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1.

CONFLITO APARENTE DE NORMAS

Segundo Cleber Masson1, o conflito aparente de normas ocorre quando é


possível que dois ou mais tipos penais, dotados de mesmo grau hierárquico e em
vigor ao mesmo tempo quando da prática da infração penal, subsumam-se, em tese,
a um mesmo fato.

O conflito é apenas aparente, pois pode ser sanado com a correta


interpretação da lei penal, por intermédio de princípios adequados à superação do
conflito.

São princípios destinados à solução do conflito aparente de normas penais: a)


especialidade; b) subsidiariedade, c) consunção e d) alternatividade.

1.1. Princípio da especialidade

O princípio da especialidade não soluciona apenas o conflito aparente de


normais penais, mas também das normas em geral, sendo certo que a lei especial
prevalece sobre a lei geral (lex specialis derrogat generali).

As leis inserem-se em uma relação de gênero e espécie, em que todos os


elementos da lei geral são reproduzidos pela lei especial, porém com acréscimo de
elementos especializantes.

Importante consignar que as leis não precisam ter a vigência iniciada na mesma
data (embora ambas devem estar em vigor na época em que praticada a infração penal),
pouco importando, ainda, a sanção penal prevista, se mais grave ou mais branda, pois
o critério interpretativo repousa na existência de elementos especializantes descritos na
norma.

O princípio da especialidade pode ser ilustrado por meio do desenho a seguir2:

1
Código Penal Comentado, 3ª ed, 2015, Ed. Método.
2
Inserido do livro Código Penal Comentado, p. 45.
Lei Especial
(elementos especializantes)

Lei geral
(elementos comuns)

À guisa de exemplo, é possível citar o homicídio como lei geral (art. 121 do
Código Penal), e o feminicídio como lei especial (art. 121, V, do Código Penal), sendo
elementos especializantes do segundo tipo penal o objeto material (mulher) e o
elemento subjetivo (por razões da condição do sexo feminino).

1.2. Princípio da subsidiariedade

Segundo o princípio da subsidiariedade, a lei primária tem prevalência sobre a


lei secundária (lex primaria derrogat legi subsidiarie).

A relação de subsidiariedade entre leis exsurge quando há diferentes estágios


de maltrate ao bem jurídico, sendo a ofensa mais grave e ampla descrita na lei primária;
e, ao revés, a ofensa menos grave e ampla, na lei secundária.

Segundo Cleber Masson, “o crime tipificado pela lei subsidiária, além de menos
grave do que o narrado pela lei primária, dele também difere quanto à forma de
execução, já que corresponde a uma parte deste. Assim, a lei subsidiária exerce função
complementar diante da principal”. Para a doutrina, a lei secundária funciona como
verdadeiro “soldado de reserva”, incidindo apenas quando a conduta não configurar
crime mais grave.

Diferentemente da especialidade, a lei especial não contém elementos


especializantes, e o critério distintivo encontra-se mais no caso concreto, do que
propriamente na norma penal.
A subsidiariedade pode ser expressa, quando a lei penal é explícita em afirmar
sua incidência, caso não esteja configurado fato mais grave. É o caso, por exemplo, do
art. 163, parágrafo único, inciso II, do Código Penal:

Art. 163 - Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia:

Parágrafo único - Se o crime é cometido: [...]

II - com emprego de substância inflamável ou explosiva, se o fato não


constitui crime mais grave. [...]

Pena - detenção, de seis meses a três anos, e multa, além da pena


correspondente à violência.

Já a subsidiariedade implícita ou tácita decorre das circunstâncias do caso


concreto, ainda que a lei não declare seu caráter subsidiário. É o caso, por exemplo, do
constrangimento ilegal, tipificado no art. 146 do Código Penal, que pode ser subsidiário
em relação aos crimes de redução à condição análoga a de escravos, sequestro e
cárcere privado, tráfico de pessoas, dentre outros:

Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça,


ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a
capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer
o que ela não manda:

Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.

1.3. Princípio da consunção

Segundo o princípio da consunção ou da absorção, o fato mais amplo e grave


consome os demais fatos menos amplos e menos graves, que são meios usuais de
preparação ou execução daquele; ou ainda configuram seu exaurimento.

Está-se diante de relação de continente (crime mais grave) e conteúdo (crime


menos grave); de mais e de menos, de fim e de meio.

O fundamento da consunção reside na circunstância de que o bem jurídico


tutelado pelo crime menos grave já está albergado pelo crime mais grave, de modo que
haveria uma dupla punição ao agente caso um não fosse absorvido pelo outro.
Na consunção, diferentemente dos princípios da especialidade e
subsidiariedade, existem uma sucessão de fatos (inclusive típicos quando considerados
isoladamente) que, quando vistos de forma mais ampla, são absorvidos pelo fato de
maior espectro.

O princípio da consunção aplica-se em quatro situações:

a) Crime progressivo: ocorre quando o agente deseja alcançar um resultado


mais grave e, para tanto, pratica atos sucessivos e com gravidade crescente para atingi-
lo. É o caso do homicídio (resultado morte) perpetrado por meio de sucessivas lesões
corporais.

b) Progressão criminosa: ocorre quando o agente, após alcançar o resultado


inicialmente almejado, modifica seu dolo para produzir maior ataque ao bem jurídico. É
caso do agente que lesiona a vítima e, após a lesão, decide matá-la.

c) Atos impuníveis: atos previstos como crimes ou contravenções, praticados


pelo agente como forma de preparação, execução ou exaurimento da conduta. Podem
ser anteriores, concomitantes ou posteriores:

Anteriores: funcionam como meio de execução do fato principal. É o caso do


furto mediante rompimento do obstáculo, e o dano ao vidro do carro que guardava a
coisa subtraída.

Concomitantes: atos praticados quando o agente executa o fato principal. É


caso de ferimentos leves ocorridos durante um estupro.

Posteriores: existentes quando o agente, após consumar a infração, pratica


conduta que veicula nova ofensa ao bem jurídico, mas dentro do escopo da primeira
conduta. É o caso do assaltante que vende o produto do roubo.

d) Crime complexo ou crime composto: exsurge na hipótese em que as


elementares de dois ou mais crimes estão reunidos em um só tipo penal, como sucede
com o latrocínio.

Como regra geral, o crime consunto (absorvido) é menos grave do que o crime
consuntivo (aquele que absorve). Esse é, em princípio, o conceito aceito pela
jurisprudência:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.
PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO E POSSE
IRREGULAR DE ARMA DE FOGO DE USO RESTRITO. PRINCÍPIO
DA CONSUNÇÃO. INAPLICABILIDADE. BEM JURÍDICOS
DIVERSOS. CONCURSO FORMAL. RECURSO PROVIDO.

1. O princípio da consunção é aplicado para resolver o conflito


aparente de normas penais quando um crime menos grave é meio
necessário ou fase de preparação ou de execução do delito de alcance
mais amplo, de tal sorte que o agente só será responsabilizado pelo
último, desde que se constate uma relação de dependência entre as
condutas praticadas. Precedentes.

2. É inaplicável o princípio da consunção entre os delitos de porte ilegal


de arma de fogo de uso permitido e posse irregular de arma de fogo
de uso restrito, por tutelarem condutas e bem jurídicos diversos.

3. Agravo regimental provido, a fim de afastar a consunção entre os


crimes previstos no art. 14 e 16 da Lei n. 10.826/03 e redimensionar a
pena do recorrido para 3 anos e 6 meses de reclusão e multa,
mantidos os demais termos da sentença condenatória.

(AgRg no AREsp 1515023/GO, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA


TURMA, julgado em 24/09/2019, DJe 10/10/2019)

No entanto, é preciso atentar que nem sempre os tribunais incorporam tais


conceitos doutrinários, havendo espaço para a casuística, como ocorre com os crimes
de falsidade (alguns mais graves) e estelionato, nos termos da Súmula 17 do STJ:
“Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este
absorvido”.

O Superior Tribunal de Justiça também já decidiu, sobre a sistemática de


recursos repetitivos, que o falso pode ser absorvido pelo crime de descaminho:

RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA.


RITO PREVISTO NO ART. 543-C DO CPC. DIREITO PENAL.
PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. DESCAMINHO. USO DE
DOCUMENTO FALSO. CRIME-MEIO. ABSORÇÃO.
POSSIBILIDADE. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.

1. Recurso especial processado sob o rito do art. 543-C, § 2º, do CPC


e da Resolução n. 8/2008 do STJ.

2. O delito de uso de documento falso, cuja pena em abstrato é mais


grave, pode ser absorvido pelo crime-fim de descaminho, com menor
pena comparativamente cominada, desde que etapa preparatória ou
executória deste, onde se exaure sua potencialidade lesiva.
Precedentes.

3. Delimitada a tese jurídica para os fins do art. 543-C do CPC, nos


seguintes termos: Quando o falso se exaure no descaminho, sem mais
potencialidade lesiva, é por este absorvido, como crime-fim, condição
que não se altera por ser menor a pena a este cominada 4. Recurso
especial improvido. (REsp 1378053/PR, Rel. Ministro NEFI
CORDEIRO, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 10/08/2016, DJe
15/08/2016)

1.4. Princípio da alternatividade

O princípio da alternatividade tem incidência quando duas leis se repetem diante do


mesmo fato (alternatividade imprópria); ou quando uma mesma infração penal contém,
em seu corpo, vários fatos (alternatividade própria).

A alternatividade induz à existência de tipos mistos alternativos, como ocorre no


caso do tráfico de entorpecentes, em que o agente, a despeito de incorrer em mais de
um verbo previsto no tipo penal, pratica crime único.

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