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P r is ã o C au tela r:
D ra m as, P r in c íp io s
e A l t e r n a t iv a s
edição
2-
revista, ampliada e atualizada
de acordo com a Lei nQ12.403/11
(Lei das medidas cautelares pessoais)
Prefácio de
J.E Sepúlveda Pertence
E d i t o r a Lum en J u r is
Rio de Janeiro
2011
L u m e n h J u r is \Q d ito r a
www.lumenjuri5.cum.br
Edito»*
JoSo de Almeida
Jo io Luix da Silva Almeida
Consdho Editorial
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Categoria: Processo Penal
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2.ed.
Apresentação..................................................................................... . xi
Prefácio..................................... .............. ........................................ xiii
Introdução......................................... .............. .................................... 1
Capítulo I
1 .0 Drama da Prisão Cautelar..................... ..................................... . 5
2. Finalidades e Legitimação da Prisão Cautelar no Ciuso da História.. 8
3. A Lógica do Sofrimento.......................... ......................................... 11
4. A Necessária Ponderação sobre os Malefícios da Prisão................ 16
Capítulo II
1. A Seletividade do Sistema Punitivo e, em Especial, da Prisão
Cautelar........................................ .................................................... 21
Capítulo III
1. Breve Escorço Histórico da Prisão Cautelar no Brasil................... 31
2. O Sistema Cautelar Anterior ao Código de 1941.......................... 33
3. O Processo Penal da Era Vargas....................................................... 36
4. A Progressiva Flexibilização do Código de 1941............................ 36
5 .0 Tratamento Jurídico Atual........................................................... 39
6. As Revogadas Prisões Decorrentes da Decisão de Pronúncia e da
Sentença Condenatória Recorrivel................................................. 45
Capítulo IV
1. Dos Princípios que Interferem no Tema......................................... 57
1.1. Favor fiei.................................................................. ................... 57
1.2. Dignidade da Pessoa Humana................................................... 59.
1.3. Proteção Penal Eficiente............................................................ 64
1.4. Presunção de Não-Culpabilidade............................................. 68
1.5. Excepcionalidade................ ....................................................... 74
1.6. Legalidade e Jurisdicionalidade................................................. 79
1.7- Provisoriedade......... ,........................... ..................................... 83
1.8. Motivação.................................................................................. 86
1.9. Proporcionalidade..................... ................................................ 91
1.9.1. Adequação ou Idoneidade................ ........... ..................... 93
1.9.2. Necessidade ou Subsidiariedade........................................ 94
1.9.3. Proporcionalidade em Sentido Estrito............................... 96
1.10. Duração Razoável da Prisão........................ .......................... 103
1.11. Iniciativa de Parte..................................................................... 111
1.12. Bilateralidade de Audiência (Contraditório)........................ 120
Capítulo V
1. As Medidas Alternativas como Aplicação da Subsidiariedade
Processual Penal.... ................................... ............................................ 127
2. A Abandonada Bipolaridade Cautelar do Sistema Brasileiro...... .... 130
3 .0 Novo Sistema Cautelar....................... ........................................ .... 132
4. A Mudança de Paradigma do Novo Sistema.......................................135
Capítulo VI
1. Das Novas Medidas Cautelares....................................................... 143
1.1. Comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condi
ções fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades..... 144
1.2. Proibição de acesso ou frequência a determinados lugares
quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indi
ciado ou acusado permanecer distante desses locais para evi
tar o risco de novas infrações.................... ........... .................... 145
1.3. Proibição de manter contato com pessoa determinada quan
do, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva 0 indiciado
ou acusado dela permanecer distante....................................... 146
1.4- Proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência
s eja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução . 149
1.5. Recolhimento domiciliar no período notumo e nos dias de fol
ga quando 0 investigado ou acusado tenha residência e traba
lho fixos..... .......................................... ................................... 152
1.6. Suspensão do exercício de função pública ou de atividade de
natureza econômica ou financeira quando houver justo receio
de sua utilização para a prática de infrações penais............... . 155
vül
1.7. Internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes
praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos
concluírem ser inimputável ou semi-imputável (artigo 26 do
Código Penal) e houver risco de reiteração.................................156
1.8. Fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o compa
recimento aos atos do processo, evitar a obstrução do seu an
damento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial.. 158
1.8.1. Críticas à Nova Configuração da Fiança.......................... ...160
1.9. Monitoração ele trônica................... .............................................164
2. Finalidades das Cautelares Alternativas........................................ ...166
3. Prazo de Duração das Cautelares........................................................ 170
Capítulo VH
1. Outras Medidas Cautelares Alternativas à Prisão......................... ... 175
2. Uso de Medidas Alternativas não Previstas na Legislação (Poder
Geral de Cautela).............................................................................. ... 177
Capítulo VIII
1. Da Prisão Preventiva e da Prisão Temporária.....................................185
2. Requisitos comuns às prisões cautelares......................................... ... 185
3. Da Prisão Temporária................................................................ ...........188
3.1. Cabimento........... ....................................................................... ... 189
3.2. Prazo................................................................................................192
3.3. Outros Indicativos da Lei da Prisão Temporária..................... ....194
4. Da Prisão Preventiva............................................... .............................197
4.1. Cabimento............................................. .................................... ....198
4.1. Circunstâncias Autorizadoras....... ................................................202
4*1-1. A validade da Prisão Preventiva para Garantia da Ordem
Pública......................................................... .............................212
Referências Bibliográficas......................... ................................ ............217
Apresentação
3 Cf., a partir do clássico Processo Penal Cautelar, de Romeu Píns de Campos Barcos,
Forense, 1982, v.g., Antonio Magalhães Gomes Filho: Presunção de Inocência e Pri
são Cautelar, Saraiva 1991; Macia Lucia Karon: Prisão e Liberdade Processuais, RBC
Crime 2/83; João Gualberto Garcez Ramos: a Tutela de Urgência no Processo Penal
Brasileiro, Del Rey, 1998; Roberto Delmanto Jr.: As modalidades de prisão provisória
e seu prazo de duração, 2a ed-, Renovar, 2001.
juiz penal de medidas cautelares atípicas, não previstas em lei, desde
que, menos gravosos que a prisão, sejam idôneas e eficazes.
O tema —do qual, curiosamente, não se tem ocupado no Brasil a
doutrina processual penal foi objeto de rica discussão, no campo do
processo civil, quando, na década final da vigência do Código de 1939,
silente a respeito, se construiu a doutrina do poder cautelar geral, ine
rente à efetividade da função jurisdicional, que veio, então, a afirmar-se
na jurisprudência.
Expressamente acolhidas nos arts. 798 e 799 do C.Pr.Civil em vigor, a
admissibilidade das cautelares atípicas pode ser transplantada por analogia
pata o processo penal, onde teria, como demonstra o Autor, papel relevan
te a desempenhar na tarefa imperativa de reduzir a prisão processual e suas
inevitáveis mazelas à dimensão de sua estrita necessidade.
Ter agitado o problema é um mérito a mais do trabalho.
Por tudo quanto apressadamente ficou dito —e muito mais a que
o tempo não me permitiu dar o relevo devido honra-me verdadei
ramente prefaciar a nova obra de Rogério Schietti Machado Cruz
- estudo sério, meditado, profícuo e, ademais, bem escrito.
J. P Sepúlveda Pertence
Introdução
1 O Código de Processo Penal de 194L, por sua deficiência técnica e ausência de siste-
matização científica, não possui divisão dos processos de conhecimento, de execução e
cautelar, cingindo-se a dispor, de maneira dispersa, sobre medidas coercitivas ou cau
telares, pessoais ou reais, todas, porém, voltadas a salvaguardar a instrução criminal, a
efetividade da sentença ou mesmo a sociedade.
criminalidade urbana a reagirem mais pronta e eficazmente às violações
à lei penal. Não há como, em verdade, desvencilhar-se o operador jurí
dico de uma certa “carga emotiva do momento político, social e econô
mico do país" (GRECO FILHO, 1999, p. 261).
O fato é que têm sido rotineiramente noticiadas as operações
da Polícia Federal, de que resultam dezenas de prisões de suspeitos,
a maior parte das quais, saliente-se, apenas executada pela Polícia, já
que dependeram de prévia autorização judicial, em boa parte dos casos
mediante requerimento do Ministério Público.
Em uma palavra, não só os bônus, mas também os ônus dessas
prisões, marcadas pelo aparato espetacular das operações policiais, em
regra acompanhadas de câmaras de redes de televisão, que prolongam
o espetáculo até quando renda bons índices no IBOPE, devem ser atri
buídos a todos os personagens envolvidos (não somente às polícias,
mas, também, ao Judiciário e ao Ministério Público).
Mas a pergunta a ser feita é: por qual razão se realizam tantas pri
sões cautelares, principalmente sob a forma de prisão temporária?
Alguma tentativa de explicar o fenômeno poderia incluir o aumento
da criminalidade, a maior capacitação das forças de segurança, o desloca
mento do foco das investigações das polícias e do Ministério Público, que
passam a incluir, também, os criminosos de colarinho branco etc.
O certo é que está havendo um cada vez mais freqüente deslo
camento da resposta penal para as prisões cautelares, ao invés do que
seria mais natural, para a sentença condenatória. Na percepção de
ILLUMINATI (1999, p. 92), “garantir o procedimento cautelar como
se fosse o juízo de mérito significa que o processo não alcança o seu
objetivo senão através das medidas provisórias”. E a explicação dada
pelo mestre italiano é muito precisa: “todo o drama da custódia cau
telar reside ainda na excessiva duração dos processos, que não conse
guem chegar a uma sentença em tempo razoável. Por este motivo toda
a tensão se transfere sobre o sistema das cautelares, transformado no
ponto de maior relevância prática" (p. 105).
Precisamente, se é difícil oferecer à população uma resposta rápi-
da para os desvios criminais, de modo a que se tenha uma mínima sen
sação de segurança e de credibilidade nas instituições, a mensagem que
grassa é*. “prendam-se cautelarmente os suspeitos, ainda que por alguns
dias." Desse modo, o recolhimento cautelar do suspeito a uma cela de
delegacia ou de um presídio significa, para a grande massa da popula-
ção, que: I a) o suspeito é o responsável pelo crime; 29) ele está sendo
punido; 3 D) a comunidade está mais segura.
Essa “penalização” de um instituto eminentemente processual,
que desborda funcionalmente de seus fins e limites, nada mais é do
que um dos reflexos do que CARRARA denominava "nomorréia
penal” e que encontra similar significado na moderna metáfora de
FERRAJOLI (“metástase legislativa"), em decorrência da qual se
corre o risco de que, com mais tipos e punições mais graves (more
o f the same), se produza, ao invés de redução dos crimes, maior vio-
lência social.
Essa é a compreensão de muitos criminólogos, entre os quais
podemos destacar BINDER (2000, p. 115) que, em conferência pro
nunciada em 1997, assinalou: “O poder penal é um poder violento,
e como conseqüência disto existe o princípio de ultima ratio, que é
próprio de um Estado de Direito em uma sociedade democrática,
que indica o dever do Estado de utilizar o poder penal o menos pos
sível. (...) Devem-se definir os fins do processo, não só como gera
dor das condições para um castigo justo ou não-arbitrário, senão,
e isto parece paradoxal, que devemos sustentar que sua finalidade
é evitar o castigo, enquanto seja evitável, e minimizá-lo, enquanto
seja minimizável. E isso não é mais do que uma manifestação desse
princípio de ultima ratio, ”
Para BINDER (2000, p. 118), o poder penal do Estado deve ser
usado com maior cuidado, exatamente quando uma sociedade está pas
sando por momentos de alta conturbação, pois, “se o que se pretende
é injetar violência por parte do Estado, o que se consegue é aumentar
essa conflituosidade e seus períodos de duração”.
2. Finalidades e Legitimação da Prisão Cautelar no Curso
da História
3. A Lógica do Sofrimento
3 Essa forma de ver o processo penal nos faz lembrar do pensamento de AN ATOLE
FRANCE, referido por TOSTES MALTA (1935): “Os interesses da justiça são sagra
dos; os interesses do delinqüente, duas vezes sagrados; os interesses da sociedade, três
ve2« sagrados."
Semelhante sentimento, saliente-se, é fortemente influenciado
por setores da mídia e da política, que deliberadamente infundem na
população uma contínua sensação de terror e de insegurança, cam-
po fértil para afirmar a ideia do encarceramento como panacéia para
os problemas da criminalidade urbana. O leitmotiv dos políticos de
plantão, dos criminólogos da corte e das mídias prontas a explorar o
medo do crime violento passa, como refere WACQUANT (2001, p.
75), a ser “íockem up and throw auiay the key" (“tranque-os e jogue
fora a chave”).
O que tem isso a ver com o tema da prisão cautelar? Tem tudo a
ver, porque quando se recolhe alguém preso a uma delegacia ou a um
estabelecimento prisional, não está a comunidade a indagar se a prisão
é cautelar ou se decorre de uma sentença condenatória; se o preso está
cumprindo pena ou se tão-somente está sendo preso de modo ainda
provisório. Esses detalhes técnico-jurídicos não apenas são incom
preensíveis à população, como também lhe são irrelevantes. O que vale
para o homem do povo é a visão do autor de um crime sendo privado
de sua liberdade logo em seguida ao fato, o que, de algum modo, já lhe
soa como uma punição.
Mantê-lo solto implica não apenas a ideia da impunidade, mas,
além disso, a conclusão de que o crime não encontrou qualquer respos
ta efetiva por parte do Estado. A sensação de insegurança, de medo, de
incredulidade, de ódio, aumenta, porque não se vê uma reação imedia
ta e eficiente do Estado a um comportamento que incomodou ou indig
nou certa comunidade. Efetuada a prisão, acalmam-se ou aliviam-se
tais sentimentos, diminuindo a pressão e a angústia do povo. Essa, sem
dúvida alguma, é a lógica que prevalece no tema das prisões, e que per
passa nas mentes das pessoas de uma maneira geral.
Registre-se, então, que essa lógica do sofrimento é plenamente
compatível com nossa cultura, porque herdamos, ao longo da trajetó
ria humana no planeta, esse modo de pensar, que provavelmente ain
da perdurará por muito tempo, antes que se cumpra o prognóstico de
CARRARA.
4. A Necessária Ponderação sobre os Malefícios da
Prisão
1 Essa indignação popular foi muito bem traduzida no texto de André Petry (“E a cara
do Brasil”), publicado na Revista Veja, edição de 29 de maio de 2005, onde contrapõe
a estória da empregada doméstica Maria Aparecida de Matos, que permaneceu presa
durante um ano e sete dias por haver tentado furtar um xampu e um condicionador
em uma farmácia de São Pauli>, às inúmeras situações que integram as crônicas do q u o
tidiano político brasileiro, envolvendo atos de expressiva corrupção e malversação de
dinheiro público, quase nunca punidas com similar rigor.
2 Indicativo dessa seletividade do sistema punitivo brasileiro se evidencia pelo faro de
que a primeira condenação de um parlamentar à prisão, pelo Supremo Tribunal Fede
ral, ocorreu somente no ano de 2010, em caso relativo a deputado federal sentenciado
a cumprir sete anos de reclusão em regime inicial semiaberto.
de pessoas política ou economicamente melhor situadas para servirem
de instrumento de posturas estatais supostamente moralizadoras do
aparato judicial, sendo irracional sairmos da generalizada impunidade em
relação a uma camada da população para institucionalizar-se uma repres
são abusiva contra todos, jogando no ralo a custosa construção dos valores
e princípios do direito penal moderno (GOMES, 1995, p. 166).
De outra angulação, forçoso é considerar que a magistratura e
o Ministério Público, embora não se legitimem pelo pensamento da
maioria e muito menos devam render-se a apelos punitivos, amiúde
otimizados por uma mídia descompromissada com a informação fide
digna,3 não podem ignorar o malefício causado às instituições do país
quando restituem, por argumentação nem sempre reproduzida em ca
sos de criminalidade comum, a liberdade de quem teve a prisão cautelar
decretada de maneira suficientemente fundamentada em razões sólidas
justificadoras da cautela, em casos de macrocriminalidade política ou
econômica.
Vale recordar que o Código de Processo Penal passou a prever,
como motivo da prisão preventiva, a necessidade de garantia da ordem
econômica - prisão referida por RAMOS (1998, p. 145) não como cau
telar, mas como medida judiciária de polícia - o que, em princípio, entrea-
briu as portas que permitem a segregação cautelar dos autores de ilíci
tos penais definidos como macrocriminalidade econômica.
A igual resultado parece conduzir a Lei n2 7-492/86, por seu artigo
30, ao dispor que, sem prejuízo da prisão preventiva regulada pelo ar
tigo 312 do Código de Processo Penal, “a prisão preventiva do acusado
da prática de crime previsto nesta Lei poderá ser decretada em razão da
magnitude da lesão causada”.4
3 Consulte-se, a esse respeito, o libelo S imprensa brasileira feito por TORON (outubro-
dezembro/2001, p. 257).
4 No julgamento do HC n° 60.717/SP (DJ 05-03-2004, p. 15), em que se pretendia ver
reconhecida a ilegalidade da prisão preventiva do paciente açusado da prática de crime
contra o sistema financeiro nacional, fundada na magnitude da lesão causada, nos ter
mos do art. 30 da Lei n° 7.492/86 (“Sem prejutzo do disposto no art. 312 do Código de
Processo Penal, aprovado pelo Decreto-lei nfi 3.689, de 3 de outubro de 1941, a prisão
preventiva do acusado da prática de crime previsto nesta Lei poderá ser decretada
Releva acentuar, no entanto, que a redação original desse dispo
sitivo era mais esclarecedora e precisa, porquanto dizia que a prisão
do acusado de crime contra o sistema financeiro nacional poderia ser
decretada "quando, cm razão da magnitude da lesão causada pelo fato
ou do clamor público por ele provocado, esteja configurada situação
em que a liberdade do mesmo comprometa a segurança ou a credibi
lidade do sistema financeiro nacional”. Assim redigido, o permissivo
para a prisão cautelar nesse tipo de delinqüência, se nivelaria ao que,
na prática, já se verifica em relação à criminalidade comum, quando os
tribunais legitimam a prisão preventiva para garantia da ordem pública,
em face daqueles que são acusados de cometerem crimes que repugnam
a consciência da comunidade de tal modo a comprometer a própria cre
dibilidade da Justiça Criminal se mantidos em liberdade.
1 Para uma abrangente análise dos modelos de juizado de instrução nos ordenamentos
que ainda o adotam, consultar AURY LOPES JÚNIOR, Súienuu de investigação prelimi
nar no processo penal. 2a ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
segunda proposta, que se cuida de instituto absolutamente anacrônico,
que contribuiu para manchar nosso Código de Processo Penal de 1941
até que, em pleno auge do regime militar - vejam o paradoxo - viesse a
ser extirpado de nosso direito.
5 Infere-se de tal terminologia a origem da ainda hoje expressão "sumário de culpa”, con
sistente cm colher a prova necessária para levar o acusado a julgamento pela autoridade
competente (principalmente pelo Tribunal do Júri, onde é mais corrente O uso daquela
expressão). MENDES DE ALMEIDA, 1973, p. 56) indica, como origem do sumário de
culpa, as Ordenações Manuelinas, onde se previa que, quando alguém “dava querela”,
o juiz prendia o querelado, exceto nos casos de crimes e infrações de menor gravidade,
que exigiam também uma prova sumária do que era alegado pelo acusador. A exceção
se tomou regra com as Ordenações Filipinas, de 1503, que passaram a dispor que as
querelas, para obrigarem a prisão, dependiam do sumário conhecimento de trfa ou qua
tro testemunhas.
sobretudo, a implantação daquilo que veio a ser conhecido como poli-
cialismo judiciário. Essa expressão traduziu uma estrutura e funciona
mento da justiça criminal, durante 30 anos, em que a Polícia prendia,
investigava, acusava e pronunciava os acusados de certos crimes de
menor importância.6 Outrossim, a confusão entre as funções policiais
e judiciais era tamanha que a própria nomeação dos Chefes de Polícia
e dos Delegados se fazia por ato de nomeação do Imperador ou dos
Presidentes das Províncias (corresponderiam aos atuais Governadores
de Estado), escolhidos dentre os Desembargadores e Juizes de Direito,
respectivamente (artigos 1B e 2- da Lei n- 261/1841).
Os Chefes de Polícia, aliás, passaram a exercer as atribuições ante-
riormente acometidas aos Juizes de Paz, de modo que assumiram a com
petência para processar e julgar contravenções às posturas municipais,
bem assim os crimes punidos com prisão, degredo ou desterro até seis
meses (artigo 58, 6e do Regulamento n- 120, de 31/01/1842).
Essa situação foi mitigada pela Lei n2 2.033, de 20 de setembro de
1871, que, embora mantendo a possibilidade de nomeação de Chefes
de Polícia dentre magistrados (artigo Ia, § 5Q), deles retirou a compe
tência para julgar certas infrações penais, ainda que lhes mantendo o
poder de arbitrar fiança (que passou, nesse caso, a ser provisória, na for
ma do artigo 10, § 2S c/c artigo 14). A maior novidade, todavia, dessa
reforma legislativa de 1871 foi a criação do Inquérito Policial, por meio
do Decreto ne 4.824/1871 (que regulamentou a Lei ns 2.033/1871),
instituindo-se uma rotina policial que, consolidada no tempo, é quase
idêntica à que ainda hoje, passados mais de 140 anos, se utiliza nas
delegacias de polícia.
É importante sublinhar que, com a proclamação da República,
criamos um modelo federativo parecido com o que é adotado pelos
Estados Unidos da América, outorgando-se a cada Estado-Membro a
7 Não procede, assim, a opinião externada por PACELLI DE OLIVEIRA (2004, p. 564),
de que “a Lei n° 8.072/90, quase cinqüenta anos depois da vigência do nosso Código de
Processo Penal, restaurou o regime de prisão preventiva obrigatória, ao dispor que os
crimes hediondos, a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e
o terrorismo são insuscetíveis de fiança e dc liberdade provisória". De fato, não cabe, ex
vi lege, liberdade provisória para tais modalidades de crimes, mas isso não significa que
o juiz é obrigado a decretar a prisão dos seus supostos autores. Poderá fazê-lo, se presen
tes os pressupostos e requisitos elencados no art. 312 do CPR em decisão devidamente
fundamentada na necessidade da cautela, bem diferente, portanto, do automatismo e
inexorabilidadc da prisão compulsória do regime prí-1967.
8 Sérgio Paranhos Fleury era Delegado do DOPS - Departamento da Ordem Pública
e Social - e um dos principais agentes de que se valeu o regime militar na repressão
à criminalidade política e comum. Foi acusado de torturar e matar inúmeras pessoas,
à frente do que veio a ser conhecido como o “Esquadrão da Morte". Após a corajosa
atuação do então Promotor de Justiça Hélio Bicudo, Fleury chegou a ser preso, mas,
contando com o apoio oficial, o Congresso aprovou, no prazo recorde de trinta dias, a
Lei n8 5.941, de 22 de setembro de 1973 (proposta pelo deputado Cantídio Sampaio,
líder do governo na Câmara Federal), que proibiu a prisão automática, por ocasião da
pronúncia, de “réus primários e de bons antecedentes", o que, tecnicamente, era o caso
daquele delegado.
ao alcance da vedação para os crimes hediondos e assemelhados (artigo
5e, incisos XLII, XLIII e XLIV). É dizer, não fora a mudança do CPP em
1977, dúvidas não haveria em afirmar que permaneceria cautelarmente
segregado durante toda a persecução penal - ou, ao menos, até a pro
núncia ou sentença condenatória recorrível, se portador de bons ante
cedentes - quem viesse a ser preso em flagrante por crime inafiançável.
A reforma processual de 1977, aliás, acabou por reduzir o insti
tuto da fiança a uma quase inutilidade. De fato, visto que o autor de
qualquer crime passou a poder ser beneficiário de liberdade provisória
sem fiança (artigo 310, parágrafo único do CPP) - deixamos de lado
a polêmica relativa aos crimes hediondos e assemelhados a fiança
passou a servir apenas para que o autuado em flagrante delito por crime
punido com prisão simples ou detenção pudesse ser posto em liberdade
com maior rapidez (TOURINHO FILHO, 2003, p. 556) pela própria
autoridade policial, porque em tal hipótese, prevista no artigo 322 do
CPP não se exige a participação prévia do juiz e do Ministério Público.
Por sua vez, tratando-se de infração penal de menor potencial ofensi
vo, a lei não exige, para a libertação do autor do fato, o pagamento de
fiança, mas tão-somente a assinatura de termo de comparecimento a
uma futura audiência, conforme dispõe o artigo 69 da Lei ne 9.099/95 .g
Concluindo essa abordagem etiológico-histórica do instituto
da prisão cautelar e da correspondente liberdade provisória no Bra
sil, observamos a irracionalidade que caracterizou as normas que se
seguiram ao longo do Império e da República, pela sucessão de leis que
frequentemente condicionaram a sorte do indivíduo a fatores muitas
vezes irrelevantes para a justa e correta avaliação da necessidade de
mantê-lo preso.
O fato é que, como muito bem observado por CHOUKR (2005,
p. 2), “conhecemos uma história legislativa republicana sem que tenha
11 Registre-se que a jurisprudência do STF n3o costuma distinguir a fiança como uma
espécie do gênero liberdade provisória. Daí por que acaba por admitir como válidas
as normas iniraconstitucionais (como a do artigo 2o, inciso II da L. 8.072/90, mesmo
com a alteração promovida pela L. 11.464/07) que proíbem a liberdade provisória, de
qualquer espécie, a quem é acusado de ser autor de crime hediondo ou assemelhado.
Exemplo se vê no julgamento, pelo STF, do HC 103.399/Sfí 11 T , rei. Min. Ayres Bric-
to, j. 22-06.2010, DJe n. 154, de 20.08-2010: (,..)1. Se o crime é inafiançável e preso o
acusado em flagrante delito, o instituto da liberdade provisória nâo tem como operar. O
inciso II do art. 2“ da Lei 8.072£X), quando impedia a "fiança e a liberdade provisória",
de cerca forma incidia em redundância, dado que, sob o prisma constitucional (inciso
XLIII do art. 5° da CF/88), tal ressalva era desnecessária. Redundância que foi reparada
pelo art. lc da Lei 11.464/Ü7, no retirar o excesso verbal e manter, tão-somente, a veda
ção do instituto da fiança. 2. Manutenção da jurisprudência desta Primeira Turma, no
sentido de que “a proibição da liberdade provisória, nessa hipótese, deriva logicamente
do preceito constitucional que impõe a inafiançabilidade das referidas infrações penais:
[...] seria ilógico que, vedada pelo art. 5a, XLIII, da Constituição, a liberdade provisória
mediante fiança nos crimes hediondos, fosse ela admissível nos casos legais de liberdade
provisória sem fiança" (HC 83.468, da relatoria do ministro Sepúlveda Pertence).
a prisão em flagrante. Com a reforma de 2011, em razão da qual, além
da perda de autonomia da prisão em flagrante - cujas existência e va
lidade passam a ser efêmeras e precárias - adota-se um novo modelo
cautelar, que “individualiza” a medida provisional para cada situação
concreta, toma-se bem ponderável sustentar que nada estará a impedir
o juiz de, ouvido o Ministério Público, conceder ao autuado liberdade
provisória sem fiança, mediante imposição de uma ou mais medidas
cautelares diversas da prisão, mesmo em casos de autores de crimes
hediondos ou assemelhados.12
Nesse sentido se posiciona LOPES JR (2011-B, p. 156), ao pregar,
mesmo para hipótese de crime hediondo, que “diante de um flagrante
por crime inafiançável, não estando presente o periculum libertatis da
prisão preventiva ou, ao menos, não em nível suficiente para exigir a
prisão preventiva, poderá o juiz conceder a liberdade provisória sem
fiança, mas com medidas cautelares alternativas com suficiência para
tutelar a situação fática de perigo”. Isso porque, como mais adiante
acentua, “a inafiançabilidade acaba por impor, para concessão da liber
dade provisória, a submissão do imputado a uma ou mais medidas cau
telares diversas, mais gravosas do que a fiança, entre aquelas previstas
no artigo 319 do CPP” (2011-B, p. 166).
No trecho por nós destacado, cremos, reside o ponto nodal da
questão. Não será qualquer medida cautelar que poderá ser imposta ao
13 “À luz da nova ordem constitucional, que consagra no capítulo das garantias indivi
duais o princípio da presunção de inocência (Cf; 5-, LVII), a faculdade de recorrer em
liberdade objetivando a reforma de sentença penal condenatória é a regra, somente
impondo-se o recolhimento provisório do réu à prisão nas hipóteses em que enseja a
prisão preventiva, na forma Inscrita no art. 312, do CPE A regra do art. 594 do CPP
deve hoje ser concebida de forma branda, em razão do aludido princípio constitu
cional, não se admitindo a sua incidência na hipótese em que o réu, por força de
habeas corpus concedido pela Sexta Turma deste Superior Tribunal de Justiça, teve
a prisão preventiva revogada, permanecendo em liberdade durante todo o curso do
processo e não se demonstrou no dispositivo da sentença a necessidade da medida
constritiva ou a existência de qualquer fato novo que justificasse o encarceramen
to. Habeas corpus deferido" (H abeas Corpus 10118-MS, 6a T , rei. Min. Vicente
U a i, j. em05/10/99, D) de 03/11/99).
14 “(..•) O juixpronundante deve, sempre, motivar a sua decisão, quer para decretar, quer
para revogar, quer para deixar de ordenar a prisão provisória do réu pronunciado. (...) A
conservação Je um homem na prisão requer mais do que um simples pronunciamento
jurisdicional. A restrição ao estado de liberdade impõe ato decisório suficientemente
fundamentado, que encontre suporte em fatos concretos” (HC na 68.53Q-7-DI5 Relator
Min. Celso de Mello, OJU 12/4/91). Em outro julgado contemporâneo, assentou-se
igual entendimento, wrrfris: “(...) A prisão para apelar só se legitima quando se eviden
cia a sua necessidade cautelar, não cabendo inferi-la exclusivamente da gravidade em
abstrato do delito imputado; é possível, contudo, extrair do contexto do fato concreto
- que revela a existência de complexa organização criminosa de dimensões internacio
nais - base empírica para a afirmação do risco de fuga dos condenados, fundamento
idôneo para a cautela da prisão provisória imposta" (HC n- 69.818-SI} Rei. Min. Sepúl-
veda Pertence, DJU de 27/11/92).
MC/PR,14 na qual se discutiu a constitucionalidade dos artigos 9a da Lei ne
9.034/95 (“o réu não poderá apelar em liberdade, nos crimes previstos nesta
Lei”) e 3a da Lei na 9.613/98 (“os crimes disciplinados nesta Lei são insusce
tíveis de fiança e liberdade provisória e, em caso de sentença condenatória,
o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade").
Consoante noticiou o Informativo nQ334 do STF considerou-se, sob
a liderança dos votos do Ministro Relator, Marco Aurélio, e do Ministro Ce-
zar Peluso, que ambos os dispositivos denotam desproporcionalidade entre a
execução da decisão judicial nas esferas penal e civil, bem como contrariam o
princfpio constitucional da não-culpabilidade (CF/88, artigo 5U, LVII).
Sob essa perspectiva, proclamaram, incidentalmente, a inconstitucio-
nalidade do artigo 9a da Lei nQ9.034/95, emprestando ao artigo 3fi da Lei n“
9.613/98 interpretação conforme à Constituição, no sentido de que o juiz, na
hipótese de sentença condenatória, fundamente sobre a existência ou não
dos requisitos para a prisão cautelar, posição seguida pelos Ministros Joaquim
Barbosa e Carlos Britto.
Decisão ainda mais impactante está para ser proferida, também pela
composição plena do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso
Ordinário em Habeas Corpus na 83.810-RJ (o julgamento encontra-se sus
penso desde dezembro de 2003). A confirmar-se o prognóstico formado a
partir dos votos já proferidos e tendo em vista a tendência mais liberal assu
mida recentemente pela Corte,16provavelmente se julgará não recepcionado
pela Constituição Federal dc 1988 o artigo 594 do Código de Processo Penal.
O caso diz respeito a um acusado por crime de latrocínio, condenado
a trinta anos de prisão e que, por haver permanecido foragido durante todo
o processo, teve negado o processamento da apelação interposta pela defesa.
Mantido, pelo Superior Tribunal de Justiça, o acórdão do Tribunal de Justiça
do Rio de Janeiro, coube ao Ministério Público Federal a iniciativa de recor
rer ao Supremo contra a denegação do urrit.
Iniciado o julgamento em 17 de dezembro de 2003, o Ministro-Rela-
tor, Joaquim Barbosa, após observar que o entendimento tradicional do STF
15 O julgamento não foi concluído, tendo o Tribunal, por unanimidade, considerado pre-
ludicada a questão de ordem na Reclamação n° 2.391-5/PR.
16 Tome-se como exemplo nítido dessa afirmação a decisão proferida, em 23.02.2006, no
julgamento do HC na 82.959/SR relatado pelo Min. Marco Aurélio. Por maioria aper
tada. (6 votos contra 5), o Plenário declarou a inconstitucionalidade parcial do § 1- do
art. 2Bda Lei na 8.072/90, que veda a possibilidade de progressão do regime de cumpri
mento da pena nos crimes definidos cúmú hediondos, reformando jurisprudência até
então consolidada na própria Corte ao longo de mais de [5 anos.
tem sido no sentido de que a Constituição de 88 recepcionou o artigo 594
do CPIÍ permitindo inferir que a regra, para apelar, é o prévio recolhimento
do sentenciado à prisão, afirmou: "Creio, no entanto, que à luz do princípio
da não-culpabilidade, deve prevalecer o inverso, ou seja, a regra é o acusado
recorrer em liberdade, podendo o juiz determinar seu recolhimento à prisão
caso estejam presentes os pressupostos e requisitos do artigo 312 do Código
de Processo Penal.”
Recordou, ainda, que a Lei dos Crimes Hediondos (Lei nB8.072/90) con
sente ao acusado recorrer em liberdade, pois a prisão prolatada na sentença
ainda tem cunho cautelar, devendo ser decidida pelo juízo condenatório,
mediante suficiente fundamentação. Arrematou o voto, acentuando que o
não conhecimento da apelação pelo fato de o réu ter sido revel durante a
instrução ofende o princípio que assegura a ampla defesa, bem como a regra
do duplo grau de jurisdição prevista cm pactos internacionais, como o de São
José da Costa Rica, assinados pelo Brasil posteriormente à edição do Código
de Processo Penal. Sua decisão foi, portanto, no sentido de determinar que o
TJ/RJ faça novo exame de admissibilidade da apelação, sendo seguido pelos
Ministros Carlos Ayres Britto e Cezar Peluso. Por sua vez, o Ministro Gilmar
Mendes, acompanhando o Min. Joaquim Barbosa, e na linha da tese defen
dida no voto por ele proferido na RCL n2 2.391 MC/PR, acima mencionada,
emprestou efeitos ex nunc ã decisão.
Como se percebe, a nova interpretação do Código de Processo Penal e
das referidas leis, pelo STF; implicará uma radical mudança na jurisprudência
dos tribunais, que provavelmente seguirão a trilha da Corte Suprema, permi
tindo o processamento de apelações interpostas por acusados que, durante o
decurso da ação penal em primeiro grau, não se tenham apresentado ã pri
são, em cumprimento a ordem judicial consubstanciada na própria sentença
condenatória, ou mesmo antes.
Até o presente momento, todavia, a doutrina e a jurisprudência atuais
contentam-se, insista-se, em afirmar a validade do decreto de prisão cautelar
lançado no corpo da sentença condenatória, quando explicitada a necessida
de da cautela. No entanto, não enfrentam a questão que se afigura, a nosso
sentir, ainda mais relevante, qual seja, a regra que condiciona o recebimento
e processamento do recurso do condenado ao seu prévio recolhimento à pri
são (artigo 594 do CPP).
Entendemos-como já registrado (SCHIETTI, 2002, p. 153), acompa
nhando qualificada doutrina17—que a decisão que exige o recolhimento do
acusado à prisão, como condição para apelar, não deixa de maltratar, mesmo
se apoiada na necessidade da cautela, os princípios da ampla defesa, do con
traditório (artigo 5a, inc. LV da CF), e do duplo grau de jurisdição, à medida
que acaba por impedir, ou, ao menos, restringir o livre exercício dos meios
de defesa postos à disposição do réu (de que é exemplo o recurso contra a
decisão de pronúncia ou de condenação), bem assim o próprio direito ao
recurso, o qual também decorre, no plano legal, do artigo 8a, ns 2, alínea "h",
do Decreto nu 678/92, e do artigo 9a, § 4ü, do Decreto nfi 592/92 (que incor
poraram ao nosso direito intemo a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, respectiva
mente). Ademais, o artigo 594 do CPP atinge o princípio da igualdade, visto
que desequilibra a balança processual, impondo pesado ônus à defesa, para
poder exercer um direito que é de ambas as partes.
Não se desconhece - até porque indispensável para o saudável e pací
fico convívio social - o direito do Estado de ordenar a prisão cautelar de
acusados em processo criminal, presentes os pressupostos exigidos em lei.
Todavia, essa potwíos coercendi do Estado não pode estar atrelada, insepara-
velmente, ao direito do acusado de exercer uma defesa ampla na causa por
meio da interposição do recurso cabível contra a sentença condenatória ou
de pronúncia.
Assim, para exemplificar, se o acusado ameaça fugir do país, será ple
namente legítima a decretação de sua prisão cautelar na própria sentença,
ou mesmo após. Contudo, de nenhum modo essa noticiada tentativa de fuga
ou a não-apresentação em juízo do acusado portador de maus antecedentes
poderá servir de fundamento para o não-conhecimenco da apelação.1SA des
vinculação do poder de prender, pelo Estado, com o direito de recorrer, pelo
acusado, autoriza aquele a decretar a prisão do último, ante a sua concreta
ameaça de fugir à aplicação da lei penal, mas de nenhum modo pode impedir
19 Igual raciocínio há de ser válido também para a situação versada no art. 595 do Código
de Processo Penal, em que o recurso é considerado deserto ante a fuga do apelante,
restando-lhc tão-somente aguardar o trânsito em julgado para ajuizar revisão criminal.
20 Exemplo desse comportamento do Judiciário francês pode ser visto em decisão de 1993
da Corte de Cassação, ao afirmar que uma sentença da Corte européia não incide sobre
a validade da norma de direito interno (A1MONETTO, 2002, p. 156).
21 Bemard Poitrimol fora condenado por um tribunal correi ional fiancês, a um ano de pri
são, por não haver devolvido o filho à mãe que detinha sua guarda, após exercer direito
de visita. A Corte de Apelação e, depois, a de Cassação, deixam de examinar o recurso da
defesa, ao argumento, amparado no Código de Processo Penal francês, de que o acusado
deveria sujeitar-se ao mandado de prisão para poder exercer seu direito de apelo.
para manejar o recurso tenha expirado. Isto compromete a essência do
direito de apelai; impondo um ônus desproporcional ao apelante, dese
quilibrando a balança que deve ser ponderada entre, de um lado, o inte
resse legítimo de assegurar que as decisões judiciais sejam cumpridas, e,
de outro lado, o direito de ter acesso à Corte de Cassação e exercitar os
direitos de defesa.”
22 GUÉRIN vs. FRANÇA, julgado pela Corte Européia dos Direitos Humanos em 29/07/98.
23 No STJ a questão chegou a ser sumulada, pelo verbete nB 347: O conhecimento de
recurso de apelação do réu independe de sua prisão.
24 No STF, apás longos anos, o Pleno concluiu o julgamento do RHC 83.810, consoli
dando a tendência daquela corte, prognosticada no trecho acima transcrito, excerto da
primeira edição, sobre o reconhecimento da não recepção do artigo 594 do CPfi Curio
so, porém, observar que o julgamento foi conclufdo quando já revogado tal dispositivo
legal, por força da reforma processual de 2008. Eis a emenra: EMENTA: "RECURSO
ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ART. 594 DO CÓDIGO DE PROCESSO PE
NAL. CONHECIMENTO DA APELAÇÃO E RECOLHIMENTO DO RÉU CON- '
DENADO À PRISÃO. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E DA
AMPLA DEFESA. RECURSO PROVIDO. 1 .0 recolhimento do condenado à prisão
não pode ser exigido como requisito para o conhecimento do recurso de apelação, sob
Julgado de suma importância para a definição do tema ocorreu
em 2009, quando o STF acolheu o Habeas Corpus n- 84.078/MG. Em
decisão majoritária, o Tribunal Pleno assentou, definitivamente, o en
tendimento de que o acusado não pode ser preso em decorrência do
acórdão ainda pendente de recursos de natureza extraordinária, salvo a
título de prisão cautelar, observados os requisitos do artigo 312 do CPR
A decisão restou assim ementada:
pena de violação aos direitos de ampla defesa e à igualdade entre as partes no processo.
2. Não recepção do art. 594 do Código de Processo Penal da Constituição de 1988. 3.
Recurso ordinário conhecido e provido. RHC 8381 O/RJ, Relator Min. Joaquim Barbosa,
J. 05/03/2009, Tribunal Pleno, DJe-200 p. 23-10-2009."
exprimem muito bem o sentimento que EVANDRO LINS sintetisou na
seguinte assertiva: “Na realidade, quem está desejando punir demais, na
fundo, no fundo, está querendo fazer o mal, se equipara um pouco ao
próprio delinqüente". 6- A antecipação da execução penal, ademais de
incompatível com o texro da Constituição, apenas poderia ser justificada
em nome da conveniência dos magistrados — não do processo penal. A
prestigiar-se o princípio constitucional, dizem, os tribunais [leia-se STJ
e STF] serão inundados por recursos especiais e extraordinários e subse
quentes agravos e embargos, além do que "ninguém mais será preso”. Eis
o que poderia ser apontado como incitação ã ‘'jurisprudência defensiva",
que, no extremo, reduz a amplitude ou mesmo amputa garantias consti
tucionais. A comodidade, a melhor operacionalidadc de funcionamento
do STF não pode ser lograda a esse preço. 7- No RE 482.006, relator
o Ministro Lewandowskí, quando foi debatida a constitucionalidade de
preceito de lei estadual mineira que impõe a redução de vencimentos
de servidores públicos afastados de suas funções por responderem a pro
cesso penal em razão da suposta prática de crime funcional [art. 2e da
Lei n. 2.364/61, que deu nova redação à Lei n. 869/52], o STF afirmou,
por unanimidade, que o preceito implica flagrante violação do disposto
no inciso LVII do art. 5e da Constituição do Brasil. Isso porque — disse
o relator — “a se admitir a redução da remuneração dos servidores em
tais hipóteses, estar-se-ia validando verdadeira antecipação de pena, sem
que esta tenha sido precedida do devido processo legal, e antes mesmo de
qualquer condenação, nada importando que haja previsão de devolução
das diferenças, em caso de absolvição”. Daí porque a Corte decidiu, por
unanimidade, sonoramente, no sentido do não recebimento do preceito
da lei estadual pela Constituição de 1.988, afirmando de modo unânime
a impossibilidade de antecipação de qualquer efeito afeto à propriedade
anteriormente ao seu trânsito em julgado. A Corte que vigorosamente
prestigia o disposto no preceito constitucional em nome da garantia da
propriedade não a deve negar quando se trate da garantia da liberdade,
mesmo porque a propriedade tem mais a ver com as elites; a ameaça às
liberdades alcança de modo efetivo as classes subalternas. 8. Nas demo
cracias mesmo os criminosos são sujeitos de direitos. Não perdem essa
qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São pessoas,
inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação constitucional da sua
dignidade (art. I a, III, da Constituição do Brasil). É inadmissível a sua
exclusão social, sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstân
cias, as singularidades de cada infração penal, o que somente se pode
apurar plenamente quando transitada em julgado a condenação de cada
qual Ordem concedida. HC 84078/MG, Relator Min. EROS GRAU, j.
05/02/2009, DJe-035 DIVULG 25-02-2010, p. 26-02-20 L0.
1. 1. Favor Rei
1 Sobre o tema, ver nosso Gototuúu fmocesswüu nus recursos criminais. São Paulo: Aclas,
2002, pp. 102 ss.
2 Em sentido contrário ao texto se coloca MANZINI, verbú: “O suposto princípio exe-
gérico 'in duíw pro ren’, se é falso para o direito penal, é ainda mais falso para o direito
processual penal. Na dúvida, de fato, nada autorüa a interpretar a lei a favor do impu
tado: nem a razão, nem o direito" (1949, p. 116).
Seguindo essa linha doutrinária, DELMANTO JÚNIOR (1998,
p. 263) considera, em atenção ao disposto no artigo 3° do Código de
Processo Penal, que, em nome do favor liberta tis, o uso da interpretação
extensiva, da analogia e do recurso aos princípios gerais do direito deve
ser limitado, "na medida em que não autorizam o aplicador da lei a
manter alguém cautelarmente preso sem que esteja estritamente carac
terizada a incidência legal da prisão provisória e, uma vez verificados os
seus pressupostos e requisitos, que ela seja imposta por mais tempo do
que o expressamente previsto, diante do princípio favor libertatis, que
está acima de qualquer outro”.
3 “Diz-me como tratas o arguido, dir-te-ei o processo penal que tens e o Estado que o
instituiu" £ um slogtm que, na opinião de FIGUEIREDO DIAS (1984, p. 428), confere
a dimensão do tema relativo aú papel do acusado no processo penal.
da mera qualificação pessoal do acusado, o qual passa, então, a ser, simples-
mente, a pessoa contra quem se imputa determinada conduta, levando o
julgador a decretar uma medida restritiva da liberdade ou a proferir a sen
tença final contra alguém que, induvidosamente, desconhece.
O processo deveria ser, também, um instrumento para que se
conhecesse não o homem abstrato, identificado com um nome qual-
quer, mas o homem real, de carne e osso (RIVERO SANCHEZ, p. 75).
Essa postura traria inevitável humanização do processo, colocando o
réu como o “centro do sistema punitivo" a merecer toda a atenção do
acusador e do julgador em qualquer decisão a ser tomada no curso da
relação processual (SILVA FRANCO, 2000, p. 4).
Na elevada tarefa de julgar homens, o magistrado há de permear-
se pelo bom uso da razão e pela sensibilidade, sem as quais a exata
compreensão da dimensão do humano é impossível. Ressalve-se que
tal compreensão simpatética não se identifica “com os hábitos mentais
do sujeito em julgamento, como a que proviria de uma romântica fusão
afetiva, mas em uma ‘participação imaginativa indireta e mediata’, que
é de tipo racional, porque se baseia na ‘representação da situação de
fato’ submetida a julgamento. Ainda menos reflete a subjetividade emo
cional e parcial do juiz. Ao contrário, é o produto de um esforço inten
cional do juiz dirigido a prescindir o mais possível de suas ideologias
pessoais, seus preconceitos e de suas inclinações para ‘compreender’ ou
participar das ideologias, inclinações e condicionamentos do sujeito em
julgamento” (FERRAJOLI, 2002, p. 132).
Semelhante abordagem, que se pretende respeitosa, da pessoa do
acusado, por parte do Estado e seus agentes, não é, todavia, bem aceita
quando se trata de processo por prática de crime bárbaro, quando se cos
tuma identificar o réu como um ser animalesco, indigno de merecer o mais
remoto sentimento benevolente, já que não foi capaz de demonstrar qual
quer vestígio de humanidade em seu comportamento odioso.
Mas é precisamente em tais situações-limite, nas quais os instin
tos e sentimentos induziriam a uma reação emocional ao ato crimino
so, que o Estado, por seus agentes responsáveis pela persecução penal,
deve manter a racionalidade necessária para agir sem o ímpeto das pai
xões, mas com equilíbrio e objetividade, de tal modo a servir de contra
ponto entre a barbárie do crime e a civilidade da reação estatal.
Essa postura aparentemente fleugmática não importa desprezo
com os sentimentos da vítima e de seus familiares. Antes, reflete a pró
pria razão de ser da Justiça Pública, que não pode mover-se por paixões
perfeitamente compreensíveis para quem se viu afetado pelo conflito,
mas inadequadas aos órgãos oficiais encarregados da persecução penal.
É de salientar-se, todavia, que a aplicação objetiva e serena do
direito penal e processual penal é plenamente compatível com o rigor
que eventualmente se mostre necessário na adoção de medidas caute
lares ou punitivas, dentro, é óbvio, dos limites da lei, bem amplos para
o operador do direito, relevando salientar que foi o próprio constituinte
quem incluiu, sob o mesmo título “dos direitos e deveres individuais e
coletivos”, normas de cunho restritivo à liberdade, nomeadamente as
que previram tratamento penal mais rigoroso em relação a determina
das condutas (objeto de regulamento nos incisos XLII, XLHI e XLIV do
artigo 5e da C.F.).
Despiciendo observar que, quando esse rigor houver de ser res
ponsavelmente empregado, juizes de direito e promotores de justiça
haverão de estar cientes de que suas manifestações não irão esgotar-se
em uma folha de papel, mas poderão ferir, como um punhal, a carne
dos seus destinatários; cumprirá, então, a esses profissionais do direito
estar conscientes também de que, ao exercerem os poderes que a lei
lhes confere, "se eventualmente confortam o titular de um direito vio
lado, ou a dor dc quem foi vítima de um crime, trazem, por outro lado,
ao autor da conduta e aos seus familiares, um sofrimento que, muitas
vezes, ao menos estes últimos não mereceriam padecer.
O respeito pela dignidade do acusado em processo penal exige,
portanto, não apenas esse comportamento exemplar dos agentes esta
tais a quem compete a prática de atos coativos e decisórios, mas, antes
ainda, um respeito aos limites do próprio poder, para que, ao pretexto
de proteger os direitos humanos, o agente estatal não se tome tirânico
e arbitrário (PERELMAN, 1996, p. 400).
Por outra angulação, quando se fala em dignidade da pessoa
humana impõe incluir-se o respeito que deve ser dispensado à vítima
(e familiares) do crime imputado ao acusado. Como alerta REMESAL
(1997, p. 174), "da importância da vítima como ponto de referência
fundamental para as reações punitivas na época do Direito Penal da
vingança privada se passou posteriormente, com o surgimento do Di
reito Penal como Direito Público, à postergação daquela, o que desem
bocou praticamente em sua redução a mero objeto do delito”.
De fato, a neutralização da vítima como ator principal do proces
so penal modemo - preço de uma atuação objetiva e desapaixonada do
poder punitivo - significou, na prática, o seu abandono, a sua fragiliza
ção, o seu distanciamento do cenário repressivo, onde passou a exercer
um papel “puramente testemunhai" (MOLINA, 1992, p. 43).
Assim não deveria ser. O fato dc haver o Estado se apropriado
do conflito penal, originalmente pertencente ao próprio particular para
que exercesse a sua própria vingança, não importa em menosprezar
quem foi diretamente afetado pelo crime. É preciso ter a percepção,
como assinala FERNANDES (1995, p. 124) de que “a vítima atua tam
bém como membro e representante da comunidade, tendo esta interes
se jurídico em participar do processo porque a ação criminosa deve ser
reprimida para maior tranqüilidade social".
Sem essa preocupação e zelo para com os interesses daquele que
sofreu, de forma concreta, os danos da ação criminosa, acaba por pro
duzir uma vitimização secundária do ofendido, impondo-lhe um outro
sofrimento, desta vez pelo próprio Estado, que, além de ter falhado na
outorga de segurança que poderia ter evitado a ocorrência do crime,
impinge à vítima novo padecimento, quer pela indiferença aos seus
interesses, quer pelo modo desrespeitoso de tratá-la quando é chama
da a participar, como colaboradora, dos atos processuais necessários à
instrução do caso.
Para CHRISTIE (1998, p. 161) a distância que os personagens
principais do processo mantêm em relação à vítima "pode ser um dos
motivos para a sua insatisfação e para as freqüentes afirmações de que
os criminosos livram-se da cadeia muito facilmente. Os pedidos de pe
nas mais severas podem ser uma conseqüência da falta de atenção à
necessidade que as vítimas sentem de dar vazão às suas emoções, mais
que a desejos de vingança”.
Deveras, na experiência do foro, percebemos que a vítima ou os
familiares desta desejam muitas vezes apenas ser informados sobre o
que está acontecendo ou o que pode acontecer e quais são os seus direi
tos. No entanto, não é freqüente a preocupação judicial com a vítima,
cuja comunicação com o juízo cinge-se, via de regra, à intimação para
comparecer à audiência onde será tomado o seu depoimento. Não lhe
informam que a denúncia foi oferecida, que o réu foi preso ou solto,
qual a pena que lhe foi imposta ou mesmo se foi absolvido, como tam
bém não é orientada sobre a possibilidade de mover ação civil ex delicto
contra o acusado ou de executar a sentença condenatória. Enfim, cos
tuma ser tratada como uma incômoda visita, principalmente quando se
habilita como assistente da acusação.
6 Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, sc jufear indispensável prendê-h,
todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela Ia.
7 O texto constitucional brasileiro (an. 5" inc, LVII, da CF) segue a terminologia italiana,
que, ao invés de presumir a inocência do acusado, determina que Timputato non é conside
ram cotycvole sino aüa condartna dejmiàva" (art. 27 da Constituição da República italiana).
A presunção de inocência impõe, desse modo, ao órgão acusa
dor o ônus de comprovar as afirmações de responsabilidade penal feitas
ao acusado, sob pena de, restando qualquer dúvida sobre o objeto da
prova, resolver-se aquela a favor da defesa (in dubio pro reo). E dizer, o
acusador afirma a existência de um fato criminoso, atribui sua autoria
ao acusado, mas deverá comprovar, sob as regras do devido processo
legal (due process ofkuv) que integram a ideia do julgamento justo (fair
triflí), que essas afirmações encontram respaldo em provas consisten
tes, submetidas ao crivo do contraditório, de modo a não restar dúvida
além do razoável (beyond a reasonable doubt) sobre os fatos atribuídos
ao acusado.
Como regra de tratamento, o princípio da presunção de inocên
cia exige que o acusado seja tratado com respeito à sua pessoa e à sua
dignidade e que não seja equiparado àquele sobre quem já pesa uma
condenação definitiva. Eqüivale isso a dizer, no que concerne ao tema
objeto deste estudo, que o acusado somente pode ser preso diante de
uma imperiosa necessidade, devidamente justificada e apoiada em cri
térios legais e objetivos, de modo a conferir o caráter realmente caute
lar à prisão ante tempus.
Significa, ainda, na dicção do legislador constituinte, que nin
guém poderá ser mantido preso “quando a lei admitir a liberdade pro
visória, com ou sem fiança” (artigo 5a, inciso LXVI, da C.E), pois, na
expressão de MARTINS BATISTA (1985, p. 36), o "direito à coerção
mais benigna” - a liberdade provisória - também se revela como uma
das manifestações do princípio de inocência.
Outrossim, o uso de algemas naquele que se apresenta ao Tri
bunal ou juiz, para depor ou para presenciar uma audiência, somente
se justifica ante o concreto receio de que, com as mãos livres, fuja ou
coloque em risco a segurança das pessoas que participam do ato proces
sual. Cabe lembrar, a esse respeito, que, desde o Decreto ns 4.824, de
1871, o legislador pátrio manifestou preocupação com eventuais abusos
na execução do encarceramento humano, prevendo que “o preso não
será conduzido com ferros, algemas ou cordas, salvo caso extremo de
segurança, que deverá ser justificado pelo condutor...”. Já em nosso direito
atual, somente o Código de Processo Penal Militar faz a devida limitação,
assinalando, no seu artigo 234, § l 2, que: “O emprego de algemas deve ser
evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do pre
so, e de modo algum será permitido, nos presos a que se refere o art. 242."*
FERRAJOLI (2002, p. 41) sintetiza essa dupla vertente da pre
sunção de inocência ao afirmá-la como, a um só tempo, “garantia de
liberdade" e “garantia de verdade" e também "uma garantia de segurança
ou, se quisermos, de defesa social: da específica ‘segurança’, formada
pelo Estado de Direito e expressa pela confiança dos cidadãos na justi
ça, e daquela específica ‘defesa’ destes contra o arbítrio punitivo”.
Enfim, assegurando-se ao acusado o respeito aos seus direitos e
dando-lhe a garantia de não ser tratado como culpado antes da conde
nação definitiva, têm-se as condições mínimas para um processo justo
e civilizado. Como acentua GOMES FILHO (1991, p. 48), inspirado em
CHIAVARIO, "se de um lado a própria existência da imputação caracte
riza, por si só, uma condição de desvantagem do cidadão em face do poder
punitivo estatal, a afirmação constitucional dos princípios da presunção de
inocência e do 'devido processo legal’ destina-se a contrabalançar essa car
ga negativa, indicando ao juiz não apenas uma atitude em face do acusado,
ou uma regra de julgamento na hipótese de dúvida, mas o próprio modo
pelo qual deve realizar-se a atividade processual, através da integração do
direito ao processo com os direitos no processo".
Releva destacar, outrossim, que a presunção de inocência “vale
e impõe, sem quaisquer graduações, até ao trânsito em julgado” (TAI
PA DE CARVALHO, 1997, p. 311), sendo repudiável, por carregar a
8 O Supremo Tribunal Federal, ante a lacuna da lei, editou a Súmula Vinculante ns 11,
que dispõe: “Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de
fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de tercei
ros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar
civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a
que se refere, sem prejufeo da responsabilidade civil do Estado”. Para uma abordagem
mais aprofundada sobre o uso das algemas pelo acusado, durante a persecuçãu penal,
consultar P1TOMBO, fevereiro/lW ); GOMES FILHO (deiembro/1992) e FIGUEI
REDO (novembro/deiembro/2005).
ideia da prisão cautelar como uma antecipação da expiação da pena,
uma concepção gradualista da presunção de inocência, segundo a qual
a presunção se enfraquece progressivamente ao longo das sucessivas
decisões processuais desfavoráveis ao acusado (recebimento da denún-
cia, pronúncia e sentença condenatória ainda recorrível).
Bem diversa é a possibilidade de estabelecer um marco final, antes
do trânsito em julgado da condenação, para a incidência dessa garan
tia. E dizer, não fora a redação do artigo 5e, inciso LVII (“ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal conde
natória”), inexístiria óbice, como ocorre em outros sistemas punitivos, para
iniciar-se a execução da pena antes da imutabilidade da sentença.
Sim, porque a formulação da presunção de inocência poderia se
guir, por exemplo, o texto positivado no artigo 8Q(Garantias Judiciais)
da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (incorporada ao
direito positivo brasileiro por meio do Decreto ne 678/92), que assim
dispõe: “2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma
sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa."9 Nes
se caso, não haveria vinculação da presunção de inocência ao trânsito
em julgado da sentença condenatória, mas sim à comprovação da culpa
do réu. Eqüivaleria isso a dizer que, tão logo esgotada a jurisdição or
dinária, locus próprio para a produção de provas, argumentação fática
e, portanto, para a comprovação (ou não) da culpa do réu, cessaria a
comentada garantia.
Em suma, tudo se define pela política criminal estabelecida sobe
ranamente por cada país, denotada pela escolha que se faz no momento
de positivar ou interpretar a presunção de inocência-10
recurso especial ou extraordinário, onde, como sabido, não se permite discussão sobre
matíria fática ou probatória. Decerto, segundo cremos, que tal modificação não im
portaria em supressão ou abolição da referida garantia - o que reclamaria incidência
da vedação contida no art. 60, § 4B, da C.R. - pois o núcleo essencial da presunção de
inocência continuaria preservado.
Daí, portanto, se infere a compreensão de que a presunção de
não-culpabilidade deve ser vista como uma presunção de natureza polí
tica, e não meramente jurídica e muito menos lógica.
Para obviar aquela contradição, basta que se dê ao princípio em
foco a dimensão que ele, em verdade, deve possuir. Cuida-se, portanto,
de asseverar que o acusado em um processo penal não poderá receber
tratamento equivalente a alguém já considerado culpado, por sentença
definitiva. O princípio em foco importa "... em atribuir a toda pessoa
um estado jurídico que exige ser tratado como inocente, sem importar,
para tanto, o fato de que seja, realmente, culpado ou inocente pelo fato
que se lhe atribui” (BOVINO, 1998, p. 131).
Eis por que parece mais palatável a expressão utilizada pelo consti
tuinte brasileiro - "ninguém será considerado culpado até o trânsito em jul
gado da sentença penal condenatória" (inc. LVII do artigo 52 da C.E) - que
segue o modelo da Constituição da Itália (de 1948). Seguramente é menos
paradoxal afirmar que o acusado não pode ser considerado culpado antes do
trânsito em julgado da condenação, do que afirmar que ele, a despeito de
acusado formalmente de um crime, é presumido inocente.
Nessa linha de raciocínio se coloca TUCCl (1985, p. 379), apoia
do no escólio de GUGLIELMO SABATINI, ao preferir, à usual expres
são presunção de inocência, afirmar que o acusado tem o direito à não-
consideração prévia de culpabilidade, de modo a lhe assegurar 0 "direi
to de ser considerado inocente até que sentença penal condenatória
venha a transitar formalmente em julgado, sobrevindo, então, a coisa
julgada de autoridade relativa".
No mesmo sentido se põe MARTINS BATISTA (1985, p. 30) que,
apoiado em GIOVANNILEONE, afirma que “considerar alguém não-cul-
pado implica presumi-lo inocente, mas o só dizer que ‘não se considera’
alguém culpado, não tem outro significado senão 0 de negar qualquer pre
sunção de culpabilidade em seu desfavor. A exclusão do juízo de culpabili
dade não impõe, necessariamente, a inclusão do de inocência”.
Mesmo com esse temperamento, parte da doutrina não isenta o
princípio da presunção de inocência de questionamentos relativos à sua
convivência com a prisão cautelar. Cite-se, como exemplo, IBANEZ
(1997) que, reportando-se a outros partidários de igual opinião, asse
vera que o trabalho de quem administra um instituto como o da prisão
provisória termina sendo, inevitavelmente, um “trabalho sujo". Vale a
pena ler seu pensamento:
1.5. Excepcionalidade
11 O C<5digo de Processo Criminal Je Nova York, por exemplo, indica, no § 5 10.30 (Appli
cation for RecognizdíKe or Boil, Rulej o f Lãw anJ Criterw) diversos critérios para a fiança,
como a sua personalidade, sua reputação, seus hábitos e condições mentais, emprego e
recursos financeiros, seus vínculos familiares, duração de sua residência, seus registros
criminais, inclusive como adolescente.
12 A despeito do teor da 8a Emenda à Constituição dos EUA, que proíbe a acessive bail.
sem o pagamento de fiança (release on own recognizance). O resulta
do é, além de injusto em sua essência, discriminatório em relação aos
acusados mais pobres, que, por não disporem da importância fixada, e
por não estarem aptos a se socorrerem dos bail bondsmen - uma espécie
de “agiotas legalizados” que são autorizados a cobrarem taxas do preso
para honrar o valor da fiança diretamente ao tribunal, na hipótese do
desaparecimento do afiançado - permanecem presos, mesmo quando
se mostre desnecessária ou abusiva a prisão provisória. O mais inusita
do, porém, é que, dentro desse sistema monetário de administrar a jus
tiça criminal, o dinheiro, e não a racional avaliação da necessidade da
custódia, acaba por determinar a soltura ou a manutenção do acusado
no cárcere (NEUBAUER, 1996, Capítulo 10).
Na América Latina a situação é também preocupante. Estudo
comparativo realizado no início da década de 80 sobre o número de pri
sões provisórias em países latino-americanos de formação romano-ger-
mímica (CARRANZA, 1983) informa que a média de encarceramento
provisório nesses países era de 68,47% sobre o total de pessoas presas.
No final da primeira década do Século XXI a situação nos paí
ses da América Latina não sofreu alterações significativas, como se
depreende do quadro abaixo, a mostrar o número de presos provisórios
em relação ao total de encarcerados:
1 Bolívia 78.7%
2 Paraguai 71.2%
3 Uruguai 66.4%
4 Venezuela 66.2%
5 Peru 59.6%
6 Argentina 57.6%
7 Suriname c.55%
8 Equador 44.4%
9 Guiana c.41%
10 Brasil 36.9%
11 Colômbia 30.8%
12 Chile 20.3%
hKp://vmw.priKrn»tuii«vor|/in/ci/wcdibrwr/wpt)^suH,php?«jefl==wnirhamSa:ateSDrv=wh_precml
Outra nítida manifestação da não incidência do princípio da
excepcionalidade da prisão cautelar é a previsão, em alguns ordena
mentos processuais penais do século XX, do instituto da prisão preven
tiva obrigatória, cabível para responder a determinados crimes, mais
gravemente repudiados pela comunhão social.
Exemplos históricos nos dão os Códigos de Processo Penal italia
no, de 1930, e brasileiro, de 1941, que, para crimes mais gravemente
apenados, previam a automática decretação da custódia preventiva,
com proibição de liberdade provisória, mesmo após sentença absolutó-
ria de primeiro grau.!í
Curiosamente, a abolição dessa modalidade automática de prisão
preventiva ocorreu, no Brasil, em pleno regime autoritário, em 1967.
Todavia, manteve-se no Código original a ideia de que a liberdade
concedida ao acusado, para substituir prisão cautelar válida, sujeita-
se a vínculos e obrigações que a tornam precária, passível a qualquer
momento de perder sua eficácia - o que justificaria o adjetivo de provi
sória - , restabelecendo-se a segregação ad custodiam.
Não foi por outro motivo que no sistema processual penal intro
duzido na Itália em 1988 suprimiu-se o adjetivo “provisória11 do subs
tantivo “liberdade", por seu caráter estigmatizante e conceitualmente
equivocado. Considerou o legislador reformista que qualquer denomi
nação à liberdade de quem é solto por carência de exigências cautelares
seria inoportuna, pois, sendo fisiológica a liberdade de quem é simples
13 Emblemático, a esse respeito, o que ocorreu no mais famoso caso de erro judiciário
do Brasil, o “Caso dos Irmãos Naves”. Após terem sido absolvidos, com justiça, pelo
Tribunal do Júri de Araguari, em face da acusação de homicídio de um comerciante que
anos depois foi encontrado vivo, os irmãos Sebastião e Joaquim Naves, mantidos presos
desde o início das investigações e mesmo após a absolvição de primeiro grau, vieram a
ser condenados pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (não havia, então, a soberania
do veredicto), tendo ambos cumprido, por mais de S anos, a pena privativa de liberdade
que lhes fora imposta em grau de recurso (inicialmente a 25 anos e 6 meses de reclusão,
depois reduzida a 16). Um dos irmãos, Joaquim, morreu logo após obter a condicional, e
o outro. Sebastião, somente em 1960, após 23 anos de suplícios e humilhações, obteve,
após uma batalha judicial, o direito a uma indenização para si e para os herdeiros do
irmão (ALAMY FILHO, 1993, pourm).
mente acusado em um processo penal, “o anormal é estar sob custódia”
(CORDERO, 1991, p. 440).
No Brasil, o adjetivo “provisória” acrescido ao vocábulo “liberda
de” também é criticado por parte da doutrina, pois denota uma ideia
de excepcionalidade da liberdade, quando, na verdade, a exceção é a
prisão. O uso do termo “provisória” se justificaria no sistema original
do Código de Processo Penal de 1941, como, de resto, no período que
antecedeu tal diploma, quando “a prisão em flagrante autorizava o juízo
de antecipação da responsabilidade penal", de modo a caracterizar a
liberdade como meramente provisória, porquanto, ao final do processo,
o acusado posto em liberdade provavelmente perderia o status libertatis
(PACCELI, 2004, p. 489).
Nada mudou, nesse aspecto, na recente reforma legislativa, por
quanto a Lei nc 12.403/11 continua a empregar tal expressão com sig
nificado equívoco. De fato, o artigo 310, III e seu parágrafo único, e o
artigo 321, mantêm a expressão “liberdade provisória”, instituto que
será mais adiante analisado.
Sem embargo, a nova redação dada aos artigos que compõem o
Título IX do Código de Processo Penal deixa mais clara a exigência
de que a prisão preventiva, por ser a medida mais extremada (extrema
ratio) entre todas as cautelares pessoais, só deve ser imposta ao indi
ciado ou acusado quando outras medidas, agora elencadas no artigo
319 do CPFJ se mostrarem inadequadas ou insuficientes às exigências
cautelares.
Exemplos dessa opção normativa nos dá a nova redação do
artigo 282, tanto pelo § 4C (que fala em decretar a prisão preventi
va “em último caso"), quanto pelo § 62 (que fala da decretação da
preventiva quando não cabível sua substituição por outra medida
cautelar); também se pode extrair a característica da excepcionali
dade da prisão preventiva do inciso II do novo artigo 310 do CPP
que condiciona a conversão da prisão em flagrante em preventiva
ã constatação de que são inadequadas ou insuficientes as medidas
cautelares diversas da prisão.
1.6. Legalidade e Jurisdicionalidade
1.7. Provisoriedade
16 Ver, sobre o tema, de nossa autoria, 60 dias de prisão temporária: é razoável! (2004)-
samente, de três em três meses, ao reexame da subsistência dos pressupostos
daquela, decidindo se ela é de manter ou deve ser substituída ou revogada.”
Dispositivo nesse sentido constava do § 7° do artigo 282 do Subs
titutivo do Senado ao Projeto n. 4.208/01, impondo ao magistrado o
reexame obrigatório da cautela a cada 60 dias. Porém, ao retornar o
projeto para a Câmara dos Deputados, rejeitou-se o acréscimo de tal
dispositivo à sua versão original, recuo que acabou se refletindo na con
seqüente Lei ns 12.403/11.
1.8. Motivação
Essa tem sido, aliás, a percepção dos tribunais pátrios, que, após
um longo período de tolerância das prisões que decorrem do simples fato
de ser alguém, portador de maus antecedentes, pronunciado ou conde
nado por crime inafiançável, passaram a assentar que, independente
mente da gravidade do crime imputado ao réu pronunciado ou conde
nado, e mesmo diante dos seus maus antecedentes, a prisão decorrente
de pronúncia ou sentença penal condenatória recorrível - antes da
eliminação de ambas pela reforma legislativa de 2008 - somente seria
legitima se evidenciada a necessidade concreta da cautela, à luz dos
parâmetros estabelecidos no artigo 312 do Código de Processo Penal.
Ao decidir acerca da prisão cautelar de indiciado ou acusado, a auto
ridade judiciária competente deve, portanto, indicar os fundamentos fáti-
cos e jurídicos que alicerçam sua decisão, cuidando para explicitar:
1.9. Proporcionalidade
17 Com a Lei n. 12.124, de 5 de maio dle 2010, que deu nova redação ao parágrafo único
do artigo 110 do Código Penal, dispondo que a prescrição retroativa não pode ter por
termo inicial “data anterior à da denúncia ou queixa", não mais se sustenta a possibili
dade de arquivamento de inquéritos policiais utilizando como justificativa a falta de uti
lidade processual em razão cU eventual prescrição retroativa da pena a sor futuramente
concretizada em sentença.
317 prevê as circunstâncias que justificam a revogação da prisão (excar-
celación): l e) na hipótese em que há isenção de prisão; 2e) quando o
imputado houver cumprido em prisão preventiva o máximo da pena
prevista para o crime objeto da ação; 3Q) quando o imputado houver
cumprido em prisão preventiva a pena solicitada pelo Ministério Público
que, à primeira vista, resultar adequada; 4a) quando o imputado houver
cumprido a pena imposta na sentença ainda sujeita a recurso; 5Q) quando
0 imputado houver cumprido em prisão preventiva um prazo que, em caso
de condenação, permitiria o benefício da liberdade condicional.
No mesmo sentido o artigo 275, itens 2 e 2.bis, do Código de
Processo Penal da Itália:
18 Não se pode diíer que o processo penal persiga uma finalidade de defesa social, porém
6 inegável que, como estrutura de atuação da lei penal substantiva, também o processo,
ainda que de modo indireto, por meio da sentença condenatória, acabe absorvendo
uma finalidade de defesa social. (GREVI, 2000, p. 11)
análise favorável das circunstâncias, autorizar o condenado a iniciar o
cumprimento da pena em regime semiaberto.
Nesta segunda hipótese, em que pese respeitável entendimento
doutrinário contrário (LOPES JR, 2011, p. 69; RANGEL, 2004, inter
alia), não vislumbramos incompatibilidade entre o regime semiaberto e
a prisão cautelar, visto que, a par das diferenças de fundamento de uma
e outra prisão, o regime intermediário se inicia com o recolhimento do
condenado a um estabelecimento prisional, que somente passa a gozar
de benefícios extramuros (saídas temporárias, trabalho externo, etc),
com a análise objetiva e subjetiva dos requisitos previstos em lei, por
decisão do Juízo da Execução Penal.
É dizer, quando alguém é condenado a cumprir pena no regime
semiaberto, significa que será recolhido ao cárcere e que, somente
se cumprir os requisitos legais (por exemplo, bom comportamento
e proposta de emprego), poderá deixar o presídio durante o dia e
retornar à noite.19
Quanto ã primeira hipótese acima indicada - prisão cautelar im-
posta a acusado cuja pena privativa de liberdade provavelmente será
convertida em restritiva de direitos - entendemos que, em caráter mui
to excepcional, diante da gravidade concreta do caso e da inexistência
de outro meio para acautelar o bem (a vida da vítima, por exemplo)
ameaçado pela liberdade do réu, a prisão provisória será o único meio
idôneo, necessário e proporcional para satisfazer as exigências cautela
res do caso sob exame judicial.
Um bom exemplo disso ocorre nos crimes cometidos contra a mu
lher e contra a criança, em contexto de violência doméstica, drama
familiar que a Constituição da República, em seus artigos 226, § 8o e
zi Para conferir a aplicação dessas ideias a um caso concreto, sugere-se a leitura do pare
cer que lançamos no Habeas Corpus nB 3.820-4, julgado pelo Tribunal de Justiça do DF
e Territórios, em que discorremos com maior vagar sobre os malefícios da tardia presta
ção jurisdicional (SCHIETTI, 2004, p. 201).
ta das autoridades responsáveis pela condução do processo, sejam elas
administrativas ou judiciais22 (PAES, 1997, p. 230).
Como observa BERTOLINO (1986, p. 79) “...não é de modo al
gum razoável que o processo penal se prolongue mais do que o necessá
rio para o cumprimento de seus fins próprios, alongamento que, defini
tivamente, incide sobre o imputado e sobre seus legítimos direitos a que
se defina sua situação frente à função penal do Estado”.
O tema acabou sensibilizando o Congresso Nacional, que apro
vou reforma da Constituição, fazendo inserir, por meio da Emenda
Constitucional ne 45/2004, um inciso a mais no artigo 5S, § 2S, da nos
sa Carta Magna, que passou a prever que "a todos, no âmbito judicial
e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os
meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (inciso LXXVIII).
Embora a referência seja mais voltada para a duração do processo,
é de incluir-se também a garantia de que ninguém possa ser mantido
preso, durante o processo, além do prazo razoável, seja ele definido por
lei, seja ele alcançado por critério de ponderação dos interesses postos
em confronto dialético. É dizer, todos - e aqui a garantia não se limita
apenas ao indivíduo acusado - têm o direito de que o processo se deci
da em prazo razoável e também o direito de não serem mantidos presos
por prazo irrazoável.
No que toca à prisão de natureza cautelar, portanto, impõe obser
var que:
22 Esse alerta nos remete a TOSTES MALTA, quando dií que “ordenada a prisão, cuide-
-se da celeridade do processo, lembrando-se o magistrado que as suas horas de lazer são
para odetido horas de cativeiro" (1935, p. 22).
to ad custodiam se extinto ou significativamente enfraquecido
o motivo ou justificativa que autorizou sua decretação.
1- a prisão do acusado, após o trânsito em julgado da sentença
condenatória, não deve mais persistir com a qualificação de
cautelar, instrumental, porquanto, formado o título executi
vo judicial, a privação da liberdade do sentenciado passa a
revestir-se de natureza penal, punitiva.
23 Para aqueles que se insurgem contra o instituto da prisão temporária por acreditarem
que se cuida, na verdade, de uma legalização da odiosa e de triste memória ‘prisão para
averiguações' - tão comum nos períodos de regime político autoritário - , é interessan
te recordar que, desde meados do Século XIX se nutria a preocupação com o abuso
policial consistente em deter pessoas suspeitas sem o necessário amparo legal. Dizia o
Ministro da Justiça Francisco José Furtado, acerca dos Avisos de 2 de janeiro de L865,
de 27 de abril de 1888 e de 3 de julho de 1889 - que admitiam expressamente tal ilegalida
de - que “as prisões pelo motivo vago de 'indagações policiais' são manifestamente ilegais,
porquanto, ou O indivíduo está indicado em algum crime inafiançável, e nesse caso se lhe
deve declarar o crime que lhe é imputado, ou não está, e a autoridade não pode prendê-lo
antes de culpa formada sem ofensa das leis citadas" (SIQUEIRA, 1924, p. 125).
É sabido, conforme já exposto, que a palavra-chave para o uso e a
manutenção de qualquer prisão cautelar é a sua efetiva necessidãde, que
traz consigo as ideias correlatas da idoneidade da cautela e proporcio
nalidade dos meios empregados em relação aos fins perseguidos.
Se a decretação da prisão temporária é necessária e idônea para
o sucesso das investigações policiais, e razoável, ante a ponderação dos
interesses em conflito, a custódia cautelar do indiciado pela prática de
um dos crimes elencados no inc. III do § l 2 da Lei 7.960/89, a sua
manutenção se condicionará à contínua presença daqueles requisitos
legais de que já falamos.-'1
Logo, sendo necessária a prisão do indiciado para que, v.g,, seja
ele interrogado, identificado e reconhecido pela vítima, não mais pode
perdurar a sua custódia se aqueles atos já tenham sido realizados, con
figurando-se, pois, como eventualmente excessivo 0 prazo de 5 dias
(e, afoniori, 10, 30 ou 60 dias) para a conclusão das investigações que
inicialmente justificaram a prisão pré-cautelar.25
Admitindo-se, por conseguinte, que a decretação da prisão tem-
porária por 5 dias possa ser, em alguns casos, necessária, ante a even
tual possibilidade de que tal prazo seja proporcional aos objetivos que
a medida visa a atingir,26 não há como negar que, no tocante à prisão
quanto à facilidade de seu controle: uma zona de certeza positiva, "dentro da qual as
medidas se consideram constitucionalmente aílmiss(veis, porque resulta claro que não
infringem o princípio de proporcionalidade”; uma zona de certeza negativa, que com
preende “aquelas medidas cuja desproporção é evidente”; e a zona de incerteza, em que
se agrupam “as ingerências cujo respeito por dito princtpio é duvidoso".
27 Entendemos que a prisão preventiva pode ser decretada a qualquer retupo e grau de
jurisdição, não se aplicando a restrição imposta no art. 311 do CPfj explicável, confor
me bem observado por PACELLI DE OLIVEIRA (2004, p. 538), em virtude do sistema
original do Código de 1941, que determinava o recolhimento do réu à prisão como
efeito automático da sentença condenatória. Assim, na hipótese de não ter sido preso
preventivamente até o encerramento da instrução criminal (art. 311), o acusado passa
ria por tal desdita quando viesse a ser condenado por crime inafiançável, ou afiançável
enquanto não prestada a fiança (art 3 9 3 ,1).
Detalhe importantíssimo a sublinhar, todavia, é que esses prazos
são contabilizados apenas até o encerramento da instrução,28 o que aca-
ba por permitir que, a partir de então, seja desconsiderado o excesso de
prazo dos atos processuais, sujeitando-se o acusado a permanecer preso até
que eventualmente se entenda, por mera liberalidade do tribunal, não mais
razoável ou justificável a manutenção do encarceramento cautelar.
Vale lembrar que em alguns países a lei indica, para cada fase da
persecução penal (investigação, instrução e julgamento em primeiro
grau, recursos), um prazo máximo de duração da cautela, além do prazo
global; em outros se trabalha apenas com prazos globais máximos.
Na Itália, por exemplo, os prazos de duração da prisão provisória
são aumentados de acordo com a gravidade do crime, oscilando desde
três meses, quando se trate de delito para o qual a lei estabeleça a pena
de reclusão não superior a seis anos, até seis anos, na hipótese de crime
cuja pena seja de prisão perpétua ou de reclusão superior a vinte anos
(artigo 303 do Codice di Procedura Penale), sendo de relevar que esses
prazos são contabilizados, autonomamente, em cada uma das sucessi-
vas etapas da persecução penal.
Também em Portugal adota-se tal previsão escalonada por fases
da persecução penal. O artigo 215° do Código de Processo Penal esta
belece que a prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início,
tiverem decorrido seis meses sem que tenha sido deduzida acusação;
dez meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida
decisão instrutória; dezoito meses sem que tenha havido condenação
em primeira instância e dois anos sem que tenha havido condenação
com trânsito em julgado. Esses prazos podem ser prorrogados, na forma
dos itens 2 e 3 do artigo em comento, até o limite de quatro anos, para
28 Sobre isso dispõem as súmulas 21 e 52 do STJ, iwbts: “Pronunciado o réu, fica supera
da a alegação do constrangimento ilegal da prisão por excesso de prazo na instrução"
(Sum. 21); “EncerTada a instrução criminal, fica superada a alegação de constrangi'
mento por excesso de prazo" (Sum. 52). Essas súmulas, porém, têm sofrido abranda
mento por vários julgados, do próprio ST| e de outros tribunais, notadamente após a
entrada em vigor da. EC 45/2004, que acrescentou ao art. 59 o inciso LXXVIII, assim
redigido: “ a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável
duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”
alguns crimes que o próprio CPR em seu artigo 209, especifica, desde
que haja complexidade relativa ao número de acusados ou de ofendi
dos, ou em razão do caráter organizado do crime.
Na Espanha (artigo 504 da Ley de Enjuiciamiento Criminal), os pra
zos oscilam de três meses, para os crimes mais leves, até dois anos, para
aqueles punidos com pena superior a três anos, podendo haver prorro
gações que levem 0 prazo máximo ao total de quatro anos.
Na Alemanha (§ 121 da StPO), prevê-se um prazo bem menor,
de seis meses, para a duração máxima da prisão provisória, deixando-se
aberta, porém, a possibilidade de ultrapassar-se tal prazo por dificulda
de particular, pela complexidade das investigações ou por “outro moti
vo importante".
Merece referência especial a solução radical adotada pelo legis
lador do Paraguai, que, ao editar o novo Código de Processo Penal em
2000, inseriu, em seu artigo 141, que trata da “Demora nas medidas
cautelares pessoais”, a previsão de que,
30 Para uma melhor compreensão da evolução dos modelos de persecução penal (acu-
satârio, ínquisitivo e mista ou reformado), e a situação atual no mundo e, mais parti
cularmente, na América Latina, consultem-se os ensaios de MAIER (1996); MAIER,
KAI AMBOS e JAN WOISCHNIK (2000); GRINOVER (abr./jun. 94), CHOUKR
(2000); MENDES DE ALMEIDA (1973); PRADO (2001); LOPES JR (2006; 2011) e,
particularmente, ANDRADE (2009).
31 Nos casos em que a lei faz menção à representação da autoridade policial (artigos 282,
§ 29 e 311 do CPP e artigo 2a, caput, da Lei 7.960/89), deve-se entender tal ato como
mero encaminhamento de uma opinião policial, porquanto somente pode haver reque
rimento, no sentido próprio da palavra, por quem é parte na relação processual e, por
tanto, detém legitimidade ad causam.
Em linhas gerais, foi essa percepção que engendrou a modificação
legislativa em alguns códigos, a exemplo do que ocorreu nos Códigos
de Processo Penal da Espanha e da França, países que, sublinhe-se,
seguem ainda uma tradição mais próxima do modelo misto ou refor
mado, nos moldes do código napoleônico de 1808. Como se sabe, após
breve período em que se tentou introduzir na França republicana pós-revo-
lução o sistema utilizado nos países anglo-saxões, o pêndulo que coordena
as ações da história encontrou seu ponto de equilíbrio - na perspectiva do
mundo de então - para adotar um formato de sistema misto, do qual o “jui
zado de instrução" passou a ser a instituição mais representativa.
Na Espanha, é de mencionar que o modelo originalmente previsto
na Ley de Enjuiciamiento Criminai de 1882 é essencialmente inquisitó-
rio, pois, similarmente ao congênere francês, se estrutura sobre uma
espécie de juizado de instrução, restando claro que as funções de instruir
a causa e de julgá-la são acometidas a magistrados distintos. Tal mode
lo, porém, foi levado a uma configuração ainda mais inquisitorial em
1967, quando a LO 3/1967 passou a atribuir a instrução preliminar e o
julgamento da causa a um mesmo juiz. Somente em 1988, por meio de
uma decisão do Tribunal Constitucional (Sentença 145/1988 do TC),
reconheceu-se a inconstitucionalidade daquela modificação legislativa,
em face da lesão ao direito a um juiz imparcial.
Logo, nada mais natural do que, serodiamente é bem verdade,
alterar-se a legislação ao propósito de limitar a função inquisitiva do
juiz de instrução. Na Espanha, isso foi feito mediante a nova redação
dada ao artigo 505 da LEC, estabelecendo, como requisito prévio para a
decretação da prisão provisória, a necessidade de requerimento expres
so nesse sentido, pela parte acusadora; na França, 0 enfraquecimento
do modelo misto se deu pela recente criação de um juiz das liberdades e
da detenção, distinto do juiz de instrução, conforme será mencionado no
próximo item.
A despeito dessa tendência, quer-nos parecer acertada a posição
daqueles que fazem uma importante distinção entre o papel exercido
pelo juiz durante a fase pré-processual da persecução penal, onde ainda
não há partes, não há acusação, não há contraditório efetivo e pleno,
e o papel exercido pelo juiz durante a ação penal, quando já se encon
tra regularmente instaurada a relação processual, mediante acusação
formulada pelo órgão a tanto legitimado (ou pela própria vítima, nos
crimes de ação penal privada).
Durante as investigações normalmente consubstanciadas em atos
de um inquérito policial - mas não necessariamente por esse instru
mento, haja vista a quantidade enorme de colheita de elementos infor
mativos por outros meios e por outras instituições que não a Polícia
Civil ou a Polícia Federal - é imperioso ter-se como certo que ainda
não existe, nessa fase da persecução penal, uma acusação formalizada
contra o suspeito.
Mesmo nas hipóteses em que já houve identificação do suposto
autor da infração penal, quer esteja indiciado, quer não, é incorreto
afirmar que ele se encontra em posição jurídica de “acusado”, Quando
sofre algum tipo de restrição d sua liberdade, pode-se até chamá-lo,
como alude TORNAGHI (1959, p. 158), um quasi-imputacus, mas ain
da não há, por parte do Estado, qualquer acusação formal, que reclame a
intervenção judicial além da necessária para regular essas situações ineren
tes às providências cautelares que configurem reserva de jurisdição.
Isso implica dizer que o juiz, durante a tramitação da investigação
criminal, desempenha um papel de garantidor dos direitos fundamen
tais do investigado, diligenciando para que o Estado-Administração,
por meio da Polícia ou do próprio Ministério Público, não adentre a
esfera de liberdade jurídica do indivíduo além do que é permitido na
Constituição e nas leis. O juiz, assim, protege o iuj Ubertatis do inves
tigado tanto quando denega pedido de prisão cautelar como quando
a concede, já que o faz seguindo regras e princípios que limitam a sua
atividade, garantindo ao sujeito passivo da medida cautelar que não
sofrerá nenhuma restrição ao seu direito mais do que permitido pela lei.
No Brasil, por força de um código erguido sob a regência da Cons
tituição de 1937, chamada “carinhosamente1’ por TORNAGHI (1988,
p. 19) de “Portaria de 1937”, não temos essa figura do juiz bem defini
da, de modo que o magistrado que recebe a denúncia, instrui a causa e
profere a sentença costuma ser o mesmo que “presidiu” as investigações
policiais. Em outros países, com legislações mais modernas, separam-se
tais funções, de acordo com a etapa da persecução penal: em Portugal,
cabe ao juiz de instrução (o nome é equívoco, pois sugere um modelo - o
juizado de instrução-já abandonado naquele país) interrogar o argui-
do detido, aplicar medida de coação e medidas cautelares ctc. (artigos
268 e 269 do CPP português); na Itália, também se defere ao giudice
per le indagini preliminari (GIP) similares funções (artigo 328 do CPP
italiano); de igual modo, na França, ao juge des libertés et d ela détention
(artigo 137-1 do CPP francês), e assim o é em vários outros países.
Pois então, na fase das investigações destoa das funções do magis
trado exercer qualquer atividade que possa caracterizar um auxílio à
acusação, um reforço à atividade investigatória estatal, um interesse em
obter provas que possam servir ao titular da ação penal para provocar
a jurisdição. O que lhe compete, repita-se, é, eventualmente, permitir
que a parte interessada tenha acesso a fontes de prova - autorizando,
por exemplo, busca e apreensão de documentos ou do próprio corpo de
delito - ou decretar a supressão provisória da liberdade do indiciado
como condição necessária e suficiente para que, em juízo de propor
cionalidade e em caráter excepcional e subsidiário, seja preservada a
prova, o resultado do processo ou a própria segurança da sociedade. E,
acima de tudo, ao juiz nessa fase da persecução penal cabe impedir vio
lações ilegais aos direitos do investigado.
Entretanto, uma vez provocada a jurisdição por denúncia do Mi
nistério Público ou queixa-crime do particular ofendido (ne procedat
iudex ex officio), passa a autoridade judiciária competente a deter
poderes inerentes à própria jurisdição penal, que, saliente-se, jamais
pode ser equiparada, em razão de suas inúmeras peculiaridades, à
jurisdição civil.n
32 Consultar, para uma abrangente compilação das peculiaridades que tomam o processo
penal merecedor de análise diferenciada em relaçfto ao processo civil, a obra de TEI
XEIRA GIORGIS (1991, especialmente o capftulo III).
No terreno das provas, por exemplo, o nosso sistema é claro em
permitir o uso de poderes instrutórios pelo juiz, na busca da verdade
processual, desde que o faça de modo equilibrado, imparcial e sujeito
a limites de várias ordens. Essa é a ideia da “inquisitividade” da ação
do juiz —que não se confunde com o “modelo inquisitivo" de processo
penal, em desuso - a qual “... não visa excluir a atividade processual das
panes, mas tão-só suprir-lhes a falta" (TUCCI, 1986, p. 150).
Se o processo penal modemo não mais pode abrigar a figura do
juiz com poderes hipertrofiados, “sufocador de qualquer atuação dos
sujeitos parciais na direção da instrução”, muito menos se há de tolerar
que o magistrado se tome um “refém dos sujeitos processuais parciais,
senão no processo civil, com muito mais razão no âmbito processual
penal” (ZILLI, 2003, p. 31).35
Daí por que é o juiz autorizado pelo Código de Processo Penal a
determinar, ex ofjicio, a realização de novo interrogatório (artigo 196), a
oitiva do ofendido (artigo 201) e de testemunhas (artigo 209), a busca e
apreensão (artigo 242) ou simplesmente a juntada de documentos (ar
tigo 234), podendo, enfim, realizar quaisquer diligências ao propósito
de dirimir dúvida sobre ponto relevante (artigo 156, II c/c 404), mesmo
já estando encerrada a fase probatória.’'1
É de notar que toda a atividade judicial relativa à prova é desen
volvida no curso da ação penal, até porque não compete ao juiz, duran-
te o inquérito policial, conduzir a investigação como se fosse delegado
33 Releva enfatizar que mesmo em países com sistemas de cariz acusatóriu não se proíbe o
juiz de determinar, ex officio, a produção de provas durante a ação penal. Exemplo con
tundente nos dão os Estados Unidos, pais em que o sistema acusatório é marcadamcnte
adversarial, mas onde, nem por isso, se veda ao juii tal atividade, como o demonstra a
regra 614 da lei federal de 2010 que regula as provas no processo penal (Federal Rules of
Evidence). Com efeito, a Ride 614 (Calling and Interrogarion of Witnesses by Court) dis
põe que "o Tribunal pode, por sua própria iniciativa ou por sugestão de uma parte, chamar
testemunhas, e todas as partes podem reperguntar as testemunhas assim chamadas” (The
court may, on ics own motion or ar the suggestion of a party, call witnesses, and afl parties
are entided to cross-examine witnesses thus called.)
34 A este respeito, também merecem consulta BEDAQUE (1991), e, com maior proximidade
ao afirmado acima, GRTNOVER (1999) e ZILLI (2003). Para uma crfdca mais acentuada
aos que não admitem o uso de poderes judiciais instrutórios, ver ANDRADE (2009).
de polícia ou promotor de justiça. Não faria o menor sentido o compor
tamento do juiz que, durante o inquérito policial, passasse a examinar
os autos para determinar, sem provocação do Ministério Público ou da
autoridade policial, essa ou aquela providência de cunho investigató-
rio’5. Seria incompatível com o sistema entre nós vigente e comprome
teria a imparcialidade judicial a decisão que, tomada ex officio, deter
minasse a oitiva de determinada pessoa, a busca e apreensão de algum
documento, a interceptação telefônica etc.w 57
No que diz com o tema objeto deste estudo, o raciocínio é similar:
não pode o juiz adotar, sem provocação da parte legitimada, qualquer
providência de natureza cautelar no curso das investigações.
Situação bem diversa há de ser a do juiz que, no curso da ação
penal, defronta-se com situações que lhe exijam a tomada de deci
sões, independentemente da manifestação prévia de alguma das partes.
Com o propósito de exercitar a jurisdição penal - que, sublinhe-se, não
interessa tão-somente às partes, mas a toda coletividade - e oferecer
uma prestação jurisdicional que corresponda aos anseios de justiça e
que atenda aos interesses superiores que subjazem à persecução penal
(liberdade, honra, dignidade da pessoa humana etc.), o juiz deve ser
41 “Article 145. Le juge des libertés et de la détention saisi par une ordonnance du juge
d'instnjction teudant au placemenc en détention de la personnc mise en examen fait
comparaítre cette personne devant lui, assistée de son avocat si celui-ci a déjà été
désigné, et procède confuimément aux dispositions du prísent article." (O juiz das
liberdades e da detenção, por ordem do juiz de instrução dirigida à detenção da pessoa
acusada, farí comparecer essa pessoa diante de si, assistida por seu advogado, se já
estiver designado, e procederá em conformidade com as disposições do presente artigo.)
gado, e, após breve análise sobre a viabilidade da medida cautelar, lhe
comunica a intenção de decretar sua detenção provisória, indagando
se deseja um prazo para preparar sua defesa, ou se aceita que a decisão
(de decretar ou não a cautela) seja tomada, após um debate contraditó
rio na mesma audiência. Se o imputado solicitar a concessão de prazo,
o juiz pode determinar a “incarcération" pelo prazo máximo de quatro
dias, findos os quais se realiza a audiência que fora suspensa (AIMO-
NETTO, 2002, p. 133).
A Espanha seguiu o exemplo francês, adotando mecanismo simi
lar. Confira-se, a esse respeito, o que reza o artigo 505 da Ley de Enjui
ciamiento Criminai, com as modificações introduzidas pela LO 13/2003,
de 24 de outubro:
1 Para uma referência aos casos julgados pelo TEDH desde 1961 até 1985, consulte-se
V1LAR (1988, pp. 160-162).
por razões humanitárias e sociais, o uso das prisões provisórias nos paí
ses ao mínimo compatível com os interesses da Jusciça, mediante os
seguintes princípios:
CAPÍTULO V
DAS OUTRAS MEDIDAS CAUTELARES
3 Não há como deixar sem registro que a medida cautelar em apreço - proibição de
ausentar-se do País, com recitada do passaporte do indiciado ou acusado - não foi
incluída no rol das medidas cautelares do artigo 319. como constava da versão inicial
do PL 4.201/01. Esse cochilo do legislador possivelmente abrirá uma brecha para ques
tionamentos acerca da admissibilidade de tal providência cautelar.
cometidos por outros presos ou por carcereiros, transmissão de doenças
infecto-contagiosas, criminalização do preso, estigmatização etc).
E mais. A cabeça do artigo 282 do CPP deixa claro que “as medi
das cautelares previstas neste Título [o que inclui, desse modo, tanto
a prisão quanto as outras medidas cautelares e a liberdade provisória]
deverão ser aplicadas observando-se a:
J
de usar tais medidas quando não estiverem mais presentes os funda
mentos da prisão preventiva. (...) A medida alternativa somente deverá
ser utilizada quando perfeitamente cabível a prisão preventiva, mas, em
razão da proporcionalidade, houver uma outra restrição menos onerosa
que sirva para tutelar aquela situação.
Decretar a prisão preventiva ou determinar o recolhimento domi-
ciliar noturno tem, na sua ratio essendi, igual preocupação em proteger o
processo, a jurisdição ou a sociedade, variando apenas a quantidade - se
é que assim podemos nos referir - da liberdade retirada do âmbito de
disponibilidade do investigado ou acusado.
Isso eqüivale a dizer que os motivos justificadores da prisão pre
ventiva são os mesmos que legitimam a determinação do recolhimento
noturno ou qualquer outra das medidas cautelares a que alude o artigo
319 do CPP sendo equivocado condicionar a escolha de uma dessas
últimas ao não cabimento da prisão preventiva.
Na verdade, a prisão preventiva é, em princípio, cabível, mas a sua
decretação não é necessária, porque, em avaliação judicial concreta e
razoável, devidamente motivada, considera-se suficiente para produzir
o mesmo resultado a adoção de medida cautelar menos gravosa.
Semelhante entendimento é esposado por BARREIROS (apud
MAIA GONÇALVES, 1991, p. 301), quando salienta que qualquer
medida cautelar de natureza pessoal toma como parâmetro as mesmas
circunstâncias que justificam a decretação da prisão preventiva e algo
mais. “E esse algo mais deverá ocorrer porque as circunstâncias que
acabamos de elencar fas que, no Direito lusitano, autorizam a preven
tiva] são aquelas ocorrências sem as quais nenhuma medida coacti-
va - por mais benigna que se configure - poderá ser decretada; para
a prisão preventiva mais exigente, muito mais exigente, deverá ser o
intérprete."
A ideia toma-se ainda mais clara em sistemas - como o alemão
- em que o dispositivo indica o uso da medida cautelar alternativa à pri
são como uma medida de “suspensão’1da execução da ordem de prisão.
Vejamos o que prevê o § 116 da StPO:
§ 116. O juiz suspende a execução de uma ordem de detenção
que somente está justificada por perigo de fuga quando medidas
menos radicais atendam suficientemente ao prognóstico de que o
fim da prisão preventiva poderá também ser alcançado por elas.
I Nesse ponto o PLS 156/09, aprovado no Senado Federal, foi bem claro, ao prever, no
artigo 567, § 1B, verbis; “No cuiso do processo, a fiança poderá ser exigida do réu solto,
se a medida for necessária para assegurar o seu comparecímento, preservar o regular
andamento do feito ou, ainda, como alremativa cautelar à prisão preventiva”. Aliás, o
Código de Processo Criminal de Primeira Instância, de 1832, já previa, em seu artigo
106, que “A n. 106. Afiançada, pu depositada a quantia, será dado ao réo contramanda-
do para não ser preso, soitando-se immediatamente, quando o esteja." Observa, a pro
pósito, J. A. PIMENTA BUENO, que a fiança, na legislação imperial, era cabível “em
todo e qualquer estado da causa ou processo, esteja o réu preso ou solto, compareça por
si ou por procurador, penda a decisão da primeira instância ou já do ju(zo da apelação"
(1057, p. 109).
I - regularmente intimado para ato do processo, deixar de
comparecer, sem motivo justo;
II - deliberadamente praticar ato de obstrução ao andamento
do processo;
III - descumprir medida cautelar imposta cumulativamente
com a fiança;
IV - resistir injustificadamente a ordem judicial;
V - praticar nova infração penal dolosa.
Por sua vez, o artigo 343 do CPP reforça o caráter excepcional da prisão
preventiva, ao estabelecer que o quebramento injustificado da fiança impor
tará na perda de metade de seu valor, mas não implicará automática decreta
ção da cautela extrema, cabendo ao juiz "decidir sobre a imposição de outras
medidas cautelares ou, se for o caso, a decretação da prisão preventiva.”
Cuida-se de salutar providência, que visa a conferir maior efeti
vidade a uma medida que se apresenta como alternativa à prisão pre
ventiva. Com efeito, ao invés de somente impor ao afiançado, a par do
ônus financeiro, as obrigações indicadas nos artigos 327 e 328 do CPP
{comparecimento aos atos do inquérito e do processo, comunicação do
local onde estará hospedado, em caso de ausência por mais de oito dias
de sua residência, bem assim permissão judicial em caso dc mudança),
a novel legislação exige maior compromisso do afiançado com o bom
andamento do processo e com o seu próprio comportamento pessoal.
Por outra angulação, o afiançado não será mais recolhido ao cár
cere, de modo inexorável, ante o descumprimento de uma das obriga
ções elencadas nos artigos 327, 328 e 341 do CPFJ pois deverá o ma
gistrado avaliar se as medidas menos gravosas ainda disponíveis podem
prover de modo satisfatório as exigências cautelares do caso concreto.
IV - proibição de ausentar-se: da
Comarca quando a permanência seja
conveniente ou necessária para a X X
investigação ou instrução;
I X - monitoração eletrônica. X X X
Entrega do passaporte (CPR artigo 320) X X
Tal correlação não é integralmente fornecida pela lei, haja vista
que os incisos I, III, V e IX não fazem expressa referência à finalidade
das respectivas cautelas. De outra angulação, há certas medidas que re
clamam outras finalidades cautelares além da indicada expressamente.
Cite-se, como exemplo, a fiança, medida cautelar revigorada com
a Lei ne 12.403/11 e que passa a ter uma amplitude infinitamente maior
de aplicação.
Normalmente a fiança tem por objetivo principal assegurar o
comparecimento do afiançado aos atos do processo, sob a premissa de
que terá todo interesse de não descumprir tal obrigação para não perder
metade do valor depositado (artigo 343 do CPP). No entanto, como
também se incluem entre as causas de quebramento da fiança a prática
de nova infração penal dolosa (inciso V do artigo 341) e a não apresen-
taçáo do condenado para o início do cumprimento da pena definitiva
mente imposta - a implicar perda total da fiança (artigo 344) - pode-se
afirmar que a fiança não visa apenas assegurar o comparecimento a
atos do processo e evitar a obstrução do seu andamento, mas também
objetiva assegurar a aplicação da lei penal e evitar a prática de novos
crimes. Em outras palavras, a fiança atinge os três objetivos de toda
medida cautelar, indicados no inciso I do artigo 282 do CPP
Daí por que PACELLI DE OLIVEIRA (2011, p. 26) conclui que,
“desde que mantida a vinculação da fundamentação da cautelar às fi
nalidades genéricas de sua concessão (artigo 2 8 2 ,1 e II, CPP), nada im
pedirá a aplicação de qualquer uma delas, mesmo quando afastada da
definição legal de seu objetivo. Entendimento contrário, além de conduzir
a grave retomo a um arcaico positivismo legalista, em que se vê o legislador
como ser onipotente e incapaz de erros ou limitações, poderá justificar o
incremento e a preferência pela prisão preventiva, sempre que uma finali
dade cautelar não estiver contida na respectiva definição legal”.
Cumpre, por fim, notar que o inciso VIII do artigo 319 do CPP
alude ainda ao cabimento da fiança “em caso de resistência injustifica
da à ordem judicial”.
Nada mais obscuro. Se as duas outras justificativas previstas no
mesmo inciso (para assegurar o comparecimento a atos do processo e para
evitar a obstrução do seu andamento) se ajustam, ainda que com diferente
redação, a dois dos objetivos a que se refere o inciso I do artigo 282 do
CPFJ não se sabe, ao certo, o que pretendeu o legislador dizer no final
do inciso VIII do artigo 319 do mesmo codex.
Que tipo de ordem judicial seria essa? Se é uma ordem, certamen
te tem amparo legal e, em tal caso, a própria lei já prevê alguma sanção,
penal ou processual. Não nos parece constitucional utilizar-se a fian
ça para sancionar o investigado ou acusado porque deixou de cumprir
uma ordem judicial qualquer. Qual seria a cautelaridade dessa medida?
Em verdade, afigura-se tratar de uma medida punitiva, uma sanção, e
não é para isso, por óbvio, que serve a fiança.
Uma possibilidade aventada na doutrina (PACELLI DE OLIVEI
RA, 2011, p. 22) é a de que tenha o legislador estipulado um “reforço
de fundamentação quanto à necessidade do comparecimento obrigató
rio a todos os atos do processo e sempre que a tanto intimado, nos pre
cisos termos do artigo 327 e artigo 328, CPP” Ainda assim, não vemos
sentido algum na previsão legal.
4 Falar de sism ut cautelar no Direito Processual Penal brasileiro chega a ser quase uma
heresia jurídica, visto que o nosso Ctfdigo de Processo Penal pouco prima pela sistema-
tização de seu conteúdo, principalmente no tema das medidas cautelares. dispersas pelo
código sem a necessária coesão e unidade principiotógica características de um sistema.
p. 120) que o poder geral de cautela "é previsto na lei processual civil
[Art. 798 do CPC: Além dos procedimentos cautelares específicos, que
este Código regula no Capítulo II deste Livro, poderá o juiz determinar
as medidas provisórias que julgar adequadas, quando houver fundado
receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito
da outra lesão grave e de difícil reparação.] e o Código de Processo
Penal admite a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito
(art. 3a do CPP).
Outrossim, vale recordar que outras normas já preveem medidas
cautelares pessoais, como a que admite “a suspensão da permissão ou
da habilitação para dirigir veículo automotor, ou a proibição de sua
obtenção” (artigo 294, caput, da Lei ns 9.503/97) e a que permite o
deferimento de “medidas protetivas de urgência” à vítima de violência
doméstica (artigo 22 da Lei Maria da Penha, ns 11.340/06)5.
Bem a propósito do tema, é a própria Lei 11.340/06 que, logo
após prever essas medidas protetivas à mulher vítima de violência do
méstica, abre a possibilidade de serem aplicadas outras providências de
cunho cautelar, ao estabelecer, verbis:
5 Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar cuntra a mulhen nos
termos desta Líi, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou sepa
radamente, aí seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras: I - suspensão
da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos
termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro dc 2003; II - afastamento do lar, domicilio
ou local de convivência com a ofendida; III - proibição de determinadas condutas, en'
tre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando
o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus
familiares e restemunhas por qualquer meto de comunicação,' c) ireqiientação de de
terminados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; IV
- restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de aten
dimento muitidisciplinar ou serviço similar; V - prestação de alimentos provisionaís ou
provisórios.
Por conseguinte, cremos ser possível, para prover a exigência cau
telar do caso concreto, que se faça uso da analogia e se aplique medida
não prevista no Código de Processo Penal, desde que presente a mesma
ratb essendi da norma positivada em outro diploma (como, v.g., a que
justifica o inciso I do artigo 22 da Lei Maria da Penha); ou, então, que
se dê interpretação extensiva aos incisos que integram o artigo 319 do
CPP de modo a abranger situações que a mera literalidade do preceito
não pareça autorizar.
Um exemplo poderá clarear o argumento referente a esta última
hipótese: imaginemos que alguém seja acusado de haver praticado a
conduta tipificada no artigo 241-A do ECA, que pune, com pena de
reclusão de 3 a 6 anos de reclusão, além de multa, a conduta de “ofe
recer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar
por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou
telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de
sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente”.
Logo, trata-se de crime passível de decretação de prisão preventiva,
pois a pena máxima supera 4 (quatro) anos de reclusão. Em tal hipó
tese, não poderia o juiz natural da causa, atento aos critérios do artigo
282 do CPP - nomeadamente o que esclarece ser a prisão preventiva
uma medida cautelar que somente pode ser imposta “quando não for
cabível a sua substituição por outra medida cautelar” (artigo 282, § 6e
do CPP) - determinar a proibição de acesso à internet pelo acusado?
Ainda que a parte final do último dispositivo legal citado faça
alusão ao artigo 319 do CPE| não seria a providência alvitrada suficiente
para evitar a prática de novas infrações penais? Não seria tal medida
menos onerosa ao acusado do que a cautela extrema, que até poderia
ser decretada, porque preenchidos os requisitos legais?
A resposta a essas perguntas há de ser positiva, ou seja, poderá o
juiz proibir o acusado de ter acesso à internet. E ao fazê-lo invocará o
inciso II do artigo 319 do CPP como fundamento legal de sua decisão,
porque o “acesso a determinados lugares” pode, com um mínimo de
esforço interpretativo para dar atualidade e maior amplitude à letra da
lei, abranger também o acesso por meio da informática. Ou alguém
poderá duvidar que, com os recursos tecnológicos do mundo moder
no, uma pessoa pode estar virtualmente presente em qualquer lugar do
planeta?
Se, portanto, quem é acusado de distribuir ou divulgar material
relativo a sexo explícito ou pornografia infantil o faz “entrando” na
internet, bastará vedar seu acesso a esse "lugar", evitando o risco de no-
vas infrações sem, ao menos em um primeiro momento, ser necessário
recorrer à prisão preventiva.
Cremos, portanto, que não se poderá subtrair do julgador a possi
bilidade de fazer uso de seu poder geral de cautela, de forma excepcio
nal, tendo como objetivo evitar a prisão preventiva. Poderá o magistra
do, então, impor ao investigado ou acusado medida que, embora não
conste literalmente do rol positivado no artigo 319 do CPP seja prevista
em outra norma do ordenamento, ou possa ser considerada, por meio
de interpretação extensiva, abrangida na dicção de algum dos incisos
que compõem o elenco das cautelares pessoais diversas da prisão, pre
vistas no referido dispositivo.6
Vale registrar, ainda, que o Supremo Tribunal Federal admitiu, em
julgamento de Habeas Corpus, a possibilidade da utilização do poder
geral de cautela do juiz criminal. O julgado restou assim ementado:
PROCESSUAL PENAL. IMPOSIÇÃO DE CONDIÇÕES JU
DICIAIS (ALTERNATIVAS À PRISÃO PROCESSUAL). POSSI
BILIDADE. PODER GERAL DE CAUTELA. PONDERAÇÃO DE
INTERESSES. ART. 798, CPC; ART. 3o, CPC. 1. A questão jurídi
ca debatida neste habeas corpus consiste na possibilidade (ou não) da
imposição de condições ao paciente com a revogação da decisão que
6 Mais uma ve: remetemos o leitor ao Projeto de novo Código de Processo Penal, em
tramitação no Congresso Nacional, que incluiu, nas medidas cautelares pessoais, não
somente o bloqueio de endereço eletrônico na internet (art. 605), como, ainda, três
outras medidas não incluídas no rol do artigo 319 do atual CPP: suspensão da habilita
ção para dirigir veículo automotor, embarcação ou aeronave (artigo 598); suspensão do
registro de arma de fogo e da autorização para porte (artigo 603) e suspensão do poder
familiar (artigo 604).
decretou sua prisão preventiva 2. Houve a observância dos princípios e
regras constitucionais aplicáveis à matéria na decisão que condicionou
a revogação do decreto prisional ao cumprimento de certas condições
judicias. 3. Não há direito absoluto à liberdade de ir e vir (CR art. 5o,
XV) e, portanto, existem situações em que se faz necessária a ponde-
ração dos interesses em conflito na apreciação do caso concreto. 4. A
medida adotada na decisão impugnada tem clara natureza acautelató-
ria, inserindo-se no poder geral de cautela {CPC, art. 798; CPP art. 3o).
5. As condições impostas não maculam o princípio constitucional da
não-culpabilidade, como também não o fazem as prisões cautelares (ou
processuais). 6. Cuida-se de medida adotada com base no poder geral
de cautela, perfeitamente inserido no Direito brasileiro, não havendo
violação ao princípio da independência dos poderes (CF, art. 2o), tam
pouco malferimento à regra de competência privativa da União para
legislar sobre direito processual (CF, art. 22, I). 7. Ordem denegada.
HC 94147/RJ, Relatora Min. Ellen Gracie, J. 27/05/2008, p. DJe-107,
13-06-2008.
Capítulo VIII
a) pessoais, divididas em
a.l. prisões cautelares, ou seja, prisão preventiva (que pode
ser cumprida sob a forma de prisão domiciliar, nos moldes
do artigo 317 do CPP) e prisão temporária, regulada pela
Lei n- 7.960/89;
a.2. medidas cautelares diversas da prisão, previstas nos arti
gos 319 e 320 do CPP;
b) patrimoniais ou reais, consistentes nas medidas assecuratórias
de seqüestro (artigo 125), arresto (artigo 132) e hipoteca legal
(artigo 136);
c) instrutórias, relacionadas à obtenção de provas do crime em
caráter urgente, de que são exemplos a busca e apreensão
(artigo 240), o depoimento antecipado, ad perpetuam rei me~
moriam (artigo 225), os exames de corpo de delito (artigo
158), além da interceptação telefônica (Lei n- 9.296/96) e
dos meios operacionais para a prevenção e repressão de ações
praticadas por organizações criminosas de que cuida a Lei n2
9.034/95.
3. Da Prisão Temporária
3.1. Cabimento
1 Dissentimos, a propósito desse tema, da opinião extemada por NUCCI (2011, p. 10).
que identifica diferenças de graduação entre os medidas cautelares em relação à prisão
preventiva, chegando a afirmar que “não se exige prova segura da materialidade e in
dícios suficientes de autoria" para a decretação das medidas cautelares em geral, “tal
como se fosse uma prisão preventiva". No tocante à prisão temporária, sustenta haver
tão somente “um mínimo de provas em relação à existência do crime e de sua autoria,
mas em grau diminuído, quando confrontado com a prisão preventiva”. Não se mos
tra, segundo pensamos, defensável tal posicionamento, porquanto estabelece, a primi.
inferioridade qualitativa e quantitativa do juízo de verossimilhança sobre os elementos
informativos suficientes (ou náo) para lastrear uma medida cautelar tão drástica quan
to o é ü prisão temporária, a qual, vale lembrar, pode perdurar por até 60 dias se o crime
imputado ao investigado for considerado hediondo ou assemelhado.
circunstâncias poderá comprometer o êxito das investigações e que
somente a prisão poderá obviar esse risco. É dizer, o inciso II deve ser
lido como se estivesse incluído na imprescindibilidade do inciso I, pois
“apenas reforça o fundamento da prisão” (LOPES JR, 2011, p. 149).
3.2. Prazo
2 Neste sentido, a Constituição da Espanha, cujo art. 17.2 determina que “la detenciân
preventiva no podrá durar más de! tiempo estrictamentc necesario para la rcaliración
de las averiguaciones tendentes al esclarecimieto de los hechos".
Conquanto a letra da lei pareça indicar que a prisão temporária
tem 0 prazo de 5 dias (ou de 30, se hediondo ou a ele assemelhado o cri
me), será inconsistente, diante do Estado de Direito entre nós vigente,
advogar o entendimento de que a lei proíbe o juiz de fixar prazo menor
do que os mencionados. Em face da excepcionalidade de qualquer me
dida limitadora da liberdade do indivíduo, tais prazos hão de ser com
preendidos como limites máximos à constrição do ius liberta eis, o que
implicará a avaliação, caso a caso, do tempo necessário à segregação do
indivíduo do convívio social.
Demais disso, se a decretação da prisão temporária é necessária
e idônea para o sucesso das investigações policiais, e justificável, em
nome do interesse coletivo, a custódia cautelar do indiciado pela práti
ca de um dos crimes elencados no inc. III do § I o. da Lei 7.960/89, a sua
manutenção se condicionará à contínua presença daqueles requisitos
legais de que já falamos.
Convém anotar, para encerrar este tópico, que é ilegítima a práti
ca de atos de investigação em relação ao indiciado preso como se solto
estivesse, ou seja, sem a preocupação de concluir as diligências o mais
rápido possível, viabilizando-se, o quanto antes, a formação da opinio
delicti do Ministério Público, acompanhada ou não da transformação
da prisão temporária em prisão preventiva, se presentes obviamente os
seus requisitos legais.
Saliente-se, a propósito, que uma das Recomendações tomadas
no XV Congresso Internacional de Direito Penal, realizado em setem
bro de 1994, no Rio de Janeiro, foi no sentido de que “....deve-se proibir
ordenar ou manter a prisão provisória se não existem indícios sérios de
culpabilidade e uma vontade real por parte das autoridades competen
tes em levar a cabo o processo”.
4- Da Prisão Preventiva
3 Note-se que o artigo 311 do CPR com a reforma de 2011, corrige o equívoco da redação
anterior, que dizia caber prisão preventiva cm qualquer fase do mquérito fwitcúl ou da
mstruçõo criminal, o que limitava injustiücadamente, em uma interpretação meramente
literal, o alcance da medida. Agora, a nova redação do referido preceito legal evidencia
que a cautela extrema pode ser decretada em qualquer fa x da investigação policial ou do
4.1. Cabimento
Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admiti
da a decretação da prisão preventiva:
I - nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liber
dade máxima superior a 4 (quatro) anos;
II - se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sen
tença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do
caput do art. 64 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de
1940 - Código Penal;
III - se o crime envolver violência doméstica e familiar con
tra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com
deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de
urgência;
IV - (revogado).
Parágrafo único. Também será admitida a prisão preventi
va quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou
quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la,
devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a
identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção
da medida. (NR)
processo penal. Com isso, autorizado está o uso da preventiva até mesmo em grau recur-
sal, como, aliás, já se reconhecia posstvet pela doutrina e jurisprudência mais abalizadas.
A maior inovação, portanto, foi a substituição do critério reclusão-
detenção pelo critério quantidade da pena, indicado no inciso I do artigo
313 do CPE Passa então a caber prisão preventiva, como regra, contra
autores de crimes dolosos punidos com pena máxima superior a 4
(quatro) anos, o que afasta, em princípio, a possibilidade da cautela
contra autores de crimes culposos e, evidentemente, de crimes com
pena máxima igual ou inferior a esse patamar.
O crime mais atingido pela novel legislação é o de furto, que, pelo
novo critério, não permite mais a medida extrema, salvo se cometido
na sua forma qualificada, em que a pena máxima salta de 4 para 8 anos,
ou então se praticado em situação de concurso de crimes (material, for
mal ou continuado) Nestas últimas hipóteses, seguindo a mesma lógica
que motivou a edição das súmulas na 243 do STF e 723 do STF, a pena
será acrescida ou somada - de acordo com a regra própria prevista no
Código Penal - de modo a, necessariamente, ultrapassar o limite máxi
mo de 4 (quatro) anos.
O cabimento da prisão preventiva pela reincidência em crime
doloso (inciso II) não sofreu alteração, mas o mesmo não se deu em
relação à hipótese positivada no inciso III.
Com efeito, desde o advento da Lei 11.340/06, era permitida a
prisão preventiva contra autores de crimes praticados em situação de
violência doméstica e familiar contra a mulher, mas apenas contra ela,
para garantir a execução das medidas protetivas de urgência. Agora, o
dispositivo é mais amplo e abrange a violência cometida, no contexto
doméstico e familiar, também contra criança, adolescente, idoso,
enfermo ou pessoa com deficiência,
Muito salutar a mudança, que vem suprir uma injustificável lacu
na da legislação abrogada, passando a conferir proteção penal eficien
te a pessoas igualmente fragilizadas no ambiente familiar, em razão da
idade ou da reduzida capacidade de resistência à violência do agressor.
Por último, caberá prisão preventiva contra a pessoa que, ante a
existência de dúvida sobre sua identidade civil, não fornecer elemen
tos suficientes para esclarecê-la. O parágrafo único do artigo 313 faz,
A
porém, importante ressalva: o preso deve "ser colocado imediatamente
em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar
a manutenção da medida". Parece, portanto, nítida a intenção do le
gislador de que a prisão de quem se encontra em situação de incerteza
quanto a sua identificação é efêmera, devendo durar apenas o tempo
necessário para esclarecer-se tal dúvida.
Ou seja, a prisão preventiva prevista no parágrafo único do arti
go 313 do CPP assemelha-se a um mandado de condução coercitiva
para que, verificada uma das situações previstas no artigo 3e da Lei nô
12.037/09, seja o preso identificado criminalmente e volte, em seguida,
a gozar de plena liberdade, salvo se, em avaliação judicial, for necessá
ria a manutenção da prisão - por outro motivo que não mais a incerteza
quanto à identidade - ou a imposição de medida cautelar diversa da prisão.
Outra importante ilação a extrair da novel legislação - nomeada
mente da redação dada ao artigo 313 do CPP - é a de que a regra relati
va à quantidade máxima da pena para o cabimento da cautela extrema
não se aplica às hipóteses dos incisos II e III, bem assim à hipótese do
parágrafo único do mesmo dispositivo.
Isso eqüivale a dizer que o investigado ou o acusado poderá ser
preso preventivamente quando praticar crime cuja pena máxima não
exceda quatro anos, mas que se ajuste a uma das situações positivadas nos
referidos incisos e no parágrafo único do mencionado preceito legal.
Não é despiciendo, a seu turno, enfatizar que as hipóteses ma
terializadas no artigo 313 do CPP não dispensam a verificação dos
requisitos inerentes a qualquer medida cautelar já analisados acima,
quais sejam, a existência de prova da ocorrência de um crime e indícios
de que o sujeito passivo da cautela foi seu autor ou partícipe, e a veri
ficação de que a liberdade deste representa um concreto risco à aplica
ção da lei penal, à instrução criminal ou à ordem pública ou econômica.
Ou seja, é mister conjugar, sempre, a hipótese de cabimento da prisão
preventiva (artigo 313) com os requisitos autorizadores indicados no
artigo 312 do CPP
Também resta claro, pela inequívoca redação do artigo 314 do
CPfJ que não caberá prisão preventiva quando o agente houver pra-
ticado o crime - independentemente de sua natureza ou gravidade
- em situação que, em juízo de verossimilhança, configure uma das
excludentes de ilicitude previstas no artigo 23 do Código Penal, haja vista
que, em qualquer dessas situações, faltará um componente do pressuposto
inerente a toda cautela {fumus comissi delicd), i.e., a prova da existência de
um crime, cujo conceito inclui a ilicitude do comportamento.
Há, ainda, outra hipótese legal de cabimento da prisão preven
tiva, disciplinada no parágrafo único do artigo 312 do CPP, aplicável
“em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por
força de outras medidas cautelares (artigo 282, § 4Q)
Assim, tendo o juiz competente aplicado ao investigado ou acusa
do alguma (s) das medidas cautelares alternativas à prisão, atendendo
à regra da excepcionalidade da cautela extrema (§ 62 do artigo 282), e
verificando o descumprimento injustificado de qualquer das obrigações
impostas, poderá impor ao agente a prisão preventiva, desde que, em
conformidade com o § 4e do mesmo dispositivo legal, não considere
mais adequado ou suficiente a substituição da medida ou até o acrésci
mo de alguma outra.
Portanto, o descumprimento de obrigação relativa a medida cau
telar diversa da prisão não implicará, automaticamente, o recurso à
providência mais extremada, mas é uma hipótese possível de ocorrer
mediante a devida fundamentação judicial.
Por derradeiro, convém fazer breve referência ao disposto no ar
tigo 310 do CPÇ que prevê a possibilidade de conversão da prisão em
flagrante em preventiva. Vale aqui a mesma advertência, qual seja, a
de que a cautela mais gravosa somente se justificará, na dicção do in
ciso II, "quando presentes os requisitos constantes do artigo 312 deste
Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas caute
lares diversas da prisão”.
Em resumo, podemos concluir que caberá a prisão preventiva —
desde que presentes o fumus comissi delicd e o periculum libertatis (artigo
312 do CPP): a) a qualquer tempo, como providência cautelar autôno
ma; b) como conversão do auto de prisão em flagrante; c) como con
seqüência do descumprimento de obrigação relativa a cautela pessoal
imposta anteriormente.
Nesta última hipótese, acertadamente observa PACELLI DE
OLIVEIRA (2011, p. 33) que a prisão preventiva possui caráter sub-
sidiário, bastando, para sua decretação, 0 "descumprimento da medida
cautelar imposta e a reafirmação da necessidade da prisão, segundo os
requisitos do artigo 312, CPP independentemente das circunstâncias e
das hipóteses arroladas no artigo 313, CPP". E dizer, será possível impor
a cautela extrema ao investigado ou acusado, presentes os requisitos do
artigo 312 do CPP ainda que se trate de crime punido com pena pri
vativa de liberdade igual ou inferior aos 4 (quatro) anos normalmente
estabelecidos como parâmetro para os demais casos.
4 Arricle 137: La pcisonne mise en examen, prfsumée innocente, reste lihre. Toutefois,
en raUon des nécessités de rinstruction ou à títre de mesure de sCireté, elie peut être
astreinte à une ou plusieurs obligarions du comrôle judiciaire. Lorsque celles-ei se ré-
vfclent insufiisantes au regard de ces objecriís, elle peut, à títre exceptionnel, être placíe
en détention provisoíre.
5 Article 144. La détention provisoíre ne peut être ordonnéc ou pmlongée que s’il est
démontré, au regard des éléments précis et circonstanciés résultant de la procldure,
qu'elie consdtue 1’unique mnyen de parvenir à l’un ou plusieurs des objectifs suivants et
que ceux-ci ne sauraient être atteínts en cas de placement sous contTÔle judiciaire: (...)
6® Mettre fin à 1'infraction ou prÉvenir son renouveliement; 7a Mettre fin au trouble
exceptionnel et persistant à 1’ordre public provoqué par la gravité de 1'infraction, les
circonstances de sa commission ou 1'importanee du préjudice qu'elle a causí. Ce trou
ble ne peut résulter du seul retentissement médiatique de 1'affaire. Toutefois, le présent
alinéa n'est pas applicahle en matière correctioimelle.
6 Z. También pcidrá acordanse la prisíãn provisional, concumendo los requisitos estahle-
cidos en los ordinales 1 y 2 dei apartado anterior para evitar el riesgo de que el imputa
do cometa otros hechos delicrivos. Para valorar la existencia de este riesgo se atenderá
a las circunstancias dei hecho, ast como a la gravedad de los delitos que se pudieran
cometer.
tos ou dos seus precedentes penais, subsiste o concreto perigo de que
estes cometam crimes graves com uso de armas ou com outros meios de
violência pessoal ou dirigidos contra a ordem constitucional, ou delitos
de criminalidade organizada ou da mesma espécie daquela pela qual é
processado’’7; por fim, em Portugal, o Código de Processo Penal estabe
lece, como requisitos gerais para as medidas de coação pessoal (artigo
204), entre outros» o “perigo, em razão da natureza e das circunstâncias
do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a acti-
vidade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranqüilidade
públicas."
Percebe-se, portanto, que a prisão cautelar também se utiliza
em outros ordenamentos com funções de medida de segurança ou
de defesa social, o que é compreensível ante a necessidade de pro
teger a sociedade contra investidas criminosas que perturbam a paz
e a ordem públicas.
Tal constatação não ilide, porém, o acerto da observação de ZA-
NOIDE DE MORAES (2010, p. 397), no sentido de que as expressões
“ordem pública" e “ordem econômica” carecem de legalidade estrita e
de proporcionalidade.
7 Art. 274. Esigenze cautelari. 1. Le misure cautelari sono disposre (...) c) quando, per
specifiche modalità e círcoscanie dei fatto e per Ia personalità delia pereona sottoposra
alie indagini o deirimpucato, desunta da comportamenti o atti concreti o dai suoi pre-
cedenti penali, sussiste il concreto pericolo che q u « á commetta gravi delicti con uso di
armi o di altri mezzi di violenza personale o diretti contro 1'ordine costicuzionale owero
delittt di criminalità organizzata o delia stessa specie di quello per cui si procede. (...)
De fato, tem sido fértil a denotação da expressão “garantia da or
dem pública” (e “econômica”) em seara jurisprudencial.
Entre outras hipóteses verbalizadas por juizes e tribunais, não são
raros os casos de decretos de prisão preventiva
8 Essa percepção faz parte de instrutiva ementa referente a Habeas Corpus recentemen
te julgado pelo Supremo Tribunal Federal e que merece ser integralmente transcrita:
EMENTA: HABEAS CORPUS. CRIME HEDIONDO. PR1SÁ O PREVENTIVA.
GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E DA INSTRUÇÃO CRIMINAL. CREDIBI
LIDADE DA JU STIÇA E CLAMOR PÚBLICO. TENTATIVAS CONCRETAS DE
INFLUENCIAR NA COLETA DA PROVA TESTEMUNHAL. ORDEM DENEGA-
DA. 1. O conceito jurídico de ordem pública não se confunde com incolumiJade das
pessoas e do patrimônio (art. 144 da CF/88). Sem embargo, ordem pública se constitui
em bem jurídico que pode resultar mais ou menos fragilizado pelo modo personalizado
com que se dá a concreta violação da integridade das pessoas ou do patrimônio de
terceiros, tanto quanto da saúde pública (nas hipóteses de tráfico de entorpecentes
e drogas afins). Daí sua categorização jurídico-positiva, não como descrição do delito
nem cominaçáo de pena, porém como pressuposto de prisão cautelar; ou seja, como
imperiosa necessidade de acautelar o meio social contra fatores de perturbação ou de
insegurança que já se localizam na gravidade incomum da execução de certos crimes.
Náo da incomum gravidade abstrata desse ou daquele crime, mas da incomum gravida
de na perpetração em si do crime, levando à consistente ilação de que, solto, O agente
reincidirá no delito ou, de qualquer forma, representará agravo incomum a uma objeti
va noção de segurança pública. Donde o vínculo operacional entre necessidade de pre
servação da ordem pública e acautelamento do meio social. Logo, conceito de ordem
pública que se desvincula do conceito de incolumidade das pessoas e do patrimônio
alheio (assim como da violação à saúde pública), mas que se enlaça umbilicalmente
à noção de acautelamento do meio social. 2 . É certo que, para condenar penalmente
alguém, o órgão julgador tem de olhar para trás e ver em que medida os fatos delituosos
e suas coordenadas dão conta da culpabilidade do acusado. Já no tocante à decretação
da prisão preventiva, se tambfm É certo que 0 juiz valora esses mesmos fatos e vetores,
ele o faz na perspectiva da aferição da periculosidade do agente. Náo propriamente da
culpabilidade. Pelo que o quantum da pena eítS para a culpabilidade do agente assim
como o decreto de prisão preventiva tstS para a periculosidade, pois í tal periculosida-
de que pode colocar em risco o meio social alusivo à possibilidade de reiteração deli tiva
(cuidando-se, claro, de prisão preventiva com fundamento na garantia da ordem pú
blica). 3. Náo se acha devidamente motivado o decreto de prisão que, quanto à ordem
pública, sustenta risco à credibilidade da justiça e faz do clamot públic o fundamento da
custódia preventiva. É que tais fundamentos não se amoldam ao balizamento constitu
cional da matéria. 4. Na concreta situação dos autos, esse ponto de fragilidade não se
Daí por que nos parece que se pode ter como válida a prisão pre
ventiva para garantia da ordem pública, de modo a evitar a prática de
novos crimes pelo investigado ou acusado, ante sua periculosidade, ma
nifestada na forma de execução do crime, ou no seu comportamento,
anterior ou posterior à prática ilícita.
A toda evidência isso não eqüivale a sustentar qualquer prisão
simplesmente porque o réu cometeu um crime violento ou porque pos
sui maus antecedentes penais. Justiça penal não se faz por atacado e
sim artesanalmente, examinando-se atentamente cada caso para dele
extraírem-se todas as suas especificidades, a tomá-lo singular e, portan
to, a merecer providência adequada e necessária.
Por isso mostra-se responsável e madura a posição sustentada por
ZANOIDE DE MORAES (2010, itens 5.4.1.2.1.3 e 5.4-1.2.1.4), que
propõe uma alternativa conciliadora entre os que denomina represen
tantes da corrente prvcessualista (para quem a presunção de inocência
impede qualquer tipo de prisão com fundamento material), e represen
tantes da corrente materialista (para os quais os interesses públicos aten
didos pela prisão provisória sobrepõem-se aos interesses individuais do
acusado). A proposta é a exigência de requisitos cumulativos para a
aceitação da garantia da ordem pública como circunstância autorizado -
i ra da prisão preventiva. Tendo como foco o ato ocorrido, e afastando,
portanto, fatores e elementos a ele estranhos, ZANOIDE DE MORA
ES sustenta que a prisão preventiva poderá ser determinada com base
na “ordem pública”, desde que: 1) se trate de crime com pena elevada;
2) as circunstâncias e a forma de cometimento do crime sejam parti-