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DIREITO PENAL – ANA PAULA VIEIRA DE CARVALHO

AULA 02 – 01.04.2021

CRIMES DE PERIGO ABSTRATO E O PRINCÍPIO DA LESIVIDADE

Aborda-se doravante uma discussão bastante atual: a alegada


inconstitucionalidade dos crimes de perigo abstrato. Há alguns anos,
autores brasileiros sustentaram que os crimes de perigo abstrato seriam
inconstitucionais, por violarem o princípio da lesividade, haja vista que
tais delitos teriam por objeto condutas em que não há lesão ou risco a
bem jurídico, ocorrendo mera presunção de perigo.

Para entender a controvérsia, parece importante esclarecer alguns


conceitos.

Em linhas gerais, os crimes podem ser classificados, quanto ao


resultado que produzem, em:

• Crimes de lesão: exigem uma efetiva lesão ao bem jurídico, tal como
ocorre nos crimes de homicídio, lesão corporal e furto.

• Crimes de perigo: contentam-se com a exposição do bem jurídico a


perigo, ainda que não se verifique a ocorrência de um dano. A doutrina
tradicional distinguia os crimes de perigo concreto e abstrato de maneira
equivocada, provocando, como consequência, a confusão que gerou o
debate sobre a eventual inconstitucionalidade dos delitos de perigo
abstrato. Fazia-se da seguinte forma:

• Crimes de perigo concreto: são os que exigem uma efetiva


comprovação de perigo no caso concreto;

• Crimes de perigo abstrato: são aqueles em que o legislador presume o


perigo, de forma absoluta (ou seja, sem admitir prova em sentido
contrário).
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Partindo da conceituação de que os crimes de perigo abstrato envolvem


uma presunção absoluta de perigo, sendo inadmissível prova em
contrário, concluía-se que, de fato, existia ofensa ao princípio da
lesividade. Isto porque a criminalização de condutas requer efetivo risco
de lesão a bem jurídico e, por conseguinte, o perigo não pode ser
presumido.

À vista dessa definição, vários autores passaram a defender a


inconstitucionalidade do perigo abstrato por violação do princípio da
lesividade, considerando a premissa de presunção legal e absoluta de
perigo. Alice Bianchini, por exemplo, sustenta que crimes de perigo
abstrato violam os princípios da dignidade da pessoa humana – porque
inexistiria bem jurídico em risco – e da culpabilidade – por não se permitir
presunções em desfavor do acusado. Já Damásio argumenta que são
inadmissíveis crimes de perigo abstrato na legislação pátria, por violarem
o estado de inocência, já que haveria presunções contra o acusado.

Ocorre que no ordenamento jurídico brasileiro existe uma infinidade de


crimes de perigo abstrato. Para manter a coerência com o pensamento
tradicional, seria preciso reconhecer a inconstitucionalidade de inúmeros
crimes, tais como os de rixa, associação criminosa e organização
criminosa.

No intuito de contornar a questão, Damásio propõe a transformação dos


crimes de perigo abstrato em crimes de lesão. Para tanto, o bem jurídico
protegido pelo tipo penal seria substituído. Crimes que tutelassem
originariamente bens jurídicos individuais (incolumidade física, por
exemplo, nos crimes de trânsito), passariam a tutelar pseudo-bens
jurídicos coletivos (segurança viária). Seguindo este raciocínio, deixariam
de ser crimes de perigo abstrato e passariam a ser delitos de lesão
daquele bem jurídico coletivo. Como se vê, trata-se de uma solução sem
sentido, porque apenas muda o rótulo dos delitos e bens jurídicos
estudados.
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Em verdade, a raiz da divergência reside na errônea conceituação dos


crimes de perigo abstrato. Em um artigo específico sobre o tema, Luís
Greco assevera que os problemas relativos aos crimes de perigo abstrato
não têm propriamente relação com o bem jurídico protegido, mas sim
com a especial forma de proteção a esse bem jurídico. Ele afirma que é
no “como”, na estrutura do delito que se deverá examinar a problemática
dos crimes de perigo abstrato.

Segundo ensina Greco, os crimes de lesão e de perigo (concreto ou


abstrato) podem se debruçar sobre o mesmo bem jurídico, de sorte que
em ambos existirá um bem jurídico tutelado, afastando-se, com isso,
ofensa ao princípio da lesividade. A título ilustrativo, o bem jurídico “vida”
pode ser protegido ora por meio de tipos penais de lesão (art. 121 do CP,
129, § 3º do CP, etc), ora por meio de tipos de perigo concreto (art. 258
do CP) ou abstrato (rixa, da qual pode resultar a morte).

O legislador penal escolhe como se dará a proteção (se mediante delitos


de lesão, de perigo concreto ou abstrato) porque avalia que a forma de
tutela precisa ser diferente em cada caso.

A punição por intermédio do perigo abstrato é compatível com o


princípio da lesividade? Sim, porque além de haver um bem jurídico
protegido, não há presunção de perigo. Em verdade, o conceito de perigo
abstrato com o qual trabalha a doutrina tradicional (presunção absoluta
de perigo pelo legislador) está ultrapassado na doutrina estrangeira.
Vejamos.

Segundo a nova visão, o perigo concreto caracteriza-se não por uma


presunção relativa de perigo, mas sim por exigir uma constatação ex post
do perigo. Em outras palavras, o perigo é aferido depois da realização da
conduta. Já o perigo abstrato também exige a constatação de perigo,
porém feita ex ante. Ou seja, o perigo é aferido durante a realização da
conduta. Essa é a verdadeira distinção entre os referidos conceitos.
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A doutrina tradicional dizia que, nos crimes de perigo concreto, exigia-se


a comprovação de perigo, enquanto nos de perigo abstrato havia uma
presunção absoluta de perigo.

A doutrina moderna afasta-se dessa noção errônea e compreende que,


em ambos os casos (leia-se: de perigo concreto e abstrato), é
indispensável a constatação de perigo. Todavia, o ponto diferenciador é a
forma de comprovação. No perigo concreto a demonstração é mais
exigente, porque será feita apenas ex post, com todas as informações
disponíveis antes e depois de realizada a conduta. No perigo abstrato ela
é menos exigente, feita ex ante, contando apenas com as informações
disponíveis enquanto a conduta é realizada..

EXEMPLO: O artigo 132 do Código Penal retrata um crime de perigo


concreto. No exemplo corriqueiro deste crime, o agente transporta 50
(cinquenta pessoas) na boleia de um caminhão, sem oferecer-lhes cinto
ou qualquer outro equipamento de segurança. Tratando-se de crime de
perigo concreto, apenas após a realização da conduta e, uma vez
finalizada, efetua-se um exame do perigo enfrentado (exame ex post),
considerando-se todos os dados e informações necessárias sobre o que
aconteceu e o que poderia ter acontecido. Tem-se, portanto, uma
averiguação exigente. Noutro vértice, o crime de perigo abstrato exige
apenas uma constatação ex ante do perigo, ou seja, enquanto a conduta
é realizada. Aqui, a conduta é acompanhada enquanto está sendo
realizada. Não se procede a uma análise mais exauriente depois de
finalizada a conduta; não se analisam seus efeitos; a averiguação é feita
apenas durante a realização do comportamento. EXEMPLO: dirigir
embriagado é crime de perigo abstrato. Pode ser que a pessoa esteja
embriagada e, ainda assim, não cause perigo a pessoas determinadas ao
dirigir alcoolizada. Caso o delito fosse de perigo concreto, examinar-se-
ia a existência do perigo após a realização da conduta, de modo que, se
acaso verificada a condução escorreita do veículo pelo motorista,
concluir-se-ia pela ausência de perigo e, portanto, pela inexistência de
crime. Entretanto, tratando-se de crime de perigo abstrato, o exame do
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perigo dá-se ex ante, ou seja, durante a realização da conduta. Desta


feita, o observador prudente, que analisa a conduta enquanto ela é
desenvolvida, ciente dos riscos inerentes à direção em estado de
embriaguez, enxergará uma conduta arriscada por parte daquele que
dirige embriagado, ainda que, ao final, não se verifique risco concreto ou
dano a pessoas determinadas.

Eis, pois, a real diferença entre os delitos de perigo concreto e


abstrato: no primeiro, o exame do perigo é mais exigente e envolve uma
análise exauriente de todas as circunstâncias do caso; no segundo é
menos exigente, mas não envolve presunção de perigo.

Além da discussão sobre a constitucionalidade, existe alguma


diferença, na prática, entre esta formulação e a tradicional? Sim. Nas
hipóteses em que o observador prudente não enxergar perigo, sequer ex
ante, será possível afastar a configuração do crime, já que não há
presunção de perigo, como havia na visão anterior. EXEMPLO: O crime
previsto no art. 253 do CP é de perigo abstrato. Imaginemos que um
motorista dirija seu caminhão transportando, sem licença da autoridade,
gás tóxico. Nosso observador prudente verificará, porém, que todos os
requisitos de segurança estão sendo cumpridos e que apenas não foi
providenciada a licença formal da autoridade. Há crime? Não, porque
não haverá criação de perigo, sequer ex ante. Não há, portanto,
presunção de perigo. Deve existir a constatação de perigo, ao menos ex
ante, ou seja, enquanto a conduta é realizada.

A jurisprudência pátria endossa a visão tradicional a respeito dos crimes


de perigo. Todavia, essa orientação tradicional, em razão de seu equívoco,
conduz a julgamentos igualmente equivocados, que vez por outra são
corrigidos.

Um exemplo disso nos deu um julgado do STJ sobre o crime de pesca


ilegal. A Corte entendeu que embora o crime de pesca ilegal seja de perigo
abstrato, a posterior devolução do peixe vivo ao rio não representava
perigo e, portanto, não haveria crime. Na ocasião, o STJ, após ressalvar
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a inaplicabilidade do princípio da insignificância nos casos de perigo


abstrato, entendeu que seria excepcionalmente aplicável ao caso em
referência. Na verdade, incide a bagatela na situação tratada porque,
uma vez efetuado o exame ex ante da conduta, não se observou perigo
algum.

Percebe-se, assim, que o entendimento tradicional sobre os crimes de


perigo resulta em afirmações equivocadas, tais como “perigo abstrato não
admite insignificância” e “no perigo abstrato há presunção de perigo”.
Essas afirmações acabam sendo corrigidas quando do julgamento dos
casos concretos trazidos à apreciação do tribunal.

Em suma, tem-se que, nos crimes de perigo concreto é necessário, de


uma perspectiva ex post, que resulte efetivamente uma situação de
fragilidade para o bem jurídico tutelado, que se salva somente por obra
do acaso. Já nos crimes de perigo abstrato são proibidas condutas que
se sabe perigosas para o bem jurídico, isto é, condutas em si arriscadas
e que geram percepção de perigo nos observadores.

A jurisprudência do STJ parece sufragar a primeira noção dos crimes de


perigo abstrato. Aponta, a título de exemplo, os crimes previstos nos
artigos 306 e 310 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) e de porte ilegal
de arma de fogo e, ao fazê-lo, transmite a ideia de que, no perigo abstrato,
há uma “desnecessidade de prova da situação de risco ao bem jurídico”.
Tal afirmação não é correta, porquanto a situação de risco existe, porém
de forma menos exigente. Afirma, ainda, não ser necessária prova da
“potencialidade lesiva da conduta” ou da “ocorrência de lesão ou perigo
de dano concreto”.

Assim, aparentemente, a jurisprudência do STJ alinha-se à posição


ultrapassada de que o perigo abstrato é uma presunção de perigo. A esse
respeito, citem-se os seguintes julgados: REsp nº 1511416/RS, julgado
em 05/05/2016; HC nº 332954/RS, julgado em 03/05/2016; HC nº
339488/RS, julgado em 19/04/2016; e REsp nº 1485830/SP, julgado
em 11/03/2015.
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Ocorre que o entendimento de que perigo abstrato corresponde à


presunção absoluta de perigo dificulta uma série de outras análises,
inclusive a aplicação do princípio da insignificância. Na jurisprudência
do Superior Tribunal de Justiça encontram-se afirmações genéricas no
sentido de que os crimes de perigo abstrato não admitem exame de
insignificância. Porém, tanto a jurisprudência do STJ quanto a do STF se
contradizem nesse ponto, pois admitem o exame da insignificância em
alguns casos concretos. Veja-se, a propósito, o Informativo nº 826 do
STF, datado de maio de 2016, no qual ficou assentado que “portar
munição como pingente não configura crime porque, nesse caso, o
paciente não oferece perigo concreto ou abstrato”.

Infere-se, por conseguinte, que não se trata de uma presunção absoluta


de perigo, do tipo “portar munição é sempre perigoso”. A jurisprudência
dos tribunais superiores percebe que a referida presunção absoluta, além
de inconstitucional, não funcionaria na resolução dos casos concretos.

Não se trata, portanto, de uma presunção, mas sim de uma constatação


de perigo ex ante, de forma que se o sujeito é visto portando uma munição
como pingente, o observador prudente (que acompanha a conduta
enquanto ela é realizada) não enxergará perigo. Eis a razão pela qual a
jurisprudência relativiza em alguns casos a análise da insignificância em
situações de perigo abstrato.

O mesmo ocorre no âmbito do STJ. Como vimos, no tocante ao delito de


pesca ilegal (que é crime de perigo abstrato), o Superior Tribunal de
Justiça, embora assevere não caber o princípio da insignificância nos
crimes de perigo abstrato, possui acórdãos ressalvando a aplicação de tal
princípio nas hipóteses em que o agente é um pescador amador e devolve
o peixe vivo ao rio de onde o havia pescado.

Percebe-se, portanto, que o posicionamento teórico equivocado é mitigado


por outras decisões pontuais que demonstram o desacerto da visão
tradicional.
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Como identificar se um crime é de perigo abstrato ou concreto? Os


crimes de perigo concreto e abstrato são de fácil identificação. Tratando-
se da primeira espécie (perigo concreto), o próprio legislador torna isso
claro. Confira-se, por exemplo, o artigo 250 do Código Penal.

Assim sendo, sempre que o legislador fizer exigência de perigo, utilizando-


se de alguma expressão alusiva à criação de risco (expondo a perigo,
causando perigo, criando perigo….), tem- se um perigo mais sofisticado,
um perigo ex post, um perigo concreto. Se, ao contrário, o legislador
apenas descreve a conduta perigosa, sem aludir a uma criação de perigo,
cuida-se de crime de perigo abstrato. Um exemplo se encontra no artigo
253 do Código Penal.

Observe que, no dispositivo em comento, o legislador não usou nenhuma


expressão do gênero “criando perigo”, “causando perigo”, denotando
tratar-se de delito de perigo abstrato, vale dizer, perigo ex ante, aferível
enquanto a conduta é realizada. Embora a orientação teórica prevalente
no STJ seja de presunção de perigo, é possível deparar-se com acórdãos
que acolhem a posição mais correta sobre o tema. Convém destacar o
julgado abaixo transcrito:

“EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM
RECURSO ESPECIAL. PORTE ILEGAL DE
ARMA DE FOGO. EXAME PERICIAL.
NULIDADE OU AUSÊNCIA.
IRRELEVÂNCIA. CRIME DE PERIGO
ABSTRATO. RECURSO REJEITADO. 1. Os
crimes de perigo abstrato não implicam, em
todos os casos, violação ao princípio da
ofensividade, pois, tendo como objeto risco
juridicamente reprovável criado sob uma
perspectiva ex ante, diferenciam-se dos
delitos de perigo concreto e dos delitos de
lesão tão somente quanto ao grau de
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proteção que conferem ao bem jurídico


tutelado”

A Min. Laurita Vaz afastou a inconstitucionalidade do crime de perigo


abstrato, valendo-se exatamente do argumento acima mencionado, que
reflete a lição de Luís Greco.

As hipóteses ali tratadas são de perigo abstrato, em que o legislador


detecta condutas que são usualmente perigosas e as descreve como
típicas. Isso não significa que não se deve constatar perigo, mas sim que
dita aferição é empreendida de forma ex ante.

É importante entender a vinculação entre crimes de perigo abstrato e


desnecessidade de laudo pericial para atestar potencialidade lesiva.

Conforme já visto, nos crimes de perigo abstrato a constatação se dá ex


ante, ou seja, dá-se enquanto a conduta é realizada. Se um sujeito está
portando uma arma com defeito e, ao se deparar com essa situação, o
observador prudente, que acompanha tal conduta, constata perigo, isso
é o suficiente para ensejar a configuração do perigo abstrato. Se a arma
é apreendida e posteriormente submetida a exame pericial, por meio do
qual se verifica que tinha um defeito, a informação só se torna disponível
após a realização da conduta. Essa constatação posterior seria
importante caso se tratasse de um crime de perigo concreto, no qual o
exame do perigo é ex post (constatado através de todas as informações
disponíveis), mas não no perigo ex ante, que apenas considera as
informações disponíveis enquanto a conduta é realizada. Portanto,
enxergar o sujeito portando uma arma e perceber um perigo é o suficiente
para caracterização do perigo abstrato. À vista desse cenário, entende-se
o porquê da desnecessidade de perícia nas hipóteses de perigo abstrato.

DELITOS DE ACUMULAÇÃO

Ainda no âmbito dos crimes de perigo, a temática dos delitos de


acumulação vem sendo cobrada em algumas provas de concurso público.
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*** O que é um delito de acumulação? Nos bens jurídicos


transindividuais, que são os verdadeiros bens jurídicos coletivos (como o
meio ambiente), é possível que, no caso concreto, a lesão verificada seja
pequena, tal como ocorre, por exemplo, na pesca ilegal de um único peixe.
Todavia, se toda a população do planeta resolver praticar essa mesma
conduta, haverá um impacto significativo para o meio ambiente.

Isto posto, os delitos de acumulação são aqueles que, relacionados a bens


jurídicos transindividuais, ganham importância, em termos de lesão ao
bem jurídico, quando considerado o todo e não os atos individuais
parcelares.

Quanto aos delitos de acumulação, torna-se problemático trabalhar com


o princípio da insignificância, dada a possibilidade de serem praticados
por muitas pessoas e de a prática delitiva acumulada gerar impacto no
bem jurídico transindividual. Por isso, a aplicação da insignificância só
ocorre em hipóteses excepcionais, como sucede com o indivíduo que
pesca o peixe e o devolve vivo para o rio. Mesmo considerando a
possibilidade dessa conduta ser praticada por milhões de pessoas, ainda
assim não haverá lesão significativa ao bem jurídico.

Conclui-se, portanto, que delitos de acumulação são aqueles


relacionados a bens jurídicos transindividuais, cujas condutas,
isoladamente, causam um pequeno impacto ao bem jurídico e que
somente quando consideradas em conjunto com várias outras podem
gerar ofensa relevante.

PRINCÍPIO DA LEGALIDADE: ORIGEM HISTÓRICA E


DESDOBRAMENTOS

O princípio da legalidade, previsto no artigo 5º, inciso XXXIX, da


Constituição Federal, tem sua origem histórica na Magna Carta de 1215.
Nela reside a semente da ideia que é conhecida hoje. O formato atual do
princípio da legalidade – a noção de nullum crimen, nulla poena sine lege,
tal qual se conhece hoje – foi cunhado no século XIX por Feuerbach.
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O princípio da legalidade nasceu com a exigência primária de que


condutas criminosas estivessem descritas em lei e, a partir disto, foram
sendo desenvolvidos outros desdobramentos.

1) Primeiro desdobramento: a lei criminalizadora deve ser prévia à


conduta criminosa. O assunto será estudado com mais vagar no tópico
referente à lei penal no tempo. De toda sorte, vigora a ideia de que a lei
(em sentido formal) que criminaliza condutas seja sempre prévia ao
comportamento que se quer incriminar. Logo, uma lei incriminadora
jamais poderá retroagir para alcançar condutas anteriores à sua vigência,
sob pena de violação ao princípio da legalidade.

2) Segundo desdobramento: a lei criminalizadora deve ser escrita. No


sistema romano-germânico, os costumes não criminalizam condutas. É
interessante mencionar que, mesmo nos países que adotam o sistema da
common law, tais como Estados Unidos e Inglaterra, a tradicional
compreensão de que costumes podem criminalizar condutas encontra-se
em franca decadência. Nos EUA, inclusive, na esfera federal já não é mais
possível a criminalização de condutas através dos costumes e, na esfera
estadual, alguns poucos estados acolhem essa noção.

De fato, a criminalização de condutas através de costumes gera uma


enorme insegurança jurídica, ao não se poder estabelecer de forma
precisa os limites da conduta criminosa. No Brasil e nos países filiados
ao sistema romano-germânico, os costumes possuem papel muito tímido
em Direito Penal, funcionando como meros vetores interpretativos de
algumas previsões típicas. EXEMPLO: No furto capitulado no artigo 155,
§ 1º, do Código Penal, há a previsão de repouso noturno, que corresponde
ao período em que a maioria das pessoas está dormindo. Ocorre que tal
ideia varia de local para local, possuindo sentidos diferentes em relação
a uma pequena cidade do interior e à capital. Sendo assim, podem ser
utilizados os costumes para interpretar o repouso noturno.

Outra questão importante é a impossibilidade de costumes terem papel


descriminalizador de condutas. Estudaremos posteriormente um
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princípio próximo à ideia de costumes, o princípio da adequação social,


momento em que desenvolveremos o papel da aceitação social de
algumas condutas na interpretação dos tipos penais. Por ora, cumpre
evidenciar que, em matéria penal, os costumes possuem um papel de
pequena importância, servindo apenas como vetor interpretativo das
normas penais e não se prestando, pois, à criminalização ou
descriminalização de condutas.

3) Terceiro desdobramento: a lei penal deve ser estrita, isto é, não pode
ser estendida por analogia.

Por sua riqueza de conteúdo, a analogia será estudada separadamente,


valendo ressaltar que jamais pode ser utilizada para piorar a situação do
acusado ou para criminalizar comportamentos.

4) Quarto desdobramento: a lei penal deve ser certa. Trata-se do


dobramento mais recente do princípio da legalidade e exige que o
legislador, ao criminalizar uma conduta, a descreva de forma taxativa,
exaustiva. Descrições genéricas dão margem a arbitrariedades; nelas o
aplicador pode enquadrar a conduta que bem lhe aprouver.

Qual é a função do princípio da legalidade? A função do princípio da


legalidade é oferecer segurança jurídica ao cidadão contra o Estado, ou
seja, permitir que o cidadão saiba, com exatidão, o limite entre o lícito e
o ilícito. Portanto, o que é ilícito penalmente deve estar descrito em uma
lei formal, existente antes da conduta concreta (prévia) e cujo conteúdo
não será estendido por meio de analogia (estrita). Se o subprincípio da
lex certa – também chamado de taxatividade – não for cumprido, todos
os outros se tornam inócuos.

PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E EXIGÊNCIA DE LEI FORMAL -


MEDIDAS PROVISÓRIAS - LEIS DE INTERPRETAÇÃO AUTÊNTICA

O primeiro objetivo do princípio da legalidade é a exigência de lei formal


para criminalizar condutas. Os demais instrumentos normativos, a
exemplo de medidas provisórias, decretos etc., não têm esse poder.
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Medidas Provisórias podem tratar de matéria penal para beneficiar o


agente? Discute-se na jurisprudência se medidas provisórias que
beneficiam o acusado podem veicular matéria penal. É inquestionável
que só a lei ordinária pode criminalizar condutas. Medidas provisórias –
que são atos de iniciativa do Presidente da República – não podem fazê-
lo. Entretanto, há alguns anos editou-se medida provisória que, tratando
do parcelamento de tributos federais, instituiu uma causa de extinção da
punibilidade pelo pagamento do tributo. Trata-se, portanto, de matéria
penal mais favorável ao agente.

A despeito de medidas provisórias jamais poderem criminalizar condutas,


o princípio da legalidade não pode ser invocado para vedar a utilização
de medidas provisórias em favor do acusado, haja vista que o seu objetivo
é proteger o cidadão frente ao Estado, oferecendo-lhe segurança jurídica.

Sob essa perspectiva, não se deve utilizar o princípio da legalidade em


desfavor do acusado ou do cidadão de forma geral. Na verdade, a
discussão sobre a possibilidade de medidas provisórias tratarem de
matéria penal em prol do acusado deve fundar-se não no princípio da
legalidade, mas sim no direito constitucional.

O debate foi levado à apreciação do Supremo Tribunal Federal, que


aplicou largamente a aludida hipótese extintiva de punibilidade,
admitindo, assim, que medidas provisórias veiculassem matéria penal
favorável ao réu.

Outra questão importante, relacionada ao princípio da legalidade, refere-


se às leis de interpretação autêntica, que, como o próprio nome sugere,
são leis interpretativas. Imagine-se, como exemplo, uma lei que trate do
crime de roubo com arma, referindo-se à arma de modo geral e não
apenas à arma de fogo. Após muita celeuma na jurisprudência a respeito
de o conceito de arma abranger apenas arma de fogo ou englobar arma
branca, sobrevém, por hipótese, uma lei interpretativa afirmando que o
conceito em tela abrange todo tipo de arma.
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Seria a lei interpretativa aplicável ao sujeito que praticou um roubo


com arma branca antes de sua edição? A doutrina e a jurisprudência
entendem que sim, uma vez que a lei interpretativa não cria uma situação
nova, somente esclarece algo que já estava contido na lei anterior, cujo
significado foi apenas aclarado. No exemplo dado acima, a palavra arma
já constava da lei anterior, e a lei interpretativa somente esclareceu a
extensão do conceito. Na prática, o que pode acontecer é de a lei
interpretativa, a pretexto de esclarecer algo, criar ou incluir uma situação
nova. Nessa hipótese, referida lei não retroagirá. Uma lei interpretativa
somente poderá ser aplicada a fatos anteriores se ela for exclusivamente
interpretativa de um conceito, sem acréscimos de conteúdo.

PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E LEIS PENAIS EM BRANCO

Abordar-se-á doravante o conceito de leis penais (ou normas penais) em


branco e, em seguida, discutir-se-á a sua compatibilidade com o princípio
da legalidade.

Na era do direito penal clássico, a tutela penal se dava em relação a bens


jurídicos individuais, tal como ocorre no roubo, no homicídio etc. Nas
últimas décadas, tem-se assistido ao crescimento do chamado direito
penal econômico e, de uma forma geral, o direito penal tem se voltado
para os bens jurídicos transindividuais. Com isso, houve o incremento
de uma técnica legislativa que sempre existiu, mas que atualmente se
intensificou: as normas penais em branco.

As normas penais em branco consistem em técnica legislativa na qual o


legislador ordinário, que possui a legitimidade para criminalizar
condutas, descreve o núcleo do comportamento criminoso, isto é,
especifica o verbo e os outros elementos fundamentais do tipo, mas relega
para um complemento (que está fora do tipo penal) outras informações
adicionais. Portanto, a norma penal em branco é a soma das informações
ou elementos contidos na norma penal e em seu complemento,
consubstanciado este noutra norma, comumente de natureza extrapenal
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(o Código Civil, o Código Tributário, portarias e atos normativos do poder


executivo, etc).

O complemento da norma penal costuma ser um ato normativo do


Poder Executivo. E isso acontece porque esse novo direito penal, que
trabalha fundamentalmente com bens jurídicos transindividuais, é
chamado a punir condutas que atentam contra a regulação de
determinadas atividades perigosas. No que concerne ao meio ambiente,
por exemplo, o direito penal é chamado para sancionar comportamentos
que, violando normas de regulação das atividades mineradora, pesqueira,
de extração de petróleo etc., impactem o meio ambiente.

Ocorre que a regulação das atividades acima exemplificadas é muito


dinâmica, em razão das novas tecnologias empregadas, sendo
imprescindível que se faça por meio de instrumentos normativos capazes
de acompanhar esse dinamismo. Referidos atos normativos delimitam
justamente o que é a realização cuidadosa dessas atividades, e isto está
em constante modificação, em razão das novas tecnologias.

Nesse contexto, as normas penais em branco (lei formal) descrevem a


conduta, ou melhor, o núcleo da proibição, remetendo às normas
extrapenais o detalhamento acerca da conduta cuidadosa que servirá
como padrão. A necessidade de edição das normas penais em branco
aumentou muito em decorrência da expansão do direito penal para tutela
de bens jurídicos transindividuais, para a punição de condutas
fortemente disciplinadas por órgãos reguladores, com regência muito
dinâmica, que a lei formal não acompanharia

Em síntese, nas normas penais em branco a lei formal contém a descrição


do núcleo da conduta (é dizer: o verbo e seus elementos fundamentais) e
faz remissão à regulação dinâmica efetuada pelos complementos, os
quais normalmente são normas extrapenais emanadas do Poder
Executivo.

Não há violação ao princípio da legalidade nas normas penais em branco,


porque o núcleo da proibição vem descrito na lei ordinária, o que a torna
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constitucional. A título exemplificativo, veja-se que na Lei de Drogas


todos os verbos que caracterizam o tráfico, bem como a necessidade de
que o objeto material seja droga, estão descritos no artigo 33 do aludido
diploma (Lei nº 11.343/2006).

Tendo em vista que o Ministério da Saúde realiza um exame da


nocividade dessas drogas, em razão da criação de novas substâncias que
precisam ser acrescentadas à lista, o conceito de droga encontra-se
descrito na portaria editada pelo Ministério da Saúde. Trata-se da
Portaria SVS/MS nº 344/1998. Conclui-se, portanto, que o artigo 33 da
Lei nº 11.343/2006 é uma norma penal em branco.

As normas penais em branco também são classificadas como:

• Próprias e impróprias: Se o complemento normativo emana do


legislador, o que é incomum, a norma é imprópria ou homogênea.
Exemplo é o artigo 237 do Código Penal, cujo complemento é o Código
Civil.

Se o complemento emana de fonte legislativa diversa da lei (o que é mais


frequente), tal como um ato normativo do Ministério da Saúde, está-se
diante de uma norma penal em branco própria ou heterogênea, cujo
exemplo é a Lei de Drogas.

• Homovitelinas e heterovitelinas: Se o complemento integra a mesma


estrutura legislativa da norma (vale dizer: se tanto a norma quanto o seu
complemento estão contidos no Código Penal), o que é raro acontecer,
tem- se uma norma penal em branco homovitelina, a exemplo do que se
passa com o crime de peculato e o conceito de funcionário público,
estampados, nessa ordem, nos artigos 312 e 327 do Código Penal.

A seu turno, diz-se heterovitelina quando a norma penal em branco e o


seu complemento integram estruturas legislativas diversas, como no caso
do artigo 237 do Código Penal, em relação ao qual o conceito de
impedimento é extraído do Código Civil.
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• Norma penal em branco ao revés

Por último, fala-se, ainda, na doutrina em norma penal em branco ao


revés, que é aquela em que o complemento refere-se à sanção, isto é, a
sanção penal encontra-se noutro dispositivo.

ATENÇÃO! Para ser compatível com o princípio da legalidade, é


fundamental que o aludido complemento seja uma lei. A sanção penal
nunca pode ser delegada para um ato normativo diverso da lei.

PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E VEDAÇÃO DE ANALOGIA

A analogia é um método para colmatar lacunas. O raciocínio da analogia


é o de que onde existe a mesma razão, deve valer o mesmo dispositivo
legal. Em latim, diz-se que ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio

Muito embora seja um método importante de aplicação do Direito, a


analogia não pode ser usada in malam partem em matéria penal, posto
que viola o princípio da legalidade. A omissão do legislador não pode ser
corrigida por analogia.

A analogia, contudo, nem sempre é fácil de ser identificada. É, inclusive,


muito frequentemente confundida com a interpretação extensiva. Através
da interpretação, esclarece-se algo já está contido no dispositivo legal.
Portanto, na interpretação não se trabalha com a ideia de lacuna. Nesse
caso, o legislador identificou e previu todas as hipóteses, cabendo apenas
um esclarecimento do que já está previsto, via interpretação.

A interpretação pode chegar a resultados restritivos ou extensivos em


relação a uma primeira impressão. Da leitura do dispositivo, resulta uma
primeira impressão, pela via da interpretação literal (método gramatical).
Contudo, analisando o dispositivo mais a fundo, em conjunto com outros
do ordenamento (método sistemático), ou usando o método lógico ou o
teleolófico (finalidade da lei), pode-se chegar a outra conclusão, distinta
da inicial, no que toca ao sentido do que está previsto na lei.

Sendo assim, a interpretação final pode levar a um resultado ora


restritivo, ora extensivo em relação à impressão inicial. Atente-se que, em
18

ambos os casos, não se cria nada, apenas se esclarece algo já contido no


dispositivo legal. Vejamos alguns exemplos, iniciando com o da extorsão
mediante sequestro, prevista art. 159 do CP.

O dispositivo menciona "qualquer vantagem". Como já vimos quando do


estudo do bem jurídico, de uma primeira leitura pode resultar a
impressão de que a expressão “qualquer vantagem” abrange inclusive
favores sexuais. No entanto, de uma análise mais detida verifica-se que
se trata de um crime contra o patrimônio. Logo, apenas a vantagem
patrimonial configura este crime.

Note-se que o resultado a que se chegou foi restritivo em relação à


impressão inicial. Há uma interpretação com resultado restritivo. O
contrário também pode acontecer, isto é, o primeiro sentido enxergado
pode seja ampliado com o ato de interpretar. É a chamada interpretação
extensiva. É crucial compreender que na interpretação extensiva não se
está colmatando lacunas, mas apenas esclarecendo algo já contido no
dispositivo, porém de forma não tão clara. A conjugação com outros
raciocínios mostrará o verdadeiro sentido da previsão normativa.
Exatamente por isso ela pode prejudicar o acusado. Não há, frise- se,
violação do princípio da legalidade, na medida em que apenas se
esclarece algo já contido no texto legal. Não se está criando algo novo ou
mesmo colmatando uma lacuna, como ocorre com a analogia.

A despeito da simplicidade dessas ideias, é forçoso advertir que nem


sempre é fácil distinguir analogia de interpretação extensiva. Isto porque
todos os conceitos têm sempre um núcleo de significação inquestionável,
e um halo marginal impreciso. EXEMPLO: O conceito de arma. Um
revólver está no núcleo de significação inquestionável de tal palavra. Por
outro lado, em relação a um caco de vidro, não há certeza de que esse
seja uma arma. Encontra-se no halo marginal duvidoso, em que é
necessário o trabalho interpretativo.
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O caco de vidro é hipótese de interpretação (extensiva) do conceito


de arma, ou uma lacuna da lei (analogia in malam partem)? Trata-se
de mera interpretação. Vejamos por quê.

Para se trabalhar essa ideia, analisar-se-á um exemplo prático


relacionado a um caso julgado pelo STJ.

Há aproximadamente 15 anos, um juiz federal em São Paulo (TRF3) foi


processado pelo crime de subtração de documento, previsto no art. 314
do Código Penal. No caso apresentado, o juiz supostamente destruiu ou
inutilizou fitas cassete que continham interceptações telefônicas
relacionadas a investigações que corriam em sua vara federal. O juiz fora
acusado de conluio com policiais federais corruptos, que promoviam
investigações relativas a casos de competência de sua vara, sendo que,
nas interceptações, descobriu-se um crime envolvendo estes policiais. O
MPF o acusou de destruir as fitas, e o juiz foi processado perante o TRF3.

Em habeas corpus impetrado no STJ, discutiu-se a amplitude do conceito


de “documento”. A defesa, no caso, alegou analogia in malam partem.
Afirmou que fita cassete não é documento; somente o escrito usado para
fim de prova poderia ser considerado documento para fins penais.

De fato, autores mais antigos, como por exemplo Nelson Hungria,


entendiam que o conceito de documento compreende apenas os escritos
destinados a servir de prova. Entretanto, com o decorrer do tempo, o
conteúdo desse conceito foi se modificando com o uso e passou a
abranger todos os corpos capazes de receber e armazenar informações
juridicamente relevantes. Assim, fotografias e arquivos de áudio são
também documentos. Com efeito, com o advento do processo eletrônico
não se pode entender o conceito de documento de outra maneira, porque,
do contrário, tudo o que integra o aludido processo não poderia ser
considerado documento, o que não faria sentido algum.

No próprio dicionário encontra-se uma ideia mais ampla de documento.


Portanto, muito embora a fita cassete não esteja contida no núcleo
inquestionável de significação do conceito de documento, como ocorreria,
20

por exemplo, com uma carteira de identidade, com certeza está contida
no halo marginal deste conceito. Esta constatação é fruto de um trabalho
interpretativo, a cargo do intérprete.

Assim, no exemplo trazido o STJ denegou a ordem, sob o argumento de


que não houve violação ao princípio da legalidade. Não se tratou de
analogia, apenas de mera interpretação extensiva.

Para distinguir interpretação de analogia, portanto, é possível estabelecer


a seguinte diretriz: o limite entre analogia e interpretação é o sentido
literal possível da palavra, segundo a linguagem corrente.

Deste modo, a diretriz dada pela doutrina para se saber se, por exemplo,
uma fita cassete é ou não documento constitui em averiguar o sentido
literal possível daquele conceito, segundo o seu uso. O dicionário é um
bom recurso, muito comumente esse sentido deve ser averiguado por
outros meios.

Assim, deve-se averiguar se a situação do caso concreto cabe dentro do


conceito, partindo-se dos sentidos normalmente atribuídos àquela
palavra, ou seja, tal qual ela é utilizada pelas pessoas. Se couber, haverá
interpretação; se não couber, apesar de muito semelhante, analogia.

DIFERENÇA ENTRE INTERPRETAÇÃO ANALÓGICA, EXTENSIVA E


ANALOGIA

A diferença entre a interpretação extensiva e analogia pode ser observada


acima, cabendo agora tratar da interpretação analógica. A interpretação
analógica é uma técnica legislativa. Tem-se exemplos disso no artigo 121,
§2º, inciso III, do Código Penal.

O legislador primeiro elenca uma série de hipóteses. Haja vista que ele
não conseguirá esgotar todas as hipóteses que deseja, em seguida ele se
utiliza de uma cláusula genérica. Não há violação da taxatividade, porque
antes o legislador se ocupou de elencar várias hipóteses, para que o
intérprete possa perceber como a cláusula genérica deve ser
concretizada. Não são admitidas cláusulas genéricas que prevejam, por
21

exemplo, " e casos similares" ou "e casos análogos", salvo quando forem
precedidas de uma série de casos homogênea, sobre a qual se reconduza
a um gênero identificável ou a um critério unívoco legislativamente
prefixado.

A referida técnica legislativa, portanto, é compatível com o princípio da


legalidade apenas quando trouxer uma série de casos exemplificativos
para, posteriormente, usar-se a cláusula genérica. Somente dessa forma
é possível concretizá-la com segurança. Caso contrário, ter-se-á uma
descrição aberta, que viola a ideia de taxatividade.

A analogia pode ser in bonam partem ou in malam partem. Rememore-


se que apenas a segunda é vedada no direito penal. ATENÇÃ O: De forma
geral e no direito penal em especial, a analogia, inclusive a analogia in
bonam partem, não pode ser utilizada se a lacuna for intencional.
Portanto, deixando o legislador de prever uma situação porque queria
exclui-la das hipóteses de incidência da norma, ainda que semelhante às
demais previstas no dispositivo, não é possível a colmatação via analogia.

EXEMPLO: Em relação aos crimes contra ordem tributária é possível a


extinção de punibilidade pelo pagamento do tributo. Essa previsão legal
não alcança o descaminho, ainda que também seja um crime contra
ordem tributária previsto no Código Penal. Isto porque, em relação ao
descaminho, além do interesse na arrecadação tributária, a punição
também objetiva proteger a indústria nacional. Por esse motivo, a lacuna
do legislador é intencional, não podendo ser colmatada pelo Judiciário.
Não basta o pagamento do tributo para a extinção de punibilidade nesse
delito.

Se a lacuna é intencional ou se a norma é excepcional, não se pode


estender por analogia, sequer in bonam partem.

Como se viu, não se fala em analogia in bonam partem se:

(I) a lacuna é intencional; e (II) se as normas são excepcionais.


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A analogia in bonam partem pode ser utilizada para as causas de


exclusão da ilicitude? Serão elas normas excepcionais?
Tradicionalmente, a doutrina tem aceitado essa extensão por analogia.
Exemplo é o artigo 128, do Código Penal, ainda que superado devido a
mudança legislativa.

Percebe-se que o inciso II do art. 128, do CP, é uma causa de exclusão


da ilicitude.

Antes da Lei 12.015/09, o crime de estupro pressupunha a conjunção


carnal (pênis - vagina) com violência ou grave ameaça. Portanto, relação
entre homem e mulher. Já o atentado violento ao pudor, do artigo 214,
tratava dos demais atos libidinosos, diversos da conjunção carnal, como
o coito anal forçado, por exemplo. Após a mudança legislativa todas essas
práticas são consideradas estupro, não havendo separação.

Antes da modificação legislativa, houve casos de mulheres que sofreram


coito anal forçado, e que engravidaram, em razão da mobilidade dos
espermatozoides. Nesses casos, a gravidez não era fruto de estupro, mas
sim de atentado violento ao pudor. Portanto, não se inseria na previsão
do art. 128 do Código Penal. Mesmo assim, a jurisprudência admitia o
aborto, através da extensão por analogia in bonam partem.

Essa questão não se coloca mais hoje, pois todos esses atos se inserem
na descrição típica do estupro. No entanto, serve o exemplo para perceber
que é da tradição da nossa jurisprudência admitir a analogia in bonam
partem nas causas de exclusão da ilicitude.

Mas afinal, será possível afirmar que as causas de exclusão da


ilicitude são excepcionais e que, por isso, não admitem analogia? A
ilicitude ou antijuridicidade é um pressuposto geral da punição. É um
conceito comum a todos os ramos do direito e comunicável entre eles. E
tanto assim é que o "exercício regular de um direito", causa excludente
da ilicitude prevista no art. 23 do CP, pode ser um direito previsto na
esfera tributária, na esfera cível, etc, que penetra no direito penal pelo
fato de a ilicitude ser una. As causas de exclusão da ilicitude albergam
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princípios gerais e não normas excepcionais. Por isso, são passíveis de


extensão por analogia.

Portanto, a posição prevalente é a de que a antijuridicidade é um


pressuposto geral da punição. As normas que excluem a ilicitude são
expressão de princípios gerais do ordenamento jurídico, e não normas
excepcionais, e portanto podem ser estendidas por analogia.

No Brasil, é comum encontrar a possibilidade de estender até mesmo


causas de extinção de punibilidade por analogia, desde que não haja uma
lacuna intencional.

PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E TAXATIVIDADE

Como visto anteriormente, o quarto desdobramento do princípio da


legalidade trabalha com a ideia de precisão, exigindo que a descrição das
condutas criminosas seja exaustiva. As descrições da conduta criminosa
recebem o nome de “tipo”. Os tipos sempre conterão um verbo e outros
conceitos complementares. Esses conceitos são os elementos do tipo, que
são subdivididos em duas espécies: elementos descritivos e elementos
normativos.

Os elementos descritivos são aqueles detectáveis através dos nossos


sentidos - visão, olfato, tato, etc. Por exemplo, no homicídio, "matar" é o
verbo, o núcleo. "Alguém" é pessoa viva, percebida na realidade através
da visão, do tato, ou seja, através dos sentidos. Trata-se de elemento
descritivo.

Os elementos normativos são aqueles cuja presença pode ser percebida


apenas fazendo-se um juízo de valor. Essa valoração pode ser jurídica ou
empírico-cultural. No crime de furto, por exemplo, tem-se a descrição
"subtrair coisa alheia móvel". Quanto ao conceito “alheia”, percebe-se
que, para avaliar se uma caneta pertence a alguém, é necessário fazer
um juízo de valor, não sendo suficiente olhá-la ou tocá-la. Portanto, esse
juízo sobre a propriedade demanda uma valoração, que será de natureza
jurídica. Trata-se de elemento normativo.
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Elementos normativos normalmente trazem uma carga de imprecisão,


pois a realização de um juízo de valor carrega um pouco da subjetividade
de quem o realiza. O exemplo clássico, cuja constitucionalidade está
sendo discutida no STF, é o crime de ato obsceno, do artigo 233 do Código
Penal.

O conceito do que é obsceno é claramente um juízo de valor. Quando se


faz o exame, por óbvio que se coloca um pouco de subjetividade, ou seja,
um pouco da própria pessoa que está fazendo o exame, de como ela
enxerga o mundo ou do que acha normal/anormal. Por essa razão, diz-
se que os juízos de valor possuem uma carga de imprecisão e afetam a
ideia de taxatividade ou de descrição exaustiva da conduta proibida.

A taxatividade total ou a precisão absoluta, porém, não existe. Todos os


conceitos, até mesmo os descritivos, possuem uma margem de
imprecisão. Tem-se como exemplo a palavra “alguém”, no homicídio
(pessoa viva). Como visto, é um elemento descritivo, no entanto, não
100% preciso. Pense-se em uma situação de morte cerebral, sendo que o
coração da pessoa ainda pulsa. Trata-se de pessoa viva ou de um
cadáver? Todos os conceitos, portanto, têm uma margem de imprecisão,
mesmo os descritivos. Em alguns essa margem é muito grande, como o
“ato obsceno”, em outros pequena. Somente os números são totalmente
precisos.

No exemplo da pessoa com morte cerebral, a legislação de transplantes


(art. 3º da Lei 9434/97) autoriza o transplante a partir da morte cerebral,
mesmo que o coração ainda pulse. Posteriormente, essa ideia foi
desenvolvida pelo Supremo para permitir o aborto do anencéfalo,
entendendo que, se não há atividade cerebral, não há vida, sendo possível
o abortamento (Informativo 661 do STF, de abril de 2012).

Esses exemplos servem para mostrar que a precisão absoluta não existe.
O princípio da taxatividade, partindo-se da ideia de precisão absoluta, é
inalcançável. O que se tem, na verdade, é uma gradação. Entre a total
25

imprecisão, que não é tolerada nos tipos penais, e a precisão absoluta,


que é inalcançável, deve-se atingir uma margem razoável de precisão.

No entanto, por mais paradoxal que seja, não existe um critério seguro
para dizer a partir de qual momento o tipo penal deixa de ser
intoleravelmente impreciso para se transformar em um tipo preciso, que
atende ao princípio da taxatividade. O que se pretende evitar com o
princípio da taxatividade são os tipos penais excessivamente vagos, isto
é, aqueles em que pode caber qualquer conduta. No entanto, infelizmente
não há um critério preciso para identificar o ponto a partir do qual a
imprecisão é intolerável ou quando já há uma precisão suficiente.

A doutrina dominante, com Roxin, diz que um preceito será claro e


determinado na medida em que do mesmo se possa deduzir o fim de
proteção do legislador e sejam demarcados limites a uma extensão
arbitrária da interpretação. O objetivo do princípio da taxatividade é o de
que a descrição tenha uma precisão suficiente para estabelecer limites à
atividade do julgador.

Sendo assim, quando se está diante de uma descrição que possa


estabelecer limites mínimos para o aplicador, isto é, quando seja possível
perceber a finalidade a ser alcançada por aquele dispositivo, pode-se
considerar que há o suficiente para se ver atendido o princípio da
taxatividade. Ao contrário, se a descrição for tão vaga a ponto de admitir
uma extensão arbitrária por parte do julgador, ou seja, quando não
houver clareza sobre a finalidade a ser alcançada e seus limites, ter-se-á
inconstitucionalidade.

A jurisprudência brasileira tem, por tradição, a postura de chancelar


descrições legislativas vagas. Na Europa, prevalece o entendimento de
que a precisão de uma norma penal é o produto da soma entre o texto da
lei e a interpretação que lhe dá a jurisprudência. Segundo esta
orientação, não haverá imprecisão e inconstitucionalidade, mesmo
quando a descrição legal seja muito vaga, se a interpretação dada pela
jurisprudência levar a um resultado final preciso. Esse entendimento é
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criticável, porque o princípio da taxatividade está dirigido ao legislador,


justamente com o objetivo de limitar os poderes do juiz. A dificuldade em
aferir precisão não justifica aniquilar o princípio da taxatividade. De todo
o exposto, resta a posição prevalente na doutrina, defendida por Roxin,
que paradoxalmente também não é precisa, mas que pode ser usada
como critério norteador para aferir taxatividade

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