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© Revista de Estudos Criminais ®

ISSN 1676-8698
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e da SÍNTESE, uma linha de produtos jurídicos.

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Revista de Estudos Criminais – Ano XIX – Nº 79


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Sumário

7 Sobre a normativização do dolo eventual


e a doutrina do perigo doloso
(Claus Roxin)

29 Responsabilidade penal das pessoas colectivas


de direito público? O problema em geral
e perante o crime de corrupção
(Teresa Quintela de Brito)

69 O problema dos limites entre atos preparatórios e tentativa


(Eduardo Viana)

101 Conhecimentos especiais e imputação objetiva: entre


os deveres de garantia e os deveres de solidariedade
(Wagner Marteleto Filho)

131 Resultado e dispersão em direito penal. Reflexões


iniciais à luz da praxis penal brasileira. Escrito em
homenagem ao Prof. Doutor José de Faria Costa
(Fabio Roberto D’Avila)

151 Pena criminal, sanção premial e a necessária legalidade


dos benefícios da colaboração premiada: aportes
para uma teoria geral da justiça penal negociada
(Felipe da Costa De-Lorenzi)

185 Controle da execução penal e pandemia de Covid-19:


desafios e perspectivas para a efetiva proteção
da saúde das pessoas privadas de liberdade
(Carlos Eduardo Adriano Japiassú e
Ana Lúcia Tavares Ferreira)
211 A proteção de dados por duas portas nas intervenções
informacionais. A declaração de inconstitucionalidade
pelo Tribunal Federal Constitucional alemão de regras
garantidoras de acesso estatal a dados constitutivos de
serviço de telecomunicação (Bestandsdatenauskunft ii)
(Orlandino Gleizer)
SOBRE A NORMATIVIZAÇÃO DO DOLO EVENTUAL
E A DOUTRINA DO PERIGO DOLOSO*
ON NORMATIVIZATION OF DOLUS EVENTUALIS AND
THE DOCTRINE OF INTENTIONAL DANGER
C laus R oxin **

RESUMO: O presente artigo, dedicado a Hans-Joachim Rudolphi,


apresenta a discussão sobre a crescente relativização dos clássicos
grupos de teorias a que se recorre para tentar traçar os limites do
dolo eventual. Para desenvolver a discussão, o autor estabelece
um diálogo entre a teoria do perigo doloso, de Puppe, e a teoria do
dolo como decisão pela possível lesão do jurídico. Considera-se que
as teorias volitivas do dolo também experimentam uma crescente
normativização, mas não se deve renunciar ao elemento volitivo.
Chega-se à conclusão de que a delimitação entre o dolo eventual e a
culpa consciente não pode prescindir de parâmetros normativos de
valoração. Entretanto, o substrato dessa valoração não pode ser de-
limitado somente pela representação do perigo, senão que deve ser
traçado considerando-se todos os elementos – objetivos e subjetivos
– da situação criminosa relevantes para a atitude do autor.
PALAVRAS-CHAVE: Normativismo; dolo eventual; conhecimento;
perigo doloso; normativismo volitivo.
ABSTRACT: This study, dedicated to Hans-Joachim Rudolphi,
discusses the growing relativization of classical groups of theories
which are used to trace the limits of dolus eventualis. In order to
develop the discussion, the author proposes a dialogue between
the theory of the intentional danger, based on Puppe, and the

* Publicação original: Zur Normativierung des dolus eventualis und zur Lehre von der
Vorsatzgefahr. In: ROGALL, Klaus. Festschrift für Hans-Joachim Rudolphi zum 70. Geburtstag.
Neuwied: Luchterhand, 2004. p. 243-257. Tradução de Eduardo Viana. As referências
bibliográficas permanecem como no original. Alguns livros, entretanto, estão em edição
mais nova, por isso, eventualmente, é possível que páginas citadas não tenham exata
correspondência com a atual.
** Doutor em Direito (Uni-Hämburg/Alemanha). Professor emérito (Uni-München/Alemanha).
Roxin, Claus. Sobre a normativização do dolo eventual e a doutrina do perigo doloso. Trad. Eduardo Viana. Revis-
ta de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 19, n. 79, p. 7-27, 2020.
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theory of dolus as a decision to the possible damage to the juridical


good. Volitional theories of dolus have also experienced increasing
normativism, although not to the point of allowing the denial of
dolus volitional element. As a conclusion, the delimitation between
dolus eventualis and conscious negligence (culpa ex luxuria) cannot
do without normative parameters of valuation. The substrate of
this valuation should not be delimited only by the representation of
risk and must be drawn regarding the observance of all elements –
objective and subjective – of the criminal situation which are relevant
to the author’s attitude.
KEYWORDS: Normativism; dolus eventualis; knowledge; intentio-
nal danger; volitional normativism.

1. Durante muitos anos, o dolo e o dolo eventual foram considerados ele-


mentos descritivos puros. Para o finalismo, que reduz o dolo a dados estruturais
do ser, prévios à ordem jurídica e dos quais ele não pode dispor, isso é evidente.
Contudo, também para os critérios usuais do dolo, como conhecimento e vontade,
e as características empregadas para o dolo eventual, eles são expressados como
fenômenos psíquicos, pouco importando se se recorre a uma possibilidade ou
probabilidade de representação do autor, a uma aprovação do resultado pos-
sível, a levar a sério essa possibilidade, a conformar-se com essa possibilidade
ou a uma decisão pela possível lesão do bem jurídico*. Alguns dos fenômenos
empíricos que acabo de assinalar, enumerados somente em alguns exemplos,
correspondem a um critério de delimitação puramente cognitivo, como a acei-
tação de determinada probabilidade de ocorrência do resultado; outros, além da
representação da possibilidade de produção do resultado, implicam fatores vo-
litivos como a assunção aprovadora do resultado representado*, o levar a sério
o perigo, o conformar-se com que ele ocorra ou a decisão pela possível lesão do
bem jurídico.
Graças a parâmetros puramente normativos, a subdivisão entre teorias
cognitivas e volitivas é cada vez mais relativizada1. Considero necessário escla-
recer isso a partir de duas concepções muito distintas, nas quais concentrarei a
discussão que se segue.

* NT: mantive as traduções sugeridas noutro lugar, cf. VIANA, Dolo como compromisso
cognitivo, 2017, p. 89.
* NT: para a tradução do termo “billigende Inkaufnahme”, acolhi as justificativas e a sugestão
de tradução de Luís Greco, cf. PUPPE, A distinção entre dolo e culpa, p. 36, nota de rodapé
n. 27.
1 Comparar as referências de SCHÜNEMANN, Vom philologischen zum typologischen
Vorsatzbegriff, in: Hirsch-FS, 1999, p. 376.
8
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A primeira dessas teorias é defendida sagaz e apaixonadamente, há mais


de dez anos, por Ingeborg Puppe2 em numerosas publicações. De acordo com
Puppe, age com dolo eventual quem cria um perigo qualificado3 de produção do
resultado, o chamado perigo doloso4: “Um perigo doloso é [...] aquele que um au-
tor racional somente criaria se ele estivesse de acordo com a produção do resulta-
do, dele se apropria [...] etc.”, quando “uma pessoa racional somente o aceitaria
sob a máxima de que o resultado de lesão deve ou no mínimo pode ocorrer”5.
A conduta do autor precisa expressar uma estratégia idônea para produção do
resultado6. Dessa maneira, há dolo eventual mesmo quando o autor não tenha
levado o perigo a sério e tenha acreditado em um final feliz. “Mecanismos irra-
cionais de processamento psíquico do autor, constitucional ou situacionalmente
condicionados”7, não são levados em consideração. Desse modo, quando alguém
se defende contra seu perseguidor apontando e disparando em direção ao tron-
co8, estamos então diante de uma tentativa de homicídio ou um homicídio com
dolo eventual, “independentemente se ele queria, ou não, causar o resultado de
lesão”. O determinante, portanto, é o parâmetro normativo, e não o posiciona-
mento subjetivo do autor.
Para a contraposição será manejada somente a concepção que desenvolvi
há 40 anos9**, aquela que considera a “decisão pela possível lesão do bem jurídi-

2 Menciono somente: Der Vorstellungsinhalt des dolus eventualis, ZStW 103 (1991), p. 1 e
ss; Vorsatz und Zurechnung, 1992, p. 35 e ss; Strafrecht als Kommunikation, in: Grünwald-
FS, 1999, p. 469 e ss., p. 487 e ss; NK, 1995, § 15, nm. 17-155; Strafrecht AT, Bd I, 2002, § 16,
p. 290-320, nm. 1-48.
3 PUPPE, ZStW 103 (1991), p. 31.
4 PUPPE, Strafrecht AT, § 16, p. 314.
5 PUPPE, ZStW 103 (1991), p. 41.
6 PUPPE, Strafrecht AT, § 16, p. 316 e passim.
7 PUPPE, ZStW 103 (1991), p. 33.
8 Puppe menciona o “disparo em direção ao tronco” como “típico método homicida”. Cf.
PUPPE, Strafrecht AT, § 16, p. 315.
9 ROXIN, Zur Abgrenzung von bedingtem Vorsatz und bewußter Fahrlässigkeit, JuS 1964,
p. 53 (= strafrechtliche Grundlagenprobleme, 1972, p. 20). Para a última versão, cf. Strafrecht
AT, B. I, 3 Aufl., 1997, § 12, p. 372 e ss.
* NT: 209, e não 20, é o número da primeira da versão do artigo “Zur Abgrenzung von
bedingtem Vorsatz und bewußter Fahrlässigkeit”, publicada na coletânea strafrechtliche
Grundlagenprobleme (Problemas fundamentais de direito penal).
* NT: Aqui, e nas demais citações, Roxin faz referência à versão da sua teoria do dolo
exposta na terceira edição (1997) do seu reconhecido tratado. O manual chegou à 5ª edição
neste ano (2020); agora, sob os cuidados de Luís Greco. No âmbito do dolo, entretanto,
9
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co” como o critério delimitador fundamental. Essa concepção encontrou grande


quantidade de importantes adeptos10, entre esses Hans-Joachim Rudolphi11, o res-
peitável homenageado, segundo o qual “a decisão do autor pelo injusto típico”
expressa a “essência do dolo” e o elemento mais importante “para a satisfação da
forma mais grave de culpabilidade”. Esse ponto de vista pode hoje ser descrito
como dominante porque tal decisão pode ser afirmada com uma ação apesar de
se ter levado a sério o perigo de realização do tipo, com a aceitação da possibili-
dade de produção do resultado ou também quando “o autor, ao conhecer o risco,
se aproprie dos elementos constitutivos do injusto”12. A jurisprudência do BGH*,
que reconhecidamente exige para o dolo eventual uma “assunção aprovadora”
do resultado, ao fim e ao cabo também diz a mesma coisa.
Mas essas teorias volitivas também estão experimentando uma crescente
normativização. Isso significa, como expressei em meu manual13, que o conceito
de decisão, como todo conceito jurídico, deve ser julgado “como um parâme-
tro normativo e não como um fenômeno psicológico puro”. Não se trata de um
ato volitivo refletido como uma espécie de “resolução” (Beschluss*). Desse modo,
decide-se contra o bem jurídico aquele que, por indiferença, e após reconhecer
claramente a possibilidade de produção do resultado, não assume uma posição e
permanece em sua trajetória. Rudolphi14 considera que uma decisão em favor da
realização do resultado já afirma o dolo direto: “O elemento volitivo do dolo não
exige, aqui, comprovação especial”. E, apesar de Hassemer15 destacar que o “dolo
é uma decisão pelo injusto”, Rudolphi diz decisivamente que “quem conhece to-

não foi implementada qualquer alteração, razão pela qual as referências permanecem
substancialmente idênticas.
10 Comparar as referências em ROXIN, Strafrecht AT, § 12, nm. 23, nota de rodapé n. 28.
11 SK/StGB-RUDOLPHI, 7 Aufl, 2002, § 16, nm. 4.
12 Nesse sentido, SCHROTH, Die Differenz von dolus eventualis und bewusster
Fahrlässigkeit, JuS, 1992, 1, p. 7; anteriormente, o mesmo, Vorsatz als Aneignung der
unrechtskonstituierenden Merkmale, 1994.
* NT: Abreviação de Bundesgerichtshof, tribunal equivalente ao nosso STJ.
13 ROXIN, Strafrecht AT, § 12, nm. 30.
* NT: Em alemão, o prefixo “be” agregado à raiz do verbo dá mais carga expressiva à palavra.
Isso pode ser demonstrado com os verbos lieben (amar) e belieben (desejar), ninguém negará
a maior intensidade do desejo. O substantivo Schluss pode ser traduzido como decisão;
Beschluss, portanto, exige uma tradução mais forte. Nesse caso, pareceu-me melhor usar
“resolução”, que expressa, em linguagem cotidiana, um caminho sem volta.
14 RUDOLPHI, § 16, nm. 37.
15 HASSEMER, Kennzeichen des Vorsatzes, in: Armin Kaufmann-GS, 1989, p. 309 e 299.
10
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das as circunstâncias perigosas e simultaneamente age, não será ouvido quando


afirme que isso não corresponde à sua ‘decisão’”.
Para a jurisprudência vale fundamentalmente a mesma coisa. Em uma de-
cisão (não publicada) do ano de 197116, determinante para a jurisprudência pos-
terior, consta o seguinte: conforme a situação fática, o autor, a uma distância de
um metro e meio a dois metros, disparou na parte superior da barriga da vítima;
admitiu-se dolo eventual apontando como fundamento, o qual apareceu outras
vezes em sentenças posteriores, que o autor agiu apesar da extrema periculosi-
dade e deixou o desenlace dos fatos para a casualidade. A vaga esperança de que
o resultado não se realizaria não poderia excluir aceitação nem aprovação da
realização. Não se trata, nesse caso, de comprovação de fatos psíquicos, mas sim
de uma interpretação do comportamento do autor como aceitação do resultado,
é dizer: como uma decisão pela possível lesão do bem jurídico.
II. Desse conjunto de considerações decorre haver ações cuja periculosida-
de é tão elevada que elas permitem ser compreendidas, no mínimo, como dolo
eventual, independentemente de se manejar critérios cognitivos ou volitivos
para diferençar o dolo eventual da culpa consciente. Isso porque, tanto no “pe-
rigo doloso” quanto na “decisão” que leva em conta o resultado, é decisivo um
parâmetro normativo, que conduz à afirmação de um comportamento doloso
nos casos em que a culpabilidade extrema é evidente.
No entanto, os parâmetros são diferentes e conduzem a soluções diver-
gentes em casos menos evidentes. A diferença central reside no fato de que da
teoria do perigo doloso deriva a delimitação entre o dolo eventual e a culpa cons-
ciente de um único elemento da situação criminosa: a reconhecida dimensão da
periculosidade, que é submetida à valoração de um julgador racional. Por outro
lado, a teoria da decisão toma como fundamento para julgar todo o desenrolar
dos acontecimentos e coloca a seguinte questão: se, com o sopesamento de to-
das as circunstâncias do caso concreto, o comportamento do autor pode ser de
tal maneira interpretado que seja possível afirmar ter ele – seja isso necessária e
condicionalmente – se decidido contra o bem jurídico ou, em contrapartida, se é
plausível afirmar que o autor acreditou em um desenlace feliz. Nessa situação,
para além da graduação do perigo, os elementos psíquicos também desempe-
nham papel importante. Se, por exemplo, por meio de depoimentos de testemu-
nhas se pudesse comprovar que o autor calculou conscientemente o resultado,
então, o fenômeno psíquico e a valoração normativa coincidem em reconhecer o
dolo eventual. Em caso contrário, é necessário derivar de toda a conduta do autor

16 Aqui citada de acordo com KÖHLER, JZ 1981, p. 36.


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se a ele é possível atribuir o dolo no sentido de uma decisão pela possível lesão
do bem jurídico.
Um caso prático quiçá esclareça essa diferença. Segundo os acontecimen-
tos, os quais foram base para a decisão do BGH (NStZ 1988, 17517), em relação
aos seus dois filhos pequenos, o processado era um pai “carinhoso e sensível e
recusava castigos corporais como método de educação”; com a mesma diligên-
cia, em reiteradas ocasiões, havia cuidado de Sven, que tinha um ano de idade e
era filho da sua namorada. Na noite dos fatos, ele igualmente havia se ocupado
muito bem de Sven. Em determinado momento, irritado com o choro da criança,
golpeou-a mais de uma vez na cabeça, alimentando-a posteriormente com uma
banana. Quando o choro se repetiu, o processado, que tinha formação de cara-
teca, “com a lateral da mão golpeou violentamente a nuca e a região temporal”
da criança, que morreu em decorrência desses golpes. As “inábeis tentativas de
reanimação” levadas a cabo pelo processado não tiveram êxito.
Esse é um caso de homicídio com dolo eventual ou um violento homicídio
com culpa consciente? Um perigo doloso provavelmente seria afirmado nesse
caso18, de modo que o caso é fácil e rapidamente resolvido no sentido de homi-
cídio doloso. Entretanto, o BGH inclina-se pela existência somente de homicídio
culposo: “Com o conhecimento da periculosidade de seu comportamento ainda
não é dito que o autor aceitou a produção do resultado, que ele internamen-
te concordou com que ele ocorra”. Nesse sentido, uma série de circunstâncias
pessoais e situacionais são trazidas à colação: “que o acusado nunca havia de-
monstrado ações violentas comparáveis e que, fundamentalmente, ele havia se
comportado cuidadosamente com Sven”; a “excitação afetiva” do processado;
os anteriores cuidados com Sven na noite dos fatos; o fato de que entre as duas
ações cruéis o acusado alimentou Sven com a banana; e, finalmente, as tentativas
de reanimação.
Efetivamente, ao realizar um juízo de valor, as circunstâncias descritas po-
dem justificar a conclusão de que o processado não pensou seriamente na pos-
sibilidade de que os seus golpes poderiam matar Sven e também não se decidiu
eventualmente pela morte da criança. Contra o reconhecimento de uma decisão
de matar pesa, ao lado das circunstâncias antes mencionadas, o fato de que o pro-

17 Sobre isso, SCHUMANN JZ 1989, p. 427 e ss., que, no entanto, não cuida do aspecto
normativo e somente se orienta segundo circunstâncias cognitivas.
18 Essa é provavelmente a opinião de PUPPE, Strafrecht, nm. 19, p. 302. Em seu manual,
isso não está dito expressamente, em que pese haver tratado detalhadamente do caso. No
Nomos Kommentar, § 15, nm. 96, ela defende haver um claro dolo de homicídio.
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cessado não tinha qualquer motivo homicida compreensível, tampouco a estru-


tura de sua personalidade permite conceber a existência de tal motivo. Enquanto
isso, fortes razões militam contra o homicídio doloso: para além do obstáculo
psíquico que há no homicídio doloso*, sempre sublinhado pelo BGH, a certeza
da autoria do crime após o retorno da namorada que se avizinhava e, do mes-
mo modo, a esperada ruína do seu relacionamento. A ausência de uma decisão
pela possível morte da criança deduz-se, portanto, do conjunto da situação com
todas as suas circunstâncias externas e internas, e não das reflexões do autor, as
quais provavelmente sequer existiram e, em qualquer caso, tampouco se deixam
reconstruir judicialmente.
O método praticado aqui e em geral também seguido pela jurisprudência
recente18a é o de deduzir o fundamento da atitude dolosa ou culposa do autor
em relação ao bem jurídico a partir do “quadro global de todas as circunstâncias
objetivas e subjetivas do fato” (BGHSt 36, 10). Por meio desse método, que tem
encontrado crescente número de defensores, supera-se a velha disputa teórica
entre o purismo dos volitivistas e cognoscivistas. Há mais de 25 anos, Krauss19
sublinhou que a delimitação entre o dolo e a culpa “não seria de antemão um
problema de compreensão psicológica (psychologische Durchdringung) de fatos
psíquicos, mas sim um problema de estruturação normativa de tipos em virtude
de atos sociais falhos”. Trata-se de “quando a postura psicológica do autor o
identifica como um autor de agressões no sentido dos tipos dolosos”. A delimi-
tação é “um problema de valoração social de determinados fatos psicológicos
objetivamente20 expressados em uma ação”.

* NT: O autor se refere à Hemmschwelletheorie (ou teoria do obstáculo psíquico). Em linhas


gerais, o tribunal argumenta sob a seguinte base: a ação homicida contraria a natureza
humana e, portanto, representa uma excepcionalidade. De modo que, para o dolo de
matar, existiria uma (hipotética) barreira inibitória muito superior àquela que há para os
delitos de perigo. Para mais detalhes sobre a aplicação da teoria nos crimes contra a vida,
cf. LEDERER, Hemmschwellen im Strafrecht, 2011; PRÖMPER, Hemmschwellentheorie
und Einzelfallgerechtigkeit, 2017; VIANA, Dolo como compromisso cognitivo, p. 305 e ss;
VIANA, Sobre a estrutura dolo, REC 77, p. 91-93.
18a Enquanto esse texto ainda estava na fase das provas, apareceram três novas decisões, as
quais estão inteiramente na direção da linha aqui indicada (BHG StV 2004, 74-76).
19 KRAUSS, Der psychologische Gehalt subjektiver Elemente im Strafrecht, in: Bruns-FS, 1978,
p. 11 e ss., 26/27.
20 O itálico é de Krauss.
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Uma década depois21, Hassemer, ao acolher as propostas de Krauss, U.


Schroth22 e a minha, levou adiante as “qualificações normativas do dolo” e com
elas garantiu23 “haver deixado para trás a paralisante alternativa entre perspec-
tivas cognitivas e volitivas da teoria do dolo”. Ele difunde uma teoria dos indi-
cadores que permite compreender o maior conteúdo de culpabilidade do dolo;
esse, em contraposição à culpa, seria um modo qualificado do “poder ter agido
de outra forma” [Dafür-Können]24. O dolo somente se deixa “inferir por meio de
indicadores”25. Não é permitido inferir o dolo “a partir de único indicador dos
acontecimentos exteriores, senão somente a partir de uma quantidade ordena-
da de indicadores (e contraindicadores), os quais se deixam deduzir da ratio da
punição dolosa: pode-se compreender por que a periculosidade objetiva de uma
situação não implica correlativa representação do autor quando há indicadores
que apontam para uma percepção reduzida; e também é possível compreender
por que a representação correta do autor sobre a periculosidade da situação não
fundamenta o dolo quando os indicadores apontam a existência de motivação
que desvia do caso normal”. Por isso, não é de surpreender que Hassemer, anco-
rado em tal concepção, qualifique o caso do BGH tratado acima como “um bom
exemplo de como se deve proceder de forma diferenciada com indicadores do
dolo”26.
Finalmente, após o transcorrer de outra década, Schünemann27 desenvol-
veu um “conceito tipológico de dolo”, o qual, apesar de alguma crítica que faz
aos seus predecessores28, mantém o tema na mesma direção e concebe o dolo
como um “conceito tipológico”, o qual “reúne tanto elementos subjetivos como
elementos objetivos”29. Para ele30, as fórmulas utilizadas para a descrição do com-
ponente volitivo (levar a sério, resignação etc.) não são um “fenômeno da cons-
ciência passível de descrição exata, senão, em verdade, avaliações mascaradas

21 HASSEMER, Kennzeichen des Vorsatzes, p. 289.


22 SCHROTH, nota de rodapé n. 12.
23 HASSEMER, Kennzeichen des Vorsatzes, p. 295.
24 HASSEMER, Kennzeichen des Vorsatzes, p. 296.
25 HASSEMER, Kennzeichen des Vorsatzes, p. 304.
26 HASSEMER, Kennzeichen des Vorsatzes, p. 308, nota de rodapé n. 90.
27 SCHÜNEMANN, p. 363.
28 Contra SCHROTH, p. 368 e ss; contra ROXIN, p. 371, nota de rodapé n. 29; contra
HASSEMER, p. 376.
29 SCHÜNEMANN, Vom philologischen zum typologischen Vorsatzbegriff, p. 366.
30 SCHÜNEMANN, Vom philologischen zum typologischen Vorsatzbegriff, p. 367.
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de um fato global, a saber, a totalidade dos componentes objetivos e subjetivos


da situação fática e da psique do autor”. Assim, para o caso de conhecimento da
simples possibilidade de lesão, seria preciso “adicionar mais momentos de des-
valor para que exista uma manifestação suficientemente forte das características
da atitude psíquica”31; assim, ao lado do domínio do fato, Schünemann também
considera decisiva a maior culpabilidade do autor doloso em comparação com
o culposo. Além disso, elenca as “características particularizantes do dolo tipo-
lógico” (os indicadores no sentido propagado por Hassemer), as quais, ao lado
da avaliação do perigo, desempenham papel importante para a qualificação do
dolo32. A semelhança do seu conceito com as perspectivas anteriormente expos-
tas também se faz presente quando ele julga que a jurisprudência, “apesar de
carecer de um conceito teórico útil, mas guiado por sua correta intuição prática,
chegou a resultados que correspondem à frequente utilização do conceito tipo-
lógico de dolo”.
Também Rudolphi33 indica, ao apontar outros autores que apresentam ar-
gumentos nesse sentido, que seria inevitável “deduzir a atitude interna do autor
recorrendo às regras gerais de experiência a partir dos fatos objetivos por ele
reconhecidos”. Nisso também se esconderia um fragmento de normativização
porque o deduzir é ao mesmo tempo um valorar.
III. Pode-se dizer que ao normativismo cognitivo, tal como exemplarmente
representado pela teoria do perigo doloso de Puppe, opõe-se o normativismo voli-
tivo, tal como propugnado pela jurisprudência e como, sob diferentes perspecti-
vas, se destaca de modo evidente na literatura.
Minha defesa do segundo caminho se baseia na premissa segundo a qual
tanto a realização típica dolosa quanto a culposa não expressam somente dife-
rentes tipos de injusto, mas sim que entre o dolo e culpa também existe uma dife-
rença de culpabilidade, a qual legitima a punibilidade muito maior para o dolo34.
Uma valoração justa da culpabilidade do autor exige, entretanto, a inclusão de
todas as circunstâncias relevantes para a culpabilidade e não pode contentar-se
em apenas um critério – certamente importante – como o do perigo doloso. Com
razão articula Hassemer35 que “a ratio da punibilidade do dolo e a crítica a uma

31 SCHÜNEMANN, Vom philologischen zum typologischen Vorsatzbegriff, p. 374.


32 SCHÜNEMANN, Vom philologischen zum typologischen Vorsatzbegriff, p. 372.
33 SK/StGB-RUDOLPHI, § 16, nm. 46.
34 ROXIN, Strafrecht AT, § 12, nm. 26.
35 HASSEMER, Kennzeichen des Vorsatzes, p. 305.
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objetivação esquemática da sua teoria descartam a possibilidade de representá-


-lo... por um único indicador”.
Isso também pode ser comprovado no caso do BGH que serviu como pon-
to de partida para a minha estruturação. Do mesmo modo, Puppe36 considera
que a maior culpabilidade que se manifesta no dolo legitima a maior severidade
punitiva. Ela considera que unicamente o perigo doloso “expressa aquela magni-
tude de indiferença exercida contra os bens jurídicos alheios que fundamenta o
severo reproche de culpabilidade do dolo”. Entretanto, a situação criminosa nar-
rada demonstra que, com a consideração de todas as relevantes circunstâncias
situacionais e motivacionais (pai afetuoso; fundamentalmente, mesmo na noite
dos fatos, uma confiável babá/um cuidador zeloso; excitação afetiva; tentativas
de reanimação), a indiferença indicada pela colocação em marcha de um perigo
doloso é relativizada e não mais alcança aquela “magnitude” que justifica a con-
firmação de severo reproche de culpabilidade.
Essas circunstâncias atenuantes da culpabilidade não podem ser maneja-
das no marco da imputação da culpabilidade porque os §§ 20 e 21 do StGB não
oferecem essa possibilidade*. É bem verdade que Puppe37 pondera: “Se o autor
não for mais capaz de manejar intelectualmente as consequências mais simples
da sua ação porque foi derrotado por suas representações paranoicas, então, o
seu lugar não é na prisão; para isso há um estabelecimento psiquiátrico fechado”.
Contudo, casos tão drásticos como o nosso não são a regra, de modo que todas as
outras circunstâncias valorativas relevantes precisam ser levadas em considera-
ção para a imputação dolosa.
Tal delimitação corresponde ao método que eu persigo também em geral,
consistente em tomar como base princípios normativos para a solução de todos
os problemas de delimitação presentes em vários temas da parte geral – como a
“figura central” na autoria, “o retorno da legalidade” na desistência voluntária e
a “decisão pela possível lesão do bem jurídico” com o dolo – os quais são concre-
tizados na matéria jurídica38. Isso corresponde à combinação entre “o pensamento

36 PUPPE, Strafrecht AT, p. 313.


* NT: Esses parágrafos tratam, respectivamente, da incapacidade de culpabilidade em razão
de transtornos mentais e da capacidade de culpabilidade reduzida. Para uma ideia sobre o
alcance dos dispositivos no cenário alemão, cf. HILGENDORF/VALERIUS, Direito penal:
parte geral; trad. Orlandino Gleizer, 2019, p. 174-175.
37 PUPPE, Strafrecht AT, p. 314.
38 Cf. uma síntese em ROXIN, Kriminalpolitik uns Strafrechtsdogmatik heute, in: Schünemann
(Hrsg.) Strafrechtssystem und Betrug, 2002, p. 21 (p. 37 e ss.).
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normativo e a lógica da realidade (Sachlogik), também defendida por Schünemann39


e lançada pela missão da dogmática penal: ponderar todos os indicadores e con-
traindicadores para elaborar indicações típicas de dolo em grupos de casos.
IV. Neste artigo não há espaço para desenvolver essa ideia. Em seu lugar,
e como ponto de contraste, a teoria do perigo doloso, tão impressionantemente
defendida por Puppe, será examinada mais de perto. A teoria do perigo dolo se
converteu na puríssima expressão daquele normativismo cognitivo; é com ela, e
após o adeus a todos os conceitos puramente descritivos de dolo, que o aqui de-
fendido normativismo volitivo precisa se controverter. Hans-Joachim Rudolphi,
a quem é dedicado este livro, apresentou diferentes objeções à teoria do perigo
doloso. Começaremos por essas.
1. Puppe desenvolve a diferença entre o perigo doloso e o perigo culposo
a partir da crítica em uma frase Rudolphi40: “Pertencem ao conteúdo da proibi-
ção dos delitos dolosos [...] todas as ações que fundamentam um perigo para a
realização do tipo que sobrepassa a medida de um perigo permitido”. Em con-
trapartida41, Puppe adverte que a produção de um resultado por meio de uma
ação preparatória poderia muito bem fundamentar imputação culposa, mas não
delito doloso. O mesmo vale para os desvios causais essenciais – algo que, natu-
ralmente, não é aplicável para casos de imprevisibilidade, mas sim, em todo caso,
para a aberratio ictus, na qual Puppe afirma imputação dolosa42.
Ambos os adversários têm parcial razão. Seguramente, em casos especiais,
a imputação dolosa pode pressupor mais requisitos que a imputação culposa, a
exemplo do tipo objetivo. Entretanto, disso não resulta, como gostaria Puppe,
que o dolo requer perigo maior que a culpa em todos os casos. Rudolphi quer
apenas afirmar que, ao se decidir pela possível lesão do bem jurídico, todo pe-
rigo objetivamente proibido pode fundamentar o dolo. Nisso ele tem apoio da
opinião dominante. Todavia, Puppe coloca a opinião majoritária em xeque e quer
negar o dolo nos casos de pequeno perigo de produção do resultado, ainda que
o autor tenha o propósito de causá-lo43. Assim, quando um assassino, em posição
de disparo desfavorável, consegue ter a vítima na mira do seu fuzil e tem uma
oportunidade real, porém pequena, de acertá-la, subsistem duas possibilidades:

39 SCHÜNEMANN, Vom philologischen zum typologischen Vorsatzbegriff, p. 378.


40 SK/StGB-RUDOLPHI, § 16, nm. 46a.
41 PUPPE, Strafrecht AT, § 16, nm. 1-4.
42 PUPPE, Zur Revision der Lehre vom “konkreten Vorsatz und der Beachtlichkeit der
aberratio ictus”, in: GA 1981, p. 1.
43 PUPPE, Strafrecht AT, § 16, nm. 36; NK, § 15, nm. 67 e ss.
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ou um tiro falho restará impune, por não se poder fundamentar a tentativa; ou


um homicídio exitoso somente poderia ser compreendido como culpa. Puppe
mesma pretende que a colocação consciente de um perigo mediano seja consi-
derada como dolo44; então, ela se vê obrigada a admitir que ações com média
chance de realização empreendidas com o propósito de realização do tipo sejam
declaradas como simples tentativas culposas, jurídico-penalmente irrelevantes.
Entretanto, isso não convence. Para demonstrar recorrendo-se somente
aos crimes de homicídio: seria permitido criar intencionalmente, ou calculando-
-se um resultado, um perigo para a vida (que inclusive não precisa ser pequeno)
objetivamente imputável, sem correr o risco, no caso de produção do resultado,
de punição maior que a culposa; e, se esse resultado não se produz, nada haveria
a se a temer. Contradiz a lógica da linguagem e o conteúdo da culpabilidade de
tal ação que um homicídio intencional não deve ser considerado doloso somente
porque a probabilidade do resultado não era especialmente grande desde uma
perspectiva ex ante. A tese segundo a qual uma fracassada tentativa intencional
de homicídio, sob essas circunstâncias, não seria, em hipótese alguma, uma ten-
tativa pode estimular essa espécie de comportamento, em que pese ser missão do
direito penal, justamente, opor-se aos perigos proibidos contra os bens jurídicos
tutelados, especialmente quando os perigos foram criados intencionalmente. Por
isso, tem razão Rudolphi45 quando – também tendo em mira o dolo eventual – diz
que a teoria do perigo doloso conduz a uma “injustificada limitação da punibili-
dade do dolo”.
Em contrapartida, o critério da “decisão pela possível lesão do bem ju-
rídico” permite realizar uma diferenciação sem embaraços e que faz justiça à
necessidade de pena. Por um lado, quem tem o propósito do resultado é sempre
punível por um ato doloso consumado quando o risco proibido conscientemente
criado se realizou. Pois, e isso é evidente, esse autor se decidiu contra o bem ju-
rídico proibido. Por outro, aquele que não tem o propósito de causar o resultado
e somente avista um perigo proibido, é verdade, mas também relativamente pe-
queno ou mediano de que se produza, então, a esse autor será reconhecido que
acreditou em um final feliz, a não ser que do desenrolar fático se permita deduzir
que ele era totalmente indiferente à pergunta sobre se o resultado se produziria
ou não.

44 PUPPE, Strafrecht AT, § 16, nm. 41.


45 RUDOLPHI, § 16, nm. 5b.
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2. Rudolphi46 também censura Puppe por “uma inaceitável extensão da


punibilidade do dolo”. Eu mesmo47, e também outros autores48*, já levantei essa
objeção. Puppe49, em resposta, considera que a sua perspectiva, “comparada a
todas as outras teorias do dolo, é a que impõe, para que se fundamente o dolo,
maiores exigências ao conhecimento do autor sobre o perigo produzido”. Isso é
correto no aspecto da magnitude do perigo, isto é, no tocante às constelações de
casos tratadas no ponto 1. Entretanto, não é correto – e apenas a isso se dirige a
objeção –, no seguinte aspecto: uma vez admitido o perigo doloso, o dolo é auto-
maticamente imputado; isso quer dizer que todo o contexto restante da situação
criminosa e o estado psíquico do autor não podem mais ter qualquer influência.
Isso foi explicado (acima III) na decisão do caso do carateca. Resta-me aqui
somente advertir que tais casos exercem papel muito importante na prática: uma
determinação unilateral do perigo doloso conduziria a um significativo aumento
dos casos de homicídio (simples e qualificado). Permitam-me esclarecer isso re-
correndo a dois outros casos.
Em uma decisão do BGH, citada por Holtz50, o autor “espancou” alguém
que veio a óbito em razão disso. Admitindo-se aqui um perigo doloso, o que, ao
fim e ao cabo, parece óbvio51, então é inevitável, no mínimo, a condenação por
homicídio. Mas o que se passou foi que o autor: estava em “elevadíssimo estado
de excitação”; o fato era “alheio à sua personalidade”; após a consumação da
sua selvageria, chamou a polícia e a ajuda; e ficou “visivelmente chocado” com a
notícia da morte da vítima. Se desse complexo de circunstâncias, alinhado com o
BGH, interpreta-se que o autor não se decidiu, nem mesmo eventualmente, pela
morte da vítima, senão que acreditou que ela sobreviveria, então isso conduz
a um julgamento mais justo que a exclusiva orientação pelo perigo criado com
o espancamento. Se o autor não tivesse chamado a polícia e a ajuda; fosse ele
igualmente inclinado à selvageria; e não tivesse ficado chocado, senão tivesse dito

46 RUDOLPHI, § 16, nm. 5b.


47 ROXIN, Strafrecht AT, § 12, Rn. 45.
48 SCHROTH, p. 92; PRITTWITZ, Vorsatz und Risiko, 1993, p. 357.
* NT: Por um deslize de digitação, o título da obra de Prittwitz que consta na nota é “Vorsatz
und Risiko” (1983). Esse, entretanto, é o trabalho de Wolfgang Frisch. O título da obra de
Prittwitz a que o autor gostaria de referenciar é, na verdade, “Strafrecht und Risiko” (1993).
49 PUPPE, Strafrecht AT, § 16.
50 HOLTZ MDR 1977, 458.
51 Segundo PUPPE, NK, § 15, nm. 96, “dar uma surra” não é um “método claro de homicídio”,
de modo que tudo dependeria das circunstâncias – que aqui são desconhecidas – do caso
concreto.
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“Não era a minha intenção matá-lo, mas... tudo bem que isso aconteceu”, então,
com idêntica valoração sobre o sobre o grau do perigo e à luz desses indicadores
completamente distintos, teria sido adequado concluir pelo dolo eventual.
Em outro caso decidido pelo BGH52, uma gestante foi surpreendida pe-
las contrações e decidiu “trazer a criança ao mundo... sem ajuda de terceiros”.
E assim aconteceu. Devido à condição débil decorrente do parto, somente após
o transcurso de dez minutos a mãe foi capaz de cuidar da criança. A essa altu-
ra, entretanto, a criança estava asfixiada e as tentativas da mãe de obter alguma
reação de vida foram em vão. Se a ajuda profissional tivesse chegado a tempo, a
criança teria sobrevivido. Alguns anos antes, e também sem o auxílio médico, a
mãe havia dado à luz e criado uma criança havida fora do matrimônio.
O BGH comparou esse caso com anterior decisão53, na qual uma mãe com
um filho também recém-nascido ausentou-se por um período compreendido en-
tre 10-15 minutos; essa mãe não estava incapacitada para atuar e tampouco se
ocupou posteriormente da criança. Apesar de que, no que se pode intuir, em am-
bos os casos se parte da mesma avaliação do perigo desde a perspectiva materna,
o BGH admite o dolo eventual no último caso, ao passo que no primeiro conside-
ra mais indicada a imputação por culpa consciente. No primeiro caso examinado,
o tribunal vê com bons olhos o argumento segundo o qual a mãe acreditava em
um desenlace feliz por duas razões: porque após recuperar as suas forças ela se
preocupou com a criança e porque havia criado anteriormente uma criança havi-
da sem ajuda médica.
A diferença de tratamento em ambos os casos soa plausível, embora isso
somente seja possível sob uma diferenciação de base normativo-volitiva, en-
quanto a exclusiva orientação pela valoração do perigo não permite nenhum
tratamento diferenciado, e a solução muito intuitiva de perigo doloso amplia de-
masiadamente a zona do homicídio doloso.
3. Outro problema da teoria aqui criticada consiste no fato de que ela não
entrega um parâmetro concreto para a determinação do perigo doloso. O crité-
rio de Puppe, de que haveria um perigo doloso quando um “autor racional” se
conforme com o resultado, tem assunção aprovadora em relação ao resultado ou
se decide por ele (comparar I) não é de muita valia porque todas as pessoas razoá-
veis, à medida que se orientam por critérios puramente cognitivos, dizem coisas
variadas. Por um lado, a representação da simples possibilidade de produção do

52 GA 1979, p. 106.
53 GA 1970, p. 86.
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resultado já fundamentaria o dolo54; por outro, seria determinante uma “produ-


ção do resultado não improvável”55 e, finalmente, um “perigo descoberto”56*. Ou-
tros exigem*: “mais que meramente possível e menos que preponderantemente
provável”57; ou uma probabilidade preponderante58; ou um risco que deve ser
levado a sério59; ou um “perigo concreto para o bem jurídico afetado”60. Porque
não se pode dizer que esses sábios julgadores são privados de razão e todas as
perspectivas, desde a possibilidade até a probabilidade preponderante, têm os
seus defensores, a “razão”, per se, claramente não pode garantir delimitação útil.
Quando Puppe julga, em relação à quantidade do perigo doloso61, que não se
pode dizer além de: conforme o conhecimento do autor, a chance de alcançar o
objetivo precisaria ser “relativamente alta”, tanto permanece pouco claro o por-
quê de essa suposição ser racional como também não se explica o significado de
que uma chance seja, por um lado, “alta” e, por outro, somente “relativa”.
O parâmetro de racionalidade oferecido por Puppe é também questioná-
vel porque inclui uma boa porção de irracionalidade. Se se quiser excluir a irra-
cionalidade do autor para a delimitação do dolo, então, é necessário considerar
que uma pessoa racional se afastará da sua ação tão logo ultrapasse a barreira
do risco permitido e reconheça a séria possibilidade da realização do tipo por
meio da realização do risco; se a pessoa continua com a sua ação, então ela se
conforma com a eventual produção do resultado. Consequente com a sua pers-
pectiva, Puppe não admite isso. E não o faz porque a admissão tornaria sem valor
a distinção entre perigo doloso e perigo culposo. Quem irracionalmente confia na
não produção do resultado ainda não é – e isso também para Puppe – um autor
doloso, “pois isso vale para a produção de todo risco não permitido”62. Ela quer,

54 SCHRÖDER, Aufbau und Grenzen des Vorsatzbegriffs, in: Sauer-FS, 1949, p. 207 e ss;
SCHMIDHÄUSER, Strafrecht AT, 2 Aufl., 1975, 10/89 e ss (e em diversos outros lugares).
55 JAKOBS, Strafrecht AT, 2 Aufl., 1991, 8/21-32.
56 HERZBERG, JuS 1986, p. 249 (e em diversos outros lugares).
* NT: sobre a recente variação na teoria do perigo de Herzberg cf. VIANA, Sobre a estrutura
do dolo, REC 77, p. 89-90; ou, do próprio HERZBERG, JZ 2018, p. 129.
* NT: Para uma análise de todas essas propostas teóricas, cf. VIANA, Dolo como compromisso
cognitivo, 2017, p. 88 e ss; ROXIN/GRECO, Strafrecht AT I5, 2020, § 12, Rn. 35 e ss.
57 H. MAYER, Strafrecht AT, 1953, 26/6 e ss; idem, StuB AT, 1967, p. 121.
58 ROSS, Über den Vorsatz, 1979, p. 114 e passim.
59 SCHUMANN, JZ 1989, p. 433.
60 JOERDEN, Strukturen des strafrechtlichen Verantwortlichkeitsbegriffs, 1988, p. 151.
61 PUPPE, NK, § 15, nm. 92.
62 PUPPE, Strafrecht AT, § 16, nm. 38.
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então, “dentro da confiança proibida na não produção do resultado, diferençar


entre uma confiança que mereça o menor reproche da culpa e outra que mereça o
mais severo reproche do dolo”. Não fica claro, entretanto, como se levará a cabo
tal diferenciação com o parâmetro da racionalidade.
Tampouco o critério da estratégia idônea para a realização do resultado
(acima I) permite uma diferenciação plausível, pois cada superação do risco per-
mitido é um meio adequado, no sentido de idôneo, para a realização do resul-
tado. Na zona do risco proibido, não é possível diferençar entre método idôneo
e inidôneo, mas sim apenas entre métodos de realização do resultado mais ou
menos idôneos; isso corresponde à maior ou menor periculosidade do compor-
tamento do autor. Os graus de idoneidade ou perigo movem-se em uma escala
escorregadia, a qual não permite localizar qualquer censura que marque a tran-
sição para o perigo doloso. A diferença move-se para um destino ainda mais in-
seguro em razão de Puppe63 reconhecer perigos dolosos que não são vistos como
estratégias idôneas para a realização do tipo. Por exemplo: o caso do autor que
“indubitavelmente tomou contramedidas em relação à produção do resultado,
ainda que, possivelmente, completamente insuficientes”, ou o caso de um atira-
dor mediano que queria disparar na bola de vidro que a garota tinha nas mãos e
não na garota efetivamente atingida.
Depois de tudo o que foi dito até aqui, não pode surpreender o fato de
que a literatura dirige à teoria do perigo doloso o reproche da completa indeter-
minação64. Puppe65 cuida dessa objeção por meio da advertência segundo a qual
“não decide à luz de cotas de probabilidade, senão “com o amparo de uma rica
experiência de modelos ilustrativos de perigo e métodos”. Acontece que as típi-
cas ações homicidas tomadas como referência pertencem, para os defensores de
todas as concepções, aos “casos centrais” da imputação dolosa e, enquanto isso,
o julgador permanece desorientado nos casos-limite.
4. Outra objeção contra a teoria do perigo doloso decorre da lei. Com uma
observação natural se poderia pensar que um autor que proporcionou dolosa-

63 PUPPE, Strafrecht AT, § 16, nm. 42.


64 STRATENWERTH, Strafrecht AT, 4 Aufl., 2000, § 8, nm. 102, nota de rodapé 132: o parâmetro
da estratégia em geral idônea para a realização do resultado limita “ou bem já delimita
a imputação objetiva como juízo de adequação ou é totalmente indeterminada”; KÜHL,
Strafrecht AT, 4 Aufl, 2002, § 5, nm 68a: “[...] o parâmetro da racionalidade permanece
amplamente na escuridão”. Para outros críticos mencionados por KÜHL, cf. idem, nota de
rodapé n. 192g.
65 PUPPE, Strafrecht AT, § 16, nm. 40.
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mente “um tratamento perigoso para vida” da sua vítima (§ 224 I, nr. 5, do StGB)
instala, com isso, um perigo doloso, pois um autor racional somente faria isso se
eventualmente se conformasse com a morte da vítima. Considerando a possível
morte da vítima, um tratamento perigoso para a vida também aparenta uma es-
tratégia especialmente idônea de realização do resultado. A afirmação de que em
tais casos sempre haveria que se decidir pelo dolo de homicídio não é tolerada
pelos preceitos legais, os quais, nesses casos, considera possível a lesão corporal
grave66 (gefährliche Körperverletzung). Como consequência, em muitos casos em
que já há perigo para a vida, Puppe precisa considerar que estes ainda não têm
magnitude suficiente para caracterizar o perigo doloso. Eu não vejo, entretanto,
como isso pode ser conclusivamente fundamentado com os seus critérios da ra-
cionalidade e da estratégia.
O mesmo vale para os delitos de perigo concreto67. Também nesse caso seria
necessário dizer que há um perigo doloso quando alguém dolosamente cria um
perigo concreto, por exemplo, no sentido dos §§ 315 e ss do StGB*, pois, de acordo
com um julgamento racional, é necessário dizer que o autor aceitou a produção
do resultado com o seu comportamento. A criação de um perigo concreto tam-
bém é uma estratégia idônea de realização do resultado. Puppe, no entanto, refuta
essa objeção68 ao argumentar que um perigo concreto já existe quando uma lesão
não é “algo completamente improvável” (nicht außerhalb jeder Wahrscheinlichkeit)
e que isso ainda não é suficiente para o perigo doloso. A jurisprudência exige,
por sua vez, que a segurança de determinada pessoa ou coisa precisa ser tão for-
temente perturbada “que a lesão, ou não, do bem jurídico dependerá somente da
casualidade” (BGH NStZ 1996, p. 83 e s). Pois bem, a “chance real” daquele que
está em perigo de “evitar a colisão acionando os freios ou desviando” – contra o
que sugere Puppe – ainda não origina um perigo concreto69. Se isso é assim, então
pouco se pode imaginar a criação dolosa de um perigo concreto que não funda-
mente, ao mesmo tempo, um perigo doloso em relação a um delito de lesão.

66 Igual advertência em BGHSt, 36, 16.


67 Comparar também com SCHÜNEMANN, Vom philologischen zum typologischen
Vorsatzbegriff, p. 370, nota de rodapé n. 23.
*
NT: o autor faz referência ao delito de perigo concreto no sistema de tráfego, em especial,
o viário. Nesse caso, considera-se que o perigo precisa conduzir a um severo abalo na
segurança do trânsito. Para julgar o perigo, recorre-se ao exame de prognose póstuma
objetiva. Cf. FISCHER, StGB66, § 315, nm. 14.
68 PUPPE, NK, § 15, nm. 121.
69 Sobre a discussão atual da teoria e jurisprudência sobre o perigo concreto, cf. ROXIN,
Strafrecht AT, § 11, nm. 121 e ss.
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Em contrapartida, a concepção normativo-volitiva aqui defendida pode


esclarecer, sem embaraços, porque, na maioria dos casos, o dolo de lesão ainda
não pode ser afirmado, por exemplo, quando alguém com extrema desatenção
viola a preferência ou realiza levianamente manobra de ultrapassagem, ainda
que seja criado um “perigo próximo” à produção do resultado, como exige a
jurisprudência para os crimes de perigo concreto. E a razão é simples: como o
próprio causador do perigo se coloca em uma situação de risco tão elevada como
a dos terceiros ameaçados, então é plausível supor que, apesar da criação do pe-
rigo concreto, ele confiava na evitação do resultado de lesão.
5. Há ainda última objeção: deve-se rechaçar que a teoria do perigo doloso
seja superior a uma concepção normativo-volitiva por eliminar da delimitação
do dolo todos os fatores irracionais. Quando Puppe70, contra a opinião que atribui
a Rudolphi e a mim, nega “aceitar um real ou apenas suposto processo irracio-
nal de repressão psíquica” (Verdrängungsprozess)* por meio do qual o autor “que
reconhece um elevado perigo nega relevância disso para a sua ação”, deve-se,
então, simultaneamente considerar que, também de acordo com a posição aqui
assumida, as repressões psíquicas do perigo apenas aliviam responsabilidade,
à medida que essas, como julgamentos normativos de todas as circunstâncias,
atenuem de tal maneira a culpabilidade do autor que se pode reconhecer que ele
não se decidiu contra o bem jurídico. Aquele que dispara um projétil em direção
à cabeça do seu inimigo ou crava uma faca em seu peito não pode se valer de que
confiava na sobrevivência da vítima. Desse modo, a orientação (Überformung)
normativa dos critérios de delimitação volitivos também impede os aventureiros
e fictícios privilégios de repressão psíquica que não encontram qualquer amparo
na realidade.
Por outro lado, a teoria do perigo doloso não pode evitar de considerar as
temerárias* repressões de perigo porque, na consciência do autor, os elementos
cognitivos e volitivos são frequentemente inseparáveis. Lembremo-nos dos dois
casos acima tratados: os maus-tratos à criança e o espancamento, ambos com con-
sequências fatais! Quem seria capaz de decidir se os autores, sob as especiais cir-
cunstâncias do caso, claramente pensaram na possibilidade de um desenlace fa-

70 PUPPE, Strafrecht AT, § 16, nm. 39.


* NT: sobre o porquê dessa opção e outras sugestões, cf. VIANA, Dolo como compromisso,
p. 108, nota de rodapé n. 283.
* NT: o substantivo utilizado é Lichtsinn. Noutro lugar optei pela tradução por temerário.
Aqui, porque o contexto permite, também utilizei o substantivo leviandade, como já sugeriu
Luís Greco. cf. PUPPE, A distinção entre dolo e culpa, 2005, p. 55, nm. 54. Os porquês da
minha opção estão em Cf. VIANA, Dolo como compromisso, p. 110, nota de rodapé n. 289.
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tal? Ou se eles, caso tivessem pensado nisso, não subestimaram de tal maneira o
perigo dos seus golpes que, considerando as suas representações, ainda não seja
possível admitir um perigo doloso?71 Em ambos os casos, mesmo Puppe precisa
excluir a atribuição do dolo porque os autores, em razão dessa irreflexão temerá-
ria, não reconheceram o que deveriam ter reconhecido e levado em consideração.
Desde a minha perspectiva assumida nesse trabalho, não importa que em
muitos casos não seja possível esclarecer se o autor efetivamente pensou na pos-
sibilidade de produção do resultado; se ele notou o risco, mas o subestimou de
modo a excluir o dolo; ou se ele, com o conhecimento suficiente do risco, acredi-
tou na evitação do resultado. Essas três possibilidades autorizam a excluir a pena
por dolo. Para a teoria do perigo doloso, entretanto, a diferenciação – muitas
vezes injusta – entre os dois primeiros casos e o terceiro é decisiva para a possibi-
lidade de imposição da pena por dolo.
Seria possível dizer que a teoria do perigo doloso em comparação com a
proposta teórica aqui defendida, inclusive, apresenta maiores dificuldades com
os fatores irracionais de conhecimento relevantes da ação na psique do autor.
Também Jakobs72, cuja perspectiva é próxima da teoria da probabilidade, sina-
liza, com razão, que “as condições do ato de reconhecimento não são somente
de tipo intelectual” e adverte contra subestimar “a repercussão da temeridade,
a repressão psíquica etc. na dimensão intelectual”. Aqui há um problema que
nenhuma teoria pode ignorar e que, em qualquer caso, não pode ser solucionado
por uma delimitação que recorra a fatores cognitivos puros.
V. Minha síntese é a seguinte: a delimitação entre o dolus eventualis e a
culpa consciente não pode prescindir de parâmetros normativos de valoração. O
substrato dessa valoração não pode, entretanto, ser delimitado por determinada
representação do perigo. O juízo sobre se o autor – seja em uma emergência ou
naturalmente – se decidiu contra o bem jurídico proibido deve ser traçado con-
siderando-se todos os elementos – objetivos e subjetivos – da situação criminosa
relevantes para a atitude do autor.

71 Ao menos Puppe exige o conhecimento dos fatores integrantes do risco que fundamentam
o perigo doloso, cf. PUPPE, NK, § 15, nm. 99. Mas ela também exige que o autor tenha
valorado adequadamente o perigo; ele não precisa, entretanto, valorar o perigo como perigo
doloso. Na literatura é debatido o ponto de partida de Puppe sobre o conhecimento do
risco. Cf. STRATENWERTH, Strafrecht AT, § 8, Rn. 114, nota de rodapé n. 139; PRITTWITZ,
Strafrecht und Risiko, p. 357. Sobre a resposta de Puppe às objeções de Prittwitz, cf. PUPPE,
Strafrecht AT, § 16, nm. 41, nota de rodapé n. 505.
72 JAKOBS, Strafrecht AT, 8/23.
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Eu termino essa contribuição deixando uma afetuosa felicitação a


Hans-Joachim Rudolphi, o meu primeiro e único assistente ao assumir o cargo de
Professor em Göttingen, em 1º de abril de 1963. Ele começou a sua carreira cien-
tífica comigo, ocupando-se do índice sistemático do meu livro Autoria e domínio
do fato, que ainda ornamenta a sétima edição (2000). Passados quase quarenta
anos desde então, Rudolphi se transformou em um dos nossos penalistas mais
importantes. Influenciou significativamente a ciência e a prática por meio de suas
monografias, tratados e, fundamentalmente, dos comentários “sistemáticos” ao
código penal e processo penal, por ele estruturados de modo decisivo, e cuja
redação integral tem sob a sua responsabilidade. Estou muito orgulhoso desse
discípulo que há um bom tempo se tornou um grande professor. Alegro-me por
poder estar presente no seu septuagésimo aniversário. Apesar da separação físi-
ca nas últimas décadas, a nossa relação pessoal sempre permaneceu viva e para
mim é igualmente uma satisfação que concordemos ampla e cientificamente em
tantos pontos fundamentais. Que ao homenageado sejam ainda concedidos mui-
tos anos de rica produção científica!

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Data de recebimento: 13.09.2020


Data de aprovação: 14.09.2020

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