genérica de funcionalização da pro-
de fronteira entre a configuração da tutela da propriedade e a da iniciativa económica. Não
priedade constitui, ao mesmo tempo, um instrumento e uma consequência
houve a preocupação de operar essa distinção com rigor sempre que, como é o caso, o problema
da concepção constitucional da igualdade, tal como ela já foi enunciada. da iniciativa económica se confunde com urna forma de exercício do direito de propriedade.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E PROPRIEDADE

No cumprimento deste objectivo de alteração das relações de produção, 5.5.5. Em síntese, pode caracterizar-se a função social da propriedade
tem um papel central a progressiva integração da propriedade privada no na Constituição portuguesa segundo duas ideias básicas: de uma forma
sector público e no sector cooperativo, isto é, a progressiva transferência genérica, a protecção da propriedade - de bens de produção - resolve-se,
dos bens do sector privado para o sector público - com posse útil e gestão tendencialmente, na protecção da utilidade produtiva dos bens, isto é, a
dos colectivos de trabalhadores, designadamente - ou para o sector coope- função social analisa-se em obrigações de utilizar o bem de acordo com a
rativo, em que a propriedade não deixa de ser privada, mas a gestão é feita sua função produtiva, de forma a contribuir para o incremento da produ-
de acordo com os princípios cooperativos339 • Aliás, a apropriação colectiva ção nacional, e sem lesão dos interesses dos consumidores e utentes dos
dos principais meios de produção constitui um «elemento importante na bens e serviços produzidos; de uma forma mais específica, a propriedade
destruição da tendência para a concentração capitalista das empresas,~, constitui um instrumento de instauração de novas relações de produção
garantindo «uma efectívação do direito de propriedade privada, permitindo e de novas relaçôes sociais.
o seu acesso concreto ao maior número de cidadãos»340 Esta ideia está expressa, Esta análise da função social em dois vectores, que surgem como for-
por exemplo, nos arts. 50º, 80º, 90º, 96º-a), 97,º e 100º. E, por outro lado malmente autónomos, é ditada e tem o seu valor exclusivamente circuns-
- e mais uma vez se trata de uma questão que se coloca ora no âmbito da crito a uma necessidade descritiva, não se pretendendo, pois, questionar
propriedade, ora no âmbito da iniciativa económica privada - constitui a absoluta interdependência ( teórica e prática) dos dois aspectos.
também um meio de instauração de novas relações sociais a intervenção Com esta prevenção, dir-se-á que da primeira ideia de função social
dos trabalhadores na gestão das empresas (art. 56º). inerente à propriedade decorre a necessidade de intervenções de dois
Pode-se concluir que a propriedade privada tem uma protecção consti- tipos: intervençôes que incidem sobre a titula-ridade (expropriativas),
tucional orientada no sentido de desempenhar uma função de igualização intervenções que incidem sobre os poderes de utilização do bem e que,
das situações sociais dos cidadãos e de constituir um instrumento de satis- mais rigorosamente, se colocam no domínio da iniciativa económica do
fação de necessidades essenciais, isto quer numa perspectiva individual, proprietário (protecção do consumidor).
quer colectiva. Da segunda forma de conceber a função social resultam intervenções
Por outro lado, a sua utilização no sentido de satisfação directa de estatais de três tipos: umas atingem a titularidade do direito (expropria-
necessidades alheias às do seu titular - propriedade dos bens produtivos ção), outras a frnrma de gestão dos bens e outras ainda a estruturação das
e de imóveis urbanos, designadamente - tem como critério fundamental relações «entre os sujeitos proprietários e os outros sujeitos que estão em
a satisfação dessas necessidades, isto é, uma utilização socialmente útil e alguma medida interessados no uso do bem» 341 •
não orientada por critérios de máxima produtividade e utilidade privada À excepção das providências que se consubstanciam em expropria-
do seu titular: daí que ao Estado caiba intervir na fixação dos preços dessa ções, a maioria das outras traduzem-se em limitações ou conformações
utilização (art. 65º, nº 3, por exemplo) ou dos preços dos bens produzidos do poder negocial do proprietário, isto é, situam-se no domínio da auto-
(arts.109º e 110º). nomia privada de que este goza em consequência da sua posição jurídica
relativamente ao bem.
Para além da importância da função social que se traduz nas con-
cretas legitimações ou imposições da intervenção p-ó.blica nas relações
339
V. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, I volume, Lisboa, 1978, págs. 102 a 111. negociais interp:rivadas, não pode esquecer-se uma outra dimensão dessa
340
V. Menezes Cordeiro, ibid., pág. 91. importância: a que lhe advém de, sendo a função social concebida como
O mesmo autor diz ainda que se compreende «também que a planificação do desenvolvimento um princípio fundamental com expressão constitucional, sereni•as suas
económico entendida como instrumento de eficácia no desenvolvimento, seja considerada garan-
tia e condição de efectivação do direito económico propriedade privada: dá novas perspectivas de
341
aproveitamento económico da coisa apropriada». Pietro Barcellona, Diritto privato ..., op. cit., pág.119.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E PROPRIEDADE

manifestações no regime negocial afloramentos de um regime-regra, Actualmente, porém, muitos autores falam inequivocamente em pro-
susceptíveis, pois, de aplicação analógica. As consequências desta alte- priedades, procurando - quer do ponto de vista subjectivo, quer na pers-
ração de perspectiva, que a nova ordem constitucional impõe, podem pectiva objectiva - distinguir os vários regimes legais da propriedade, a
ser justamente valoradas se se tiverem presentes as observações, que se partir dos seus traços essenciais e dos seus fundamentos específicos 344 •
deixaram feitas, relativamente à forma como a doutrina tradicional tem «Nesta dimensão, dentro da qual se move hoje em dia quase toda a
- pela subsunção a categorias excepcionais - defendido a evolução do doutrina mais recente, é talvez ainda mais complicada a investigação ten-
direito, das inovações que a realidade económica e social vem determi- dente a determinar se, em que medida, e através de que instrumentos, a
nando. Só tal alteração, se consequentemente aplicada, é susceptível de propriedade privada se encontra garantida pela Constituição.
- independentemente de qualquer mudança legal - provocar uma radical A investigação apresenta duas ordens de problemas. O primeiro liga-
transformação na colocação e tratamento de inúmeras situações jurídicas -se ao regime de pertença dos bens, isto é, à amplitude da área reservada
privadas. à apropriação privada. O segundo respeita à determinação legislativa dos
Sem esquecer que ela implica também uma reconsideração teórica do poderes do titular do direito, com referência aos vários modelos de pro-
próprio conceito de autonomia privada, em cuja estrutura interna haverá priedade configuráveis»345 •
que admitir a funcionalização: na medida em que a função social deixe de A questão terá que ser colocada em concreto face ao texto constitucional
ser encarada como um elemento acidental e excepcional, isto é, externo português e é justamente isso o que se fará de seguida.
à autonomia privada, na medida em que ela se coloque na sua correcta
posição de princípio geral fundamental, interno e coessencial ao conceito, 6.2. De um ponto de vista subjectivo, a Constituição portuguesa admite
este terá de ser objecto de uma indispensável reformulação. dois tipos de propriedades - a pública e a privada - e estabelece dentro

344
A ideia foi elaborada por, e a partir do trabalho de Salvatore Pugliatti, La proprietà e lê proprietà
6. A fragmentação do conceito unitário de propriedade e as várias in La proprietà rzel rzuovo diritto, op. cit., págs.145 e segs., e pode dizer-se que a generalidade dos
«propriedades» constitucionalmente previstas autores hoje a toma em consideração ao tratar do problema da propriedade. V. Pietro Barcellona,
Diritto privato... , op. cit., págs.169 e segs.; Roberto Martinelli, Locaziorze di imobili 11rba11i, cit. in Pro-
prietà privata efimziorze sacia/e, op. cit., pág.181; Stefano Rodotà, La proprietà e Vimpresa, in II diritto
6.1. O conceito unitário de propriedade, decalcado sobre a noção de
p1ivato rzetla società moderna, pág. 338; Ugo Natoli, La proprietà, op. cit., págs. 6 e segs. e 76 a 86.
propriedade fundiária, tem, a pouco e pouco, cedido lugar à ideia de que Aliás, esta situação conceituai não é exclusiva da propriedade. Diz, a este propósito, Vital
não existe uma única propriedade, mas múltiplas propriedades, isto é, Moreira: «A ordem jurídica da economia é uma ordem jurídica de categoria: os seus sujeitos
múltiplos regimes de propriedade em cada ordenamento jurídico. surgem qualificados pelo lugar(: função) que ocupam na vida económica(: produção e distri-
A constatação da multiplicidade de regimes legais, subsu-míveis a um buição). De igual forma, o objecto das relações jurídicas no modelo clássico era a coisa, sem
mesmo conceito, começou por ser formalizada e apresentada doutrinaria- mais. Hoje também a coisa entra qualificada: como empresa, como meio de produção, como
bem de consumo, etc:.
mente como relevando de uma maleabilidade e «plasticidade» do próprio
Isto tem uma consequência importante: a fractura da unidade(: generalidade) dos institutos
conceito342 , salvaguardando-se assim a unidade conceituai, por um lado, jurídicos clássicos. O caso é nítido no que respeita ao instituto da pr9priedade. A distinção da
e não comprometendo, por outro, a chamada de atenção para a variedade propriedade de bens «económicos» ( empresas, meios de produção em geral) e de bens «não
de aspectos específicos que o conceito podia revestir343 • económicos» é da máxima relevância para certos efeitos jurídicos, especialmente para efeito do
objecto da nacionalização(: somente os «bens económicos», nessa qualidade, podem ser objecto
de nacionalização) e para efeito de limitações à propriedade (: a questão da «funcitmalização»
342
A ideia foi sobretudo divulgada por Josserand: v. Cours de droit civil positiffra11çais. I, 3.' edição, do direito de propriedade respeita exclusivamente aos meios de produção)», (A ordemjwidica
Paris, 1938, pág. 839. do capitalismo, op. cit., págs. 89 e 90).
343 345
V. Ugo Nato li, La proprietà, op. cit., pág. 181. R. Martinelli, Locaziorze ... , op. cit., pág. 181.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E PROPRIEDADE

de cada um deles duas subdistinções essenciais, operadas em função do brado» ( art. 66º,, nºs 1, 2 e 3); um terceiro grupo de restrições decorre da
critério da forma de gestão dos bens: a propriedade pública recobre a protecção dos interesses dos consumidores dos bens produzidos ( arts. 81º,
propriedade social e a propriedade pública propriamente dita, enquanto m) e 109º); finalmente, prevê-se, de uma forma geral, a tutela do interesse
a propriedade privada pode ser cooperativa ou não. público da rentabilidade social das formas de utilização produtiva dos bens
Restringindo agora a análise ao sector da propriedade privada, podem e de outros interesses colectivos envolvidos por essa utilização ( arts. 81 º
também encontrar-se no seu interior várias espécies de propriedade, com b), 82º, nº 1, 85º, 86º e 88º).
um regime tendencialmente diferenciado; é, porém, evidente que, de entre Sem uma pretensão hierarquizadora, não pode, porém, deixar de se
elas, avulta a propriedade dos meios de produção346 • sublinhar a fundamental importância que, num Estado democrático «que
A propriedade privada dos meios de produção encontra-se constitucio- tem por objectivo assegurar a transição para o socialismo mediante a
nalmente garantida, quer genericamente pelo art. 62º, nº 1, quer especi- criação de condições para o exercício democrático do poder pelas ciasses
ficamente pelo art. 89º, nº 1, muito embora essa garantia se desenhe num trabalhadoras» (art. 2º), e em que os direitos dos trabalhadores têm um
quadro, a um tempo, residual e transitório. Residual, porque o art. 90,º estatuto de direitos fundamentais (art.17º), encontrando-se excluídos da
expressamente estabelece o carácter tendencialmente predominante da revisão constitucional ( art. 290º, e)), a fundamental importância, dizia-se,
propriedade social, e muitas outras disposições concretizam essa orienta- que assume no estatuto da propriedade ( e, directamente, da iniciativa
ção, admitindo e impondo a apropriação colectiva dos meios de produção, económica privada) a salvaguarda desses direitos e a criação de condições
dos solos e dos recursos naturais; transitório, porque o quadro constitu- do seu formal e substancial exercício.
cional dos sectores da propriedade dos meios de produção definido no nºl Ao lado da propriedade dos meios de produção, e com um regime
do art. 89º tem a sua vigência expressamente limitada à «fase de transição particularizado -- ou susceptível de o ser-, encontra-se na Constituição
para o socialismo». referência à propriedade intelectual (art. 42º, nº 2), à propriedade de bens
Pelo que respeita à área reservada à propriedade privada dos meios de culturais ou de interesse cultural ( arts. 66º nº 2-c) e 78º) e à propriedade
produção, devem ter-se em atenção todas as disposições - como as dos arts. de imóveis urbanos (art. 65º nºs 2-a) e e), 3 e 4 e art. 66º nº 2-b)).
9º-c), 10º nº 2, 50º, 80º, 81 9-d),g), h), n), 82º, 83º, 87º, 88º, 90º, 91º, 96º, 97º, De cada uma das disposições indicadas - e não houve qualquer preo-
99,º e 100º - que admitem ou impõem a expropriação, nacionalização ou cupação de se ser exaustivo - é possível retirar indicações no sentido da
colectivi-zação347 dos bens que constituem o seu objecto. imposição ou da legitimação da intervenção restritiva ou conformadora
No que concerne ao âmbito de faculdades reservado aos respecti- dos poderes negociais dos proprietários privados.
vos titulares, também são numerosas as disposições constitucionais que
impõem ou possibilitam a sua restrição ou a sua orientação: um primeiro
grupo prende-se com a tutela dos interesses dos trabalhadores ligados à 7. O âmbito de garantia do art. 62º da Constituição: os problemas do
utilização produtiva dos bens (arts. 51º a 60º, 61º, nº 2, 68º, nº 2); um outro chamado «contceúdo mínimo da propriedade» e das chamadas «expro-
tipo de restrições é imposto pela necessidade de salvaguardar o interesse priações de valor»
social de «um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equili-
7.1. Não obstante o carácter pouco aprofundado da 1ndagação até agora
feita sobre o regime constitucional da propriedade privada, parece-me
346
Propriedade dos meios de produção, a que é assimilada a propriedade dos solos e dos recur- que dela se podem extrair algumas conclusões sobre o âmbito da garantia
sos naturais (cfr., por exemplo, art. 89º, nº 1), parecendo que estas realidades são abarcadas constitucional d:a propriedade no texto fundamental que nos rege. Muito
noutras disposições - por exemplo, no art. 9º, c) - pelo termo «riqueza».
embora o âmbito dessa garantia seja diverso de acordo com a natureza dos
347
Sobre a distinção entre estes conceitos, v. Menezes Cordeiro, Direitos Reais. I Volume, op.
cit., págs. 122 e 123. bens que constituem o objecto do direito, podem enunciar-se dois prin-

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E PROPRIEDADE

cípios atinentes a tal garantia, que têm carácter geral: por um lado, o art. que garante: não parece correcto - como fazem Gomes Canotilho e Vital
62º, nº 1 da Constituição garante, genericamente, o direito à propriedade Moreira - identificar «propriedade» com «coisa», e, consequentemente,
e à sua transmissão em vida ou por morte; por outro, o art. 89º salvaguarda entender que o art. 62º insere uma garantia de não ser privado das coisas,
a pem1anência de um sector de propriedade privada na fase de transição por esbulho, expropriação ou qualquer outra forma348 • Tal entendimento
para o socialismo. suporia, por um lado, que a disposição utiliza o conceito «propriedade»
numa acepção n:ão técnica e pouco comum nos textos legais portugueses,
7.2. Ocupar-me-ei, em seguida, da análise do primeiro destes precei- e, por outro, que ele toma uma posição quanto à questão de saber qual o
tos, que parece conter a garantia do direito de propriedade privada. Já se exacto objecto da expropriação por utilidade pública, o que, para além de
chamou a atenção para a inserção sistemática desta posição constitucional não ter na sua le·tra qualquer apoio que não fosse o daquela interpretação
que se ocupa da propriedade privada: ela encontra-se entre os direitos eco- do termo «propriedade», estaria em contradição, me parece, com o que
nómicos e não na sua posição tradicional entre os direitos fundamentais. decorre da própria Constituição, para onde o próprio art. 62º, nº 1 remete.
Por outro lado, ela não contém uma definição de propriedade, nem uma Explicando melhor: entender que o art. 62º garante o «direito de cada
descrição do conteúdo deste direito, nem sequer uma garantia inequívoca um a não ser privado daquilo que é seu e da sua posse»349 implica entender
do direito de propriedade. O nº 1 do art. 62º afirma que «é garantido o que qualquer fo1rma de restringir a livre disponibilidade do bem pelo seu
direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, proprietário constitui uma forma de expropriação, isto é, que qualquer
nos termos da Constituição». O que, desde logo, significa que o alcance restrição ao direito de propriedade é expropriação e, consequentemente,
da garantia que nele se inscreve não tem aí os seus parâmetros definidos, pressupõe, em princípio, o pagamento de uma indemnização35º.
mas estes hão-de encontrar-se dispersos no texto constitucional. Isto é, o Ora, o art. 62º, que tem por epígrafe «direito de propriedade privada»,
conteúdo e o âmbito da garantia da propriedade não resulta do próprio declara, no seu nº l, que «a todos é garantido o direito à propriedade privada
art. 62º, nº 1, pois que este expressamente remete os termos de tal garantia eà sua transmissão ... », o que parece apontar no sentido de excluir qualquer
para a Constituição. Quererá isto dizer que o art. 62º não tem qualquer indicação sobre o conteúdo desse direito, salvaguardando-se apenas a sua
significado autónomo, que contém uma afirmação cujo sentido próprio existência e a sua transmissibilidade, e estabelecendo-se, consequente-
é redundante com o de outras normas constitucionais? Parece possível mente, uma regra relativa à expropriação, instituto que, justamente, afecta
encontrar para o art. 62º uma razão de ser histórica de afirmação de exis- a titularidade do direito.
tência do direito na ordem jurídica portuguesa, de afirmação de princípio Se assim não for, a averiguação do âmbito de tal garantia desdobra-se
sem consequências jurídicas que não sejam redundantes com as decorren- na averiguação d.o condicionalismo dentro do qual a Constituição garante
tes de outros preceitos constitucionais. a propriedade (: isto é, na averiguação da função social assinalada pela
Ou então, interpretá-lo no sentido - que acaba por não ser muito diverso Constituição a cada tipo de propriedade) e na identificação dos termos
nas suas implicações - de que ele contém uma garantia do direito à titu- em que, constitucional-mente, é admitida a expropriação.
laridade privada dos bens e à transmissão dessa titularidade em vida ou Sobre qualquer destes pontos já se deixaram enunciadas no texto algu-
por morte. A ser assim, a regra do nº 1 encontra-se numa directa relação mas das conclusôes que resultam da Constituição.
com a do nº 2: porque se garante a titularidade privada, se determina que
a privação dessa titularidade - operada pela expropriação - seja compen-
348
sada através do pagamento de uma indemnização, exceptuados os casos Const. Rep. Port. A.not., op. dt., pág. 163.
349
previstos na própria Constituição. Ibid.
350
Por isso me parece contraditória a posição daqueles autores que pretendem que a inter-
Exclui-se, consequentemente, que o art. 62º salvaguarde o direito às
pretação que fazem não colida com as limitações ao uso, fruição e disposição dos bens detidos
coisas, que ele tome qualquer posição quanto ao conteúdo do direito privadamente.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E PROPRIEDADE

7.3. Convirá agora esclarecer duas questões, interdependentes aliás, Ora, a Constituição portuguesa não define no nº 1 do art. 62º o alcance,
que parte da doutrina coloca a este propósito, e para cuja solução a inter- em termos gerais, da garantia da propriedade, circunscrevendo esta à
pretação que se deu ao art. 62º traz alguns elementos. Em primeiro lugar, garantia da titularidade e remetendo, para outras indicações, para outros
ela exclui a consideração da expropriação como uma «limitação» ao direito preceitos do texto constitucional, e não pode do nº 2 do mesmo artigo
de propriedade: a expropriação não afecta o conteúdo da propriedade, mas retirar-se qualquer conclusão quanto aos poderes do legislador, nomeada-
suprime a titularidade na esfera jurídica do proprietário, para operar a sua mente, de comprimir o conteúdo do direito, pois aquele nº 2 não se desliga
transmissão coactiva para a esfera de outro sujeito jurídico. do nº 1, constituindo uma garantia da titularidade, face aos poderes esta-
Em segundo lugar, no art. 62º não é possível encontrar apoio para duais. Toda a tentativa de encontrar um conteúdo mínimo para o direito,
qualquer definição de um conteúdo «mínimo» da propriedade, pois ele em termos gerais, está condenada a dissolver-se numa posição metajurídica
limita-se a salvaguardar a existência do direito, isto é, a salvaguardar a sua de conteúdo estritamente ideológico e insustentável face à Constitui-
titularidade. ção. Nesta, como diz Ugo Natoli, a propósito da Constituição italiana, «a
As questões não são independentes e o percurso realizado entre uma garantia[... ] respeita apenas à manutenção do instituto-propriedade como
e outra por parte da doutrina surge clarificado no texto de M. S. Giannini, momento constitutivo do regime, não à sua regulamentação positiva ou ao
que de seguida se transcreve: assegurar de um pretenso conteúdo mínimo» 352 •
«Sem um excessivo cuidado em proceder à análise, parte da doutrina
interrogou-se sobre se, sendo a expropriação uma limitação, não deveriam
8. Os casos de total separação entre propriedade e autonomia privada
entender-se os princípios constitucionais no sentido de que qualquer
e a dissociação ,entre a propriedade e a gestão dos bens
limitação ao direito de propriedade é expropriação, e, consequentemente,
comporta indemnização. Outra parte da doutrina, assustada com as conse- De tudo quanto já ficou exposto resulta com clareza que há apenas um
quências a que se chegava aceitando esta hipótese, tinha-se esforçado por tipo de propriedade cujo exercício em nada se prende com a realização
restringir o seu âmbito, procurando fixar um limite substancial àquilo que de uma actividade negocial: é a propriedade de bens de uso ou consumo,
se devia entender como efectivamente «garantido» na propriedade privada. quando estes sejam actuados directamente pelo seu titular.
Daqui que surgissem uma série de pontos elaborados especialmente pela No entanto, encontram-se não raras vezes, no domínio da propriedade
doutrina alemã, como sendo os do «conteúdo essencial mínimo», do «gozo de bens produtivos, situações em que a gestão económica dos bens está
standard» para cada tipo de propriedade, etc. Isto para chegar à conclusão confiada a sujeito diverso do proprietário, isto é, casos em que a iniciativa
de que constituhiam «expropriações larvares», ou «formas anómalas de económica cabe a um sujeito não proprietário. Nestas situações, muito
expropriações» todos os actos de autoridade ou as disposições normati- embora a relação entre o proprietário e o gestor seja de natureza contra-
vas que contêm preceitos com os quais se ultrapasse o limite substancial tual - isto é, o direito a perceber um rendimento, resultante da aplicação
garantido pela propriedade privada» 351 • produtiva do bem por outrem, seja resultado de um contrato celebrado
entre o proprietário e o gestor-, não é ao proprietário que cabe o normal
exercício da autonomia negocial inerente à utilização nom1al do bem. Pode
351
Espropriazione egarantia dei diritto prívato di proprietà, in II diritto prívato nella societã moderna, dizer-se, porém, que, mesmo neste caso, não há uma completa dissociação
op. cit., pág, 376. entre a propriedade e a autonomia privada: a atribuição desta ao gestor
Para uma exposição das posições da doutrina alemã, v. G. Santaniello, Espropriazioni anomale,
in Ene. dei diritto. volume XV, págs. 899 e segs.; para uma apreciação crítica "das decisões do
deriva de uma espécie de delegação do proprietário, há, por as()~m dizer,
Tribunal Constitucional italiano na matéria, v. Bruno Inzitari, Autonomia pril'ata e controllo um gozo jurídico indirecto. ·
pubblico nel rapporto di locazione, Napoli, 1979, págs. 233 e segs.; Ugo Natoli, La proprietà, op. cít.,
págs. 53 e segs.; Roberto Martinelli, Locazione ... , op. e /oc. cit., págs. 184 e segs. 352
La proprietà, op. cit., pág. 57.

180 18!
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA

Pode dizer-se que «quem assume a iniciativa económica, quem organiza


os factores da produção, interpreta no actual mundo económico-jurídico
aquele papel que o mero «detentor do capital fundiário» suportava no
século passado»353 ; isto é numa perspectiva jurídica, a situação do gestor não
apresenta especificidades importantes relativamente à do «proprietário-
-titular», podendo, do ponto de vista que agora está em causa, explicar-se
cabalmente esta subrogação pessoal pelo mecanismo contratual que lhe
está na base. Subrogação que não prescinde obviamente de uma contínua
vinculação ao empresário que domina e controla a sociedade.
E a chamada de atenção para esta realidade tem um mérito que excede
o seu significado imediato.
Na verdade, a valorização, o empolamento mesmo, da cisão entre a
Capítulo VIII
titularidade e a direcção económica da empresa inseriu-se numa opera- Autonomiia Privada eIniciativa Económica Privada
ção de vastas repercussões ideológicas, cujo suporte em grande medida
desaparece pela constatação da ausência de alcance económico e jurídico
dessa cisão. De uma forma breve, pode caracterizar-se essa posição, com 1. A tutela da autonomia privada como tutela da iniciativa económica
Guido Alpa, nos seguintes termos: «Com a teorização da "revolução dos privada: crítica desta concepção
técnicos", operada por volta dos anos trinta, o empresário é despojado do
poder da indústria; no seu lugar, assépticos subordinados ( os tecnocraías) 1.1. É comum ver entender que a autonomia privada constitui a expres-
assumiriam as decisões da organização da empresa, nem sempre em con- são jurídica da livre iniciativa económica privada355; neste sentido, basta-
formidade com as estratégias do lucro; o técnico não teria como objectivo ria a consagração da liberdade económiea privada para estar garantida a
fundamental o da procura do ganho, mas antes o da estabilidade da empresa liberdade negocial e esta só se situaria no interior do sector económico
e da extensão do seu "poder".[... ]. privado.
Da prevalência do interesse da empresa em si passa-se depois à identi- Tal concepção parece incorrecta de ambas as perspectivas enunciadas.
ficação do interesse da empresa com o da colectividade em geral»354 • Nem a problemática da autonomia privada é exclusiva do sector privado da
A consciência do objectivo visado pelo acentuar desta desvinculação actividade económica, nem basta que exista esse sector para se afirmar que,
contribuirá decerto para repor a questão no quadro de uma mais cuidada adentro dele, os sujeitos são livres de se autodeterminarem juridicamente.
análise (cujos passos não cabe aqui explicitar) que, em conclusão, recon- Um ponto parece indispensável clarificar desde já: o problema da
duzirá a importância do problema a uma reduzida dimensão, em particular, autonomia privada só tem sentido numa economia em que, em alguma
no âmbito de que agora me ocupo. medida, os bens são produzidos privadamente e a satisfação das necessi-

355 Corno diz A. Liserre, a propósito do art. 41Q da Constituição italiana, consagrador da livre
iniciativa económica privada, a tese dominante é a que vê na liberdade contratual o principal
equivalente jurídico da iniciativa económica privada ( cfr. Tutele costituzionali delf'a1.1tonomia
contrattuale, op. cit., pág. 10, nota 12).
353
Anna de Vita, La proprietà ... , op. cit., págs. 37 e 38. Neste sentido, por e){emplo, Ferrucio Pergolesi, Diritto costituzionale, op. cit., Vol. II, págs. 324
354
Tutela dei consumatore e controlli sull'impresa, Botogna, 1977, pág. 17. e 378.

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E INICIATIVA ECONÓMICA PRIVADA

dades é obtida no mercado. Só enquanto, e na medida em que o mercado privada[ ... ]; pressupõe, de forma mais geral, a liberdade contratual, sendo o
funcione como forma dominante de satisfação das necessidades humanas, contrato, fundamentalmente, o instrumento mediante o qual o empresário,
é que, no sentido em que o conceito tem sido tomado, se pode falar em por um lado, obtém a disponibilidade dos recursos a utilizar no processo
autonomia privada. produtivo e, por outro, coloca o produto no mercado; e pressupõe, em par-
Mas não basta que a ordem jurídica afirme que os sujeitos jurídicos pri- ticular, a legitimidade da alienação da força de trabalho, ou seja, da troca
vados são livres de empreender a produção de bens e a sua distribuição, de prestação de trabalho contra retribuição [... ], da qual decorre a apropriação
uma forma mais ou menos ampla, para daí se retirar a consequência de que do produto social por parte do empresário privado»358 •
a autonomia privada constitui princípio normativo constitucional. Desde Parece, pois, inequívoca esta consequência do princípio da liberdade,
logo, a afirmação da liberdade de iniciativa económica privada não tem de iniciativa económica privada: sendo essa permitida, hão-de implicita-
uma eficácia exclusiva, nem predominantemente, jurídica: trata-se de um mente estar autorizados os meios de a desenvolver, e, portanto, os actos
elemento de caracterização de uma dada forma de organização económica, negociais necessários à juridicização de tal actividade.
o que não tem conteúdo imediatamente jurídico. Enunciar o princípio de Mas, se a actividade jurídica negocial é instrnmental da actividade eco-
que há «liberdade de iniciar uma actividade económica ( direito à empresa, nómica, ela não :a esgota nem se confunde com ela.
liberdade de criação de empresa) e [... ] liberdade de gestão e actividade de A autonomia negocial qualifica actos jurídicos individualizados,
empresa (liberdade de empresa, liberdade do empresário )»356 tem prio- enquanto a Uberdade de iniciativa económica diz respeito a uma actividade
ritariamente o sentido de garantir a existência de um sector económico que se desenvolve numa série de «actos e de operações orientados para
privado, isto é, de caracterizar de alguma forma o modelo de organização um resultado final unitário, uns de natureza material, outros de natureza
económica da sociedade357 • jurídica, e entre estes também actos de autonomia negocial» 359 •
Isto, muito embora seja clara logo aqui a relação entre normas como Muito embora, portanto, o reconhecimento constitucional da iniciativa
a do art. 85º da Constituição portuguesa e a problemática da autonomia privada comporte, como corolário necessário, a autorização de realização
privada negocial: se na sociedade se encontra assegurada uma esfera de dos negócios jurídicos inerentes à actividade económica que no seu qua-
actuação económica aos sujeitos privados, tal problemática, como se disse, dro se exerce, não pode o sujeito económico reivindicar para cada acto
assume o seu significado tradicional. negocial a tutela que a Constituição estabelece para aquela actividade,
unitariamente concebida. Actuando o sujeito na esfera económica - e a
1.2. O âmbito dessa garantia é recortado por Francesco Galgano nos decisão de o fazer ou não, é livre - ele tem de subordinar-se aos condicio-
seguintes termos: A liberdade de iniciativa económica privada é «liberdade
dos privados de dispor dos recursos materiais e humanos; é, em segundo 358
Il diritto priva to fm códice e Costituzione, op. cit., pág. 125.
359
lugar, liberdade dos privados de organizar a actividade produtiva e, conse- Luigi Mengoni, Programmazione e diritto, págs. 103 e 104.
quentemente, é liberdade dos privados de decidir o que produzir, quando Ou, como diz Francescp Lucarelli, é preciso evitar «o equívoco de quem confunde a iniciativa
no sentido próprio de actividade empresarial (industrial e comercial) com a capacidade de
produzir, como produzir, onde produzir. É uma liberdade que pressupõe
agir, que se prende com a titularidade de situações jurídicas e com o consequente poder de
o reconhecimento de outros direitos dos privados [... ], como a propriedade autonomia contemplado pelo ordenamento», (Solídarietà e autonomill privata, op. cit., pág. 93).
E o mesmo autor explica a ausência na Constituição italiana de um regime do exercício da
autonomia negocial nos seguintes termos: «... a opção do nosso ordenamento constitucional,
356
J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Const. da República PortllguesaAnotada, op. cit., pág. 212. desinteressado do controlo dos actos de interesse privado, encontra explicação política no
357
Não no sentido de preservar um dado conteúdo necessário para o sector económico pri- método adoptado, que limita o alcance das garantias constitucionais, especialment'.e·no plano
vado - o inverso é que tem acolhimento na Constituição portuguesa - mas, tão-somente, no das actividades empresariais, onde se encontra viva e pulsante a tensão classista, enquanto ficam
de assegurar que não possa ser, em absoluto, excluída a possibilidade de os sujeitos privados na sombra na qualificação dirigista os interesses iure privato, que encerram em si ocasionais e
desenvolverem uma actividade empresarial. individuais opções militaristas», (ibid).

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namentos dessa actuação, que lhe sejam impostos, e que podem consistir qualquer questão de limitação do exercício do direito de propriedade,
- e muitas vezes consistirão - na obrigação de realizar dados negócios, de enquanto e na medida em que este se traduz no consumo do bem que é
não os realizar, de os celebrar com dado conteúdo ou dada forma. seu objecto. Ont, pode, embora grosseiramente, dizer-se que o conceito
Quer isto dizer que, garantindo a Constituição a existência de um sec- pré-capitalista de propriedade praticamente se esgota na propriedade de
tor privado na economia - embora com as restrições que, quer do inte- bens de consumo - ou melhor, na propriedade da terra, economicamente
rior, quer do exterior, o conformam - tal garantia não é suficiente para se dirigida à produção de bens de consumo. Porque assim era, na medida
falar num princípio constitucionalmente tutelador da autonomia privada; em que o era e enquanto o foi, os problemas atinentes às restrições da
isto é, por força do art. 85º, podem os operadores económicos privados propriedade com repercussão no campo negocial, e aqueles - em parte
reivindicar um espaço para a sua actividade, sendo inconstitucional uma coincidentes - que respeitavam às restrições desse direito com reflexo na
norma que suprima completamente esse espaço; mas, com base nesse iniciativa económica privada (e os inversos) não se colocavam.
mesmo artigo, não pode defender-se a inconstitucionalidade de qualquer Isto é, a iniciativa económica privada é um conceito derivado do de
norma que modele a actividade negocial dos sujeitos privados, a não ser propriedade, e é no seu domínio, e como sua sequela, que se situam
que fique completamente posto em causa, por essa via, o carácter privado muitas das necessidades e das soluções restritivas, que simultaneamente
da actividade económica36 º. actuam na configuração do âmbito da propriedade - com o seu reflexo no
Por outro lado, a questão da autonomia privada não diz apenas respeito campo jurídico-negocial. Pode dizer-se com António Baldassarre que «a
ao sector privado: também no sector público se praticam actos de autono- história da orige!m da liberdade de iniciativa económica é a história das
mia privada, acontecendo, por vezes, como já se referiu, que a lei manda relações de tal liberdade com o direito de propriedade: quer dizer, é o
que dadas actividades económicas quando realizadas pelo Estado se rejam desenvolvimento de um processo gradual que, partindo da sua originária
pelas normas e princípios aplicáveis ao sector privado. indistinção, chega a uma progressiva diferenciação tanto estrutural como
funcional» 361 •
Daqui que, muito embora a lei possa configurar - e a generalidade dos
2. A função social da iniciativa económica privada ordenamentos efectivamente o faça - de forma diversa o perfil da pro-
priedade e o da iniciativa económica privada, porque esta não deixa em
2.1. Como se encontra implícito em muito do que no capítulo anterior qualquer caso de ser, em grande medida, um «modo de existir» daquela,
se disse sobre a propriedade, o percurso das restrições legais do direito de os traços definidores do regime da propriedade, em particular pelo que
propriedade identifica-se, em larga medida, com o das restrições da inicia- toca ao delinear da forma de exercício lícito das suas faculdades, têm um
tiva económica privada. De facto, como então se acentuou, não se coloca directo reflexo no regime da iniciativa económica privada; e a inversa é
igualmente verdadeira362 •
360
Um outro equívoco é frequente nesta matéria, como resultado da não distinção clara entre
actividade económica privada e negócio jurídico privado: o de se entender que o controlo da 361
Iniziativa económica privata, in Encicl. dei Dirítto, Vol. XXI, op.cit., pág. 584.
actividade económica dos sujeitos privados se traduz e se esgota no controlo dos contratos 362
E isto não é prejudicado pelo facto de, frequentemente, não ser o empresário proprietário
celebrados entre sujeitos privados. Ora, é certo que o preenchimento dos critérios consti- dos meios de produç:lo. Como observa Francesco Galgano, daí resulta «o separado reconheci-
tucionais de legitimidade de exercício da iniciativa privada não pode aferir-se apenas - nem mento constitucional da propriedade privada e da liberdade de iniciativa económica privada, a
principalmente - pela actuação negocial dos operadores económicos privados. Como diz Enzo qual é liberdade, reconhecida aos privados, de prosseguir aquela específica função económica
Roppo: « ••• a actividade (económica) pode pressupor um ou mais contratos, mas não se esgota que é a chamada função empresarial; e é a liberdade de exercício da qual retira a·'Sua própria
neles; controlar os contratos das empresas é portanto condição muitas vezes necessária, mas existência uma definida camada social, a chamada classe empresarial, cujos interesses estão não
quase nunca suficiente, para um efectivo controlo da complexiva actividade empresarial», (Le apenas historicamente mas, muito frequentemente, na experiência actual, em conflito com o
restrizioni delia liberta contrattuale in II diritto prívato nella società-moderna, op. cit., pág. 333). da classe proprietária», (II diritto privato fra códice e Costituiione, op. cit., pág. 126).

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Constatada a ligação entre o quadro legal dos «modos de existir» da 2.2. Começar-se-á por assinalar que a iniciativa económica privada
propriedade e a amplitude e configuração do campo negocial privado, e não suporta apenas limites negativos - de circunscrição de sectores .de
tendo em consideração o que acaba de se dizer sobre a relação entre pro- actividade e de formas de exercício adentro daqueles em que é admitida
priedade e iniciativa económica privada, não espanta que a tentativa de - mas tem, explídta e inequivocamente uma função social, nos termos do
análise das limitações que a Constituição portuguesa impõe à iniciativa nº 1 do art. 85º: este garante a liberdade do seu exercício «enquanto ins-
económica privada conduza à verificação que muitas delas podem ser siste- trumento do progresso colectivo». Isto é, a iniciativa económica privada
maticamente colocadas entre as limitações impostas à propriedade privada. tem de visar, primariamente, um objectivo, que é o progresso colectivo,
Tendo-se procurado demonstrar a razão de ser desta sobreposição, procu- que necessariarr1ente se sobrepõe e não se confunde com os objectivos
rar-se-á, na medida do possível, evitá-la, por se tratar de uma redundância privados do empresário364, Ainda assim, o seu exercício tem de situar-se
inútil. dentro dos «quadros definidos pela Constituição, pela lei e pelo Plano»,
Por isso que convenha acentuar que a análise imposta pelos arts. 89º e ou seja, para além das imposições positivas, sofre as limitações negativas
90º se omite, estando consequentemente ausentes as referências às disposi- que a circunscreverem.
ções que tendem a concretizar o estabelecimento, com carácter dominante, Esta expressa atribuição de uma função social à iniciativa económica
da propriedade social, designadamente, às que impõem ou orientam no tem grande importância, pois, como diz Vittorio Ottaviano, a propósito de
sentido da exclusão dos sujeitos económicos privados de dados sectores da diversa tomada de posição da Constituição italiana, «uma coisa é proibir
actividade económica363 , ou limitam aí a sua actividade, pela expropriação uma actividade porque prejudica a utilidade social, e outra prescrever que
ou nacionalização de meios de produção, solos e riquezas naturais. só se pode desenvolver uma certa actividade se de tal forma se prosseguir
a utilidade social» 365 •
Isto apenas significa que não há, normalmente, completa identidade de regimes e não que um
deles (o da propriedade) não tenha larga repercussão no outro (o da iniciativa económica), 2.3. Para conhecer o alcance de tal função social, torna-se necessário
quer na medida em que coincidam as qualidades de proprietário e empresário, quer porque esclarecer o alcance da expressão «progresso colectivo». Com independên-
as formas de actuação da liberdade de iniciativa económica se configuram, em larga medida, cia das numerosas informações que em muitos preceitos constitucionais
como formas jurídicas de realização das faculdades inerentes ao direito de propriedade ( quer se podem recolher sobre o sentido deste conceito, particularizado relati-
essa realização seja directamente operada pelo titular do direito, quer o seja indirectamente,
por um terceiro, que tem a qualidade de empresário).
363 364
Não pode porém, deixar-se sem referência o art. 83º da Constituição, que «constitucionaliza» Atente-se na radical diversidade de concepção que o art. 85º, nº l, traduz relativamente
as nacionalizações efectuadas após o 25 de Abril, determinando a sua irreversibilidade, a não ao entendimento liberal da colocação e função da iniciativa privada: enquanto este tomava a
ser verificados cumulativamente os seguintes requisitos, e sempre com carácter excepcional: iniciativa económica privada livre como un1 pressuposto necessário e suficiente do progresso
a) ser a empresa pequena ou média; colectivo e, por isso, defendia a sua garantia indiscriminada, aquele parte da constatação de
b) ter ela sido indirectamente nacionalizada; que a realização do progresso colectivo é um objectivo para o qual a iniciativa económica pri-
c) situar-se fora dos sectores básicos da economia; vada pode contribuir - mas não necessária, nem naturalmente -, estando a liberdade da sua
d) não optarem os respectivos trabalhadores pelo regime de autogestão ou de cooperativa. manifestação dependente, na amplitude e modo de ser, dessa contribuição.
Independentemente, pois, da definição legal - feita de acordo com o art. 85º, nº 2- dos «sectores Em qualquer caso, o progresso colectivo é não só um elemento e1,.1:erior e valorativo da legi-
básicos nos quais é vedada a actividade às empresas privadas e a outras entidades da mesma timidade da iniciativa económica privada, como um dado que ela tem de «interiorizar» - nas
natureza», o art. 83º assegura a permanência no sector público de todas as empresas que aí múltiplas formas que assuma - para beneficiar da protecção constitucional.
365
foram colocadas pelas nacionalizações operadas depois de 25 de Abril de 1974, isto é, exclui II governo deli' economia: i prindpi giuridici, in Trattado di diritto commerdale e di diritto pubblico
que estas possam vir a reingressar no domínio da iniciativa privada. delC economia, direito da Francesco Galgano, Volume I, La Costituzione económfm, op. cit.,
V. Parecer nº 15/77, de 17 de Junho de 1976, sobre a constitucionalidade da Lei, que cumpre a pág. 206.
tarefa definidora dos sectores básicos da economia, e respectivos votos de vencido, em Pareceres No mesmo sentido, Prancesco Galgano, La liberta di iniziativa económica privata nel sistema del/e
da Comissão Constitudonal, 2º volume, págs. 67 e segs. liberta costit11zio11a/i, ibid., págs. 513 e 514.

188 189
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E INICIATIVA ECONÓJ\UCA PRIVADA

vamente aos diversos sectores da actividade económica, parece possível, reinvestimento na produção, do rendimento não necessário ao consumo,
desde logo, e em termos gerais, indicar algumas das ideias para que apela. o que pode ser obtido por via indirecta com medidas que o facilitem, como
Por um lado, não pode, evidentemente, debrnr de ter um sentido ime- seja a isenção de tributação, ou também directamente, impondo por via
diatamente económico, traduzido no aumento da produção e da produtivi- legal obrigações neste sentido»367 •
dade dos meios de produção ( cfr., por exemplo, os arts. 66 9, nº 2-d), 81º-b) Deve, em termos gerais, anotar-se a preponderante importância do
e 86º); t.ambém tem de traduzir-se num aumento quantitativo e qualita- direito ao trabalho - entendido no seu específico sentido e tomado como
tivo da satisfação das necessidades individuais e sociais, designadamente expressão-síntese dos direitos dos trabalhadores na delimitação negativa
quando estas têm um carácter primário ( cfr., por exemplo, os arts. 649, e positiva, directa e mediata, do âmbito de legitimidade das manifestações
nº 2-d) e e), 65º, nº 2-c), 75º, nº 2 e 91 9 , nº 2); ainda tem de enquadrar-se, da iniciativa económica privada.
positiva como negativamente, dentro do objectivo constitucional priori- Esta importância não decorre apenas das expressas disposições cons-
tário de salvaguarda da independência nacional ( cfr., por exemplo, arts. titucionais - cuja operatividade se encontra em alguns casos dependente
9º-a), 819-f), 86º e 110º); finalmente, consubstancia um meio de obter uma da lei ordinária, como sucede com a intervenção do Estado na gestão das
ordem social mais equilibrada e menos desigual (cfr., por exemplo os arts. empresas privadas com o objectivo de «assegurar o interesse e os direitos
8P-e), i) e 91º, n,º 2). dos trabalhadores» (art. 85º, nº 3)- antes tem um campo de manifestação
A autorização constitucional da liberdade de iniciativa económica pri-, mais vasto em consequência da privilegiada posição do direito ao trabalho
vada é, pois, condicionada ao efectivo assumir por esta destes objectivos no contexto do ordenamento constitucional, para ele valendo, por maioria
e a permanência dessa autorização depende, singularmente, da efectiva de razão, a seguinte afirmação de C. Mortati: «Direito [ ao trabalho ] que
contribuição dela para o seu preenchimento, muito embora esteja, institu- entra corno uma das componentes (e até como a principal, num ordena-
cionalmente, garantida a subsistência de um sector privado de actividade mento fundado no trabalho, como o nosso pretende ser) determinativas
económica, pelo art. 89º. do concreto conteúdo inserto nas várias Generalklausen (a utilidade social,
Pelo que respeita à forma de actuação dos condicionamentos legais da a função social, as relações sociais justas) a que os arts. 41º, 42º, 43º e
iniciativa económica privada, podem distinguir-se as medidas a adoptar 44º recorrem para configurar o âmbito da esfera de liberdade deixada ao
em dois grupos, «conforme respeitem a elementos da empresa diversos do empresário ou ao proprietário privado»368 •
trabalho, ou ao contrário, respeitem ao emprego da mão-de-obra.
As primeiras podem referir-se a cada uma das várias fases através das
quais a iniciativa se desenvolve, e assume direcções diversas» 366 • Dentro 3. Os limites instrumentais da função social e outras restrições exter-
deste âmbito tanto cabem medidas que não atingem a liberdade negocial nas à iniciativa económica privada
do empresário privado (medidas fiscais, subvenções, isenções, etc.), como
outras que afectam aquela liberdade (tabelamento ou controlo de preços, Para além dos preceitos referidos, que cumprem a necessidade de preci-
por exemplo). sar os sentidos que, em termos gerais, são atribuíveis ao conceito «progresso
Quanto às segundas, se é óbvio que, no essencial, elas se reflectem na colectivo», em fünção do qual se orienta a iniciativa económica privada,
relação laborai, também é certo que podem não ter uma implicação directa podem ainda encontrar-se na lei constitucional portuguesa numerosas
naquela. Assim acontece com «uma série de limites que não respeitam disposições restritivas da efectiva liberdade de exercício daquela iniciativa.
à gestão da empresa, mas antes à utilização por parte do empresário do
rendimento que dela obteve. A política de ocupação deve tender para o 367
C. Mortati, op. e loc. cit.. pág. 179.
368
Considerazioni sulla tutela delia liberta ... , cit., in Problemi di diritto pubblico ... , Scritti, III, op. dt.,
366
C. Mortati, Problemi di diritto pubblico, op. e loc. cit., pág. 178. pág. 348.

190 191
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E INICIATIVA ECONÓMICA PRIVADA

Restrições que, por um lado, se consubstanciam em meios instrumen- maioria tem aí um reflexo imediato, pois a limitação da liberdade de opção
tais da função social assinada à iniciativa económica privada; outras, que se ou da liberdade de gestão económica condiciona evidentemente o campo
traduzem em limites externos da sua actuação; e, finalmente, outras ainda das liberdades jurídicas negociais a elas inerentes.
que, para dados sectores da actividade económica, definem regimes de Deixando de lado as restrições que, directa e indirectamente, ope-
condicionamento particular, tendo em vista objectivos específicos. ram no âmbito das relações laborais, um aspecto se me afigura dever
Para ilustrar o primeiro tipo de instrumentos, susceptível de circuns- ser privilegiado como orientador e propulsor do controlo sobre a inicia-
crever o âmbito da liberdade empresarial, quer quanto à liberdade de tiva económica privada, com importantes repercussões no domínio da
opções, quer quanto à liberdade de gestão de acordo com as opções rea-, autonomia privada dos agentes económicos: o campo da protecção do
lizadas, referir-se-ão os arts. 55º, nºs 1 e 5 e 56!Lb), e) e d), que prevêm a consumidor369 •
intervenção das comissões de trabalhadores, quer na elaboração dos planos Sem a pretensão de esgotar - sequer no enunciado - os temas que nesta
económico-sociais sectoriais, ou na reorganização das unidades produtivas, área se podem desenvolver, procurar-se-ão na Constituição as normas que,
quer ainda na gestão das empresas; o art. 58,º, nº 1-c), que atribui às asso- de uma forma mais ou menos evidente, se prendem com esta questão.
ciações sindicais o direito de participar no controlo da execução dos planos Muito amplamente, não pode ignorar-se, aliás, que a tutela do con-
económico-sociais; o art. 81º-g), !) e o), que definem como incumbências sumidor não prescinde da utilização de todas as formas de controlo da
prioritárias do Estado, respectivamente, a repressão dos abusos do poder actividade empresarial que a Constituição imponha ou legitime. Como
económico e todas as práticas lesivas do interesse geral, o planeamento observa Guida Alpa, «em consequência justamente da indissolubilidade
democrático da economia e o estímulo da participação das classes trabalha- do vínculo que liga o momento da produção ao momento do consumo, um
doras na definição, controlo e execução de todas as grandes medidas eco- plano de providéncias orgânicas em favor do consumidor não pode deixar
nómicas e sociais; o art. 88º, que prevê a sanção das actividades delituosas de compreender - e de ter como fim imediato - o controlo das actividades
contra a economia nacional; os arts. 91º e 92º, nºs 1 e 2, que estabelecem, que ao consumidor são dirigidas» 37º.
respectivamente, os objectivos do plano e as formas da sua aplicabilidade E aquelas formas têm um campo muito vasto, pois desde logo se pode
às empresas do sector privado, que, no mínimo - e fora das actividades de dizer que serão legítimas quaisquer medidas interventoras no âmbito
interesse público - estarão submetidas ao enquadramento nele definido; da iniciativa económica privada que tenham por objecto ou finalidade a
e ainda o art.104º, que estabelece que os trabalhadores rurais participarão salvaguarda dos direitos fundamentais dos cidadãos 371 , direitos que, por
na definição e execução da reforma agrária. força do art. 18º, nº 1, são directamente vinculativos de entidades públi-
Como exemplos de restrições que operam exteriormente, podem cas e privadas. Mais uma vez o pensamento de Guido Alpa parece - e por
apontar-se os arts. 59º e 60º, que consagram o direito à greve e a proibi-
ção do lock-out, respectivamente, e ainda o art. 81º-j), que deterfnina que
.
maioria de razão - correcto face à nossa Constituicão: «A inexistência de
um "direito dá personalidade" construído sobre a liberdade de iniciativa
as empresas hão-de funcionar em regime de concorrência equilibrada. económica exclui, pois, que possam ser encontrados limites para a inter-
Finalmente, como regimes particulares de exercício da iniciativa econó-
mica privada, surgem, por exemplo, os arts. 39º - respeitante à liberdade 369
Não se aborda aqui a questão da delimitação de fronteiras - e suas dificuldades - da categoria
de imprensa e limitações daí decorrentes para as empresas deste sector dos consumidores. Já a propósito do contraente débil se chamou a atenção para a impossibili-
- 64º, nº 2 - que restringe a actividade das empresas do sector médico, dade de construir uma categoria única, radicada numa pretensa homogeneidade de situação
farmacêutico, químico e biológico - e 73º, 74º e 75º - cujos preceitos se económica ou social. V. ainda Guido Alpa, Tutela dei con~11matore ..., op, cit., págs. 23 a 25.
repercutem na liberdade de iniciativa no sector do ensino.
370
Op. cit., pág. 39. , ·
371
Encara-se aqui o problema de um ponto de vista mais lato que o da tutela do consumidor,
Se grande parte destas restrições não tem uma imediata projecção no
abrangendo aspectos como sejam os da protecção do ambiente, da preservação do equihbrio
âmbito da autonomia privada dos operadores económicos privados, a sua ecológico, do combate à poluição (v. arts. 66º e 91º. nº 2).

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A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA AUTONOMIA PRIVADA E INICIATIVA ECONÓMICA PRIVADA

venção legislativa que tenha por objectivo circunscrever ( quando não Gomes Canotilho e Vital Moreira, este nº 2 «não exige a veracidade da
proibir) o exercício de actividades empresariais lesivas dos direitos das publicidade comercial»375; muito menos impõe uma contensão das prá-
pessoas» 372 • ticas publicitárias, que, absorvendo somas enormes, comportam os ine-
Procurando agora particularizar os instrumentos especificamente vitáveis prejuízos de repercussão nos preços; e, finalmente, não comete
previstos e os fundamentos constitucionais de intervenção pública que ao Estado uma função de controlo da publicidade, «a fim de evitar que
visa a tutela do consumidor, encontraremos normas com um alcance as mensagens publicitárias sejam instrumento de distorsão das escolhas
muito diverso. Como formas de «tutela indirecta» 373 , poderão funcionar dos consumidores, e resultem lesivas dos valores fundamentais de que
as medidas que ao Estado compete adoptar para «assegurar a equilibrada depende a qualidade da vida» 376 • 377 • Mas, se da formulação do nº 2 do art.
concorrência entre as empresas» ( art. 81º:i)) e a intervenção que os arts. 109º da Constituição não parece possível extrair consequências ambiciosas
109º, nº 1, e 110º-b) lhe impõem na disciplina dos preços. no que respeita à protecção do consumidor da publicidade, é, no entanto,
Na perspectiva em que o problema aqui se coloca, as medidas protec- útil anotar que a colocação da norn1a indica a sua desvinculação do quadro
toras da concorrência ( ou punitivas da concorrência desleal) têm por via da protecção da concorrência, isto é, da composição dos interesses dos
de regra uma eficácia cujas grandes limitações generalizadamente são capitalistas privados, inserindo-a no âmbito do controlo estadual da fase
sublinhadas374• Ninguém, de facto, tem hoje a pretensão de defender a via- da distribuição. Este controlo - dentro do qual se inclui o dos preços - não
bilidade de um sistema de concorrência perfeita ou a possibilidade de uma pode deixar de ter como objecto a tutela do interesse do consumidor, de
fluidez absoluta do mercado, por isso que não pareça possível sustentar a par com a tutela de um genérico interesse social de racionalização da vida
função defensiva do consumidor que à concorrência era automaticamente económica.
atribuída. No mesmo sentido aponta, aliás, a al. d) do artigo seguinte, que impõe
É conexo com o problema da concorrência que habitualmente se ao Estado uma disciplina e vigilância de qualidade e preços dos produtos
encontra colocado um outro,que directamente interessa à protecção do importados.
consumidor: o problema da publicidade. A conexão emerge de uma limi- Mas a nossa Constituição enuncia expressamente, dentro das tarefas
tada perspectiva do problema, que tende a circunscrevê-lo ao quadro das fundamentais do Estado, o objectivo de protecção do consumidor ( art.
relações concorrenciais entre as várias empresas, com proibição de todas 81º-m))- o que, para além daquelas formas de tutela indirecta, há-de com-
as formas de publicidade que possam consubstanciar práticas concorren- portar necessariamente intervenções imediatamente orientadas no sentido
ciais desleais. da tutela dos interesses dos consumidores. E estas intervenções é que, não
Mas a questão é mais ampla e tem uma grande incidência nas relações deixando de ter algumas incidências alheias ao campo da contratação, é
entre a empresa e o consumidor. O art.109º, nº 2 da Constituição proíbe neste que sobretudo se manifestam ou devem manifestar-se: o controlo
a publicidade dolosa, norma que, se tem o mérito de «constitucionalizar» das condições gerais de contratação, unilateralmente estabelecidas pelas
uma preocupação que a actividade do capitalismo moderno toma hoje grandes empres:as, é indispensável para salvaguardar a posição dos con-
prioritária, tem, por outro lado, a modéstia de uma formulação extre- sumidores, defendendo-os quer de condições excessivamente onerosas,
mamente restritiva, que não permite» por si só, intervir en grande parte
dos gravíssimos problemas que a publicidade acarreta. Como acentuam 375
Const. da Repúblicn Anotada, op. cit., pág. 246.
376
Guido Alpa, op. cit., pág. 127.
377
Embora esteja de acordo com Gomes Canotilho e Vital Moreira em que, «não estando
371
Op. cit.. pág. 49. constitucionalmente garantida uma liberdade de publicidade, nem um direito à públicidade,
373
Cfr. op. cit., págs. 89 e 90. a lei pode estabelecer limites mais ou menos profundos à publicidade, desde a disciplina das
374
V. G. Ghidini, Monopólio e conco1Tenza, in Encicl. dei diritto, vol. XXVI, Milano, 1976, pág. 818; formas de publicidade até à proibição da publicidade de determinadas mercadorias» (Const.
Guido Alpa, op. cit., págs. 98 e segs. Rep,Anot., op, cit., pág. 246).

194 195
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA

quer do assumir de riscos pertencentes à empresa, quer ainda da renún-


cia a direitos de indemnização provindos de defeitos nos produtos ou de
danos destes resultantes378 •
Finalmente, convirá referir uma tendência doutrinária recente, que
parece encontrar eco na nossa Constituição, no sentido de sustentar que
os interesses dos consumidores se caracterizam como «interesses difusos»,
que devem encontrar uma tutela privilegiada através da constituição de
órgãos colectivos e da actuação destes. O art. 81º-m) já referido parece
efectivamente privilegiar uma acção estadual na criação e implementação
de associações de consumidores, às quais caberia, então directamente, a
acção de defesa do consumidor. Não se deve menosprezar a utilidade deste
tipo de iniciativas, mas há que sublinhar que a eficácia da sua actuação
Capítulo IX
é proporcional à eficácia dos instrumentos que tiver na sua disponibili- Conclusões -
dade, abrangendo-se nestes os instrumentos jurídicos. Isto é, a actividade
das associações de consumidores não prescinde da intervenção estatal
que directamente vise a tutela do consumidor, quanto mais não seja por- 1. Justificação
que só através dessa intervenção se podem predispor os meios jurídicos,
administrativos e judiciais adequados à prossecução de tal objectivo pelas Duas razões pareceriam suficientes para justificar a ausência de uma
associações. conclusão final quanto ao tema deste estudo: por um lado, a consciência
da insuficiência da análise feita e, consequente-mente, do grave risco de
precipitação de tal conclusão; por outro, o facto de cada parte conter desde
logo em si uma inerente (embora implícita) conclusão.
Admitindo os riscos da precipitação e da redundância, parece, no
entanto, possível[ e necessária a tentativa de, globalmente, apreciar a forma
e o âmbito da garantia constitucional da autonomia privada. É que, se é
certo que essa apreciação pode resultar viciada pela insuficiente elaboração
dos seus pressupostos, a verdade é que não é por concluir que se agravam
os erros porventura existentes. Além de que as vias esboçadas não esgotam
as possibilidades de investigação que a Constituição portuguesa oferece,
isto é, as conclusões parcelares, ainda que homogéneas, não bastam para
informar com segurança uma conclusão final.
Por isso que, enunciado o resultado final inscrito na lógica do texto, se
procure depois averiguar da correcção dele face a uma outra possibilidade
378
Por se tratar de tema alheio ao do controlo da inciativa privada, e que se refere apenas ao de caracterizar a. garantia constitucional da autonomia privada.
minorar das consequências do desiquilíbrio contratual neste domí nio, não se refere aqui à
problemática das condições de acesso à justiça, que carecem de ser integralmente repensadas
adequadamente à nova problemática que a protecção ao consumidor encerra neste domínio
das sequelas contratuais. V. Guido Alpa, op. cit., págs. 271 a 279.

196 197
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIV,\DA CONCLUSÕES

2. Notas finais intrínseco e prioritário da liberdade humana jurídica. O conceito constitu-


cional de liberdade não supõe, nem admite uma indiscriminada liberdade
2.1. A constatação da inexistência de uma previsão constitucional jurídico-económica: quer nos seus fundamentos, quer nas suas manifesta-
expressa e específica da autonomia privada como liberdade negocial cons- ções, a liberdade como instrumento de defesa contra o Estado e de realiza-
tituiu o fundamento da opção metodológica do presente trabalho. ção integral e igualitária do homem na sociedade civil está posta em causa.
Como oportunamente se esclareceu, esse foi o ponto de partida para Se ela não deixa de revestir uma dimensão defensiva do cidadão contra
uma investigação que visou a identificação de uma garantia indirecta, sus- os poderes públicos, por um lado, tal dimensão não tem como seu campo
ceptível de ser encontrada nos institutos que, historicamente, têm pressu- privilegiado o sector económico, e, por outro, ela está longe de esgotar o
posto aquela autonomia. Paralelamente, tentou-se delimitar, em termos seu total significado, supondo-se antes, em larga medida, a necessidade
gerais, o âmbito dessa garantia, pelo retirar do quadro constitucional dos da intervenção pública para que ela se realize em dois dos seus elemen-
elementos que contribuem para o estabelecer da sua fronteira, isto é, tos essenciais: como liberdade da necessidade e como liberdade face aos
dos princípios e institutos que possibilitam ou impõem uma intervenção poderes privados.
pública no domínio negocial interprivado. Não só não pode, pois, pensar-se a autonomia privada como um dado
A importância deste último aspecto decorre da sua essencial indisso- inerente à tutela constitucional da liberdade, como antes há que desta
lubilidade do primeiro: é que o concluir pela existência de uma garantia tutela retirar importantes elementos num sentido ou restritivo da liber-
(indirecta ou não, acessória ou não, parcelar ou global) da autonomia pri- dade negocial, ou reordenador desta em tais termos que o seu significado
vada pouca capacidade explicativa e justificativa terá se se desconhecer o clássico surge completamente alterado.
seu âmbito, isto é, afinal, a sua essência e função.
Procurou-se, em primeiro lugar, saber se poderia considerar-se a tutela 2.2. Afastada a possibilidade de assim conceber a tutela constitucio-
da autonomia privada como um dos aspectos internos e coessenciais da nal da autonomia privada como uma garantia directa, autónoma e global,
tutela da liberdade humana. procurou-se então averiguar se ela emergia indirectamente da previsão
Da análise sumária da clássica dimensão da liberdade e dos seus pres- de outros direitos.
supostos e consequências, parece legítimo concluir que não é essa a opção A inquestionável conexão histórica entre a propriedade privada e a
constitucional portuguesa. «A Constituição não partiu da concepção liberal liberdade negocial e entre esta e a iniciativa económica privada constitui
burguesa: a protecção do homem contra todas as alienações (no fundo a a óbvia razão de ser do centrar da atenção nestes dois direitos. A questão
protecção da dignidade humana) não se basta com o reconhecimento abs- colocada respeitava à permanência daquela conexão e à definição da sua
tracto de um domínio de autonomia pessoal ou com a afirmação retórica da actual medida.
dimensão ético-espiritual da pessoa humana; a evolução e enriquecimento Se, teoricamente, estas duas perspectivas são susceptíveis de conduzir a
existencial da pessoa humana depende das suas condições materiais de soluções diferentes - a propriedade privada não tendo como pressuposto
existência que, como está hoje demonstrado, não podem ser criadas pelo ineliminável a autonomia privada, enquanto a iniciativa económica privada
«indivíduo» atómico da sociedade liberal. Por outro lado, a unidimensional supõe a sua necessária manutenção -, não parece haver razão no quadro
funcão
, de defesa dos direitos fundamentais assentava numa outra ficcão:
, a legal presente para retirar conclusões divergentes no que respeita à liga-
de que a igualdade formal perante a lei garantia automaticamente a igual- ção entre aqueles institutos e a autonomia privada: em ambos os casos,
dade material»379 • O pôr em causa destes dois pressupostos da concepção da esta beneficia da indirecta tutela constitucional que o exercício daqueles
liberdade implica o necessário rejeitar da liberdade negocial como aspecto direitos supõe. E, ainda em ambos os casos, os limites internos e éxternos,
que a Constituic;ão impõe ou legítima, têm uma directa repercussão na
379
Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 2• ed., op. cit., pág. 531. concepção e âmbito da autonomia negocial.

198
199
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA CONCLUSÕES

Mais do que uma reenumeração (sempre exemplificativa) dos casos em 2.3. Restará admitir uma última hipótese de colocação constitucional
que a Constituição preceitua ou admite restrições à liberdade negocial dos da tutela da autonomia privada: a de que, tratando-se de uma liberdade ou
sujeitos privados, importará aqui assinalar a indicação que parece lícito de um direito legalmente previsto, se lhe deva aplicar o regime dos direitos,
extrair do carácter acessório que a autonomia privada reveste relativamente liberdades e garantias, por força do disposto no art. 17º da Constituição.
à propriedade e à iniciativa económica privada. Partindo da tradicional distinção teórica entre direitos e liberdades 381
Viu-se como a Constituição portuguesa expressamente enuncia um - que parece subjacente a este preceito - não se hesitaria em qualificar a
projecto económico e social, como condição irremovível do seu projecto autonomia privada como uma liberdade. Daí que a colocação da presente
político: daí que os direitos de propriedade e de empresa não possam ser hipótese careça da averiguação do sentido do art.17º, quanto ao âmbito de
dissociados daquele projecto, antes tenham de ser encarados como ins- aplicação do regi.me dos direitos, liberdades e garantias: necessário é saber
trumentos adequados, na sua configuração e na forma da sua utilização, à se tal regime é aplicável às demais liberdades quando previstas na lei ou
prossecução dos objectivos constitucionais. A funcionalização destes dois se a extensão se circunscreve às liberdades constitucionalmente previstas
direitos tem, pois, um quadro de finalidades constitucionalmente definido fora do título II. A redacção do preceito aponta para esta segunda solução,
e perante ele parece inevitável concluir que já não se podem considerar - parecendo circunscrever a extensão do regime constitucional dos direi-
como na concepção liberal - como instrumentos de exclusiva satisfação-dos tos, liberdades e garantias aos direitos legalmente atribuídos, de natureza
interesses privados dos seus titulares, mas devem integrar-se na realização análoga aos direitos enunciados no título II382 •
daquelas finalidades, cumprindo ao Estado a intervenção correctora ou eli- Também neste sentido me parece indicar a ausência de critério dis-
minadora necessária a essa funcionalização. Não apenas a ordem económica criminador das liberdades: enquanto os direitos legalmente previstos
e social não é concebida como consequência automática da discricionária ( e mesmo os previstos na Constituição fora do título II) só têm o regime
actuação privada, mas expressamente se exclui o carácter neutro dos ins- constitucional específico dos direitos, liberdades e garantias, quando a
trumentos económicos atribuídos aos sujeitos privados. A legitimidade analogia de natureza o legitime, já as liberdades sempre o teriam, fosse
da sua utilização supõe não apenas a salvaguarda dos objectivos consti- qual fosse o seu carácter e a sua relevância, o que parece manifestamente
tucionais, como a sua funcionalização a tais objectivos. Por isso que, sem desconforme ao espírito da disposição e não encontra na sua letra uma
perderem a sua directa aptidão para satisfazer os interesses privados dos inequívoca tradução.
seus titulares, eles ganhem uma capacidade de prossecução de interesses Por isso que não me pareça sustentável a ideia de que ao princípio
hetero-individuais, privados ou públicos, que podem considerar-se como inserto no art. 405º do Código Civil deva ser aplicado o específico regime
sendo-lhes coessenciais. constitucional dos direitos, liberdades e garantias, por indicação do art. 17º
Ora, na medida em que a garantia constitucional da liberdade negocial da Constituição. Sendo certo que, em qualquer caso, a sua configuração no
se perspective como acessória daquelas, o seu enquadramento conceituai domínio civilístko se há-de pautar pelos parâmetros constitucionais que,
e o seu âmbito não podem ser diversos nem excedentes: o negócio há-de ao menos parcialmente, se procurou detectar.
constituir um «instrumento ao serviço do direito objectivo» 380 , isto é,
das finalidades que a ordem jurídica definir como suas, admitindo todos
os limites positivos ou negativos, que visem a sua adequação funcional à
prossecução dessas finalidades.

381
Cfr. Vital Moreira e Gomes Canotílho, Constituição ... , op. cit., pág. 57.
382
380 Jacques Ghestin, Traité de Droit Civil, Les obrigations, Le Contrat, Paris, 1980, pág. 132. Em sentido diven,o, Vital Moreira e Gomes Canotilho, op. cit., pág. 76.

200 201
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210 211
ÍN OICE

INTRODUÇÃO 5

NOTA PRÉVIA 7

CAPÍTULO I
AUTONOMIA PRIVADA: CONCEITO E EVOLUÇÃO

1. Ligação intrínseca entre o conceito de autonomia privada


e o de propriedade, e historicidade destes conceitos 9
2. Recorte do conceito de autonomia privada e alguns dos seus
pressupostos. A opção conceitua! restrita do presente trabalho 14
3. O interesse público como elemento intrínseco dos conceitos
de direito suhjectivo e de negócio jurídico 19
4. A evolução do.s conceitos de negócio jurídico e de autonomia
privada 23

CAPÍTULO II
DIREITO PRIVADO E DIREITO PÚBLICO

1. Condições históricas do surgimento dos conceitos modernos


de direito privado e direito público 27
2. O direito privado e o direito público 29

213
A TUTELA CONSTlTUCION:\L DA AUTONOMIA PRIVADA
ÍNDICE

CAPÍTULO III CAPÍTULO VI


A INTERVENÇÃO PÚBLICA AUTONOMIA PRIVADA E IGUALDADE
NO DO:MÍMO ECONÓMICO PRIVADO
1. A evolução fendencialmente superadora dos conceitos clássicos:
1. A transformação operada e a sua subsunção ao quadro teórico clássico 33 o princípio da igualdade 87
2. Formas de intervenção pública no domínio privado 35 2. A concepção da igualdade na Constituição portuguesa 89
3. A intervenção pública nas relações interprivadas 40 3. O princípio d~t não discriminação 95
4. A intervenção estatal directa na vida económica 43 4. A igualdade st1bstancial 99
5. As consequências da intervenção pública no domínio privado 5. Os direitos sociais
103
para a distinção entre direito público e direito privado 45 6. A eficácia pre<:eptiva dos direitos fundamentais e o seu significado 128
6. O direito «público» e as relações económicas 51 7. O problema do «direito à igualdade» e o da eficácia
7. A importância da Constituição 53 interprivada desse direito 132

CAPÍTULO IV CAPÍTULO VII


A CONSTITUIÇÃO DE 1976 AUTONOMIA PRIVADA E PROPRIEDADE
E O SEU QUADRO ECONÓMICO
1. A tutela da autonomia privada como tutela da propriedade 135
1. A Constituição portuguesa de 1976 - as linhas gerais da concepção 2. A concepção dássica da propriedade e a sua análise
136
do papel do Estado na vida económica 57 3. As faculdades de gozo e de disposição: a relação do seu exercício
2. O significado da previsão da inconstitucionalidade por omissão 59 com a autonomia privada 142
3. O significado dos limites materiais de revisão constitucional 64 4. As limitações do direito de propriedade que não se repercutem
4. Caracterização do projecto constitucional: democracia e socialismo 68 no âmbito da autonomia negocial do proprietário e as que aí se
repercutem ou dela resultam 144
5. O problema da função social da propriedade 152
CAPÍTULO V 6. A fragmentação do conceito unitário de propriedade e as várias
AUTONOMIA PRIVADA E LIBERDADE EDIVIDUAL «propriedades» constitucionalmente previstas 174
7. O âmbito de garantia do art. 62º da Constituição: os problemas
1. A tutela da autonomia privada na Constituição portuguesa 71 do chamado «conteúdo mínimo da propriedade» e das chamadas
2. A tutela da autonomia privada como tutela da liberdade. «expropriações de valor» 177
O conceito jurídico de liberdade e a realidade contratual 72 8. Os casos de total separação entre propriedade e autonomia privada
3. A historicidade do conceito de liberdade individual subjacente e a dissociação entre a propriedade e a gestão dos bens 181
à noção de autonomia privada e a contradição que ela encerra 74
4. A igualdade como pressuposto da liberdade contratual:
a igualdade formal e a sua insuficiência 80

214
215
A TUTELA CONSTITUCIONAL DA AUTONOMIA PRIVADA

CAPÍTULO VIII
AUTONOMIA PRJVADA E INICIATIVA ECONÓMICA PRJV ADA

1. A tutela da autonomia privada como tutela da iniciativa


económica privada: crítica desta concepção 183
2. A função social da iniciativa económica privada 186
3. Os limites instrumentais da função social e outras restrições
externas à iniciativa económica privada 191

CAPÍTULO IX
CONCLUSÕES

1. Justificação 197
2. Notas finais 198

BIBLIOGRAFIA 203

216

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