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Plano de argumentação ética extrínseca à juridicidade:

a) Censura moral das pessoas que se dedicam à prostituição.


b) Censura moral daqueles que auxiliam e se aproveitam de outrem (ainda que sem
coação ou preservação de uma situação de exploração sexual).
c) O lenocínio é um modo de expressão da pessoa como qualquer outro na associação
entre dignidade e autonomia, em nome de um pluralismo moral permitido num Estado
de Direito.

O 1º e 2º argumento defraudam a separação entre a Moral e o Estado. O 1º argumento


permite ao Estado a legitimidade para intervir na intimidade e no desenvolvimento da vida
pessoal de cada um. O 2º argumento não faz com que haja uma subtração em nome de um
valor, capacidade humana ou um contributo para uma vida digna de ser vivida.

Tal atividade pode não reclamar a intervenção do Direito, assim como a liberdade para a
mesma pode existir, mas não corresponde a uma virtude política que tem de ser protegida
numa sociedade democrática e evoluída.

O Direito não deve exprimir uma moral dominante, assim como o Direito não pode ser amoral
que torne bens ou valores juridicamente protegidos interesses particulares que não são
essenciais para as condições de desenvolvimento pessoal.

Argumentação do Acórdão do Tribunal Constitucional, que apoiado na separação entre Direito


e Moral, não consegue desvincular-se da inconstitucionalidade da incriminação do lenocínio
por respeito da dignidade da pessoa humana, utilizando a citação de Figueiredo Dias e
afirmando que a dignidade da pessoa humana não deve ser um fundamento de validade
constitucional de uma incriminação como a constante do art. 169º do CP, mas deve ser em
determinadas circunstancias legitimamente invocado para a sua inconstitucionalidade.

Um conteúdo moral mínimo, integrante e integrador no sistema constitucional, é um critério


de pertença válida de uma norma a esse sistema? No nosso casso, o valor será a autonomia
para a sexualidade como uma capacidade humana fundamental.

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VALIDADE PENAL DAS NORMAS INCRIMINADORAS

Necessitamos de esclarecer os pressupostos de validação constitucional e sobretudo numa


delimitação negativa:

 A dignidade punitiva não pode ser confirmada quando se estiver perante o exercício de
liberdades constitucionais (ex: liberdade de expressão do pensamento).

 Por outro lado, não há incriminações obrigatórias como uma espécie de qualidade
própria dos factos ou uma exigência suscitada por eles (tendo em conta que existem
políticas criminais alternativas à restrição da liberdade/punição).

 A desproporcionalidade manifesta das penas, anteriores já ao comportamento, torna


ilegítima qualquer incriminação.

 A inexistência de um bem jurídico com relevância constitucional inviabiliza a


constitucionalidade de qualquer norma incriminadora.

 A dignidade da pessoa humana não é suficiente para legitimar a constitucionalidade


de uma norma penal (não existindo uma dimensão de ofensa no lenocínio que, à luz
do plano constitucional, justifique a incriminação). O Prof. Figueiredo Dias diz que a
natureza do princípio da dignidade da pessoa humana tem como função erguer um
veto inultrapassável a qualquer atividade do Estado que não respeite aquela
dignidade essencial, ou seja, não é fundamento, mas limite da intervenção estadual
e por isso não se pode encontrar um bem jurídico-constitucional digno de proteção
penal neste valor da dignidade da pessoa humana.

 “Direito Penal do bem jurídico”: Conceito manifestamente instrumental de uma


argumentação legitimadora do Direito Penal e relativamente errónea quando utilizado
como princípio e fim de uma argumentação (como acontece em vários acórdãos do
Tribunal Constitucional).

Evolução do conceito de bem jurídico e a sua significância na mutação funcional das


visões do Direito Penal:

i. Positivismo: O bem jurídico é o interesse protegido pela norma, sendo valores


ou condições da comunidade jurídica definidos pelo legislador, numa
perspetiva de puro positivismo legalismo.
ii. Jus naturalismo: O bem jurídico é associado a condições objetivas essenciais
para preservar a vida em sociedade.
iii. Individualismo liberal: O bem jurídico surge relacionado com direitos e bens
de titularidade individual. O bem jurídico legitima o Direito penal e está
descomprometido com a norma legal.
iv. O bem jurídico como expressão de necessidade interrelacionais não
simbólicas numa perspetiva de teoria critica da sociedade.

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Para a Prof. Mª Fernanda Palma é preocupante a assertividade do Tribunal Constitucional ao
apelar ao conceito de bem jurídico, na medida em que utilizam este conceito sem a utilização
de uma explicitação de uma função e de conteúdo compreensivo, sendo o bem jurídico
utilizado como crivo na constitucionalidade de normas incriminadoras.

Para a Prof, há normais penais que não têm um bem jurídico objetivo e mesmo assim, será
necessária a tutela penal (acórdão dos animais de companhia). Assim como há normas que
não terão como principal preocupação a tutela de um bem jurídico e mesmo assim, não serão
inconstitucionais.

Para a Profª, o bem jurídico tem relevância sim, mas só como um meio instrumental, não
sendo um dogma em si mesmo. Note-se que há bens com dignidade punitiva e mesmo assim,
existem meios alternativos à pena de prisão (problema da necessidade). Por exemplo, há
condutas que podem afetar bens jurídicos, mas não carecem de tutela penal, pois são
protegidos mais eficazmente de outra forma. Exemplo: Consumo de droga.

Enquanto a Prof. vê o bem jurídico de uma perspetiva redutora, Roxin vê o bem jurídico de
um modo objetivo (bem jurídico essencial para a dignidade penal, sendo o objeto de tutela da
norma). No mesmo sentido, o Prof. Figueiredo Dias afirma que temos de identificar um bem
jurídico-penal para a norma não ser inconstitucional. Para estes autores, quando não existe um
bem jurídico-penal e o mesmo for tido como essencial, há a violação do princípio da dignidade
punitiva.

Ora, para estes autores, como utilizam uma categoria com uma função de critério quase
estanque, acabam por confrontarem-se com realidades inadequadas ao critério adotada e cuja
exclusão constitucional pode ser inadequada às exigências sociais e culturais que presidem à
própria utilização do bem jurídico.

Posto isto, o conceito de bem jurídico só tem um valor de verdade quando analisado nas
diversas vertentes práticas. Por isso, o bem jurídico pode ser utilizado contraditoriamente, não
podendo ser utilizado o conceito sem qualquer tipo de argumentação.

Para a Prof., não devemos discutir a constitucionalidade de normas incriminadoras com base
no bem jurídico (conceito instável, mutável e opinativo), mas sim em face da Constituição
construirmos uma argumentação válida. Por isso, este tipo de argumentação procura os
limites negativos das normas incriminadoras, identificando campos que não poderão ser
validamente constitucionais, na medida em que não são integráveis no sistema constitucional.

Assim, o bem jurídico não é hoje o argumento fundamental da ilegitimidade de certas


normas incriminadoras, mas deve sendo antes uma argumentação com base em direitos
protegidos constitucionalmente.

Claro que a delimitação do conceito de bem jurídico pode auxiliar neste tipo de
argumentação constitucional, mas não basta invocar um direito penal do bem jurídico cujo
conteúdo não é explicito.

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O QUE PODERÁ SER ESSENCIAL SOB A COBERTURA DO CONCEITO DE BEM JURIDICO?

Para a Prof, é fundamental uma objetividade factual do interesse protegido e não uma mera
ideia abstrata e simbólica (o desvalor moral não é suficiente para a incriminação). Ou seja, é
essencial um significado inter-relacional, na medida em que tenha um significado comum,
uma necessidade coletiva que afeta as condições de existência.

É exigido uma correspondência entre os valores jurídicos e as necessidades e interesses


definidos inter-relacionalmente, existindo uma correspondência entre estas definições e uma
realidade social avaliada extrajuridicamente.

Note-se que não deixa de existir uma utilização da sexualidade alheia como fonte de lucro e
uma redução da dimensão essencial da autonomia do prostituído a uma coisa negociável.
Assim, não deixa de existir um “quid” digno de proteção por força do argumento do
consentimento ou da opção da vítima.

 No lenocínio, a necessidade em causa é o dever da sociedade impedir a


comercialização de uma dimensão fundamental do ser humano, impedindo a
exploração de terceiro dessa dimensão da dignidade humana.

É preciso saber se determinado direito, numa dimensão objetiva, é irrelevante para o Direito
Penal independentemente da adequação a uma qualquer definição de bem jurídico prévia. Ou
seja, não interessa saber qual o conceito de bem jurídico, mas sim o merecimento de
proteção.

Para a Prof., dado que não há uma relação necessária entre o lenocínio e uma situação de
necessidade económica e social no art. 169º, não estamos perante um problema de exploração
da necessidade. Para além disso, estamos perante um direito objetivo dado que o Estado pode
proteger pois tem como significado preservar a pessoa contra a sua “coisificação” e exploração
por outros, independentemente da sua vontade. De acordo com esta lógica, a noção de
exploração prescinde da posição da vítima, assim como no tráfico de pessoas.

Duas vias para esta questão:

i. Presunção de uma exploração de carência social das pessoas que se prostituem


mediante o fomento ou auxílio. O artigo 169º tem na sua base uma elevada
probabilidade estatística e uma certa “tipicidade social” daqueles
comportamentos, aproximando a norma incriminadora de um crime de perigo
abstrato.

ii. Dano objetivo associada à supervisão, controlo e favorecimento da atividade de


prostituída, independentemente da carência económica ou do seu estado de
necessidade.

Neste caso, a norma incriminadora incidirá sobre o comportamento do


“supervisor” e aproveitador da prostituição, independentemente da posição da
pessoa prostituída, podendo abarcar outras situações de vulnerabilidade para
além da estrita necessidade económica. O fundamento da incriminação reside no

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comportamento do agente independentemente das conceções mais liberais
relacionadas com a opção de vida profissional.

Para a Prof, seria neste momento mais produtivo um caminho intermédio: a fundamentação
na conjugação entre a elevada probabilidade de aproveitamento de uma concreta situação de
carência e uma direção e aproveitamento económico da vida sexual profissionalizada dessas
pessoas, assumindo um controlo de uma dimensão nuclear de cada pessoa, o seu corpo e
sexualidade.

Estaríamos face a um sistema mais variável, existindo:

i. Situações de menor controlo/direção, em que a lógica do aproveitamento


permitia excluir do tipo incriminador casos de falta manifesta de carência.
ii. Situações em que o comportamento de controlo/direção laboral, seriam
suficientes para a tipicidade.

Acórdão de 2004: Contraprova da carência social no caso concreto como critério de exclusão
da tipicidade.

Já os acórdãos seguintes também não procuraram quaisquer delimitações da norma


incriminadora em função dos casos concretos e teria sido importante, dado que poderia haver
uma diferenciação na dimensão normativa.

Este argumento de que a norma atual, por precisamente não permitir uma adequada
diferenciação entre dimensões “não seriamente danosas” e outras com essa seriedade, seria
só por si inconstitucional, na medida em que viola o princípio da tipicidade?

Se assim fosse, a declaração de inconstitucionalidade da norma com força obrigatória geral


faria com que houvesse um efeito descriminalizador para comportamentos muito graves de
exploração da prostituição (e o mesmo efeito aconteceria se legislamente fosse permitida a
prova de carência da pessoa prostituída). O núcleo normativo atrai comportamentos que não
desmentem a carência de proteção penal.

Jurisprudência penal constitucional: A tarefa do T.C. é reduzir a norma até ao seu núcleo não
inconstitucional, procedendo ao expurgo das dimensões normativas inconstitucionais e não
uma orientação ideológica de sentido único, ou seja, que normas como a do lenocínio não se
integrariam em absoluto na Constituição. Poderão existir caminhos alternativos para a solução
legislativa compatível com a Constituição.

O acórdão do T.C. nº 72/2021 de 27 de janeiro veio manter a jurisprudência de 2004,


selecionando argumentos suscetíveis de um novo consenso.

A grande vantagem deste acórdão nº 72/2021 de 27 de janeiro foi ter se afastado de


argumentos conceptualistas e sobretudo impediu o inaceitável vazio nesta matéria.

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