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ACÓRDÃO Nº 134/2020 – JULGA INCONSTITUCIONAL A NORMA INCRIMINADORA.

O recorrente pretende ver fiscalizada a constitucionalidade da norma constante do artigo 169.º,


n.º 1, do Código Penal, que criminaliza o lenocínio na sua forma simples ou fundamental, tendo
apresentado alegações de recurso que concluem do seguinte modo:
 
«1.ª- A definição do bem jurídico-penal desempenha o papel de critério da decisão
legislativa criminalizadora a qual deve ser efetuada com o recurso a uma conceção ético-
social mediatizada pela constituição democrática, mediatizada no quadro referencial dos
direitos inerentes à dignidade da pessoa humana e os deveres essenciais à funcionalidade e
justiça do sistema social.

2.ª- O crime de lenocínio do art.º 169.º, n.º 1 CP, é um crime de perigo abstrato,
onde não se exige que o bem jurídico tenha sido efetivamente posto em perigo uma vez que
este não faz parte do tipo, mas tão só, da motivação da proibição.

3.ª- Sendo o bem jurídico visado pela norma a autonomia e liberdade da pessoa que se
prostitui (ou a liberdade sexual), as condutas previstas no tipo em analise não traduzem
em si uma perigosidade típica de lesão de tal bem jurídico, pelo que se exigiria para a
incriminação a identificação precisa do bem jurídico e a sua grande importância.

4.ª- Mesmo sendo a motivação da proibição legítima, importaria demonstrar estar tal


bem jurídico necessitado de tutela penal por inexistência ou insuficiência de outras
reações sociais para a sua proteção.

5.ª- Por isso, incriminação e punição do art.º 169.º, n.º1 CP é inconstitucional por


violação do art.º 18.º n.º 2 CRP, em particular  do princípios constitucionais do “Direito
Penal do Bem Jurídico” ou da “Dignidade penal do bem jurídico” (condicionando a
restrição de direitos à salvaguarda de outros) e da “Necessidade penal” (condicionando tal
restrição à sua necessidade para a referida salvaguarda) em três dimensões:

a) a inexistência ou insuficiência de outras reações sociais para uma proteção eficaz


do bem jurídicos com dignidade penal;

b) a adequação da sanção criminal a uma tutela relativamente eficaz do bem;

c) a proporcionalidade entre a gravidade da sanção criminal e a relevância pessoal


e/ou social dos bens jurídicos protegidos (e lesados ou postos em perigo).»
 

O Ministério Público contra-alegou:

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70% a 90% das mulheres prostituídas foram vítimas de agressões físicas ou abuso sexual na infância,
no seio da sua própria família e a maioria das pessoas prostituídas, de ambos os sexos, foi iniciada na
prostituição por terceiros quando era menor de idade, havendo prova empírica suficiente de que
a vitimização por abuso sexual na infância ou na adolescência contribuiu, de forma significativa,
para a sua entrada na prostituição. Aproximadamente 90% das mulheres inquiridas indicou que
gostava de deixar a prostituição, mas que tinha medo de ser rejeitada e de não ter emprego –
PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE DO DIREITO PENAL (existem outras formas
alternativas com menor restrição de direitos fundamentais, opções de política criminal para quem se
prostitui). No caso, o princípio da subsidiariedade não está a ser violado! NOTA: Não há um dever
de incriminar estas condutas, há uma opção de política criminal nesse sentido.

No seu requerimento de recurso, o recorrente indicou que aquela norma viola os artigos 9.º, alínea
b), 13.º, n.os 1 e 2, 16.º, n.º 2, 18.º, n.os 2 e 3, e 26.º, n.º 1, da Constituição. Porém, nas suas alegações
de recurso, o recorrente acabou por indicar apenas o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição,
especificando que, no seu entender, o tipo legal de crime do lenocínio viola os «princípios
constitucionais do “Direito Penal do bem jurídico” ou da “dignidade penal do bem jurídico”
(condicionando a restrição de direitos à salvaguarda de outros) e da “necessidade penal”
(condicionando tal restrição à sua necessidade para a referida salvaguarda) em três dimensões: a)
a  inexistência ou  insuficiência de outras reações sociais para uma proteção eficaz do bem
jurídicos com dignidade penal; b) a  adequação  da sanção criminal a uma tutela relativamente
eficaz do bem; c) a proporcionalidade entre a gravidade da sanção criminal e a relevância pessoal
e/ou social dos bens jurídicos protegidos (e lesados ou postos em perigo)».

Num Estado de direito democrático, o legislador ordinário dispõe inerentemente de uma grande
liberdade para a definição das normas jurídicas que disciplinam a vida social. Em razão da
legitimidade que para esse efeito lhe é atribuída pela comunidade, é inequivocamente a si que
compete definir, entre tantas outras matérias, as condutas cuja prática atrai uma sanção penal e o
exato recorte dessas condutas. No entanto, esta intervenção criminalizante está sujeita a certas
limitações constitucionais, encontrando no princípio do direito penal do bem jurídico primeiro e
fundamental constrangimento. É uma manifestação específica do imperativo de proporcionalidade
a que transversalmente se subordina a restrição de direitos fundamentais, este princípio perfila-se
como uma barreira ao excesso – seja ele arbitrário ou apenas inadvertido – na restrição do direito à
liberdade pela via penal, proibindo toda a criminalização que não possa ser justificada em nome de
outros direitos ou interesses constitucionalmente consagrados.

Ainda que a criminalização de uma conduta possa sempre supor-se exprimir o que em determinado
momento constitua um sentimento de censura ético-jurídica dominante na sua comunidade, é
indispensável que essa conduta se mostre ofensiva – e suficientemente ofensiva – para um bem
jurídico com dignidade constitucional.

Se à criminalização de uma conduta é inerente a restrição de um direito consagrado na Constituição (o


direito à liberdade, consagrado no seu artigo 27.º) e se, consequentemente, a lei só pode restringir esse direito
na medida necessária para salvaguardar outros direitos ou interesses consagrados na Constituição (nos
termos do seu artigo 18.º, n.º 2), a conclusão que se impõe é a de que a lei só pode criminalizar uma
conduta na medida necessária para salvaguardar outros direitos ou interesses consagrados na
Constituição.

Por fim, importa notar que, muitos (ou mesmo uma grande parte dos) tipos legais de crime
previstos no nosso ordenamento jurídico-penal coenvolvem, pelo menos prima facie, uma restrição

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de outros direitos fundamentais. É disso exemplo o crime de difamação previsto no artigo 180.º do
Código Penal, de que decorrem limites ao exercício das liberdades de expressão e de imprensa. 

PRINCÍPIO DO BEM JURÍDICO VS PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE

O princípio do direito penal do bem jurídico constitui um elemento sólido da jurisprudência deste
Tribunal Constitucional. Contudo, naturalmente, a existência de consenso em torno deste princípio
não impede a existência de dissenso quanto à questão de saber se uma dada conduta se mostra
ou não ofensiva – e suficientemente ofensiva – para algum bem jurídico com dignidade
constitucional. É o que se verifica em relação à conduta criminalizada no artigo 169.º, n.º 1, do
Código Penal, cuja fiscalização é solicitada nos presentes autos.

 O Tribunal Constitucional tem respondido a essa questão afirmativamente – ou seja, no


sentido de que a conduta atualmente prevista no n.º 1 do artigo 169.º do Código Penal se
mostra suficientemente ofensiva para direitos e interesses constitucionalmente
consagrados para que se não exponha a inconstitucionalidade no confronto com o parâmetro
do artigo 18.º, n.º 2, da CRP. Foi sempre assim desde a primeira vez em que sobre aquela
norma foi chamado a pronunciar-se, no Acórdão n.º 144/2004, onde se apresentou a
seguinte fundamentação:
Uma Ordem Jurídica orientada por valores de Justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser
mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de ação, situações e atividades cujo “princípio” seja o
de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada
como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o artigo 1º da Constituição.

É claro que a esta perspetiva preside uma certa ideia cultural e histórica da pessoa e uma certa ideia do valor da
sexualidade, bem como o reconhecimento do valor científico das análises empíricas que retratam o “mundo da
prostituição” (e note-se que neste terreno tem sido longo o percurso que conduziu o pensamento sociológico desde a
caracterização da prostituição como anormalidade ou doença […] até ao reconhecimento de que as prostitutas são
vítimas de exploração e produto de uma certa exclusão social).

Não se concebe, assim, uma mera proteção de sentimentalismos ou de uma ordem moral convencional particular
ou mesmo dominante, que não esteja relacionada, intrinsecamente, com os valores da liberdade e da integridade
moral das pessoas que se prostituem, valores esses protegidos pelo Direito enquanto aspetos de uma convivência
social orientada por deveres de proteção para com pessoas em estado de carência social.

A intervenção do Direito Penal neste domínio tem, portanto, um significado diferente de uma mera tutela jurídica de
uma perspetiva moral, sem correspondência necessária com valores essenciais do Direito e com as suas finalidades
específicas num Estado de Direito. O significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da proteção da
liberdade e de uma “autonomia para a dignidade” das pessoas que se prostituem.

Na realidade, ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma expressão da livre
disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de
poder exprimir já uma interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da prostituição, na
autonomia e liberdade do agente que se prostitui (colocando- o em perigo), na medida em que corresponda à
utilização de uma dimensão especificamente íntima do outro não para os fins dele próprio, mas para fins de
terceiros. Aliás, existem outros casos, na Ordem Jurídica portuguesa, em que o autor de uma conduta não é
incriminado e são incriminados os terceiros comparticipantes, como acontece, por exemplo, com o auxílio ao
suicídio.

O entendimento da não inconstitucionalidade foi reiterado pelo Tribunal Constitucional nos


Acórdãos n.os 196/2004, 303/2004, 170/2006, 396/2007, 522/2007, 591/2007, 141/2010, 559/2011,

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605/2011, 654/2011, 203/2012, 149/2014, 641/2016, 421/2017, 694/2017, 90/2018 e 178/2018. Se
nestas decisões se reiterou o sentido decisório acolhido no Acórdão n.º 144/2004, é aí também
discernível um certo desígnio de reconciliação desse veredito de não inconstitucionalidade com o
princípio do direito penal do bem jurídico, que na fundamentação daquele Acórdão desempenhara
um papel discreto. Não que aí tenha sido exatamente renegado: a consideração dispensada ao
princípio é visível na parte da fundamentação onde se procura afastar a ideia de que este tipo legal de
crime mais não faz do que tutelar «sentimentalismos» ou «uma ordem moral convencional
particular» e se procura antes atribuir-lhe a tutela de valores mais concretos, como a «liberdade» e
«uma ‘autonomia para a dignidade’ das pessoas que se prostituem».

No entanto, ao concluir-se que o «significado que é assumido pelo legislador penal» com este tipo
legal de crime é o da «proteção por meios penais contra a necessidade de utilizar a sexualidade
como modo de subsistência», proteção essa que seria «diretamente fundada no princípio da
dignidade da pessoa humana», acaba por admitir-se ao princípio do direito penal do bem jurídico
uma maleabilidade tal que dificilmente poderia deixar de conduzir a um considerável
esvaziamento – ou, pelo menos, a uma problemática indefinição – do seu conteúdo prescritivo:
qualquer norma incriminatória poderia justificar-se, praticamente sem ulterior especificação
normativa, em nome da proteção da dignidade da pessoa humana ínsita no artigo 1.º da
Constituição.

A ideia de que pode ver-se no princípio da dignidade da pessoa humana um bem jurídico capaz
de assegurar a proporcionalidade da restrição da liberdade inerente à criminalização de uma
conduta, ou de que esse princípio pode de algum outro modo autónomo suster a criminalização de
uma conduta, é, porém, uma ideia que suscita sérias reservas. Desde logo, de um ponto de vista
sistemático, porque ele surge consagrado na nossa Constituição enquanto princípio fundamental, e
não – como noutras Constituições – enquanto direito fundamental. Depois, nos planos literal e
teleológico, porque o elevado grau de abstração que o caracteriza tende a impedi-lo de
desempenhar adequadamente funções prescritivas concretas. 

 «O princípio da dignidade da pessoa humana (bem jurídico do acórdão de 2004) acaba por ter
um conteúdo de tal modo amplo (idêntico afinal de contas a um dos elementos constantes da
tradição do Estado de direito) que não chega a ter densidade suficiente para ser fundamento
direto de posições jurídicas subjetivas». Conclui-se aí: «O que nele se contém é por isso, e ao
mesmo tempo, algo mais e algo menos do que um direito. Quando muito o princípio confere ao
sistema constitucional de direitos fundamentais unidade e coerência de sentido, ajudando as
tarefas práticas da sua interpretação e integração. O que se lhe não pode pedir é que ele seja
tomado, em si mesmo, como fonte de um outro e autónomo direito (fundamental).» Esta perspetiva
reúne consenso doutrinário e tem recebido acolhimento reiterado na nossa jurisprudência
constitucional 

Se o princípio da dignidade da pessoa humana não pode geralmente fundamentar direitos subjetivos
de modo direto e autónomo, mais dificilmente ainda poderá fundamentar, desse modo direto e
autónomo, restrições a esses mesmos direitos, levando à violação do princípio da necessidade da
pena (art. 18º/2 da CRP). O seu elevado grau de abstração prejudica a sua utilização tanto para um
efeito como para o outro.

Podemos dizer que a abstração do princípio da dignidade da pessoa humana o impede de ser
visto como fonte de soluções jurídicas concretas, sejam essas soluções favoráveis ou
desfavoráveis de um prisma individual.

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A criminalização de uma conduta produz efeitos benignos, mas o principal beneficiário da
criminalização é a comunidade no seu todo (mesmo quando se trate a proteção de direitos e
interesses puramente individuais) – O princípio da dignidade da pessoa humana não tem como
escopo instrumentalizar o individuo para a consecução de finalidades comunitárias. Tal faz
com que o princípio da dignidade da pessoa humana «não deva constituir fundamento de validade
constitucionalidade de uma incriminação como a constante do atual  art. 169.º, mas possa pelo
contrário, ao menos em certas circunstâncias, ser legitimamente invocado como fundamento da sua
inconstitucionalidade» (PROF. FIGUEIREDO DIAS).

Todavia, nem os argumentos de natureza normativa nem os de natureza empírica acima


apresentados (existe uma enorme percentagem de mulheres prostituídas vitimas de agressões físicas
ou abusos sexuais na sua infância; a prostituição passa a estar ligada ao tráfico de mulheres para
exploração sexual, sendo um dos negócios mais rentáveis do mundo e que criou a chamada
“escravatura” moderna;) são capazes de afastar a circunstância de que, na sua configuração atual,
o tipo legal de crime do lenocínio simples abrange mais hipóteses do que aquelas que, à luz
daqueles mesmos argumentos, se justificaria que abrangesse. Naturalmente, a linha de
entendimento segundo a qual este tipo legal de crime é inconstitucional não questiona que «a
liberdade, designadamente a liberdade sexual» (Acórdão n.º 421/2017) constitua um direito
constitucionalmente protegido para os efeitos do princípio da proporcionalidade decorrente do artigo
18.º, n.º 2, da Constituição, nem que possa existir uma «normal associação»,  empiricamente
comprovável,  «entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade
económica e social, das pessoas que se dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de
subsistência».

O ponto essencial para a linha que afirma a inconstitucionalidade – ou, pelo menos, o mínimo
denominador comum aos vários entendimentos que nela se inscrevem – é o de que é ilegítimo, em
nome dessa tendencial associação e a fim de garantir a punição de todos os casos em que ela
efetivamente se materialize, criminalizar hipóteses em que isso manifestamente não ocorre.

Nos Acórdãos n.º 641/2016, 421/2017, 694/2017, 90/2018 e 178/2018, o Conselheiro Manuel da


Costa Andrade pronunciou-se nos seguintes termos pela inconstitucionalidade:
 
«Votei vencido por estar convencido de que a norma de incriminação e punição
do Lenocínio constante do n.º 1 do artigo 169.º do Código Penal é contrária à Constituição, por
violação do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República. E é assim porquanto a
incriminação da conduta típica não está preordenada à salvaguarda – menos ainda é para tanto
necessária – de quaisquer “direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”. Ou dito em
linguagem da doutrina penal, não é necessária à proteção de qualquer bem jurídico. Bem jurídico
que não se descortina na pertinente área de tutela típica. Noutra perspetiva, estamos perante uma
manifestação concreta dos chamados “crimes sem vítima”».

Na doutrina, mesmo quem se pronuncia pela não inconstitucionalidade tende a basear essa
conclusão numa interpretação restritiva do tipo legal de crime de lenocínio simples, de modo a
considerá-lo aplicável apenas a situações em que exista exploração de uma situação de
vulnerabilidade de quem se prostitui. Caso de Inês Ferreira Leite: «Mais importante do que
construir o bem jurídico tutelado em torno de uma interpretação acrítica do tipo penal, será
reconstruir o tipo penal em função de uma interpretação valorativa da incriminação, tendo como
farol a verificação da lesão ou da colocação em perigo da liberdade sexual».

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Porém, não se afigura possível, quer em face da sua letra, quer da sua história, quer, ainda, de
considerações de índole sistemática, interpretar este tipo legal de crime no sentido de o mesmo
exigir que tenha havido exploração de uma situação de vulnerabilidade da pessoa que se
prostitui: essa exigência não só não consta do n.º 1 do artigo 169.º como foi assumidamente
retirada dele pelo legislador e deslocada para a alínea d) do n.º 2 do mesmo preceito.
Não há um dano ao bem jurídico e é dispensável a sua prova (do dano e
do perigo). O arguido fica com o ónus da contraprova e pode alegar que
não houve perigo nenhum para o bem jurídico. O perigo não faz parte do
tipo criminal. O perigo é elemento de incriminação, existindo uma
Por outro lado, a configuração de uma norma como
probabilidade de danocrime
. Mas no de perigo
nosso caso nãoabstrato
é um crime traz consigo
de perigo
particulares exigências no plano da tipicidade – é dizer, da determinabilidade da conduta
proibida. Como o Tribunal Constitucional já em várias ocasiões sustentou, é crucial que o bem
jurídico tutelado possa ser claramente identificado e que a conduta típica seja descrita de
forma especialmente precisa.
Relativamente à norma em apreço, até poderia considerar-se que a mesma satisfaz ambas as
exigências:
i. Bem jurídico claramente identificado: Embora o bem jurídico pretensamente
tutelado não seja absolutamente consensual, é de conceder que existem elementos
suficientes para se concluir estar em causa a liberdade sexual;

ii. A conduta típica tem de ser descrita de forma precisa: Embora o tipo legal faça uso
de elementos subjetivos e normativos, é relativamente indiscutível o seu âmbito de
incidência.

De facto, como os autores notam, é a própria jurisprudência constitucional que tem reconhecido
que o perigo pressuposto por este tipo legal de crime NÃO é verdadeiramente o perigo de lesão
da liberdade sexual, ou de qualquer outro direito titulado pela pessoa que se prostitui (à autonomia,
à integridade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade), mas o perigo de exploração de
uma situação de especial vulnerabilidade em que a mesma se encontra. Ou seja, o perigo de
verificação do elemento típico que o legislador retirou do tipo legal. O facto é que essa exploração
não faz parte do tipo legal e está já, portanto, ela própria, a ser pressuposta.

A feição que o problema afinal assume é, então, a seguinte: a única linha de entendimento capaz de
ainda relacionar este tipo legal de crime com a tutela de bens jurídicos (constitui um crime de
perigo abstrato destinado a tutelar a liberdade sexual de quem se prostitui) assenta, em última
análise, num perigo de verificação de um elemento que não consta desse tipo legal de crime (a
exploração de uma situação de vulnerabilidade dessas pessoas). Portanto, assim interpretado, o tipo
legal de crime envolve duas presunções:

i. A base é a presunção de que a exploração de uma situação de vulnerabilidade de quem


prostitui encerra tipicamente um perigo para a sua liberdade sexual;

ii. O expoente é a presunção de que a conduta de quem, profissionalmente ou com intuito


lucrativo, fomente, favoreça ou facilite a exercício de prostituição encerra tipicamente
um perigo de exploração de uma situação de vulnerabilidade de quem se prostitui.

Já se disse que o recurso à técnica do perigo abstrato na criminalização de comportamentos não


está, por princípio, constitucionalmente vedado.

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O ponto que se procura agora fazer é o de que os crimes de perigo abstrato, já de si adstritos a
especiais condições constitucionais quando comparados com os crimes de dano e os crimes de
perigo concreto – onde a ofensa ao bem jurídico é, respetivamente, certa ou mais próxima – são
ainda mais difíceis de sustentar quando estejam em causa bens jurídicos suscetíveis de acordo,
como a liberdade sexual. Se o acordo do portador, mais do que tornar lícita a conduta do terceiro, a
convoca à realização do bem jurídico, o legislador, ao criminalizar um comportamento em nome de
um bem jurídico dessa natureza através de uma presunção, está a conformar-se com uma dada
probabilidade de restringir o direito à liberdade do terceiro em nome de um direito que não
sofreu perigo concreto.

 Importa notar que o lenocínio apresenta, neste ponto, uma relevante particularidade em
relação a outros crimes destinados a tutelar a liberdade sexual: o seu objeto direto ou
imediato não é a própria prática dos atos sexuais em que se traduz a prostituição, mas o ato
de fomentar, facilitar ou favorecer essa prática. Por essa razão, não se afigura
necessariamente de concluir que este tipo legal de crime comporte uma restrição
desproporcional da liberdade sexual de quem se prostitui: o tipo legal não veda essa
prática, embora limite as condições em que a mesma pode ser desenvolvida.

PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE (A CONDUTA TEM DE OBTER DANOS):

Nos crimes de perigo abstrato (por exemplo, art. 292º), não há um dano ao bem jurídico e é
dispensável a sua prova (do dano e do perigo). O arguido fica com o ónus da contraprova e pode
alegar que não houve perigo nenhum para o bem jurídico. O perigo não faz parte do tipo criminal. O
perigo é elemento de incriminação, existindo uma probabilidade de dano (tutela mais
preventiva).

No nosso caso, um crime de perigo concreto, é necessária uma conexão de perigo ou evidência da
perigosidade intrínseca da conduta que sustenta a incriminação, sendo necessário fazer prova do
crime no processo penal (art. 291º por exemplo). São crimes de resultado (assim como os crimes
de dano são crimes de resultado). Consigo cindir o momento temporal da ação um resultado.
Consigo divisar dois momentos temporais: momento da ação e o momento do resultado.

Nos crimes de dano, há uma lesão do bem jurídico (para o tipo estar preenchido).

Art. 291º VS art. 292º: O primeiro é um crime de perigo concreto (não tem de existir uma lesão do
bem jurídico, sendo o perigo a probabilidade de dano), mas dentro dos crimes de perigo podem
existir os crimes concretos e abstrato.

Note-se que este princípio é legitimador no Direito Penal, na medida em que, como dissemos
antes, a conduta tem de ser manifestamente ofensiva de bens jurídico constitucionais .

Pode conceder-se que esta norma incriminatória seja adequada a tutelar a liberdade sexual, no
sentido de que esta constitui um bem jurídico digno de pena e de que a conduta tipicamente descrita
é objetivamente apta a abranger situações em que essa liberdade foi exposta a um perigo concreto de
lesão. No entanto, a norma não resiste ao teste da necessidade: a extrema fragilidade do nexo

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entre a conduta que aí é descrita e o único bem jurídico que a norma poderia tutelar, acrescida
do facto de ela abranger situações em que há até um exercício da liberdade sexual por parte de quem
se prostitui, não permitem a conclusão de que tal norma seja necessária para tutelar esse direito.

III – Decisão
 
Pelo exposto, decide-se:
 
a) Julgar inconstitucional a norma incriminatória constante do artigo 169.º, n.o 1, do
Código Penal, por violação dos artigos 18.º, n.º 2, e 27.º, n.º 1, da Constituição,
conjugadamente;

Quando a professora diz que existe acordo e tal não se integra no tipo criminal, não se aplicando a
norma, que acordo é este? Quem diz que eu mulher livremente disse que sim a esse “acordo”?
Sendo um crime de perigo abstrato, o juiz pode não permitir a contraprova da parte alegando a falta
de perigosidade, dado que tal não está incluído na norma.
Redefinição do tipo (solução dada pela Professora MFP).

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