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COLEÇÃO UNIVERSITARIA

8 DE CIÊNClAê HUMANAS?
LEGALISMO
E CIÊNCIA
DO DIREITO
(JiF-brasiì. Catalogação-na-Fonte
Câmara Brasileira do Livro, SP

Saldanha, Nelson, 1933-


S154L Legalismo e ciência do direito. Sao
Paulo, Atlas, 1977.

Bibliografia.

1. Constitucionalismo 2. Direito - Teo­


ria 3. Leis I. Título..

CDU-340•11
-340.13
77-1058 -342.4

Í n d ic e s paira c a ta lo g o s i s t e m á t i c o :
1. Constituições 342.4
2. Direito z Téòria 340.11
3. Normas jurídicas 340.13

EDITORA ATLAS S.A.


Rua H elvetia, 574/578 — CElis
Caixa Postal 7186 — Tel.: (011) 221-9144
01215 São Paulo (SP)
BRASIL
NELSON SALDANHA
Professor da Universidade Federal de Pernambuco

LEGALISMO
E CIÊNCIA
D O DIREITO

EDITORA ATLAS S. A.
COLEÇÃO UNIVERSITÁRIA DE CIÊNCIAS HUMANAS
Volume 9

LEGALISMO E CIÊNCIA DO DIREITO


Nelson Saldanha

Ilustração da capa: reprodução do original de


LEONARDO DA VINCI

Diagramação de
PAVEL GERENCER

Copyright (c) 1977


EDITORA ATLAS S. A.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS — Nos termos da Lei que


resguarda os direitos autorais, é proibida a reprodução total ou par­
cial, bem como a produção de apostilas a partir deste livro, de qual­
quer forma ou por qualquer meio — eletrônico-ou mecânico, in­
clusive através de processos xerográficos, de fotocópia e de grava­
ção — sem permissão, por escrito, do Editor.

l.a edição: 1977

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Para MIGUEL REALE e LOURIVAL VILANOVA,
dois modos de ser do atual pensamento jurídico brasileiro

Para WILLIAM FERRER COELHO,


com fundamental agradecimento
SUMÁRIO

Prefácio dó A utor ........................................................................................ 9


PRIMEIRA PARTE — INTRODUÇÃO
I — PROPÓSITOS E DELINEAÇÕES ................................................... 13
1. Perspectiva do sa b e r jurídico ............................................. 13
2. A lusão ao legalism o .............................................................. 15
3. Como e stu d ar o problem a ................................................. 18
II — JUSTIFICAÇÃO E DELIMITAÇÃO METODOLÓGICA 21
1. O m aterial histórico ............................................................. 21
2. A experiência greco-rom ana ............................................... 23
III — SOBRE OS ESQUEMAS E PONTOS DE REFERÊNCIA 25
1. Legalismo como tipo e com o siste m a ........................... 25
2. C orrelações histórico-políticas ........................................... 27

SEGUNDA PARTE — SOBRE A GÊNESE DO LEGALISMO


OCIDENTAL
I — ALUSÃO AO QUADRO GERAL ................................................. 31
1. E squem as expositivos .................................. 31
2. R eferência ao O cidente ........................................................ 36
3. D igressão sobre G récia e Roma ...................................... 36
4. S obre a evolução da "Lei'’ ................................................. 37
II — OS ORDENAMENTOS OCIDENTAIS PRÉ-DEMOCRÁTICOS . 42
1. Sobre a fase “pré-dem ocrática" ...................................... 42
2. Visão da Idade Média .......................................................... 43
3. Os cham ados tem p o s m odernos ...................................... 47
III — SURGIMENTO E FUNDAMENTAÇÃO DO LEGALISMO 51
1. V alorização e revalorização da lei ................................. 51
2. R eferência ao pen sam en to jurídico ................................ 57
IV — CONSTITUCIONALISMO E PRIMEIRAS CONSTITUIÇÕES .. 59
1. Iluminismo, revoluções, c o n stitu iç õ e s ........................... 59
2. O estad o de direito e o s p arlam en to s .......................... 61
3. O caso britânico ..................................................................... 64

7
V — CODIFICAÇÕES E APOTEOSE DA LEI ; .................................. 67
1. C ondições histórico-culturais ............................................. 67
2. R eflexos no sa b e r Jurídico ................................................. 70
3. O utros a sp e c to s ................................ 72
4. Nova alusão às Im plicações hlstórico-políticas e his-,
tórlco-culturais ......................................................................... 74
5. Revisão da Imagem histó rica do legalism o .............. 78
6. Nota so b re o prism a sociológico .................................... 79

TERCEIRA PARTE — PRIMADO DA LEI E CIÊNCIA DO DIREITO


I — BASES DA PRIVATÌSTICA: INTERPRETAÇÃO E FONTES • 85
1. In terpretação: por quê? ......................................................... 85
2. Entra em cena o problem a das fo n tes .......................... 94
3. R eelaborações no sa b e r Jurídico .................................... 98
4. O "Jurídico” e o Jurista ........................................................ 101
II — TRANSFORMAÇÕES E CONTINUIDADES ................................ 104 '
1. C ontradições, oscilaçõ es, contin u id ad es .......................... 104
2. Nova alusão a Haurioú ............................................................. 105
III — DECORRÊNCIAS DO LEGALISMO: O CONCEITO DE LEI E
OUTROS CONCEITOS ........................................................
1. N oções antiga e m oderna de lei .................................... 106
2. A "generalidade" da lei ............................................................ 107
3. A lei e a ciência jurídica .................. 109
4. Ò prim ado da lei ..............................................................................110.
IV — DECORRÊNCIAS DO LEGALISMO: A HISTÓRIA DO DIREI­
TO E A “FORMAÇÃO DO DIREITO" ....................................... 113
1. Como p asso u a se r v ista a evolução do d ireito — 113
2. O legalism o com o época? ...................................................... 115
V — DECORRÊNCIAS DO LEGALISMO: A CIÊNCIA DO DIREITO,
O SABER JURÍDICO É AS NORMAS ....................................... 117
1. A “ciência do direito" .......................................................... 117
2. A tuação do direito ..................................................................... 119
3. O direito como norm a, a lei e o co stu m e .............. 120
4. A lei e os fato s ..................................... 123
5. Ainda so b re direito e norm a .......................................... 124
VI — A CRISE DO LEGALISMO E O PENSAMENTO JURÍDICO
ATUAL .....................................................................................
1. S e existe, e como, uma c rise do legalism o .............. 129
2. C ríticas éticas, so ciais e sociológicas ao legalism o .. 130
3. C ríticas ao funcionam ento d a s leis no plano co n creto »34
4. S uperação possível do legalism o no p en sam en to jurí­
dico rec e n te ..............................................................
5. Problem ática das leis nos p a íse s do cham ado te rc e i­
ro mundo ...................................................................................... 142
6 ., A modo de conclusão ..................... 144
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 147

8
PREFÁCIO DO AUTOR

O presente livro resulta de estudos que empreendi após


meu doutoramento na Faculdade de Direito do Recife, em
1958, e meu concurso à Docência-livre, em 1960, na mesma
escola.
Aprofundando certas leituras e consolidando certas orien­
tações, retomei a idéia fundamental da historicidade da expe­
riência jurídica e situei sobre ela o fenômeno do predomínio
do direito-lei sobre toda outra forma possível de direito, no
mundo moderno. Semelhante tema corresponde aliás a um
enorme material bibliográfico, que o aparato de citações (talvez
excessivo) existente no livro não pretende nem de longe abar­
car. Corresponde, por outro lado, a um reexame geral do pro­
blema das “fontes” do Direito, para o qual têm confluido es­
tudos de cunho filosófico, sociológico e técnico-positivo.. O
tema das fontes, relacionado ao conceito de “direito objetivo”
e à idéia de uma dinâmica interna existente no próprio ordena­
mento, permite sempre fecundas indagações históricas.
Apelei para o termo legalismo (apesar de reconhecê-lo
equívoco e passível de conotações diferentes) por se tratar de
termo sintético e conciso. Tomei-o para designar o regime de
predomínio positivo da lei, bem como a atitude que assume e
supervaloriza este predomínio. Não tive oportunidade de apro­
veitar, para o livro, o conteúdo do ensaio de Judith Shklar, de
Harvard, Legalism — an essay on law, morals and politics,
aparecido em 1964 (e posteriormente vertido para o portu­
guês), mas pude verificar que seu estudo se cifra sobretudo
sobre o legalismo como “atitude ética”. Outro estudo que ape-

9
nas vim a conhecer quando do livro praticamente pronto foi
o artigo de Herman Dooyeweerd, publicado em 1967 no Ar­
chiv fuer Rechts-und Sozialphilosophie., sobre a conexão entre,
a idéia de lei e o pensamento jurídico.
O livro foi escrito, aos pedaços, entre 1961 e 1965, à
base de junção de textos e revisões sucessivas. Esteve engave­
tado até maio de 1973, quando retomei e completei o trabalho.
Hesitei entre reescrever tudo e manter a forma inicial, termi­
nei por conservar a estrutura geral, dando nova redação a
algumas partes, fazendo cortes e acréscimos. Em novembro
de 1976 ainda retoquei dois ou três capítulos, sem fazer gran­
des alterações. Do modo como foi elaborado (e havia de iní­
cio a hipótese de vir a servir como dissertação universitária),
resultaram alguns defeitos, inclusive a extensão das notas, fre­
qüentemente demasiada. Peço ao leitor que, no caso, entenda
a coisa como se se tratasse de dois teclados, o do texto e o
das citações, lembrando que ambos devem ser “ouvidos”.
O livro levava de início, quando de seus primeiros es­
tágios, o subtítulo de Contribuição à critica histórica da ciência
jurídica ocidental Hoje, apesar de manter a intenção basilar
que ele indica, sinto que a contribuição pode não ter sido tão
grande. Sinto particularmente que certos trechos, entre os es­
critos há mais tempo, se acham carentes de um desdobramento
analítico maior e mais completo. Continuo entretanto a acre­
ditar que no essencial o estudo permanece válido, e que eqüi­
vale a uma parte central dentro dos trabalhos que tenho feito.
Continuo crendo na importância do entendimento histórico dos
problemas científico-sociais, e o tema do livro segue para mim
em plena linha de interesse. Recentemente, participando eni
Brasília do II Forum Nacional de Debates sobre Ciências So­
ciais e Jurídicas, abordei as relações entre os conceitos de
“Direito” e “Direito Consuetudinàrio”, retomando um enfoque
que já se acha indicado no presente livro.
Nem sempre o jurista se interessa pelos ângulos históricos,
ou, em termos mais gerais, pelos aspectos do direito que saem
do meramente formal e técnico. Na medida, entretanto, em
que se interessa por tais ângulos, e por tais aspectos, ele passa
a não ser “mero” jurista — no sentido da velha frase de Lu­
tero, sempre repetida: “um jurista que não seja senão mero
jurista é uma pobre coisa”.
Recife, setembro de 1977.

10
PRIMEIRA PARTE

INTRODUÇÃO
I
PROPÓSITOS E DELINEAÇÕES

1. PERSPECTIVA DO SABER JURIDICO

Um dös destinos da Ciência do Direito tem sido este, o


de muitos de seus conteúdos nucleares apresentarem, na mesma
proporção de sua importância, a propriedade de criar mal-en­
tendidos.
Um dos mal-entendidos mais correntes, no caso, é o de
se tratar certos conceitos jurídicos mais essenciais como se cor­
respondessem a entidades puramente abstratas, gerando-se certa
estranheza quando a realidade concreta começa a exigir com­
preensão mais apropriada.
Deste modo, e muitas vezes, dentro de momentos os mais
brilhantes da evolução do pensamento jurídico moderno, as
idéias de lei, ato, relação etc. têm sido tratadas como se dota­
das de realidade em sua configuração ideal própria; como se a
retenção de seus contornos desse conta perfeita de suas possi­
bilidades reais. São conceitos que parecem ter adquirido vida
própria. Trabalha-se sobre eles como se, além do que cono-
tam como idéias, projetassem de si também 0 montante de sua
própria realidade. Em torno deles, formou-se um universo in­
tegral de significações, que o hábito de pensar trata Como se
estivesse livre de condições externas. Discúte-se sobre elemen­
tos do. ato jurídico ou sobre tipos de ação, como se cada uma
dessas coisas fosse apenas uma forma parada na exatidão de
si própria,1 Sem fissuras, nem raízes na contingência do real.
1 Assim se pôde ver o ju rista “ inm erso en su própia experiencia ju ríd ica
de sentencias, contratos, resoluciones, leyes etc.", como um puro- fazedor de
dogm ática (CARLOS C O SSIO , E l Derecho en el Derecho Judicial, 2.a ed., A.
P errot, B. Aires, 1952, p. 52).

13
E quando se sai para os lados, procurando ver certos pro­
blemas por outros prismas, ainda aí se permanece, às vezes,
preso à crença implícita no caráter puramente formal daquelas
entidades. Faz-se às vezes Sociologia e Filosofia do Direito,
mesmo História do Direito, sem comprometer o pressuposto da
auto-suficiência conceituai do universo epistêmico que ficou sen­
do chamado “Ciência do Direito”. Essa expressão necessita,
aliás, ser entendida dentro de uma circunstância.
ê claro que, aos poucos (e isso e fundamental), a cons­
ciência histórica ou histórico-cultural de nossa civilização,
dita ocidental, foi sugerindo, em lances, a relatividade daquele
ponto de vista, ao criar ciências novas, tiradas da necessidade
de analisar o mundo social. A Sociologia, a Historiografia e a
Antropologia penetraram nos campos onde um saber puramen­
te sistemático se situava, e se fizeram revisões importantíssimas.
E se o ponto de partida desta introdução tem porventura
algo de denúncia, é que o chamamento ao problema contraria
algumas das pretensões da teoria jurídica, apesar de que o. con­
vite à revisão histórica esteja autorizado por tendências funda­
mentais do pensar contemporâneo.2 De resto, em nenhuma ciên­
cia social a especulação “sistemática” pode viver sem ou contra
a história: entre ela e a perspectiva histórica deve haver sem­
pre mais diálogo que polêmica.
É certo que existe na teoria do direito, desde a influência
de Kant, a posição que exige a formação dos conceitos antes
de verificar incidências empíricas;3 mas isto não impede de se
saber que qualquer conceito ‘ destes é elaborado no tempo e
faz parte de um conjunto historicamente dado. Daí a relati­
vidade com que se deve, entre outras coisas, ouvir falar da
“universalidade”4 do direito.
2 V. o capítulo inicial de nosso O Problema da H istória na Ciência /u r/-
dica Contemporânea, Recife, 1964. Sobre o “ caráter h istórico” da civilização
ocidental, v. o sugestivíssim o livro de Z E V E D E I BARBU, Problem s of H is­
torical P sychology, London, Routledge and Kegan Paul, 1960, p. 1.
3 L O U R IV A L V ILA N O V A , Sobre o Conceito do D ireito, Recife, 1947, es­
pecialm ente Capítulos II e V. Na teoria européia, esta idéia se consubstanciou,
sobretudo, em Stam m ber e Del Vecchio.
4 Assim para o texto de FRANCO A, CUSIM A NO (Sfato E tico e Stato
D em ocratico. Milano, Giuffrè, 1953, Introd., p. 13): “ Il diritto è una manifesta*
zione universale ed il suo principio codifica tu tta la vita di una. nazione, di
una società, di un p o p o lo ...”. Acrescenta que o direito “ è esso stesso filoso­
fia ”. Na verdade, a abstração, de que se tira a universalização do conceito de
filosofia, im plica certos hábitos teóricos, entre os quais está a tendencia a am­
pliar a experiencia do direito, moderno, com seu acom panham ento científico, até
projetar-se. e a tr ib u ir le a todos' os tempos e espaços; e é com vistas àquela
abstração e a essa tendência que se pode falar numa exigência “ filosófica” do

14
Faço questão, porém, de registrar que é difícil, ante a ne­
cessidade de se partir da idéia de um saber jurídico tal como
podemos retratá-lo através de suas pretensões formais (ao que
aludia de início), e ante a de se tomar desde logo a linha
histórica, explicar o fato de que isso foi só um aspecto do
que se fez como saber jurídico. Pois a verdade, inclusive, é
que o tempo em que a cultura contemporânea se deu conta da
inserção histórica do problema da relação entre direito e saber
jurídico foi o mesmo em que vieram a furo as ciências sociais
novas que traziam subsídios para á ótica da teoria jurídica; mas.
pelo peso semântico da linguagem de séculos, a noção de saber
jurídico seguiu como sendo aquela, mencionada de início —
plantada em uma intenção sistemática e em um plano concei­
tuai extra-histórico.

2. ALUSÃO AO LEGALISMO

O que este trabalho pretende acentuar é, em resumo, o ca­


ráter legalista apresentado pelo direito ocidental, particularmen­
te em seu período liberal, e a influência deste caráter sobre a
chamada Ciência do Direito. Pretende fundamentar uma revi­
são dos caracteres da Ciência do Direito, do ponto de vista de
sua relação histórica com o predomínio da lei. Porém, sem dei­
xar de reconhecer que a Ciência do Direito, por outro lado,
sempre se valeu do influxo que lhe chegava por parte do desen­
volvimento específico das novas formas de pensar.
Com efeito, todo o acervo de pensar e de saber que cons­
titui essa ciência^ principalmente enquanto própria da cultura
dos povos que se deram uma autoconsciência em forma de cons­
ciência “contemporânea”, está construído sobre uma experiên­
cia jurídica em que a lei escrita se apresenta como elemento
central.
E a mesma idéia de lei aparece nessa experiência com um
sentido peculiar. Será oportuno, portanto, fixar as condições
deste problema. Não que não tenham “valido” as especulações
direito. De resto, a pretensão de universalidade se consolida, historicam ente, à
base da idéia de um d ireito natural, cujo estudo, sintom aticam ente, andou con­
fundido em certo tempo com o da própria filosofia do direito.

15
DE CIÊNCIAS HUMANAS
Atualmente em todos os campos do conhecimento
humano é difícil para o estudante e mesmo para o Pro­
fessor acompanhar a crescente "massa de informações: as
publicações se multiplicam, novas interpretações surgem
constantemente, as discussões .sobre èlas se sucedem e,
ademais, a interpenetração das. ciências é cada vez maior.
Diante desse volume de material, de valor e.de interesse
desiguais, torna-se indispensável uma seleção de textos
compactos e que, não obstante, sejam elaborados por re-
nomados especialistas e exponham os assuntos de forma
clara mas dentro do rigor científico que se exige.
A Coleção Universitária de Ciências Humanas foi con­
cebida pretendendo atender a estas necessidades, colo­
cando ao alcance de estudantes e professores obras que
permitam acompanhar os progressos feitos nas áreas de
Antropologia, Direito, Economia, Educação, Hlstõrla, Políti­
ca, Psicologia e Sociologia.
Através dos livros desta coleção, em poucas páginas
os universitários terão subsídios seguros para seus traba­
lhos e suas pesquisas, os professores estarão em conta­
to com os constantes avanços de sua disciplina e todos
os estudiosos dos problemas do homem terão acesso a
assuntos normalmente tratados em obras volumosás e de
linguagem específica.
o ANTROPOLOGIA
® DIREITO
• ECONOMIA
® EDUCAÇAO
• HISTÓRIA
® POLÍTICA
« PSICOLOGIA
® SOCIOLOGIA

EDITORA ATLAS S.A.


edificadas sobre aquela idéia de lei; mas é hora de rever entre
tantas outras coisas essa fundamental: as circunstâncias em que
se formou a concepção ocidental e sobretudo a concepção mo­
derna da lei, e em que essa concepção se projetou sobre a es­
trutura da “Ciência do Direito”.
Tais circunstâncias são evidente e desdobravelmente his-
tórico-culturais, histórico-políticas, histórico-jurídicas. Teremos
pois de tomar em conta uma série de pontos de vista que se
complementam;5 e essa consideração do fator político não pre­
cisará — é claro — ser ela mesma uma atitude política (com
o que se cairia em erro denunciado há tanto tempo, aliás, pela
teoria pura do direito), mas a verdade é que certos problemas
gerais da teoria jurídica só têm a ganhar com o concurso do
enfoque político-teórico ou político-científico: e mais ainda des­
de que (e isto também é claroj se vincule este enfoque ao his-
tórico-filosófico e sócio-cultural.
Se se revêem os traços históricos da experiência político-
-jurídica desenvolvida pelos povos a que me referia, a partir
de certa época e de certas heranças mais antigas, se perceberá
a situação institucional em que se consolidou a idéia de lei que
ficou servindo de base ao pensamento jurídico representativo
de Ocidente.6 Tudo isso importa, inclusive, para a mesma dis­
tinção entre lei e costume,7 entre norma escrita e norma não-
5 E ssa pluralização de pontos de vísta surge como decorrência do acúmulo
de consciência social teó rica; ao mesmo tempo, ela impõe a necessidade de um
esquema norteador. Confira-se a nota 24 do Capítulo V da segunda parte.
6 Tomamos o pensam ento jurídico ocidental como um saber plantado e
crescido sobre uma experiência ju ríd ica em que a forma “le i” predom inou ex«
tensam ente; c essa experiência, com aquele pensam ento, respondem mesmo pela
visão que se ficou tendo da gestação dos passados jurídicos prim ordiais. As­
sim, quando se tenta reconstituir a form ação dc regras coativas nas sociedades
rudim entares, parte-se da idéia de que elas tenderam a ser relação entre casos-
•a-regular e norm as reguladoras. Veja-se a tendência nos textos citados à nota
37 do Cap. I do m agnífico livro de O T T O B R U S IIN , E I Pensam iento Jurídico,
trad. J. P. B rutau, E JE A , B. Aires, 1959, pp. 38-39.
7 BR U N O P A R A D IS I, em sua Storia del D iritto Italiano — L e F onti nel
Basso Im pero e neìVEpoca Romano-barbarica (Nápoles, 1951, p. 1 e segs.), in­
vestigando de início a transform ação histórica das fontes, parte de uma con­
traposição básica entre lei e costume, adm itindo para a época republicana de
Roma uma terceira fonte: a jurisprudência, esta partindo-se depois em ju ris­
prudência autêntica e jurisdição, lim a indicação clássica do binômio lei-costume
está em CÍCERO , no Cap. II do livro I de sua R epública: cf. trad. J. Velazco
y Garcia, B. Aires, 1944. P ara uma visão detalhada e profunda das idéias do
pensador romano sobre o assunto, v. a Introdução de ROG ER LA BRO U SSE à
sua . tradução de L a s L eyes, ed. Univ. Puerto-R ico/R ev. de O ccidente, M ádrid,
1956. Para B O N FA N T E , “ la pretesa genesi incosciente e cieca della consuetu­
dine nella v ita dei popoli è un'utopia. La consuetudine ha sempre sua fonte
nella giurisprudenza, in origine sacerdotale, in seguito laica, fissata più tarde in
massime raccolte in codici. Un esem plio di tali codici prim itivi sarebbe in Roma
la legislazione d ecenvirale” (“ Per una revisione della teoria della consuetudine”,
em R ivista di D iritto Commerciale, 190^, voi. I I, parte I, p. 276). — Ponto de
vista um tanto especial é o de JO A Q U IN COSTA (L a Ignorancia del Derecho,

16
-escrita, ou entre experiência jurídica costumeira e experiência
jurídica legal — distinção que não é tão fácil.* 8
Idéias correntes como as de'norma, ordenamento, sistema
provêm em suma, em seu uso extenso e em seu conteúdo, desse
predomínio positivo da lei escrita, desse legalismo desenvolvido
nos últimos tempos. Legalismo comprometido em grande parte
com o estatalismo do direito, e que não é simplesmente a valo­
rização da lei como expressão do jurídico, mas a tendência a
absorver todos os valores jurídicos na vocação de vigência for­
mal e verbal que a norma escrita possui.9*17
ed. E JE A , Buenos A ires, 1957; Cap. IV ), que pretende um traço de identidade
entre lei e costume, fundado sobretudo no fato de que a lei só o é realm ente
se referendada pelo' uso popular; sem o qual é m era proposição do legislador.
8 Para a- distin ção entre ju s scriptum e ju s non scriptum , v. P A U L F. G L
RARD, M anuel É lém entaire de D roit R om ain, 4 .ed,, P aris, 1906, pp. 3 e 23.
O bserva adiadam ente o ilu stre rom anista que ambos diferem , não pelo Cato m a­
terial da escrita, m as pelo modo de form ação: “ le ju s scriptum est celui qui
est produit par un des pouvoirs publics investís d ’un role lég islatif et qui nor-
m alem ent será redige par écrit; le jus non scriptum est celui que l ’usage pro­
duit insensiblem ent et qui par suite se forme sans écriture, m ais qui naturelle-
m ent ne changerait pas de caractère parce qu’íl ferait l ’objet d ’une redaction
privée” (p. 3). P ara o tem a, v. ainda G IU S E P P E F E R R A R I, Introduzione ad
uno Studio sul D iritto Publico Consuetudinario, M ilano, Giuffrè, 1950, pp. 14 e
15, notas 6 e 9; e as páginas um tanto acadêm icas do clássico Heinéccio (P re-
leções de J. G. H E IN E C C IO aos E lem entos de D ireito C ivil, segundo a ordem
das in stitu ía s, trad. Duperron, 2.a ed., Recife, 1875, p. 22). C ertas épocas são
dessarte propícias ao adensam ento do problem a da “ form ação" de costum es: as­
sim, a m edieval (com relação a ela, v. o sum ário histórico de P. L E R E B O U R S
— P IG E O N N IÊ R E , P recis de D roit International P rivé, 5. ed., D allos, P aris,
1948, p. 20; e as indicações de K O SCH A K ER , p. 186 da obra que será citada
a seguir, à nota 1 do Cap. 2, 1.a parte). De qualquer modo, não se confunde o
costume que ‘veio a ser redigido, com a lei que se fundou num costum e: veja-sé
a respeito o sugestivo livro de S. S E N T IS M E L E N D O , E l Juez y el Derecho
(iura novit cu ria), ed. E JE A , B. Aires, 1957, Cap. IV , p. 211.- — De acordo
com a cham ada teoria rom ano-canònica, o direito aceita por válido o costume
que tiver sido formado por dois elem entos, a consueíudo e a opinio (V. a res­
peito É D O U A RD L A M B E R T , La Fonction du D roit C ivil Comparé, P aris, ed.
Giard et B riete, 1903, tomo I, p. I l i e segs-; E. GARCIA M A YNEZ, La D e ­
finición del Derecho — Ensayo de P erspectivism o Jurídico, México, 1948, p. 19).
Note-se, 'porém , que tal teoria, considerada tradicional, form alizou os requisitos
do direito consuetudinàrio sob a influência do processo histórico de predom ínio
da lei. O que ela quis ver no costume “perfeito" foi uma outra le i; por isso
não tem razão M AYNEZ ao dizer (p. 20) que nos países de direito escrito
pode haver conflito entre aquela teoria e os preceitos legais alusivos ao costu­
me. Pois mesmo que estes preceitos saiam da fórm ula tradicional, terão sem ­
pre a incum bência de m anter o com ponente costume sob o controle do modelo
legal do direito. — F inalm ente, não se deve confundir o reconhecim ento ou a
“ aplicação" dc um costume, com a existência de um direito costum eiro: a im ­
posição de uma decisão com base numa prática costum eira constatada pode-se
dar dentro dum regim e exclusivam ente, legal, ao passo que o direito costum eiro
seria a presença de in stitu to s inteiros regulados por costum es, coisa que não se
dá mais.
9 P ara um conceito psicológico de legalism o, B ERN A R D R O SE N B E R G .
“ B urocracia — I, Los problem as internos de una burocracia", em E studios de
Sociologia — Stu d ies in Sociology, núm. I, ed. Omeba, B. Aires, 1961: "E l le­
galismo, denom inado por D avis psicología del afirm ar-y-atenerse-a (la norm a),
y cuya regla áurea se form ula así: cum plir la norma o p a s s a r l a responsabili­
dad a otro, es tal vez la consecuencia más peligrosa y patológica de la organi­
zación burocrática." E m ais: “ J a v e rt,1 el oficial de polícia de. Los M iserables
de Victor Hugo, es un ejem plo perfecto del legalista" (p. 138). Claro, porém,
que tal acepção é só um dos muitos lados do problem as. Ver t^mbém as frases
de CROCE, na F ilosofia della Pratica, sobre o legalism o jesuítico.

17
3. COMO ESTUDAR O PROBLEMA

Não é à toa, portanto, que existe a opinião de que “o di­


reito é a lei”. E do mesmo modo que a crítica histórica dos
sistemas econômicos veio mostrar que o pensamento econômico
de certo tipo era apenas função de um determinado sistema, é
também preciso entender a hegemonia da lei, correspondente a
um tipo de organização jurídica, como base do pensar jurídico
dos últimos séculos.
Dir-se-á que é ocioso apontar o predomínio da lei nas or­
dens jurídicas, de vez que ele é normal, ou que decorre de uma
evolução confirmada pela consciência jurídica mais elevada. En­
tretanto, essa consciência é por seu turno obra de condições
que incluem aquele predomínio; e a crítica do saber jurídico
inclui a revisão de sua história (é na história que as coisas se
reduzem à devida proporção) : reduz-se assim o legalismo ao
tamanho de um fato histórico. Daí justamente sua limitação,
bem como, justamente, sua melhor inteligibilidade.
Todo modo de conceber os modelos de formação e atua­
ção do direito através dos tempos é, ao final das contas, pro­
duto do realce dado a certas formas, sobre outras; e isso ocorre
com a represéntação que figura um desenvolvimento das fontes
de produção do direito como gradativo predomínio da lei. Se­
melhante realce tem um lado teórico, onde as exemplaridades
vão-se. alinhando, e um lado concreto, ligado a interesses ideo­
lógicos ou experiências fundamentais. Pensa-se a história como,
costume ou lei conforme se esteja habituado a viver o direito
como uma coisa ou outra;10 o convencimento de que o direito
“deve” ser o legal se funda numa visão da evolução do direito
dos povos ocidentais. A idéia mesma de “direito” tem sido
moldada conforme as ênfases que vêm da vida jurídica real.
Interessa aqui, pois, este legalismo. E não tanto o antigo, que
pode ter existido mas não ficou como termo de um binômio
“direito-ciência do direito”, qual o temos, nem possui com nos­
sa experiência atual a relação direta que interessaria.
Poiico servirá portanto optar pela discussão no plano abs­
trato. Nele estaremos sempre presos ao formalismo conceituai,10
10 P A R A D IS I (op. c/f., p. 7) pensa que o fato de a lei vir sendo posta
em prim eiro plano, no rol das fontes, vem de ser sempre ela a m ais ligada às
constituições p o líticas e aparecer mesmo como expressão m ais evidente delas.

18
que é ele mesmo um testemunho da experiência que nos pro­
pomos estudar. O problema não é, também, propriamente, o
de opor direito escrito e direito natural, pois esta oposição deve
também ser vista como radicando num aspecto do que, sob mira
histórica, estamos indicando.11 Nem se trata, ainda, de diferen­
ciar lei e costume no sentido que já se vai fazendo convencional:
esta diferenciação,112 nesse sentido em que vem sendo feita, pre­
cisa igualmente ser explicada em função do legalismo.13*19
Trata-se, portanto, de situar a relação entre o legalismo
e a ciência jurídica ocidental como fenómeno histórico. Cabe-
ría, pelo menos por enquanto, falar numa “tendência” do direito
moderno ao legalismo. E seria de cogitar para logo, por hipó­
tese ao menos, se ele poderia ter tendido a uma outra forma
que não a legalista; mas não levaremos adiante, aqui, essa co­
gitação. O problema está em situar um processo, e indicar nele
as motivações reais da “nossa” ciência jurídica.
Portanto, trata-se de uma crítica do fenômeno histórico que
constitui o primado da lei, em suas relações com a produção
de um saber jurídico correspondente. E não de uma crítica da
figura histórica dos legislativos (Parlamentos e Congressos),

11 Assim» tanto a concepção do direito nâo-escrito como costumeiro, oposto


à regra form alm ente escrita, quanto a sua concepção como natural ou divino,
oposto ao positivo, provêm de uma experiência em que as categorias se conso­
lidaram à v ista do modelo escrito-positivo. Cumpre distinguir entre a origem
da idéia de um direito “ da n atureza“ e a da idéia de costum es “os m ais antU
gos”, que entretanto se ligam pela concepção de natureza entendida “ segundo o
costum e“, anterior à natureza racionalizada dos filósofos (em torno do assunto,
L EO STR A U SS, J)roit N atu rei et H istoire, trad. M. N atran e E. Dam pierre,
P aris, Plon, 1954, Çap. I I I ) . De qualquer sorte, a identificação do antigo com
o m elhor (“o bom direito antigo“ ) vem de braços com a do antigo ao verda­
deiro: o novo é algo cuja realidade se contesta; dado que uma coisa é o que
sempre foi, o novo não o sendo não é verdadeiram ente: assim o pensam ento de
tipo eleático, ao falar m odernam ente do “ m oderno“, distinguindo-o do eterno, dá-
-lhe um não-ser, e tende a justapor a idéia de eterno à de “ antigo“ (elaboração
conservadorista), como se essa não fosse tam bém uma idéia parcial. Exemplo,
A. AM OROSO LIM A em In trod . ao D ireito M oderno (2.ed., Agir, 1962).
12 Vejam -se as notas 7 e 8 supra.
13 Um erro da Escola H istórica Alemã foi o de repudiar in genere (ao m e­
nos em certos textos) a im portância das codificações, quando o correto, e m es­
mo o mais histórico, seria constatar as suas funções e situá-las como fato neces­
sitado de compreensão. De resto, é curioso que os grandes autores que trataram
de códigos e de legislações nãò tivessem ligado melhor as duas coisas, tratando
dos “ grandes códigos” antigos e do fenômeno legislativo como questões separadas.
SO R O K IN , em Sociedad, Cultura y Personalidad (trad, esp., Aguillar, M adrid,
1960, p. 958 e segs.), referindo Códigos de diversos tipos de épocas e de siste­
mas, deixa de frisar o caráter básico da codificação como fato típico. S P E N ­
GLER, para quem todos os direitos conhecidos seriam o árabe, o romano e o
ocidental, observa que neste o motivo fundam ental é a luta entre os livros e a
vida, sendo o livro no direito ocidental uma ten tativ a de conservar o passado
para o futuro (L a Decadencia de Occidente, trad. M. G. M orente, Espasa-C alpe,
B. Aires, 1952, tomo II, p. 110 e segs). — No fundo, o im portante é que em
função da experiência legal se configurou a idéia do jurídico, e esta foi am­
pliada cm seu alcance histórico até abranger a experiência costumeira.

19
e de seu papel — tão importante — entre os “poderes” do Es­
tado. Justamente foi como fazedor-de-direito (ou de lei) que
o poder legislativo se valorizou modernamente. Mas isto é ou­
tra coisa. Por outro lado, não nos ocupamos propriamente com
a análise da “formação” da lei no sentido do processo legisfe-
rante, este um problema de direito constitucional positivo.
Ocupamo-nos com o alcance e o significado daquele primado,
naquele prisma.

20
II
JUSTIFICAÇÃO E
DELIMITAÇÃO
METODOLÓGICA

1. 0 MATERIAL HISTÓRICO

Dado o tema, veja-se que caminho deve ser tomado. Mos­


trar o processo de gradativa dominação da lei, dentro das for­
mas jurídicas do Ocidente, é tarefa que demanda utilização da
História, da Sociologia, da Morfologia Cultural etc.
O equacionamento do problema poderiá, em princípio, ser
feito por um de dois caminhos: ou tomar a idéia de direito legal
como tipo, partindo para a discussão da diferença entre direito
escrito e não escrito e suas incidências históricas; ou pegá-la
deçde logo como fato histórico mesmo, como ocorrência dada
em uma' cultura — a ocidental — , saindo para o exame das
condições em que aparece: evolução da mentalidade e dos regi­
mes, burguesia, liberalismo, codificações etc. A tendência pre­
dominante foi aqui a segunda. Mas como nãò se pode fazer
História sem comparação nem tipologia, a primeira via também
terá sua vez.
Pensar o problema como histórico, mas sobre que material
histórico? Relacionar o fenômeno da predominância da lei com
regimes políticos, mas em que quadro cronológico? Esta, uma
questão metodológica muito importante. Implica-se aqui toda
a temàtici da divisão da história do direito, em suá relação com
a da história em geral; bem como com a demarcação, cultural
da idéia de “Ocidente”, uma vez que a ela pareceu necessário
cingir o grosso das preocupações, dado que o que se chama

21
Ciência do Direito tem que ver precisamente com a experiência
jurídica ocidental.1 Delimitar a investigação, portanto, mas sem
“restringi-la” propriamente.2
Quanto à referência ao Ocidente,3 é certo que os contornos
do que o termo representa são vagos, e mais ainda hoje, quan­
do a ocidentalização ou europeização do mundo é um fato,4
mas há em tal idéia um conteúdo irrecusável: cultura que se
saturou de sentimento histórico e com ele inventou a teoria das
culturas e nela se classificou e se diagnosticou, distribuindo o
enorme saber obtido sobre o passado em uma série de pontos
de vista nos quais a interpretação das coisas sociais, sempre ar­
mada de ânimo doutrinário, se por um lado corre o risco da
perplexidade ante vários critérios, por outro contribui para a
autoconsciência que a idéia mesma de ocidente exibe.5 A dose
de equívoco que vem hoje ao se falar de Ocidente, cujas formas,
dantes peculiares, se estendem padronizadamente pelo orbe, po­
de ser compensada justamente se usamos o termo no plano his-
1 Idcia obtida no m agistral livro de PA U L KO SCH A K ER , Europa j el
Derecho Rom ano, trad. J. S. C. T eijeiro, ed. Rev. Derecho Privado, M adrid,
1955, cap. X II, G, p. 302: “ la expression “ Ciencia del Derecho" füé hallada
por la escuela histó rica alem ana, es made in Germany y fuente de muchas con­
fusiones y escuridades. ( . . . ) La expression alem ana se explica unicam ente por
la tendencia de Savigny y de su escuela a dar a toda actividad, que tenga
el derecho por objeto, um caracter científico. Es este un pensam iento professo­
ral y tal vez especificam ente alemán, pues los representantes de la escuela h is­
tórica eran en su mayor parte profesores. Por eso no es exacta”. Mais sobre
o assunto em S P E N G L E R (cit. p. 113).
2 Ver N E L S O N SALD ANHA, A s Formas de Governo e o Ponto de V ista
H istórico, Recife, 1958, Cap. I II . Uma problem ática paralela no notável ensaio
de JU A N B E N E Y T O , D el Feudo a la Economia Nacional, E l Ensancham iento
del A m birò Econômico en su Proyección H istoricopolítica, ed. A guillar, M a­
drid. 1953, Cap. I.
3 A esse respeito, imensa bibliografia: S P E N G L E R e toda a série de fi­
lósofos da -história que têm tratado o tema das culturas: T O Y N B E E , S O R O ­
K IN , M ORAZÉ, N O R T H R O P etc. Menções ao tema na secção 2, Gênese do
Regim e C onstitucional, do capítulo prelim inar, dos Princípios de Derecho P úbli­
co y Constitucional de M. H A U R IO U (trad. C. R. C astillo, 2.ed., Reus, M a­
drid, 1927); igualm ente, no livro de K O SCH A K ER citado à nota 1 supra, pas­
sim. A autoconsciência do Ocidente começa a desenhar-se no século X V I II :
um a m ostra no início do Cap. II das “ Considerations sur le gouvernem ent de
Pologne” de R O U SSE A U (no voi. da Garnier encabeçado pelo Du Contrai So­
cial e com pletado por varías obras, 1954).' Em G O E T H E , o entendim ento de
uma projeção cultural do Ocidente sobre o mundo clássico, quando, na segunda
parte do Fausto, se passa do predom ínio de M efisto às irradiações helénicas
(F austo, trad. J. L. B orrell. ed. Univ. Puerto Rico-Rev. de Ocidente, Madrid,
1953): cf. a anotação de J.-E. SPE N L É . O Pensamento A lem ão . trad. J. C. An­
drade, P orto Alegre, 1945, pp. 57-58). P ara uma diferenciação entre a ju risp ru ­
dência rom ana e o saber jurídico alto-m edieval, veja O T T O B R U S IIN , E l P en­
sam iento Jurídico, pp. 242-243.
4 Cf. nosso artigo “ A m entalidade dem ocrática e o pensamento^ social mo­
derno” , em R evista B rasileira de F ilosofia, fase. 55, jul.-set., 1964, in fine.
5 Algum as sugestõés na comunicação, de JO SÉ L O PE Z P O R T IL L O , “ El
Derecho como produto específico de la cultura ocidental y como configurante
de la vida social del mundo m oderno” ,'em E studios Sociológicos — Sociología
del Derecho, do V III Congresso M exicano de Sociologia, México, 1957, p. 187,
mormente 199, e segs. U tiliza de “ O cidente” um conceito bastante amplo.

22
tórico, em que cada cultura tem seu* processo espaço-temporal
próprio. E os contornos da idéia cultural podem ser confirma­
dos pela idéia dos sistemas jurídicos e políticos, tão fecunda
como motivação historiográfica. Pouco farão o sociólogo e
o historiador, se estudarem relações ou origens sem situar os
elementos em referência ao sistema ou ao sistemas em que apa­
recem.6

2. A EXPERIÊNCIA GRECO-ROMANA

No tocante ao processo de formação do predomínio da lei


no Ocidente, cabe contudo uma alusão à experiência grega e
à romana. Se se toma a idéia de Ocidente incluindo a ambas,
não haverá problemas. Mas se se diferencia o Ocidente, como
cultura nascida aos primeiros séculos da era vulgar, da cultura
“antiga” ou greco-romana, haverá então que justificar a alusão.
E esta se justifica pela amplitude que oferece à observação his­
tórica, e pelo fato de que política e juridicamente as formas
mentais e institucionais do Ocidente são herdeiras, em grande
parte, dos legados chamados clássicos. Ê a essa antigüidade
que o Ocidente se sente mais ligado, dentre os outros orbes
culturais de que se distingue. Á cultura antiga é a cultura “pré-
-ocidental”. situa-se como antecipação imediata ao Ocidente, no
processo histórico. Classifica-se sempre, logo antes do Ociden­
te, como a época que coloca formas a serem tomadas por este.7
A própria imagem da antigüidade deve ser aliás entendida' como
uma variável na história do pensar histórico do Ocidente: so­
bretudo depois que a mentalidade democrática fez da ciência
histórica um modo de rever os passados em sua relação com o
presente e a partir do interesse que o presente tem no sentido
de tal relação. Assim, o que poderá ter sido predomínio da lei
escrita em algum período da história chamada “antiga”,8 pode
6 V. nosso estudo “ A Idéia de Sistem a e o Problem a de uma Ciência Ju rí­
dica B rasile ira”, na R evista Acadêm ica da Faculdade de D ireito da U niversi­
dade do Recife, ano L X I, 1963.
7 Daí que a idéia das coisas “ clássicas”, no pensam ento ocidental, desbor­
de e entre no mundo greco-romano como seu prolongam ento, ou antes, repositó­
rio de fontes.
8 Mal chamada. Pode-se talvez, porém, distinguir a história antiga, que
abarca todas as civilizações anteriores à era cristã, da cultura antiga, que como
organismo histórico é vista por certos autores como constituída de Grécia e
Roma.

23
ser, enquanto imagem histórica, função de um modo de ver,
projeção da mentalidade ocidental “moderna”. Uma verifica­
ção disso, teria de registrar certas referências típicas,9
Cabe enfrentar com ressalvas, por isso, as fontes de estudo
da antigüidade, mesmo porque se sabe quão relativo é o enten­
dimento de toda fonte de conhecimento dos “direitos” mais
antigos, cujo conteúdo real e existencial se esfuma por trás da
mutação de séculos e séculos. No passado, a valorização de
certas configurações coloca o sentido das coisas clássicas, e co­
loca-as como exemplaridades (Ortega dizia que Goethe tinha
a Grécia como um guarda-roupas do qual tirava formas para
vestir o que via como universalmente humano ). Assim, ten­
demos a prender certas imagens numa moldura fixa, e depois
a julgar tudo o mais em função delas; como reexaminá-las en­
tão, e em função de que outros modelos?

9 Por exemplo, as alusões a coisas clássicas nos elogios da lei durante a


Revolução F ran cesa: c& ;'A. A U LA RD , H isioire P olitique de lã R évólution Fran*
çaisé, ed. Armand Colin; P aris, 1909, passim : idem, L es Orateurs de la Révo-
lution — La L eg isla tive et la Convention, 2 tomos, P aris, 1907, passim ; e tam ­
bém F. D IA Z-PLA JA , Griegos y Romanos en la R evolución francesa, ed. Rev.
da Occidente, M adrid, I960. Ver ainda as observações de A L B E R T SCHINZ
sobre “ Rousseau e os rom anos”, cm seu notável La Pensée de Jean^Jacques
Rousseau (P aris, Alcan, 1929).

24
Ill
SOBRE OS ESQUEMAS E
PONTOS DE REFERÊNCIA

1. LEGALISMO COMO TIPO E COMO SISTEMA

Disse pouco atrás que, ocupado sobretudo com o enqua­


dramento histórico do problema, deveria trabalhar também no
sentido da tipificação. E assim é. O material historiográfico
deve vir amoldado a um tipo, uma figura que se destaca para
corresponder à idéia que é preciso utilizar. Isto acarreta,, natu­
ralmente, as vantagens e os riscos de todo método tipificados*
Não se poderia, com efeito, acompanhar a temática histó­
rica sem a orientação de uma idéia diretriz. Esta é justamente
a de um predomínio da lei, dentro dos ordenamentos; que, como
apoio positivo, serviram de base ao desenvolvimento do. saber
jurídico ocidental.
E se em algumas passagens o legalismo parece ser visto
como próprio do direito ocidental, e em outras como próprio
apenas de uma sua etapa, isto vem do modo de empregar o
tipo. Trata-se de não ter de explicar, a cada passo, certas for-
liias de expressão, e de poder referir ao todo um traço que se
faz decisivo na fase mais representativa de sua evolução. Isto
mesmo, esta dificuldade de “respeitar” o tipo ideal em face do
1 MAX W E B E R , Econom ía y Sociedad, vários tradutores, FC E , México,'
1944, quatro volumes. Em W E B E R , como se sabe, surgiu expressam êntè a no­
ção dos tipos-ideáis, na mesma ¿poca em T R O E L T S C H , trabalhando pjaralela-
m ente, falava ém “ conceitos gerais". Sobre o método de tipos, ver áinda o
compacto livro de F E L IX KAUFMANN', M etodología de las Ciencias Sociales,
trad. E. Im az, FCE, México, 1946, p. 292 e segs. — De qualquer sorte, a de-
lineação de uma idéia de legalism o serve, aqui, ao propósito de lim itar h isto ri­
cam ente a caracterização do tema.

25
exame histórico radica por seu tumo na questão de justapor o
perfil de um sistema jurídico ao de uma civilização,2 pois para
o desta podemos partir de primordios remotos e abranger re^
giões mais largas, enquanto que para o contorno de um siste­
ma temos de ter em conta um estágio suficientemente caracte­
rizado e áreas mais restritas. Na mesma cultura ocidental, por
exemplo, vemos ocorrer direito .romano e direito saxônio, di­
reito canônico e direito feudal, formas que, todas pretendentes
ao rótulo de -‘sistema’’, integram-se enfim num mesmo processo
histórico-jurídico que (ao menos por comodismo) pode ser cha­
mado direito ocidental, e que, entretanto, só aparece em traços
uniformes depois de visto a certa altura das revisões históricas.
Há também a dificuldade de relacionar o conteúdo da no­
ção de sistema jurídico com o das várias noções de sistema
possíveis dentro dos “setores” da vida social: sistema econô­
mico, político etc. Neste plano, o emprego de um tipo refe­
rente ao sistema jurídico em estudo envolve uma comparação
com outros tipos que correspondem a sistemas formados para­
lelamente ao sistema jurídico, no mesmo estágio histórico.
Tem-se, pois, um processo histórico “geral”, compreendido cul­
turalmente. dentro dos bordos da imagem do Ocidente, e den­
tro dele processos “parciais”, correspondentes a cada setor.
Assim se distinguem, como tipos e como processos: em eco­
nomia, o capitalismo, em política, a democracia liberal, em
direito, o legalismo.3
Os supostos sociológicos, vinculados à presença da bur­
guesia e a um transfundo cultural composto de individualismo,
racionalismo, laicismo, são de certo modo comuns a tais pro­
cessos parciais, e. o são justamente à medida que se remetem
à imagem geral do crescimento do Ocidente; Vale notar que,
destes processos, o jurídico, representado no caso pelo legalis­
mo, é neste sentido, o que menos tem sido estudado, em sua
significação^ histórica.

2 V. artigo citado à nota 6, Cap. I I, 1.a parte. De resto, näo evitamoB


apenas o racionalism o a-histórico, mas tam bém o outro extrem o, que seria a
m era “ju stificação ” do histórico por si mesmo.
3 Póuco exato, em bora nao inteiram ente descabido, falar.-se em direito ca­
p italista, tan to conio o seria falar-se em economía legalista. A aplicação de tal
atribu to a úm sistem a ju rídico vai por conta da idéia de que o jurídico decorre
ou pode decorrer do económico. Independente, porém, da discussão^ a respeito,
devent-se guardar os term os; e mesmo afirm ando-se que “ decorre” , não seria ne-
cèssário traslad ar o adjetivo. Relacionar-se-à, no caso, o direito legalista à eco­
nom ia cap italista, desde que os encaixes históricos correspondam .

26
2. CORRELAÇÕES HISTÓRICO-POLÍTICAS

Sabe-se que no período do capitalismo mais desenvolvido


surge a consciência científica e social das peculiaridades da vida
econômica, e daí a ciência econômica;4 com a democracia e
com o liberalismo — paralelamente —, e sob a incitação do
tema das formas de governo, forma-se a ciência política mo­
derna.5 Assim também, o direito legalista é que acompanha o
desenvolvimento daquilo que mais caracterizadamente podemos
chamar de ciência jurídica moderna.
E bem provável que esta noção de um crescimento dos
vários sistemas (o capitalismo, o legalismo etc.), em conexão
recíproca e em compasso com as teorias científicas respectivas,
reforce as possibilidades de completar as pesquisas jurídicas
com estudos de outras áreas. De qualquer modo é tempo de
ter em vista a idéia de um sistema legalista.6
O tipo de regime representado pelo predomínio da lei de­
ve, portanto, ser observado em função de circunstâncias cultu­
rais. Tais circunstâncias, além de conjugar suas características
com as dos regimes paralelos,. dão o fio da explicação mais
profunda para as raízes do fenômeno. E a atenção às exigên­
cias do problema impele — como já foi dito — a lidar com
elementos políticos e jurídicos. Não vem a pêlo espraiar o
tema das relações entre política e direito;7 mas é preciso enfati­
zar a proximidade das formas políticas com as jurídicas, mesmo

4 Ver J. A. S C H U M P E T E R , "T he Developm ent of Economics as a Scien­


ce” em seu Economic Doctrine and M ethod, London (Allen and Unwiri), . 1954,
p. 9 e segs. ; E R IC RO LL, A H isto ry oi E conom ic Thought, London, 1956, Chap.
I l l ; B E N E Y T O , cit. à n. 2, Cap. II, l .a P arte. Recentem ente, em liyro difícil
e rebuscado, M IC H E L FO U C A U LT relacionou (a seu modo "estru tu ralm en te” )
o surgim ento de uma economia, em sentido moderno, ao de umá .biologia e de
uma lin g ü ística; L es M ots et Jes Choses, ed. G allim ard, P aris, 1966;
5 V. nosso "A M entalidade D e m o c rá tic a ...”, citado à nota 4 do Çap. II.
6 Fixando-se a idéia histórica de um sistem a legalista, verificà-se que o
direito inglês ficou de certa forma um tanto estranho a ela, e que o direito dos
países hoje ditos socialistas segue tendo sem elhanças form ais com os dos p a í­
ses ainda dem oliberais, ou antes, países de economia ainda capitalista. Mas as
peculiaridades ingièsas não são absolutas. E por outro lado pode-se perguntar-se
as sem elhanças na forma do ordenam ento entre os E stados S ocialistas fe nao-
-socialistas não convidam a rever o tem a das relações entre direito e economia.
7 A respeito, G. PER TIC O N E * R egim e P olitico e Ordine Giuridicó¡ . ¿s-
tra tto della Riv. In t. Fil. D ir., àiihò XV, fase. I l i , Roma, 1935; LEGAZ Y
LACAM BRA, "D ireito e P o lític a”, etri R evista Forense, ano X L V III, julhó
1951, p. 5 e segs.; F R E D E R IC K PO LL O C K , "T he H istory of E nglish Law as
a Branch of P o litic s”, em seu Jurisprudence and L egal E ssays, M acm illan, Lon­
don, 1961. Uma alusão (que vai aqui anotada quase por curiosidade) nas velhas
N otas de Uso Prático etc. de LOBAO, Lisboa, 1816, p. 6.

27
porque é nesse tipo de problemas e em prismas como o usado
que a pertinencia de um estudo jurídico inter-relacional se jus­
tifica melhor. Uma confluência expressiva do político com o
jurídico se acha, por exemplo, na questão das formas do go­
verno. A idéia da luta entre formas “opostas” foi sempre o
móvel ideológico do tema, e corresponde à imagem do trânsito
de uma forma a outra. Portanto imagem histórica. Daí que
seja necessário, em toda discussão a respeito, remeter-se ao
histórico, ainda que com um olho axiológico para ajudar a
crítica sistemática.
E tomando-se por ponto de referência a experiência de­
mocrática ocidental (porque nela radicam as formas da men­
talidade contemporânea mais representativas sobre isto tudo, e
mesmo sobre o sentido do que lhe é anterior), vê-se que a pró­
pria questão das formas de governo se põe quando há alguma
crise, e se orienta segundo a tendência das formas novas que
surgem. Daí o material histórico do presente estudo ter sido
colocado tendo como centro de gravidade a passagem do ab­
solutismo à democracia liberal na Europa. Isso sociologiza um
tanto a visão e a caracterização da experiência jurídica do Oci­
dente, e faz depender da política o entendimento de certas for­
mações do direito; mas por outro lado permite compreender
que as direções políticas são por seu turno embasadas ou re­
validadas sobre valores jurídicos que no mesmo processo dia-
leticamente se situam.
Ver-se-á então, sob essa necessária perspectiva histórica
que tanto permite ampliar as vistas, como se apresenta a \us­
tòria jurídica das culturas e dentro desta a do Ocidente. Dentro
da do Ocidente, a atitude legalista aparece como decisiva so­
bretudo numa fase; e as que se chamam grandes escolas do
pensamento jurídico contemporáneo1 são ocorrências teóricas
dentro deste quadro.
Mas o legalismo continua, e de sua permanência (e crise)
se tratará também. E de certo modo é o desejo ou a sensação
de segurança que faz que os homens continuem reduzindo o
ser do direito ao ser da lei, quando sabem que o direito me­
ramente legal é só um pedaço da realidade jurídica, e que o
predomínio deste direito apenas legal é ponto de apoio de cer­
tas dominações sociais às vezes pouco compatíveis com o con­
teúdo ético alcançado pela própria cultura moderna.

28
SEGUNDA PARTE

SOBRE A
GÊNESE DO
LEGALISMO
OGIDENTAL
I
ALUSÃO AO QUADRO GERAL

1. ESQUEMAS EXPOSITIVOS

Evidentemente a idéia do que seja legalismo é necessária,


como algo prévio, como suporte conceituai para a investigação
histórica do tema, que por todos os lados exige ressalvas e pru-
déncias. O que temos em mira aqui, como legalismo, é o di­
reito organizado com base no predominio da forma lei; e em
especial o direito ocidental, que na verdade, diante da depen­
dencia que têm em relação a ele as nossas idéias, pode ser
chamado por nós “o” direito por excelencia.
KOSCHAKER, ao mencionar o “direito de juristas”, -ou
seja, aquela construção fundada na atuação de um estamento de
juristas, e o direito legal, que aparentemente se contraporiam,
reconhece que também o direito de juristas, tal como se nos
apresenta no caso romano e no ocidental e ainda entendido
como avesso ao predominio da norma legal, não pode pres­
cindir da legislação. Ao contrário, diz: do direito legal é que
podem partir hostilidades contra o de juristas, como no caso
das codificações que se opunham às interpretações. Aqui temos
o problema da situação histórico-política da interpretação das
leis, e também o do alcance do trabalho interpretativo como
questão de política do direito. Vale citar então as conhecidas
idéias de JEROME FRANK, que, após lembrar os casos de
hospitalidade dos ditadores contra a atividade judicial e a in­
terpretação, considera que todo ato interpretativo é também

31
legislativo, e que o acumulo de leis paradoxalmente provoca o
desenvolvimento da interpretação.1
Convém ter em vista, a tais alturas, certas observações de
caráter fundamental feitas por alguns grandes escritores jurídi­
cos em torno de problemas que colidam com o nosso. Desde
logo, por exemplo, as ousadas generalizações de HAURIOU,
pejadas de intenção histórico-filosófica. Nos seus conhecidos
“Princípios”, no capítulo preliminar, secção segunda (A gêne­
se do regime constitucional), o mestre francês distinguía, den­
tro de umã totalizante “história do esforço humano para a liber­
dade”, duas eras: a da liberdade primitiva e a das instituições.
Esta segunda era se dividiria em duas idades: a primeira, das
instituições primitivas, do costume e das nações;*e a segunda,
da escrita e da discussão, da lei escrita e do Estado. HAURIOU
atiladamente relaciona o advento da lei escrita com o da deli­
beração públioa e da organização estatal, exemplificando com o
código de Hamurabi e com as Doze Tábuas. Seu postulado é
o de que tenha havido uma “liberdade primitiva” em relação
à qual as instituições devem ser entendidas como algo que, li­
mitando aquela liberdade, que era a da Idade de Ouro, deu
caracteres especificamente sociais à vida humana. HAURIOU,
tentando juntar sua crença tomista com o pensamento clássico
e com o acervo francês ROUSSEAU-DURKHEIM, chega a re­
ferências vagas, como a um “costume internacional primitivo
que foi o modelo em que se inspirou o caráter jurídico da pri­
mitiva liberdade humana”; coisas altamente discutíveis, mesmo
porque aquela hipotética liberdade primitiva (onde há patentes
ressonâncias da velha idéia da,passagem do estado de natureza
ao estado social) não poderia adotar um modelo jurídico sem
hábitos institucionais, e as insrituiçces, diz HAURIOU, só
vieram depois. O mais característico, entretanto, é a conexão
vista entre o Estado e a escrita, que logo fez escritas as pres­
crições jurídicas. Assim, a seqüência seria: do costume á lei,
e depois, dentro desta, ao constitucionalismo.2
ê verdade que o esquema é passível de críticas, meio in­
gênuo e ainda visivelmente fundado numa visão linearista da
1 PA U L K O SCH A K ER , Europa y el Derecho Romano, cit., Capítulo X II,
p. 265 e seguintes. O texto de FRANK é o ensaio "P alab ras y M usica — Al­
gunas Observaciones sobre la Interpretación de las L eyes”, em E l A ctual Pen-
sam iento Jurídico Norteamericano, tradução argentina, ed. Losada, Buenos Aires,
1951, pp. 187 e seguintes.
2 M A U R IC E H A U R IO U , P rincipios, cit., pp. 19 e seguintes, 26 e seguin­
tes, 39 e seguintes.

32
história cultural, pecando também por certos anacronismos
como o de atribuir a episódios, que seriam da origem da se­
gunda era, decisões . intelectuais que não se sabe de quem
iriam partir. Ê porém um esquema que por assim dizer sente
a questão do surgimento de um domínio do direito “legal” .
Considerações análogas se encontram na obra muito suges­
tiva de ENRICO ALLORIO sobre o ordenamento jurídico. Em
determinado ponto, o mestre italiano estabelece a idéia de que
existem dois tipos básicos de ordenamento: um, paritàrio e es­
pontâneo, correspondente ao costume e ao direito existente sem
a presença do Estado; o outro, autoritário, correspondente à
presença do Estado e a um direito organizado pelos órgãos
estatais. Para ALLORIO, os dois tipos revelam na verdade
“duas fases do desenvolvimento histórico da sociedade”, e ao
primeiro tipo lhe parece comparável a situação do direito inter­
nacional. O próprio sentido da norma jurídica é diferente, visto
num « noutro dos dois distintos tipos.3
De qualquer modo permanece, na temática do fundamento
do valor da lei, através do pensamento ocidental, a idéia de
sua ligação com a experiência da discussão e da deliberação,
experiência que de resto também atua, precisamente, no centro
da teoria liberal da democracia.
Caberiam ainda, a propósito, várias observações menos
centrais. Uma observação, por exemplo, sobre o problema do
cabimento ou descabimento da utilização do termo lei pára de­
signar a organização dos povos chamados primitivos. Este pro­
blema, entretanto, acha-se envolvido por implicações lingüísti­
cas: em inglês a palavra “law” alude ao direito em sentido geral,
e também às disposições legislativas, de modo que boa parte da
bibliografia se acha perfurada por ambigüidades.4 Outro proble­
ma, que entretanto não analisaremos para não alongar esta
parte, seria o das relações entre as expressões “direito legislado”
e “direito codificado”, que em verdade não são idênticas, pois

3 E N R IC O A L L O R IO , E l Ordenamiento Jurídico en el Prisma de la D e ­


claración Judicial, trad, de Santiago Sentís Melendo, ed. E JE A , B. Aires,^ 1958,
número 12, pp. 71 e segs. Sobre o problem a da discussão e da deliberação; cf;
nosso A s Formas de Governo e o Ponto de V ista H istórico, citado, Cap. V III.
4 . Seja o caso da tradução francesa do livro de A. S. D IA M O N D , L ’E v o ­
lution de la L oi et de L ’ordre (ed. Payot, versão de J. D avid, P aris, 1954).
Na fase que denomina de “ T erceira Idade da A gricultura”, o autor m enciona
regras que seriam aplicadas pelos tribunais prim itivos.

33
se ligam a experiências históricas distintas, mas obviamente pos­
suem bastante conexão.
De qualquer maneira, é um problema de onde tem vindo
muitos equívocos, o de uma “localização” histórica do advento
da lei escrita, que a maioria dos autores parece identificar com
o dos grandes códigos antigosJ Geralmente as concepções a
respeito se enquadram em largos esquemas concernentes às eta­
pas do desenvolvimento da civilização, esquemas quase sempre
gerados doutrinariamente no século dezenove.
Por outro lado, o tema envolve alguns teimosos pseudo-
problemas. É difícil encontrar uma colocação que os evite
internamente. Observe-se que os três grandes expositores ar­
gentinos, AFTALION, OLANO e VILANOVA, em sua mo­
numental obra didática de introdução ao direito, aludem às
“origens do direito como pseudoproblema” ; mas fazem-no sob
um ângulo um tanto distorcido. Para eles, o pseudoproblema
viria, no caso, do fato de o direito ser conduta — é o conceito
egológico, que adotam — , e, portanto, coisa que se percebe
como presença existencial onde quer que tenham existido ho-
.mens. Na verdade o que cria o pseudoproblema é, para nós, o
fato de ser o direito uma realidade cujo conceito e cujos carac­
teres variam conforme a experiência em que está plantado é fun­
dado o homem que o pensa. Há uma historicidade no pensar
referente ao direito, paralela à que existe no direito mesmo.
Por isso, falar-se em direito onde não tenham existido condi­
ções para uma consciência reflexiva concernente a ele (como
entre os “primitivos” ) é algo inócuo, hiperbólico ou ambíguo.
Não se pode encontrar um ponto onde começa a haver direi­
to, dentro das linhas históricas (ou “pré-históricas” ), pois os
começos são sempre discutíveis — sobretudo pela interferência
das exigências conceituais que correspondem ao “nosso” enten­
dimento do que o direito seja.6

5 Um caso à parte é talvez o da H ungria, cujas leis escritas, dadas pelo rei
Santo E stêvão no século XI, forsm consideradas por D A R E S T E (É tudes d ’H is-
toire du D roit, Paris, 1889, p. 250) como um muito raro caso em que, contra a
regra geral, o d ireito nacional tem origem em forma escrita. O assunto porém
m ereceria reestudo.
6 P ara a opinião criticada, cf. A F T A L IO N , GARCÍA OLANO e JO SÉ
V ILA N O V A , Introducción al Derecho (sexta edição, Atheneo, B. Aires, 1950,
Cap. X I I) . Sobre o tema, v. ainda nosso ensaio “ On the Origin of Law: H is­
torical and Axiological Sides of the Problem ", em A rchiv iuer R echts — und
Sozialphilosophie, W iesbaden, 1969, voi. LV /1, pp, 1 c seguintes.

34
SUMNER MAINE, autor clássico no tocante ao tema da
história dos códigos, participava da convicção de que há um
momento em que as legislações assumem o posto de expressão
por excelência do direito. É quando se criam os códigos.7 O
que fica restando sempre é saber se existirá realmente tal “mo­
mento’' em todos os sistemas jurídicos, como em todas as cul­
turas (corrèspondendo-se ou não essas duas noções), e se tal
idéia não será de fato uma projeção da. mentalidade ocidental
moderna, que de sua experiência costuma deduzir analogias
para explicar o passado. Anotação correspondente cabe fazer
a PIETRO COGLIOLO, jurista típico da segunda metade do
século XIX, que, esquematizando muito característicamente a
história jurídica, opina enfático que cada povo, “a um certo
ponto de su^ evolução”, teve um código.
O argumento de COGLIOLO pressupunha uma espécie de
ciclo inexorável dentro da história de cada povo (idéia cuja
origem remonta certamente a VICO), com uma fase na qual
o Código aparece. Note-se, contudo, que o velho civilista não
encontrava similitude completa em todos os casos: para o caso
da India, per exemplo, ele entendia que o Código só havia sur­
gido na época da decadência do povo, bem ao inverso do caso
romano.8
Sobre o problema poderíamos lembrar ainda a opinião
do clássico TOCQUEVILLE, que, ainda com certo apriorismo
e com linguagem ainda montesquiana, dizia que “somente no
nascimento das sociedades se pode ser lógico nas leis”.9 A frase
é simplista — sem embargo da grandeza do autor — , e em
verdade tais problemas não se põem assim. É inclusive difícil,
de um ponto de vista histórico rigoroso, falar em linguagem
e em “lógica” no tocante às épocas em que não havia legisla­
ção e direito escrito: as imagens disponíveis se acham geralmen­
te penetradas de distorções e de projeções posteriores.

7 A ncient Law. I ts Connection w ith the E arly H istory oi S ociety and its
R elations to M odern Ideas. 4.a edição am ericana, H. H O L T , N. York, p. 28.
8 Filosofia del D iritto P rivato, 2.a edição, F lorença, Barbera, 1891, pará­
grafo 4. No B rasil da mesma época, T O B IA S B A R R E T O , estribado inclusive
em Lazarus e Steinthal, considerava a passagem do direito costumeiro ao legis­
lado como uma cabal expressão da “ filogenia ju ríd ic a ": cf. Questões V igentes,
Sergipe, 1926 (O bras Com pletas), 153 e seguintes.
9 A L E X IS D E T O C Q U E V IL L E , La Democracia en A m érica, tradução,
Fondo de Cultura Econôm ica, México, 1957 (p. 110).

35
2. REFERÊNCIA AO OCIDENTE

Para repensar as bases deste enquadramento deve-se ter


em vista o nível de autoconsciência cultural que foi alcançado
pela mentalidade teoricamente dominante no Ocidente, bem co­
mo a seqüência histórica que o tema apresenta quando visto e
figurado desde o prisma das modernas tendências historiográ-
ficas.101 A gênese de uma caracterização geral de formas enten­
dida como “cultura ocidental” é bastante difícil de fixar, como
o é também seu próprio contorno atual; pois que a diver­
gência maior, dentro do mundo de hoje e em nome de prin­
cípios distintos, entre dois grandes blocos, um dos quais é in­
clusive jomalisticamente dito ocidental (o outro, comunista,
oriental ou o que seja), não é tão grande em seu fundo como
a diferença que há entre o que se tem historicamente por Oci­
dente e os orbes culturais paralelos ou anteriores. Esta dife­
rença é que, pelo menos para início, nos interessa apanhar: dela
resultam os caracteres que servem de humus cultural aos traços
jurídicos aqui tratados. Aquela outra é um episódio de agora,
cujos componentes radicam apesar de tudo na ampla e com­
plicada história do Ocidente.

3. DIGRESSÃO SOBRE GRÉCIA E ROMA

Seja feita de passagem uma anotação sobre o que poderia


ser caracterizado como legalismo no direito grego e nó romano.
Confesso, de logo, que tenho escrúpulos de dizer “direito grego”
(muito menos, embora, do que “direito assírio” ), em virtude
de não terem tido os gregos um sistema propriamente dito, nem
linguagem jurídica no sentido em que a temos e concebemos.11
10 Não descartam os, porém, para o caso do direito, o ponto de vista de
uma continuidade mais ampla, que abarque conexões diretas ou in d ire ta s“ e^tre
Roma e os povos europeus modernos. Assim, por exemplo, trabalha R. DE
M A T T E I no artigo "Sul Conceto di Barbaro e B arbarie nel Medio Evo", edi­
tado nos S tu d i di Storia e D iritto in Onore di Enrico Besta (per il X L anno
del suo insegnam ento), voi. IV , Milão, 1939, pp. 483 e segs.
11 Sobre a inexperiencia de um "d ireito ” propriam ente dito çntre os gregos,
V . G. F E R R A R I, Introduzione, cit. à p. 17.

36
Ao circunscrever a anotação sobre legalismo antigo aos ca­
sos grego e romano, estou acompanhando a opinião de SPEN­
GLER, que juntou Grécia e Roma num só corpo cultural (a
cultura antiga, ou “apolínea” ). Seja observado, de passagem,
que a experiência política e jurídica dos gregós e romanos foi
historicamente a mais próxima da “ocidental”, já pelo con­
teúdo, já pela forma. Vale anotar, ainda, que FUSTEL.DE
COULANGES, escrevendo em meados do século passado o seu
clássico A Cidade Antiga, teve a notável percepção da unidade
formada pelas experiências grega e romana, unidade considerá­
vel no plano institucional como. no lingüístico.12
Por outro lado, o problema de ter ou não havido um le­
galismo na Grécia abarca o caso de Platão. Este, nas Leis,
põe de lado sua utopia de entregar a solução de tudo ao ar­
bítrio supremo dos sábios, conforme se- achava dito na làrga
visão pedagógica e política da República,, e, prefere confiar em
leis para o governo da cidade e a orientação das relações sociais.
Não pensemos demais nisso, porém: naqueles tempos, não havia
ainda uma experiência — institucional, ou científica sufi­
ciente para. colocar o problema do legalismo tal como o direito
dos povos modernos o permitiu. Nossa herança, da Grécia, tão
importante nos marcos etimológicos do pensar, quase não inclui
as formas gregas referentes ao direito, de resto bastante sin­
gelas em face das romanas, tão presentes no legado que rece­
bemos da antigüidade.

4. SOBRE A EVOLUÇÃO DA “LEI

Se se tem em vista a “correspondência” (termo que vai


no sentido spengleriano) de certas fases da civilização grega
e romana com a Ocidental, podem-se concentrar as referências
históricas ao processo de transição de uma dominação aris­
tocrática a uma democrática, naqueles povos. Certo que aTtêm
cabida as categorias weberianas de dominação,13 e. haveria um.
12 A objeção anotada por GIRARD (M anuel É lém entaire. cit., p. X V I),
de que m uitos autores do século X IX erraram por ter querido fundar no estudo
de dois ou três grupos a caracterização total do antigo direito indo-europeii, não
atinge absolutam ente aquela intuição.
13 MAX W E B E R , Econom ía y Sociedad, cit. à nota 1, Cap. I I I , 1.* P arte.

37
sem número de alusões bibliográficas e doutrinárias a citar. Mas
não vamos a tanto.
As sugestões de SUMNER MAINE, por exemplo, ficaram
como algo exemplar.14 Existem, entretanto, outras mais novas,
como as referências de SPENGLER, WEBER, JAEGER, KEL­
SEN,15 todas mais ou menos no sentido de dar a pensar que
a obtenção de uma legislação democrática em Atenas e a
de um código republicano em Roma se ligaram ao surgimen­
to do espírito leigo, do racionalismo e do predomínio de uma
nova classe disposta a expressar com prudência jurídica a sua
.ascensão sobre a classe aristocrática. É importante perceber que
a norma jurídica escrita apareceu sempre como instrumento
apropriado. Antimítica, antitradicional, a lei fazia ou parecia
fazer as relações políticas e jurídicas, socialmente transformadas,
escaparem ao arbítrio e à vaguidade. Contudo, no caso ro­
mano, compete distinguir entre o momento histórico das Doze
Tábuas, que significou a instauração de um ordenamento es­
crito em caráter ainda precário, tecnicamente imaturo, e o le­
galismo da época imperial, em que a idéia mesma do direito
entrou a refletir uma experiência jurídica fundada em leis.16
É claro que a interpretação que hoje se faz destas ima­
gens antigas pode ser ligada, por projeção associativa, à dos
fatos da época “correspondente” no Ocidente. Surge daí, por
exempio, a confirmação da idéia de um nascimento revolucio­
nário próprio da leí. Esta idéia pressupõe a convergência de
duas imagens, a da aparição da lei no direito antigo e a do

14 A n cien t Law , cit., pp. 12 e segs. : alusão a uma "época do direito cos­
tum eiro” e a uma "era dos códigos”, estudadas com exemplos antigos e com o
direito inglês. Sobre esse passo de M A IN E, ver W. FRIEDM A,NN, Legal
Theory, Londres, Stevens & Sons, 1944, pp. 126 e seguintes.
15 W E R N E R JA E G E R , Paideia — L os Ideales de la Cultura Griega, trad.
J. X irau é W. Roces, FCE, México, 1957, livro I, Caps. VI e V i l i : K E L ­
SEN , Sociedad y N aturaleza, trad. J. P erriaux, B. Aires, Depalm a, 1945, Cap.
IV . M aior desenvolvim ento, inclusive bibliográfico, em nosso artigo "O advento
dos códigos no d ireito antig o ”, em E studios 4* Derecho, Fac. de Derecho y
Ciencias Políticas, de la Univ. de A ntioquia, M edellin, Colombia, n.° 62, sept.
1962, pp. 447 e segs. Sobre o legalism o grego veja-se tam bém C O N ST A N T IN
P E R IP H A N A K IS , La Theorie Grècque du D roit et le Classicism e ActueJ, Athè-
nas, 1946, §§ 4.°, .15 e 16; bem como G. C A M PA N IN I, Ragione e Volontà nella
L egge, Giuffrè, M ilão, 1965, Cap. II.
16' Sobre, o prim ado da lei no antigo direito romano, v. A. M A G D ELA IN ,
L e s A ctio n s C iviles, ’.ed. Sirey, P aris, 1954, pp. 39-40. Ó tema, envolverá tam ­
bém, ao nível das im plicações culturais, a passagem do m ito ao logos no pen­
sam ento grego. A respeito, C A SSIR E R , The m iih of the State, Yale Univ.
P ress, New H aven, 1961, parte II, Cap. V ("Logos and M ythos in the E arly
Greek P hilosophy"). O bserva J. W A L T E R JO N E S que a distinção entre di­
reito escrito .e não escrito é algo reconhecido pelo direito escrito em seu ad­
vento ( T hè L a w and L egal T heory of the Greeks, Oxford, 1956, p. 62). Sobre
o legalism o na religião grega, W , JO N E S , pp. 93 e segs.

38
legalismo ocidental moderno (em especial o ocidental-liberal).
HAURIOU, como se sabe, perfilhava a noção de que a lei
como tal possuiu uma origem inequivocamente revolucionária,
e essa origem era a da liberdade mesma, nascendo com as cons­
tituições. Por trás de semelhante tipo de pensamento se en­
contra, porém, o conceito liberal de revolução: a revolução
entendida como consecução de uma ordem “melhor” através da
supressão de privilégios “distorcivos” e da generalização da li­
berdade. A liberdade é individual e é gerai, como a lei é geral.
Esta imagem quase arquetípica de uma revolução é a que certos
autores miram, quando escrevem que em toda revolução existe
e atua uma fé jusnaturalista, ou seja, um postulado segundo o
qual se deve quebrar uma organização vigente, em nome de
outra, mais alta e mais valiosa, a ser posta em vigência.17
Também a ligação entre lei e discussão, já mencionada,
nasce destes supostos e corresponde a eles.18 Ela é resultado
de antíteses, em sentido geral, e em especial provém de deba­
tes, de opiniões divergentes. Portanto, corresponde a um rela­
tivismo. Neste mesmo sentido ela se opõe efetivamente ao cos­
tume. Na verdade, sob certo prisma se entende uma oposição
entre revolução e costume, pois este é a tradição e aquela é a
razão; o costume é a inércia, a permanência, a anuência tácita,
a raiz avoenga ,e rural, enquanto a revolução é o ímpeto urbano
e atual, a indagação, a formulação lógica, a legislação expressa.
No sentido rousseauniano, a revolução francesa devia ter sido
recuperação do natural no homem, sob envelhecidos erros e as­
sentadas distorções: portanto, recomeço ortográfico e ortopédi­
co, retomada de caminho, formulação nova, mas essencial.

• * *

17 "T oda revolución, diz RECASÉNS SIC H E S , im plica una creencia ju s­


n atu ralista" — Vida H um ana, Sociedad y Derecho, Fundamentación de Ia F ilo­
sofia del D erecho, FCE, México, 1945, p. 322. Por seu turno, diz A. BECCARI
que "íl valore profondo, rivoluzionario del d iritto naturale consiste in ciò che
ancora deve attu arsi, e non ciò que si è già attuato o si a ttu a ” ("D iritto N a­
turale e Positivo nella Storia del P ensiero P olitico", em R iv . Internazionale di
Fil. del D iritto , anno X X X III, jan.-abr., 1956, p. 64 ). O utras citações seriam
num erosas; indique-se a m ais, por ora, a obra m aior de E R N S T T R O E L T S C H ,
que tam bém nas rebeliões m edievais encontra o signo da tendência revolucio­
nária dos ideais ju sn a tu ralistas (Le D ottrine Sociali N elle Chiese e dei Gruppi
C hristiani, voi. I, trad. G. Sanna, Firenze, 1949, parte I I, Cap. 9, p._ 530). Sobre
o cunho, entretanto, "especificam ente m oderno” da idéia de revolução, M. GAR­
CÍA PEL A Y O, E l Reino de D ios, A rquitipo P olítico, Rev. de O ccidente, Ma­
dri, 1959, p. 187.
18 Confira-se a nota 3, supra.

39
A ótica retrospectiva do Ocidente, tão repetidamente exer­
cida, insinua ainda que o direito romano foi ‘‘direito” em sen­
tido mais próximo ao nosso do que o grego, e tinha até, mais
também que o grego, volume de leis; e sobre tais leis a juris­
prudência romana tomou um sentido mais próximo ao que
chamamos ciência do direito, do que o que possa ter havido na
Grécia. Inclusive há quem ache que não existiu propriamente
um “direito grego”.19
Do mesmo modo surge, dentro da interpretação socioló­
gica, a importante observação de que o momento legislativista
vem de braços dados com o predomínio econômico e cultural
do urbano sobre o rural. Trata-se de uma menção antroposso-
ciológica que exerce sem dúvida certo atrativo e convida a vin­
cular certas imagens antigas às experiências modernas.20 É per­
tinente anotar, todavia, que hoje se tem a vida urbana como
uma espécie de dado “normal”, como ambiência dominante,
de modo que a oposição entre o rural e o urbano com mode­
ladores de opostos padrões do humano parece irrelevante. Mas
é um tema fundamental para a compreensão de transformações
mais remotas.
A ligação do predomínio da vida urbana, enquanto fato
histórico, ao do direito legal, significa também isto: os meios
rurais tendem fatalmente a marginalizar-se e retardar-se em re­
lação à “vida” jurídica, às convicções e ao esperito das formas
legais e processuais, ficando retidos no costumeiro ou recebendo
essas formas de modo indireto, oblíquo ou deficiente. Este é,
aliás, um tema de pesquisa que caberia realizar em nosso país.
Para outras terras há mais indicações, inclusive históricas e li­
terárias: por exemplo, no romance “Raptado” (“Kidnaped” ),
de Robert Louis STEVENSON, Capítulo 23, lê-se quê deter­
minados clãs escoceses se recusavam — ainda no século XIX
— a aceitar a justiça oficial do governo central, preferindo pro­
curar seus chefes próprios para dirimir contendas. E na França,
consoante observação de LÉVY-BRUHL, há províncias onde
19 Verdade seja que a “ iurisprudentia" romana* era menos teoria que a
Ciência do D ireito m oderna. A respeito, B R U S U N , op. cit., pp. 242-243, opõe
as formas m entais da jurisprudência m edieval à rom ana: para ele, somente o s.a u ­
tores medievais se interessaram por problem as lógicos em si mesmo e por sua
sis te m a tiz a d o (“ Y Así Quedó Fundada la Jurisprudencia como Ciencia en el
Sentido Moderno")* Ver tam bém B IO N D O B IO N D I, A rte y Ciencia dei D ere­
cho, trad. A. Latorre, Barcelona, 1953, pp. 32 e segs. B IO N D I tam bém nota,
inclusive (p. 57), que a problem ática puram ente m etodológica foi alheia ao sa<-
ber jurídico de Roma.
20 Sobre o tem a “ cidade” , em geral, cf. S P E N G L E R , Decadência, passim .

40
sobrevivem costumes muitos antigos, que resistem a toda ino­
vação, inclusive à aplicação do sistema métrico-decimal.21

21 H E N R I L ÊV Y -B R U H L, Sociologia del D erecho, trad. M. W iniíky, ed.


Eudeba, B. Aires, 1964, Capítulo II. P ara o caso espanhol, todo o Capítulo 1 de
JO A Q U IN COSTA. La Ignorancia del Derecho, citado. O alongam ento da” ques­
tão nos levaria à figura do "aldeão eterno” , a aue aludem Spengler e O rtega.
Uma das citações exem plares a respeito é RO LA N D M A SP É T IO L , V o rd re
E ternel des Champs (apud GLAUCIO V E IG A , Integração Econôm ica, tese, Re­
cife, 1961, p. 213).

41
II
OS ORDENAMENTOS
OCIDENTAIS
PRÉ-DEMOCRÁTICOS

1. SOBRE A FASE "PRÉ-DEMOCRÃT1CA"

No corpo histórico do Ocidente, o mais característico mo­


mento de passagem revolucionária de um tipo de ordenamento
a outro se situa realmente no surgimento da democrâcia li­
beral.
Aí, como num novo ato de um drama, o legalismo plena­
mente se apresenta. Aí se dão as condições culturais cuja “cor­
respondência” se viu num dado momento na cultura antiga,
isto.é: gênese do laicismo, do individualismo, do racionalismo.
E aí vai-se enraizar o processo de instauração de uma nova
mentalidade referida à história, um dos resultados da qual é,
precisamente, a revisão dos passados a partir das experiências
ou das estimativas (e expectativas) de um sistema novo. Dessa
experiência e dessas estimativas históricas, que a democracia
desenvolve, gera-se inclusive um conceito “progressista” de re­
volução que será por sua vez utilizado na interpretação da His­
tória e das histórias.1
Com efeito, a noção demoliberal -de revolução, após mol­
dar a figura histórica das revoluções burguesas, ficpu como um
marco sobre o qual se montam variantes (a revolução socialis­
ta, por exemplo), todas partilhando a tendência a conceber o
ato revolucionário como algo que realiza o passo para um sis­
tema previamente admitido como melhor.
1 Cf. nota 17, Cap. I, 2.a parte. M ais algo em nosso artigo "N otas para
una T ipología- de las M entalidades P o lític as” , em E studios de' Sociologie, n. 2
(Buenos A ires), 1962, pp. 226-227•

42
Dada, porém, a continuidade da história ocidental, o pro­
blema deve ser colocado a partir de elementos da pròpria fase
pré-democrática. O legalismo ocidental se desenvolve por certo
dentro de um processo cujo ponto maior de referência é a trans­
formação democrática; mas não poderia estar em contradição
total com as realidades anteriores. Considerando-se o regime
legalista como uma espécie de vocação jurídica da cultura oci­
dental, todas as épocas da história do Ocidente vão interessar
ao estudo. E se, em face das diferenciações histórico-socioló-
gicas, se considera que ele corresponde apenas a uma sua época,
esta deverá igualmente ser compreendida em contraste com a
anterior, da qual sai.

2. VISÃO DA IDADE MÉDIA

Um problema histórico interessantíssimo é o do sentido


da lei na Idade Média européia. Teria esta sido legalista ou
consuetudinarista?
ê difícil situar o problema (mesmo porque, posto neste
autaut, ele exprime talvez mais uma questão nossa do que uma
opção vivida por aqueles tempos) e há indicações contraditórias,
mormente -— registre-se a circunstância — porque a utilização
de qualquer delas depende da visão cultural que da Idade Mé­
dia se tiver: intervalo entre greco-romanos e modernos; perío­
do de civilização clerical; etapa inicial do Ocidente. E também
porque, acrescente-se, é sempre um tanto difícil a um não-eu-
ropeu sentir com autenticidade certos caracteres “fisiognômicos”
dos séculos medievais.
Desde logo, não basta que tenha havido leis nos ordena­
mentos medievais para que digamos que a Idade Média foi le­
galista. Nem, obviamente, que houvesse muitos costumes para
que fosse costumeirista. Seria aliás uma solução insuficiente,
embora relativamente fácil e convenientemente didática, dizer
que consistiu numa síntese entre direito costumeiro e direito
escrito — e que assim ‘‘preparou” o reino da lei na etapa an­
terior. Mas o problema não é tão simples, inclusive porque
cabe distinguir entre o costume que veio a receber redação es-

43
crita e reconhecimento oficial, e a lei que nasceu com base
num costume. Daí dizer SANTIAGO SENTIS MELENDO,
ao acentuar tal distinção, que não existem costumes escritos:
quando se fala em costumes escritos, não se quer aludir a cos­
tumes criados por escrito, mas sim a costumes que posterior­
mente foram reduzidos à escritura, às vezes bastante tempo de­
pois de formados, e que em si mesmos seguem, todavia, sendo
costumes.2
Na Idade Média se utilizou com freqüência a idéia de lei,
mas quase sempre com sentido muito genérico, e às vezes em
acepção metafísica. Nem sempre em sentido jurídico-positivo.
Em certos autores a noção se acha ambígua, calcada nos roma­
nos mas insuficientemente fixada. Como no caso de ISIDORO
DE SEVILHA, que dizia que a lei tem de ser escrita e que
nisso se distingue do costume, mas também afirmava ser a lei
uma “constituição do povo, que dos anciãos recebeu sua san­
ção“.3
Uma fórmula célebre dò Decreto de Graciano dava o direi­
to natural e o costume como regentes, por igual, da humanida­
de.4 A propósito deste texto, o professor CARLYLE destacou
a importância do costume na vida política e jurídica da Europa
Medieval; mas houve, repita-se, uma valorização da lei na Idade
Média, como reverso ou contrapartida. E o mesmo CARLYLE
(no mesmíssimo estudo supracitado) acentua essa valorização,
firmando-se característicamente na passagem famosa de Bracton:
“Ipse autem rex non debet esse sub homine, sed sub Deo et
lege, quia lex facit regem.“
Anote-se, quanto a este ponto, que a exposição de CAR­
LYLE (como aconteceria com qualquer outro de língua ingle-
2 E l Ju ez y el Derecho, citado, pp. 210-211. Sobre o "D ireito Feudal E s­
crito", ver ainda L U IS W ECK M A N N , La Sociedad Feudal, México, 1944, Cap.
II. Cf. tam bém o tomo V II da H istoire du D roit et des In stitu tio n s de VÊglise
en Occident, dirigida por G A B R IE L LE BRAS ( L ’Age Classique, 1140-1378),
ed. Sirey, P aris, 1965); e PA O LO G RO SSI, L e Situazioni R eali n ell’Esperienza
Gitxridica M edievale, Pádua, Ced^m, 1968, p. 96.
3 SANTO IS ID O R O DE S E V IL H A , E tim ologías, trad. -Cortés y Gongora,
ed. BAC, M adrid, 1951, livro V, Capítulos I I I e X. P ara uma alusão ao lega­
lismo inicial da Idade M édia, A L FR ED ,N.. W H IT E H E A D , A Ciência e o Afun­
do Moderno, trad. São .Paulo, 1951, pp. 22 e 25. Cf. ainda o Capítulo II, título
II, do notável livro de S A LV A TO R E FO D E R A R O , II Concetto di L egge (S tu ­
di su la Legge n ell’Ordinam ento Giuridico Ita lia n o ), F. Bocca, M illo, 1948.
4 "H um anum genui duobus regitur, n aturali videlicet iure et m oribus”
(Apud A. J. CA R LY LE, "Some Aspects of the Relations of Roman law to Po­
litical P rinciples, in the M iddle Ages", em Studi in Onore di Enrico Besta,
citados, voi. I l l , p. 187). CA R LY LE faz derivar a fórm ula de Santo Isidoro,
E tim ologías, v. 2. Sobre Graciano, M IC H E L V IL L E Y , "Sources et Portée du
D roit N aturei chez G ratien", em suas L eçons d ’H istoire de la Philosophie du
D roit, D alloz, P aris, 1957, pp. 221 e segs.

44
sa), ao traduzir lex por law, põe um pouco de confusão na
coisa, dada a amplitude do termo inglês. Além disso sua expo­
sição acentua bastante a questão das relações entre o rei e o
direito (“King bound by the law” ), o que'é um problema dis­
tinto.5
Quanto ao nosso problema, que se refere à lei propria­
mente dita, talvez se possa colocá-lo assim: na concepção me­
dieval os costumes, além de serem a “organização da comuni­
dade”, aparecem ao lado do Direito Natural, completando com
este e em outro nível a base teòrico-politica do direito. Cos­
tumes e Direito Natural eram considerados princípios de orga­
nização social, e tinham algo de conceito-limite, pouco anali-
sável como função ou como operatividade. Enquanto isso a
lei, enquanto conceito geral, representava o direito enquanto
limitador do poder e prevenidor do arbítrio. Destarte a “su­
premacy of law”, que os autores ingleses mencionam em suas
alusões, ao medievo, era supremacia da lei realmente, sobretudo
se referida aos textos legais que valiam como expressão daquela
ordem que o próprio monarca tinha de respeitar. E daí que,
no século XVI, os monarcômacos (tão importantes como con-
testadores políticos) ainda se opusessem aos reis que, além
de violar o direito natural e o divino, fraudassem as lei positi­
vas do reino.6
Percebe-se, de qualquer sorte, um legalismo expresso em
vários textos jurídicos importantes daqueles séculos, a tal ponto
que se tem bem nítida a imagem de uma limitação, pelas leis,
de todo poder político pessoal; limitação de resto compatível
com o .caráter geral-das formas de “ordenação” vigentes na
Idade Média, em Política ou em Economia cómo em Teologia
e em Arte. A limitação do poder pela lei aparece de modos
variados em João de Salisbury, em Hincmar de Reims, em-Pòr­
tesene e outros. Na Itália, pode-se encontrar um certo legalismo
5 A. J. C A R LY LE. "Some A spects”, local citado. P ara o texto de Brac-
ton, ver a seleção de W IL L IA M STU B BS, Select Charters, and O ther Illu s tra ­
tions of E nglish C onstitutional H isto ry , Oxford, 1960, pp. 411 e segs. Sobre
Bracton, cf. H O LD S W O R T H , Sources and L ite r a u r e of E nglish L aw , Oxford,
1952; idem. Som e M akers of E nglish Law , Cambridge, 1966; T. F. PLU C K -
Ñ É T T , E arly E nglish Legal L iterature, Cambridge, 1958; C. H. MAC IL W A IN ,
C onstitucionalism o A ntiguo y M oderno, trad, arg., ed. Nova, Buenos A ires, 1958,
Cap. IV .
6 Sobre os monarcômacos, J. P. MAYER, em Trayectoria del P ensam iento
P olitico (com outros autores, trad. V. H errero, FC E , M éxico, 1941), p. 135. So­
bre a posição do rei m edieval e suas lim itações pelo direito, F R IT Z K E R N ,
Derechos del R e y y Derechos del P ueblo, trad. A. Lopes-Amo, ed. R ialp, M a­
drid, 1955. V. também LORD E V E R S H E D , The Im pact of Sta Utes on the L aw
of England — extrato dos Proceedings of the B ritish Academy, volume X L II
(O xford, 1956, p. 252).

45
no Capítulo Décimo do Discurso Primeiro, no “Defensor da
Paz” de Marsilio de Padua. Seja também mencionado, por
suas raízes medievais, Richard Hooker, em cujo livro sobre a
política eclesiástica (1593) está expendido o conceito de que
“what power the king has, he has it by the law”, sendo embora^
certo que law, conforme visto acima, inclui o sentido de “lei”
más tem maior amplitude.7
Pode-se então considerar, conforme aliás foi feito acima,
que o papel da lei no medievo europeu consistiu basicamente
em servir de molde ou de encaixe, algo como uma delimitação
“dentro” da qual se colocava o rei, em função da ordem geral
vigente. É esta ordem geral medieval que serve de contraste aos
padrões “modernos” quando se fazem certos confrontos.8 Atri­
bui-se aos padrões medievais um traço essencial de fixidade,
que se entende em conexão com a “metafísica do lugar natural”,
com valores estáveis, posições sociais fixas, dogmas indiscutí­
veis, autoridades indesobedecíveis e mundos imóveis.
O fato porém, por outro lado, é que naqueles séculos, não
havia uma distinção suficiente entre direito e lei; nem mesmo
havia uma bem delineada teoria do costume. Esta, por sinal,
só surgiria no. século XIX em contraposição à idéia contem­
porânea de lei.
Cabe observar, ainda, que — ao menos quanto a que se
depreende das exposições principais — prevaleceu fortemente,
ños séculos medievos, a concepção do “bom direito velho” : bom
direito é o direito antigo, assente no imemorial e seguido como
tal. Além disso, resistência à imagem do jurista como elabo-
rador de normas, pois o direito vem de Deus, não dos homens.
Colocando o problema em termos panorâmicos, ROSCOE
POUND ponderou o seguinte: teria havido, na ordem jurídica
medieval, um elemento romano, tendente à normação legal e
administrativa, estatizante; e um elemento germânico, localista,
tendente ao costume e à auto-regulação das comunidades, opón-

7 F Ó R T E S C U E , The Governance of England, ed. Oxford, 1926 (reim pres­


são) ; idèm. De Laudibus legum angliae, ed. bilingue, Cambridge, 1949, Capítulo
IX . (Rex. politice dom inans non potest m utare leges regni sui). M A R S IL IÒ DA
PA D O V A . Il Difensore della Pace, ed. Vasoli, U T E T , T urim , 1960. RICH A RD
H O O K E R , Of the Laws of E cclesiastical Polity, ed. . E verym an’s, Londres, 1963.
M ais sobre a lei .na Idade Média em F. CALASSO, Introduzione al D iritto Co-
m une, G iuffrè, M ilão, 1951, Cap. IV ; A N T O N IO ROTA, Lo Stato e il D iritto
nella Concezione d i Irnério, . Giuffrè, Milão, 1964, Cap. IV ; C A IN E S PO ST,
S tu d ies in M edieval L egal Thought, . ed. P rinceton Univ., 1964.
8 Cf. VON M A R TIN , Sociología del R enacim iento, ed. m exicana, FCE,
1962, Introdução. V. tam bém nosso A s Formas de Governo, cit.

46
do-se à idéia de um rei-fonte-do-direito. O esquema é discutí­
vel, mas faz sentido.9

3. OS CHAMADOS TEMPOS MODERNOS

Quanto à passagem da Idade Média aos tempos ditos mo­


dernos; ela é ião difícil de fixar no plano das formas de ex­
pressão do direito quanto nos outros. Todo mundo sabe hoje
que é uma ficção cronológica demarcar um começo para as
épocas, e o caso da “moderna” pode ser exemplo das variações
dessa ficção. O que se pode é aceitar a compreensão de proces­
sos transformativos fundamentais e convergentes, verificados em
certa época: aquelas “revoluções” que em cada plano da vida
histórica dos povos europeus ocorreram a partir, sobretudo, do
século XV. Aliás a menção de transformações complementares
se solidariza aqui com a alusão, feita atrás (Capítulo III), à
formação de sistemas igualmente modernos em economia e em
política, sistemas que acompanham o legalismo do campo jurí­
dico. Compreendendo-se, como ia dizendo, aquelas modifica­
ções profundas como dimensões de uma revolução cultural in­
teira, tem-se uma nova época, mas isto se se vê as coisas com
olhos de hoje e com vontade de rotular pedaços; pois se al­
guém for buscar os pontos de separação não encontrará» senão
seqüências, e a História é realmente seqüência: ORTEGA, cri­
ticando a expressão “épocas de transição”, disse uma vez que
a História é justamente a ciênciá das transições.10
E assim o “Renascimento”, que por pretensão e por defi­
nição é antimedieval, radica na Idade Média; isto é também
coisa sabida. Esta radicação se verifica igualmente no plano
jurídico.11
9 The D evelopm ent oi the C onstitutional Guarantees oi L iberty, ed. Yale,
C apítulo I. Sobre o problem a, ver ainda A U G U ST E L EB R U N , La Coutume,
P aris, 1932, P rim eira Parte.
10 H istoria como Sistem a, 3." edição, Rev. de O ccidente, M adrid, 1958,
p. 76.
11 Sobre a continuidade histórica da “ Ciência E uropéia” através de gera­
ç õ e s,. W . D IL T H E Y , L e M onde de l ’E sprit, trad. Remy, tomo I, P aris, 1947,
pp. 44 e 45. Sobre o Renascim ento no plano jurídico, M IC H E L V IL L E Y , Le-
çons d'H istoire, cit., Cap. IV ; A. V E R D R O SS, La Filosofia del Derecho del
M undo Occidental, trad. M. de la Cueva, México, 1962, Cap. X IV ; D O M EN ICO
M A FF È I, Gli inizi delVUmanesimo Giuridico, Giuffrè, Milão, 1956. Sobre a lei
em Bodin, V. CARL J. F R IE D R IC H , P erspectiva H istórica da Filosofia do
D ireito, trad. A. Cabral, Zahar, Rio, 1965, Cap. V i l i , p. 78.

47
Há que mencionar, dentro do período, a presença de MA-
QUIAVEL e todo o lento processo de laicização da política
como passo para o Estado moderno, com o advento das teorias
absolutistas e a experiência real de um Estado concentrado e
absorvente.12
Outro problema dentro da época é o da chamada “recepção
do direito romano”. Corresponde à formação dos ordenamentos
nacionais e à fase em que os modelos romanos são revistos e
manipulados por uma específica tendência sistemática, com a
presença, nas cortes, de “legistas” de vários tipos, dispostos a
coonestar o poder do príncipe. Assim a recepção instaurou o
legalismo monárquico-absolutista, onde o Estado mercantilista
era bastante forte e fez surgir o lema: un roi, une foi, une loi.
O elemento romano (a lex) foi mantido em sua forma medie­
val, superando-se ao menos em principio o elemento costumeiro-
-feudal.
Como se sabe, o termo “recepção” designa todo um tipo
de processo histórico-cultural, cuja recepção do direito roma­
no ñas cortes européias é um caso, ou um exemplo, maior e
mais exemplar, em .tomo do qual se fixou a expressão. KOS-
CHAKER opina que a interpretação histórica do fenômeno
da recepção envolve problemas ainda não resolvidos. Há au­
tores que entendem a recepção como um caso específico da
história alemã; outros a consideram extensiva a toda a Euro­
pa. Para WIE ACKER, autor de uma ariálise excepcional­
mente sugestiva sobre o assunto, os caracteres da recepção
se ' entenderão mais claramente se esta for interpretada como
um processo de cientificização do direito (principalmente do ale­
mão), com base num trabalho filológico italiano, chegando a
modelar todo o padrão operativo do direito ocidental. Como
se sabe, o recebido foi principalmente a teoria dos glosadores,
teoria de cujos pressupostos metodológicos se nutriu o esforço
de modernizar o saber romano, reelaborando-se o material man­
tido durante a Idade Média.13

1? S A B IN E destaca que, para M aquiavel, o legislador era elemento de pri-


meira im portância na sociedade; e a lei, fonte da virtude moral e cívica (H/s-
fona de Ja Teorìa Polì ica trad. V. Herrero, FCE, México, 1945, p. 353).
No mesmo sentido, G. SANTON ASTASO, M acchiavelli, Milão, 1947, p. 87. Para
os textos, N. M A C C H IA V E LL I, Scritti Sceld , ed. Mondadori, 1946,
13 KO SCH A K ER , Europa y el Derecho Romano, cit., Capítulos X e X I;
FRANZ W IE A C K E R , H istoria del Derecho Privado de Ja Edad M oderna, trad.
F. Jardón, ed. A guillar, M adrid, 1957, parte II. Ver ainda T. S TE R N B ER G ,
Introducción a la Ciencia del Derecho, trad. Rovira, Labor, Barcelona, 1930, §
7; F. GALASSO, Gli O rdinam enti Giuridici del R inascim ento M edievale, Mi-

48
Um legista do século XVI, Olearius, é personagem do dra­
ma histórico Goetz von Berlichingen, de GOETHE. No ató I,
a conversa do legista com o bispo revela seu perfil intelectual,
e aparece então a caricatura do legalismo, quando Olearius
opõe, ao variável das opiniões humanas, a esplêndida imuta­
bilidade das leis (und die Gesetze sind unveränderlich).
* * *

Trata-se então dé partir das indicações disponíveis para en­


tender as condições culturais do advento do legalismo, no direito
ocidental. E há que ver, neste caso, uma evolução nas con­
vicções políticas, em conexão com transformações institucionais:
idéias já existentes atravessam novos ciclos, fundam-se supostos
de outras novas, e surgem formas de vida com sentido diferen­
te. Olhe-se os aspectos novos que em cada setor aparecem
e se terá o transfundo em que ocorrem as novas pautas jurí­
dicas.
Inúmeras análises existem destes processos que geram o
mundo considerado moderno: umas dando conta das novas téc­
nicas de produzir ou dominar, outras referindo-se à nova vidà
social, artística ou científica, outras captando o sentido de no­
vos valores ou novas atitudes psíquicas.14
É particularmente importante a trajetória que corresponde
a certas concepções políticas. Elas tanto revelam a continui­
dade entre a Idade Média e os tempos seguintes, como a pe­
culiaridade destes. É o caso do contratualismo, desde o . de
MARSUPIO (pelo menos) até a versão de ROUSSEÀU;15 é
o caso do liberalismo, que cresce dentro dè certas experiências
medievais e adquire proporções e notas próprias a partir do
domínio da burguesia;16 é o caso do laicismo, que aumentava
desde OCCAM, e do racionalismo, ambos dando sentido autô­
nomo e não mais heterônomo à tematização dos conceitos e
lão, 1953. livro I I I , Capi 1; F. BR U N O , R om anità e M odernità del Pensiero di
M acchiavelli, Milão, 1952, Cap. I I ; e ainda H. F. JO L O W IC Z , R om an Founda­
tions of M odem Law , Oxford, 1957, passim .
14 Urna nova contribuição no livro de JU A N B E N E Y T O , E spíritu y E s ­
tado en el Siglo X V I , ed. A guillar, M adrid, 1952.
15 Cf. A. J. CAR LY LE, La Libertad P olítica, citado, passim ; R O B E R T
D E R A T H É , Jean-Jacques Rousseau et la Science P olitique de Son Tem ps, P U F ,
P aris, 1950.
16 Cf., sobretudo, H A R O LD LASK I, E l Liberalism o Europeo — trad. V.
Miguelez, FCE, México, 1953; e tam bém seu La Libertad en el Estado M oder­
no, trad. ' E. W arshaver, B. Aires, 1946; E M IL E M IR E A U X , Philosophie, du
Liberalism s, FU m m anon, P aris, 1950.

49
das exigências do pensar, posto agora no plano da concreteza
social.17 O processo de secularização ou de láicização, ao ser
reexaminado por certos analistas. posteriores, em nosso século
(como Schmitt e Leibholz), se revelará realmente cheio de as­
pectos significativos. É nele que aparece, inclusive, o fenômeno
da transposição de categorias religiosas para a linguagem po­
lítica, o que em parte coincidiu justamente com a fase do en-
deusamento da lei e da atividade legisferante. Daí dizer LEI-
BHOLZ que, na esfera social, ocorreu uma substituição da
vontade de Deus pela vontade — também onipotente — do
legislador.18
Estes componentes todos denotam, e consolidam, o gosto
do homem “moderno” pela clarificação e pelas explicitações,
prestigiado desde logo no âmbito intelectual pelas ciências po­
sitivas européias 19 e a seguir refletido no apego às declarações
políticas e jurídicas, sempre, todavia, legitimadas por um con­
ceito discursivo e intelectualista da sabedoria. Tudo isso, como
se sabe, entrará em crise algumas vezes, será revisto ou recusa­
do, mas seguirá sendo marca inconfundível no comportamento
político e cultural contemporâneo.

17 Sobre o processo de laicÍ 2 ação, o m agistral estudo de C H R IS T O P H E R


D A W SO N , Progresso e R elig ião, trad. A. G. Rodrigues, Coimbra, 1943, sobrer
tudo -o Cap. V i l i ; bem como PA U L H A ZA RD , E l Pensam iento Europeu en el
Siglo X V I I I . Rev. de Occidente, M adrid, 1946, parte I ; F R IT Z VALJA V EC,
H istoria de la Ilu stracción en O ccidente, trad. J. A, Callado, ed. Rialp, M adrid,
1964; e ainda o sugestivo ensaio de W E R N E R SOM BART, L ujo y Capitali
7170, ed. G. Dávalos, B. A ires, 1958, passim .
18 Strukturproblem e der M odernen D em okratie, Karlsruhe, ed. F. Müller,
1958, parte I I, Cap. 5.
19 Cf. W . D IL T H E Y , H istoria de la Filosofia, trad. E. Imaz, FCE, M éxi­
co, 1951 (povos m odernos, 3.a etapa: “ E ntram os povos modernos na etapa das
ciências em píricas e de sua cim entação por uma teoria do conhecim ento''). Cf.,
tam bém , O RTEG A Y G A SSET, La Idea de Principio en L eibniz y Ia E voluc-
ciôn de Ia Teoria D eductiva (obras inéditas) ed. Emecê, B. Aires, 1958, § 5.°;
“ H acia 1750 Comienza el Reinado de la F ísica".

50
Ill
SURGIMENTO E
FUNDAMENTAÇÃO
DO LEGALISMO

f. -VALORIZAÇÃO E REVALORIZAÇÃO DA LEI

Evidentemente não será preciso, para nosso problema, si­


tuar com precisão cronológica o ponto de partida do legalismo.
O importante será caracterizar seu crescimento dentro da ex­
periência jurídica do Ocidente, e sobretudo sua influência na
relação entre essa experiência e a estrutura da ciência jurídica,
mormente nas fases decisivas da formação desta.
Repita-se aliás que,' do ponto de vista do presente estudo,
o legalismo propriamente dito é o ocidental, não tanto o antigo,
mencionado em páginas anteriores.
Certos autores do século XIX, como COGLIOLO, acha­
vam que o direito entre os povos antigos se elaborava lenta­
mente, ao passo que entre os modernos se faz com rapidez,
chegando a lei a “absorver” as outras fontes, dominando-as in­
teiramente.1 O que implica evidentemente um problema de
padrão cultural, e não simplesmente uma questão de técnica
jurídica.
Com efeito, encontramos em certas culturas antigas um
culto da lei no sentido da consagração de tal ou qual lei: as
Doze Tábuas, a lei de Solon, enfim algum texto estimado como
exemplar ou como perenizável. Isto sem falar na concepção
platônica do legislador. Por isso mesmo FODERARO pôde
1 Veja-se C O G LIO LO , F ilosofia del D iritto P rivato, e i t , § 4.°. P ara a
caracterização do direito romano não esquecer o clássico IH E R IN G . L ’Esprit
du D roit R om a in, trad. O. M eulenaere, ed. Maresq, P aris, 1886, tomo I.

51
afirmar que, se entre os gregos surgiu uma distinção viável
entre a lei e as demais manifestações do direito, com certo
destaque para ela, é entretanto necessário observar que o ter­
mo lei significava para eles algo bastante diverso das acepções
modernas da palavra.2
No Ocidente, sobretudo nos séculos modernos, o culto à
lei se faz in abstracto, à lei como tal, à legislação como ex-
pressadora de direito: distintamente do caráter de tal lei, de
cada lei ou do passar das leis. A lei permite que alguém obe­
deça a alguém, porque nasce de competências previstas e de
mandatos voluntários que legitimam a normação. Encontra­
mos, portanto, uma ideologia da lei.
Enquanto em Roma a idéia de lei abarcava todos os ti­
pos de preceituação para uso do povo, e entre os antigos judeus
havia uma conexão entre fonte jurídica e fonte religiosa — o
Pentateuco era por excelência a lei escrita — , o legalismo oci­
dental moderno se planta sobre uma distinção basilar entre a
lei e as demais espécies de preceitos, éticos em geral e mesmo
jurídicos em particular.3
Pode-se então considerar o legalismo contemporâneo como
algo que ocorre sobretudo a partir das revoluções liberais. Es­
tas em verdade firmaram o seu predomínio; vimo-lo surgindo
ou progfedindo através delas desde tendências anteriores.
Teriam sido, portanto, o período feudal e o absolutista,
cada um a seu modo, “preparações” para o tempo de domina­
ção hipertrófica da lei, que começa com as mencionadas revo­
luções liberais. Sob certo prisma, pode-se dizer que aquelas
revoluções são apenas episódios mais ou menos externos (em­
bora indispensáveis) de uma transformação que sem dúvida
corresponde a um processo maior.
E aqui se põem várias indagações marginais, inclusive no
tocante às legislações revolucionárias. CARL CROME, expon­
do sobre o direito francês, escreveu que, enquanto os direitos
antigos (inclusive o romano), admitiram como algo fundamen­
tal a criação do direito através do uso popular, as legislações
2 II Concetto di Legge, cit., p. 61, W E L Z E L lembra que em C hristian T o
m asius o conceito de lei ficou referido estritam ente à lei positiva, consicíerando-
-sc um erro de seus predecessores aplicar o conceito a noções como a de “ lei
divina" (Derecho N atural y Justicia M aterial, citado, Capítulo IV, p. 209).
3 GAETANO SCIASCIA, D ireito Romano e D ireito C ivil B rasileiro, São
Paulo, 1947, pp. 46 e segs., sobre as várias definições. ED M O N D R O T H , É tu ­
de du System e Juridique Ju ii et de Quelques In stitutions R elevant de ce Sys­
teme, ed. D. M ontchrestien, P aris, 1930, parte I, Caps. I e II.

52
do final o século XVIII uniformemente limitaram senão elimi­
naram a aplicação do direito consuetudinàrio.4 Anote-se aliás,
de passagem, que em observações deste tipo permanece um du­
plo sentido quanto, ao emprego do termo “direito” : o direito
admite a criação do direito, ou não admite; fala-se do direito
como sistema global, e ao mesmo tempo como atuação de uma
“fonte”.
No fundo, como se sabe, a teoria liberal dá separação de
poderes era uma garantia do legislativo e da legislação — mes­
mo tendo o alcance de com isto preservar prerrogativas indi­
viduais. E FODERARO afirma que, entre os resultados da
Revolução Francesa, se acha o advento do sentido “formal”
da lei. O legalismo anterior, atinente ao período absolutista,
existiu com a teoria das leis do teino, distintas das leis do rei
segundo uma diferenciação existente desde o século XVI pelo
menos; e com as “leis fundamentais”, que existiram como nor­
mas superiores às leis comuns e como “ato inicial da soberania
nacional”. Existiu na Inglaterra de Cromwell com seu Instru­
mento de Governo que já correspondia a um Estado centrali­
zado de tipo moderno.5 O legalismo absolutista existiu, em um
sentido estrutural, plenamente. Faltou-lhe, contudo, o cresci­
mento de um conteúdo doutrinário e de uma identificação ao
menos conceituai com o povo. A coisa se toma definitiva quan­
do a lei passa a ser, ao menos em tese mas com intenção “uni­
versal”, base de toda autoridade; expressão textual e impessoal
da vontade do grupo, que se legisla a si mesmo. E quando,
sobre seu caráter pretensamente geral e formal, se monta uma
mentalidade nova a respeito do conhecimento do direito e da
experiência jurídica. É, portanto, na época liberal que o lega­
lismo se torna completo, vindo a ser, como forma doutrinária
a modo de crença ou postulado, o cerne vivo da própria idéia
de direito.

* * *

4 CARL CROM E, Parte generale del diritto privato tráncese moderno, trad.
Ascoli e Cammeo, Milão, 1906, livro I, Cap. I, § 6.°, p. 29.
5 FO D E R A R O , op cit., p. 76: JU L E S SIM O N , La L iberté P olitique, 4.“
ed., P aris, 18.71, p. 91; A. E S M E IN , É lé m e n ts d e D roit C onstitutionnel français
et compare, 4.n ed., P aris, 1906, parte I, título 2, Cap. V, p. 470; S. R. G A R D I­
N ER, The C onstitutional D ocum ents of the P uritan R evolution:. 1625-1660, 3.a
ed., Oxford, 1962; J. W. GOUGH. F undam ental Law in E nglish C onstitutional
H istory, Oxford, 1961.

53
Como o absolutismo tinha sucedido a um tipo de ordem
em que a lei limitava o rei, o antiabsolutismo apelava de novo
para a lei. Só que dantes, a lei (lex) era algo mais amplo, in­
cluindo níveis teológicos e admitindo reforços consuetudiná-
rios; agora a lei era a lei mesmo, separada do costume, laici­
zada e tendente a considerar-se em perfil puramente formal
De qualquer modo as linhas do novo pensar social (liberal),
dentro da crescente movimentação ideológica, engrossam até a
pretensão de embasar instituições.
O contratualismo chega até ROUSSEAÜ, e é reformulado
por ele, dentro de uma doutrina onde a vontade geral se con­
sidera suprema, e onde a lei aparece como formulação perfeita
da generalidade, da impessoalidade e da oportunidade. O con­
trato rousseauniano, aliás utilizado no esquema explicativo do
genebrino cómo pura hipótese, ou como um dado lógico, é
uma espécie de prólogo de uma ação da qual a lei, através da
vontade geral, é o necessário epílogo. No “Contrato Social” ãs
alusões à lei estão, sobretudo, nos Capítulos XI e XVII do
livro III, mas já no inquietante “Discurso sobre a origem da
desigualdade entre os homens” ROUSSEAU havia feito o elo­
gio das leis e de seu jugo salutar e doce.6
A idéia de subordinar o executivo ao legislativo, como fór­
mula impessoalizante, foi propugnada por ROUSSEAU de
modo. coerente com sua visão da lei como “expressão da von­
tade geral” e como norma infalível. A legislação para ele era,
portanto, expressão dá própria soberania nacional. Soberania
nacional, e vontade geral se realizavam através da lei. E por
sua influência os homens da Revolução Francesa identificaram
a lei com a Razão; identificaram-na com a Nação. O abade
SIEYÈS, o grande teorizador do Terceiro Estado e do Poder
Constituinte, desenvolveria em sua hora um conceito tipicamen­
te legalista de nação: “um corpo de associados que vivem sob
uma lei comum e que são representados pela mesma legisla­
tura”..
O liberalismo se generalizou como ambiente mental em
que os requisites de discussão e deliberação, feitos essenciais,
apareciam implicitamente como critérios de valor da própria

6 J; J. R O U SSE A U , D u Contrat Social, ou Principes du D roit P olitique,


com outras obras, Garnier, Paris, 1954. A respeito, o livro exaustivo de RO**
B E R T D E R A T H É , / . }. R ousseau et la Science P olitique de Son Tem ps, cit»,
Cap. V.

54
vida social, e ao mesmo tempo como preparadores ou elabo-
radores da lei. A vida social é a pròpria objetividade (neste
ponto ROUSSEAU antecipa pensadores do século XIX); a lei
é também objetividade, impessoalidade, e é também raciona­
lidade, isenção de paixões. A tolerância, valor “ilustrado” do
século XVIII, que no liberalismo chegaria a fundar a idéia dos
partidos, não está porém presente em ROUSSEAU. Ela se
consolidou por outras vias. Em grande medida, eram as con­
veniências burguesas, tão estudadas e invocadas por sociólogos
e historiadores. As mesmas conveniências que cercaram a pro­
priedade de cuidados e de garantias jurídicas. Para GROE-
THUYSEN, o novo direito privado, oriundo da Revolução, se
fundou. em dois lastros : o direito romano e a instituição da
propriedade. Assim como o direito público se teria fundado
sobre o direito natural.7
O jusnaturalismo, apesar de ser em princípio e em essência
uma tentativa de apontar para algo superior ao direito positivo;
e destarte exterior a ele, foi, enquanto convicção, uma espécie
de “fonte” para os ordenamentos pós-revolucionários. Daí ad­
vieram várias conseqüências doutrinárias, inclusive para a teoria
constitucional. A “superioridade” das normas constitucionais
(e sobretudo das declarações de direitos) sobre as chamadas
normas ordinárias, por exemplo, já foi explicada como trans­
posição, para o direito público positivo, da idéia clássica de um
direito natural superior ao direito estatal, ou elaborado.8
Há também que mencionar o estatismo, oculto no próprio
liberalismo. Desde a criação do Estado moderno que se de­
senvolveu a tendência histórica a uma junção entre o político
e o estatal, pois o Estado absorveu os demais centros de poder.
A teoria da soberania, núcleo da tematização política em di­
versos momentos clássicos, completou-se à época liberal com
a teoria dos poderes do Estado. A lei, mesmo para os liberais
maiores, emanava da soberania, e portanto se ligava ao poder
do Estado. O direito, cada vez mais entendido como um “or­
denamento”, correspondia a um problema dos órgãos do Estado

7 B E R N H A R D G R O E T H U Y S E N , Philosophie de la R évolution Française,


ed. Gallim ard, P aris, 1956.
8 A FONSO A RIN O S DE M ELO FRANCO, Curso de D ireito C onstitu­
cional B rasileiro, Forense, Rio, 1958, voi. I, Cap. IV , p. 64. V eja-se também,
no caso da obra famosa de T A P A R E L L I D 'A Z E G L IO , a im portância que to­
mou no século X IX a teoria das leis (E ssai Théorique de D roit N atural Basé
sur les F à its ,-trad., tomo I, Paris, 1857, números 114 e segs. ; tomo II, números
1074 e segs.), Cf. ainda R. CALHOUN “ Dem ocracy and N atural Law" em N a ­
tural L aw Forum, Notre Dame Law School,' voi, 5, 1960.

55
— principalmente aos órgãos legisferantes. Normas e sanções
como tarefa do Estado: fora do Estado, o passado primitivo,
o arbítrio, o privatismo. E na Escola d a ,Exegese, que foi o
grande movimento científico em tomo do Código Civil francês
de 1804, houve um forte caráter legalista e também, para em­
pregar a expressão de BONNECASE, um “caráter profunda­
mente estatista”.9
Havia com efeito uma contradição entré o Estado moder­
no, Estado por excelência, e a pretensão liberal de reduzir a
um mínimo a presença do estatal no direito, como na economia
e na vida social em geral. Na ordem da realidade, a experiên­
cia do direito legal era correlata à de um direito estatal, como
disse GARCÍA PELAYO, pois agora o Estado se destacava da
vida social, comandava-a, dava forma jurídica (sobretudo legal)
às conveniências dominantes. Note-se que CARRÉ DE MAL-
BERG definiu o Estado de Direito como aquele onde “a auto­
ridade administrativa só pode usar os meios autorizados pela
ordem jurídica em vigor, principalmente pelas leis”.10
Ao passar a lei a ser expressão principal do Direito, re­
sultou que toda outra norma, não proveniente do Estado, só se
toma jurídica se o Estado a consagrar, “reconhecendo-a” ou
aplicando-a. Observe-se que isto, que certos livros mencionam
como sendo algo co-essencial à “natureza” da norma jurídica,
é apenas uma conseqüência histórica do predomínio assumido
pela lei dentro de. determinado sistema e em determinada épo­
ca. Talvez inclusive se possa ainda acrescentar a seguinte pon­
deração: a visão do direito como lei, e como obra do Estado,
é mais propícia a tomar-se como expressão de classe ( “super-
estrutura” etc. ) do que. sua visão como costume, como vida
auto-regulada da comunidade. E isto com a burguesia, que,
entretanto, sempre tendeu a negar sua condição de classe e a
se universalizar através de imagens e de valores.

* * *

9 JU L IE N B O N N EC A SE, L.école de VExegèse en D roit civil, 2." Pa­


ris, 1924, número 50, o. 148. Como um caso especial, veja-se a influencia üo
estatism o e do ju sn atu ralism o desses tempos sobre as transform ações do Di­
reito E clesiástic o ,. em L. D E LUCA, I l Concetto del D iritto E cclesiastico nel
suo Sviluppo Storico, Pàdua, 1946, pp. 22 e segs.
10 M. GARC1À-PELAYO, La Idea M edieval del Derecho, U niversidade de
Venezuela, Pac. de Derecho, Cuadernos del IE P , Caracas. 1962, pp. 49-50. CAR­
RÉ DE M A LBERG, Contribution à la Théorie Genérale de V E tat, tomo I,
CNRS, ed. Sirey, P aris, 1920 (R eim pressão), nùmero 164, p. 489. Sobre a es-
tatalidade do d ireito nos p andectistas, M IG U E L R E A L E, F ilosofia do Diretto,
voi. I, tomo II, Saraiva, São Paulo, 1953, p. 376, nùmero 16!.

56
O legalismo deve ser relacionado com a estrutura do Es­
tado liberal ocidental, não apenas pelo que este pretendeu ser
como Rechtstaat, mas também pelo fato de que nele se deu
a “positivação” da regra jurídica. O legalismo, de certo modo,
é uma máscara assumida pelo estatismo, adaptando-se ao anties­
tatismo doutrinário dos liberais. Atrayés dessa máscara, a pre­
sença do Estado parece reduzir-se à forma legal do direito,
mas em compensação esta forma se faz onipresente. A forma
política “Estado”, tornando-se dominante, deu definitivo apoio
à forma jurídica lei. Esta, em troca, deu-lhe respaldo em ter­
mos de legitimação. A identificação entre a razão “natural” e
a razão criadora de leis, operada pela Revolução Francesa, per­
mitiu que o jusnaturalismo se compaginasse com a lei positiva.
Permitiu também que o liberalismo, adverso ao Estado, se
amoldasse ao modelo legalista de normação social. O Estado
era visto, na fase ascendente do liberalismo, como uma sobera­
nia popular que se desdobra e se faz governo. Seria o legalis­
mo uma tendência ínsita naquilo que desde os romanos se cha­
ma “Direito”, ou seria uma situação a que o Ocidente chegou,
por conta de condicionamentos políticos?
Outro problema que surgiu nas franjas doutrinárias dessas
condições novas, foi o da possibilidade de contraposição entre
a “Sociedade”, de um lado, e o “Estado”, de outro: esse pro­
blema não teria podido surgir antes da época legalista. Nesta,
porém, começou a realçar-se a relação de “representação” que
devia ligar o social e o político, e isso pelo fato mesmo de co­
meçarem a parecer desligados; e o Direito, que se apresentava
com o Estado, ou no Estado, era agora, em sua forma de lei,
algo qiie se “impunha” à sociedade — o que não ocorria com
o .costume, em cuja vigência não tinha sido comum discutir a
adequação das regras aos seus destinatários, A contraposição,
latente ou efetiva, real ou em doutrina, entre a Sociedade e o
Èstado (ou o Direito), obrigaria as teorias jurídicas a am­
pliar fecundamente a sua temática, mas esta ficaria condenada
a permanentes vacilações.

2. REFERÊNCIA AO PENSAMENTO JURÍDICO

Mas o que importa é que, com as mudanças institucionais,


aparecem novas categorias do pensamento jurídico. Firma-se,

57
por exemplo, a distinção entre direito e moral, feita desde então
sobre uma idéia de “direito” bastante distinta da antiga 11 e
entendida como “exterioridade” para se diferenciar do “inten-
cionalismo” moral. Por outro lado, o que se poderia apontar
então como técnica legislativa ou mesmo como técnica jurídica
ficou tendo a ver fundamentalmente com estruturas de códigos
e leis. O próprio fato de haver, na experiência dos ordenamen­
tos democráticos ou pós-revolucionários de então, uma cons­
ciência de tratar-se de “regime subseqüente”, influiu sem dúvi­
da no rumo da valorização da lei. A lei aparece como expressão
verbal das projeções normativas de uma dominação nova, cheia
de pretensão à definitividade. A preocupação com a forma,
nestes novos estágios, se revela inclusive no uso de termos como
“arquitetura” (lembre-se a arquitetura da razão em Kant),
“construção” etc. O Estado, que desde o renascimento tinha
sido visto como “obra de arte”, entende-se.como algo que se
estrutura.112 Por outro lado, a velha questão das formas de
governo se redimensiona, passando-se a uma tendência dualista,
que toma o lugar das antigas tricotomías, e que se cifra inclu­
sive na distinção entre governo de fato e governo constitucio­
nal. O governo constitucional sendo na verdade montado de­
vidamente sobre leis.13

11 V eja-se o ensaio de M IC H E L V IL L E Y , "S ur L 'antique Inclusion du


D roit dans la M orale", editado com suas L eçons D 'histoire de la P hilosophie
du D roit, já citadas, pp. 147 e segs. Na verdade, só a form ação de um conceito
subjetivo de d ireito p erm itiria a distinção entre lei e direito, e sem elhante con­
ceito, como o mesmo V IL L E Y dem onstrou (no m agnífico ensaio "L es O rigines
de la Notion de D roit S u b jectif” : L eçons, pp. 249 e segs.), só aparecç pieno à
época de Hobbes. A concepção rom ana dava do jus uma idéia m uito ampla. E
m ais, a concepção moderna tendeu m ais a ser ciencia de textos que a rom ana,
por não ser, como esta, uma arte do justo (V IL L E Y , pp. 65-66),
12 P ara o estudo do reflexo da coisa no nosso caso nacional, T H E O P H IL O
C A V A LC A N TI F IL H O , "A Influência das Idéias Ilum inistas na E struturação
do E stado B rasileiro ” , em R evista B rasileira de F ilosofia, voi. X III, fase. 51,
SSo Paulo, 1963, pp. 319 e segs.
13 Ver MARCO T U L L IO Z A N 2U C C H I, Istitu zio n i di D iritto Pubblico,
M ilão, Giuffrè, 1948.

58
IV
CONSTITUCIONALISMO
E PRIMEIRAS
CONSTITUIÇÕES

1. ¡LUMINISMO. REVOLUÇÕES. CONSTITUIÇÕES

Quando se fizeram as revoluções demoliberais, cujo pro­


tótipo ficou sendo a francesa, a consciência política ocidental
já vinha correspondendo desde o século XVI, mais ou menos,
a uma organização estatal centralizada. Esta tinha sido a so­
lução do problema da unificação nacional, desde as lutas entre
a tendência absolutista e a centrifugação feudal; e daquela so­
lução viveram os governos monárquicos desde a instauração do
Estado “moderno” nacional e burocratizante. Esse processo de
centralização e estatização foi caracterizado em vários planos:
criou exércitos nacionais permanentes, erário nacional com or­
çamento unificado, administração central etc.1 E com esse pro­
cesso estavam conjugados, na sua fase de instalação e na de
apogeu, vários outros processos complementares, como fossem:
revivescência do ideal imperial,2 ligada em alguns lugares à

t Para o aspecto administrativo e financeiro» v. a ampla e excelente expo­


sição de F. SAINZ DE BUJANDA, Hacienda y Derecho , Madrid, 1955, Cap.
VI, secção V. Sobre a posterior oposição de' Tocqueville às centralizações, v.
J, J. CHEVALLIER, L es Grandes O euvres P olitiques, de M achìaveì à nos Jours,
A. Colin, Paris, 1950, p. 241. No Os Donos do Poder , de RAYMUNDO FAORO
(Globo, Porto Alegre, 1958, pp. 33 e 34), a centralização monárquica lusa é es­
tudada, em conexão com a codificação e como resultado da idéia de soberania,
em seu9 efeitos sobre a colônia brasileira no século XVI , Merece ressalvar-se
apenas que o caso então não era bem ainda de "codificação”, correspondendo
mais as ordenações às redações de costumes que por toda Europa se iam fa­
zendo, com o acréscimo, embora, de "praxes” e "estilos” forenses.
2 Cf. R. MENENDEZ PIDAL, Idea Im perial de Carlos V (e outros en­
saios). Col. Austral, 5.a ed., 1963. E, pendurados a ele, os estudos de H. J.
HUEFFER ("Die Mittelalterliche Spanische Kaiseridee") e J. A. MARAVALL
("Sobre ele Concepto de Monarquía en la Edad Media Española"), em E studos
Dedicados a M eocodez Fidai, tomo V, Madrid, 1954-

59
“recepção” do direito romano;3 consolidação do sentimento de
diferenciação nacional; laicização do poder político; e sistema-
tização da economia.
Mas, do ponto de vista cultural, o mais representativo
“fundamento” das novas formas políticas e jurídicas ficou sen­
do o ideário geral do século XVIII, o iluminismo, que tem sido
objeto de variada e infindável literatura. Deísmo, racionalis^
mo, geometrismo político,4 fundamentação aprioristica de valo­
res e formas institucionais, dentro da versão racionalista da
teoria do direito natural, tudo movido por um risonho otimis­
mo recomeçador, apesar de outros aspectos.5
Foi a época dos aplausos às primeiras constituições.6 O
liberalismo revolucionário assumiu assim a tendência a pautar
o ordenamento sobre o elogio da lei, alimentando-a com o se­
guimento de sua experiência. Encontra-se um legalismo implí­
cito ou explícito entre os grandes expoentes do pensamento
constitucional de então,7 e ãs “declarações” revolucionárias de­
notam claramente a mesma tendência.8

3 (V. atrás, nota 13 do capítulo I I, 2.a parte.)


4 Cf. M A RCEL P R É L O T , P récis de D roit C onstitutionnel, P aris, 1948, nú­
mero 43 (o "cartesian ism o ” da atm osfera intelectual da Revolução Francesa, p.
58). Tam bém o § 5.° do já citado La Idea de Principio en L eibniz, de O R T E ­
GA (atrás, nota 19, Cap. II, 2.a parte).
5 Quer dizer: nem tudo era racionalism o, nem m usical otim ism o. Também
perpassou, então, um certo augurio inquieto. Sobre esses aspectos, PA U L HA­
ZARD, E l Pensam iento Europeo en el Siglo X V I I I , trad. J. M arías, M adrid,
1946, parte I I I .
6 V. o histórico de É M IL E BO U TM Y , Etudes de D roit C o n s titu tio n a l,
France-Angleterre-É tats Unis, 5.a ed.,., P aris, 1909. Um elogio persistente e um
tanto tardio da C onstituição N orte-am ericana se acha ñas obras de LABOU-
LAYE, tanto nos três volumes que dedicou aos E stados Unidos, como no ensaio
“ L'Am erique et la Révolution F ran çaise” incluindo em seus Éiudes M orales et
Poliiiques. P aris, 1863, pp. 279 e segs. Sobre a idéia da "lei todo-poderosa" du­
rante a Revolução, G R O E T H U Y S E N , pp. 244, 246 e segs.
7 P ara o caso de R O U SSE A U , v. nota 6, cap. I I I , 2.a P arte. P ara PAUL
JA N E T , M ontesquieu nào loia um iegañsta, vez que 'p la c e ie juste p :u n u ii
et éternel avant le ju st legal, et fait dériver celui-ci de celui-lá" (M O N T E S ­
Q U IE U , E sp rit des L ois,' Livres I-V , P aris, 1917, Introd. par P. Janet, p. 9).
Já para GEO RG ES G U R V IT C H (Sociología del Derecho, trad. A. R. Vera,
Rosário, 1945, p. 87) ele teria sí-o legalista no sentido até de um positivism o
jurídico. Quanto .ao caso espanhol e respectivos textos, cf. L. SANCHEZ
AGESTA, H istória del Constitucionalism o Español, IE P , M adrid, 1955, pp. 71
e 72.
8 Assim, na clássica- “ D eclaração dos D ireitos do Homens e do Cidadão”
de setembro de 1791, artigòs 4, 5,. 6, 7, 8, 9 e 10. No artigo 6, a famosa
fraso rousaeauhiana de que a- lei é a. expressão da vontade geral, e m ais: “ tous
les citoyens ont droit de coricourir personnellem ent, ou par leurs répréséntants,.
à sa form ation” (textos em L O U IS T R IP IE R , C onstitutions qui O nt R ègi Ia
France depuis 17S9, Conférées entre E lles et A nnotées, P aris, 1872). Convém
notar que, nestes textos, as referências à lei aludem a _toda lei, a toda cons­
tituição ou a qualquer outra, ao passo que nas constituiçoes^posteriores o termò
lei passa a m encionar as leis que com pletam a constituição no sentido geral
do ordenam ento, ou seja, as leis posteriorm ente cham adas ordinárias.

60
Refez-se o conceito de constituição. A palavra, que tinha
outro sentido nos usos antigos, assumiu dignidade nova. Con­
sagrou-se o seu sentido formal, que a doutrina e a didática
desde então tiveram de cultivar como “propriamente dito” e
distinto do “material” ; e toda uma teoria das constituições veio
daí, com referência a estrutura, tipos e tudo o mais.9 E en­
trou em cena a teoria do Poder Constituinte, visto sobretudo
desde SIEYÈS como base de uma legitimação positiva dà so­
berania nacional autofornecedora de constituições.101 A coisa
vem sempre em termos de leis: leis constitucionais sobre leis
ordinárias.11

2. O ESTADO DE DIREITO E OS PARLAMENTOS

A estrutura política que abrangeu e ordenou tudo isso fi­


cou conhecida-como “Estado de Direito”.12 Sua primeira toma­
da de consciência foram essas teorias liberais do direito, e a
doutrina subseqüente caracterizou q Estado como autolimitadc
pelo direito. Mas esse direito era a lei, ou assumia a forma de

9 E SM E IN vê na d istinção entre leis constitucionais e ordinárias um pro­


duto da concepção dom inante na civilização ocidental (É Jém ents. cit. à p. 25;
sobre a continua fixação da p rática e da teoria das constituições escritas, o
Cap. V do T ítu lo I I da P arte I, pp. 468 e segs.). E ssa idéia de constituição
corresponde m ais ou menos ao conceito que CARL S C H M IT T chamou "ideal",
caracterizado concretam ente pelo sentido liberal-burgués das garantias que en-
feixa (Teoria de Ia Constitución, trad. Ayala, M adrid. . Secçao I, § 4.°).
P ara uma exposição da tipologia dos conceitos de constituição ver M. GARCIA«
-PELA.YO, Derecho Constitucional Comparado, ed. Rev. de O ccidente, 2.* ed.,
M adrid, 1951, Capítulo II.
10 SIE Y È S, Qué es el Tercer Estado? T rad. Ayala, B. A ires, 1942. Sobre
O afastam ento do modelo inglês na enfatização do racionalism o, P A U L BA S­
T ID . em seu enorme livro. Sieyès et sa Pensée, M achette, 1939. pp. 404 e segs.,
e tam bém G R O E T H U Y S E N , Philosophis, citado, p. 243. M ais sobre o tem a
em nosso O Poder C onstituinte (tese), Recife, 1957, passim . De resto, esse
èaráter "m aio r” da constituição está vinculado ao sentido político de suas
norm as, distinguindo o trabalho de sua elaboração - da de um código ordinário.
11 Cf. notas 5, cap. I l l , 2.a parte, e 8, cap. IV , 2,a parte. Em conexão,
viriam os problem as da reform a da constituição (ligado ao dos "tip o s” e à
idéia da flexibilidade ou da .rig id ez) e do controle da constitucionalidade das
leis, em função do parâm etro constitucional e com vistas à unidade do orde­
nam ento.
12 ARTURO E. SAMPAY, L as Crisis dei Estado de Derecho L iberal B u r­
gués (Losada, B. Aires, 1942, cap. I, p.. 43) alude ao "específico form alism o
leg alista” do E stado de D ireito, relacionando-o com a tendencia deísta a
confiar em regularidades m ecánicas, mas sem desenvolver ali a análise dos
supostos de seu aspecto jurídico. P ára outras análises, v. a P arte I I I , cap.
11, da obra de R E N £ MARCIO, Von G esetzesstaat zum R icfitersstaat, ed.
S printer, Viena, 1957.

61
lei que era já o atributo magnífico das constituições, que da­
vam alma jurídica (e portanto própria) ao Estado de Direito.
De modo que este, historicamente — como numa Aufhebung
hegeliana — , aparece operando uma simbiose daquele movi­
mento centralizador, mencionado acima e existente desdé o ab-,
solutismo, com o ideário liberal-iluminista. A hegemonia da lei,
expressão formal da criatividade, jurídica deste tipo de Estado,
refletia a dupla, situação: legisferações centrais predominantes
(na área do direito público, ora em estudo, e na do privado
com os códigos, estudados adiante),13 e cheias de intenção li­
beral. O ideal liberal era entretanto este: garantia com o mí­
nimo de Estado. E aí talvez, neste paradoxo, a semente de
crises futuras: ou porque um liberalismo verdadeiro não pudes­
se ser “definitivo”, ou porque não se coadunasse com centrali­
zação política. Isto à parte do que se entendesse por “garan­
tia”, para não falar nas crises no plano social, que aos poucos
iam chegando.14
Ao mesmo tempo, o que é muito importante, uma real
predominância política dos parlamentos, ou das “Assembléias”,
vistas como suporte do valor social maior, a vontade do povo
necessitada de representação.15 Predominância, aquela, revela-

13 Conforme lem bram os à nota 5, cap. I l l , 2.a P arte, tam bém na esfera
financeira a centralização significou legalism o. Veja-se O C T A V E N O E L , É tu ­
de H istorique de L*O rganisation Financière de la France, Paris, 1881, passim .
14 Mesmo porque, ao invés do que pretendia, a D em ocracia L iberal não
cortava am arras inteiram ente com a política, anterior; à pretensão racional de
dar estru tu ras inteiram ente novas opunha-se o fato m uito humano e m uito his­
tórico das continuidades e das perm anências. A própria lei, centro dos cuidados
político-jurídicos do liberalism o, m antiha a im peratividade que tinha sido o
traço m arcante das leis absolutistas, havendo um processo de substituição,
apenas, de soberania do rei pela da nação ou das leis desde então tom adas
com m ais ênfase (dem onstrou-o M A X IM E L ER O Y , no notável La loi — E ssai
sur la Théorie de L A uiorité dans la D ém ocracie, Paris, 1908, cap. II, p. 50,
e cap. I l i , pp. 83 e segs. ; daí, diz ele, dessa origem absolutista, m anteve o
conceito de lei a m arca de autoridade e de com ando; compare-se a respeito
P R Ê L O T , Pre'CJS cit. à p. 40, e J. COSTA, Ignorância cit. à p. 101).
15 “ Le L egislateur, diz L ER O Y , étab lissait un despotism e legai absolu:
l'ord re de ¡'A ssem blèe doit saisir directam ente la nation.1’ (op. cit. à p. 56).
Fora, já, o caso de Locke, cujo esquema, diz CARL J. F R IE D R IC H , gira em
torno do legislativo, que é centro, e que deve ser ele mesmo dividido em Rei,
Lordes e Comuns (“ Le Problèm e du Pouvoir dans la Théorie C onstitutionnalis-
te", em L e P ouvoir, Tome I, P U F , P aris, 1956, p. 44). Segundo T R E V E L Y A N ,
o que ocorreu na In g laterra do século X V III foi justam ente isso: um domínio
aristocrático em que o legislativo controlava o executivo por meio do governo
de G abinete (H isto ry oi E ngland, 5th impr., Longmans, 1927, p. 510). N ascido
e criado ó parlam entarism o, alguns autores o identificariam com a própria de­
m ocracia — Kelsen por exemplo —, por ser o regim e de representação por
excelência, e por ser essencialm ente o regim e da “opinião pública", conceito
que os ingleses, desde Bagehot e Dicey, tanto valorizaram .

62
da inclusive no pleito por uma “separação de poderes”.16 E
completando tudo, a marcha da democracia, no dilema entre
ter de ajustar as leis a cada passo às necessidades sociais, e ter
de fixar linhas jurídicas seguras e permanentes.
Temos assim o fenômeno histórico chamado constitucio­
nalismo 17 como um dos lados ou elementos do legalismo: pre­
domínio da lei na parte do direito referente ao alicerce do Es­
tado. Omissão e exclusão, já bem claras e completas, de toda
•outra-..forma de expressão do jurídico para as relações corres­
pondentes ao interesse da nação. A essas alturas somente o
“legal” poderia exprimir corretamente as validades políticas, e
só ele dava suficiente objetividade e certeza ao que se pudesse
“saber” como direito público — quer no sentido positivo quer
no doutrinário. \
Lembre-se finalmente, dentro da época, a estruturação do
tipo geral de instituições judiciárias que ficaria sendo o do Es­
tado contemporâneo.18

16 O poder que principalm ente se preservava contra o alcance do so­


berano era o legislativo. E neste ponto o modelo continental foi diferente do
que ficou sendo feito na In g laterra (cf. W . ÍV O R JE N N IN G S , The law and
the C onstitution, Univ. of London Press, 5th ed., 1959, §§ 2.° e 3.°). V. ainda
nosso “ Separação ds poderes: reflexão sobre a perm anência do problem a", em
R evista de D ireito Público e Ciência P olítica, Fund. Getúlio Vargas, Rio, Voi.
VI, n.° 1, 1963, pp. 73 e segs.
17 P ara F R IE D R IC H (cit. à nota 15, cap. IV , 2.a P arte), o constitucio­
nalism o se apresenta basicam ente como urna forma de divisão de poderes. É
de observar-se, entretanto, que com o novo entendim ento da questão do poder,
que o constitucionalism o traz, vera outro traço seu, o da obrigação formal para
cada E stado de “ter constituição" (o famoso § 16 da Declaração francesa de
1971),. e justam ente o conceito liberal de constituição enfeixava o elemento
"poderes” e o elem ento "declarações de d ireito s"; os poderes, portanto, con­
cebidos em com binação com a salvaguarda dos . direitos, que eram liberdades,
num sistem a geral de garantias formais. Daí a existência, nas constituições
de duas “ p artes”, que alguns autores de hoje chamam orgânica e dogmática,
respectivam ente a parte dos poderes (e órgãos) e a das declarações em geral.
18 Um ponto de vista m uito amplo, situando e caracterizando “ tribunais"
em tempos prim itivos, em D IA M O N D , L 'E vo lu tio n de la Loi et de VOrdre
cit., pp. 60 e segs. — A concepção revolucionária francesa inicial era, como
se sabe, a de que deve haver juizes só para aplicar a lei sem mais. Sobre
a sua transform ação, pela função dos tribunais, v. CARRÉ DE M ALBERG,
Teoria General dei E stado, trad. J. Deprete, FEC, México, 1948, número 243, pp.
664 e segs. Para a parte da Revolução F rancesa na criação da Cassação, v. a
obra m agnífica de CA LAM ANDREI, La Cassación C ivil, trad. S. Santis Me-
lendo, Buenos Aires, 1961, tomo I, volume 2. R eferências ligeiras em M.
R O U S S E L E T , H istoire de la Justice, PU F, P aris, 1968. Aqui caberia o pro­
blem a da origem judicial dos parlam entos posto, sobretudo, para o caso inglês,
em face do famoso livro de MAC IL W A IN , The High Court oi Parliament
and its Suprem acy: ver o debate do assunto no estudo de W ILL IA M HO LD S-
W O R T H sobre as “ Central Courts of Law”, incluído em seus E ssays ou Law
and H isto ry, edição de Goodhart e Hem bury, Oxford, Clarendon Press, 1946.
Caberia aqui também a questão da origem da distinção entre o direito “ subs­
tantiv o " e o adjetivo ou processual.

63
3. O CASO BRITÂNICO

Agora, veja-se, o legalismo publicista fica reconhecido co­


mo característico dos ordenamentos ocidentais na fase em que
os põem as revoluções demoliberais burguesas. Mas nem tudo
aí é uniformidade absoluta. Há por exemplo as diferenças que
dão à história jurídica inglesa uma face peculiar.
A tentativa de reduzir a história do direito inglês a um
esquema simétrico é, aliás, visível em certos expositores quando
ordenam as chamadas “fontes” do direito inglês distinguindo
as cartas, os “statutes” e o “common law”.19 Essa história tem,
como se sabe, um trajeto peculiar, desde sobretudo os séculos
XII e XIII — anotando-se habitualmente o fato de não terem
os ingleses tido “recepção” do direito romano 20 — , até os atos
das revoluções antiabsolutistas e os progressos do direito elei­
toral contemporâneo.21
Com isso fica registrada, para o consenso geral, a diferen­
ça infranqueável entre o sistema do direito britânico e o conti-
19 Ver R O D O L F O B L E D E L , Introducción a/ E studio del Derecho P ú­
blico A nglossajón, Lepalme, B. Aires, 1947, P arte I, § 4. P ara D ICEY , a dis­
tinção entre cartas e estatutos não seria substancial (B L E D E L , p. 20). V.
também o cap. V do livro de R U P E R T CROSS, .Precedent in E nglish Law
Oxford at the Clarendon Press, 1961. Sobre o tema, v. ainda a obra famosa de
0 . W E N D E L L K O L M E S, The Common Law , passim (cf. reim pressão de Bos­
ton, ed. L ittle Prown, 1945). P ara o problem a da "onipotência” do p arla­
mento inglês no século X V I, ver a opinião de GOUCH em seu já citado
Fundam ental L a w , p. 7. A respeito, nota-se que ora se fala do "common law ”
como de um a p arte do d ireito ingles, a que consiste no conteúdo da ju risp ru ­
dência, tecida sobre base costum eira, ora como do próprio conjunto desse di­
reito, como um sistem a integralm ente peculiar (neste sentido, RO SC O E PO U N D ,
“ Common Law ”, em Encyclopaedia of the Social Sciences, 1935, voi. IV , ab
in itio : “ Used in its broadest sense, the common law is the legal system of E n­
gland and most E nglish speaking lands” — p. 50). V. tam bém J. CASTAN
T O B E R A S , L o s S istem a s Jurídicos Contemporáneos del Mundo O ccidental, 2."
ed., Reus, M adrid, 1957, p. 82.
20 KO SCH A K ER , para quem o direito romano foi especialm ente um “ d i­
reito de ju ristas* , isto é, direito vinculado a uma profissão forense, observa que
a distinção inglesa entre common law e statutory law pode ser com parada à
distinção entre d ireito de ju ristas e direito legal (p. 154, nota 33). Paralelo
sem elhante em PO U N D , The D evelopm ent, cit. às pp. 10-11 (“ english law was
a law of the courts, a law of the lawyers and ju d g e s ... The law of the Con­
tinent was a law of the universities, a law of professors” ) A com paração mo­
delar ficou sendo, todavia, a de BUCKLAND e MAC NAIR, Roman L aw and
Common L aw — a comparison in outline, ed. Cambridge, 1936 (V. princ. o cap.
1, sobre as fontes). P ara a discussão do suposto rom anism o de BRACTON,
MAC IL W A IN , Constitucionalism o, cit. à p. 83 e segs. — Sobre a decorrente
ausencia de "poder co n stitu in te” no D ireito Inglês, CARRÉ DE MAJLBERG, cit.
ì p. 1 211. Ausência, igualm ente, da fam igerada distinção entre o direito pú­
blico e o privado: cf. H. K E L S E N , Teoría General del E stado, ed. Labor,
1934, § 17, p. 118.
21 Além de outras obras já citadas, ver TH O M A S. E R S K IN E MAY, H is-
toire C onstitutionnelle de T Angleterre, trad. C. de W IT T , tomos I e II, Paris,
ed. Michel Lévy, 1866, além do modelar Law in the M aking de CARLETO N
K. A LLEN , 7.“ edição, Oxford, Clarendon Press, 1964,

64
nental apesar de que na parte “pública” estão ambos marcados
pela obra de revoluções fundadas no espirito iluminista, bur­
gués e liberal,22
A mencionada diferença é importante e deve ser tida em
conta, tanto mais que mesmo o conteúdo das “declarações”
inglesas foi já diferenciado do das outras.23 Pode-se interpretar
inclusive a posição de COKE, no século XVII, enfatizando a
competência constitucional dos juízes, como. uma posição em
que o direito em geral (e não a lei em especial, como seria de
certo modo com a soberania do parlamento) se tinha como su­
premo: o direito cujo entendimento e cuja aplicação cabia aos
juízes. Ela não deve, porém, ser de modo algum exagerada.
Há semelhança cultural entre o padrão inglês ' e o continental,
suficiente para que se possam reconhecer certos denominado­
res comuns para o caso.24 Muitas das diferenças entre a ciência
jurídica britânica e a continental correm mais à conta da língua,
do padrão intelectual e do temperamento nacional, do que de
peculiaridades do direito em si. COGLIOLO, há muito tempo
e acertadamente, observou que o case law britânico é “uma es-
22 No plano constitucional, os E E U U se incluem no tipo continental.
V eja-se E. LA BO U LA Y E, H ist, des Ê tats-U nis, em 3 vols. (Les colonies avant
la revolution, La guerre d erindèpendence. La C onstitution), nouvelle, éd. 1891 e
OSCAR STR A U S, L es Origines de la Forme R épublicaine du Gouvernement
d aos les Í ta ts - U n i s d ’A m érique, trad. Couvreur, 1890; TH O M A S M. C O O LE Y ,
The General P rinciples oi C onstitutional Law oí the U nited S ta tes oí A m erica,
Boston, 1880.
23 Assim JE L L IN E K , no célebre ensaio a respeito (L a déclaration des
D roits de L 'hom m e et du Citbyen, trad. G. F ardis, P aris, 1902), disia que, na
concepção inglesa, não se acentuam direitos para o indivíduo, sim deveres para
o governo (p. 51), os quais não são expressos em lei como obra duma razão
eterna, como no caso francês, m as m antidos dos an cestrais; e que na base d is­
so está a idéia da lei como regra que une em contrato o governante e o povo,
idéia vigente na vida p olítica germ ânica desde os inícios (p. 52 e ségs.) H a ­
via, patentem ente, intenções políticas nesta interpretação, que é realm ente para
ser relativizada. Na P etition oí R ig h t de 7 de junho de 1628, apresentada ao
rei pelos nobres, o últim o item d izia: “ All wich they m ost hum bly pray of
your Most E xcellent M ajesty, as T heir rights and liberties according to the .
law s and sta tu tes of this realm ” (cf. texto em S. R. G A R D IN E R , The C onsti­
tutional D ocum ents of the P uritan R evolution, 1625-1660, 3.B edição reim pressa,
Oxford, 1962, p. 69, grifos m eus). Uma interpretação diferente é a de MAR*
CAGGE, L es Origines de la Déclaration des D roits de VHornme de 1789 (P a ­
ris, 1912, 2.“ ed.) rem etendo as influências aos fisiócratas.
24 Algo equivoco, o pronunciam ento de RE N É D A V ID , segundo o qual "ce
qui oppose fondam entalem ent droit français et droit anglais, dans la thèorie gé-
nérale des sources du àroit, c'est la conception differente que, des deux côtés de
la manche, on entretien t de la loi écrite et de son role ( . . . ) . La conception
anglaise de la loi répose sur un sentim ent on un préjugé qui s'explique par
l'histoire : la common law est considerée comme le bastion des libertés anglaises,
alors que la loi écrite, par les possibilités d 'arb itra ire qu'elle com porte, risque
facilem ent d 'ètre l'arm e de 1» tyranie" ( Traité Élém entaire de D roit C ivil Com­
paré, P aris, LGDJ, 1950, p. 302). Preferível FR IE D M A N N , segundo o qual
"the difference between the continental and angloam erican system s and m ethods
of law h a s ... been g reatly exagerated and obscured the fact th a t the real clea­
vage is between political and social values, not between legal techniques" ( L e ­
gal Theory, ' London, 1944, preface, p. IV ).

65
pécie de código sob outra forma.25 Na verdade, o mesmo
lastro cultural ocidental modela a concepção do direito inglês
e sua relação com o saber jurídico.

25 FU. del D. P rivato, cit. p. 66. Na mesma direção, PO LL O C K manda


preferir o term o case-law ao unw ritten law (op. cit. à p. 169). Já BRACTON,
no século X I II , tinha advertido que, embora na In glaterra fosse o direito funda­
do nos costum es, podiam -se cham ar de leges as leis inglesas mesmo não escritas
(MAC IL W A IN , cit. à p. 86). Por isso mesmo resulta um tanto falho cham ar
o sistem a ingles de d im ito costum eiro, sem mais, como de certo modo faz ED.
L A M B E R T , em seü livro maior, La Fonction du D roit C ivil Comparé, tomo I,
P aris, G iard & Brière, 1903, p. 173 e segs.

66
V
CODIFICAÇÕES E
APOTEOSE DA LEI

1. CONDIÇÕES HISTÓRICO-CULTURAIS

O fundamento teórico do trabalho codificador se nutriu


do ideário universalizante e individualista do iluminismo —
universalizante nas imagens culturais solidárias com uma cada
vez mais ampla visão científica do mundo; individualista nos
compromissos sociológicos e na atomização política e pedagó­
gica. Não se tratava, é claro, de um trabalho sem precedentes,
pois a tarefa de “codificar” tinha exemplos históricos frisantís-
simos, não só os mais remotos na antigüidade e mesmo no
Oriente, como também outros mais próximos na Idade Média
e no período absolutista europeu. Este ponto aliás mereceria
uma investigação demorada.1 Tratava-se (como em outros pla­
nos em que o modo de pensar iluminista aparentava recome-
ços e demiurgias racionais) de tomar a idéia de código numa
versão nova, em que se tentaria a tarefa de regular relações
jurídicas em sentido sempre geral e abstrato, encarando-as
como tipos ideais correspondentes à essência do jurídico mes­
mo: em suma, o jurídico2 tendia a ser entendido em função do

1 P ara o tema, W IE A C K E R , H istória, citada, partes II e I I I . Com mais


detalhes, J. V A N D E R L IN D E N , L e Concept de Code en Europe O cciden­
tale du X I I I au X I X Siècle — E ssai de D éfinition (B ruxelas, 1967). Ver ain­
da GALVAO D E SOUSA, A H istoricidade do D ireito e a Elaboração L egisla­
tiva, São Paulo, 1970, Capítulo IV . Sobre a u tilÍ 2 ação de textos e com entários
na p rática forense do começo do século X V III, BIA G IO BRUGI, “ Nello studio
di um avvocato del settecento”, em Per la Storia della Giurisprudenza e delle
U niversità Ita lia n e — N uovi Saggi, Torino, U T E T , 1921, p. 170 e segs.
2 Assim, na Introduction do Código Napoleão, se dizia ser a justiça a con­
formidade de nossas ações à lei, a jurisprudência à ciência das leis, e do direito
se dizia que, ou significava a jurisprudência, ou se form ava pela lei mesma, por

67
acesso que dava à lei. E a tarefa de codificar foi então obra
do racionalismo dominante, traduzido no ideal de reduzir a for­
mas previstas todos os casos possíveis de relações; dando, de
resto, a tais relações, um tratamento jurídico solidário (quanto
ao conteúdo) com os valores então consagrados pela ordem po­
lítico-social. Por outro lado, o jusnaturalismo, que em outros
momentos de sua história esteve contra a lei positiva *34, vinha
agora aprovar a esta e reforçar o prestígio da idéia de lei* Esta
união da concepção jusnaturalista com a idéia de lei geral po­
sitiva teve um de seus medianeiros no conceito rousseauniano
de lei como expressão da vontade geral: esta vontade geral era
uma categoria metafísica em atuação proscênica no drama re-

ser jus, de jussum , um “ commandement"*, enfim, o direito seria uma “ faculté


accordée par la lo i”. — Para E U G ÈN E G A U D E M E T, o legalism o nasceu m es­
mo com o Código francês de 1804: “ c'est après lui seulem ent qu'on a posé en
principe que tout le droit est dans la lot“ (L ’Interprétation du Code C ivil en
France D epuis 1804, Bàie — P aris, B asler Studien zur Rechtsw issenshaft, 1935,
p. 9). Sobre o assunto, ver tam bém JO S E F E SSE R , Princípio y Norma en la
Elaboración Jurisprudencial del Derecho Privado, ed. Bosch, Barcelona, 1961,
Cap. IX, princ. p. 187.
3 Um dos pontos de referencia é o famoso Capítulo V II do livro V da
Ética, a Nicómaco, de A ristóteles, em que pretende distinguir “ na ju stiça civil
e política o que é n atural e o que não o é", e mais, “entre o justo legal e o
justo absoluto" {Moral, a Nicóm aco, trad. P. Azcárate, 4.a ed., A ustral, B. Ai­
res, 1952, pp. 168 e 169). A ju stiça natural é physikon, a legal nom ikon, e da
distinção entre am bas parte o texto do capítulo (cf. a edição bilingüe com trad,
de Jean Voilquin, É thique de N icom aque, G arnier, 1940, pp. 226-227). Outro
ponto,* a passagem da “ A nttgona" de Sófocles (versos 450-457) em que se opõem,
às leis hum anas, as leis “ não-escritas e im utáveis vindas dos deuses, que são
eternas, não vêm de hoje nem de ontem e ninguém sabe quando surgiram "
(apud j. B O IT E L e E. JO L IV E T , L es L ittéra tu res A nciennes, extraits traduits,
Paris, 1907, p. 114). Ver também G. SA B IN E , H istória, cit. às pp. 39-40. Para
os com entários filológicos ao texto, v. a edição italiana A ntigone, com notas de
P. CE SA R E O , T orino s.d., pp. 68 e 69. Veja-se ainda o ensaio de F. P O L ­
LOCK, “The history of the law of nature", nos E ssays citados à nota 29 (e do
qual há um resumo, in titulado “ La continuità du droit naturel", nos A nnales do
Congresso de H istó ria, em P aris, 1900: 2e section, H ist, comparée des In stitu ­
tions et du droit — A. Colin, 1902, p. 109). Finalm ente, o m agistral E l Pro-
Mema del Derecho N atural, de E R IK W O L F , trad. M. E ntenza, ed. A riel, Barce­
lona, 1960, e tam bém A. SA N CH EZ D E LA T O R R E , L os Griegos e el Derecho
N atural, ed. Fac. de Derecho, M adrid, 1957.
4 Cf. G R O E T H U Y S E N , loe. citado à nota 8, Cap. I I I , 2.a parte. Por seu
turno R O SC O E PO U N D , tratando dos séculos X V II e X V III, escreve que tan ­
to os juízes como os legisladores e tratad istas se guiaram pela teoria do direito
natural para resolver os problem as m ediante uma versão ideal da ordem social
concreta vigente, e, destarte, “ la teoria del derecho natural como doctrina ju­
rídica fué, originariam ente, urna teoria legislativa o de creación del derecho"
(interpretation oi L egal H istory, trad. esp. por J. P. B rutan com o desgarrado
titulo de L a s Grandes T endencias del Pensam iento Jurídico, A riel, Barcelona,
1950, Cap. I, pp. 10 e 11). ROG RON, na Introdução de suas “ Repetições", de­
finindo a lei e o direito, chega a escrever que as leis positivas se distinguem da
moral, que é o mesmo que o direito natural, e chega a afirm ar: “ Philosophique-
ment, le droit n'est pas Toeuvre des hommes; les legislateurs hum anis ne le
créent point. C 'est un principe anterieur et prééxistent, general, absoíu, im-
prescritible et invariable, parce qu’il tire sa source de la nature même de
rhóm m e, qui ne .change jam ais” (R epétitions È vite s Sur le Prem ier E xam en
du Code Napolé.on, tomo I, 6.a edição, A. M aresq, Paris, 1861, pp. 2 e 3). —
Só depois, com o advento do positivism o legal, voltaria a idéia de direito naturai
à posição de “ contraste" com o positivo, aliás uma posição m ais adequada ao
seu papel histórico.

68
volucionário, e veio a dar na crença de que só está expressão,
a lei, era pròpria da vontade geral. Por este tempo, também,
a idéia de natureza era tomada pelos enciclopedistas 5 como a
mesma base das leis em sua necessidade de adequação aos fatos.
Poder-se-á notar, de resto, a importância da noção de lei na
teoria moral que se desenvolveu então.6 Assim, na legislação
constitucional e na civil, a figura da lei ficou sendò a expressão
por assim dizer mais respeitável e mais aceitável, senão a úni­
ca do jurídico; e fundamentava como valor e como forma as
considerações que se fizessem sobre o direito.7 Consumado o
triunfo da idéia da lei e caracterizada sua primazia como for­
ma inteligível da norma jurídica, irremediavelmente se enxota­
va o direito costumeiro para o segundo plano — de onde o
levante anticodificador da Escola Histórica Alemã tentaria de
certo modo tirá-lo para devolver-lhe a perdida dignidade,
mas com êxito restrito e passageiro. Viriam, então, os progres­
sos da técnica legislativa, junto com novas experiências políti­
cas e novas configurações da vida parlamentar. Os progressos
da técnica legislativa, geralmente ligados à problemática elei­
toral e tributária, por um lado, teriam de ser solicitados, por

5 Em M O N T E S Q U IE U , a famosa definição das leis no .capítulo inicial do


D e l’E sprit des L o is: “ Sont les rapports n¿céssaire 9 qui dérivent de la nature
des choses; et, dans ce sens, tous les êtres ont leurs lois" (ed. G arnier, 1871, p.
31. Aqui, corno se vê, a noção científico-natural de lei confluì com a idéia de
natureza, idéia que no século X V III recebeu um sentido m uito p ró p rio .. As
“ leis” de M ontesquieu são relações naturai9, e ao mesmo tempo serão, no corpo
de seu estudo, normas de ordem social.
6 Em KANT, por exemplo, a lei relaciona um princípio com um a vontade,
ou m elhor: a vontade livre, irei W ille, é aquela a que só a form a leg islativ a
da m áxim a pode servir de lei ( Critique de Ja Raison P ratique, trad. F. P icavet,
P .If.F., P aris, 1949, parte I, livro I, Cap. I, p. 28), de modo que liberdade e
lei prática incondicionada se im plicam m utuam ente (p. 29). Na teoria m oral
de Kant, a lei converte a ação em dever, representando-o como tal (K A N T,
P rincípios M etafísicos del Derecho, trad. F. AYALA, B. A ires, 1943, p. 31). A
ação, julgada em função da lei, devia conform ar-se a uma norma geral. <—
M A N N H EIM sugeriu que a ética de K ANT fosse v ista como m arco de passagem
dá ética racionalista, em que o lógico e o genético vinham juntos, para uma
ética mais v ital em que o problem a fosse o de ligar o desenvolvim ento e a
norma (“ El pensam iento conservador”, em E nsayos sobre Sociologia y P sicoio-
già Social, trad. F. Torner, México, 1963, p. 166). Sobre os supostos político-
-sociais do legalism o ético de Kant, F. K AUFM ANN, op c it, à nota 1, Cap.
I l l , 1.a parts, p. 141: “ El sistem a de referencia de esa correción práctica (o
do obrar segundo princípios universais) es, sin enbargo, la existencia de una
sociedad que realiza la convivencia pacífica de* los hom bres". P ara aprofunda­
mentos sociológicos, V . a conferência de F. W IE A C K E R , D as Sozialm odell der
Klassischen P rivatrechtsgesezbucher und die E ntw icklunz der m odernen G esells­
chaft, K arlsruhe, 1953. P ara outros aspectos do tem a, v. o vasto 'e valioso es­
tudo de A N T O N IO N E G R I, A lle O rigini del Form alism o Giuridico (S tu d io su l
problema delle Forma in K ant e nei G iuristi K antiani Tra i l 1789 e il 1802),
ed.: Cedam, Pàdua, 1962.
7 Daqui nascem problem as como q da “ previsibilidade” da corlduta» corre­
lata a uma certeza específica do direito (certeza só possível numa ordem leg a­
lista em sentido centralizado/unificado dentro da idéia moderna de “ ordena­
mento").

69
outro, para a legislação civil e comercial específica. Ao mesmo
tempo, apurava-se a terminologia, reexaminavam-se conceitos
e categorias. Por trás de tudo, a filosofia reelaborava o tema
do fundamento do poder e do direito, ao lado do tema da no­
ção genérica de lei.8 Sobre tais bases, positivas e doutrinárias,
se levantaria uma teoria da lei, desdobrada aos poucos em vá­
rias teorias, num corpo temático amplo e próprio.9

2. REFLEXOS NO SABER JURÍDICO

Digno de nota foi entretanto o aparecimento de novos


estilos no saber jurídico, mormente no direito dito privado, já
que o direito público demorava a soltar-se dos conteúdos de
literatura política com que estava unido e misturado. No direito
privado é que principalmente se teve estabilidade para desen­
volver a ciência em sentido propriamente “jurídico” , mesmo
porque à sua esfera correspondiam melhor certas terminologias
herdadas desde séculos. Assentou-se em pouco tempo que o
direito escrito deveria ser o padrão de toda ordem jurídica
civilizada.10 Em sentido semelhante ao que sucedeu com a De-
8 Sobre o assunto, ver G IO R G IO C A M PA N IN I, R agione e Volontà nella
L egge (ed. Giuffré, M ilão, 1965), princ. Capítulos, V I a IX .
9 Na form ação de sem elhante teoria poderíam os enxergar aspectos como ps
seguintes: 1) a diferenciação entre a lei dem ocrática e a do “ ancien regim e",
entre as quais, entretanto, como vimos à nota 14, cap. IV 2.a parte, há tam ­
bém, uma certa continuidade, tanto no prism a substancial, por onde permanece
a nota de im peratividade, como no técnico; 2) a questão da parte do legislador
e a do povo na obra de fazer a lei (tem a explorado por DON JO A Q U IN COS­
TA , em La Ignorancia del Derecho, no sentido de ensinar que a lei propria­
m ente tal não. é . ainda, a proposição m eram ente saída do legislador, mas só o
è a proposição que tenha obtido efetiva adesão do povo — idéia discutível no
plano "ju ríd ic o "), tomando-se form alm ente "legislador" como a autoridade que
dá leis, podendo até ser mesmo o "p rín cip e": na D em ocracia, a teoria da re­
presentação manda crer que o legislador autêntico é o que encarna a vontade
do povo, donde realm ente a idéia de que a lei autêntica é a que dele sai; as­
sim, aquela im peratividade aludida acima suporta uma transform ação, passando
a ser, na lei liberal-dem ocrática, expressão de uma vontade popular que^ é ao
mesmo tem po razão geral e que se dá norm as a si própria; 3) a distinção en­
tre lei e "vontade do legislador", distinção que im plica uma entificação da lei
e um a respectiva objetivação pelo ponto de vista jurídico (uma alusão à dis­
tinção, já em m omento maduro, em CARRÉ D E MAiLBERG, op. cit., pp. 643-
-644) ; 4) o caso das espécies de leis, incluindo lei em sentido form al e em
sentido m aterial.
10 Cf. atrás, nota 8, Cap. I, 2.® parte. H E IN E C IO explicou que o direito
"escrito " não significa fo co sam en te o "traçad o em letras", pois há direito pos­
to em letras que é não-escritc, como os costum es redigidos; e há direito não
postó em letras que é direito escrito. O que. define o direito escrito, segundo
ele, é a prom ulgação (Preleções de JO . G O T T L IE R H E IN E C IO , trad, de H.
D aperron, 2.“ edição, Recife, 1875, pp. 21-22). Neste caso, o direito prom ulga­
do é o estatal, indubitavelm ente.

70
mocracia, em cujo ideário o fato histórico da diferença entre
formas de governo se cristalizou em sistemática oposição essen­
cial, os homens que viviam a experiência das codificações ti­
veram a impressão de que elas seriam coisa perene. Fazer
transformação, e supor obra definitiva: algo como uma outra
“astúcia” da razão histórica, que também tem razões que a ra­
zão desconhece. Por outra parte, reforçou-se em sentido novo
a distinção entre direito público e direito privado,n distinção
que por sinal é historicamente própria de certos períodos carac­
terizados pela estaíização do direito.12 Com este reforço co­
meçou, no campo da sistematização teórica e no campo do
ensino, a reordenação dos “ramos” do direito. Esta referência
a ramos (oriunda talvez da idéia cartesiana de uma “árvore”
da ciência) é justamente representativa da velha visão do di­
reito como “ordem” na qual os setores de relações são enten­
didos em função do que as normas escritas lhes assinalam.13
Visão geométrica e de certo modo estática, agora renovada. E,
vale salientar, só um ordenamento completamente escrito é que
permitiria a distribuição sistemática das relações por partes tão
meticulosamente estabelecidas.14 Uma das mais importantes de­
corrências teórico-técnicas, da preocupação com a estrutura do6
códigos, foi a fixação do conceito de parte geral, peça básica,
no século XIX, da idéia de uma prevalência “científica” do
direito provado.15
11 O chanceler D ’AGUESSÈAU, em seu E s s a i D ’u n e I n s titu tio n au D r o it
P u b lic , dividiu o direito em três p artes: o direito natural, o direito público e
o direito privado (cf. reedição do bicentenário Sirey, P aris, 1951).
12 Cf. J. W A L T E R JO N E S , H is to r ic a l In tr o d u c tio n to th e T h e o ry o i L a w ,
Oxford at the Clarendon Pressi 1956, V, , p. 141. O utras discussões em nosso
artigo "D ireito Público e D ireito P rivado", em S y m p o s iu m , Rev. da Univ. Ca­
tólica de Pe., 1963, pp. 94 e. sege. V. tam bém G R O E T H U Y S E N , op, cit.,
p. 241. ! i
13 H E IN Ê C IO conceituava o direito civil, tam bém chamado “ hum ano”,
como sendo “ aquele que cada povo constituiu para si, e que é próprio de cada
cidade”, e portanto referente ao que “cada nação de per $i ordena" (P reJeçoes,
cit., p. 21).
14 H á, assim, um a m otivação doutrinária e pedagógica, outra prática, no
desdobram ento dos ram os em que o “d ireito ” e o saber “ jurídico” se foram ar­
quitetando, ambas de base legalista. Mesma a idéia de sis te m a , que atende à
pretensão de unidade do juríd ico e do| ¿aber respectivo, e ao mesmo tempo à
pluralidade dos ramos enquanto convergente para um fundam ento, consolidou-se
junto com essa experiência ordenadora e com esse processo de ordenação tex­
tual. De um certo modo, sem elhante idéia cresce desde os com entaristas m edie­
vais (W IE A C K E R , § 4: pp. 47, 143 e segs. ; K O SC H A K ER , cit. à p. 147); seu
florescim ento no lim iar da época moderna está detidam ente analisado no ensaio
de BR U Ò I, “ D alla in terp retaiio n e della legge al sistem a del d iritto ”, incluído
em P e r Ia S to r ia , cit. i nota 1.
15 A, aparição da “ parte g eral” nos códigos civis corresponde â necessidade
de colocação de c o n c e ito s b á sic o s, dentro de um ordenam ento privado todo ocupa­
do por norm as legais; uma série de definições suportando o corpo de norm as
propriam ente ditas. Sua origem doutrinária (sem aludirm os ao pioneirism o do
nosso T eixeira de F re ita s) foi a pandectística alem ã, com algum as raises ante-

71
3. OUTROS ASPECTOS

Sobre a nova experiência legislativa, a doutrina se põe afa­


nadamente a desenvolver os conceitos. Refaz-se o conceito de
interpretação, no sentido de uma nova compreensão da lei e
em função de uma nova problemática técnica. Espraia-se o re­
conhecimento da hegemonia da lei, já adotada, de resto, na
filosofia hegeliana.16 É uma hegemonia hipertrófica, que cul­
mina no século XIX. Definem-se em função da lei os valores
jurídicos primaciais, e os políticos também.17 A prática consti-
ñ o res a Puffendorf e N ettelb ladt, através de um vasto processo de construção
racionalista, tendo sido um enorme tem a típico da ciencia alem ã na segunda
metad* do século X IX ; vindo da escola histórica m as reduzido windsheideana-
mente a uma questão sistem ática, envolvendo categorias e conceitos que serviam
de ponte entre teoria e p rática (a respeito, W IE A C K E R loe. c it.; KOSCHA*
K E k , pp. 395 e s’e g s .; G IO R G IO LAZZARO, Storia e Teoria della Costruzione
Giuridica, ed. G iapicchelli, Torino, 1965). E vidente que só um ordenam ento t.d o
legislado poria a necessidade, com a estruturação de códigos, de inserir conce!'
tos na base de dispositivos legais enfeixadores de um “ ram o" do direito, pois
sem isso esses dispositivos reclam ariam com plem entações estranhas, como princí­
pios, doutrinas etc., o que era contrário à tenuência dos códigos desde a hosti­
lidade do Code francês à interpretação, e apesar das recom endações cautas, mas
literais e sobre o recurso a outras “ fontes", como viria a fazer inclusive o
Código B rasileiro, art. 4. Um ordenam ento costum eiro — à medida que
podemos im aginar isso — não teria tal problem a (mesmo o direito in­
glês não o tem, v. a observação de H. G U T T E R R ID G E , L e D roit Comparé,
trad. P aris, 1953, pp. 107*108). Na verdade, a A llgem einer T eil foi produto do
apogeu da dogm ática como forma de sabèr jurídico, e, ao mesmo tempo, pro­
duto d? concepção priv atizan te da "C iência do D ireito”, que ocasionava o tra­
tam ento civilistico de conceitos fundam entais, como lei (cf. FÓ D E R A R O , op.
cit. à nota 3, Cap. I I, 2.a p arte), interpretação, fonte etc. No direito público,
os textos m ais conceituantes que norm ativos existiam , como nas declarações de
direitos incluídas nas constituições, ou como em certos. Preâm bulos doutrinários
que iriam surgir depois, m as nunca chegaram a constituir estruturalm ente uma
"parte", ou porque os ingredientes políticos se espalhavam m elhor através dos
arcabouços constitucionais, ou porque a preocupação dos publicistas não se diri­
gia tanto a "co n stru ir" e a ordenar, mesmo faltavam -lhes certos modelos clássi­
cos que os fizessem d iscu tir o tema. — Finalm ente, como todo mundo sabe, a
tendência hoje é a elim inação da parte geral: ou por ter acabado a hegemonia
do d ireito privado (v. W IE A C K E R pp. .425 e 486), ou por novas inclinações
m ateriais e técnicas. Uma défesa, um tanto conservadora, da am eaçada parte
geral, pelo prof. G O N D IM N E T O , em A rquivo Forense, voi. X X V III, Recife,
1952; justificando a supressão, O RLA N D O GOM ES, mem ória justificativ a do
anteprojeto de reform a do Código Civil, Rio, 1963 (letra B, p. 14 e segs.).
16 H E G E L , F ilosofía del Derecho, trad, através da ed. Messineo, B. Aires,
1937, parte I I I , §§ 211-214 (o direito como lei). P ara Hegel, efetivam ente, a
obediência à lei era a forma por excelência de realização da liberdade indivi­
duai, o que parcialm ente provém de Rousseau. Uma crítica m uito im portante em
HA R O LD LA SK I, La libertad en el Estado M oderno, trad. E. W arshaver, B.
Aires, 1946, pp. 24 e segs. da Introd. Por outro lado, a valorização hegeli«;'- ^a
lei corno liberdade tinha por paralelo a concepção do E stado como "liberdade
realizada na H istó ria", como divinizada universalização das relações individuais
(a respeito, JE A N H Y P P O L IT E ,' "R use de la raison et histoire chez ’Hegel",
em Cristianesim o e R agion di Stato, atti del I I Congr. Int. di Studi Um anistici,
F. Bocca, Roma, 1953). V. tam bém o estudo de M. FR A N K L IN , "A lienation
and H egel’s ju stificatio n for codification”, em Tulane L a w R eview , voi. S3, dec.
1958, p. 133 e segs.
17 Assim, V A C H E R O T : "À parler rigoureusem ent, 1’ordre politique se ré­
sumé dans un m ot: la loi" (La D ém ocratie, 2e éd., Bruxelles, 1860, p. 254).

72
tucional, como se viu, consagra o banimento do. que não seja
regra escrita, aparecendo aos poucos novas figuras, novos ins­
titutos, novos processos, inclusive na relação entre a consti­
tuição e o funcionamento dos poderes.18 Uma das fórmulas
daquela hegemonia se apresentou no célebre e praticamente de­
finitivo princípio de legalidade, tão importante no Direito Pe­
nal e no Processo Penal contemporâneos.19
Este princípio, oriundo do racionalismo jurídico-ilumi-
nista, implica considerar o ordenamento como base indispen­
sável de toda ação processual, e por extensão, de toda ação
do Estado no plano administrativo. Deste modo, a legalidade
de todo ato incluído na esfera da atividade governamental se
exigia como critério de juridicidade. No fundo, era uma visão
correspondente à concepção liberal do poder político e das re­
lações entre o Estado e os destinatários de sua ação.20 Por
outro lado, a unificação das idéias de direito e lei passa a estar
presente nas obras mais notáveis.21 Todas essas tendências se

Tam bém B L U N T SC H L I- identificou a verdadeira política como legalidade {La


P olitiq u e, trad. R iedm atten, 2e éd., P aris, 1883, livre I, Chap. I I I ) . V eja-se
ainda M. L ER O Y , La L oi, cit. à p: 232 e passim .
18 Um problem a seria o de explicar a gênese do "controle de constitucio-
nalidade" das leis nos E E U U , controle que não estava previsto na letra da cons­
tituição e que foi construído, como um processo de atuação judicial, a p a rtir de
um princípio apenas im plícito naquela letra (V eja-se M A RSH A LL, D ecisões
C onstitucionais, trad. A. Lobo, Rio, 1903, p. 21 e aegs.) ; havendo inclusive quem
impugne a validade do processo por falta de base constitucional positiva (C H A R ­
LES A. B EA RD , The Suprem e Court and the C onstitution, N. York, 1922,
Chap. I).
19 Sobre as origens da m áxim a N ullum Crimen, N ulla Poena Sine L eg e,
ver F. L O PE Z D E O R A T E , èm seii ardente e famoso La Certeza del D erecho,
trad. S. S. Melendo e M. A . Rédin, E JE A , B. A ires, 1953, cap. I I I ; . p . 84,
Uma discussão filosófica, em polêm ica contra Jim enez de Asúa, no A pêndice
"E l principio nulla poena . sine lege en la- axiologia egológica", de CARLOS
C O SSIO aó seu Teoría de la Verdad Jurídica, Losada, B. A ires, 1954. V. ainda
RUY DA COSTA A N T U N E S , Da Analogia no D ireito Penal, Recife, 1953, so­
bretudo o cap. VI. Um valioso repasse histórico no ensaio- de L O IS C. CA­
BRAL, Ubicación H istórica del P rincipio uN ullum Crimen .N ulla Poena S in e
L eg e”, ed. Abeiedo, B. Aires, 195Ò. ~ No direito norte-am ericano, a expressão
"due process of law " se tornou equivalente do princípio continental-europeu de
legalidade, tendo tido em sua origem, aliás, m otivações religiosas (a respeito,
J. GAER e B. S IE G E L , T h e P uritan H eritage — A m erica's Roots in the B i­
ble, M entor Book, 1964, cap. I l l , princ. p. 76).
20 O liberalism o valorizando a legalidade por si mesma como algo neces­
sário, valorizou paralelam ente a uniform idade e a publicidade dos ordenam entos.
A cultura liberal, pretendendo am pliar as luzes e m ultiplicar para todos os bens
da razão, veio a dar no processo de "dem ocratização" que M A N N H EIM tão
profundam ente estudou (cf. E nsayos de Sociologia de la Cultura, trad. M. S ua­
rez, ed. A guiilar, M adrid, 1957, p. 248 e segs.):
21 Ver por exemplo os E ssais sur quelques P oints de L egislation ou
de Jurisprudence, de H. BL O N D E A U , P aris, . 1850 (ed. Videcoq et fils). Cf.
tam bém P IE T R O COG.LIOLO, F ilosofia, citado, pp. 42, 50 e 56. Igualm ente
G. P. C H IR O N I, “ Le Code Civil et son Influence en Italie ", em seus S tu d i -e.
Ç uesA ioni di D iritto Civile, voi. I, Torino, 1914, pp. 49 e segs.; outras menções
às pp. 14, 33, 51 e 109. P ara análises, JU L IE N BO N N EC A SE, L ’Ècole de
l ’E xegèse wm D roit Civil, 2.“ ed., P aris, 1924, passim e sobretudo núm eros 47

73
acham presentes na. época do grande crescimento do saber ju­
rídico ocidental e da aplicação sistemática dos códigos. Seria
interminável verificar as referências, quer contemporâneas quer
posteriores, a esse incondicional reinado da lei.22 E, entretan­
to, o legalismo ainda hoje prossegue. Ao menos no sentido
positivo, o direito é ainda a lei. E mesmo os sistemas noviá,
os que querem dissentir radicalmente das formas jurídicas oci­
dentais e liberais, assumiram características destes, arruma­
ram-se em ramos, em corpos de leis, em códigos e constitui­
ções que dão e mantêm a legitimidade da ordem social.
Em todo o caso, chegaram as condições para que o le­
galismo seja criticado, ou seja: a trajetória do saber jurídico,
que tinha aprumado seus passos sobre o legalismo, enseja agora
a referência a elementos e a valores com os quais o exclusivis­
mo da lei fica reduzido às suas proporções de fato histórico.
Projeção da mentalidade burguesa, tinha de chegar a um ponto
de saturação; correlato ao estatismo moderno, tinha de adoecer
na burocracia e no artificialismo; fruto de mentalidade racional,
havia de acompanhar-se de um saber crítico, posteriormente
autocrítico, e historicamente autocrítico.

4. n o v a Al u s ã o à s im p l ic a ç õ e s h is t ó r ic o -
-ROLÍTICAS E HISTÓRICO-CULTURAIS

Do ponto de vista das relações entre direito e política, as


normas jurídicas aparecem sempre como reflexo de alguma for-

c segs. ; Idem, Science du D roit et R om antism e, Sirey, Paris, 1928, Chap. I, nú­
mero 5, p. 9 e segs. — Reduzia-se o direito ao direito positivo e este à .le i.
No B rasil, PA U LA B A T IS T A , iniciando seu Compêndio de H erm enêutica Jurí­
dica, lançou a definição básica: “ H erm enêutica Jurídica é o sistem a de regras
para in terp retação das le is” (cf. edição conjunta com o Compêndio de Teoria
e Prática do Processo C ivil Comparado com o Comercial, S. Paulo, Saraiva, s.d.,
8.“ edição).
22 C A R N E L U T T I usa a expressão “ ipertrofia della légge”, referindo-se a
sistem a de fontes do. d ireito do século X IX (D iscorsi Intorno al D iritto, Cedam,'
Padova, 1937, p. 138. B L O N D E A U dizia,, realm ente, etn 1850: “ Notre sièclc est
-veritablem ent le siècle de la legislation, aucun autre n'a produit un aussi grand
nombre .de lo ìs” op. cit. à p. 245). Comenta LÉON H U SSO N , em seu m agni­
fico L es Transiorm ations de la R esponsabilità — É tude sur la Pensée Juridique
(P U F , P aris, 1947, p. 31) que para o ju rista do século X IX a lei assum ia um
caráter religioso. O Ñ A T E, defensor aliás da forma legal como portadora da
certeza ju ríd ica, não hesita em condenar o excesso de leis d*o E stado moderno
confò causa de confusão e desvalor das m esmas (p. 96 e segs.). Sobre o tema

74
ma de governo, efetivamente.23 Daí, aliás, o enfoque socio­
lògico poder relacionar as estruturas políticas com as jurídi­
cas,24 e poder remeter o problema do direito ao de alguma
das formas de dominação. Para o Ocidente, o estudo do lega­
lismo como padrão jurídico pode então ser conduzido em rela­
ção com processos políticos; tanto mais que todo processo po­
lítico importante, enquanto figurado pela visão retrospectiva da
historiografia ocidental, envolve adjacências culturais relevan­
tes. Esta visão encheu-se de sutilezas a partir do ¡luminismo
demoliberal: daí a importância da mentalidade democrática
como ponto de referência. E então retoma-se a idéia de ter
sido, a vitória do movimento democrático, reveladora de um
determinado fundo social e cultural, que condicionou certos
modos hoje correntes de colocar problemas ligados à interpre­
tação histórica das formas de organização. As revisões da his­
tória intentadas sob o influxo da mentalidade democrática, fi­
caram partindo quase sempre do suposto de que não só há um
progresso imánente à vida social (componente herdado do ¡lu­
minismo e do laicismo), como ainda este progresso consiste 25
numa passagem das sociedades de um estágio não-democrático
a um democrático. O não-democrático seria sempre pré-de-
mocrático. E a grande ciência histórica, que tanto cresceu na
época romântica,26 manteve geralmente este esquema funda­
mental da ilustração.
Entre outras coisas, o ponto de vista democrático se apos­
sou do conceito de revolução, dando-lhe um sentido correspon­
dente às revoluções democráticas, e incompatibilizando-o em

ainda as profundas páginas de G A R C/A -PELA Y O em seu Derecho C onstitucio­


nal Comparado, 2.a ed., Rev. de Occidente, M adrid, 1953, p. 62 e segs. ; e a la­
m entação de G. R IP E R T . no fundo ferrenham ente legalista, em Le Déclin du
D roit, P aris, LG D J, 1949, Chap. I. V. ainda H E R M A N N E IC H L E R . Das W e ­
sen des Gesetzes, 1959, Colònia — Berlim , parte I.
23 Cf. nosso As Formas de Governo, cit. à nota 2 do cap. II, 1.a parte.
24 MA Chamada Sociologia do D ireito, diz L O U R IV A L V ILA N O V A , não
se apresenta corno disciplina independente ao lado da Sociologia do Estado. Se
quiserm os um denom inador comum dos problem as sociológico-jurídicos e dos pro­
blem as sociológico-estatais, terem os no complexo term inológico sociologia p o líti­
ca” (Õ Problema do O bjeto da Teoria Geral do E stado, Recife, 1953, cap. V,
pp. 124-125). Sobre a co-im plicação entre o político e o jurídico, v. ainda M I­
G UEL R E A L E, “ A Jurisprudência à luz da teoria tridim ensional do d ireito ” ,
em Rev. B rasileira de F ilosofia, voi. X I, fase. 41, 1961, p. 18. Sobre a intro­
m issão, em textos romanos, de categorias econômicas junto às jurídicas, BRU-
S IIN , citado, p. 171.
25 Cf. nosso "A m entalidade d e m o c r á tic a ...” (citado supra, à nota 4, cap.
I I, 1.® parte, nota 5).
26 Cf. nosso O Problema da H istória na Ciência Jurídica Contemporânea,
Recife, 1964, C apítulo 1.

75
tese com outros sentidos.27 E em realidade podemos relacionar
a necessidade de justificação, implícita no trabalho legislativo
(discussão, exposição de motivos etc.), com a necessidade de
legitimar o poder pela justiça, assumida pelas instituições de­
mocráticas e patente em cada grande ideologia democrática. O
ponto de vista democrático é que fez a necessidade de tipos,
desde a hora em que, por exigências polêmicas, teve de tipificar
as formas de governo para rechaçar por igual e sob um só tí­
tulo as formas não-democráticas. Também o conceito de “lei”,
que apesar de tudo deriva da experiência absolutista em sua
imperatividade,2* foi remodelado pelo ponto de vista demo­
crático, que lhe deu o sentido de expressão da vontade popular
(Rousseau, Assembléia Nacional etc.), fazendo considerar-se lei
propriamente dita aquela feita na democracia.29
O apelo aos tipos (só posteriormente explicitado em me­
todologia) se manifestaria inclusive, para a historiografia e a
historiologia democráticas, no problema da comparação entre
formas históricas. Assim se comparam (e se distinguem) a li­
berdade antiga e a moderna, a cidade antiga e a moderna etc.
E entre as comparações entre coisas antigas e modernas, enten­
didas como padrões cuja linha de comunicação é a própria
História em sua explicabilidade (e em suas exemplaridades),
surge o cotejo entre códigos antigos e códigos modernos.
Com estas reesquematizações da visão da História, o pen­
samento democrático (ou o que pode ser chamado tal) tende
apesar de tudo para a valorização do impessoal e do objetivo,

27 Cf. nosso Á s F orm es de Governo, citado, cap. V II, nota. 2, cap. IV , 2.a
parte, bem como o artigo “ N otas para urna T ipologia“, cit. à nota 1, cap. II,
2.a parte, local citado«
28 V. atrás a nota 14,
29 V. atrás, nota 9, cap. V, 2.a parte. Na alternativa entre aceitar- a idéia
de lei como expressão p erfeita de jurídico, e levar em conta o seu cunhp demo­
crático como nota diferenciadora entre um as e outras leis, encaminhou-se a teo­
ria geral do direito para a distinção éntre le i em sentido formai e lei em sen­
tido m aterial. P ara F O D E R A R O , teria sido por apoio à política bism arquiana
que LABAN D desenvolveu tal distinção: particularm ente, ela perm itiu ao chefe
do executivo prussiano conduzir sua política orçam entária, considerando-se o or­
çam ento como mero balanço e não lei (não lei em sentido m aterial) e portanto
independente de aprovação do Parlam ento. Cf. I l concetto di legge, citado, p.
79 e seguintes; PA U L LABAND, L e D roit P ublic de l'E m pire A llem and, trad,
francesa, Giard & B rière ed., P aris, 1901, tomo II, cap. V I, § 56 (“ entre la loi
au sens formei et la loi au sens m ateriel, il n ’y a pas la relation de genre à
espécie, de sens festrein t à sens large du m ot; ce sont deux concepts essen-
tiellem ent d ifférents, qui ont chacun leur caractère propre: Tun est le fond,
l'au tre la forme d'une décU ration de volontà” , pp. 345-346).

76
valorização que se conecta com o repúdio das formas persona­
listas de governo, assim como com o que se chamará de “de­
mocratização do saber”,30 e corn alegadas ou pretendidas igua-
litarizações culturais. E, ao menos na fase revolucionária e
iluminista do movimento democrático, muitos tipos de questões
são derivados do desejo de claridade.31
Destarte a valorização clássica da lei se apoiava na im­
pessoalidade da sua forma textual, e havia além de tildo o fato
de que uma qualidade básica do texto era a de poder ser lido
por todos, além de ser “claro”. Munida de tais supostos é que
se volta a historiografia democrática, na época liberal, para a
reesquematização de episódios do passado.
Então, do mesmo modo que a idéia contemporânea de “re­
volução burguesa” está condicionada pela semelhança encon­
trada entre as revoluções de época legalista do Ocidente e as
que na antigüidade tiveram contornos sócio-culturais “corres­
pondentes” (semelhança aliás construída de certa maneira pela
ética dos historiadores), assim também a equiparação entre lega­
lismo antigo e moderno 32 é produto de uma perspectiva idênti­
ca: ela se tomou possível dentro dos padrões rotulados “o an­
tigo” e “o moderno”, e a própria evolução do pensar jurídico
“moderno” é que permitiu chegar a uma idéia tal. Seu valor
é relativo, e ela faz parte da série de standards que o pensa­
mento histórico usa para situar e estimar sua própria época.

30 Sobre a caracterização do novo saber, público, im pessoal, geral, v. M AN­


N H E IM , loe. citado ¿ nota 20, cap. V, 2.1 parte. Para ele, desde a ep iste­
m ologia cartesiana e kantiana desenvolvia-se um estilo dem ocrático de pensar,
oposto a toda “ auto rid ad e” exterior, e portanto ao dogm atism o. No B rasil, P O N ­
T E S DE M IRA NDA, com sua linguagem enfática, relaciona ao problem a aquilo
que chama “ lei de dem ocratização dos processos de revelar o d ireito ” (Cf. Co-
m entários à C onstituição de 1946, 4.a edição, Borsoi, Rio, 1963, tomo I I ,. p. .344).
31 Tomando-se um esquema de correlações em que à tendência dem ocrática
respondem o iegansm o e o racionalism o, e à conservadora o costum eirism o e o
tradicionalism o, tem-se um aspecto suplem entar, o da atração da m entalidade
revolucionária-racionalista pela pesquisa de origens, pelo desejo de “ esclarecer”,
oposta à valorização do “ m istirio ” por parte dos tradicionalistas. Assim E D ­
M OND BU R K E recom endava que se deixasse posto “ um véu sobre as ori­
gens”, no sentido de ser inconveniente pesquisar fatores in iciais; e TOM P A I­
N E , seu opositor, bradava que um governo de origem indeclarada é im oral (Los
Derechos ael Hombre, trad, esp., F .C .E ., México, 1944, cap. II da 2.a parte, p.
156). De resto, assim como o legalism o fazia oposição tanto äs legislações “ re ­
veladas”, de im plicação teocrática, quanto ao costume, tam bém a sociologia eu­
ropéia, depois de ter oposto o espírito “ positivo” ao teológico e ao m edieval-
•m etafísico, chegou ao esquema weberiano de formas de dominação* em que o
mando racional se acentuava contra o tradicional e o carism ático-sacral.
32 C O G LIO LO , Filosofia, cit. às pp. 52, 56 e 60. Cf. nosso Formas de
Governo notss 18 e 19, cap. II, 2.B parte.

77
5. REVISÃO DA IMAGEM HISTÓRICA DO LEGALISMO

Tem então, o Ocidente, visto a antigüidade de maneiras


diferentes.33 Note-se ainda uma vez que foi o “Ocidente” que
se chamou assim, e que desenvolveu a teoria das culturas e si­
tuou os povos dentro dela. A “Idade Média” também tem sido
variadamente vista.34 O que se acentua aqui é só a parte que
há, nessas revisões históricas, de projeção do estado de espírito
democrático, que dá uma dimensão nova à velha tendência hu­
mana de fazer história do ponto de vista dos regimes.35 Na
visão absolutista a antigüidade era a modelar autoridade dos
reis, mais os ensinadores exemplos religiosos.36 Na visão demo­
crática, a configuração dos passados políticos se apresenta como
um drama em que as revoluções se dão como aproximações ao
ideal do governo dito popular.37 Por mais oscilações que ocor­
ram dentro da experiência democrática, ensejando contradições
doutrinárias constantes ou episódicas,38 subsiste o esquema. É,
portanto, a permanência de tal arquetipo histórico que permite
hoje, através de ressalvas críticas tornadas possíveis por ele
mesmo, colocar como se coloca aqui este lado do problema:
vemos a comparação entre os códigos antigos e os modernos
como tendência em que a historiografia jurídica ocidental quis
dar uma genealogia aos modernos (a partir da tendência a ver
o direito passado como mera preparação do presente), e ao
mesmo tempo valorizar os antigos impondo-lhes valores proje­
tados dos modernos, mas valorizando mais a estes com diferen-

33 “ Desde fines de la Euad Media se há reconstruido de nuevo, por de­


cirlo asf, la imagem de la A ntigüedad grecorrom ana, por cada ¿poca de la cul­
tura esp iritu al“ —- J. H U IZ IN G A , Sobre el E stado ActúaJ de la Ciencia H is­
tórica, trad. M. M ayere, Rev, Occidente, M adrid, 1934, I, p. 17.
34 Cf. B R U S IIN , op cit. à p. 239 e segs. P ara o aspecto m ais geral do
tem a, ED U Á R D SPR A N G E R , “ La teoría de los ciclos culturales y el problema
de la decadencia de la cu ltu ra“, em *!E nsayos sobre Ja Cultura, trad. Ai Raggio,
B. A ires, 1947, p. 97 e segs.
35 E isso ju stam ente quando m ais se falava em objetividades e neutralis­
mo in telectuais. Ver a propósito o cap. XX, “ Algum as T endências P articulares
de los H isto riad o res de los Siglos D em ocráticos“, da parte I do voi. I I da D e­
mocracia na A m érica de T O C Q U E V IL L E . Cf. tam bém G. P. GOOCH, Historia
e H istoriadores en el siglo X I X . FCE, México, 1942, passim .
36 Assim em M aquiavél, Hobbes, Film er, Bossuet etc. Cf. G. SA B IN E ,
H istoria de la Teoría P o lítica, cit. A L L E N , A H istory oi P olitical Thought io
the S ixteen th Century, ed. Methuen, Londres, 1928; E. D. FU E T E R , H istoria de
Ja H istoriografía Moderna, trad. A. M. Ripullone, B. Aires, 1953, voi. I.
37 Cf. as alusões ao mundo político clássico no “ F ederalista", de H A M IL ­
T O N , JAY e M A D ISO N ftrad. espanhola de G. Velasco, FCE, Mexico, 1943):
como exem plos os nn. X V III e L X III.
38 Cf. artigo citado à nota 25, cap. V, 2." parte.

78
ciá-los dos outros no tempo. Aí a experiência legalista se in­
corpora realmente às tendências culturais contemporâneas, En-
tender-se-ão neste prisma as perspectivas de oposição em que
se puseram certas posições em teoria social: o racionalismo re­
volucionário atraiu contra si o tradicionalismo, o liberalismo
provocou a “reação” restauradora e o historicismo veio con­
tra o legalismo. Apesar do antiabsolutismo expresso de SA-
VIGÑY,39 a “atitude” histórico-romântica ficaria, enquanto po­
sição, vista como antiliberal, e para as revisões esquemáticas a
conjugação permanente seria entre legalismo e democracia li­
beral
Assim se explica que, em certos expositores típicos da
teoria jurídica novecentista, se ponha a necessidade da base
popular da lei (legislação) no Estado moderno como decorrên­
cia de um pressuposto tácito: o da ligação entre democracia e
lei.40
E o fato da relativa permanência do legalismo correspon­
de, hoje, à continuação de padrões culturais adotados pelo
trabalho jurídico ocidental em seu sentido amplo.

6. NOTA SOBRE O PRISMA SOCIOLÓGICO

Sobre estes aspectos do tema é que incidem as melhores


possibilidades de tratamento sociológico, Este deverá, precisa-
mente, interpretar a motivação sócio-cultural do desenvolvimen­
to do legalismo, e esta motivação tanto diz respeito às raízes
da mentalidade que o cultivou, como às estruturas de domi-

39 Identificando codificação e despotism o: “ Recensión del libro de N. Th.


Goenner sobre legisl. y jurispr. en nuestro tiem po" por SAVIGNY, ero L a E s ­
cuela H istórica del Derecho, documentos para su estudio, trad. R. A tard, M adrid,
1908, p. 42 e segs. Para o autor do von Beruf, porém, se os despotism os levam
sempre aos códigos nem todo código vera de despotismo. Não é fácil sim plifi­
car, portanto, a “ posição" de sua Escola a respeito do problem a.
40 “ Quando una società è in prospere condizioni di progresso e tutto il po­
polo può e se prendere parte ai potere publici, è necessario che le leggi abbia­
no la loro nella sovranità popolare, perchè cosi è più diretto l'intim o rap­
porto tra le norme giuridiche ed i bisogni so ciali": CO G LIO LO , Filosofia cit.
p. 54. De resto, no problema da relação ent/e D em ocracia e lei entra a ques­
tão da . tendência a m udar e da facilidade de renovar padrões, próprias da con­
dição m ental de certos grupos e afetando as leis, tornando-as instáveis. Sobre
isto, Z E V E D E I BARBU, em seu Democracy and D ictatorship, Their P sycho­
logy and P atterns of L ife , Routlcdge, London, 1956, Cap. I l l , p. 45.

79
nação que o sustentaram. E ocorre, destaque-se, que a pers­
pectiva sociològica é também representativa da pròpria mentali­
dade democrática,41 sendo a Sociologia mesma uma formação
dos tempos contemporâneos e correspondente a necessidades
teóricas da própria vida social destes tempos. As condições de
teorização de um problema social aparecem sempre, como se
sabe, quando o problema se faz bastante “presente”. Assim,
mesmo tomando o enfoque sociológico como um modo de a
própria Democracia se analisar histórico-socialmente, o enfoque
é legítimo, porque a tais alturas toda relação entre estrutura
social e forma de conhecimento social tem de ser caracterizada
por mútua implicação.
E sendo estrutural e buscando tipos a obter nas variáveis
históricas a comparar, a análise sociológica do tema (que aqui
é apenas sugerida e esboçada) deveria ou poderia dar por vá­
lida aquela equiparação já mencionada entre o legalismo dos
códigos antigos e o das legislações modernas, que, como foi
dito, exprime a tendência a reduzir a esquemas o material his­
tórico, como meio de valorizar o presente distinguindo-o do
passado e explicar o passado assimilando-o ao presente.42

41 Isso significa apenas uma correlação histórico-cultural. Pode haver so­


ciologías antidemocráticas, evidentemente; mas a ambiência de problemas onde
&e geraram os primeiros sintomas sociológicos correspondia a um processo bas­
tante característico, embora complexo. O processo geral de sociologização do
per samento ocidental contemporâneo, com sua tendência a imanentiaar a relação
entre verdade e situação social, foi correlato da instauração da mentalidade
drmocráti :a, industrializada, móvel, secularizada etc.
42 O ponto de v ista sociológico vai tratar essencialm ente da relação entre
o tipo de experiência ju rídica e a estratificação social, no caso a situação das
classes (vez que na época dc gênese do legalism o a ordem social assum iu os ca­
racteres da divisão por classes). Note-se, desde logo, que a classe dom inante e
“ em ação" durante o processo de que se trata é a burguesia, e, posto o proble­
ma de com parar a época com outras épocas onde houve dom inações sem elhantes,
chega-se à questão de ser a idéia de burguesia um conceito sociológico ou his­
tórico. CROCE, err. seus E 7em entos.de P olítica, V III, já mencionou a burgue­
sia com um “equívoco conceito h istórico"; e SOM BART (Le Bourgeois, trad.
Jankélévitch, Payot, 1926, cap. XV, p. 248) indaga se o “ tem peram ento bur­
guês", tomado como tipo, deve ou não ser procurado na história dos povos, che­
gando a pensar (p. 249) que talvez haja povo9 “predispostos" ao capitalism o.
Parece-nos um conceito m ais histórico, m encionando um tipo de classe dom i­
nante desenvolvida em determ inadas circunstâncias, só que sua imagem proje­
tou-se ideológico-historiograficam ente a ponto de se falar em burguesia romana
ou grega; e nesse caso a idéia de “revoluções burguesas" não deveria facilm ente
ser aplicada fora da órbita histórica própria. F ergunta-se porém : Por que (como
aliás se viu no confronto feito no cap. II, 2.a parte) a lei é reclam ada pela
classe que sucede à nobreza? Sabe-se que, como camada ou tipo social, a bur­
guesia condicionou a construção do chamado estado de direito (A. E. SAMPAY,
La Crisis, cit. à p. 62; o estado de direito como aquele “ que conformó la bur­
guesia con el cartabón de su orbe m ental, cuando advino predom inante"; res-
salvas oportunas em J. S C H U M P E T E R , Capitalism o, Socialism o y Democracia,
trad. J. D. García. México, 1952, cap. X II, p. 190). Se situam os o direito
pré-legal na sociedade pré-burguesa, temos de pensar no direito vigente entre
os nobres, ainda não propriam ente “ escrito" como em direito “ p aritàrio" (em
•ua organização de ju stiç a : cf. F. O L IV IE R M A R TIN , H istoire du D roit Eran-

80
çais, citado, núm. 104, p. M l; J. C A L M E T T E , La Société Feódale, ed. A. Co­
lin, P aris, 1938, pp. 41 e 56 e segs.) e como expressador de uma espécie de con­
fiança; essa confiança não a têm os burgueses quando tomam o poder, pois que
fixam a conquista por texto s. E quando a situação se consolida, e a nobreza já
não conta, a perm anência dos textos e de sua valorização sugere a perm anência
duma desconfiança. Contra quem? V eja-se, de resto, que desde então tudo tem
de constantem ente ju stiticar-se : cada sistem a político, econômico, pedagógico.
Seria a desconfiança uma nota própria do tipo humano cham ado burguês? P en­
sa isto ORTEGA, que nò ensaio sobre Kant deu a Economia e o D ireito como
disciplinas típicas da “ cau tela" burguesa ( T ríp tico , B. A ires, 1944, p. 72); in­
sinua-o LASKI (E l L iberalism o E uropeo, trad. V. M iguélez, México, 1953, pp.
142-143). O utras indicações: W IE A C K E R , . H istória, cit. p. 433; M. H A L B -
W ACHS, L as Clases S ociales, trad. M. Aub, México, 1954, p. 68; S C H U M P E ­
T E R , Capitalism o, Socialism o y D em ocracia, citado acim a, p; 191. T alvez seja
substancializar dem ais, atrib u ir a uma classe indicações psicológicas tão defini­
das e tão totais. Seja como for, o pensam ento social ligado às transform ações
d itas burguesas nunca se desvencilhou do sentim ento de vinculação a regim es
“posteriores", que têm de estar explicando sua superioridade; e há que pensar-
-se no gosto desses regim es pelas garantias, inclusive na ordem constitucional.
A legislação posterior às revoluções liberais teve esse sentido. (Cf. notas 8 e
9, cap. IV , 2.“ p arte; v.. tam bém R E G IN E P E R N O U D , L es origines de Ja
Bourgeoisie, PU F, P aris, 1956, Cap. I l l , p. 31; A. D E C O U F L É , Sociologia das
R evoluções, trad. H. D antas, S. Paulo, 1970, Cap. I I, m. I l l ; e a nota 191.
no. livro de FER N A N D O SA IN É D E BIJJA N D A , Hacienda y Derecho, ci­
tado, p. 321). E d esta questão de superveniencia e superações não saiu o
ritm o das .questões sociais no O cidente desde então, alternando-se. posições reci­
procam ente acusadas de radicalidade ou conservantism o. Voltam os ao problem a
de saber se a experiência do legalism o corresponde ao “ O cidente" como um
todo, ou se a uma classe dom inante era uma sua fase.

81
TERCEIRA PARTE

PRIMADO DA LEI
E CIÊNCIA
DO DIREITO
I
BASES DA PRIVATISTICA:
INTERPRETAÇÃO E FONTES

1. INTERPRETAÇÃO: POR QUÊ?

Com o assentamento de toda aquela armação jurídica,


vinculada a uma estrutura social nova, vieram novos problemas.
O saber jurídico assumiu novas proporções: não foi por acaso
que a Escola Histórica Alemã, crescida na época da elaboração
e atuação inicial dos códigos, estabeleceu a denominação e as
pretensões da “Ciência do Direito”.1
Na esfera teórica, tomou solidez a distinção entre o di­
reito natural, dito às vezes “ideal”, e o positivo. Evidentemente
o caráter legalista do direito dos Estados contemporâneos fa­
cilitou o entendimento e a universalidade da distinção. O di­
reito natural restava como objeto de discussão; o positivo, como
direito legislado, ficava como objeto efetivo de tratamento cien­
tífico. Entretanto, renovavam-se questões, como a dos princí­
pios gerais; e a própria idéia de direito positivo ficaria carrega­
da de equívocos.*12
1 Ver a nota 1, cap. II, da parte I. Ver tam bém o estudo de P O R T IL L O ,
citado à nota 5, cap. I I, da parte I.
2 Sobre direito positivo, por um ângulo ju sn atu ralístico , G. D E L V E C ­
C H IO , "S ulla p o sitiv ità del d iritto ", em S tu d i sul D iritto , voi. I, G iuffrè, M ila­
no, 1958. Sobre a "am bigüidade da idéia de diretto positivo" e sobre a história
da expressão, LÉO N H U S S O N , Transform ations, pp. 67 e segs. Tom ando o d i­
reito positivo como o constante de textos legais, ou jurisprudenciais, pu antes,
aquele criado ou assum ido pelos órgãos estatais, tem -se o problem a de saber ae
a ele se reduz "o d ireito "; e afastado o direito natural (não por "m eta-jurídico", .
m as preferindo crer em ju sn aturaíism o como forças histó ricas), pergunta-se: que,
além do positivo, é direito? Como possível resposta surge a referência aos
princípios e à doutrina. É um problem a saber se os ^princípios, por m encioná-los
à lei, são d ireito positivo, mas parece que não; pois se a lei rem etesse ao di­
reito natu ral esse não se tornaria positivo (e se, na definição' de um ram o do

85
Saber direito ficou sendo cada vez mais saber leis. O que
for para se saber além disso, terá de ser através disso ou com
base nisso. E a “aplicação” do direito ficou logicamente enten­
dida como cumprimento de leis: e daí que o direito dito priva­
do, no qual como tarefa profissional aquela aplicação tinha um
sentido mais nítido, obteve sensível predomínio quanto a certos
temas centrais da teoria geral, como no caso da teoria das
fontes e da interpretação.3
Sem uma preponderância da forma lei como modo de ex=
pressão do direito, seria praticamente impensável o problema
direito, se diz "conjunto de regras, princípios, doutrinas", como entender os
princípios — que historicamente são tendências —-, sem se pôr dentro das re»
gras, nem das doutrinas?). Então são jurídicos os princípios, antes mesmo de
virarem texto, na lei que os consagra. O que tem acontecido, é que a noção
de direito, que temos hoje, corresponde à de "objeto do saber jurídico": deduz»
•se o objeto a partir do saber (que tem sido muita coisa) e não vice-versa. Se
se deduz, então, a idéia do direito, ou seja, do objeto do saber jurídico, à de
direito positivo, que é principalmente o legal, ficam “sobrando” vários elementos
que v in h a m entretanto sendo temas do saber jurídico. Como tendência, a idéia
que sc faz do conceito do direito é uma confluência de temas (o tema da jus­
tiça, o da certeza, o da bilateralidade). Quando se dava o direito ampiamente
como organização social ou coisa parecida, cabiam para si muitos temas, que
foram compondo os saberes jurídicos, e que continuam sendo cultivados mas já
não cabem no conceito do direito, se reduzido. Então, há hoje como que uma
antinomia latente entre o conteúdo do saber jurídico e a concepção legalista do
direito como .positivo. E toda purificação metodológica desse saber servirá ape»
nas para manter uma ilusão, a de que se possa tratar do direito sem utilizar
saberes que dão conta de seus diversos aspectos.
3 Sobre a d istinção, em plano geral, A. S T E R N , L a F ilo so fia de la H isto ria
y el P ro b le m a de lo s V a lo re s, trad. O. N U D L E R , B. Aires, 1963, cap. VI. —
V eja-se a caracterização de G. R EN A RD (La V a le u r de la L o i, 1928, Ze. lesson,
p. 30) : “ Le droit n atu ral n ’est point un Systeme achevé, il s ’achève à la ma­
nière d'un principe qui se realise en se diversifiant dans les différents systèmes
de dro it p o sitif.” . Que é isto? Um. derivado da noção de sistem a, europeu-mo-
derno, de. d ireito positivo : a idéia de ordem que se vai realizando em cada
sistem a supõe que cada sistem a esteja referido a eia a p rio r i , mas de fato eia,
a ordem ju ríd ica “ n a tu ra l”, é um conceito construído por projeção e para ju sti­
ficação d o u trin ária dos conteúdos ou das form as existentes.
E stes tópicos, teoria da lei, das fontes, da interpretação etc., desenvolvi­
dos que foram sobre o modelo privado, ajudaram a desenhar sobre tal^ modelo o
traçad o tem ático do saber jurídico. Depois é que certos autores cuidaram de
distin g u ir, como espécies distintas, form as de interpretação referente a cada
grande "ram o" do direito, inclusive o constitucional (ver C. M A X IM IL IA N O ,
H e r m e n ê u tic a e A p lic a ç ã o do D ir e ito , ed. Globo, Porto A legre, 1933, números
357 e segs; SA N T I-R O M A N O , " L ’interpretazione delle leggi di dir. público"
em P ro lu sio n i e D isc o rs i A c c a d e m ic i, Modena, 1931 ; C. CA R B O N E, L *interpre-
ta zio n e d e lle n o rm e c o s titu z io n a li, Padova, 1951): m as na Vercfade o que se viu
foi um a adaptação do que a p riv atistica tinha feito, o que aliás vinha corrobo­
rar um a certa tendência de trazer para a publicística e para o próprio direito
adm in istrativ o a m etodologia e os conceitos do direito civil. — P ara dar üm
exemplo, b asta indicar o problem a da “vacatio legis", que, de problem a m era­
mente privado, chegou a tom ar lugar em certas obras dê teoria jurídica geral
e a p articip ar da própria problem ática constitucional. SA LV A TO R E F O D E R A ­
I O (op. cjt., cap. I I, 2.a p arte) observa que, de trazer os códigos civis , d is­
posições in trodutórias sobre publicação e interpretação das leis em geral, fi­
cou a teoria- da lei considerada como trabalho para civilistas. Tam bém a teoria
do “ ato ju ríd ico " se fundou toda em esquem as conceituais de direito privado;
veja-se a definição de W indscheid: "O ato jurídico é um a declaração de vonta­
de • privada d irig id a, para a criação de um efeito ju ríd ico ” (apud L. D U G U IT ,
L a s T ra n s fo rm a c io n e s G en era les d e l D erech o P riv a d o d esd e e l Código dé N apo­
ie ó n . x v ad. C.G.P., M adrid, p. 102).

86
da interpretação. Este é um problema que, se porventura exis­
tia antes, assumiu feição inteiramente nova. O que, num direito
ainda não legalizado, apareceria por hipótese como necessidade
de interpretação, seria talvez a consulta aos presságios em cer­
tas fases de Roma, ou mais próximamente a dúvida quanto
à extensão de um costume ou à conveniência de um rito. Só
a existência de dispositivos formalizados em texto faria nascer
uma função intelectiva com permanente presença na prática do
direito, como a interpretação.4 O direito visado pela interpre­
tação não poderia mais ser considerado “natural” : não só no
sentido de que era positivo, escrito, mas também nó sentido de
que não tinha a espontaneidade meio vegetativa com que o cos­
tumeiro “brota” ; era antes algo artificial, elaborado, culto.5
Certamente a moderna atividade interpretativa vinha, no
sentido institucional, da época do absolutismo,6 mas no sentido
liberal e no constitucionalismo tomou dimensão nova.7
4 E mesmo assim , o trabalho interpretativo só aos poucos se tornaria im ­
portante. No período ab solutista do direito europeu, os textos serviram para
dim inuir o papel do juiz (BACON : “ Judges ought to rem em ber th at their offi­
ce is ’jus dicere’ and not ’ju s d are’; to enterpret law, and not to make law, or
give law " — Essays, L V I: “ Of Judicature", em The M oral and H istorical
W o rks Úi Lord Bacon, ed. J. Devey, London, 1890, p. 146), mesmo quando en­
trasse a palavra in terp retar. Sem embargo, H O B B E S era surpreendentem ente
m ais aberto para com o trabalho do ju iz : para ele, todas as leis precisam de
interpretação, as escritas e as não escritas, e a verdadeira interpretação, dizia,
não é a de quem com enta a lei — obra sempre m ais discutível do que os pró­
prios dizeres da lei —, e sim a do juiz na sentença, onde aplica ao caso o di­
reito adequado e até então debatido: L eviathan, London, 1937, part. I I, Chap. 26
(of civil law s), n. 8, pp. 143 e segs. (pp. 222 e segs. da edição m exicana, FCE,
1940). O que não o impedia de subm eter toda interpretação ao soberano, ou à
“ autoridade soberana" que é a indicadora dos juizes (p. 146 da edição inglesa,
226 da m exicana). Não esquecer que BECC A RIA achava que o juiz, diante da
lei, não era tanto o seu intérprete quanto o soberano mesmo, devendo o enten­
dim ento judicial da lei ater-se estritam ente à letra desta para evitar confusões
e diversidades de compreensão (D ei D e litti delle Pene, ed. Rizzoli, Milano,
1950, cap. IV ), e que o próprio M O N T E S Q U IE U caracterizava o juiz corno
sendo a “boca que pronuncia as palavras de lei".
5 Assim os “ elem entos" da interpretação, que apresentou SAVIGNY, se
referem patentem ente a um direito textualizado e já m uito^pouco “ natural". Os
elem entos (gram atical, lógico, histórico e sistem ático) estão arrolados^ no § 33
do livro I, do Systèm e. Savigny entendia que era pela interpretação que a
lei se revelava em sua “ verdade" integrai (p. 146). Referirido-se porém à In­
terpretação então dita legal (a que era dada, para uma lei, por outra que lhe
fixasse o sentido), Savigny opunha-se violentam ente a ela, achando* (p. 147) que
só a atividade científica e doutrinai da inteligência devia explicar o sentido
das léis (“ no está en la m archa ordinaria de las cosas que cada ley vaya seguida
de otrá que lá explique"). Neste lance pouco legalista, em que a atividade
“ científica?' se alçava como instância decisiva na criação do jurídico, a escola
histórica apresentava um a contribuição m uito im portante para a crítica das con­
cepções m odernas.
6 Cf. nota 4. D ifusão dos tribunais, reorganização da justiça nos países
èuropeus sob as m onarquias pré-burguesas, com m uito de centralização. Para
o caso inglês, referências ao crescim ento do probem a das relações entre o d irei­
to é o trabalho dos tribunais, na conferência d è L o r d E V E R S H E D , “ The im ­
pact of statu te on the law of. E ngland" (from the Proceedings of the B ritish
A cadem y, voi. X L II, Oxford Univ. Press, 1956, p. 257>.
7 A este tipo de Estado, ou às tendências- intelectuais de seus supostos
ideológicos, se vincula,- segundo certos autores, a idéia de ser a decisão judicial

87
De certo modo, o crescimento da problemática da inter­
pretação em tomo dos textos codificados contrariava as inten­
ções com que foram elaborados esses textos: pretendia-se, de
início, como recorda SOLARI, que a lei se esclarecesse por si
só, sem necessidade de jurisprudência, e que o juiz se limitasse
a trazer a lei, sem mais circunloquios, aos casos particulares.8
Esse era o ponto de vista clássico. Do mesmo modo, o poder
judiciário, sempre posto à margem na teoria dos poderes, ficou
necessariamente detentor da tarefa desde então básica de enten­
der as leis.9 Depois é que entraria na teoria contemporânea
do direito público o conceito específico de “ato jurisdicional.”10
Todas as especulações sobre teoria geral estão portanto, à
época, dominadas pelo tema da função das leis e da relação
entre legislar e interpretar. Daí, então, que a primeira atitude
científica “a respeito’' das 4eis tenha sido a Escola da Exegese,

um silogismo. À respeito, B R U S IIN , E l pensam iento, citado; pp. 228 e segs.


Tam bém A L L O R IO chega. c o n sid e ra r'a figura do ju iz, no sentido contem porâ­
neo, como própria'.:dôs ordenam entos estabilizados, e como destin atária específica
de todo direito estatal; incluindo-se neste o diréito privado (E l Ordenamiento
Jurídico, citi-, p. 76).
8 A alusão de S O L A R I está em Filosofia del Derecho Privado, I, citado,
p. 13, cap. I l l , 2.“ parte: tido o legislador como intérprete do direito natural,
ao juiz restaria apenas realizar a m ediação, por via silogística, entre a lei es­
crita e; r. casos particulares. — Observe-se que a relação entre a particulari­
dade dós . fatos, e a generalidade da norma fez o pensam ento moderno m anter o
prestígio do esquema silogístico, de origem aristotélica, onde se relacionam ge­
neralidades e individualidades. Por cutro lado, talvez se possa com parar este
processo de desenvolvim ento da interpretação, nos séculos X V III e X IX , ocor­
rido apesar; da intenção dos legisladores (Napoleão dizendo “acabaram com o
meu código“ ao surgirem as obras de análise), ao processo da formação do saber
jurídico romano, formado pelo trabalho de “ tira r“ das leis ainda obscuras e in-
»uficientes soluções logo transm udadas em princípios e em doutrinas (a respeito,
JEA N C R U ET, A Vida do D ireito e a Inu.ilidade das L eis, trad, port., Lisboa,
2.“ ed., p. 31). S A L E IL L E S chega a proclam ar que todo progresso jurídico
nasce de deform ações feitas sobre o sentido das leis em cada sistem a (De la
Personalità Juridique, Paris, 1910, p. 15). Sobre a proibição justiniana da in­
terpretação, O RA TE, Certeza, citado, pp. 149 e 179. Sobre o período da Assem­
bléia, na França da d étad a de 1790, em que decretos regulam entavam a inter­
pretação da lei pelo próprio legislativo a fim de preservar, a rigidez das formas
legais, V . M A X IM E L ERO Y , La loi, citado, pp. 51 e segs.
9 Ou seja: o legislativism o pretendia absorver a tarefa da norm açio, e pôr
na lei o bastante para a regulação da vida social, onde devia restar ao juiz
um papel mecânico e singelo de “ aplicador” dos dispositivos legais aos casos.
Mas surgiu o problem a de entender os dispositivos, problema que vinha dentro
do da “ aplicação” (o qual não era tão sim ples como parecera) e que se ali­
m entava com a institucionalização da vocação processual dos direitos subjetivos
então recentem ente convidados à vida histórica (Ver nota II, cap. I l l , 2.n par­
te) : e isso fatia crescer a função judicante. O “ princípio” da divisão d#* Po­
deres, $e bem oriundo do movimento, de dar valor ao legislativo, podia ser en­
tendido como expressão da necessidade de dar aos direitos um sentenciador
distinto do autor dos textos. V nota 20, cap. I, 3.fl parte.
10 Ver CARRÉ DE M A LBERG (cit. à nota 18, cap. IV, 2.B parte, p. 635).
Para um aprofundam ento histórico do tema das relações legislar-judicar, v. as
sugestivas páginas de C. H. MAC IL W A IN (Constitucionalism o Antiguo y M o­
derno, trad. J. R. A., B. Aires, 1958, cap. IV ) em que descreve a pugna entre
o princípio do “ gubem aculum ” e o da “ju risd ic ú o ”, m antida desde os tempo»
de Bractos e ressoando na época contem porânea.

88
com a qual se cumpria a excessiva louvação da lei — em subs­
tituição ao direito como na frase de Bugnet — , e ao mesmo
tempo se elaborou o primeiro grande trabalho de interpretação
e comentário de leis.11 Demais, a “venerabilidade” da lei não
tardou a se refletir também na venerabilidade do jurista, con­
siderado um entendedor de arcanos. Este seria aliás um outro
flanco para o estudo sociológico do tema: o homem do direito
como homem de status elevado. O conhecimento do direito,
que no período costumeiro era difuso, embora precário, passou
a ser claro e preciso, mas restringido sempre a um grupo; os
códigos supunham que todos conhecessem a lei, mas foi preciso
cercar de uma certa aura o conhecimento das coisas da lei e do
direito, valorizar seu cultivo como numa volta aos sacralismos-
antigos. Daí talvez, inclusive, a idéia de o direito ser o centro,
ou o elemento fundamental da vida social, idéia que tinha tido
vez em Dante, e que Ihering de certa forma retoma, como a
retoma ampulosamente Carle.12
Enfim toma corpo, aos poucos, a “teoria da interpretação'\
desenvolvida sobre o estudo de seus elementos, suas espécies
e suas funções,13 bem como sofre sua distinção perante a .“ ana­

11 Cf. B O N N EC A SE, L ’École de 1'Exegèse, pp. 46 c segs. P ara éle o "c u l­


to do texto da lei" é o traço fundam ental da Escola (p. 128). Lem bra H U SSO N
(cit. à nota 22, Cap. V, 2.“ parte, p. 58) que a posição exégetista é responsável
pela colocação da lei escrita, "prise au ctáde de la codification”, como quase
que a única fonte do direito. Em CO SSIO , uma critica realm ente original da
postura "ex eg ética” , per meio da idéia de que o que 8e tem a in terp retar não é
bem a. lei, mas a conduta (E l Derecho en el Derecho Judicial, 2.“ ed., A. P e r­
rot, B. Aires, 1959, Cap. I, p. 49).
12 . G IU S E P E CARLE, La Filosofia del D iritto nello Sta to M oderno,
I, Turim , 1903, p. 46. Tarpbém STA M M L ER retom aria a idéia, inclusive em
seu livro sobre Economia e 'D ireito e no ensaio La Génesis del Derecho, trad.
W. Roces. M adrid, 1936, p. 12.
13 Sobre os elem entos, SA-VÍGNY, S y s tè m e , citado, voi. I, § 83, g ra ­
m atical, lógico, histórico e sistem ático. R U G IE R O (In stitu zio n i di D iritto
C ivile, V . I, Roma, 1926, § 17) substitpi o elem ento sistem ático por um
"sociológico” E ntretanto, desde SAVIGNY (Sistem a, I, § 32) se fala em urna
interpretação legal e outra doutrinai. Para ele, porém, a interpretação ver­
dadeira seria a doutrinai, a cham ada legal constituindo uma exceção. Tam bém
a distinção entre interpretação "lógica” e "g ram atical” (term os que não tra n s­
postos do rol de elem entos de Savigny) im plica que a regra a aplicar seja
um texto, sendo a interpretação "ló g ica” uma tentativa de superar o apego
à pur- letra (da lei). Tam bém se fala sempre em interpretação restritiva c
extensiva, no caso em que trata de repor o sentido do texto nos lim ites de
uma intenção legislátória de que a letra extrapolara, ou de am pliar aquele
sentido se a letra não o desdobrara b astan te; certos autores, RU G G IE R O por
exemplo, distinguem destas ainda a interpretação "d eclarativ a”, consistente em
mero explicitar de sentido já corretam ente expresso na letra da lei. Uma boa
apresentação dos problem as tradicionais, e das teorias, em E D U A R D O E S P I­
NOLA e EU A RD O E SP IN O L A F IL H O , Tratado de D ireito C ivil B ra si­
leiro, voi. IV (O Método positivo na interpretação e na integração das norm as
ju ríd icas), Rio, 1940. Mais recentem ente, M ARIO FR A N Z EN D E LIM A, D a
Interpretação Jurídica, 2.a ed. Rio, 19-55.

89
logia”, temas, estes, inteligíveis só com relação a textos legais
a tratar.14 Problema típico viria a ser, depois, o de saber se as
regras de interpretação são intelectuais ou jurídicas.15
Se nos lembrarmos de que a lei foi desde cedo entendida
como fruto da discussão (democracia, parlamentos, tolerância,
relativismo), temos que de certo modo a interpretação é como
um retorno à discussão, não já criadora mas agora recolocadora
ou redescobridora de significados e aplicabilidades; discussão
que poderá tentar, com ciência e sistema, a adaptação do di­
reito — ou do conteúdo da lei — aos fatos. Temos de pensar
que antes da lei tal adaptação era mais “espontânea”.16 É
compreensível que a interpretação se apresente, em certos mo­
mentos, como garantidora da lei e obstadora de novas modi­
ficações: se a lei foi revolucionária, o momento de retração
terá sido este.17
Interpretar ou não vinha a ser problema dentro da tarefa
de dar efetividade às leis, de fazê-las cumprir por esta ou

14 A analogia aparece, a bem dizer, como uma categoria posta (à parte)


para resguardar a in terp retação propriam ente dita da possível acusação de
afastar-se da forma verbal da lei. E assim mesmo se cuidou, com o sempre
pronto estilete das distinções, de separar a analogia “ legis" da analogia "ju ris",
sendo aquela a que recorre a um dispositivo legal regulador dos casos seme­
lhantes, e esta a. que, à falta de tal dispositivo busca situar o caso no âmbito
de algum princípio m ais amplo próprio do sistem a jurídico em geral (cf. CAR­
LOS M A X IM IL IA N O , H erm enêutica, pp. 241 e 242.
15 In teressan te discussão em CARM ELO CA R BO N E, (op. cit. à nota 3,
Cap. I, 3.a P arte) pp. 7 e segs. A disputa, segundo ele, é no sentido de -saber
se as regras que orientam a interpretação são norm as de índole jurídica, ou
são princípios in telectuais. P ara ele, a direção dom inante é a prim eira.
T erem os, então, norm as que regulam interpretação de norm as: e, embora ó
referido autor (pp. 12 e segs.) entenda vários “m om entos" no processo inter­
pretativo, o que resulta daquilo é que o trabalho intelectivo se subpõe a
norm as estatais (p. 8). T endência evidentem ente legalista (já sentida por
SAVIGNY — V . atrás nota 5), em que a suprem acia da lei busca reduzir a
uma função de si mesma a com preensão das regras. No caso, talvez, a diver­
gência entre um voluntarism o, com vocação a fazer dos significados joguete de
um sistem a de perm issões e lim itações, e um intelectualism o, que sente a es-,
pecificidade do com preender como sede da lucidez e 'd a liberdade.
15 C O G L IO L O , preso à idéia da lei como forma definitiva do direito, en­
tendia que a sentença como tal representava a figura da pripieira das fontes
cronologicam ente concebíveis, isto é, a decisão sobre caso, anterior ao próprio
costum e; e que a sentença em sentido judicial moderno já não era fonte por­
que apenas aplicava o que estava dado na lei (Filosofia, pp. 42 e segs). Nao
se poderia, aliás, ter em m ente tal opinião, ou outra deste tipo, sem uma pro­
jeção moderna da idéia dos poderes d o -E stad o , que é tam bém projetada, mas
m ascaradam ente, ao se dizer que o direito surgiu "indiferenciado".
17 Cf. atrás, notas 9 e 15. Por um ângulo, poderia entender-se isso como
m arco da dom inação social de um grupo que reservou a si próprio o direito de
"en ten d er” o que a lei diz, contra o fato de a lei ter vindo falar a todos e
por todos. Por esse lado cabe citar a denúncia de M E N G ER, segundo o qual
a desvantagem dos pobres ante o direito privado consiste além do m ais em não
saberem como se conduzir nos casos. E l Derecho C ivil y los Pobres, trad. Ad.
Posada, B. Aires, 1947, cap. I, n.° 7. (O bservação idêntica em G. HUGO,
H istoire du D roit R om ain, trad. Jourdan, P aris, 1825, § L V II),

90
aquela forma. Assim, tal problema se achou desde logo ligado
ao da estruturação das instituições judiciais no Estado liberal.18
Por princípio, o trabalho do juiz era sempre suplementar
em relação ao que estivesse dito na lei; e o desenvolvimento
das prerrogativas judiciais em certos sistemas deu lugar a que
se considerasse uma oposição entre a idéia de um “império da
lei” e a de um “governo feito pelos juizes”. Se entretanto vir­
mos a posição desse império da lei dentro da idéia de direito,19
compreenderemos que, apesar das diferenças, muito ficou de
comum, pois mesmo que o judiciário prepondere fá-lo apenas
como momento aplicador, continuando a lei a ser fundamental
formulação do jurídico e até base para as impugnações daquela
preponderância.20
***

Mantinha a idéia de criação do direito como algo formal,


isto é, estabelecimento de competências e relações, o direito
aparece como conjunto de princípios e regras cujo sentido vem
da unidade que tenha. Ou seja: visto o direito como conjunto
de leis (regras expressadoras áe princípios), seu sentido não
se tira de alguma virtude substancial e sim da articulação apli­
cável que resulte ter como todo. Pode-se ver esse todo como
uma atuação, uma seqüência de atos, e esse aspecto inclui uma

18 Cf. notas 18 e 7, atrás. Assim não é estranho que, entre as teoria 9 que
explicam o objèto do processo, uma, cham ada objetivista, apresente tal objeto
como sendo a realização da vontade da lei. O tema alcança q entendim ento das
relações entre o alcance da lei e as com petências judiciais. Nos EUA, MAR­
SH A LL, em momento célebre, frisara que o judiciário existe para atender a to­
das as questões oriundas das leis nacionais, louvando-se na letra do art. I l l , Sec-
ção 2, da Constituição norte-am ericana, em que a com petencia daquele poder é
posta em função da constituição e das “ laws of the U nited S tates" bem como de
contratos feitos sob a autoridade delas (D ecisões C onstitucionais de M ARSHALL,
trad. A. Lobo, Rio, 1903, p. 22; ED W A RD S. C O R W IN , The C onstitution and
what it M eans Today, Princeton, 1948, passim ).
19 Uma dificuldade im portante vem, no caso dos países de fala inglesa,
da confusão entre os dois sentidos da palavra law: direito e lei. D entro do
sistem a inglês, a im portância do juiz faz que possam os dizer “reinado do di­
reito" e não “ da lei". O mesmo se dá a respeito das expressões rule oi law,
case law etc.
20 Isto, enquanto se entender a tarefa de ju lg ar dentro de um esquema
legalista. É certo que tem havido episódios de grande monta na atuação^ dos
judiciários, e um dos m aiores foi o trabalho de “ construção" da com petência
da Supreme Court em relação à C onstituição norte-am ericàna, chegando-se a
firm ar o princípio de que “ a constituição é aquilo que os juizes dizem que
ela é" (cf. Hugues, apud R. B IE L S A , “ El Derecho C onstitucional: Conside­
raciones Generales sobre el método de E studio" em R evista de Derecho y
Ciências Sociales, Quito, 1963, tomo X, n.° 39-40, p. 37). Mas o fato é que
todas as ênfases em torno de um revigoram ento da liberdade do juiz têm esfria­
do diante de um certo bom senso que repõe a questão nos trilhos, isto é, nos
lim ites do tradicional ou do previsto em lei.

91
relação mais orgânica entre legislação e judicação.21 Através
dessa idéia, a do “todo”, tentam passar aliás os esforços de dar
a tal conjunto o caráter de algo mais do que forma e ordem.
Surge então a idéia de ordenamentoy que indica um atributo
conferido ao conjunto de normas vigentes para dar-lhe unidade
tratável:22 o ordenamento de que se trata é sempre á totalidade
de leis, dentro do marco da soberania de um Estado e enquanto
coerentes, em sua vigência.23 Com o “ordenamento”, tem-se
cada relação devidamente situada. Mas a validade do ordena­
mento requer por seu tumo que se remeta a uma autoridade, e
a figura da autoridade é entendida com referência à lei: esta
é que dá ao poder instituído o cunho de autoridade.24

21 H á que tom ar, nesse caso, a criação do direito como um “processo”


perm anente, mao dos atos co nstituintes às execuçoés üe sentenças, Em AS­
CO LI (La Interpretación de ías L eyes, trad. R. Sm ith, 1946, passim ) temos
a tese de que a atividade leg islativa já é a seu modo interp retativ a, vez que
o legislador ao trab alh ar tem de situar-se dentro do 6èntidc das norm as exis­
tentes, deixando de haver cisão entre criar e interpretar. E sta idéia vem com­
pletar a de uma perm anência do poder constituinte “ atrav és" das constituições
sucedidas num país (cf. nosso ensaio O Poder C onstituinte, Recife, 1957, p.
54), e é de certa form a p aralela à de Kelsen, segundo a qual a sentença é
tanto norma quanto a lei. Corrobora-a HU SSO N (op. cit., p. 14), segundo
o qual o direito não é feito nerii dado como um tódo acabado e “ par conse­
quent il n'y a pas une difference de nature m ais seulem ent de degré, ou de
niveau, entre la pensée de interprete et celle du législateur” . — Mas falar em
grau cu em nível, aí, é ter por sentada uma linha, um gradient, que “ venha”
passando por estágios de norm atividade e m arcando neste o grau da lei, o da
sentença etc., e essa idéia só nasceria, da experiência do direito legislado. So­
mente a experiência de direitos positivos constituídos de norm as legais perm i­
tiria pensar a ordem ju ríd ica como “ estru tu ra escalonada" e como escala de
normas. Por isso mesmo ainda se pensa no ju iz como personagem colocado
“diante" do ordenam ento, è portanto exterior a ele e à sua consistência, que
é legislativa. A m arca do legalism o, como não poderia deixar de suceder, tem
assinalado toda a tem ática: mesmo H ECK , em conhecido livro ( Interpretação
da L ei e furisprudência dos Interesses, trad. J. Osório, São Paulo, 1947, § 2)
não lhe escapa; e CO SSIO , ao dar, à idéia kelseniana da índole norm ativa da
sentença, nova form ulação, trabalha im plicitam ente em vista da natureza “le­
gal" da produção da regra ju rídica. Mais, sobre a questão das relações entre
lei e ativydade judicante, na grandíssim a obra de GUSTAV B O E H M E R , E I D e­
recho A tra vés de Ja Jurisprudência, trad. J., P. B rutau (da parte 2 do livro
II de uma obra m aior), Barcelona, 1959.
22 SA N T I-R O M A N O , E l Ordenamiento Jurídico, trad, esp., M adrid, 1963.
Para ALLO RIO (op. cit., pp. 59 e segs.), fundado em S. Romano, a idéia de
ordenam ento significa que o sentido de cada norma se rem ete à regulam en­
tação da produção ju ríd ica m ais básica, com isso à norma fundam ental; esta
portanto aparece como id entificoJora dos ordenam entos, na unidade de cada
um e na pluralidade de todos.
23 Assim, C O D D A C C I-P IS A N E L L I (op. cit., p. 10) entende que a finalida­
de da legislação é fazer “ form alm ente certo” o ordenam ento. É sempre algo es­
tranho referir-se ao d ireito n atural corno um> ordenam ento; e isto faz G.
B R U N E T T I, em “ Il d iritto naturale nella legislazione civile”, R iv . d
Commerciale e del D. Generale delle O bbligazioni, voi. XX, 1922, p. 442.
24 Desse modo, a Assem bléia C onstituinte Francesa declarava, em I-X?
-1789, que “ não havia em F rança autoridade superior à lei" (M. LEROY,
La Loi, cit. à nota 14, Cap. IV , 2.ft P arte; p. 49). — De resto, a vinculação
à idéia de autoridade caracteriza a idéia de “ legitim idade”, que se liga 'à de
lei, embora se faça a distinção (em term os schm itteanos ou noutros) entre
legitim idade e legalidade.

92
Em junção íntima com a idéia de ordenamento, vem a
conhecida questão das lacunas: a concepção de que não há la­
cunas,25 de que há ao invés uma “plenitude” na ordem jurídica,
não só traduz o predomínio histórico da forma lei,26 como tam­
bém é um requisito do modo de ver aquela ordem do ponto dc
vista da interpretação.27
De modo que dentro de tais tendências estruturais cres­
ceu a própria idéia de sistema, desde logo entendida ora com
referência ao conjunto do direito “positivo” correspondente a
um Estado ou a um orbe cultural, ora com referência ao ca­
ráter do saber jurídico, que deveria ser arquitetonicamente
construído.28
E com isso tudo, temos o desenvolvimento do conceito
de “Jurisprudência”, que nos países continentais se entenderia,
não mais à romana como saber jurídico geral, mas como ativi­
dade exercida pelos poderes judicantes. É curioso notar que,
justamente na Inglaterra — menos legalista e com um direito
peculiar, não isento de fortes analogias com o romano 29 — , se
manteve o sentido amplo para a palavra “Jurisprudence”. En­
quanto isso, a progresso da teoria geral européia das fontes ia
consolidando, sobre a noção de jurisprudência, o sentido de con­
junto de pronunciamentos judiciais detectados de unidade sis­
temática, fixados como textos em seqüência colecionada e va­
lendo como fonte complementar.30
25 E. Z IT E L M A N N , "L as lacunas del D erecho", no volume La Ciência
del Derecho, éd. Losada, B. Aires,. 1949; COSSIO (La P lenitud del Orden Ju rí­
dico y la Interpretación Judicial de la ley, B. Aires, 1939) critica b rilhante-
m ente (pp. 21 e segs.) a tradicional distinção entre lacunas da lei e lacunas do
direito.
26 V. G IU S E P P E F E R R A R I, Introduzione, citad a; cap. Ì I, § 7, sobre la-
cunas em direito consuetudinario.
27. P ára W IE A C K E R (H istória del Derecho Privado, p. 382), a idéia da
inexistência de lacunas é, tal como a da vinculação do juiz à lei, característica
da . ciencia contem poránea influida pela pandectística. A pretensão de que o or­
denam ento não contém lacunas im plica a da estrita vinculação do ju iz à lei (v.
nota 21 atrás) a não ser tomahdo-se a plenitude — como faz Cossio — em sen­
tido axiológicp.
28 V. BR U G I, Op. cit., B R U S IIÑ , E l P ensam iento, cit., passim . De cer­
to -modo, a idéia de sistem a, aplicada ao direito, cresceu sobre a de uma rela­
ção m antida • entre cada lei, em sua aplicáção, e as outras "reg ras", chegando-
-se à compreensão do conjunto como algo que devia ser coerente e orgânico.
29 P ara PO LL O C K (op. cit. à nota 7, Cap. I l l , l.* P a rte ; p. 174), o.
inglês e o romano são casos dentre os possíveis- de "case-law ". Uma com pa­
ração histórico-política em M AYER, Trayectoria¡ citado, p. 65, V erdade seja
que, por outra parte, o direito romano pode ser usado como contraste, ante o
inglês, no sentido de ter sido aquele, durante a Idade Média, um padrão de
sistem a adm inistrativo e centralizador oposto ao tem peram ento ju d iciarista e
localista do inglês (nesse sentido P O U N D , D evelopm ent, cit. à nota. 5, .Cap.
I I , 2.* P arte). . . . . ' .
30 Por aqui se poderia desenvolver uma investigação com plem entar, u ti­
lizando as idéias de MAC LUHAN sobre a im portância da im prensa e dos-
textos (como forma de com unicação) na criação dos padrões históricos da

93
2. ENTRA EM CENA 0 PROBLEM A DAS FONTES

Assira se chega ao problema das fontes. Na verdade, o


problema foi construído como um modo de ordenar a' diferença
entire lei e costume erri um esquema que fosse implicitamente
histórico, claramente sistemático e praticamente eficaz; e foi,
igualmente, um problema colateral ao da interpretação. Ao
lado da lei que era texto a entender, pensou-se nos modos,
possíveis em geral, de aparecimento positivo e usável do direi­
to. Deste modo, o primeiro ficava sendo a lei, e a função e
o caráter deles se entenderiam segundo os dela. Ainda hoje,
o esquema sobre fontes 31 acompanha no geral o colocado por
PÜCHTA e SAVIGNY;32 à lei e ao costume se ajunta a ju­
risprudência (a “doutrina” seria acréscimo posterior).33

¿poca m oderna. Fica aqui a sugestão, apenas. De qualquer sorte (v. atrás,
notas 19 e 20), fica sendo um problem a a conciliação do legalism o com a ten­
dência ao judicarism-o do tipo norte-am ericano; talvez se trate de um tema
m uito sério. M as há certam ente exagero em J. N. W IL L IA M S ( In te r p r e ta c ió n
d e la s L e y e s e n è l D e r e c h o N o r te - a m e r ic a n o , B. Aires, 1959) ao achar que no
caso dos EUA a atividade do ju rista ante o s t a t u t e é inteiram ente diversa da
do ju ris ta de países de direito escrito (pp. 9 e seg s.); para ele o ju rista ian­
que trab alh a num regim e de descrença na legislação (p. 22).
31 P ara um a exposição típica, LEGÁZ Y LACAM BRA, I n t r o d u ç ã o , citada,
parte II, cãp. IV . Uma crítica leve da teoria tradicional em W. SA U ER, F i lo ­
s o fia j u r í d i c a y S o c ia l, trad. Lacam bra, ed. Labor, 1933, § 37, I. O utra ex­
posição razoável, a'.'de J. C. S M IT H , "F uentes del Derecho", em A n u a r io del
. In st, de Fil. dèi Der. y Sociologia, Uhiv. de La P iata, 1961. — HUSSON
assinalou ( T r a n s fo r m a ti o n s , pp. 57 e 58) que a crítica mais recente tem de­
nunciado a superficialidade da idéia de fontes form ais, buscando dar ao termo
fontes um sentido mais profundo; Na verdade a idéia não é "superficial"
apenas: è equívoca. M A X IM E L ER O Y , em L a c o u tu m e o u v r iè r e (trad.’ à cas­
telhana : E l . D e r e c h o C o n s u e :u d in á r io O b r e r o , México, 1922, I n tr o d j, parte por
sua vez de uma crítica da teoria burguesa das fontes para a proposição de um
direito obreiro e como condição para a form ulação deste.
32 Aliás, o tem a em SA VIGNY é m ais complexo do que às vezes se
supõe. Ele colocava a legislação e o "direito científico" como forças expres-
sadoras de im ediata im portância, e concebia o costume como base de ambas
(Sistem a, I, •§ X V ; no mesmo § uma advertência contra o vezo de tom ar a
legislação como fonte única). T oda a sua sistem ática está em basada sobre
,esse enlace entre legislação e ciência; a ciência atua inclusive como redes-
cobridora do costume. P U C H T A ordenou assim os três dados: o costume como
im ediata convicção popular, a lei, a ciência: "die Organe, welche dem Recht
diese sein „sichtbare G estalt geben, nennt man R echtsquellen; solche sind die
unm ittelbare Volksüberzeugung, die Gesetzgebung, die W issenschaft” (Cursus
d e r I n s t i t u t i o n e n , Leipzig, 1881. E rster Band, kap. II, p. 18). Em nosso
século, a idéia de que as "fontes do direito objetivo" são a "lei e o direito
costum eiro”, se acha ainda confirm ada no autorizado H a n d - w o e r te r b u c k d er
R e c h t s w i s s e n s c h a f t , de Stier-Som lo e E lster, Leipzig, 1927 (artigo "G esetz und
Gesetzgebung", de H. L A M M ER S).
33 P ara GARCIA M A YNEZ ( D e f i n i c i ó n , citado, p. 2), a doutrina hoje
não é m ais fonte form al, sim . real, do direito. Com isso tenta fugir do esque­
ma usual e sediço que dá as fontes form ais como lei, costume, jurisprudência
e doutrina, sendo a s . reais oü m ateriais as necessidades sociais, que condicio­
nam hoyos' princípios. M as de fato ainda está nò esquema, só que desloca a
doutrina de uma p rateleira para outra. Se s e m antém o conceito form al de

94
O tema das fontes dominou desde então a problemática
jurídica; e não poderia ser de outro modo, pois o direito ficou
visto como um sistema de incidências de regras, articuladas
segundo uma proveniencia prevista.
Na verdade, todo o enquadramento do assunto vinha vi­
ciado por um equívoco fundamental: o de fundir a noção de
fonte de conhecimento histórico com a de fonte de vigência
atual.34 Daí o equívoco, consagrado didaticamente, de tomar
como “fonte” o que não é mais do que forma de expressão.
Equívoco que aliás permanece. Definir fonte, por exemplo,
como “forma exterior e positiva do direito”, como fez CLOVIS
BEVILACQUA,35 é frase insuficiente: pois a “forma” que o
direito apresenta precisa ser explicada em função de algo, em
função de uma fonte — ou como origem no sentido material,
oú como competência no sentido formal.
O importante, porém, é frisar que, para o ponto de vista
codificador e exegético, a fonte tinha de ser a lei. Da lei “pro­
vinha” o direito, que nela se achava representado por excelên­
cia: a lei era, como forma, clara, declaratòria, exata.36 A acep­
ção de fonte como algo de onde o direito nasce, justificou-se
plenamente para aquele ponto de vista.37
Essa concepção de fontes pretendia referir-se aos modos
de existir do direito, mas tal como podem ser apreendidos
prontos e atuantes, pressupondo sua formação real como coisa
transcorrida. Se se pedir a fonte dá formação, o conceito de
fonte fugirá do marco daqueles modos.
fonte, e se se tem a lei como fonte formal, a doutrina, que MAYNEZ valoriza
pela possibilidade que tem de vir a tornar-se fonte formal ao ser adotada
em lei, pouco m ais será, em si mesma, do que um elemento da p ro d u ç ã o 'd a
lei comò fonte.
'34 Cf. nosso O P r o b le m a da .H is tó r ia , clt., nota 16, onde inclusive ano­
tam os a confusão da Escola H istórica a respeito de fontes. Na verdade, a
idéia de costume parece servir à m etáfora. “ fonte”, e tanto mais que, jogado
para um lado, o costume fica còrno m aterial d e o n d e se tiram regras para fazer
leis.
35 D ir e it o P ú b lic o I n te r n a c i o n a l, tomo I (ed. Francisco Alves, Rio, 1911),
§ 4, p. 29. Em sua T e o r ia G e ra l do D ir e it o C iv il (cf. 2.a edição, 1929, In-
trod. p. 13), o mesmo B E V ILA C Q U A , chegou a escrever que a lei “ é o d i­
reito objetivam ente considerado”.
36 Cf. CARRÉ DE M ALBERG, cit. à nota 18, Cap. IV , 2.* parte; p. 636.
37 Toda colocação do tema “ fontes" se torna equívoca, e mais ainda,
agora. Naquela época, a do início da experiência dos códigos, foi preciso m a­
nifestar o conceito de fonte e dar-lhe aquele sentido, porque a preocupação
de dar prim ado à lei se juntava à de situar o direitc. dito objetivo em relação
da vantagem sistem ática ante o subjetivo (o direito de cada um “ prom ana”
da lei). Assim a noção de fonte realçava este caráter do direito objetivo, e
ao mesmo tempo graduava as form as deste — todas “ originadoras” de d irei­
to — em term os de ser a lei o. grau m ais alto. Uma noção vinculadora e
hierarquizante. Hoje, com vários autores percebendo a inocuidade do esquema
-persistem, contudo, os equi vocos;; básicos; ver nota. 45, adiante.

95
Em tomo da idéia de lei é que se cogitou da extensão,
a outras instâncias normativas ou possivelmente normativas, da
condição de fontes. Observe-se aliás de passagem que, como os
outros temas que vêm sendo vistos, a teoria das fontes teve
nascedouro privatista, e só posteriormente se cogitou de trazê-
-la ao direito público.38 A teoria das fontes ajudava, então, a
reduzir a idéia de aplicação do direito à de aplicação da lei.
Ela evidentemente não seria concebível, nos termos em que
vingou e cresceu, sem um sistema legalista.39
Enquanto a “interpretação” do direito se estendia para
a prática a partir da lei, a questão das fontes, entendida de mo­
do paralelo, era como que seu complemento na teoria. Inter­
pretação significando indagação do sentido da lei cómo março
do jurídico, “fora” do qual ele não se dá.
Ambas as concepções, concepção implícita de fönte como
modo de expressão do direito e concepção expressa de lei
como fonte por excelência, enraizaram completamente ria. ciên­
cia jurídica.40
E com tais concepções, tem-se necessariamente a.; de uma
hierarquia entre as fontes, sendo fonte principal a lei. Toma-se

38 A observação de FO D E R A R O { I I C o n c e tto , cit., p. 15) de que os


privatistas tinham tido o monopólio do tema da lei. pode ser estendida ao
caso das íontes cm geral: ainda hoje. se por uma questão de método, se traz
ao direito dito público a questão ió n ie s , topa-se com o dilem a de repetir artifi­
cialm ente a dogm ática civ ilista ou procurar um tipo de fontes inteiram ente dis­
tinto. Nesse sentido uma profunda crítica em ' L U D W IG S P IE G E L , D e re c h o
A d m i n i s t r a t i v o , trad. F. J. Conde, Labor, Barcelona, 1933, Cap. V II, pp. 173
e segs. P ara ele, a m arca p riv atista fez da Ciencia do D ireito uma “ ciencia
das fontes do direito ", e isto foi possível por causa do predom inio da lei, que
deu ao saber jurídico urna base segundo ele digna de inveja pelas outras cien­
cias: o E stado, ao legislar, vai dando ao ju rista o seu m aterial de estudo: e não
deixa de frisar (p. 174) que foi no campo do direito privado que mais am­
piam ente se verificou a luta pela estatização do direito. Cf. A L LO R IO à
nota 7, supra.
39 P ara B R U N O P A R A D IS I {op. c it.. Cap. I) os fontes variam , em nú­
mero e espécie, em função da variação histórica dos ordenam entos. Mas esse
autor, apesar de in sistir na idéia, e de estendê-la, explicando que em cada
tipo de organização há um tipo de "fonte" que prevalece (pp. 3 e segs.), e qúe
a visão ab strata da lei ou do. costume difere (p. 6) do que são em uma situa­
ção histórica concreta, mantém-se preso ao conceito e à lista usual das fontes,
e não parece perceber que esse conceito e essa lista são já projeção de um
dado tipo de organização, e do compromisso entre este e a teoria que traçou o
tem a: assim o "d ireito " de outros tipos de organização social tem sido figu­
rado como se tam bém vivesse dos supostos .estruturais que a teoria das fontes
implica.
40 C O G L IOLO, p. 50: “ La legge è, nelle società suiluppate, la fonte più di­
reta e più autorevle del d iritto ". Compare-se CH 1R O N I, op . c i t ., pp. H , 33 e
51. Para SA N TI ROM ANO, o costume està para a lei como o dialeto para a
literatu ra, ou como a linguagem falada, para a escrita: eie cede lugar a eia à
medida que os povos progridem : F r a m m e n t i, cit., art. “ Consuetudine". No mes­
mo sentido, A R T H U R BR U M G A RTEN , G r u n d z n e g e d e r J u r u s tis c h e n M e th o ­
d e n le h r e , ed.H uber, Bern., 1939, com ênfases especiais (“ Das Gesetz ist in
W ahrheit die R echtsquelle par excellence", p. 26).

96
como foote cada forma de aparecimento da regra jurídica, e
ordenam-se as formas segundo a semelhança com a leh Há aí
uma espécie de “normatividade decrescente”, à medida ..que se
alude ao alcance do costume, ou da jurisprudência ou mesmo
da doutrina, no sentido de complementar a normação legal.
Certo que essa normatividade decrescente corresponderia, entre
outras coisas, a uma “certeza decrescente”, já que, sobre o mo­
delo da lei, a certeza aparecia como requisito primacial da
expressão do jurídico. Em torno do tema haveria, por sinal,
uma série de anotações a fazer.41
Naquela hierarquia, o costume ficava definitivamente re­
baixado, e com ele a idéia, aliás tornada terrivelmente equívo­
ca, de direito costumeiro. Vinha sempre referido logo após a
lei entre as fontes, inclusive nos dispositivos legais 42 pelo fato
de estar mais “próximo” da idéia de fonte de que a jurispru­
dência e a doutrina, mas a sua função ficava definitivamente
apoucada. Consagrava-se destarte, no fundo, uma convicção
histórica.43 Desde então, a teoria do direito ainda vem enca­
rando o costume como uma espécie de rústico, e quando um
dispositivo legal o menciona trata de colocá-lo a cuidádósa
distância sob a tutela da lei. Assim temos toda a contènipo-
rânea teoria do -direito consuetudiário tecida a pártir de uma
consideração da validade da lei como validade jurídica típica.^4

41. Sobre certeza, principalm ente O Ñ A T E, já citado, « tam bém PO LL O C K ,


Jurisprudence and Legai E ssays, citado, p. 23. Quanto às anotações, por exem ­
plo: se a possibilidade de estim ação de uma “ fonte.” fica a depender da. situ a ­
ção. de cada época, talvez se possa com preender a nossa época como de te n ta ­
tiva de recom posição entre as fòntes, já que a prim azia da lei se acha meio
abalada. Nem tanto, aliás; pois mesmò às referências às insuficiências da lei
(y. g. CH 1RONI, Studi,, c i z p. 34) ou à necessidade; de. um direito menos
“ form al” (W . SAUER, Filosofia, cit., pp. 215 é 216) não são sinais senão de :
que é através de uma cura feita na lei, e em torno dela, que se querem sanar
bs defeitos do sistem a.
42 P ara O E R T M A N N , lei e costume, sendo “ fontes" do. direito, encon­
tram -se além do direito e não sob ¿eu im pério, dependendo tudo de vigências
historicam ente efetivadas (Introducido al Derecho C ivil, . tradV L. S; Serai, L a­
bor, 1933, p. 33). Idéia inteiram ente errônea e mal colocada. No sistem a b ra­
sileiro, a lei civil juntam ente aceita como seu com plem ento o costume,' e
além. dele o procedim ento analógico e os princípios. V eja-se o Código Civil
B rasileiro, art. 4: “ Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo
com a analogia, os costumes e os princípios gerais do d ireito .” '.
43 Cf. G O C LIO LO , pp. 42 c 50 etc. Quando se fala, como A .LBERTQ
SP O T A (E l Juez, el Abogado y la Formación del Derecho A través, de là J u ­
risprudência, B. A ires, 1963, pp. 49 a 59), em sobrevivência do costume, em
com plem entação do preceito legai por meio das práticas consuetudinària«, está-se#
vendo dem ais: o costume corno forma efetiva .de direito acabou, o costum e dé
que a lei trata é um pálido resto. Por issò mesmo o nosso PA U LA B A T IST A ,
no século passado, assinalava que os usos não derrògam le is,-e qué a vontade
legisferante é a suprem a ( Compêndio de H erm enêutica, . cit., § 55).
44 Cf. a nota 8, Cap. I, da 1.a parte. Parece redundante dizer-sé que. o
costume, para ser fonte formal, deve ter força coativa (como- o faz O RLA N D O
C O M ES, Introdução ao D ireito C ivil, Forense, Rio, 1957, Cap. IV , n.° 20).

97
Notam-se, é verdade: tentativas de revisar hoje a teoria
das fontes. Mas são tentativas ainda tímidas,*45 embora impor­
tantes.

3. REELABORAÇÕES NO SABER JURÍDICO

Mas enroupado nestas novas formas, o pensamento jurí­


dico descobriu-se em sua peculiaridade. Ou seja: não tardaram
a ¡surgir, conseritâneos com o que já dissemos ser o caráter
mais '’artificial” da normação legal, temas como o da auto­
nomia do “raciocínio jurídico” e o de uma “lógica jurídica”

Prim eiro, porque a força “co ativa” que um costume possa ter, nos ordenam en­
tos m odernos, depende do que a lei lhe assinale; segundo, porque se a um
costume se rècorrer,. dando-lhe índole de expressão de direito, ele passa a ter
norm atividadè mesmo que não a tivesse tido. Pergunte-se o que é o ..costume:
se ¿ .conjunto de- regras ou de condutas, se ¿ uniform idade de convicções, tanto
faz: no fim, o seu conceito só se fixa quando, passado o tempo real de seu
predom ínio, ele é “ visto ” .p o r um pensar já dominado pela idéia de lei, através
do qual ele é retom ado ?para ser codificado, textificado, disciplinado. £ ainda
assim a noção de costume não cabe perfeitam ente na teoria jurídica da época
leg alista: para esta, ele aparece como uma coisa que existiu para preceder a
lei, e, como tal, algo- ao mesmo tempo necessário e insuportável. Certos auto­
res, como pór exem plo H. L É V Y -B R U H L ( S o c io lo g ia d e l D e r e c h o , trad. M.
V., B. A ires, 1964, .p. 26) opõem ao caráter “ escrito” da lei a “ oralidade do
costum e”, m as aprésentando-a a esta como um apanágio de que o costume ti­
vesse sido portador: por algum princípio intencional, como se “pudesse ter sido”
textu al e o recusasse, quando a verdade é que a tal oralidade do costume é
algo que constatam os e destacam os, por causa de hábito de ver o direito como
coisa esc rita ; e se a transform ação do direito em coisa escrita se liga ao ad­
vento do E stado moderno, o mesmo ocorre com o nosso saber, respectivo. In ­
teressan te observação coube a. JA M E S G O L D SC H M ID T , quando tendo em vista
Stam m ler e m encionando a relação entre conceitos e fatos em píricos, anota que
os costum es não foram desde início tidos como conceitualm ente ju ríd ico s; a
“ju rid icid ad e” foi, ao contrário, atrib u to conferido a eles m uito depois de as­
sente e conhecida sua obrigatoriedade ( P r o b le m i G e n e r a li d e l D i r i t t o , trad, T.
Raà, Padova, 1950, p. 76). Quer dizer: com o regim e da lei é que as c o n c e i-
tu a ç õ e s se cultivam , e por meio dessas é que se apanham os elem entos ante­
riores à lei como pano de fundo para realçar os caracteres dela.
45 Cf,, notas 31 e 37, cap. I, 3,® parte. O esquema fontes m ateriais/fontes
form ais, usual nas exposições do tipo indicado à mesma nota 31, vem sendo ti­
m idam ente rev isto : na observação de GÉNY (menos revolucionária do que pa-
.recia), na .de H U SSO N , que vimos citando, na de G O L D SC H M ID T citada à
nota 44 atrás. N esta, o C apítulo I I, dedicado às fontes, assevera que “ a lei é
o direito consuetudinàrio não são fontes, m as form as do d ireito ”, e que a in­
vestigação sobre as verdadeiras fontes está por fazer (p. 64). Conclui que as
fontes que “produzem ” o d ireito são dois elem entos psíquicos, a força norm ati­
va dos fatos (term o jellinekeano) e o ideal do direito justo (p. 65). M as. o
equívoco é uma enferm idade congênita do tem a fontes. Pois vem, em via se­
m elhante, e num grande livro N IC O S AR. PO U L A N TZ A S ( N a tu r e d è s C lo­
ses e t D r o i t,. E s s a i s u r la D i a l e i i q u e d u F a i t e t d e la V a l e u r . P aris, 1965,
p. 249), e diz que o fundam ento “ últim o" do direito, sua “ fonte ú ltim a” é a
natureza das coisas entendida como p r a x is . Ai está o outro exagero: o qposto
ao consistente em ver na lei a fonte principal.
(que em parte veio da problemática da sentença);46 surgiram
e se instalaram em área teórica maior, condicionando ainda
hoje os estudos sobre lógica do normativo, estrutura da propo­
sição jurídica etc.47 Descobriu-se o tema do próprio pensa­
mento jurídico que se pretende caracterizar como um processo
especial de pensar, por elementos e condições peculiares: quer
tomado como pensamento do homem que vive o direito,48 quer
como inerente às formulações do saber jurídico em sua obje­
tividade mais geral.49
Sobre essa vertente, enfim, é que sé pôde chegar à con­
cepção de uma realidade científica especificamente jurídica
como se vem concebendo hoje, realidade correspondente à pe­
culiaridade do modo de pensar que a visa (e que traduz uma
marca de kantismo); e chegar a metodologias em que a alusão
a problemas “jurídicos” pretende implicar um tipo todo espe­
cial de trabalho intelectual. Fala-se então, em certos casos»
de “construção” jurídica, para denotar a especial relação entre
a matéria lidada e a posição do pensar referente.50 Nessas me-

46 Veja-se, como um testem unho, a obra do F A B R E G U E T T E S , surgida


em 1914: L a L o g iq u e J u d ic ia ir e e t V a r t d e J u g e r (2.a ed., em 1926, P aris, L
90 J). PaTa o lado teórico do problem a da sentença, v. o artigo pioneiro de
ED U A RD O E SP IN O L A , “A Jurisprudência dos T rib u n ais”, em P o n d e c ta s B r a ­
s i l e i r a s , volume I, ano de 1926, Rio, 1927. P ara um a notícia da evolução do
tem a, F. G O R PH E, L a s r e s o lu c io n e s ju d i c i a l e s (trad. L. A lcalá — Zam ora, ed.
E JE A , B. Aires, 1953), e também o antigo livro de M IT T E R MAYER, trad u ­
zido no B rasil desde 1870 ( T r a ta d o da P r o v a e m M a té r ia C r im in a l, trad. A. P.
Soares, ed. Jacinto, Rio, 1917), princ. Capítulos I I e IX .
47 Aò tem a da lógica do direito, está dedicado o tomo XI dos A r c h iv e s
d e P h i lo s o p h ié d u D r o i t, Paris, 1966, ed. Sirey. V. tam bém KARL E N G LISC H ,
I n t r o d u ç ã o . ao P e n s a m e n to J u r íd ic o , trad. j . B. M achado, Lisboa, 1965.
48 Exem plo típico, B R U S IIN , E l P e n s a m ie n t o J u r íd ic o , citado: para ele,
o pensam ento jurídico é o “ d é u m ju rista em sua ocupação prática com o di­
reito ” (p. 54). T alvez se possa apartear que se há um pensam ento jurídico da
prática deve haver um mais gérál . que não ,séja .apenas . isso. Em PO LL O C K
i E s s a y s , p. 170L a inaceitável opinião d e /q u é , como- ciência, a do direito se
dirige a prever eventos, e no caso dela os eventos que se querem prever são
as decisões jud iciárias !
49 H U SSO N , L e s T r a n s f o r m a tio n s , eit.;., M IC H E L V IR A L LY , L a P e n s é e
J u r id i q u e , cit.
50 Ci. citação de B IE L S A à nota 165 desta parte. ■O conceito de “ cons­
trução",, em d ireito constitucional, refere-se especialm ente à prática norte-am e­
ricana, em que o judiciário ficou cómo intérprete legítim o da constituição, e
;em que, num julgado, se chegou a recom endar que na interpretação os disposi­
tivos constitucionais recebessem uma “liberal construction" (H EN R Y CAM P­
B E L L BLACK, H a n d b o c k o i A m e r ic a n C o n s t i t u t i o n a l L a w , 2.a ed., S. Paulo,
1897, Chapter IV , p. 67). Em geral se desdobra o term o dizendo construção
“ dogm ática”. O conceito dá a idéia d e . uma elaboração do jurídico, no plano
judiciário, com o qual o plano legislativo resulta insuficiente como instânci
criadora, e em que, ao- mesmo tempo, o m aterial de “ argum entação" dá ao pro­
cesso um nível de produção teórica; mas, se por aí se tem um afastam ento do
legislativism o clássico, não se deve deixar de notar que a construção é feita
sobre a constituição como uma le i de índole especial. M ais sobre o tema no
Cap. V II (“How C onstitutions Change: Judicial In terp retatio n ” ) do M o d e r n
C o n s ti tu tio n s de K. W H E A R E , Oxford, 1956. Ver tam bém R U P E R T CROSS,
op. cit., parte VI.

99
todologias,51 a distribuição das disciplinas jurídicas deixa sem­
pre um lugar de honra para a “dogmática”, entendida como
saber propriamente tocante à análise do direito positivo sem
outras considerações que as “jurídicas”.52
E assim aparece, na literatura didática e na científica, um
padrão de obras cuja estrutura procura atender a isso. Escre-
vem-se livros de ‘‘direito civil francês positivo”, de “direito
penal italiano positivo”, que em verdade não são puramente
direito positivo porque a exposição tem suas larguras doutriná­
rias (a idéia de um direito positivo como ciência visa a dog­
mática como sua “apresentação sistemática”, porém sendo ciên­
cia não é só direito positivo), mas que devem ater-se ao direito
positivo e portanto nacional. Com isso, a teoria jurídica mais
geral ficou sendo um meio passo entre o registro da ordem le­
gal e as idéias que servem às compreensces de base. E com
isso continuou a prevalência do modelo privatista na imagem da*I,6

51 Sobre as "origens da m oderna dogm ática", uma profunda exposição, em­


bora breve, em M IG U E L R E A L E , F i lo s o fia d o D ir e it o , Saraiva, 1953, tomo
I, pp. 156 e segs. P ara o “ m om ento” exegético da dogm ática do dogm atism o, J.
BO N N EC A SE, L ’É c o le , cit., Chap. I II . P ara uma crítica do dogm atism o, AF-
T A L IO N — O LA N O — V I LAN OV A,. I n tr o d , ao D e r e c h o , citado, 6.“ ed., pp. 78
e segs. P ara P E R A S S Í ( I n t r o d u z i o n e , citada, p. 27), a dogm ática representa,
entre os saberes voltados ao jurídico, o ponto de vista específicam ente “ sistem á­
tico”. Em seu O P r o b le m a dó O b je to .da T e o r ia G e ra l d o E s ta d o (cit. à nota
I28)j cap. VI, p. 187, L O U R IV A L V ÍLA N O V A distinguiu igualm ente a dog­
m ática, como teoria m aterial das normas, da lógica, como teoria form al das mes­
mas. M ais algo à nota 9 de nosso “A idéia de S istem a” (citado) e à p. 52 de
nosso O P r o b le m a da H i s tó r ia (cit: à nota 2, Cap. I, !;• parte).
52 Sobre a form ação dá dogmática, oitocentista, W IE A C K E R , op. c it. , Mais
referências em nosso O P r o b le m a da H i s tó r ia (cit. à nota 2), Cap. I. Ver tam ­
bém IR IN E U S T R E N G E R , D a d o g m á tic a J u r íd ic a ( C o n tr ib u iç ã o d o C o n s e lh e i­
ro R . b a s à D o g m à tic a d o . D i C iv il Ê r a s i l e i r o ) , São Paulo, 1964, Caps. .1, 4, 5 e
6. Tendo sido a dogm ática uni cometido do. direito privado, por via rom anisti­
ca, é precária a posição do seu. conceito em d ir e i to p ú b lic o . Certo que nunca é
absoluta, a d istinção entre direito público, e privado, mas a dogm ática veio de
uma época em que se acreditava piam ente nela, e trabalhou sobre m aterial
considerado privado. Hoje, estando a divisão em crise, não é correto trazer ao
direito ainda dito público o estilo científico do privado, mas antes partir da­
quele pará lib ertar a este do excesso de form alismo. ' (Insista-se em que num
direito que não o legalista listo não ocorreria, e quando propomos uma crítica
do legalism o e da dogm ática r.ão pretendem os “recuar” o direito, até aó costu-
m eirismò, nem negar o valor enorme do saber jurídico que construíram . De
todo modo, fica visto que o qualificativo de jurídico, pegado à idèi* de um
saber, im plicava uma referência à lei.) No artigo citado atrás (à nota 20),
BIELSA adm ite com LABAND a dogm ática do direito público, aceitando os
princípios de d ireito privado como. princípios g e r a is do direito (p. 33), qúe com
ligeira m odificação se adaptam ao direito público com benefícios para a prática
ju ríd ica: para isso aduz a problem ática da construção constitucional (mencio­
nada já à nossa nota 50, atrás). E ntretanto, não é bem o caso. O qualificati­
vo “dogm ática” , afixado ao term o c o n s tr u ç ã o , em direito constitucional, não é
sempre usado, e seu emprego de resto não veda a compreensão de que se trata
de algo diferente. Não diferente porque o direito público e o privado sejam
dois rincões essencialm ente separados, mas porque as necessidades técnicas no
caso foram diversas, e havia m otivações políticas especiais na publicística em
geral, e em especial, na prática norte-am ericana. O adjetivo “dogm ática", apos­
to àquela “ construção”, vem só pedir que se a considere como suficientemente
fundada, no plano teórico.

100
ciência jurídica, em que o traço essencial era a referência à lei»
Chegou-se mesmo a querer fazer mais “científico” — e menos
político — o direito público, e dar-lhe os feitios do privado,
carreando categorias do direito civil para o administrativo, ou
esvaziando o direito constitucional dè certas voltagens políti­
cas.53

4. O "JURÍDICO" E 0 JURISTA

Ao lado dessa configuração do “jurídico” dentro do cam­


po do saber, desenhou-se aos poucos, sintomaticamente,, a ço-
-respectiva imagem do “jurista” (uma como retomada da no­
ção de homo juridicus, mas agora explicitada e coiti outro
sentido). Quer-se vê-lo como aquele ;qüe vive adequadamente
as questões jurídicas, ou mais ainda: què ante as quèstões ju­
rídicas toma o ângulo próprio, entendido cöitiö- ângulo próprio
o que não for nem psicológico, nem sociològico, nem políti­
co etc.
Contudo, se uma questão é jurídica, ela o é pelá incidência
de uma regra sobre um interesse, e então o ângulo jurídico já
está dado; e, então, ou o reconhecimento da questão se liitiitará
a uma rasteira informação sobre a norma positiva a aplicar ou
comportará análises com tematização mais ampla e abrigando
outros prismas. Temos aqui mais um problema: sendo o saber
jurídico-positivo tendente à especialização, o jurista nesse sen­
tido será de um determinado ramo, mas o ser “jurista” (à me­
dida que realiza aquele “pensamento jurídico”) é sempre, èm
relação aos ramos, uma generalidade.
O ponto de vista segundo o qual o jurídico, numa questão
jurídica, vai além daquela mera informação sem contudo con­
fundir-se com o de outros prismas, científicos, vai porém ,im-

53 Ver notas 38 e 52 atrás. “ Pendant longtem ps” , confirm a BU SSO N , “ ia


théorie du droit civil avait été considerée comme la théorie. generale du d ro it”
(op cif., p. 47). Uma agravante consiste ria -confusão reinante entre os nomes
de. disciplinas: v. g., o nome “direito público”, que entre os: autores de língua
castelhana designa ora o .direito público em geral, ora o constitucional, ora a
..teoria do Estado. No tem ática política, o hábito das distinções não foi jam ais
tão grande como na jurídica. Além- de tudo cabe observar que, • enquento o d i­
reito constitucional tem a ciência política como disciplina correlata, e o direito
penal a crim inologia, o direito civil nao tem nenhum a; a sociologia jurídica,
,-mésmo retom ando-se a idéia de “ sociedade civ il” em sentido Hegeliano, e mes-
. mò voltando-se à obra dç De La Grasserie, não estaria no casó.

101
plicár uma petição dê princípio: o prisma é jurídico quando
evita toda a consideração extrajurídica, e uma consideração é
jurídica quando feita sobre ò prisma jurídico. A petição é for­
malmente resolvida se se toma a idéia de ordenamento, como
. sistema de normas inter-relacionadas a serem objeto do traba­
lho do jurista em suas considerações “jurídicas”, mas aí está
uma .idéia que corresponde a ura recente resultado histórico.
È quando se resguarda o jurídico como formal e normativo,
há quase sempre uma tendência conservadora com omissão
dos conteúdos éticos que o jurídico tem c deve ter.
Naquela imagem do jurista, de que se falava, ele é apre­
sentado como guardião da ordem jurídica, num sentido estri-
taimente formal, isto é, legal, o que em fim de contas significa
reduzi-lo a um conhecedor de vigências positivas (e de eficiên-
cias forenses). O específico “ponto de vista jurídico” ficaria
impedido, por tal, de compreender integralmente seu próprio
objeto: pois que este, o direito, sempre terá de ser definido co­
mo algo bastante amplo.
O. pedagogo e o economista podem pôr-se “fora do siste­
ma” e criticá-lo, mas ao jurista vêm dizer que deixe a crítica
ao filósofo ou ao sociólogo. Não ocorreu, com estas outras
ciências, a formalização que atingiu a do direito, já pelas vin-
culações desta a formas oficiais “imperativas”, já por elementos
que nela traduzem a marca de uma herança escolástica. Se­
ria estranho, certamente, que um economista ou um politòlogo
se limitasse a descrever sistemas, escusando-se de julgá-los ou
dej manifestar preferências, por conta de purismos metodoló­
gicos.
Semelhantes interdições, porém, cuja raiz na teoria jurídica
sê compromete com o legalismo, são válidas apenas (e na ordem
abstrata) para os que as aceitam: pois a crítica, quando vem,
se diz tão jurídica quanto filosófica.54 Aliás, se olharmos a
tfajetória do pensamento jurídico, veremos que os vultos que
. 54 Üm antecedente ' ilustre da reivindicação, pelo ju rista, da - especialidade
de s è u . ponto de vista, reivindicação aliás respeitável em tantos casos, é o de
Edw ard Coke, o famoso juiz-presidente inglês, ao dizer ao rei que a compreen­
são do direito requeria mais do que o entendim ento natural, requeria mesmo
uma certa “ razão artific ia l” (apud S A B IN E , H is tó r ia , citada, p. 432). Sobre o
assunto “ju ris ta ”, v. o verbete “ G iu risti” no F r a m m e n t i d i u m D iz io n a r io Giu~
r id ic o de SA N T I ROM ANO (M ilano, 1947). Igualm ente, CH. .E ISE N M A N N ,
“ Le juriste. et le droit n a tu ra i”, em L e D r o i t N a tu r a i , PU F, P aris, 1959, pp. 205
e se g s.; e E. RAG ER, “ Legal E ducation: Tow ard W hat Im age”, e m C a se and
C o m m e n t, voi. 69, n.° 5 (sept.-oct., 1954) pp. 16 e segs. Tam bém M IG U E L
R E A L E , em R e v . B r a s , de F i lo s o fia , n.° 24 (out,-dez., 1956), p. 505.

102
aí aparecem como maiores, como “gênios”, sobressaíram-se em
áreas temáticas que em grande parte ficariam fora das rigorosas
delimitações que o formalismo pretende para o sáber jurídico.
Essas limitações circunscrevem o jurista a um balizamento onde
o levantamento de idéias novas se torna impossível. Kelsen
mesmo, cuja genialidade deve ser admitida, foi mais notável ao
discutir epistemologia do que ao conter-se na dogmática: mas
sua própria teoria obriga o jurista a conter-se na dogmática e
não se meter na epistemologia. E se Tomasius se restringisse a
comentar a lei? E se Ihering não cuidasse de História?

103
II
TRANSFORMAÇÕES E
CONTINUIDADES

1. CONTRADIÇÕES, OSCILAÇÕES, CONTINUIDADES

Considerada a formação dos modos de predomínio da lei


e da legislação no direito contemporâneo, dentro de um qua­
dro onde surgem mutáveis correntes de idéias, aparecem entre­
tanto momentos em que a apologia clássica da lei é negada.
Com o movimento romântico, por exemplo, dá-se um
desses mementos. Com ele um historicismo de tipo passadista
e sentimental tendia a opor-se à lei e ao legalismo, apresen­
tando o direito costumeiro como ideal orgânico da vida social
e jurídica. Por algum tempo a Ciência do Direito timbrou (e
consistiu) em rever monumentos antigos, pretendendo afastar
do domínio das formas racionais o crescimento vital da ordem
jurídica. Com o movimento socialista, conduzido aliás sobre
raízes bastante antigas da história do pensamento europeu e
mesmo pré-europeu, e intensificado desde a Revolução Fran­
cesa, o formalismo legalista se viu também combatido, como
aliás todos os seus supostos e complementos: o individualis­
mo liberal, o politicismo teórico etc., em prol de um comu­
nitarismo fraternizador ou de um economicismo de amplos al­
cances.
Entretanto, olhado o quadro sob outro prisma e tomado
como uma seqüência, aparecem as continuidades. Por trás e
ao longo desses momentos, a persistência das instituições do
estado de direito mantém a primazia da lei como modo de
ser por excelência da ordem jurídica e do direito objetivo.

104
Para situar o lastro cultural dessa continuidade, será pre­
ciso minar a permanência dos mesmos ingredientes básicos que
compuseram o clima histórico em que o legalismo contemporâ­
neo se formou, isto é, a sociedade burguesa, o racionalismo po­
lítico, o industrialismo etc. A perduração de tais ingredièiites
não é absoluta, obviamente, mas em seu. todo o qué se chama
de Ocidente segue exibindo e desenvolvendo a mesma compo­
sição: e em particular a idéia de “ciência” persiste.1 De certo
modo, é o nosso acúmulo de consciência histórica que faz. ás
mudanças recentes aparecerem tão màis densas diante das mais
antigas, quando às vezes estas são mais profundàs. Ceitos^ ^
dos de pensar.têm tido peculiar permanência;2 em alguns casos,
as mudanças de agora, não atingem a unidade d a.linha encetada
no começo da época liberal.3

2. NQVA ALUSÃO A HAURIOU

Voltariam à baila, se tosse para alongar miais o assunto,


^s já faladas generalizações de HAURIOU. Por exemplo,; aque­
la, que consiste; em descrever a sucessão de três “idades” dentro
dà èra das instituições:4 a idade primitiva das naçces e do cos^
turne; a da discussão, com leis escritas e Estado,,'e a çonstitur
çional. Mas esta última na verdade é seguimento imediato da ;
precedente, pois poderia dizer-se que no constitucionalisinp á
postura política é nova mas o requisito jurídico da lei escrita:
é mantido desde a fase anterior'
Mais se verá, porém, sobre o tema quando (Cap. Xiy.)
ncs referirmos à crise do legalismo hoje. 1

1 Cf. nota 11, Cap. II, 2.° parte. Sobre a .influência do "conceito p o siti­
vista de ciência" sobre a teoria jurídica, ver as profundas páginas de K ARL
L A R ÉÑ Z, M etodologia de Ja Ciencia del Derecho (trad.. E. G. O rdeig, ed.
Ariel. Barcelona, 1966, Cap. I l i da prim eira p arte). LA R E N Z distingue três
cientificismos- positiv istas na teoria do d ireito : o psicológico, ligado a Bier-
ling, . o sociológico, cheio de nuances, e o form alista, vinculado à obra de
Kelsen.
2 Cf. o ensaio de PO LL O C K , cit. ao firn da nota 3, Cap. V, 2.a parte. .
3 Cf. nosso, artigo sobre Separação de Poderes (citado), pp. 79-80, sobre
a continuação do “principio" dos poderes. Resulta um tanto m isteriosa, a nósso
ver, a diferenciação contida no artigo 20 da C onstituição da R epública Federal
Alemã ("O poder legislativo se subm ete à ordem constitucional; o executivo e
o judiciário suhm**' — * lei e d ^ i t o ”, v e r b is: "sind an Gesetz und Recht
gebunden").
4 Çf. supra, notas 2 e 3 do Cap. I, 2* parte.

105
Ill
DECORRÊNCIAS DO LEGALISMO:
O CONCEITO DE LEI
£ OUTROS CONCEITOS

1. NOÇÕES ANTIGA E MODERNA DE LEI

Tentemos agora ver que decorrências outras provieram,


para a teoria do direito tal como veio sendo cultivada no Oci­
dente, do regime de primazia da lei.
Desde logo, insistimos no fato de que a idéia de lei cabe
tanto para experiências legislativas bastante passadas, como
para manifestações modernas. A um exame global a história
do direito passa como sendo a história das leis. Entretanto, é
necessário entender que hà distinções substanciais a manter.
" Compreende-se em que sentido se pode falar numa dife­
rença entre, a noção antiga da lei e a moderna. Quando um
pensador antigo falava nas leis, referia-se aos ditames escritos
da “cidade” dentro de uma valorização da ordem comum. A
noção de lei crescida e fixada dentro da experiência contem­
porânea é mais fluida e mais complexa, mesmo porque ao me­
nos nos parece mais carregada de possibilidades críticas. A lei
se nos apresenta como expressão por excelência do jurídico,
como representação essencial da regra de direito.
Vimos já a época democrática fazendo considerar como
lei o produto das assembléias. A vontade popular existindo
para se fazer norma expressa, esta se entendendo como formu­
lação perfeita do comando jurídico. Aliás, a atenção excessiva
sobre a norma como tal faria esquecer às vezes o próprio “co­
mando”.

106
2. A “ G E N E R A L ID A D E " DA LEI

Muito importante foi o aparecimento do problema äe ser


a lei uma regra de alcance realmente geral e definitivo.1 A
caracterização da lei como “geral” implicava, observe-se, a atri­
buição, a eia, da condição de norma sempre nacionalmente am­
pla, o que por certo significa a presença de um princípio po­
lítico: sua generalidade era correspondente à plenitude da
unidade nacional. Semelhante generalidade, enquanto distinta
de alguma “particularidade”, só podia explicar-se como supe­
ração dos particularismos medievais e devia corresponder à
regra em função de um dado espacial, de um limite concreto
que no caso foi dado pela soberania nacional.2 Posteriormente,
esse tema se veria ligado ao da autonomia formal das “ordens”
jurídicas, em que tanto se abrigam sistematicamente as normas
mais gerais quanto as menos, e em que a amplitude é paralela,
justamente no plano da positividade, à de cada coletividade po­
lítica soberana.
A generalidade era entendida, à época liberal, como au­
sência de vinculaçáo a quaisquer interesses locais ou pessoais;
mas como o direito, para ser aplicável, precisava evidentemen­
te de alguma forma de conexão com interesses locais e pes­
soais. De onde a idéia posterior do “escalonamento” de nor-

1 V. atrás, nota 9, Cap. V, 2.a parte, onde se alude à formação da m oder­


na teoria da lei. De certo modo, reduz-se com ela o velho conceito amplo de
lei (no qual chegava a caber uma dim ensão teológica) a algo puram ente técnico
ou então político-jurídico. Há uma relação, sempre m encionada, entre a elabo­
ração de proposições de cunho geral na ciência natural dos séculos X V II a
X IX , e a form ulação de norm as gerais na legislação lib eral:, tentativas de apa­
nhar o perfil comum dos casos possíveis, ou por meio de abstrações que ex-
prim am situações-tipo, ou m ediante desdobram ento de “princípios” considerados
fundam entais e prévios ao tratam ento das ’realidades. M etodologicamente, o vín­
culo do saber jurídico ao padrão científico-natural é hoje coisa posta de lado,
m as o observador atual pode sentir que o legalism o, naquilo que ficou tendo
de generalizador, cum priu uma etapa adequada, pòis tam bém em direito a lei
era necessária para as generalizações; o parentesco com os geom etrism os clás­
sicos terá sido um estágio que se pode aceitar como “ culturalm ente explicável”.
E há o fato de ter sobrevivido, durante tudo isso, o velho preconceito aristo­
télico estim ador do geral. Para V IT T O R E C O L O R N I, o elemento g e n e r a lid a d e
vinha sendo exigido, para que um estatuto pudesse ter o nome de lei, desde o
medievo (ô que m antém para a coisa uma sugestiva continuidade até h o je):
L ’e g u a g lia n z a come L i m i t e d e lla L e g g e n e l D i r i t t o I n te r m e d io e M o d e r n o , M i­
lano, 1946, Cap. II, § 2, p. 72, citando opiniões de Bartolo,'. Baldo, Jasão del
Maino, Brederod, Scaccia etc., referentes à estim ação e aplicação de estatutos e
dispositivos, em face de diversos, tipos de casos.
2 Note-se que, ao tempo, ainda não se achava em causa o Estado de es­
tru tu ra federal, e a soberania nacional se definia em sentido unitário e indi­
viso.

107
mas, partindo da lei e incluindo os regulamentos etc.3 À lei
como tal se reservou a dignidade maior de ser sempre geral.
Quanto ao outro ponto, de ter a lei intenção de valer para
sempre, aí se revelava igualmente a sua hipervalorização, por
meio ainda da ficção iluminista de uma vontade comunitária
regulando-se por uma razão clarividente e colocadora de solu­
ções insubstituíveis.4 Demais, a lei conferia o ensejo da pre­
visibilidade de soluções no ordenamento, e aí residiria seu valor
realmente maior — o valor da certeza.5
O traço mais característico, dentre os que marcaram a
doutrina a respeito, consistiu em considerar-se a lei, entre as
chamadas fontes, como forma mais evoluída e como signo de
progresso. Também aqui a exposição de COGLIOLO é típica:
direito legislado se identifica com direito evoluído e desenvol­
vido, trazido aos ápices da civilização. E nisto as citações com­
plementares seriam inúmeras.6

3 Muito útil, apesar da m otivação fascista, o art. de G. Z A N O B IN I, ‘‘Ge­


rarchia e parità fra le f o r ti”, em S e r i t t i G iu r id ic i in on d i S a n t i R o m a n o , voi.
I, Cedam, 1940, pp. 589 e segs.
4 E SM E IN chega a definir a lei como ‘‘regra im perativa ou proibitiva
posta pelo soberano, que estatui não num interesse particular, mas no interesse
comum, não com respeito a um indivíduo isolado mas a todos, para o futuro e
para sem pre” ( É l é m e n t s , cit. à nota 5, Cap. I l l , 2.a p arte; p. 15). Autores
mais modernos têm exam inado, na teoria da estrutura da norma, esta referên­
cia da lei ao “ futuro”, como questão formal, como- circunstância vebal. Im por­
ta porém, sobretudo, ver a raÍ 2 histórico-cultural da coisa, ou seja, o clima
racionalista desde o século X V III, em que se valorizava o que pudesse vigorar
sem lim itações cronológicas. Da especulação setecentista é que vem justam ente
o cerne da hoje cham ada “ razão política”, ou ao menos (caso tomemos a razão-
-de-estado m aquiavel-boteriana como base desse cerne) a sua form ulação em
term os revolucionários, e de certa forma cartesianos.
5 Cf. a citada obra de L O P E Z DE O Ñ A TE, e tam bém a nota 41, Gap.
I, 3.® parte.
6 “ Se una regola giuridica avesse passati tu tti gli stadii di evoluzione,
sarebbe sta ta incarnata prim a nella s e n te n tia iu d ic is , poi nella c o n s u e tu d ó ,- e
in fine form ulata nella lex” ( F i l o s o f i a , cit., p. 43). O emprego de vozes la ti­
nas dem onstra a intenção im plícita de tom ar o esquema da evolução das far?-
mas rom anas como padrão da evolução do jurídico em geral; essa intenção se
sustenta na crença lin earista numa evolução uniform e, em que um rnesm o. prin­
cípio “atrav essa” fases sucessivas, axiom áticam ente demonstrá'veis (y.’ igualmente
sua frase cit. atrás à nota 40, Cap. I, 3.a parte). Em identico sentid'pVGön­
ner, a p u d SA V IG N Y na recensão seu livro (incluída em L a E s c u e l a H is tó r ic a
d e l D e r e c h o — d o c u m e n to s p a ra s u e s lu d i o , M adrid, 1908, p. 39); S. M AINE,
A n c i e n t Law, citado, p. 28; L A D ISL A S Z A LE SK I, L e P o u v o ir e t le D r o i t ;
P h i lo s o p h ie d u D r o i t O b j e c t i i , trad. Balabanoff, P aris, 1899,' C hap.. X IV , p. 80
(“ La loi doit succeder au .-.droit coutum ier; eile' doit avoir une influence educa­
tive, être un moyeñ; d e progrès, ce qui serait im possible . si la puisait son
contenu du droit coutum ier”) ; H. CA PITA N T, J m r o d . à L 'é t u d e d u D r o i t C i­
v i l , 3.a ed., 1912, pp.- 20. e segs.; SA N T I ROM ANO, F r a m m e n t i, cit. pp. 41 e
segs. (A rt. "C onsuetudine” ) ; mesmo D E L V E C C H IO , S t u d i , cit., p. 225. É
perfeitam ente explicável que, em face da crescente diferenciação entre as for­
mas de expressão da regra jurídica, e dado que a forma “ lei” detinha as Qua­
lidades do u trin árias e- efetivas de generalidade e definitividade, recebesse ela a
prim azia. O característico do século X IX consistiu em situar o advento da lei
em uma espécie de “ necessidade” m oral ou cultural da própria ^civilização ; as

108
3. A LEI E A CIÊNCIA JURÍDICA

Posta a lei como fonte por excelência e como expressão


superior do direito, pode-se dizer que de então em diante a
Ciência do Direito — acompanhada da Filosofia do direito — ,
giraria em torno de imagens ligadas à lei. Os tópicos ainda hoje
componentes de uma teoria do direito ficaram referidos às leis,
direta ou indiretamente. Malgrado a distinção entre direito e
lei, distinção necessária e aliás fixada nos grandes idiomas eu­
ropeus,7 o que se viu, por todo o tempo em que cresceu a
Ciência do Direito contemporânea (sobretudo nos marços do
liberalismo), foi a idéia de lei fascinar o pensamento jurídico,
quer dando à perspectiva teórica um marco seguro nos traços
da norma expressa e precisa, quer dando à ocupação prática
a perdurante experiência de seu predomínio. Assim desdobrou-
-se a teoria da lei, das espécies de lei, das partes da lei, dos
conflitos de leis etc. Essa teoria da lei é que deu o tom aos
grandes problemas. Problemas como o da relação entre leis
no espaço ou no tempo criaram o direito internacional privado
e o intertemporal.8 Problemas dê relação entre ordenamentos,
entre porções de ordenamentos, ou entre momentos de um orde­
namento, gerados sobretudo por causa do regime da lei — pois
num “ordenamento” costumeiro (se em tal se pensa) não te­
ríamos conflitos de jurisdição ou ripristinatoriedade (senão tal­
vez excepcionalmente) — apárecem como peças fundamentais
na armação de uma teoria do jurídico. E tinha de ser: pois a
isso correspondiam as grandes questões reais dos ordenamentos.

eras costum eiras eram vistas como p reparatórias para a instauração da “ devi­
da” prim azia do legal; essa “ passagem " do direito pré-legal ao legal com preen­
dia-se, nãc propriam ente ou não apenas como episódio históríco-cultural tão
relativo como todo outro, mas também como algo cujo valor se confundia com
a perfeição que conceitualm ente a lei recebia.
7 E o curioso é que na In g laterra, onde o caso do legalism o não é ex a ta ­
mente o mesmo do “ continente”, é que uma só palavraf law ficou exprim indo
direito (objetivo, sendo tig h t para o subjetivo) e lei, em bora para lei haja tam ­
bém àct e statute. A respeito, PO LL O C K , E ssays, cit., p. 9. Em BLACK-
ST O N E , tanto encontram os law naquele sentido (“The Common Law of E n­
gland” quanto no outro, o de regra especial: “ laws, in their more confined
sense ( . . . ) denote the rules, not of action in general, but of human action or
conduct” (Commentaries on the L aw s of England, cont., nota 207: in four
books. The fifth edition, Dublin, 1773, volume I, pp. 17 e 39.) T ratava-se de
excluir a acepção m ontesquiana de lei em sentido m uito amplo.
8 P. L E R E B O U R S — P IG E O N N IÊ R E , P récis de D . International P rivé,
cit., Introd., S. I l i ; W E R N E R G O L D SC H M ID T , Sistem a y filosofia dei Der.
Irit. Privado,' T. I., Barcelona, 1948, parte I ; C. M A X IM IL IA N O , D ireito I n ­
tertem poral ou Teoría da R etroatividade das L eis, 2.“ ed., 1955, “ G eneralida­
des”.

109
Problemas, também, como o do direito objetivo e do subjetivo,
distinção construída à base da relação entre o valor geral e abs­
trato da lei e as faculdades e pretensões do indivíduo (vindo
inclusive da velha questão da participação de cada qual na von­
tade geral).9 Salvaguardou-se aí o valor da individualidade, re­
cheada de potencialidades e de vontades declaráveis, mas tam­
bém o da lei, da qual dependiam a manifestação e a atuação
das declarações de vontade (o direito objetivo declarando, li­
mitando e protegendo o subjetivo),10

4. O PRIMADO DA LEI

Temos então a idéia setecentista-revolucionária de lei como


declaração, pelo povo, de seus deveres sociais, através dos “re­
presentantes” e em sentido sempre geral, produzindo configu­
rações teóricas bem caracterizadas. Note-se que aí atuou o que
temos referido como consciência-de-ser-regime superveniente,
assumida pela mentalidade democrática: a democracia se “sen-

9 Sobre a form ação do conceito de direito subjetivo, v. o ensaio de V IL-


LEY no livro citado, à nota 4, Cap. H , 2.“ parte. O problem a ficou, na teoria
geral, posto em term os de dependência formal da parte do subjetivo perante o
objetivo, não podendo haver aquele, que é faculdade, sem o facultante què é a
lei. Pôde portanto dizer W. C. SFO RZA que “non vi è d iritto sóggetivo senza
una legge"; Guida allo S tudio della Filosofia del D iritto , Ediz. Italiane, Roma,
p. 129). Dai que os códigos ficassem fazendo expressam ente corresponder, “ a
todo direito", uma ação, “ que o assegura” (C. Civil Bras., art. 75). Em direito
constitucional, a correspondência sendo entre direitos e garantias, surgindo a
questão dos direitos públicos subjetivos.
10 V. atrás, nota 18, Cap. IV, 2.“ parte. Pouco interessa, para aqui, a
questão de saber se c direito objetivo existiu “ sem pre", se veio antes doEstad
(como enfatiza A R IN O S, Curso, cit. à nota 8, Cap. I l l , 2.a parte: I, p. 13),
pois o direito que interessa aqui, como experiência jurídica, é o que tenha es­
tado acom panhado de um saber respectivo. A idéia de direito objetivo, cujo
contorno precisava da do subjetivo, tem existência recente e^ sua entrada na teo­
ria geral se deve à influência dos modelos legais. O fato é que mesmo no sis­
tem a inglês o d ireito objetivo tam bém é visto como fonte do subjetivo (“ By
the law of E ngland, we mean the sum of all the components that go to make
up at any point of tim e the sources of the rights and duties of E nglishm en and
others subject to E nglish ju risd ictio n ” — E V E R S H E D , cit. à nota 6, Cap. I,
3.a p arte; p. 248), Se, de alguma m aneira, a idéia de “ fonte" pôde ser u tili­
zada para fundar a relação entre as duas formas de djireito, o objetivo e o
subjetivo, pôde-se de certo modo tam bém para a distinção entre am bas: é ob­
jetivo o direito que se encontra emanado ou “ saindo" de alguma das partes da
ordem ju ríd ica ; é subjetivo o que corresponde à posição da “ pessoa" como de­
positária dos resultados que a regra prevê. Mas a teoria estabelece que o di­
reito sai como norma, ou como regra, e sai de um “ órgão" com função prevista.

110
te” como regime que vem após a queda de outro (e eia é mais,
mesmo, um caminho, um sucessivo amadurecimento de apro­
ximações institucionais). A idéia de lei atendia à necessidade
de explicação que se sentia em relação a certos pontos da
“nova” ordenação social, e ao mesmo tempo dava um confor­
tável aspecto de estabilidade aos preceitos que se tivessem de
impor. Uma necessidade política, aquela, e cultural também. E
a estabilidade dos preceitos, vinda de serem eles dados pela
razão e pela vontade sempre “gerais”, se compensava com a
possibilidade de todos conhecerem e compreenderem os ditames
que tinham de seguir.
O curioso é, porém, que o primado da lei, que em seu
apogeu possuiu ligações com determinadas condições sócio-cul-
turais, sobreviveu a estas. Vemos assim hoje, no meio da crise
dos ordenamentos liberais e do Estado-de-Direito chamado bur­
guês, ou mesmo de sua derrubada em outros grupos de países,
a permanência daquele primado. Está dentro da questão, por
exemplo, o papel da lei no direito soviético ou no da China
comunista — a que se aludirá adiante. Nestes sistemas, mu­
dado apregoadamente o sentido das leis, elas seguem sendo
a forma por excelência de expressão do direito objetivo.11 Se­
ria a lei em si mesma e por si mesma o ideal formal do direito?
Ou essas transformações econômicas e políticas não se acom­
panharam ainda de correlativa transformação jurídica, manten­
do no plano do direito o legalismo cuja formação e apogeu
foram paralelos aos do liberalismo e do capitalismo?
De fato o valor da lei, que, como disse atrás, se centrava
na sua função de explicitação, persiste. E se tomarmos a lei
como forma de “expressão” do direito, ela deve ou pode con­
tinuar predominando — entre as outras formas. O erro do le­
galismo do século XIX foi o de, além de dar predomínio à
lei, conceituá-la como fonte: sendo ela a fonte básica, não ha­
via onde localizar instância que a controlasse, e se juntavam
nela a idéia sistemática de valor maior e a idéia de “origem”,
respeitável por si e latente na noção de fonte. Se, porém, se
reduzem as idéias de lei, costume, jurisprudência etc., à condi­
ção de expressões do direito, a noção de fonte, que é uma no­
ção ambígua e elástica, poderá ser estendida a outras entidades:
a soberania nacional, a consciência jurídica, o povo, a comu-
11 Veja-se o capítulo IX , sobre a "legalidade socialista", no livro de A L E ­
X A N D R O V e outros, Teoria dei E stado y del Derecho, ed. Grijalbo, México,
1966.

ui
nidade; e em nome dessas entidades se pensará num modo de
rever e conduzir a função das “expressões” do direito, bem co­
mo manter ou refazer a hierarquia delas, que aliás a lei poderá
continuar encabeçando. É evidente que isso vai de lege je-
renda, e é nesse plano que a crítica tem de trabalhar. E para
os usos práticos, o que vai dito aqui não importará talvez em
grande mudança, mas para a teoria sim. Na verdade, a teoria
das fontes pode $er considerada como básica, mas por isso mes­
mo deve ser revista. Toda fundamentação democrática do di­
reito tem, inclusive, de começar pela referência às fontes: mas
isso não quer dizer referência à lei ou à jurisprudência que são
formas de expressão; quer dizer referência às entidades em que
o valor do direito enraíza. Claro, também, que nada disto teria
cabimento nem sentido se o jurídico se tomasse unicamente
como “forma” , relegando à política a alusão ao povo ou às
outras entidades. O caso é que,, na própria tradição do pensa­
mento ocidental, desde pensadores medievais, o povo foi fre­
qüentemente indicado como fonte do direito e este é o tipo
da* sugestão que as revisões históricas precisam recolher para
desenvolver. Ou, sè se prefere, reentender para reencontrar.

112
DECORRÊNCIAS DO LEGALISMO:
A HISTÓRIA DO DIREITO E
A “FORMAÇÃO DO DIRETTO”

1. GOMO PASSOU A SER V IST A A EVOLUÇÃO


DO D IR EITO

Toda esta experiência teórica e prática do predomínio da


lei, implicava, e ao mesmo tempo favorecia, uma determinada
imagem da evolução do direito: a imagem de um progresso em :
que o direito difuso e indeclarado se transformava rio direitó;
distinto e expresso em texto. No século XIX, aliás, esta ima­
gem se reforçou por uma tendência típica da mentalidade in­
telectual oitocentista, a de ver os trajetos históricos das coisas
como caminhos por onde elas chegavam a ser o que eram en­
tão.1
A “evolução” do direito era explicada como um percurso
cuja perspectiva se estimava a partir do ponto de chegada. Sen­
do este ponto de chegada correspondente ao domínio do direito
legislado, ö passado jurídico se via como uma aspiração à lèi;
Com isso se juntava a idéia, renovada desde HEGEL, de ser a
história uma luta pela liberdade, e a lei era a liberdade.2 O
1 Assim a filosofia de Hegel e as dela derivadas, em quê um a razão se.
desdobra até culm inar no que o século era, ou no que pretendia ser. Mesmo
em sociólogos tão realistas como Durkheim , o tipo de sociedade vivido rio ; sé-,
culo X IX era o padrão quando se falava em tipos sociais desenvolvidos e aper­
feiçoados pela divisão do trabalho (cf. nosso artigo citado à nota 17). N esse
século o esquema básico para a visão da história do direito era o de um evo­
lucionismo linear com partido com outras histórias (a dá política, a da pedago­
gia, a das línguas), e desenvolvido, pelos Cogliolo, Letourneau, S. Mairie, Pe-
pere etc., como um percurso em que as form as "a n tig a s” passavam através da
desvalorizada Idade Média, às realidades m odernas com a regularidade, dos atos
de uma peça conhecida.
2 V. nota 16 do cap. V, 1.“ parte, supra. Tam bém M A RSH A LL tinha dito,
em M arbury V. Madison, que a essência da “ liberdade civil consiste no direito

113
passado jurídico, em suas etapas e suas divisões, se compreendia
em função desses supostos. A chamada Idade Média, por exem­
plo, que vinha sendo mal falada desde o humanismo, e cujo
retrato fora tão enfeiado durante o século XVIII, manteve-se
no banco dos réus durante toda a tradição positivista,*3 e o di­
reito medieval foi considerado como meramente costumeiro e
portanto pré-legal,4 — um fosso entre o legalismo romano e c
legalismo moderno (excusado repetir que esses dois legalismo!
não são, contudo, exatamente iguais). O romantismo é que,
revalorizando o passado medieval dentro da certeira intuição de
que ele não fora um hiato e sim um começo cultural, o do Oci­
dente, deu nova estima à imagem jurídica da Idade Média, ao
preferir o costume à abstração legal como forma de direito.
Mas esta revalorização não deu os frutos que devia ter dado:
mesmo porque naquela intuição o passado medieval apresenta­
va o problema de uma origem, e a teoria da história do direito
ainda não estava apta a dar ao tema o tratamento cultural de­
vido.
E naquele diapasão se fizeram, na sua maioria mais re­
presentativa, os trabalhos sobre história do direito e do Esta­
do: pensando-se sempre num itinerário inexorável que levasse
até à época do direito-lei.
Cabe aliás uma observação sobre os modos pelos quais se
ficaram relacionando os conceitos de Direito e Estado. Temos
por exemplo a concepção de que o direito antecede genetica­
mente ao Estado, dando-se àquele um perfil maior do que a
este, e considerando-se “direito” um corpo de regras de uso
impostas aos membros de grupos, ainda os mais atrasados,
e “Estado” uma organização que aparece apenas numa etapa
da evolução do direito. Temos também a opinião de que o
direito e o Estado se correspondem como lados de uma só coi­
sa, sendo aquele um sistema de normas e este um sistema de
competências que dão eficácia ao direito. Temos ainda a de
que tem cada pessoa de invocar a proteção das leis” ( D e c i s õ e s , cit. à nota 18,
cap. I, 3.a p a rte ; p. 11). P O U N D , citando. Ihering no elogio da “ form a” como
inim iga do capricho, adm ite ser ela, no direito, a irm ã da liberdade ( D e v e lo p ­
m e n t , cit. à nota 5, cap. I I, 2.a parte, p. 14).
3 Um dos livros m ais típicos, dentro desta linha, foi o de JO H N DRA­
P E R , L e s C o n í l i t s d e la S c i e n c e e t d e la R e l i g i o n , ed. Alcan, P aris, 1903. En­
tretanto, CO M TE chegou a elogiar um aspecto da Idade Média — a idéia
feudal de “ lealdade”, superadora do egoísmo e altam ente valiosa (cf. S y s t è m e
d e P o l i t i q u e P o s i t i v e — ou T r a i t é d e S o c io lo g ie , tomo I I I , P aris, 1853, Cap.
V I, pp. 456 e 461).
4 Sobre o que há de discutível nisso, v. r e tr o , notas 4 e 5, Cap, II, 2.a
parte. Sobre as revisões contem porâneas dos tem as jurídicos m edievais, v. • a
parte I ■(T radizione e C rítica M etodológica) da I n tr o d u z io n e á l D i r i t t o C o m u ­
n e , de F. CALASSÒ, M ilano, Giuffrè, 1951.

114
que o direito é criado pelo Estado; do Estado vem o direito.
A primeira concepção envolve uma espécie de projeção: por
trás da concepção de que onde houver normas sociais há di­
reito, há o mesmo suposto de que o direito consiste em norma;
e a idéia contemporânea do direito (sobretudo a idéia liberal
oitocentista que prefere teoricamente o jurídico ao estatal) se
projeta sobre realidades sociais pretéritas. A segunda corres­
ponde a uma tendência da chamada dogmática jurídica, bem
como ao kelsenismo, manipulando um conceito de estado que
foi construído com elementos puramente legalistas: o Estado
como um esquemático conjunto de instâncias referidas à cria­
ção, aplicação e controle da norma, ou seja, da lei. A terceira
implica que a “fonte” do direito é o Estado (a idéia de Estado
absorve a da lei e a das outras fontes); ela vem da idéia lega­
lista de fonte, pressupondo que todo direito é necessariamente
direito positivo e que direito positivo é a lei que o Estado deu,
ou então o que o Estado diz sobre a lei através de seus órgãos.
Também a colocação do tema da origem do Estado, em relação
com o poder, traduziria a visão de um Estado-de-leis que deveu
sair de um Estado pré-legal; o caráter “legal” seria condição
e sintoma da absorção, no Estado, do poder pelo direito. Te­
ma este sempre incômodo, o do poder. Esta concepção é do
tipo da que se exprime quando se diz “a caminhada do gótico
ao barroco”, cu “do feudo aos trustes” : tem-se em mente nes­
ses casos a idéia de um caminho que tinha de ser atravessado,
como se o marco inicial existisse para fazer chegar ao final,
este sempre tendo existido. Vê-se em conjunto um trajeto fei­
to, cujo sentido é retrospectivo; projeta-se, sobre o que pode
ter sido a realidade do anterior, o cunho da dependência em
relação ao modo de “alcançar” o posterior.
Mas sob certo aspecto o ponto de vista genético cedia ao
sistemático: por exemplo, ao considerar-se, como foi visto, a
lei corno fonte principal, dando-se à idéia de fonte um sentido
um tanto diverso do histórico-genético.

2. 0 L E G A LISM O COMO ÉPOCA?

Talvez fosse possível, entretanto, com o material arrumado


pela historiografia e com o estilo dos esquemas hoje sugeridos

115
para interpretações históricas, falar numa caracterização da his­
tória do direito moderno segundo épocas mais legalistas e épo­
cas menos legalistas. Épocas de maior predomínio da lei e
épocas de menor volume de leis e sobretudo menor preocupa­
ção legisferante. O que equivale, como problema de visão his­
tórica, àquele tema já aludido da passagem de épocas cos­
tumeiras a épocas codificadas com suas implicações culturais.
Semelhante caracterização caberia tão só como um modo de
ver certas fases; não se trataria de modo algum de captar-“leis”
evolutivas nem de fixar generalizações.5
A utilidade disso tudo seria a de ajudar a ver o legalismo
como uma fase, uma etapa, cujos valores se fundam e se me­
dem numa inserção histórico-cultural. Com isso se compreen­
derá a perspectiva de certas posições atuais de crítica ao im­
pério da lei, ou certas constatações da sua crise. Crise que às
vezes se atribui ao direito como tal, mas que é antes de um
sistema, ou de um tipo de direito apenas.

5 Não cair era generalizações como as de G. M A ZZARELLA, em “Con­


tributo alla determ inazione della legge etnologica d e ll’evoluzione del d iritto ” na
R i v . I n t . d i FU. d e l D i r i t t o , ano XX, fase. I l i , 1940. A observação de PA­
R A D ISI ( S t o r i a , citada, cap. II; pp. 43 e 44), de que a concepção política im­
perial, que enfeixou. na vontade do soberano a condição de centro de produção
do direito, teve como seguimento a queda do valor do saber jurídico, não. deve
por seu turno valer para . to d o s os casos de executivism o c m onarquismo. Fácil
demais, tam bém , a afirm ação rotunda de H U SSO N { T r a n s f o r m a tio n s , citado,
pp. 13 . e 15), de que as im agens prim igenias e originárias, que de “ ju rista s”
teve a hum anidade, foram a do legislador organizando sua cidade e a do juiz
que dirime, controvérsias sem .se ater a qualquer regra preexistente, e só por sua
consciência. E xiste, como não podia deixar de ser, uma dificuldade muito sé­
ria na aplicação dos conceitos .do. saber jurídico (este saber já hoje paralelo a
outros saberes sociais e com um? estrutura vinculada à experiência ordenamen-
tal “ o cidental” e “ contem porânea” ) à análise daquilo que nos povos ditos pri­
mitivos se pode. cham ar d ir e i to : v. como ilustração os Capítulos 1, 2 e 3 (Fun­
dam ental Legal Concepts as Applied i n . the Study of Prim itive Law) do livro
de E. A. HOEBEL, T h e L a w o f P r i m i t i v e . M a n , H arvard Univ. Press, 1954.
E a idéia que se tem do. direito, quando se atribui a “ todos” os povos (“ubi
società* ibi ju s ” etc.), como um antropológico “universal cu ltu ral”, não é a
mesma que se tem quando se fala 'em direito . como objeto da “ Ciencia do Di­
reito ” ; quer no caso de se achar estas ciências nas mãos do advogado moder­
no, quer nas do teorizador. E ssa duplicidade de dimensões é um transtorno, e
é comum certos autores fazerem que o sentido amplo (que é vago e discutível)
do direito contenha elem entos q u e : só o moderno e restrito comporta. Esßa
tendência, consistente em ter, da realidade “ d ireito ” uma concepção tot-lm ente
ampla mas sem m aior cuidado crítico, faz p e n d a n t com aquela outra, a de res­
tringir dem ais a idéia de direito, a ponto de, reduzindo-o à forma “ lei”, excluir
de sua esfera o costume e toda outra forma de experiência social do jurídico.

116
V
DECORRÊNCIAS DO LEGALISMO:
A CIÊNCIA DO DIREITO,
O SABER JURÍDICO E AS NORMAS

1. A 'CIÊNCIA DO DIREITO

Em nossos dias a verificação do quadro positivo tomaria


uma amplitude excessiva, pois para a ciência jurídica impor­
tam tanto o “Ocidente” com suas diferenciações internas como
outras áreas, incluindo os países socialistas, A observação de
tudo isto interessa, evidentemente, mas a análise da função da.
lei em cada ordenamento vigente teria de implicar um levan­
tamento muito maior que os limites deste trabalho. '
Vistos, entretanto,, os perfis mais representativos dos sis­
temas' existentes, duas atitudes devem ser descartadas: a de.
igualá-los sobre um denominador amplo demais e a de ressal­
tar. as diferenças entendendo-os, aos sistemas, como indefinida­
mente variados.
De qualquer modo, a. experiência jurídica dos países so­
cializados deve ser tida. em vista, e o caso é que neles, ao .me­
nos sob certo aspecto, se apresenta uma evidente continuação
do legalismo. Para agora, bastaria citar o caso soviético.1
Vistas as coisas sob determinado ângulo, percebe-se uma
certa dialética no problema, pois das próprias, circunstâncias
legalistas de teoria jurídica ocidental veio a possibilidade de
essa teoria levantar críticas ao legalismo. Das atitudes de res­
trição à lei as mais seguras doutrinariamente são as que per­
mitem compreender e integrar em sua 4base a gênese legalista
da teoria do direito. A tal ponto a teoria dó direito se afeiçoou,
1 V. atrás, nota 11, Cap. I l l , 3.8 parte.

117
durante as últimas gerações, a estribar-se numa ordem jurídica
estável e a medir seu próprio valor pela relação entre sua ar­
quitetônica e a da ordem positiva, que se dispôs a entrar em
crise quando aquela ordem estável entrasse em mudança. São
os grandes conceitos, fundidos durante os últimos tempos e sob
motivação legalista, que servem de contraste para as revisões,
com as quais se passa a saber que existe crise.
A ligação do legalismo com o saber jurídico típico do
Ocidente é assim algo historicamente compreensível. A expres­
são “Ciência do Direito” foi consagrada, veiculada pela Histo­
rische Schule num dos momentos culminantes daquele saber ju­
rídico e com base no sentido de uma tradição continuada desde
a Idade Média.2 Não poderia haver uma ciência jurídica como
a Ocidental sem ter havido o legalismo: as condições culturais
que estão ao lado deste foram também o humus daquela ciên­
cia, e a própria estrutura desta tem analogia com o regime
de primado da lei.
Mesmo concebendo-se que um direito de tipo costumeiro
permanecesse dentro do progresso de uma civilização, ele não
exigiria (nem comportaria) o desenvolvimento de métodos e
de conceitos em comentários e teorizações. Aliás a dificuldade
de imaginar a hipótese vem justamente de que na experiência
que temos, e de que não podemos sair ao teorizar, a idéia de
direito costumeiro é uma idéia restrita, e a noção de um vínculo
estrutural entre o saber e o sistema corresponde ao legalismo.
Vê-se portanto que a variedade de situações, em que se
acha o direito positivo hoje, tem sempre raízes históricas nos
fundamentos legalistas do direito ocidental. Estas raízes são
inclusive o que permite à expressão “Ciência do Direito” ter
aplicação universal: à medida que em diversas áreas e diversos
regimes-se entende o sentido de uma Ciência do Direito, estas
áreas e regimes participam do quadro histórico em que o le­
galismo veio predominando.
#**
A relação entre o regime de predomínio da lei e a cons­
trução de um saber respectivo não se apresenta apenas no pla­
no pedagógico: a evolução dos métodos do ensino jurídico é
ilustrativa da acomodação da ciência à figura de uma ordem
feita de textos.3
2 Cf. K O SCH A K ER , Europa y el Derecho Romano, citado, p. 302.
3 Por isso é sempre vão pretender um saber jurídico não “ Uvresco” ; ele o
será sem pre, mesmo quando agarrado à " p rá tic a ”, ou não será saber. T erá de

118
A Ciencia do Direito se desenvolveu tipicamente como
uma ciência escrita. Neste ponto vinha ao lado da história e
das ciências sociais em geral, mas com o reforço de mirar a
um objeto também escrito, — as leis enquanto tomadas for­
ma principal de expressão do direito dito objetivo.
E daí que, na convergência para ela de métodos provin-
dos de outras disciplinas, o filológico entrasse. E que os pro­
blemas do direito, nas mãos da ciência jurídica, se fizessem,
além de problemas de ética, problemas de linguagem.
No .plano pedagógico, é importante notar a evolução do
estilo dos livros de direito, desde ós medievais 4 aos de hoje.
Pode-se então observar comò evolui a conexão entre sistema
e saber: livros de autoridade, doutrinários cortesãos, casuísti­
ca, comentários a textos, tratados barrocos, monografias dog­
máticas sobre “institutos”. Como tendência, o afastamento dos
modelos escolares compendiosos, ao sabor das grandes questóes
e sobretudo nas fases de agitação de problemas maiores.5

2. ATUAÇÃO DO D IR EITO

Dentro da idéia de direito desenvolvida pelo pensamento


ocidental, um componente importante foi a noção cje atuação,6
constar de conhecim ento de textos, edições, com entários etc. No caso do di­
reito romano, é ilu strativ o o processo de adaptação do ensino, em B eirute, onde
aos poucos os professores foram fazendo dogm ática e casuística sobre o m ate­
rial contido nas obras rom anas (F. C O L L IN E T , H is t o i r e de V Ê c o le de D r o i t
d e B e y r o u t h , Sirey, 1925, p. 220; às pp. segs., o surgim ento da interpretação
de textos e de interpolações, e às pp. 243 c 246 segs., os- métodos pedagógicos
na escola e o papel dos textos). V. tam bém M IC H E L V IL L E Y , R e c h e r c h e s
s u r Ja l i t té r a iu r e d id a c tiq u e d u d r o it r o m a in , P aris, 1946; KOSCH AKER, E u ­
ro p a , passim . Urna lista dos tipos de textos existentes nas escolas jurídicas
m edievais, no ensaio de BR U G I. “ I libri di studio dei nostri antichi scolari"
em P e r la S to r ia , citado, p. 8 e segs. (v. aí tam bém o ensaio "D isegno di Una
Storia della G iurisprudenza Italia n a", p. 189 e segs., que esquem atiza os pe­
ríodos a com eçar de uma fixação de textos).
4 Sobre a evolução do "text-book" jurídico inglês, P L U C K N E T T (cit. à
nota 6, Cap. II, 2.a p arte), Caps. II e I II . P ara ele — pp. 19 e 20 —, a tran s­
formação dos livros iniciais, feitos de casos e detalhes sem maior arranjo siste­
mático, em obras dedutivas fundadas sobre princípios gerais, foi sempre um re­
flexo da situação intelectual do próprio direito inglési em seu Cap. I l l , uma
síntese do grande tem a da história da ciência jurídica m edieval inglesa, a pas­
sagem de Glañvill a Bracton.
5 Cf. os capítulos IX e X de JO H N H E N R Y M ERRYM AN , L a tr a d ic ió n
ju r íd ic a r o m a n o - c a n ó n ic a , (trad. C. Sierra, FCE, México, 1971, com algumas in-
tuições aceitáveis.
6 Confronte-se (e veja-se atrás a nota 1, Cap. I l l ) a 'lig a ç ã o entre o de­
sejo de atu ar sobre a natureza e a necessidade de leis sentida no europeu desde
a Renascença (V O N M A R TIN , S o c io lo g ia d e l R e n a c im ie n to , cit., p. 28 e segs.).

119
O direito, além de entendido como ordem geral, se entendeu
sempre como ordem dinâmica, como algo que atua. A con­
cepção do mando ou da imperatividade, que hoje é tão discuti­
da a propósito da idéia de norma pelos formalistas, foi certa­
mente decorrência do momento psíquico da imagem da atuação
do direito: por ter de atuar é que o direito se revelava provido
de essencial “vontade” de comando, ou ligado a tal vontade.
Mas sendo o direito a lei, o atuar consistia especialmente
na sua relação com casos. Note-se bem que é um problema
próprio do tipo de ordem que já não é a costumeira: sendo a
lei um texto que obriga, sua atuação tem por principal áspéctç
a relação entre sua generalidade e a particularidade dos casos,
a que deve “descer”.7 Atuar ficou-significaiido vir até a çon-
cretude da vida real das pessoas e de suas condutas, diversas
sempre nos aqui e nos agora, e neste sentido o direito sé dá
como uma esfera de. indicações cuja obrigatoriedade atinge fa­
tos das vidas que são Sempre pessoais. Por outro íado, até
relativamente pouco (só a partir de Kelsen se reviu a questão)
a “aplicação” do direito não era “criação” : criar era tarefa do
legislador, aplicar era a do juiz. Por quê? Porque o direito era
a lei, nela ele vinha “dado” e pronto. A revisão do assunto
vem ao lado de . uma certa queda do primado ábsoluto da lèi.

3. O D IR E IT O COMO NORMA, A LEI E O COSTUM E

Deste modo aparece a concepção do direito como norma,


conseqüência do legalismo.8

7 Aliás M A N N H E IM , no famoso ensaio sobre o pensam ento conservador,


citado atrás, considera a correlação lei geral — caso particular como típica do
modo de trab alh ar do pensam ento racionalistargenèralizador, cujo instrum ento
principal é a “ subsunção”, e que é o oposto do pensam ento dinâm ico. Seria o
caso de lem brar que para certos críticos (S artre por exem plo), o pensam'***tq
analítico foi próprio da burguesia ’ e o. ana^itismo foi o forte do sabei* ju rí­
dico .legalista.
8 Na base da idéia do direito como norma pode-se pôr toda concepção
que ao próprio mundó social, humano, para. distingui-lo do “ n atu ral” , caracteri­
za como norm ativo, fi. o que faz Kelsen. O R A T E acha que a “ cons­
ciência comum" apreende o. direito ..como valor no sentido de um “ sistema ..de
normas que deve realizar um ,.ideal ju sto ” (Certeza, cit., p. 177). Eni direção
idêntica, L O U R IV A L VÍLANO.VA, dando as norm as específicas como objeto
das ciências do direito (Sobre o Conceito do D ireito, citado, p. 41). Também

120
Aqui, poderia indagar-se se o direito não terá sido sempre
norma, E a resposta é a seguinte: sim, quando se vê o direi­
to, ou o que “tem sido” o direito, através da moderna idéia
de norma. Esta idéia porém, e é sobre isso que aqui insisti­
mos, é produto da experiência legalista. Por trás dela jaz a
idéia de algo escrito. É certo, por outro lado, que tem havido
conceitos modernos de direito onde não entra diretamente a
‘idéia de norma,9 mas mesmo nestes conceitos a influência exem­
plar do legalismo se revela através da. referência à regulamen­
tação de ações e de interesses, ou à interferência do poder ofi­
cial. Caberia, de resto, anotar que no âmbito de outras ciências
sociais, como pedagogia ou economia, também o conhecimento
se depara com normas, mas nestes casos faltou, do lado do.
objeto, a nota da obrigatoriedade institucional dás norm aste
do lado da ciência a preocupação um tanto escolásticá em
sistematizar, unificar e pensar por conceitos gerais.
Agora ressalte-sé o quanto a consideração legalista do di­
reito era algo. novo, em relação à imagem do costume. A lei,
modo principal de expressão do comando estatal, aparece ju­
ridicamente algo “diante” dos sujeitos, algo diante de cujo per­
fil eles se comportam “dentro” do direito; o costume, quando
expressão do direito, se dava como forma espontânea e genè-
ralizada" dé comportamento, algo que por princípio estava “nos”
sujeitos (pode-se ser sujeito ou protagonista de um costume ê
integrar o número dos que o fazem; enquanto que da lei não se
é sujeito, como de uma ação, e sim apenas súdito e destina­
tário). No costume a prática é, ela mesma, parte dà vida dos
sujeitos; só no regime da lei se poderá ver o direito como con­
junto de comandos (ou sistema de normas) que se impõem.;
S E N T IS ’^ M E L E N D O , na esm iuçada análise . do aforism o "iura n o v it. cu ria” ,
conclui"'— buscando ser objetivo — pela referência de iiira às. "norm as ju ríd i­
cas aplicáveis" (op, cit., pp. 32 c 33). Para a- distinção entre lei e norm a,
FO D E R Á R O , op. cit.. pp. 80 e 133; as norm as :sãb "contidas^ nas leis. Ehr.
quanto isso, a noção de norma utilizada por um ‘realista como •O L I V ECRO N A
(É l Derecho como H echo, trad. G. C. Funes, B. Airesj 1959, ápêndice ".Ei .Im -
perativo de la L ey’V p . 169 e segs.) é moldada, apesar dò seus psicologismós,.
sobre a idéia de lei, e não se aplica a outra fórma de expressão do d ireito ob­
jetivo. , Por outro lado, o problem a das relações , entre o conceito de lei e o de
norma se acha tam bém na questão da distinção entre lei formal; e lei m aterial,}
cf. supra, nota 1331 A idéia de que a norma é. "contida" ná lei é' apenas um
modo de ver a coisa, e depois, confundidas as idéias de l e i . e norma,, é forma-
¡izada ésta por àquela, o direito mesmo pode ficar visto como form a, como es­
quema. técnico a que se pode dar qualqueT "conteúdo";
9 "Coordenação objetiva das ações possíveis entre vários sujeitos,, segiindo..
um. princípio ético que as determ ina excluindo todo im pedim énto" (D E L V E C?
CH IO , Filosofía del Derecho, trad., 5.fl edição, Bosch, p. 322).

121
O que se impõe ante uma conduta é obviamente algo distinto
dela, fora dela.101
Ê verdade que no costume, além do aspecto “exterior” e
como que descritivo da prática, é possível ver um sentido “in­
trínseco” de norma, que não se confunde com a espontanei­
dade dos usos cuja generalização constitui o costume. Mas
é que neste caso ele está visto através de um conceito de norma,
conceito de origem exterior à “substância social” do costume,
e que corresponde à influência da idéia, legalista que chama
de costume uma regra encontrável na generalidade1de certos
atos. E no caso da lei todo o sentido que se abriga sob sua
letra cabe na idéia de norma, corresponde à idéia de norma,
porque esta se configurou sob o influxo da experiência intelec­
tual que acompanhou o legalismo.
Por isso mesmo, foi possível pensar-se em uma intenção
“própria” da lei, e até em uma “mens legis” distinta da do
legislador.11
Por outro lado, a extèrioridade própria da norma legal
(exterioridade em relação à ética, e também em relação ao
costume) faz que, para que a obrigação nela contida se inte­
riorize no sujeito que deve cumpri-la, haja uma representação.
Isto porque agora surge a questão da relação entre o ordena­
mento e a pessoa, “destinatária” dele. No caso do costume,
o cumprimento e a aceitação da regra são praticamente uma
só coisa com a existência desta. Na lei não, ela existe por si
como forma declarada, e para que o sujeito não se sinta estra-
10 LÉO N H U SSO N , apesar de toda a sua equipagem crítica, considera, o
direito como algo i e i t o pelos legisladores, sendo o ju rista, que analisa ò direito
ou que p leiteia no foro, intérp rete que o “ considera” e o “ constata” (op. c iti,
pp. 7 e 11). E tão assente ficou o hábito de ver o costume como algo exterior
ao direito, que se põe sempre a questão de ser ou não “ jurídico” um costume,
e de p recisar ele de requisitos para tal (V. notas 7 e 8, Cap. I, l.° parte).
Se se pergunta pela jurid icid ad e da regra costum eira, é que o c rité rio 'd o ju ­
rídico se acha noutro elemento, noutra forma. T al problem a de fato é sempre
form al;, o problem a do conteúdo do costume é sempre omitido. A própria “ es­
pontaneidade” que sem pre se atribui ao costume se revela apenas na com para­
ção com a lei.
11 Gomo distingue, v. g., Binding (apud .JO S É D U A R TE , A C o n s t, B r a - '
s ile ir a d e 1946, 1.°' voi., 1947, p. 15). M A R T IN H O GARCEZ, em seu célebre
N u lid a d e s d o s A t o s J u r íd i c o s (2.B ed., l.° voi., Rio, 1910, núm. 342,..p. 403), d i­
zia que “ a tarefa do intérprete é tira r as conseqüências dos .princípios fixados
na lei, ainda que se não tivessem , apresentado à mente do legislador”. A idéia
do d ir e i to como algo que consiste em obrigar, em “ fazer que se ja”^ converteu-
-se nà idéia dá norm a como um dever ser, logo que esta noção foi posta em
circulação nestes assuntos. O perigo consiste em pô-lo fo r a da realidade vital
dos homens (cfí cit. de H U SSO N à nota 10). O próprio CO SSIO , sempre aler­
ta contra as tentações do normativismo,- o acolhe todavia como um pressuposto;
o ju rista , diz “ p recisam en te-se -pronuncia sobre lo que debe ser” ( E l D e r e c h o
e n e l . D e r e c h o J u d ic ia l, já citado, Cap. I, p. 54).

122
nho é preciso haver um modo de integrar a vontade dele na
origem da norma legal a fim de que a obrigação se torne plena.
Para isso se desenvolveu a noção de representação, que o di­
reito público tomou em sentido diverso do privado, e politi­
camente transformou de local em nacional.12 Com a represen­
tação o dito pela lei se tinha como dito pelos mesmos que
iam obedecer a ela. Mas logo, como se sabe,' a imagem do
ordenamento se viu dominada pela idéia de norma e se pediu
que a própria representação se fundasse ela também numa nor­
ma, o que se fazia difícil quando o raciocínio esbarrava, como
num primum movens, na representação constituinte. Era ainda
um privatismo, que partia da figura civil da representação como
negócio entre sujeito e sujeito, dentro de um ordenamento “da­
do”, e feito de previstos supostos e previstos efeitos. Na ver­
dade, a representação em direito público sempre foi e teve de
ser outra coisa.
Deve-se ver, ainda, que a alusão, que a ordem legal en­
seja, a uma “norma” sempre distinta dos atos e dos fatos en­
volve um certo essencialismo (no sentido da crítica de Sartre),
uma representação das figuras do jurídico como modelos idçais
entendidos sem vinculação (esta só vem depois) com as coi­
sas e as vidas. O que evidentemente seria inconcebível antes
do legalismo e do padrão de categorias e formas mentais que
a ele corresponde.

4. A LEI E O S FATOS

Já não temos o costume como uma vigência jurídica ori­


ginária, e sim apenas como algo que “o direito” põe ao seu
lado, isto é, ao lado da lei (e pela voz da lei) como um de­
pósito extra de normatividade disponível, normatividade que
se trata através da lei e em função dela.
Com isso ficou a ciência jurídica contemporânea (inclu­
sive em sua projeção prática) tendida entre dois planos: o pla-

12 GARCÍA-PELAYO , D. Const. Comparado, citado, p. 166; M, P R E L O T ,


D, C onstiiutionnel, citado, p. 68.

123
no da lei, no qual se contêm questões teóricas como a de sua
estrutura, espécies, interpretação, vigência, extensão etc., e o
plano dos fatos, que aparece na. problemática das provas, das
intenções e motivos, circunstâncias etc.
É importante registrar, então, que a teoria jurídica dos
novos tempos teve constantemente a incumbência de compreen­
der a relação entre o atuar do direito (que implicava já em si
a intercorrência entre o existir da lei e o dos fatos) e o seu
conhecimento, — uma vez que este conhecimento estava inse­
rido naquele atuar como momento necessário, tendo entretanto
identidade substancial com a teoria e a situação da teoria. Ou
seja; o conhecimento aparece no direito que atua como um
desempenho por parte dos homens que efetivam sua atuação, e
este conhecimento participa do caráter de “saber jurídico” que
possuem as representações mais desabaladamente teóricas do
ser do direito.
Note-se de passagem que isto ficou sendo, como outras
coisas e ao menos em parte, peculiar à ciência jurídica, dis-
tinguindo-a de outras ciências sociais.13

5. A IN D A SOBRE D IR E IT O E NORMA

A ciência jurídica sempre ofereceu, em seus temas bási­


cos, campo apropriado para a preocupação epistemológica. Nos
13 Certo que algum as dessas outras ciências, como a Econom ia ou .a. Pe­
dagogia, visam a um objeto que tam bém envolve a idéia duma atuação. Mas na
atuação que está em seu caso, a relação com o “ conhecim ento" não assume o.
sentido que no direito, onde o conhecim ento tem de existir nos que aplicam a
norma e nos que agem em face dela, sendo que a teoria dém ocrática tende a
identificar a im posição da norma e o seú cum prim ento. Em relação com essa
idéia de uma “ atuação através de norm as", está a tendência a distinguir, sobre
as mesmas áreas o b jetais, as disciplinas jurídicas (direito público, direito, ad­
m inistrativo) das não-jurídicas (Ciência P olítica, Ciência da A dm inistração)
pela “norm atividade" daquelas. E aí está algo m uito im portante, pois de fato
a distinção de uma ordem ju rídica perante a política, a ética ou a generica­
mente social, pode ser eficazm ente feita com o socorro da idéia de norma, pois
distinguindo-se do plano do poder, do dever ou da coerção difusa, o plano do
“ norm ativo” se apresenta como um sistem a de instâncias em qúe, primeiro,
se articulam com petências, e, segundo, o sentido dos atos se verifica por uma
cadeia de conseqüências previsíveis por certos antecedentes. E m ais: esta ca­
racterização do jurídico pode em sua form ulação m ais geral ciispensar a alusão
à lei (cf. nota Í4, Cap. V I, ad iante). Mas sucede que esta ordem “norm ativa”
só tem tal estru tu ra se se souber que a norma de que se fala é jurídica, o

124
últimos dois séculos, o saber jurídico desdobrou-se cada vez
mais em um saber referente ao direito positivo e também à sua
cognoscibilidade, aos graus de seu conhecimento, ao significado
de seus supostos etc. Filosofia e teoria do direito se puseram
a ser também filosofia e teoria da ciência do Direito, indagan­
do não só sobre a natureza* do jurídico como sobre a validade
ou a índole do conhecimento que se lhe refere.14 De um certo
modo, porém, note-se, é a presença de uma teoria-de-teoria
(metateoria) no pensamento jurídico, ensejando uma perma­
nente retomada de opiniões e de referências,15 que vem favo­
recendo nele uma maior continuidade, através de gerações, es­
colas e épocas, e propiciando o crescimento de uma perspectiva
histórica cada vez mais fecunda.16
Deste modo podemos ver uma relativa equivalência en­
tre todas as teorias jurídicas de basé legalista, por trás do ruí­
do das divergências que afetam.
Tomemos a divergência sobre se o direito é ou não nor­
ma,1? e se a ciência jurídica se refere a normas. Ê certo que
a um direito costumeiro se poderá aplicar também a idéia de
nórma: ele seria direito por conter regras a serem seguidas, e
dentro da figura do uso se entrevê um ditame. Mas a idéia
de “norma” como fulcro da consideração do jurídico provém
sobretudo da .experiência do direito legal; e mais, a própria
possibilidade de que vejamos o costume como regra, discer­
nindo num conjunto de usos o fato da prática e a obrigatorie­
dade normadora, é fruto, como foi visto acima, de uma men­
talidade jurídica afeiçoada segundo o direito pós-çostumeiro.
É difícil saber, com a mente posta dentro das formas le­
gais do direito e dos conceitos correspondentes, como seria mes­
mo um direito costumeiro; do ponto de vista daquelas formas
e destes conceitos, a noção de um “direito” pré-legal é mais
uma projeção para servir de contraste, uma noção, derivada.

que insinua unta petitio principa, que $6 se resolve ao se pensar qué a Idéia
de norm a se gerou como uma elaboração da idéia de lei ou do tipo de ordena­
ção que esta enseja.
14 Ver CO SSIO , em nosso O Problema da H istória (c it.),-n o tá 11 do Cap.
I II . .
15 Cf. riosso O Problema da H istória, nota 15 do Cap. I II .
.16 A respéito, B R U S IIN , E l Pensam iento Jurídico,, cit., pp. 235 e segs.
("el método de pensam iento de la moderna ciencia, del derecho solo puede ser
comprendido sobre un fondo h istórico-cultural”, p. 242); .
17 Cf. atrás, nota 8. Aqui, o lem a se-rélaciona em especial com
mica entre a teoria de Kelsen e a egologia; Sobre o equívoco da ques.tlo "P or
que a ciencia ju rídica é norm ativa?", ver nossa1*Sociologia do D ireito, ed. Re­
vista dos T ribunais, S. Paulo, 1970, Cap. I l i , nota 30, p. 35.

125
P o is b e m , n a ta l q u e s tã o d e o d ir e ito s e r n o r m a , p o n t o d e
v is t a lig a d o c o m o s e s a b e à te o r ia d e K E L S E N , o u se r c o n d u t a ,
c o m o q u e r C O S S I O , d á - s e u m t ip o d e t e m a q u e s ó o le g a lis m o
to r n a r ia c o n c e b í v e l. A s s im t e m o s a d is c u s s ã o in jc ia l d e C O S ­
S I O , n a s u a “ t e o r ia d a v e r d a d e j u r íd ic a ” , e m to r n o d e sa b e r
s e a c i ê n c ia j u r íd ic a é n o r m a tiv a p o r q u e o f e r e c e n o r m a s o u p o r ­
q u e c o n h e c e n o r m a s , d e c i d in d o o m e s tr e a r g e n tin o q u e e la o é
p o r q u e c o n h e c e s e u o b j e t iv o a tr a v é s d e n o r m a s . 18 N a v e r d a d e ,
p o r é m , t a n t o tr a n s lu z o le g a lis m o n o a p r e s e n ta r -s e a c iê n c ia d o
j u r íd ic o c o m o f o r n e c e d o r a d e n o r m a s , q u a n to e m d a -la p o r
c o n h e c e d o r a d e la s , e a in d a e m d iz ê -la c o n h e c e d o r a d e a lg o p o r
m e io d e la s , p o is a c o n d u t a , tid a p e la T e o r ia E g o l ó g ic a c o m o
o b j e t o e s p e c í f i c o d o c o n h e c i m e n t o ju r íd ic o , a p a r e c e - a o ju r ista
“ a tr a v é s ” d e n o r m a s . E m b o r a n e s s a ú ltim a t e o r ia já h a ja c o n ­
s id e r á v e is g e r m e s d e u m a s u p e r a ç ã o d o le g a lis m o .

S ó a e x p e r iê n c ia d e u m d ir e ito t id o e s s e n c ia l m e n t e c o m o
c o m p o s t o d e c o m a n d o s te x tu a is , a c u jo s a tr ib u to s t e n d e m a re ­
d u z ir - s e o s e l e m e n t o s t o d o s d a id é ia d e d ir e it o ( s e m s e ig n o ­
rar q u e a e g o l o g ia n e g a a id é ia d e c o m a n d o o u im p e r a tiv id a d e ,
m a s s e m l ig á - la a o l e g a l i s m o ) , e n s e ja r ia s e m e lh a n t e s p r o b le ­
m a s . 19 -N e s te s e n t id o , a “ t e o r ia p u r a ” f o i u m a c u lm in a ç ã o d a
c iê n c ia ju r íd ic a le g a lis t a , e a s u a c r is e , n a e g o l o g ia o u fo r a d e la ,
o f e r e c e s u g e s t õ e s q u a n to à s u p e r a b ilid a d e d a q u e la c i ê n c ia *20

N o m e io d a c r is e d o n o r m a tiv is m o , q u e é t a m b é m c r is e
d o j u s p o s it iv is m o ( e q u e n ã o é c r is e n o s e n t id o c a t á r tic o d e
m e m e n t o f in a l, c e r t a m e n te , m a s s a t u r a ç ã o d e fo r m u la ç õ e s ), n o
m e io d e s s a c r is e p o d e m o s fla g r a r a n o v a f a c e d e c e r t o s te m a s

18 N esta solução, o que há de im portante é sobretudo a reafirm ação, por


outra via, da sua idéia de que a conduta é o objeto do saber jurídico- Porque,
quanto ao conhecim ento ser “atrav és” de norm as. segue sendo um conhecimento
de norm as, embora m irando a um objeto próprio posto além delas- Deve-se, a
propósito, m anter a dúvida a respeito da legitim idade da expressão “ ciência
norm ativ a”. E enfim a egologia, ao repelir a concepção de um direito pura­
mente norma, o faz, atrayés de uma visão em que a norma apárece central­
m ente, e nos leva ao problem a de saber se histórica e positivam ente algum di­
reito pôde ex istir como conduta e “ sem ” o elem ento norma.
19 Assim a teoria de Kelsen, no fundo ligada ao apego à norma legal como
expressão p erfeita do jurídico, apareceu com base no direito dito continental.
A teoria inglesa, de certa forma lhe vota certa indiferença.
20 V. algo no artigo de M IG U E L R E A L E , “ A Crise do N orm ativism o Ju ­
rídico e a E xigência de uma N orm atividade C oncreta” em R ev. Bras. de F ilo­
sofia, n.° 28 (o u t.-dez., 57), p. 393 e segs. Poder-se-ia ainda ten tar um a carac­
terização do direito como conjunção de norma e conduta. Isso porém seria mero
construcionism o, e conduziria a indagar-se se a conjunção entre ambos elemen­
tos seria orientada péla norma ou segundo a conduta etc. R enasceriam os mes­
mos problem as, como renascerão, e inocuam ente, toda vez que se esquecer que
o im portante é a variabilidade histórica, que, esta sim, deve ser compreendida
como nascedouro de concepções e condicionadora de esquem as.

126
q u e s e p õ e m e m fu n ç ã o d a id é ia d o d ir e ito c o m o a p e n a s n o r ­
m a.

P o d e m o s d e s d e lo g o r e v e r o p r o b le m a d e se r o d ir e ito u m
“ d e v e r s e r ” , c o n s id e r a n d o - s e t o d a n o r m a tiv id a d e ( in c lu s iv e a
é t ic a ) c o m o u m d e v e r se r , c o n s id e r a n d o - s e t o d o d e v e r se r c o ­
m o e n t id a d e d iv e r s a d o se r , e c o n s id e r a n d o - s e o d e v e r se r
j u r íd i c o u m c a s o p e c u lia r . C o n s id e r a r o d e v e r se r a lg o “ d i­
v e r s o ” d o se r é a lg o q u e le v a n t a p r o b le m a s f ilo s ó f ic o s b a s ta n te
s é r io s , d e s d e q u e a o c h a m a d o d e v e r s e r s e a p lic a m a fir m a ç õ e s ,
c o m o"'verbo s e r e a s u b s t a n tiv a ç ã o ; a s e p a r a ç ã o e n tr e o d e v e r
se r d a é t ic a e o d o d ir e ito s e g u e c a m in h o s o u tr o s q u e n ã o o s
d o f o r m a lis m o e p o r t a n t o e x t r ín s e c o s a u m a te o r ia d o d e v e r
s e r c o m o ta l. C r e io q u e o a b u s o d a id é ia d e d e v e r se r , e d e
s u a c o n t r a p o s iç ã o à d e se r , in c lu s iv e g r a fa d o s r e q u in ta d a m e n te
e m a le m ã o ( S e in u n d S o l l e n ) te m t r a z id o m a is p r e ju íz o s d e
q u e v a n ta g e n s p a r a a t e o r ia d o d ir e ito , e te m c o m p lic a d o , a n te s
d e q u e a c la r a d o , o te m a d a s r e la ç õ e s e n tr e a C iê n c ia d o D ir e it o
e o d ir e ito . E m g r a n d e p a r te , fo i a p r e s e n ç a d e n o r m a s e s ­
c r ita s q u e e n s e jo u o d e s e n v o lv i m e n t o d e u m a “ ló g ic a j u r íd ic a ”
q u e tr a ta m e n o s d o d ir e ito m e s m o .d e q u e d a s p r o p o s iç õ e s e m
q u e a s n o r m a s s e a p r e s e n ta m f o r m u la d a s . C o m o t e m o s d ito ,
n ã o s u r g iu u m a t e o r ia d o d e v e r s e r r e fe r id a à s n o r m a s r e lig io ­
s a s n e m s u r g iu u m a ló g ic a e s p e c íf ic a d a s n o r m a s é t ic a s .21
E m c o n tr a p a r tid a , a s r e c u s a s a o n o r m a tiv is m o d o t ip o d o s
“ r e a lis m o s ” ( s e j a o e s c a n d in a v o , s e ja o n a tu r a lis m o d e u m P o n ­
te s d e M ir a n d a ) te r m in a m p o r e m p o b r e c e r a v is ã o d o ju r íd ic o
r e d u z in d o -o a o f á tic o . O e q u ív o c o e s tá n o p r ó p r io p r o b le m a :
o d ir e ito é n o r m a o u o d ir e ito é f a to re a l? O t r id im e n s io n is m o
p r o c u r a a c o lh e r a m b a s as p o s iç õ e s . A e g o l o g ia , r e a g in d o c o n ­
tra o n o r m a tiv is m o , p r o p õ e a id é ia in a c e it á v e l m a s o r ig in a l d o
d ir e it o - c o n d u t a , c o n t u d o , a c e it a n d o a c o n d u t a c o m o n o ç ã o n o r ­
m a t iv a ( “ la n o r m a c o m o p e n s a m ie n t o d e la c o n d u c t a ” ) , p e r d e
a o p o r t u n id a d e d e a b a n d o n a r o s e q u ív o c o s .

O r ig in a d o d o le g a lis m o , o n o r m a tiv is m o ( in c lu s iv e e m
s u a d is s id ê n c ia e g o l ó g i c a ) , te n ta a p a g a r as o r ig e n s r e p u d ia n d o
a id é ia d e im p e r a t iv id a d e e a t e o r ia im p e r a tiv is ta , q u e o s r e a ­
lis ta s a c o lh e m . A im p e r a t iv id a d e e s ta v a j u s ta m e n te n a le g is -

21 O A rchiv fuer R ecbts-und Soziãlphilosophie (A JÍSP) dedicou o n.° 6


de seus fascículos especiais ao tem a do ser e do dever ser no direito, aprovei­
tando os trabalhos do Congresso de Gardone R iviera de setembro de 1967. Na
parte segunda, M IC H E L V IL L E Y , em breve aporte, apresenta “ um ponto de
vista de historiador".

127
la ç ã o a b s o lu tis ta d o s s é c u lo s X V I , X V I I c o m o n a le g is la ç ã o '
lib e r a l é m q u e o e s ta t is m o a p e s a r d e t u d o s e r e v e la v a , e te m
e s ta d o o n d e h a ja E s t a d o e o n d e h a ja le i.

S o m e n t e u m a a n á lis e h is t ó r ic a in te ir a m e n t e c r ític a p o d e ,
c o m o se p e r c e b e , c o m p r e e n d e r a d e q u a d a m e n t e ta is p r o b le m a s .

128
VI
A CRISE DO LEGALISMO
E O PENSAMENTO
JURÍDICO ATUAL

1. SE EXISTE, E COMO, UMA CR1SE DO LEGALISMO

J á q u e s e f a lo u e m s u p e r a ç ã o d a c iê n c ia ju r íd ic a le g a lis t a ,
c o n v é m q u e s e a p r e s e n te m l o g o o s e l e m e n t o s q u e h o j e a u to r i­
z a m a fa la r n u m a “ c r is e ” d o le g a lis m o — s e é q u e a in d a s e
s u p o r ta o te r m o c r is e , t ã o a b u s a d o e s e m p r e e q u ív o c o . N a v e r ­
d a d e , o s e l e m e n t o s s ã o m ú lt ip lo s e d e s ig u a is . A t a l p o n t o q u e
s e f a z n e c e s s á r io a lg u m e s f o r ç o d e m é t o d o p a r a fa z e r c o n v e r ­
g ir , a té u m a c a r a c t e r iz a ç ã o u n if o r m e , s u a m u lt ip lic id a d e e s u a
v a r ie d a d e ; o r d e n a r u m a s é r ie d e r e f e r ê n c ia s a o d ir e it o p r iv a ­
tis t a , a o n o r m a tiv is m o , a o c a p it a lis m o e t c ., n o s e n t id o d e d a r e m
a fig u r a s u fic ie n t e d e u m a c r is e d o d ir e it o le g is la d o e d e s u a
c iê n c ia . S e ja v e r d a d e , q u e a o m e n o s u m f u n d a m e n t o g e r a l se-
te m p a r a a c e ita r a id é ia d e u m a c r is e : a d e q u e e la v e m , e m
m u it o , d a c o n t r a d iç ã o e n tr e a c o n t in u id a d e s e c u la r d a c o n s ­
c iê n c ia d e q u e d ir e ito e lei n ã o s ã o a m e s m a c o i s a , p o r u m l a d o ,
e , p o r o u tr o , a p r e s e n ç a d e u m a q u a s e p e r m a n e n te i d e n t i f ic a ç ã o
e f e t iv a d e a m b o s . 1

S e , e n t r e ta n to , s e te m u m a v a r ie d a d e d e n o t a s e s in t o m a s
q u e a te s ta m q u e o d ir e ito p u r a m e n t e o u p r in c ip a lm e n te le g a l
c h e g o u a im p a s s e s d if íc e is , é c e r t o , e n t r e ta n to , q u e s ó a c o n v i c ­
ç ã o d is t o p o d e fa z e r r e c o n h e c e r a q u e la s n o ta s . O u s e ja : p e r -

1 P ara LÉO N M USSON (op. cif., p. 56), os ju ristas do século XX, .di­
versam ente dos do X IX , tiveram de se convencer que era im possível lim itar-se
a tom ar conhecim ento das regras form ais n.òs docum entos cham ados fontes for-,
m ais, e que era preciso adaptá-los e com pletá-los com algum outro suprim ento
de juridicidade.

129
c e b e m o s a c r is e p e lo s s in t o m a s d iv e r s o s , m a s s ó d e p o is d e fo r ­
m u la d a e c o m p e n e t r a d a a o p in i ã o r e s p e c tiv a é q u e a d iv e r s i­
d a d e d e le s s e m o s tr a d o ta d a d e u m s e n t id o c o m u m . Ê ju s to ,
e n t ã o , q u e s e p a r ta d o e s q u e m a e m q u e s e p ô s o t e m a , p a r a
u n if ic a r o u o r d e n a r o s d a d o s e m c a u s a . S ã o e l e m e n t o s d e
a lc a n c e t e ó r ic o v a r iá v e l: o p in i õ e s p e s s o a i s s o b r e a le i , q u e ix a s
c o n t r a e s t a d o s d e c o i s a s , p o n d e r a ç õ e s , r e g is tr o s c o n c e it u a is .

O r u m o d o s p r o b le m a s t r a z id o s a té a q u i le v a n t a a e s ta
a ltu r a u m a im a g e m d o q u e d e v a s e r a c r is e d o le g a lis m o ; e la
s e a c h a b a s ic a m e n t e f e it a d a d ife r e n ç a e n tr e o q u e s e d is s e o u
s e p r e te n d e u ; n a f a s e d e f o r m a ç ã o , e o q u e r e s u lto u a p ó s tu d o
c o m o v id a j u r íd ic a e f e tiv a e c o m o m a té r ia c ie n tífic a . N a v e r ­
d a d e a c r is e d o ' l e g a l i s m o é a d o lib e r a lis m o e d o E s ta d o
lib e r a l.

N ã o v a m o s le v a n t a r , e n t ã o , o q u a d r o d a s o p in i õ e s to d a s
q u e te n h a m já s id o e x p e n d id a s “ c o n t r a ” o p r im a d o d a le i; a n ­
te s , te n ta r situ a r as p e r s p e c t iv a s d e u m a c r ític a d e s s e p r im a d o ,
s é r ia e h is t ó r ic a , q u e n o s p o s s a c o n d u z ir a o e n t e n d im e n t o d e
c e r t o s p r o b le m a s g e r a is .2

2. CRÍTICAS ÉTICAS, SOCIAIS E SOCIOLÓGICAS


AO LEGALISMO

A s in d i c a ç õ e s d is p o n ív e is p o d e m se r c o m p r e e n d id a s d a s
m a is d ife r e n t e s fo r m a s . U m a s o p õ e m a le i a o s f a to s o u à c o n ­
v e n iê n c ia d e u m id e a l s u p e r io r . O u tr a s s e p a r a m s e n s a t a m e n te
a id é ia d e lè i d a d e d ir e ito . O u tr a s a p e n a s r e p a r a m n a in s u ­
f ic i ê n c ia f u n c io n a l d a s le is e x is t e n t e s , d ia n te d a m is s ã o q u e e la s
tê m h o j e , e d o q u e d e v e se r u m in te g r a l “ s is t e m a ” ju r íd ic o .

D e n t r o d o p r im e ir o t ip o d e in d i c a ç õ e s , h á a n te s d e to d a s ,
e c o m u m in te r e s s e j u r íd ic o m e n o s p r ó x im o , j u íz o s a n tile g a ­
lis ta s h is t o r ic a m e n t e l o c a liz a d o s , d o s q u a is a im p o r tâ n c ia , às
v e z e s m e r a m e n t e ilu s t r a t iv a , v a i d e p e n d e r d a p o s iç ã o c r ític a
o u i d e o ló g i c a d o s q u e o s r e t o m a m . U m e x e m p lo b a s ta n te v e -

2 Não querem os ainda, entretanto, apresentar como dom inante na doutrina


a repulsa ao prim ado hegemônico da lei. M uitos ainda aplaudem esse primado.
Exem plo típico, G EO RG ES RE N A R D , La Valeur de La L oi, ed. Sirey, Paris,
1928, lição I I I .

130
lh o e b a s ta n te típ ic o é o d e S ã o P a u lo n a p r im e ir a c a r ta a o s
c o r in tio s , v e r b e r a n d o o “ l e g a lis m o ” d a ju s tiç a ju d ia , e a tin g in ­
d o p o r ig u a l o r a c io n a lis m o g r e g o .3 C la r o q u e o le g a lis m o
v is a d o p o r S ã o P 311I0 n ã o tin h a q u e v e r , a in d a , c o m o d a n o s ­
sa c iê n c ia ju r íd ic a . S u a v is ã o r e lig io s a s e s itu a v a n u m e n f o q u e
c u ltu r a l p e c u lia r , q u e s e r ia c o n t in u a d o p e lo s q u ilia s m o s m e ­
d ie v a is e p e lo s m ís t ic o s a fir m a tiv o s d o c r is tia n is m o .

P r ó x im a d e n ó s n o t e m p o , m a s q u a s e n a m e s m a o r d e m
r e c la m a t ó r ia , e s tá a a d v e r t ê n c ia p r é - p o s it iv is t a d e S A I N T - S I ­
M O N c o n t r a o s “ le g a lis t a s 17, q u e s e g u n d o e le o b s ta v a m a j u s ­
tiç a s o c ia l, e q u e p o r s in a l — e l e m e s m o o o b s e r v a — h a v ia m
s u r g id o c o m o c l a s s e q u a n d o d o e s t a b e le c i m e n t o d e le is e s c r ita s
n a h is tó r ia m a is r e m o ta d a F r a n ç a .4 N a q u e l a a d v e r tê n c ia s e
a c h a a r a iz d a o p o s iç ã o p o s it iv is t a c o n tr a o s “ tr ib u n a is le g a lis ­
t a s ” , c u ja e lim in a ç ã o s e p r e t e n d ia f a z e r n a d ita d u r a r e p u b lic a ­
n a p r o je ta d a p e lo s c o m t is t a s .5 E m t u d o i s s o h a v ia , é c e r t o , o
to m r o m â n tic o r a d ic a liz a d o s e r e s s e n t id o s e n ã o e q u iv o c a d o ;
m a s é s in t o m á t ic o q u e f o s s e c o i s a d a m e s m a é p o c a e m q u e o
lib e r a lis m o e o in d iv id u a lis m o e n tr a v a m e m d ific u ld a d e s . N o
m a r x is m o m e s m o , a r e la ç ã o e n tr e d ir e ito e id e o lo g i a , d e s e n ­
v o lv id a n a t e o r ia v e r t ic a lis ta d a s e s tr u tu r a s “ s u p r a ” e “ in fr a ” ,
r e f le t e ig u a l p r e v e n ç ã o c o n tr a o m u n d o d a s fo r m a s ju r íd ic a s ,
e n t e n d id a s c o m o fe ita s d e a b s tr a ç ã o e s u b j e t iv id a d e .6 T a m b é m

3 Cf. HANS W E L Z E L , Derecho N atural y •Justicia M aterial, citado, p.


58. Tam bém Platão, no Fedon, criticou aos que fazem consistir sua virtude
no mero fato de seguirem as leis (apud E. C A SSIR E R , O M ito do E stado,
trad. D. A. Gonçalves, Lisboa, 1961, pp. 99-100). Cf. ainda IS ID O R E LO EB ,
La L iiléra tu re des P auvres dans la B ible, Pari9, 1892, p. 27 (sobre os tribunais
e a in ju stiça), e tam bém JO SE H. PA LÁ C IO S, L a Justicia y los Jueces en la
Sagrada E scritura, M adrid, 1960.
4 Oeuvres Choisies de SA IN T -S IM O N , tomo I I I , Bruxelles, 1859: “ Du
Système In d u striei”, p. 15; e “ Catéchism es des In d u strieis”, p. 91. Já no mo­
vim ento que se chamou “ Conspiração dos Ig u a is”, e que vinha da Rev. F ra n ­
cesa, a tendência era para dim inuir o número das leis: cf. D O M IN IQ U E
BAGGE, L es Jdées P olitiques en France sous la Restauration, P U F , 1952* p.
425. Compare-se a crítica de MARX à concepção do direito como lei contida
no ensaio sobre S tirn er: essa concepção serviria segundo ele para retirar da
análise, do direito o problem a m aterial de dom inação que ele envolve (La Id eo ­
logía Àlem ana, cit. à nota 6, adiante; pp. 365 e segs.), e que como lei se m a­
nifesta.
5- P leitearam -se “ tribunais de arbitram ento de acordo com o regim e indus­
trial pacífico” (V EN A N C IO F. N E IV A , A ugusto Coirne e a República, Rio,
195.7, p. 10.) CO M TE , no voi. IV do S ystèm e de P olitique P ositive (Paris,
1854, Cap. V, p. 467) previa e preconizava “réduire et sim plifier les offices
ju d iciaire s”, juntam ente com a “ extinction des écoles de d ro it”, isto porque o9
advogados “desaparecerão gradualm ente" sendo adaptados como pessoas a ou­
tros m isteres na m edida de sua “ regeneração p o sitiv a”.
6 C. MARX — F. E N G EL S, La Ide&logía Alem ana, trad. W. Roces, Mon­
tevideo, 1959, pp. 53 e 70 (“ .. . por la ilusión de los ju rista s se explica el que
para ellos y para todos los códigos en general sea algo fortuito el que los in­
dividuos entablen relaciones entre s i . . . ”), pp. 251, 346, 408 e 425. Note-se que,
em todos esses passos, o direito tido em m ira é especialm ente o privado (os

131
o s a n a r q u is ta s d o s é c u lo X I X , c o m o M a x S tir n e r e B e n ja m im
T u c k e r , c o m b a te r a m o d e s p o t i s m o d a le i, b e m c o m o o m o n o ­
p ó lio n o r m a tiv o d o E s t a d o , e m n o m e d a lib e r t a ç ã o h u m a n a , e
o t e m a m a r x is ta d a " e x tin ç ã o d o E s t a d o ” , n o p e n s a m e n t o d e
L e n in e , a s s u m e a r e s p e it o in te r e s s a n te s a s p e c t o s . *7

A s s im a s d e n u n c ia s c o n tr a o s is te m a j u r íd ic o e s t a b e le c id o
p e la s c o d if ic a ç õ e s lib e r a is p a r tic ip a m d a q u e le to m d e in v e c tiv a .
A te o r ia s o c ia lis t a m a is r e c e n t e m a n t e v e a n o ç ã o d e “ d ir e ito
b u r g u ê s ” p a r a s e r v ir d e a lv o à s a c u s a ç õ e s c o n tr a o f o r m a lis m o
ju r íd ic o , m a s , c o m o a le g is la ç ã o a p a r e c e c o m o a t iv id a d e n e ­
c e s s á r ia p o r p a r te d o s p r ó p r io s g o v e r n o s r e v o lu c io n á r i o s , a q u e ­
la te o r ia te m d e a p e la r , n a s u a c r ític a d o le g a lis m o , p a r a a p r e ­
c ia ç õ e s q u e v ã o a lé m d o la d o f o r m a l d o p r o b le m a .8

A in d a n a m e s m a o r d e m d e id é ia s e s tá o r e p a r o s o c io ló g ic o
q u e traz o te m a p a r a te r m o s d e c la s s e ; a í o d ir e ito le g a l é r e e ­
x a m in a d o e m f a c e d a d u p lic id a d e d e p o s iç õ e s v it a is q u e , n u m a
m e s m a s o c ie d a d e , e n s e ja m a g e s ta ç ã o d e d ife r e n t e s in te r e s s e s e
d ife r e n te s p e n s a m e n t o s . D e f a t o , h is t ó r ic o - s o c ia lm e n t e o d ir e ito
le g a l f o i d e c e r t o m o d o u m a p a r te d o e l e n c o d e o b r a s d a b u r ­
g u e s ia ; a s s im , é c o m p r e e n s ív e l d iz e r - s e q u e e le é d ir e it o b u r g u ê s.
E c o m o a a lu s ã o a f o r m a s b u r g u e s a s d e v id a é u m a p a r te d a s
t e m a tiz a ç õ e s s o c ia lis t a s , o id e á r io d o s o c ia lis m o c o n t e m p o r â n e o
e n tr a p o r a q u i: o d ir e it o b u r g u ê s s e n d o a p lic a d o a u m a s o c ie d a ­
d e o n d e a “ o u tr a ” c l a s s e o a c e it a o u m e s m o o “ s o f r e ” , s e n d o
e n fim u m d ir e it o d e p a tr õ e s , r e s u lta , a o m e n o s , c o m o id e a l, q u e
o d ir e ito o p e r á r io h á d e se r u m d ir e ito liv r e d a s c a r a c te r ís tic a s

tem as que seriam do d ireito público aparecem no falar-se, separadam ente do


“ E stado") etc. mesmo concebido com respeito à propriedade e ao contrato.
7 Sobre S tirner e Tucker, ver E T T O R E ZO C C O L I, L ’Anarchia —• gli
agitadori, Je ivee, i fa tti (F. Bocca, M ilão, 1949 pp. 33 e 210). P ara o caso
de L E N IN E, cf. E l Es:ado y la R evolución (citado) p. 138, m encionando aliás
o costume como força necessária para sustentar o processo gradual de readap­
tação dos homens a uma sociedade sem normas estatais. O costume, segundo o
marxismo, tinna s.do justam ente a forma reguladora de convivência na fase
antecedente ao surgim ento das classes e do E stado (cf. K O N S T A N T IN O V , E l
M aterialism o H is.órico, ed. G rijalbo, México, 1960, p. 189).
8 Assim, no célebre ensaio- de KARL R E N N E R , The In stitu íio n s of P ri­
vate Law and their Social F unctions (transí., Londres, Ròutledge, 1949), Cap.
I l l , seção I (norma e sub strato ) se reclam a uma análise da “ arte da legislação"
em que as relações entre direito e vida econômica se entendam por algo mais,
inclusive (p. 259) do que pela "tradicional analogia de infra-estrutura e supra-
-estrutura". A nota 280 (p. 264), em adendo, o prof. K A H N -FR E U N D coloca
o problema de ser, a “ id olatria da legislação", ou “decretinism ", mencionada
por Renner, peculiar às revoluções vitoriosas, inclusive porque "the idolatry of
legislation, castigated by Renner, was a characteristic of R ussian legal thought
only during the first stages of the R evolution; it was abandoned w ith the
advent of N .E .P .”.

132
d a q u e le : liv r e d o le g a lis m o , d o f o r m a lis m o , da c o m p lic a ç ã o
f o r e n s e e d a a b s tr a ç ã o t e ó r ic a .9

N o n ív e l d o u tr in á r io , a q u e s tã o s e s a lie n ta c o m e s p e c ia l
e v in c a d a f a c e . 10 M a s n o n ív e l p o s it iv o é d ifíc il m a n t e r a f a s ta ­
d o s o s t r a ç o s p r ó p r io s d o d ir e it o b u r g u ê s , in c lu s iv e a c o d i f i ­
c a ç ã o c o m d e c o r r e n t e v a lo r iz a ç ã o d a e x p r e s s ã o le g a l e tc . V i ­
m o s in c lu s iv e q u e o d ir e ito p ú b lic o d o s p a ís e s s o c ia lis t a s a in d a
v a lo r iz a a le i. N ã o é f á c il m a n te r o c o n c e i t o d e u m d ir e it o
“ o p e r á r io ” s e m o r e p a r tir e n tr e d o is s e n t id o s , c a d a u ra c o r r e s ­
p o n d e n t e a u m a s it u a ç ã o n o p r o c e s s o tr a n s fo r m a t iv o o u . n ã
im a g e m q u e s e fa z d e ta l p r o c e s s o : o d e u m d ir e it o p a r a tr a b a ­
lh a d o r e s m a s a in d a d e n tr o d o s q u a d r o s b u r g u e s e s , e o d e u m
d ir e it o f e it o p o r o p e r á r io s d e n tr o d e u m s is te m a já m u d a d o p o r
r e v o lu ç ã o .. M e s m o p o r q u e , n o O c id e n t e , a id é ia d e d ir e ito v e ’o
f ix a n d o - s e , a tr a v é s d o s s é c u l o s , . u n i f i c a d a . e m t o r n o d a im a g e m
d e u m m u n d o s o c ia l u n o o u p e lo m e n o s h a r m o n iz a d o e m s u a s
p o r ç õ e s , c o m o u m p a d r ã o d e d ita m e s c u j o m o ld e , tin h a u m a
e s s ê n c ia d e f in ív e l e m t e r m o s p r ó p r io s ; a n o ç ã o d e c l a s s e s , o u
d e p o s iç õ e s n a v id a s o c ia l c o m c o n s c iê n c i a s c o n f lit a n t e s , tr a z
u m a q u e b r a d e id é ia s c o m o a q u e la , q u a n d o é le v a d a a o e x t r e ­
m o p o lê m ic o . O r a , o d ir e it o d ito o b r e ir o , d e n tr o d u m a s o c i e ­
d a d e o n d e o o b r e ir o se ja a s s a la r ia d o , c o e x is t e c o m a p a r te r e s ­
t a n te d e u m m e s m o “ o r d e n a m e n t o ” , q u e é le g a lis t a , e n ã o p o ­
d e , p o r t a n t o , s u b tr a ir -s e d e t o d o a o le g a lis m o d a q u e le . Q u a n t o
a o d ir e ito d e u m p a ís q u e s e d e c la r a p r o le tá r io , o d ile m a é
o s e g u in te : o u m a n té m u m f e it io le g a lis t a p o r c o n s e r v a r c e r ta s
in flu ê n c ia s c u ltu r a is o u terfta e x tir p a r e s s e f e it io a p e la n d o p a r a
c r ité r io s q u e , e n t ã o , n ã o c o r r e s p o n d e m já à e x p e r iê n c ia q u e
d e v e te r tid o o o p e r á r io p r o p r ia m e n te d ito , q u a n d o sjua c o n d i­
ç ã o “ n ã o -b u r g u e s a ” e s ta v a d a d a d e n tr o d e u m r e g im e b u r g u ê s .
T a l v e z , n ã o t e n h a m o s a in d a e x e m p lo s d e u m d ir e ito “ o p e r á r io ”
b a s ta n te a u tê n t ic o p a r a te s ta r a su a p o s s ib ilid a d e d e m o s tr a r
u m a o r d e m n ã o - le g a lis t a . 11

9 Ver M A X IM E LER O Y , E l Derecho Consuetudinàrio Obrero, trad. Mé­


xico, 1922, Pref. e Intro d u ção ; também HUGO S IN Z H E IM E R ; “ La Theorie
des Sources du D roit et le D roit O uvrier", em L e Probleme úès Sources du D.
P o si'if, citado (na discussão, p. 80, oportunas observações de Gãneff sobre as
confusões em torno de direito não-estatal, aplicação de regras etc.),
10 Tam bém se salientou na hora da revolução soviética cuando L E N IN E
entendeu que o direito burguês . desaparecia como proteção da propriedade in d i­
vidual dos meios de produção, m as subsistia “ como regulador para a d istrib u i­
ção dos produtos e distrib u ição do trabalho entre os membros da sociedade" (E l
Estado y la R evolución, ed. L antaro, B. A ires, 1946, p. 145).
11 O Padre ANDRÉ B O N N IC H O N , escrevendo sobre o novo direito da
China com unista desde 1949, observa que a m udança foi m ais radical do que es-

133
3. CRÍTICAS AO FUNCIONAMENTO DAS LEIS
NO PLANO CONCRETO

M a is v a lo r t é c n ic o te m o t ip o d e in d ic a ç õ e s e m q u e se
r e j e it a a f u s ã o e n tr e o s c o n c e it o s d e d ir e ito e lè i.1* E s s a r e je i­
ç ã o , se n em s e m p r e ' e n v o l v e lim d e s a p r e ç o à l e i c o m o ta l o u
u m a o p o s i ç ã o a o s e u p r e d o m ín i o e n tr e a s f o r m a s p o s s ív e is d e
e x p r e s s ã o p o s it iv a d o d ir e it o , é r e a lm e n te b á s ic a . E la n ã o a p e­
n a s r e s s a lv a a in te g r id a d e d o s c o n c e it o s r e s p e c tiv o s c o m o ta m ­
b é m p e r m it e s it u á - lo s e m p la n o s h is tó r ic o s d is t in t o s . É o que
t e m s u c e d id o e m c e r ta s r e f e r ê n c ia s d a s q u a is a lg u m a s v ã o a q u i
c ita d a s .

E ssa d if e r e n c ia ç ã o dos d o is c o n c e it o s , tã o a n tig a , a liá s ,


e t ã o ó b v ia a p e s a r d e t u d o , e r a n e c e s s á r ia , p o is p o r tr á s d e
m u it a s e x p r e s s õ e s d o le g a lis m o s e a c h a v a a t e n d ê n c ia a ju s ta -

peravam os que supunham ...viesse .apenas uma legislação de novo conteúdo; ab­
ro g a d o s em bloco os antigos textos, nada os substituiu, e não apareceram có­
digos (Le D roit de la Chine Comm uniste, La Ha ye, pp. 1 e segs.). A crescenta:
“ On com prit done peu à peu que les lois anterieures étaient bourgeoises, non
pas teliem ent, par ieur contenu — qu'on au rait pu m odifier — m ais par laut
caractère m êm e de texies íeg isla tifs, offrant un appui à l'individu en face
du pouvoir” (p. 2, grifos nossos). V. ainda T A O -T uH O U A N LEN G , em R e ­
vue de Ja Comm ission Internationale de Juristes, t. IV , n.° I, 1962, pp. 36 e
segs. Tem os aqui um estatism o que ao contrário do anterior não ¿ legalista
—• ao menos como estág io ; as novas práticas são com andadas com um interesse
au to rita rista superior (“ T rata-se, dizia S. V. L IN A R E S Q U IN T A N A em 1946
a proposito do caso russo, de una dictadura superior a toda norm a jurídica, quê
puede , en cualquier momento salir del carril de la ley escrita y hasta del de­
recho consuetudinàrio” 1 Derecho Constitucional Soviético, Ed. Claridad, B. A i­
res,. Cap. I I I , p. 28). Mas, por outro lado, já foi notado que o direito sovié­
tico (cf. atrás nota 8) não repudiou de todo a prim azia d a . lei, te n d o . sido
V ischinsky um leg alista: cf. A. Q U IN T A N O R IP O L L É S , Filosofia y Ciencia
del D erecho S o viético, Reus, M adrid, 1950, p. 24. P ara a evolução do pro­
blema, G. L. K L IN É , ‘‘Socialist legality and com m unist ethics" em N atural
L a w Forum, ed.. Univ. of Notre Dame, voi. 8, 1963, pp. 21 e segs. e tam bém o
Cap. X I, “ R evolutionary L eg ality ” da H istorical Iniroduction to the Theory of
L aw , de W A L TE R . JO N E S . Conforme explica E D U A RD Z E L L W E G E R , a
expressão “ legalidade rev olucionária” cedeu lugar gradualm ente ao term o “lega­
lidade so c ialista” (Le P rincipe de L egalité Socialiste, em R évue de la Com­
m ission Internationale de Juristes H iver, 1964, tomo V, n.° 2). Sobre a rela­
ção entre a perm anencia do E stado e a função da lei no caso iugoslavo, J. B.
T IT O , Paz y Socialism o (Belgrado, 1960), p. 18; e J. D JO R D JE V IC j “ Cons­
titucionalism o y Socialism o”, em R ev. de D. Público e C. P olitica, FGU, Rio,
voi. V I, j., abril de 1963, pp. 57 e segs.
12 Desde logo Brinz, apud S T A M M L E R : “ Sobre el Método de la T eoria
H istó rica del D erecho” em La Escuela H istórica del Derecho — documentos
para su. estudio, .por Savigny, Eichorn, Gierke, Stam m ler, trad. R. A tard, Ma­
drid, 1908, p. 214. Por sua vez S A N T I-R O W A N O , em E l Ordenamiento Jurí­
dico, trad, cap., ed. IE P , M adrid, ' 1963, Cap. I, § 5.°, observa que no ordena­
m ento, em vez de serem as norm as elem ento determ inante, são objeto, são meios
de ação dirigidos por ele segundo outros elem entos mais essenciais. Semelhan­
te idéia seria aliás acolhida por CARL SC H M IT T .

134
p ô - l o s , s e n ã o a f u n d i- lo s , c o m o o c o r r e u ( e o c o r r e ) c o m o p o s i ­
t iv is m o — a o m e n o s c o m c e r to t ip o d e p o s it iv is m o ju r íd ic o .
T e m o s , n o c a s o , a s c r ític a s q u e v is a m a c o n s id e r a ç ã o d a
le i c o m o r e p r e s e n ta tiv a d e t o d o o j u r íd ic o o u d e to d o o a s p e c to
o b j e t iv o d o j u r íd i c o . 13 C e r ta s c r ític a s s e d ir ig e m e s p e c ia lm e n t e
a o p o s it iv is m o ju r íd ic o : p o r e x e m p lo a d e C A R L S C H M I T T . 14

N o d ir e ito in te r n a c io n a l, e s s a p o s iç ã o já te m s id o c la r a ­
m e n t e e x p r e s s a d a , 15 e n e s t e c a m p o a c o i s a s e e x p lic a r e a lm e n te
p e la f a lta d e u m a p o s it iv id a d e c o m p ie t a , c o n c i a t a à s e m p r e
d is c u t id a f a lta d e s a n ç õ e s e d e u n if o r m id a d e o r d e n a m e n ta l.

13 Uma rápida crítica, em direção sem elhante, na A nalisi de CODACCI —


P isan elli (citad a), p. 11 e em R A FA E L B1ELSA, E studios de Derecho P úbli­
co, I I I , D. C onstitucional, B. A ires, 1952, p. 500. P O N T E S D E M IRA NDA,
por seu turno, situ a enfaticam ente certos direitos, dos contidos nas declarações
constitucionais, como “direitos supra-estatais” , que não resultam de leis, e sim
do direito das gentes (Comentários à C onstituição de 1546, 4.“ edição, tomo IV,
Borsoi, Rio, 1963, pp. 242 e 243).
14 De S C H M IT T , o famoso 'ensaio sobre as três espécies de pensam ento
jurídico : apud G. PELA Y , Derecho C onstitucional Comparado, cit., p. 58; e
tam bém A R T U R O E. SAMPAYO, Carl S ch m itt y ’a Crisis de la Ciencia Juridi:
ca, idi, Abeledo P errot, B. Aires, 1965. P ara Schm itt, a ciencia jurídica se
acharia am eaçada pelo “ tecnicism o que opera com um legalism o vazio“ (SA M ­
PAYO, p. 66;. T irado à parte o decisionism o para-nazista com que se rel..cio-
nava, essa crítica nos parece procedente, em bora carecendo de reform ulação.
P ara o pensam ento de S C H M IT T , v. tam bém seu célebre estudo Legal.dad y
L egitim idad, ). Diaz, Aguilar, M adrid, 1971, princ. prólogo e Cap. I. Outro sen­
tido têm, porém (e com outra m otivação dentro da circunstância alem a), c .íà ^ a s
como a de. Radbruch às “leis não-jurídicas", ou, em sua esteira, a de Eber-
h a rJt Schm idt e a de W elzel ao positivism o cego (cf. RA D BRUCH, SC H M ID T
e W E L Z E L , Derecho In justo y Derecho N ulo, ed. A guilar, M adrid, 1971). Em
direção sem elhante situam os o opúsculo de M IC H E L R IQ U E T , Sa M agesté la
L oi — le Droi Contre -la Loi, editado em P aris, 1925. Uma crítica do po siti­
vismo segue p aralela à do form alismo como modo de entender a especificidade
do ju ríd ico : para o caso, N O R B E R T O B O B B IO , Teoria della Scienza Giuridi­
ca, 1950, Cap. V ; L. V ILA N O V A , Sobre o Conceito do D ireito, citado, Cap.
IV (“ Se se tem em conta que o conceito do direito é um problema lógico, não
é de surpreender o caráter formal desse conceito. Mas isto precisam ente deixa
claro que são possíveis outros pontos de vista sobre o direito: o tratam ento
lógico não esgota o conhecimento jurídico“ , p. 75) ; um rol das críticas contra
o dedutivism o, em RECASÉNS S IC H ES, N ueva F ilosofia, citado, Cap. II.
Poder-se-ia talvez, forçando ura pouco', tira r da observação de W. E E E N S T E IN
(La Teoria. Pura D el Derecho, trad. M alagón y Peréña, México, 1947, Cap. IV ,
p. 165) — de que a teoria pura adm ite que um sistem a tem por indispen­
sáveis no sentido lógico apenas duas form as: a norma fundam ental e o ato
de execução da lei — a conclusão de que mesmo nessa teoria o “ momento le­
gal” ficaria — historicam ente condicionado — reduzido a segundo piano. Mas
tal não é o caso. Parecem -nos necessitadas de revisão e com plem entação essas
form as de críticas, aínda form alistas, ao form alism o No interessantíssim o
opúsculo de K. N. L L E W E L L Y N , B elleza y E stilo en el Derecho (trad. J.
P. Brutau, Barcelona, 1953, Çaps. I l l e IV ), está desenvolvida a idéia de que
no sistem a juríd ico norte-am ericano a época rígida e lógica está sendo substi­
tuida por um “ terceiro estilo ” em que as soluções form alistas se verão supe­
radas (p. 61), e em que as aplicações do direito se estendem a áreas crescen-
tem ente ampias. Mas o opúsculo é de 1941.
15 GUSTAV A. W ALZ, Esencia del Derecho Internacional y Critica de
sus Nega'dores, trad. A., T. Serra, R. D. Privado, Madrid,. 1943, parte II, § 33,
pp. 264 e 265, com abundantes citações confirm ando a necessidade de distinguir
direito • lei.

135
A lg u m a s v e z e s , o la n c e d e s t in a d o a liv r a r a id é ia d o d ir e ito
d a tir a n ia d a id é ia d a le i le v a a c e r t o s e x t r e m o s , c o m o n o c a s o
e m q u e s e a fir m a a s u p e r io r id a d e é t ic a d a n o r m a c o s tu m e ir a
s o b r e a le g is la d a , o q u e , a lé m d e d is c u t ív e l d e n tr o d o p r ó p r io
p la n o p r o p o s t o , o u s e ja o é t ic o , é d is c u t ív e l p e lo fa to d e q u e
o d o m ín io d o ju r íd ic o s e a c h a d if e r e n c ia d o d e s s e p l a n o . 16 D e
t o d o s o s m o d o s , a s d iv e r s a s n u a n c e s d o j u s n a tu r a lis m o a tu a l,
d e s d e o “ r e n a s c im e n t o ” d o d ir e ito n a tu r a l, s e c o n e x i o n a m c o m
e s te tip o d e a fir m a ç ã o .

O u tr a f o r m a d e d e s lo c a r o c o n c e it o d e le i d o p o n t o d e
o n d e c o b r ia o d e d ir e it o , c o n s is t e n a r e d u ç ã o d e s e u d o m ín io
a d e t e r m in a d o s lim ite s h is tó r ic o s . A s r e fe r ê n c ia s e x is te n t e s n e s ­
s e s e n t id o o f e r e c e m s u b s íd io s p a r a a c r ític a d o le g a lis m o c o m o
e ta p a , c r ític a q u e , d e r e s to , a in d a e s t a v a , a p e s a r d e tu d o , p o r
fa z e r . ( D e v e m o s d ife r e n c ia r e s ta r e d u ç ã o d o s lim ite s h is tó r i­
c o s d a le i, d ia n te d a á r e a c o b e r ta p e la id é ia d e “ d ir e it o ” ,
d a q u e la s a p o lo g ia s d a n o r m a le g a l q u e , d a n d o - a c o m o m a is
“ e v o l u íd a ” , im p in g ia m - n a c o m o d e f in itiv a , a b a n d o n a n d o t o d o
r e la tiv is m o e f a z e n d o q u e a n o ç ã o d o d ir e ito o b j e t iv o f ic a s s e
c o in c id in d o s e m p r e c o m e l a .)

A s s im s e lê , n o c o n h e c i d o c o m p ê n d io d e S T E R N B E R G ,
q u e o d ir e ito c o n s u e t u d in à r io e o d ir e ito c ie n t íf ic o s ã o e ta p a s
q u e , n a e v o l u ç ã o c u ltu r a l, s e d is t in g u e m d o d i r e it o - le i. 17

I g u a lm e n te s e g u r a é , s e n ã o m a is a in d a , a r e m is s ã o d o
p r o b le m a a o t ó p ic o d a s f o n te s . P A R A D I S I , p o r e x e m p lo , o b ­
se r v a , a p r o p ó s it o d a s v á r ia s “ f o n t e s ” d o d ir e ito , q u e c a d a u m a
d e la s t e v e , c o n f o r m e a é p o c a q u e s e c o n s id e r e , s u a im p o r tâ n ­
c ia , e q u e d e s ta r te s ó a a lu s ã o a o m o m e n t o h is t ó r ic o p e r m ite
a d e t e r m in a ç ã o d o c o n c e it o d e s t a o u a q u e la f o n t e . 18 E s s a p e r s -

16 C A R N E L U T T I, para quem a lei está para o costume como uma mer­


cadoria “ sin tética" está para uma natural ou genuína, chegou a dizer que “o
costume procede de uma vontade diversa e superior à vontade hum ana que é
fonte da lei" (Teoria General del D erecho, trad., M adrid, 1941, § 51, in fine).
Como sempre, a tirad a filosófica do grande processualista é vazia e pouco crí­
tica.
17 Introducción (citad a), pp. 176 e 178. P ara ele, o costume como forma
jurídica iniciou a escala, sendo seguido pela tecnica consistente no direito le­
gislado, que deverá ser superado pelo direito “ científico” ; este entretanto nas­
cerá em relação com o resto de vigência do consuetudinàrio e com a “jurispru­
dencia textual". E sta opinião, que evoca bastante a de Sayigny, lem bra ao
mesmo tempo as ponderações de Koshaker e as idéias de Gény sobre ciencia
e técnica.
18 " . . . ciascuna di quelle fonti ha avuto im portanza e funzione ed anche
natura diversa, a seconda d ell’epoca nella quale la consideriam o” (Storia .del
D iritto Ita lia n o, citada, Cap. I, p. 5), e m ais: “ non sono — a lei. o costume
etc. — term ini ai quali corrisponda sempre uno stesso ed im m utabile oggeto,

136
p e c t iv a e v id e n t e m e n t e d ife r e d a q u e la d o s e u f ó r ic o s a u to r e s q u e ,
h á a lg u m a s g e r a ç õ e s , a c la m a v a m a l e i c o m o ú n ic a e x p r e s s ã o
id ô n e a d o d ir e it o , e a c e it a v a m c o m o a c o i s a m a is c e r ta d o
m u n d o q u e so m e n te a le i p o s s u í a q u a lid a d e s o b j e t iv a s p a r a
e x p r e s s a r o d ir e ito .

E n t r e a s p o s iç õ e s q u e r e je ita m a o b s o r ç ã o d a id é ia d a p o -
s it iv id a d e e d a o b j e t iv i d a d e ju r íd ic a s p e lo c o n c e i t o d a le i, o u
p o r a lg u m a n o ç ã o n o r m a tiv is tá d e r iv a d a d a e x p e r iê n c ia c o n c r e t a
d a le i, d e v e m - s e a s s in a la r a in d a a s v is t a s s o c io ló g ic a s q u e , in ­
d ic a n d o o d ir e ito c o m o a lg o s o c ia lm e n t e in s t a u r a d o e r e v e la n ­
d o e m s u a in s t a u r a ç ã o s o c ia l a m a r c a d e e le m e n t o s d iv e r s o s ,
r e d u z e m a e s tr u tu r a le g a l d o o r d e n a m e n t o a u m m e r o a p a r a to
f o r m a l e , p o r t a n t o , n ã o e s s e n c ia l . É c o m p r e e n s ív e l q u e s e m e ­
lh a n t e s p o s iç õ e s s e ja m a s s u m id a s p e lo s q u e c u lt iv a m o e s t u d o
d e t r a n s f o r m a ç õ e s . 19 T a m b é m a s a s s u m e m c e r t o s c r ít ic o s d a s
r e la ç õ e s e n tr e a le i e p s f a t o s , o u e n t r e o s f a t o s e o s c ó d ig o s ,
e a s s im p o r d ia n t e .20

***

ma invece concetti determ inabili sul fondamento delle linee generali che sono
proprie delle fo n ti"; dai ser preciso o seu conhecim ento na história para exati-
ficar seu conhecim ento dogm ático (p. 6).
19 D U G U IT : “ el derecho es mucho menos la obra dei legislador que o
producto constante y espontáneo de los hecchos" (L a s transform aciones gene­
rales del Derecho privado desde el Cód. de Napoleón, tradi C. G.. Posada, B el­
tran, M adrid, s.d., I, p. 19). O texto prossegue a voltas com a “ força das
coisas", a “pressão dos fatos" e as “ necessidades p ráticas". E stariam no caso,
tam bém os autores da Freirechtschule, que tan ta e tão ju stificad a repercussão
teve em seu tempo, com sua idéia de um direito vivo e com a valorização da
espontaneidade social nas organizações, e com uma com preensão histórico-so-
cial realm ente notável da problem ática jurídica, sobretudo nos casos de E hrlich
e de K am torowiiz. O antiestatism o, em E hrlich por exemplo, correspondeu a
um a fecunda am pliação do conceito do direito liberado da bitola legalista.
20 Aludimos, evidentem ente, aos ju rista s e escritores que anotam revoltas
contra os Códigos, como GASTON M O R IN (La R evolte des F aits contre Je
Code C ivil, P aris, 1925; La R evo lte du D roit Contre le Code, P aris, 1945), e
aos que encontram nas leis uma grande inutilidade (JE A N C R U ET A vida do
direito e a inutilidade das leis, tradução port., Lisboa S. D .), O RTEG A , seni
pretender maior detença no assunto, chegou a escrever que a legislação, “ nos.
últim os tempos, se converteu em uma m etralhadora que dispara leis sem ces­
sar" (Passado y Porvenir para el Hombre A ctual, obras Inéditas, Rey; de O cci­
dente, 1962, p. 118); Cf. tam bém E IC H L E R , no opúsculo citado (nota 126),
falando de “ H ypertrophie der Gesetzgebung" e de “ G esetzesabsolutism us"; bem
como o brilhante artigo de L U IG I B A G O L IN I, “ La crisi dello stato", em
I L P O L ÍT IC O , Pavia, 1968, n.° 2 (“la voce dello stato, attraverso la prolife­
rante. giungla delle leggi, diventa sempre più confusa, p. 245). No entender de
KO SCH A K ER , o que ocorre é sempre a insuficiência das form as rígidas diante
do vital direito “de ju ris ta s" que a com plem enta (Europa, p. 274 e passim ) e
que trab alh a — apesar de seu intrínseco travo conservador — dentro do equir
líbrio de todo d ireito vigente entre m anutenção e renovação. E um ju rista
como G. B O E H M E R , (op. cit. à nota 166. § I, pp. 17 e 18) não vacilou em
frisar que hoje, do ponto de vista sociológico, o problem a da relação entre a
lei e as necessidades reais revela que “ la tarea propriam ente creadora que in­
cumbe a la función judicial no es la de enm endar normas legales de carácter

137
T e m o s p o r fim o s a u to r e s q u e c o n s t a ta m q u e as le is h o je
s ã o in s u f ic ie n t e s o u in a p ta s p a r a a r e g u la ç ã o d a s q u e s tõ e s d e
n o s s o t e m p o . P o r c e r t o , a lg u n s d a q u e le s e s c r ito r e s q u e d e r a m
c o n t a d o c o n f l i t o d o s “ f a t o s ” c o m as le is e s tã o n e s t e c a s o . E
h á a q u i u m a o b s e r v a ç ã o a fa z e r : m u ita s v e z e s , o s q u e m ir a m
o d e s c o m p a s s o d o e s t il o le g a lis t a d a o r d e m ju r íd ic a c o m a “ r e a ­
lid a d e ” p r e s e n te p r o c u r a m a tir a r , s o b r e e s ta r e a lid a d e a c u lp a ;
é a q u e b r a d o n ív e l m o r a l, é o d e s p r e s tíg io d a p e s s o a , é o a d ­
v e n t o d e c r e n ç a s e r r ô n e a s q u e s e p in ta m c o m o c a u s a d o d é ­
c a la g e e n tr e a n o r m a ç ã o e a v id a . A liá s , se r ia d e p e r g u n ta r
s e , d a d o o e x c e s s o c r e s c e n t e d e le is n o m u n d o e m n o s s o s d ia s ,
h á m e s m o c r is e d o le g a l i s m o .*21 A c r is e n ã o p o d e r ia se r e n t e n ­
d id a n o s e n t id o d a s a p a r ê n c ia s , já q u e a p r o d u ç ã o d e n o r m a s
le g a is s e g u e s e n d o a b u n d a n te p o r to d a p a r te . E l a d e v e s e r e n ­
t e n d id a e m c o n e x ã o c o m a c r is e d o s e l e m e n t o s c u ltu r a is q u e
c e r c a r a m o le g a lis m o n o p e r í o d o d o s e u a p o g e u .
É c a r a c t e r ís t ic o o a la r m e d ia n te d a in a d a p ta ç ã o d e c e r ta s
le is a o s “ f a t o s ” — is t o é , d ia n t e d o q u e s e to m a p o r ta l. E n t ã o
n e s s e c a s o a s m ío p e s j e r e m ia d a s d e R I P E R T .22

À s v e z e s a c r ític a s e d ir ig e a o c o n f lit o e n tr e o f o r m a lis m o


le g a l e a c r e s c e n t e “ m o b il id a d e ” d a s r e la ç õ e s ju r íd ic a s , q u e p e ­
d e m m e lh o r r e g u la ç ã o . P o r tr á s d o e q u a c io n a m e n t o d e s e m e ­
lh a n t e s c o n f lit o s , la te ja s e m p r e u m a in s a t is f a ç ã o é t ic a , q u a n d o

im perativo, sino el desarrollo de form as jurídicas independientes en um terre*


no donde no alcanza la protección de la ley, pero en el que, a pesar de todo,
la regulación ju ríd ica es n ecesaria" (grifo nosso).
21 O bservava já A D O L FO RAVA que, nos países onde as fontes do direi­
to se equilibram , as crises são m ais superáveis que naqueles onde a lei predo­
mine! totalm ente a ponto de se identificar seu conceito com o de d ireito ; pois
nestejs países, o meio de resolver a crise parece sempre ser a criação de leis
novas, o que agrava tudo e revigora o fetichism o legal ("C risi del D iritto e
Crisi! M ondiale", en La Crisi del D iritto, por vários autores, Padova, 1953, pp,
67 ej 68). E G IU S E P P E GROSSO, professor em T urim , escreveu: "viviano
ancora nel m ito della legge, espressione d'un unico potere legislativo dello sta ­
to, come fonte del d iritto per eccelenza; l'insuficienza di questa concezione a
cogliere la com plessità della vita m oderna, porta in conclusione al risultado de­
generativo di un potere legislativo reale poggiato s u ira rb itrio della burocrazia”
("L a! C risi della L egalità", em R j v . di D iritto C ivile, Padoya, Cedan, anno
V I, 1960, fase. 6, p. 566). Sobre o assunto v. também A FO N SO A R IN O S, E s­
tudos de D ireito C onstitucional (ed. Forense, Rio, 1957), p. 158.
22 G. R IP E R T , L e D eclin du D roit, P aris, 1949, e L es Forces Créatrices
du D roit, P aris, 1955. Do prim eiro, o Cap. II. se intitula expressivam ente
"T out D evient D roit P u b lic” (de uma frase de P ortalis) e nele se critica in­
clusive a cham ada socialização do direito. No segundo, lam enta a confusão e
abundância das leis ante as quais os homens já não sentem respeito como nou­
tros tem pos. Por seu turno G IU S E P P E G U A L T IE R I, constatando que "con
mal celato tono di disprezzo per il diritto codificato si suole oggi dire e escri-
vere che la legge non è il d iritto ’ e nemmeno la giustizia", se resolve a de­
m onstrar a necessidade de reab ilita r a (sic) "pòvera legge" {Il Valore della
L egge e i F attori Pratici della Legalità, Padova, 1946, Cap. I, pp. 5 e segs.).

138
iiã o i d e o l ó g i c a .23 M a s d e s te la d o d o p r o b le m a já f a la m o s b
p r o p ó s it o d a a titu d e s o c ia lis t a , e d a a c u s a ç ã o q u e fa z a o d ir e ito
b u rg u ês.

E m a lg u m a s o c a s iõ e s a c r ític a te m s id o f o r m u la d a c o n tr a
a q u ilo q u e s e c h a m o u a “ s o b e r a n ia d a l e i ” . N e s t e p o n t o , p o s ta
a d e s c o b e r t o a d e b ilid a d e d o q u e s e p e n s a v a s e r a o n ip o t ê n c ia
■da n o r m a le g is la t iv a , t e m o s u m a c o n e x ã o c o m v á r io s t ó p ic o s : a
g r ita e x is t e n c ia l c o n tr a j u lg a m e n t o s fu n d a d o s e m “ p r o p o s iç õ e s
m e c â n ic a s e m o r t a s ” ,2^ a d e n ú n c ia d a p r e c a r ie d a d e d o c o n tr a to
c o m o fo r m a d e e x p r e s s ã o d e a c o r d o s p e r f e it o s ,25 a a n á lis e d o
e s ta d o lib e r a l c o m o “ in s tr u m e n to d o c a p it a lis m o ” , a a r r e g im e n -
ta ç ã o d e h u m a n is m o s e d o u tr in a r is m o s d e t o d a so r te .

E m c e r t o s m o m e n t o s s e f a la e m d e s u s o , a o t o c a r n a n e g a -
t iv id a d e d a s r e la ç õ e s e n tr e a s le is e o s f a t o s , m a s v a le d e ix a r
b e m f r is a d o q u e a í n ã o t e m o s b e m u m r e c la m o p o r d ir e ito
c o n s u e t u d in à r io . Q u a s e s e m p r e o q u e s e q u e r é o u tr o c o n t e ú d o
o u o u tr o e s p ír it o n a s p r ó p r ia s le is , c u ja n o ç ã o , p o r t a n t o , s e
co n se rv a c o m o n o ç ã o d e u m a fo rm a sem p re a d eq u a d a à e x ­
p r e s s ã o o b je tiv a d o d ir e ito . O d e s u s o a í é d e s u s o d a le i s e m
im p lic a r id é ia d o u so j u r íd ic o e x tr a le g a l.

P o d e r - s e - ia a g r e g a r a e s ta s a q u e s tã o d a lim it a ç ã o d o a l­
c a n c e d a le i — e d o p o d e r le g is la t iv o — e m c e r t o s t e x t o s c o n s ­
t it u c i o n a is .26 E s t a é , e n t r e ta n to , u m a o u tr a h is tó r ia .

23 A liás C H IR O N I (que temos tomado como p riv atista típico de fins do


século X IX e começos do X X ), enfatizando como grande coisa que o socialis­
mo pede ao legislador o reconhecim ento da “ m obilidade” dos fatos sociais (op.
CJt., p. 31), esquecia que o que faltava fnesmo, era a compreensão da insufi­
ciência do próprio legislativism o.
24 Jaspers, em W E L Z E L , op. cit., p. 247. A esse tipo de críticas se vin­
cula o ressentim ento contra a burocracia e sua tendência a dissolver o jurídico
em exigências form ais e cheias de papel. A ele pertencem , igualm ente, requi­
sitorios como o de Kafka contra os form alism os processuais abstrusos e absur­
dos, ou as preciosas ironias de Anatole France contra as injustiças das leis.
25 G. M O R IN , R iv o lte , cit. à nota 20, atrás. Igualm ente, LEÓN DU-
G U IT , loe. cit. à nota 19, atrás). Esse tem a tem sido m uito tratado. Com a
“crise do co n trato ”; liga-se a já extensa problem ática da “ im previsão” e da apli­
cabilidade da cláusula r.ebussic stantibus. A respeito, o § 15 do livro de G.
B O E H M E R , cit. à nota 254; L. M. R E Z Z O N IC O , La fuerza obligatoria del
contrato y la teoria de la im previsión,. 2.a ed., B. Aires, 1954; . DARCY BES-
SO N E, A spectos da E volução da Teoriá dos Contratos, S. Paulo, 1949, Cap. IX.
M ais sobre o tem a em R. B IE L S A , op. cit. à nota 248: § 19 (Las reglas de
derecho en la ley, en la doctrina y en la jurisprudencia a proposito del stan ­
dard juríd ico ), n.° I I I : “ El ju rista ante las nuevas m anifestaciones de con­
ducta social y de las m odificaciones del derecho” (pp. 503 e segs.).
26 Na F rança a C onstituição de 1958, em seu artigo 34, distingue entre
m atérias para as quais a lei “ fixa as reg ra s” e m atérias para as quais a lei
“determ ina os princípios fundam entais”. P ara certos autores, isto implicou
uma redução do “domínio da le i” (M IC H E L D E B R U N , O Fato Político,
Fundação Getúlio V argas, 1962, p. 119).

139
N o d o m ín io d o d ir e ito p r iv a d o , G u s ta v B o e h m e r , e m liv r o
q u e já f o i m e n c io n a d o n o p r e s e n te e s t u d o , c h e g a a f a la r , e m b o ­
ra c r itic a n d o a e x p r e s s ã o , n u m “ d ir e ito c o n s u e t u d in à r io c o n ­
tra le g e m ” , a c e n t u a n d o c a r r e g a d a m e n t e a im p o r tâ n c ia d o p a p e l
d o s tr ib u n a is e d a ju r is p r u d ê n c ia n a d in â m ic a \ ju r íd ic a m a is
n o v a .27

4. SUPERAÇÃO POSSÍVEL DO LEGALISMO NO


PENSAMENTO JURÍDICO RECENTE

M a is d e n tr o d a p r o b le m á tic a t e ó r ic a s e a c h a m t a lv e z as
s u g e s t õ e s c o n t id a s e m c e r ta s d o u tr in a s j u s f ilo s ó f ic a s , p a r a u m a
s u p e r a ç ã o d o e x c lu s iv is m o le g a lis t a .28 N o c a s o , a t e o r ia t r id i­
m e n s io n a l, e m q u a lq u e r d e s u a s f o r m u la ç õ e s , b e m c o m o a te o r ia
e g o l ó g ic a . N a p r im e ir a , a le i f ig u r a a p e n a s d e n tr o d e u m a d i­
m e n s ã o , a d a n o r m a , n a im a g e m tr ilá te r a d o ju r íd ic o , e a s o u ­
tra s d u a s d im e n s õ e s , a d o fa to e a d o v a lo r , e m b o r a sen d o
f la n c o s o fe r e c id o s ao e s tu d o e x t r a p o s it iv o , is t o é, h is t ó r ic o -
- s o c i o l ó g i c o e f ilo s ó f i c o ( o q u e f a z c o m q u e a id é ia d e n o r m a -
t iv id a d e s e m a n t e n h a a in d a lig a d a à d a p r im a z ia d a l e i ) , e n s e ­
ja m , e n t r e ta n to , r e v is õ e s b a s ta n te a m p la s p ara a ju d a r e m a
d e s a lo ja r do e s p ír ito do ju r is ta a s u p e r s t iç ã o l e g a lis t a .29 Na
e g o l o g ia , a b r ilh a n te n o v id a d e (a seu m odo c o p e r n ic a n a ) de

27 E l Derecho através de Ia Jurisprudencia, citado, § 1, § 9 e passim .


28 Cf. parte final do Capítulo X III.
29 Para a versão realiana do tridim ensionalism o, M IG U E L R E A L E , Filoso­
fia do D ireito, já citad.a ; Teoria dò D ireito e do E stado, ora em 3.a edição
(M artins, S. Paulo, 1972); Teoria Tridim ensional do D ireito, ed. Saraiva, S.
Paulo, 1968; O D ireito como E xperiência, Saraiva, S. Paulo, 1968. Sobré a
perspectiva tridim ensional como atitude genérica, MACHADO N E T O , Introdu­
ção à Ciência do D ireito, S. Paulo, 1960, volume I (passim ). Cf. ainda IR I-
N EU S T R E N G E R , em R evista da Faculdade de D ireito de Cruz A lta (RS),
número 1, 1972. P ara o tridim ensionalism o, os três prism as distintos (fato,,
valor e norm a) aparecem focados como resultado de que, embora não se passe
do ser ao dever ser, passa-se do dever ser a o . ser, através da atuação dos va­
lores, que, tom ados em am plitude, dão sentido à vida histórica e cultural.; daf
o direito ter a norma como dim ensão “ mediadora?' entre fato e valor, entre o
sentido e a concretude, com alcance, portanto, sobre a prática. A liás o próprio
R E A L E fora antes "b id im en sio nalista”, na 1.a edição de sua Teoria do D ireito
e do E stado, fazendo da norma apenas uma relação entre as duas reais "d i­
m ensões”, fato e valor, posição que, se se perm ite, nos parece m ais correta.
T al bidim ensionalism o entretanto, foi reform ulado, ou antes, revisto na nova
edição daquele livro do ilustre pensador paulista.

140
d a r a c o n d u t a , e n ã o a n o r m a , c o m o s e n d o a r e a lid a d e d o d i­
r e it o , o u o b j e t o d a c iê n c ia ju r íd ic a , im p õ e u m a ta l r e v ir a v o lta
d e esq u em as que o v e lh o h á b it o m e n ta l d e p e n s a r o d ir e it o
c o m o a lg o “ q u e s e m a n d a f a z e r ” s e v ê a b a la d o a té o c i m o .30

N o f u n d o , t o d a s a s g r a n d e s t e o r ia s d e b a s e le g a lis t a p o s s u ­
e m a lg o c o m u m : a v is ã o d o n o r m a tiv o a r fic ia lm é n te ' tr a n s ­
f o r m a d o e m s u b s t â n c ia à p a r te . E n o f u n d o t o d a s le v a m à r e ­
fu t a ç ã o r e c íp r o c a , p e lo f o r m a lis m o q u e c a r r e g a m , e p e la v o ­
c a ç ã o p a r a a s is te m a t iz a ç ã o d e t ip o p o lê m ic o . N o c a s o d o
t r id im e n s io n a lis m o o e s q u e m a in c lu i ( n o â n g u lo d o “ f a t o ” ) u m a
a lu s ã o à h is tó r ia q u e p o d e v a le r c o m o s u p e r a ç ã o d o f o r m a lis m o
n a h ip ó t e s e d e n ã o “ d e p e n d e r ” — c o m o d im e n s ã o — d a d i­
m e n s ã o n o r m a tiv a t o m a d a c o m o p r in c ip a l.

A e g o l o g ia b u s c a s u p e r a r o n o r m a t iv is m o k e ls e n i a n o c o m
a id é ia d o “ d e v e r se r e x i s t e n c ia l” e do. d ir e it o c o m o c o n d u t a ,
m a s a p e la p a r a a n o ç ã o d e n o r m a ( e im p lic ita m e n te d ê n o r m a
le g a l ) p a r a fix a r o c o n c e it o d e d e v e r se r e a s s e n ta r as r e f e ­
r ê n c ia s d a - c o n d u t a . O t r id im e n s io n a lis m o , r e d u z in d o a n o r m a
a u m a d im e n s ã o a p e n a s d o d ir e it o , c o l o c a a s o u tr a s d u a s e m
to r n o d e l a : o f a to p a r a d a r -lh e r e la ç ã o c o m o c o n c r e to * o v a ­
lo r p a r a a tr ib u ir -lh e c o n t e ú d o e s ig n if ic a ç ã o . S e s e t o m a m o
v a lo r e o f a to c o m o d a d o b á s ic o , a d im e n s ã o n o r m a tiv a s e
a c h a r á r e a lm e n te r e d u z id a a f u n ç ã o o u d e p e n d ê n c ia d o r e a l;
m a s s é s e p a r te d a n o r m a , o e s q u e m a t o m a a a p r o x im a r - s e d e
t o d a n o ç ã o d o d ir e ito c o m o f o r m a le g a l.

C o m o f o i v is t o ( f i n a l d o c a p ít u lo a n t e r i o r ) , e s s a s p o s iç õ e s
e m g e r a l e v ita m e n f a tic a m e n te o im p e r a tiv is m o , c o m o s e o im ­
p e r a t iv o n ã o f o s s e e l e m e n t o n o r m a l d a le i, e c o m o se o m o d e lo
le g a l n ã o e s t iv e s s e n a o r ig e m d a s p o s iç õ e s n o r m a tiv is ta s . N egàr
o e l e m e n t o im p e r a t iv o no. d ir e ito s ig n if ic a , e m v e r d a d e , to r n a r
im p o s s ív e l u m a , s o c io lo g ia ju r íd ic a e u m a c o m p r e e n s ã o d a p o -
lit ic id á d e d o d ir e it o .31

30 Cf. Teorìa Egològica dei Derecho, citad a; E l Derecho en el Derecho


Judicial, citado; etc. Para a contestação,, ver A B E L J. A R IS T E G U I, O posi­
ciones Fundam entales a la Teoria Egológica del Derecho (ed. Platense, La P la ­
ta, 1967).
31 Um dos principais estudos polêm icos sobre o tem a, escrito dentro da
ortodoxia egológica, é b brilhante ensaio de M ACHADO N E T O , "A concep­
ção im perativ\sta das norm as como pensam ento prim itivo na teoria, ju ríd ic a ”
(Rev. da Faculdr.de de . D ireito de Cruz A lta, n.° 1, 1972), onde, a adm irável
im odéstia — não pessoal, mas doutrinai —r da egologia, e a segura erudição,
não conseguem esconder o artificialism o de tom ar a horma como “ju ízo ” e se-
pará-la ciosam ente de toda im peratividade.

141
5. PROBLEMÁTICA DAS LEIS NOS PAÍSES DO
CHAMADO TERCEIRO MUNDO

P a r a o s e s t u d o s j u r íd ic o s e n tr e o s p o v o s d ito s e m d e s e n ­
v o lv im e n t o , e p a r a o c h a m a d o te r c e ir o m u n d o , o in te r e s s e
d e to d a e s s a p r o b le m á t i c a s e r á m a is c o n c r e t o à m e d id a q u e c o n ­
t e n h a n ã o s ó . s u g e s t õ e s p a r a r e v is õ e s d e c a r á te r t e ó r ic o m a s
ta m b é m in d i c a ç õ e s p a r a a p o lít ic a ju r íd ic a . N o c a s o , d e v e - s e
in c lu s iv e in d a g a r s e a p r o b le m á tic a d o le g a lis m o e s u a c r is e s ã o
p r ó p r ia s d o s p o v o s p r in c ip a is d o O c id e n t e o u a lg o q u e e m to d a
o r d e m ju r íd ic a c o n t e m p o r â n e a s e p o d e c o n s ta ta r .

M a s v e r if ic a r — c o m o s e v e r if ic a — q u e e m p a ís e s c o m o
o s c h a m a d o s “p e r i f é r ic o s ” e x is te m e p e r s is t e m m o d e lo s le g a lis­
ta s de. o r d e n a m e n t o , s ig n if ic a a n o ta r m a is u m ín d i c e d a a m p li­
tu d e d a in f lu ê n c ia c u ltu r a l d o q u e s e v e m c h a m a n d o O c id e n t e .
O c o r r e j u s t a m e n te c o m o m a n to c u ltu r a l d o O c id e n t e , q ú e n a
m e s m a m e d id a e m q u e s e e s te n d e u p o r t o d o s o s q u a d r a n te s ,
in v e n t o u o u e n s e jo u o c o n c e it o d e c r is e e a p lic o u - o à q u a lifi­
c a ç ã o d e tu d o q u a n to fo i a c h a q u e h is t ó r ic o q u e e m s u a v id a
“ c o n t e m p o r â n e a ” e n c o n t r o u . A s s im , as e s tr u tu r a s ju r íd ic a s o c i ­
d e n ta is s e im p u s e r a m p o r t o d a p a r te , in c lu s iv e n o c a s o d o s
p o v o s c o l o n i z a d o s , t a n t o p e la f o r m a ç ã o e u r o p é ia q u e r e c e b e ­
r a m c o m o p e la p o s t e r io r a c e it a ç ã o d e m o d e lo s . E e m p a r te
s e p o d e d iz e r q u e e m c e r t o s p a ís e s as “ c r is e s ” ..ju ríd icas v ê m
d is s o : d a a d o ç ã o d e fo r m a s q u e f o r a m r e p r e s e n ta tiv a s d e u m a
id é ia d e d ir e it o e u r o p é ia p a r a c ir c u n s tâ n c ia s ' s o c ia is e é tn ic a s
c o m p le t a m e n t e d ife r e n t e s d a s q u e c o r r e s p o n d e m à q u e la id é ia
e m su a g e s ta ç ã o .

N e s te , s e n t id o , o c a s o d a s n a ç õ e s a fr ic a n a s é m a is g r a v e
a in d a q u e o c a s o d a s d a A m é r ic a L a t in a . S ã o n a ç õ e s q u e , se m
te r e m p e r c o r r id o a s e t a p a s q u e o s d a E u r o p a p e r c o r r e r a m
p a r a a rr ib a r á o le g a lis m o , s a lta r a m d e s ú b it o p a r a o p a lc o d a
h is t ó r ia o c i d e n t á liz a d a V e s tin d o à s p r e s s a s o p a le t ó e a g r a v a ta ,
ju n to ç p m á s f ó r m u la s p a r la m e n ta r e s e a s m o d a s; i d e o l ó g i c a s .32

32 Sobre, a influência européia na própria "tom ada de consciência” dos lí­


deres africanos;, ver O L IV E IR O S F E R R E IR A , Ordem Pública e Liberdades Po-
lítica s ha /fr ic a . Negra, éd. R B E P , Belo H orizonte, 1961. Mais m aterial em
The A nnals of the Am erican A cadem y c f P olitical and Social Science, volumes
354 (julho, 1964) e 358 (m arço, 1965). Cf. tam bém o Cap. I de K. M. PA-
N IKKAR; P róblèm es des E ta ts N ouveaux, P aris, 1959. P ara o caso latino-am e­
ricano há uma vasta bibliografia norte-am ericana, geralm ente cheia de clichês
m entais insuficientes. V. por exemplo a coletânea editada, por M A IE R ö

-142
C o m o o te m a d a r e la ç ã o d e s s e s p o v o s c o m o O c id e n t e é
b á s ic o p a r a o d e s e n h o d e se u p e r fil h is t ó r ic o , c o n v é m s u b lin h a r
q u e a c o r r e s p o n d ê n c ia e n tr e o le g a lis m o e o s tr a ç o s c u ltu r a is
o c id e n t a is n ã o r e p r e s e n ta u m a s im e tr ia p e r fe ita , q u e p o s s a se r
a c o m p a n h a d a lin h a p o r lin h a . E n t r e t a n to , p o d e m o s to m a r a
p r e s e n ç a d e p a d r õ e s le g a lis t a s e m d ir e ito s e x tr a -e u r o p e u s e m e s ­
m o e x t r a -a m e r ic a n o s c o m o p e n e t r a ç ã o d a m e n ta lid a d e o c id e n t a l
e in flu ê n c ia d o s s is te m a s j u r íd ic o s e u r o p e u s .

M a s p o r o u tr o la d o to d a t o m a d a d e p o s iç ã o c r itic a , d e n tr o
d e u m p a ís c o m o o B r a s il, p o r e x e m p lo , im p lic a u m a e x ­
p e r iê n c ia ju s tific a d o r a . Q u e r o d iz e r : p a r a q u e a te o r ia ju r íd ic a
n a c io n a l p o s s a su p e r a r o s e s te io s le g a lis t a s a q u e v e m p r e s a ,
d e v e ter tid o u m a c o m p e n e t r a t iv a v iv ê n c ia d e le s . U t iliz a n d o
u m a p a r ó d ia d o c é le b r e a p o te g m a d e E h e r in g d ir -s e -ia : p a ra
a lé m d o le g a lis m o , m a s a tr a v é s d e le . E r e a lm e n te , tiv e m o s e
v i m o s t e n d o a q u e la e x p e r iê n c ia d e s d e o s é c u lo p a s s a d o , e c o m
a s in s t itu iç õ e s r e p u b lic a n a s , c o m n o s s a s v e le id a d e s p a r la m e n ta ­
r is ta s e tc .
E d e p o is , n a te o r ia ju r íd ic a d e u m p a ís c o m o o B r a s il,
é q u e j u s ta m e n te se s e n te a n e c e s s id a d e d e r e v e r a c o n c e p ç ã o
d o ju r ista c o m o e s tr ito d o g m a ta . O a s c e t is m o “p u r o ” q u e p õ e
o ju r ista n u m só la d o d a m e s a e o im p e d e d e r o d e á - la e n tr a em
c r is e c o m o le g a lis m o a o q u a l a c o m p a n h o u . T ir a r a o ju r ista
o u à su a c iê n c ia a le g it im id a d e d e e n te n d e r as tr a n s fo r m a ç õ e s
da. r e a lid a d e c o m q u e tra ta é v e d a r - lh e a c o m p r e e n s ã o e fe tiv a
d a s c o is a s ; e n u m p a ís c o m o o n o s s o , é v e d a r - lh e a c o m ­
p r e e n s ã o d e tu d o q u a n to c a r a c te r iz a ju r id ic a m e n te a v id a n a ­
c io n a l e m t e r m o s d e in te g r a ç ã o c o m o s o u tr o s a s p e c to s d e s ta .
O s p a ís e s c o m o o B r a s il v iv e m u m c e r to o t im is m o q u e o s fa z
s e n t ir - s e d ife r e n te s d o s p o v o s m u lt is s e c u la r e s e m m a té r ia d e
d is p o n ib ilid a d e v ita l. T ê m - s e as e x p e r iê n c ia s d o s e u r o p e u s , e m ­
b o r a s e m ter “ a ” e x p e r iê n c ia e t e m -s e a “ j u v e n tu d e c u ltu r a l”
c o m o m o d o d e v e r p e la fr e n te u m fu tu r o m a is a b e r to . P o r ta l
p r is m a d ir - s e - ia q u e e n q u a n to a id é ia d e c r is e a p lic a d a à s it u a ­
ç ã o ju r íd ic a d o s p o v o s e u r o p e u s d e n o ta a r e s u lta n te d e u m
p r o c e s s o , o u se ja ,, o “ já n ã o b a s t a ” d e in s t itu iç õ e s c r ia d a s lá
m e s m o s o b fa to r e s m u ito a n tig o s , a p lic a d a a o B r a s il a q u e la id é ia

W È Á T H E R H E A D , Politics of Change in Latin America, ed. Prager, Nova


York, 1964. Para um caso representativo, v. H. M O RRIS e J. READ, Uganda
— The Development of its Laws And Constitu*ion (Londres, 1966). Anote-se
que, no. caso africano, os novos Estados são Estados “ fortes” no sentido de
hegemonia do executivo.

143
s u g e r e a lg o d is tin to : s u g e r e q u e é t e m p o d e r e fa z e r , q u e ‘‘a in d a ”
n ã o s e e n c o n tr a r a m a s f ó r m u la s a u tê n tic a s o u q u e o c a s a m e n t o
d o s m o d e lo s g e r a is c o m a s a r g ila s lo c a is n ã o e s tá b e m d o s a d o .
M a s a t e n d ê n c ia se r á a d e p e d ir à a r g ila l o c a l a s o lu ç ã o , sa b e r
o q u e o p a ís p r e c is a , ta n to n a á r e a c o n s t it u c io n a l , c o m o e m d i­
r e ito c iv il o u p e n a l. I s t o , n a p r o p o r ç ã o e m q u e v a le a id é ia d e
c r is e , q u e é a m b íg u a .

L e g is la r h o j e é a lg o d ife r e n t e d o q u e e r a n o s é c u lo X V I I
o u X I X , ta n to p e la in te r fe r ê n c ia d e n o v a s c o n f ig u r a ç õ e s p o lít i­
c a s c o m o p e la a p lic a ç ã o d e t é c n ic a s d if e r e n t e s .33 N o s p a ís e s e m
d e s e n v o lv i m e n t o , a le g is la ç ã o s e a p r e s e n ta c o m o ta r e fa d ifíc il,
e o le g is la d o r s a b e q u e a in s t a b ilid a d e é o d e s t in o d e s u a o b r a
e c o m o e m t o d a p a r te — m e s m o n o s p a ís e s m a is m a d u r o s — >
o e x e c u t iv o s e in c lu i h o j e n o e s q u e m a le g i s l a t i v o .34 E h á a s d is ­
t o r ç õ e s e r e f r a ç õ e s q u e o p r o c e s s o d o d e s e n v o lv i m e n t o f a z in ­
c id ir s o b r e a v ig ê n c ia d e c e r t o s in s t itu t o s ju r íd ic o s , p o r fo r ç a
d e c o n d iç õ e s s o c ia is n o v a s e d e n o v o s t ip o s d e in t e r e s s e .35

6. A MODO DE CONCLUSÃO

A m o d o d e c o n c l u s ã o , p o d e m o s te n ta r u m r e p a s s e . O l e ­
g a lis m o s e c a r a c t e r iz o u c o m o s is te m a ju r íd ic o d o m in a n t e nos.
s é c u lo s e m q u e a c u ltu r a o c id e n t a l s e e s tr u tu r o u p o lit ic a m e n t e
e m E s t a d o s n a c io n a is , e e m q u e o s E s t a d o s a s c e n d e r a m a o
lib e r a lis m o . S e m e lh a n t e p r o c e s s o f o i, c u lt u r a lm e n te , o d o r a c io -
h a lis m ó b u r g p ê s. e , p o lit ic a m e n t e , o d a c e n tr a liz a ç ã o .' A c r is e
d o 'lib e r a lis m o , e m s e u s c o m p o n e n t e s s o c ia is e e m s u a e str u tu r a
p o lít ic a , f o i ta m b é m c r is e d o lib e r a lis m o .

33 .Inclusiv« com ^..uso de recursos eletrônicos. Cf. a respeito W A L T E R


ALVARES, Introdução aós D ireitos. Tecnológicos (Belo H orizonte, 1972), e tam ­
bém JO SÉ P E D R O GALVÄO D E SOUZA, O Estado Tecnocràtico, ed. S arai­
va, São Paulo, 1973. V. ainda A L B E R T O V EN Ã N CIO F IL H O , A In terven -
çâo do. E stado no domínio econômico, FGU, Rio, 1967.
34 Para d caso brasileiro, v er O T T O G IL, "O Poder L egisferante do P re­
sidente da R epública” , em Jurídica, n.° 1201 (janeiro-m arço, • 1973), Rio, ano
X V III. Para o panoram a geral, v. O Papel do E xecutivo rio Estado M oderno;
coletânea editada pela R B E P „ Belo H orizonte, 1959 (passim ).
35 Cf„ por exemplo, os casos da prom issória e' .do^ "contrato prelim inar”,
estudados por O RLANDO GOM ES em D ireito e- D esenvolvim ento (U niv. da.
Bahia, 1961), Capítulo 3. No Capítulo 4, ,-trata da inadequação do arcabouço’
legal tradicional às realidades sociais do país:

144
A e x p e r iê n c ia ju r íd ic a n e s t e s s é c u l o s in c lu iu u m a d e t e r ­
m in a d a c o n c e p ç ã o d o d ir e it o n a tu r a l, e m c e r ta f a s e s o b r e t u d o .
M u it o s p r o b le m a s d e q u e h o j e n in g u é m m a is c u id a e s tiv e r a m
p o r v e z e s n a o r d e m d o d ia : e s t a d o d e n a tu r e z a , c o n t r a t o s o c ia l
e tc . O j u s n a tu r a lis m o d o t e m p o d a s r e v o lu ç õ e s lib e r a is , q u e e n ­
te n d ia o d ir e it o n a tu r a l c o m o b a s e d o d ir e it o p o s i t i v o , f o i p o s t o
d e la d o a o t e m p o d o s p o s it iv is m o s ( d o s ó c i o - f i l o s ó f i c o e d o
j u r í d i c o ) ; m a s e m n o s s o s é c u lo , s o b r e t u d o d e p o is d a s e g u n d a
g u e r r a e a p r o p ó s it o d o n a z is m o , n o v a m e n t e s e e n t e n d e u q u e
a n o r m a p o s it iv a n ã o é t u d o e q u e h á u m d ir e it o s u p r a le g a l.
D e s t e m o d o , á in d ig n a ç ã o é t ic a c o n t r a o s c r im e s c o m e t id o s e m
n o m e d o o r d e n a m e n to s e r v iu d e f u n d a m e n t o a o r e e x a m e d o
d ir e ito . D e s t e m o d o , p o r ir o n ia o u t a lv e z p o r s u tile z a d o s d e u ­
s e s , as e x c la m a ç õ e s d e A n t íg o n a e c o a r a m n a a x i o l o g i a d e R a d -
b ru ch .

A e v o l u ç ã o p o lít ic a n o s ú ltim o s s é c u lo s , a tr a v é s d e c o m b i­
n a ç õ e s d iv e r s a s , v e i o r e f o r m a n d o o e s q u e m a d o s p o d e r e s e à s
v e z e s s e f a lo u e m g o v e r n o d e le is , o u tr a s d e g o v e r n o d e ju iz e s :
M a s o r e f o r ç a m e n t o d o e x e c u t iv o n o s g o v e r n o s , n o s E s t a d o s d e
h o j e , t o r n o u in o p e r a n te a c r e n ç a o it o c e n t is t a n a s u p r e m a c ia d o s
p a r la m e n to s ( c o m a lg u m a s e x c e ç õ e s t a l v e z ) , e , a o m e s m o te m -
p o , a le g is la ç ã o e m s o c ie d a d e s d e m a s s a s p a s s o u a s e r r e a l ­
m e n te a lg o d iv e r s o d o q u e e r a n a s o c ie d a d e lib e r a l, a o t e m p o
d o c a p it a lis m o a s c e n d e n t e .

Q u ã n t o à C iê n c ia d o D ir e it o , q u e h a v ia iiò s s é c u lo s m o ­
d e r n o s o b t id o s u a u n if ic a ç ã o d e p o is d a lo n g a e d is p e r s a f a s e
m e d ie v a l, a p r o v e ito u a c e n t r a liz a ç ã o p o lít ic a p a r a f a z e r - s e t ã o
u n if o r m e q u a n to ó s o r d e n a m e n to s . N o s t e m p p s lib e r a is , f é z - s e
r a c io n a l, a c o m p a n h o u o s c ó d ig o s e , a o d is c u t ir lo s , d e s e m b o c o u
n a e s c o la h is tó r ic a . E s c o l a d e q u e su r g ir ia m s e u s c a r a c te r e s
e s tr u tu r a is m a is r e p r e s e n ta t iv o s . F e z - s e e v o l u c io n i s t a , f e z - s e s o ­
c i o ló g ic a , f e z - s e n o r m a tiv is ta , r a m if ic o u - s e e m d e s s id ê n c ia s d o u - .
tr in á r ia s . A o m e s m o t e m p o c o n s o l i d o u n o p la n o d id á t ic o a s
e s p e c ia l iz a ç õ e s f u n d a m e n ta is q u e v in h a m d o s a n tig o s e e s t a b e ­
le c e u o u tr a s n o v a s . M a s a c h o u - s e e m c r is e è e m c r is e c o n t ín u a :
h á in c lu s iv e u m a c e r ta r e v is ã o d o s ta tu s d o s a b e r ju r íd ic o ,
a t u a lm e n t e , e m f a c e d e o u tr o s s a b e r e s s o c ia is , c o m p r e t e n s õ e s
a d o n t ín io s o c ia l e a “ s u c e d e r ” a o s a b e r d o ju r is ta n ò p la n ò
h is t ó r ic o .

O s is m o s j u r íd ic o s ( c u j a t ip o l o g ia p o d e r á s e r t è n ta d a c o m ;
a lg u n s r e s u lt a d o s ) c o n v iv e m h o j e , p o is , c o m is m o s d e v á r ia s

145
á r e a s e , c o m o e s t e s ( m a s p o r v e z e s r e c .u s a n d o -s e a r e c o n h e ­
c ê - l o s ) , s o f r e m a p e n e t r a ç ã o d a s a f liç õ e s d o h o m e m d e n o s s o
t e m p o e d e s e u s p r o b le m a s c o n c r e t ís s im o s . S o fr e m e tê m d e
so fr ê -la .
E s t e liv r o n ã o p r e t e n d e u “ d ia g n o s t ic a r ” n a d a , n e m p r e v e r
n a d a , n e m s e q u e r p r e c o n iz a r c o i s a a lg u m a e m te r m o s d e s a lv a r
o p r e s t íg io d a le i o u d e s u p e r a r o d ir e it o -le i. S e a lg o , p o r é m ,
h à d e s e r p r e c o n i z a d o , d e v e s e r o a p e g o d o ju r is ta ( a o m e n o s
d e l e ) a o s v a lo r e s j u r íd ic o s , m e s m o d is c u t in d o - s e s e u c o n c e it o
e s u a s e s p é c ie s , p o is d e v a lo r e s te m d e s e a lim e n ta r o h o m e m .
E a s f o r m a s , q u e s ã o ig u a lm e n te n e c e s s á r ia s , o s ã o p o r c a u s a
d o s v a lo r e s . S e a lg o te m d e se r s a lv o é a im a g e m h u m a n ís tic a
d a s c o i s a s — e p o r t a n t o a d o d ir e ito — , c o n t r a a c e g u e ir a d a s
a u t o m a ç õ e s e d a s q u a n t if ic a ç õ e s . S e a lg o e s te liv r o p r e t e n d e u
d e m o n s t r a r f o i a n e c e s s id a d e d e r e v e r e s s a s c o is a s ; c o m e s te
t ip o d e p r o b le m a s o h o m e m s e r e e n c o n t r a a s i m e s m o , p a r a r e ­
c o n h e c e r - s e , r e fig u r a r -s e e r e tr a ta r -s e .
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ri p ra tic i d e lla le g a lità , P à d u a , 1 9 4 6 .

21. H A U R I O U , M A U R I C E — P r in c íp io s d e D e r e c h o P ú b lic o y
C o n stitu c io n a l, trad. C a rlo s R u iz d el C a stillo , 2 . e d . , M ad rid ,
R eu s, 1 9 2 7 .
22. H U S S O N , L É O N — L e s tr a n s fo r m a tio n s d e la re s p o n s a b ili­
tà . E tu d e s u r la p e n s é e ju r id iq u e , P aris, P U F , 194 7 .

23. JO L O W IC Z , H. F . -— R o m a n F o u d a tio n s o f M o d e r n L a w ,
O x fo rd , 1 9 5 7 .

24. K O S C H A K E R , P A U L — E u r o p a y el D e r e c h o R o m a n o ,
trad. J. S. C. T e ije ir o , M a d rid , R ev . D e r e c h o P riv a d o , 1 9 5 5 .
25. L A R E N Z , K A R L — M e to d o lo g ia d e la C ie n c ia d e l D e r e c h o ,
trad u ção E . O rd eig, B a r ce lo n a , A r ie l, 1 9 6 6 .

26. L A Z Z A R O , G IO R G IO — S to r ia e te o r ia d e lla C o s tr u z io n e
g iu r id ic a , T u r im ,* G ia p p ic c h e li, 1 9 6 5 .

27. L E B R U N , A U G U S T E — L a C o u tu m e . S e s so u r c e s, so n au-
to r ité en d r o it p r iv é , P aris, L G D J , 1 9 3 2 .

28. L E R O Y , M A X I M E — L a loi. E ssa i su r la th é o r ie d e F a u ­


to r ité d a n s la d é m o c r a c ie , P aris, G iard & B rière, 1 9 0 8 .
29. L E R O Y , M A X I M E :— E l d e r e c h o c o n su e tu d in à rio obrero .
D o c tr in a s e in s titu c io n e s, trad u ção, M é x ic o , 1 9 2 2 .

30. MAC IL W À I N , C H A R L E S H. — C o n stitu cio n a lism o an ti­


guo y m o d ern o , B. A ir e s, N o v a , 195 8 .

148
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co, M ilã o , ' G iu frè , 195 6 .
32. O R T E G A Y G A S S E T , JO S É — L a id e a d e p r in c ip io èn
L e ib n iz y la e v o lu c c ió n d e la te o r ia d e d u c tiv a , O b ras In éd ita s,
B . A ir e s, E m e c ê , 1 9 5 8 .
33. P E L A Y O , M A N U E L G A R C I A — E l R e y n o d e D io s , a rq u é -
tip o p o lític o . M a d rid , R ev . d e O c c id e n te , 1 9 5 9 .
34. P O R T IL L O , JO S É L O P E Z — '‘E l d e r e c h o c o m o p r o d u c to
e s p e c ífic o d e la cu ltu r a o c c id e n ta l y c o m o c o n fig u r a n te d e
la v id a so c ia l d el m u n d o m o d e r n o ” em E s tu d io s S o c io ló g ic o s
— S o c io lo g ía d e l D e r e c h o (A n a is d o V i l i C o n g r e ss o M e x i­
c a n o d e S o c io lo g ia ), M é x ic o , 1 9 5 7 .
35. R E A L E , M I G U E L — F ilo s o fia d o D ir e ito , 2 V olu m es, 3 .e d .,
S ã o P a u lo , 1 9 6 2 .
36. R E A L E , M I G U E L — “A cr ise d o n o r m a tiv ism o ju r íd ic o e
a e x ig ê n c ia d e u m a n o r m a tiv id a d e c o n c r e ta ” em R e v is ta B r a ­
sile ira d e F ilo so fia , n .° 2 8 , 1 9 5 7 .
37. R EN A R D , GEORGES — L a v a le u r d e l a ' l o i , P a ris, S irey ,
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38. S A L D A N H A , N E L S O N — - A s fo r m a s d e G o v è r n o e o p o n to
d e v is ta h is tó ric o , R e c ife , 1 9 5 8 .
39. S A M P A Y , A R T U R O E N R I Q U E — L a s c risis d e l E s ta d o d e
D e r e c h o lib e ra l b u rg u é s, B. A ir e s, L o sa d a , 1 9 4 2 .
40. S C H M IT T , C A R L — T e o ria d e la C o n s titu c ió n , trad. F.
A y a la , M ad rid , R e v ista d e D e r e c h o P riv a d o , s.d.
41. S E N T IS M E L E N D O , S A N T I A G O — E l J u e z y el D e r e c h o ,
B. A ir e s, E J E A , 195 7 .
42. V IL A Ñ O V A , L O U R IV A L — S o b re o c o n c e ito do D ir e ito ,
R e c ife , 1 9 4 7 .
43. V I L A N O V A , L O U R I V A L — O p r o b le m a d o o b je to d a T e o ­
ria G e r a l d o E s ta d o , R e c ife , 1 9 5 3 .
44. V I L L E Y , M I C H E L — L e ç o n s d !H isto ir e d e la P h ilo s o p h ie d u
d r o it, P aris, D a llo z , 1 9 5 7 .
45. W E L Z E L , H A N S — D e r e c h o N a tu r a l y ju s tic ia m a te ria l,
trad. F . G o n z a le z V ic é n , M ad rid , A g u illa r, 1 9 5 7 .
46. W IE A C K E R , F R A N Z — H is to r ia d e l D e r e c h o P r iv a d o d e la
e d a d m o d e r n a , trad. F . Jard ón , M ad rid , A g u illa r, 1 9 5 7 .

149
COLEÇÃO UNIVERSITARIA DE CIÊNCIAS HUMANAS

1. FILO SO FIAM O DIREITO


Michel Villey
2. A SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO
D. F. Swift
3. DO CONGRESSO DE VIENA AO TRATADO DE VERSALHES
(1815-1920)
L. C. Seam an
4. A CIÊNCIA DO DIREITO
Tércio Sampaio Ferraz Júnior
5. INTRODUÇÃO À PEDAGOGIA
G aston Mialaret
6. OS DIREITOS INDIVIDUAIS E O PROCESSO JUDICIAL
Vicente Greco Filho
7. A ECONOMIA MEDIEVAL
Guy Antonetti
8. O IMPÉRIO «ROMANO
Jean-Marie Engel e Jean-Rémy Palanque
9. LEGALISMO E CIÊNCIA DO DIREITO
Nelson Saldanha
10. INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO
D. J. O ’Connor

Próximos lançamentos

ELEMENTOS DE .SOCIOLOGIA
Elizabeth Wilkins (do Hitchin College)
O ANTIGO REGIME
Hubert Méthivier (da Universidade d e P a r i s )
O RENASCI MENTÓ
Paul Faure. (da Universidade de. Clermont-Ferrand)
DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO: UMA INTRODUÇÃO
J o s é Paschoal R ossetti (da Universidade Mackenzie)
ANÁLISE DE SISTEMAS POLÍTICOS
Jean-William Lapierre (da Universidade de Nice)
O DIREITO NATURAL
Francisco Bueno Torres (da Universidade Mackenzie)
O ESTADO E SUA ORGANIZAÇÃO
Pedro Vidal Neto (da Universidade Mackenzie)
O FEUDALISMO MEDIEVAL
Carl S teph en son (da Universidade de Cornell)
SMITH, MARX, KEYNES. ÉPOCAS, OBRAS, INFLUÊNCIAS
Hilário Franco Jr. (da Historical Association) e
Jo s é Paschoal Rossetti (da Universidade Mackenzie)
Este livro foi impresso pela
SÍMBOLO S.A. INDÚSTRIAS GRÁFICAS
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