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ISSN 1676-8698
Uma publicação do ITEC (Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais)
e da SÍNTESE, uma linha de produtos jurídicos.
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VIANA, Eduardo. O problema dos limites entre atos preparatórios e tentativa. Revista de Estudos Criminais, Porto
Alegre, v. 19, n. 79, p. 69-100, 2020.
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INTRODUÇÃO
A clara separação entre tentativa e preparação ainda não foi alcançada
nem pela doutrina nem pela práxis. Essa incerteza é curiosa porque nós sabe-
mos exatamente quando a preparação termina: no momento em que se inicia a
execução; mas não sabemos quando se inicia a execução. Se consideramos que
esse limite expressa, preponderantemente, a métrica entre os comportamentos
penalmente irrelevantes e os penalmente relevantes, logo se vê que estamos em
uma zona crítica da dogmática penal.
Não pense o meu leitor, entretanto, que a pergunta sobre o início da execu-
ção tem importância somente para a teoria do crime tentado; em absoluto. Essa
também é uma questão fundamental, por exemplo, para o concurso de agentes1.
Recorde-se, para ater-se somente ao Código Penal, o enigmático art. 31: “O ajus-
te, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em con-
trário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado”. Isso
significa, portanto, que, nas hipóteses de atuação nas quais se envolvem várias
pessoas, será necessário determinar em que momento começa a execução porque
somente a partir daí será possível iniciar a discussão sobre a punição dos demais
concorrentes. Creio que com isso é possível perceber não ser esse um artigo que
cultiva a dogmática penal como espécie de l’art pour l’art, senão que tem relevan-
te significado prático.
Do ponto de vista legal, descreve-se a tentativa como início da execução
de um ato que não se consuma por circunstâncias externas à vontade do agente
(art. 14, II, do CP). Do ponto de vista científico, é mais comum apresentar a ten-
tativa como realização completa do tipo subjetivo e realização incompleta do tipo
objetivo. É justamente nesse ponto de realização incompleta do tipo objetivo que
o problema se apresenta de modo mais agudo. Salvo antiga posição da doutrina,
há consenso discordante da literatura científica e jurisprudência: consenso quanto ao
fato de que já se poderia falar em tentativa não somente quando o agente inicia
a execução do núcleo do tipo, senão também com comportamentos que estão no
campo prévio do tipo penal2; dissenso quanto aos critérios que devem ser maneja-
dos para a sua determinação desse campo prévio.
Curiosamente, esse parece ser um tema que não desperta muito interesse
científico da literatura nacional3. Contudo, como o leitor logo comprovará, a dis-
cussão é bastante antiga e complexa. Do ponto de visa da relevância teórica, este
artigo atende a dois objetivos primordiais: reparar algumas imprecisões e incom-
preensões conceituais que persistem em nossa literatura (i) e fomentar a discus-
são científica a partir da análise das diversas posições teóricas discordantes (ii).
A discussão teórica será conduzida, essencialmente, por três casos con-
cretos. O objetivo, do ponto de vista pragmático, também será duplo: expor as
consequências práticas das proposições teóricas que professamos para, assim,
verificar se estamos dispostos a aceitar as soluções que essas apresentam (i) e,
simultaneamente, exercer o controle científico das decisões judiciais, isto é, veri-
ficar se os argumentos lançados pelos tribunais permitem alcançar a conclusão a
que se chegou (ii).
O desenvolvimento desses objetivos será pavimentado do seguinte modo:
primeiro, um breve enunciado sobre a legislação alemã e a brasileira. Isso porque
compreender algumas soluções teóricas passa necessariamente pela compreen-
são do ponto de partida legal (abaixo 1); depois, apresentarei os casos (abaixo
2) a partir dos quais serão discutidas as propostas doutrinárias utilizadas para
levantar a fronteira entre a preparação e a tentativa (abaixo 3); conhecidos os
argumentos, a coerência das decisões será testada (abaixo 4) e, finalmente, serão
apresentadas consequências teóricas que podem ser aproveitadas para desenvol-
ver a discussão do tema em território nacional (abaixo 5).
truções científicas do direito penal4. Acontece que a discussão alemã – que nos
abastece com os seus nomes e teorias – tem como ponto de arranque um texto
legal concreto, eventualmente semelhante ao nosso, mas muitas vezes bastante
distinto. Nem sempre, portanto, uma sugestão teórica pensada pela dogmática
alemã pode ser automaticamente incorporada à nossa discussão. A seguir espero
deixar clara a importância de se realizar esse controle sobre a migração teórica5.
No caso alemão, a teoria do crime tentado é construída a partir da análise
conjunta dos §§ 22 e 23 do StGB6. Para o objetivo do presente estudo, interessa-
-nos somente o primeiro: “Tenta o delito quem, segundo a sua representação
do fato, coloca-se imediatamente diante da realização do tipo”7. Observe que há
duas elementares no tipo: a representação do autor e o colocar-se imediatamente diante
da realização do tipo. Esse dispositivo, fruto da reforma de 1975, não repetiu a ex-
pressão “início da execução” do antigo § 43 do StGB8.
Antes de prosseguir, cumpre um pequeno esclarecimento em relação à
tradução da elementar unmittelbar Ansetzen. Na literatura nacional, Zaffaroni e
Pierangeli, por exemplo, usam o termo “[...] se esmera imediatamente à reali-
zação do tipo”9. Essa tradução é incapaz de expressar o que termo efetivamente
significa em alemão. Em alemão utiliza-se verbo preposicionado “ansetzen zu”,
que significa estar preparado para fazer algo; começar com alguma coisa. A elementar,
portanto, alcança mais do que simplesmente realizar o verbo do tipo; ela atinge
claramente momentos antecedentes. “Colocar-se imediatamente diante da reali-
zação”, portanto, parece-me uma tradução mais apropriada.
Ainda que pareça um artigo mais completo que o brasileiro, a própria
doutrina alemã considera que esse dispositivo não difere substancialmente da
art. 14, II diz mais sobre a preparação do que sobre a tentativa. Noutros termos:
no código penal brasileiro nada será possível encontrar além de uma singela di-
reção para o tipo objetivo da tentativa15.
Apesar de a nossa legislação ser mais precária, e aqui não julgo se isso é
bom ou ruim, tanto no Brasil quanto na Alemanha a questão fundamental não
desaparece: em que momento o autor começa a realizar ações que autorizam a
punição a título de tentativa16? Ao vistoriar os dispositivos de perto, logo se nota
que o protótipo para a nossa discussão será a tentativa inacabada realizada por
único autor17. Vejamos alguns casos que permitem adentrarmos a discussão.
2 AS DECISÕES
Em virtude de as discussões científicas objetivarem resolver problemas
concretos, um bom ponto de partida é aquele que leva a sério os argumentos
manejados pelas decisões judiciais. Isso nos obriga não somente a mencionar os
casos que serão submetidos ao escrutínio teórico, senão também a reconstruir a
ratio da decisão. Sugiro analisar o início da tentativa levando-se em consideração
três casos. O primeiro e recentíssimo caso, julgado pelo BGH, tribunal alemão
equivalente ao STJ, foi – no essencial – o seguinte:
Caso 1. X quer arrombar uma máquina automática para pegar cigarros e dinhei-
ro. Ele depõe ao lado da máquina diversas ferramentas utilizadas para roubo,
entre essas um esmeril. Para tentar reduzir o barulho, cobre a máquina com
uma toalha de mão e uma manta. Julgando que podia encontrar uma tomada
nas imediações, X deixa cabo de força sobre a rua; ocorre que X não encontra
nenhuma tomada. Então, percebe que não poderá abrir a máquina de cigarros
com o esmeril. Desde o início, X também considerou outras opções para abrir o
equipamento e, por essa razão, carregava outras ferramentas consigo. Por su-
por que poderia ser descoberto e temer o alarme, ele não segue com a operação,
deixa furtivamente o local e abandona os instrumentos no lugar do crime.18
22 HILGENDORF/VALERIUS, 10/61.
23 Cf. JAKOBS, AT2, p. 726 e ss., Rn. 55 e ss.
24 Cf. BGH (5º. Senado Penal), decisão de 28.04.2020 – 5 StR 15/20, BeckRS 2020, 9020; BGH
NStZ 2017, 86 com comentário de ENGLÄNDER; KUDLICH JA 2017, 152; NStZ 2019, 716
com comentário de KUDLICH NStZ 2020, 34; BGH, Beschlüsse vom 20. September 2016 – 2
StR 43/16, NStZ 2017, 86; 3 StR 105/14, NStZ 2015, 2017. Na doutrina, S/S-ESER/BOSCH30,
§ 22, Rn. 58; BOSCH, Jura 2011, 910; EISELE, JA 2006, 313; HILGENDORF/VALERIUS,
Direito penal; trad. Orlandino Gleizer, 10/61; KÜHL, AT8 § 15, Rn. 54; RENGIER AT11 § 34
Rn. 60; WESSELS/BEULKE/SATZGER, AT48, Rn. 957; ZIESCHANG Rn. 502. Comparar,
ainda, vgl. FISCHER, StGB67, § 22 Rn. 36; SSW-StGB/KUDLICH/SCHUHR4, § 22 Rn. 47.
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25 No século XIX, BESELER, Komm. 1851, p. 138; OPPENHOFF, Komm.5 I867, § 3I Nr.17;
HÄLSCHNER, Strafr. I, I88I, p. 173 e ss. No século XX, FRANK, StGB18, § 43 II, 2.
26 KÜHL, AT8 § 15, Rn. 44.
27 BGHSt 28, 162. Deixando a solução em aberto, FRISTER, AT, 23, Rn. 41.
28 Uso o termo teoria com algumas concessões. Parcela das proposições abaixo não expressa
uma teoria em sentido estrito, senão somente apresenta um critério para a distinção entre
preparação e tentativa. Esclarecida a concessão, não há prejuízos.
29 Para outras teorias bastante presentes na doutrina mais antiga, cf. FARRÉ TREPAT,
La tentativa del delito, 1986, p. 142 e ss; v. HIPPEL, AT II, § 29, p. 399 e ss; HUNGRIA,
Comentários5, vol. I, t. II, p. 81 e ss.
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te relevante e o tipo penal; por isso, com razão, a literatura considera que a teoria
é orientada pelo princípio da legalidade37.
Não esqueça o meu leitor, e isso também está por trás da formulação, que,
no final do século XIX e princípio do século XX, estávamos sob o apogeu do
pensamento naturalista. Daí por que não surpreender que os teóricos daquele
período, a exemplo de v. Liszt e Beling, proponentes da teoria causal-naturalista
e defensores da teoria formal-objetiva, para permanecerem com um sistema de
delito coerente com as suas premissas, exigissem a materialização típica – total
ou parcialmente – do comportamento humano.
Se considerarmos o caso 2, do túnel, e levarmos a sério os argumentos su-
geridos pela proposta teórica, não é possível afirmar que os agentes ingressaram
na fase de execução. Salvo se admitirmos um grosseiro rebaixamento linguístico
– afinal, escavar nem de longe é o início da realização da subtração (núcleo do
tipo-base). Nesse caso, a solução dogmática mais coerente, portanto, seria – no
máximo – pela possibilidade de punição pelo esbulho – art. 161, § 1º, II, do CP.
Em relação aos casos 1 e 3, mesmo que eles apresentem alguma dificuldade e a
intuição nos recomende a tentativa, a verdade é, pela mesma razão, que também
não estamos diante de uma ação de subtração, com o que restariam apenas possí-
veis crimes de dano (art. 163 do CP) ou de violação de domicílio (art. 150 do CP).
Vamos à análise crítica.
Desde a perspectiva alemã, a objeção central decorre da incompatibilidade
com o § 22 StGB, eis que se colocar imediatamente diante da realização do tipo ou
– na plástica expressão de Roxin – na cercania do tipo (Tatbestandsnähe38) significa
claramente que a execução do núcleo do tipo não foi iniciada39. Noutros termos:
a lei alemã admite claramente que o início da tentativa antecede a ação de reali-
zação típica. A questão concreta que se apresentará para o intérprete da lei alemã
será a de determinar em que momento o agente está na periferia de realização do
tipo (v. abaixo 3.2.2 e ss.).
Desde a perspectiva brasileira, duas constatações causam espécie. Primei-
ro, o fato de que essa teoria ainda seja levada muito a sério por parcela da litera-
tura40 brasileira e ainda considerada pela nossa jurisprudência. Isso não somente
41 “Nesses termos, o critério também deve ser objetivo-formal, que foi adotado pelo Código
Penal brasileiro, de acordo com a redação do art. 14, II”. Por todos, cf. BITENCOURT,
DP26 I, cap. XXVI, n. 4; NUCCI, Manual10, cap. XVIII, n. 2.5.
42 BITENCOURT, DP26 I, cap. XXVI, n. 4.
43 Por todos: FARRÉ TREPAT, La tentativa del delito, 1986, p. 158.
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carga semântica do verbo matar sugere que a execução da ação típica é somente o
ato de puxar o gatilho44. Mas aí caímos em um problema lógico. Se vinculamos o
início da execução à realização do verbo, quase sempre, a realização desse verbo
expressará o último ato de execução (e não o seu início), de modo que se fundem
tentativa e consumação em um só momento45. Imagine-se o disparo em direção a
uma região letal do corpo da vítima: puxar o gatilho é – com efeito – o fim e não o
início da execução. Como o que chegamos à impossibilidade de admitir tentativa
inacabada em um grande número de casos.
Mas a objeção não é somente dogmática, pois é possível levantar uma úl-
tima de cunho político-criminal: se somente o ato de puxar o gatilho representar
início da execução do homicídio, então, se com isso ganhamos algo de certeza,
certamente o é com o sacrifício do bem jurídico. Dizendo de outra maneira: essa
é uma teoria que estreita demasiadamente a punibilidade de um comportamen-
to46. Enquanto o autor não disparar, não tocar na coisa, mover-se-á no âmbito
do indiferente penal – o que nos parece dificilmente aceitável, tendo em vista
a situação precária em que o bem pode então se encontrar. Aquele que, arma-
do e com intenção de matar, conduz a sua vítima a lugar ermo, faz que ela se
ajoelhe, encosta-lhe uma pistola na nuca, mas é interrompido pelo grito “Pare,
é a polícia!”, não terá entrado em tentativa de homicídio. Por isso, como afirmei
acima, a proposição teórica não se sustenta nem do ponto de vista dogmático
nem político-criminal47.
Antes de passar à próxima proposta teórica, cumpre a última advertência.
Imagino que o meu leitor tenha considerado a seguinte hipótese: a teoria não
pode ser um ponto de partida, mas serve para confirmar, sempre, que o agente
iniciou uma execução48. Formulando o argumento desde uma perspectiva inver-
tida: a realização do núcleo do tipo é sempre suficiente para que se reconheça
a tentativa49. Majoritariamente sim, mas nem sempre. Há grupos de delitos nos
quais o agente pode ter realizado ações que fazem parte do tipo, sem que isso
57 Sobre as concepções causais e os diversos defensores, cf. FARRÉ TREPAT, La tentativa del
delito, 1986, p. 159 e ss.
58 LK12-HILLENKAMP, § 22 Rn. 62.
59 SK-RUDOLPHI, § 22 Rn. 11; WELZEL, Das deutsche Strafrecht11, p. 190.
60 WELZEL, Das deutsche Strafrecht11, p. 190.
61 BGHSt 43, 177.
62 Para caso semelhante, do envenenamento do marido, cf. SK-RUDOLPHI, § 22 Rn. 11.
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sótão da casa. A polícia, notificada por “X”, presumiu que os invasores voltariam
nos dias seguintes para recolher o objeto do furto. Entretanto, “X”, chateado com
a invasão, preparou e colocou no hall de entrada da casa uma garrafa com a cha-
mativa inscrição O autêntico licor de ervas da selva bávara; o conteúdo, entretanto,
era um líquido altamente tóxico. “X”, que permaneceu na casa, sabia que o con-
sumo de pequenas quantidades poderia rapidamente levar à morte; ele contava
com que os invasores voltariam à casa, beberiam o líquido e, naturalmente, po-
deriam morrer de maneira rápida. “X” é punível por tentativa de homicídio? Se
considerarmos o plano do autor isoladamente, há que se decidir pela tentativa;
afinal, se para o autor a colaboração da vítima é o próximo passo, então a coloca-
ção da bebida no hall de entrada expressa ato de execução63; o curso causal já saiu
das mãos de “X”. Para colocar em um último exemplo: imagine-se que o indiví-
duo “Y” falsifica a assinatura de um terceiro para receber determinada quantia
em dinheiro. O crime de falsificação começa com o ato de falsificar; o crime de
estelionato começa com a apresentação da nota para o recebimento do dinheiro64.
Para essa doutrina, portanto, é importante que o juízo sobre o começo da execu-
ção tenha como base o plano individual do autor (teoria individual-objetiva), e
não o ponto de vista de um espectador hipotético (teoria formal-objetiva)65.
Há problemas fundamentais em qualquer construção teórica que faça re-
ferência ao plano do autor para a determinação da responsabilidade. Primeiro,
transforma o intérprete em servo da vontade delitiva; o importante para o Direi-
to não é a constituição psíquica do indivíduo, senão o que seu comportamento
expressa para o Direito. Segundo, cria evidentes embaraços probatórios; como
saber, exatamente, se havia e qual era o plano? Não por outra razão a jurispru-
dência agrega critérios para a concretização da fórmula. Voltarei a esses critérios
mais adiante (cf. abaixo 3.2.8).
63 Tanto o BGH quanto a doutrina, por manejarem critérios adicionais ao plano do autor,
recusaram a punição por tentativa de homicídio.
64 Cf. WELZEL, Das deutsche Strafrecht11, p. 190.
65 WELZEL, Das deutsche Strafrecht11, p. 191.
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da tentativa: quando o autor executa uma ação que, de acordo com o seu plano,
em caso de marcha tranquila dos fatos, conduzirá imediatamente à realização do
tipo e, assim, põe o bem jurídico protegido em perigo66.
Desde a perspectiva da legislação alemã, que admite a punição da tentati-
va inidônea, essa teoria é incompatível com o texto legal; afinal, naquela espécie
de tentativa não existe o perigo para o bem jurídico. Para usar o exemplo de
Samson: o autor atira em direção à cama onde crê dormir a vítima. A cama, entre-
tanto, está vazia67. Como o Código alemão conhece a punição da tentativa inidô-
nea – e nesse caso não há perigo para o bem jurídico –, a punição daquele autor
não pode ser justificada com base no perigo. A saída seria conceber o perigo
não mais como grandeza objetiva, mas, sim, subjetiva: haveria início da tentativa
quando o bem, segundo a perspectiva do autor, entrasse em situação de perigo.
A teoria do perigo formulada subjetivamente – desde o plano do autor –
seria, entretanto, incompatível com o Direito brasileiro. Recorde-se que o Brasil
considera penalmente irrelevantes as tentativas que não representam perigo para
o bem jurídico (art. 17 do CPB). Não por outra razão, Hungria – em um dos pou-
cos casos em que a sua opinião não fez coisa julgada no Brasil – filiou-se à teoria
da hostilidade ao bem jurídico, adotada na Alemanha por M. E. Meyer68 e Giese69.
Escreveu Hungria: “Ato executivo é o que ataca efetiva e imediatamente o bem
jurídico; ato preparatório é o que possibilita, mas não é ainda, sob o prisma obje-
tivo, o ataque ao bem jurídico”70. De modo que a aquisição da arma expressaria
um ato preparatório; o disparo um ato executivo71. Não fica difícil concluir que
essa é uma teoria formal-objetiva disfarçada de teoria do perigo porque, com
efeito, reserva o início da execução para o momento do ataque ao bem jurídico.
Mas vamos às objeções mais severas.
Parcela da literatura começa a levantar objeções no sentido de que com
o critério do perigo não se ganha em rendimento para o delineamento das
fronteiras da tentativa. Isso porque, especialmente como demonstra o caso do
66 Fazem referência à teoria do perigo, ainda que com variações, S/S-ESER/BOSCH30, § 22,
Rn. 42; KÜPPER JZ 1992, 338 (340); D. MEYER, JuS 1977, 21 e ss; OTTO, Grundkurs StrafR7,
§ 18 Rn. 30; OTTO, JA 1980, p. 642; SONNEN, JA 1979, p. 334; ZACKZYK, Das Unrecht der
versuchten Tat, 1989, p. 306. Na jurisprudência, BGHSt 2, 380; 4, 334; 7, 291; 9, 64; 22, 81.
67 SAMSON, Strafrecht7 I, p. 158.
68 MEYER, Max Ernst. AT, p. 352-352, Rn. 29.
69 GIESE, D. Zur Abgrenzung von Vorbereitung und Versuch, p. 45.
70 HUNGRIA, Comentários ao Código Penal4, v. I, t. II, p. 84.
71 HUNGRIA, Comentários ao Código Penal4, v. I, t. II, p. 84-85.
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72 BERZ, Jura 1984, 513; v. HIPPEL, AT II, § 29, p. 399 e ss; KINDHÄUSER/ZIMMERMANN,
AT9 § 31, Rn. 17; SK-RUDOLPHI, § 22 Rn. 10.
73 Nesse sentido, SAUER, Allgemeine Strafrectslehre3, p. 102. Há referências ao perigo atual
como um critério para a determinação do começo da tentativa, também, em Carrara, por isso,
por exemplo, a simples aquisição da arma ou do veneno e a investigação para obter dados
expressariam aquilo que ele denomina de atos preparatórios absolutos. Os atos preparatórios
contingentes seriam aqueles que podem expressar um perigo atual, mas estão desconectados
da clara intenção do agente em realizar o delito; se a intenção for clara, entretanto, esses
atos, posto que são contingentes, podem então configurar início da tentativa: o ato isolado
de entrar em residência alheia, se dissociada da inequivocidade de um delito, é um ato
preparatório, configura somente o crime de invasão de domicílio; entretanto, se é o inimigo
mortal que entra na residência à noite, com um punhal, então isso é tentativa de homicídio.
cf. CARRARA, Programa de derecho criminal, t. 1, p. 199, § 358 e ss.
74 BERZ, Jura 1984, 513.
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menor destaque, quase sempre estiveram presentes. A questão que se põe será
– então – sobre como fundamentar uma teoria do perigo que supere as incertezas
e objeções apresentadas. A teoria a seguir é, sem dúvida, a filha preferida dessa
ideia.
Isso significa que a valoração sobre o que expressa ou não um ato intermediário
não se deve fazer recorrendo-se ao método de segmentação fotográfica do desen-
rolar do ato, como uma espécie de câmera lenta81. Isso não seria coerente com o
critério sugerido pela teoria, afinal, eventuais atos intermediários fotografados
não parecem ser atos essenciais no sentido sugerido pela teoria. Desse modo,
não está em estágio preparatório aquele que, antes de efetuar o disparo mortal
em direção à vítima, ainda precisa realizar atos intermediários como apontar e
carregar a arma, bem assim puxar o gatilho para disparar o projétil82.
Se aplicarmos a teoria aos casos propostos, então, nos casos 1 e 3 chegaría-
mos à mesma solução, isto é, pela fundamentação da tentativa. Entretanto, no
caso 2, o do túnel, a resposta será diversa porque, estando os acusados a mais
de doze metros do ponto externo do banco, ninguém parece duvidar que seria
necessário realizar, ainda, uma série de atos para se conectar com a realização
do furto, a exemplo do término da escavação e superação do portentoso sistema
interno de segurança do banco, entre outros.
Em uma valoração geral, essa parece ser uma teoria com bastante capaci-
dade de rendimento. Será necessário, entretanto, concretizá-la, deixar mais evi-
dente aquilo que a intuição claramente responde, isto é, como caracterizar um ato
como essencial (ou não). A jurisprudência tenta realizar essa tarefa adicionando
linguisticamente expressões como a “ininterrupta fluidez” do curso dos fatos e o
comportamento espacial e temporalmente próximo à realização do tipo (cf. abai-
xo, 3.2.8).
por exemplo, Roxin considera haver início da tentativa não somente quando o
autor atua violentamente sobre vítima, senão quando o autor toca a campainha
da sua casa, com a intenção de atacar assim que a porta seja aberta85. Nos tipos
penais que não requerem afetação da esfera da vítima, o autor deve chegar à esfe-
ra do tipo (a cercania da qual falávamos). Desse modo, no caso da falsificação de
moeda (§ 146 Abs 1 N. 1 StGB), por exemplo, haveria início da execução quando
o agente se aproxima do ato de falsificação, isto é, quando tem à sua disposição
os objetos mencionados no § 149 do StGB para ser colocada em marcha, sem de-
mora, a falsificação86.
No tocante à necessidade de conexão temporal, cumpre registrar que esse
critério não diz respeito à proximidade cronológica entre a ação e a realização
completa do tipo. Com efeito, pode haver muito tempo entre essas etapas: o ar-
rombador entra na esfera da tentativa quando aciona a furadeira no cofre, ainda
que precise de muito tempo para acessar o conteúdo87. Também vale registrar
que, a depender da estrutura do tipo (como é o caso do roubo ou do homicídio),
ambos os critérios devem estar presentes: desse modo, uma estrita conexão tem-
poral para a ação típica que não afete a esfera da vítima ainda não será suficiente
para afirmar o início da tentativa88.
Se aplicarmos o critério aos casos propostos, não há dúvida de que é pos-
sível afirmar a tentativa no caso da máquina de cigarros e do arrombador e de
que há somente uma preparação no caso do túnel. Essas soluções me parecem
adequadas dogmática e político-criminalmente. Isso não significa que a teoria
esteja livre de críticas. Há espaços para objeção.
Ao fazer menção à necessidade de penetração na esfera da vítima, Roxin
consegue alcançar, é verdade, um grande número de delitos. Entretanto, como
também é possível intuir, esse critério atrela a tentativa àqueles tipos penais que
protegem bens jurídicos individuais e com clara esfera de afetação. Para aqueles
tipos penais nos quais não se pode fazer claramente essa conexão, nos casos de
bens jurídicos coletivos, o critério se mostra de utilidade duvidosa89.
sobre a dimensão objetiva da tentativa97. Com isso ela carrega todas as objeções
que podem ser feitas a teorias que recorrem somente a dados internos para jus-
tificar punição.
No âmbito da jurisprudência do BGH, a teoria da prova de fogo da situa-
ção crítica assume a nova roupagem linguística do aí vou eu (jetzt geht es los); su-
perada essa barreira, estar-se-á no âmbito da tentativa98. No exemplificativo caso
julgado pelo BGH: o agente “A” havia decidido matar a vítima “S”, que vivia
em um quarto da casa dos sogros. A pega uma arma e põe-se em direção à casa
em que a vítima morava. A não consegue entrar no quarto, porque “S” havia
empurrado o sofá para bloquear a porta; quando ele finalmente consegue abri-la
o suficiente, a vítima e a sua esposa haviam escapado pela janela do quarto; “A”
observa que não há ninguém no sofá, efetua um disparo na parte superior desse
e deixa o local99. O BGH reconhece a tentativa e afirma: conforme a representação
do autor, a porta do quarto era o último obstáculo que ele precisaria superar para
atingir “X”. Por essa razão, ao entreabrir a porta, “A” necessariamente ultrapas-
sou a barreira do aí vou eu.
Essa adição do BGH, para além de renascer a criticável conexão da puni-
ção com carga subjetiva do agente100, também não acrescenta em precisão e pode
conduzir, na verdade, à ampliação exagerada do ato preparatório. Se aplicarmos
o critério isoladamente aos três casos propostos, não creio que alguém negará
o início da tentativa: em todos eles está mais que evidente a decisão pelo se do
crime ou, na plástica expressão do BGH, a decisão pelo aí vou eu! Justamente por
isso, o próprio tribunal agrega critérios corretivos. É o que passo a examinar.
101 OTTO, NStZ 1998, 244; NK5-ZACKZYK § 22 Rn. 23. Esse também parece ser o caminho da
jurisprudência brasileira.
102 Cf. LACKNER/KÜHL, StGB29, § 22 Rn. 4.
103 Cf. BGHSt 2, 380.
104 BGH NStZ 1987, 20, com referências a BGHSt 22, 80 (81); 26, 201 (202 ff.); 28, 162 (163); 30,
363 (364); 31, 178 (182, 183); 48, 34, 35 com comentário crítico de KÜHL JZ 2003, 637, 639;
HEGER JA 2003, 455 e PUPPE JR 03, 123, 125; NJW 03, 3068, 3070; NStZ 04, 38; 13, 156; NStZ
2004, 38 (39); 25.10.2012 – 4 StR 346/12, NStZ 2013, 156 (157); 11.06.2003 – 2 StR 83/03; BGH
NStZ 2014, 447, 448; BGH 21.08.2019 – 1 StR 191/19, BeckRS 2019, 26446; 17.07.2018 – 2 StR
123/18, NStZ 2019, 79; BGH 21.08.2019 – 1 StR 191/19, BeckRS 2019, 26446.
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Caso 5. A vítima “V” declarou que por volta de 21h caminhava na calçada quan-
do percebeu o acusado “X” caminhando em sua direção. “V” se assustou e
lhe perguntou o que queria, tendo ele colocado a mão por dentro da calça e,
segurando o órgão genital, feito gestos com os dedos chamando-a. Em seguida,
disse “V” que tentou fugir, mas caiu em um buraco, possibilitando que o acusa-
do a alcançasse. O acusado a segurou pelos cabelos, deu-lhe socos no rosto e no
tórax e tentou levá-la para dentro de um parque; enquanto ele a arrastava, um
veículo parou nas proximidades para averiguar os fatos e, após seus ocupantes
desembarcarem, o acusado fugiu em direção ao parque.106
vado pelo plano do autor109. Nesse caso, a menção ao plano do autor tropeça nas
objeções que antes apontei. Salvo se, e isso não está claro, a ideia seja a seguinte:
“Não é o autor que determina qual dos seus atos é executivo ou não, senão que
isso se delimitará objetivamente conforme o plano do autor”110. Se for assim,
então negamos simultaneamente o argumento 2.
Argumento 2. Não houve violação do art. 14, II, do CP, pois os atos externados
ultrapassaram meros atos de cogitação ou de preparação e expuseram a perigo
real o bem jurídico protegido pela norma penal, inclusive com a execução da
qualificadora do furto.
Análise. Esse fundamento, como disse, pode ser uma antítese do anterior por-
que, ao fazer referência ao perigo real, isso significa que o fato está valorado
unicamente a partir do parâmetro objetivo.
Entretanto, a conclusão de que o bem jurídico (propriedade; guarda da coisa)
foi exposto a perigo real quando os agentes estavam a 12,80 metros do ponto
externo do banco é no mínimo questionável. Parte dessa conclusão deriva, como
antecipei, do fato de que o próprio conceito de perigo concreto é indeterminado
(v. acima 3.2.4).
Na dúvida, a decisão deveria indicar pela realização de atos preparatórios.
Conclusão. Os argumentos lançados não permitem atingir a conclusão a que a
decisão chegou.
109 Sugere esse modelo, certamente porque na Alemanha se pune a tentativa inidônea. S/S-
-ESER/BOSCH30, § 22, Rn. 42.
110 Cf. ALCÁCER GUIRÃO, Tentativa y formas de autoria, 2001, p. 48.
111 REsp 1.683.589/RO, Rel. Min. Nefi Cordeiro.
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Argumento 2. O início dos atos executórios pode ser aferido por outros elemen-
tos que antecedem a própria subtração da coisa, como a pretensão do autor,
a realização de atos tendentes à ação típica, ainda que periféricos ao tipo, a
idoneidade do ato para a realização da conduta típica e a probabilidade con-
creta de perigo ao bem jurídico tutelado, considerados os atos realizados no
momento da flagrância.
Análise. Embora não exista menção expressa a qualquer teoria é, sem dúvida,
uma descrição coerente com os argumentos que conhecemos.
Argumento 3. Embora a subtração não tenha sido efetivamente iniciada, o risco
ao patrimônio de quem teve a casa invadida, quando o agente criminoso é sur-
preendido, considerando-se a idoneidade da invasão para a realização da con-
duta típica, constituem relevantes atos periféricos indubitavelmente ligados ao
tipo penal do delito de furto. De modo que se inicia a tentativa com a atividade
que materializa o plano delitivo do agente, aproximando-se da conduta típica;
portanto, os atos externados na conduta do agente expuseram a perigo real o
bem jurídico protegido pela norma penal.
Análise. Há, nesse argumento, uma pequena imprecisão de fundamentação,
possivelmente gerada pela decisão anterior, que lhe serviu de referência. Estou
substancialmente de acordo com o argumento de que a conduta expôs o bem
jurídico protegido a perigo. Mas essa análise, como acabei de registrar, não
deve ser feita levando-se em consideração o plano delitivo do agente, senão a
partir de um parâmetro exclusivamente objetivo.
Conclusão. A decisão está substancialmente coerente com os argumentos levantados.
112 Sobre os crimes omissivos no âmbito direito penal empresarial, cf. ESTELLITA, Res-
ponsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão, Marcial Pons, 2017.
113 Sobre a estrutura dos crimes omissivos, cf. ESTELLITA, Responsabilidade... Op cit., passim;
TAVARES, As controvérsias em torno dos crimes omissivos, 1996.
114 Cf. KUDLICH, JA 2008, p. 601 e ss; KÜHL, JA 2014, 511; KÜHL, AT8 § 18, Rn. 145-150.
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7 SÍNTESE
Ultrapassada a análise das sugestões teóricas e as suas implicações prá-
ticas, creio ser possível chegar à seguinte síntese: o Código Penal brasileiro não
adotou qualquer critério de orientação em relação à delimitação entre a prepara-
ção e a tentativa (i). De lege lata, nosso Código é compatível com qualquer teoria
objetiva e incompatível com as teorias subjetivas (ii). A determinação do início da
tentativa deve ser sugerida, preferencialmente, à luz de uma teoria que combine
critérios (iii). A teoria da colocação em perigo expressa o critério decisivo para o
início da execução (iv). A missão da ciência será desenvolver os critérios mate-
riais à luz da investigação sobre a ratio da punibilidade da tentativa (v).
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115 Cf., por exemplo, as alternativas sugeridas por VEHLING, Die Abgrenzung on Vorbereitung
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AGRADECIMENTOS
Dedico este artigo a Maria Auxiliadora Minahim, Professora titular de
Direito Penal da Universidade Federal da Bahia. Agradeço a Luís Greco pela
leitura da versão original e pelas sugestões de aprimoramento.
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