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DIREITO PENAL – ANA PAULA VIEIRA DE CARVALHO

AULA 01 – 27.03.2021

DIREITO PENAL - CARACTERÍSTICAS E FUNÇÕES

Conceito de Direito Penal: O Direito Penal, com base no doutrinador


Juarez Cirino dos Santos, é o setor do ordenamento jurídico que define
crimes, comina penas, prevê medidas de segurança aplicáveis aos
autores das condutas incriminadas.

Características do Direito Penal:

a) finalidade preventiva

b) subsidiariedade

c) fragmentariedade (princípio da intervenção mínima)

A função preventiva pode se operar a nível geral, impacto que gera na


sociedade ou a nível individual (impacto naquele indivíduo que foi
punido) também chama da prevenção especial.

A prevenção geral se divide em positiva e negativa. A negativa significa


o temor que os potenciais criminosos terão quando da aplicação da pena.
É efeito inibitório. A positiva seria uma reafirmação perante as pessoas
que não cometem crimes e que não cometeriam de qualquer maneira e
que a norma permanece vigente, que o sistema está funcionando, efeito
de reafirmação da ordem jurídica. A especial é dirigida ao individuo
podendo ser negativa ou positiva também nos mesmos termos.

Subsidiariedade: Com certeza já ouvimos que o Direito Penal é remédio


sancionador extremo, não deve ser utilizado para qualquer conduta que
possa prejudicar terceiro; ele deve ser utilizado para condutas de especial
gravidade; é a última ratio.
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Fragmentariedade: É consequência da subsidiariedade. Vamos


imaginar um determinado bem jurídico, por exemplo, patrimônio. O
Direito Penal só vai se ocupar daquelas condutas especialmente graves.

Determinados comportamentos lesivos a bens jurídicos não configurarão


crime. A proteção ao patrimônio, por exemplo, não será ampla. A proteção
que o Direito Penal dá ao patrimônio é uma proteção fragmentária, ou
seja, não é homogênea.

Cite-se, como exemplo, o dano culposo ao patrimônio alheio, que não


possui previsão legal como crime, e que somente terá repercussão na
esfera cível.

Função do Direito Penal

O direito penal serve para proteger bens jurídicos. No Brasil e no


estrangeiro é amplamente predominante a ideia de que o direito penal é
vocacionado à proteção de bens jurídicos. Onde não houver um bem
jurídico em risco, o direito penal não poderá atuar. Significa afirmar que
uma conduta somente poderá ser criminalizada quando for perigosa ou
lesiva a um bem jurídico.

Contudo, este não é um entendimento pacífico. Ferrenho crítico do


conceito de bem jurídico, o autor germânico Gunther Jakobs defende que
a missão do direito penal é a prevenção geral positiva, isto é, buscar a
estabilidade do reconhecimento social acerca da validade da norma.

Como visto, uma das características do direito penal é a sua finalidade


preventiva. Tal prevenção, como observado, apresenta-se como
prevenção geral (relacionada à influência da punição sobre a
comunidade) ou como prevenção especial (concernente ao impacto da
punição sobre o criminoso).

Para melhor entender o pensamento de Jakobs, é necessário esclarecer


que a prevenção geral desdobra-se em duas formas ou espécies:
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• Prevenção geral negativa: atua de forma dissuasória sobre eventuais


criminosos. Corresponde ao temor que a punição provoca nas pessoas,
levando-as a desistirem de cometer crimes.

• Prevenção geral positiva: diz respeito à confiança que as pessoas


depositam no funcionamento do sistema normativo.

Jakobs defende que a função do direito penal é a de fomentar a prevenção


geral positiva, isto é, a confiança que as pessoas depositam no
funcionamento do sistema normativo. De forma didática, seria a
promoção do sentimento de que vale a pena permanecer cumprindo as
normas legais.

A posição prevalente, defendida por Roxin, sustenta que a função do


direito penal é a de proteger bens jurídicos. Daí resulta que o direito penal
não pode interferir onde não haja lesão ou perigo a bem jurídico. Seguido
este entendimento, seriam ilegítimas as normas penais que
criminalizassem condutas, quando não constatado risco, perigo ou
violação a bem jurídico. Permite-se, portanto, a delimitação do âmbito de
atuação ou de aplicação legítima do direito penal, de forma a evitar uma
proliferação legislativa danosa à liberdade dos cidadãos. Destarte, a
posição de Roxin redunda em uma limitação material das normas penais
incriminadoras.

Já a visão de Jakobs não permite um exame da legitimidade do conteúdo


das normas penais. Se a função do Direito penal é apenas a de fomentar
a confiança das pessoas no funcionamento e vigência do sistema
normativo, não interessa discutir o conteúdo destas normas, mas apenas
a sua vigência. Neste sentido, tal posição não permite efetuar um juízo
crítico sobre o conteúdo da lei penal.

O princípio da lesividade (ofensividade), que goza de ampla aceitação no


Brasil, está diretamente relacionado com a ideia de um direito penal
vocacionado à proteção de bens jurídicos. Segundo este princípio, para
que haja uma conduta criminosa, é imperativo que ela gere lesão ou
perigo a bens jurídico penalmente tutelados. Perceba-se que o princípio
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da lesividade somente faz sentido em um modelo que enxergue, para o


Direito Penal, a função de proteção de bens jurídicos, como o ocorre com
o modelo de Roxin, prevalente no Brasil.

O princípio da lesividade costuma ser visto como sinônimo do princípio


da ofensividade. Entretanto, Cezar Roberto Bitencourt faz uma sutil
distinção entre eles: o princípio da lesividade exige lesão ou risco de lesão
a bem jurídico, ao passo que o princípio da ofensividade representa um
plus e exige que a lesão a bem jurídico seja importante, relevante, sob
pena de insignificância e atipicidade.

BEM JURÍDICO: CONCEITO E FUNÇÕES –

PRINCÍPIO DA LESIVIDADE

De acordo com Luís Greco, bens jurídicos são “dados fundamentais para
a realização pessoal dos indivíduos ou para a subsistência do sistema
social, compatíveis com a ordem constitucional”. Já para Roxin são
“realidades ou fins que são necessários para uma vida social livre e
segura, que garanta os direitos fundamentais dos indivíduos, ou para o
funcionamento do sistema estatal erigido para a consecução de tal fim”.

Traduzindo essas ideias de forma didática, é possível dizer que bens


jurídicos são realidades da vida ou finalidades que:

a) permitam a realização pessoal dos indivíduos: para que o indivíduo


se realize como pessoa são importantes, por exemplo, a sua honra, o
patrimônio, a vida, a incolumidade física etc.; e

b) digam respeito ao sistema estatal construído para proteger o


indivíduo: nesse sentido, a administração pública e a administração da
justiça, por exemplo, são concebidas como bens jurídicos, por fazerem
parte do sistema estatal construído para permitir a realização pessoal dos
indivíduos e a proteção de seus direitos.

Em suma, são bens jurídicos não somente realidades ou finalidades


importantes para a realização pessoal dos indivíduos, como também
realidades ou finalidades que façam parte da estrutura estatal que
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garantirá a sobrevivência dos indivíduos, seus direitos e a sua realização


pessoal. É necessário levar em consideração os dois lados da balança:
indivíduo e Estado (que existe para proteger o indivíduo).

DIFERENÇA ENTRE BEM JURÍDICO TUTELADO E OBJETO


MATERIAL DO CRIME

O bem jurídico é um conceito abstrato, enquanto o objeto material é a


coisa física ou corpórea sobre a qual recai a conduta criminosa. A título
de exemplo, no caso de furto, o bem jurídico violado é o patrimônio (ideia
abstrata), enquanto o objeto material do delito (coisa física alvo da
conduta do agente) é a coisa furtada.

FUNÇÕES DO CONCEITO DE BEM JURÍDICO

Para que serve o conceito de bem jurídico?

1. Função de garantia: O conceito de bem jurídico tem, primeiramente,


uma função de garantia: se a função do Direito Penal é a proteção de
bens jurídicos, conclui-se que o indivíduo pode ter por certo que norma
penal alguma poderá criminalizar conduta que não seja lesiva ou
perigosa para um bem jurídico. Trata-se do conteúdo do princípio da
lesividade.

2. Função teleológica: A segunda função do conceito de bem jurídico é


a teleológica ou de interpretação dos tipos penais: para compreender o
sentido e alcance de um determinado tipo penal, é importante verificar
qual o bem jurídico tutelado pela norma.

Vejamos um exemplo. O art. 159 do CP trata do crime de extorsão


mediante sequestro. Pratica o referido crime aquele que sequestra pessoa
com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem, como
condição ou preço do resgate.

Diante desse quadro, indaga-se se o delito em tela admite a exigência de


vantagem sexual. Considerando que o tipo penal em análise tutela o
patrimônio (não a liberdade sexual), a resposta deve ser negativa. Ou
seja, a vantagem mencionada no artigo 159 do CP não abrange a
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vantagem sexual. O delito exige, para sua configuração, risco de lesão


patrimonial. Dessa forma, observa-se que a identificação do bem jurídico
tutelado pelos diversos tipos penais é importante para que se efetue uma
interpretação correta do sentido e alcance da norma penal.

3. Função individualizadora: o conceito de bem jurídico serve de critério


de medida da pena, levando em conta a gravidade ou intensidade da
lesão. Nesse cenário, trabalha-se o desvalor do resultado, de modo que,
quanto maior for a lesão provocada ao bem jurídico, mais severa será a
resposta penal aplicável ao caso.

4. Função sistemática: o conceito de bem jurídico é utilizado para fins


de organização das infrações penais dispostas na parte especial do
Código Penal e na legislação extravagante. Cabe observar que na parte
especial do Código Penal os tipos são agrupados de acordo com o bem
jurídico tutelado. Encontraremos assim os crimes contra a vida, contra o
patrimônio etc. Deste modo, o bem jurídico serve de critério para
sistematizar os diversos tipos penais previstos na codificação e na
legislação esparsa.

CONSEQUÊNCIAS DO CONCEITO DE BEM JURÍDICO

Tendo em mira que o conceito de bem jurídico possui, dentre outras, a


função de garantir que condutas que não representem risco ou lesão a
bem jurídico não sejam criminalizadas, a partir daí resultam as seguintes
consequências:

a) Impossibilidade de punir condutas meramente imorais: não é


possível criminalizar condutas que atentem contra a moral média, vigente
em uma dada sociedade, porém que não afetem nenhuma realidade ou
finalidade importante para a realização pessoal dos indivíduos ou para o
sistema estatal. Certos países consideram crime, até hoje, a relação
homossexual. Valendo-se da definição de bem jurídico e da função de
garantia desse conceito, é possível reconhecer a ilegitimidade (e até
mesmo a inconstitucionalidade, como veremos) de semelhante norma
penal, dada a inexistência de bem jurídico lesionado ou em risco. Com
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efeito, mesmo que se possa enxergar, nesses países, uma dissonância


entre essa conduta e a moral média prevalente, não há afetação de bens
jurídicos quando duas pessoas adultas, maiores e capazes se relacionam.

b) Impossibilidade de punir a simples violação de um dever: ainda


que determinada pessoa descumpra deveres para com a Administração
Pública, tal fato, por si só, não pode ser objeto de imediata criminalização.
Para tanto, é necessário que a violação a esses deveres revele lesão a um
bem jurídico.

Assim, como exemplo, se houvesse um dever de pintar semestralmente a


calçada da própria casa, o simples descumprimento deste dever, sem a
aptidão para ofender realidades ou finalidades importantes para a
realização pessoal dos demais indivíduos ou para o sistema estatal, não
seria passível de criminalização.

c) Impossibilidade de proibições meramente ideológicas: proibições


meramente ideológicas são aquelas que somente fazem sentido à luz de
uma determinada ideologia. Como exemplo, na Alemanha nazista
acreditava-se na "supremacia branca". Por tal razão proibia-se o
casamento inter-racial. Em tal hipótese, obviamente não há ofensa ou
risco de lesão a bem jurídico algum e, portanto, essa seria uma proibição
ilegítima.

d) Impossibilidade de punir um modo de ser: trata-se aqui da


impossibilidade de punir personalidades ou formas de ser. Esta vedação
se conecta com a distinção entre um direito penal de fato versus um
direito penal de autor. Entende-se por direito penal do fato aquele que se
ocupa de condutas. Neste modelo, hoje prevalente, cabe ao tipo penal
descrever condutas tidas como criminosas. Já um direito penal de autor
criminalizaria personalidades ou formas de ser, tais como “ser bêbado,
ser vagabundo, ser traficante”. O direito penal de autor foi banido das
legislações democráticas, por seu caráter claramente seletivo, autoritário
e sobretudo impreciso. Uma das consequências do conceito de bem
jurídico reside em exigir a descrição de uma conduta lesiva a um bem
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jurídico, para que haja crime. Daí que somente se conecte com um direito
penal de fato.

1. Impossibilidade de punir condutas atentatórias a bens não


fundamentais: caracteriza-se como bem jurídico apenas aqueles dados
de importância fundamental. Considerando que bens jurídicos são
finalidades ou realidades imprescindíveis para a realização pessoal dos
indivíduos e para as funções estatais, serão ilegítimas as normas penais
que tenham como objetivo proteger bens não fundamentais. Somente
bens jurídicos fundamentais são passíveis de proteção na esfera penal.

BEM JURÍDICO E CONSTITUIÇÃO

Ultrapassado o estudo do conceito de bem jurídico, suas funções e


consequências, parte-se agora para a análise da vinculação do conceito
de bem jurídico com a Constituição Federal. A fisionomia do conceito
de delito é fortemente influenciada pelo tipo de Estado em que se
insere o legislador penal.

A par do estudo sobre o bem jurídico, há uma ligação umbilical entre o


direito penal e a Constituição. Afinal, toda a teoria do delito deve ser
cunhada à luz das balizas constitucionais. Referido balizamento é
observado em todos os ramos do Direito. No entanto, em matéria penal a
influência constitucional ganha especial importância, em razão do
protagonismo dos direitos e garantias fundamentais na Carta
Constitucional. Destarte, a fisionomia do conceito de delito é fortemente
influenciada pelo perfil da Constituição, seja de viés mais ou menos
garantista. A Constituição exerce um papel de delimitação material da
função legislativa como um todo (e não somente em matéria penal).

Por meio do controle de constitucionalidade, leis cujo conteúdo seja


contrário aos direitos, garantias e normas previstas na Constituição
Federal são extirpadas do ordenamento jurídico. Tal controle também
ocorre no âmbito penal. Assim, quando o legislador resolve criminalizar
condutas, deve estar atento às previsões constitucionais.
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Da Constituição podem ser extraídas proibições de penalização


(limites materiais ao Direito Penal): trata-se de hipóteses nas quais
não é possível a criminalização de condutas. Tais proibições ocorrem

(a) quando as condutas representam direitos constitucionalmente


assegurados. Exemplo: a CF tutela, dentre outros, o direito de livre
associação e o direito à liberdade de expressão (art. 5º., incs. IX e XVII da
CF). No contexto dos crimes contra a honra, o alcance constitucional
conferido à liberdade de expressão limita a configuração dos crimes
contra a honra (injúria, calúnia e difamação). Portanto, os direitos
constitucionalmente assegurados conformarão o alcance das normas
penais, modelando o seu conteúdo. Trata-se de uma limitação material
ao conteúdo das normas penais. Sob essa perspectiva, o controle de
constitucionalidade realizado no âmbito penal não difere daquele que
ocorre nos demais ramos do direito.

(b) quando a conduta não afete um bem jurídico. Já foi mencionado


que, em razão da função de garantia do conceito de bem jurídico, e em
respeito ao princípio da lesividade, uma norma penal que puna uma
conduta não ofensiva ou lesiva a bem jurídico deve ser considerada
ilegítima.

Mas qual o efeito prático dessa conclusão? É necessário, para além da


ilegitimidade, que encontremos uma sede constitucional para o princípio
da lesividade. Do contrário, a norma questionada continuará válida,
apesar de ilegítima. Para evitar que isso ocorra, a doutrina se esforça em
encontrar um fundamento constitucional para o princípio da lesividade,
permitindo assim o controle de constitucionalidade da lei penal.

Qual seria a sede constitucional do princípio da lesividade? A


despeito de inexistir previsão explícita na Constituição Federal, diversos
autores enxergam que o princípio da lesividade pode ser extraído da ideia
de dignidade da pessoa humana. Segundo o conteúdo nuclear desse
princípio, o homem não pode ser "coisificado", não pode ser instrumento
de ideias que não sejam voltadas à proteção dele próprio e de sua vivência
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em comunidade. Como consequência, somente seriam compatíveis com


o princípio da dignidade da pessoa humana as penalizações de condutas
que atingissem realidades ou finalidades fundamentais para os
indivíduos e a sua interação pacífica. Em outras palavras, penalizações
de condutas lesivas ou perigosas para bens jurídicos. Ditas penalizações,
como se vê, repercutem em favor do próprio criminoso, cujos direitos
serão igualmente protegidos, quando violados. Um exemplo desta ideia é
a proteção penal da vida. Ela é importante para todos, inclusive para o
homicida.

Quando, porém, a criminalização de condutas ignorar essa ideia, como


se dá nas criminalizações ideológicas ou de condutas meramente imorais,
será possível enxergar a instrumentalização do homem par alcançar fins
que não lhe dizem respeito. Haverá, assim, violação à dignidade da
pessoa humana.

Apenas bens jurídicos constitucionalmente relevantes são passíveis


de tutela? Bens jurídicos, para serem passíveis de tutela, devem
estar previstos na Constituição? Para alcançar status penal, os bens
jurídicos precisam estar previstos no texto constitucional? É certo
que diversos bens jurídico-penais, tal como a vida, estão previstos na
Constituição. Para uma primeira concepção, da qual são expoentes
Luciano Feldens e Figueiredo Dias, para merecerem proteção penal os
bens jurídicos devem estar, ao menos implicitamente, previstos na
Constituição Federal. Na visão de Feldens, quanto mais direta for a
previsão constitucional, maior será a legitimidade da penalização.
Contudo, não se deve ignorar que mesmo uma Carta Política prolixa e
imensa como a do Brasil não consegue prever todos os bens jurídicos.
Um bom exemplo disso é a fé pública, algo inquestionavelmente
importante para a vida em sociedade e que, todavia, não está previsto
sequer implicitamente na Constituição.

Observa-se, portanto, que essa exigência de previsão constitucional é


desnecessária. Mais adequada é a segunda concepção, defendida por
Luís Greco e pelos autores italianos Dolcini e Marinucci. Para ela, basta
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que o bem jurídico seja compatível com os princípios e direitos


assegurados na Constituição, para que seja legítimo, ainda que inexista
previsão constitucional expressa ou implícita.

BEM JURÍDICO - PROTEÇÃO DEFICIENTE E CONTROVÉRSIAS

Trata-se de tema muito importante e que vem ganhando relevância no


debate atual. Quando se estuda a proteção deficiente, a pergunta que se
deve fazer é a seguinte: pode o legislador penal estar obrigado a
castigar lesões a bens jurídicos constitucionalmente protegidos? O
debate é mais significativo no âmbito da descriminalização de condutas.

Se o legislador ordinário editar uma lei descriminalizando o aborto


praticado até o terceiro mês de gestação, a exemplo do que é permitido
em outros países, haveria nessa lei penal uma inconstitucionalidade
por proteção deficiente ao bem jurídico vida? Considerando que o
direito à vida tem assento constitucional, estaria o legislador
ordinário obrigado a tutelar penalmente todas as formas de agressão
ao direito à vida?

Há alguns anos, com parcelamentos especiais de dívidas tributárias e a


previsão penal de extinção da punibilidade em razão dos pagamentos
efetuados, mesmo após o recebimento da denúncia, o Ministério Público
arguiu junto ao Supremo Tribunal Federal a inconstitucionalidade da
medida provisória, depois convertida em lei, sob a alegação de que o
diploma facilitava de tal modo a vida do devedor, extinguindo sua
punibilidade de forma tão ampla, que acarretava, por consequência, uma
proteção deficiente em relação ao erário. A tese não chegou a ser acolhida,
mas inaugurou um debate importante na jurisprudência e na doutrina.

Há duas correntes sobre o assunto. Vejamos.

1ª Corrente: Luciano Feldens Ao defender as obrigações de tutela penal,


Luciano Feldens inicialmente demonstra que algumas obrigações de
penalização são estabelecidas pela Constituição Federal, tal como a
necessidade de criminalização do racismo e da ação de grupos armados,
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civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático


(artigo 5º, XLII, XLIII, XLIV […], CF/88).

Prossegue afirmando que, a partir dessas menções explícitas a obrigações


de penalização, podem ser extraídas as seguintes consequências:

a) proibição do abolicionismo penal: se a própria Constituição diz que


algumas condutas devem ser consideradas criminosas, isso denota a
existência de um direito penal;

b) impossibilidade de revogação das normas que incriminam


condutas tratadas na CF/1988: se a Constituição exige que
determinadas condutas sejam criminalizadas, não pode o legislador
ordinário descriminalizar esses comportamentos pura e simplesmente,
sob pena de inconstitucionalidade da norma descriminalizadora;

c) da necessidade de criminalização de condutas como a retenção


dolosa de salário (artigo 7º, X, CF)], extrai-se que implicitamente a CF
também deseja a proteção do próprio trabalhador e de seus direitos mais
valiosos (os direitos fundamentais).

O raciocínio utilizado é o de que, se a Constituição criminaliza a violação


a um direito menor (ex: direito ao salário), também exige a penalização
da ofensa ao direito maior (ex: direito à vida);

d) Essa conclusão também é fruto da eficácia objetiva dos direitos


fundamentais e do princípio da proporcionalidade, que impedem a
proteção deficiente. Segue-se a ideia de que determinados direitos
previstos na Constituição Federal irradiam efeitos sobre o Direito Penal,
de forma a impedir a proteção deficiente desses mesmos direitos.

Advirta-se que as consequências tratadas nos itens “a” e “b” são


manifestas, enquanto as duas últimas (itens “c” e “d”) são discutíveis.
Uma crítica importante à ideia de proteção deficiente é a de que, em um
contexto de equilíbrio de forças entre os Poderes Judiciário e Legislativo,
ela confere ao primeiro um protagonismo exacerbado. Com efeito, o juízo
de conveniência acerca da criminalização de condutas e o papel principal
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no direcionamento da política criminal deve caber aos legisladores, eleitos


pela população. Além disso, a Constituição estabelece que determinados
direitos sejam protegidos (ex.: vida, incolumidade física, patrimônio etc.),
sem, contudo, mencionar a forma de proteção desses direitos. Assim, a
conveniência sobre o modo de proteção aos direitos constitucionalmente
assegurados deve ser avaliada pelo legislador, cuja legitimidade para
tanto decorre do voto popular.

• 2ª corrente: posição de Dolcini e Marinucci

Para outra corrente, da qual fazem parte os italianos Dolcini e Marinucci,


a Constituição Federal apenas prescreve o dever de proteção aos bens
jurídicos, mas não o modo de proteção desses mesmos bens (se pela via
penal, administrativa, civil, etc). Nesse passo, cabe ao legislador, no
exercício de sua legitimidade democrática, a escolha dos meios
adequados e convenientes para conferir proteção aos bens jurídicos. Não
se mostra conveniente estender o papel do Judiciário a ponto de,
mediante juízo de constitucionalidade por proteção deficiente, definir o
alcance da política criminal e a forma de proteger bens jurídicos, se na
via penal ou não.

• A jurisprudência recente do STF tem dado mostras de que acolhe a ideia


dos chamados mandados de criminalização. Houve menção a esta ideia
em pelo menos dois importantes acórdãos. O primeiro, referente à
constitucionalidade do crime previsto no art. 305 do CTB (é crime
constitucional). Entendeu-se que a declaração de inconstitucionalidade
em nome da vedação à autoincriminação caracterizaria afronta ao
princípio da proporcionalidade quanto à vedação de proteção deficiente.
Deixaria descoberto o bem jurídico “Administração da Justiça”
(Informativo STF 923 de novembro de 2018).

O segundo, no julgamento a respeito da criminalização da homofobia


(Informativo STF 931 de novembro de 2019). Segundo o STF, “dessume-
se da CF/88 um mandado constitucional de criminalização no tocante a
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toda e qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades


fundamentais, incluída a orientação sexual e a identidade de gênero”.

BENS JURÍDICOS INDIVIDUAIS E COLETIVOS

O estudo da temática é importante porque, nos dias atuais, o legislador


tem abusado dos chamados bens jurídicos coletivos para justificar
cominações de pena exageradas. Bens jurídicos individuais são os que
dizem respeito a realidades referidas a cada um dos indivíduos, tais como
patrimônio, vida, integridade física. Bens jurídicos coletivos são os de
natureza transindividual, indivisíveis, como, por exemplo o meio
ambiente.

Modernamente, nota-se uma confusão entre autênticos bens jurídicos


coletivos e os chamados pseudo-bens jurídicos coletivos, que nada mais
são do que uma junção de bens jurídicos de natureza individual/divisível
e que têm – ou poderiam ter – existência autônoma.

Tal situação é percebida com o bem jurídico saúde pública, que nada
mais é do que a reunião de todas as saúdes individuais e que, portanto,
não possui a transindividualidade e a indivisibilidade característica dos
verdadeiros bens jurídicos coletivos.

O legislador tem criado falsos bens jurídicos coletivos para usá-los como
fundamento para justificar a cominação de penas mais altas do que
aquelas cominadas aos crimes que tutelam bens jurídicos individuais.
Tem-se na lei de drogas um bom exemplo: a pena para o crime de tráfico
de drogas é altíssima, bem mais alta do que, por exemplo, a cominada ao
crime de lesão corporal grave.

Tendo em mira que o dano causado a quem faz uso de substâncias


entorpecentes é algo muito próximo do que acontece à vítima de uma
lesão corporal, tal discrepância não se sustenta. Portanto, para justificar
a intensidade da punição ao tráfico de drogas, invoca-se a ideia de que
está em jogo a saúde pública, supostamente mais importante do que a
saúde individual. Trata-se, na verdade, de um falso bem jurídico coletivo,
que não possui caráter transindividual e indivisível.
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Em síntese, tem-se assistido a uma utilização equivocada do conceito de


bem jurídico coletivo, empregado, na realidade, para fundamentar penas
desproporcionais, cominadas a determinados tipos penais

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