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DIREITO PENAL – ANA PAULA VIEIRA DE CARVALHO


AULA 04 – 17.06.2021

AS VELOCIDADES DO DIREITO PENAL

A expansão do direito penal nas últimas décadas fez com que ele assumisse
características próprias, diversas do chamado direito penal clássico. Essas
características podem ser assim resumidas:

a) a administrativização do direito penal – aproximação do direito


administrativo sancionador, com uma preocupação mais direta na gestão
de riscos gerais do que propriamente na lesividade concreta de determinado
fato

b) a antecipação das barreiras punitivas – ampliação dos crimes de perigo,


notadamente através dos crimes de perigo contra bens jurídicos
transindividuais.

c) delitos de acumulação- o desenvolvimento teórico e a utilização em maior


escala dos delitos de acumulação.

O autor espanhol JESUS MARIA SILVA SANCHEZ admite que há um espaço


razoável para a expansão do direito penal. Todavia, propõe graduar os
modelos de imputação e os princípios de garantia, em função do modelo
sancionatório adotado.

Para tanto, o penalista espanhol propõe um (i) direito penal de primeira


velocidade e um (ii) direito penal de segunda velocidade. O direito penal de
primeira velocidade (modelo sancionatório tradicional) caracteriza-se pela
cominação de penas privativas de liberdade, com obediência a todas as regras
tradicionais de imputação e todas as garantias.

O direito penal de segunda velocidade (modelo sancionatório diferenciado)


caracteriza-se pela não cominação de penas privativas de liberdade (penas
pecuniárias ou restritivas de direitos); flexibilização controlada das regras de
imputação (responsabilidade penal da pessoa jurídica, ampliação das regras de
autoria, comissão por omissão, vencibilidade do erro); flexibilização de
princípios de garantia (a exigência de taxatividade, o princípio da culpabilidade).
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Neste último caso, o autor sustenta que tais princípios são suscetíveis de uma
acolhida gradual.

O direito penal de segunda velocidade de SILVA SANCHEZ, não deve


ser confundido com o chamado “direito da intervenção”, proposto pelo
penalista alemão WINDFRIED HASSEMER. Neste último caso, não se trata
do direito penal, mas sim de um ramo intermediário, situado entre o direito
penal e o direito administrativo sancionador, que teria como função tratar das
hipóteses que hoje são fruto da expansão do direito penal (responsabilidade
penal da pessoa jurídica, delitos de acumulação, etc).

E o direito penal do inimigo? Seria a terceira velocidade?

Na concepção de JAKOBS, o direito penal do inimigo se caracteriza por 3


elementos:

1. amplo adiantamento da punibilidade ( punição de atos preparatórios);

2. penas muito altas;

3. relativização ou supressão de garantias processuais

Nesta visão, o “inimigo” é um indivíduo que abandonou o direito de modo


duradouro ( reincidência, reiteração delitiva, integração em organizações
criminosas ou terroristas). Seria o modelo defendido para cartéis de drogas,
criminalidade referente a imigração, criminalidade organizada e terrorismo.
Aproxima-se de um direito das medidas de segurança contra imputáveis
perigosos. JESUS MARIA SILVA SANCHEZ admite este modelo, porém,
apenas como instrumento de abordagem de fatos de emergência. A doutrina
majoritária é extremamente crítica em relação à adoção de um “direito penal
do inimigo”. O “direito penal do inimigo” tem como objetivo selecionar
determinados grupos de infratores, e com isso aproxima-se de um direito penal
de autor.

TEMPO DO CRIME E CONFLITO DE LEIS NO TEMPO.


TEMPO DO CRIME
Quando se estuda o tempo do crime, objetiva-se responder à seguinte
pergunta: qual é o arcabouço normativo aplicável a um determinado
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fato criminoso? Em que momento se deve identificar as leis


primarimante aplicaveis àquele fato?

A questão pode gerar dúvidas, visto que uma conduta criminosa pode se dar
em uma data e seu resultado somente meses depois. À vista disso, deve-se
perquirir se as leis aplicáveis serão aquelas vigentes no momento da conduta,
ou as vigentes no momento do resultado.

Imaginemos o exemplo em que "A" atire em "B" em janeiro de 2020 e a vítima


morra em julho de 2020. Nesse meio tempo surge uma lei nova mais grave. Se
dissermos que o tempo do crime é o momento da ação ou omissão, a lei nova
mais grave não se aplicará ao fato. Entretanto, se considerarmos que o
tempo do crime é o momento do resultado, a lei nova mais grave será a lei
vigente naquele momento, e será aplicável àquele fato como um todo.

No Brasil, o artigo 4º adota a teoria da atividade, ou seja, o tempo do crime


é o momento da ação ou omissão. Assim, no exemplo acima a lei nova mais
grave não será aplicável, vez que é posterior à ação ou omissão. O que
interessará, pois, será a lei vigente no momento da ação ou omissão.

É importante frisar que o tempo da conduta será o momento que interessará


para analisarmos todo o conjunto normativo que regulará aquele fato
concreto, tanto a tipicidade quanto a ilicitude, a culpabilidade e as causas
extintivas de punibilidade.

Como trabalhar o tempo do crime nos casos de crimes permanentes,


habituais e continuados? Inicialmente, é preciso distinguir os conceitos
de crime permanente, habitual e continuado.
No crime permanente há uma única conduta que se prolonga no tempo.
Tem-se como exemplo o crime de sequestro e cárcere privado, previsto no
art. 148 do CP. O crime está ocorrendo enquanto a vítima tem privada a
sua liberdade e, a qualquer momento, pode haver prisão em flagrante.
Nesses casos, o tempo do crime será todo o tempo em que a ação está
acontecendo. Se a vítima ficar privada da sua liberdade por 3 meses, o tempo
do crime perdurará por 3 meses.
Alguns crimes podem em algumas hipóteses ser instantâneos e em outras
permanentes, como é o caso do furto, que é instantâneo quando há somente
a subtração da coisa, e permanente no caso de furto de energia elétrica.
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O crime habitual é diferente, porque nele não há apenas uma conduta que
se prolonga no tempo, mas sim várias condutas. Como veremos
oportunamente, o crime habitual pode se concretizar através de apenas uma
conduta, ou de várias. Quando se apresenta através de uma reiteração de
condutas, todas estas condutas são vistas pelo direito como uma unidade. O
sujeito reitera condutas e há crime único. A habitualidade é característica de
alguns crimes (ex, art. 282 do CP), assim como a permanência ( arts. 148 e
159 do CP).
O crime continuado, previsto no artigo 71 do CP, será melhor estudado
dentro do concurso de crimes. O crime continuado não é uma característica
que alguns crimes têm. Todos os crimes podem ser praticados em
continuação, na sistemática do Código brasileiro, desde que presentes os
requisitos do artigo 71 do Código Penal. Em virtude disso, a continuidade
delitiva é uma forma, uma modalidade de concurso de crimes. Na continuidade
delitiva, cada conduta separada é criminosa isoladamente, mas, no seu
conjunto, por uma ficção, são vistas pelo direito como um crime único.
Nos 3 casos apresentados (crimes permanentes, habituais e continuados),
a jurisprudência entende que a lei nova mais grave, que advenha no curso
da empreitada criminosa, será aplicável a toda a cadeia.

Esta posição parece correta nos casos de crime permanente e habitual. No crime
permanente é evidente a unidade de conduta. No crime habitual, ainda que
haja várias condutas, ela adquirem em conjunto um único colorido penal. Já
no crime continuado, o entendimento da jurisprudência é questionável. Isto
porque cada crime cometido em continuação é uma uma conduta criminosa
autônoma. Dessa forma, permitir que uma lei posterior mais grave se aplique a
toda a cadeia, inclusive a crimes cometidos anteriormente a sua vigencia, pode
gerar uma situação de retroatividade mais grave, o que é vedado pela
Constituição.

No crime permanente e no crime habitual se considera a lei vigente no momento


do último ato; para o crime continuado o Supremo adotou esse mesmo
raciocínio na Súmula 711:

Súmula 711 - A lei penal mais grave aplica-se


ao crime continuado ou ao crime permanente,
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se a sua vigência é anterior à cessação da


continuidade ou permanência.

O tempo do crime na participação e na autoria mediata: Quando se tem


dois personagens em uma mesma empreitada criminosa, cada um realizará a
sua contribuição em um determinado momento. Isso pode acontecer tanto
na participação quanto na autoria mediata. Imagine-se, por exemplo, que o
partícipe empreste em janeiro uma arma ao autor e este, em fevereiro, mate
vítima. No meio tempo, contudo, surge uma lei nova mais grave, que aumenta
a pena do homicídio.

Indaga-se: qual é o tempo do crime para o participe? Seria o tempo em


que realiza a sua conduta ou o tempo em que o autor realiza os atos
executórios? A melhor doutrina entende que o tempo do crime para o
partícipe e para o autor mediato é o tempo em que cada um realizou a sua
própria conduta criminosa. A ideia de tempo do crime e da teoria da atividade
tem por detrás a crença de que o sujeito é influenciado pela resposta penal
vigente no momento em que realiza a sua ação ou omissão. Por conseguinte,
se o sujeito já realizou a sua contribuição e surge uma lei nova, esta não lhe
será aplicável porque não estava disponível para ele no momento em que
optou por agir daquela maneira. A solução em contrário redunda em uma
surpresa em desfavor do acusado, justamente o que se procura evitar com a
vedação de retroatividade gravosa.

CONFLITO DE LEIS NO TEMPO

Como se viu, o tempo do crime é o momento que interessa para verificar o


arcabouço normativo aplicável a um determinado fato. No Brasil, o tempo
do crime refere-se ao momento da ação ou omissão.

Uma vez fixado esse arcabouço normativo, surgindo uma lei nova, será
possível aplicá-la a algum fato anterior? Existem dois princípios
fundamentais no estudo do tema: a) irretroatividade da lei mais severa; b)
retroatividade da lei mais benigna.
Em matéria penal interessa analisar se a lei posterior é mais benéfica ou
mais severa. Se for mais severa, não retroagirá; se for mais benéfica,
retroagirá.
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Em matéria processual penal é válida a ideia do tempus regit actum, isto é, aplica-
se a lei vigente no momento em que será realizado determinado ato
processual. A lei nova, se tem natureza processual, incide imediatamente,
ainda que pior. Por exemplo, se houver uma mudança nas regras que tratam
da citação, aumentando a possibilidade de citação editalícia ou criando a
citação por hora certa no processo penal, terá incidência imediata, mesmo
sendo mais gravoso, e aplicável a fatos ocorridos antes dela.

Já em matéria penal, há necessidade de aferir o conteúdo da lei nova. A lei nova


mais benéfica retroage para alcançar condutas anteriores. A benignidade da lei
nova será aferida no caso concreto. É possível que em abstrato uma lei seja pior,
entretanto, no caso concreto, mostre- se melhor ou mais favorável.
Um exemplo interessante nos é dado por Damásio de Jesus. Um
determinado agente, reincidente em crime doloso, foi condenado a uma pena
de 1 ano e 11 meses por um crime cometido com violência contra a pessoa. Em
razão da violência à pessoa, não é cabível substituição por restritiva de
direitos, e, sendo o agente é reincidente em crime doloso, também não cabe
ao sursis. Além disso, como a pena aplicada é inferior a 2 anos, também não
cabe livramento condicional. Em razão desse conjunto de situações, o
sujeito cumprirá toda a pena preso.

Imagine-se então que surja uma lei nova, aumentando a pena mínima de 1
para 2 anos. Essa lei é, em abstrato, mais grave. No entanto, em concreto
uma pena mínima de dois anos será mais benéfica, na medida em que, apesar
de incabível a substituição e o sursis, passa a ser cabível o livramento.
Tratando-se de reincidente, cumprirá somente metade, ficando preso por 1
ano. Veja-se assim que uma lei nova que, em princípio, é mais grave, por
aumentar a pena, pode ser, em concreto, mais benéfica, dado que permitiu
o benefício do livramento.

Lei intermédia ou intermediária: É possível que haja uma sucessão de leis


penais sobre um mesmo tema em um tempo relativamente curto. Como
exemplo, pense-se em um fato ocorrido na vigência da lei X. Posteriormente,
surgem as leis Y, Z e W, uma revogando a outra. O sujeito será julgado no
tempo em que vige a lei W. Qual delas será aplicável pelo juiz? Resposta: a lei
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mais favorável.
A lei mais favorável tem as seguintes características:
(1) é retroativa - aplicável a fatos ocorridos antes da sua vigência;
(2) é ultrativa - aplicável mesmo depois de revogada.

NORMAS PROCESSUAIS COM RELEVANTES CARACTERÍSTICAS


PENAIS. LEI MAIS BENÉFICA E VACATIO LEGIS. COMPETÊNCIA.

Algumas normas processuais possuem uma íntima relação com o direito de


punir do Estado. Por serem normas processuais, em princípio aplica-se o
tempus regit actum. Ocorre que estas normas, diferentemente das demais
normas processuais, possuem um impacto direto na punibilidade.

EXEMPLO: a representação nos crimes de ação penal pública condicionada.


Como se sabe, nos crimes de ação penal pública condicionada o oferecimento
de denúncia depende, além das condições da ação normais, de uma condição
especial, chamada de condição de procedibilidade, que é a representação. A
representação, se não oferecida no prazo de seis meses, gera decadência e
extinção de punibilidade.Vê-se, portanto, que essa norma processual tem
um impacto direto no direito de punir do Estado. Destarte, nos casos de
normas processuais penais que tenham esse impacto, entende-se que serão
aplicáveis as regras de direito penal no conflito de leis no tempo.
Nesta linha, se um sujeito comete um crime de lesão leve, hoje de ação penal
pública condicionada a representação, e posteriormente, uma lei nova o
transforma em crime de ação penal pública incondicionada, ela será
irretroativa. O Promotor de Justiça, no caso, considerará o arcabouço
normativo mais favorável ao acusado, posto que essa norma processual tem
relevantes características penais, com um impacto direto no direito de punir do
Estado. Assim, o conjunto normativo mais favorável seria o vigente no
momento da ação ou omissão, e a lei nova não retroagirá para piorar a
situação do acusado. O crime continuará sendo de ação penal pública
condicionada para os fatos cometidos antes da lei nova.
Já com relação às normas processuais que restrinjam o conteúdo de direitos
e garantias do cidadão, há controvérsia na doutrina. Para uma corrente, as
normas processuais que restringem direitos e garantias do cidadão
merecem a aplicação dos princípios penais no conflito de leis no tempo. O
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exemplo de parte da doutrina é o da prisão preventiva ou das medidas


cautelares, que restringem a liberdade de forma imediata. No entanto, essa
visão não é acolhida na jurisprudência. Quando surgiram as novas medidas
cautelares em 2008, mesmo na parte mais gravosa o STJ entendeu que
possuem natureza exclusivamente processual e, portanto, incidência
imediata:

STJ, HC 126973/SP - Rel. Min. Rogério Schietti


Cruz, julgado em 27/05/2014 – novas medidas
cautelares introduzidas em 2008 no CPP tem
natureza exclusivamente processual, com
incidência imediata

Quando a lei penal mais benéfica está em período de vacatio legis, como ocorreu
na lei dos juizados especiais (Lei 9099), que contem vários institutos
despenalizadores e teve uma vacatio legis muito longa, vários julgados da época
admitiram a sua aplicação ainda em período de vacatio. O raciocínio é o de
que se a própria Constituição exige a retroatividade de lei melhor (art. 5º., inc.
XL), a previsão de vacatio legis em lei ordinária não tem o condão de impedir
essa retroatividade.

Finalmente, o juízo competente para aplicação da lei nova será o juízo de


conhecimento, enquanto o processo estiver em curso. Depois de o processo
terminar, a lei nova mais benéfica será aplicável pelo juízo da execução.

COMBINAÇÃO DE LEIS. ABOLITIO CRIMINIS.

Vimos que no conflito de leis no tempo deve-se analisar qual das duas leis
é a mais benigna em concreto, para então escolher qual delas será aplicável.

O que fazer, porém, quando uma parte da primeira lei é melhor, em


comparação com a segunda, e uma outra parte da segunda lei é melhor
, quando comparada à primeira? Imagine-se, como exemplo, que na lei X a
pena do furto seja de 1 a 4 anos e multa. Posteriormente, uma nova lei Y vem
a punir o furto com pena 2 a 8 anos, mas sem pena de multa. Comparando
as duas leis, é possível perceber que a primeira é melhor em relação à pena
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privativa de liberdade e pior em relação à multa.

Na ocorrência de um furto na vigência da lei X e julgamento do sujeito


na vigência da lei Y, o juiz poderia combinar os aspectos de ambas as
leis e aplicar uma pena de 1 a 4 anos, sem multa? Na doutrina (Assis
Toledo, Damásio, Alberto Silva Franco, Nilo Batista) sempre prevaleceu a ideia
de que essa combinação de leis era correta, posto que apenas se estaria
aplicando o comando constitucional que exige a retroatividade da lei
melhor. Uma segunda corrente, defendida na doutrina por Hungria e Aníbal
Bruno, que sempre foi pacífica no STJ e STF, defendia a inadmissibilidade
de combinação das leis.
Essa questão foi extremamente discutida com a nova Lei de Drogas (Lei
11343/06), que aumentou a pena do tráfico para 5 a 15 anos, apesar de
instituir uma causa de diminuição de pena para o pequeno traficante (art. 33,
§4º, Lei 11.343/06). Sendo assim, alguns tribunais pretenderam aplicar a
nova causa de diminuição à pena prevista para o tráfico na revogada Lei
6368/76, que era menor. Isso gerou uma grande distorção.
Deveras, na vigencia da nova Lei de Drogas, um pequeno traficante, que
receba a causa de diminuição, pode ser condenado a uma pena de 1 ano e
11 meses, com substituição. Entretanto, se fosse aplicada a causa de
diminuição à pena da lei revogada, chegar-se-ia à uma resposta penal de
alguns poucos meses. Certamente nenhum legislador quis esse cenário, seja
o da Lei 6368/76, seja o legislador novo.

O STJ e o STF sempre entenderam que não se podia combinar leis. Quando
surgiu a Lei de Drogas, o STJ manteve o entendimento, mas o o STF, em
decisão plenária, passou a entender que era possível a combinação de leis.
Alguns anos depois, porém, o STF voltou atrás e reassumiu o entendimento
pela impossibilidade de combinação de leis:

"RE 600817/MS Rel. Min Lewandowsky- o


Plenário, em 07.11.2013, afastou a
possibilidade de combinação de leis, a partir
da discussão envolvendo a nova Lei de
Drogas.".
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No referido julgamento, o voto do Min. Fux se utiliza, como argumento pela


impossibilidade de combinação de leis, do princípio da isonomia. Salienta
que a combinação de leis pode levar a resultados anti-isonômicos, sem
nenhuma razão plausível para tanto.

Assiste razão ao Ministro Fux. Utilizando o exemplo da Leis de Drogas,


imaginem-se dois casos. No caso 1, o sujeito praticou um crime em 1995 e foi
julgado em 1996, como mula do tráfico, sendo condenado a 4 anos de
reclusão, pena mínima para o tráfico na Lei 6368/76. No caso 2, o sujeito
praticou o crime em 2005 e foi julgado na vigência da lei nova
(11.343/2006), quando ainda era permitida a combinação de leis, sendo
condenado a 6 meses. No caso 3, o sujeito cometeu o crime na vigência da lei
nova de 2006, sendo julgado e condenado a 1 ano e 11 meses, pena mínima
para o tráfico na Lei 11.343/06.

É possível verificar que no caso 2, no qual houve combinação de leis, foi


aplicada uma pena que não se coaduna nem com a lei antiga, nem com a
lei nova. Indaga- se, então, por que seria cabível um tratamento tão melhor
a esse grupo de casos? Apenas pelo acaso de ter o fato sido cometido na
vigencia de uma lei e julgado na vigência de outra? Este entendimento é
anti-isonômico, nenhum legislador desejou semelhante solução e não há
razão plausível para acatá-lo. Há uma clara violação do princípio da
igualdade.

ABOLITIO CRIMINIS
Abolitio criminis é descriminalização de condutas. Trata-se de causa
punibilidade, prevista no artigo 107, III, do Código Penal.

Atente-se que a tipicidade de uma conduta é aferida no momento de sua


realização. Assim, por exemplo, se o sujeito praticou um adultério no ano 2000,
a conduta era típica. Posteriormente, em 2005 o adultério foi
descriminalizado. A conduta já realizada não se tornará atípica, apenas terá
a sua punibilidade extinta. Os novos adultérios, cometidos após a lei nova,
serão atípicos; os anteriores continuam sendo condutas típicas, ilícitas e
culpáveis, visto que a tipicidade é aferida no momento da realização da
conduta. Destarte, a abolitio criminis tem a função apenas de extinguir a
punibilidade.
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A abolitio criminis afasta todos os efeitos, principais e secundários, de uma eventual


condenação. O efeito principal de uma condenação é a imposição de pena,
enquanto os efeitos secundários são aqueles dos artigos 91 e 92, a
reincidência, etc. Não interessa o momento em que a abolitio criminis é
reconhecida, isto é, se durante a ação de conhecimento ou a execução.
Mesmo se o sujeito estiver preso, deverá ser colocado imediatamente em
liberdade. Porém, a abolitio criminis não afasta os efeitos civis, ou seja, o dever de
reparar o dano causado, posto que é questão de natureza civil. A conduta pode
continuar sendo um ilícito civil, apenas deixará de ser um ilícito penal.
No Brasil, a abolitio criminis pode ser reconhecida em qualquer fase, inclusive
na fase da execução, o que não ocorre em todos os ordenamentos jurídicos de
outros países.

CONFLITO DE LEIS NO TEMPO E LEIS EXCEPCIONAIS E TEMPORÁRIAS

O conceito de leis exepcionais e temporárias vem previsto no art. artigo 3º


do Código Penal. A lei temporária é aquela que traz em seu conteúdo o
período exato da sua duração. Assim, por exemplo, quando a lei diz que terá
duração de 1º de janeiro de 2019 até 31 de dezembro de 2019.
A lei excepcional é aquela que está vinculada a um determinado acontecimento.
Numa situação de guerra civil, pode ser editada uma lei cuja vigência será
restrita ao período de duração da guerra civil. Não se sabe quando acabará a
guerra civil, mas se sabe que a vigência da lei terminará quando a guerra
acabar.

Segundo o artigo 3º do CP, se a lei penal é excepcional ou temporária, ela


continua aplicável mesmo depois de sua vigência. Imagine-se um crime de furto,
cuja pena no Código Penal é de 1 a 4 anos, e uma lei exepcional, editada
durante uma guerra civil, que puna o furto com pena de 2 a 8 anos, por
considerar mais grave a conduta naquelas circunstâncias terríveis de guerra.
Se o sujeito praticou o furto durante a guerra civil, e for condenado depois, diz
o artigo 3º que será aplicável a lei excepcional, ainda que já cessada sua vigência
no momento do julgamento.

Parte da doutrina sustenta que o artigo 3º é inconstitucional e viola o artigo


5º, inciso XL da Constituição, que determina que a lei posterior mais grave
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nunca possa retroagir.

Essa posição é equivocada. Vejamos.

Todas as leis de período de normalidade tem como característica a pretensão


de vigência indeterminada, isto é, uma lei promulgada permanecerá em vigor
até que uma lei nova trate daquele mesmo tema de uma outra maneira, quando,
então, será revogada. Isto não ocorre com as leis excepcionais ou temporárias,
vez que já trazem em seu conteúdo o período de vigência. Nas temporárias,
esse período é pré- determinado em termos exatos, enquanto que nas
excepcionais não há uma data específica, mas sim um acontecimento futuro
que determinará a cessação de vigência.

Percebe-se, contudo, que as leis temporárias ou excepcionais não tratam


exatamente da mesma matéria das demais leis. Na verdade, os tipos penais
descritos nas leis excepcionais ou temporárias possuem um elemento de
natureza temporal que as leis do período de normalidade não possuem.
No exemplo dado acima, comparando-se as duas leis que tratam do furto –
a lei do período de normalidade e a lei excepcional -, é possível afirmar que o
furto descrito na lei excepcional não é igual ao furto normal, pois a ele foi
agregado um elemento especializante de natureza temporal (ou seja, trata-
se de um furto especial, porque praticado em determinadas condições
temporais).
Percebe-se assim o erro do raciocínio da inconstitucionalidade, pois quando
a Constituição exige que a lei posterior mais benéfica retroaja, está, na verdade,
tratando de duas leis que tratam da mesma matéria. Uma lei somente
revoga a outra quando as duas tratarem da mesma matéria. Sendo assim, não
é possível dizer que o Código Penal, quando voltar a ser aplicável a todas as
hipóteses de furto, revogará a lei excepcional, visto que as leis não tratavam da
mesma matéria. Será uma hipótese de cessação de vigencia da lei excepcional,
sem revogação propriamente dita.

Desta forma, a posição prevalente na doutrina é a de que há não


inconstitucionalidade no artigo 3º do Código Penal.

No entanto, se houver um conflito entre duas leis excepcionais, retroagirá a


melhor, porque nesse caso ambas tratam da mesma matéria. Imagine-se o
seguinte exemplo: no período de guerra civil a lei excepcional X pune o furto
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com pena de 2 a 8 anos. O sujeito comete um furto nesse período.


Posteriormente, ainda durante a guerra civil, surge uma nova lei excepcional
Y, punindo o mesmo furto com pena de 1 a 4 anos. O julgamento somente
ocorre após cessada a guerra. No caso, o juiz aplicará a lei nova, porque as
duas tratam da mesma matéria, sendo a posterior mais benigna.

CONFLITO DE LEIS NO TEMPO E NORMAS PENAIS EM BRANCO

Já foi estudado anteriormente o que é uma norma penal em branco, assim


como sua constitucionalidade. Estas normas derivam do emprego de uma
técnica legislativa muito importante atualmente para trabalhar com a nova
criminalidade econômica.

Neste momento, estudaremos o que acontece quando há uma modificação


para melhor no complemento das normas penais em branco. Pense-se no
exemplo da Lei de Drogas, em que o complemento seja modificado por um uma
nova Portaria do Ministério da Saúde, que exclui a maconha da lista de
substâncias entorpecentes.
Essa modificação retroage para alcançar fatos ocorridos antes da sua
vigência? Quando se opera a retroatividade in mellius do
complemento? Para uma resposta completa, é necessário trabalhar com dois
exemplos diferentes:
EXEMPLO [1]: Tráfico de drogas.
EXEMPLO [2]: Tabela de preços.
Imagine-se um crime contra a economia popular, consistente em vender
alimentos acima do preço de tabela. O complemento dessa norma penal é a
tabela de preços. Pode ocorrer de o sujeito vender abobrinha por R$0,50 o
quilo, quando o preço de tabela é R$0,30. Todavia, no dia seguinte o preço de
tabela passar para R$1,00. Consequentemente, o preço cobrado pelo agente
passa a ser abaixo do preço de tabela.

Percebe-se que a questão não é simples e que não há uma resposta única.
Intuitivamente se percebe que no caso da maconha há uma necessidade de
retroatividade: a substância terá saído da lista em razão de a sociedade ter
percebido que não possui gravidade suficiente para constar da lista. Logo,
não faz sentido punir quem praticou o ato antes e está sendo processado.
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Contudo, no exemplo da tabela de preços é possível perceber que não faz


sentido a retroatividade. Será necesário, pois, um critério que saiba separar o
joio do trigo.

Assis Toledo preconiza, como critério, que seja analisada a perda do caráter
ilícito do fato. No caso da maconha isto é evidente. Já no caso da tabela de
preços é óbvio que a razão da mudança na tabela não tem relação com essa
percepção, mas sim com uma questão econômica de safra e entressafra,
oferta e demanda. Logo, não haveria retroatividade. O critério é simples, mas
não muito preciso.

Pierangeli sugere outro critério: examinar a natureza do complemento. Se o


complemento é uma lei (o que pode ocorrer, mas é raro, como no caso do
artigo 237 do Código Penal, no qual os impedimentos para o casamento
estão na lei civil), uma modificação para melhor retroage sempre. Assim, se
houver uma mudança no rol de impedimentos da lei civil, excluindo algum
deles, esta modificação sempre retroagirá para beneficiar o agente.
Entretanto, se o complemento não é uma lei, mas sim um outro ato normativo
do Poder Executivo, poderá haver retroatividade ou não. O ponto nodal é
perceber se o complemento tem um parentesco com as normas excepcionais
ou temporárias, ou seja, se tem pretensão de vigência indeterminada ou, ao
revés, tem uma vigência pré-fixada.

Alguns complementos de normas penais em branco têm exatamente a


característica de não nascerem para durar de forma indeterminada, mas
sim de regular situações momentâneas e essencialmente mutáveis, como, por
exemplo, a tabela de preços. Nesses casos, ele se aproxima das normas
excepcionais ou temporárias e uma mudança, ainda que mais benefica, não
retroagirá. Já se o complemento tem uma pretensão de vigência
indeterminada, como no caso da Portaria do Ministério da Saúde nos crimes
da Lei de Drogas, a modificação para melhor será retroativa.

A ULTRATIVIDADE DE ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL


MAIS BENÉFICO

Temos tratado até aqui do conflito de leis no tempo, que pressupõe a


existencia de duas leis pretendendo regular um mesmo fato.
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Atualmente vem ganhando grande força a discussão sobre a aplicação


dessas ideias ao entendimento jurisprudencial. Isso se deve ao
reconhecimento do papel crescente da jurisprudência na conformação da
norma e do Direito.
Em verdade, sempre foi uma ingenuidade acreditar que o juiz é "a boca da
lei" e que nada mais faz do que repetir algo que nela está escrito. A
interpretação também é uma atividade criadora. Todavia, atualmente o
papel criador da jurisprudência tem se acentuado. Vive-se em uma era em
que se discute o ativismo judicial.

Mesmo que se tenha uma visão crítica sobre o ativismo judicial, não se pode
deixar de reconhecer que o papel do juiz tem crescido consideravelmente nos
últimos anos, em virtude de uma série de questões relacionadas não somente à
necessidade de intervenção do Judiciário para resolver situações das quais o
Parlamento se exime, mas também a uma visão diferente sobre a teoria do
Direito, sobre o papel dos princípios e, principalmente, dos princípios
constitucionais. A constitucionalização do Direito, um fenômeno muito
importante nas últimas décadas, impregnou a aplicação do Direito dos juízos
valorativos constantes de princípios constitucionais.
Essa virada metodológica, qual seja, a retomada da importância dos valores,
ocorreu não apenas no Direito Penal, mas no Direito como um todo, sendo
certo que no Direito Penal está atrelada ao funcionalismo. A partir da criação
de vários institutos que demandam juízos valorativos complexos (como se vê
com a teoria da imputação), o papel da jurisprudência na conformação do
Direito (o papel criador) se tornou cada vez mais importante. Diante disso,
voltou-se a discutir a questão da ultratividade da jurisprudência de forma mais
atenta. Vejamos um exemplo prático da importancia da discussão.
EXEMPLO: Em uma situação hipotética (sem relação com o Direito
positivo), um sujeito comete um roubo com emprego de arma de brinquedo,
havendo um dispositivo específico na lei que alude apenas ao roubo com
emprego de arma. Imaginemos que a jurisprudência pacífica da época
inadmita que arma de brinquedo configure o roubo circunstanciado. No
momento do julgamento a jurisprudência muda e passa a entender que
arma de brinquedo configura roubo circunstanciado.

Indaga- se: seria possível exigir a ultratividade do entendimento jurisprudencial


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vigente no momento da ação, porque mais benéfico? Prevalece na doutrina


e na jurisprudência a visao negativa. As regras do conflito de leis no tempo são
específicas para as leis . O máximo que se poderá exigir, em alguns casos,
seria a utilização da figura do erro de proibição .
EXEMPLO: Crime de natureza tributária. O sujeito não paga o tributo,
valendo-se de alguma brecha que, na interpretação da jurisprudência, não
constitui o fato gerador do tributo. Posteriormente, a jurisprudência muda e
passa a entender que há a configuração do fato gerador e que, portanto, houve
sonegação. Essa mudança de orientação pode, no máximo, ser utilizada pela
defesa para fundamentar um erro de proibição do contribuinte. No entanto,
não é possível utilizar a ideia de ultratividade do entendimento
jurisprudencial mais benéfico, aplicável somente às leis.

Nesta oportunidade, é interessante mencionar o entendimento


intermediário de Juarez Tavares.

O penalista sustenta que, em alguns casos, o papel criador da jurisprudência


vai além da mera interpretação dos dispositivos legais. É importante lembrar
que a própria interpretação é criadora. Contudo, o que o doutrinador ensina
é que, em alguns casos, esse papel criador vai muito além da mera
interpretação. Ocorre verdadeira criação de normas novas não constantes
do Direito positivo. Um exemplo interessante disso é a Súmula 554 do STF:

Súmula 554: O pagamento de cheque emitido


sem provisão de fundos, após o recebimento da
denúncia, não obsta ao prosseguimento da
ação penal.

A referida súmula criou uma causa de extinção de punibilidade que não


tem previsão legal. Trata-se do pagamento do cheque sem fundo até o
recebimento da denúncia. A súmula perdeu importância em virtude do
franco desuso do cheque como meio de pagamento. Em outras épocas,
quando era um meio de pagamento muito utilizado, se o agente emitisse um
cheque sem suficiente provisão de fundos e pagasse a dívida até o
recebimento da denúncia, teria extinta sua punibilidade. Referida causa de
extinção de punibilidade não tem previsão legal e foi uma criação do STF.
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Segundo a lição de Juarez Tavares, nesses casos, em que se tem uma


atividade criadora que ultrapassa os limites da lei, há possibilidade de
ultratividade do entendimento jurisprudencial mais benéfico.

EXEMPLO: O sujeito emite o cheque sem fundos na vigência da Súmula 554


do STF e depois ela é cancelada. Sendo feito o pagamento, há a possibilidade
de invocar a ultratividade do entendimento jurisprudencial mais benéfico,
na medida em que tal entendimento era o prevalente ao tempo da ação e e
claramente criador, não se limitando à interpretação do Direito
positivo vigente.

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