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REORGANIZAÇÃO

SOCIETÁRIA

.1 wmZ, 6.I Quartier Latin


U'"i..2 .....
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RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO
LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO
(coordenação)

REORGANIZAÇÃO
SOCIETÁRIA

Editora Qyartier Latin do Brasil


São Paulo, outono de 2005
quartierlatin@quartierlatin.art.br
www .quartierlatin.art.br
Editora Quartier Latin do Brasil
Rua Santo Amaro, 349 - Centro - São Paulo

Editor: Vinicius Vieira


1'0rmado em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas - FGV-SP

Editora de Texto: Priscila Tanaca


Mestranda em Direito na PUC-SP

Produção Editorial: Mônica A. Guedes


Formada em Letras pela FFLCH-USP

Arte: Wildiney Di Masi


Desi"gner Gráfico pela Fac. Oswaldo Cruz

Castro, Rodrigo R. Monteiro de &Aragão, Leandro Santos de


(coord.) - Reorganização Societária -São Paulo : Qyartier Latin,
2005.

1. Empresarial 2. Direito

Índice para catálogo sistemático:

1. Brasil: Direito Empresarial

Contato: editora@quartierlatin. art. br


www.quartierlatin.art.br
SUMÁRIO

Apresentação ............................. .................................................. 17

FÁBIO NusnEo

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
.

MARCO AURÉLIO GRECO

Reorganização Societária e Planejamento Tributário

1. Posicionamento do tema ......................................... ............... . 30

2 . Postura perante a tributação ............................................. . ...... 31

3. Evolução teórica ................................................................... . 33


..

4. Figuras que não configuram planejamento tributário .............. 34

5. Fases do debate sobre planejamento ....................... . ... ............. 36


6. Primeira fase: liberdade salvo simulação .................................. 37

7. Segunda fase: liberdade salvo patologias .................................. 40

8. Negócio indireto e negócio fiduciário .......................... . ........... 45

9. Terceira fase: liberdade com capacidade contributiva .... . .


.. ....... 45

10. Cautelas especiais .................................................................. 47

1 1 . Conclusão .............................................................................. 49

LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO

Dever de Informar e Operações de Reorganização Societária -


procedimento preparatório e as informações assimétricas

1 . Introdução ............................................. . ......................... ........ 52

2. A informação ........................................... ................................ 55

3. O problema informacional: informações assimétricas, o


moral hazard e a incompletude contratual ............................... 56

4. A tutela jurídica da informação: o direito, o dever e a


liberdade de informar ............................................................. 66

5 . Informação assimétrica, incompletude contratual e o direito


societário ................................................................................ 77

6. O procedimento preparatório: o due diligence e a assimetria


informacional ............. ............................... .............................. 80

7. A tutela da informação no direito societário (Lei das S/A): o


direito à informação (Informationsrecht) e o dever de informar
(Informationspjlicht) 81
................................................................
8. Operações de reorganização societária, o problema
informacional e a imputação de responsabilidade na
sistemática jurídica das companhias ....................................... 93

9. Conclusão ............................. . . . . ............................................... 97

MARISTELA SABBAG ABLA

Sucessão Empresarial - Declarações e Garantias -


o Papel da Legal Due Diligence

1. Introdução ......................................................................................... 100

II. Conceito técnico de sucessão ............................................................ 102

III. Dispositivos legais aplicáveis ........................................................... 105

IV. A questão da transferência de participação societária ...................... 107

V. Declarações e Garantias .................................................................... 109

VI. O importante papel da auditoria jurídica (legal due diligence)


no processo de identificação das contingências sucedidas ................ 115

VII. Conclusão ...................................................................................... 120

Bibliografia ........................................................................................... 121

EDUARDO SrrNOLA E CASTRO

A Arbitragem nas ]oint Ventures

1. As Joint Ventures .
........................ ................... . ................................... 124

2. Os traços distintivos dajoint venture ................................................. 127


3. As divergências entre os participantes dajoint venture ............. 130

4. As diversas formas de solução de divergências: a justiça


estatal, a mediação e a arbitragem ........................................... 131

5 . Por que a arbitragem? .................... . ..... .................................... 133

6. Como recorrer à arbitragem: a cláusula compromissária ......... 136

A lei aplicável ao mérito ............................ ..


. .......................... 136

As regras de arbitragem .......................................................... 137

O local da arbitragem ...... . ...................................................... 139

O número de árbitros e a forma de sua escolha ....... . . . . . . . 139


.. . ... ..

O idioma da arbitragem ....................... . ................................. 140

O prazo para prolação da sentença ............................ .. .... ..


. .... 140

7. Problemas comuns para reflexão ............................... . .... . ......... 141

Conclusão .................. . ... .


. ... ............................ . ... .
.. . .................... 143

PAULO CEZAR ARAGÃO & GISELA SAMPAIO DA CRUZ

Alguns Aspectos da Redução de Capital das Sociedades Anônimas

I. Introdução ......................................................................................... 146

II. Formas facultativas de redução de capital: a redução do capital por


excesso e para absorção de prejuízos 148
.................................................

2 . 1 . A redução do capital por excesso .


......................... ........... 149

2.2 . A redução de capital para absorção de prejuízos .............. 154


III. Saneamento financeiro da companhia: limites e
possibilidades .......................................................................... 156

3.1. Saneamento financeiro da companhia com reserva


de capital ............................................................................ 157

3.2. O balanço intermediário como base para a redução


do capital ............................... . . . .......................................... 162

3.3. A situação dos titulares de ações preferenciais . . . .............. 166

IV. Conclusão .............................................................................. 174

GLAUCO MARTINS GUERRA &


RODRIGO R, MONTEIRO DE CASTRO

Fusão, Cisão e Incorporação no Contrato Administrativo: a Restrição do


Inciso VI, do Artigo 78, da Lei 8.666193 e suas Repercussões sobre as
Liberdades Privadas do Direito Societário

1 . Objetivos do tema ................................................................... 178

2. O contexto do dilema .............................................................. 179

3. O princípio da legalidade administrativa e o contrato


administrativo ......................................................................... 1 82

4. A tríade relação entre os princípios . 1 84


.................................... . . ..

5. Observações sobre o princípio da compatibilidade .................. 186

6. O bservações sobre o princípio da conformidade entre


Lei e Direito . . ......................................................................... 1 89

7. Observações sobre o princípio da precaução ............................ 192


8. Algumas considerações acerca do fenômeno societário . . . . ....... 194

9. Os atos societários ........... .... ..


. ............. ...... ...
. . ..... . ......... . ......... 196

10. O patrimônio da sociedade submetida a ato societário .. . ....... 199

11. O Art. 78 da Lei 8.666/93 ..................................................... 200

12. A aplicação do Inciso XI do Art. 78 da Lei 8.666/93 ............ 202

13. Conclusões .......... ..... ..


. .... .
...... ...
. . ............................... .. . ... . .... 203

Luiz ERNESTO AcETURI DE OLIVEIRA &


MARCELO GUEDES NUNES

Voto Irregular e Grupos de Sociedades

1. Introdução ................... ............................................... ....................... 208

2. Grupos de sociedades como forma de organização e


reorganização societária . .. ... ...... .... . ... . . ......................... . ... . ... . .. 210

3. Abuso de voto, proibição de voto, voto em benefício


particular e voto em conflito de interesses .............................. 214

4. Novo Código Civil brasileiro e reforma italiana . . . . .. . . . . . . . . . . . . . ... 221

5. Necessidade de prova do prejuízo e momento da prova ........... 225

6. Votos irregulares, organização em grupos de sociedades e


abuso de poder de controle de grupo de sociedades ................ 227

7. Bibliografia ... . ...... .


........................ . ........ . .
.. . . . . . . .. . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . 235
RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO

Incorporação de Controladora: Motivação e Oportunidades.


O Ágio como Exemplo

Introdução ................................................................................... 238

I. A Constituição Federal e as principais leis infraconstitucionais


aplicáveis às operações societárias 240
...........................................

II. Conceituação de Controlador, Controlada e Coligada .......... 244

II.i. Controlador ..................................................................... 245

II.ii. Controlada ................................................................... . . . 246

II.iii. Coligada ........................................................................ 246

III. Operação de Incorporação ...................... ............................ . . 247

III.i. Motivações .................................................... . . ............... 248

III.ii. A redução da carga tributária como (legítima)


motivação empresarial da incorporação ............................. 250

IV. Incorporação de Controladora ............................................... 253

IV.i. A redução da carga tributária como motivo da


incorporação de controladora ............................................. 255

V. Ágio ........................................................................................ 257

V.i. A lei fiscal ........................................................................ 258

V.ii. Incorporação de controladora motivada pelo


aproveitamento de ágio ...................................................... 259

V.iii. A Instrução CVM 319 ..................... .............................. 260


V.iv Controlador para efeito de capitalização da reser\ra
especial de ágio .................................................................. 261

VI. Conclusão ............. ..................................... ........................... 262

MARCELO GUEDES NUNES

O Direito de Recesso nas Incorporações

1 . Introdução ............................................................................... 264

2. Visão tradicional do recesso: princípio majoritário e


resilição ........................................................... ........................ 265

3. O investidor e as bases essenciais do investimento .................. 268

4. Incorporação, incorporação de sociedades e incorporação


de ações ................ ................................'.................................. 272

5 . Hipóteses de recesso nas incorporações ................................... 274

6. Procedimento do recesso ............................... .......................... 281

7. Valor de reembolso e incorporação de controlada .................... 286

8. Conclusões ...... ........................................................................ 292

9. Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ....................................... 294

MARCELO KNoEPFELMACHER

Considerações sobre a Responsabilidade Tributária


na Cisão Parcial

1. Introdução ......................................................................................... 296


II. A Responsabilidade Tributária na Fusão, Transformação e
Incorporação perante o CTN . 297
.............................................. . .

III. A Responsabilidade Tributária na Cisão e o RIR/99 ............ 298

IV. A Cisão e o Artigo 233 da LSA: Aspectos da Exclusão


da Solidariedade ..................................................................... 300

V. Harmonia do Artigo 233 da LSA em relação ao Artigo 123


do CTN ............... .......................... ......................................... 302

VI. Proposta de Solução de Aparente Antinomia entre o


artigo 5° do Decreto-lei nº 1.598/77 e o parágrafo único
do artigo 233 da LSA ........................ ..................................... 303

VII. Conclusões .................................... ...................................... 305

PAULO MATTAR FILHO

O Sistema de Proteção aos Credores nas Operações de Incorporação,


Fusão e Cisão

Introdução ................................................................................... 3 10

1. Legislação Brasileira ..... . ..... . . .


. ... . .
..... .... ................................... 311

2 . Lei das Sociedades Anônimas ................................................. 3 1 1

2 . 1 . Sucessão ........................................................................... 3 1 1

Incorporação e Fusão .............................................................. 3 12

Cisão ...................................................................................... 3 12

2.2. Protocolo ...................................... ................................... 3 1 3


2.3. Formação do Capital ....... . . . . . . . . . . . ............ . . .. .. . .. . . ........ . . . . . . 314

Valor Contábil ......... .. .. . .. . ............ . . . .. . . . . . . ......... . . . . . . . . . .............. 315

Valor de Mercado . . . . . . . . ............... . . . . ....................... ........... . . . . .. 315

Valor Justo . . . . . . . . ...... . . . . . .... . . . . .......... . . . . . . . . .. . . .... . . .. . . . . . ......... . . . . . . . 318

2.4. Peritos e Laudo de Avaliação . . . . ........ .. .. .. . . . . ........ . .. . . . . . . . . . . 320

2.5. Conflito de Interesses . . . . . ........... . . . . . . . . . . . . ............ . . . . . . . . . ..... 321

2.6. Operações com Sociedades Coligadas . . . . . .. . . . . . . . .. . ............ 322

2.7. Direitos dos Credores na Incorporação e Fusão ............... 323

2.8. Direitos dos Credores na Cisão . .. .. . . . . . . . . . . . ............ . . .. . . . . . . . 324

2.9. Oposição e Anulação .......... . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . ..... . . . . . . . . . . . . ....... 325

2.10. Direitos dos Debenturistas . . .. . . . . . . . . . . . .............. . .. . . . . . . . . . ... 330

3. Código Civil . . . . . ............ . . . . . . . . ... ............... . . . . . . . . . ................ . . . . . . . . 331

4. Considerações Finais .... . . . . . . .... ............. . . . . . . . . . . . . . . . . ............ . . . . . .. . 332

Bibliografia . . . . . . . . ............ . . . . . .................. . . . . . ... ........... . . . . . . . . . .. . ........ 333

CAESAR AucusTus F. S. RocHA DA SILVA

O Acionista Minoritário e as Operações Societárias

O Acionista Minoritário e as Operações Societárias . . . .. . . . . . . .. . . . . . . . . .. . . .. . . 336


ALEX PRANDINI JR.

Trespasse e Cisão Parcial - Similitudes

1 . Introdução . . . . . ..... ................................. ................ .................... 362

2. Trespasse . . . . . .. . . . . . . . . .. . . ...... . . . .... . . . . . . . . . . . . ............... . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . .. 363

Conceito de Trespasse e Estabelecimento .............................. 363

Proteção dos Credores do Alienante no Trespasse .............. . . .. 367

A questão do restabelecimento e sua vedação ................ . . . . . . . . . 369

O conflito entre a publicidade obrigatória e a questão do


sigilo nos contratos de trespasse . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . ................... 373

3. Cisão ............................. . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . .......................... ............ 373

Conceito .... . . . . . . . . . . . . . . . . . . .... . . . ................. . . . . . . ...... . . . . . . . . . . . ............ 373

Formalização contratual da cisão e a proteção aos credores


da empresa cindida .... . . . . . . . . . .................. . . . . . . . . . . .................... 376

4. Pontos de contato entre trespasse e cisão parcial: a questão da


realocação de riquezas na atividade empresarial 378 . . . .. . . . . . . . . ........
RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO & LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO - 17

APRESENTAÇÃO
Tema de fascínio dos jovens advogados que compõem o Instituto
de Direito Societário Aplicado - IDSA -, o direito societário está a
exigir, hoje, uma outra leitura do seu escopo.
Do direito societário monolítico, existente só para regular os inte­
resses que compõe e gravitam em torno de uma solitária sociedade (li­
mitada ou anônima), as estruturas atuais da realidade econômico-social
existente na denominada "economia-mundo" (Weftwirtschaft) compe­
lem os operadores do direito a ampliar o ferramental jurídico com o
qual laboram, para abarcar, v. g., a hipótese cada vez mais recorrente de
grupos de sociedades.
Somado a isto, encetam novos paradigmas, extraídos de ideologias
presentes no cotidiano econômico-social, algumas criativas e originais,
outras, possíveis depurações de teorias pretéritas, que influenciam, in­
tensamente, a hermenêutica jurídica.
O despertar do sono latente do classicismo jurídico, com seu latim
abundante, misterioso e sacro para muitos, posto com o intuito de ins­
trumentalizar, politicamente, um arcabouço jurídico-protetivo do indi­
víduo contra o Estado, possibilitou que as engrenagens destes "tempos
modernos" processassem a polis e nos dessem, ao final de uma nova "ca­
deia produtiva", como objeto sobre o qual se põem as abstrações jurídi­
cas, o sempre existente mercado, hoje, como em outras épocas de
liberalismo, difundido como crença ilimitada tal qual o modelo geocên­
trico foi outrora.
18 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

Vivenciamos, pois, uma nova "Era dos Direitos", que será "nova"
até o próximo ciclo de novas exigências econômico-sociais, emergentes
em um mundo cada vez mais de igualdade formal aplaudida e endeusa­
da e eqüidade inexistente e rechaçada. Enquanto isso, novos centros de
poder político, como as organizações, ditam regras específicas, muitas
vezes desafiadoras, sob a ótica da efetividade, das tradicionais normas
gerais e abstratas, mas, nem por isso, necessariamente ilegítimas.
A realidade, então, de múltiplas faces, passa a exigir um novo direi­
to, um novo instrumento político de distribuição das coisas sobre as
quais recaem os interesses.
O que há, entretanto, de "novo" neste "novo" direito? Será que a
novidade é mera repetição da antiguidade? Será que não vivenciamos
coisas novas? Será o homem prisioneiro de idéias aliteradas, que vão e
vêm em movimentos históricos cíclicos? A história pode repetir-se ou
seria, se repetida, mera1cacofonia? Onde está a criatividade e originali­
dade neste "novo" direito?
Buscar, na criatividade, a originalidade: crê-se que foi este o objeti­
vo dos advogados e associados do IDSA que, nesta coletânea, perfilham
seus interessantíssimos trabalhos. Buscar, na letra fria da lei, a exegese
necessária para um direito societário moderno, capaz de ser um eficaz
instrumento de implementação de políticas públicas no campo econô­
mico.
O tema escolhido foi Reorganização Societária, no qual cada um
dos autores deveria imergir, profundamente, para, ao final, trazer à tona
a originalidade desejada.
O resultado está aqui, neste livro, lançado para apreciação e crítica de
todos aqueles que se interessarem pelo tema. Este livro é o ponto de par­
tida do Instituto de Direito Societário Aplicado - IDSA -, que pretende,
modestamente, ser um centro vanguardista de debates e produção inte­
lectual sobre o direito societário e o mercado de capitais.
Este, que deve ser o primeiro volume de uma série de publicações
acerca de Reorganização Societária, aborda temas relevantes e polêmicos
envolvendo due diligence, a gênese das operações societárias; assimetria
RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO & LEANDRO SANTOS DE A RAGÃO - 1 9

informacional; incorporação de controladora; grupo de sociedades; re­


dução de capital; implicações tributárias; os meios idôneos de proteger
credores e de preservar os interesses dos acionistas minoritários (o di­
reito de recesso), dentre outros.
Por se tratar do primeiro volume de um trabalho cuj o escopo so­
mente o tempo poderá definir - isto porque, enquanto o "novo" direito
não se tornar obsoleto, o IDSA o explorará, com fins científicos, e, a
partir de seu esgotamento, avançará sobre o "novo'', que o sucederá -
para o próximo volume deixaram-se outros temas de relevo, tais quais
operações societárias envolvendo sociedade com patrimônio líquido ne­
gativo, recuperação de empresas, aspectos concorrenciais, drop down, den­
tre outros.
Nesta empreitada, não poderíamos deixar de agradecer ao Prof.
Dr. Marco Aurélio Greco, que nos brindou com um excepcional arti­
go sobre reorganização societária e planejamento tributário, ao Dr.
Paulo Cezar Aragão, que, junto com a Dr.ª Gisela Sampaio da Cruz,
dissertou, com brilhantismo costumeiro, sobre a redução do capital so­
cial nas sociedades anônimas, ao Dr. Eduardo Spinola e Castro, autor
de um excepcional artigo sobre arbitragem em joint venture, e ao Dr.
Marcelo Knoepfelmacher, advogado tributarista e Diretor Administra­
tivo do Instituto de Pesquisas Tributárias - IPT , que nos instiga a refle­
tir quando escreve, lapidarmente, sobre a responsabilidade tributária na
cisão parcial.
Por fim, não poderíamos deixar de registrar nosso reconhecimento
à inestimável contribuição do Prof Dr. Fábio Nusdeo, que, além de pre­
faciar este livro, já participou, em duas oportunidades, das reuniões do
IDSA, nas quais, com uma simplicidade desconcertante para alguém
com tanta hombridade intelectual, deixou, em todos nós, luzes da sua
sabedoria.

Rodrigo R. Monteiro de Castro (Diretor Presidente do IDSA)


Leandro Santos de Aragão (Diretor Vice-Presidente do IDSA)
Prefácio

por Fábio Nusdeo


22 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

PREFÁCIO
Há cerca de um ano, um grupo de advogados - a grande maioria
bastante jovem - passou a se reunir periodicamente para a discussão de
assuntos de relevância para sua atividade profissional, em grande parte,
centrados no tema das sociedades anônimas, sob a liderança de Rodrigo
Rocha Monteiro de Castro.
É interessante notar que tal iniciativa surgiu de maneira espontâ­
nea e fora das salas acadêmicas, representando a preocupação desses
causídicos de, por assim dizer, tomarem uma distância das lides pura­
mente profissionais para ganhar uma visão mais ampla e abrangente
dos temas por eles diuturnamente tratados em seus escritórios. Isto os
levou a alçar um vôo a um tempo ambicioso intelectualmente, mas rea­
lista e sempre prático no seu endereçamento.
Trabalhos bem pensados, discutidos por vezes acaloradamente,
como este prefaciador teve a oportunidade de testemunhar, como con­
vidado a alguns desses encontros, foram temperando e afinando o gru­
po, o qual rapidamente amadureceu e se tornou coeso, a ponto de sentirem
os seus integrantes ter chegado o momento de o institucionalizar, pas­
sando a se constituir desde janeiro de 2005 como pessoa jurídica sob a
denominação de Instituto de Direito Societário Aplicado - IDSA. Criou
assim uma estrutura simples mas efetiva, destinada a assegurar o j á alto
nível qualitativo de seus trabalhos e, ao mesmo tempo, a sua continui­
dade e divulgação, sem descurar perspectivas de expansão no campo de
educação e da pesquisa.
O lançamento da presente publicação vem pois a coincidir com a
referida institucionalização do grupo de estudos, marcando-lhe, por certo,
o surgimento no panorama atual do direito societário do País, dentro do
qual as contribuições trazidas são mais do que oportunas e bem-vindas.
Honram-me os seus autores - dentre eles vários ex-alunos das Ar­
cadas - com a solicitação de um Prefácio, missão esta das mais prazero­
sas não apenas pela seriedade e riqueza do conteúdo da obra de mão
comum, como também, e, sobretudo, pelas origens do seu aparecimen­
to, acima brevemente descritas. O campo é fértil e instigante por co-
FÁBIO Nusom - 23

brir uma série de aspectos relevantes e até mesmo cruciais das leis
societárias brasileiras, bem como de outros diplomas legais que, a toda
hora, tem a ver ou interferem com a aplicação e evolução daquelas.
Assim sucede com a análise da instável fronteira entre o Direito
Societário e o Direito Administrativo no caso das licitações e contra­
tos administrativos, análise esta levada a efeito por Glauco Martins
Guerra e Rodrigo R. Monteiro de Castro, quando abordam as exigên-·
cias contidas no art. 78 da Lei 8.666/93 segundo as quais atos de reor­
ganização societária de concessionárias, empreiteiras ou fornecedoras
do poder público passam a depender de autorização deste.
Não muito afastado desse enfoque Leandro Santos de Aragão abor­
da o regramento cogente quanto ao dever de informar nas operações de
reorganização societária quando surge a delicada questão da assimetria
de informações, procurando demarcar os lindes do dever de informar
dentro do arcabouço legal das sociedades anônimas e, em particular, o
art. 157 da LSA nos casos de tais operações de reorganização.
Ainda em sede de reorganização societária, Luiz Ernesto Aceturi
de Oliveira e Marcelo Guedes Nunes tratam da relação entre as regras
tradicionais de voto irregular e a realidade presente dos grupos plurisso­
cietários. Nestes últimos, quebra-se ou se supera a bipartição de planos
de interesse que parece tão clara nas sociedades singulares isoladamente
consideradas: o plano de interesse do acionista e o interesse societário
em s1 mesmo.
No entanto, quando se está em presença de grupo de sociedades,
um terceiro plano de interesse hierarquicamente acima dos demais, co­
loca-se, a cobrar a atenção e a acuidade do analista, pois aí o controle, se
por um lado impõe a consideração do interesse social, não permite, por
outro, que se fuja ao interesse coletivo consubstanciado na convenção
do grupo. Daí a tentativa de compatibilização criativamente desenvol­
vida para chegar a uma construção funcional do art. 115 da Lei das S.A,
nesses casos.
Alex Prandini Jr. em original enfoque faz um levantamento das
similitudes existentes entre o trespasse de estabelecimento e a cisão
24 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

societária parcial, daí derivando uma interessante série de conseqüên­


cias. Como ressalta o Autor, a decisão de uma sociedade de cessar
algum dos seus ramos de atividade pode ser implementada por diver­
sas vias: venda total ou parcial dos ativos empregados, trespasse de
estabelecimento, cisão parcial, todas elas conduzindo a um objetivo
econômico perfeitamente identificável. Examina ele estas duas últi­
mas alternativas mostrando as suas congruências, analogias e similitu­
des, num enfoque objetivo e preciso sob a ótica da realocação das
riquezas na atividade empresarial.
Ainda como forma de realocação de riquezas, Paulo Cezar Aragão e
Gisela Sampaio da Cruz - autores convidados pelo IDSA - discorrem sobre
redução de capital nas sociedades anônimas. Tal discussão é rebatida contra o
pano de fundo da própria sistemática da LSA, caracterizada por uma sadia
flexibilidade, conforme ressaltam os Autores. Dentro desse quadro as ope­
rações de redução de capital social não estão vinculadas a qualquer mínimo
obrigatório a que deva ele atender ou mesmo a qualquer montante de per­
das. Aliás, nem mesmo lhe é fixado legalmente um valor mínimo, inexis­
tindo ·normas relativas à sua recomposição quando desfalcado.
Dentro desse quadro e com a devida atenção às peculiaridades pró­
prias e tratamentos jurídicos diversos a separarem as S/A e as Limita­
das, os Autores esclarecem plenamente o tema, abrindo-lhe perspectivas
inovadoras.
Sempre na área das reorganizações, Marcelo Guedes Nunes anali­
sa com proficiência o instituto do recesso primeiramente em sua visão
tradicional para explorar, a seguir as modalidades das operações de in­
corporação com vistas a identificar seus elementos essenciais. Focaliza
a área limítrofe ainda não definida da incorporação de sociedades para
distinguir quais as hipóteses de recesso incidem em cada variedade de
incorporação em sociedades de capital aberto e de capital fechado. A
incorporação de controlada é também objeto do estudo que adentra
ademais o campo procedimental e da contagem de prazos de recesso,
focalizando o intrincado problema do fechamento indireto de capital
como causa de recesso (art. 223 da LSA).
FÁBIO NusDEo - 25

Sempre no campo das incorporações - que, como se vê, é rico em


aspectos diversos, implicações e desdobramentos - Rodrigo R. Mon­
teiro de Castro focaliza a motivação e oportunidades da operação com
a própria controladora. Antes, traça uma distinção oportuna aplicável
às reorganizações, separando as que envolvem apenas a empresa, das
que estão voltadas para a sociedade sem afetar a empresa e finalmente
daquelas que visam a ambas: empresa e sociedade.
No caso da incorporação o autor defende a viabilidade jurídica e
legitimidade das chamadas operações às avessas, ou seja, quando se dá a
incorporação de controladora pela controlada, desde que, acentua, pos­
sam elas apresentar um conteúdo mínimo de motivação empresarial para
tanto.
Um outro aspecto relevante em tema de reorganização societária, o
da proteção aos credores constitui o objeto do capítulo a cargo de Paulo
Mattar Filho.
Por óbvio, fusões, incorporações e cisões podem afetar as relações
com credores, até mesmo diminuindo-lhes direitos e, sobretudo, garan­
tias, notadamente quando implicam alterações no patrimônio líquido.
Daí propugnar o autor a elaboração de mecanismos mais efetivos para a
proteção dos interesses dos credores quanto a mutações patrimoniais
decorrentes de tais operações, normalmente levadas a efeito à revelia
daqueles.
Na mesma linha, Marco Aurélio Greco, outro autor convidado pelo
IDSA, levanta o tema das relações e implicações entre reorganização
societária e planejamento tributário.
O planejamento tributário tem sido preocupação constante de
empresários, planejadores e juristas, mas vem ganhando novas dimen­
sões, ao ensejar novas especulações jurídicas de cunho teórico e não
apenas prático. No campo legislativo, basta lembrar a introdução no
artigo 1 1 6 do Código Tributário Nacional de um parágrafo destinado
a coartar os constantes recursos de elisão fiscal, via operações de reor­
ganização. Daí a necessidade de se traçar, como o faz o autor, um pa­
norama geral do planejamento tributário com o fim de detectar novas
26 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

tendências, respondendo à crucial indagação sobre quais os limites tri­


butários implícitos na conformação jurídica de qualquer processo de
reorganização.
Especificamente quanto à responsabilidade fiscal nas operações de
cisão parcial discorre Marcelo Knoepfelmacher, também convidado pelo
IDSA, com o objetivo de definir limites para a atribuição de responsa­
bilidade solidária entre a sociedade cindida e a/ou as que recebem o
patrimônio versado. Discute o autor os critérios que as autoridades
fazendárias pretendem aplicar a tais situações, segundo ele não total­
mente conformes com o tratamento jurídico dado a essas operações pela
LSA.
Muito embora não visceralmente integradas ao contexto das ope­
rações supra focalizadas, importa destacar a questão da sucessão em­
presarial na esfera das contingências delas decorrentes e a sua
distribuição pelas partes envolvidas. Trata-se, em suma, da análise da
extensão e alcance das cláusulas de Declarações e Garantias (Repre­
sentations and Warranties) insertas nos respectivos instrumentos e com
ênfase especial nos contratos de compra e venda de ações. O mecanis­
mo das Declarações e Garantias e, mesmo, o seu grau de efetividade
estão relacionados a um processo prévio, a chamada "due diligence" ou
"legal due diligence" pelo qual aqueles que assumirão o controle de
determinada sociedade aquilatarão e procurarão quantificar com a pos­
sível precisão os encargos e responsabilidades daí decorrentes. A "due
diligence", consiste numa forma de confirmação legal do conteúdo
d;;s "Representations and Warranties", constituindo um aspecto ex­
tremamente delicado do trabalho do profissional do direito quando
acompanha e aconselha em tal tipo de operações.
A exposição do tema a cargo de Maristela Sabbag Abla é bastante
ampla e profunda representando um valioso guia para todos quantos se
envolvam nesse delicado campo de atuação profissional.
Amplo e profundo, também, é o estudo do Caesar Augustus Rocha
sobre o acionista minoritário e as operações societárias, mostrando a qua­
se constante contraposição de interesses entre o acionista controlador e o
FÁBIO NusDEO - 27

minoritário, discorrendo sobre os caminhos e posturas que o acionista


minoritário, dissidente, pode percorrer e assumir na defesa de seus direi­
tos e interesses, sobretudo quando a governança empresarial deixa algo a
desejar, inclusive quanto à transparência.
"Last but not least" coube a Eduardo Spinola e Castro, também autor
convidado, falar sobre a Arbitragem, inserindo esse instituto, que cada vez
ganha mais adeptos, na área das "joint ventures" empresariais.
Pretende o autor transmitir algumas reflexões feitas a partir de
sua experiência profissional na estruturação jurídica de "joint ventu­
res" nacionais - uma das formas de reorganização societária - e inter­
nacionais e na participação, como advogado, em arbitragens comerciais
internacionais. Discute a noção de "joint venture", com vistas a estabe­
lecer os traços distintivos desta forma de colaboração empresarial, e
mostrar os casos mais típicos de divergências entre os parceiros ou "co­
venturers", passando então a examinar as formas de solução de tais di­
vergências. Busca transmitir ao leitor a noção de arbitragem, e demonstrar
as vantagens desse instituto em relação à jurisdição estatal. Finalmente
examina, sob um enfoque eminentemente prático, a convenção de arbi­
tragem e seu conteúdo.
Feita esta sintética apresentação das várias contribuições ofertadas
pelos Autores do livro não parece, de forma alguma, exagerado situá-lo
em plano de destaque no conjunto de obras que vem tratando da evolu­
ção verificada no tratamento jurídico das reorganizações societárias, ex­
tremamente útil para os profissionais da área em busca de maior
embasamento teórico, doutrinário e experimental como lastro para suas
atividades, mas também apto a despertar o interesse daqueles que, den­
tro de uma visão mais teórica ou acadêmica se propõem a enfrentar os
vários temas levantados por seus autores. Estes autores e os seus desti­
natários merecem as melhores congratulações.
Reorganização Societária
e Planejamento Tributário

Marco Aurélio Greco

Advogado
Doutor em Direito
JQ - REORGANIZAÇÃO 50CIETÃRIA

1 POSICIONAMENTO DO TEMA
.

O estudo de uma reorganização societária freqüentemente neces­


sita enfrentar - dentre os diversos temas relevantes que suscita - o da
tributação.
A variável tributária aparece seja como preocupação quanto ao peso
de impostos e contribuições que a reorganização irá gerar, seja como
objeto de estudos quanto à possibilidade de minimizá-la através do de­
nominado "planejamento tributário".1
O planejamento tributário tem sido preocupação constante dos que
atuam na área tributária, mas ganhou novos contornos na última década
em função do surgimento de temas jurídicos de cunho teórico que pas­
saram a ocupar os textos que sobre ele se dedicaram.
Preocupação que também alcançou o legislador na medida em que
sucessivas regras específicas foram editadas buscando explicitar concei­
tos ou eliminar possíveis válvulas de não-tributação e culminou com a
alteração do artigo 116 do Código Tributário Nacional para o fim de
introduzir-lhe um parágrafo único que tem sido denominado de uma
norma geral anti-elisão.
Assim, no contexto de um volume de textos sobre reorganiza­
ção societária tem pertinência consumir algumas páginas para traçar
um panorama do tema do planejamento e apontar os mais recentes
passos dados nesse debate, bem como tentar detectar as tendências
que já se fazem sentir quanto ao desdobramento futuro da questão.
Ou sej a, o presente estudo pretende responder à indagação que
muitas vezes preocupa todo aquele que examina um projeto de reor­
ganização societária: até onde a conformação dos atos ou negócios
que instrumentarão a reorganização podem, tributariamente, ir?

Os temas tratados neste texto estão amplamente examinados no meu Planejamento tributá­
rio, Dialética, São Paulo, 2004.
MARCO AURÉLIO GRECO - 31

2. POSTURA PERANTE A TRIBUTAÇÃO


A base de muitas divergências que existem neste campo está na
diversa postura que o intérprete assume perante a tributação.
Visão individual-protetiva: Historicamente, a atividade de cobrar
tributos é antiga e encontra suas raízes no poder de império do vence­
dor de uma guerra ou no poder de que está investido o Rei em relação a
seus súditos. Esta raiz leva, muitas vezes, a ver a tributação como agres­
são ao patrimônio individual.
O Direito Tributário - como conjunto ordenado de preceitos que
regulam o exercício do poder de tributar - é fenômeno recente cujo início
de formulação pode ser reportado ao Código Alemão de 1919. Surgiu no
contexto pós-Revolução Francesa de um predomínio da visão individua­
lista e de construção do denominado Estado de Direito (assim entendido
aquele que se submete à lei e à jurisdição).
,

Neste ambiente (individualista e do Estado de Direito), as normas


que compõem o núcleo constitucional do Direito Tributário são vistas
como mecanismo de proteção (visão protetiva) e, por isso, são conside­
rados "princípios" da tributação aqueles preceitos que veiculam proibi­
ções ou restrições à atividade tributária do Estado. Por isso, na experiência
brasileira que vem de 1 965 (promulgação da Emenda nº 1 8 e edição do
CTN), legalidade, irretroatividade, anterioridade, tipicidade etc. são tra­
tados como os preceitos mais importantes do Direito Tributário e, por
isso, denominados "princípios".
O conceito de "capacidade contributiva" - que figura no artigo 202
da CF/46 - foi expressamente suprimido da Constituição Federal pela
Emenda nº 1 8/65 e o debate do Direito Tributário tornou-se predomi­
nantemente formal e focado nos tipos normativos, sua estrutura lógica,
hierarquia das normas jurídicas etc., permanecendo em segundo plano
as questões substanciais como a isonomia, a capacidade contributiva, os
fundamentos da tributação, a visão instrumental da tributação na perse­
cução dos objetivos constitucionais etc.
A partir desta visão, a figura do planejamento assumiu um perfil
com ela compatível. Na medida em que a liberdade individual é o fun-
32 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

<lamento da ação do contribuinte, a visão individual-protetiva leva a uma


concepção de planejamento que dá predomínio ao elemento liberdade
que só não seria prestigiado se fosse cometida alguma irregularidade.2
Visão solidária-modificadora: distinta perspectiva é apresentada
por uma visão do relacionamento entre contribuinte e Estado que se
apóia no reconhecimento da existência - ao lado dos direitos funda­
mentais - também de deveres fundamentais que decorrem da própria
existência do Estado que se pretenda não totalizador nem absorvedor
de toda atividade econômica.
Neste contexto, na medida em que a sociedade "quer" um Estado,
precisa assegurar-lhe meios para exercer suas funções e atuar na direção
dos objetivos escolhidos pela própria sociedade.
Salvo casos excepcionais, o Estado moderno do final do século XX
e início do século XXI é um Estado não detentor de todos os meios de
produção e, portanto, as receitas originárias da exploração de seu patri­
mônio não são a fonte fundamental do seu custeio.
Como o Estado precisa funcionar e não pode obter seus recursos
do patrimônio próprio, vai buscá-los no patrimônio titularizado pelos
integrantes da sociedade civil ou em função do exercício de atividades
econômicas. Desta perspectiva há, ao lado dos direitos fundamentais
constitucionalmente previstos, um dever fundamental de pagar impos­
tos, que corresponde ao meio necessário para viabilizar recursos para os
direitos fundamentais serem efetivamente assegurados. O Estado trans­
forma-se num "Estado Fiscal".3
A partir desta visão assumem relevância temas de caráter substancial
como o princípio da capacidade contributiva, a busca dos objedvos cons­
titucionais etc., o que interfere com o perfil de legalidade, anterioridade,
irretroatividade e tipicidade em matéria tributária que deixam de ser "prin­
cípios" (no sentido de maior importância) para serem tratados como "li-

2 As características específicas exigidas para o planejamento ser inatacável pelo Fisco serão
examinadas adiante quando forem expostas as três fases do debate.
3 Sobre este tema, veja-se a obra de José Casalta Nabais, O dever fundamental de pagar
impostos, Almedina, Coimbra, 2004.
MARCO AURÉLIO GRECO - 33

mitações" ao poder de tributar,4 por corresponderem a vedações (um "não


pode fazer"), mas nada dizem quanto às diretrizes positivas a serem aten­
didas pela tributação (o "deve fazer").
Dentre os vários objetivos e valores constitucionalmente consagra­
dos, assume particular importância o elemento solidariedade social como
vetor positivo da ação do Estado e, por conseqüência, da tributação.
A CF/88: a Constituição Federal de 1988 retrata esta mudança de
postura, a começar pelo seu artigo 1° que deixa claro ser o Brasil um
Estado Democrático de Direito (e não apenas Estado de Direito). Isto
significa que ele - ao mesmo tempo - consagra valores protetivos típi­
cos do Estado de Direito e valores modificadores, próprios do Estado
Social (Democrático).
A consagração de ambos os conjuntos de valores significa a neces­
sidade de uma permanente composição de valores - sem predomínio
pré-definido de nenhum dos dois conjuntos. Assim, na produção, inter­
pretação e aplicação da legislação tributária é preciso, ao mesmo tempo,
considerar tanto os elementos de caráter formal e protetivo (as limita­
ções) como os valores de cará.ter substancial (princípios e objetivos).

3. EVOLUÇÃO TEÓRICA
Ao lado dessa mudança de perfil do relacionamento entre socieda­
de civil e Estado, ocorreu profunda mudança no modo de compreensão
do fenômeno jurídico.5
Durante muito tempo, o principal foco de preocupação do jurista
apresentava-se como o conceito, pois representaria a parcela da realida­
de alcançada pela norma e como esta é a "essência" do debate jurídico
todo exame deveria estar centrado nos conceitos. Esta visão fazia pre­
dominar o debate abstrato sobre o que estaria ou não abrangido pela

4 Esta é a natureza que lhes reserva a Constituição Federal na Seção li do Capítulo do Sistema
Tributário Nacional.
5 A respeito desta evolução, vejam-se, dentre outras obras de Ricardo Lobo Torres, "Normas
gerais antielisivas11• Revista Fórum de Direito Tributário nº 1 1 Belo Horizonte e Os direitos
humanos e a tributação. Imunidade e isonomia. Rio de Janeiro: Renovar, 1 999.
34 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

fórmula lingüística adotada pelo legislador e circunscrevia a análise apenas


a elementos puramente normativos (extraídos do ordenamento positivo
na sua feição formal) .
Passou-se, depois, a observar que o conceito puro leva a uma visão
idealista e distanciada da realidade, posto que só se justifica desde que
se reconheça a relação que apresenta com determinado interesse a ele
correlato.
Por fim, mais recentemente, assume relevância uma visão que -
sem dispensar todas as conquistas teóricas e experiências obtidas com a
análise de conceitos e interesses - coloca a tônica da análise nos valores
consagrados pelo ordenamento jurídico em função dos quais surgem os
interesses e são elaborados os respectivos conceitos.
Atualmente, a experiência jurídica vive um momento de maior peso
específico dos valores no debate das questões ligadas à produção, inter­
pretação e aplicação das normas jurídicas. Examinar conceitos e interes­
ses continua sendo essencial, mas o peso dos valores no debate das questões
jurídico-tributárias aumentou significativamente.

4. f IGURAS QUE NÃO CONFIGURAM PLANEJAMENTO


TRIBUTÁRIO
O fato de o planejamento tributário visar acarretar menor ônus
tributário não significa que todas as figuras que têm esse efeito podem
ser consideradas como abrangidas pelo conceito.
Três figuras devem ser afastadas de plano quando se examina o
planejamento, a saber: (a) a prática de atos ilícitos; (b) a extrafiscalidade
e a concessão de incentivos; e (c) as opções fiscais.
(a) O verdadeiro planejamento tributário corresponde à atividade
admitida pelo ordenamento positivo dentro do âmbito da liberdade in­
dividual de organizar a própria vida. Muito pode ser discutido quanto a
seus fundamentos, condições e limites, mas é pacífico que cometer ilíci­
to não é planejar. Ilícito é repelido pelo ordenamento por agredir seus
preceitos ou os valores que consagra; portanto, sempre que estiver con-
MARCO AURÉLIO GRECO - 35

figurado um ilícito estaremos diante de hipótese que se encontra fora da


noção de planejamento.
Embora esta afirmação seja pacífica, é importante explicitar os ti­
pos e os graus de ilícito que podem ocorrer na prática, acentuando que
qualquer deles terá por efeito excluir a hipótese concreta da categoria do
planejamento ou - usando outra expressão - "contaminam" o planeja­
mento feito e fazem com que a conduta concreta s� encontre no plano
da infração, por isso punível.
Qyanto ao tipo, podem ser lembrados os ilícitos: (i) penais; (ii)
civis ou a sub-ordenamentos específicos;6 e (iii) tributários especifica­
mente considerados.
Seja qual for o tipo, toda ilicitude (penal, extra-tributária - civil,
regulatória etc. - ou tributária), está fora do campo do planejamento.
Dizer que determinada hipótese está fora do campo do planeja­
mento significa afirmar que as considerações feitas mais adiante não se
referem a ela.
Qyanto ao grau que o ilícito apresenta, é preciso distinguir três
situações: (I) ilícitos insignificantes: aos quais se aplica o denominado
"princípio da insignificância" e que não contaminam o planejamento
feito; (II) ilícitos em elementos relevantes dentro do contexto em que o
caso for examinado (que contaminam); e (III) ilicitude dos meios con­
tamina os resultados.
Em suma, é importante acentuar que existem regras do jogo (game)
a serem obedecidas para que o planejamento feito receba proteção do
ordenamento positivo e produza os efeitos desejados de menor carga tri­
butária; mas também é relevante acentuar a importância do modo de jo­
gar de cada participante (play) que precisa serJair.
b) Também não configura planejamento tributário a: fruição de me­
nor carga tributária em razão de (i) regras informadas pelo objetivo da

6 É o campo, dentre outros do denominado 11poder regulatório" cujo exercício cabe ao Esta­
do diretamente ou é atribuído a entidades públicas específicas (p.ex., Banco Central, CVM,
ANATEU.
36 - REORGANIZAÇÃO 50CIETÃRIA

extrafiscalidade ou do (ii) engajamento em programas de incentivo go­


vernamentais. Nestes casos, a conduta do contribuinte não é apenas ad­
mitida pelo ordenamento; mais do que isso: é por ele desejada e estimulada.
c) Igualmente fora do campo do planejamento estão as opções fis­
cais, entendidas como escolhas que o contribuinte pode fazer entre mo­
dos distintos de apuração do imposto ou do cumprimento da obrigação
tributária (p.ex., opção pelo lucro presumido no âmbito do imposto sobre
a renda) que estão expressa e positivamente previstas no ordenamento.

5. fASES DO DEBATE SOBRE PLANEJAMENTO


O cerne do debate sobre planejamento tributário está em identifi­
car quando as operações realizadas pelo contribuinte serão oponíveis ao
Fisco, no sentido de não poder recusar os efeitos de menor carga tribu­
tária e quando a atividade realizada será considerada um planejamento
"contaminado" a significar que os atos ou negócios realizados não pro­
duzirão os efeitos fiscais pretendidos pelo contribuinte e que o Fisco -

ex officio poderá negar-lhes eficácia e, freqüentemente, tratá-los se­


-

gundo o perfil real (e não meramente formal) que apresentem.


O ponto de partida do debate é a dimensão da liberdade individual
assegurada pelo ordenamento positivo.
Inegavelmente a liberdade (individual e empresarial) é direito fim­
damental que está e deve continuar a ser protegida. Mais do que isto.
Não pode ficar em segundo plano quando cotejado com outros valores
constitucionais.
Isto, porém, não significa tratar-se de um valor absoluto e incon­
trastável. Diante de determinado caso concreto é necessário cotejar a
liberdade com os demais direitos e deveres constitucionais para que o
resultado seja a somatória do seu conjunto e não o predomínio constan­
te de um deles.
O debate sobre plan�jamento desenvolve-se em três fases distintas (fases
mais teóricas do que cronológicas) conforme a composição de elementos
relevantes para determinar se um planejamento produzirá ou não os efeitos
MARCO AURÉLIO GRECO - 37

jurídicos de menor carga tributária, as quais podem ser denominadas de


fases da: (i) liberdade salvo simulação; (ii) liberdade salvo patologias; e
(iii) liberdade com capacidade contributiva.

6. PRIMEIRA FASE: LIBERDADE SALVO SIMULAÇÃO


Esta fase caracteriza-se por sustentar o predomínio da liberdade de
contratar. Os efeitos tributários dos atos e negócios praticados estariam
assegurados desde que o contribuinte: (i) agisse antes da ocorrência do
fato gerador; (ii) mediante atos lícitos; e (iii) não cometesse simulação
(vista como vício da vontade). Atendidos estes três requisitos, o Fisco
nada poderia objetar à redução da carga tributária decorrente dos atos ou
negócios jurídicos celebrados pelo contribuinte.
Este modo de conceber o planej amento resulta de uma concepção
individual-protetiva do ordenamento tributário e ao buscar dar a maior
amplitude possível à idéia de proteção, desemboca no conceito de lega­
lidade estrita, assim entendida como a exigência de lei em sentido for­
mal em todas as minúcias da previsão tributária. Decorrentes dessa visão
são os conceitos de tipicidade fechada, a proibição de analogia e o pres­
tígio da figura da lacuna (vista como vazio) de modo que onde houvesse
lacuna o contribuinte poderia caminhar protegido.
Tal modelo levou a três conseqüências principais: (i) proliferação
de operações meramente formais, pois, desde que atendidos os três re­
quisitos e existisse uma lacuna, o conjunto de proteções (legalidade es­
trita, tipicidade fechada e proibição da analogia) impediria qualquer tipo
de objeção por parte do Fisco; (ii) proliferação de dispositivos legais
específicos (a denominada inflação normativa), pois a reação do legisla­
dor aos planejamentos detectados era produzir novas normas para cada
uma das hipóteses surgidas; e (iii) alta complexidade do sistema jurídico
tributário, gerada pela inflação normativa.
Além do confronto entre lícito e ilícito, neste modelo assume gran­
de importância a idéia de "vontade" como único critério para equacio­
nar a natureza jurídica dos atos e negócios jurídicos realizados. Esta
visão suporia que os negócios celebrados "são" o que se quer e o que o
38 - REORGAN IZAÇÃO 50CIETÃRIA

agente "quer" é o que ele "diz"; então, se o contribuinte "quis" fazer uma
cisão, isto "é" uma cisão, se "quis" fazer uma venda de participação societá­
ria, isto "é" uma venda de participação societária independentemente de
outras perquirições etc.
Esta é a lógica que informa a primeira fase: liberdade absoluta, ili­
mitada, salvo atos ilícitos, depois da ocorrência do fato gerador ou cuja
manifestação de vontade esteja viciada por simulação.
Esta visão comporta várias críticas. As principais são as seguintes:
1 . O próprio conceito de "legalidade" enseja divergências, pois com
este termo pode-se designar tanto uma forma de regulação de pressu­
postos de emanação de atos ou negócios (legalidade de meios) como
conseqüências ou resultados que deles emanam (legalidade de fins).
Além disso, o adjetivo "estrita" comporta questionamento, posto
que expressa muito mais uma expectativa protetiva do que uma reali­
dade normativa. O "quanto" de legalidade exigível como garantia do
contribuinte corresponde apenas ao suficiente para que os elementos
fundamentais das hipóteses de incidência (objetivo, subjetivo, dimen­
sional, temporal e espacial) e das eventuais infrações e sanções sejam
compreensíveis.
2. A exigência da "tipicidade" também deve ser vista sem adjetivos
(p.ex., "fechada"), pois o fundamental é a previsão em lei de certo evento
ou de um standard que comporta um conjunto de eventos. Uma tipicida­
de "fechada" no sentido formal de só alcançar aquelas hipóteses que pos­
suam certo perfil em determinado momento histórico é incompatível com
a realidade do mundo, essencialmente mutável e cheio de nuanças.
Legalidade e tipicidade são exigências inafastáveis quando se trata
de exercício do poder de tributar. São garantias constitucionais do contri­
buinte, mas sua adjetivação (estrita e fechada) comporta questionamen­
tos, pois o Direito deve acompanhar a evolução da sociedade sob pena de
permanecer estático e distanciado da própria realidade que quer regular.
3. A analogia é vedada pelo artigo 108, § 1° do CTN quando se
trata de exigir tributo sem previsão em lei. Na Constituição Federal não
MARCO AURÉLIO GRECO - 39

há expressa proibição de integração analógica do ordenamento tributá­


rio. Esta vedação é construção doutrinária a partir das idéias de legali­
dade estrita e tipicidade fechada; na medida em que estes dois conceitos
são redimensionados, o tema da analogia reabre-se para discussão.
Além disso, antes de saber se está sendo aplicada analogia, é preci­
so determinar a natureza jurídica do ato ou negócio realizado e a pers­
pectiva da vontade (isoladamente considerada) não é a única possível
para tanto. Os atos ou negócios podem ser vistos da perspectiva do motivo
que levou à sua prática. A partir do motivo, o enquadramento pode va­
riar, pois a vontade pode não estar viciada, mas o motivo aparente ser
diferente do motivo real do negócio realizado.
Ademais, há grande dificuldade em distinguir na prática a analogia
da interpretação extensiva, esta não proibida expressamente pelo CTN.
4. O grande problema da lacuna não é descobrir um espaço não
expressamente regrado por uma norma específica do ordenamento. O
tema a enfrentar é o que fazer diante de uma hipótese como essa, pois,
ainda que não exista uma norma específica para o caso, sempre é possí­
vel identificar duas normas gerais a ele aplicáveis: (a) uma que aponta
no sentido de considerar o caso não abrangido pela hipótese (norma
geral exclusiva); ou (b) uma norma no sentido de considerá-lo abrangi­
do (norma geral inclusiva). A dificuldade da lacuna não é o vazio nor­
mativo (inexistência de norma), mas o conflito de critérios para lidar
com ele (duas normas gerais em tese aplicáveis).
5. Não há dúvida de que o contribuinte tem o direito de organizar
sua vida. A questão principal não é sobre a existência desse direito, mas
sobre os limites que possui, pois na experiência moderna nenhum direi­
to é absoluto.
6. Neste contexto, o intérprete assume papel muito importante, pois
suas concepções de mundo, valores que professa e modo pelo qual lida
com os elementos que compõem o ordenamento jurídico vão refletir no
resultado final de sua ação. A interpretação jurídica não é mera descri­
ção de um objeto estático, mas construção de uma resposta a perguntas
postas pelas situações concretas. Embora o distanciamento em relação
40 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

aos interesses envolvidos seja necessário, não há uma neutralidade abso­


luta na ação de interpretar.
7. A figura da simulação tem sido vista - predominantemente - como
vício da vontade do agente. Daí ser concebida como um descompasso
entre a vontade aparente e a vontade real (ou inexistência de vontade real).
Esta é uma visão centrada no indivíduo como se este elemento fosse o
único relevante e o determinante da natureza jurídica dos atos e negócios.
Porém, a vontade não é algo que existe isolado no mundo; ao contrário,
sempre surge num determinado contexto formado pelos elementos que a
antecedem (motivos) e que lhe sucedem (atos concretos, finalidades al­
mejadas e resultados obtidos). Daí o conceito de simulação não permane­
cer focado apenas na manifestação de vontade, mas deve incluir o exame
dos motivos e das condutas concretas do agente. Mais do que o simples
"querer" de alguém é importante examinar o seu "fazer".

7. SEGUNDA FASE: LIBERDADE SALVO PATOLOGIAS


A segunda fase do debate sobre planejamento tributário principia
com uma pergunta cuja resposta abre espaço para outros aspectos que
devem ser ponderados na análise de determinado caso concreto.
A simulação é patologia do ato ou negócio jurídico e há consenso
de que não há planejamento mediante simulação. A pergunta é: por que
só esta patologia dos atos ou negócios jurídicos contamina a conduta do
contribuinte? Por que outras patologias, como o abuso de direito e a
fraude à lei não viciariam as operações realizadas?
A partir desta pergunta começa a ganhar espaço a discussão sobre
estas duas categorias de teoria geral, principalmente desde o início da
década de 90; além disso, começa a surgir um reexame teórico da figura
da simulação.
(a) A figura do abuso é conhecida em, praticamente, todos os cam­
pos da experiência jurídica. Na própria Constituição está previsto o abuso
do poder econômico; na Lei das Sociedades Anônimas, o abuso do poder
de controle; no Direito Administrativo, o abuso de poder da administra-
MARCO AURÉLIO GRECO - 41

ção; no Direito Civil, até o advento do Código de 2002 j á se discutia


doutrinariamente o tema embora o fundamento legal fosse a interpreta­
ção a contrario sensu do antigo artigo 160 do Código de 1917 e hoje o
atual artigo 187 é explícito ao prever a figura; até mesmo no âmbito da
produção legal o tema tem sido invocado como, por exemplo, no denomi­
nado abuso do poder de legislar.
O fundamento da figura do abuso está na circunstância de o ordena­
mento jurídico prestigiar certos direitos, mas não o fazer a ponto de admitir
que, no seu exercício concreto, o direito seja utilizado contrariamente ao seu
perfil objetivo ou a outros valores e direitos consagrados pelo próprio ordena­
mento. Há várias teorias que procuram explicar a figura, mas o núcleo básico
é o manifesto excesso cometido no exercício do direito.
O abuso surge no plano do exercício e não no plano da existência
do direito; vale dizer, situa-se no modo pelo qual o titular vai utilizar os
poderes e faculdades que compõem seu direito. Numa formulação sin­
gela, pode-se dizer que no abuso o "direito é bom", mas sua utilização
está viciada.
Assim, quando se discute o tema do abuso de direito, e para afastar
a objeção de que determinada conduta seria abusiva, é preciso perquirir
quanto ao motivo da operação realizada. Uma conduta não será abusiva
se existir motivo específico e suficiente a justificá-la.
Em matéria tributária, o tema do abuso surge atrelado ao exercício
do direito de auto-organização titularizado pelo contribuinte e, portan­
to, para determinada operação merecer a proteção do ordenamento ju­
rídico é preciso que não seja abusiva e, portanto, seja motivada. Motivo
é figura amplamente estudada no âmbito do Direito Administrativo,
como instrumento de controle da legalidade dos atos emanados do Po­
der Público e pode ser definido como evento anterior e externo ao ato
que serve de suporte à sua emanação.
Na análise de certo caso, cumpre verificar concretamente, se o mo­
tivo alegado existe, é pertinente ao ato praticado e suficiente para justi­
ficá-lo. Ou seja, que não se trate de mero "pretexto".
42 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

Como esta análise situa-se no âmbito de atos ou negócios reali­


zados visando obter menor carga tributária, o motivo não pode ser o
próprio resultado obtido (menor carga tributária). Vale dizer, a ope­
ração tributariamente relevante não se justifica pelo próprio efeito
tributário que produz. O motivo que pode afastar a alegação de abu­
so é o motivo extra-tributário. Vale dizer, evento real, pertinente e
suficiente, externo ao âmbito tributário, que leva à produção de certo
ato e que acarreta menor carga tributária como eventualidade e não
como sua razão de ser.
Embora no plano teórico seja relativamente nítido definir o que
seja abuso de direito, no plano prático é difícil determinar o momento a
partir do qual o exercício do direito se torna abusivo. Realmente, na
medida em que, na sua origem, o sujeito tem um direito protegido pelo
ordenamento e o desvio ocorre no momento do seu exercício, a princi­
pal dificuldade é determinar até que ponto o agente pode atuar sem que
esteja cometendo abuso.
Dois critérios resultam da experiência: (i) um critério objetivo que
resulta da edição de uma expressa previsão legal, como, por exemplo, o
preceito da lei de locações que regula o abuso na purgação da mora; (ii)
um critério subjetivo que envolve uma avaliação de cada caso concreto
em função de suas circunstâncias e a partir de parâmetros subjetivos do
que seja "normalidade", "excesso" etc.
Em matéria tributária a aplicação da figura do abuso de direito
para questionar operações realizadas pelo contribuinte pode se dar por
qualquer um dos dois critérios; seja pela edição de preceitos específicos
expressos, seja - ainda que aqueles não existam - mediante exame indi­
vidual de cada caso.
(b) O exame da fraude à lei deve passar por uma advertência prévia
quanto ao sentido do termo "fraude". Este termo, em Direito, é utiliza­
do para se referir a duas figuras distintas. Uma é a fraude de caráter
penal e outra é a fraude civil (fraude à lei ou fraus legis) . Fraude penal
envolve a prática de um ilícito e, portanto, não cabe dela cogitar ao tra­
tar do estudo do planejamento tributário.
MARCO AURÉLIO GRECO - 43

Fraude civil, porém, é patologia do negócio jurídico consistente em


contornar determinada norma imperativa procurando sustentar estar
enquadrado em outra norma que lhe seja mais favorável. Ou seja, utili­
zar meios lícitos para atingir fins que certa norma não admite sejam
atingidos diretamente por contrários ao seu preceito.
Fraude civil não é ato ilícito, mas causa de nulidade do negócio
celebrado que, por conseqüência, não produzirá os efeitos que lhe são
próprios.
A fraude à lei estrutura-se, freqüentemente, através da identificação
de duas normas: (i) uma norma à qual o agente não quer se submeter é
denominada "norma contornada"; (ii) outra norma em que busca prote­
ção para sua conduta, a denominada "norma de contorno". A estrutura da
fraude à lei também pode formar-se entre uma norma contornada e uma
não-previsão normativa (por exemplo, não-incidência).
Antes do advento do Código Civil de 2002, muito se discutiu quanto
à norma contornada (i) ter natureza proibitiva (ou mesmo obrigatória)
ou (ii) ser uma norma imperativa. Para a primeira concepção, como não
existe obrigação de pagar o maior tributo possível nem é proibido pagar
o menor tributo possível, a figura da fraude à lei seria inaplicável no
Direito brasileiro.
Embora esta posição, mesmo antes do Código Civil, a meu ver,
não fosse a mais adequada, depois do seu advento o debate resultou
encerrado, pois seu artigo 167, VI é expresso ao prever que a fraude à lei
leva em conta uma norma imperativa e não uma norma proibitiva (ou
obrigatória).
O adjetivo "proibitivo" diz respeito ao modo de regrar certo con­
teúdo, enquanto "imperativo" refere-se ao modo (inafastável) de inci­
dência da norma (em oposição à norma dispositiva cuja incidência fica à
escolha do agente). A norma tributária, salvo ao regular opções fiscais, é
norma imperativa, pois incide independentemente da vontade do desti­
natário. Portanto, os atos e negócios celebrados podem ser examinados
da perspectiva da fraude à lei tributária e sua ocorrência compromete a
respectiva eficácia perante o Fisco.
44 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

(c) a simulação, como patologia, pode ser vista tanto da pers­


pectiva dos vícios da vontade como dos vícios do motivo do ato ou
negócio jurídico. A doutrina brasileira exterioriza ambas as visões. A
segunda visão apóia-se na idéia de "causa" do negócio e nela vê um
parâmetro de controle do exercício da autonomia privada segundo o
qual a proteção jurídica resultante da lei só ocorre desde que o negó­
cio se justifique segundo a relevância social do interesse que se quer
proteger. Ou sej a, nem toda manifestação de vontade se justifica;
apenas aquela que encontrar uma razão (motivo) protegida pelo or­
denamento positivo (que não seja a mera autonomia privada ou a
liberdade de contratar).
O motivo é um dos elementos fundamentais para análise das ope­
rações realizadas pelo contribuinte com o intuito de obter menor carga
tributária. Assim, o próprio requisito preliminar imposto já na primeira
fase do debate ("os atos não podem ser simulados") passa a assumir con­
tornos diferentes com este reexame doutrinário do conceito de simula­
ção. Aliás, a partir do Código Civil de 2002 a simulação deixou de ser
hipótese de anulabilidade do ato jurídico para ser considerada hipótese
de sua nulidade (o que é mais grave).
No campo tributário, a reação a estas três figuras (abuso de direito,
fraude à lei e simulação como vício do motivo) consiste numa inoponibi­
lidade ou ineficácia perante o Fisco. Vale dizer, independentemente do
enquadramento que os atos possam ter no âmbito civil ou comercial e
independentemente das conseqüências que produzam perante as partes,
o Fisco (como terceiro) pode se recusar a aceitar seus efeitos tributários e
questioná-los por apresentarem qualquer destas patologias.
O questionamento pelo Fisco dos atos e negócios e sua inopo­
nibilidade não dizem respeito à sua validade, mas à sua eficácia pe­
rante esse terceiro. Esta ineficácia independe de recurso ao Poder
Judiciário, pois com ela não se está desfazendo o ato ou negócio ju­
rídico, apenas inibindo certos efeitos em relação a determinado ter­
ceiro (o Fisco).
MARCO AuRtLIO GRECO - 45

8. NEGÓCIO INDIRETO E NEGÓCIO FI DUCIÁRIO


Não é incomum - quando se estuda uma reorganização societária -
aparecerem alternativas que se viabilizam através de negócios fiduciários
ou indiretos, como se fossem figuras que, por si só, protegeriam o con­
tribuinte e em relação às quais nenhuma objeção caberia. Por isso, me­
recem breve menção.
Há negócio indireto quando se utiliza determinado negócio jurídi­
co típico para obter efeito próprio de outro negócio jurídico. Se não for
negócio jurídico típico, não será negócio indireto.
Há negócio fiduciário quando, apoiado na confiança, celebra-se
negócio em que o meio empregado (em geral, transferência de proprie­
dade) é desproporcional ao fim a que visa (administração, mandato ou
garantia).
Por serem modos de conformação dos negócios jurídicos, não es­
tão, em si mesmos, nem protegidos nem desprotegidos pelo ordena­
mento tributário. Os efeitos perante o Fisco dependerão da ocorrência,
ou não, de uma das patologias mencionadas.
Ou seja, não é pelo simples fato de ser um negócio indireto ou
fiduciário que, automaticamente, será oponível ao Fisco. Se houver ne­
gócio indireto ou fiduciário em fraude à lei, abusivo ou como instru­
mento de simulação, será inoponível ao Fisco.

9. TERCEIRA FASE: LIBERDADE COM CAPACIDADE


CONTRIBUTIVA
Na terceira fase do debate, exige-se que os atos ou negócios jurí­
dicos celebrados atendam a todos os requisitos construídos nas fases
anteriores (lícitos, antes do fato gerador, sem nenhuma das patologias
mencionadas), mas deixa de haver o predomínio da liberdade e passa a
haver um equilíbrio entre ela e o valor solidariedade social. Ou seja,
não é mais uma liberdade "salvo'', mas uma liberdade "com".
Neste momento, assume importância o tema da capacidade contri­
butiva, seja da perspectiva conceitua! e substancial da figura, seja do
46 - REORGANIZAÇÃO 50CIETÃRIA

ângulo da eficácia jurídica que possui o § 1 ° do artigo 145 da CF/88,


nítida norma programática.
Durante muito tempo às normas programáticas tem sido reservada
uma eficácia meramente negativa no sentido de bloquear a eficácia das
leis que as agridam diretamente. No caso tributário, a capacidade con­
tributiva tem eficácia negativa quando se afirma que a lei tributária é
inconstitucional se instituir imposto em relação à hipótese que não a
denote.
Porém, na concepção moderna de Estado, a norma programática
corresponde a um compromisso assumido perante a coletividade, algo a
ser buscado pela legislação infraconstitucional; assim, a diretriz que vei­
cula corresponde a um preceito positivo que aponta a direção a seguir,
mais do que uma proibição de agir.
Como diretriz positiva, tem por destinatário não apenas o legisla­
dor - ao fazer a lei tributária - mas também o intérprete e aplicador.
Isto significa que não apenas a lei tributária deve atingir manifestações
de capacidade contributiva como também o sentido que dela emana é
de alcançá-las e os atos e negócios que forem celebrados com o intuito
de frustrar esse atingimento - legalmente consagrado - implicam in­
constitucionalidade ou ilegalidade.
Capacidade contributiva é conceito não formal que se vincula, tam­
bém, à idéia de rateio do custeio do funcionamento do Estado (um dever
fundamental) e à isonomia de tratamento perante esse dever. Viola tam­
bém a isonomia não lhe dar integral eficácia, no sentido não apenas de
afastar a exigência tributária de quem não manifesta tal capacidade, mas
de assegurar que todos que a manifestem sejam igualmente tributados.
Nesta fase, fica nítido que o debate sobre planejamento tributário
envolve elementos objetivos, subjetivos e extra-tributários que apresen­
tam contornos imprecisos e ensejam margens de avaliação e visões dis­
crepantes com resultados eventualmente opostos.
Daí a importância de todo planejamento - inclusive no âmbito de
uma reorganização societária - dever ponderar com muita cautela as
múltiplas variáveis e aspectos de cada caso. Não há fórmulas prontas e
MARCO AURÉLIO GRECO - 47

que possam se repetir indistintamente em relação a vários contribuin­


tes. Cada caso deve ser examinado atentamente e à vista das suas cir­
cunstâncias.

1 0. CAUTELAS ESPECIAIS
Apesar de conclusões dependerem do caso concreto, algumas si­
tuações, por si só, recomendam especial atenção. A enumeração que se
segue é um singelo rol de hipóteses freqüentes na prática e que mere­
cem ser objeto de um especial cuidado e atenção, caso apareçam concre­
tamente. O rol não é exaustivo e não significa que os modelos indicados
sejam automaticamente frágeis; como se disse, só o caso concreto, suas
circunstâncias e os motivos reais é que P<?dem apontar a resposta ade­
quada. A menção é apenas para chamar a atenção para a necessidade de
cautela na análise.
Repito: o fato de certa figura ser aqui mencionada não significa
que, em si mesma, esteja repelida ou protegida pelo ordenamento; esta
será uma conclusão a ser extraída do caso concreto e não do exame abs­
trato. O exame abstrato que é feito a seguir - em relação a condutas que
podem ocorrer na prática - ilumina a complexidade do tema, mas, iso­
ladamente considerado, não leva a uma conclusão inexorável. São pon­
tos de preocupação, apenas.
(a) operações em seqüência são as step transactions ou seqüências de
-

etapas em que cada uma só tem sentido se existir a que lhe antecede e se
for deflagrada a que lhe sucede. Uma operação estruturada indica a exis­
tência de um objetivo único, predeterminado à realização de todo conjun­
to e indica a existência de uma causa jurídica única.
Diante de reorganizações societárias em etapas e que tenham o
efeito de reduzir o impacto da carga tributária, por vezes examina-se
separadamente cada uma delas. Diante de uma situação complexa, é
essencial considerar o conjunto como um todo, examinando os vários
aspectos que o cercam. A postura metodológica mais adequada é aquela
que - sem perder de vista as peculiaridades de cada etapa ou dos seg­
mentos de que a operação se compõe - visualiza o conjunto formado e
48 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÃRIA

busca determinar o enquadramento que este, globalmente considerado,


deve ter perante o ordenamento tributário. Vale dizer, ao invés de anali­
sar cada fotografia (etapa) é importante analisar o filme (conjunto). Mais
do que um evento (etapa) é importante interpretar a estória (conjunto).
(b) operações invertidas outra situação que merece cautela ocor­
-

re quando determinada operação assume a feição inversa à que normal­


mente apresenta.
(c) negócios entre partes relacionadas - hipótese relevante é a das
operações realizadas entre partes relacionadas, vale dizer, em que a pos­
sibilidade de a causa da operação obter algum efeito tributário intragru­
po e não uma razão econômica efetiva de mercado.
(d) uso de sociedades - usar sociedades (criando e extinguindo pes­
soas jurídicas no âmbito de uma reorganização societária) merece es­
pecial cautela, pois importante não é apenas sua existência formal, mas
também a identificação do empreendimento que justifica sua existên­
cia. Além disso, a simulação não se dá apenas através de atos ou negó­
cios jurídicos (esta é a simulação objetiva) ; ela também ocorre mediante
o uso de sociedades (simulação subjetiva). Daí a importância de perqui­
rir as razões da existência da pessoa jurídicas, os motivos da sua criação
ou extinção, o empreendimento que explora etc.; vale dizer, questões de
caráter material e substancial e não apenas formal.
Neste item, cabe mencionar - singelamente - algumas hipóteses: (i)
as conduit companies (empresas de passagem) em que uma pessoa jurídica
é criada apenas para servir como canal de passagem de um patrimônio ou
de dinheiro sem que tenha efetivamente outra função dentro do contexto;
(ii) sociedades aparentes, em que existe uma pessoa jurídica que opera
efetivamente, mas não é verdadeiramente formada por dois sócios; (iii)
sociedades fictícias, em que existem verdadeiramente vários sócios, mas a
pessoa jurídica é apenas de papel, não materializa nenhum empreendi­
mento que a lastreie; (iv) sociedades efêmeras ou de curta duração, são
aquelas que nascem para morrer ou para serem extintas depois de alguns
dias ou algumas horas, tão logo compareçam em determinada operação;
(v) interposta pessoa que ocorre quando se utiliza certa pessoa jurídica
MARCO AURÉLIO GRECO - 49

para realizar negócio que se fosse realizado por outra pessoa teria efeito
tributário relevante.
(e) deslocamento da base tributável consistente em fazer com que o
-

resultado que seria auferido por alguém resulte obtido por pessoa jurídica
que se encontre em situação tributariamente mais favorável.
(f) neutralização de efeitos indesejáveis consistente em incluir -
-

em negócios jurídicos típicos - de cláusulas neutralizadoras de seus efeitos


indesejáveis. Vale dizer, as partes, por via indireta, não assumem plena­
mente as conseqüências dos negócios celebrados; "formatam" o negócio
para atender exclusiva ou predominantemente ao seu interesse de sofrer
menor tributação.
A enumeração não é exaustiva, mas permite desenhar o quadro de
preocupações que deve ser enfrentado por todo aquele que tiver de exa­
minar uma reorganização societária.

1 1 CONCLUSÃO
.

O ordenamento jurídico assegura a liberdade individual e a liber­


dade negocial como sua manifestação. Porém, esta não é absoluta e deve
ser exercida dentro do quadro referencial de valores e objetivos que a
própria Constituição Federal traça.
Para utilizar uma expressão corriqueira, é a liberdade com respon­
sabilidade ou, nos termos do inciso I do artigo 3° da CF/88, é a liberda­
de com solidariedade.
Não há respostas prontas, nem soluções mirabolantes. Importante
é acentuar a necessidade de muito estudo em cada caso concreto. Não
basta examinar abstratamente o modelo X ou Y; é indispensável conhe­
cer e ponderar as circunstâncias concretas que cercam cada caso, pois
estas é que irão determinar se e quando os efeitos tributários benéficos
de certa reorganização societária serão ou não oponíveis ao Fisco e se os
contribuintes verão assegurados os resultados tributários pretendidos.
Dever de 1 nformar e
Operações de
Reorganização Societária
- procedimento
, .

preparator10 e as
informações assimétricas

Leandro Santos de Aragão

Advogado em São Paulo


Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da
Bahia
Especialista em Direito Empresarialpela PUC/SP-COGEAE
Diretor Vice-Presidente do IDSA
52 - REORGANIZAÇÃO 50CIETÃRIA

"Use ef the market can be expensive. Negotiating costs money.


Dealing with other persons involves risk, and the less infarmation
onejirm has about the other, the greater the risk. "
(Hebert Hovenkamp. Federal antitrust policy - The law o/
competition and itspractice. 2ª ed. Saint Paul: West Information,
1999, p. 372)

1 . INTRODUÇÃO
Nas operações de reorganização societária, de um modo geral, é
curial a realização de um procedimento preparatório, implementado com
o escopo de investigar, delimitar e quantificar a eficiência gerada com os
atos operacionais. Das grandes operações internacionais - as M&A
(Mergers andAcquisitions) - até a cadeia simplificada de atos praticados
em operações de fusão, cisão e incorporação envolvendo sociedades li­
mitadas de médio/pequeno porte, os atores envolvidos (sócios, acionis­
tas, advogados, auditores, executivos, administradores) perseguem, em
todas elas, um elemento essencial: a informação.
Ultrapassadas as conversas preliminares, nas quais os empresários ini­
ciam uma eventual e futura operação societária, externando (nem sempre,
amplamente) desejos e motivações negociais\ em exercício de sondagem
sinérgica, passa-se, geralmente, à implementação de estudos investigativos
da viabilidade concreta da operação. Atuando em todas as frentes Gurídica,
contábil, econômica, financeira), os envolvidos neste procedimento prepa­
ratório de reconhecimento - conhecido como due diligence - buscam, com
uso de controles próprios, dirimir ou amenizar os efeitos, quase sempre

H á vários motivos para uma cisão, fusão ou incorporação de uma outra sociedade, como,
por exemplo: objetivos estratégicos expansionistas, ganhos si nérgicos, benefícios tributários,
compra de ativos com preços favoráveis, incremento gerencial e tecnológico, proporcionar
incentivos acionários diretos para administradores, elimi nação de divisões corporativas
i neficientes, i ntegrações verticais, ganhos de l iqu idez, proteção contra ameaças
mercadológicas e takeover (cf.: LEMES J Ú NIOR, Antônio Barbosa; RIGO, Cláudio Miessa;
CHEROBIM, Ana Paula Mussi Szabo. Administração financeira: princípios, fundamentos e
práticas brasileiras. Rio de Janeiro: Campus, 2002, p. 6S0-656; G RAVA, J. William. Fusões
e aquisições: motivadores econômicos e estratégicos. ln: Fusões e Aquisições: aspectos
jurídicos e económicos. Jairo Saddi [Org.]. São Paulo: 108, 2002, p. 05-42).
LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO - 53

prejudiciais, daquilo que se conhece como assimetria informacional. Em


uma perseguição implacável à_ aquilatação da veracidade e da qualidade
da informação, os atores negociais lutam, incessantemente, para desven­
dar o emaranhado de informações contábeis, jurídicas e administrativas,
exercitando a capacidade de cotejo da realidade intra-societária com o
lastro informacional construído durante as negociações.
Por razões diversas, contudo, nem sempre isto é possível, e, ato con­
tínuo, a operação implementada não gera o efeito quisto pelos sócios e
acionistas, principalmente quando se busca a criação de um adicional
sobre o valor econômico do patrimônio destes, representado pelas quo­
tas e ações que compõem a estrutura do capital social. O valor residual
alcunhado de "lucro", obtido com o exercício intermitente da empresa
(posta, aqui, no sentido técnico-jurídico de atividade econômica orga­
nizada, em que pese o poliedro "asquiniano") e após a remuneração de
todos os fatores de produção, é o escopo último de qualquer sociedade
empresária (cf., no caso das companhias, art. 2°, caput, da Lei das S/A);
pode-se concluir, então, que a não geração deste retorno para sócios e
acionistas demonstra uma ineficiência econômica deste instrumento de
coordenação, geração e alocação de eficiência nas trocas econômicas que
é a sociedade empresária, posto para gerar diminuição dos custos de
transação e dirimir as falhas naturais do mercado.
De quem seria, então, a responsabilidade pelo não alcance do re­
sultado desejado quando este é ocasionado por falhas nos fluxos infor­
macionais existentes no procedimento preparatório da operação de
reorganização societária?
Falhas de extensão e falhas de percepção teriam o mesmo trata­
mento jurídico de imputação de responsabilidade?
O silêncio, a omissão - caracterizada pelo não fornecimento de
informações -, e/ou o fluxo informacional defeituoso já são motivos
bastantes para perquirição de eventual responsabilidade?
Seria a informação elemento capaz de, se maculada em qualidade e
quantidade, gerar a imputação de responsabilidade em operações socie­
tárias malogradas?
54 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

O objetivo deste estudo cinge-se a uma investigação e demarcação


do dever de informar (Informationspjlicht) dentro do arcabouço jurídico
relativo às sociedades anônimas, e, dentro deste dever, esculpido, basi­
camente, no art. 157 da Lei das S/A, apenas a parcela obrigacional rela­
tiva à prestação de dar ou omitir uma informação, que emerge no momento
de qualquer operação de reorganização societária (incorporação, cisão ou
fusão); deixa-se, aqui, ao lado, propositadamente, o estudo deste fenôme­
no obrigacional na esfera das sociedades limitadas, conquanto elas repre­
sentem, no nosso país, o tipo societário mais utilizado por quem excursiona
pelo campo econômico.
Desta maneira, para tentar responder as indagações acima formula­
das (até mesmo para dizer se é possível a imputação de responsabilidade
societária a alguém), convém demarcar as estruturas basilares de natureza
econômica, em uma tentativa de buscar os quadrantes de toda a funda­
mentação na economia e na sua interpretação própria dos fatos.2 Após a
tentativa de delimitação de alguns pressupostos de cunho econômico

2 Reconheça-se a necessidade cada vez maior dos operadores do direito em conhecer a


teoria econômica, conquanto nossa tradição jurídica ainda penda, e muito, para o lado do
longevo direito românico-germânico que nos ensinam na quase totalidade das Faculdades
de Direito do Brasil. Por óbvio, não devemos refutar, por completo, a tradição j urídica
existente e, muito menos, a essência valorativa que confere morfologia ao direito; porém,
podemos aperfeiçoar, e muito, a interpretação de nosso arcabouço de regras e normas com
uma maior avali ação econômica dos arranjos ju rídicos e os reflexos que tais arranjos acar­
retam no seio social. Para tanto, a teoria do Law & Economics pode nos ser muito útil, j á
que s e presta a uma perquirição econômica d e dado lastro j urídico e suas repercussões
sociais (Cf.COASE, Ronald Harry. The firm, the market, and the law. Chicago: The University
of Chicago Press, 1 990, 2 1 7p; NORTH, Douglass C.. lnstitutions, lnstitutional Change and
Economic Performance. Cambridge, 1 990; WILLIAMSON, Oliver E .. The Mechanisms of
Covernance. Oxford: Oxford Un iversity Press, 1 996; WILLIAMSON, Oliver E.; WINTER,
Sidney G. (Eds.). The Nature of the Firm, Origins, Evolution, and Development. Oxford:
Oxford U niversity Press, 1 993; FORGIONI, Paula. Contrato de distribuição. São Paulo:
Revista dos Tri bunais, 2005; . Os fundamentos do antitruste. 2' ed., rev. e atual.
São Paulo: RT, 2005; SZTAJ N, Rachel. Teoria jurídica da empresa: atividade empresária e
mercados. São Paulo: Atlas, 2004; . Os custos provocados pelo direito. Re­
vista de Direito Mercantil, Industria/, Econômico e Financeiro, Nova Série, nº 1 1 2, out./dez.
de 1 998, p. 75-78; . Notas de análise econômica: contratos e responsabilidade
civil. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Malheiros
Editores, n.º 1 1 1 , p. 09-29, jul .-set. de 1 998; ; VERÇOSA, Haroldo Malheiros
Duclerc. A incompletude do contrato de sociedade. Revista de Direito Mercantil, Indus­
trial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Malheiros Editores, nº 1 3 1 , p. 7-20, j u l .-set. de
2003; SAD DI, Jairo. Crise e regulação bancária: navegando mares revoltos. São Paulo:
Textonovo, 200 1 ; MU NIZ, Joaquim de Paiva. Apontamentos sobre a análise econômica
LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO - 55

(aos quais serão mescladas observações de cunho jurídico), avançar-se­


á sobre o campo do Direito, buscando responder ao questionamento
acima apontado.

2. A INFORMAÇÃO
Não há um conceito jurídico de informação.
O legislador, por maior que fosse seu nível de atrevimento positi­
vista, não chegou a uma proposição capaz de dizer o que é informação.
Por certo, a dogmática que impulsiona o nosso sistema jurídico, com
foco preponderante sobre a decidibilidade de conflitos, a exigir uma
constante decomposição analítica, não permite, aqui, uma proposição
declarativa para abarcar este fenômeno.
Por outro lado, é inegável que a informação, como representação de
um dado concreto, a pairar no mundo fático, acaba por merecer tutela
jurídica, haja vista, notadamente, a faceta subjacente na qual repousa sua
natureza instrumental, de transmissão de dados nas relações humanas, o
que, em última análise, acaba lhe dando status de bem jurídico.3

de certos institutos do direito contratual. Revista de Direito Empresarial lbmec. Rio de


Janeiro: Lumen juris, 2004, vol. li, p. 69-90; SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito
societário. 2' ed., rev. São Paulo: Malheiros, 2002; . Direito concorrencial: as
estruturas. São Paulo: Malheiros, 1 998. MU NHOZ, Eduardo Secchi. Empresa contemporâ­
nea e direito societário: poder de controle e grupos de sociedades. São Paulo: Juarez de
Olivei ra, 2002; SALGADO, Lucia Helena. A economia política da ação antitruste. São
Paulo: Singular, 1 997; AZEVEDO, Paulo Furquim de; FARINA, Elizabeth Maria Mercier
Querido; SAES, Maria Sylvia Macchione. Competividade: mercado, estado e organizações.
São Paulo: Singul ar, 1 997; ROSE-ACKERMAN, Susan. Análise econômica progressista do
d i reito - e o novo di reito administrativo. l n : Paulo Mattos (Coord.). Regulação econômica
e democracia: o debate norte-americano. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 243-280). De
fato, 11 quanto mais economia, mais direito", como asseverou, de há muito, o grande
processual ista Carnelutti, regra que vale, amplamente, para a tomada de consciência do
operador do direito sobre as ferramentas a serem util izadas em seu labor, desde que jungidas,
frise-se, à idéia transmitida pelas palavras de Harriou: "Um pouco de sociologia afasta o
jurista do direito e muita sociologia o traz de volta ".
3 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A liberdade como autonomia recíproca de acesso à
informação. ln: Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justi­
ça e o direito. São Paulo: Atlas, 2002, p. 1 35. Cf., ainda: LAFER, Celso. A reconstrução dos
direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Compa­
nhia das Letras, 1 988, p. 237-272.
56 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

Christoph Fabian, em monografia sobre o dever de informar no


direito civil, cita Pietra Catalã, para quem a informação é um "bem sus­
cetível de apropriação. (. . .) A informação é em primeiro lugar uma ex­
pressão, uma formulação destinada a tornar uma mensagem comunicável.
Ela é então comunicada, ou pode sê-lo, por meio de sinal escolhido para
levar a mensagem a outrem".4
É indubitável que a composição do conceito de informação não
se traduz, apenas, em uma noção estática, da informação em si mes­
ma, como apreensão consciente do fato, mas envolve, também, um
aspecto dinâmico, de troca, de intercâmbio de dados cognoscíveis. Raúl
Ventura ressalta essa essência dicotômica ao afirmar que a expressão
informação abarca não só o conhecimento do fato em si mesmo, mas,
também, o meio pelo qual se chega ao conhecimento de um fato, po­
dendo este conhecimento ser apreendido de três formas: (i) em conse­
qüência da própria autoria do fato, (ii) em razão da percepção direta
de fato alheio e (iii) pelo acesso a meios de conhecimento histórico de
fato alheio.5
A informação é, portanto, a expressão cognoscível de um dado, de
algo presente no mundo fático, e, também, a transmissão deste dado nas
relações humanas, consubstanciando-se em uma das molas propulsaras
de todo o procedimento de conduzir-se segundo a vontade própria, posto
representar o comburente na equação da liberdade humana.

3. Ü PROBLEMA INFORMACIONAL: INFORMAÇÕES


ASSIMtTRICAS, O MORAL HAZARD E A INCOMPLETUDE
CONTRATUAL
Uma das imperfeições do mercado se relaciona ao aspecto infor­
macional.

4 CATALÃ, Pierre. Ébauche d'une théorie juridique de /'information. Recuei/ Da/foz, 1 984,
Chronique, p. 97-98, apud FABIAN, Christoph. O dever de informar no direito civil. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 40
5 VENTU RA, Raúl. Sociedade por quotas. Coimbra: 1 989, vai. 1, p. 280-281 .
LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO - 57

A economia dos custos de transação ressalta, em inúmeras passa­


gens, a questão informacional, sopesando toda a problemática ao derre­
dor de sua obtenção, e struturação (completa e incompleta) e
processamento como um elemento impactante nas transações econô­
micas, transmutando a informação em um valor importante nos jogos
de barganha. Os economistas, então, revelam certa preocupação com o
pilar informacional nas transações econômicas, com o processo de sua
aquisição e sua extensão qualitativa, a implicar a existência, nas trocas
econômicas, de uma informação completa, ou de outra, mais comum,
incompleta. De Ronald H. Coase, para quem os custos de coleta de
informações são um dos elementos estruturantes da noção de custos de
transação, a Douglass North, passando por George Akerlof e Joseph
Stiglitz, "[ t]he costliness of information is the key to the costs of tran­
sacting, which consist of the costs of protecting rights and policing and
enforcing agreements."6
Com o ruir do paradigma clássico da informação perfeita,7 até en­
tão um dos dogmas de que os preços conteriam em si a informação
relevante para os agentes econômicos, emergem novos conceitos sobre
(in)completude informacional nas transações econômicas.8 Afirma Paulo
Furquim de Azevedo que foram especialmente importantes, nessa épo-

6 NORTH, Douglass C .. lnstitutions, lnstitutional Change and Economic Performance.


Cambridge, 1 990, p. 27.
7 Joseph E. Stiglitz afirmou que "[t]he century coming to a dose has seen vast changes i n
economics i n both ideas and methodology. Upon reflection, it i s remarkable, however,
how many of the seeds of advances in this century were sowed i n the previous. 1 would
a rgue that perhaps the most important break with the past - one that leaves open huge
areas for future work - lies in the economics of information. The recognition that information
is imperfect, that obtai ning information can be costly, that there are important asymmetries
of information, and that the extent of information asymmetries is affected by actions of
firms and ind ividuais, has had profound implications for the wisdom inherited from the
past, and has provided explanations of economic and social phenomena that otherwise
would be hard to understand". ( l n The Contributions of The Economics of lnformation to
Twentieth Century Economics. The Quarterly Journal of Economics, November 2000, 1 44 1 -
1 4 78). Sobre a inércia do fluxo informacional n a teoria neoclássica, cf., ainda, crítica de
Celso Furtado: Teoria e política do desenvolvimento económico. São Paulo: Paz e Terra,
2000, p. 1 1 5- 1 1 6.
8 Segundo Joseph Stiglitz, "[i] nformation that is relevant to economic actors is conveyed not
just by prices, but by a host of other variables - including actions of individuais and firms,
and quantities (e.g., inventaries)". (Ob. cit., p. 1 469)
58 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

ca, "os avanços no sentido de se explicar em que se verifica assimetria de


informações, i. e., em que uma das partes envolvidas na transação possui
alguma informação privada, não adquirível sem custos pela(s) outra (de­
mais) parte(s)".9
Percebe-se, então, que os seres humanos, de regra, nas trocas eco­
nômicas, não estabelecem um perfeito fluxo informacional recíproco,
visto que nem todos os elementos formadores de um ambiente ideal
para perfeita declaração de vontade na celebração de um negócio jurídi­
co (uma troca econômica) são perceptíveis, facilmente (ou, utilizando as
matizes econômicas, sem custos) , pela outra parte contratante. Há infor­
mações insertas na "reserva cognoscente" de umas das partes, que, em­
bora importantes para construção e demarcação das linhas limítrofes
negociais, acabam por injetar, no ambiente contratual, células de incer­
teza e obscuridade, ge rando um risco em face da possibilidade de apro­
veitamento oportunista desta informação "reservada" e aumentando os
custos de condução do sistema econômico (os custos de transação) . 10
E, aqui, a assimetria informacional, ao implicar aumento dos cus­
tos de transação, visto que o comportamento racional da parte será, an­
tes de tudo, de precaução, revela a face incompleta do contrato, o
instrumento jurídico-obrigacional de circulação da riqueza por exce­
lência, para antever, definir, regular e dirimir todos os efeitos.
Rachel Sztajn e Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa ressaltam que
"[n]o plano da informação, são elementos vitais no desenho de estraté­
gias comportamentais ou negociais o conhecimento que o agente tem a
respeito de determinado negócio, de uma situação concreta e/ou do co­
nhecimento que a outra pessoa tem. Por isso que a assimetria de infor-

9 AZEVEDO, Paulo Furquim de; FARINA, Elizabeth Maria Mercier Querido; SAES, Maria
Sylvia Macchione. Competitividade: mercado, estado e organizações. São Paulo: Singular,
1 997, p. 38.
1O Para Oliver Will iamson, os custos de transação são "[t]he ex ante costs of d rafting, negotiating,
and safeguarding an agreement and, more especial ly, the ex post costs of maladaptation
and adjustment that arise when contract execution is misaligned as a result of gaps, errors,
omissions, and unanticipated disturbances; the costs of running the economic system 11 •
(WILLIAMSON, Oliver E . . The Mechanisms of Covernance. Oxford: Oxford University Press,
1 996, p. 379)
LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO - 59

mações deve ser considerada, uma vez que interfere na avaliação dos
custos de transação. A distribuição da informação entre contratantes é
ponto central na conclusão de pactos; tem relevância na distribuição de
ônus e vantagens entre contratantes. Daí que se torna possível prever o
equilíbrio que resultará do contrato (se efetivo ou não), a distribuição
do.s ganhos e perdas, e como interpretá-lo quando evento imprevisto a
incidir sobre as prestações".11 E prosseguem os juristas: "Sabe-se que,
na maioria dos contratos celebrados, as partes detêm informações in­
completas, implicando este fato em custos de transação que afetam a
eficiência da estrutura contratual. Se a racionalidade individual leva a
que, como estratégia de negociação, cada contratante tente receber par­
cela dos benefícios gerados pelo negócio e que cada uma delas suporte
os custos da operação, é necessária então a existência de incentivos para
as pessoas que negociam. Qyando não houver benefícios a serem parti­
lhados entre os operadores é comum que o negócio não seja concluído
porque ambos ficariam em situação pior do que a atual."12
Em razão disto, verifica-se a incompletude contratual, consubstan­
ciada em vazios deixados na estrutura negocial, na incapacidade orgâni­
ca contratual de salvar, por completo, a si mesmo, de escamotear-se às
necessidades adaptativas vindouras, ocasionando custos de adaptação
ineficiente, ainda que exista, no sistema jurídico, cláusulas gerais, crista­
lizadas em valores, princípios, standards, que lhe conferem, por meio de
um pensamento sistemático-dedutivo, uma abertura e uma mobilidade,
mobilidade esta que "deve ser entendida em dupla perspectiva, como
mobilidade externa, isto é, a que 'abre' o sistema jurídico para a inserção
de elementos extrajurídicos, viabilizando a 'adequação valorativa', e como
mobilidade interna, vale dizer, a que promove o retorno, dialeticamente
considerado, para outras disposições interiores ao sistema".13

11 SZTAJ N, Rachel; VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. A incompletude do contrato de


sociedade. Revista de Direito Mercantil, Industria/, Econômico e Financeiro. São Paulo:
Malheiros Editores, nº 1 3 1 , p. 1 O, jul.-set. de 2003.
12 SZTAJN , Rachel; VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Ú lt. ob. cit., p. 1 0-1 1 .
13 MARTIN S-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo
obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 341 .
60 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

Assim é que há instrumentos jurídicos úteis para estas situações


em que se verifica uma "inelasticidade" contratual, a exigir reação ime­
diata às novas circunstâncias (cunho casuístico, pois), para (re)adequação
valorativa do negócio, ainda que ditos instrumentos não sejam aplicá­
veis à totalidade do ordenamento, mas, sim, a setores dele, como, v. g. :
(i) a cláusula geral da boa fé objetiva (art. 422 do Código Civil de
2002) , podendo ser vista como elemento funcional de cunho limitador
do exercício abusivo dos direitos subjetivos (Schranken-bzw. Kontroll­
funktion), como elemento funcional de escopo interpretativo contratual,
bem como gênese de deveres especiais de conduta (pjlichtenbegrundende
Funktion) quando: (a) incentiva a conduta colaborativa; (b) proíbe o com­
portamento contraditório; (c) protege a legítima expectativa da outra
parte; (d) impõe o elemento confiança ( Vertrauen) como um dos pilares
do relacionamento contratual, ou seja, "a expectativa mútua de que, numa
troca, nenhuma parte irá explorar a vulnerabilidade da outra'', como ex­
plicita Ronaldo Porto Macedo Jr.14, um dos seguidores da teoria dos
contratos relacionais15, construída por Ian Macneil16, e, que, "[a]o con­
trário dos contratos descontínuos ou pontuais, nos quais, em sua versão ex­
trema, há apenas as partes diretamente envolvidas, os contratos relacionais
ou contínuos costumam envolver amplas e intrincadas 'redes' de agentes e
participantes com uma interação acentuadamente marcada pela solida­
riedade interorganizacional, pela coordenação recíproca e pela confian­
ça mútua"17, premiando, como imprescindíveis condicionantes, a

14 MACEDO JR., Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor. São Paulo:
Max Limonad, 1 998, p. 1 79. Afirma o professor paulista: "O modelo relacional de contratação
não tem apenas uma dimensão descritiva, visando também ampliar a importância de prin­
cípios e mecanismos institucionais que promovam o estímulo a valores de solidariedade,
cooperação, e justiça contratual de caráter welfarista. Nesse sentido, a ampliação do cam­
po de incidência e abrangência de conceito como o de boa-fé visa não apenas fomentar a
reprodução de laços de solidariedade e associações cooperativas, como também atender a
exigências de justiça social, (. .. )." (Ob. cit., p. 1 87).
15 Cf., ainda, sobre a teoria dos contratos relacionais: MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no
Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4' ed .. São
Paulo: RT, 2002, p. 78-86.
16 MACNEIL, lan. Relational contract theory: challenges and queries. Northwestern University
Law Reviem, spring 2000.
17 FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 2002.
LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO - 61

flexibilidade contratual e a possibilidade permanente de renegociação


da feição negocial, a formar uma relação contratual em continuidade,
em permanente reconstrução a cada transformação de determinado ele­
mento fático que incida sobre a moldura negocial;18
(ii) a teoria da imprevisão, com sua cláusula rebus sic stantibus, re­
médio jurídico de reequilíbrio contratual que retrata, fielmente, esta in­
capacidade do homem econômico de prever, no momento da formação
do contrato, todas as modificações de fato que possam vir, extraordina­
riamente, a ocorrer durante o relacionamento contratual, dirimindo o
longevo cânone do pacta sunt servanda;
(iii) o princípio da relatividade dos efeitos dos contratos, a incidir
sobre o objeto, vez que "[s]e o objeto da prestação, recebido pelo credor
em virtude de contrato comutativo, tem defeito oculto que o torna im­
próprio ao uso a que é destinado ou lhe diminui o valor, ou se dele vem
a ser privado em virtude de sentença que reconheça o direito de outrem,
a eficácia do contrato estará comprometida";19
(iv) a função social do contrato (art. 421 do Código Civil de 2002),
que representa, em verdade, não elemento de aplicabilidade no círculo
contratual, entre as partes contratuais, a atingir os vínculos obrigacio­
nais para mutilá-los e reconstruí-los de outra forma, mas, sim, fator
jungido aos "interesses institucionais externos"2º a este círculo, à inci­
dência de efeitos contratuais sobre a esfera de terceiros não participan-

18 Não é diferente a preocupação dos economistas com o elemento confiança (trust), confor­
me relata Oliver Wi ll iamson: "Probably the most expansive treatment of trust in a gaming
context is Partha Dasgupta's chapter on 'Trust as a Commodity'. He begins with the claim
that '[t) rust is central to all transactions and yet economists rarely discuss the notion' ( 1 988,
p. 49). He elaborates as fo llows: 'For trust to be developed between individuais they must
have repeated encounters, and they must have some memory oi previous experiences.
Moreover, for honesty to have potency as a concept there must be some cost involved in
honest behavior. And finally, trust is linked with reputation, and reputation has to be acquired'
( 1 988, p. 59)." (CI. WILLIAMSON, Oliver E .. Ob. cit., p. 259.) Cf., ainda: ROSE-ACKERMAN,
Susan, Trust, Honesty, and Corruption: Reflection on the State-Building Process. European
Journal oi Sociology, Vol. 42, 200 1 , p. 27-7 1 .
19 GOMES, Orlando. Contratos. Rio d e Janeiro, Forense, 1 98 1 , p . 48.
20 SALOMÃO FI LHO, Cal ixto. Função social do contrato: primeiras anotações. Revista de
Direito Mercantil, Industria/, Econômico e Financeiro. São Paulo: Malheiros Editores, nº
1 32, p. 22, out.-dez. de 2003.
62 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

tes do negócio jurídico, mas que carecem de proteção por ditames de


segurança jurídica, de pacificação social e de regularidade eficiente das
trocas econômicas e, também, por incidência de valores estruturantes
postos no texto político (a Constituição) para as ordens social e econô­
mica (ex.: art. 1 70 da Constituição Federal de 1 988).
Outro aspecto a ser, de igual forma, considerado, é a questão da
racionalidade limitada (bounded rationality). Oliver Williamson, ao con­
ceituar a racionalidade limitada, assevera que "[t]his refers to behavior
that is intendedly rational but only limitedly so; it is a condition of
limited cognitive competence to receive, store, retrieve, and process in­
formation. Ali complex contracts are unavoidably incomplete because
of bounds on rationality".21
Por mais que o ser humano tente maximizar seu comportamento em
uma transação econômica, a limitação do conhecimento é da própria es­
sência humana, tema, aliás, que permeou o imaginário profícuo de todos
os filósofos, de Descartes aos neopositivistas, passando por Kant com os
seus Vernunft e Verstand. O pensar e o conhecer, até mesmo nas palavras
de Hannah Arendt, não são plenos. Reflexo de sua própria finitude, o ser
humano é incapaz de pensar, refletir, alcançar um significado, definir um
conteúdo, tudo de modo absoluto. Enfim, há intermitências na cadeia de
atos cognitivos e valorativos: ainda que sonhos, desejos e anseios huma­
nos não sejam passíveis de confinamento, o pensamento e o conhecimen­
to padecem de limitação.
Essa racionalidade limitada, portanto, impede o processamento a
contento de todo o lastro de informações existente, o que, invariavel­
mente, ressalta o aspecto informacional como um dos pontos nevrálgi­
cos de uma relação contratual.
Posto tudo isto, estabelece-se a questão das informações assimétricas.
Há, pois, assimetria informacional quando uma das partes envolvi­
das numa transação detém uma informação imperceptível à outra, que
não poderá capturá-la sem custos.

21 WILLIAMSON, Oliver E .. Ob. cit., p . 377


LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO - 63

Este fenômeno informacional acaba por desaguar em outro, posto


à jusante do procedimento ínsito às trocas econômicas, conquanto pos­
sua igual importância: o risco de utilização da informação privilegiada
pela parte que a detém em benefício próprio, acabando por prejudicar,
em dado negócio de interesses divergentes, a outra parte, mantendo oculta
esta informação ou adotando conduta não observável ou verificável pela
outra, com forte plausibilidade de, ao final, dirimir os objetivos almeja­
dos na transação econômica.
Nestes casos, emerge um outro pressuposto comportamental, pre­
sente nas trocas econômicas, que é o oportunismo, um "[s]elf-interest
seeking with guile, to include calculated efforts to mislead, deceive, obfus­
cate, and otherwise confuse. Opportunism should be distinguished from
simple self-interest seeking, accordance to which individuals play a game
with fixed rules that they reliably obey".22
Por certo, o oportunismo (rectius, a possibilidade de agir de modo opor­
tunista), além da questão do atendimento do auto-interesse com avidez,
traz à baila um componente ético, para o qual há, aliás, o braço político
consubstanciado nas normas jurídicas,23 a marchar, indubitavelmente, so­
bre o campo onde é travada a contenda econômica de interesses ávidos
sobre bens escassos (escassez no sentido econômico), para impor condutas,
ditames, regras, normas, leis. Cabe esta admoestação, aliás, para que se pos­
sa voltar os olhos sobre este elemento - o oportunismo -, por vezes apreen­
dido como dogma, como "cláusula econômica pétrea", a desconhecer uma
versatilidade de comportamentos, nos quais se combinam reações baseadas
em outros fatores motivacionais que não puramente utilitaristas.24

22 WILLIAMSON, Oliver E .. Ob. cit., p. 378.


23 Conforme Edward H. Carr, "[p]olítica e direito estão ind issoluvelmente interl igados pois as
relações de homem a homem em sociedade, que são o objeto da política, também o são
do di reito. O direito, como a política, é um ponto de encontro para ética e poder". (Cf.:
Vinte anos de crise: 19 19- 1 939. Uma introdução ao estudo das relações internacionais. 2'
ed. Brasília: UNB, Instituto de Pesquisa de Rel ações Internacionais - IPRI e Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo, 200 1 , p. 230)
24 Eduardo Giannetti da Fonseca afirma que "[e] nquanto na doutrina utilitarista tradicional,
corno se sabe, 'a natu reza colocou a humanidade sob o governo de dois senhores sobera­
nos, a dor e o prazer', para Hume e Smith não é a uti lidade ou prazer, e sim a imaginação,
64 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

Qyebrando, com maestria, dogmas ineptos deste reducionismo uti­


litarista25, adverte Amartya Sen que "[a] visão da racionalidade como
auto-interesse implica, in ter alia, uma decidida rejeição da concepção
da motivação 'relacionada à ética'. Tentar fazer todo o possível para ob­
ter o que gostaríamos pode ser parte da racionalidade, e isso pode in­
cluir o empenho por objetivos desvinculados do auto-interesse, os quais
podemos valorizar e desejar promover. Considerar qualquer afastamen­
to da maximização do auto-interesse uma prova de irracionalidade tem
de implicar uma rejeição do papel da ética na real tomada de decisão

ou seja, a simpatia e a estima, que recebeu poderes soberanos sobre os homens. A 'vaida­
de' - e não o 'estômago' -governa a humanidade" (ln O mercado das crenças: filosofia
econômica e mudança social. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 1 3 1 ) . Empôs,
assere, com maestria, o Prof. Giannetti da Fonseca que, " [p]ortanto, se for verdade, por
um lado, que a) a educação moral e estética ainda é muito necessária para ajudar a
melhorar a capacidade das pessoas para tirar o máximo de proveito dos recursos cultu­
rais e ambientais existentes, parece igualmente verdade, por outro lado, que b) apenas o
agente individual sabe quais são suas necessidades e, portanto, não há como uma auto­
ridade externa impor a apreciação da 'grande arte' ou suprimir a demanda por 'lixo
cultural e violência'. Enquanto o laissez-faire econômico vulgar dá grande ênfase a b
mas deixa até mesmo de abordar o problema representado por a, os experimentos socia­
listas do século XX tenderam a dar uma certa margem à implementas de a e a demonstrar
os enormes perigos de se negligenciar b, ou seja, o fato de que não existe 'ditadura sobre
as necessidades' nem aptidões impostas. Os problemas da i n i ciativa econômica e do uso
eficiente dos recu rsos existentes só podem ser verdadeiramente resolvidos a partir da
base." (Ob. cit., p. 1 40)
25 Alf Ross já advertiu, embora com conotação genérica, que "[a] pressuposição util itarista
é uma enorme distorção racionalista da vida mental. Reduz o fundamento irracional de
nossas ações à valoração única de que o prazer é preferido à dor e transforma tudo o
mais num cômputo racional de quantid ades de prazer e de dor. A situação verdadeira é
que somos motivados por muitas necessidades e considerações diferentes, que se con­
frontam e lutam num processo irracional de motivação. Estamos submetidos à influência
de uma diversidade de padrões de valoração e preferência que se desenvolvem e se
estabelecem individual e socialmente". (in: Direito e justiça. Bauru: EDI PRO, 2003, p.
339). De igual forma, admoesta Christopher Lloyd que "a realidade estrutural do mundo
soc i a l não é captada em sua concepção teórica pelas abordagens econôm i cas
reducionistas nem por qual quer outra forma de reducionismo ou i nd i v i d u a l i smo
metodológico. As estruturas devem ser entendidas como sociais, isto é, como regras,
papéis, relações e significados compartilhados dentro dos quais as pessoas necessaria­
mente vivem suas vidas e que1 como estruturas generalizadas, existem antes dos indiví­
duos e grupos e organizam seus comportamentos. Ações, eventos e padrões de compor­
tamento só podem ser compreendidos e explicados por referência a essas estruturas,
como a também a intenções individuais, crenças e imperativos psicológicos problemáti­
cos. 'Estrutura social' em geral engloba as chamadas estruturas econômicas e po l íticas,
mas dentro das estruturas sociais há muitos tipos de ação e subestrutura, incl usive econô­
micos e pai íticos, que se referem a objetos, produções e alvos mais específicos" (in As
estruturas da histôria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1 995, p. 8 1 )
LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO - 65

(que não seja alguma variação ou mais um exemplo daquela exótica con­
cepção moral conhecida como 'egoísmo ético')".26
Contudo, mesmo observadas as palavras do economista e filósofo
indiano, com todas as proposições e enunciados jurídicos, aos quais se
somam esforços para inserir deveres de cooperação e solidariedade, não
há um óbice absoluto e intransponível à ação oportunista em algum mo­
mento antes, durante ou após as trocas econômicas, notadamente em ra­
zão da verdadeira noção de liberdade na esfera contratual.27
Surge, então, um risco, que, na literatura econômica, leva o epíteto
de moral hazard ("risco moral", embora o vernáculo não traduza, corre­
tamente, a extensão concreta do significado do termo em inglês), para
expressar o "comportamento pós-contratual da parte que possui uma
informação privada e pode dela tirar proveito em prejuízo à(s) sua(s)
contraparte(s)".28 Pode-se afirmar, logo, avaliado este aspecto compor­
tamental, que há moral hazard "quando a ação das partes num contrato
não é diretamente observável, não está sujeita à negociação e tampouco
pode ser incorporada ao contrato."29
As informações assimétricas e, ressalve-se, a capacidade limitada
do ser humano em processar as informações disponíveis, mesmo que
elas fossem plenas, são, portanto, elementos imbricados nos custos de
transação30, entendidos estes como os custos: a) de elaborar e negociar
os contratos (instrumento jurídico das trocas econômicas); b) de men­
suração e fiscalização dos direitos de propriedade; c) de monitoramento
do desempenho dos parceiros contratuais; d) organização das ativida-

26 SEN, Amartya Kumar. Sobre ética e economia. São Paulo: Companhia das Letras, 1 999, p.
31.
27 Cf. i nteressantíssimo texto do Prof. Tercio Sampaio Ferraz Jr. sobre o esmaecimento do
conceito antigo de l ivre-arbítrio aplicado às relações contratuais e a necessidade de nova
construção desta noção de liberdade ante o sentido moderno de contrato como instrumen­
to de alocação de riscos: A liberdade como autonomia recíproca de acesso à informaçao.
ln: Estudos de filosofia do direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito.
São Paulo: Atlas, 2002, p. 1 1 9-1 26.
28 Cf. Paulo Furquim de Azevedo et alii, ob. cit., p. 39.
29 SADDI, Jairo. Crise e regulação bancária: navegando mares revoltos. São Paulo: Textonovo,
200 1 , p. 1 46.
30 SADDI, Jairo. Ob. cit., p. 1 44.
66 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

des; e) os custos de adaptações ineficientes às mudanças do sistema


econômico. 31
O problema informacional, logo, é um dos pilares objeto de dilapi­
dação constante pelos estudiosos do Law & Economics, que o vêem como
um dos principais pontos estruturantes da visão mais realística da teoria
econômica, capitaneada, atualmente, pela denominada Nova Economia
Institucional.
Qyal seria, então, a atuação do direito sobre este problema infor­
macional? Por certo, a demarcação de tais pressupostos econômicos é
importante para entendermos a sistemática jurídica relativa à tutela da
informação, com o emergir do dever de informar, notadamente em rela­
ção às operações de reorganização societária.

4. A TUTELA JU RÍDICA DA INFORMAÇÃO: O DIREITO, O DEVER


E A LIBERDADE DE INFORMAR
A informação é objeto de tutela pelo direito, que a regula, basica­
mente, a partir de duas perspectivas clássicas: um direito à informação
(Infarmationsrecht) e um dever de informar (Infarmationspjlicht).
No direito comum (civil), dentro do grande círculo no qual as in­
formações recebem tratamento jurídico, a regra vigente para a maior
parte delas é a da liberdade. Vale dizer, o que vigora, para a maioria das
informações, é a possibilidade de informar por parte de quem a detém;
é o detentor quem decide, nas relações cotidianas, se dá, ou não, a infor­
mação, se a transmite para determinada pessoa, ou não. Aqui, o regra­
mento jurídico clássico não incide sobre a esfera de liberalidade do detentor
da informação, para determiná-lo a conduzir-se de determinada forma
(publicizar a informação) ou de outra (permanecer, eternamente, silente).
Nestes casos, anotam os civilistas, em que pese a liberdade, as pro­
posições jurídicas atuam muito mais com relação a determinados deve­
res anexos (Nebenpjlichten), relacionados com a veracidade da informação

31 AZEVEDO, Paulo Furquim de. Ob. cit., p . 58.


LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO - 67

e a lealdade da conduta: se alguém, que não tinha obrigação de infor­


mar, resolve fazê-lo, a informação repassada deve ser, então, a correta e a
completa. 32
Mas há, ao lado dessa liberdade, mesmo nos sistemas positivistas, um
regramento impondo a observância de determinado comportamento de
explicitação da informação detida; emerge, então, o dever de informar
(Infarmationspjlicht), de freqüência costumeira em microssistemas jurídicos
como o relativo ao direito do consumidor, ao direito societário e ao direito
concorrencial (regulatório), nos quais pairam outros interesses a serem so­
pesados em relação ao fim que se propõe tutelar a norma.
No direito do consumidor, por exemplo, a hipossuficiência econô­
mica de um dos sujeitos negociais (o consumidor) faz com que o direito
atue de modo intenso: a possibilidade desmedida de ocorrência do fe­
nômeno da assimetria informacional, dada a incapacidade do consumi­
dor de, com recursos parcos e próprios, capturar, coletar, perquirir a
veracidade e processar as informações necessárias à manifestação da
vontade, incrementando a possibilidade de ocorrência do moral hazard,
obrigou o legislador a abrir as comportas da barragem que seguraria, se
vigesse um sistema de total liberdade, todo o fluxo caudaloso de infor­
mações necessárias à ocorrência de atos de consumo. Importante notar
que, no direito consumerista, este dever de informar transborda o reci­
piente consubstanciado em um mero instrumento contratual, para vi­
gorar em todas as fases negociais, seja ela pré-contratual, contratual e
pós-contratual, tendo a norma jurídica dado uma atenção especial aos
comportamentos verificados em momentos anteriores à celebração do
contrato, nas tratativas contratuais, quando a confiança e outros valores
de cooperação e solidariedade são de extrema importância para uma
lídima, livre e legítima construção mental do fenômeno volitivo.
No direito concorrencial, ainda que o enfoque seja outro, porquan­
to o objetivo é preservar as estruturas do mercado, tutelando a concor-

32 FABIAN, Christoph. O dever de informar no direito civil. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002. p. 54.
68 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

rência, vivo também está o dever de informar (art. 54, §4°, da Lei Fede­
ral nº 8.884/1994), elemento importante no controle dos atos que pos­
sam macular os ditames da ordem econômica (art. 54, caput e §2°, da
Lei Federal nº 8.884/1994).33
É de registrar a importância do próprio fluxo informacional para a
fluência das práticas concorrenciais, já que, como salienta Calixto Salo­
mão Filho, dissertando sobre o conhecimento valorativo ínsito ao direi­
to e a necessidade da teoria jurídica concretizar, nas relações sociais e
econômicas, os valores sociais desejados, há necessidade de incutirem­
se, nas relações empresariais travadas no mercado, ares de cooperação,
como forma de eliminar as assimetrias informacionais existentes no jogo
concorrencial, reduzindo efeitos econômicos e sociais negativos (p.ex.,
crises de superprodução ocasionadas por ausência de informação entre
os produtores); neste caso, "[a] repartição e discussão das informações,
que nada mais são que o reflexo do princípio democrático na vida eco­
nômica, permitem e até sugerem a necessidade de formação coletiva
(ainda que não estatal) do conhecimento".34
Assim é que, conquanto se privilegie a liberdade propagada pelos
civilistas puros, esta amplitude da liberdade de informar obedece a ou­
tros parâmetros, até mesmo na parcela jurídica dedicada às relações pri­
vadas, como forma de colmatação aos ditames necessários à efetividade
de direitos humanos fundamentais35, exigindo, por conseguinte, em exer­
cício de ponderação de interesses sobre a própria dignidade da pessoa
humana, um dever genérico de veracidade nas relações interpessoais,
uma sinceridade recíproca no trato humano, um estado de consciência
em que não se deve mentir para o outro, tampouco enganar a si mesmo.

33 Cf., também, sobre o problema i nformacional e a importância da regulamentação geral das


formas de publicidade para o sistema concorrencial: SALOMÃO F ILHO, Calixto. Direito
concorrencial: as condutas.São Paulo: Malheiros: 2003, p. 85-90.
34 SALOMÃO F ILHO, Calixto. O novo direito societário. 2ª ed., rev. São Paulo: Malheiros,
2002, p. 2 1 .
35 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2004, p. 1 88-1 96. Cf., ainda: STEI NMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a
direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004.
LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO - 69

Exalta-se, então, a boa-fé objetiva, entendida como conceito jurí­


dico indeterminado ou, trilhando o caminho positivista, como cláusula
geral,36 representando o epicentro de todo o desenvolvimento teórico
relativo ao dever de informar, já que, além da existência de uma necessi­
dade jurídica de obter determinado dado fático, se faz presente, na rela­
ção jurídica travada, uma imperiosidade comportamental lídima e ética
de colaboração das partes contratuais, de legítima expectativa de um
comportamento adverso hígido, como algo anexo ao dever principal e
sobreposto ao cumprimento efetivo, espontâneo e tempestivo da pres­
tação obrigacional.
Com efeito, há, também, outro elemento jurídico relacionado com
o problema informacional, notadamente para imitir um componente
valorativo, de cunho ético, nas relações privadas: o dolo por omissão ou
reticência37• Ainda que seja um instrumento reativo - a vigorar ex post
facto, haja vista a anulabilidade (art. 171, II, do Código Civil de 2002)
como o remédio prescrito pelo legislador para tal situação -, o tratamen­
to normativo imposto ao dolo por omissão (art. 147 do Código Civil de
2002)38, descortina, como questão de fundo, a presença da assimetria in­
formacional nas relações privadas. Trata-se de regra genérica, a incidir
sobre o lastro informacional que seja essencial para a correta expressão da
vontade e, por conseguinte, celebração do negócio jurídico, valendo, como
regra de conduta, para as situações envolvendo os lemons (gíria americana
para os carros usados) apontados por George Akerlof em seu clássico
ensaio sobre informações assimétricas,39 que nada mais são que uma ex-

36 MARTINS-COSTA, Judith. Ob. cit., p. 273-377.


37 GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 5' ed. Rio de Janeiro: Forense, 1 977, p. 5 1 2.
Cf., ainda, Silvio Rodrigues: "O silêncio, via de regra, não gera qualquer efeito jurídico.
Todavia, dele podem resultar obrigações para o contratante silente, se existir o dever de
enunciar uma circunstância. Trata-se do dolo negativo, da reticência maliciosa, que se
configura pela violação de um dever de agir; ao invés do vício de consentimento resultar
de manobras ativas do agente, ele decorre de su a inércia, de seu si lêncio, de sua omissão
proposital . " (in Dos vícios de consentimento. São Paulo: Saraiva, 1 9 79, p. 1 65-1 66).
38 "Art. 1 47. Nos negócios jurídicos bilaterais, o silêncio intencional de uma das partes a
respeito de fato ou qualidade que a outra parte haja ignorado, constitui omissão dolosa,
provando-se que sem ela o negócio não se teria celebrado."
39 AKERLOF, George A .. The Market for "Lemons": Qua/ity Uncertainty and the Market
Mechanism. Quarterly Journal of Economics, Volume 84, lssue 3 (Aug., 1 970), p. 488-500.
70 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÃRIA

pressão anglo-saxónica para os conhecidos vícios redibitórios, de tão pró­


diga inserção nos códigos civilistas de influência napoleónica.
A omissão dolosa, quando imbricada com o problema informacio­
nal, revela, então, sua faceta econômica: tal omissão nada mais é que a
visão do jurista sob um dos pressupostos comportamentais capazes de
impactar os custos de transação, qual seja, o oportunismo. Omissão do­
losa e oportunismo são, em verdade, as vestes mais bonitas que, respec­
tivamente, o jurista e o economista pus eram e m u m mesmo
comportamento humano, qual seja, o da busca iníqua da satisfação de
interesses próprios nas suas relações interativas: enfim, ambos estão in­
timamente ligados às assimetrias informacionais.
Neste ponto, a possibilidade de utilização de uma informação privi­
legiada e essencial, em omissão dolosa (como quer o jurista), ou em ação
oportunista (como quer o economista), gera uma alocação ineficiente de
bens, permitindo a ocorrência de falhas de mercado (como, p. ex. , o fenô­
meno da "seleção adversa"). Enfatize-se, porém, que tudo não deve sub­
sumir-se à "curva do contrato" ou à "caixa de Edgeworth", como expressões
gráficas da eficiência alocativa nos quadrantes da economia do bem-estar,
teoria pela qual ninguém consegue aumentar seu bem-estar sem que seja
reduzido o bem-estar de outra pessoa (o ótimo de Pareto).40 Ainda que
novos paradigmas estejam em derredor dos debates econômicos, a res­
saltar aspectos comportamentais e institucionais, como propugnam
Oliver Williamson e Douglas North, o direito repele um caráter me­
ramente instrumental e despido de valor, como quer impingir-lhe algu­
mas "análises econômicas do direito'', para, isso sim, assumir um papel
relevante de introdução de considerações éticas e de outros valores na já
disseminada estrutura do "comportamento auto-interessado"; aliás, a pre­
visão de anulação do fato jurídico concretizado com dolo omissivo é pro­
va cabal da eticidade e valoração que o direito pode, ainda que não na

40 Cf. apontamentos críticos da otimalidade de Pareto e outros paradigmas da economia do


bem-estar social desenvolvida por E. K. Hunt, mesmo que seja para refutá-los, total ou
parcialmente, in: História do pensamento económico. 5' ed. Rio de janeiro: Campus, 1 985,
p. 400-425.
LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO - 71

plenitude, impingir às trocas econômicas, até mesmo como forma de tor­


ná-las mais eficientes (menos custosas), por incentivar valores facilitado­
res da fluidez econômica como, v. g., a cooperação e a solidariedade.41
Assim, apesar deste instrumento de "reação jurídica", posto com o -
intento de repelir a omissão dolosa do sistema jurídico, cujo delinea­
mento normativo, aliás, revela-se o mesmo dado à ação dolosa, o esfor­
ço concentrar-se-ia, isso sim, em definir as hipóteses nas quais há
necessidade de construção jurídica de um dever de informar. Apontar,
teoricamente, em quais situações isso se impõe como um dever princi­
pal, e, não, como um dever anexo, tal qual um corolário da boa-fé, é
tarefa árdua. Talvez, o fenômeno econômico da assimetria informacio­
nal conjugado ao standard da boa-fé objetiva e a outros valores abarca­
dos pelo sistema jurídico possam servir de ponto de partida para uma
tentativa de construção dessa teoria geral da tutela jurídica da informa­
ção; todavia, outros interesses e elementos fáticos deverão, também, ser
levados em consideração, principalmente quando a informação revela
ser o combustível da conduta humana de agir livremente.42
O certo é que se deve preferir, sempre, na seara da tutela jurídica da
informação, a liberdade com as devidas temperanças: a boa-fé objetiva
exercita, aqui, o papel de lastro garantidor da correição das relações ju­
rídicas, desempenhando um importante papel de estabilização nas rela­
ções sociais e econômicas, ao reforçar o elemento subjetivo confiança,
de reflexo comportamental, e incidir, diretamente, sobre o moral hazard,
para restringi-lo ou, até mesmo, dirimi-lo.43

41 Cf.: SEN, Amartya K .. Ob. cit., p. 74-106; . The Possibility of Social Choice.
America Eonomic Review, nº 89, 1 999.
42 Cf., Hannah Arendt. A condição humana. 1 Oª ed. Rio de Janeiro: Forense Un iversitária,
2004. Assevera a filósofa alemã: "Nenhuma outra atividade humana precisa tanto do dis­
curso quanto a ação. Em todas as outras atividades o discurso desempenha papel secundá­
rio, como meio de comunicação ou mero acompanhamento de algo que poderia igual­
mente ser feito em silêncio. (... ) Na ação e no discurso, os homens mostram quem são,
revelam ativamente suas identidades pessoais e singulares, e assim apresentam-se ao mun­
do humano, enquanto suas identidades físicas são reveladas, sem qualquer atividade pró­
pria, na conformação singular do corpo e no som singular da voz. " (Ob. cit., p. 1 92)
43 Cf.: FORGIONI, Paula Andrea. A interpretação dos negócios empresariais no novo códi­
go civil brasileiro. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São
·
Paulo: Malheiros Editores, nº 1 30, p . 07-38, abr.-jun. de 2003.
72 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

Tal reforço, advirta-se, não implica eliminação dos riscos, que são
próprios da atividade econômica e, também, da liberdade humana, não
a liberdade egocêntrica dos ideais iluministas, mas a liberdade conec­
tiva, a determinar que "a liberdade de um começa onde começa a li­
berdade do outro"44• Aliás, para manutenção da eficiência do sistema
econômico, é importante que os atores negociais corram o risco de
"perder", de adotar uma estratégia equivocada, de mover uma peça de
modo inadequado no jogo travado sobre o tabuleiro das relações eco­
nômicas; o que é defeso, isso sim, é que esse risco advenha de informa­
ções erradas, incompletas, confusas, de comportamentos falsos, de
condutas iníquas e ignominiosas. Existindo a "jogada equivocada" e,
por conseguinte, a perda econômica, desde que decorrentes do embate
legítimo entre os agentes econômicos, impossível adotar interpreta­
ções de equalização de ganhos econômicos ou de imposição de perda
àquele que se saiu vencedor no jogo econômico, sob os auspícios de
uma pretensa "justiça" (ainda que se prefira, igualmente, o adorno da
"equidade"), vez que tal adoção levaria a um desvirtuamento da pró­
pria boa-fé, com geração de ineficiência ao colocar todos na mesma
tábula rasa da equiparação econômica. 45
Isto não representa, contudo, que a teoria jurídica não deva sopesar
elementos imperiosos a um ideal desenvolvimentista, para colmatação de
um processo de conhecimento social de caráter inclusivo, a configurar, como
salienta Calixto Salomão Filho, uma democracia económica.46 Vige, aqui, a
necessidade de uma teoria jurídica desenvolvimentista, capaz de alcan­
çar, por meio de uma mescla de valores e princípios, um "relativismo
jurídico baseado em valores de democracia econômica"47, de derribar
crenças de um determinismo econômico decrépito e, ato contínuo, de
conferir ascensão primordial ao autoconhecimento e à autodefinição

44 FERRAZ J U N IOR, Tercio Sampaio. A liberdade como autonomia recíproca de acesso à


informação. Ob. cit., p. 1 3 7
45 FORGIONI, Paula A. Contrato de distribuição. São Paulo: RT, 2005, p. 500-566.
46 SALOM Ã O F I L HO, Cali xto. Regulação e desenvolvimento. l n : _______ (Coord .).
Regulação e desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 29-63.
47 SALOMÃO FILHO, Calixto. Ú lt. ob. cit., p. 33.
LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO - 73

das instituições e valores econômicos e sociais como pressupostos ne­


cessários ao processo desenvolvimentista.
Ressalte-se, aliás, que o direito não é, em si, um custo - o "direito­
custo" -, a exigir maior investimento pelo detentor da atividade econô­
mica nas situações tuteladas, estruturalmente, por normas postas para
viger no ordenamento. Creio que a visão do direito como custo implica,
muito mais, um exercício numérico-financeiro sobre as normas jurídi­
cas, teoria a qual, na verdade, não sopesa valores outros ínsitos ao arca­
bouço jurídico. A questão do jeito que foi posta pelos defensores do
"direito-custo" carece, com o devido respeito, de maior profundidade: o
direito, antes de ser um custo financeiro, é um instrumento de alcance
de objetivos sociais e econômicos, de expansão do espectro social de
incidência dos ganhos econômicos, de manutenção da higidez da or­
dem econômica (repelindo, p.ex., o abuso do poder econômico), elimi­
nando, com isso, até mesmo os custos provocados pelas mazelas
individualistas e refratárias a valores maiores como cooperação, solida­
riedade, busca da igualdade e promoção do bem de todos.
O direito - notadamente quando há forte eficácia (enfarcement) -
pode ser até mesmo um "eliminador" de custos, (i) quando ordena, de
modo eficaz, um ambiente institucional sólido, (ii) quando delineia, ainda
que de modo sumário (sem complexidade), as rotas e os caracteres faci­
litadores para maximização da utilidade e, precipuamente, (iii) quando
incentiva os comportamentos econômicos mais saudáveis, nos quais es­
tejam presentes valores éticos, cooperativos e solidários, inserindo a ob­
servância da confiança no lastro comportamental premiador da norma
jurídica e acarretando, ato contínuo, o estímulo jurídico necessário à
fluidez, coesão e eficiência das trocas econômicas.
Por isso é que vale a exortação de Rachel Sztajn de que "[a]o Direito,
no que concerne ao funcionamento de mercados, compete disciplinar a
estrutura de forma a definir tutelas e garantias para que a possibilidade de
satisfação das necessidades individuais não leve a injustiças sociais".48

48 Cf., Teoria jurtdica da empresa: atividade empresária e mercados. São Paulo: Atlas, 2004, p. 64.
74 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

Este é, pois, o direito em sua essência, um direito marcado por


vetores axiológicos, cristalizados em princípios jurídicos que, otimiza­
dos em um criativo procedimento de ponderação49, transformam o mais
incolor, insípido e inodoro dos artigos de um diploma legal em algo
vivo, vibrante e encantador, em algo decorrente da felicitação eficiente
da própria ciência jurídica50•
Assim, em que pesem a liberdade humana e a existência do risco da
"estratégia equivocada", como apontados acima, há elementos impres­
cindíveis ao labor desenvolvimentista, cooptados e implementados pelo
direito-instrumento, todos necessários à cristalização dos princípios
estruturantes do desenvolvimentismo do Estado Brasileiro, postos no
art. 170 da Constituição Federal de 1988, como instrumentos pró-ati­
vos de efetivação dos objetivos da República Democrática do Brasil, de
construir uma "sociedade livre, justa e solidária" (art. 3°, I, da CF de
1988), de "garantir o desenvolvimento nacional" (art. 3°, II, da CF de
1988), de "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigual­
dades sociais e regionais" (art. 3°, III, da Carta Política de 1 988) e de
promover o bem de todos (art. 3°, IV, da CF/1988), assegurando a estes
uma "existência digna, conforme os ditames da justiça social" (art. 170,
caput, da Constituição Federal de 198 8).51
Estes elementos imprescindíveis ao labor desenvolvimentista, apon­
tados por Calixto Salomão Filho como "princípios que devem reger o
esforço desenvolvimentista" (ou, ainda, princípios regulatórios desen­
volvimentistas), são:
(i) o princípio da redistribuição, por meio do qual se expande, de
forma estruturada e linear, o consumo pela sociedade e se elimina as ine­
ficiências alocativas da concentração do conhecimento econômico, já que
incrementa a base de coleta de dados sobre as preferências individuais;

49 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos.
4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 5S.
50 Cf.: BORGES, José Souto Maior. Ciência feliz. 2' ed. São Paulo: Max Limonad, 2000.
51 Cf.: GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 7 988 (interpretação e
crítica). 6ª ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 200 1 , p. 1 77-282.
LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO - 75

(ii) o princípio da diluição dos centros de poder econômico e polí­


tico, com a conseqüente difusão de informações e conhecimento por
toda a sociedade;
(iii) o princípio do estímulo à cooperação, com a introdução de
princípios cooperativos na esfera econômica e a eliminação do indivi­
dualismo exacerbado. 52
No tocante ao direito societário, igual carga valorativa se impõe
sobre o exercício de interpretação e aplicação. Como adverte Eduardo
Secchi Munhoz, "o direito societário não pode ser entendido como um
ramo do direito privado destinado a regular os interesses dos agentes
econômicos, exercendo o papel exclusivo de pacificação de conflitos,
numa concepção liberal de laissez faire. Deve-se reconhecer ao direito
societário a função de constituir instrumento de implementação de políti-

52 SALOMÃO F I LHO, Calixto. Ú lt. ob. cit., p. 38-39. Afirma, ainda, o Prof. Calixto Salomão
Filho, di ssertando sobre as características regu latórias, o esforço cooperativo e a questão
informacional, que uma das formas de superação do dilema do pdsioneiro (refrega entre
individualismo e cooperativismo), situação na qual a "a solução cooperativa só não é obti­
da pela impossibil idade de informação sobre o comportamento esperado da outra parte e
em função do conseqüente comportamento defensivo de um em relação ao outro agente"
(idem, p. 51 ),passa pela necessidade de institu ições e valores que induzam e permitam, de
modo i ntermitente, a cooperação (idem, p. 52), elimi nando o vírus especulatório do merca­
do; tal necessidade induz, como característica regu latória, "a capacidade de diferenciar,
entre os estímulos, as formas soc ialmente positivas de cooperação, i.e., aquelas que permi­
tem o autocumprimento de regras e criam nos agentes disponibil idades de busca de inte­
resses supra-individuais e aquelas negativas para o interesse público, i.e., a cooperação
que visa reforçar posições de poder econômico e abusar do consumidor. A diferenciação
está, exatamente, na ligação da cooperação com a aquisição do conheci mento econômi­
co. Compreendida essa ligação, é fácil, de um lado, entender que o estímulo à cooperação,
por assim dizer, 'positiva' se faz através do incentivo de troca ampla de informações entre
agentes econômicos {empresa e consumidores). Como já vi sto, a existência de informação
é condição essencial para a cooperação" (idem, p. 54). Outro ponto sali entado pelo Prof.
Calixto Salomão Filho é a "necessidade de convivência continuada" (idem, p. 55), como
requisito mínimo de existência de regu lação indutora da cooperação positiva; neste caso,
salienta o professor, " [é) aconselhável que a regulação desincentive os agentes especuladores,
aqueles que, por hipótese, têm interesse em entrar, fazer lucro em curto prazo e depois
retirar-se, vendendo sua participação com lucro. Um tal tipo de agente, tipicamente, não
tem compromi sso com a continuidade da relação, ou, na terminologia econômica, 'com a
próxima rodada do jogo'. Seu incentivo para cooperar, cumprindo voluntariamente suas
obrigações, sem adotar comportamentos estratégicos em relação aos concorrentes, é míni­
mo" (idem, ibidem). Estas observações percucientes do Cal ixto Salomão F i l ho se aproxi­
mam, bastante, da noção de "estado de expectativa de longo prazo" ou "estado de confian­
ça" desenvolvida por John Maynard Keynes como fator determinante da escala de eficiên­
cia marginal do capital (Cf. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo:
Atlas, 1 982, p. 1 23- i 35).
76 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

cas públicas que objetivem a consecução dos valores consagrados pelo


ordenamento jurídico. Assim, não cumpre ao direito societário apenas
a disciplina dos chamados interesses intrasocietários (interesses dos
sócios)". 53
É indubitável, pois, que o fenômeno informacional, notadamente
na seara dos direitos de cunho econômico (o direito societário, o direito
do mercado de capitais, o direito contratual etc.), há de receber trata­
mento jurídico, no sistema normativo, com lastro nestes princípios de­
senvolvimentistas, que, a bem da verdade, não se cingem, em significado
e conteúdo, ao âmbito estatal regulatório, ao direito administrativo eco­
nômico, mas, sim, correspondem às normas jurídicas que se espraiam
pelas relações privadas ocorridas no relevo econômico, apontando para
um direito econômico ( Wirtschaftsrecht) macroscópico, para um direito
da economia.
Assim é que os ditames de cooperativismo e de diluição dos cen­
tros de poder econômico e social mitigam a tão propalada liberdade no
campo informacional, para exigir, como imperativos desenvolvimentis­
tas, de concretização dos valores da ordem jurídica, uma atuação efetiva
do detentor da informação, sempre, por óbvio, que puder fazê-lo sem
sacrifício de outros valores mais importantes e de outros interesses mais

53 M U N HOZ, Eduardo Secchi. Ob. cit., p. 27. E prossegue Eduardo Secchi Munhoz: "Nesse
sentido, o modelo societário brasileiro deve necessariamente se orientar à consecução dos
valores consagrados pela Constituição Federal, ao disciplinar o exercício da atividade em­
presarial, não se preocupando com as questões de índole exclusivamente privada. Essa
concepção deve estar na base dos estudos e preocupações dos juristas. ( . . . ) Apreendida a
propriedade em seu aspecto dinâmico e funcional, a lei societária deve reconhecer ao
empresário um poder funcional (direito-função), no sentido de que é atribuído ao titular,
não para atender aos seus interesses egoísticos pessoais, mas para a realização de uma
final idade precisa, no caso, não apenas a produção de lucros, mas o desenvolvimento
econômico e social, idéia que está imanente nos valores enunciados pela Constituição
Federal, (. .. )" (idem, p. 29-30). Em idêntico sentido, cf.: PARENTE, Norma. A lei das socie­
dades anônimas sob a ótica dos princípios constitucionais. Revista de Direito Mercantil,
Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Malheiros Editores, nº 1 34, p. 72-76, abr.­
jun. de 2004; SALOMÃO F I LHO, Calixto. Direito empresarial público. Revista de Direito
Mercantil, Industria/, Econômico e Financeiro. São Paulo: Malheiros Editores, nº 1 1 2, p. 9-
1 8, out.-dez. de 1 998; FERREIRA D E MACEDO, Ricardo. Limites de efetividade do di reito
societário na repressão ao uso disfuncional do poder de controle nas sociedades anôni­
mas. Revista de Direito Mercantil, Industria/, Econômico e Financeiro. São Paulo: Malheiros
Editores, nº 1 1 8, p. 1 67-1 98, abr.-jun. de 2000.
LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO - 77

prioritários, que, num exercício de ponderação, poderão ser prejudica­


dos ou destruídos com a sua publicização.

5 . INFORMAÇÃO ASSIM�TRICA, INCOMPLETUDE CONTRATUAL E


O DIREITO SOCIETÁRIO
É escopo último de qualquer sociedade empresária, vista como um
instrumento econômico de coordenação, geração e alocação de eficiên­
cia nas trocas econômicas, gerando economicidade (diminuição dos cus­
tos de transação) e dirimindo as falhas naturais do mercado, a obtenção
do lucro, o valor residual alcançado após a remuneração de todos os
fatores da produção.
Para tanto, pratica a empresa, ou seja, exercita-se, diuturnamente,
a atividade econômica organizada, criando uma estrutura corporativa
capaz de ser eficiente na alocação de recursos e reduzir os custos de
transação, agregando pessoas, bens e tecnologia e demarcando os me­
canismos a serem utilizados para que esta estrutura possa correspon­
der a um centro de tomada de decisões negociais, coordenando todos
os fatores utilizados na organização da empresa para obtenção do re­
sultado almejado.
Neste contexto, Rachel Sztajn assevera que " [o] que melhor defi­
ne firmas é a substituição das trocas econômicas, típicas das estruturas
de mercado, pela coordenação entre agentes sob a supervisão do em­
presário que recebe o valor residual, isto é, o remanescente líquido
produzido pela operação depois de remunerados os demais fatores da
produção. O empresário é, ele também, um especialista, e sua remune­
ração aparece no resíduo financeiro produzido pela atividade. Segun­
do Alchian e Demsetz, o problema inclui a comparação entre administrar
recursos e alocá-los em operações de mercado, o que explica por que a
pessoa que monitora a equipe recebe o valor residual".54

54 SZTAJN, Rachel. Teoria jurldica da empresa: atividade empresária e mercados. São Paulo:
Atlas, 2004, p. 1 9 1 .
78 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

Prossegue, mais adiante, Rachel Sztajn: ''A Teoria da Firma visa ex­
plicar as organizações econômicas e as razões que levam a sua constitui­
ção, com ênfase nas falhas de mercado, nas externalidades, na assimetria
informacional e nas economias de escala. Em mercados perfeitos ou de
informação perfeita e completa, ou se todos os contratos fossem comple­
tos, no sentido que os economistas dão à palavra, as empresas ou firmas
não seriam necessárias, não haveria motivação econômica para criá-las."55
Ora, nesse círculo concêntrico de tomada de decisões (firma), pro­
cessam-se inúmeras relações intersubjetivas de organização do feixe de
contratos que o caracteriza, estando presente, aqui, também, a assime­
tria informacional. A própria incompletude de que se reveste a natureza
contratual da sociedade empresária é decorrente, em parte, dessa mácu­
la informacional, a qual se espraia pela face interna daquele círculo con­
cêntrico, nas relações travadas no seio societário, entre acionistas e
administradores, entre os próprios acionistas e entre os próprios admi­
nistradores, envolvendo, aqui, até, duas importantes questões:
(i) uma, já debatida, sobre a separação entre propriedade e poder de
controle;56 e
(ii) outra, relativa à teoria do agency, por meio da qual se verifica
uma diferença quantitativa e qualitativa do espectro informacional en­
tre o principal (parte prejudicada em razão do uso privilegiado de uma
informação) e o agent (detentor de uma informação privada), detento­
res de interesses divergentes. 5 7
Rachel Sztajn e Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa, aliás, asseve­
ram que "[n]o plano da análise dos contratos incompletos, a área mais
promissora de aplicação das sugestões dos economistas, até o momento,
é a das relações internas, isto é, a das relações entre acionistas e, particu-

55 5ZTAJ N, Rachel. Idem, p. 1 94.


56 Cf., por todos: COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima.
3' ed. rev., atual. e corrigida. Rio de janeiro: Forense, 1 983.
57 Cf. os i nstigantes papers de Michael C. Jensen, professor da H arvard Business School: i)
Self-interest, Altruism, Incentives, & Agency Theory; e ii) Theory of the Firm:Managerial
Behavior, Agency Costs and Ownership Structure. l n : Foundations of Organizationa/
Strategy. Harvard: H arvard University Press, 1 998.
LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO - 79

larmente, acionistas e administradores e estas relações são parte da teo­


ria do agente-principal. O problema fica claramente evidenciado quan­
do se tem em conta o interesse do administrador nos resultados da
atividade desenvolvida pela sociedade de que não é membro, ao lado da
dificuldade no garantir que seu comportamento seja exatamente o que
lhe é solicitado, ou, ainda, de quanto se empenhará para obter os resul­
tados e se esses resultados são os melhores para os acionistas em face das
circunstâncias presentes. ( .. ) Nestes casos, a incompletude contratual é
manifesta porque a assimetria de informações permite que condutas
oportunistas, típicas das relações de execução continuada, se manifes­
tem nessa relação de direito societário. Formas de governança devem
considerar que a incompletude negocial pode resultar em ações menos
benéficas para os acionistas porque os padrões legais deixam de prever
certos comportamentos." 58
Assim é que a informação no seio societário implica, de regra, um
elemento de ponderação dos riscos que se pretende assumir, sem, entre­
tanto, esquecer, por completo, os ares cooperativos que devem permear
as relações privadas. Até a própria existência da informação, ou mesmo
seus caracteres qualitativos e quantitativos, representam uma medida de
aquilatação para aqueles que travam as relações internas, servindo-lhes
para verificação da conduta a ser seguida, a depender do componente
psicológico de aversão/propensão à assunção dos riscos negociais. Ain­
da que o direito venha a tutelar o mundo informacional, para impor
condutas comissivas em dados momentos, de prestar informações ade­
quadas, suficientes e imediatas, o risco de assimetrias persiste, em que
pese a possibilidade de imputação posterior de responsabilidade pela
ocorrência de ilícito.
Revela-se, aí, então, a importância de um perfeito ambiente insti­
tucional, com técnicas de corporate govenance, premiando a transparên­
cia, o amplo e profícuo fluxo informacional, os arranjos contratuais

58 SZTAJN, Rachel; VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. A incompletude do contrato de


sociedade. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo:
Malheiros Editores, nº 1 3 1 , p. 1 6, j u l .-set. de 2003.
80 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

eficientes e as regras de compliance, com o conseqüente equacionamento


dos custos do agency, 59 enfim, é essencial a existência de instituições60
sólidas nos quadrantes da vida societária.

6. Ü PROCEDIMENTO PREPARATÓRIO: O OVE DIL/CENCE E A


ASSIMETRIA INFORMACIONAL
Nas operações de reorganização societária, há a prática empresarial
de realização de um procedimento preparatório, para verificação da via­
bilidade da operação, com discriminação de eventuais contingências
mensuráveis e capazes de influenciar na quantificação econômica dos
ativos negociados.
Nesta etapa preliminar, as partes (notadamente aquela que está ad­
quirindo, em sentido lato, uma outra sociedade empresária) buscam a in­
terpretação realística das informações repassadas pela sociedade empresária
objeto do desejo aquisitivo (por meio de documento contendo declara­
ções), para apuração de sua fidedignidade, num exercício, basicamente
nesta primeira etapa, de levantamento das informações.
Para tanto, a sociedade adquirente municia-se de material humano
qualificado (advogados, contadores, economistas, auditores, especialis­
tas em marcas e patentes, administradores de empresas), a quem com­
petirá tal trabalho de depuração informacional, com verificação da higidez
contábil, jurídica e econômica da sociedade a ser adquirida.

59 CAMINHA, Uinie. Eficiência alocativa das normas de direito societário em relação ao


acionista mi noritário. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro.
São Paulo: Malheiros Editores, n.º 1 1 ó, p. 1 <J4-1999, out.-dez. de 1 999.
60 Segundo Douglass C. North, " [i] nstitutions are the rules oi the game in a society ar, more
lormally, are the humanly devised constraints that shape human interaction. ln consequence
they structure incentives in human exchange, whether política!, social, or econom ic." (cf.,
lnstitutions, lnstitutional Change and Economic Performance. Cambridge, 1 990, p. 3). Con­
ceito idêntico, conquanto mais condensado, foi posto no paper l ido por Douglass North na
cerimônia de entrega do Prêmio Nobel de Economia, em 09. 1 2. 1 993, quando afirmou que
" [i] nstitutions are the humanly devised constraints that structure human interaction. They
are made up of formal constraints (e.g., rules, laws, constitutions), informal constraints (e.g.,
norms oi behavior, conventions, self-imposed codes oi conduct), and their enforcement
characteristics. Together they define the incentive structure of societes and specifically
economies." [Cf. Economic Perfomance Through Time. The American Economic Review,
Volume 84, lssue 3 (Jun., 1 994), p 360].
LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO - 81

O procedimento preparatório (due diligence), então, reveste-se como


um importante mecanismo de redução das assimetrias informacionais,
já que se destina a perquirir todas as informações fornecidas pela socie­
dade a ser adquirida, e, precipuamente, de conduta preventiva com o
escopo de mitigação de comportamentos indesejados (o moral hazará).
Este procedimento, todavia, coaduna-se, muito mais, com o lado
externo da operação, com o intercâmbio negocial entre as duas socieda­
des empresárias.61
O que nos interessa, aqui, isso sim, é o enfoque interno da operação.

7. A TUTELA DA INFORMAÇÃO NO DIREITO SOCIETÁRIO (LEI


DAS 5/A): O DIREITO À INFORMAÇÃO
(/NFORMATIONSRECHJ} E O DEVER DE INFORMAR
(fNFORMATIONSPFLICHT)
O aspecto informacional é, indubitavelmente, o cerne da preocu­
pação do legislador e, saliente-se, do regulador do mercado de capitais;
tanto isto é verdade que é recorrente, no locus do mercado bursátil, o
adágio segundo o qual a informação "é o combustível do mercado".
De fato, é a informação que permite, delimita e incrementa as tran­
sações com valores mobiliários, posto permitir que as pessoas superavitá­
rias (os investidores), se assim desejarem, convirjam as suas reservas (ou
parte delas) para determinada decisão de investimento no mercado de
capitais, com a aquisição de valores mobiliários. Mas não é só: atento ao
componente "informação assimétrica", e objetivando, precipuamente, a
tutela dos interesses das minorias acionárias, o legislador imitiu, no orga­
nograma jurídico societário, o dever de informar, insculpindo-o, basica­
mente, no art. 157 da Lei das S/A (há, frise-se, outros artigos deste diploma
legal em que igual dever está inserido).

61 Para um estudo mais aprofundado sobre due di/igence, cf.: BRUNA, Sérgio Varella; NEJM,
Edmundo. Due diligence identificando contingências para prever riscos futuros. ln:
-

Jairo Saddi (Org.). Fusões e Aquisições: aspectos jurídicos e econômicos.São Paulo: IOB,
2002, p. 205-2 1 9.
82 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

O dever de informar é o ponto antípoda do direito à informação


pertencente ao acionista. Direito inderrogável e irrenunciável, o direito
à informação é um direito reconhecido ao acionista para eficaz tutela de
todos os seus direitos essenciais arrolados nos incisos I a V do art. 109
da Lei das S/A (e outros igualmente essenciais espraiados na lei acioná­
ria), servindo de instrumento imprescindível à intervenção, participa­
ção e fiscalização dos acionistas na vida societária, sempre observados
os limites legais e estatutários.
Modesto Carvalhosa, aliás, aponta que "[o] dever de informar dos
administradores corresponde ao direito de ser informado dos acionistas
em geral e dos acionistas minoritários em especial. Tal direito inclui-se
entre os essenciais, previstos no art. 109 da lei, qual seja o de fiscalizar.
Trata-se de prerrogativa que não admite restrição".62
Discordo, no entanto, da lição de Modesto Carvalhosa, de amálga­
ma entre o direito de fiscalização e o direito à informação, visto que não
vislumbro identificação plena destas duas coisas: conquanto tais direi­
tos possam, em dado momento, ser miscíveis, nem toda informação que
deva ser transmitida ao acionista tem o escopo de permitir o exercício
da fiscalização, do mesmo modo que o direito de fiscalização não se
esgota, singelamente, na prestação de informações aos acionistas.
Nesta divergência venial, aliás, parece contradizer-se o próprio professor
Carvalhosa, quando afirma, ao dissertar sobre disclosure, e dando um exemplo
típico de que informação nem sempre é veiculada com escopo fiscalizatório
- porém, neste caso específico, como um pressuposto para atuação merca­
dológica - que "[a] publicidade de fatos relevantes (fui! disclosure) é o sis­
tema que coloca os acionistas da companhia e os investidores em situação
de avaliarem a oportunidade, o preço e as condições dos negócios de aqui­
sição, e a alienação de valores mobiliários emitidos pela companhia".63

62 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas, 3º volume: arts. 138 a


235. 3' ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 325. No mesmo sentido de Carvalhosa,
reduzindo o direito à info rmação a algo agregado ao direito de fiscalização, cf.: BULGARELLI,
Waldirio. Regime jurídico da proteção às minorias nas 5/A. São Paulo: Renovar, 1 998, p. 89;
63 CARVALHOSA, Modesto. Ú lt. Ob. cit., p. 327.
LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO 83 -

Em outra passagem, Modesto Carvalhosa parece reforçar esta contra­


dição, ao escrever que "[o] dever de informar (fali disclosure), nesse particu­
lar, tem por finalidade permitir aos acionistas que permaneçam como tais
ou não, e, conseqüentemente, da conveniência ou não de outros investido­
res ingressarem, por substituição ou subscrição, no quadro acionário da com­
panhia ou como seus debenturistas".64 Por certo, se há pessoas interessadas
em ingressar no quadro acionário, estas não são, ainda, acionistas, nem de­
têm o direito essencial do acionista de fiscalizar os negócios sociais, o que
nos permite concluir que direito de fiscalização e direito à informação não
são sinônimos jurídicos.
Interessante notar, ademais, a preocupação do legislador brasileiro
com a informação no âmbito societário. 65
As angústias legislativas devem ter sido desmedidas, porquanto até
tutelajurídico-penal desta informação foi lançada no ordenamento, o que,
mesmo sob os auspícios mais modernos de intervenção penal estatal mí­
nima, e considerando a natureza instrumental da informação societária,

64 CARVALHOSA, Modesto. Idem, p. 328.


65 Para aprofundamento do di reito à informação nas sociedades empresárias, com ênfase no
direito português: TORRES, Carlos Maria Pinheiro. O direito à informação nas sociedades
comerciais. Coimbra: Almedina, 1 998. Cf., com relação às sociedades anônimas portugue­
sas, a Seção Ili (Direito à informação) do Código de Sociedades Comerciais, com as altera­
ções e acréscimos do DL nº 280/1 987 e DL nº 328/1 995, que traz à baila os artigos 288
(estatuindo direitos mínimos à informação), 289 (dissecando as informações preparatórias
da assembléia geral), 290 (versando sobre a prestação, em assembléia geral, de informa­
ções "verdadeiras, completas e elucidativas 11 que permitam ao acionista "formar opinião
fundamentada sobre os assuntos sujeitos a deli beração), 291 (regulando um di reito coletivo
à informação), 292 (disciplinando o inquérito judicial em razão da recusa de prestar infor­
mação) e 293 (regra de legitimação ordinária para exercício do di reito à informação). Ain­
da, para um estudo sumário do direito à informação no direito alemão: VIANA, Bonfim.
Situação jurídica do acionista -direito alemão. Brasília: Brasília Jurídica, 2002, p. 1 7 1 - 1 92 .
N o direito germânico, a regra motriz do direito à informação (zum Auskunftsrecht des
Aktionars) exige uma informação verídica e de boa-fé (§ 1 3 1 Absatz 2): "§ 1 3 1 Auskunftsrecht
des Aktionars: 1 ) Jedem Aktionar ist auf Verlangen in der Hauptversammlung vom Vorstand
Ausku nft über Angelegenheiten der Gesellschaft zu geben, soweit sie zur sachgema&en
Beurteilung des Gegenstands der Tagesord nung erforderlich ist. Die Auskunftspflicht erstreckt
sich auch auf die rechtlichen und geschaftlichen Beziehungen der Gesellschaft zu einem
verbundenen Unternehmen. Macht eine Gesellschaft von den Erleichterungen nach
§ 266 Abs. 1 Satz 3, § 276 oder § 288 des Handelsgesetzbuchs Gebrauch, so kann jeder
Aktionar verlangen, da& ihm in der Hauptversammlung über den Jahresabschlu& der
Jahresabschlu& in der Form vorgelegt wird, die er ohne Anwendung dieser Vorschriften
hatte. 2) Die Auskunft hat den Grundsatzen einer gewissenhaften und getreuen Rechenschaft
zu entsprechen; (. .. }"
84 - REORGANIZAÇÃO 50CIETÃRIA

ainda acarreta dificuldade de compreensão da gênese-psicológica legisla­


tiva (talvez, só uma análise histórica seja capaz de explicitar os motivos).
Desta maneira, o caput do art. 1 77 do Código Penal sanciona, se o fato
não constituir crime contra a economia popular, com reclusão, de 1 (um)
a 4 (quatro) anos, e multa, aquele que "promover a fundação de sociedade
por ações, fazendo, em prospecto ou em comunicação ao público ou à
assembléia, afirmação falsa sobre a constituição da sociedade, ou ocultan­
do fraudulentamente fato a ela relativo"; é apenado nos mesmos moldes
"o diretor, o gerente ou o fiscal de sociedade por ações, que, em prospecto,
relatório, parecer, balanço ou comunicação ao público ou à assembléia, faz
afirmação falsa sobre as condições econômicas da sociedade, ou oculta
fraudulentamente, no todo ou em parte, fato a elas relativo".66
Revelada a preocupação da norma penal com a higidez da infor­
mação societária, quais seriam os caracteres quantitativos e qualitativos
imputados pela norma societária à informação, para ter como satisfeito
o direito à informação e cumprido o dever de informar?
Uma perquirição histórica é capaz de ajudar-nos a responder esta
indagação.
Dissertando sobre o confronto entre as opções legislativas de regular
a vida interna da companhia, ou com redução da liberdade do administra­
dor (escolha européia), ou com manutenção incólume desta liberdade,
obrigando-o, entretanto, a divulgar os atos da companhia (via americana),
Alfredo Lamy Filho, com a maestria que lhe é peculiar, fez o seguinte
relato histórico, que vale a transcrição literal e integral pelo conteúdo: ''A
escolha entre as opções constitui, para os americanos, o que LOUIS LOSS,
no seu clássico 'Securities Regulation' chamou de a 'batalha das filosofias': a
luta entre os que se batiam por um agravamento das punições, na linha
das conhecidas 'blue sky laws', adotadas por quase todos os Estados da

66 Para um estudo completo sobre o tema, cf.: COSTA JR., Paulo José; PEDRAZZI, Cesare.
Tratado de direito penal econômico vai. 1: direito penal das sociedades anônimas. São
-

Paulo: RT, 1 9 73. A util ização de informação relevante ainda não divulgada ao mercado
(insider trading) passou, também, com a reforma da Lei de Mercado de Capitais implementada
pela Lei Federal nº 1 0 .303/200 1 , a ser objeto de reprimenda criminal (cf. art. 27-D da Lei nº
6.835/1976 com a alteração da Lei nº 1 0.303/2001 ).
LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO - 85

América do Norte, e os que sustentavam que nenhum agravamento de


sanção, ou controle de mérito, protegeria o acionista e o público contra o
procedimento fraudulento, indo apenas coibir o funcionamento normal
dos negócios honestos (v. I, p. 121). ( ... ) Nessa 'guerra' teve influência
decisiva o livro de L. BRANDEIS (Other People's Money), publicado em
1914, com suas máximas, que se tornaram célebres, de que 'a luz do sol é
o melhor dos desinfetantes' e 'a luz elétrica o mais eficiente policial' (LOSS,
1961, p. 123) preconizando a solução de divulgar tudo o que se passava no
interior dos gabinetes, de levar ao público o conhecimento de todos os
fatos relevantes da empresa, abandonando a velha orientação de que 'o
segredo é a alma do negócio'. (. . . ) A filosofia do 'disclosure' foi a vencedo­
ra nos Estados Unidos, em 1934, com a edição da 'Securities Act' e a
criação da 'Securities and Exchange Commission', universalmente co­
nhecida pela sua sigla 'SEC'. Sustentava-se que, para o investidor, essas
providências deveriam produzir basicamente dois efeitos: impedir, ou pre­
venir, algumas transações fraudulentas, que não resistiriam à luz da pu­
blicidade; e melhorar o nível de julgamento dos 'experts', dos entendidos
- ou dos que deviam entender os informes e os dados divulgados, especi­
ficamente, os corretores e os grandes investidores - o que, de alguma for­
ma, deveria refletir-se no mercado, e acabaria filtrado para o investidor
comum, através de seus conselheiros. Daí o 'Securities Act' ser chamado 'a
lei da verdade nos títulos'. ( .. ) Num resumo pitoresco, de que nos dá conta
LOSS, afirmava-se que o Congresso, com a nova lei, 'não excluía o inali­
enável direito do cidadão de fazer tolices', mas tentava 'prevenir que ou­
tros o fizessem de tolo' (1961, p. 125)."67
Ora, é cediço que vige, no seio societário, ofaliandfair disclosure,68 filiou­
se, a estrutura jurídica brasileira, pois, à visão histórica norte-americana.

67 LAMY FILHO, Alfredo. O dever de divulgar fato relevante e a obrigação de manter sigilo
na oferta pública para aquisição de controle. ln A Lei das 5.A.: pareceres. 2' ed. Rio de
Janeiro: Renovar, vai. li, 1 996, p. 380-381 .
68 Cf.: BOULOS, Eduardo Alfred Taleb; SZTE RLING, Fernando. O Novo Mercado e as Práti­
cas Diferenciadas de Governança Corporativa: exame de legal idade frente aos poderes
das Bolsas de Valores. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro.
São Paulo: Mal heiros Editores, nº 1 25, p. 96- 1 1 3, jan.-mar. de 2002. Sal ientam os auto­
res: "O princípio da eficiência pode ser entendido como um princípio jurídico de natureza
86 - REORGANIZAÇÃO 50CIETÁRIA

Modesto Carvalhosa afirma que o "primeiro fundamento do regi­


me de disclosure é o dever de informar, que cabe a todos os administra­
dores. Ao fornecerem aos acionistas, aos investidores e ao público
informações sobre os negócios da companhia, fazendo-o acurada e pron­
tamente, os administradores colocam tais pessoas numa posição de au­
toproteção, na medida em que se tornam capazes de adquirir ou alienar
os valores mobiliários com pleno conhecimento dos fatos negociais re­
lacionados com a companhia que os emitiu".69
Toda a eficácia do regime do fui! disclosure passa, entretanto, pela
capacidade de assimilação do conteúdo informacional pelos seus desti­
natários, algo que, ligado a um absentismo assemblear elevado no coti­
diano das sociedades anônimas brasileiras, revelam a incapacidade (rectius,
ineficiência) do sistema normativo societário em fazer cumprir o regi­
me jurídico de tutela da informação em toda a sua extensão.
De qualquer forma, a informação societária há de obedecer a as­
pectos qualitativos e quantitativos, quais sejam:
(i) temporal, vale dizer, a revelação da informação há de ser atual,
oportuna (timely disclosure) e imediata (immediate release), para que che­
gue ao conhecimento de todos, impedindo prejuízos pela procrastina­
ção no fornecimento da informação;
(ii) de veracidade, já que as informações hão de ser autênticas, re­
presentando a expressão verídica de determinado dado fático;

programática cuja finalidade maior é aproximar o mercado de capitais da concorrência


perfeita. Em atendimento a esse princípio, o CMN, a CVM e as Bolsas de Valores, como
órgãos reguladores, devem prover o mercado de capitais com os meios físicos, os mecanis­
mos e o arcabouço normativo que tornem a cotação dos valores mobiliários o mais próxima
possrvel do efetivo valor das companhias enlissoras, bem como reduzam os custos de transa­
ções entre os investidores. O meio encontrado para a implementação desses objetivos no
mercado de capitais é a ampla divulgação de informações sobre as companhias e os valores
por elas emitidos, conhecida como full an d fai r disclosure, que implica assegurar aos investi­
dores, de modo uniforme, o mesmo nível de conhecimento. De tão importante a função
desempenhada pela disc/osure, ela foi erigida como princípio central dos mercados de capi­
tais em todo o mundo. A reforma do mercado de capitais brasileiro, realizada em 1 976, foi
toda estruturada em torno desse princípio, interpretado como essencial à eficiência do mer­
cado, e expressamente previsto no art. 4º, inc. VI da Lei 6.385/1 976. " (0b. cit., p. 1 01 - 1 02).
69 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anõnimas: v. 3, arts. 138 a 205.
3' ed.rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 328.
LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO - 87

(iii) de precisão, porquanto as informações hão de ser precisas, re­


fletindo, exatamente, o que esta ocorrendo no seio societário. A infor­
mação passada ao acionista/público, portanto, há de permitir a avaliação
concreta e profunda dos interessados na tomada de uma decisão;
(iv) de clareza, na medida em que deva ser transmitida sem remen­
dos, de modo lacunoso, obtuso, confuso, rebuscado, sendo passível de
apreensão intelectiva com uma única e lesta leitura do interessado;
(v) de objetividade, evitando a veiculação excessiva e prolixa, sem
concatenação e fluência, a incutir dúvida no acionista/investidor em ra­
zão de elementos desnecessários à sua avaliação;
(vi) de uniformidade, a prestigiar a veiculação de conteúdo iguali­
tário e necessário para os investidores/acionistas que detenham a mes­
ma capacidade de obtenção/absorção da informação;
(vii) de extensão espacial, devendo ser prestigiada a amplíssima
capilaridade do acesso informacional (ainda que o locus seja, simples­
mente, uma assembléia geral ordinária), de modo que a informação possa
chegar a todos os interessados, como instrumento mais eficaz para a
tomada de decisão de todos os acionistas/investidores. 70
No mercado de capitais, é imperativo desenvolvimentista que seja
assegurado, como um dos alicerces fundamentais do "funcionamento
eficiente e regular dos mercados de bolsa e de balcão" (art. 4°, III, da Lei
Federal nº 6.3 85, de 07 de dezembro de 1 976 a Lei do Mercado de -

Capitais), "o acesso ao público a informações sobre os valores mobili­


ários negociados e as companhias que os tenham emitido" (art. 4°, V1,
da Lei de Mercado de Capitais).71 Compete à Comissão de Valores

70 Em Portugal, o art. 72, 1 , do Código dos Valores Mobiliários, diz que "deve ser completa,
verdadeira, actual, clara, objectiva e lícita a informação respeitante a valores mobili ários, a
ofertas públicas, a mercados de valores mobiliários, a ofertas públicas, a mercados de
valores mobili ários, a actividades de intermediação e a emitentes, que seja susceptível
de influenciar as decisões dos investidores ou que seja prestada às entidades de supervisão
e às entidades gestoras de mercados, de sistemas de liquidação e de sistemas centralizados
de valores mobiliários".
71 Cf., sobre o "princípio da proteção d a transparência d e informações" no mercado d e capi­
tais: MOSQUERA, Roberto Quiroga. Os princípios informadores do direito do mercado
financeiro e de capitais. ln: (Coord.). Aspectos atuais do direito do mercado
financeiro e de capitais. São Paulo: Dialética, 1 999, p. 269-270.
88 - REORGANIZAÇÃO SocrETÃRIA

Mobiliários, então, ter atuação efetiva, desprovida de tibieza, com o fim


de prevenir ou corrigir situações anormais de mercado (art. 9°, § 1 º, III,
da Lei de Mercado de Capitais), utilizando os instrumentos postos pela
lei para fiscalizar permanentemente as atividades e os serviços do mer­
cado de valores mobiliários, bem como a veiculação de informações re­
lativas ao mercado, às pessoas que dele participem e aos valores nele
negociados (art. 8°, III, da Lei de Mercado de Capitais)72, criando um
ambiente institucional cooperativo no qual todos os elementos necessá­
rios à tomada de uma decisão de investimento estejam explícitos.
Ao que parece, o ambiente regulatório presente, hoje, no mercado
de capitais brasileiro, decorrente dos esforços normatizadores da CVM
desde 2002, é desenvolvimentista, conquanto nossa lei acionária, mes­
mo com a Reforma de 2001 e as modificações por esta introduzidas
(por exemplo, a divisão em fatias proporcionais idênticas de ações ordi­
nárias e ações preferenciais), ainda seja incentivadora de condutas con­
centracionistas do poder.73
No ambiente regulatório, entretanto, as "pré-condições institucionais",
para usar a expressão do Calixto Salomão Filho74, revelam-se na preocupa­
ção constante da nossa Comissão de Valores Mobiliários com o problema
informacional, como condição essencial para eficiência e regularidade do
mercado; explicita-se, ainda, na própria difusão do conhecimento econô­
mico como forma de evitar sua concentração e, por conseguinte, as graves

72 Cf., ai nda, os arts. 1 9, §52, 11, 20, li, 2 1 -A e 22, §12, incisos 1, li, V, VI e VII, da Lei n2 6.835/
1 976. Destaque-se: "Art. 22. ( ... ) § 1 2• Compete à Comissão de Valores Mobiliários expedir
normas aplicáveis às companhias abertas, sobre: 1 natureza das i nformações que devam
-

divulgar e a periodicidade da divulgação; ( ... ) VI - a divu lgação de deliberações da assem­


bléia geral e dos órgãos de administração da companhia, ou de fatos relevantes ocorridos nos
seus negócios, que possam influir, de modo ponderável, na decisão dos investidores do mer­
cado, de vender ou comprar valores mobili ários emitidos pela companhia; VII - a realização,
pelas companhias abertas com ações admitidas à negociação em bolsa ou no mercado de
balcão organizado, de reuniões anuais com seus acionistas e agentes de mercado de valores
mobiliários, no local de maior negociação dos títu los da companhia no ano anterior, para a
divulgação de informações quanto à respectiva situação econômico-fi nanceira, projeções de
resultados e resposta aos esclarecimentos que lhes forem solicitados; ( ... ). "

73 Cf.: SALOMÃO FI LHO, Calixto. Direito concorrencial: as estruturas. São Paulo: Malheiros,
1 998, p. 23 2-240.
74 Cf.: SALOMÃO FILHO, Cal ixto. Regulação e desenvolvimento. ln: Regulação e desenvol-
vimento. (Coord.). São Paulo: Malheiros, 2002, p. 54.
LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO - 89

ineficiências alocativas, com atos da CVM nitidamente indutores da conduta


cooperativa - com a procedimentalização (dueprocess cfclause) desta parcela
da atividade econômica que é o mercado de capitais - e de explícita preocu­
pação jurídica com os valores capturados em processo de formação do co­
nhecimento econômico do mercado (como, p.ex., a possibilidade de
participação efetiva de todos na formação e aperfeiçoamento do lastro re­
gulatório do mercado de capitais com os editais de audiência pública das
instruções normativas - cf. art. 8°, § 3°, I,da Lei nº 6.385/1976 e arts. 26 a 29
da Portaria do Ministério da Fazenda de nº 327, de 1 1 de julho de 1997.
Aliás, a recente alteração de artigos da I CVM 409 pela I CVM 41 1
corrobora, de modo irrefutável, a atuação de incentivo à cooperação di­
fusora do conhecimento econômico da CVM brasileira.
Outrossim, mecanismos auto-regulatórios, como os postos pela BO­
.
VESPA para estruturar o chamado Novo Mercado e os Níveis Diferen­
ciados de Governança Corporativa, ainda que caracterizem soluções de
cunho contratual (com adesão das companhias interessadas em negociar
seus valores mobiliários nestes pregões segmentados), denotam, se imbrica­
dos com o arcabouço regulatório sólido mantido pela CVM, o desenvolvi­
mentismo jurídico presente na regulação do nosso mercado de capitais.
Destacam-se, dentre outras medidas de governança corporativa efui!
disclosure presente nos respectivos regulamentos, a proibição de emissão
de ações preferenciais no Novo Mercado e a necessidade de manutenção
de um percentual mínimo de 25% para as ações em circulação (o free
jloat), como determina os itens 3.1, v, e 3.3. do Regulamento do Novo
Mercado e as regras do Nível 1 de Governança Corporativa: é indiscutí­
vel que, como questão de fundo, tais medidas revelam um nítido caráter
desenvolvimentista, porquanto, ao determinarem a desconcentração do
poder, ampliam a base formadora do conhecimento econômico e, por con­
seguinte, geram uma eficiência alocativa no nosso mercado de capitais.75

75 Cf., a propósito: O mercado de capitais: sua importância para o desenvolvimento e os


entraves com que se defronta o Brasil. BOVESPA. Elaborado por Tendências - Consultoria
I ntegrada, maio/2000; Desafios e oportunidades para o mercado de capitais brasileiro.
BOVESPA. El aborado por MB Associados, junho/2000.
90 - REORGANIZAÇÃO Soc1ETÃR1A

Além disso, a CVM editou, recentemente, com lastro no art. 19, § 5°,
II, da Lei de Mercado de Capitais, a Instrução Normativa nº 400 (ICVM
400), em 29 de dezembro de 2003, a qual determina no seu art. 38, caput,
que o prospecto de distribuição de valores mobiliários deve conter "infor­
mação completa, precisa, verdadeira, atual, clara, objetiva e necessária, em
linguagem acessível, de modo que os investidores possam formar criterio­
samente a sua decisão de investimento". Agregaram-se, aqui, ao dever de
informar determinados caracteres que o qualificam, destacando-se a objeti­
vidade e a clareza, que o tornam idôneos para gerar a eficiência almejada no
mercado, porquanto permitem a perfeita avaliação pelo investidor médio,
incapaz, de regra, de fazer uma avaliação pormenorizada da situação econô­
mico-contábil da companhia emissora dos valores mobiliários.76
Nesta mesma ICVM 400, aliás, há um conjunto de regras de con­
dutas relativas ao aspecto informacional das ofertas públicas de distri­
buição de valores mobiliários. Sobressaem-se, como padrões mínimos
de transparência, diligência e de compliance:
(i) o art. 48, I (restrição informacional durante a preparação da oferta,
evitando o uso de informação privilegiada e a existência do .front run­
ning), IV (abstenção de manifestação na mídia durante a oferta, sobre
esta ou sobre o ofertante), V (dever de informar relacionado à emissora
ou à oferta, a partir do momento em que a oferta se torne pública, sem­
pre observados os princípios relativos à qualidade, transparência e igual­
dade de acesso à informação);
(ii) o art. 49, que representa a obrigação da emissora, do ofertante e
das instituições intermediárias em assegurar a precisão e a conformida­
de de toda e qualquer informação fornecida aos investidores com as

76 Há um sem-número de regras postas nas i nstruções normativas da CVM tratando da ques­


tão informacional, capazes de propiciar, se uma pesquisa profunda fosse feita, um trabalho
só sobre elas. Ressaltem-se, aqui, no entanto: a ICVM 409 (com as alterações da ICVM 4 1 1
e da ICVM 4 1 3), que regula, dentre outras coisas, a divulgação de i nformações dos fundos
de investimento, principal mente nos seus arts. 39, 40, 4 1 , 68, 7 1 , 1 1 0, li, 1 1 5 e 1 22; e a já
citada ICVM 400, destacando-se, além dos artigos citados no texto, os Anexos li (documen­
tos e informações exigidas para o registro) e Ili (o prospecto), com atenção especial, neste
último anexo, para os pontos 4 (informações relativas à oferta), 5 ( fatores de risco), 6 (situa­
ção financeira) e 7 (informações relativas às companhias emissoras).
LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO - 91

informações contidas no prospecto, seja qual for o meio utilizado para


publicizá-las; e,
(iii) o art. 56, esculpido sob o epíteto "VERACIDADE DAS IN­
FORMAÇÕ ES", que determina, no seu caput, ser o ofertante o res­
ponsável pela veracidade, consistência, qualidade e suficiência das
informações prestadas por ocasião do registro e fornecidas ao mercado
durante a distribuição, devendo, ainda, a instituição líder da oferta pú­
blica tomar todas as cautelas e agir com elevados padrões de diligência,
respondendo pela falta de diligência ou omissão, para assegurar que (art.
56, § 1°, da ICVM 400):
(a) as informações prestadas pelo ofertante são verdadeiras, con­
sistentes, corretas e suficientes, permitindo aos investidores
uma tomada de decisão fundamentada a respeito da oferta
(art. 56, § 1°, I, da ICVM 400); e
(b) as informações fornecidas ao mercado durante todo o prazo
de distribuição, inclusive aquelas eventuais ou periódicas
constantes da atualização do registro da companhia e as cons­
tantes do estudo de viabilidade econômico-financeira do
empreendimento, se aplicável, que venham a integrar o pros­
pecto, são suficientes, permitindo aos investidores a tomada
de decisão fundamentada a respeito da oferta (art. 56, § 1°,
II, da ICVM 400);
(iv) o art. 59, V, que considera falta grave (art. 11°, caput e §3°, da
Lei nº 6.385, de 07 de dezembro de 1976) a prestação de informações
falsas ou tendenciosas no prospecto ou no âmbito das ofertas de que
trata a ICVM 400.
Há, no entanto, uma condicionante essencial na questão informa­
cional das companhias, principalmente sobre o aspecto temporal: o in­
teresse da própria companhia em impedir reações concorrenciais geradas
em razão de uma informação estratégica.
Neste caso, a escusa de prestar informação ao acionista ou ao
mercado, posto no § 5° do art. 157 da Lei das S/A, há de ser para
preservar o legítimo interesse da companhia; tal expressão, "legítimo
92 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

interesse", exigirá, sempre, um exame casuístico, de cunho ponderati­


vo sobre os interesses envolvidos, do que está sendo alegado por aque­
les que deveriam, em tese, prestar as informações, analisando-o, ainda,
sob a perspectiva de atuação omissiva como lídima forma de preserva­
ção da companhia no ambiente concorrencial.77 Nesta hipótese, uma
amplitude exacerbada dos atos decisórios construídos na administra­
ção da companhia poderia privilegiar os demais concorrentes, permi­
tindo que estes assumam posturas e posições mercadológicas a dificultar
ou, até mesmo, impossibilitar a companhia de implementar as medi­
das necessárias à conquista/manutenção de market share.
Um outro tema relacionado com a problemática informacional é a
relevância de determinados atos e fatos capazes de influenciar, decisiva­
mente, nos negócios sociais e, por conseguinte, na condução dos acio­
nistas/investidores quanto à tomada de uma decisão.
Inserta no art. 157, § 4°, da Lei das S/A, a divulgação de eventos
do cotidiano das companhias abertas que configurarem os denomina­
dos atos ou fatos relevantes, ou seja, os atos ou fatos que sejam capazes
de influenciar, de modo ponderável, na cotação de valores mobiliários
de emissão da companhia, na decisão dos investidores de comprar,
vender ou manter aqueles valores mobiliários ou, por fim, na decisão
dos investidores de exercer quaisquer direitos inerentes à condição de
titular de valores mobiliários emitidos pela companhia ou a eles refe­
renciados (art. 2°, I a III, da Instrução CVM nº 358, de 03 de janeiro
de 2002).
Dentro do rol exemplificativo do art. 2°, parágrafo único, da ICVM
358, destaca-se o inciso VII, por meio do qual se atribui um "potencial
de relevância" à "incorporação, fusão ou cisão envolvendo a companhia
ou empresas ligadas", se estas operações foram bastantes para fazer inci­
dir qualquer um dos suportes fáticos postos nos incisos I a III do caput
do art. 2° da ICVM 358.

77 No mesmo sentido: CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas:


v. 3, arts. 138 a 205. 3' ed.rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 338.
LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO - 93

8. ÜPERAÇÕES DE REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA, O PROBLEMA


INFORMACJONAL E A IMPUTAÇÃO DE RESPONSABILIDADE NA
SISTEMÁTICA JUR1DICA DAS COMPANHIAS
Nas operações de reorganização societária, dois importantes docu­
mentos cumprem o papel de instrumento informacional: o protocolo e
a justificação.
Introduzidos na sistemática societária com o advento da Lei Federal
nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976, uma vez que sob a regência do
Decreto-lei nº 2. 627/1940, falava-se em "bases da operação" (tal qual no
art. 1 . 1 17, caput, do Código Civil de 2002), o protocolo e a justificação
são os instrumentos de difusão informacional intra-societária nas opera­
ções de reorganização. A justificação, aliás, foi, em 1976, uma "inovação
que se insere no que se convencionou chamar, hoje, direito de informa­
ção do acionista, mas que também, como elemento informativo, atinge
os credores".78
Tais documentos corporificam, pois, um dever de informar, já que,
como salienta Modesto Carvalhosa, "[o] protocolo e a justificação têm
como fundamento o princípio da publicidade (art. 289), que se impõe
no âmbito da companhia, notadamente nos negócios reorganizativos,
em face do interesse dos sócios, dos credores, dos empregados e do Po­
der Público".79
Dada a essencialidade destes documentos para a implementação
da operação de reorganização societária, eles devem obedecer a todos os
aspectos qualitativos e quantitativos acima apontados; principalmente
na assembléia, local do primeiro transbordo deste fluxo informacional,
o protocolo e a justificação devem ser dotados de uma firmeza informa­
cional capaz de permitir ao acionista a real aquilatação da operação que
está se querendo implementar.

78 B U LGARELLI, Waldirio. Fusões, incorporações e cisões de sociedades. 3ª ed. São Paulo:


Atlas, 1 998, p. 2 1 4.
79 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas: v.4, t. /, arts. 206 a
242. 3' ed.rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 249.
94 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

No âmbito regulatório, a CVM expediu, em 03 de dezembro de


1999, a Instrução Normativa nº 3 1 9, por meio da qual se regula, dentre
outras matérias, a divulgação de informações nas operações de incorpo­
ração, fusão e cisão envolvendo companhia aberta (art. 1 °, caput, I, da
ICVM 3 19).
Assim é que o tratamento dado ao problema informacional rece­
beu especial atenção do órgão regulador do nosso mercado de capitais,
ao asseverar, já no caput do art. 2° da ICVM 3 19, que "[s]em prejuízo do
disposto na Instrução CVM nº 3 1 , de 8 de fevereiro de 1 984, as condi­
ções de incorp?ração, fusão ou cisão envolvendo companhia aberta de­
verão ser comunicadas pela companhia, até quinze dias antes da data de
realização da assembléia geral que irá deliberar sobre o respectivo pro­
tocolo e justificação, à CVM e às bolsas de valores ou entidades do mer­
cado de balcão organizado nas quais os valores mobiliários de emissão
da companhia estejam admitidos à negociação, assim como divulgadas
na imprensa, mediante publicação nos jornais utilizados habitualmente
pela companhia".
A esta "regra-mãe'', foram agregados, nos incisos do § 1° do art. 2°
da ICVM 319, elementos mínimos para criação de um ambiente infor­
macional hígido, capaz de tutelar os interesses do mercado e permitir
que o acionista/investidor possa tomar qualquer decisão, seja de investi­
mento, seja de retirada, seja de alienação da participação acionária ou de
outros valores mobiliários.
O art. 3° da ICVM 3 1 9, por sua vez, impôs, ainda como corolário
do dever de informar, a ampla disponibilidade dos documentos societá­
rios, ao determinar que "[o] protocolo, a justificação, bem como os pare­
ceres jurídicos, contábeis, financeiros, laudos, avaliações, demonstrações
financeiras, estudos, e quaisquer outras informações ou documentos que
tenham sido postos à disposição do controlador ou por ele utilizados no
planejamento, avaliação, promoção e execução de operações de incorpo­
ração, fusão ou cisão envolvendo companhia aberta, deverão ser obrigato­
riamente disponibilizados a todos os acionistas desde a data de publicação
das condições da operação (art. 2°)".
LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO - 95

A deficiência informacional, aqui, é sancionada, com fundamento


subjacente no art. 1 1 da Lei nº 6.385, de 07 de dezembro de 1 976, por
previsão posta na própria ICVM 319: configura-se hipótese de exercí­
cio abusivo do poder de controle, porquanto determina o art. 15, VI, da .

ICVM 319, que é modalidade de abuso do poder de controle a "omis­


são, a inconsistência ou o retardamento injustificado na divulgação de
informações ou de documentos que tenham sido postos à disposição do
controlador ou por ele utilizados no planejamento, avaliação, promoção
e execução de operações de incorporação, fusão ou cisão envolvendo
companhia aberta".
Assim é que o regulador, atento às práticas de mercado, pune a
mácula informacional em operações de reorganização envolvendo com­
panhias abertas sob três enfoques:
(i) o comportamental puro (omissão do acionista controlador/ad­
ministrador);
(ii) o da qualidade informacional (incluindo, no cotejo avaliativo, a
veracidade, a precisão, a clareza e a objetividade da informação);
(iii) o temporal (demora imotivada na divulgação das informações
e documentos).
O critério de julgamento de imputação de responsabilidade, nas
companhias abertas, por falhas informacionais está, pois, amplamente
explicitado na ICVM 31 9, que determina, por fim, ser falta grave o
descumprimento de normas societárias e de deveres postos nesta ins­
trução normativa (art. 17, caput, da ICVM 3 1 9) .

Nas companhias fechadas, a questão da mácula informacional


nas operações societárias se enquadra nos mesmos termos acima ex­
postos, com a diferença que o suporte fático para a configuração do
exercício abusivo de poder de controle virá na forma do art. 1 1 7 da
Lei das S/A.
Nota-se, pois, - e abstraída a questão interessantíssima do insi­
der, detentor de uma informação privilegiada (informação assimétrica) e
expressão subjetiva do moral hazard (para o qual competiria ser feito ou-
96 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

tro estudo só sobre o dever de guardar sigilo imposto a esta situação) 80 -

que o fenômeno informacional é capaz de, por si só, se nele estiverem


contidas falhas, imputar responsabilidade àquele que a sonegou, prestou­
ª falsamente ou de modo incorreto, cabendo, entretanto, um exame emi­

nentemente casuístico para perfeito enquadramento dos atos do mundo


concreto com o suporte fático posto no mundo jurídico.
Desta maneira, há possibilidade, sim, de imputação de responsabi­
lidade por falhas informacionais em operações de reorganização socie­
tária; advirta-se, entretanto, que o insucesso econômico destas operações,
materializado na incapacidade destas gerarem um valor econômico adi­
cional ao patrimônio dos acionistas, não é motivo, por si só, para incidir
regras de responsabilidade sobre determinadas esferas societárias, salvo
casos de evidentes erros estruturais do bem jurídico explicitado ao lon­
go deste texto: a informação.

80 Cf., por todos: LE Ã ES, Luiz Gastão Paes de Barros. Mercado de capitais & "insider trading".
São Paulo: RT, 1 982. Ver, ainda, como marcos legais do insider trading: ( 1 ) no Brasil, art. 1 55,
§§ 1 º, 2º e 4º, da Lei das S/A, o art. 4º, IV, allnea c, e o art. 27-D, ambos da Lei n.º 6.385, de
07. 1 2. 1 976, alínea e artigo acrescentados pela Lei nº 1 0.303, de 3 1 . 1 0.200 1 , sendo que o
artigo incluído passou a tipificar o crime de uso indevido de informação privilegiada; (2)
nos Estados U nidos da América, a seção 1 6(b) da Securities Exchange Act, de 1 934; (3) na
Alemanha, conferir o Wertpapierhandelsgesetz - WpHG, que, em Abschnitt 3, disciplinan­
do o lnsiderüberwachung, traz: (a) no § 1 2 WpHG, uma conceituação do lnsiderpapiere; (b)
no § 1 3 WpHG, (1 ), aponta o conceito da informação privilegiada (/nsiderinformation) ["fine
lnsiderinformation ist eine konkrete lnformation über nicht offentlich bekannte Umstande,
die sich auf einen oder mehrere Emittenten von lnsiderpapieren oder auf die lnsiderpapiere
selbst beziehen und die geeignet sind, im Falle ihres offentlichen Bekanntwerdens den
Borsen- oder Marktpreis der lnsiderpapiere erheblich zu beeinflussen. Eine solche Eignung
ist gegeben, wenn ein verstandiger Anleger die lnformation bei seiner Anlageentscheidung
berücksichtigen würde. Ais Umstande im Sinne des Satzes 1 gelten auch solche, bei denen
mit hinreichender Wahrscheinlichkeit davon ausgegangen werden kann, dass sie in Zukunft
eintreten werden. Eine lnsiderinformation ist insbesondere auch eine lnformation über nicht
Offentlich bekannte Umstande im Sinne des Satzes 1, die sich 1. auf Auftrage von anderen
Personen über den Kauf oder Verkauf von Finanzinstrumenten bezieht oder 2.auf Derivate
nach § 2 Abs. 2 Nr. 4 bezieht und bei der Marktteilnehmer erwarten würden, dass sie diese
lnformation in Übereinstimmung mit der zu/assigen Praxis an den betreffenden Markten
erhalten würden'1; (e) no § 1 4 WpHG, a proibição ao insider em negociar (Verbot von
/nsidergeschaften); (d) no § 1 5 WpHG ( Veroffentlichung und Mitteilung von
/nsiderinformationen), as medidas de fui/ disclosure no mercado de capitais alemão (e) as
sanções criminal (Strafvorschriften), no §38 WpHG, e administrativa (Bu6geldvorschrifte n),
no §39 WpHG, ao insider e àquele que não atendeu medidas do fui/ and fair disc/osure no
mercado de capitais.
LEANDRO SANTOS DE ARAGÃO - 97

9. CONCLUSÃO
Pode-se, então, concluir, sucintamente, que a informação é um bem
jurídico, de fundamental importância nas relações interpessoais. Merece,
dada sua natureza eminentemente instrumental, tutela jurídica alicerçada
em valores cooperativos e éticos, premiando comportamentos legítimos
esperados pela outra parte, sem o reducionismo clássico e paradigmático
da inserção da informação na esfera decrépita, difusa e defeituosa da li­
berdade iluminista, posta como conseqüência necessária de um obscuro e
exacerbado individualismo.
Até como forma de reduzir custos ínsitos às relações econômicas
(dirimindo a possibilidade do moral hazard), mas muito mais como for­
ma de legitimar, sob a ótica valorativa dos deveres de solidariedade e
cooperação, os comportamentos humanos éticos e colaborativos, o di­
reito, em seu conglomerado de normas, princípios, valores, enunciados
e proposições, deve eleger, como regra, o intercâmbio permanente de
informações.
Eis um ponto essencial.
No direito societário, o fenômeno da assimetria informacional, de igual
forma, está a exigir tratamentos legislativo e regulatório funcionais, de in­
dução permanente à prestação de informação, sendo defesos os comporta­
mentos silentes e maledicentes daqueles que a detêm. Por tudo isso, a regra,
no direito societário, há de ser a dofali andfoir disclosure, de modo que todos
os atos praticados no âmbito societário deverão, sempre, ser interpretados
sob esta ótica e, precipuamente, em razão desta.
Sucessão Empresarial -
Declarações e Garantias -
o Papel da Legal Due
Diligence

Maristela Sabbag Abla

Mestre (LL.M.) pela University ofPennsylvania School ofLaw,


Philadelphia, PA, EUA
Graduadapela Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie
Membro do IDSA
1 00 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

''I'm willing to bet my briefcase that lawyers spend more time


negotiating Representation and Warranties ofthe Se/ler than any
other single article in the typical acquisition agreement. "
James C. Freund 1 .

1. INTRODUÇÃO
O Brasil entrou de forma mais significativa no mundo dos grandes
negócios corporativos no início dos anos 90. Juntamente com essa in­
serção, veio a abertura da economia e o conseqüente aumento no volu­
me de capital estrangeiro investido no país. Por exemplo, entre 1 994 e
200 1 , ocorreram 2.440 transações de fusões e aquisições, entre as quais
1 .448 tiveram investimento de capital estrangeiro2 •
Com a internacionalização da economia brasileira, as empresas sen­
tiram a necessidade de maximizar sua eficiência e escala de produção,
otimizar seus gastos, aumentar a eficiência da sua estrutura, e, ainda,
seguir suas estratégias mercadológicas.
Diante de tais necessidades, a reorganização das empresas e con­
centração de capitais passaram a ser cada vez mais comuns, até mesmo
como requisitos essenciais para a sua própria sobrevivência.
Neste contexto, a análise e avaliação dos efeitos das operações
de reorganização passaram a ser de extremo interesse aos investido­
res e aos operadores do direito, já que as mesmas culminam necessa­
riamente na transferência de um conjunto de ativos3 e passivos4 para
o investidor, especificamente, por força da sucessão empresarial.

FREUND, James C. Anatomy of a Merger: Strategies and Techniques for Negotiating


Corporate Acquisitions: A Turbulent Decade for Deals: Anatomy of a Merger Revisited.
USA: Law Journal Seminar Pr, 1 9 75, p. 229 Seria capaz de apostar minha maleta que
-

advogados gastam mais tempo negociando Declarações e Garantias do Vendedor que qual­
quer outra cláusula de um contrato padrão aquisição.
2 BARROS, Betania Tanure. Fusões e Aquisições no Brasil. Entendendo as Razões dos Su­
cessos e Fracassos. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2003, p. 1 7.
3 O termo ativo é aqui utili zado no sentido de um conjunto de valores representados pelas
aplicações de patrimônio e de capital de uma empresa.
4 O termo passivo é aqui utilizado no sentido de um conjunto de obrigações e dívidas de
uma empresa.
MARISTELA 5ABBAG ABLA - 1 0 1

É exatamente quando da análise das operações sob este prisma, que


as negociações das mesmas acabam sendo sobrestadas, adiadas ou até
mesmo canceladas, já que as partes envolvidas acabam não chegando a
um consenso quanto à distribuição das contingências5 delas decorrentes.
Estas negociações envolvem primordialmente uma determinação
a priori do passivo a ser assumido pelo sucessor e o grau de informação
fornecido pelo sucedido com relação a tais obrigações.
Desta forma, um instrumento encontrado pelos advogados atuan­
tes na área, como forma de mensurar tal passivo, foi a inclusão de cer­
tas declarações e garantias por parte do sucedido a fim de garantir ao
sucessor uma posição mais segura quanto às condições financeiro-eco­
nômicas da empresa a ser incorporada, fundida ou cindida.
Os números relacionados a estas declarações e garantias são essen­
ciais para a avaliação e definição do valor econômico a ser atribuído à
participação societária objeto da negociação.
Porém, tais declarações e garantias freqüentemente podem dar
margem a dúvidas e questionamentos, quando algumas das informa­
ções prestadas pelo vendedor não refletem a atual situação da empresa
apurada pelo comprador.
Tal dilema tornou a condução de um processo de auditoria jurídica
(comumente conhecido como legal due diligence), normalmente sob a
responsabilidade dos advogados do comprador/incorporador, impres­
cindível para o sucesso destas operações.
De qualquer forma, devemos sempre levar em consideração a pe­
culiaridade de cada operação, e, em se tratando de operações desta na­
tureza, a análise do caso concreto é a essência de seu sucesso.
Após estas considerações preliminares, dividimos o presente traba­
lho em alguns tópicos para uma melhor compreensão da matéria. Pri­
meiramente, iremos analisar o conceito técnico e as disposições legais
aplicáveis ao instituto da sucessão empresarial. Passaremos então a ana-

5 O termo contingências é aqui utilizado no sentido de uma obrigação / montante excepcio­


nal decorrente de uma eventualidade, incerteza, ou fato duvidoso.
1 02 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

lisàr o mecanismo das declarações e garantias como meio necessário ao


sucessor de averiguar as contingências a serem assumidas. Por fim, estu­
daremos o importante papel do processo de due diligence como forma de
confirmar as informações prestadas pelo vendedor nas declarações e
garantias.

l i . CONCEITO TÉCNICO DE SUCESSÃO


Diversas são as relações existentes no mundo jurídico. A mudança
do sujeito na posição ativa ou passiva da relação toma o nome técnico de
sucessão. O sucessor assume o lugar do autor da sucessão.
Historicamente, o conceito de "sucesión" surgiu no mais antigo di­
reito romano, com relação ao fenômeno da extinção de um sujeito, no
sentido físico ou jurídico. Esta situação, por uma exigência prática, im­
punha a criação de um mecanismo que impedisse o término da relação
jurídica na qual figurava tal sujeito. Este mecanismo ocorreu primeira­
mente na sucessão causa mortis. 6
A sucessão, como um termo genérico, representa o instituto jurídi­
co pelo qual uma pessoa, seja ela física ou jurídica, transmite a outrem
seus direitos e obrigações; ocorre, via de regra, quando há a modificação
do sujeito da relação jurídica em questão, isto é, quando alguém toma a
posição de outrem em uma relação por haver assumido seu patrimônio.
Por força de tal instituto, ocorre a transferência de bens, direitos e
deveres, de tal forma que o sucessor torna-se responsável pela continui­
dade do cumprimento das obrigações anteriormente contratadas, bem
como, torna-se o titular de todos os bens e direitos até então detidos
pelo transmitente, sem interrupção nas referidas relações jurídicas. De­
vendo ficar claro que o sucessor adquire uma posição jurídica idêntica à

6 CERTAD MAROTO, Gaston. La asunción de la deuda ajena en nuestro derecho positivo,


con especial enfasis en la sucesión a titulo particular en el debito y en la novación subjetiva
pasiva. Revista de Ciências Jurídicas, Facultad de Derecho, Un iversidad de Costa Rica,
n.62, 1 989, p. 36 "en el más antiguo derecho romano en relación ai fenómeno de la
-

desaparición, en sentido físico o en sentido jurídico, de un sujeto, situación que por una
indeclinable exigencia práctica, imponía la creación de un mecanismo que impidiera la
extinción de las relaciones jurídicas en las que intervenía el sujeto desaparecido. Este me­
canismo se realizá adecuadamente en un primer momento en la sucesión mortis causa. "
MARISTELA 5ABBAG ABLA - 1 03

do titular original, não podendo adquirir mais direitos ou deveres do


que detinha o sucedido.
Verifica-se que sucessão é sinônimo de aquisição derivada. Segun­
do as lições de Pontes de Miranda, a aquisição derivada é de pessoa a
pessoa, na qual uma pessoa substitui a outra na relação jurídica (suces­
são translativa7 ), ou uma pessoa passa elemento de seu direito ao de
outra (sucessão constitutiva)8 . No caso da sucessão empresarial, o direi­
to anterior já existia na pessoa do sucedido, e este se transfere para o
sucessor.
A sucessão inter vivos é a transmissão de bens que se aplica a todos os
modos derivados de aquisição de domínio, indicando o ato inter vivos pelo
qual uma pessoa sucede a outra, investindo-se, no todo ou em parte, nos
direitos que lhe pertenciam. Por exemplo: o comprador que sucede o ven­
dedor; o donatário ao doador, tomando uns o lugar dos outros em relação
ao bem vendido ou doado9 • No caso do presente trabalho, tais bens com­
preendem sociedade e participações societárias.
A sucessão pode ser universal ou particular. A sucessão universal
tem por objeto um patrimônio, que é ·uma coisa universal, considerada
unitariamente como distinta das diferentes relações jurídicas que a com­
põem. Na sucessão universal ocorre a transferência de tudo, quaisquer
que sejam os direitos, deveres e obrigações transferíveis. Não ocorre a
mudança nas condições e termos da relação jurídica, mas apenas a mu­
dança em seus sujeitos.
Por outro lado, a sucessão particular ou singular culmina na trans­
ferência de um determinado direito do patrimônio de um sujeito para o
patrimônio de outro, carregando consigo todos os deveres e obrigações
que compõem tal direito.

7 Na sucessão transl ativa, o titular do direito muda sem que mude o direito, ainda que so­
mente no que se transmitiu. A perda por um é seguida, imediatamente, pela aquisição pelo
outro.
8 MIRAN DA, Pontes de (Atualizado por Vilson Rodrigues Alves). Tratado de Di reito Privado.
1 ª edição. Tomo V. Campinas: Bookseller, 2000, p. 45.
9 DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. V. 4, São Paulo: Editora Saraiva, 1 998.
1 04 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

Daí por que afirma, Fábio Konder Comparato: ''A sucessão universal,
que tem por objeto um patrimônio, quer de pessoa natural, quer de pessoal
jurídica, somente ocorre validamente nas hipóteses taxativamente previstas
e reguladas em lei, não se admitindo modalidade alguma de 'sucessão de
fato'. As hipóteses legais de sucessão universal são, para os patrimônios de
pessoas naturais, a morte e a ausência declarada judicialmente; para as pes­
soas jurídicas, a sucessão integral nos casos de fusão e incorporação societá­
ria, e a sucessão parcial na hipótese de cisão"1º .
Em diversos ramos do direito está presente o instituto da sucessão.
No direito tributário, a sucessão está regulada nos artigos 130 a 133 do
Código Tributário Nacional, os quais dispõem acerca da responsabili­
dade pelos tributos por sucessão, atribuindo à empresa resultante da
fusão, transformação ou incorporação a qualidade de sucessora das em­
presas anteriores pelos tributos.
No direito do trabalho, sucessão de empresas se dá quando uma
empresa é adquirida por outrem, ou vem a sofrer a mudança na sua
estrutura jurídica, sem que haja, contudo, alteração dos seus objetos,
mantendo-se inalteráveis os contratos de trabalho e a continuidade na
prestação do trabalho pelos empregados. Logo o sucessor responde pe­
los encargos trabalhistas do antecessor. Conforme dispõem os artigos
10 e 448 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a modificação
na estrutura jurídica das empresas não acarreta alteração dos contratos
de trabalho.
Já no direito empresarial, objeto do presente trabalho, o processo de
sucessão vem solucionar diversos problemas decorrentes, principalmente,
da rapidez com que se transforma o macroambiente econômico, obrigan­
do as empresas a se ajustarem, freqüentemente, às novas tendências do
mercado, tornando, assim, os procedimentos de reestruturação societária
cada vez mais comuns e necessários. A sucessão de pessoas jurídicas de­
corre da intenção dos sócios ou acionistas das sociedades envolvidas de

10 COMPARATO, Fábio Konder. Sucessões Empresariais. Revista dos Tribunais, São Paulo.
Ano 87, v. 747, p. 798, jan. 1 998.
MARISTELA 5ABBAG ABLA - 1 05

realocar seus recursos patrimoniais mediante a realização de negócios


jurídicos que afetam a personalidade jurídica das companhias. Tais ne­
gócios jurídicos materializam-se em três institutos diversos, quais se­
jam, fusão, incorporação e cisão; operações pelas quais os direitos e
obrigações de uma sociedade são integralmente transferidos a outra, a
qual prosseguirá com as atividades até então exercidas pela primeira.
Tais negócios envolvem operações societárias que resultam na su­
cessão empresarial, no sentido de que, uma pessoa jurídica transfere a
outra um conjunto de direitos e obrigações, ou de ativos e passivos, ou
ainda, de forma tal que, sem que haja solução de continuidade, uma
pessoa jurídica prossegue uma atividade até então exercida por outra.
Nas operações de fusão, incorporação e cisão total, verificamos a
ocorrência da sucessão a título universal, já que junto ao patrimônio
transferido, também o são os direitos e obrigações a ele inerentes. Nes­
tes casos, a sucessão da sociedade fundida ou incorporada é sempre to­
tal, pois tem por objeto todo o seu patrimônio, mesmo que este depois
venha a ser distribuído por quotas ou ações a vários sujeitos (que podem
até ser os sócios da empresa sucedida).

Ili. ÜISPOSITIVOS LEGAIS APLICÁVEIS


O novo Código Civil Brasileiro tratou a matéria de forma isolada
conforme a forma de mutação da sociedade, apresentando uma inova­
ção frente ao Código Civil de 1916, o qual nada dispunha sobre o
assunto.
Em seus artigos 1 . 1 1 6 e 1. 1 19, o Código Civil determina clara­
mente que, tanto na incorporação como também na fusão, a sociedade
incorporadora ou a nova sociedade decorrente da fusão sucede a socie­
dade incorporada ou a sociedade extinta, respectivamente, em todos os
seus direitos e obrigações.
A Lei de Sociedades Anônimas contém, em seus artigos 227 e 228,
as mesmas disposições contidas no Código Civil no que tange às incor­
porações e fusões.
1 06 - REORGANIZAÇÃO 50CIETÃRIA

Com relação à cisão, apesar desta operação estar mencionada no


título do Capítulo X juntamente com as demais formas de reorganiza­
ção societária, o Código Civil não traz qualquer disposição a respeito,
com exceção ao direito do credor prejudicado na cisão.
Já a Lei de Sociedades Anônimas possui dispositivos específicos
com relação a este assunto, determinando, em seu artigo 229, parágrafo
primeiro, que "a sociedade que absorver parcela do patrimônio da compa­
nhia cindida sucede a esta nos direitos e obrigações relacionados no ato da
cisão; no caso de cisão com extinção, as sociedades que absorverem parcelas do
patrimônio da companhia cindida sucederão a esta, na proporção dos patri­
mônios líquidos transferidos, nos direitos e obrigações não relacionados. "
Neste sentido, cumpre ressaltar que o processo de sucessão na ci­
são parcial é mais complexo, pois, conforme verificamos, a operação não
acarreta a extinção da sociedade cindida. Desta forma, faz-se necessário
verificar precisamente a parcela do patrimônio da cindida que foi efeti­
vamente transferido c, assim, qual a extensão da responsabilidade de
cada parte pela continuidade das obrigações já contraídas pela empresa
cindida, bem como, pelos direitos adquiridos antes da cisão.
Igualmente ao nosso ordenamento jurídico, o Código Civil Italiano dis­
põe que a sociedade que resulta da fusão, ou a sociedade incorporadora, assu­
me os direitos e obrigações das sociedades participantes da fusão, as sucedendo
em todas as suas relações, até as de cunho processual, anteriores à fusão11 •

Havendo mudança no titular da participação societária, quer seja por


meio de uma operação de incorporação, fusão, ou cisão, a sucessão dos direi­
tos, obrigações e responsabilidades é automática, indiscutível e incondicional.
Assim, todas as relações jurídicas em curso da sociedade envolvida
permanecem inalteradas quanto à sua identidade e ao direito material
que representam, devendo ser respeitadas todas as condições e prazos
originalmente pactuados.

11 Codice Civile Italiano, art. 2504-bis - "(Effeti dei/a fusione). L a società che risulta dai/a
fusione o que/la incorporante assumono i diritti e gli obblighi dei/e società partecipanti afia
fusione, proseguendo in tutti i /oro rapporti, anche processuali, anteriori afia fusione (. . . ! ".
MARISTELA 5ABBAG ABLA - 1 07

Ademais, a sucessão não pressupõe nenhum defeito jurídico na li­


quidação dos créditos, muito pelo contrário, decorre da continuidade
das obrigações e dos direitos que compõem o patrimônio transferido
para o sucessor12 •

Como pode ser constatado, é notável a escassez de legislação so­


cietária quanto à conceituação do instituto da sucessão, o que inevital­
mente nos conduz aos entendimentos doutrinários acerca da matéria
e aos casos práticos. Desta forma, cabe agora aos operadores do Direi­
to, saber manusear e analisar as implicações decorrentes desta transfe­
rência de direitos e obrigações em cada caso prático.

IV.A QUESTÃO DA TRANSFER�NCIA DE PARTICIPAÇÃO


SOCIETÁRIA
Muitas das operações que hoje são realizadas envolvem a aquisição
de uma determinada participação societária. Nestes casos, não há que se
falar em sucessão empresarial, pois trata-se apenas de mudança de titu­
laridade dos direitos e obrigações a ela relativos.
Como discutimos acima, o termo jurídico sucessão implica na subs­
tituição do sujeito de uma relação jurídica. Ora, na compra de determi­
nada participação societária, ocorre a cessão da posição contratual até
então detida pelo antigo quotista/acionista ao adquirente destas quotas/
ações. De forma que o novo detentor desta participação societária passa
a responder por todos os atos do vendedor alusivos àquela relação con­
tratual. Não há mudança na pessoa jurídica, a sucessão ocorre do antigo
sócio para o novo sócio.
Conforme citado por Luiz Otávio de Freitas13, a cessão da posição
contratual, expressamente admitida no direito positivo português ( Có-

12 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. Editora Saraiva, 3ª


Edição, 2002, p. 284.
13 FREITAS, Luiz Otavio de. Da sucessão nos casos de transferência de ativos e passivos de
institu ições financeiras (parecer). Revista de Di reito Bancário, do Mercado de Capitais e
da Arbitragem, São Paulo, Ano 4, v. 1 1 , p.248, jan./mar. 2001 .
1 08 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

digo Civil de Portugal, art. 424), é reconhecida entre nós doutrinaria­


mente, como preleciona Silvio Rodrigues:
"A cessão do contrato, ou melhor, a cessão de situações
contratuais, consiste na transferência da inteira posição ativa e
passiva, do conjunto de direitos e obrigações de que é titular
uma pessoa, derivados de um contrato bilateral já ultimado,
mas de execução ainda não concluída" (Das obrigações, vol. II,
1968, p. 369-370).
Sendo assim, apesar de não caracterizarem operações de fusão, in­
corporação ou cisão, a cessão da posição contratual, na qualidade de
detentor desta participação societária, importa na sucessãoparticular (res­
trita aos direitos e obrigações decorrentes da participação societária trans­
ferida), diante da outra parte da relação contratual, qual seja, os demais
quotistas/acionistas e a própria sociedade emissora daquela determina­
da participação.
Não há qualquer alteração do direito dos sócios em relação à so­
ciedade na qual as ações/quotas transferidas façam parte, as relações
permanecem inalteradas quanto ao seu objeto, ou seja, a própria partici­
pação societária.
Enquanto que antes da conclusão da operação almejada, o sujeito
da relação jurídica era o vendedor da participação societária contra a
sociedade emissora desta participação, após a operação, o comprador
passa a se tornar o responsável substituto do antigo quotista/acionista
em face da mesma sociedade, com relação ao mesmo objeto material,
e na mesma proporção da participação transferida por este último.
Na prática, apesar da operação de compra de participação societá­
ria não ser de fato nenhuma das referidas operações, constitui-se um ato
societário típico, com o mesmo efeito em todas estas hipóteses: altera­
ção da estrutura societária sem afetar a identidade das obrigações e di­
reitos correlatos.
Como sabiamente ensina Pontes de Miranda, a sucessão tem su­
porte fático, que lhe é próprio. Podendo ser: a) ato de disposição do
titular do direito, com a aceitação do sucessor, ou b) ato de apropriação
MARISTELA 5ABBAG ABLA - 1 09

por parte desse, precedido de negócio jurídico, ou de ato do Estado, ou


c) eficácia de lei que estabeleceu a transferência14 •
Ora, as operações de transferência de participação societária com­
preendem nada mais e nada menos que uma declaração ou manifestação
de vontade das partes, tendo de um lado o animus de dispor determinado
direito e do outro o animus de adquirir exatamente o mesmo direito re­
presentativo de determinada quota de um patrimônio comum.
Ainda, como ensina José Álvarez Arjona e Ángel Carrasco Perera,
em uma aquisição de ações, adquire-se diretamente todas as responsa­
bilidades e obrigações incluídas na sociedade objeto, também aquelas
que o comprador porventura desconheça15 •
Apesar de serem poucos os estudos relativos à transferência de par­
ticipação societária, ao nosso ver, não restam dúvidas de que o adqui­
rente desta participação se sub-roga em todos os direitos e obrigações a
ela inerentes.
Ademais, os elementos característicos da sucessão translativa estão
presentes no caso em tela, ou seja, a perda dos direitos e deveres pelo
vendedor da participação, com a instantânea aquisição dos mesmos direi­
tos e deveres pelo comprador, por ato de disposição por parte do primeiro.

V. DECLARAÇÕES E GARANTIAS
Como discutimos anteriormente, não há como desvincular as re­
gras jurídicas empresariais dos interesses econômicos relacionados a
cada caso concreto. Inclusive, as próprias normas jurídicas são cons­
tantemente revistas e remodeladas à luz da realidade vivida à época.
Assim, não basta analisar os termos legais, há que se compreender a
realidade dos fatos.

14 MIRANDA, Pontes d e (Atualizado por Vilson Rodrigues Alves). Tratado d e Direito Privado.
1' edição. Tomo V. Campinas: Bookseller, 2000, p. 57.
15 ARJONA, J . M . A. e PERERA, A. C. (Di rectores). Régimen Jurídico de las Adquisiciones de
Empresas. Elcano, Navarra: Aranzadi Editorial, 200 1 , p. 47 - "En una adquisición de acciones
se adquieren directamente todas las responsabilidades y obligaciones includias en la sociedad
objeto, también aquellas que e/ comprador pudiera desconocer. "
110 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

As contingências trazidas com o fechamento de uma operação tor­


naram-se um risco significativo nos vultosos negócios de reorganização
societária. Às partes é necessário apurar precisamente e delimitar as obri­
gações assumidas pelo sucessor após a efetiva conclusão da operação.
Nas operações de fusão e aquisição as partes entenderam por bem
incluir certas declarações e garantias no corpo do contrato a fim de rea­
locar os riscos e assim delimitar os direitos e obrigações transferidos,
através das tão conhecidas declarações e garantias {representations and
warranties} prestadas pelos vendedores.
As declarações e garantias prestadas pelo vendedor visam princi­
palmente: (i) servir como um meio para persuadir o vendedor a divul­
gar e tornar disponível ao comprador a maior quantidade possível de
informações sobre o negócio a ser adquirido, anteriormente à conclu­
são da operação; (ii) conforme o desenrolar das informações reveladas
pelo vendedor e sua importância para a continuidade dos negócios a
serem adquiridos, pode servir como argumento ao comprador para
desistir do negócio diante da relevância e gravidade destas informa­
ções; (iii) servir como base para fixação de significativa indenização
na hipótese de quaisquer destas declarações e garantias virem a ser
declaradas inverídicas e omissas após o comprador tomar controle do
negócio com o fechamento da operação. Inclusive, a fixação de uma
vultosa indenização serve ainda como meio para assegurar a exatidão
e veracidade das informações reveladas pelo vendedor com relação à
situação do negócio objeto do contrato.
Visando um melhor entendimento da matéria, na prática, os con­
tratos normalmente possuem anexos relativos a cada uma das declara­
ções e garantias prestadas pelo vendedor, conhecidos como Disclosure
Schedules, através dos quais são fornecidas tais informações. Sendo as­
sim, no corpo do contrato, o vendedor declara que não existe nenhu­
ma contingência relativa a determinado assunto, por exemplo, imóveis,
contratos com fornecedores, empregados, procedimentos administra­
tivos fiscais, dentre outros diversos assuntos, senão aquelas reveladas
no anexo correspondente.
MARISTELA 5ABBAG ABLA - 111

Uma vez entendidos os interesses e objetivos envolvidos no meca­


nismo das declarações e garantias, podemos concluir que as mesmas não
só servem como meio para delinear as obrigações e contingências a serem
assumidas pelo sucessor, como também dão ferramentas e subsídios ao
comprador para renegociar com o vendedor o preço atribuído ao negócio
almejado, de forma a ajustá-lo de acordo com as informações reveladas na
cláusula de declarações e garantias.
Faz-se mister esclarecer que tais cláusulas contratuais não exclu­
em de forma alguma a responsabilidade do comprador-sucessor pe­
rante os credores do vendedor-sucedido, mesmo porque, se assim o
fossem, seriam consideradas totalmente nulas.
O que se há de entender é que tais disposições contratuais servem
como meio ao comprador-sucessor de ter acesso e ter ciência das obriga­
ções a serem assumidas. Caso, após a conclusão da operação, o comprador
tome conhecimento de obrigações e contingências que não foram revela­
das naquela oportunidade, o vendedor estará obrigado ao pagamento da
indenização lá pactuada como forma de ressarcir o vendedor dos prejuí­
zos decorrentes pela sucessão daquela determinada contingência que não
foi precisamente declarada ou até mesmo omitida do contrato.
Mesmo porque, se o comprador paga mais, tem pretensão e ação
contra o alienante do patrimônio16 •
Por meio destas disposições contratuais, o ônus de provar a real
situação do negócio a ser adquirido passa a recair sobre o vendedor.
Caso seja verificada qualquer falsidade, manipulação ou omissão do con­
teúdo das declarações, caberá a ele responder pelos prejuízos causados
ao comprador.
Estas disposições contratuais são tão importantes para a conclu­
são de um bom negócio que as empresas seguradoras americanas de­
senvolveram um novo produto: o seguro para declarações e garantias
(representantions and warranties insurance). Segundo a AIG S egura-

16 MIRAN DA, Pontes de (Atualizado por Vilson Rodrigues Alves). Tratado de Di reito Privado.
1 ª edição. Tomo V. Campinas: Bookseller, 2000, p. 88.
112 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

dora17 , tal produto visa proteger o comprador ou o vendedor de perdas


financeiras decorrentes de inexatidões e imprecisões das declarações e
garantias prestadas em uma variedade de operações, especialmente fu­
sões e aquisições. Tais seguros visam ainda facilitar a conclusão das ope­
rações e de forma criativa transferir os riscos. Cada seguro de declarações
e garantias é feito sob medida a fim de adaptar e acomodar às necessida­
des específicas de cada operação.
No entanto, não há qualquer norma de direito positivo ou doutrina
bem definida disciplinando tais disposições contratuais. Essa falta de
legislação e carência de entendimentos doutrinários acarretam questio­
namentos e dúvidas, as quais muitas vezes não acabam sendo soluciona­
das de forma amigável, no momento em que quaisquer das suas
disposições são violadas.
Sendo assim, esta forma de realocação dos riscos decorrentes da
sucessão empresarial pode culminar em intermináveis e árduas discus­
sões judiciais. O problema surge quando as informações prestadas pelo
vendedor nas cláusulas de declarações e garantias vêm a se tornar inve­
rídicas ou omissas, ao se verificar que características fundamentais da
empresa explorada não correspondiam, na realidade, ao que fora decla­
rado e garantido pelo vendedor.
Nestas circunstâncias, admitir-se-ia a ação de anulação do negó­
cio com base em erro essencial de consentimento (vícios da vontade).
O Código Civil, em seus artigos 138 e 1 39, assegura a anulação do
negócio jurídico quando as declarações de vontade emanarem de erro
substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal,
em face das circunstâncias do negócio.
Ademais, o nosso ordenamento jurídico garante ainda às partes
princípios de proteção da confiabilidade e da boa-fé das mesmas, os
quais devem sempre prevalecer em qualquer relação contratual. O prin­
cípio da boa-fé objetiva recebeu consagração expressa a partir do novo

17 http://www. aig.com/gateway/home
MARISTELA 5ABBAG ABLA - 113

Código Civil, em seus artigos 113, 187 e 422, obrigando as partes con­
tratantes ao dever de lealdade, probidade e correção.
O sucessor de boa-fé teria o direito de alegá-la para reaver os pre­
juízos ocasionados pelas informações prestadas erroneamente, de forma
dissimulada, ou até omitidas, já que não há como discutir os efeitos da
sucessão empresarial que se operaram de forma definitiva quando do
fechamento do negócio.
Da mesma forma, o Código Civil espanhol reza que os contratos
se aperfeiçoam pelo mero consentimento, e a partir de então obrigam
não apenas ao cumprimento daquilo que foi expressamente pactuado,
mas também a todas as conseqüências que, segundo a sua natureza, es­
tejam de acordo com a boa-fé, ao uso e à lei18 •
Caso seja constatada a má-fé por parte de qualquer uma das partes
em relação às suas obrigações contratuais quanto ao fornecimento de
informações e prestação de declarações e garantias, o foco passa a ser
provar a inexatidão ou omissão das informações e a ausência de boa-fé.
Será muito difícil, por exemplo, provar e especificar o que efetivamente
o vendedor permitiu ou deixou de permitir ao comprador o acesso à
informação, e ainda, que esta inexatidão ou omissão decorreu de dolo
por parte do vendedor a qual justifique e permita ao comprador pleitear
por indenização ou mesmo pela anulação do contrato.
Assim, a partir deste momento, a polêmica é transferida para a ques­
tão de comprovar a responsabilidade do vendedor por tais declarações
equivocadas e inexatas (misrepresentations). Na grande maioria dos con­
tratos há uma previsão expressa de uma vultosa indenização para esses
casos. Trata-se de uma maneira conciliatória das partes tentarem mini­
mizar o impacto que pode ser sofrido pelo sucessor induzido a erro por
uma contingência imprevista.

18 ARJONA, J . M . A. e PERERA, A. C. (Directores). Régimen Jurídico de las Adquisiciones de


Empresas. Elcano, Navarra: Aranzadi Editorial, 2001 , p. 1 4 3 - Articúlo 1 258 CC "Los
contractos se perfeccionan por e/ mero consentimentiento, y desde entonces obligan no
só/o a i cumplimiento de lo expresamente pactado, sino también a todas las consecuencias
que, según su naturaleza, sean conformes a /a buena fe, ai uso y a la ley. "
1 14 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

A falta de legislação processual específica e a conseqüente ausência


de jurisprudência sobre o tema provocam uma insegurança jurídica quan­
to à exeqüibilidade de cláusula dessa natureza perante os Tribunais bra­
sileiros. Por essa razão devemos recorrer ao direito comparado como
uma das fontes para embasar as decisões.
A Corte de Cassação italiana, inusitadamente, em vez de recorrer
às normas sobre vícios da vontade, entendeu que a cessão de controle
era resolúvel pela existência de vício redibitório. No direito brasileiro,
essa solução poderia ser questionada, diante do conceito de "coisa" que o
Código Civil utiliza nos artigos 441 , 442 e 444, no sentido de objeto
tangível e material19 •
Tendo em vista que a concepção de declarações e garantias, bem
como todo procedimento de negociação, envolve modelo importado dos
Estados Unidos, é recomendável que sejam observadas com maior aten­
ção as decisões de lá provenientes.
A Corte americana decidiu um caso desse tipo na decisão proferida
nos autos do processo Sound Techniques, Inc. vs. Barry D. Hoffman -
Massachusetts Court, 2000. Neste caso, uma das partes contratantes fez
certas declarações falsas acerca da condição do bem. Apesar do Tribunal
americano ter entendido que não houve descumprimento contratual,
determinou o pagamento de uma indenização com base em prestação
de declaração falsa culposa. A decisão ainda determina que não existe
distinção entre fraude e declaração falsa culposa, já que em ambos os
casos os argumentos são os mesmos: falta de honestidade e negociação
justa entre as partes. Apesar do fato de que a parte que prestar declara­
ção falsa culposa possa estar bem intencionada, a mesma agiu sem o
devido zelo.
No nosso entendimento, apesar de grande parte das operações in­
ternacionais desta natureza fixarem como foro competente as cortes
americanas, uma maneira de minimizar tal risco seria as partes estabele-

19 COMPARATO, Fábio Konder. O Poder de Controle de Sociedade Anônima. São Paulo:


Editora Revista dos Tribunais, 1 976, p. 241 /242.
MARISTELA 5ABBAG ABLA - 1 15

cerem a arbitragem como forma de solução de conflitos decorrentes de


contratos desta natureza. Para tanto, é imprescindível a determinação
do local onde o processo de arbitragem será conduzido, da Câmara de
Arbitragem competente, e, ainda, da forma de nomeação dos árbitros,
para que seja evitado qualquer questionamento acerca de validade e efi­
cácia da cláusula arbitral.
Independentemente da solução escolhida pelas partes, é necessário
que as cláusulas a esse respeito sejam elaboradas claramente e com ri­
queza de detalhes, de modo a garantir segurança às partes acerca de sua
eficácia e validade.

VI. Ü IMPORTANTE PAPEL DA AUDITORIA JURf DICA ( LEGAL


DUE DILIGENCE) NO PROCESSO DE IDENTIFICAÇÃO DAS
CONTING�NCIAS SUCEDI DAS
Apesar das disposições constantes na cláusula de declarações e ga­
rantias prestadas pelo vendedor acerca da real situação do negócio a ser
adquirido, alguns compradores têm interesse em confirmar, por inter­
médio de seus próprios advogados e consultores, as obrigações e contin­
gências a serem efetivamente sucedidas quando da conclusão da operação.
É neste momento que a realização da legal due diligence (auditoria
jurídica) passou a ser essencial, e ainda, ousaria dizer, decisiva nas nego­
ciações de operações desta natureza, e conseqüentemente em seu êxito
ou malogro.
Tal processo é de extrema relevância já que visa detectar os riscos
financeiros da operação, em razão do principal efeito da reorganização
societária, ou seja, o instituto da sucessão empresarial. Estes longos e
trabalhosos processos visam, assim, quantificar as contingências jurídi­
cas, financeiras e contábeis de forma a racionalizar seus riscos.
Due diligence é o jargão utilizado para denominar os procedimen­
tos de coleta de informações, que se tornaram populares nos Estados
Unidos por meio do Securities Exchange Act publicado em 1933 pela
Securities and Exchange Commission (SEC), agência que regula o merca-
116 - REORGANIZAÇÃO Soc1ETÁRIA

do de capitais norte-americano, de forma equivalente à nossa Comissão


de Valores Mobiliários (CVM)2º . Utilizada inicialmente no mercado
de capitais, para levantar informações sobre as empresas emissoras de
ações que serão disponibilizadas em seus prospectos, documentos in­
formativos necessários para a realização da oferta pública, a due diligence
ampliou seu campo de utilização, passando a ser considerada quase que
imprescindível para assegurar o sucesso de grandes operações de reor­
ganização societária.
Apesar da polêmica em torno da real origem deste vocábulo,
fato é que a sua utilização tem sido disseminada internacionalmente
a fim de incluir qualquer tipo de investigação sobre os riscos ou con­
tingências que podem ser adquiridas em relação à aquisição de uma
sociedade ou de seus ativos em um contexto empresarial.
O processo de due diligence envolve basicamente a coleta de infor­
mações a fim de realizar levantamentos e análises detalhadas acerca da
atual situação do negócio a ser adquirido. Qyanto maior a quantidade
de informação e os detalhes obtidos, mais precisos serão os subsídios e
elementos para realização de projeções de natureza financeira, econô­
mica, jurídica e estratégica quanto ao futuro do negócio adquirido, após
o fechamento da operação.
Por isto, normalmente, este processo é conduzido antes das par­
tes firmarem qualquer compromisso definitivo com o intuito de veri­
ficar a situação jurídica, econômica e financeira da sociedade objeto.
Uma vez iniciado o processo de investigação legal, o primeiro passo
importante a ser dado pelos advogados é a elaboração de um questionário
relacionando as informações que deseja obter do vendedor, de acordo
com as circunstâncias específicas da operação. A despeito da singulari­
dade das condições de cada operação, alguns dos tópicos que não po­
dem estar ausentes nesta lista de informações são: aspectos societários,
aspectos contratuais (incluindo obrigações financeiras e apólices de se-

20 SADDI, Jai ro (Organizador). Fusões e Aquisições: Aspectos Jurídicos e Econômicos. São


Paulo: IOB, 2002, p. 205.
MARISTELA 5ABBAG ABLA - 117

guro), aspectos tributários, aspectos trabalhistas e previdenciários, lití­


gios, propriedade industrial, aspectos regulatórios, ativos e ônus e gra­
vames reais que recaiam sobre os mesmos e questões do meio ambiente.
Independentemente da natureza deste questionário, a questão que
suscita muitas divergências em torno da condução do processo de due
diligence trata-se da eventual responsabilização imputada aos advogados
pela exatidão e fidedignidade das informações fornecidas pelo vende­
dor, já que é com base nesta informação que os advogados elaboram o
respectivo relatório de due diligence.
O processo de due diligence é basicamente realizado e conduzido
com base nas informações e documentos fornecidos pelo vendedor, com
algumas exceções, conforme o assunto, algumas investigações indepen­
dentes são realizadas pelos advogados. Porém, como saber se foram pres­
tadas informações completas sobre a situação dos negócios a serem
adquiridos que permitam ao comprador realizar uma apuração precisa
de seus ativos e uma identificação clara e exata de suas contingências?
Esta é uma dúvida perene em qualquer processo de due diligence,
podendo ainda ser acentuada quando os administradores da empresa a
ser adquirida não facilitam o acesso a informações e documentos, ou até
mesmo, dificultam o trabalho dos advogados e demoram em prestar os
esclarecimentos solicitados. Na maioria das vezes, esta postura é justifi­
cada diante da incerteza do futuro da empresa após a efetiva transferên­
cia dos negócios para o comprador, já que seus respectivos cargos correm
sérios riscos diante da nova administração. Desta forma, é mister que o
vendedor assegure de que os administradores da empresa auditada coo­
perem com o comprador e seus consultores para uma boa condução do
processo de due diligence e o fechamento do negócio.
Ao nosso ver, a fim de se exonerar de eventual responsabilidade
futura, cabe ao advogado colocar por escrito toda e qualquer documen­
tação e informação disponibilizada pelo vendedor, e ainda todas as soli­
citações de documentos e/ou informações faltantes, o que lhe servirá
como elemento de defesa de que o mesmo desconhecia eventual omis­
são, falsidade ou manipulação das informações disponibilizadas pelo
1 18 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

vendedor, tendo conduzido o processo com todo o cuidado necessário e


após razoável investigação21 que o assegurou a exatidão e completude
das informações, tendo sido incapaz de induzi-lo ao erro.
Esta idéia está claramente prevista nas normas americanas, especi­
ficamente nas Seções 1 1 (b)(3)A e 12(a)(2) do Securities Act de 193J22 ,
ao estabelecer que o processo de due diligence deve ser realizado com
reasonable investigation e reasonable care23. De acordo com tais disposi­
ções, na hipótese de declaração falsa, enganosa ou na hipótese de omis­
são de informação relevante, o prestador da informação não será
responsabilizado se provar que tinha motivo razoável para acreditar ou
não acreditar, após investigação razoável e imbuído de zelo razoável, de
que naquela data esta determinada informação era verdadeira e que não
havia qualquer omissão de fato relevante ou necessária para que a infor­
mação não fosse considerada enganosa.
Um caso americano clássico com relação ao padrão apropriado de
responsabilidade das partes envolvidas em um processo de due diligence é
o Escottv. BarChris Construction Corporation, 283 F. Supp. 643 (S.D.N.Y.
1968). Trata-se de um caso de emissão de debêntures pela BarChris Cons­
truction Corporation, quando foram divulgadas algumas declarações fal­
sas acerca das suas condições financeiras. Os réus acabaram alegando as
defesas de due diligence compreendendo a condução de investigação razo­
ável e observância ao zelo razoável. De acordo com o entendimento da
Corte americana neste caso específico, due diligence varia de acordo com
dois fatores: (1) o acesso à informação interna da empresa por parte da
pessoa que prestou a declaração; e (2) a posição desta pessoa perante a
empresa, quer seja na qualidade de funcionário interno ou de um terceiro
contratado. A Corte americana considerou solidariamente responsáveis

21 O termo razoável é aqui util izado n o sentido do que é justo e compreensível por s e basear
em razões sólidas, exclui ndo-se significação de aceitável, mediano ou suficiente, como
coloquial mente uti lizado.
22 PALMITER, Alan R. Securities Regulation: examples and explanations. New York: Aspen
Law & Busi ness, 1 998, p. 1 64-1 74.
23 Estes argumentos são conhecidos como elementos d e defesas em processos d e due diligence
(due diligence defenses).
MARISTELA 5ABBAG ABLA - 119

os advogados, o representante da empresa e a pessoa responsável pela ela­


boração das declarações falsas. Segundo entendimento deste tribunal, tais
pessoas ocupavam uma posição especial e deveriam ter investigado indí­
cios de que alguma coisa estava errada.
A Corte declarou ainda que é impossível definir uma regra rígida
que seja apropriada para cada caso, na qual contenha a extensão exata
que esta investigação e verificação deva ser conduzida. É uma questão
de grau, uma questão de julgamento de cada caso concreto. Naquele
caso, os advogados não fizeram praticamente nenhuma tentativa para
verificar as declarações da administração24 •
Apesar da responsabilidade pelo fornecimento dos documentos e
preparo das informações disponibilizadas ser essencialmente do vende­
dor, caberá ao advogado, imbuído de zelo razoável, analisar as informa­
ções e documentos disponibilizados, além de conduzir uma investigação
razoável a fim de verificar sua veracidade, exatidão e completude, e não
meramente aceitá-los.
Ademais, o processo de due diligence e o conteúdo das declarações e
garantias analisadas anteriormente deveriam servir ao vendedor como
um meio de defesa a fim de evitar sua responsabilização por prejuízos
eventualmente causados ao comprador por informações imprecisas,
manipuladas ou omitidas.
Em suma, não existe um procedimento padrão a ser seguido, nem
uma lista modelo das informações a serem divulgadas pelo vendedor,
muito menos o nível de divulgação esperado no curso do processo de
due diligence em operações de reorganização societária, especialmente
fusões e aquisições.
Segundo William J. Carney, a natureza da investigação de compra
irá variar de acordo com as circunstâncias individuais de cada operação.
A investigação pode ter uma variedade de propósitos e envolve diferen­
tes pessoas, e certamente envolve uma história empresarial do vende­
dor, sua estrutura jurídica, passivo atual, e compromissos financeiros. A

24 CARNEY, William J . Mergers and Acquisitions. New York: Foundation Press, 2000, p. 664.
1 20 - REORGANIZAÇÃO 50CIETÃRIA

extensão destas investigações anterior ao fechamento depende, em par­


te, da natureza das declarações e garantias, se estas permanecerão vi­
gentes após o fechamento, e a força da indenização25 •
Essencialmente, cabe ao vendedor e seus funcionários e consulto­
res a disponibilização de todas as informações e documentos que se fa­
çam necessários para viabilizar ao comprador e seus consultores, no
exercício de seu bom senso, cuidado e zelo, uma avaliação completa do
valor dos ativos e passivos, da situação financeira, lucros, perdas e pers­
pectivas da empresa a ser adquirida, os quais serão sub-rogados ao mes­
mo pelo instituto da sucessão empresarial. Conjunto este que irá variar
conforme o caso concreto, as partes envolvidas e a natureza e volume da
operação almejada.
O sucesso da due diligence depende da cooperação das partes, não
só do vendedor, quanto ao fornecimento das informações, documenta­
ção e prestação das declarações, mas também do comprador, em como
apurar e mensurar o impacto destas informações na negociação de for­
ma ética.

VII. CONCLUSÃO
Em suma, nos negócios jurídicos que envolvem participação socie­
tária, o problema central abrange a questão do grau de divulgação das
informações acerca do conjunto de ativo e passivo a ser sub-rogado ao
sucessor.
Tal questão se torna ainda mais relevante em caso de constatação
de discrepância naquelas informações em relação a real situação da em­
presa objeto da negociação.

25 CARN EY, William J. Mergers and Acquisitions. New York: Foundation Press, 2000, p. 635
- "The nature of the purchase investigatian will vary depending upon the individual
circumstances of each transaction. The investigation may have a variety of purposes and
involve many different personnel; it should certainly involve, however, a business history of
the se/ler, its legal structure, current liabilities, and financial commitments. (... ) The extent of
these investigations prior to closing is dependent, in part, upon the nature of the
representations and warranties, whether they will survive the c/osing, and the strength of
any indemnification. 11
MARISTELA 5ABBAG ABLA - 121

Verifica-se, assim, neste contexto, a importância de reduzir esse


desequilíbrio, promovendo o processo de due diligence e incluindo as
cláusulas de declarações e garantias (representations and warranties) nos
competentes contratos.
Pela teoria contratual mais recente, esse é um clássico tema para se
tratar sob a cláusula geral da boa-fé e dos correlatos deveres acessórios.
Portanto, é mister às partes que tenham sempre em mente o exato
papel que desempenham para o sucesso de uma boa negociação, princi­
palmente seus deveres de informação e lealdade que são fundamentais
não apenas para um desfecho satisfatório, como também para o tran­
qüilo prosseguimento dos negócios após o fechamento.

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A Arbitragem nas
Joint Ventures

Eduardo Spinola e Castro

Advogado em São Paulo e no Rio deJaneiro


Ex-Professor da PUC/Rj
1 24 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

Com este artigo pretende o autor transmitir ao leitor algumas re­


flexões feitas a partir de sua experiência profissional na estruturação
jurídica de joint ventures nacionais - uma das formas de reorganização
societária - e internacionais e na participação, como advogado, em arbi­
tragens comerciais internacionais.
Procura o autor transmitir a noção de joint venture, estabelecer os traços
distintivos desta forma de colaboração empresarial, e mostrar os casos mais
típicos de divergências entre os parceiros ou co-venturers, passando então a exa-
. minar as formas de solução dessas divergências. Busca transmitir ao leitor
a noção de arbitragem, e demonstrar as vantagens desse instituto em rela­
ção à jurisdição estatal. Finalmente examina, de um ponto de vista eminen­
temente prático, a convenção de arbitragem e seu conteúdo.

1 As JotNT VENTURES
.

Ajoint venture, ou association d'entreprises, é forma de cooperação em­


presarial cada vez mais utilizada, em especial no comércio internacional, e
inúmeras obras doutrinárias lhe foram consagradas1 Embora o foco deste •

trabalho seja a utilização da arbitragem para solução de divergências entre


os co-venturers, é importante delinear os traços distintivos desta forma de
cooperação, dos quais se extrai a conclusão em favor da escolha da arbitra­
gem, de preferência a outros meios de pôr término aos litígios.
Designa-se porjoint venture, genericamente, a cooperação estável
entre sociedades para o desenvolvimento de um ou mais empreendi­
mentos comuns.
É no direito norte-americano que se encontra a origem dajointventu­
re. Segundo um autor, ''America assimilated French experience, borrowed the
namefrom Scotland, and domesticated its own business organization which is
denominatedjoint venture orjoint adventure"2 A flexibilidade e a facilida-

Ver, em especial, "Les Assoc iations d'Entreprises (Joint Ventures) dans le Commerce
lnternational", Luiz Olavo Baptista e Pascal Durand-Barthez, Paris, Feduci, Librairie Générale
de Droit et de Jurisprudence", 2' ed., 1 99 1 .
2 J. Taubman, citado por L.O. Baptista e Durand-Barthez, ob. cit., p. 8.
EDUARDO 5PINOLA E CASTRO - 1 25

de de organização reconhecidas pela jurisprudência norte-americana à


joint venture fizeram com que ela fosse adotada por sociedades america­
nas para seus empreendimentos conjuntos com outras sociedades ameri­
canas no estrangeiro, e depois para empreendimentos conjuntos com
sociedades de outros países, até ser utilizada de forma quase universal,
mesmo nos países socialistas da Europa pré-queda do império soviético.
A joint venture pode ser estruturada através de uma empresa sob
controle comum dos co-venturers (corporatejoint venture), ou não reves­
tir personalidade jurídica própria (non-corporatejoint venture). Dentre
asjoint ventures sem personalidade jurídica própria, podem-se ainda dis­
tinguir as disciplinadas por acordos de cooperação, tais como os contra­
tos de serviço com contribuição de capital de risco, e as estruturadas sob
a forma de sociedades sem personalidade jurídica: as sociedades em conta
de participação do direito brasileiro, associazione in partecipazione do
direito italiano, sociétés en participation do direito francês.
Bulhões Pedreira define joint venture como "o contrato de sociedade
entre dois empresários, que se obrigam a conjugar eiforços e recursos com ofim
de exercer em conjunto aJunção empresarial em determinado empreendimen­
to econômico, ou empresa"3 •
L.O. Baptista e Durand-Barthez propõem uma d�finição dejointven­
ture que repousa sobre quatro critérios: uma associação de caráter contratual,
com objeto limitado, compreendendo a comunhão de meios e riscos e o acesso igua­
litário dos participantes à tomada de decisões, aos quais se pode acrescentar,
segundo os mesmos autores, a partilha de resultados, que implica na pre­
sença de umaforma de sociedade, dotada ou não de personalidadejurídica4•
Em definição sintética, pode-se designar por joint venture uma "co­
laboração estável entre empresas, no quadro de uma sociedade de capi­
tal submetida a um controle comum"5 • A esta noção, acrescentaríamos

3 in Parecer publicado em "Lei das S.A.," 1' ed., 1 º vol., p. 363,ed. Renovar, 1 992
4 L.O. Baptista e Durand-Barthez, ob.cit., p. 56
5 Bortolotti e Marsesi, citados por Al fredo Lamy Filho em Parecer publ icado em "Lei das
S.A.", Parte Ili, 2' ed, 2º vol., ed. Renovar, p. 1 83.
1 26 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

que se trata de colaboração entre empresas sob controle de capital di­


verso, com o que se distingue claramente ajoint venture da sociedade
integrante de grupo de empresas. Uma característica relevante das
joint ventures é apontada nesta definição: o controle comum. Najoint
venture, nenhum dos participantes exerce isoladamente o controle; ele
é compartilhado entre os co-venturers, ainda que, em certos casos, sim­
plesmente através da atribuição, ao minoritário, de um direito de veto
para certas deliberações.
Ajoint venture se estrutura a partir de um acordo de base e de outros
acordos secundários, que a doutrina convencionou chamar de acordos­
satélites. O acordo de base é, no dizer de um autor, "a própria joint
venture"6 • Ressaltam outros autores que ele é um acordo "sob medida",
menos formal, que contém a verdade sobre as relações entre os partici­
pantes7 , por oposição a alguns dos acordos-satélites, que muitas vezes
se têm de conformar a moldes previstos para situações gerais. (assim,
p. ex., os estatutos da sociedade por ações que corporificam a empresa
comum, ou o contrato de fornecimento de tecnologia) . É o acordo de
base que define os objetivos dajoint venture, a forma de compartilha­
mento do controle - ou equilíbrio do poder - a administração da em­
presa comum, as contribuições de cada uma das partes, a partilha de
resultados, a duração dajoint venture. É também - e este é o foco do
presente trabalho - o acordo de base que define (ou deve definir) as
formas de solução de divergências entre as partes.
O acordo de base pode revestir diversas formas, como a de um
contrato preliminar, ou MoU (Memorandum of Understanding), ou a
de um contrato de investimento ou assemelhado, ou a de um contrato
complexo de compra e venda de ações (se o veículo dajoint venture for
sociedade anônima preexistente, em que o participante até então con­
trolador admite o ingresso do outro através de venda de ações), ou a
de acordo de acionistas (isto se dá, usualmente, nos casos de constitui-

6 Alfredo Lamy Filho, ob. cit., p. 1 84


7 L.O. Baptista e Durand-Barthez, ob. cit., p. 59
EDUARDO 5PINOLA E (ASTRO - 127

ção de nova sociedade por ações, sob controle conjunto, e também na


hipótese de aumento de capital para ingresso do novo acionista).
Olialquer que seja sua forma, é o acordo de base que deve servir sem­
pre de guia para a interpretação da intenção dos participantes.
Uma última palavra deve ser dita sobre a estruturação das joint
ventures: a lei brasileira do anonimato contém, no dizer de um dos autores
de seu anteprojeto, "os quadros e os instrumentos necessáriospara a contratação
e ofancionamento de empreendimentos comuns ("joint ventures")8 • A socieda­
de anônima fechada, em que se admite a existência de ações ordinárias
de diversas classes, com distintos direitos políticos, o quorum especial
de deliberação, e a restrição à circulação de ações, assim como a execu­
ção específica dos acordos de acionistas, constitui mesmo o veículo ide­
al para a estruturação das joint ventures, ainda mais em vista da nova e
complicada disciplina das sociedades de responsabilidade limitada9 , ins­
tituída pelo Código Civil de 2002.

2. ÜS TRAÇOS DISTINTIVOS DA JOINT VENTURE


Distinguem ajoint venture de outras formas de cooperação empre­
sarial: a comunhão de meios e riscos, a estabilidade, o objetivo determi­
nado, o controle comum e a partilha de resultados.
Da comunhão de meios e riscos, decorre o dever de leal cooperação
entre os co-venturers, que muitos chamam de lealdade reforçada, ou la
plus extrême bonnefai (" uberrimafide")10 •
A moderna concepção da relação obrigacional contempla o princí­
pio da boa fé, acolhido pelo Código Civil Brasileiro de 2002 em seu art.
422. S egundo Antunes Varella, a relação obrigacional comporta, além
dos deveres de prestação, os chamados "deveres de conduta", que a boa fé
ou a natureza especial da obrigação impõem, tanto ao credor como ao

8 Alfredo Lamy Filho, ob. cit., p. 1 86. Ver também Fábio Konder Comparato, in RDM nº 27,
p. 90/91 ( 1 977) e RDM nº 36 (1 979, p. 66).
9 O autor prefere não utilizar a denomi nação "sociedade limitada", adotada pelo Cód. Civil
de 2002, porque limitada é a responsabilidade, não a sociedade . . .
1O Vide L.O. Baptista e Durand-Barthez, ob. cit., p. 5
1 28 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

devedor, "no exercício do direito ou no cumprimento do dever de prestar'. São


condutas essenciais para que a prestação possa efetivamente satisfazer o
interesse do credor. Por isso, segundo o mesmo autor, os contraentes estão
vinculados "à observância do comportamento que não destoe da idéia de leal
cooperação que está à base do contrato"11 •

O dever de lealdade e cooperação entre contratantes, sejam eles co­


venturers ou não, é princípio assente no comércio internacional. Enten­
dendo-se por lealdade12 , segundo autor francês: "[..] l'obligation de se
conduire d'unefaçon loyale signifie, pour chaque partie, ''l'obligation d'avoir
à l'égard de l'autre un comportement qui nepuisse !ui nuire". Tamanha é sua
importância e extensão de reconhecimento que foi positivado nos prin­
cípios UNIDROIT.13
Especificamente no direito brasileiro, encontramos, tanto no anti­
go Código Civil, como no novo, a exigência da boa fé que, como bem
destacou Arnoldo Wald, é princípio basilar que inspira a execução dos
contratos: "Poderíamos até dizer que há, atualmente, um direito novo, que é
o da parceria com princípios próprios, caracterizado por contratos dinâmicos
de longo prazo, inspirados na boafé e nos quais as partes não só devem cum­
prir as obrigações por elas assumidas, mas incumbe-lhes, ainda, manter o es­
pírito do contrato, adaptando-o diante de novas circunstâncias."14 Ainda
segundo esse mesmo autor: "[ . ] o atual Código [Civil de 2002] intro­
. .

duz, como cláusula geral, o dever de um comportamento de boa-fé objetiva,


que incumbe a todos os integrantes da sociedade civil e, em particular, aos
contratantes. Trata-se de incluir nos contratos, em virtude da interpretação e
da construção, deveres secundários ou derivados de ieformação, conselho e até
cooperação, assim como a proibição de certas omissões. Cria-se, assim, um de-

11 ln "Das obrigações em geral", Coimbra, ed. Almedina, 1 970, págs 85/86 e 1 87.
12 FACES, Bertrand, Le comportement du Contractant, Presses Universitaires d'Aix- Marseille,
1 997, p. 301
13 Article 1 . 7 (Bonne foi):
1 ) Les parties sont tenues de se conformer aux exigences de la bonne foi dans le commerce
international.
2) Elles ne peuvent exclure cette obligation ni en limiter la portée."
14 "A Arbitragem e os Contratos Administrativos", in www.camarbra.com.br (Câmara d e Co­
mércio Argentino Brasileira de São Paulo).
EDUARDO 5PINOLA E CASTRO - 1 29

ver de lealdade na contratação e na execução do contrato que está vinculado


basicamente às noções de confiança e de equilíbrio."
Sustenta-se que, najointventure, pela natureza mesma do contrato,
o dever de leal cooperação, ou de lealdade extremada, vai mesmo além
do dever de boa fé aplicável aos contratos em geral, e compreende a
obrigação de executar o contrato fazendo-se útil ao co-contratante, de
forma a proporcionar-lhe a maior satisfação possível, mesmo para além
das especificações contratuais.
A estabilidade é outra característica dajoint venture. Os co-ventu­
rers visam criar uma empresa (no sentido econômico), naturalmente vo­
cacionada para durar, ao menos enquanto a atividade que dela é objeto
se mostre viável e proveitosa.
O compartilhamento do controle é também da natureza dajoint
venture. Neste ponto, esclareça-se em primeiro lugar que comparti­
lhamento de controle não significa, necessariamente, participação igua­
litária no capital da sociedade comum. Controle e propriedade são
conceitos distintos. No dizer de Ferri, controle significa que a "ação da
sociedade controlada pode ser, concretamente, determinada pela sociedade
ou ente controlante''l5• O controle pode ser exercido individualmente ou
em conjunto, sem que o controlador ou controladores detenha(m) a
propriedade da maioria das ações representativas do capital, seja atra­
vés da criação de ações ordinárias de diversas classes, com direitos
políticos distintos (Lei 6.404/76, art. 16, III), seja através do estabele­
cimento de quorum especial de deliberação para determinadas maté­
rias (Lei 6.404/76, art. 129 § 1°), seja pela conjugação desses dois
mecanismos, seja pelo acordo de voto pactuado em acordo de acionis­
tas com execução específica (Lei 6.404176, art. 1 1 8). Frise-se que a
noção de controle compartilhado abrange também a hipótese de con­
vívio entre um acionista majoritário e um minoritário que detenha
direito de veto sobre determinadas deliberações sociais.

15 Citado por Fábio Konder Comparato in "O Poder de Controle na Sociedade Anônima", 2'
ed., RT, 1 9 77, pág. 89
1 30 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

3 . As DIVERG�NCIAS ENTRE OS PARTICIPANTES DA JOINT


VENTURE
Como qualquer contrato, ajoint venture encerra em si a possibili­
dade de divergências entre as partes. Talvez mais do que qualquer ou­
tro, devido às características desse contrato: ter por objeto uma empresa; ser
de longa duração, portanto sujeito às vicissitudes de qualquer empreen­
dimento econômico, como mudanças de cenário econômico, mudanças
políticas, mudanças legislativas; impor aos co-venturers, via de regra,
obrigações de prestações acessórias, além das contribuições pecuniárias,
etc. A complexidade natural aos contratos de joint venture pode engen­
drar conflitos que superam a simples interpretação ou integração das
cláusulas específicas dos acordos das partes.
Divergências comuns são as que versam sobre: as contribuições de
cada parceiro para ajoint venture, em especial as non-equity contributions,
que dão lugar a interpretações variadas quanto a haverem sido bem ou
mal prestadas; as declarações e garantias (representations and warranties)
da parte que vendeu à outra a participação na empresa comum; a garan­
tia de resultados futuros, na mesma hipótese16 ; a gestão da empresa co­
mum, inclusive quanto ao preenchimento dos cargos-chave de sua
direção; a apuração dos resultados; distribuição dos resultados sob a for­
ma de dividendos; situações de impasse na tomada de decisões. Além
desses conflitos, outros podem surgir em função do próprio desenvolvi­
mento da atividade objeto dajoint venture: lançamento de novos produ­
tos ou serviços, ou a cessação de alguns; concentração ou ampliação de
canais de distribuição; extensão ou redução territorial das atividades,
entre outros.

1ó Ver a decisão no caso CCI nº 1 1 495/KGA, decidido por sentença do árbitro único Dr.
Michael Bühler em 9 . 1 2 . 2002: "Subject to a price adjustment mechanism that was based
upon the results of "X", Claimant was also to contribute up to 50% of the price of the recent
acquisitions of catering services made by "X" up to the time of the 19 . . agreement. Claimant
contends that the contractua/ price adjustment mechanism was wrongly applied by
respondent.11
EDUARDO 5PJNOLA E CASTRO - 131

4. As DIVERSAS FORMAS DE SOLUÇÃO DE DIVERG�NCIAS: A


JUSTIÇA ESTATAL, A MEDIAÇÃO E A ARBITRAGEM
Como dissemos acima, o acordo-quadro deve prever a forma de
solução das divergências entre as partes. Ademais, é aconselhável que
cada um dos acordos-satélites preveja também a mesma forma de solu­
ção de litígios contemplada no acordo-quadro. Assim, em caso de di­
vergências restritas às matérias contempladas em apenas um, ou mesmo
mais de um acordo-satélite, mas que não se estendam à totalidade das
relações entre as partes, é possível levar ao judiciário ou à arbitragem
apenas o acordo objeto do conflito.
No silêncio do contrato, qualquer das partes estará livre para recor­
rer diretamente à justiça estatal.
Entretanto, podem as partes eleger outras formas de solução de confli­
tos. As mais clássicas são a mediação (conciliation) e a arbitragem.
Consiste a mediação em recorrer a um ou mais mediadores, estranhos
à relação das partes, que as assistirão na busca de soluções mutuamente
aceitáveis. Muitas Câmaras de Comércio e associações de classe empresa­
riais mantêm centros de mediação, paralelamente a seus centros ou câmaras
de arbitragem; é o caso da Câmara de Comércio Intemacional17 - CCI, e,
no Brasil, da Câmara de Comércio Brasil-Canadá, das Eurocâmaras e
da FIESP - Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Trata­
se, porém, de função de mero aconselhamento, não tendo os mediadores
qualquer poder decisório. Assim, frustrada a mediação, nada impede que
qualquer das partes se dirija ao Poder Judiciário.
A arbitragem é conceituada por um eminente processualista como
"a instituição pela qual as pessoas capazes de contratar confiam a árbi-

17 Trata-se de Alternative Dispute Resolution, ADR, recurso que vem se difundindo entre empre­
sas internacionais para solução de seus litígios. A CCI publicou, em julho de 200 1 , duas
cláusulas-tipo prevendo a mediação como meio de solução de diferendos, quais sejam: (1 )" Les
parties peuvent, à tout moment et sans préjudice de toutes autres procédures, rechercher un
réglement de tout différend résultant du présent contratou s'y rapportant, conformément au
Réglement AOR de la CC/."; (2) "En cas de différend résultant du présent contratou s'y rapportant
les parties conviennent de discuter et d'envisager de fair appel en premier lieu à la procédure
de réglement des différends prévue par le réglement AOR de la CCf'.
1 32 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÃRIA

tros, por elas indicados ou não, o julgamento de seus litígios relativos a


direitos transigíveis." 1 8
Guasp a define como "a resolução de um conflito por u m terceiro, a
cuja decisão se submetem os contendores"19 •
A doutrina e a jurisprudência francesa não deixam dúvida quanto à
natureza jurisdicional da arbitragem: "L'arbitrage suppose qu'ait été con­
férée à un tiers une mission juridictionne!le"2º .
A lei brasileira de arbitragem reconhece também essa natureza ju­
risdicional à arbitragem, ao dispor, no art. 3 1 :
''Art. 3 1 . A sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os
mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário,
e, sendo condenatória, constitui título executivo."

A mesma lei, em seu Capítulo II, ao tratar da cláusula compromis­


sória e do compromisso, engloba ambos os institutos sob a designação
de "convenção de arbitragem", deixando claro que a arbitragem tem
amparo no contrato.
Com a edição da Lei 9.307/96 ficou assim superada, ou ao menos
relegada ao plano de mera curiosidade acadêmica, a polêmica entre par­
tidários da chamada corrente publicista e os defensores da natureza pu­
ramente contratual da arbitragem.
O poder jurisdicional dos árbitros não provém exclusivamente das
partes, por via do contrato, mas igualmente da lei, que disciplina "o exer­
cício da atividade arbitral e a eficácia do produto que resulta dela."21
Pode-se, portanto, afirmar que a arbitragem é uma jurisdição pactua­
da22 , instituto misto, ao mesmo tempo um contrato e uma função jurisdicio­
nal privada. Ou, em outras palavras, a arbitragem é uma opção dejurisdição.

18 Carreira Alvim, in ''Tratado Geral da Arbiragem", ed. Mandamentos, Belo Horizonte, 2000, p. 1 4
19 Apud Paulo Furtado e Uadi Lammêgo Bu los, "Lei da Arbitragem Comentada", ed. Saraiva,
2' ed., 1 998, p. 23
20 Alexis Mourre e Priscille Pedone, in Les Cahiers d'Arbitrage, Gazette du Palais, Ed. Juillet
2002, p. 273.
21 Carreira Alvim, ob. cit., p. 57
22 Cuido F.S. Soares, "Arbitragens Comerciais Internacionais no Brasil", in RT 64 1 , 3 1
EDUARDO 5PINOLA E CASTRO - 1 33

Não há que confundir arbitragem e arbitramento. No arbitramento,


está ausente a missão jurisdicional, resumindo-se a missão do terceiro a
uma avaliação, uma estimativa, ou um cálculo; mesmo se as partes em­
prestaram caráter obrigatório à decisão do terceiro, não se trata aí de arbi­
tragem. Neste sentido, é clara a lição da jurisprudência francesa: "Celle-ci
{la missionjuridictionelle} ne se réduitpas au caractere obligatoire de la décision
du tiers. IIJaut que celui-ci ait à dire le droit."23
A arbitragem é, portanto, forma de solução definitiva e obrigatória
de litígios sobre direitos patrimoniais disponíveis, entre partes capazes
de contratar. A decisão arbitral se equipara, no Brasil, a partir da Lei
9.307196, à sentença judicial em processo de conhecimento. A arbitra­
gem não apresenta hoje qualquer desvantagem em relação ao processo
judicial.
Qyal ou quais, porém, as suas vantagens, em relação ao recurso à
jurisdição estatal?

5. POR QUE A ARBITRAGEM?


As razões mais conhecidas para se adotar a arbitragem de prefe­
rência à jurisdição estatal são apontadas pelo conhecido Black's Law
Dictionnary, citando uma decisão judicial norte-americana, para afir­
mar que a arbitragem "is intended to avoid theformalities, the de!ay, the
expense and vexation ofordinary litigation"24 • Foi justamente para fugir
aos excessos do sistema judiciário norte-americano que nasceram, nos
Estados Unidos, os "ADR", "Alternative Dispute Resolution", ou media­
ção, por iniciativa de grandes grupos empresariais. Críticos daquele
sistema não se cansam de apontar para as desvantagens da discovery25 ,
das intermináveis e agressivas cross examinations, e, pior do que tudo,
os riscos do julgamento por júri dos litígios comerciais.

23 1 ere. Ch. de la Cour d'Appel de Paris, 21 décembre 2000, in Revue de l'arbitrage, 2001, p. 1 78
24 Wauregan Mill lnc. vs Textile Workers Union oi America, in Black's Law Dictionary, 6th.
edition, p. 1 05
25 Comunicação obrigatória à parte adversa de documentos e dados por ela solicitados no
processo.
1 34 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

Estas são, realmente, razões ponderáveis em favor da eleição da


arbitragem como meio de solução de litígios comerciais, mas, no caso
das joint ventures, e em especial no que toca àsjoint ventures internacio­
nais, existem outras, e não de menor peso.
Como se destacou mais acima, os acordos dejointventure têm carac­
terísticas especiais, e se mostram sempre bastante complexos. Além dis­
so, existe uma tendência crescente de adoção de cláusulas-padrão, a maior
parte originada da common law26 (exemplos típicos são as cláusulas de
Representations and Warranties e de confidencialidade), a que, via de regra,
não estão afeitos os juízes estatais. Já os árbitros integrantes dos organis­
mos institucionais de arbitragem são, quase sempre, experimentados ad­
vogados de negócios, cuja formação e vivência profissional os torna melhor
capacitados tecnicamente para julgar litígios comerciais.
Há que levar em conta também o desejo natural dos co-venturers de
preservar a continuidade da empresa comum, assim como de evitar a ex­
posição de detalhes de sua associação; quando o litígio entre os parceiros
é levado a juízo, é quase impossível, devido à publicidade do processo
judicial, evitar a contaminação do ambiente de trabalho da empresa pelo
azedume das desavenças sociais; o sigilo que cerca as arbitragens permite
preservar o empreendimento comum27 •
Acrescente-se a isso a maior celeridade do procedimento arbitral.
Basta ver que dados da Câmara de Arbitragem da CCI indicam que o
tempo médio de duração de uma arbitragem - e se está falando de ques­
tões de grande expressão econômica e complexidade - é de 21 meses,
enquanto que, no Tribunal de Justiça de São Paulo, somente a distribui­
ção de uma apelação cível para uma das câmaras não leva menos de um
ano, e pode levar até quatro anos! Finalmente, é verdade que as custas

26 Diz-se hoje com freqüência que uma das repercussões relevantes da globalização sobre o
direito é a convergência entre os sistemas de direito codificado e a common law. Neste senti­
do, Serge Lazareff, nos Cahiers de I'Arbitrage da Revue du Palais, julho de 2002, p. 1 3/14.
27 O autor pode mencionar, sem nomes, o caso de uma joint venture estabelecida no Brasil
entre dois grupos de capital estrangeiro que1 enquanto os sócios discutiam em procedimen­
to arbitral na Europa, não só manteve intocadas suas atividades de rotina, como ampliou
sua fatia de mercado e desenvolveu novos produtos.
EDUARDO SPINOLA E CASTRO - 1 35

processuais estão sujeitas a limites que as tornam bastante módicas em


relação aos valores em disputa nos processos, enquanto os custos de um
procedimento arbitral (emolumentos dos centros de arbitragem, honorá­
rios dos árbitros) tendem a ser muito elevados; entretanto, é necessário
levar em conta o custo financeiro da demora da solução perante a jurisdi­
ção estatal.
No que se refere àsjoint ventures internacionais, existe uma natural
desconfiança do parceiro estrangeiro em relação ao sistema judiciário
do co-venturer local (aliás muitas vezes motivada por um efetivo prote­
cionismo do nacional, evidenciado em precedentes judiciais). A arbi­
tragem, seja por um organismo internacional como a CCI, seja por
centros de arbitragem de Câmaras de Comércio estabelecidas no País,
oferece a segurança da neutralidade. Além disso, a arbitragem admite
não só a decisão por eqüidade, como a aplicação da !ex mercatoria, ou
princípios gerais do comércio internacional, o que, para o parceiro não­
residente, pode ser fator de tranquilidade. J.P. B eguin analisa este fenô­
meno com precisão: "Lespartenaires à une entreprise conjointe internacionale
sont de dijférentes nationalités. La conception des affaires que l'on trouve
dans lespays développés et ceife que l'on trouve dans les pays en voie de déve­
loppement s'opposent sur de nombreux points. De plus, les partenaires repré­
sentent des systemesjuridiques dont les principes et les regles peuvent êtrefort
dissemblables à certains égards."28
Não precisamos nos alongar mais, para concluir em favor da esco­
lha da arbitragem como meio de solução das divergências entre parcei­
ros nas joint ventures, sobretudo nas internacionais.
Vale a pena, porém, discutir como utilizar esta poderosa ferramenta.
Além disso, discutir-se-ão problemas para os quais o redator de uma clá­
usula de arbitragem em grupos de contratos (o que sói ocorrer no caso de
joint-ventures) deve dar especial atenção, para que a arbitragem possa pro­
duzir os resultados pretendidos e não tornar-se outra fonte de problemas...

28 ln "Les Entreprises conjointes dans les Pays en Développement", Genebre, publ. d l'lhel, n.
50, 1 972, p. 1 42.
1 36 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÃRIA

6. COMO RECORRER À ARBITRAGEM: A CLÁUSULA


COMPROMISSÓRIA
A eleição da jurisdição arbitral faz-se antes da existência do litígio,
através da inserção, nos acordos, da cláusula compromissória ou cláu­
sula arbitral, ou, uma vez instalado o litígio, através do compromisso.
Cláusula compromissória e compromisso são duas formas de conven­
ção arbitral.
Entretanto, uma vez instalado o litígio sem que tenha sido antes pac­
tuado o recurso à arbitragem, e, de preferência, estabelecidas as respectivas
regras, dificilmente as partes chegarão a acordo sobre os termos do compro­
misso. Na ausência de uma cláusula compromissória, qualquer das partes
poderá recusar a arbitragem, e recorrer diretamente à jurisdição estatal.
Na prática, é imprescindível estipular a cláusula compromissá­
ria, e, ao fazê-lo, devem as partes ser tão minuciosas quanto possível.
O que se pode ou se deve disciplinar na cláusula compromissária:
a lei aplicável ao mérito, as regras de arbitragem, o local da arbitragem,
o número de árbitros e a forma de sua nomeação, o idioma do procedi­
mento, o prazo para a prolação da sentença.
Analisaremos rapidamente cada um desses pontos.

A LEI APLICÁVEL AO MÉRITO


A escolha da lei aplicável ao mérito (/ex contractus, governing law)
só tem lugar, em princípio, quando as partes são de diferentes naciona­
lidades. Assim, podem elas adotar a lei nacional de uma delas, ou a do
local da sede dajoint venture, que é normalmente o local de execução da
decisão arbitral, ou podem escolher a lei de um terceiro país (hipótese
rara, e que pode suscitar problemas na execução do julgado). A escolha
de uma lei diferente da do local onde se desenvolve a arbitragem pode
trazer um complicador, qual seja a necessidade de análise das normas
aplicáveis através de peritos-profissionais do direito.
Podem as partes convencionar a aplicação dos Princípios UNID ROIT
aos seus contratos. Trata-se de um conjunto de regras gerais para reger
os contratos do comércio internacional, elaborado por professores de
EDUARDO SPINOLA E CASTRO - 1 37

Direito Internacional do Comércio, representando países-membros do


Instituto para a Unificação do Direito Privado, com a participação, tam­
bém, de organismos internacionais e centros de arbitragem, como a CCI
e a Comissão da ONU para o Direito Internacional do Comércio (UN­
CITRAL).
Em vez da opção pelos Princípios UNIDROIT, os contraentes po­
dem referir mais genericamente a Lex Mercatoria, que tem origem nas
práticas dos atores do comércio internacional. Lex Mercatoria ou Usos e
Costumes do Comércio Internacional, ou ainda Princípios Gerais do Comér­
cio Internacional têm, na jurisprudência arbitral, o mesmo significado, e
a maioria das sentenças que versam sobre a matéria entende que o con­
ceito de Lex Mercatoria inclui os Princípios UNIDROIT. Vale frisar,
porém, que a escolha da Lex Mercatoria não inclui a autorização para
julgar por eqüidade.
As partes podem, por outro lado, autorizar os árbitros a decidirem
com base na eqüidade, agindo como amiable compositeurs. A lei brasilei­
ra de arbitragem, em seu art. 1 1, II, permite esta opção. Há autores que
indicam ser boa norma autorizar árbitros a decidirem como "amiable
compositeurs" ou por eqüidade, "ex aequo et bono".

As REGRAS DE ARBITRAGEM
As partes devem escolher as regras processuais disciplinadoras da
arbitragem. Podem escolher somente as regras, optando por uma arbi­
tragem ad hoc, ou escolher também um centro de arbitragem, como a
CCI, a London Court oflnternational Arbitration (LCIA) ou, no Bra­
sil, a FIESP, qualquer das Câmaras ou Centros de Arbitragem das Câ­
maras de Comércio (como as da Câmara Americana, da Câmara
Brasil-Canadá, das Eurocâmaras, etc.), que nestes casos aplicarão seus
próprios regulamentos.
Dentre as regras de arbitragem mais usadas internacionalmente
estão as Regras UNCITRAL, elaboradas pela Comissão da ONU para
o Direito Internacional do Comércio e as Regras da American Arbitra­
tion Association (abreviadamente, AAA) . As Regras UNCITRAL não
1 38 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÃRIA

estão vinculadas a qualquer centro de arbitragem; as Regras AAA são


vinculadas ao International Centre.for Disputes Resolution-ICDR.
Vale lembrar que, para uma parte contratante nacional de um país
de direito codificado (civil law), os regulamentos de arbitragem da
LCIA e da AAA provavelmente se mostrarão uma má escolha. Isto
porque aplicam, em matéria de procedimento, as regras de discovery29 e
o sistema de cross examination30 das testemunhas praticamente sem limi­
tações. A discovery, como praticada nas arbitragens LCIA e AAA, pouco
ou nada difere do que se faz nos procedimentos judiciais ingleses e norte­
americanos, e seu atendimento pode ser muito oneroso e trabalhoso para
uma parte que não se tenha cuidadosamente preparado para ela. A cross
examination sem limites é muito agressiva, pois permite que se formulem
perguntas induzindo à resposta desejada pelo interrogador.
É verdade que a admissibilidade, no procedimento arbitral, des­
ses meios de prova da common law dependerá, também, da nacionali­
dade e formação cultural dos árbitros. Árbitros que praticam o direito
em países da common law tenderão a não impor restrições à discovery e
à cross examination. Já árbitros de países de civil law normalmente
imporão limites aos eventuais excessos dos advogados das partes31 .

29 Comunicação obrigatória à parte adversa de documentos e dados por ela solicitados no


processo. Neste sentido, a explicação a segu ir é il ustrativa, W.G.O. Morgan, citado por
Lawrence W. Newman e Richard D. H i l l , Editors, The Leading Arbitrators' Cuide to
lnternational Arbitration, juris Publishing, lnc., 2004: "ln the first instance, an arder for
discovery requires a party to produce a list of ai! documents, save privileged ones, which
are, ar have been, in his possession, custody ar power, relating to matters in question. Any
document is disclosable which it is reasonable to suppose contains information which may
enable a party either to advance his own case ar to damage that of his adversary ar may
fairly lead to an inquiry which may have either ofthose two consequences. Conversely an
arder for specific discovery is available when a party has reason to believe that his opponent
has not fully complied with his obligations in respect of discovery e.g. when the disclosed
documents refer to others which have not themselves been disc/osed, ar when it is clear
from the nature of the transaction that documents must have come into a party's possession
ar power which are not inc/uded in his list. The High Court is empowered, if so minded, to
arder that the party giving discovery should verify on oath his list of documents. "
30 Interrogatório de uma testemunha pela parte adversa da que apresentou a testemunha.
31 Neste sentido, Bernardo M . Cremades, lntroductory Remarks. lnternational D i spute
Res o l u t i o n : Towards an l nternational Arbitration C u l t u re, d i s p o n ív e l no s i t e
www.kl uwerarbitration.com: " Without a doubt, the geographic origin ofthe protagonists of
an arbitration has a repercussion in their respective approaches. The academic confrontation
that takes place between those from the Anglo-Saxon (Common L a w) legal profession and
EDUARDO 5PINOLA E CASTRO - 1 39

Ü LOCAL DA ARBITRAGEM
A escolha é relevante no caso dasjoint ventlffes internacionais. O
local da arbitragem é importante de três pontos de vista: (i) a aplicação
subsidiária da lei processual do local, em caso de omissão do regula_:
mento de arbitragem; (ii) a competência dos tribunais locais para apre­
ciar medidas cautelares e incidentais; e (iii) a exigência da lei brasileira
de arbitragem, de homologação pelo Supremo Tribunal Federal, das
sentenças arbitrais estrangeiras.
Pelas razões acima, uma parte contratante brasileira terá interesse
em realizar a arbitragem no Brasil. Isto sem falar nos custos de viagem,
hospedagem, etc., que uma arbitragem sediada no estrangeiro traria para
a parte brasileira.

Ü NÚMERO DE ÁRBITROS E A FORMA DE SUA ESCOLHA

Qyalquer dos regulamentos arbitrais antes referidos (CCI, UN­


CITRAL, LCIA, AAA , Câmara de Comércio Brasil-Canadá, Euro­
câmaras) admite o julgamento por um único árbitro, ou por um tribunal
arbitral de três. O regulamento da FIESP não contém referência a
três árbitros, mas a "árbitro" e "árbitros". A lei brasileira de arbitra­
gem permite que as partes escolham "um ou mais árbitros, sempre em
número ímpar'', admitindo, assim, um número superior a três.
A maior parte dos regulamentos prevê que, deixando as partes de
pactuar sobre o número de árbitros e sua forma de nomeação, o centro

those coming from the Roman Civil Law orientation has now become tradition. ln procedural
instruction, it seems as though the decision-maker in an Anglo-Saxon system adopts a more
passive position than the one trained in Roman Law. lt is said that, in contras! to the role
adopted by his Anglo-Saxon colleague, a continental Eu ropean arbitrator plays a bigger
procedural role.
A lawyer whose training is rooted in Roman Law is amazed when confronted with the
claims of an Anglo-Saxon col/eague in discovery material. The requirement of submitting
the documents in his possession, those which favor as wel/ as those which prejudice the
party being represented, is not always interpreted in the sarne way by ai/ concerned. For
some, the cross-examination of witnesses and experts is a guarantee of due process thanks
to the principie of contradiction; for others, it is a real circus ofpure dialectic confrontation
in which the truth is not revealed. These are gray areas in which the difference between
some legal professionals and others is manifested".
1 40 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

de arbitragem nomeará um único árbitro, salvo se, a seu critério, a


questão puder ser melhor decidida por um tribunal de três árbitros.
Se o tribunal for constituído por três árbitros, cada parte indicará
um, e os dois árbitros assim nomeados escolherão o terceiro, que presi­
dirá o tribunal. Na falta de acordo entre os dois árbitros nomeados
pelas partes a respeito da escolha do terceiro, o centro de arbitragem
nomeará o presidente.
Embora sejam conhecidas deéisões de excelente qualidade proferi­
das por árbitro único, um tribunal de três árbitros estará, em princípio,
melhor aparelhado para decidir sobre questões comerciais complexas,
que normalmente exigirão a produção de grande quantidade de docu­
mentos, e diversas testemunhas.

Ü IDIOMA DA ARBITRAGEM

A escolha do idioma se aplica apenas às arbitragens originadas de


joint ventures internacionais.
O!ianto a essa escolha, cabem duas observações de ordem prática:
(i) embora seja admitido o procedimento bilíngüe e tradução simultâ­
nea durante as audiências, esta opção importa em maiores custos, es­
pecialmente para tradução de documentos; além disso, as traduções
das peças produzidas pelos advogados durante o procedimento rara­
mente se revestem da precisão desejável; assim, é preferível que as par­
tes escolham um único idioma; (ii) escolhido um idioma, os árbitros
devem ser fluentes nele, de forma a dispensar traduções.

Ü PRAZO PARA PROLAÇÃO DA SENTENÇA


A lei brasileira de arbitragem determina que, à falta de convenção
das partes, o prazo de apresentação da sentença arbitral será de 6 meses.
O regulamento CCI, em seu artigo 24, estabelece o prazo de 6 meses,
contados da assinatura dos Terms ofReference (Acte de Mission, em fran­
cês); esse prazo pode ser prorrogado pela CCI a pedido do(s) árbitro(s),
ou de ofício. Os regulamentos UNCITRAL, LCIA e AAA silenciam a
respeito. Os regulamentos da Câmara de Comércio Brasil-Canadá, da
FIESP e das Eurocâmaras estipulam prazos de 20 dias, contados do
foUARDO 5PINOLA E CASTRO - 1 41

encerramento das audiências, ou, se não houver necessidade de audiência,


contados do encerramento do prazo de alegações finais ou memoriais das
partes.
Na prática, dificilmente se encontram casos de encerramento de
arbitragens, com o proferimento de sentença, em menos de 12 meses.
Como foi mencionado acima, dados da CCI indicam uma duração média
de 21 meses para as arbitragens internacionais a ela submetidas.
O proferimento de sentença fora do prazo pode levar à nulidade da
sentença. Por isso, é importante que as partes, na convenção de arbitragem,
estabeleçam um prazo realista para apresentação da sentença (talvez levan­
do em conta o dado estatístico da CCI, antes referido).

7. PROBLEMAS COMUNS PARA REFLEXÃO


A redação de cláusulas de arbitragem em relações comerciais com­
plexas, como seria o caso de joint ventures, requer uma atenção especial.
Como já se teve a oportunidade de referir anteriormente, ajoint venture
envolve um acordo de base e vários "acordos satélites". Ora, uma cláusu­
la de arbitragem incompleta, ou que não especifique os possíveis litígios
por ela abrangidos, pode criar sérios problemas quando a disputa vier a
efetivamente ocorrer.
A extensão da cláusula arbitral do acordo de base para os demais
contratos relacionados só poderá ocorrer se houver previsão expressa
nas cláusulas. Caso contrário, teremos vários tribunais arbitrais para so­
lucionar litígios que, embora não digam respeito a um mesmo contrato,
fazem parte de uma relação contratual complexa, que será solucionada
de forma fragmentada.32

32 O autor viveu este problema em caso recente, no qual contratos intimamente ligados con­
tinham cláusulas arbitrais disti ntas, quanto às regras, lei aplicável ao mérito, sede, e idioma.
O resultado foi a instauração de três diferentes procedimentos arbitrais, um no Brasil, em
língua portuguesa, lei do país de uma das partes contratantes, e regras UNCITRAL; outro
em Portugal, bilíngüe inglês-português, a mesma lei do caso precedente, e regras UN CITRAL;
o terceiro pr�cedimento teve lugar em Londres, sob a lei inglesa, em l íngua inglesa, e
regras LCIA. E fácil de imaginar o enorme trabalho dos advogados e das partes, obrigados
a duplicar e triplicar o trabalho, com os custos conseqüentes.
1 42 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

Existe grande dificuldade para os tribunais arbitrais definirem a sua


competência se as cláusulas arbitrais não forem claras a esse respeito. Neste
contexto, vale citar frase do Ministro Barros Monteiro, de que os contra­
tos vinculados são como "irmãos siameses", que não podem ser separados
"principalmente quando se pretende resolver pendências que, dada a unicidade
do negócio, afetariam a todas as partes".33 Para o advogado, vale ter esse
raciocínio em mente ao redigir a cláusula compromissária de um acordo
de base, por exemplo. Um conflito que surja com relação a esse documen­
to não poderá ser abstraído das obrigações originadas de contratos satéli­
tes e vice-versa. Se esse for o caso, a solução do litígio será dada de forma
incompleta e inapropriada, com o risco de não ser justa e eqüitativa.
O caso CCI 7929 de 1995 é ilustrativo. Na sentença parcial, o tri­
bunal arbitral teve de decidir sobre a extensão de sua competência no
que foi denominado um "unijied contractual scheme". O esquema contra­
tual único, na verdade, era o conjunto de contratos relativos a umajoint
venture. A primeira questão levantada pelo tribunal foi " The argument,
put simply, is as to the scope ofthe arbitration c!ause in this Agreement: is it
limited to disputes which plainly arise under the Partnership Agreement or
does it extend beyond this and if so, what other disputes does it cover?34".
Interpretando a cláusula de arbitragem do Acordo de Parceria, entendeu
que não tinha competência para solucionar controvérsias que dissessem
respeito ao Acordo de Cooperação: "There is no arbitration clause in the Co­
operation Agreement and so nothing on which ourjurisdiction could beJoun­
ded: ex nihilo nihilfi. ".
Esse mesmo tribunal, por outro lado, entendeu que, embora ape­
nas tivesse jurisdição sobre o Acordo de Parceria, como esse fazia parte
de um "unijied contractual scheme", não poderia ser analisado e interpre­
tado isoladamente: "We havejurisdiction over any claims arisingftom the
Cooperation Agreement ifand to the extent that this is shown to be part ofa

33 Caso citado por Arnoldo Wald, "A arbitragem, os Grupos Societários e os Conjuntos de
Contratos Conexos" in Revista de Arbitragem e Mediação, ano 1 , no 2, maio/agosto de
2004, Editora Revista dos Tribunais, p. 53
34 lnterim Award in case nº 7929 of 1 995, disponível no site www. kluwerarbitration.com
EDUARDO 5PINOLA E (ASTRO - 1 43

unified contractual scheme with the Partnership Agreement, but not.from the
Cooperation Agreement on its own". (destaques nossos)
O Tribunal Arbitral fundamentou suas decisões no "unified con­
tractual scheme", que foi assim definido: "The phrase 'unified contractual
scheme' in the present context appears to us to rejlect the position.frequently
encountered in international arbitration with, in the words oJ Craig, Park
& Paulsson, 'complex situations where numerous contractual documents rela­
te to one organic relationship'. Prima Jacie, it also appears to describe the
situation in this case, to the extent that there is a main contract (the Partner­
ship Agreement) which creates a business relationship, and other contracts
(notably the Cooperation Agreement) making changes ofone sort or another
in that relationship. It is generally considered desirab!e that disputes relating
to obligations arising .from the relationship as a whole, i. e., under severa!
contractual documents, should be submitted to one singlejudicial authority: '
it appears inappropriatefor dijferent jurisdictions to deal with necessarily
interrelated issues in a piecemeal andpotentially inconsitent manner."
O cuidado na redação de cláusulas compromissárias de conjunto
de contratos conexos evitará que as questões acima apontadas tenham
que ser levantadas perante tribunais arbitrais ou o Poder Judiciário.

CONCLUSÃO
Para concluir este artigo, o autor pede licença para transcrever um
comentário de Serge Lazareff sobre a arbitragem na atualidade:
"Longtemps conçu comme un simple mode d'apaisement de
contentieu:x, l'arbitrage moderne se caractérise surtout par sa plus
grande technicité et sa flexibilité. I1 permet ainsi de répondre,
non seulement au:x exigences de plus en plus renforcées des usagers
en matiere de sécurité juridique, mais également à la complexité
grandissante des affaires impliquant de plus en plus souvent une
pluralité de parties d'origine et de culture différentes."35

35 l n Cahiers de l'arbitrage, juillet 2002, p. 5.


Alguns Aspectos da
Redução de Capital das
Sociedades Anônimas*

Paulo Cezar Aragão


Advogado em São Paulo e no Rio deJaneiro
Ex-SuperintendenteJurídico da Comissão de Valores Mobiliários

Gisela Sampaio da Cruz


Advogada no Rio deJaneiro
Mestre e doutoranda de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Os autores dedicam este trabalho à colega e amiga Teresa Negrei ros


1 46 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

1. INTRODUÇÃO
Na já ampla literatura nacional sobre a disciplina legal das sociedades
anônimas, a operação de redução de capital ocupa papel indevidamente
secundário. Não se trata, por sinal, de peculiaridade do direito brasileiro:
mesmo na Itália, onde os estudos monográficos e sistemáticos sobre o direi­
to societário têm volume muito maior, o autor de um dos melhores traba­
lhos sobre o tema inicia sua análise destacando também o fato de que se
trata de "instituto negligenciado pela doutrina, que sobre ele oferece uma
interpretação simplista e puramente literal, dedicando-lhe poucas páginas
nos manuais mais difundidos, e pela própria jurisprudência, que recebe
mecanicamente as indicações fornecidas pela praxe societária"1 •
Com efeito, enquanto as operações de aumento de capital das socie­
dades anônimas têm sido objeto de estudos de alto nível científico e
grande profundidade2 , a redução de capital continua sendo a verdadeira
Cinderela de um sistema jurídico que mantém ainda - a despeito das
relevantes discussões doutrinárias que se desenvolvem em outros paí­
ses3 - o conceito de capital como o fulcro de todo o arcabouço jurídico
das sociedades anônimas.
As operações de redução de capital recebem qualificações críticas,
certamente exageradas, de parte da doutrina. Não se trata, contudo, de
operação de índole anormal e, por isto, indicativa por si só de uma situ­
ação delicada da sociedade anônima4 • Talvez, a rigor, tenha sido criado

Francesco Fenghi, La riduzione dei capita/e, Milano: Giuffre, 1 9 74, p. 1 .


2 Cf., especialmente, Mauro Rodrigues Penteado, Aumentos de capital das sociedades anô­
nimas, São Paulo: Saraiva, 1 988.
3 Na experiência societária estrangeira, notadamente na Itália, França, Alemanha, Espanha,
Argentina e Uruguai, tem sido sistematicamente questionada a utilidade do capital social
para o cumprimento das funções a ele atribuídas, especialmente no tocante à garantia dos
credores. Sobre o assunto, cf. o interessante estudo de Ricardo Olivera García, 11La crisis dei
concepto de capital social", Revista de Derecho Comercial y de las Obligaciones, Buenos
Aires: Lexis Nexis, n.º 1 85 a 1 88, ano 32, 1 999, pp. 369 e ss ..
4 Segundo Carvalho de Mendonça, são muitos os motivos que podem ensejar a redução do
capital: "Valiosos motivos podem aconselhar a redução ou diminuição do capital social da
sociedade anônima. Mudam-se as circunstâncias, malogram-se as previsões com que se con­
tava na época da sua constituição e que justificavam grande capital, dimi nuem permanente­
mente os lucros ou perde-se parte desse capital" ( Tratado de direito comercial brasileiro, v. 2,
tomo l i, atualizado por Ruymar de Lima Nucci, Campinas: Bookseller, 200 1 , p. 454).
PAULO (EZAR ARAGÃO & GISELA SAMPAIO DA CRUZ - 1 47

um verdadeiro círculo vicioso, por força do qual as operações de redução


do capital não são realizadas com mais freqüência por serem vistas como
inusitadas e, exatamente por assim serem vistas, tornam-se efetivamen­
te menos freqüentes, de sorte a despertar a atenção do mercado.
A rigor, não há razão para tanto, a despeito de o sistema brasileiro,
como mencionado acima, continuar ancorado no conceito de capital social
como garantia dos credores e contrapartida necessária da responsabilida­
de limitada dos acionistas. Adotadas as cautelas devidas, e seguido o pro­
cedimento previsto em lei de forma bastante esquemática - que tem,
cada vez mais, dado ensejo a discussões doutrinárias frequentemente ins­
piradas por princípios alheios ao nosso sistema jurídico -, a redução de
capital tem utilidade em um número relevante de situações práticas.
Antes disto, é preciso lembrar, a cada passo, a necessidade de tomar
em conta no exame da matéria as peculiaridades do direito brasileiro no
tocante à disciplina do capital social e sua divisão em ações: provavel­
mente nenhum sistema acumula a flexibilidade, sob todos os ângulos
positiva, do direito brasileiro, admitindo ações sem valor nominal e,
mesmo, sua coexistência com ações com valor nominal (Lei nº 6.404/
76, art. 1 1 , § 1°), bem como disciplinando as ações preferenciais de modo
extremamente maleável, sem adotar as características de título de qua­
se-dívida, por assim dizer, de outros sistemas jurídicos.
Ademais, convém também recordar que as operações de redução
de capital social no Brasil não se acham vinculadas a qualquer nível
mínimo obrigatório para o capital social, ou a um montante máximo de
perdas admissíveis5 : ao contrário do que sucede em vários países, a le-

S Em Portugal, por exemplo, o legislador regulou, por meio do Decreto-Lei nº. 1 9, de 1 8 de


janeiro de 2005, a disciplina da redução de capital por perda de mais da metade do capital.
O referido diploma, que produzirá efeitos retroativos desde 3 1 de dezembro de 2004, im­
põe que, diante de uma situação em que metade do capital social se encontra perdido, ou
havendo "fundadas razões" para supor que essa perda se verificará, os administradores da
sociedade convoquem de imediato uma assembléia geral para i nformar os sócios da situa­
ção crítica da sociedade, a fim de que eles possam tomar as medidas cabíveis. Exigiu ainda
o legislador que o capital próprio, segundo o último balanço ap rovado, conste de todos os
atos externos da sociedade sempre que não seja superior a metade do capital social. Com
essa medida, pretende-se evitar que tercei ros que venham a contratar com a sociedade
sejam induzidos a erro acerca de sua situação patrimonial.
1 48 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

gislação brasileira não exige que a sociedade anônima tenha capital mí­
nimo. Tampouco prevê a nossa lei que, desfalcado o capital social de
forma considerada relevante, sejam obrigatoriamente adotadas provi­
dências destinadas a recompô-lo.
Finalmente, é importante não perder de vista as distinções, mesmo
no âmbito do direito brasileiro, entre a legislação aplicável às sociedades
anônimas - regidas por lei especial, como o reconhece o Código Civil,
no art. 1 .089 e o regime das sociedades limitadas de que trata o Códi­
-

go Civil. Para as sociedades limitadas, a redução de capital para absor­


ção de prejuízos pressupõe "perdas irreparáveis'', bem como que a verificação
do excesso do montante do capital social se dê tendo em conta o "objeto
da sociedade" (Código Civil, art. 1.082, I e II), exigências não aplicáveis
às sociedades anônimas, sequer por analogia.

11. fORMAS FACULTATIVAS DE REDUÇÃO DE CAPITAL: A REDUÇÃO


DO CAPITAL POR EXCESSO E PARA ABSORÇÃO DE PREJUÍZOS
A doutrina quase sempre destaca, dentre as causas de redução de capi­
tal, a redução por excesso e a redução por perdas, objetos da presente análi­
se. São estas, de fato, as causas mais correntes, embora não sejam as únicas6 •
A distinção a ser inicialmente estabelecida na análise da redução de
capital é dada pela própria sistematização adotada pelo legislador de 1976

6 Dois casos particulares de redução do capital - aqui não se aplica obviamente o conceito
de capital excessivo nem o de absorção de prejuízos - ocorrem (i) no pagamento aos
acionistas dissidentes, em caso de exercício do direito de recesso, se não houver lucros ou
reservas livres na sociedade e as ações reembolsadas a débito do capital social não forem
vendidas no prazo de 1 20 dias a contar da publ icação da ata da assembléia geral (Lei nº.
6.404/76, art. 45, §§ 6º e 7º) e (ii) no caso das ações caídas em com isso, pela não realização
do preço de subscrição por parte do investidor, sendo mal sucedida a companhia tanto na
execução judicial quanto na venda em leilão especial (Lei nº. 6. 404/76, a rt. 1 07, § 4º). Em
interessante artigo intitulado "La réduction du capital à la recherche de son régime
-

juridique", Alain Couret questiona a existência, além das formas tradicionais, de uma ter­
ceira via de redução de capital, a qual abarcaria, entre outras, as seguintes hipóteses: (i)
sociedade que recolheu seus próprios títulos de capital sob condição de devolução un iver­
sal; (ii) sociedade que comprou certo número de seus títulos e deseja conservá-los em
portfólio; (iii) sociedade que comprou certo número de seus títulos sob compromisso de
anulação; (iv) a reaquisição com vistas a facilitar certas operações; (v) exercício por u m
sócio d o d i reito d e recesso (in Alain Couret e Hervé le Nabasque (coord.), Que/ avenir pour
/e capital social?, Paris: Dalloz, 2004, pp. 85-99).
PAULO CEZAR ARAGÃO & GISELA SAMPAIO DA CRUZ - 1 49

na disciplina da matéria, qual seja, entre (i) a redução decorrente de uma


deliberação societária considerando o capital excessivo, chamada redução
real ou efetiva7 , pela diminuição do patrimônio da companhia, e (ii) redu­
ção para absorção dos prejuízos acumulados, também conhecida como
redução nominal ou contábil, já que não afeta o patrimônio da companhia.

2 . 1 . A REDUÇÃO DO CAPITAL POR EXCESSO

A primeira modalidade de redução de capital - aquela decorrente


de uma deliberação assemblear que determina ser o capital excessivo ou,
na expressão da doutrina, exuberante vem prevista no art. 1 73 da Lei
-

nº 6.404/76 (Lei das Sociedades por Ações).


A redução do capital por excesso não pode ser vista de forma críti­
ca: em muitas circunstâncias o capital social terá sido dimensionado
tendo em conta uma escala da operação da companhia que, no curso do
tempo, poderá sofrer alterações, até mesmo pela frustração de eventuais
planos de expansão8 • Seria, neste caso, descabido e contrário ao interes­
se geral dos acionistas manter-se o capital intocado, eventualmente apli­
cado em outras atividades de menor rentabilidade, se o motivo que levou
a sociedade a captar recursos junto aos acionistas se mostrou injustifica­
do. Formalmente, tal deliberação deverá ser precedida da manifestação
do Conselho Fiscal - se instalado, naturalmente - e submetida à delibe­
ração da assembléia geral.
Tratando-se de deliberação que irá, se aprovada, implicar a altera­
ção do estatuto social da companhia, aplica-se no caso o quorum de ins­
talação previsto no art. 135 da Lei nº 6.404/76, isto é, 213 do capital
com direito a voto, na primeira convocação, podendo, porém, a delibe­
ração ocorrer com qualquer número de acionistas em segunda convoca­
ção. O quorum de deliberação consistirá, tal qual referido no art. 129 da

7 Nelson Eizirik, "Incorporação de reservas de capital ao capital social seguida da redução


do capital - legitimidade da operação", Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico
e Financeiro - ROM, nº 1 1 5, São Paulo: Malheiros, jul.-set./1 999, pp. 255 e ss ..
8 Sobre a conveniência de se reduzir o capital que está em excesso, v. Pietro Onida, Le
dimensioni dei capita/e di impresa: concentrazioni, trasformazioni, variazioni di capitale,
2. ed., Milano: Giufrre, 1 944, pp. 333 e ss..
1 50 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

mesma lei, na maioria absoluta dos acionistas presentes, não se compu­


tando os votos em branco, se tal quorum não houver sido objeto de au­
mento no estatuto social da companhia fechada.
A deliberação acerca da redução do capital social por excesso há de ser
analisada no contexto do papel desempenhado pelo mesmo capital na es­
trutura básica das sociedades anônimas: como dito acima, existe um parale­
lismo entre a previsão de que os acionistas se obriguem a não aprovar a
restituição do valor que se comprometeram a conferir à sociedade como
garantia dos credores e a previsão legal de que a sua responsabilidade pesso­
al ficará limitada, em regra9 , ao dito valor (Lei nº 6.404176, art. 1°).
Assim, se os acionistas decidem reexaminar o compromisso que as­
sumiram com os terceiros que contrataram com a sociedade, no sentido
de não reduzir essa garantia dos credores, limitativa do direito à distribui­
ção de resultados - em relação a que não é possível deixar de lembrar a
imagem clássica de Vivante sobre o vaso de cereal10 -, torna-se imperati­
va a manifestação dos mesmos credores. O conceito tem lógica: a socieda­
de, com a redução de capital por excesso, poderá ter uma nova feição,
devendo permitir que os mesmos credores possam reavaliar a questão, já
que não são sócios, o que lhes permitiria manifestar-se na assembléia ge­
ral (e, mesmo se fossem, as duas condições não se confundem11 ).
Daí admite o art. 1 74 da Lei nº 6.404/76 que os credores quirogra­
fários, isto é, aqueles que não são titulares de qualquer garantia ou privi­
légio, possam manifestar sua oposição à redução de capital aprovada. Se
o fizerem, e independentemente do montante da oposição manifestada,

9 Cada vez mais, infelizmente, uma legislação casuística e pouco - ou nada - sistemática vai
abrindo brechas neste sistema, com a criação de novos casos de responsabilidade pessoal
do acionista ou do sócio, não necessariamente vinculada ao exercício de cargo de admi­
nistração ou ao desempenho da função de acionista controlador.
10 Cesare Yivante, Trattato di diritto commerciale, v. li, 5. ed., Milano: Francesco Yallardi,
1 9 23, p. 1 9 3. Já se disse também, a propósito, que o capital social representa u m dique que
contém as águas (os elementos do ativo) até que este atinja o seu nível, sendo só a partir
deste momento que o excedente poderá beneficiar os acionistas, sob a forma de dividen­
dos (Joaquín Garrigues, Tratado de derecho mercantil, v. 1, t. 2, Madrid: Revista de Derecho
Mercantil, 1 947, p. 637).
11 O comentário é pertinente ainda que um imperativo lógico leve à conclusão de que o credor
que também é acionista não poderá manifestar oposição à deli beração assemblear sobre
redução de capital se, na mesma assembléia, houver votado favoravelmente à redução.
PAULO CEZAR ARAGÃO & GISELA SAMPAIO DA CRUZ - 151

a deliberação não poderá ser arquivada, o que significa dizer que não
produzirá efeitos em relação a terceiros, nem poderá ser executada com
a entrega de recursos aos acionistas, salvo se a companhia demonstrar
que o crédito do credor contrário à deliberação teve seu valor pago ou
depositado judicialmente.
O prazo decadencial para a oposição estabelecido na lei é de ses­
senta dias e, no caso, a ordem usual seguida na formalização das delibe­
rações societárias é invertida: em primeiro lugar, a ata da assembléia
geral extraordinária que deliberou sobre a redução do capital social deve
ser publicada, na forma prevista no art. 98 da Lei nº. 6.404/76, a que
remete o § 2° do art. 135 da mesma lei12•
Transcorrido o prazo decadencial sem oposição, o arquivamento
deve dar-se automaticamente, não sendo necessária - em tese, pelo
menos - qualquer manifestação da companhia no âmbito do Registro
Público das Empresas Mercantis, que deverá ter sido notificado da opo­
sição manifestada (Lei nº 6.404/76, art. 174, § 1°), podendo então, num
segundo momento, dar-se execução à deliberação, sem prejuízo da exi­
gência de publicação, na imprensa, da certidão do arquivamento da ata
(mas não, novamente, da própria ata) .
A sistemática da lei torna-se de execução problemática no caso das
sociedades sujeitas à autorização para funcionar e cujas atas de assembléia
geral têm sua publicação dependente de aprovação de algum órgão espe­
cial: se apenas o arquivamento está condicionado a tal aprovação, a publi­
cação pode dar-se desde logo, ainda que a deliberação só possa ser executada
depois de aprovada pelo órgão especial; se, contudo, a própria publicação
está sujeita à aprovação regulamentar, o prazo de sessenta dias só poderá
iniciar-se após obtida a mesma aprovação e regularmente publicada a ata.
Em uma hipótese específica a lei abre mão da distinção entre cre­
dores garantidos e credores quirografários: se a companhia houver emiti-

12 Convém notar que, em regra, nada obsta a que a companhia faça publicar desde logo
qualquer deliberação societária e, quando disponível, publique separadamente a certidão
do respectivo arquivamento no Registro Público das Empresas Mercantis. Apenas, neste
caso, essa ordem se torna imperativa.
1 52 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

do debêntures, na redução do capital para distribuição de recursos aos


acionistas e, por sinal, também na redução do capital para compensação
de prejuízos, sendo expresso, nesse sentido, o § 3° do art. 17 4 da Lei nº
6.404176 ao se referir a ambos os casos de redução. Independentemente
da espécie de debênture ou de ser a mesma conversível ou não em ações, a
redução de capital dependerá de aprovação em assembléia especial - dis­
pensada, naturalmente, no caso de um número determinado de debentu­
ristas que manifestem desde logo sua anuência à deliberação tomada.
Convém lembrar que o prazo é estabelecido em benefício dos credo­
res, que, em tese, poderiam dele abrir mão, mas não prevê a lei qualquer
tipo de juízo de verificação, por parte da companhia, acerca da existência
ou não de credores quirografários, qualificados para manifestar sua oposi­
ção. Tampouco pode a companhia, à falta desse juízo de verificação, valer­
se de uma declaração a respeito da inexistência de credores para acelerar o
processo de execução da deliberação.
Apenas os credores quirografários por títulos anteriores à data da
publicação da ata (mesmo que posteriores à data da deliberação societá­
ria) poderão manifestar oposição. A lei vincula esse direito à data de
constituição do crédito, ou seja, a um requisito de natureza objetiva, e
não à data em que o credor opoente adquiriu o crédito: se o crédito é
anterior à publicação, mesmo que posteriormente transferido, o adqui­
rente, sub-rogado nos direitos do credor anterior13 , poderá exercer seu
direito à oposição, contanto que não o exerça abusivamente - pode acon-

13 A ratio do § 1 º do art. 1 74 da Lei nº 6.404/76, segundo a qual somente os c redores


qui rografários por títulos anteriores à data da publicação da ata poderão, mediante notifi­
cdçdo, o por-se à redução do capital, assemelha-se à do §2° do art. 1 58 do Código Civil.
Segundo este dispositivo, na fraude contra credores "só os credores que já o eram ao tempo
daqueles atos podem pleitear a anulação deles". Carvalho Santos, ao comentar o referido
artigo à luz do Código Civil de 1 9 1 6, já sustentava que a ação pauliana também poderia ser
exercida pelo credor sub-rogado: "Os autores são concordes em admitir que o princípio
reproduzido no parágrafo único do art. 1 06 [correspondente ao §2º do art. 1 58 do Código
Civil de 2002] não deve ser entendido de modo absoluto, porque há o caso da sub-rogação
do credor posterior nos di reitos de algum credor anterior, em que não se pode negar ao
credor sub-rogado, embora posteriormente ao ato, o direito de anular este. É verdade que,
ainda nesse caso, a razão não é senão se tratar de dívida anterior, pouco importando que o
atual titular do crédito não o fosse, o que faz com que, em rigor, nem se possa corisiderar o
caso como o de uma exceção à regra" (Código Civil brasileiro interpretado, v. 2, 1 3. ed.,
Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1 988, p. 4 2 1 ).
PAULO (EZAR ARAGÃO & GISELA SAMPAIO DA (RUZ - 1 53

tecer, por exemplo, que o credor tenha adquirido o título com o único e
exclusivo propósito de exercer o direito à oposição, na tentativa de pre­
judicar de alguma forma a companhia.
Na mesma linha da exigência de um fundamento razoável para o
exercício dos direitos, prevista no art. 187 do Código Civil, deve reconhe­
cer-se não exigir a lei que o credor manifeste interesse legítimo.
No entanto, e como vem decidindo a jurisprudência no tocante ao
exercício do direito de recesso, a oposição não pode ser exercida à outrance,
apenas em detrimento da companhia. A questão aqui é mais delicada, já
que a lei dá à companhia a solução para o impasse, ou seja, a liquidação do
crédito do credor insatisfeito, mas o problema sempre deverá ser conside­
rado à luz do eventual exercício abusivo do direito à oposição14 •
A redução de capital atribui direitos apenas aos credores (quirogra­
fários) da companhia, não constituindo fundamento legítimo para o
exercício do direito de retirada pelos acionistas, cabível apenas nos casos
taxativamente previstos na lei societária.
Nada impede que, na redução de capital por exuberância, os acionistas
recebam o pagamento dos seus haveres in natura: respeitada a igualdade de
tratamento entre eles, a operação poderá ser vantajosa por razões fiscais,
notadamente por haver o art. 22 da Lei nº 9.249195, pondo fim a uma
controvérsia antiga, admitido que o acionista venha a receber bens ou direi­
tos integrantes do ativo da sociedade, em devolução de capital - o que deve
entender-se incluir também a redução de capital - pelo respectivo valor
contábil, diferindo assim, e já agora sem qualquer risco de uma acusação de
distribuição disfarçada de lucros, a tributação pela diferença entre esse valor
contábil e o valor de mercado dos bens ou direitos recebidos15 •

14 No abuso de di reito, o comportamento do agente, embora preencha a estrutura do ato


l ícito, não está de acordo com o valor normativo que o fundamenta, atuando, assim, fora
do d i reito, porque ultrapassa os limites que a ordem jurídica lhe impõe. No ato i l ícito, os
li mites são lógi co-formais; no abuso de d i reito, axiológi cos-materiais. Sobre o tema, cf.
Fernando Augusto Cunha de Sá, Abuso do direito, Coimbra: Almedina, 1 997.
15 Veja-se, a respeito d a não incidência de ITBI no caso de a devolução envolver bens imó­
veis, o parecer de Roque Antonio Carrazza, Redução de capital - ITBI, Revista dos Tribu­
nais RT, v. 732, São Paulo: RT, out./1 996, pp. 87 e ss ..
-
1 54 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

A redução de capital por exuberância tem também aplicação em


uma hipótese especial, qual seja, o resgate de ações a débito do mesmo
capital social, prevista no § 1° do art. 44 da Lei nº 6.404/76: apesar de
pouco estudada (e também pouco compreendida pela doutrina), parece
evidente haver a lei previsto que o resgate, se cumpridas as formalidades
do art. 17 4, poderá ser pago também por meio da redução do capital
social, e não apenas com reservas de lucros.
Ainda no terreno das hipóteses menos freqüentes de redução de ca-
'
pital, convém lembrar a possibilidade de que a redução se dê através da
liberação, pela sociedade, do compromisso de realizar parcela do' ,capital
das ações subscritas e ainda não integralizadas - evitando-se aqui, de caso
pensado, a incongruência lógica e jurídica que se tornou linguagem co­
mum, qual seja, a ação parcialmente integralizada.
Supondo que o preço de emissão de todas as ações esteja ainda e
uniformemente apenas parcialmente realizado, admite-se que a assem­
bléia geral resolva reduzir o capital social, liberando os acionistas, pro
rata, do compromisso de integralização. Neste caso, mesmo que não
exista, em sentido estrito, devolução do capital aos acionistas, a redução
da garantia dos credores é evidente, bem como a alteração do compro­
misso assumido na forma do já citado art. 1° da Lei nº 6.404/76, o que
tornará aplicável o procedimento de oposição de credores do art. 174 da
mesma lei.
Havendo certificados de ações em circulação, onde deverá constar
o valor do capital social e a data do ato que o fixou (Lei nº 6.404/76, art.
24, II), torna-se necessária a sua substituição. Para forçar a realização
desta substituição, o § 2° do art. 173 da citada lei determina que fiquem
suspensos os direitos dos certificados emitidos anteriormente.

2.2. A REDUÇÃO DE CAPITAL PARA ABSORÇÃO DE PREJUÍZOS


Antes de distinguir a redução de capital por excesso daquela que
tem por objetivo a absorção de prejuízos, é de proveito registrar seus
traços comuns. Como ambas estão previstas no caput do art. 1 73 da Lei
nº 6.404/76, aplica-se a esta espécie de redução o mesmo procedimento
PAULO CEZAR ARAGÃO & GISELA SAMPAIO DA CRUZ - 1 55

acima delineado no tocante ao quorum de instalação e aprovação da


matéria em assembléia geral. Significa dizer, então, que a redução so­
mente poderá ser deliberada por assembléia geral convocada explicita­
mente para este fim, instalada em observância ao art. 135 da Lei nº
6.404176. Por sua vez, a aprovação da redução de capital por perdas
também se dá por maioria absoluta dos votos presentes à assembléia,
salvo exigência estatutária de quorum especial nas companhias fechadas,
não contados os votos em branco.
Como foi visto, procede-se à redução de capital por exuberância
quer porque se constata o excesso do capital aportado na constituição da
companhia, quer porque se pretende limitar os negócios ou operações
sociais. Já na redução de capital por força de prejuízos acumulados, a
situação é exatamente a oposta da que se analisou acima: por força de
resultados menos favoráveis verificados pela companhia, esta última acha­
se impedida de distribuir dividendos a seus acionistas até que, mais uma
vez em alusão à imagem de Vivante, o recipiente de cereal esteja nova­
mente cheio.
Seguindo na mesma· linha metafórica, admite a lei a possibilidade
de que a assembléia geral delibere, por assim dizer, reduzir o volume do
recipiente, fazendo com que o compromisso da não distribuição dos
dividendos fique reduzido ao montante remanescente do capital social.
Exatamente pelo fato de que, na redução de capital para absorção de
prejuízos, não existe, por si só, devolução de recursos aos acionistas, a
Lei nº 6.404/76 não a submete à exigência prévia da deliberação dos
credores, podendo verificar-se tão-somente por força de deliberação as­
semblear que atenda ao sistema acima analisado.
Esta forma de redução contábil do capital, também denominada
saneamentofinanceiro, pressupõe, pois, a existência de prejuízos, daí de­
correndo a redução de capital para mantê-lo em posição de equilíbrio
com o patrimônio real da companhia. O valor patrimonial da compa­
nhia em nenhum momento é afetado. Indiretamente, poder-se-ia dizer
que tal operação possibilita a distribuição subseqüente de dividendos,
mas a lei não estabelece restrições a que isto ocorra: efetivada a redução
1 56 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

de capital para absorção de prejuízos, os lucros subseqüentes poderão


ser normalmente distribuídos16 •
Esta operação de redução de capital verifica-se com freqüência como
preparação para uma reestruturação global da estrutura de capital da com­
panhia, por meio da chamada "manobra do acordeão", em que o capital da
companhia é reduzido à expressão de R$ 1 ,00, grupando-se as ações exis­
tentes em uma única ação com a propriedade submetida ao regime con­
dominial e, em seguida, procedendo-se ao aumento de capital da sociedade.
Poder-se-ia argumentar que, com a eliminação do valor nominal
das ações, nada impediria que o aumento de capital fosse feito sem a
redução anterior, com um preço de emissão suficientemente baixo para
compensar o desequilíbrio financeiro da companhia e, assim, conferir
ao novo acionista uma participação relativa percentualmente equivalen­
te à que decorreria da "manobra do acordeão". No entanto, este argu­
mento não leva em conta o fato de que nenhum investidor se disporá a
subscrever ações se o retorno do investimento estiver comprometido
em razão dos prejuízos acumulados.

I l i. SANEAMENTO FINANCEIRO DA COMPANHIA: LIMITES E


POSSIBILIDADES
Algumas questões relevantes surgem da análise da redução de capital
para absorção de prejuízos, a começar pelo fato de que a mesma supõe,
logicamente, que não mais remanesçam, na contabilidade da sociedade, lu­
cros acumulados e reservas de lucros (inclusive a legal). Nada impede, toda-

16 Nessa modalidade de redução do capital, ao ver de Fernando Cardoso, há, ai nda, outro
interesse relevante a ser protegido: "o interesse público de que as sociedades não se apre­
sentem com um capital nominal a que não corresponda uma efetiva cobertura do patrimônio.
Em face de tal desequi líbrio, o públ ico, intencionalmente ou não, poderia ser enganado,
uma vez que o capital funciona como o único 'aferidor', porquanto o patrimônio social é
de conhecimento quase inacessível, até pela sua grande mutabilidade. E, para além do
público, os próprios sócios, anal isando melhor, virão muito provavelmente também a be­
neficiar da aludida redução do capital. A razão é simples: a redução pode, posteriormente,
viabilizar uma distribuição de lucros de exercício ou de bens que, de outra forma (tendo-se
mantido o capital em montante superior), se destinariam à cobertura de prejuízos" (Fernando
Cardoso, Redução do capital social das sociedades anônimas, Lisboa: Livraria Portugal
Mundo, 1 989, pp. 57-58).
PAULO CEZAR ARAGÃO & G ISELA SAMPAIO DA CRUZ - 157

via, que a redução de capital se verifique quando a sociedade dispõe ainda


de reservas de capital, como se verá no próximo item.
Outro aspecto importante, que será analisado a seguir, diz respeito
ao balanço a ser utilizado como base para a redução de capital. Se, no
tocante à redução do capital para devolução de recursos aos acionistas, a
situação é bem simples, uma vez que o capital normalmente se mantém
estável no curso do tempo, quando se trata de reduzir o capital para absor­
ver os prejuízos o problema se complica. Isto porque os prejuízos são es­
sencialmente mutáveis, o que torna imprescindível a delimitação de uma
data de corte para a determinação das perdas até então acumuladas.
Finalmente, ainda sob esta rubrica, será examinada a situação dos
titulares de ações preferenciais emitidas pela companhia, aos quais te­
nha sido atribuído dividendo mínimo ou fixo calculado tomando por
base fração (ou percentual) do capital social.

3 . 1 . SANEAMENTO FINANCEIRO DA COMPANHIA COM RESERVA DE


CAPITAL
A Lei nº 6.404176 adotou um sistema bastante rigoroso e científico
para a determinação do resultado da companhia. A cada exercício é determi­
nado o resultado do exercício (art. 187, V, da Lei nº 6.404176), e que corres­
ponde ao resultado de todas as operações da companhia realizadas naquele
período. Este resultado, não pode, porém, servir de base à distribuição dos
dividendos aos acionistas, porque a independência dos exercícios é apenas
uma ficção legal, tal qual a própria pessoa jurídica, destinada a permitir
que se possa mensurar, a cada ano, o desempenho da companhia.
Ao final de cada exercício é necessário verificar não só se o resulta­
do da companhia foi positivo, mas também se as operações realizadas
em exercícios anteriores acumularam prejuízos17 • Se isto ocorrer, a com-

17 Neste sentido, afirma Tullio Ascarelli que, "para avaliar, rigorosamente, o andamento dos
negócios de uma sociedade, cumpriria ter em conta toda a vida dela, desde o início até a
liqui dação. Entretanto, como é óbvio, tal sistema é praticamente impossível quanto a uma
atividade social destinada a se desenvolver durante anos. Surge, por isto, o conceito de
exercício social" (" Reservas", in Problemas das sociedades anônimas e direito comparado,
São Paulo: Saraiva, 1 945, p. 439).
1 58 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

panhia não poderá distribuir desde logo dividendos a seus acionistas,


devendo, antes, proceder à compensação dos prejuízos acumulados com
o resultado positivo do último exercício (art. 1 89, caput, Lei nº 6.404/
76), para só depois distribuir a diferença18 •
Da mesma forma, se o exercício resultou em prejuízo, não será pos­
sível fazer qualquer distribuição antes que este prejuízo seja absorvido
pelos lucros acumulados, pelas reservas de lucros e pela reserva legal,
nesta ordem. Todas essas reservas, geradas internamente, resultam do
desempenho da companhia. Também aqui a lei reconhece a existência
de uma ficção na separação de exercícios sociais: se há prejuízo nas ope­
rações do último ano, as eventuais reservas de lucros acumuladas anteri­
ormente devem absorver tais prejuízos.
Ao lado das reservas de lucros, mas com disciplina distinta, existe
também a chamada "reserva de capital", constituída por certas transferên­
cias de capital recebidas pela companhia que não provieram de suas ope­
rações19 . A origem da reserva de capital é exógena, o que a difere das
outras reservas decorrentes dos lucros da companhia. Sob a alcunha "re­
serva de capital", encontram-se as verbas oriundas do ágio recebido na
subscrição de ações, do prêmio na emissão de debêntures, do produto de
alienação de partes beneficiárias e bônus de subscrição, bem como das
doações e subvenções (art. 182, § 1°, Lei nº 6.404/76).
Nenhuma dessas verbas corresponde, contudo, ao resultado real das
operações da companhia. A reserva de capital é externa corporis societatis,
\ razão pela qual deve submeter-se a análise contábil distinta, com o fito
1 de evitar distorções na apuração da rentabilidade da companhia. Esses

18 Daí a distinção, expressa nos arts. 1 87, V e VII, 1 89 e 1 9 1 da Lei nº 6.404/76, entre resulta­
do do exercício e o lucro do exercício, sendo este último a parcela eventual do resultado
que remanescer depois de compensados tais prej u ízos anteriores e, naturalmente, pagos
todos os impostos devidos.
19 Cite-se, a respeito, a conceituação das reservas de capital da Nota Explicativa à Instrução
CVM nº 59/86: "As reservas de capital representam acréscimos efetivos aos ativos da com­
panhia que não foram originados dos lucros auferidos em suas operações, por não repre­
sentarem efeitos de seus próprios esfo rços, mas de contribuições de acionistas ou de tercei­
ros para o patrimônio líquido da companhia com o fim de propiciar recursos para o capital
(em sentido amplo)".
PAULO (EZAR ARAGÃO & GISELA SAMPAIO DA (RUZ - 1 59

recursos não podem transitar pelo resultado de suas atividades, tal como
sucede com as reservas de lucros, cabendo atribuir-lhes classificação
contábil adequada, sob pena de se ferir o princípio da transparência que
informa as demonstrações financeiras20 •
Como não é formada por recursos gerados pela companhia, mas,
ao revés, por valores resultantes de ingressos e contribuições de tercei­
ros, a exigência de compensação dos prejuízos com as reservas, constan­
tes do parágrafo único do art. 189 da Lei nº 6.404/76, não abarca a
reserva de capital21 • Nã� é difícil entender o motivo pelo qual o legisla­
dor não incluiu a reserva de capital no elenco de reservas em que há
obrigatoriedade de compensação com prejuízos, se, como dito, a reserva
de capital não advém das transações da companhia que, ao final, vão
compor o resultado e, feitas as deduções cabíveis, o lucro líquido.
É que não seria razoável impor a compensação de transferências
patrimoniais que não constituem lucro da companhia com o eventual
prejuízo do exercício. Do contrário, a situação econômico-financeira da
sociedade e, mais do que isso, seu desempenho e resultados, poderiam
ser mascarados, o que causaria a falsa impressão de que a companhia
não é rentável. Prejuízo compensa-se com lucro: como a reserva de ca­
pital não resulta de lucro, a compensação não poderia ser exigível. ,
Com efeito, o objetivo primordial das reservas de capital não é o de
cobrir prejuízos, mas, sim, o de reforçar o capital social. Em nenhum
momento o legislador impôs que se proceda a tal absorção. O caput do
art. 200 da Lei nº 6.404/76 apenas confere à sociedade a faculdade de
proceder a tal absorção, mas em nenhum momento a exige. Não se pode

20 Em razão disso, devem tais recursos aparecer em apartado no balanço, como recomenda
Bulhões Pedreira: A Lei nº. 6.404/76 prescreve que as transferências de capital recebidas
"

pela pessoa jurídica devem ser classificadas em conta de reserva de capital (art. 1 82, §12). O
objetivo da lei comercial, ao exigir que o balanço discrimine as reservas de capital das forma­
das com lucros, é evitar que di reitos que não integram o fluxo de renda auferida pela compa­
nhia sejam computados no lucro l íquido do exercício: de outro modo a demonstração do
resultado do exercício transmitiria a terceiros informação falsa sobre sua rentabilidade" (Im­
posto sobre a renda: pessoas j urídicas, v. 2. Rio de Janeiro: Justec, 1 979, pp. 680-681 ).
21 Lei nº 6.404/76, art. 1 89, parágrafo único: " ( ... ) Parágrafo único: O prej uízo do exercício
será obrigatoriamente absorvido pelos lucros acumulados, pelas reservas de lucros e pela
reserva legal, nessa ordem".
-
1 60 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

deduzir daí que as reservas têm de ser obrigatoriamente utilizadas para


um fim quando a própria Lei das Sociedades por Ações declara, em alto
e bom som, que as reservas poderão ser utilizadas para cinco finalidades
diferentes, uma das quais é a compensação de prejuízos.
Ao utilizar, no caput do art. 200 da Lei nº 6.404/76, o verbo ''poderão"
- ao invés da expressão "será obrigatoriamente absorvido", tal como o fez no
parágrafo único do art. 189 do mesmo diploma -, o legislador deixou
extreme de dúvidas que essa modalidade de utilização da reserva de capi­
tal é.facultativa. Qyando a Lei nº 6.404/76 impôs compensar certas reser­
vas, por serem reservas de lucros, enumerou-as claramente, sem fazer
qualquer referência à reserva de capital.
Daí se conclui que, em razão de sua origem exógena que a afasta
das transações e dos negócios realizados pela companhia durante o exer­
cício, as reservas de capital: (i) não têm a mesma disciplina das reservas
de lucros; (ii) não estão submetidas ao regime de compensação obriga­
tória do art. 189 da Lei nº. 6.404/76 e, exatamente por isso, (iii) têm
utilização facultativa para absorção de prejuízos ou para qualquer ou­
tra das finalidades referidas no art. 200 da Lei nº 6.404/7622 .
Nessa ordem de idéias, chega-se também à conclusão de que o art.
200 da Lei nº 6.404/76 apenas descreve as destinações que a companhia
pode conferir à reserva de capital, sem nada impor. Este rol que prevê as
possíveis utilidades da reserva de capital é taxativo, numerus clausus, mas
dentro das opções que a lei estabelece, qualquer uma - ou nenhuma delas!
- pode ser facultativamente seguida pela companhia. Por outro lado, a
reserva de capital, por não ser produto das operações da companhia, que
geram lucro quando positivo o resultado, tem sua utilização limitada.
Apesar disso, entre os fins previstos na Lei nº 6.404/76, acha-se
com clareza o pagamento de dividendos às ações preferenciais com divi-

22 Esta afirmativa é corrente na doutrina societária, como se vê pela lição de Modesto


Carvalhosa: "O parágrafo único do art. 1 89 estabelece que o prejuízo do exercício será
obrigatoriamente absorvido pelos lucros acumulados e reservas de lucros. A reserva de
capital poderá, facultativamente, ser utilizada para absorver os prejuízos remanescentes
após a compensação obrigatória de que trata o parágrafo único do art. 1 89 " (Comentários
à Lei de Sociedades por Ações, v. 3, 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 768).
PAULO CEZAR ARAGÃO & GISELA SAMPAIO DA CRUZ - 1 6 1

dendo cumulativo23 • Com efeito, a Lei nº 6.404176 admite a possibilidade


de o estatuto social estabelecer a cumulatividade dos dividendos e, como
previsto no citado art. 200, tornar possível o respectivo pagamento com a
reserva de capital24 • Não se trata aqui de um dividendo pago a débito de
lucro - que, obviamente, não pode coexistir com o prejuízo no balanço -,
mas, sim, de um dividendo pago a débito de valores que não constituem
lucro, como se tem repetido na doutrina25 •
Seja como for, o fato é que a lei não obriga a que, na absorção de
seus prejuízos, a companhia tenha que se valer das reservas de capital
existentes antes de seu capital social. É perfeitamente lícito - e, em al­
guns casos, até mesmo recomendável26 -, proceder à redução do capital

23 Na lição de Bulhões Pedreira: "Além disso, a lei mantém - em regra - o princípio tradicional de
que os dividendos devem ter origem em lucro realizado pela companhia. Submete, por isso, as
reservas de capital a regime legal especial, dispondo que somente podem ser utilizadas para
absorção de prejuízos, aquisição ou extinção de valores mobiliários de emissão da companhia
ou incorporação ao capital social. A utilização da reserva de capital para pagamento de divi­
dendos é admitida apenas para garantir o dividendo cumulativo de ações preferenciais, quan­
do essa vantagem lhes for assegurada (arts. 1 7, § 5º e 2º da Lei nº 6.404/76)" (Imposto sobre a
renda: pessoas jurídicas, cit., p. 681 ). Já constava, a propósito, da Exposição de Motivos da Lei
nº. 6.404/76 que "0 art. 201 (art. 200 da Lei) regula a utilização das reservas de capital, que não
têm origem em lucros, e que por isto não devem servir para a distribuição de dividendos, a não
ser como vantagem excepcional atribuída a ações preferenciais".
24 A doutrina reconhece que a concessão do direito ao dividendo cumulativo aos titulares de
ações preferenciais é i nstrumento para estimular a atratividade do i nvestimento e a capita­
lização da companhia (cf. Américo Osvaldo Campiglia, Comentários à lei das sociedades
anônimas, v. 5, São Paulo: Saraiva, 1 978, p. 252).
25 Vejam-se, uma vez mais, os ensinamentos de Bulhões Pedreira, para quem "a lei submete
as reservas de capital a regime que é intermediário entre o do capital social e das reservas
de lucros: (a) tal como capital social, não podem ser distribuídas como dividendos, com a
única exceção do dividendo cumulativo das ações preferenciais de que trata o § 5º do art.
1 7; esse tratamento dá aplicação ao princípio de que a companhia somente deve pagar
dividendos à conta do lucro l íquido do exercício ou de lucros acumulados ou em reservas
de lucros (art. 2 0 1 ); (b) essas reservas têm origem em recursos que não são contribuídos
com o fim de formar capital social, e não estão submetidas ao regime desse capital, que a
lei estabelece para garantia de credores" (Finanças e demonstrações financeiras da compa­
nhia: conceitos fundamentais, Rio de Janeiro: Forense, 1 989, pp. 427-428).
26 Na decisão conjunta dos processos admin istrativos CVM-RJ2004/4558, 4559, 4569 e 4583,
proferida em 2 1 .09.2004, o Presidente da CVM, Professor Marcelo Trindade, esclarece,
justamente, que pode "haver diversas razões, contratuais, estatutárias, tributárias, ou de
outra natu reza do interesse da companhia, para reduzir-se o capital social sem reduzir-se a
reserva de capital. Imagi ne-se uma companhia que se obrigou a pagar dividendos sobre o
valor de uma determinada reserva de capital quando da emissão de ações com ágio, exclu­
sivamente em favor dos acionistas que subscrevessem aquela cl asse de ações emitida. A
redução do capital social não impactaria o dividendo, mas a da reserva sim, e portanto a
companhia poderia deliberar preservar o valor do dividendo, reduzindo o capital social".
1 62 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

para absorção dos prejuízos na hipótese de a companhia possuir reserva


de capital.

3.2. Ü BALANÇO INTERMEDIÁRIO COMO BASE PARA A REDUÇÃO


DO CAPITAL
É de extrema importância, conforme já se adiantou acima, analisar o
balanço a ser utilizado como base para a redução de capital. Enquanto na
hipótese de redução de capital para devolução de recursos aos acionistas a
questão não se mostra relevante, devido à estabilidade do capital ao longo
do tempo, o mesmo não pode ser dito da redução de capital para absorção
de prejuízos, uma vez que estes são essencialmente mutáveis.
Os prejuízos podem ser contabilizados por meio de duas espécies de
balanço: o balanço intermediário, que pode ser levantado por força de lei
ou previsão estatutária, conforme determina o art. 204 da Lei nº 6.404/
· 76; e o balanço de encerramento, que deve ser elaborado ao término do
exercício social. A rigor, o que na prática difere estas duas espécies é o fato
de que, no intermediário, as contas de resultado não são encerradas conta­
bilmente. Significa dizer, por outras palavras, que, apesar dessa diferença
no procedimento contábil, as informações trazidas nas demonstrações fi­
nanceiras intermediárias são ontologicamente idênticas às contidas no
balanço de encerramento.
Sendo assim, ao elaborar o balanço intermediário, a companhia obtém
os mesmos resultados que teria alcançado se tivesse encerrado suas contas
de resultado e levantado, naquela data, o balanço de encerramento27 • As
demonstrações financeiras intermediárias, no que tange ao dimensiona­
mento de lucros ou prejuízos acumulados, seguem fielmente todos os cri­
térios de elaboração do balanço de encerramento, computando o saldo do
resultado alcançado até a data-base estabelecida.

27 Nesse sentido, afirma Bul hões Pedreira que o balanço intermediário "não modifica a anui­
dade do período de determinação do resultado. É levantado com observância de todas as
prescrições legais e regras contábeis apl icáveis ao balanço anual mas sem encerramento
das contas do resultado do exercício: ainda que a sociedade distribua dividendos com base
no lucro apurado, a demonstração do resultado anual abrange os resultados de todo o
exercício social" (Finanças e demonstrações financeiras da companhia: conceitos funda­
mentais, cit., p. 656).
PAULO (EZAR ARAGÃO & GISELA SAMPAIO DA (RUZ - 1 63

Com efeito, a conta "Lucros ou Prejuízos Acumulados" informa os


lucros reconhecidos pela companhia até a data do balanço, que permane­
cem em seu patrimônio sem destinação deliberada pelo órgão competente,
ou os prejuízos acumulados, se o saldo for negativo. A referida conta abarca
não só o saldo do exercício em questão, mas também o dos resultados acu­
mulados nos exercícios anteriores. Assim, nada impede, legalmente, que se
utilize o balanço intermediário como base para a redução do capital.
O balanço intermediário é capaz de mensurar, eficazmente, o de­
sempenho da sociedade, prestando-se, nesta hipótese, ao mesmo fim do
balanço elaborado ao término do exercício social, qual seja, demonstrar a
posição patrimonial da companhia na data-base de seu levantamento. Nesse
sentido, é possível afirmar que as demonstrações financeiras intermediá­
rias são definitivas, uma vez que refletem a realidade da companhia no
momento de sua elaboração. Embora não implique o encerramento das
contas de resultado, o balanço intermedfário permite a distribuição de
lucros aos acionistas, ou a compensação de prejuízos com o capital social,
dependendo do quadro que a companhia apresentar.
Ademais, se, no art. 204 da Lei nº 6.404/76, o próprio legislador
deixou claro que os balanços intermediários, no que diz respeito à apura­
ção de lucros, são definitivos, nada mais natural do que lhes conferir o
mesmo caráter na hipótese de prejuízo28 • Este, quando registrado no ba­
lanço intermediário, também representa uma situação econômica inte­
gralmente formada para a empresa, assim como o lucro traduz uma riqueza
inteiramente absorvida pela companhia. Dito de outra forma: tanto o lu­
cro quanto o prejuízo configuram um quadro estável, inseridos no con­
texto temporal do balanço intermediário que os tenha registrado.

28 Na lição sempre esclarecedora de Alfredo Lamy Filho, o balanço intermediário deve ser
considerado definitivo para verificar a existência de prejuízo: 11 0ra, se o balanço interme­
diário é definitivo, no entender dos autores, para apurar lucros, e pagar dividendos, mesmo
se, ou quando, ocorreram prejuízos no balanço anual, parece evidente que, correlatamente,
e com maior razão, será definitivo para verificar a existência de preju ízos" e, ainda, em
outra passagem afirma: "O balanço i ntermediário, autorizado no estatuto, é definitivo: os
lucros apurados e distribuídos não têm que ser devolvidos se o balanço anual acusa preju­
ízo, e os prej u ízos não serão compensados com eventuais lucros do exercício anual" ("Res­
gate de ações preferenciais mediante alteração estatutária", A Lei das 5.A., v. 2, 2. ed., Rio
de Janeiro: Renovar, 1 996, p. 479 e 481 ).
1 64 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

Nessas condições, não é razoável diferenciar lucro e prejuízo, con­


ferindo caráter peremptório às demonstrações financeiras intermediá­
rias que tenham registrado o primeiro, e procedendo de forma oposta
quanto ao segundo. A assertiva de que, em decorrência de resultado de
demonstração financeira intermediária, apenas os dividendos distribuí­
dos são definitivos - hipótese de lucro, portanto -, não possui qualquer
fundamento jurídico: definitivos são os próprios balanços intermediários,
na qualidade de demonstrações contábeis.
É justamente por isso que as informações constantes do balanço in­
termediário não podem ser alteradas pelos resultados obtidos no balanço
elaborado ao término do exercício social. Tais informações, em relação ao
período de sua apuração, são definitivas, porque o lucro ou o prejuízo
registrado nas demonstrações financeiras intermediárias traduz uma situ­
ação estável, considerando-se o fator cronológico do balanço.
Dir-se-á que é bem conhecido, e dispensaria demonstração a esta
altura, o caráter peremptório do balanço intermediário e sua íntima cor­
relação com o balanço de encerramento, mas o que ficou dito foi opor­
tuno, senão necessário, para que se entenda o próximo passo do raciocínio,
relacionado ao momento da redução do capital social. Não é obrigató­
rio - sendo, por vezes, até prejudicial à companhia - aguardar o encerra­
mento do exercício social para, só então, realizar a redução do capital. A
redução de capital pode ser efetuada muito antes disso, visto que os
prejuízos que a ensejaram podem ter sido contabilizados em balanço
intermediário, o qual, por definição, não encerra o exercício social.
Para que a finalidade da redução do capital social seja atingi­
da, qual seja, a absorção de prejuízos, de modo a restabelecer o equi­
líbrio financeiro da companhia, é essencial que tais prejuízos sejam
quantificados. De modo geral, esta quantificação é feita no b alan­
ço de encerramento do exercício social. No entanto, há hipóteses
em que a redução de capital se mostra necessária para absorver pre­
juízos sofridos ao longo do próprio exercício social, sendo tardio,
para este propósito, o resultado contábil da demonstração finan­
ceira de encerramento. Neste caso, as informações obtidas no ba-
PAULO ÜZAR ARAGÃO & GISELA SAMPAIO DA (RUZ - 1 65

lanço intermediário servirão de subsídio à operação de saneamento


financeiro.
Dessa forma, é possível depreender que, em caráter excepcional, quan­
do existir conveniência em reduzir o capital para absorver prejuízos acu­
mulados durante o próprio exercício social, isto é, sem que este se tenha
encerrado, admite-se que tal redução tenha como base o resultado de de­
monstrações financeiras intermediárias. Não há qualquer vedação legal
que impeça este tipo de operação, uma vez que a própria Lei nº 6.404/76
atribui ao balanço intermediário caráter definitivo e obrigatório.
Também não há impedimento lógico à utilização dos resultados
obtidos por este balanço intermediário, para fins de redução de capital,
considerando-se que o mesmo segue à risca todas as exigências e crité­
rios atinentes ao balanço de encerramento, o qual se distingue do ante­
rior, conforme antes dito, somente pelo fato de encerrar contabilmente
o exercício social da companhia.
Bem se vê, ante ao exposto, que a tese segundo a qual a redução
contábil do capital social para absorção dos prejuízos acumulados não
pode levar em conta as perdas que a companhia tenha sofrido ao longo
do exercício social, quando esta redução for realizada durante tal perío­
do, não tem fundamento jurídico, nem contábil29 •
Se ainda restar dúvida, basta recorrer ao art. 1 73 da Lei nº 6.404/
76, o qual prevê a possibilidade de a redução de capital ser efetuada
até o montante dos prejuízos acumulados, sem fazer qualquer distin­
ção em relação ao prejuízo contabilizado no exercício corrente, dei­
xando claro que o cálculo dos prejuízos acumulados inclui todo o
resultado da empresa até a data-base das demonstrações financeiras.

29 Embora não concorde com a tese, o voto do Presidente da CVM, Marcelo Trindade, no
julgamento dos processos administrativos CVM-RJ2004/4558, 4559, 4569 e 4583 (decisão
conjunta proferida em 2 1 .09. 2004), reconheceu que a CVM vinha admitindo o procedi­
mento: "Neste ponto, embora eu possa vir a concordar, em tese, com o raciocínio da SEP,
secundado pela SNC, e apoiado pelo Diretor Relator, no sentido de que prejuízos em for­
mação, apurados em balanço intermed iário, não se prestam à redução de capital, não
posso fazê-lo no caso concreto, pois estou convencido de que tal entendimento não era
pacífico até aqui na autarquia, havendo, além disto, sinais expressivos de que a CVM vinha
admitindo o procedimento que a manifestação de entendimento condena, ou ao menos
não o vinha coibindo até esta operação".
1 66 - REORGANIZAÇÃO SüCIETÃRIA

3.3. A SITUAÇÃO DOS TITULARES DE AÇÕES PREFERENCIAIS


Por fim, é preciso considerar a existência de titulares de ações pre­
ferenciais emitidas pela companhia, aos quais tenha sido atribuído divi­
dendo mínimo ou fixo, calculado tomando por base o capital social. Qyais
são as repercussões negativas que a redução de capital, realizada para
absorver os prejuízos da companhia, gera para tais acionistas? A redu­
ção de capital, nesta conjuntura, afetaria a prioridade das ações na hipó­
tese de reembolso do capital?
A doutrina estrangeira, examinando um sistema em que as ações
preferenciais têm forçosamente valor nominal, refere-se em certos casos
ao fato de que a redução do capital deveria ser objeto de manifestação
dos acionistas preferenciais titulares de tais dividendos, reunidos em
assembléia especial3° . O conceito, todavia, não vale para o nosso sistema
quando as ações preferenciais não tiverem valor nominal e o respectivo
dividendo, como é usual, for calculado com base na aplicação do per­
centual estatutário aplicado sobre o chamado valor unitário, resultado
da divisão do capital social pelo número de ações da companhia.
No ordenamento jurídico brasileiro, a manifestação dos acionistas
titulares de ações preferenciais sem valor nominal torna-se dispensável
neste caso, por uma razão muito simples: não são estes prejudicados pela
redução do capital. Muito pelo contrário, pois são os maiores interessados
.
em que a sociedade elimine, por meio da compensação, ou deixe de com­
putar, com a instituição do dividendo cumulativo, os prejuízos acumula­
dos para fins de pagamento de dividendos, de sorte a permitir que a sua
preferência, outorgada em troca da suspensão de direito de voto, volte a
ter real significado econômico.
Não custa lembrar que o acionista, nessas circunstâncias, não é ti­
tular de um determinado valor, nominal e fixo, mas sim - e apenas vir­
tualmente - de um percentual do patrimônio social - e não, frise-se, do
capital social. Daí resulta a conclusão de que a medida dos direitos aos

30 Carlos Osório de Castro, "Acções preferenciais sem voto", Problemas do Direito das Socieda­
des, Coimbra: Almedina, 2003, pp. 3 1 6-320.
PAULO (EZAR ARAGÃO & GISELA SAMPAIO DA (RUZ - 1 67

dividendos dos titulares de ações sem valor nominal está intrinseca­


mente ligada à parcela do patrimônio da companhia correspondente às
suas ações, sem se vincular a qualquer valor nominal. Trata-se, não à toa,
de ação "sem valor nominal". Por esta razão é de se entender que a con­
gruência entre capital social e patrimônio, por vezes só obtida com a
operação de saneamento financeiro mediante a redução contábil do ca­
pital, não prejudicará os direitos dos titulares de ações preferenciais sem
valor nominal31 •

A preferência ou vantagem constitui-se por um percentual da fra­


ção ideal representada pela divisão do capital pelo número de ações pre­
ferenciais ("valor unitário"), dados esses essencialmente mutáveis. Com
efeito, considerando uma companhia cujas ações não têm valor nomi­
nal, esse quociente aumenta se há cancelamento, resgate ou reembolso
de ações preferenciais ou aumento do capital social por preço de emis­
são superior ao valor unitário; e reduz-se caso este aumento de capital,
ao contrário, ocorra por valor inferior ao valor unitário, sendo emitidas
novas ações preferenciais ou ordinárias.
Apenas a título ilustrativo, imagine-se a situação de uma compa­
nhia com 500 ações ordinárias e 500 ações preferenciais, todas sem va­
lor nominal, tendo estas últimas um dividendo mínimo de 10% sobre o
respectivo valor unitário, que é o produto da divisão do capital social
(R$ 10.000,00, por hipótese) pelo número de ações. Neste exemplo, o
valor "unitário" de R$ 10,00 ensejará o dividendo mínimo de R$ 1 ,00.
Se, porém, é realizado um aumento de capital com a emissão de 1 .000
novas ações por R$ 5,00 por ação, ordinária e preferencial, aumentan­
do-se o capital social de R$ 10.000,00 para R$ 15.000,00, a redução do

31 D e acordo com o princípio d a efetividade o u correspondência do capital social, que i nte­


gra uma preocupação constante do legislador em prol dos interesses dos credores da com­
panhia, o patrimônio ativo deve ultrapassar sempre que possível o montante das dívidas
contraídas pela sociedade em quantum ao menos equivalente ao que representa o valor
nominal do capital. Sendo assim, especialmente em razão do princípio aludido, é de fun­
damental importância esclarecer o papel representado pela redução de capital para absor­
ção de prejuízos no âmbito das medidas tendentes a restabelecer a situação de equ ilíbrio
do patrimônio da sociedade. Neste sentido, cf. Antonio Pérez de La Cruz Bianca, L a
reducción dei capital en sociedades anónimas y de responsabilidad limitada, Zaragoza:
Publi caciones dei Real Colegio de Espafia en Bolonia, 1 973, p. 207.
1 68 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

valor unitário para R$ 7,50 (i.e., R$ 15.000,00 divididos por 2.000 ações)
terá efeito sobre o dividendo da ação preferencial, que passará a R$ 0,75,
sem que daí se tenha jamais cogitado de necessidade de aprovação de
assembléia especial em tais casos.
Figure-se, em outro exemplo, uma sociedade anônima com o mes­
mo capital de R$ 10.000,00, dividido em 1 .000 ações, também com
500 ações preferenciais com dividendo correspondente a 1 0% do res­
pectivo valor unitário (i.e., uma vez mais, um dividendo de R$ 1 ,00
por ação preferencial) . Alterado o estatuto para, digamos, mudar o ob­
jeto social, 100 acionistas exercem o direito de retirada pelo valor eco­
nômico apurado na forma dos § § 3° e 4° do art. 45 da Lei nº 6.404/76,
em R$ 20,00 por ação, sendo-lhes pago o valor de R$ 2.000,00, a débito
do capital social (por falta de reservas), levando a companhia a dar por
reduzido o capital de R$ 10.000,00 para R$ 8.000,00 (i.e, R$ 10.000,00
menos R$ 2 .000,00), dividido em 900 ações (i.e, as 1 .000 ações origi­
nais menos as 100 canceladas na forma do § 6° do art. 45 da Lei nº
6.404/76).
Nesta última hipótese, depois de realizada a referida operação
societária, o valor unitário será reduzido a R$ 8,88 e o dividendo por
ação preferencial, em conseqüência, para R$ 0,88. Mas será que al­
guém sustentaria que, apenas por isto, os titulares de ações preferenci­
ais teriam sofrido prejuízo que fizesse a outorga do direito de retirada
aos dissidentes estar sujeita à assembléia especial? Rejeitado o direito
de recesso pelos titulares de ações preferenciais atingidos, a compa­
nhia ficaria desobrigada de cumprir o art. 45 da Lei nº 6.404/76?
E se a companhia resgata parte de suas ações nas mesmas condi­
ções acima referidas, isto é, por um preço de resgate superior ao valor
unitário? E se a companhia, havendo adquirido ações para manutenção
em tesouraria a um preço superior ao valor unitário e não tendo mais
reservas de capital ou lucro para suportar a manutenção de tais reservas
em tesouraria, é obrigada a cancelar tais ações, como exigido pela Ins­
trução CVM nº 10? E se a companhia incorpora outra sociedade, emi­
tindo ações a uma relação de troca que faz com que o preço de emissão
PAULO (EZAR ARAGÃO & GtSELA SAMPAIO DA CRUZ - 1 69

das ações da sociedade incorporada seja inferior ao valor unitário da


sociedade incorporadora?
Enfim, em todos esses casos - e em muitos outros da vida societá­
ria - é reduzido o valor unitário de todas as ações da companhia, e o
dividendo das ações preferenciais calculado sobre tal valor unitário, sem
que em nenhum deles jamais se tenha pensado em invocar o direito de
retirada ou a exigência de assembléia especial.
Qyando o capital da companhia é reduzido, com absorção de prejuí­
zos, sem nenhuma devolução de recursos aos acionistas, resulta daí um be­
nefício evidente para os titulares de ações preferenciais, que passam desde
logo a receber seus dividendos. Na operação de redução do capital, é pos­
sível, ainda, instituir a cumulatividade temporária deste dividendo que
poderá ser pago com as reservas de capital, nos termos do art. 200 da Lei
nº 6.404/76. Sendo o acionista titular de ações preferenciais o maior inte­
ressado na percepção de dividendos, como de fato o é, a redução do capital
não o prejudica, mas, ao revés, só o beneficia32 •

Além disso, ainda que não os favorecesse, o fato é que não existe
qualquer direito, por parte dos titulares de ações preferenciais, a que se
mantenha inalterada, para cima ou para baixo, a cifra do capital social.

32 A redução do capital também não prejudica os credores, porque a garantia deles não está
na cifra do capital 1 uma vez que esta representa tão-só uma informação contábil. Para os
titul ares de ações preferenciais, cujos direitos aos dividendos estão atrelados ao patrimônio
da companhia, esta cifra também nada significa. São eles os maiores interessados na per­
cepção de dividendos. É o que, de forma enfática, afirma Alfredo Lamy Filho, na seguinte
passagem: "4.4 - A operação de redução do capital social, como se vê, é sempre delibera­
da no interesse dos sócios ou acionistas - tanto ordinários quanto preferenciais. Absorven­
do os prejuízos existentes no bala nço, reduz-se a cifra do capital social, o que viabiliza o
pagamento de dividendos sociais logo que a sociedade dê lucro. ( ... ) 4.5 Quanto ao
-

acionista preferencial é 1 obviamente, o maior interessado na percepção de dividendos:


privado de voto, tem como compensação a prioridade na percepção de dividendos" ("Res­
gate de ações preferenciais mediante alteração estatutária", cit., p. 477). Em outra passa­
gem, Alfredo Lamy Filho ressalta a identidade de interesses dos titulares de ações ordinárias
e dos titulares de ações preferenciais quanto à redução de capital, mesmo quando as ações
preferenciais têm o dividendo fixo ou mínimo como prioridade: "Como se vê, o acionista
preferencial - cujos direitos e prioridades permanecem intocados, pois o art. 5º, § 2º conti­
nua vigendo, sem qualquer modificação, será necessariamente, beneficiado com a redu­
ção deliberada ( ... ) ainda que as ações tivessem valor nominal - o que não ocorre na
espécie e que se se refere apenas como especulação" (" Resgate de ações preferenciais
mediante alteração estatutária", cit., p. 478).
1 70 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

A fração ideal do capital social de cada ação sem valor nominal é, por
essência, mutável. As únicas garantias prometidas às ações preferenciais,
como anota Edmond Thaller, dizem respeito à preservação da percen­
tagem dos dividendos fixada pelo estatuto e à manutenção de sua prio­
ridade de recebimento:
"Em se tratando de ações preferenciais, a sociedade não dá
garantia de manter, em todas as hipóteses, o montante nomi­
nal dessas ações, nem da quantidade de certificados que elas
representam. Os acionistas preferenciais consentiram impli­
citamente em incorrer o mesmo risco, no mesmo grau que os
acionistas ordinários, de diminuição deste montante ou des­
ta quantidade, em conseqüência de maus negócios da empre­
sa, sob a condição que este risco atinja de maneira uniforme
os membros das duas categorias. Há neste caso, um risco ao
qual todos estão expostos. A única garantia prometida a essas
ações preferenciais é de ter e de preservar a percentagem dos
dividendos fixada pelo estatuto, assim como a taxa e a ordem
de recebimento; é de conservar o direito de serem reembolsa­
dos preferencialmente aos demais, dos montantes pecuniários,
sujeitos a diminuição de montante relativamente ao capital
investido, desde que os demais tenham sofrido perda seme­
lhante"33 .
No que tange � prioridade no reembolso, a ausência de prejuízo
também parece evidente. Ora, se, em caso de dissolução, os acionistas só
são pagos depois dos credores, não adianta manter o capital em um
valor que não corresponde ao patrimônio real da companhia. Se as obri­
gações para com os credores têm tal porte que, no conjunto, já afetam a
integralidade do capital social, a situação dos titulares de ações prefe­
renciais fica comprometida a partir daí, em nada sendo alterada com a
redução do capital.

33 Edmond Thaller, "La réduction du capital d' une société anonyme par soite de pertes en face
d'actions de priorité 111 Anna/es de droit commercia/ français, étranger et internationa/, Paris:
Arthur Rousseau, 1 9 1 1 , p. 281 .
PAULO CEZAR ARAGÃO & GISELA SAMPAIO DA CRUZ - 1 71

Dito de outra forma, os titulares de ações com prioridade no reem­


bolso, em caso de liquidação da sociedade, terão tal preferência concre­
tizada sobre o que restar do patrimônio da companhia depois de pagos
todos os credores, privilegiados ou não. Significa dizer, por outras pala­
vras, que, se o patrimônio for, nesse momento, inferior ao capital social,
os titulares de ações preferenciais serão pagos prioritariamente, mas pro­
vavelmente de forma parcial - se a perda ultrapassar o quinhão propor­
cional das ações ordinárias -, tendo em conta o patrimônio da companhia,
e não seu capital social. Assim, pode-se afirmar que a redução da cifra
nominal do capital social não atinge o potencial reembolso prioritário
de tais acionistas, já afetado pelos prejuízos acumulados.
Diante disso, a realização de assembléia especial de preferencialistas
torna-se incabível. Se, como visto, não existe prejuízo quanto aos dividen­
dos, nem no que diz respeito à prioridade no reembolso, então não há que
se falar em assembléia especial34 • Isto porque, como anota Sylvio Mar­
condes, "a assembléia especial tem como pressuposto necessário estarem
seus participantes sujeitos a prejuízo"35 • Apenas quando essa deliberação
prejudica, seja restringindo, seja cancelando preferências ou vantagens
conferidas a uma ou mais classes de ações preferenciais, é que, conforme
esclarece Trajano de Miranda Valverde, "se faz necessário o consentimen­
to de possuidores destas últimas, manifestado pela voz da maioria qualifi­
cada, em assembléia especial"36 •
O "valor unitário" não é preferência ou vantagem que não possa ser
alterada e, em realidade, em diversas circunstâncias esse valor unitário é
reduzido, sem que se possa dizer que, em tais casos, se impõe a assem­
bléia especial. A redução do capital afeta todas as ações - e não só as

34 Nessa linha, se não é exigível a assembléia especial dos titulares de ações preferenciais,
tampouco se deve cogitar da realização de assembléia de debenturistas se as ações em que
podem ser convertidas as debêntures vão ter suas vantagens aumentadas.
35 Sylvio Marcondes, Questões de direito mercantil, São Paulo: Saraiva, 1 977, p. 6 1 . No mes­
mo sentido: Modesto Carvalhosa, Comentários à Lei de Sociedades por Ações, v. li, 3. ed.,
São Paulo: Saraiva, 2003, p. 862.
36 Trajano de Miranda Valverde, Sociedades por ações, v. 1, Rio de Janeiro: Forense, 1 94 1 ,
p. 551.
1 72 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

preferenciais -, razão pela qual não fica sujeita à aprovação dos acionis­
tas privilegiados, consoante a lição de Paulo Miguel Cunha:
"A lei não prevê, relativamente às ações preferenciais, nenhuma
solução especial para a hipótese de redução do capital social.
Tratando-se de uma operação que afecta por igual todas as ações
(cf art. 94°, no. 2, in fine), ela não estará sujeita ao consentimen­
to dos acionistas privilegiados reunidos em assembléia especial.
Essa é a conclusão a que se chega por analogia com o disposto
no art. 344°, no. 2, infine, referente à conversão de ações ordiná­
rias em privilegiadas"37 •

Por idênticas razões, também não cabe aqui discutir direito de reces­
so. Como é notório, o direito de recesso é um instrumento jurídico do
qual dispõe o acionista insatisfeito com alguma espécie de "mudança de
rumo" na vida social. Este direito visa à proteção do acionista dissidente,
mas não lhe confere proteção ilimitada, pois, do contrário, o interesse da
companhia, que deve sempre prevalecer sob o interesse individual de seus
acionistas, restaria ameaçado. Por isso, é certo que o direito de retirada se
restringe às hipóteses elencadas em lei, de forma taxativa38 • Qyer isto

37 Paulo Miguel Cunha, Os direitos especiais nas sociedades anônimas: as ações privilegiadas,
Coimbra: Almedina, 1 993, p. 1 65. Em sentido semelhante, Paul Maria atenta para o fato de
que os titul ares de ações preferenciais são acionistas da companhia da mesma maneira que
os demais, de modo a contribuir - uns e outros - para a fo rmação do capital social, do qual
seguirão todas as flutuações, boas ou más. Assim, "o objetivo comum estabelecido entre
todos os sócios estabelece uma certa fo rma de solidariedade no esforço e esta medida da
qual crêem poder fugir [a redução do capital] exigirá realmente um sacrifício da parte dos
mesmos - ao preço deste sacrifício poderão um dia exercer utilmente o privilégio -, mas sem
o qual estará em risco a própria estrutura social" (Des modifications du capital social au cours
de la vie sacia/e dans les societés commerciales par actions, Paris: Arthur Rousseau, 1 9 1 3. p.
1 1 3). Além disso, como bem lembra Joaquín Garrigues, los accionistas ordinários no han
11

consentido antecipadamente en ser e/los quienes suporten las perdidas de la sociedade, sino
unicamente en conceder a los accionistas preferentes un privilegio sobre los benefícios o
sobre la cuota de liquidaciôn que reste una vez saneada la empresa" (Comentaria a la ley de
sociedades anónimas, tomo li, 3. ed., Madrid: Aguirre, 1 976, p. 3 1 5).
38 O di reito de retirada, vale frisar, deve ser interpretado restritivamente e "sujeita-se à de­
monstração de justo motivo e à existência de real prejuízo, bem como que a decisão da
maioria se encontra em descompasso com o interesse social", sendo certo que a ausência
de tais demonstrações "transforma o recesso em ato abusivo, corporificando censurável
pretensão ao enriquecimento sem causa" (J. Saulo Ramos, "Descabimento do D i reito de
Recesso", Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, São Paulo:
Revista dos Tribunais, n.º 5, mai ./ago. 1 999; pp. 244-245). Com idêntico posicionamento, a
ressaltar que o elenco da lei é taxativo, veja-se U. Navarrini, Das sociedade e das associações
PAULO CEZAR ARAGÃO & GISELA SAMPAIO DA CRUZ - 1 73

dizer também que este direito não pode ser exercido abusivamente, sen­
do, ainda, necessário que se comprove o prejuízo do interessado39 •
A doutrina aponta, então, duas condições essenciais para que o di­
reito de recesso seja exercido legitimamente: (i) a configuração de uma
das hipóteses elencadas taxativamente em lei e (ii) a efetiva verificação
de prejuízo do interessado. Tais condições não podem ser consideradas
alternativas, mas, sim, complementares, pois formam um conjunto in­
divisível, sem o qual não haverá possibilidade de retirada do acionista40 •
Dessa forma, o acionista dissidente só faz jus ao direito de recesso
quando a deliberação assemblear gerar efetiva perda patrimonial, de modo
a se verificar o prejuízo. De fato, sustentar linha diversa descaracterizaria
o instituto, inserido no ordenamento para evitar desrespeito à lei, e não
para conferir à minoria um poder despótico dentro da sociedade, inviabi­
lizando o normal funcionamento de seus negócios.
Com base nos fundamentos aqui expostos, foi esse o entendimento
que prevaleceu no julgamento dos processos administrativos CVM­
RJ2004/4558, 4559, 4569 e 4583, em que o Diretor Eli Loria, referin­
do-se ao M EMO/PFE -CVM/GJU-2/n° 3 1 3/03, afirmou que,
"considerando que a absorção dos prejuízos acumulados pelo capital social
(o 'saneamento financeiro') nada mais é do que um ajuste contábil ne-

comerciais, v. l i , tradução de Valentina Borgeth Loehnefinke, Rio de Janeiro: José Konofino


Editor, 1 950, p. 337. Para Egberto Lacerda Teixeira e J. A. Tavares Guerreiro, o direito de
recesso não deve ser admitido em hipóteses análogas às descritas na lei (Das sociedades
anônimas no direito brasileiro, v. 1 , São Paulo: j . Bushatsky, 1 979, p. 286). Além da doutri­
na, a própria CVM adere a este entendimento, como se vê: "(. . .) a doutrina consagra tam­
bém o entendi mento de que a enumeração do art. 1 3 7 é uma enumeração taxativa, isto é
que não autoriza a ampliação das hipóteses legais do direito de recesso" (Parecer CVM/
SJU/060/78, Dra. Maria Theresa Werneck Mel lo, de 01 .09.1 978).
39 Wilson de Souza Campos Batalha ressalta, ai nda, que é pressuposto para seu exercício a
comprovação de prejuízo: "Antes de passar à análise das hi póteses de exercício do direito
de retirada, devemos assinalar que tal exercício não é il imitado, achando-se condicionado
à e x istê nci a (real ou potenc ial) de prejuízos ao acionista ·retirante. Não basta apenas a
ocorrência de qualquer hipótese taxativamente enunciada na lei: é indispensável a possibi­
lidade de prejuízo. O preceito, norteado pelos propósitos de proteger as m i norias contra as
a r b i t r a r i edades d a m a i o r i a , não pode c o n v e rter-se em fo nte de a b u sos e
locupletamentos"( Oireito processual societário, Rio de Janeiro: Forense, 1 985, p. 239).
40 Na jurisprudência, cf. STJ, 4' T, REsp 3 1 5 1 5/SP, Rei. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j .
23.03 . 1 996, V. u . , D J 22.04.1 996.
1 74 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

cessário à adequação do montante deste à realidade da Companhia, só


se pode concluir que a redução é um reflexo do risco do empreendimen­
to, a que se sujeitam regularmente todos os acionistas'', motivo pelo
qual entendeu não haver obrigatoriedade de ratificação, em assembléia
especial de preferencialistas, da deliberação de redução de capital já apro­
vada em assembléia geral extraordinária, nem, por conseguinte, fazem
jus os titulares de ações preferenciais ao direito de retirada.

IV. CONCLUSÃO
Apesar de o capital social continuar sendo alvo de "minudente re­
gulação" na legislação societária41 e objeto dos mais profícuos trabalhos
acadêmicos, a verdade é que há muito, na prática empresarial, já se reco­
nhece que a cifra representativa do capital pouco representa em termos
de garantia. O direito societário caminha, a passos largos, no sentido de
viabilizar cada vez mais a congruência entre capital e patrimônio, quer
por ocasião da constituição da companhia, quando se exige avaliação
dos bens por perito (Lei nº 6.404/76, art. 8°), quer ao longo de toda a
existência da sociedade, nas inúmeras operações a que o capital social
está sujeito.
Dentre essas operações, destaca-se a redução do capital social que
pode apresentar-se em diversas modalidades, sendo as mais comentadas a
redução por excesso e a redução por perdas. �ando há excesso de capital,
significa que a sociedade estava a bloquear, na conta de capital, valores
superiores às suas necessidades, levando-se em conta o objeto social e a
atividade por ela desenvolvida. A finalidade da redução aqui é "eliminar o
peso morto que onera a sociedade"42 .
Procede-se à redução ppr. perdas quando o capital é superior ao
patrimônio da sociedade qu ;, ?éndo deficitária, passará em pouco tem­
po a ter um capital sem correspondência patrimonial.

41 Nelson Eizirik, "I ncorporação de Reservas de Capital ao capital social seguida da redução
do capital - legitimidade da operação", cit., pp. 257-258.
42 J . X. Carvalho de Mendonça, Tratado de direito comercial brasileiro, cit., p. 454.
PAULO CEZAR ARAGÃO & GISELA SAMPAIO DA CRUZ - 1 75

Nesta última hipótese, a operação tem apenas um alcance formal e


não acarreta, por si só, qualquer diminuição do patrimônio social. Ao se
reduzir o capital social, a fim de firmar-lhe o valor, não procedem os
acionistas senão a um ajustamento. "E a operação a ninguém prejudica­
rá, principalmente aos credores da sociedade, pela razão de que, tendo
eles por garantia apenas o patrimônio social, este não sofre modificação
alguma"43 •
Essa espécie de redução, que tem por escopo realizar o saneamento
financeiro da sociedade, pode ocorrer ainda quando a sociedade tem
reserva de capital. Como as reservas de capital não são formadas com
recursos gerados pela própria companhia, mas, ao reverso, por valores
resultantes de ingressos e contribuições de terceiros, não precisam ser
obrigatoriamente utilizadas para absorver os prejuízos acumulados. A
lei não obriga, de fato, a que, em caso de a companhia decidir pela ab­
sorção de prejuízos, sejam utilizadas as reservas de capital existentes
antes de utilizado o próprio capital social. Se houvesse tal imposição
legal, a situação econômico-financeira da companhia poderia ser false­
ada, e mais do que isso, seu desempenho e resultados alterados.
Para reduzir o capital, especialmente quando se faz necessário ab­
sorver prejuízos acumulados durante o exercício social corrente, a com­
panhia pode valer-se do balanço intermediário, já que este é capaz de
mensurar, eficazmente, o desempenho da sociedade, prestando-se, nes­
ta hipótese, ao mesmo fim do balanço elaborado ao término do exercí­
cio social. O balanço intermediário, como se disse, segue à risca todas as
exigências atinentes ao balanço de encerramento e apresenta o mesmo
caráter peremptório.
Com a redução contábil da cifra do capital para absorção dos pre­
juízos, e a instituição temporária da cumulatividadi! para as ações prefe­
renciais com dividendo mínimo ou fixo, não são prejudicados os titulares

43 Waldemar Martins Ferreira, "Sociedade anonyma. O seu saneamento pela reducção e


concomittante augmento de seu capital", Questões de direito comercial (pareceres), segun­
da série, São Paulo: Typographia Siqueira Salles Oliveira Rocha & C., 1 929, pp. 84-85.
1 76 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

dessas espécies de ações, pois, em última análise, a medida não implica a


alteração da política de dividendos da companhia.
Operações desse tipo, capazes de promover o saneamento finan­
ceiro da companhia, evitando, assim, que os acionistas deixem de rece­
ber os dividendos a que têm direito, podem ser aprovadas por assembléia
geral extraordinária de acionistas, dispensada que está, pela lei, a reali­
zação de assembléia especial de acionistas preferenciais e de debenturis­
tas, j á que nem a prioridade na distribuição de dividendos nem a
prioridade de reembolso a que fazem jus são afetadas pela deliberação.
Fusão, Cisão e
1 ncorporação no Contrato
Administrativo: a Restrição
do I nciso VI, do Artigo 78,
da Lei 8. 666/93 e suas
Repercussões sobre as
Liberdades Privadas
do Direito Societário

Glauco Martins Guerra


Advogado
Membro do IDSA

Rodrigo R. Monteiro de Castro


Advogado
Diretor Presidente do IDSA
1 78 - REORGANIZAÇAO SOCIETÁRIA

1. OBJETIVOS DO TEMA
A propulsão do Direito Societário chama-se mobilidade.
Sem dúvida que a mobilidade do capital é da essência do ato so­
cietário. Mas é na mobilidade funcional de pessoas e bens que o Direito
Societário encontra sentido para seus institutos, o que se percebe, com
uma ou outra nuance, na maioria dos sistemas jurídicos que foram dar­
dejados pelo capitalismo.
O ato ·societário, aqui referido como ato de empreender e desen­
volver um negócio economicamente planejado, tem espaço direto ou
indireto nos vários campos do Direito. Sua matiz inviolável é o Direito
Comercial, seguindo o curso histórico desde a Feira de Flandres até o
que hoje se trata por Direito Global.
Mas há os reflexos diretos ou indiretos do ato empresarial (associ­
ação organizada entre capital, pessoas e bens) no Direito Civil, no Di­
reito Econômico, no Direito do Trabalho, no Direito Penal e, para o que
interessa a este artigo, no Direito Público, ou mais precisamente no
Direito Administrativo dos contratos públicos.
Colocado o contexto, até que ponto o Direito Administrativo se
contrapõe ao Direito Societário ou o restringe no desenvolvimento dos
negócios entre o privado e o público? O capital privado tem assegurado
seu preceito de liberdade frente às diretrizes legais impostas à (e pela)
Administração Pública?
A legislação brasileira confere um exemplo bastante pontual nesse
dilema: a regra restritiva contida no inciso VI, do artigo 78, da Lei 8. 666/
93, que regulamenta os contratos administrativos.
A questão é simples: todo ente privado que venha a ser contratado
da Administração Pública - seja qual for sua modalidade, tal como a
concessão de serviço público, a empreitada de obra pública, o forneci­
mento de bem ou matéria-prima etc. - não pode praticar qualquer um
dos amplos atos societários de cisão, fusão ou incorporação sem que
duas premissas estejam atendidas: (i) é inexorável que exista previsão
autorizante de quaisquer desses atos no Edital e no texto do contrato
GLAUCO MARTINS GUERRA & RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO - 1 79

firmado entre as partes; e (ii) o ente público contratante deve autorizar


a fusão, cisão ou incorporação previamente à conclusão jurídico-mate­
rial do ato.1
A premissa menor (formal) está cravada no princípio da legalidade
estrita. A premissa maior (material) decorre do mito imposto à Admi­
nistração Pública pelo controle da segurança jurídica do contrato admi­
nistrativo.
Não há caixa de Pandora para solucionar o dilema. Tampouco esse
é o objetivo do debate.
O que se pretende aqui é instigar o interesse autodeterminante da
relação entre liberdade privada e legalidade administrativa, a partir de
um fenômeno econômico (e de uma objetiva regra jurídica) que aparen­
ta viver numa refreada tensão: o capital privado, inclusive pelas pessoas
e bens que representa, uma vez aplicado nos contratos administrativos,
não goza da mobilidade que é da essência do Direito Societário.
Seria simplista travar a reflexão sob a invocação de uma possível
antinomia entre princípios constitucionais, defendendo a liberdade
material para o Direito Societário e a liberdade formal para o Direito
Administrativo.
Na cultura jurídica brasileira, acostumada a reduzir seus conflitos à
(in)constitucionalidade ou à (i)legalidade, se o pensamento deriva para a
análise teórica de seu objeto, a oportunidade de inovar é muito mais factível.
Eis os argumentos dessa despretensiosa tentativa de reflexão.

2. Ü CONTEXTO DO DILEMA
O Direito Societário é, antes de tudo, um direito para o capit;l
empreendedor. O antagonismo de forças que disputam o Direito So­
cietário respeita um preceito comum: a busca pelo lucro.

A infringência da regra implica a faculdade da Admin istração Pública rescindir unilateral­


mente o contrato e, mais grave, aplicar as penalidades previstas no artigo 87 da Lei 8.666/
93. Sem falar no risco maior do controle externo dos atos administrativos, que pode mesmo
resultar na imputação de ato de improbidade e das sanções político-administrativas e eco­
nõmicas previstas na Lei 8.429/92.
1 80 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

Já o Direito Administrativo é um direito para a regulação dos atos


de poder político-social, sendo aceitável dizer que o capital do Direito
Administrativo é o Estado. Nele, o antagonismo entre soberania e defe­
sa dos direitos do indivíduo não encontra cogência, mas apenas o frio
equilíbrio imposto por lei.
O grande passo dado pelas teorias européias de uma Ciência do
Direito sob a perspectiva humana ocorreu com o discernimento da fi­
gura do Estado como uma fonte de poder de dominação, mas sem que
representasse, por si só, uma entidade personificadora da imposição de
domínio de um grupo social sobre outro.
A noção de soberania deixou de ser, pela consciência jurídica mo­
derna do início do século XX, o fundamento jurídico do Direito Públi­
co para as demandas do Estado.
Com Maurice HAURIOU2 , o poder soberano do Estado foi com­
preendido não mais como a prática de um ato unificado da vontade de
um ente jurídico, urna pessoa, mas sim pelo reconhecimento de que seu
poder de dominação existia para proteger o status quo, isto é, a tríade
construtiva das primeiras manifestações de um Direito Público: guerra,
ordem interna e justiça. Esse poder, contudo, não é o elemento primaz
do Direito Público.
O poder de dominação é, em verdade, um elemento estrutural da
atuação do Estado. Não é um direito subjetivo, mas uma função, uma
ação organizada e programada com um fim específico. Na melhor dou­
trina de León DUGUIT, trata-se de uma função social que se traduz,
no fundo, pela prática de alguns serviços que o Estado se vê no dever de
exercer, a fim de legitimar a dominação que lhe permita assegurar a
ordem social desejada pela maioria.
Como diz DUGUIT: "La personalidad del Estado tiene un domi­
nio muy limitado, que se reduce al comercio jurídico. El poder de domi­
nación persiste siempre; pero no es un derecho subjetivo de que el Estado

2 HAURIOU, André. A utilização em Direito Administrativo das Regras e Princípios do Direi­


to Privado. RDA 001/465.
GLAUCO MARTINS GUERRA & RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO - 181

como persona jurídica sería titular: es ante todo una función social. Esta
función social es, en el fondo, el servicio público"3 •
Numa verdadeira manifestação de radicalismo teórico, HAURIOU
chega a entender que os serviços públicos são o único fundamento do
sistema moderno do Direito Público.
As condições de vitalidade do Direito Público moderno, na ex­
pressão de DUGUIT, exigem a limitação do exercício de atividades do
detentor do poder de dominação (soberano, governante ou administra­
dor público) e a ordenação de certas atividades que, para o Estado, são
imprescindíveis na legitimação de seu poder. Como a liberdade indivi­
dual limita a soberania do Estado e, vis a vis, o Estado impõe certos
limites ao indivíduo, o balanço dessa equação, para não a tornar arbitrá­
ria, está no reconhecimento de que existe uma medida (função) social
para todos os atos, sobremaneira aqueles gerados na interdependência
da sociedade civil (o indivíduo) para com o Estado (o coletivo).
Logo, o Estado não é apenas a manifestação do poder, mas o cum­
primento de certas obrigações, que podem ser por ele realizadas direta­
mente ou que, no desenrolar da burocracia estatal e da economia
contemporânea, percebeu-se que seriam pragmática e economicamente
melhor desenvolvidas pelo ente privado empreendedor.
"Ahora se advierte que e! objeto mismo de las obligaciones dei
Estado y e! sentido de su acción se encuentran determinados
por la situación económica dei país y las necesidades de sus
habitantes. En suma, la noción de servicio público parece que
puede formularse de este modo: es toda actividad cuyo
cumplimiento debe ser regulado, asegurado y fiscalizado por
los gobernantes, por ser indispensable a la realización y ai
desenvolvimien to de la in terdependencia social, y de tal
naturaleza que no puede ser asegurado completamente más
que por la intervención de la fuerza gobernante."4 DUGUIT

3 DUGU IT, León. Las Transformaciones dei Oerecho Público y Privado. Tradução de Adolfo
G. Posada e Ramón Jaén. Buenos Aires: Editorial Hel iasta S.R.L., 1 998, p. 30.
4 D U G U IT, León. Ob. cit., p. 36/37.
1 82 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

sentencia que o Direito Público moderno representa exata­


mente o conjunto de regras para assegurar o cumprimento re­
gular e ininterrupto dessa função social dos governantes.

"Así como el Derecho privado deja de estar fundado en el


derecho subjetivo del individuo, en la autonomía de la persona
misma y descansa hoy en la noción de una función social que
se impone a cada individuo, el Derecho público no se funda en
el derecho subjetivo del Estado, en la soberania, sino que des­
cansa en la noción de una función social de los gobernantes,
que tiene por objeto la organización y el funcionamiento de
los servicios públicos. "5

A empresa foi então descoberta pelo Estado como a ferramenta


heterodoxa de realização dessa função social sem a perda da soberania
política interna.
A chave para o resguardo da segurança jurídica da posição sobera­
na do Estado diante da empresa foi o princípio da legalidade.

3. Ü PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ADMINISTRATIVA E O


CONTRATO ADMINISTRATIVO
O princípio da legalidade no Direito Administrativo tem fonte certa
e determinada na doutrina francesa.
Nesse sentido, é grande a influência de Charles EISENMANN na
formação do pensamento administrativista ocidental, a exemplo dos
Direitos Europeus pós-Comunidade Européia, como o texto do portu­
guês S É RVULO CORREIA.6
EISENMANN7 vai além das teorias tradicionais de LAUBADERE,
HAURIOU, VEDEL e outros, quando ressalta a questão da relação bi­
polar entre atividade administrativa e lei, dissecando os princípios subsi-

5 DUGUIT, León. Ob. cit., p. 37/38.


6 S É RVULO CORREIA, josé Manuel. Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Ad­
ministrativos. Coimbra, 2003 (reimpressão da edição de 1 987), Editora Livraria Almedina.
7 EISENMANN, Charles. O Direito Administrativo e o Princípio da Legalidade. Revista de
Direito Administrativo, v. 56, 1 959, p. 47:70.
GLAUCO MARTINS GUERRA & RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO - 1 83

diários à legalidade que, de modo sistemático, permitem à compreensão


dos limites e liberdades da Administração Pública.
SÉ RVULO CORREIA traz EISENMANN a valores presentes,
quando pontua que:
a) o princípio da não-contrariedade (ou compatibilidade) pressu­
põe o objetivo respeito na prática do ato administrativo pela
prescrição normativa que o define como tal, quer no âmbito da
execução de emissão de uma segunda norma ou na execução
do conteúdo da norma motivadora da ação administrativa; e
b) o princípio da conformidade vai além da idéia de ausência de
conflito entre norma e ato administrativo, mas sim da simi­
litude ou reprodução do comando normativo, em seu con­
texto material e formal, pela ação do agente público. Trata-se
da idéia de modelo.
Conformidade e não-contrariedade necessariamente não coincidem,
mas tudo que é conforme está, passo a passo, compatível com a lei. Nesse
plano de idéias, SÉRVULO CORREIA analisa o instituto doprévio mode­
lo normativo, também conhecido como formador do "bloco de legalidade'',
que delineia os limites da vontade, inclusive na particularização de um ato
da administração perante o ordenamento jurídico.
Observando um "bloco legal", constata-se que a conformidade é
avaliada pela confrontação do ato administrativo com uma regra ou con­
junto de regras jurídicas que a ele se remetem. Essa ação de compreen­
são tem natureza positiva, pois identifica a vontade, o conteúdo e a forma
do ato na complexidade do conjunto normativo, e não apenas na rígida
aplicação textual da lei.
O Direito Societário, nessa fenda de flexibilidade da hermenêutica
administrativa, teria (ou terá, espera-se) solo muito fértil para sua aplicação.
Pois bem, identificada a existência da conformidade, é possível men­
surar seu grau: (i) será direta quando o ato reproduzir material ou fisica­
mente o comando da regra jurídica; (ii) será tênue e de interpretação
abstrata quando o ato extrair o "tipo ideal" da conduta normativa, o que
1 84 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

SÉ RVULO CORREIA denomina de "relação funcional de realização


concretizante". Uma é a conformidade material, outra é a conformidade
lógico-racional.
A ousadia permite dizer que o Direito Societário só existe como
conformidade material no Direito Administrativo, pois, do contrário, ele
seria apenas mais um elemento de estática dos atos administrativos. 8
A dinâmica do Direito Público contemporâneo certamente visualiza
na conformidade lógico-racional uma necessária válvula de escape para a
higidez do princípio da legalidade nos moldes clássicos.
Recorrendo novamente a EISENMANN, o publicista português
registra que a produção dos atos administrativos precisa respeitar não só a
materialidade ou substantividade da norma, mas também os aspectos pro­
cedimentais, envolvendo competência e forma, eis que violações adjetivas
podem, tanto quanto as substantivas, lesar a legalidade.

4. A TRlADE RELAÇÃO ENTRE OS PRINClPIOS


Citando Rui MACHETE, a discussão acerca do princípio da le­
galidade carece, para S É RVULO CORREIA, da clara distinção entre
legalidade formal e substancial.
Assim é que, identificada uma "tricotomia" entre compatibilidade,
legalidade formal e legalidade material, qualquer ato que padecer de
lacuna legal será considerado como não autorizado ou ilegal, nos mol­
des da conformidade estrita. No entanto, a existência de uma norma
que construa o pilar de sustentação do ato, sem, contudo, esmiuçá-lo, já
é suficiente para conferir a base legal mínima da ação administrativa, o
que se dá pela legalidade formal. Caminhando para a essência funda-

8 Sem qualquer ironia, como compreender que atos jurídico-econômicos tão complexos
como a cisão, fusão ou a incorporação societária podem estar sujeitos à simples rejeição da
Administração Públ ica, ainda que exista a motivação negativa do agente público prolator
da decisão restritiva? A pergunta é: se não fica inequivocamente demonstrada a clara ofen­
sa a um interesse público ou uma violação das premissas legais da contratação administra­
tiva (ampla concorrência, equil1brio-econômico1 eficiência e economicidade), como acei­
tar que o Direito Administrativo sirva de tranca à mobilidade do Direito Societário?
GLAUCO MARTINS GUERRA & RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO - 1 85

mental do ato, o princípio da legalidade material prevê que a lei adentre


ao conteúdo do ato, disciplinando o poder que lhe é atribuído. Escrita a
lei e praticado o ato como tal, atingiu-se o fim do princípio da compati­
bilidade e se fez, portanto, a "tricotomia" dos elementos da legalidade.
O núcleo central da fórmula retro descrita está no fato de que situa­
ções de incompatibilidade do ato com a norma provocam ilegalidade
seja por violação de forma ou conteúdo da lei.
De tudo isso, S É RVULO CORREIA remete-se a duas conclu­
sões tiradas por EISENMANN ainda antes da ordem constitucional
francesa de 1 958:
a) é patente a ausência de interesse na aplicação do princípio
da conformidade extensa ou de mérito (legalidade substan­
cial) para apurar a relação entre normas gerais e abstratas
com atos da Administração Pública, sendo taxativo quanto
à ineficácia desse equação para os atos regulamentares de
natureza executiva (se há regulamentação executiva com
normas diferentes da lei executada, não é "conforme" o que
não existe no segundo diploma);
b) no que toca aos atos concretos da Administração, a conformi­
dade de conteúdo (legalidade substancial) é princípio que com­
porta exceções, eis que, como normas jurídicas que se refiram a
fatos concretos, não têm elas apenas a natureza legislativa, mas
podem ser, em muitos casos, de ordem regulamentar.
O autor português, em nota de rodapé, faz uma importante ressalva:
parece-lhe inaceitável a tese que a questão da legalidade dos regula­
mentos está adstrita ao princípio da compatibilidade com normas de
valor hierárquico superior, bem como ao princípio da legalidade formal.
S É RVULO CORREIA acredita ser possível o confronto interpretativo
e de conformidade entre uma norma geral e abstrata com os pressupos­
tos e conteúdo de um ato administrativo concreto, observando que a
característica de uma norma regulamentar de execução é a "direta rela­
ção de derivação lógica" da norma legislativa ordinária, muito mais com­
plexo (e eficaz) que a mera repetição do preceito da lei formal.
1 86 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

Recorde-se que a doutrina clássica francesa, ainda anteriormente a


1958, mostrava-se taxativa que o regulamento não poderia jamais con­
trariar a lei executada. Com a evolução do pensamento jurídico publi­
cista e a busca de uma maior dinâmica no exercício das atividades
administrativas de execução, "o critério se deslocou para a distinção en­
tre inovações relevando pelo seu objecto do domínio regulamentar e
inovações relevando o domínio legislativo" (S É RVULO CO RREIA,
nota de rodapé 101, p. 61).
Vale dizer, os atos administrativos, fundamentalmente aqueles de
natureza apenas executiva, passaram a contar com a vontade adminis­
trativa, devidamente motivada, para lhes dar fundamento jurídico. Pre­
servou-se o "bloco de legalidade" (o conjunto de normas legislativas)
como o grande repertório de normas abstratas e genéricas, fundamen­
tais à ordem jurídica, mas se permitiu que os atos concretos da adminis­
tração fossem realizados, desde que seu conteúdo estivesse conforme ou
derivado logicamente da conduta normativa válida e que lhe fosse cor­
respondente.
Esse foi o salto evolutivo que EISENMANN propiciou à doutrina
administrativa, especialmente quando reconheceu que o princípio da
conformidade é geral no que toca ao modo de produção (legalidade
formal) dos atos administrativos.

5. ÜBSERVAÇÕES SOBRE O PRINC1PIO DA COMPATI BILIDADE


Ainda que o ordenamento jurídico estabeleça como sua espinha
dorsal o estrito princípio da compatibilidade (ou não-contrariedade)
entre ato administrativo e norma jurídica, não há como se negar um
razoável conjunto de hipóteses de exceção. A situação mais conheci­
da, que EISENMANN destaca em seus escritos a aplicação do Direi­
to pela Jurisprudência, quando esta declara como facultada ou regular
uma conduta que seja contrária à lei ordinária ou legislativa, circunstân­
cia essa bastante recorrente nas questões de formalidade do ato admi­
nistrativo. Duas outras hipóteses também são contempladas: a chamada
"teoria dos poderes de crise" (que cria regras de exceção ao ordenamen-
GLAUCO MARTINS GUERRA & RODRIGO R . MONTEIRO DE CASTRO - 1 87

to vigente) e a jurisprudência restritiva aos direitos particulares para


manutenção da ordem pública, quando há necessidade de uma ação
administrativa que executa decisão judicial.
Outra importante nota de SÉ RVULO CO RREIA diz respeito,
no que toca às exceções retro comentadas, à possibilidade da jurispru­
dência legitimar categorias de atos administrativos que não contam com
"habilitação legal", os quais, por força de decisão judicial, passam a ter
"habilitação jurisdicional".
No Direito contemporâneo, sobremaneira no Direito francês, per­
cebe-se que o princípio da compatibilidade muito se aproxima da idéia
de precedência da lei, ao mesmo tempo em que a conformidade está
plenamente associada ao conceito de reserva de lei.
Essa equaçãq, na atualidade, procura obedecer à lógica do equilí­
brio dos poderes políticos, em que a ordem constitucional tende a forti­
ficar o Executivo em sua capacidade legislativa, sem retirar do Legislativo
a missão clássica da "materialização" da reserva de lei.
Por comparação, o Direito Português conta com o princípio da
ampla reserva de lei para regular os atos administrativos. Todavia, como
anota S É RVULO CORREIA, há um flanco de tolerância, ou melhor,
um grau de relativização desse postulado, que é medido pela "intensida­
de da correspondência entre o acto administrativo e a norma em que se
firma." Isto é, o sistema jurídico lusitano permite que se extraia um mí­
nimo arrazoado do comando normativo que mais se aproxime do ato
administrativo intentado para que ocorra sua legitimação legal.
A fórmula do "mínimo incomprimível da tessitura da norma", para
que seja transportada à vontade administrativa e se materialize, necessari­
amente prescinde de prévia análise das garantias gerais e abstratas do
ordenamento (inclusive no que toca aos direitos políticos fundamen­
tais), bem como da particular representação ou legitimidade do agen­
te público que irá executar o ato avalizado. Mesmo assim, anota
S É RVULO CORREIA que, dada a intensidade da garantia individu­
al envolvida e/ou a destinação política impressa ao órgão público a que
se vincula o agente do ato a ser praticado, a heterogeneidade da matéria
1 88 - REORGANIZAÇÃO 50CIETÀRIA

a ser disciplinada pode exigir que a norma jurídica seja respeitada inte­
gralmente em sua estrutura, como único meio de afastar eventuais efei­
tos negativos da ação administrativa regulamentar.
Existe, nesse contexto, uma clara distinção entre reserva absoluta e
reserva relativa de lei, em especial para os sistemas jurídicos que traba­
lham a produção legislativa parlamentar como única fonte da pirâmide
kelseniana de hierarquia das normas jurídicas. São elas:
a) quando a lei formal estabelece a priori a materialidade da
disciplina da norma jurídica, está-se diante da reserva abso­
luta;
b) se a lei formal delega a outros tipos de ato (inclusive admi­
nistrativos) a fixação de objetivos substanciais da vida social
a serem regrados pelo regime jurídico, está-se diante da re­
serva relativa de lei.
Transpassando os paradigmas da reserva absoluta e reserva relativa
para o princípio da legalidade, constata-se que:
a) quando se fala em legalidade substancial (ou conformidade
plena), está-se diante da reserva absoluta de lei;
b) quando se fala em legalidade formal, ainda que compreendi­
da como reserva relativa de lei, ela nada mais é do que uma
espécie contida dentro da legalidade substancial (a pirâmi­
de normativa de Kelsen permite a inequívoca compreensão
dessa dicotomia).
Para os atos administrativos, é sempre necessário um tipo míni­
mo de conteúdo ou substância de sua conduta, o que pode ser melhor
sistematizado através de lei ordinária (norma legislativa). Entretanto,
essa materialização, quando vista sob o prisma da conformidade, de­
flete da própria vontade administrativa, lembrando que o administra­
dor público age sempre na consciência e pela proteção do "bloco de
legalidade" que regulamenta a Administração Pública de modo abs­
trato e genérico, configurando-se, em derradeira instância, no funda­
mento material ou substantivo dos atos administrativos.
GLAUCO MARTINS GUERRA & RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO - 1 89

6. ÜBSERVAÇÔES SOBRE O PRI NC1PIO DA CONFORMIDADE


ENTRE LEI E DIREITO
Um dogma que perpassa as mais diversas escolas de Direito Públi­
co é: como a Administração deve se amoldar ao Direito? Qyais os mei­
os e ferramentais?
SALAVERRIA9 de plano esclarece a etimologia da expressão "con­
formidade" para acertar o núcleo de interpretação do binômio Admi­
nistração/Direito, ou seja, a existência de uma relação entre atos e um
conjunto de normas que os disciplinam.
Essa relação vem escalonada pelo autor em três níveis crescentes:
a) fraca, quando representa a mera compatibilidade do ato ad­
ministrativo com a lei;
b) média, quando identifica uma expressa autorização legal para
prática do ato; e
c) forte, na hipótese clara e inequívoca de existência de uma
pré-determinação legal para a prática do ato.
Para que conformidade signifique compatibilidade, deve haver o pres­
suposto da ausência de contradições (ou vazios normativos) entre o ato e
a lei, vale dizer, não há qualquer impedimento que um ato seja compatí­
vel (ou conforme) à lei e ao Direito ainda que não previsto nem autoriza­
do por ambos. Só são inválidos (ou passíveis de nulidade) os atos que
contrastam (contradigam) a lei e o Direito. Essa é a chamada permissão
de liberdade afeita ao cidadão (o ente particular), que os Poderes Públicos
assimilam do exercício de sua função, ou ainda, trata-se do "limite negati­
vo" para as ações administrativas.
Se o princípio da legalidade, no contexto acima, afeta negativamente
a ação administrativa, assim o faz para qualquer regulamento do Poder
Executivo, desde que e quando incompatível com a lei e o Direito. Essa

9 SALAV E R R I A, J u a n lgartua. Principio de legalidad, conceptos indeterminados y


discrecionalidad administrativa. ln Revista espaiíola de Derecho Administrativo, Madrid
Editora Civitas, 1 996, volume 92, outubro/dezembro de 1 996, p. 21 /23.
1 90 - REORGANIZAÇÃO 50CIETÀRIA

equação, contudo, não é eficaz para os regulamentos autônomos ou inde­


pendentes, pois estes não têm previsão legal ou anteparo prévio no Direi­
to, eis que desenvolvidos espontaneamente pelo Poder Executivo. Daí a
grande celeuma que se cria, quando o assunto é autonomia regulamentar
diante do s�stema de tripartição das funções políticas do Estado.
Na segunda escala de SALAVERRIA, encontra-se a hipótese de con­
formidade por expressa autorização legal ou normativa (Lei e Direito). Essa
versão tem caráter de "limite positivo", porque todo ato autorizado pela Lei
e o Direito deve também guardar-lhes a devida compatibilidade. Eis o bor­
dão: é inválido ou ineficaz qualquer ato administrativo que não esteja ex­
pressamente autorizado por lei e pelo Direito. Tudo que não está autorizado
por lei e pelo Direito, está proibido para a Administração.
Retomando então ao princípio da legalidade, necessário concluir que
todo regulamento autônomo, diante da conformidade por expressa autoriza­
ção, seria ilegítimo, vez que não se admite o exercício do poder regulamen­
tar (potestad reglamentaria) ao Executivo com a discricionariedade que a
mera conformidade autorizaria. Na falta de uma norma específica e pon­
tual autorização legal, ineficaz qualquer ato regulamentar independente.
Nesse entendimento, o princípio da legalidade tem caráter positivo
por circunscreve e disciplina os limites de exercício do poder regulamen­
tar. Ele ordena o exercício da atividade regulamentar. Como observa SA­
LAVERRIA, somente quando o poder político e público está disciplinado
e que surgem questões acerca da validez de seus atos, cujo controle nos
sistemas jurídicos atuais vem sendo exercício pelo poder jurisdicional.
Por fim, o autor trata da conformidade dos atos da Administração a
partir do paradigma da pré-determinação pela lei e pelo Direito.
A regulamentação contratual, como já visto, é a mais expressiva
forma de assegurar que a cláusula social venha cotejada na causa-função
dos agentes econômicos. O contrato conforme a lei, cotejado com a lei
conforme os princípios gerais de direito - dentre eles os princípios de
salvaguarda da dignidade humana - será sempre um contrato predesti­
nado à segurança jurídica. As externalidades que sempre corrompem a
"pureza" de uma relação contratual precisam e devem ser controladas
GLAUCO MARTINS GUERRA & RODRIGO R. MONTEIRO DE (ASTRO - 191

(reguladas), de maneira que o conteúdo material dos direitos envolvidos


aja positivamente em favor das partes e dos terceiros indiretamente re­
lacionados àquele ato jurídico.
Em sentido convergente encontra-se o contrato administrativo, cuja
regulamentação é dada pelo princípio da legalidade (a vertente normativa
da constitucionalização do direito civiPº nas mãos do agente público).
Todo ato pré-determinado em sua forma e conteúdo por normas
legais está com isso autorizado a ser praticado. A conformidade/autori­
zação expressa vem incorporada, portanto, à idéia de pré-determinação.
E traz em si outro conceito, que é o da conformidade material, que
significa a dedutibilidade do conteúdo do ato administrativo a partir do
texto normativo que o prevê.
Abstraindo-se qualquer juízo de valor político-ideológico, parece ló­
gico que a pré-determinação conceba mais segurança jurídica no controle
dos atos administrativos, embora, como anota SALAVERRIA, ela está
sujeita a "modelos argumentativos diferentes". Muitos são os "silogismos
jurisdicionais" saídos dessa equação, quando a norma prescreve um fato
que deduza uma conseqüência certa e determinada. A descrição de um
fato concreto (premissa menor) está de igual modo pré-autorizada pela
norma que descreve a relação meio-fim (premissa maior). Entretanto, é
da premissa maior que nasce o poder do agente público, titular do direito
conferido pela norma jurídica para a prática do ato administrativo pré­
determinado, de opções na tomada de sua ação, assim definindo a conhe­
cida discricionariedade administrativa.

1O Diz NEGREIROS, Teresa, in Teoria dos Contratos - Novos Paradigmas. Rio de Janeiro: Re­
novar, 2002, p. 493: "a tutela da dignidade da pessoa - tarefa agora confiada também ao
direito civil - torna o direito contratual sensível à questão social, dotando-o de um caráter
tutelar i nteiramente estranho ao modo como o contrato era concebido pelo di reito clássi­
co.". Vale dizer, a conformidade do contrato com a lei não é mais formal e abstrata, mas
sim difusa em função das externai idades (positivas e negativas) que o modelo ortodoxo da
contratualização civil jamais reconheceu. Com o que vi ngaram os inovadores preceitos da
boa-fé objetiva, do equil1brio econômico-intelectivo das forças contratuais e, notadamente,
da função social da relação ju rídica programada e economicamente viável. No mesmo
contexto, recomenda-se a consulta de BODIN DE MORAES, Maria Celina, Constituição e
Direito Civil: Tendências. Rio de Janeiro: Revista Online da PUC-Rio de Janeiro, www.puc­
rio.br, 26.06.03, p. 1 a 1 7.
1 92 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

Conformidade (fraco) Autorização (médio) pré-determinação (forte)

Lei e Direito compatibil idade pressuposto legal definem forma e conteúdo do ato
Liberdade limite negativo limite positivo formal

Ato jurídico é permitido tudo é permitido só o que se o ato administrativo


que a Lei e o Direito a Lei e o Di reito defi- obedecer à forma e ao
não proíbem nem como norma conteúdo definidos na
Lei e pelo Direito, está
autorizado

princípio da expansivo restritivo dedução mediante


referenciais argumentativos
legalidade
(observação da finalidade do
ato)

O contrato administrativo situa-se exatamente no contexto do ato


jurídico.
Os atos societários só existem no campo da liberdade. Como com­
patibilizá-los através desse quadro interpretativo retro apresentado? A
proposta é considerar que toda cisão, fusão ou incorporação ocorrida no
contexto de uma empresa contratada da Administração Pública, ainda
que não exista previsão editalícia e contratual deve ser vista como uma
"pré-determinação forte", isto é, deduz-se de seus referenciais argumen­
tativos a finalidade do ato praticado.
Se positiva a resposta, o princípio da legalidade está assegurado. Se
negativa, a precaução do administrador público deve ordenar uma in­
quirição factual (técnica, econômico-financeira, mercadológica e jurídi­
co-societária), a fim de concluir pela aplicação do caráter restritivo (a
rejeição do ato) ou expansivo (sua aprovação) do princípio da legalidade
ao caso concreto.

7. ÜBSERVAÇÕES SOBRE O PRINC1PIO DA PRECAUÇÃO


O tempo do Direito não é necessariamente o tempo da vida real,
sobremaneira quando se subsume que o homem vive da economia e, cres­
centemente, da tecnologia que impulsiona os meios de produção. Por isso
que o cientificismo jurídico, mais do que a perseguição de elementos fim-
GLAUCO MARTINS GUERRA & RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO - 1 93

<lamentais da teoria, acaba por se focar em preceitos ou referenciais inter­


pretativos dos fenômenos prático-jurisprudenciais que se revelam úteis à
sistematização da vida em sociedade.
Um dos elementos extrínsecos a essa faceta do Direito é o contrato.
Ele, o contrato, não foge à tecnologia, à economia, à ordem lógico-social
e, subsidiariamente, à ordem jurídica.
<2.liando SÉRVULO CORREIA trata da "tessitura da norma" para
demonstrar o entrechoque dos interesses individuais com os atos de vonta­
de da Administração Pública, está nada mais propondo que esse é o destino
do Direito Administrativo. Acompanhar o tempo real sem perda da função
tátil (sensível) da norma, pois é da reserva de lei (absoluta ou relativa) que os
atos manifestos de administrar deverão ocorrer. Em outras palavras, impor­
tadas de COLAÇO ANTUNES, "a vocação do direito administrativo
moderno consiste em assegurar a realização dos interesses públicos sem
ceder um passo na defesa das posições jurídicas dos particulares".11
A semente desse novo plano do Direito está germinando numa
dupla característica:
a) é evidente que o equilíbrio entre os poderes da Administração
e a corporificação auto-regulatória dos interesses privados (ou
público-privados, a exemplo dos entes do terceiro setor) per­
passa por um novo modelo de garantias normativas;
b) diante do binômio prevenção-precaução12 que os princípios ge­
rais da interpretação jurídica vêm sistematicamente incorporan­
do, não há como negar se está racionalizando os critérios jurídicos

11 COLAÇO ANTUNES, L u ís Fil ipe. Para um Direito Administrativo de Garantia do Cidadão e


da Administração. 3a. edição. Coimbra: Editora Almedina, 2000, p. 94. Confira-se ainda
que "uma concepção 'pluralista' do di reito administrativo e das suas técnicas j urídicas, não
pode ser util izada para subverter a sua dimensão essencial, como di reito de privilégios e
garantias, como Direito do Poder''.
· 12 Excelente o conceito de COLAÇO ANTUNES acerca da precaução, aplicada ao Direito
Ambiental (p. 1 49): "O sentido mínimo, mas essencial, do princípio da precaução, será o de,
na ausência de certeza, tendo presente os conhecimentos científicos e técnicos num dado
momento, ou quando não seja evidente a relação causal entre uma situação potencialmente
perigosa e os sacrifícios daí resultantes, não impedir a adopção de medidas cautelares
efetivas e proporcionais, com vista a prevenir o risco de danos graves ou irreversíveis nos
bens ambientais."
1 94 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

de normativização dos atos, obrigações e vontades dos interesses


envolvidos (sejam eles públicos ou privados).
A inexorabilidade da precaução é diretamente proporcional à in­
certeza técnica - e, portanto, à insegurança jurídica - de ocorrência de
um fato ou de suas conseqüências, ou ainda dos efeitos de uma manifes­
tação de vontade expressivamente inovadora.
Ao se pretender o estudo de referenciais não-ortodoxos do ordena­
mento jurídico moderno, faz-se conta de que o juízo normativo de cien­
tificidade13 é uma das poucas ferramentas com que o Direito pode contar,
em face à sua natureza pouco conclusiva como ciência exata. Daí o por­
quê de se trabalhar com conceitos que permitam analisar o risco, o peri­
go e a incerteza dos atos jurídicos, se focado um objetivo material
determinável no ordenamento legal ou jurisprudencial.
É do entendimento desse embate epistemológico que a incerteza
da evolução científico-tecnológica tem idêntico paralelo às incertezas
sociais. Daí o porquê de se concluir que, havendo remédio jurídico
suficiente para aplicar o Direito em favor de uma solução mais pruden­
te e eficiente nas questões de alta complexidade tecnológica (a exemplo
do direito concorrencial, ambiental, digital etc.), também o há para um
juízo normativo de cientificidade administrativa, mais precisamente
aplicando os referenciais das Ciências Sociais na busca de uma socia­
lização das intervenções estatais que visem a execução de um interesse
público, mesmo quando cotej ado com a segurança dos interesses de
terceiros.

8. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DO FENÔMENO


SOCIETÁRIO
A tecnologia, que desconhece barreiras, que ignora raça, sexo e cor,
que desrespeita o fanatismo religioso e os regimes ditatoriais, influen­
ciou, também, as sociedades empresárias. Ou melhor, antes de influen-

13 Feliz expressão referida por M. TALLACCH I N I e observada por COLAÇO ANTUNES (ob.
cit., p. 1 04).
GLAUCO MARTINS GUERRA & RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO - 1 95

ciá-las, transformou as economias, padronizando-as. Daí a influência


verificada nas sociedades, que se apresenta de forma mais acentuada
naquelas que atuam globalmente, ou mesmo regionalmente, mas em
mercados expressivos.
Tanto assim é que, respeitadas algumas características locais, ofe­
rece-se, em praticamente qualquer grande cidade do globo, produtos e
serviços semelhantes, fortemente influenciados por um certo padrão
ocidental, imposto por uma certa grande potência.
O desmembramento da empresa é outro reflexo da tecnologia. De
modo que o produto final (ou mesmo certos serviços) depende, muitas
vezes, de peças e equipamentos produzidos em diferentes plantas, espa­
lhados por diferentes regiões, de um ou mais Estados, que se encontram
em algum momento da cadeia produtiva, com apoio de poderosos siste­
mas tecnológicos.14
E essa mesma tecnologia impulsionou o fenômeno societário, que
deixou de ter importância local, para assumir papel de destaque no ce­
nário mundial.
No Brasil, desde o início da abertura econômica, na década de 90,
empreendedores e investidores desembarcam com o intuito de ampliar
seus negócios. Seja porque desconhecem as sutilizas do mercado, seja
porque a aquisição de sociedade já estabelecida (com marca consolida­
da, por exemplo) diminui o lapso entre o desembarque e a efetivação da
empresa, aceitam pagar um prêmio pelo controle, ou pela totalidade de
sociedades existentes.
Antes, porém, efetuam rigorosa auditoria, a fim de detectar os ele­
mentos ativos e passivos que a compõem (a sociedade empresária) e de
testar o fluxo de caixa que ela supostamente apresentará nos anos seguintes.
Esse fluxo, em muitos casos, decorre, parcial ou totalmente, de con­
tratos administrativos.

14 É bem verdade que um dos principais fatores desse desmembramento é a redução d e cus­
tos, sobretudo fiscal e trabalhista. Mas a sua concretização é possível sobremaneira pela
facil idade de comunicação e deslocamento, resultantes do avanço tecnológico.
1 96 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

De modo que, se a continuidade dessas relações jurídicas (e desse


fluxo) ficar comprometida em decorrência da transferência de partici­
pação acionária ou do controle, ou da realização de atos societários, como
a incorporação, a fusão e a cisão, estar-se-á interrompendo o processo
tecnológico, de troca de conhecimentos.
Assim, uma norma restritiva nesse mecanismo, mesmo que perfei­
ta em sua forma, além de não atingir o seu fim - o da garantia de cum­
primento do contrato adminis trativo -, aguça ainda mais outros
problemas, provavelmente maiores, notadamente a competitividade e o
desenvolvimento econômico.
Há que se encontrar, portanto, uma maneira de oferecer à Admi­
nistração Pública garantias no mínimo iguais àquelas que se lhe apre­
sentaram quando da assinatura do contrato administrativo, mas que, em
contrapartida, não inibam o desenvolvimento tecnológico, econômico e
social inerentes à inexorável intersecção contemporânea entre Estado e
iniciativa privada.

9. ÜS ATOS SOCIETÁRIOS
Os aspectos legais e econômicos de três atos societários - a incor­
poração, a fusão e a cisão - são o foco da análise, adotando-se como
referência a Lei 6.404/76, que regula as sociedades anônimas.15
Costuma-se repetir, sempre que tratado o assunto, a feliz manifesta­
ção de dois autores, que afirmaram: "De um ponto de vista exclusivamen­
te jurídico, a incorporação, a fusão e a cisão são consideradas técnicas de
reorganização societária. Através delas, combinam-se sob novas regras os
interesses dos diversos grupos que podem existir em uma sociedade ou
mais sociedades, ora concentrando-se em uma só pessoa jurídica, ora agre­
gando-se para formar uma nova pessoa jurídica, ora dividindo-se em mais
de uma pessoa jurídica. Já sob um prisma econômico, a incorporação e a
fusão traduzem fenômeno observado a partir da Revolução Industrial que

15 Ignora-se, propositalmente, o Código Civil, que regu la as sociedades empresárias, notadamente


a limitada, por nada acrescentar ou alterar no debate, segundo a ótica articulada.
GLAUCO MARTINS GUERRA & RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO - 1 97

se convencionou chamar de concentração empresarial, enquanto a cisão


implica exatamente numa tendência inversa, no sentido de desconcentra­
ção, embora possa também servir a propósitos concentracionistas".16
Importa lembrar, no entanto, a lição de RAÚL VENTURA: "Para
quem entenda que nem sempre à sociedade sub-jaz uma empresa (ca­
sos, por exemplo, de sociedades profissionais e de sociedades holding
hoje chamadas entre nós 'Sociedades gestoras de participações sociais'),
a fusão17 excede obviamente a concentração de empresas."18 De fato,
tem razão o doutrinador português.
Sobretudo a partir de 1994, com o advento da Lei 8.884, os atos
societários tornaram-se ainda mais relevantes, jurídica e economicamen­
te. Isso porque, além da necessidade de se observar certas condições ali
previstas, dependem da aprovação do Conselho Administrativo de Defe­
sa Econômica - CADE. Porém, a lei não visa obstaculizar a realização de
atos tais quais a incorporação, a fusão e a cisão, simplesmente porque são
atos societários; mas sim quando as conseqüências se revelarem nefastas à
ordem econômica e à livre concorrência.
É esse, com efeito, o sentido do art. 1°, assim redigido:
''Art. 1° Esta Lei dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações
-

contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de


liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade,
defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico."

E é no artigo 54 que se encontra a forma de controle de atos que,


de alguma maneira, possam limitar ou prejudicar a livre concorrência:
''Art. 54. Os atos, sob qualquer forma manifestados, que possam
-

limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resul-


tar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços, deverão
ser submetidos à apreciação do CADE."

16 TEIXEIRA, Egberto Lacerda e G U E R REIRO, josé Alexandre Tavares. Das sociedades anóni­
mas no direito brasileiro. São Paulo: José Bushatsky, 1 979, p. 651/652.
17 Fusão, em Portugal, é conceito mais abrangente do que no Brasi l. Lá, é gênero, do qual a
fusão e a incorporação, como conhecidas no Brasil, são espécies.
1B VENTU RA, Raúl. Fusão, Cisão, Transformação de Sociedades. Comentários ao Código das
Sociedades Comerciais. Coimbra: Livraria Almedina, 1 990, p. 1 8.
1 98 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

O parágrafo 3° deste artigo, de seu turno, trata especificamente de


atos societários, da seguinte forma:
"§3° Incluem-se nos atos de que trata o 'caput' aqueles que visem a
-

qualquer forma de concentração econômica, seja através de fusão ou


incorporação de empresas, constituição de sociedade para exercer o
controle de empresas ou qualquer forma de agrupamento societário,
que implique participação de empresa ou grupo de empresas resul­
tante em vinte por cento de um mercado relevante, ou em que qual­
quer dos participantes tenha registrado faturamento bruto anual no
último balanço equivalente a R$ 400.000.000,00"

De se destacar a fixação de parâmetros objetivos que, quando verifi­


cados, sujeitarão os agentes à submissão do ato societário à autarquia.
Presume-se, com a extrapolação destes parâmetros, um maior grau de
nocividade de seus efeitos, tanto do ponto de vista econômico como
social. Todavia, a autarquia poderá autorizar a operação societária, não
ficando ela adstrita aos limitadores, sobretudo quando detectar ganhos
potenciais à coletividade (as externalidades positivas).
A incorporação é a operação pela qual uma ou mais sociedades são
absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações.
Ela difere da fusão porque, nesta, duas ou mais sociedades se unem para
formar uma outra sociedade, que lhes sucederá em todos os direitos e
obrigações. E por fim a cisão, que se caracteriza pela transferência de
parcelas do patrimônio para uma ou umas sociedades, existentes ou cons­
tituídas para receberem a parcela do patrimônio que lhes for atribuída.
Qyando se tratar de operação de incorporação, de uma sociedade
operacional por outra igualmente operacional, atuantes no mesmo seg­
mento, é inegável o caráter concentracionista do ato. Essa conclusão
aplica-se também à fusão.
Qyanto à cisão, dependerá do destino do patrimônio extraído da
sociedade cindida. Se vertido à nova sociedade, controlada pelos mes­
mos acionistas, nenhum efeito terá. Se à sociedade nova ou existente,
controlada por outras pessoas, físicas ou jurídicas, entrantes naquele
mercado, o efeito será de desconcentração. Finalmente, neste mesmo
exemplo, se a sociedade que recepcionar parcela do patrimônio já parti-
GLAUCO MARTINS GUERRA & RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO - 1 99

cipar do mercado, ou se os controladores o fizerem por outras socieda­


des, parece evidente a existência de concentração.

1 0. Ü PATRIMÔNIO DA SOCIEDADE SUBMETIDA A ATO


SOCIETÁRIO
Afirma LE CANNU: "Lafusion19 peut se révéler dangereuse pour les
créanciers, qui se voient contraints de changer de débiteur: !e nouveau peut
être moins solvable que l'ancien. (. . . ) ''2°
Irresistível a afirmação, principalmente quando complementada
pelas palavras de outros professores, R. e J. SAVATIER e LELOUP:
"Le patrimoine, c'estprécisément l'ensemble des biens - mais avec
leurs charges et obligations - qui reposent sur la tête d'unepersonne,
que cettepersonne soit, d'ail!eurs, une personne physique ou mora/e
(. . .)
Tout cela se tient. Car les éléments actifs que sont les biens, et les
éléments passifs que sont les obligations et les charges, sont reliés,
dans cepatrimoine, par un lien étroit, dont le centre est lapersonne,
à lafois titulaire de l'actifet du passif El!e doitpayer ses dettes, et
faireface à ses charges. Or, avec quoi yfaireface, sinon avec son
acti.f."21
Em outras palavras, a garantia de credores é o patrimônio líquido
da sociedade contra a qual detêm créditos, de qualquer natureza.
E como fica o patrimônio líquido de sociedade submetida a ato
societário?
Importa destacar, inicialmente, que pouca relevância tem o capital
social e os ativos ou passivos, analisados esses últimos isoladamente. O
que caracteriza o aumento, na incorporadora ou na sociedade resultante
da fusão, é a contribuição da sociedade incorporada, ou das fusionadas,

19 O tratamento, em França, da fusão, é similar ao de Portugal, como retro exposto.


20 L E CANNU, Paul. Droit des sociétés. 2e. édition, Montchrestien, PARIS, 2003, p.952
21 SAVATIER, René; SAVATIER, Jean; e LELOUP M.J.M. Droit des Affaires. 2 ' édition, Si rey,
PARIS, 1 967, p. 52.
200 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

para o patrimônio final. Portanto, o chamado "PL" (patrimônio líquido)


vertido para a sociedade que sobreviver ou resultante do ato societário.
Se da conclusão da operação resultar aumento do patrimônio líqui­
do, os credores, via de conseqüência, passam a ter maiores possibilidades
de satisfação de seus créditos. Logo, não há porque falar em prejuízo po­
tencial e muito menos em motivo para contestá-la (a operação).
Isso também se aplica à cisão: se o patrimônio líquido resultante da
operação for maior do que o anterior - o que se mostra perfeitamente
possível na conjectura de se transferir mais elementos passivos do que
ativos - os credores da cindida, em princípio, também não terão moti­
vos para se insurgirem contra ela.

1 1 . 0 ART. 78 DA LEI 8.666/93


O art. 78 da Lei 8.666/93 está inserido em seção que trata da ine­
xecução e da rescisão dos contratos administrativos. O inciso V dispõe
que, além de outras situações pouco relevantes para os fins deste estudo,
a fusão, a cisão ou a incorporação não admitidas no edital e no contrato
constituem motivo para a rescisão do contrato. Ou seja: pouco importa
o resultado econômico do ato societário; privilegia-se a forma do ato
jurídico.
Essa seria a conclusão, se acaso pudesse ser ignorado outro inciso
que compõe o dispositivo, oXI.22
Antes de enfrentá-lo, faz-se imprescindível o resgate de algumas
lições, estampadas na Teoria Pura do Direito, de KELSEN.
Ao tratar do conflito de norma, o autor dedica uma parte de seu
estudo à possibilidade de existência de conflito numa mesma lei, de modo
que ao intérprete torna-se impossível resolver a contradição pela supre­
macia da norma de escalão superior sobre a de escalão inferior, ou pelo

22 "Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato:

XI - a alteração social ou a modificação da finalidade ou da estrutura da empresa, que


prejudique a execução do contrato;" (Destacamos)
GLAUCO MARTINS GUERRA & RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO - 201

princípio !exposterior derogatpriori. Daí as alternativas por ele vislumbra­


das: "(. . . ) Ou se entendem as duas disposições no sentido de que é deixada
.
ao órgão competente para a aplicação da lei, a um tribunal, por exemplo, a
escolha entre as duas normas; ou quando - como no segundo exemplo -
as duas normas só parcialmente se contradizem, que uma norma limita a
validade da outra. (... )"23
Todavia, quando essas interpretações se mostrarem impossíveis,
afirma KELSEN que o legislador prescreve algo sem sentido, que "( ... )
não é sequer um acto cujo sentido subjectivo possa ser interpretado como
seu sentido objectivo. Logo, não existe qualquer norma jurídica objecti­
vamente válida. (. . .) "24
Como já se disse anteriormente, toda cisão, fusão ou incorporação
ocorrida no contexto de uma sociedade contratada da Administração
Pública, ainda que não exista previsão editalícia e contratual, bem como
prévia concordância do ente público, deve ser vista como uma "pré-de­
terminação forte", isto é, seus referenciais argumentativos devem resul­
tar na dedutível finalidade do ato.
Sob o risco da crítica, é esse o significado do inciso XI do art. 78 da
Lei 8.666/93, o qual - frise-se - deve ser lido como um limitador da
validade do inciso que lhe precede, o VI (objeto do debate), nos moldes
dos ensinamentos de KELSEN.
A materialização da axiologia da norma é o que dá sentido ao Direito.
Para o objeto deste debate, o Direito Societário, no confronto epis­
temológico com o Direito Administrativo, não poderia ser mais rico na
busca de soluções de conformidade expansiva entre a norma (adminis­
trativa), o ato (societário) e sua finalidade (legalidade, interesse público
e interesse empresarial) .
Em outras palavras, visa a lei combater o ato societário de incorpo­
ração, fusão ou cisão que prejudique a execução do contrato, e não o ato

23 KELSEN, Hans. Teoria Pura do D i reito - 6' ed. Coimbra: Arménio Amado, 1 984, p. 287.
24 Ibidem.
202 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

formal em si, pouco importando, conseqüentemente, a previsão contra­


tual ou editalícia.
Sob o outro prisma, esses atos, mesmo que expressamente autori­
zados, dependem também do cotejo com o inciso XI . De modo que não
serão motivadores de rescisão do contrato administrativo apenas aque­
les que não prejudicarem a execução do contrato. Inclusive porque, ad­
mitir que ao órgão competente cabe aplicar ora o que dispõe um inciso,
privilegiando a forma, ora o outro, preocupando-se (corretamente) com
os efeitos do ato, estar-se-ia atentando contra o princípio constitucional
da isonomia, destacado no art. 3° da Lei 8.666.
Por fim, não encontrariam argumentos substanciais os defensores da
tese de que, no caso, inexistiria norma jurídica objetivamente válida. Como
se demonstrou, esta solução decorre da negativa das duas outras normas.

1 2 . A APLICAÇÃO DO INCISO XI DO ART. 78 DA LEI


8.666/93
Visto que o inciso XI age como limitador do inciso VI, resta a avali­
ação de seu alcance, em função da concretização de um ato societário.
Concluiu-se que a rescisão do contrato administrativo ocorre quan­
do a incorporação, a fusão ou a cisão prejudica a sua execução. Dois são
os meios de verificar a diminuição da capacidade da pessoa jurídica de
cumprimento de sua principal obrigação, a execução do contrato: (i) de
um lado, pela variação de seu patrimônio líquido; (ii) de outro, pelo
desaparecimento dos elementos de empresa indispensáveis à execução
do contrato (a despeito da variação patrimonial positiva) .
O primeiro entendimento aplica-se às três operações já discorri­
das, e sua verificação se dá pela análise do balanço patrimonial, levanta­
do consoante o art. 178 e seguintes da Lei 6.404/76. Sugere-se, no
entanto, que, para maior segurança do órgão ou entidade contratante, o
balanço seja previamente examinado e analisado por empresa de audi­
toria contábil ou por auditor contábil independente, registrado na Co­
missão de Valores Mobiliários, consoante o art. 26 da Lei 6.385/76.
GLAUCO MARTINS GUERRA & RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO 203 -

O segundo meio, mais evidente na cisão, embora não se revele to­


talmente inaplicável aos atos de incorporação e fusão, é concretizado
pela demonstração material da permanência dos elementos necessários
à execução do contrato, a exemplo de maquinaria, pessoas, tecnologia,
etc, cuja avaliação pode ser feita, analogicamente, consoante o art. 8° da
Lei 6.404/76, para bens que formarão o capital social da companhia.
O que se pretende com tais ponderações? Demonstrar que ao Admi­
nistrador Público está assegurado um amplo leque de alternativas que,
complexas e trabalhosas (pois exigem motivação expressa dentro do pro­
cedimento administrativo), permitem ao ente público contratante exami­
nar e avaliar as operações societárias de cisão, fusão e incorporação,
autorizando-as ou não na preservação de um contrato administrativo, sob
o enfoque de uma análise econômica e jurídica sofisticadas, superando a
mera (e, por vezes, cômoda) interpretação do ato societário exclusiva­
mente sob o prisma da legalidade estrita.

1 3 . CONCLUSÕES
Os discursos do poder, persuaviso e decisório, são construídos a partir
da necessidade do Estado gerir suas funções. Por vezes, no entanto, trans­
formam-se numa ferramenta de sublimação da verdade factual de incapaci­
dade do agente estatal na efetiva materialização do Direito Público.
A construção normativa, vista do prisma da legalidade, auxilia o
entendimento de que existe um lapso entre função contratual do Direi­
to Público e função econômica do Direito Societário.
A evolução da prática contratual comprova que as relações jurídi­
cas obrigacionais são construídas independentemente da ordem legal, a
qual, em inúmeros sistemas, apenas utilizam a legalidade para justificar
e regular os novos modelos e institutos contratuais. Sobremaneira quando
identificado que a ordem econômica é o vetor essencial do funciona­
mento do contrato, ainda que público.25

25 "Se uma norma pode permanecer inalterada a despeito de sua inadequação, ou seja, se as
funções econômicas podem ser alteradas e mantidas independentemente das formulações
204 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

A ordem legal e a construção normativa criam o elo necessário en­


tre a conduta da Administração - inclusive a conduta contratual - e a
defesa do interesse público. Nesse espaço de conhecimento, entre lei e
fato, existem os princípios, crendo-se que, dos mais importantes, está a
defesa da função econômica dos atos societários, ainda que diante de
um Estado regido pelo princípio da legalidade estrita.
Factível demonstrar, com algum esforço axiológico, que os princípios
(não necessariamente escritos, mas visíveis nas relações jurídicas) estão pre­
sentes na inter-relação do Direito Público com o Direito Societário, como
colunas estruturais da hermenêutica, valendo o interesse pela autonomia da
vontade, pela liberdade de contratar e pelas novas ideologias obrigacionais,
essas últimas decorrentes da uterina análise econômica do Direito que mar­
cha pelos sistemas jurídicos civilistas, após sua concepção anglo-saxã.
As questões controvertidas nos contratos administrativos são muitas e;
dentre elas, destacam-se: a adequação dos serviços, o equihôrio econômico­
financeiro, a manutenção do valor econômico das tarifas públicas, os mo­
nopólios estatais, os atrasos de pagamento e a responsabilidade civil dos
Estados na chamada terceirização dos serviços.
Só a dinâmica do Direito Societário pode dar conta de tantas e tais
demandas.
Só a estática do Direito Administrativo já seria suficiente para abor­
tar esse processo de desenvolvimento econômico que obedece à marcha
do privado para o público.
O poder discricionário do ente público, a perenidade das conces­
sões, a reversibilidade dos bens, direitos e privilégios transferidos aos
concessionários, a indenização dos investimentos realizados e a respon­
sabilidade do poder concedente são elementos constitutivos de uma nova
realidade na prestação dos serviços públicos, mudando efetivamente a
relação entre Estado e a sociedade.

dos imperativos ju rídicos, deve-se considerar que entre normas e relações sociais há um
espaço vazio. LIMA LOPES, José Reinaldo de. Direito e Transformação Social - Ensaio
interdisciplinar das mudanças do Direito. Belo Horizonte: Ed. Ciência Jurídica, 1 997.
GLAUCO MARTINS GUERRA & RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO - 205

Nesse ambiente de conhecimento jurídico, as experiências práticas


e teóricas não têm como prescindir dos elementos econômico e social
na contextualização de um novo (ou renovado) Direito Administrativo.
Se o Estado busca a estabilidade de suas funções, através de seus
parceiros privados, para permitir o desenvolvimento dos meios de pro­
dução e o crescimento econômico, o agente público (e, em especial, o
poder concedente) precisa ser pautado em regras claras na definição e
cumprimento das obrigações contratuais, a fim de assegurar ao capital
investidor seu fim maior, qual seja, a rentabilidade. Caso contrário, não
haverá qualidade nos serviços públicos.
A segurança jurídica é um valor que se constrói mais pela prática
social que pela prática (e técnica) legislativa. Não é a lei constitucionali­
zada que gera o direito, na acepção de sua legitimidade e eficiência eco­
nômica e social. Não é o ato normativo em si que dá poder ou
competência ao sistema jurídico para uma auto-segurança de suas es­
truturas.
Vive-se um dado cultural, o sentimento de que a norma norteia as
atividades econômcias e sociais.
É , pois, da dúvida quanto a esse dogma, e na consciência da estrutura
socioeconômica que o Brasil vem desenrolando nos últimos 15 anos, que
se propõe esse debate, encravado no entendimento de que "o problema
maior do Direito na atualidade tem sido exatamente o de estabelecer um
compromisso aceitável entre os valores fundamentais comuns, capazes de
fornecer os enquadramentos éticos nos quais as leis se inspirem, e espaços
de liberdade, os mais amplos possíveis, de modo a permitir a cada um a
escolha de seus atos e do direcionamento de sua vida particular, de sua
trajetória individual."26
O Direito societário, e mais precisamente a dinâmica do ato empre­
sarial, clama por essa consciente renovação do Direito Administrativo.

26 BODIN DE MORAES, ob. cit. (vide nota de rodapé 7).


' .
Voto Irregular e Grupos
de Sociedades

Luiz Ernesto Aceturi de Oliveira


Graduado e especialista em mercado de capitais pela Universidade de São Paulo
Advogado em São Paulo
Membro do IDSA

Marcelo Guedes Nunes


Mestre em direito comercialpela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Advogado em São Paulo
Diretor Cultural do IDSA
208 - REORGANIZAÇÃO 50CIETÃRIA

1 . INTRODUÇÃO
A globalização e a concentração empresarial são fenômenos com
íntima relação. O tamanho das empresas e grau de complexidade de
sua organização está diretamente relacionado ao tamanho do merca­
do em que ela atua. Se o mercado é doméstico, local, como, por exem­
plo, um pequeno estabelecimento de uma cidade de interior, uma
empresa informal de natureza familiar é organização mais do que
suficiente para que os comerciantes cumpram seu objeto. Estabeleci­
mentos que atuam em cidades maiores, com sócios capitalistas sem
vínculo sanguíneo, exigem estruturas societárias algo mais sofistica­
das, como as limitadas. Já grandes empresas que recorrem à poupan­
ça pública para financiar sua atuação sobre o território de um país ou
continente inteiro necessitam tomar a forma de sociedades anôni­
mas, com conselhos, administração profissionalizada etc.
A integração dos mercados nacionais em um mercado mundial, criou
o ambiente propício para a formação de grupos empresariais, que se estru­
turam financeira e societariamente com fins a atuar de maneira simultâ­
nea em algumas dezenas de países. O fenômeno do grupo societário como
o principal veículo de atuação do comerciante moderno é palpável, sen­
do a sociedade autônoma uma exceção dentre as empresas que atuam
hoje no mercado global. A regra quase absoluta é a do grupo plurissoci­
etário, composto de diversas personalidades jurídicas ligadas entre si por
vínculos societários e com atividades coordenadas para a consecução de
um objetivo comum, e não mais os obj etivos de cada sociedade isolada.
O problema que pretendemos tratar nesse artigo é o da relação en­
tre as regras tradicionais de voto e o grupo plurissocietário. Até pela
própria origem egoística da atividade comercial, o interesseparticular de
cada sócio (receber dividendos e ver sua participação valorizada) coinci­
de e depende do sucesso e da realização do interesse social da companhia
(cumprir com o objeto social e fazer lucro). Essa é a regra que motiva o
surgimento da sociedade, baseada em um contrato que expressa uma
convergência de vontades no sentido de obter lucros através do sucesso
da companhia. Há, no entanto, certas situações extraordinárias em que
Luiz ERNESTO AcETURI DE ÜLIVEIRA & MARCELO GUEDES NUNES 209
-

esses interesses particulares deixam de convergir, apontando para dire­


ções diferentes e tencionando as relações societárias. As modalidades
de exercício irregular de voto do art. 1 1 5 da Lei de Sociedades Anôni­
mas (LSA) foram criadas exatamente para impedir que, nessas hipóte­
ses de extraordinária divergência, o exercício do direito de voto de
determinados acionistas se dê de maneira contrária ao estrito e mais
puro interesse social. Não por outra razão, todas as quatro modalida­
des de exercício irregular (vot9 abusivo, voto proibido, voto em benefí­
cio particular e voto em conflito) tutelam o interesse capitalista da
sociedade.
Mas a questão encontra complicações sensíveis nos entes pluris­
societários. O grupo de sociedades tem uma definição fluida, porém
quase sempre se caracteriza pela criação de um novo plano de interes­
ses até então inexistente, que motiva e justifica a união de esforços. Na
sociedade convencional, de natureza singular, existem apenas dois pla­
nos superpostos hierarquicamente: o primeiro é o dos interesses par­
ticulares de cada sócio que, no momento da criação da sociedade,
convergem para um segundo, onde está interesse social. Há exercício
irregular de voto sempre que o primeiro plano se sobrepujar ao segun­
do, subvertendo a hierarquia de interesses. No grupo de sociedades, a
convergência das vontades das sociedades pode criar um terceiro plano,
superior ao primeiro e ao segundo, em que está fixado um interesse de
grupo, hierarquicamente prevalecente em relação aos interesses sociais e
particulares. Esse novo plano de interesse se sobrepõe aos dois primeiros
e subverte a relação hierárquica estabelecida pelo art. 1 1 5 da LSA, tor­
nando o interesse social, até então invulnerável em sua superioridade,
um plano secundário.
Como as modalidades de exercício irregular de voto buscam preser­
var esse plano de interesse social, há um potencial atrito entre a criação
de certas modalidades de grupos de sociedades e a vedação ao exercício
irregular de voto, este concebido como o voto que fere ao plano do inte­
resse social. A idéia do presente artigo é analisar as relações entre esse
terceiro plano de interesses coletivos e as disposições do art. 1 1 5 da LSA.
21 Q - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

2. GRUPOS DE SOCIEDADES COMO FORMA DE ORGANIZAÇÃO


E REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA
As dimensões do mercado de atuação determinam a complexidade
das empresas que nele atuam. Não é uma coincidência o fato das organi­
zações precursoras das sociedades anônimas terem sido criadas como
forma de viabilizar grandes empreitadas, fossem guerras ou expansões
ultramarinas, com aportes de capital em montantes até então jamais vis­
tos. A Officium Procuratorum Sancti (Casa de São Jorge), criada no séc.
XV em Gênova para financiar a guerra contra Veneza, e as conhecidas
Companhias das Índias, criadas no séc. XVII na Holanda, França, Suíça
e Dinamarca para viabilizar viagens intercontinentais são protótipos de
nossas atuais sociedades anônimas, criadas em um momento histórico
no qual os modelos tradicionais de organização empresarial se mostra­
vam incapazes de gerenciar todos os complexos interesses políticos e
financeiros envolvidos no investimento (COELHO, 2002, vol. 2, p. 60).
COMPARATO (1 990, p. 261), citando a obra The rise and decline
ofthe Mediei Bank de Raymond de Roover, afirma ter sido o banco dos
Mediei o primeiro grupo societário da história de que se tem notícia.
Este banco rompeu com a tradição de unidade patrimonial das empresas
transnacionais e deu a cada braço de sua instituição (que se estendia por
Veneza, Roma, Milão, Londres, Bruges, Genebra, Avinhão etc.) auto­
nomia societária, mantendo-se, no entanto, uma unidade de controle
pessoal. Essa "unidade na separação" permitiu ao controlador ter domí­
nio sobre os rumos dos negócios que se estendiam sobre os mais diversos
domínios e, ao mesmo tempo, preservar a empresa central dos infortúni­
os e efeitos negativos que a insolvência de cada um de seus braços pudes­
se emanar. Essa unidade de controle sobre sociedades autônomas é ainda
hoje a característica marcante do grupo societário, que vem do séc. XIV
até os nossos dias.
Modernamente vivemos um renascimento do comércio mundial,
facilitado em grande parte por quatro fatores: (i) avanços na tecnologia
da comunicação, (ii) convergência cultural dos países, (iii) desenvolvi­
mento de vantagens comparativas (especialização regional) e (iv) queda
Lutz ERNESTO ACETURI DE OLIVEIRA & MARCELO GUEDES NUNES 2 1 1
-

de barreiras alfandegárias. Seja pela criação de blocos de integração, seja


pela expansão autônoma do comércio, o mundo cada vez mais se aproxi­
ma de se tornar um só mercado com livre circulação de bens e serviços,
abrindo espaço para atuação de empresas multinacionais e multiconti­
nentais, em número e escala jamais vistos na história. Esse novo merca­
do, como não poderia deixar de ser, passou a exigir uma nova estrutura
de organização empresarial, já que a empresa unissocietária, mesmo na
forma de sociedade anônima, não é capaz de organizar atividades simul­
tâneas de produção e distribuição de bens e serviços em algumas deze­
nas de países. O que se viu com a expansão do multinacionalismo
empresarial foi a necessidade de criação de várias sociedades, cada qual
atuante em um mercado relevante, mas todas subordinadas ao comando
central da empresa coletiva e aos interesses do grupo como um todo.
O grupo de sociedades é, assim, o fenômeno societário moderno e a
forma de organização típica da atuação empresarial global (COMPA­
RATO, 1 978, p. 1 94- 195, e MUNHOZ, 2002, p. 93-102). Em passa­
gem expressiva, é mais uma vez COMPARATO (1 990, p. 275) quem
explica essa evolução da atividade empresarial até os dias modernos:
"A associação de empresas juridicamente independentes, atu­
ando sob uma direção unitária, compõe a figura dos grupos
econômicos, que são atualmente os grandes agentes empresari­
ais. O direito empresarial entra, assim, na terceira fase histórica
de seu desenvolvimento. A primeira corresponde ao surgimento
do comerciante individual, como profissional dotado de um
estatuto próprio, destacado do sujeito de direito comum. A se­
gunda fase abre-se com a multiplicação de empresas societárias,
notadamente com a vulgarização da sociedade anônima no curso
do século passado, como instrumento de captação de investi­
mento popular. Agora, o universo das multinacionais, das ·
ho!dings,joint ventures e consórcios indica que os atuais prota­
gonistas da vida empresarial são associações de empresas, e não
mais sociedades isoladas. "
Mas qual a definição exata de grupo societário? George Tadau, ci­
tado por LOBO (RDM 107, p. 102) diz que é ilusória a tentativa de se
212 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

definir o que vem a ser um grupo de sociedades, em razão da diversidade


de enfoques que a matéria permite. Nós, no entanto, entendemos que a
definição é possível, sendo o grupo de sociedades (i) um conjunto de
sociedades mercantis (ii) com autonomia jurídica que, (iii) reunidas em
torno de uma mesma direção, (iv) buscam realizar um empreendimento
conjunto (IRUJO, RDM 53, pp. 20-25, e PEDREIRA, RDB 1 5 , p.
243). A idéia desta definição é ser a a mais ampla possível, abarcando
todas as modalidades de grupo de sociedades, sejam os de fato ou de
direito, de coordenação ou de subordinação.
Os grupos de fato são constituídos usualmente por sociedades
coligadas, controladoras e controladas, que, mantendo personalida­
des jurídicas distintas, dirigem esforços conjuntos para interesses co­
muns, sem, no entanto, declarar essa união de esforços e esses objetivos
em um documento próprio. O grupo de sociedades de direito, defini­
do no art. 265 da LSA, é um grupo de sociedades controladoras e
controladas, que arquiva convenção que regula o seu funcionamento
e interação, regidos pelo capítulo XXI da LSA (PEDREIRA, RDB
15, p. 245). Como, no Brasil, a LSA reservou a expressão grupo de
sociedades para os grupos de direito, a maioria das definições nacio­
nais restringe a idéia de grupo às organizações plurissocietárias que
apresentam convenção assinada por sociedades ligadas através de vín­
culos de controle. Frise-se, no entanto, que a maioria dos grupos não
apresenta convenção assinada, uma vez que o vínculo de controle é,
por si só, suficiente para que a direção central da controladora impo­
nha suas diretrizes organizacionais.
De qualquer forma, é por esta razão que a maioria das definições
brasileiras de grupos de sociedades é, na verdade, uma definição de gru­
po de direito por subordinação. Por exemplo, de acordo com LOBO
(1978, p. 3 1):
" O grupo de sociedades é uma técnica de gestão e d e concen­
tração de empresas, que faz nascer um interesse novo, externo
e superior ao de cada uma das sociedades isoladas, o qual,
muitas vezes, não coincide nem com o interesse perseguido
Luiz ERNESTO ACETURI DE ÜLIVEIRA & MARCELO GUEDES NUNES - 213

pela sociedade dominante, nem com os propósitos das socie­


dades dominadas."
Essa alienação de interesse é também ressaltada por TEIXEIRA e
GUERREIRO ( 1979, p. 77 1):
"Na sistemática da lei, as relações de subordinação estão pre­
sentes no grupo de sociedades, no sentido de que as sociedades
participantes, vinculadas pelo nexo de controle, convencional­
mente se obrigam a combinar recursos ou esforços para a reali­
zação dos respectivos objetos, ou a participar de atividades ou
empreendimentos comuns (art. 265). A evidência maior de su­
bordinação revela-se pela existência de uma sociedade dita de
comando que exerce o controle das sociedades ditas filiadas,
segundo as expressões utilizadas pelo Legislador (art. 265, pa­
rágrafo único). O objeto social específico de uma sociedade dita
filiada subordina-se, portanto, aos interesses comuns do grupo,
dominado pela sociedade de comando, mas sempre observados
os termos da convenção celebrada. A associação assim concebi­
da qualifica-se como grupo de direito, uma vez arquivados no
Registro do Comércio os documentos a que faz referência o
art. 271, entre os quais se inclui a convenção de constituição de
grupo (inciso I)."
Já os grupos de coordenação e de subordinação se diferenciam
entre si pela presença ou não do elemento hierárquico dentro da es­
trutura. Nos grupos de subordinação, a direção central exerce sua au­
toridade de cima para baixo, ou sej a, verticalmente, emitindo
comandos conforme o seu único e exclusivo juízo de conveniência. Já
nos grupos de coordenação, na LSA denominados consórcios
(COMPARATO, RDM 23), a direção central é exercida horizontal­
mente, de forma a compatibilizar em um mesmo plano os diferentes
juízos de conveniência e os interesses das sociedades em torno dos
empreendimentos comuns. Na LSA, o grupo de subordinação por
excelência é o grupo de sociedades do capítulo XXI, enquanto o gru­
po de coordenação está previsto no capítulo XXI, sob a forma usual
denominada consórcio.
214 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

3. ABUSO DE VOTO, PROIBIÇÃO DE VOTO, VOTO EM


BENEFICIO PARTICULAR E VOTO EM CONFLITO DE INTERESSES
O direito de voto é o poder jurídico conferido aos acionistas de uma
companhia de participar, mediante manifestação e através de delibera­
ção em assembléia geral, na formação da vontade da pessoa jurídica. A
deliberação consiste exatamente nessa reunião de diversas vontades até
então isoladas para, através da aplicação de regras de prevalecência (den­
tre as quais se destaca o princípio majoritário), obter o resultado vetorial
das manifestações coletivas e heterogenias em uma só vontade, atribuída
à pessoa jurídica.
Todo esse processo de reunião de manifestações se dá na assembléia,
onde se encontram os sócios com o propósito específico de decidir ques­
tões de interesse da sociedade. A assembléia deve ocorrer dentro de deter­
minadas regras de forma e de conteúdo, sem as quais o Direito não atribuirá
ao resultado vetorial das vontades dos sócios a qualidade de vontade da
sociedade. As regras de forma dizem respeito à competência e formalida­
des de convocação da assembléia, requisitos pàra instalação e condução
dos trabalhos (arts. 121 a 131 da LSA). As regras de conteúdo dizem
respeito, basicamente, a uma avaliação das matérias submetidas à delibe­
ração e dos votos proferidos, de forma a verificar se os mesmos se encon­
tram de acordo com os limites impostos pela lei e pelo estatuto e, portanto,
se podem ser considerados para a formação da vontade da pessoa jurídica.
O direito de voto é a expressão da condição de parte integrante e
órgão da companhia, pressupondo daí o direito de participar das deli­
berações. Direito, aqui, é uma faculdade que pode ou não ser exercida,
tanto no sentido de comparecer ou não à assembléia como no sentido
de, uma vez comparecendo, votar ou abster-se. O que a LSA diz em seu
art. 1 15 é que, uma vez pretendida a manifestação do voto, ele deve ser
sempre dirigido no interesse da companhia, não podendo ser desviado
para outras finalidades que não aquelas de interesse da companhia. O
desvio de finalidade fere requisito de conteúdo do voto, que, portanto,
perde a capacidade de ser considerado para a formação da vontade da
pessoa jurídica.
LUIZ ERNESTO ACETURI DE ÜLIVEIRA & MARCELO GUEDES NUNES - 215

O abuso de direito de voto é uma categoria do abuso de direito, gêne­


ro que merece alguns comentários à parte. A grande dificuldade da idéia
de abuso de direito está na sua aparente contradição em termos. O concei­
to de abuso é sempre rechaçado pela idéia de direito, já que o ordenamento,
que nada mais é do que um agregado ordenado de direitos e deveres, repele
todo e qualquer abuso como ilícito1 • Assim, abuso e direito, como os con­
ceitos de alto e baixo, são palavras que se recusam mutuamente e que,
justapostas, deveriam se anular, deixando para traz um vazio semântico
desprovido de qualquer significado. Mas o fato é que o conceito de abuso
de direito desempenha um papel fundamental e, para tanto, tem conteúdo
semântico importantíssimo, sendo a aparente contradição a chave para a
compreensão de seu significado.
Direitos e deveres são relações intersubjetivas definidas por requisi­
tos fixados nas normas jurídicas, que permitem aos operadores proceder
à subsunção dos fatos às suas hipóteses de incidência. Da subsunção do
Jato à norma nasce o dever. Os direitos, no entanto, não são o mero resul­
tado dessa interação formal entre fato e norma. O seu surgimento de­
pende, ainda, da realização dos objetivos que a sociedade deles espera.
Ou seja: o fato, subsumido à norma, não é suficiente para a geração de
um direito legitimado. Este depende ainda da realização de uma finali­
dade específica, que molda e ao mesmo tempo transcende a norma que o
procura expressar. O conceito de abuso de direito entra aí. Apesar da
aparente correção formal, o abuso se dá no momento em que o direito é
exercido fora dos limites previstos em lei, extrapolando a sua finalidade
essencial. Assim, quem ab usa de um direito utiliza a ferramenta jurídica
fora dos propósitos a que o ordenamento a destina. O direito está lá em
seus requisitos formais, porém os resultados de sua aplicação não são
aqueles almejados e não estão de acordo com as diretrizes gerais do sis­
tema jurídico. A idéia do abuso de direito se presta exatamente a evitar
que a manipulação do direito legitime práticas repelidas pelo ordena-

Art. 1 8 7 (Código Civil 2002). Também comete ato i l ícito o titular de um di reito que, ao
exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social,
pela boa-fé ou pelos bons costumes.
216 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

mento, trazendo de volta para a categoria de ilícitos e antijurídicos cer­


tos atos reputados corretos apenas pelo ponto de vista formal, e não fun­
cional (BEVILAQUA, s.d., p. 348).
A definição do art. 1 1 5 da LSA de abuso de direito de voto não
foge a essa regra. O abuso de direito de voto é nada mais que a manipu­
lação das formas e requisitos do lícito exercício do direito de votar em
assembléias, com fins de se atingir o objetivo ilícito de lesar a companhia
ou auferir vantagens indevidas. O elemento essencial do abuso de direi­
to de voto é, assim, a intenção (dolo) de criar o prejuízo ou vantagem
indevida. O abuso do voto torna o voto anulável e o acionista pessoal­
mente responsável pelos danos decorrentes do seu exercício. A intenção
ou dolo em causar prejuízo - e não apenas o prejuízo em si, que pode
decorrer de culpa em uma de suas três modalidades - é elemento essen­
cial do voto abusivo, já que ocasionais prejuízos e perdas são da essência
do empreendedorismo. Não faria sentido algum responsabilizar o acio­
nista por toda e qualquer perda involuntária, jogando na ilicitude os atos
de administração mal sucedidos sob o ponto de vista financeiro, que,
reconhecidamente, fazem parte do risco empresarial.
A prova do dolo, como de todo e qualquer estado mental, apresenta
dificuldades. A intenção do acionista consiste em um estado íntimo mui­
tas vezes não declarado e, portanto, inacessível a todos, que não o pró­
prio autor do ato ilícito. O acionista sempre poderia alegar erro
involuntário para escapar das sanções previstas em lei. Assim, se a prova
dessa disposição em lesar fosse levada a ferro e fogo, a demonstração do
abuso seria muito difícil, se restringindo aos poucos casos em que, por
descuido ou incompetência, o acionista tivesse declarado sua disposição
expressamente. Para evitar que o dispositivo caísse em desuso, doutrina
e jurisprudência passaram a considerar caracterizada a intenção de lesar
apenas com a demonstração, a contrario sensu, de que o resultado lesivo
era tão evidente, ao ponto de não ser razoável ao acionista votante negar
a consciência de suas conseqüências. O problema de diferenciar o dolo
do mero erro involuntário ficaria então superado, na medida em que, por
atuar profissionalmente, com regularidade e especialização, não se ad-
Luiz ERNESTO AcETURI DE OLIVEIRA & MARCELO GUEDES NUNES 2 1 7
-

mite que o acionista cometa erros grosseiros, de evidente resultado ne­


gativo para a companhia. Claro que os conceitos de erro grosseiro e de
erro escusável e a prova do que é um erro grosseiro, que estão no cerne da
noção de intenção do voto abusivo, também trazem alta carga de subje­
tivismo, esta impossível de ser superada pela técnica doutrinária. Aqui, a
solução se dá caso a caso, voto a voto, em uma análise concreta e particu­
lar das condições em que o cálculo empresarial do acionista votante foi
elaborado.
Além do abuso de direito de voto, o art. 1 1 5 regula, em seu § 1º,
outras três modalidades de exercício irregular do direito de votar: a proi­
bição de voto, o voto em benefício particular e o voto em conflito de
interesses. A principal diferença entre o abuso e as demais modalidades
está na desnecessidade, nas três últimas, de demonstrar a intenção em
lesar a companhia. Ao contrário do abuso de voto, para a proibição, o
conflito e o voto em benefício particular a intenção do acionista em lesar
não é relevante. Resta a questão de como diferenciar essas três modali­
dades entre si.
A proibição de voto diz respeito a certas deliberações nas quais não
pode o acionista exercer o seu direito de votar, independentemente da
intenção (criar ou não prejuízo para a companhia) ou da ocorrência de
um prejuízo concreto em razão da deliberação. Assim, está proibido de
votar o acionista em duas hipóteses: na (i) deliberação relativa ao laudo
de avaliação dos bens com que concorreu para a formação do capital
social e na (ii) deliberação de aprovação das contas de sua gestão como
administrador. Nesses casos, análogos ao divieto di voto italiano, o voto
será absolutamente nulo sempre que proferido e, se tiver sido determi­
nante para a aprovação da deliberação, esta será também nula. Sobre os
conceitos de abuso e proibição de voto, vê-se que o voto pode ser proibi­
do mesmo se não for abusivo, já que a intenção de beneficiar a compa­
nhia, por mais evidente que seja, não afasta a proibição de votar nas duas
deliberações específicas. Da mesma forma, o voto pode ser abusivo sem
ser proibido, j á que o conceito de abuso não se restringe às hipóteses de
deliberação do conceito de proibição de voto.
218 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

As previsões de benefício particular e de conflito de interesses são


muito próximas e tendem a criar confusão. Ambas se voltam a hipóteses
genéricas de deliberação em que o acionista tem, além dos interesses de
sócio, outros interesses decorrentes de uma posição jurídica exclusiva sua,
dentro ou fora dos quadros sociais. Assim, tanto o voto em benefício par­
ticular como em conflito têm em comum a necessidade de demonstração
dessa posição exclusiva do acionista, que, na primeira hipótese lhe gera
uma vantagem não extensível aos seus pares e, na segunda, o coloca em
choque com interesses da sociedade.
O voto em benefício particular tem por função impedir que o acio­
nista se manifeste a respeito de deliberação que lhe traga uma vantagem
exclusiva em relação aos demais sócios da empresa. O benefício se torna
particular sempre que não se estender aos demais acionistas, restringindo­
se a apenas uma parcela do universo de investidores. Nesse sentido são as
lições de FERRARI (1998, p. 40) e CARVALHOSA (2003, p. 462).
Já o conflito de interesses deve ser constatado no confronto entre o
interesse da sociedade e do acionista. Normalmente convergentes (o pro­
gresso da sociedade é proveitoso a todos os sócios) , esses interesses po­
dem, em determinadas hipóteses, se tornar mutuamente excludentes, de
forma que a expansão de um acarretará na retração do outro, e vice­
versa. Frise-se, mais uma vez, que o interesse social não é aqui analisado
em seu significado lato, do ponto de vista da função social da empresa
dentro de sua comunidade. O interesse a que a LSA se refere no art. 1 1 5 é
aquele que motivou a reunião voluntária dos sócios com fins a, através da
rtalização de um objeto social (objetivo-meio), gerar lucros e maximizar o
valor de seus investimentos (objetivo-fim). Assim, o interesse social do art.
1 15 (sentido estrito) é (i) perseguir o objetivo social definido no estatuto
(art. 2º da LSA), para daí (ii) maximizar lucros em favor de seus acionis­
tas, aumentando o valor patrimonial de suas ações e distribuindo maior
quantidade de dividendos. Segundo FRANÇA (1993, p. 62):
"Pode-se concluir, assim, que o interesse da companhia (ou inte­
resse social stricto sensu), na Lei 6.404, constitui um conceito tí­
pico e específico, consistente no interesse comum dos sócios na
Luiz ERN ESTO AcETURI DE OLIVEIRA & MARCELO GUEDES NUNES 2 1 9
-

realização do escopo social, abrangendo, portanto, qualquer in­


teresse que diga respeito à causa do contrato de sociedade, seja
o interesse à melhor eficiência da empresa, seja a maximização
dos lucros, seja a maximização dos dividendos."
Para ambas hipóteses (voto em conflito e em benefício particular)
coloca-se a questão da necessidade de comprovação, caso a caso, de um
prejuízo concreto decorrente do voto, ou se a mera existência de um
interesse exclusivo do acionista, social ou extra-social, seria suficiente
para a vedação do voto. No caso, é sempre bom lembrar que estamos
tratando de hipóteses de ilícito e responsabilização civil. A responsabili­
zação civil se distingue da penal por uma diferença nada sutil. A respon­
sabilização penal se baseia em uma análise do comportamento do agente
lesionante, sua motivação, seus antecedentes. Já a responsabilização civil
inverte esse ponto de vista e passa a analisar o caso concreto sob o ponto
de vista da vítima lesionada, a extensão do dano emergente, o impacto
psicológico, os lucros cessantes etc. Num acidente de automóvel em que
'N_ causa um dano a 'B', o penalista não quer saber quem é 'B', a vítima,
ou que carro ele conduzia, para onde ele se dirigia, quanto ele ganha por
mês. O penalista se foca em 'N., o causador do dano, qual a intenção dele
ao causar o acidente, se estava alcoolizado, se corria de forma impruden­
te, se tem antecedentes, estes sim elementos determinantes para se apu­
rar se houve ou não a prática de um ilícito penal e a extensão da sanção a
ser aplicada. Já o civilista ignorará o causador do dano ('N_) e se focará na
vítima ('B'), verificando quais os danos materiais e morais, se haverá lu­
cros cessantes, ou seja, qual o prejuízo sofrido, de forma a repará-lo inte­
gralmente. Para o penalista, pouco importa se 'B' dirigia ou não um
automóvel caro, j á que isso não afetará o tamanho da pena aplicável.
Para o civilista, é exatamente a figura de 'B' e de seu carro que deve ser
levada em conta, pois é ela que determinará a extensão da indenização.
Tanto a hipótese de voto em benefício particular como a de conflito
de interesses, são casos de ilícito civil, passíveis de responsabilização. O
dano, mesmo que potencial, é, portanto, elemento essencial para a caracte­
rização e deve ser verificado caso a caso, como em qualquer ocorrência de
220 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

responsabilização por ilícito civil. Das quatro hipóteses de voto irregular,


todos de natureza civil, a única que independe de verificação concreta de
prejuízo é a proibição de voto, simplesmente porque o legislador presume
de forma absoluta que o dano estará ali sempre presente, independente­
mente da prova. Sem dano - seja a terceiros, à companhia ou aos demais
acionistas -, não há qualquer motivo razoável para impedir o exercício do
voto ou, uma vez exercido, para anulá-lo. Por tal razão, é evidente que o
interessado na invalidação do voto deve demonstrar a sua motivação con­
creta para obstaculizar o sufrágio. Ressalvadas as hipóteses de proibição
pontualmente elencadas, a ausência de prejuízo ou dano para si ou para
sua companhia retira até mesmo o interesse processual na propositura de
uma ação judicial para invalidação do voto, por completa ausência de re­
sultado útil do processo.
Se assumíssemos a proibição genérica de o acionista votar em qual­
quer assembléia geral em que interesses particulares seus estivessem
em confronto potencial com o da companhia, independentemente da
ocorrência de um prejuízo específico, chegaríamos a uma situação ex­
trema, na qual o controlador não poderia deliberar sobre distribuição
de dividendos aos acionistas, alteração e criação de quoruns especiais,
alteração de quaisquer vantagens patrimoniais, como valor de reem­
bolso ou resgate. Além disso, se a LSA dispensasse a prova do prejuízo
como regra geral, os controladores jamais poderiam deliberar pelas con­
troladas nos casos de incorporação do art. 264 da LSA (incorporação
de companhia controlada por controladora), nem poderiam contratar
com a sociedade em condições eqüitativas, prática expressamente per­
mitida pelo art. 1 1 7, § 1º, alínea 'f', da LSA ( VALVERDE,1941, p.
1 16 e 446; FRANÇA, 1993, p. 94-95; e FERRARI, 1998, p. 38).
Em resumo, temos o seguinte quadro. O abuso de voto se distingue
das demais modalidades de exercício irregular por ser o único que ne­
cessita da demonstração da intenção em causar o prejuízo. Voto em
benefício particular, em conflito ou proibido independem do elemento
dolo. A proibição de voto se distingue das demais modalidades por ser a
única que dispensa a prova do prejuízo concreto, ou seja, da lesividade
Luiz ERN ESTO AcETURI DE OLIVEIRA & MARCELO GUEDES NUNES - 221

do voto, que é presumida na LSA de maneira absoluta. Claro que, dis­


pensada a prova do prejuízo, não há também, por imposição lógica, a
necessidade de prova da intenção de tê-lo causado. Finalmente, os vo­
tos em benefício particular e em conflito de interesses necessitam da prova
de um prejuízo concreto, caso a caso, dispensando a prova da intenção
de tê-lo causado. Diferenciam-se um do outro apenas na medida em
que, no primeiro, a exclusividade do interesse surge da comparação
entre a situação do votante e a dos demais acionistas, enquanto, no
segundo, a exclusividade do interesse surge da comparação entre a si­
tuação do votante a da companhia.

4. Novo CóDIGO CIVIL BRASILEIRO E REFORMA ITALIANA


A aferição do prejuízo, caso a caso, como principal característica
para evidenciar-se o voto irregular foi respaldada no tratamento do tema,
tanto em nosso novo Código Civil (NCC), quanto no próprio Código
Civil italiano, em recentíssima reforma que alterou o art. 2.373 , fonte
inspiradora do nosso art. 1 15 da LSA.
O § 3° do art. 1.010 do NCC responsabiliza por perdas e danos o
sócio que, em operação com interesse contrário à sociedade, participa da
deliberação que a aprove graças ao seu voto. A leitura desse dispositivo
não deixa dúvidas de que o sócio não está absolutamente impedido de
votar, dependendo o controle do conflito da aferição de danos a serem
causados à companhia. Mais do que isso, o sócio somente responderá
por perdas e danos se o seu voto for imprescindível para formar a vonta­
de social, ou seja, se sem o voto não se perfizer o quorum suficiente para
aprovar o assunto em pauta. Este artigo tem evidente relação com a teo­
ria clássica da responsabilidade civil, segundo a qual, não basta a conduta
ilícita para a responsabilização, sendo ainda necessário um nexo causal
entre a conduta e o dano sofrido.
Por sua vez, o § 2° do art. 1 .074 dispõe que nenhum sócio, por si ou
na condição de mandatário, pode votar matéria que lhe diga respeito
diretamente. Uma primeira leitura desse dispositivo pode conduzir ao
entendimento de que, sempre que houver um potencial conflito, haverá
222 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

o impedimento. No entanto, quando o legislador quis tratar de impedi­


mento, o fez através da regra específica presente no §2° do art. 1 .078, a
qual trata de impedimento do acionista, administrador ou membro do
conselho fiscal, em votar as próprias contas e demonstrações financeiras
da sociedade. É , portanto, o §2° do art. 1.078 que trata dos casos especí­
ficos de proibição de voto, em que o prejuízo da companhia é presumido
de maneira absoluta. E para que este dispositivo não se torne u m sub­
conjunto das disposições do §2° do art. 1 .074 - ou seja, uma redundân­
cia, inadmissível em termos hermenêuticos - esta última norma deve ser
necessariamente interpretada como hipótese distinta, análoga ao do con­
flito de interesses, em que, diferentemente dos casos de proibição, a ca­
racterização do exercício irregular dependerá da prova, caso a caso, do
prejuízo sofrido pela sociedade.
Relembre-se aqui que não é mera coincidência o fato do regime do
conflito de interesses nas sociedades do NCC ter contornos similares ao
instituído pela LSA em relação às sociedades anônimas. O projeto do
novo Código, elaborado na década de 70, é contemporâneo ao projeto
da Lei de 76, estando ambos inspirados nos mais modernos sistemas
legislativos vigentes à época, dos quais podemos destacar o Código itali­
ano de 1942. Dessa forma, será sempre fundamental o recurso à nossa
experiência doutrinária e jurisprudencial sobre a LSA, bem como às ex­
periências alienígenas, em especial a italiana, para a interpretação dos
dispositivos do NCC. Ao mesmo tempo, não podemos esquecer que o
sistema que inspirou nossos legisladores já acumula mais de meio século
de vida (e a própria Itália já o reviu), durante o qual profundas transfor­
mações se operaram em nossa sociedade, as quais devemos considerar na
exegese do novo Código. O próprio legislador teve isso em mente ao
elaborar o NCC, inserindo, em seu texto, inúmeros tipos abertos e prin­
cípios gerais informadores de sua interpretação (como os da boa-fé ob­
jetiva, função social do contrato, etc), para que o aplicador tenha sempre
a possibilidade de levar em conta as evoluções sociais em sua exegese.
Esta tendência já vinha sendo sacramentada pela doutrina e jurispru­
dência italianas, que, ainda assim, debatia com uma posição minoritária
Luiz ERNESTO AcETURI DE ÜUVEIRA & MARCELO GUEDES NUNES - 223

relutante. No entanto, a recente reforma promovida no Godice Civile por


meio do Decreto LGS nº 6, de 17 de maio de 2003, aperfeiçoou a redação
do artigo 2.373 (que trata do conflito de interesses) acabando, em nosso
entender, com qualquer dúvida a este respeito.
Em tradução livre, a redação antiga dizia que o direito de voto não
poderia ser exercido por sócio que, por conta própria ou de terceiros,
tivesse um interesse em conflito com o da sociedade. Em sua segunda
parte, o artigo dispunha que, no caso de voto conflitante, a deliberação
potencialmente danosa à sociedade seria impugnável, desde que, sem o
voto que deveria ter se abstido, não se teria formado a maioria necessária
à aprovação2 • Vê-se que a regra italiana hesitava entre a primeira parte,
que dava a impressão de uma proibição absoluta de voto, e a segunda
parte, que apresentava uma análise mais cautelosa, baseada na verifica­
ção, caso a caso, da existência de um prejuízo concreto.
O que a reforma fez foi suprimir a primeira parte do artigo 2.373,
mantendo, além dos casos de proibição de voto, apenas a afirmação de que
a deliberação aprovada em conflito de interesse e que cause dano à socie­
dade é impugnável, nos termos da lei3 • Em nosso entender, essa nova re-

2 Código Civil italiano, redação antiga:


2373. (Conflitto d'interessi). 1 . li diritto di voto non puó essere esercitato dai sacio nelle
deliberazioni in cui egli ha, per conto proprio o di terzi, um interesse in conflitto con quello
della società.
2. ln caso d'i nosservanza della disposizione dei comma precedente, la deliberazione, qualora
possa recare danno alia società, e impugnabile a norma dell'art. 2377 se, senza il voto dei
soei che avrebbero dovuto astenersi dai la votazione, non si sarebbe raggiunta la necessaria
maggioranza.
3. Gli amministratori non possono votare nelle deliberazioni riguardanti la loro responsabilità.
4. Le azioni per le quali, a norma di questo articolo, non puó essere esercitato il di ritto di
voto sono computate ai fini dei la regolare costituzione dell'assemblea.
3 Redação atual do Código Civil Italiano, de acordo com a reforma de 2003:
23 73. (Conflitto d'interessi). La del iberazione approvata con il voto determinante di soei che
abbiano, per conto proprio o di terzi, un interesse in conflitto con quello della società e
impugnabile a norma dell'articolo 2377 qualora possa recarie danno.
Gli amministratori non possono votare nelle deliberazioni riguardanti la loro responsabilità.
1 componenti dei consiglio di gestione non possono votare nelle deliberazioni riguardanti la
nomina, la revoca o la responsabi l ità dei consiglieri di sorveglianza.
O artigo que trata da inval idade de deli beração tem a seguinte redação:
2377. (/nvalidità dei/e deliberazioni). Le deliberazioni che non sono prese in conformità
della legge o dello statuto possono essere impugnate dai soei assenti, dissenzienti od
astenuti,dagli amministratori, dai consiglio di sorveglianza e dai collegio sindacale.
224 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

dação teve por objetivo deixar claro que o conflito de interesses não é caso
de proibição absoluta de exercício de um voto futuro, mas sim de invalida­
de de deliberação a ser aprovada através de voto conflitante e que, cumula­
tivamente, cause dano à sociedade. Não há presunção de dano em razão
do conflito, uma vez que, apesar de possuir um interesse estranho ao da
sociedade, o acionista poderá exercer seu voto no interesse social e não
particular. Assim, não basta mais ao acionista minoritário demonstrar a
existência de um conflito formal entre acionista majoritário e companhia.
É essencial, para a impugnação da deliberação, que ele demonstre que o
voto conflitante foi exercido em prejuízo da companhia.

L'i mpugnazione puô essere proposta dai soei quando possiedono tante azioni aventi diritto
di voto con riferimento alla deliberazione che rappresentino, anche congiu ntamente, l'uno
per mille dei capitale sociale nelle società che fanno ricorso ai mercato dei capitale di
rischio e il cinque per cento nelle altre; lo statuto puô ridurre o escludere questo requ isito.
Per l' impugnazione delle del iberazioni delle assemblee speci ali queste percentuali sono
riferite ai capitale rappresentato dalle azioni della categoria.
1 soei che non rappresentano la parte di capitale indi cata nel comma precedente e quelli
che, i n quanto privi di voto, non sono legittimati a proporre !'impugnativa hanno di ritto ai
risarcimento dei danno Iara cagionato dai la non conformità dei la deliberazione alia legge o
alio statuto.
La deliberazione non puô essere annullata:
1 ) per la partecipazione all 'assemblea di persone non legittimate, salvo che tale partecipazione
sia stata determinante ai fini deli a regolare costituzione del l'assemblea a norma degli articoli
2368 e 2369;
2) per l ' i nvalidità di singoli voti o per il loro errata conteggio, salvo che il voto invalido o
l'errore di conteggio siano stati determ inanti ai fini dei raggiungimento della maggioranza
richi esta;
3) per l'i ncompletezza o l'i nesattezza dei verbale, salvo che impediscano l'accertamento
dei contenuto, degli effetti e dei la validità dei la deliberazione.
L'impugnazione o la domanda di risarcimento dei danno sono proposte nel termine di novanta
giorni dai la data dei la deliberazione, ovvero, se questa e soggetta ad iscrizione nel registro
delle imprese, entro novanta giorni dall'iscrizione o, se e soggetta solo a deposito pressa
l'ufficio dei registro delle imprese, entro novanta giorni dai la data di questo.
L'annullamento della deliberazione ha effetto rispetto a tutti i soei ed obbliga gli amministratori,
il consiglio di sorveglianza e il consiglio di gestione a prendere i conseguenti provved imenti
sotto la propria responsabilità. ln ogni caso sono salvi i di ritti acquistati i n buona fede dai
terzi i n base ad atti compiuti i n esecuzione dei la deliberazione.
L'annullamento del la deliberazione non puô aver l uogo, se la deliberazione impugnata e
sostituita con altra presa in conformità dei la legge e dei lo statuto. ln tal caso il giudice provvede
sulle spese di lite, ponendole di norma a carico della società, e su 1 risa rei menta del l'eventuale
danno.
Restano salvi i di ritti acquisiti dai terzi sulla base dei la deliberazione sostituita."
LUIZ ERNESTO AcETURI DE ÜLIVEIRA & MARCELO GUEDES NUNES - 225

5. NECESSIDADE DE PROVA DO PREJUiZO E MOMENTO DA


PROVA
Há certa confusão entre a necessidade de comprovação do prejuízo
caso a caso e o momento de aferição desse prejuízo, se antes ou após a as­
sembléia. O!,iase sempre que se fala em necessidade de comprovação de pre­
juízo, fala-se também na garantia do direito de voto e na aferição, aposteriori,
ou seja, após a assembléia, do prejuízo e da anulabilidade do voto.
As razões para isso são até compreensíveis. O direito de voto é uma
faculdade, cujo exercício pode se dar em uma de duas direções: aprovar
ou rejeitar a proposta submetida à deliberação. Essa incerteza quanto ao
sentido do voto, aliada a uma "presunção de inocência" do acionista, que
não permite ao operador assumir por antecipação que um ato ilícito será
praticado apenas porque o sujeito está em determinada posição de van­
tagem, foi a chave para que o direito de voto fosse garantido como regra,
só havendo impugnação após o seu efetivo exercício, quando haveria
condições de se verificar se o acionista teria causado ou não dano à soci­
edade.
No entanto, essa posição não é correta.
Em primeiro lugar, o posicionamento mistura dois elementos incon­
fundíveis: a necessidade de uma prova e o momento de sua realização. É
fato que, ante a incerteza de como o acionista se manifestará na assem­
bléia, não há como presumir, apenas por haver o conflito, que ele necessa­
riamente votará de maneira contrária ao interesse social. Tal presunção
pura e simples é inadmissível, devendo o direito de voto ser preservado até
que se comprove, de maneira específica, a sua lesividade. No entanto, essa
demonstração não precisa ser necessariamente feita após a assembléia. Para
impugnar um voto em conflito, o interessado precisa fazer duas demons­
trações: que o acionista vota num certo sentido e que tal voto será lesivo à
sociedade. Se tais provas puderem ser feitas antes da realização da assem­
bléia, demonstrando a direção e o prejuízo do voto, há elementos mais que
suficientes para a suspensão preventiva do direito, a fim de se evitar que o
dano iminente venha a se concretizar. A prática mostra que o acionista,
antes da deliberação, muitas vezes declara abertamente, seja através de
226 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

afirmação expressa, seja através de atos que denunciem suas intenções, o


sentido em que o seu voto será exercido. Nesses casos, em que a intenção
do acionista em aprovar ou rejeitar determinada matéria lesiva ao interesse
social é explícita, a presunção de inocência fica prejudicada e o direito de
voto pode e deve ser suspenso antes que o dano se efetive.
Em segundo lugar, a adoção de medidas preventivas está de acordo
com a visão mais moderna do direito processual. O sistema processual se
esforça, principalmente através dos mecanismos liminares, em prevenir
a ocorrência de danos futuros, e não se contenta em aguardar a consu­
mação das lesões, para apenas depois repará-las. Defender que a prova
do dano só poderia ser feita com a realização da assembléia e a consuma­
ção do prejuízo (no "ver para crer" cínico de São Tomé) é o mesmo que,
por via obliqua, negar como regra a concessão de medidas liminares em
qualquer caso de conflito de interesses, abuso de voto e voto em benefí­
cio particular. Isso, evidentemente, não é correto. A concessão de limi­
nares para abstenção de votar irregularmente está alicerçada na tutela
das obrigações específicas e no poder geral de cautela. Há no art. 1 15 da
LSA uma clara obrigação específica de não-fazer, proibindo o acionista
de votar irregularmente, em prejuízo de seus pares e da companhia. Tal
obrigação é, como todo direito, tutelável via processo judicial, havendo
previsão específica que lhe garante a efetividade. Além das disposições
gerais de medida cautelar dos arts. 796 a 812 do Código de Processo
Civil (CPC), o art. 461 do mesmo Código impõe a tutela específica das
obrigações de fazer ou não e, no caso de inadimplemento, determina a
adoção de providência que assegure o resultado prático equivalente4 • No

4 Art. 46 1 . Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer,
o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará
providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.
§ 1 º· A obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se
impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.
( ... )
§ 3º. Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia
do provimento jurisdicional final, é l ícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou median­
te justificação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada a
qualquer tempo, em decisão fundamentada.
LUIZ ERNESTO ACETURI DE ÜLIVEIRA & MARCELO GUEDES NUNES - 227

§ 3º, modalidade do gênero previsto no art. 273 do CPC, há previsão da


antecipação dessa tutela, bastando, para tanto, a presença de um funda­
mento da demanda e de um justificado receio de ineficácia do provimento
final. O fundamento da demanda são os requisitos de lesividade do voto, a
serem avaliados caso a caso. No que diz respeito à ineficácia do provimen­
to, sabe-se que as assembléias têm uma tendência inexorável à estabiliza­
ção e à irreversibilidade, em razão de seus freqüentes efeitos perante terceiros
de boa-fé, estranhos ao pacto social. Apesar de ser sempre juridicamente
possível, a impugnação de voto e a invalidação de assembléias já realizadas
são difíceis de ser implementadas na prática, já que, após alguns anos de
trâmite processual, a eficácia especifica a que o art. 461 procura defender já
foi erodida, restando como única e derradeira opção o pagamento de uma
tardia e insuficiente indenização em dinheiro.
Vê-se que, aplicado à realidade societária, o art. 461 do CPC não
apenas autoriza a concessão de liminares preventivas: ele praticamente
as exige, como forma de satisfação das obrigações e, antes disso, dos
princípios do moderno direito processual. Por tal razão, se a prova dos
requisitos para a antecipação de tutela específica ou medida cautelar for
apresentada, demonstrando a iminência de um voto irregular danoso à
sociedade, o juiz deve conceder liminar para evitar a sua implementação,
suspendendo o direito ao exercício antes da violação da esfera de direitos
da companhia e dos demais acionistas.

6. VOTOS IRREGULARES, ORGANIZAÇÃO EM GRUPOS DE


SOCIEDADES E ABUSO DE PODER DE CONTROLE DE GRUPO
DE SOCIEDADES
Trazendo a questão do exercício irregular de voto para as orga­
nizações em grupos societários, algumas questões surgem. As previ­
sões do art. 1 1 5 da LSA foram feitas tendo em mente uma companhia
isolada, com os dois planos de interesses que lhe são típicos: o plano
de interesse dos acionistas e o plano de interesse social. O interesse
egoísta dos acionistas em receber dividendos e ver valorizada a sua
participação coincide, na maioria dos casos, com o interesse da com-
228 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

panhia de cumprir lucrativamente com seu objeto social, até porque é


desse lucro que sairão os dividendos a serem distribuídos entre os
sócios e a conseqüente valorização da participação. O art. 1 1 5 regula
as hipóteses excepcionais em que essa harmonia de planos é violada,
colocando os interesses da companhia e do acionista em choque.
Nesses casos, a LSA cria uma relação hierárquica e determina que o
interesse da sociedade deve prevalecer sobre os interesses exclusivos
dos acionistas.
A complicação que o conceito de grupo de sociedades traz para este
mecanismo decorre da criação de um terceiro plano de interesse, de na­
tureza coletiva, distinto dos planos individual e social previstos no art.
1 1 5 da LSA. A questão é a de como verificar a ocorrência de votos irre­
gulares quando o confronto se der dentro de grupos de sociedade.
A primeira colocação a ser feita diz respeito às razões da hierarquia
de interesses. Na estrutura dos planos do art. 115, há um claro privilégio
ao plano social. Privilegia-se o interesse da sociedade porque, apesar ter
sido constituída com fins capitalistas, a empresa não deve servir como
meio à espoliação dos sócios entre si. Assim, dá-se preferência ao plano
coletivo da empresa, mesmo que em detrimento do interesse isolado de
uma ou mais partes. No grupo de sociedades - que, como vimos, nada
mais é do que uma sociedade de sociedades ou uma sociedade de segun­
do grau -, vale o mesmo. O grupo surge e é criado para a consecução de
objetivos coletivos (empreendimentos comuns), reconhecidos como re­
levantes por todos as sociedades integrantes. Tal interesse apresenta um
elevado nível de coletivização por ser o resultado vetorial do interesse
das diversas sociedades e, indiretamente, dos sócios que compõem os
seus respectivos quadros sociais. Portanto, o sentido da LSA é inicial­
mente o de privilegiar o plano de interesses do grupo e, assim, autorizar,
em determinadas hipóteses, que o interesse social protegido pelo art.
1 1 5 se torne excepcionalmente vulnerável.
Mas o fato é que a LSA tem uma abordagem contratual do grupo de
sociedades (IRUJO, RDM 71, p. 27), que, na designação legal, só existe de
maneira completa após o arquivamento da convenção de grupo. Nos gru-
Luiz ERN ESTO AcETURI DE ÜLIVEIRA & MARCELO GUEDES NUNES - 229

pos de fato, sejam de coordenação ou subordinação, apesar de haver uma


direção central voltada para empreendimentos comuns, a LSA não reveste
esse objetivo coletivo da juridicidade necessária para a criação formal de
um novo plano de interesse de grupo, que possa, em termos jurídicos, se
sobrepor aos interesses sociais. Na LSA, o regime societário de um grupo
de direito por subordinação (capítulo XXI) é claramente separado do regi­
me do grupo de fato, regulado de maneira genérica no capítulo XX. O
divisor de águas é a aprovação em assembléia e arquivamento da conven­
ção, documento que define o empreendimento comum e as novas regras
de gestão coletiva. Não por outra razão, a LSA dá direito de recesso aos
acionistas dissidentes da aprovação da convenção, nos termos dos arts. 137
e 270 da LSA, exatamente por reconhecer a gravidade dessa passagem do
regime da sociedade isolada para o grupo de sociedades de direito por
subordinação. Os que não concordam com a participação podem se retirar,
com reembolso de ações. Os que permanecem estão tacitamente anuindo
com as novas regras, nos termos da convenção assinada.
O mesmo direito de recesso não é outorgado aos acionistas de soci­
edades integrantes de grupo de fato (sem convenção de grupo arquiva­
da), porque a LSA não reconhece ali a criação de um verdadeiro plano
de interesse de grupo, capaz de se sobrepor aos interesses sociais preexis­
tentes. Nos grupos de fato, portanto, as regras do art. 1 1 5 da LSA per­
manecem plenamente válidas, com o interesse social ainda no topo da
cadeia hierárquica de interesses a serem protegidos.
Resta ainda a questão da relação entre as modalidades de voto irre­
gular (voto abusivo, voto proibido, voto em conflito e voto em benefício
particular) e os diferentes tipos de grupos de direito (por coordenação e
por subordinação) .
Começaremos pelos os grupos d e direito por coordenação, ou con­
sórcios, na acepção do capítulo XXII da LSA. O consórcio nasce com o
contrato previsto no art. 278 da LSA. O contrato de consórcio desempe­
nha papel análogo à convenção de grupo, definindo, dentre outros ele­
mentos previstos no art. 279 da LSA, o empreendimento comum e a
forma de organização do grupo. A diferença é que o consórcio não está
230 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

baseado em relações societárias de controle, mas em uma direção central


que coordena os interesses e as contribuições das sociedades participan­
tes, para o cumprimento dos objetivos comuns. Exatamente por ser de
coordenação, esse empreendimento comum, mesmo de interesse do gru­
po, não subordina os interesses das sociedades, que permanecem autô­
nomos e hierarquicamente equivalentes ao interesse do grupo. A idéia
do consórcio não é subjugar as sociedades, mas integrá-las de maneira
harmônica em torno de um empreendimento que seja do interesse de
todas. A participação em consórcios não implica em uma alteração indi­
reta do objeto social e, não à toa, não é aprovada em assembléia geral
nem é hipótese de recesso para acionistas minoritários.
Visto por esse lado, o consórcio, apesar de criar um interesse de
grupo, não torna esse interesse superior aos interesses sociais de cada
empresa. Portanto, os consórcios também estão submetidos integralmente
aos dispositivos do art. 1 15, sendo vedados aos eventuais acionistas o
proferimento de votos em detrimento do interesse social das companhi­
as, em todas as suas quatro modalidades.
Finalmente, o grupo de direito por subordinação do capítulo XXI
da LSA. Aqui temos o interesse do grupo devidamente formalizado atra­
vés da convenção, que o coloca em um plano superior ao dos demais
interesses das sociedades filiadas. Como dito, o interesse do grupo de
subordinação é hierarquicamente superior ao interesse social das filia­
das. No entanto, essa superioridade não é absoluta e não abrange todas
as modalidades de exercício irregular de voto do art. 115 da LSA.
No que diz respeito à proibição de voto e ao voto em benefício
próprio, ambas permanecem válidas para sociedades filiadas a grupos de
direito por subordinação. A proibição de voto se baseia em uma presun­
ção absoluta, que veda o exercício do voto independentemente da prova
de dano ou dolo para a sociedade. Tal presunção se estende ao grupo,
prevalecendo a proibição de voto em sociedades filiadas nas duas moda­
lidades previstas no art. 1 15. Evidentemente, o fato da sociedade filiada
estar incluída em grupo de subordinação não é alforria para que os acio­
nistas passem a aprovar as próprias contas ou avaliar os bens por eles
Luiz ERNESTO AcETURI DE OLIVEIRA & MARCELO GUEDES NUNES - 231

conferidos ao capital, práticas igualmente lesivas à sociedade filiada e ao


grupo. Assim, a proibição de voto do art. 1 15 da LSA continua válida
dentro dos grupos de sociedades por subordinação do capítulo XXI .
Já o voto em benefício particular depende do reconhecimento de
uma vantagem exclusiva do acionista, esta definida como uma vantagem
não extensível aos seus pares. O interesse particular do acionista, por
definição, não é coincidente com o interesse do grupo, uma vez que aquele
pressupõe a geração de proveitos que não se estendam para o grupo como
um todo, mas apenas para um só acionista isolado. Dessa forma, sempre
que o controlador votar em benefício exclusivamente particular e em
prejuízo de uma ou mais filiadas, ele não estará, por imposição lógica,
realizando o interesse do grupo, obrigação por ele próprio assumida na
convenção. O voto será, portanto, também irregular.
As questões mais complexas surgem quando passamos a tratar do
abuso de voto e do conflito de interesses.
O abuso de voto é determinado pela intenção do acionista em criar
prejuízo à companhia e pelo dano daí resultante. Já o conflito depende
de uma contraposição de um interesse extra-social ao interesse da socie­
dade, com a produção de um prejuízo concreto para a última. Em um
grupo de sociedades por subordinação, em que cada empresa perde sua
autonomia em função do todo, está predeterminado que sacrifícios pon­
tuais devem ser suportados pelas controladas em prol de um interesse
extra-social (o grupo), com cada empresa perdendo a sua autonomia eco­
nômica para funcionar como uma parte, um órgão de uma estrutura maior.
Partes só encontram o significado de sua existência no todo e, em uma
situação extrema, devem até mesmo se sacrificar caso a sobrevivência do
conjunto esteja ameaçada. Como num organismo, o cérebro comanda as
demais partes e é ele quem pode autorizar a amputação de uma perna
gangrenada, cuj a existência põe em risco o conjunto todo. Caso a perna
fosse dotada de vontade própria, apta a rechaçar a amputação, o organis­
mo inteiro, incluindo a perna rebelde, acabaria por ficar comprometido.
Por tal razão, o próprio conceito de organismo, que só existe nessa inter­
dependência hierárquica de órgãos, repudia a idéia de autonomia das
232 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

partes, da mesma forma que o conceito de grupo sociedades de direito


por subordinação rejeita a possibilidade de insurgência das controladas
contra as decisões da controladora.
Vemos daí que os conceitos de voto abusivo e de conflito de interes­
ses não se aplicam aos grupos de sociedades de direito por subordinação.
O abuso de voto é relativizado pela própria idéia de subordinação a
um empreendimento comum, cujo cumprimento se impõe como meta
maior. Se há um interesse de grupo ao qual o interesse social está subor­
dinado, então a LSA claramente autoriza o sacrifício do primeiro em
favor do segundo. O prejuízo pontual de uma sociedade filiada a um
grupo do capítulo XXI da LSA, mesmo que deliberadamente causado
pelo controlador, não será motivo de anulação do voto proferido no inte­
resse desse ente coletivo. No grupo de direito por subordinação, a con­
troladora tem, por definição, permissão para deliberadamente causar
prejuízo às filiadas, com fins de cumprir os compromissos assumidos na
convenção.
No que diz respeito ao voto em conflito, este depende de um ato
ilícito da controladora e da existência de um interesse extra-social con­
flitante com o interesse da companhia. No que diz respeito ao ato ilícito,
aplicam-se ao conflito os mesmos comentários sobre o voto abusivo do
parágrafo anterior. Também aqui a controladora está autorizada a votar
contrariamente aos interesses pontuais das filiadas, dentro dos limites
da convenção e no interesse do grupo.
Mas além disso, este interesse de grupo caracteriza evidente ele­
mento extra-social, fixado não nos estatutos das filiadas, mas em uma
convenção contratada externamente. Se o conceito de conflito de inte­
resses fosse aplicado indiscriminadamente aos grupos de direito por su­
bordinação, todos os votos proferidos pela controladora (signatária da
convenção) estariam privilegiando um interesse extra-social, potencial­
mente danosos ao interesse social de cada controlada. No entanto, a exis­
tência de um interesse de grupo extra-social é prevista no art. 269 e 273
da LSA, que inclusive obriga controladora e administradores persegui­
los nos limites da convenção. Assim, a LSA exige, no caso de grupos de
Lurz ERNESTO ACETURI DE OLIVEIRA & MARCELO GUEDES NUNES - 233

direito por subordinação, a proteção do interesse do grupo, mesmo que


em detrimento do interesse social das filiadas, criando uma nova relação
hierárquica que, de certa forma, subverte tradicional pirâmide de inte­
resses do art. 1 15.
Ressalte-se que essa permissão extraordinária de votar consciente­
mente em prejuízo das controladas encontra limites na convenção de
grupo, em que o controle exercido e os recursos combinados devem ser
dirigidos para objetivos, atividades e empreendimentos comuns (art. 265
da LSA). Dentro do grupo de sociedades, o voto deve sempre ser avali­
ado tendo em vista os interesses deste terceiro plano coletivo, e não mais
do plano social intermediário de cada sociedade controlada. Sempre que
a controladora votar no interesse do grupo o seu voto será válido, inde­
pendentemente de prejuízos pontuais que possam ter sido causados, até
mesmo deliberadamente, a um acionista ou sociedade controlada. Den­
tro do grupo, é o interesse coletivo que dará a medida e a referência para
o correto exercício do direito de votar.
No entanto, o exercício do sufrágio fora desses limites e propósitos
caracteriza violação à convenção de grupo, com a responsabilização daí
decorrente. O art. 276 da LSA regula essas hipóteses específicas, estabele­
cendo que: "a combinação de recursos e esforços, a subordinação dos inte­
resses de uma sociedade aos de outra, ou do grupo, e a participação em
custos, receitas ou resultados de atividades ou empreendimentos, somente
poderão ser opostos aos sócios minoritários das sociedades filiadas nos
termos da convenção de grupo."
É o art. 276 que dá a fundamentação legal para a responsabilização
dos controladores e administradores de grupo que agirem fora dos limi­
tes da convenção, em prejuízo das filiadas. A legitimidade para a ação de
responsabilização é a do acionista minoritário de filiada. O acionista
minoritário de filiada não é o acionista minoritário tradicional. O artigo
define no seu § 1 º o sócio minoritário como todos os sócios das filiadas,
com exceção da sociedade de comando e das demais filiadas. O conceito
afasta a sociedade de comando por razões óbvias, mas também retira a
legitimidade das demais sociedades filiadas, que podem, eventualmente,
234 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

participar minoritariamente do capital umas das outras. A. exclusão das


sociedades filiadas visa essencialmente evitar que as controladas pleitei­
em indenizações umas em nome das outras, se utilizando da legitimação
extraordinária estabelecida pelo artigo da LSA.
O § 3º dá aos acionistas minoritários direito de ação de reparação
de danos contra administradores e controladora, que praticarem atos fora
dos limites da convenção, observado o art. 246 da LSA. Combinado
com o art. 276, o art. 246, que dispõe originariamente sobre a reparação
por abuso de poder de controle de sociedade, trata das hipóteses de abu­
so de poder de controle de grupo, distintas, evidentemente, das hipóte­
ses dos arts. 1 1 6 e 177 da LSA. Da mesma forma que no abuso de poder
de controle de sociedade, há legitimação extraordinária no abuso de po­
der de controle de grupo, em que os acionistas minoritários das filiadas
podem pleitear reparação civil em nome de sua sociedade, frente aos
controladores e administradores do grupo de direito. A legitimação é
dos acionistas minoritários detentores de mais de 5% do capital da filia­
da, sem caução, ou dos acionistas da filiada detentores de percentuais
inferiores, desde que prestem de caução pelas custas e honorários su­
cumbenciais. Tais honorários sucumbenciais estão fixados, apenas para a
controladora, em 20%, além de prêmio de 5% do valor da indenização,
devidos também pela controladora do grupo aos autores da ação, em
caso de condenação da controladora.
Dessa forma, excluindo-se os casos de proibição de voto e de voto
em benefício particular, é nas hipóteses de abuso de poder de controle de
grupo, dos arts. 246 e 276 da LSA, que os acionistas minoritários das
filiadas encontrarão os fundamentos legais para coibir as práticas abusi­
vas da sociedade de comando e de seus administradores, já que a criação
do grupo de direito por subordinação afasta, em princípio, as regras tra­
dicionais de voto irregular do art. 1 1 5 e de abuso de poder de controle de
sociedade do art. 1 17.
Luiz ERNESTO ACETURI DE ÜLIVEIRA & MARCELO GUEDES NUNES - 235

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1 ncorporação de
Controladora: Motivação
e Oportunidades. O Ágio
como Exemplo

Rodrigo R. Monteiro de Castro

Advogado em São Paulo


MBA executivo em administração de empresas pelo IBMEC
Especialista em direito empresarialpela PUCISP
Mestrando em direito comercial na PUC/SP
Diretor Presidente do IDSA
238 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

INTRODUÇÃO
Muitos são os motivos que levam uma ou algumas sociedades a se
reorganizarem, sendo uns estruturais e outros conjunturais. Os primei­
ros, via de regra, têm origem na empresa1 , ou nas empresas, ou ainda na
forma como elas são concebidas. Por exemplo: uma sociedade constitui­
se com objetivo de desenvolver uma determinada empresa para atuar
em um certo mercado, e outra, detida direta ou indiretamente pelos
mesmos acionistas, ou por um ou alguns deles, para atuar em mercado
análogo ou paralelo. Neste caso, a estrutura societária pode revelar-se
inadequada, na medida em que ambas _as sociedades incorrem, certa­
mente, nas mesmas despesas, tais quais de aluguel de sedes, do chamado
back office, assim entendido os serviços de apoio, como controladoria,
assistência jurídica in house, departamento financeiro e de recursos hu­
manos, etc.
Outra situação, também estrutural, mas até certo ponto imprevisí­
vel, surge com a aquisição, por sociedade, de outra sociedade ou de par­
ticipação acionária, gerando a possibilidade de ganhos, os mesmos
apontados no parágrafo anterior.
Mas, como dito acima, nem sempre são estruturais os motivos que
estimulam a reorganização de sociedades. Em muitos casos, aliás, a es­
trutura projetada revela-se absolutamente apropriada, no seu nascedou­
ro, em virtude da legislação vigente, bem como das políticas fiscal e
monetária praticadas. Porém, com o passar do tempo (e a substituição
de um plano econômico por outro, de um choque após o outro, etc) a
empresa torna-se inviável economicamente, se avaliada isoladamente.
E é neste contexto, conjuntural, que a reorganização ocorre. Aliás, não
apenas no âmbito da empresa, mas também da sociedade.

Empresa, como muito bem explorado pela doutrina, não é sinônimo de sociedade. Nos
dizeres do Prof. Fábio Ulhoa Coelho, "é a atividade econômica organizada para a produ­
ção ou ci rculação de bens ou serviços. Sendo uma atividade, a empresa não tem a natu re­
za jurídica de sujeito de di reito nem de coisa. Em outros termos, não se confunde com o
empresário (sujeito) nem com o estabelecimento empresarial (coisa)" (Cu rso de di reito co­
mercial, vol. 1 6' ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 1 9). É este, obviamente, o sentido que
-

se dará à empresa ao longo da exposição.


RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO 239 -

Evidentemente que não se modifica para pior2 . Contudo, nem


sempre a decisão é assim tão evidente, cabendo ao administrador anali­
sar as informações de que dispõe, considerar o risco inerente a toda
operação empresarial e decidir. E a decisão pode se dar de três formas
distintas, afetando (i) a empresa, exclusivamente; (ii) a sociedade, sem
reflexos na empresa; ou (iii) ambas.
Afeta-se a empresa quando ocorre, por exemplo, a alienação de
estabelecimento3 , caso em que não se modifica a composição acio­
nária das sociedades contratantes, nem se verifica a extinção de uma
delas; na segunda situação, inversamente, a empresa resta intacta,
mas as pessoas jurídicas sofrem os efeitos da operação. Assim é, exem­
plificando, na incorporação de uma sociedade não-operacional por
outra, operacional. A primeira, ao se incorporar, extingue-se, ao passo
que na incorporadora, como conseqüência, verifica-se um aumento
de capital, decorrente da versão do patrimônio líquido da sociedade
incorporada.
Por fim, pode a reorganização atingir ambas, tanto a sociedade
como a empresa. Aqui, além de a operação societária resultar na ex­
tinção ou na repartição (cisão) de uma das pessoas jurídicas, as empre­
sas por elas desenvolvidas são de tal ponto afetadas que é possível
estabelecer duas fases distintas, uma ante e outra pós-reorganização.
Por isso que produtos desaparecem, mas outros são criados; marcas
são revitalizadas ou mesmo modificadas; fábricas fechadas; etc.
No segundo e no terceiro casos, e quando a operação for de incor­
poração, podem os fatores envolvidos levarem à realização do que se

2 Errar faz parte da atividade empresarial. Quando isso acontece, geralmente é devido à
formulação de premissas errôneas, ou do surgimento de fatores, internos ou externos, não
considerados no plano de negócios. Mas não se admite, em princípio, que os administrado­
res adotem uma decisão com base em informações que indiquem, com grande margem de
acerto, o insucesso empresarial. Inclusive porque eles, administradores, respondem civil­
mente pelos prejuízos que causarem a terceiros quando agirem, dentro de suas atribuições,
com culpa ou dolo.
3 O Art. 1 . 1 42 do Código Civil define estabelecimento como todo complexo de bens organi­
zado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária. A sua
alienação é tratada nos arts. 1 . 1 44 e seguintes.
240 - REORGANIZAÇÃO 50CIETÃRIA

costuma chamar de operação "às avessas". Ou seja, ao invés de a contro­


ladora incorporar a controlada, ocorre o inverso.
E é justamente éste o propósito deste breve estudo: avaliar essa mo­
dalidade, sob os ângulos jurídico e econômico, seus efeitos e, principal­
mente, seus benefícios. Como se verá adiante, será dada especial atenção a
este último aspecto - os benefícios -, pegando-se como exemplo a amor­
tização do ágio registrado na incorporada. Buscar-se-á, ainda, demons­
trar a legitimidade de tais operações, enfatizando-se, porém, a necessidade
de se revestirem de um conteúdo mínimo (mas indispensável) para a rea­
lização de qualquer reorganização necessária: a motivação empresarial.
Para tanto, mostra-se fundamental discorrer, mesmo que brevemente, a
respeito da Constituição Federal e das principais leis aplicáveis às opera­
ções societárias, e, em seguida, conceituar alguns institutos. É o que se
fará nos itens seguintes.
Por fim, referir-se-á genericamente à sociedade anônima e aos acio­
nistas, e apenas eventualmente à sociedade limitada e aos sócios, quan­
do a especificidade exigir distinção. De modo que, em regra, o que se
dirá adiante terá aplicação, mutatis mutandis, aos dois tipos societários.

1. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E AS PRINCIPAIS LEIS


INFRACONSTITUCIONAIS APLICÁVEIS ÀS OPERAÇÕES
SOCIETÁRIAS
Ensina Kelsen que "( ... ) Como a estrutura da ordem jurídica é uma
construção escalonada de normas supra - e infra-ordenadas umas às
outras, em que uma norma do escalão superior determina a criação da
norma do escalão inferior, o problema do conflito de normas dentro de
uma ordem jurídica põe-se de forma diferente conforme se trata de um
conflito entre normas do mesmo escalão e de um conflito entre uma
norma de escalão superior e uma norma de escalão inferior. ( ... ) "4

4 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito - 6' ed. Coimbra: Arménio Amado, 1 984, p. 286
RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO - 241

Essa passagem foi cuidadosamente escolhida porque, no que con­


cerne às operações societárias, nota-se a constante tentativa do Estado
de desconsiderá-las, sobretudo quando se verifica, ao final, redução da
carga tributária a que se submetiam as sociedades. Ocorre que, via de
regra, tais tentativas ignoram por completo não apenas a lição do citado
autor como, principalmente, a Lei Maior. A famigerada Medida Provi­
sória nº 66, de 29 de agosto de 2002, é um exemplo. Com efeito, dispu­
nha o art. 13, inserido no título "Procedimentos Relativos à Norma Geral
Anti-Elisão", que "os atos ou negócios jurídicos praticados com a fina­
lidade de dissimular a ocorrência de fato gerador de tributo ou a nature­
za d o s elementos constitutivos d e obrigação tributária serão
desconsiderados para fins tributários, pela autoridade administrativa
competente, observados os procedimentos estabelecidos nos arts. 14 a
19 subseqüentes." Não estava o texto referindo-se a "atos e negócios
jurídicos" em que se verificasse a ocorrência de dolo, fraude ou simula­
ção, mas simplesmente àquelas situações em que o contribuinte busca­
va, consoante o ordenamento jurídico, uma estrutura menos onerosa.
O artigo seguinte, não menos escandaloso, confirmava a assertiva,
tanto que determinava que seriam passíveis de desconsideração os atos
ou negócios jurídicos que visassem a reduzir o valor de tributo, a evitar
ou a postergar o seu pagamento ou ainda a ocultar os verdadeiros aspec­
tos do fato gerador ou a real natureza dos elementos constitutivos da
obrigação tributária. O problema, aí, consistia na identificação do que
seriam os "verdadeiros aspectos do fato gerador" ou ainda a "real nature­
za dos elementos constitutivos da obrigação tributária", o que permiti­
ria à autoridade administrativa tributar, a seu critério, o que bem
entendesse.
Os tais "procedimentos" foram, à época, bombardeados pela mais
respeitada doutrina, e talvez por isso tenham sido excluídos do texto
convertido em lei. Felizmente; pois, se houvessem prevalecido, estar­
se-ia cometendo verdadeiro atentado à Constituição da República, por­
tanto a uma "norma de escalão superior", visto o inadmissível
atropelamento, por lei ordinária, do princípio estampado no art. 150.
242 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÃRIA

Além deste princípio, a Constituição Federal estabelece, no Título


VII, denominado "Da Ordem Econômica e Financeira", os fundamen­
tos da ordem econômica. É no caput do art. 1 70 que eles se revelam, a
saber: a valorização do trabalho humano, a livre iniciativa, a existência
digna e, por fim, a justiça social.
A livre iniciativa - único a ser abordado neste trabalho - é a garan­
tia do empreendedor de que a atuação estatal não se imiscuirá em as­
suntos de sua exclusiva alçada, ou seja, como, quando e onde empreender.
A propósito, as palavras de Celso Ribeiro Bastos:
"( . . . )De fato o homem não pode realizar-se plenamente en­
quanto não lhe for dado o direito de projetar-se através de
uma realização transpessoal. Vale dizer, por meio da organi­
zação de outros homens com vistas à realização de um obje­
tivo. Aqui a liberdade de iniciativa tem uma conotação eco­
nômica. Equivale ao direito que todos têm de lançarem-se ao
mercado da produção de bens e serviços por sua conta e risco.
( . . . ) "5

Ora, se por sua conta e risco lançam-se os empresários em empre­


sas mais ou menos arriscadas, quando, como e onde desejarem; se do
bom andamento do conjunto de empresas situadas em um determinado
Estado depende a economia do próprio Estado, porque daí sairão os
recursos (tributos) para manutenção de sua estrutura, empregos, novas
tecnologias, etc, imprescindível que ao empreendedor - que também
pode ser identificado como contribuinte - ofereça-se segurança jurídi­
ca. A propósito, a lição de Paulo de Barros Carvalho:
"Não há por que confundir a certeza do direito naquela acepção
de índole sintática, com o cânone da segurançajurídica. Aquele
é atributo essencial, sem o que não se produz enunciado
normativo com sentido deôntico; este último é decorrência de
fatores sistêmicos que utilizam o primeiro de modo racional e
objetivo, mas dirigido à implantação de um valor específico,

5 BASTOS. Celso Ribeiro e MARTINS, lves Gandra - Comentários à Constituição do Brasil, 7º


vol. - São Paulo: Saraiva, 1 988, p. 1 6
RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO - 243

qual seja o de coordenar o fluxo das interações inter-humanas,


no sentido de propagar no seio da comunidade social o sentido
de previsibilidade quanto aos efeitos jurídicos da regulação da
conduta. Tal sentimento tranqüiliza os cidadãos, abrindo es­
paço para o planejamento de ações futuras, cuja disciplina ju­
rídica conhecem, confiantes que estão no modo pelo qual a
aplicação das normas do direito se realiza. ( ... )"6
O nosso raciocínio se completa com a lição de outro importante
doutrinador, Eros Roberto Grau, que assim se manifestou:
"De resto, quanto ao preceito inscrito no parágrafo único do
art. 1 70, que se tem enfatizado, na afirmação de que reitera­
ria, consolidando, o caráter liberal da ordem econômica na
Constituição de 1988, tem relevância normativa menor. Pois
é certo que postulação primária da liberdade de iniciativa eco­
nômica, como acima anotei, é a garantia da legalidade: liber­
dade de iniciativa econômica é liberdade pública precisamente
ao expressar não sujeição a qualquer restrição estatal senão em
virtude de lei. ( . . . ) "7
De modo que a lei infraconstitucional, inclusive e principalmente
a fiscal, padecerá de mau incurável, se não se harmonizar com a Lei
Maior: a Constituição Federal.8
Mas pode ocorrer ainda que duas leis, de mesma hierarquia, se
apresentem conflituosas. Afirma Kelsen, então: "(. . . ) Qyando nem uma
nem outra interpretação sejam possíveis, o legislador prescreve algo
sem sentido e, portanto, algo que não é sequer um acto cujo sentido
subjectivo possa ser interpretado como seu sentido objectivo. Logo,

6 CARVALHO, Paulo de Barros - Curso de direito tributário - 1 1 ' ed. rev. - São Paulo: Sarai·
va, 1 999, p. 1 08
7 GRAU, Eros Roberto - A Ordem Econômica na Constituição de 1 988 - 8' ed. rev. at. - São
Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 1 85
8 É de Kelsen a lição definitiva acerca do tema: "Entre uma norma de escalão superior e uma
norma de escalão inferior, quer dizer, entre uma norma que determina a criação de uma
outra e essa outra, não pode existir qualquer conflito, pois a norma do escalão inferior tem
o seu fundamento de validade na norma do escalão superior. Se uma norma do escalão
inferior é considerada como válida, tem de se considerar como estando de harmonia com
uma norma do escalão superior." Ob. cit. p. 289
244 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

não existe qualquer norma jurídica objectivamente válida. Isto, embora o


acto tenha sido posto de harmonia com a norma fundamental. (...) "9
A análise desavisada de duas leis fundamentais10 para este estudo
talvez pudesse levar a esta conclusão. São elas a Lei 6.404/76 (identifica­
da adiante desta forma ou ainda como "lei do anonimato" ou "lei acioná­
ria") e a Lei 8.884/94 (também identificada como "lei antitrusl').
No art. 2° da primeira, tem-se que pode ser objeto da companhia
qualquer empresa de fim lucrativo, não contrário à lei, à ordem pública
e aos bons costumes. No art. 20, III da segunda, tipifica-se como infra­
ção da ordem econômica os atos que tenham por objeto ou possam re­
sultar em aumento arbitrário de lucros.
Evidentemente que ambos não são contraditórios, mas sim com­
plementares. O segundo serve de parâmetro para o primeiro. Assim, o
lucro é corolário da companhia; sua produção, decorrente de competên­
cia especifica, é ilimitada, não podendo o Estado impor limites. Toda­
via, o aumento arbitrário dos lucros, nos termos da lei antitrust, este
sim, deve ser repreendido.

li. CONCEITUAÇÃO DE CONTROLADOR, CONTROLADA E


COLIGADA11
Assim como previsto na introdução, passa-se agora a conceituar al­
guns institutos, sem os quais não seria possível tratar, com a devida clare­
za, da incorporação propriamente dita e de sua inserção no sistema jurídico.

9 Idem, p. 287
10 É evidente que não se pode desprezar o Código Civil, principalmente quando a operação
envolver sociedade l imitada. Mas pelos motivos expostos na i ntrodução, e considerando
que a conclusão, no caso, será a mesma tanto para este tipo (vide arts. 966 e 982) como
para a anônima, não se faz aqui qualquer distinção.
11 O Código Civil, ao invés de se reportar à lei do anoni mato, ou então de copiá-la, silenciou­
se sobre controlador - o que por si só não é um problema -, mas tratou a coligada e a
controlada sob um mesmo prisma. Essa afirmação é confirmada pelo art. 1 .097, que diz
que se consideram coligadas as sociedades que, em suas relações de capital, são controla­
das, fi liadas, ou de simples participação. Em outras palavras, coligação passaria a ser gêne­
ro, do qual controle, filiação ou participação, espécies. E ainda, de acordo com o art.
1 .099, filiada seria sinônimo de coligada, o que sugere a existência de coligada gênero e
coligada espécie.
RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO - 245

l l.1. CONTROLADOR
Consagra a Lei 6. 404/76 uma seção ao acionista controlador, que,
de acordo com o art. 1 1 6, é a pessoa, natural ou jurídica, ou ainda o
grupo de pessoas, naturais ou jurídicas, vinculadas por acordo de voto,
ou sob controle comum, que detêm, de modo permanente, a maioria
dos votos nas deliberações assembleares e que elegem a maioria dos
administradores da companhia. E ainda: que usam seu poder, de con­
trole, na condução da empresa e no funcionamento dos órgãos de ad­
ministração. Portanto, controlador é quem exerce, efetivamente, o
poder.
Apesar de a lei não fazer referência a percentual do capital, como
forma de apuração do controle, é evidente que, quando um acionista
dispuser, isoladamente, ou em conjunto com outros acionistas, de uma
quantidade (x) de ações, nunca inferior a 50% mais uma das ações
com direito de voto, será necessariamente controlador (isso, obvia­
mente, se não se tratar de acionista omisso, e ainda se o estatuto não
prever quorum de aprovação superior a 50% mais uma ação).
Qyando houver reunião de ações, o poder será exercido, como in­
dica o citado art. 1 16, mediante acordo de voto. Não obstante a provável
existência de regras norteadoras do exercício de voto, fato é que, perante
a companhia, a deliberação provocada por esses acionistas, reunidos em
bloco, é una, indivisível e obrigatória - partindo do princípio de que não
ofende a lei ou o estatuto.
Se o controlador for pessoa jurídica, caberá a seus diretores presenta­
rem-na. De se destacar, todavia, que, ao votarem em assembléia da con-

Em Portugal, o Código das Sociedades Comerciais ("CSC'') dá às sociedades coligadas tra­


tamento similar ao que pretende o legislador brasileiro de 2002. Vej a-se, a propósito, a
redação do Art. 482 do citado dip loma: "Art. 482º - Para os efeitos desta lei, consideram-se
sociedades coligadas: (a) As sociedades em relação de simples participação; (b) As socie­
dades em relação de partici pações recíprocas; (e) As sociedades em relação de domínio;
(d) As sociedades em relação de grupo."
A Lei 6.404/76, porém, ao tratar do tema, apesar de fazê-lo (corretamente) em um mesmo
Capítulo (Capítulo XX), não dá à col igação a extensão pretendida pelo Código Civil, tratando
a coligação e o controle como institutos complementares, o que nos parece mais adequado.
246 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

trolada, não poderão eleger, para cargo de administração, pessoa jurídica,


porque inviável tal possibilidade na legislação brasileira12 •

l l .11. CONTROLADA

Diante de tudo o que ficou registrado, revela-se de simplicidade


ímpar a conceituação de controlada, visto ser a contrapartida da de con­
trolador. Tanto é que o art. 243, §2° da lei acionária considera "contro­
lada a sociedade na qual a controladora, diretamente ou através de outras
controladas, é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo
permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de ele­
ger a maioria dos administradores."
De inovador, apenas a possibilidade de exercício do controle "atra­
vés de outras controladas", que vem a ser o chamado controle indireto.
Neste caso, situa-se entre controlador e controlada, esta, via de regra,
sociedade operacional, onde se concentram os investimentos, uma ou
mais sociedades, operacionais ou holdings.

l l .111. COLIGADA

"São coligadas as sociedades quando uma participa, com 10% ou mais,


do capital da outra, sem controlá-la." Da redação do § 1° do citado art. 243

12 Outras admitem a designação de pessoa ju rídica para cargos de administração de socieda­


de anônima. A portuguesa, por exemplo, para o conselho de administração, como se
depreende do art. 3 90º, 4 do CSC: "Se uma pessoa colectiva fo r designada administrador,
deve nomear uma pessoa singular para exercer o cargo em nome próprio; a pessoa colectiva
responde solidariamente com a pessoa designada pelos actos desta."
No mesmo sentido a lei francesa, administrada tanto por (i) conselho de admin istração
como por (ii) directoire et cansei/ de surveillance, consoante os Arts. L. 225-20 e L.225-76
do Code de commerce, respectivamente. A propósito, determina aquele o seguinte: "L.
225-20. - Une personne mora/e peut être nommée admínistrateur. Lors de sa nomination,
el/e est tenue de désigner un représentant permanent qui est soumis aux mêmes conditions
et obligations et qui encourt les mêmes responsabilités civile et pénale que s'i/ était
administrateuren son nom propre, sans préjudice de la responsabilité so/idaire de la personne
inorale qu'i/ représente. Lorsque la personne mora/e révoque son représentant, elle est
tenue de pourvoir en même temps à son remplacement. " De se destacar, porém, que a
presidência do órgão não é acessível a pessoas morais. Já em relação à Sociedade constitu­
ída de directoire et du cansei/ de surveillance, destaca-se que os cargos de "diretoria", e
apenas os de diretoria, são privativos de pessoa naturais.
E por fim a lei tunisiana, que fortemente influenciada pela francesa, repetiu, em seu diplo­
ma de sociedades, o Code des Sociétés Commerciales, a dupla possibilidade de organiza­
ção administrativa, e adotou a mesma solução: pessoas morais podem aceder apenas aos
conselhos de administração e de surveillance.
RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO 247 -

extrai-se, como elementos fundamentais para caracterização da coligação, a


participação mínima em outra sociedade e a inexistência de controle.
A conjunção de ambos é essencial, sob pena de afastamento do
conceito. Em outras palavras, não há que falar em coligação quando se
revela, entre sociedades, relação de controle; também não se caracteriza
o instituto se o vínculo existente for de mera participação, inferior a
10%, por mais influência que uma possa exercer sobre a outra.13
Por último, registra-se que embora a participação inferior ao percen­
tual legal não confira à sociedade a condição de coligada, nada impede que
ela, pela participação em acordo de voto, seja considerada controladora.

I l i . ÜPERAÇÃO DE INCORPORAÇÃO
Já tivemos a oportunidade de tratar deste tipo de operação societá­
ria em trabalho anterior. Dissemos, após análise do Art. 227 da Lei
6.404176, que era importante enfatizar que na incorporação a sociedade
incorporada desaparecia, e a sociedade incorporadora absorvia todos os
direitos e obrigações daquela, observando-se, ao final, um acréscimo
patrimonial na incorporadora, na exata proporção do patrimônio líqui­
do da incorporada. E ainda que o aumento de capital que se verificava
na sociedade incorporadora "era subscrito e realizado pelos sócios ou
acionistas da sociedade incorporada, e não por ela mesma".
Ou, nas palavras do Prof. Alberto Xavier: "A incorporação de uma
sociedade em outra traduz-se juridicamente na subscrição, em bens, do
capital da segunda (incorporadora) pelos sócios da primeira (incorpora­
da), os quais, em contrapartida da versão do patrimônio líquido, recebe­
rão ações ou quotas da sociedade incorporadora."14

13 A Comissão de Valores Mobil iários - CVM, no entanto, ao tratar do tema, na I nstrução 247,
de 27 de março de 1 996, alterada pela Instrução 285, de 31 de julho de 1 998, equiparou às
coligadas, para fins deste normativo, as sociedades quando uma participa indiretamente
com 1 Oo/o ou mais do capital votante da outra, sem controlá-la; .e as sociedades quando
uma participa diretamente com 1 0°/o ou mais do capital votante da outra, sem controlá-la,
i ndependentemente do percentual da participação no capital total .
14 XAVIER, Alberto. Incorporação de sociedades e imposto de renda. São Paulo: Ed. resenha
tributária, 1 978, p. 28
248 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

A incorporação, quando se opera entre sociedades em que não se


verifica relação vertical, ou seja, de controle, tem por objetivo, quase que
invariavelmente, a antecipação de uma meta (isso se ela não for a única
forma de atingi-la). Assim, por exemplo, ao invés de se buscar o aumen­
to da participação em um determinado segmento, lenta e gradativa­
mente, mediante a realização de forte campanha de marketing e do
enfrentamento da concorrência, avança-se contra outra sociedade, in­
corporando-a a si.
Em outros casos, a operação de incorporação decorre de decisão
estratégica, visando a corrigir falha estrutural ou conjuntural, assim como
exposto no intróito deste trabalho.
As conseqüências, no entanto, não se mostram irrelevantes à cole­
tividade, tanto que o legislador determina que os "atos, sob qualquer
forma manifestados, que possam limitar ou de qualquer forma prejudi­
car a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevan­
tes de bens ou serviços, deverão ser submetidos à apreciação do CADE"15 ,
que poderá aprová-los, ou não.16
Bem por isso exige-se prévia análise das normas antitrust, antes de
qualquer operação, seja para abortá-la, seja para sustentá-la.

1 1 1 . 1 . MOTIVAÇÕES
O custo de uma empresa pode ser fatal para o seu sucesso. Exceto em
relação àquelas que oferecem bens ou serviços com alto valor agregado, as
demais lutam para mantê-lo aquém de suas receitas. De modo que, quan­
do se revela a possibilidade de reunir, em uma única estrutura, duas ou
mais empresas, não raro o fazem os administradores de sociedades. Isso
porque, além da redução de custos, o provável aumento de escala - e da
própria empresa - torna-a mais competitiva.

15 Redação do a rt. 54 da lei antitrust.


16 Não se pretende, aqui, adentrar à rica di scussão acerca da necessidade de se proteger os
participantes de um determinado mercado contra a voracidade de grandes corporações,
ou, ao contrário, eleger a primazia da eficiência, pela qual o que importa, ao final, é o
beneficio da coletividade, genericamente falando. Importa-nos, isso sim, as motivações
que levam a uma decisão no sentido de promover uma incorporação. Por isso a curtíssima
referência ao tema.
RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO 249 -

Por isso a afirmação de José Alberto Garrone, ao tratar da función


económica de laJusión de sociedades:
L'll respecto, se sefzala que lafusión1 7 de sociedades es un imperativo
de los tiempos modernos, impuesta por la racionalización de la
producción, por el progreso tecnológico y por las exigencias de la
competencia. Estosfactores exigen que cada vez sea mayor el tamafzo
de las empresas e imponen, por tanto, la concentración de las
pequenas, de las medianas e, incluso, de lasgrandes sociedades. (. . .) "18
Apesar de se depararem, posteriormente, com problemas de ou­
tra natureza, notadamente cultural (isto é, cultura empresarial) e de
relacionamento com consumidores19 , a decisão gera, imediatamente,
reduções interessantes. 20 Ou seja, ao invés de dois ou mais departa­
mentos financeiros, por exemplo, elege-se um, geralmente o mais iden­
tificado com o novo perfil da empresa (ou se mesclam ambos,
reduzindo-se substancialmente a quantidade de integrantes).
Ademais, a necessidade de cumprimento de metas também leva
uma sociedade a avançar sobre outra. São fartos, a propósito, os exem­
plos de operações de incorporação envolvendo uma grande sociedade e

17 Na Argentina, a fusão é gênero do qual a fusão propriamente dita e a incorporação são


espécies.
O mesmo se passa em Portugal, onde: "A fusão pode realizar-se: (a) Mediante a transfe­
rência global do património de uma ou mais sociedades para outra e a atribuição aos
sócios daquelas de partes, acções ou quotas desta; (b) Mediante a constituição de uma
nova sociedade, para a qual se transferem globalmente os patrimónios das sociedades
fundidas, sendo aos sócios destas atribuídas partes, acções ou quotas da nova socieda­
de." (CSC, Art. 97°, 4)
18 GARRONE, José. Derecho comercial. lªed. Buenos Aires: Abeledo Perrto, 2003, p . 470
19 A edição de 6 de dezembro d e 2004 da Revista Busíness Week divulga, e m matéria intitulada
Why Consumers Hate Mergers, o resultado de um estudo por ela encomendado, a respeito
do grau de satisfação dos consumidores, após a realização de operações de M&A. Por
exemplo, 50% deles disseram estar, após 2 anos da conclusão da operação, menos satisfei­
tos com os serviços que lhes prestam as sociedades que se submeteram a operações
societárias.
20 É verdade que a redução imediata pode ser corroída por fatores imprevisíveis, ou mesmo
previsíveis, mas cujo grau de importância fora subestimado quando da tomada da decisão.
Casos extremos não deixam outra alternativa senão o desfazimento da operação, sob pena
de desaparecimento da empresa. Referimo-nos, principal mente, a um dos principais - para
muitos o principal - fatores de sucesso de uma incorporação: o humano. Assim, pessoas,
suas expectativas, o trato que lhes deve dar os condutores do processo, etc são fundamen­
tais para uma transição com pouca (ou menos) turbulência.
250 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

outra de porte razoável, não apenas em mercados emergentes, mas tam­


bém naqueles ditos desenvolvidos. Nestes casos, a administração, ao
propor à assembléia geral o investimento, visa a, por exemplo, obter a
fatia que falta à sociedade para atingir o market share que esperam os
acionistas. Ou ainda, somando o faturamento da sociedade a incorporar
ao da incorporadora, alcança-se o patamar determinado, também, pelos
acionistas.
Mas seria ingenuidade admitir que, em ambos os casos acima tra­
tados, a tributação da operação, e principalmente da sociedade (aqui
acrescida do patrimônio líquido da incorporada), não interessa à sua
materialização. Muito pelo contrário: a depender do impacto, será mo­
tivo, inclusive, para sua total e definitiva aniquilação.21

1 1 1 .11. A REDUÇÃO DA CARGA TRIBUTÁRIA COMO (LEGITIMA)


MOTIVAÇÃO EMPRESARIAL DA INCORPORAÇÃO

As condições da incorporação deverão ser explicitadas em proto­


colo22 , firmado pela administração das sociedades. Ademais, exige a lei
societária brasileira a apresentação de justificação, na qual se revelam,

21 Para Waldirio Bulgarelli, "(. . .) nem sempre as empresas se coalizam para obter maiores
recursos, aperfeiçoar seus métodos e técnicas, enfim, obter maior rendimento, mas tam­
bém para supressão da concorrência, ou para limitá-la (o que levou à caracterização do
regime econômico atual capitalista, como concorrência i mperfeita), ou ainda por motivos
fiscais." (destacamos). Manual das sociedades anônimas. S' ed. são Paulo: Atlas, 1 987, p.
234
22 O Código Civil de 2002 não faz referência a protocolo, mas a bases da operação (Art.
1 . 1 1 7). Talvez por isso o enu nciado aprovado na I l i Jornada de Direito Civil (www.cjf.gov.br),
extensível à fusão, cujo teor é o seguinte: /JNas fusões e incorporações entre sociedades
reguladas pelo Código Civil é facultativa a elaboração de protocolo firmado pelos sócios
ou administradores das sociedades; havendo sociedade anônima ou comandita por ações
envolvida na operação, a obrigatoriedade do protocolo e justificação somente a ela se
aplica." Mas ousamos discordar desse entendimento. As "bases da operação" são o con­
teúdo do protocolo, que é forma. Sendo assim, apresenta-se sob a forma de protocolo o que
a lei do anonimato chama de "condições da incorporação" e o Código Civil de "bases da
operação".
Quanto à aplicação unilateral, parece-nos também sem sentido, afi nal "[o] protoco lo in­
clu i-se na qual ificação clássica do pré-contrato, com a característica especial de tratar-se
de uma avença que, ao mesmo tempo, contém elementos de bilateralidade quanto à ativi­
dade-meio e plurali dade quanto à atividade fim. (. .. )" (Carvalhosa, Modesto. Comentários à
lei de sociedades anônimas 42 volume, tomo 1 3' ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 237)
- -

Portanto, jamais de unilateralidade


RODRIGO R. MONTEIRO DE (ASTRO - 25 1

inevitavelmente, os motivos da operação, bem como o interesse da com­


panhia na sua realização. E daí a pergunta: seria a incorporação, motiva­
da pela redução de carga tributária, operação lícita?
Há que se ter prudência ante tal pergunta. Isso porque é considera­
do nulo o negócio jurídico quando o motivo determinante, comum a
ambas as partes, for ilícito. O mesmo destino terá o negócio jurídico se
tiver por objetivo fraudar lei imperativa.
Mas seria a incorporação, que de um ponto de vista jurídico é téc­
nica de reorganização societária23 , explicitamente motivada pela redu­
ção de tributos, nula ou fraudatória de lei imperativa?
Elegemos, intencionalmente, um caso sem qualquer ligação com
operação de incorporação para responder à pergunta.
Dispunha o Decreto-lei nº 406, de 31 de dezembro de 1968, que o
imposto, de competência dos Municípios, sobre serviços de qualquer
natureza, tinha como fato gerador a prestação, por empresa ou profissi­
onal autônomo, com ou sem estabelecimento fixo, de serviço constante
de lista anexa àquele Decreto-lei. E considerava-se local da prestação
dos serviços o do estabelecimento prestador, como regra, e o do domicí­
lio do prestador, excepcionalmente; e no caso da construção civil, o local
onde se efetuasse a prestação.
Recentemente, a Lei Complementar 1 1 6, de 3 1 de julho de 2003,
tratou do local da prestação da seguinte forma: ''Art. 3° - O serviço
considera-se prestado e o imposto devido no local do estabelecimento
prestador ou, na falta do estabelecimento, no local do domicílio do pres­
tador, exceto nas hipóteses previstas nos incisos I a XXII, quando o im­
posto será devido no local:" Ou seja, afora as 22 exceções, em que o
imposto será devido, por exemplo, no local da instalação dos andaimes,
palcos, coberturas e outras estruturas (inciso II) ou no local da demoli­
ção (inciso IV), nos demais aplica-se a regra do caput do citado artigo

23 TEIXEIRA, Egberto Lacerda e GUERR EIRO, josé Alexandre Tavares. Das sociedades anôni­
mas no di reito brasileiro. São Paulo: José Bushatsky, 1 979, pág. 65 1
252 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

3°: local do estabelecimento prestador, como regra, e local do domicilio


do prestador, como exceção.
Para atrair contribuintes, ainda sob o império do Decreto-lei nº
406, inúmeros municípios reduziam drasticamente as alíquotas, geran­
do o que se chamou de "guerra fiscal". Apesar de a Constituição ter sido
emendada24 , e nela definida alíquota mínima de 2%, fato é que não
logrou extinguir a disputa intermunicipal. De modo que o município de
São Paulo, por exemplo, onde se aplica alíquota de 5% para determina­
dos serviços, perde sistematicamente arrecadação para municípios vizi­
nhos que adotam o piso constitucional. A perda se apura pela mudança,
efitiva, do contribuinte para o outro município, onde se situará o estabe­
lecimento prestador. Nestes casos, a motivação empresarial do desloca­
mento da sociedade, e bem assim do estabelecimento, se existente, e
também da empresa, é a redução da carga tributária, que, como conse­
qüência, a tornará mais competitiva25 • Motivo que não se apresenta ilí­
cito e muito menos fraudador de lei imperativa26 ; pelo contrário, revela-se
absolutamente legítimo.

24 A Emenda Constitucional 37, de 1 2 de junho de 2002, modificou o art. 1 56 da Constituição


Federal, e atribui à lei complementar a fixação de a l íquotas mínimas e máximas referentes
à tributação de serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 1 55, li da Carta
Magna. Mas enquanto isso não ocorresse, fixou o piso em 2°/o.
25 Informa POSNER que nos Estados Unidos "Courts attempted to reduce the social costs of
corporate reorganization through thejudge-made doctrine of 'substance over form', whereby
a reorganization or other transaction the sole purpose and effect of which is to beat taxes
will be disregarded for taxes purposes. " Mas conc l u i : "Corporate reorganizations are
exempted from income tax in arder to enable transactions that have potentially beneficial
economic consequences, such as reallocating risk to superior risk bearers, reducing agency
costs, or shifting assets to more valuable uses. (. . . )"(POSNER, Richard A. Economic analysis
of law - 6th. Ed. New York: Aspen Publ ishers, 2003, p. 497.) Importante frisar, destacar e
realçar que a tese defendida neste estudo parte da premissa de que operações societárias
motivadas pela redução de tributos não reveste forma diversa daquela pretendida; pe.lo
contrário, a destaca e a indica como motivo do negócio jurídico.
26 Veja-se a decisão unânime da Segunda Tu rma do Tribunal Regional Federal da Quarta
Região, no processo 9604559303, cuja ementa transcreve-se parcialmente:
"EMENTA. TRIBUTÁ RIO. EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. M U LTA. RESPONSABILI­
DADE, SUCESSORA. ELISÃO. INVESTIMENTO. S ÓCIAS. COMPRA E VENDA. PAGAMEN­
TO A PRAZO. IRPJ. ATIVIDADE RURAL. INCENTIVO. PARCELA EXCEDENTE. CORRE­
ÇÃO MONETÁ RIA. 1 . A empresa sucessora responde somente pelos tributos da sucedida,
excluídas as penal idades impostas por ato i l ícito. 2. É lícito ao contribui nte planejar seus
atos visando incidência de menor carga tributária sobre seus negócios, desde que o faça
observando os termos legais, o que caracteriza hi pótese de el isão fiscal. ( . . . )
"
RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO - 253

Assim, somente com muito esforço de retórica para se concluir que


seria nula ou contrária à lei imperativa a operação de incorporação mo­
tivada, expressamente, pelo aproveitamento de benefícios fiscais, ou
mesmo pela redução de tributos, nos termos da legislação vigente. Ali­
ás, se a lei não proíbe, não há como ser nulo o negócio jurídico; se nela
está contida, não há falar em fraude à lei imperativa. Por fim, mesmo
que o fizesse, somente seria válida se harmônica com as normas de "es­
calão maior".

IV. INCORPORAÇÃO DE CONTROLADORA


De acordo com o art. 227 da lei do anonimato, "a incorporação é a
operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra,
que lhes sucede em todos os direitos e obrigações". O Código Civil de
2002 trata da operação da seguinte forma: "Art. 1 . 1 16. Na incorporação,
uma ou várias sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em
todos os direitos e obrigações, devendo todas aprová-la, na forma esta­
belecida para os respectivos tipos."
Em nenhum caso se veda a chamada incorporação às avessas, ou
seja, a incorporação de controladora.
Em parecer emitido em 1995, José Luiz Bulhões Pedreira, co-au-
tor da Lei 6.404/76, afirma que
"O fato de o § 1° do artigo 226 e o artigo 264 da lei disporem
apenas sobre a hipótese de incorporação da controlada pela
controladora explica-se por essa ser a hipótese mais usual se
as sociedades são operacionais: a reorganização de grupo de
sociedades operacionais dá-se mediante criação e absorção
de controladas, e não de incorporação da controladora em
controlada, porque em regra a sociedade controladora
operacional é a que tem maior dimensão e é mais conhecida
no mercado."27

27 LAMY FILHO, Al fredo e PEDREIRA, José Luiz Bulhões. A lei das S/A - Pareceres. 2' ed.,
vol. li. Rio de Janeiro: Renovar, 1 996, pág. 599.
254 - REORGAN IZAÇÃO SomTÃRIA

Mas é outra a "regra", quando se trata de operação entre sociedades


não exclusivamente operacionais. E é o mesmo autor, no mesmo pare­
cer, quem trata do tema:
"A situação é diferente no grupo de sociedades controlado por
'holding' pura - que não exerce, em seu nome, atividade produ­
tiva. Nessa hipótese, em regra a 'holding' controla uma socieda­
de operacional que, por sua vez, controla outras. A sociedade
operacional é a mais conhecida no mercado e, quando há inte­
resse em unificar a 'holding' e a operacional - para que os acio­
nistas da 'holding' passem a participar diretamente da sociedade
que produz os resultados do grupo - a incorporação d a
controladora pela controlada é mais simples, porque: a socieda­
de operacional em regra possui imóveis e outros bens e direitos
sujeitos a registro, e sua incorporação requer formalidades com­
plementares demoradas e custosas; se a sociedade operacional é
autorizada a funcionar pelo Governo ou é titular de concessão
ou permissão administrativa, sua extinção por incorporação re­
quer formalidades perante as autoridades; e a incorporação da
sociedade operacional em geral envolve problemas fiscais que
não existem na incorporação da 'holding' pura."

Porém, independentemente de a operação ser praticada entre socieda­


des operacionais ou holdings, integrantes de grupo econômico ou não, não
apresenta a lei, como resta claro da leitura dos dispositivos acima transcri­
tos, nenhuma objeção. E essa parece ser também a opinião do citado autor,
o qual, em resposta aos requisitos que lhe foram formulados, afirmou:
"(c) no regime legal de incorporação vige o princípio da liber­
dade de contratar, e o fato dos §§ 1° e 2° do art. 226 se referi­
rem apenas à incorporação de controlada por controladora não
implica vedação à incorporação de controladora por controla­
da, sendo aplicáveis a essa hipótese os mesmos princípios e
razões que fundamentam a norma do § 1° do art. 226."28

28 idem, p. 607
RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO - 255

Irretocável a lição-conclusão29 •

IV.1. A REDUÇÃO DA CARGA TRIBUTÁRIA COMO MOTIVO DA


INCORPORAÇÃO DE CONTROLADORA

A Lei Complementar nº 104, de 10 de janeiro de 2001, acresceu ao


art. 116 do Código Tributário Nacional ("CTN") um parágrafo, o único do
artigo, que trata da desconsideração, pela autoridade administrativa, de atos
ou negócios jurídicos. A redação é a seguinte: ''Art. 1 1 6, Parágrafo Único. A
autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos
praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do
tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária,
observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária."
Passando ao largo da discussão acerca da inconstitucionalidade des­
ta norma, bem como da necessidade de sua regulamentação (o que se
tentou fazer na citada Medida Provisória 66), destaca-se que a descon­
sideração poderia ocorrer quando um ato ou negócio jurídico fosse pra­
ticado com afinalidade de dissimular a ocorrência de outro, tributável, do
qual se pretendia escapar.
De forma inadequada e tortuosa, disse o legislador (ou quis dizer)
que o ato ou o negócio jurídico simulado, com objetivo de afastar a
hipótese de incidência de norma tributária, poderia ser desconsiderado,
e o que se pretendeu dissimular, provavelmente ato ou negócio passível
de tributação mais elevada, destacado para todos os efeitos fiscais30 •
Negócio jurídico simulado, portanto, é aquele que não corresponde
à realidade, que encobre outro, este sim verdadeiro.31

29 Em França, um professor da Université Paris / afirma : " Les sens de la fusion n'est pas
imposé: le procédé qui consiste à faire absorber la société-mere par sa filia/e n'est en lui­
même ni illicite, ni artificiei. (. . .) "· LE CAN N U , Pau l, Droit des sociétés. 2e. édition,
Montchrestien, PARIS, 2003, p. 936
30 Importante destacar que era outro o alcance d a Medida Provisória 66, tanto que o Parágra­
fo único do art. 1 3 determinava que "o disposto neste artigo não inclui atos e negócios
j urídicos em que se verificar a ocorrência de dolo, fraude ou simulação."
31 D e acordo com o § 1 º do art. 1 67 do Código Civil, haverá simulação nos negócios j urídicos
quando (i) aparentarem conferi r ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais
·
realmente se conferem; (ii) contiverem decl aração, confissão, condição ou cláusula não
verdadeira; (iii) os i nstrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.
256 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

Q_µando se opera a incorporação de uma sociedade por outra, mes­


mo que o principal motivador seja a redução de carga tributária, não se
está simulando nada; pelo contrário, está-se afirmando, com todas as
letras (é o que propomos), que a operação ocorre de modo a alcançar
maior competitividade, maior eficiência. E esses fatores não seriam, por
si sós, motivos empresariais legítimos que justificariam a reorganiza­
ção? Assim entendemos.
Destaca-se, a este respeito, recente decisão do Conselho de Con­
tribuintes, proferida por maioria32 , no Recurso nº 137.256, da sétima
câmara, cuja ementa é a seguinte:
"Ementa: IRPJ - INCORPORAÇÃO À S AVE SSAS
GLOSA DE PREJUÍZOS - IMPROCEDÊNCIA - A de­
nominada 'incorporação às avessas', não proibida pelo
ordenamento, realizada entre empresas operativas e que sem­
pre estiveram sob controle comum, não pode ser tipificada como
operação simulada ou abusiva, mormente quando, a par da ine­
gável intenção de não perda de prejuízos fiscais acumulados,
teve por escopo a busca de melhor eficiência das operações
entre ambas praticadas."

Assim, reunindo todos os aspectos tratados neste item, tem-se


que: (i) norteia a operação de incorporação o princípio da liberda­
de de contratar; (ii) este princípio é o fundamento para que se pro­
mova a i ncorporação de controladora por controlada; (iii) a
simulação pode ser desconsiderada pela autoridade administrativa;
\(iv) a incorporação motivada, sobretudo, pela perspectiva de redu­
ção da carga tributária, com evidente melhoria competitiva e de
eficiência não é negócio jurídico simulado; (v) logo, deve ser pre­
servada e respeitada.

32 Dispõe o Art. 32, 1 e li do Regimento interno dos Conselhos de Contribuintes que caberá
recurso especial à Câmara Superior de Recursos Fiscais de decisão não unânime de Câma­
ra, quando fo r contrária à lei ou à evidência da prova; e de decisão que der à lei tributária
i nterpretação divergente da que lhe tenha dado outra Câmara de Conselho de Contribuin­
tes ou a própria Câmara Superior de Recursos Fiscais.
RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO 257 -

V. ÁGIO
Ágio, em linhas gerais, é a diferença entre o valor de um determi­
nado bem e o preço de aquisição. Assim, por exemplo, o valor patri­
monial de uma ação é aquele obtido pela divisão do patrimônio líquido
da companhia pelo número de ações; e o que exceder, é considerado
ágio. Ao comentar o art. 14, § 1° do revogado Decreto-lei nº 2.627I40,
mas que se aproveita ao art. 13 da Lei 6.404/76, lecionou, Pontes de
Miranda, o seguinte:
"Lê-se no decreto-lei n. 2.627, art. 17,§ 1°: 'Não é permitida a
emissão de ações por séries ou abaixo do seu valor nominal'.
Abaixo do valor nominal, diz a lei. Não se proíbe a emissão por
preço acima do valor nominal, de modo que pode isso ser esta­
belecido ou admitido nos estatutos. "33

De modo que, antes ou após a publicação da atual lei societária, era


praticamente pacífico34 o entendimento acerca da possibilidade de emis­
são de ações com ágio.
Não há uma, mas inúmeras justificativas para a existência do ágio.
Aloysio Lopes Pontes, em 1973, afirmou "(... ) destinar-se o ágio a preser­
var a posição dos antigos acionistas no tocante ao patrimônio social, a
compensá-los pelo advento dos novos sócios que, sem haverem contribu­
ído, como eles, pela conjugação de seus recursos e esforços para a constru­
ção daquele patrimônio, dele viriam a participar nos casos da incorporação
de reservas de capital ou de outra forma de distribuição de resultados ou
do remanescente do ativo na liquidação."35
Já Waldemar Ferreira lembra que "( ... ) Tanto pode objetivar a co­
bertura das despesas com a emissão das novas ações em virtude de au­
mento de capital, comissões bancárias e outras; quanto ser levada ao

33 Tratado de Direito Privado, 3' ed., Tomo L. Rio de Janeiro: Revista dos Tri bunais, 1 965, p. 87
34 Diz-se praticamente porque Aloysio Lopes Pontes cita Gudesteu Pires como voz isolada na
defesa de tese contrária. "Cobrança do ágio em aumento de capital de sociedades anônimas",
ln Revista de Direito Mercantil, nºl 1 , Ano li, Nova Série, 1 973, p.33 (nota de rodapé 1 6).
35 idem, p.30
258 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

fundo de reserva, para fortalecimento do capital social e segurança de


cotação de velhos e novos títulos." 36
Mas não se esgotam as possibilidades nessas explicações, pois que
se justifica o pagamento de ágio, também, quando se está adquirindo o
controle da sociedade, quando os ativos, sobretudo os intangíveis, re­
presentam importante parcela da empresa, etc.

V.1. A LEI FISCAL


No que concerne à aquisição de participação acionária de socieda­
de coligada ou controlada, o art. 385 do Regulamento do Imposto de
Renda ("RIR") assim dispõe:
"Art. 385. O contribuinte que avaliar investimento em sociedade
coligada ou controlada pelo valor de patrimônio líquido deverá, por
ocasião da aquisição da participação, desdobrar o custo de aquisição
em:

1- valor de patrimônio líquido na época da aquisição, determinado


de acordo com o disposto no artigo seguinte; e

II- ágio ou deságio na aquisição, que será a diferença entre o custo


de aquisição do investimento e o valor de que trata o inciso anterior."
O tratamento tributário do ágio, que é o que interessa para fins
deste estudo, está regulamentado no art. 7° da Lei nº 9.532, de 1 997,
alterado pela Lei nº 9.718, de 1998, reproduzido no art. 386 do RIR,
cujo caput e inciso III são os seguintes:
"Art. 386. A pessoa jurídica que absorver patrimônio de outra, em
virtude de incorporação, fusão ou cisão, na qual detenha participação
societária adquirida com ágio ou deságio, apurado segundo o disposto
no artigo anterior: ( ... ) III poderá amortizar o valor do ágio cujo
-

fundamento seja o de que trata o inciso II do § 2° do artigo anterior,


nos balanços correspondentes à apuração de lucro real, levantados
posteriormente à incorporação, fusão ou cisão, à razão de um sessenta
avos, no máximo, para cada mês do período de apuração;".

36 FERREIRA, Waldemar. Tratado das Sociedades Mecantis, vai. V. Rio de Janeiro: Editora
Nacional de Direito, 1 958, pág 1 .53 1 .
RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO - 259

Ora, ao tratar da absorção de patrimônio de pessoa jurídica, por


outra, decorrente, por exemplo, de incorporação, o legislador não fez
distinção entre operações que acontecem de cima para baixo (incorpo­
ração de controlada) e de baixo para cima (incorporação de controlado­
ra). Apenas determinou que se desdobre o custo de aquisição, nos termos
do art. 385. Ademais, o inciso II do § 6° do art. 386 manda aplicar o que
neste está disposto inclusive quando a sociedade incorporada (bem as­
sim fusionada ou cindida) for quem detiver a propriedade da participa­
ção acionária. 37
Logo, autorizou, na nossa opinião, a amortização do valor do ágio,
cujo fundamento seja o valor de rentabilidade de coligada, controlada
ou controladora, com base em previsão dos resultados nos exercícios
futuros, nos balanços correspondentes à apuração de lucro real, levanta­
dos posteriormente à incorporação, inclusive de controladora por con­
trolada, à razão de um sessenta avos, no máximo, para cada mês do
período de apuração.

V.li. INCORPORAÇÃO DE CONTROLADORA MOTIVADA PELO


APROVEITAMENTO DE ÁGIO
Viu-se, acima, que (i) a incorporação é uma operação prevista na
legislação societária brasileira; (ii) ela pode se dar de cima para baixo
(incorporação de controlada) ou de baixo para cima (incorporação de
controladora), por interpretação lógico-sistemática; (iii) a busca de uma
melhor estrutura corporativa-operacional, que sujeitará a sociedade a uma
menor carga tributária, e conseqüentemente a um lucro mais condizente
com o risco assumido, quando não dissimulada, é motivo legítimo para se
promover a reorganização societária.
Sendo assim, não se manifesta viciada a operação societária expres­
samente motivada pelo aproveito de ágio, exclusivamente. Inclusive se
se tratar de incorporação de controladora.

37 É a seguinte a redação do §6º, l i : "§6º. O disposto neste artigo apl ica-se, incl usive, quando:
. . 11 a empresa i ncorporada, fusionada ou cindida for aquela que detinha a propriedade
. -

da participação societária."
260 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

V. 111. A INSTRUÇÃO CVM 3 1 9


O aproveitamento econômico e o tratamento contábil do ágio, re­
lativamente a operações de incorporação, fusão e cisão de companhia
aberta foram contemplados na Instrução CVM 319, de 3 de dezembro
de 1999, alterada pela Instrução CVM 349, de 6 de marco de 2001.
O art. 6° deste normativo determina a forma de contabilização
do montante do ágio ou do deságio resultante da aquisição do contro­
le da companhia aberta, decorrente da incorporação de controladora
por controlada.
O art. 7°, de seu turno, versa sobre o aproveitamento de benefício
fiscal oriundo da amortização de ágio. A redaçãü é a seguinte: "O proto­
colo de incorporação de controladora por companhia aberta controlada
poderá prever que, nos casos em que a companhia vier a auferir benefí­
cio fiscal, em decorrência da amortização do ágio referido no inciso III
do art. 6° desta Instrução, a parcela da reserva especial de ágio na incor­
poração correspondente a tal beneficio poderá ser objeto de capitaliza­
ção em proveito do acionista controlador."
Apesar de as normas expedidas pela CVM destinarem-se a compa­
nhias abertas, não se descarta o aproveitamento pelas fechadas, quando
não se lhes revelarem incompatíveis. Motivo pelo qual a reorganização
societária expressamente motivada pela busca de uma estrutura corpora­
tiva menos gravosa às sociedades que a promovem, inclusive para obten­
ção de benefício fiscal, em decorrência de amortização de ágio, tanto da
companhia aberta como da fechada, é ato jurídico lícito, não simulado e,
principalmente, legítimo, na medida em que, indiretamente, cumpre o man­
damento do art. 2° da lei acionária. Logo, se de maneira lícita, não simulada,
os administradores promovem medidas que aumentarão o lucro, merecem
aplausos, e não represálias.
Estabelecido o alcance da norma, resta-nos compreender o sentido
do citado art. 7°.
O propósito do dispositivo é compensar quem houver contribuído
com o ágio e conseqüentemente propiciado o benefício fiscal - presu­
midamente o controlador. Assim, a reserva especial de ágio corres-
RODRIGO R. MONTEIRO DE CASTRO - 261

pondente ao benefício - reserva essa que é a contrapartida do ágio regis­


trado no ativo - será capitalizada, em proveito do controlador, que, via de
conseqüência, terá aumentada a sua participação no capital social.
Mas, para que isso ocorra, é fundamental que se preveja, no proto­
colo, tal possibilidade. Isso porque se trata de faculdade e não de obriga­
toriedade. Razão pela qual os contratantes, se a desejarem, deverão
expressá-la, previamente.

V.IV CONTROLADOR PARA EFEITO DE CAPITALIZAÇÃO DA RESERVA


ESPECIAL DE ÁGIO

Fosse o controlador uma única pessoa, jurídica ou física, não have­


ria motivo para consagrar um item ao assunto, pois ele subscreveria a
totalidade das ações emitidas por conta da capitalização da reserva es­
pecial de ágio.
Porém, assim como visto acima, o controle pode se dar por força de
acordo de voto - geralmente inserido em um acordo mais amplo, de acio­
nistas -, de modo a assegurar aos signatários a maioria dos votos nas deli­
berações da assembléia. Controle, assim, é conceito material, e não formal.
Tanto que a alínea "b" do art. 1 16, precedida de conectivo "e", reconhece o
controle àquele que "usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades
sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia".
Como harmonizar, então, este conceito com a Instrução CVM 319,
mais especificamente com a parte final do art. 7°? Muito simples: a
capitalização será proporcional à participação de cada um no bloco de
controle. Em outras palavras, se um acionista detiver 58% das ações
que, reunidas, garantem o controle da companhia, e outro, 42%, estas
também serão as participações que lhes tocarão das ações emitidas em
decorrência da capitalização da reserva especial.
Importante destacar, finalmente, que, caso o controlador não opte
pelo aumento de sua participação no capital, apesar de se ter deliberado
o aumento, na forma acima prevista, os demais acionistas, observado o
art. 1 70 da lei do anonimato, terão direito de preferência. Neste caso, o
preço será entregue ao controlador.
262 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÃRIA

VI . CONCLUSÃO
As palavras do Conselheiro Natanael Martins, do Conselho de
Contribuintes, que compuseram o voto vencedor, que deu provimento
ao recurso retro citado (137.256), ilustram, magistralmente, o que se
pretendeu passar ao longo deste trabalho, e por isso o encerram:
"Ora, como então caracterizar os atos praticados como simu­
lados, se na forma e no conteúdo das operações nenhuma ofensa
ao ordenamento se praticou? Mesmo que se tenha em questão
que a incorporação às avessas se realizou para que não se per­
dessem os prejuízos acumulados e para que também do ponto
de vista tributário a operação fosse menos onerosa, ainda as­
sim nenhuma ofensa haveria ao ordenamento, mesmo ado­
tando a corrente interpretativa que repugna o abuso no direito,
combatendo figuras elisivas a partir desse contexto.

Deveras, não é necessário nenhum grande esforço para se con­


cluir que a empresa resultante da operação, em termos empresa­
riais, ganhou eficiência e reduziu custos, sobretudo aqueles cus­
tos que são inerentes ao simples fato de existência da sociedade
empresarial. Por outro lado, mesmo em face dos ensinamentos
daqueles que condenam o abuso de direito, a operação pratica­
da pelo recorrente não se amolda à figura do abuso, muito menos
de simulação se trata, seja porque única, seja porque não reali­
zada com o único escopo de economizar tributo, porque, afi­
nal, qualquer que seja a corrente interpretativa do direito tri­
butário, em um ponta todas convergem: o ordenamento não
repudia o planejamento tributário."
O Direito de Recesso nas
1 ncorporações

Marcelo Guedes Nunes

Mestre em direito comercialpela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


Advogado em São Paulo
Diretor Cultural do IDSA
264 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

1 . INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende discutir as diversas hipóteses de recesso
envolvidas nas operações de incorporação, previstas nos arts. 227 e 252
da Lei das Sociedades Anônimas (LSA). O propósito é dar uma nova
visão do recesso, instituto que vem passando por inúmeras e sucessivas
modificações, dentro e fora do Brasil, ainda não inteiramente absorvidas
pela doutrina especializada. Feito isso, o artigo passa a analisar a incor­
poração em suas diversas modalidades, esclarecendo o que seriam os ele­
mentos essenciais dessa operação societária, distinguindo-a das demais
reorganizações previstas em lei, inclusive e principalmente a incorpora­
ção de ações, muitas vezes confundida com uma operação de mero au­
mento de capital. A relação entre a incorporação de ações e a incorporação
de sociedades é ainda bastante nebulosa e nos parece necessário investi­
gar mais detidamente o grau de parentesco desses dois institutos .
Vistos o recesso e a incorporação cada qual de forma isolada, a idéia
é avançar e verificar quais hipóteses de recesso incidem sobre as opera­
ções de incorporação, em cada uma de suas variações (incorporação de
sociedades ou de ações) e dependendo do perfil das companhias envol­
vidas (se de capital aberto ou fechado). Outra hipótese tratada é a da
incorporação de controlada, cujo reembolso encontra na lei uma regula­
ção específica.
Finalmente, o artigo procura discutir o procedimento e a conta­
gem dos prazos de recesso relacionados à incorporação e, principal­
mente, ao fechamento indireto de capital, cuja não abertura é hipótese
de recesso prevista no art. 223 da LSA. O interessante da hipótese do
art. 223 é o fato dela não decorrer de uma deliberação majoritária em
assembléia geral. Toda a doutrina e mesmo a tecnologia da LSA foi
desenhada para lidar com hipóteses de recesso decorrentes de dissi­
dência em assembléias gerais de acionistas. O fato da não abertura de
capital dar causa a recesso gera certas dificuldades hermenêuticas, que
indicam a necessidade de uma reforma nos artigos de lei que regulam a
matéria.
MARCELO GUEDES NUNES - 265

2 . VISÃO TRADICIONAL DO RECESSO: PRINCfPIO MAJORITÁRIO


E RESILIÇÃO
Um dos principais temas do direito societário é a gestão do patri­
mônio comum da sociedade pela coletividade de sócios responsável pela
sua integralização. Os sócios têm interesses, pontos de vista e posições
distintas dentro do quadro social e freqüentemente divergem quanto aos
rumos que a sociedade deva tomar. A harmonização desses interesses
heterogêneos, a gestão eficiente e dinâmica dos bens sociais e a criação
de mecanismos jurídicos que possibilitem uma convergência de vonta­
des e que, ao mesmo tempo, evitem abusos de partes mais fortes, são
preocupações que transparecem em diversos artigos da nossa atual LSA.
Nesse processo de harmonização, a modificação do pacto social, que
historicamente é visto como um tipo de contrato, tem especial interesse.
Em sendo um contrato e seguindo-se os princípios gerais de Direito
Civil, o pacto apenas poderia ser alterado com a concordância da maio­
ria absoluta dos sócios, da mesma forma que, nos contratos bilaterais, só
é possível o aditamento com a concordância de todas as partes. Claro
que uma tal posição implicaria num "engessamento" da administração,
uma vez que o consenso absoluto em torno de assuntos de interesse da
sociedade é algo complicado de ser obtido. Assim, como forma de viabi­
lizar a administração da empresa, criou-se a chamada teoria das bases
essenciais, que dividia as cláusulas do contrato em duas categorias: es­
senciais e não-essenciais. As cláusulas essenciais só seriam modificadas
por consenso absoluto, enquanto as não-essenciais poderiam ser modifi­
cadas pela vontade de uma maioria social (CORTÉ S, 1999, p. 54-55, e
DONADIO 1 940, p. 4 e seguintes).
Vê-se que as cláusulas não-essenciais estão na origem da idéia de
princípio majoritário, que, por sua vez, se encontra na origem do conceito
de direito de recesso. A possibilidade de modificação de certas cláusulas
por vontade da maioria (e, portanto, diante de uma divergência da mino­
ria) criou a demanda por uma solução jurídica para os sócios que, ante uma
alteração de contrato social aprovada contra a sua vontade, não mais dese­
jassem permanecer na sociedade. A solução encontrada foi denominada
266 - REORGANIZAÇÃO 50CIETÃRIA

direito recesso, criado na Itália originalmente como uma forma de disso­


lução do vínculo social ante a aprovação de certas alterações críticas do
contrato social, que dava ao sócio dissidente da deliberação o direito à
apuração de seus haveres.
Dada a sua origem, o exercício de direito de recesso sempre foi visto
como uma resilição unilateral do contrato de sociedade (um ato jurídico
em sentido estrito, na terminologia civilística), outorgado como contra­
partida ao direito da maioria de modificar as bases essenciais do pacto
social (FRAN MARTINS, 1984, vol. 2, p. 53; CARVALHOSA, 2002,
vol. 2, p. 890; LAMY FILHO e PEDREIRA, 1 997, p. 346 e CARY e
EISENBERG, 1980, p. 1 .453-1 .454). O ato jurídico em sentido estrito
é o fato jurídico cujo nascimento depende de uma manifestação de von­
tade humana (é, portanto, ato jurídico), mas cujo conteúdo decorre de
determinação legal, e não da vontade negocial das partes (não é, portan­
to, negócio jurídico)1 . Em poucas palavras, a mudança dos termos do
contrato daria ao minoritário o direito de manifestar sua vontade de ver
revertido para si o seu investimento na sociedade, que, por sua vez, deve­
ria, através da dissolução parcial do vínculo, apurar o valor patrimonial
das ações a serem canceladas e devolvê-lo ao acionista dissidente, nos
termos, prazos e formas definidos estritamente em lei (COELHO, 2002,
vol. 2, p. 306). O recesso, em sendo uma dissolução do vínculo, teria de
ter sempre efeitos imediatos e irreversíveis, teria de ser pago com base no
valor patrimonial da companhia, teria de implicar no cancelamento das
ações e, finalmente, sempre deveria ser decorrente de uma alteração no
contrato ou estatuto, decorrente de uma deliberação majoritária.
No entanto, essa visão do recesso como resilição de contrato come­
çou a mostrar fadiga com a evolução do instituto, decorrente em grande
parte das pressões econômicas exercidas pela lógica do mercado.

MARIA HELENA DINIZ (2003, p. 365 e 373) assim define o ato jurídico em sentido estrito e
o negócio jurídico: 110 ato jurídico em sentido estrito é o que gera conseqüências jurídicas
previstas em lei e não pelas partes interessadas, não havendo regulamentação da autono­
mia privada". Por sua vez, o negócio jurídico "é o poder de auto-regu lação dos interesses
que contém a enunciação de um preceito, independentemente do querer interno".
MARCELO GUEDES NUNES 267
-

Em primeiro lugar, uma vez exercido o recesso, a companhia, que


detinha recursos no caixa e que tinha conhecimento de outros potenciais
investidores interessados na empresa em suas novas bases, não queria
simplesmente cancelar as ações reembolsadas. Melhor seria adquiri-las
para si e mantê-las em tesouraria até que a negociação com o novo in­
vestidor fosse concluída, recapitalizando a empresa e dando nova desti­
nação à participação societária. Visto que essa operação era indiferente
para o acionista dissidente e boa para a companhia, o DL nº 2.627/40
previu que, nos casos em que a companhia dispusesse de valores sufici­
entes, o vínculo jurídico representado pela ação não fosse extinto de pla­
no com o recesso, mas sim suspenso até que outra pessoa se predispusesse
a ocupar o lugar vago.
Em segundo lugar, também preocupado com a saúde financeira da
empresa, o DL nº 2.627/40 passou a permitir que, após o recebimento
de todos os pedidos de recesso e a notícia do montante total de reembol­
so a ser pago, a companhia pudesse reavaliar a conveniência da delibera­
ção e, se assim desejasse, reconsiderar a alteração de base, como forma de
evitar a excessiva descapitalização.
Em terceiro lugar, agora já na vigência da atual LSA, o legislador
achou por bem permitir às companhias preverem em seus estatutos o
pagamento de reembolso com base no valor econômico (art. 45, pará­
grafo 1 º), ao invés do patrimonial. A medida buscou evitar que especula­
dores adquirissem as ações no mercado a valor baixo para, após a
ocorrência de uma previsível reestruturação, exercer o recesso em rentá­
veis bases patrimoniais.
Em quarto lugar, a atual LSA passou a prever hipóteses de recesso
que não tinham relação com alterações decorrentes da vontade da maioria
(v.g. desapropriação pelo Poder Público, art. 236, parágrafo único) ou com
a ocorrência de uma Assembléia Geral de Acionistas ( v.g. não abertura de
capital, art. 223, parágrafo 4º).
Todas essas mudanças na lei macularam e, sem dúvida, inviabiliza­
ram a velha visão do recesso como ato jurídico resilitório em sentido estri­
to, decorrente de alteração no pacto social forçada pela maioria acionária.
268 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

As novas hipóteses, decorrentes de atos e omissões entranhas à vontade


da maioria e à realização de assembléias gerais, mostraram que o recesso
nada tinha a ver com o princípio majoritário. Da mesma forma, as diver­
sas adaptações sofridas pelo instituto, dando às partes (leia-se compa­
nhia e acionistas minoritários) maior arbítrio sobre o conteúdo do recesso
(valor do reembolso, possibilidade de reconsideração, cancelamento ou
manutenção das ações em tesouraria), afastaram a visão resilitória pura e
simples, apontando para um novo caminho.
O caminho para a compreensão do moderno direito de recesso en­
volve uma nova versão da teoria das bases essenciais (que passam a ser do
investimento e não do contrato), além de um abandono da velha idéia de
resilição, que deve ser substituída por um ponto de vista pragmático do
recesso como um novo negócio, envolvendo a companhia, acionistas
minoritários e ações de seu próprio capital.

3. Ü INVESTIDOR E AS BASES ESSENCIAIS DO INVESTIMENTO


Como visto, todas alterações promovidas no recesso ao longo de
sua existência foram, sem exceção, no sentido de atribuir à companhia e
aos minoritários maior liberdade de fixar as condições em que o recesso
seria exercido. Se originalmente o DL nº 2.627 tendia e extinção da
participação pelo seu valor patrimonial, as novas disposições da LSA
incentivavam a sua manutenção em tesouraria pelo valor de mercado,
com a conseqüente busca de novos acionistas dispostos a aportar recur­
sos na empresa. Assim, o que era, no início, uma quase resilição de um
antigo negócio, foi se tornando um novo negócio jurídico independente,
que envolve a transferência das ações detidas pelos minoritários para a
própria companhia que as emitiu.
Também a questão das bases essenciais teve de ser abordada de
maneira diferente. Sob a moderna ótica econômica, as bases essenciais,
cuja alteração motiva o recesso, estão relacionadas à idéia de investimen­
to, e não de contrato. Os potenciais investidores, ao estudar a viabilidade
de um investimento, verificam um conjunto de características da com­
panhia e das ações a serem negociadas determinantes para a decisão de
MARCELO GUEDES NUNES 269 -

investir ou não. Essas características são as "bases essenciais" de seu inves­


timento (objeto social da companhia, integração a um determinado grupo
econômico, preferências e vantagens de ação etc.) e, apesar de não consta­
rem necessariamente do estatuto social ( v.g. o nome do controlador), são
os alicerces sobre os quais se fundamenta a decisão de aquisição da partici­
pação acionária.
As bases essenciais do investimento não têm mais fundo contratual,
nem apresentam a oposição entre alterações por unanimidade e altera­
ções por maioria. Na nova visão, temos apenas um investidor que, ao
adquirir uma determinada ação, o faz acreditando que certas caracterís­
ticas do papel e da companhia tornarão o investimento rentável2 . Essas
características são as bases essenciais de seu investimento e a sua altera­
ção após a aquisição da participação, seja ou não por força de uma deli­
beração majoritária, implica em um recálculo das chances de retorno,
que pode levar à conclusão de que a manutenção das ações não é mais
financeiramente interessante. Todas as hipóteses de recesso são altera­
ções nas bases essenciais do investimento, sejam bases essenciais especí­
ficas, relativas a uma determinada classe ou espécie de ação, sejam bases
essenciais genéricas, relativas a características gerais da companhia
(LAMY FILHO, 1997, p. 556, e PARENTE, RDM 97, p. 73).
Em um mercado competitivo e com liquidez, o investidor descon­
tente com a alteração nas bases de seu investimento quase sempre conse­
guiria negociar com terceiros suas ações. Isso porque, em sendo
decorrência de uma divergência de prognósticos de rentabilidade, outros
potenciais investidores sempre dividiriam da mesma opinião que a com­
panhia e estariam dispostos a investir capital nas novas bases da empre­
sa, adquirindo as ações do retirante a um preço justo. No entanto, em um
mercado real, passível de iliquidez, esses potenciais investidores podem

2 Já foi dito que bases essenciais do investimento são as características da companhia e/ou de
suas ações, determinantes para a decisão de investir ou não. Este conceito, não por um
acaso, coincide com a definição de fato relevante expressa no art. 2º da IN nº 358 da CVM.
Apesar de referi r-se a um u niverso restrito de companhias, a analogia entre a noção de fato
relevante e de bases essenciais é evidente, não sendo impertinente afirmar que fato relevan­
te nada mais é do que uma alteração de base essencial em uma companhia aberta.
270 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

ser escassos ou ausentes, deixando assim o acionista preso a um investi­


mento que não corresponde mais àquele que o havia motivado a aportar
valores na companhia.
É exatamente para os casos em que o mercado real se distancia do
mercado ideal que o recesso tem importância. Sob esse ponto de vista,
o recesso é um instituto que obriga a companhia a adquirir a ações a
um preço justo, simulando a venda que o acionista espontaneamente
promoveria em um mercado competitivo e plural. É a esse negócio a
que a LSA se refere em seu art. 137, quando dá ao acionista o direito
de obrigar a companhia a negociar consigo as ações de seu próprio
capital, nos casos em que ocorram alterações nas suas bases essenciais.
Caso a lei permanecesse omissa e deixasse apenas ao encargo das par­
tes a estipulação de um tal direito, é provável que a iliquidez do merca­
do e o desinteresse dos controladores inviabilizassem a tarefa, impedindo
a realização do negócio e permitindo uma alocação de riquezas menos
eficiente.
Em sendo um novo negócio, o recesso não se confunde com uma
resilição do contrato. Se fosse resilição unilateral, o ato teria efeito ime­
diato e as ações deveriam ser necessariamente extintas, com pagamento
do percentual do patrimônio (valor patrimonial) por elas representado.
Se fosse resilição unilateral, o recesso não comportaria arrependimento
da companhia, nem muito menos o restabelecimento do vínculo socie­
tário entre esta e o acionista dissidente, apenas por ter a empresa recon­
siderado a deliberação que deu causa à obrigação de pagar o reembolso.
Se fosse resilição unilateral, o pagamento do reembolso jamais poderia
ser efetuado com base em valor econômico (que leva em consideração
perspectivas de rentabilidade futuras), mas apenas o valor patrimonial
das ações. Como vimos, em sua atual conformação o recesso é passível
de reconsideração, de manutenção das ações em tesouraria e de apuração
de reembolso a valor econômico, liberdades incompatíveis com a estrita
regulação da resilição dissolutória.
Negar essa nova realidade é criar problemas e insegurança jurídica.
Por exemplo, a insistência na visão resilitória e na conseqüente manu-
MARCELO GUEDES NUNES - 271

tenção do valor patrimonial como referência única para o reembolso ge­


rou apenas confusão. Em épocas de crise, quando o valor econômico das
ações se encontrava abaixo do valor patrimonial, investidores adquiriam
participações a preços baixos no mercado e aguardavam uma reestrutu­
ração societária para exercer seu direito de recesso com base no valor
patrimonial. Era a chamada indústria do recesso, que motivou a altera­
ção do art. 45 da LSA permitindo a apuração de reembolso com base no
valor econômico. Já quando o valor de mercado das ações estava acima
do valor patrimonial contábil, a companhia pagava o recesso com base
neste último (muitas vezes desconsiderando importantes ativos intangí­
veis como marcas, patentes e carteiras de clientes ou mesmo significati­
vas perspectivas de rentabilidade futura), para depois alienar essas mesmas
ações no mercado, em valores significativamente superiores. Nesses ca­
sos, formou-se uma jurisprudência hesitante, que oscilava entre a apura­
ção em bases patrimoniais contábeis e em bases patrimoniais a preços de
mercado.
O ideal, na verdade, é que, em sendo um novo negócio, o acionista
não receba nem mais nem menos do que vale a ação no mercado (que
raramente corresponde ao valor patrimonial contábil), sem sofismas ju­
rídicos.
Outro exemplo de anacronismo ainda não superado é a vedação
ao exercício parcial do recesso. No Brasil, é proibido o exercício par­
cial. Por que? Diz a doutrina que o exercício parcial é incompatível
com o conceito de resilição e de dissidência em assembléia geral (STA­
JN, 1 982, p. 148). Não há dúvidas de que os conceitos são incompatí­
veis. O problema é que, como visto, o novo recesso não tem mais
qualquer relação com deliberações, havendo hipóteses que indepen­
dem da realização de uma assembléia geral. O acionista apenas recal­
cula seus prognósticos de investimento sob as novas bases, podendo
chegar à conclusão (por que não?) de que a sua carteira deve ser apenas
reduzida, e não extinta por completo. E se a redução da carteira é de
interesse do acionista (que pretende permanecer parcialmente investi­
do) e da companhia (que pretende pagar o menor valor de reembolso
272 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

possível), por que obrigar o investidor a se retirar por completo, em


prejuízo de ambos? 3
Para concluir, o mais importante no moderno direito de recesso é a
compreensão do mecanismo que o move. Certas bases de investimento
reputadas essenciais pela LSA não podem ser alteradas sem que seja
dada, ao acionista detentor de participação sem liquidez e dispersão, a
oportunidade de negociar suas ações. Se o mercado não é capaz de rece­
bê-las, a obrigação recai sobre a própria companhia que, afinal, é a única
responsável pela alteração e, no caso dela ser bem sucedida, se apropriará
das vantagens pecuniárias.

4. INCORPORAÇÃO, INCORPORAÇÃO DE SOCIEDADES E


INCORPORAÇÃO DE AÇÕES
Comecemos, como mandam os bons modos acadêmicos, por uma clas­
sificação. São quatro os tipos de operações societárias previstas na LSA: a
transformação, a incorporação, a fusão e a cisão. A transformação é a mudan­
ça de tipo societário. Afusão é a união de duas ou mais sociedades para a
criação de uma nova. A cisão é a transferência de parcelas ou da totalidade
do patrimônio de uma ou mais sociedades para serem absorvidas por ou­
tra ou outras sociedades, criadas para esse fim ou já preexistentes.
Já a incorporação, único tipo de que trataremos neste artigo, é a ope­
ração através da qual uma sociedade (incorporada) ou as ações de seu
capital são absorvidas por outra (incorporadora), unificando-se os sócios
de ambas dentro da sociedade incorporadora. A incorporação é uma das
alterações mais radicais que um investimento pode sofrer. Por mais pro­
fundas que sejam as alterações de base essencial promovidas no trans­
correr da vida de uma companhia e por mais que elas atinjam elementos
considerados chave para o cálculo de retorno do investimento, poucas
tem o potencial modificativo da incorporação, cuj o resultado é a extin-

3 Não por outra razão, a recente reforma no art. 2.437 do Codíce Civile italiano permitiu o
recesso parcial com os segui ntes dizeres: "Hanno diritto di recedere, per tutte o parte dei/e
foro azion i, i soei che non hanno concorso alie deliberazioni riguardanti".
MARCELO GUEDES NUNES - 273

ção das participações na incorporada e a substituição das ações do acio­


nista por outras, emitidas por companhia completamente diversa. As­
sim, a incorporação não altera um ou dois dispositivos de um estatuto
social, mas o substitui inteiramente por outro, que pode conter sozinho
todo o universo das demais hipóteses de recesso (CARVALHOSA, 2002,
vol. 2, p. 720, e STAJN, 1982, p. 263 e 274-275).
A operação denominada incorporação se subdivide em dois 'tipos, a
saber, a incorporação de sociedades do art. 227 e a incorporação de ações
do art. 252, ambos da LSA. Para os fins deste trabalho, o gênero será
denominado "incorporação" enquanto os dois subtipos serão a "incorpora­
ção de sociedades" (art. 227) e a "incorporação de ações" (art. 252). Assim,
apesar de distintas, as duas modalidades de incorporação são espécies de
um mesmo gênero de operação societária, dividindo entre si inúmeras ca­
racterísticas. Por pertencerem ao mesmo gênero de operação societária,
as duas modalidades de incorporação têm por características (i) a unifi­
cação dos sócios de ambas empresas (ii) sob o mesmo regime estatutário
da incorporadora, que, por sua vez, (iii) tem seu patrimônio acrescido de
bens suficientes à emissão das novas ações. Da mesma forma, ambas
incorporações são (iv) um negócio jurídico efetuado por duas ou mais
sociedades e não pelos seus sócios, e (v) todo o procedimento legal de
implementação é idêntico: há a assinatura de um Protocolo de Incor­
poração (art. 224 da LSA), devidamente aprovado em assembléias de ambas
sociedades, a aprovação de aumento de capital da sociedade incorporadora
e a autorização para a diretoria da sociedade incorporada subscrever o au­
mento na incorporadora, por conta de seus acionistas.
A principal diferença entre as duas espécies de incorporação reside
no fato de que na incorporação de sociedades o patrimônio da incorpo­
rada é vertido para a incorporadora, promovendo a extinção da primeira
e a sucessão da segunda em todos os direitos e obrigações da sociedade
extinta. Na incorporação de ações não é o patrimônio que é vertido, mas
sim as ações que o representam, de forma que a sociedade objeto da
incorporação continua a ter existência como subsidiária integral da in,.­
corporadora, com direitos e obrigações autônomas.
274 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

Há quem defenda ser a incorporação de ações um mero aumento


de capital e não uma incorporação, e que as semelhanças entre as in­
corporações seria mais de forma (o procedimento é idêntico) que de
substância. Para os adeptos desse ponto de vista, a extinção da compa­
nhia incorporada seria a característica essencial da "verdadeira" opera­
ção de incorporação, que, portanto, não incluiria a incorporação de
ações (TEIXEIRA e GUERREIRO, 1 979, p. 727-728), em que a
empresa incorporada subsiste na condição de subsidiária integral.
Como vimos acima, a extinção da incorporada não é característica
essencial da operação em seu gênero. Os traços importantes da incorpora­
ção em sentido amplo residem no acordo de vontades entre duas ou mais
pessoas jurídicas distintas, da qual decorre a união dos sócios de ambas
empresas sob o regime estatutário da incorporadora. O que os doutrina­
dores chamam de mera semelhança formal entre a incorporação de socie­
dades e a de ações é, na verdade, o procedimento que visa conjugar as
vontades substanciais das duas empresas, conjugação esta que é a verda­
deira característica essencial de toda e qualquer operação de incorporação.
Assim, a forma procedimental com que qualquer incorporação é realizada
dá notícia de sua realidade substancial de negócio entre duas ou mais com­
panhias, sendo indistinguíveis, a este respeito, a forma e o conteúdo da
reorganização.
A classificação da incorporação em dois subtipos traz conseqüên­
cias importantes, especialmente em relação aos direitos patrimoniais de
saída para os acionistas minoritários envolvidos nas operações de reor­
ganização. No próximo tópico procuraremos identificar quais hipóteses
de recesso são aplicáveis a cada tipo de operação.

5. HIPÓTESES DE RECESSO NAS INCORPORAÇÕES


As hipóteses de direito de recesso estão previstas nos arts. 136 e
1 37, bem como em outros dispositivos dispersos ao longo da LSA, den­
tre os quais os arts. 223 e 252.
Dizem os arts. 136, inciso IV, e 137 que há direito de recesso para
os acionistas cuja companhia for incorporada em outra, com reembolso
MARCELO GUEDES NUNES 275
-

das ações nos termos do art. 45. Já o art. 252, que trata da incorporação
de ações, determina nos seus parágrafos 1 º e 2º que os acionistas da com­
panhia incorporadora e da companhia cujas ações forem incorporadas,
respectivamente, terão direito de recesso.
A incorporação é negócio de reorganização que implica em uma
profunda alteração da estrutura da companhia, afetando as bases genéri­
cas do investimento. É uma hipótese de mudança tão drástica no perfil
do investimento que chega a ser complicado falar em uma alteração de
base essencial, que pressupõe alterações nas características de uma mes­
ma companhia, cuja personalidade jurídica permanece constante ao lon­
go do processo. Na incorporação, o acionista recebe ações de uma
companhia diversa da que investiu em substituição àquelas que titulari­
zava. Assim, o fundamento do recesso decorre da impossibilidade de
obrigar um acionista a integrar os quadros de outra companhia que não
aquela da qual originalmente adquiriu as ações.
A expressão "incorporação em outra" do art. 1 36, IV, deixa claro
que apenas os acionistas da companhia incorporada terão o direito de
recesso, uma vez que é essa a companhia que deixará de existir. Para a
companhia incorporadora, o negócio terá efeito análogo ao de um au­
mento de capital. No entanto, ao contrário da incorporação tradicional,
na incorporação de ações (art. 252, parágrafos 1 º e 2º, da LSA) os acio­
nistas dissidentes da companhia incorporadora têm direito de recesso.
Aqui, a outorga do direito é justificada em razão de dois fatores: perda
compulsória do direito de preferência na subscrição do aumento de ca­
pital e conseqüente alteração no quadro social, com implicações políti­
cas na gestão do negócio.
O interessante é que, sendo essas as justificativas, o mesmo direito
deveria ser concedido aos acionistas incorporadores dissidentes de uma
operação de incorporação de sociedades, que também estão sujeitos aos
mesmos efeitos depreciativos. Não se entende o porquê de a lei ter ado­
tado soluções distintas para casos idênticos, concedendo direitos de
recesso para ambos planos (incorporador e incorporado) na incorpora­
ção de ações e para apenas um deles (incorporado) na incorporação de
276 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

sociedades. O ideal seria apresentar soluções idênticas para os dois ca­


sos, ou concedendo ou negando o direito para ambos os planos nas duas
modalidades de incorporação.
Nos demais aspectos, o recesso é idêntico para ambas modalidades
de incorporação. Em primeiro lugar, os acionistas retirantes estão, nas
duas modalidades, sujeitos às restrições do art. 137, II, no tocante à li­
quidez e dispersão das ações detidas pelos minoritários. As noções de
liquidez e dispersão foram originalmente apresentadas na LF nº 9.457
de 05 de maio de 1997, que alterou a redação do art. 137 da LSA. Nessa
primeira versão, o Poder Público ainda tinha marcante presença como
controlador de empresas, a não-concessão do direito de recesso decorria
da simples caracterização de um dos dois elementos: liquidez ou disper­
são. A alternatividade dos elementos encontrava justificativa no fato de
que a exigência de cumulatividade implicaria em um bis in idem, já que
todas as companhias que integrassem índice de carteira de ações de mer­
cado futuro - liquidez - apresentavam controladores detentores de me­
nos da metade das ações em circulação - dispersão (COMPARATO,
RDM 1 16, p. 14).
O conceito de liquidez apresentado foi criticado por sua redação
imprecisa e restrita. Além de se referir a índices gerais representativos de
carteira de ações admitidas à negociação em "bolsas de futuros" - que, na
prática, incluía apenas o IBOVESPA (da Bolsa de Valores paulista), sob
a modalidade Contrato Futuro de IBOVESPA, na Bolsa de Mercadoria &
Futuros BM&F - o conceito não fazia menção aos certificados de ações
(ADR - american depositary receipt), o que gerou uma prolixa controvér­
sia (COMPARATO, RDM 1 16, p. 14-15).
Também o conceito de dispersão deu causa a comentários pouco elo­
giosos. A dispersão se caracterizava quando o controlador detinha menos
da metade do total de ações emitidas pela companhia. O critério, como
observaram diversos doutrinadores, criava algumas situações desconfortá­
veis, por se referir ao total de ações da companhia, ignorando as condições
próprias a cada espécie e classe, cuja aceitação no mercado variava drasti­
camente (DE LUCCA, RDM 1 14, p.32, e EIZIRIK, 1997, p. 72-73). O
MARCELO GUEDES NUNES - 277

conceito de dispersão também se referia, de maneira pouco precisa, às ações


de "propriedade do controlador", o que, para alguns, retirava do cálculo as
ações pertencentes a outras empresas ligadas, direta ou indiretamente, à
figura do controlador.
Visando a corrigir essas imperfeições, foi editada a LF nº 10.303,
que deu a atual redação ao art. 137 da LSA. O novo inciso II do art. 137
passou a exigir a cumulatividade (a lei substituiu o "ou" includente pela
conjunção "e") de liquidez e dispersão para a supressão do direito de
recesso e modificou a definição de ambas características. Hoje (alínea
'a'), a ação é considerada líquida ou liquidável quando a sua espécie, clas­
se ou respectivo certificado integre índice geral representativo de cartei­
ra de valores mobiliários admitido à negociação no mercado de valores
mobiliários, no Brasil ou no exterior, assim definido pela CVM. Pelo
mesmo artigo, inciso II, alínea 'b', há dispersão quando o acionista con­
trolador, a sociedade controladora ou outras sociedades sob seu controle
detiverem menos da metade da espécie ou classe de ação.
No caso da liquidez, além da menção aos certificados de ações (que
agora devem ser analisadas relativamente à sua classe e espécie), os índi­
ces adotados para a definição não mais se restringem ao mercado futuro,
incluindo todos os índices relativos ao mercado de valores mobiliários
admitidos pela CVM. No que diz respeito à dispersão, o novo conceito
refere-se às ações não só de propriedade direta do controlador, mas de
propriedade de outras sociedades sob o seu controle (controle indireto),
que, no seu conjunto, não podem ser titulares de 50% ou mais da classe
ou espécie de ação do minoritário prejudicada pela alteração de base
essencial.
Essas mudanças repararam parte das imperfeições da antiga reda­
ção, sem, porém, corrigir o maior problema do nosso conceito de disper­
são, que é o fato de ele se basear apenas na quantidade de ações detidas
pelo controlador. Na redação original, ainda mantida, há dispersão se os
minoritários detiverem 50% ou mais das ações de sua classe ou espécie.
O que essa informação diz a respeito da capacidade de livre alienação
das ações no mercado? Rigorosamente nada. Um controlador que dete-
278 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

nha 53% de uma classe ou espécie pode encontrar, do outro lado, milha­
res de minoritários negociando freneticamente os 47% restantes em um
mercado aberto. Ao mesmo tempo, um controlador pode deter 48% do
total de uma classe ou espécie de ação, sendo que os 52% restantes esta­
rão nas mãos de dois ou três minoritários, sem qualquer capacidade ne­
gocial. No primeiro caso, não há dispersão segundo a lei mas, na prática,
ela ocorre. No segundo caso, a lei diz que há dispersão mas, na realidade,
não há.
A General Corporation Law do estado de Delaware, inspiração de nosso
legislador, diz que há dispersão se mais de 2.000 acionistas detêm ações da
companhia. O número 2.000 é arbitrário (como o são também os cabalís­
ticos 50% da solução brasileira) e, certamente, não deve ser transplantado
sem uma verificação das condições próprias do nosso mercado. No entan­
to, a preocupação do legislador americano, ao menos, está voltada para um
elemento que mantém relação com a capacidade de negociação da ação,
que é a quantidade de pessoas que já a possuem hoje. As dimensões da
participação do controlador, se maior ou menor do que 50%, não são con­
clusivas para esse fim.
Outra hipótese de recesso a ser analisada diz respeito às operações
de incorporação que envolvem incorporadas de capital aberto e incorpo­
radoras de capital fechado. Tanto no caso da incorporação de sociedades
como no da incorporação de ações, os efeitos para os acionistas minori­
tários são o recebimento de ações de uma companhia fechada em subs­
tituição às da companhia aberta em que investiram.
O parágrafo 3º do art. 223 da LSA, incluído pela LF nº 9.457I
97, dispõe que as sociedades anônimas abertas, quando incorporadas,
fundidas ou cindidas, deverão ser sucedidas por companhias de capi-
tal igualmente aberto, promovendo a admissão de negociação das
,
novas ações no mercado no prazo máximo de 120 dias, contados da
data da assembléia geral que aprovou a operação. O descumprimento
dessa norma dá aos acionistas, nos termos do subseqüente parágrafo
4°, o direito de se retirarem da companhia, mediante o reembolso das
suas ações.
MARCELO GUEDES NUNES - 279

Aqui, o direito de recesso não decorre da incorporação em si, mas do


não-registro da incorporadora como companhia aberta, junto à CVM. A
norma em questão busca manter íntegras as condições de negociabilidade
das ações de propriedade do minoritário, após sua substituição por outras
emitidas pela companhia incorporadora. O fato de as ações que represen­
tam a sua participação na companhia objeto da reorganização societária
serem passíveis de negociação no mercado de valores mobiliários é, sem
dúvida, característica integrante das bases essenciais da companhia.
A sua supressão, por meio da substituição de suas ações por outras
de uma companhia fechada é, por isso, considerada motivo suficiente
para a outorga do direito de retirada.
Assim, o que a norma garante é um direito de acesso ao mercado, e
não a um determinado nível de negociação, preço ou rendimento. Todos
os acionistas da companhia objeto da reorganização terão o direito de
recesso, caso as ações da sociedade sucessora não sejam admitidas no
mercado. O prazo para a apresentação do pedido de retirada, de 30 dias,
será contado do término dos 120 dias para admissão em negociação das
novas ações, e o direito é exercido frente à nova companhia incorporado­
ra, nos termos de seu estatuto.
A existência de uma segunda oportunidade de saída via recesso, nos
casos de incorporação de companhias abertas, é muito relevante, pois
permite ao acionista minoritário escolher se exerce o direito em razão da
incorporação, com base no reembolso da companhia aberta incorporada,
ou aguarda a permuta de ações e, num segundo momento, exerce o direi­
to pela não abertura de capital no prazo de 120 dias, com base no reem­
bolso da companhia fechada incorporadora.
Como o art. 223 da LSA se refere apenas à incorporação, questiona-se
se o direito de recesso ali previsto se aplicaria apenas às incorporações de
sociedades, ou também às operações de incorporação de ações.
Por um lado, póde-se imaginar que a LSA trata da incorporação de
sociedades (art. 227) e da incorporação de ações (art. 252) como duas
operações juridicamente distintas. A primeira seria a verdadeira e única
incorporação e a segunda um mero aumento de capital disfarçado de
280 - REORGANIZAÇÃO 50CIETÁRIA

reorganização societária. Assim, toda vez que o legislador se referisse à


incorporação, a operação em mente seria aquela definida no art. 227 da
LSA e, quando e se o legislador pretendesse estender os efeitos das nor­
mas à incorporação de ações, o teria feito expressamente, como nos ca­
sos dos arts. 252, 264, parágrafo 4º, da LSA e art. 12 da IN-CVM nº
3 1 9/99. Nessa linha, como o art. 223 da LSA fala apenas em incorpora­
ção sem estender expressamente seus efeitos à operação prevista no art.
252, poderíamos concluir que não há direito de recesso por não-abertura
de capital após a realização de uma incorporação de ações.
A posição, no entanto, não é correta. A incorporação de ações não é
um mero aumento de capital disfarçado, mas sim uma incorporação ge­
nuína, em que (i) um negócio jurídico estabelecido entre duas ou mais
sociedades resulta na (ii) união de todos os acionistas sob o regime esta­
tutário da incorporadora. A única distinção relevante entre ambas é que,
na incorporação de sociedades, o patrimônio da companhia é incorpora­
do e conferido ao capital da incorporadora, desaparecendo a personali­
dade jurídica da empresa incorporada. Já na incorporação de ações, as
ações que representam esse patrimônio são o objeto da incorporação,
mantendo-se a personalidade jurídica da empresa incorporada.
Há, portanto, na LSA um gênero incorporação, que se subdivide
em duas espécies, a incorporação de sociedades (art. 227) e a incorpora­
ção de ações (art. 252). Cabe ao intérprete identificar em que momentos
a lei se refere a um, a outro ou a ambos. No Capítulo XVIII, dedicado às
reorganizações societárias, o legislador começa tratando de maneira ge­
nérica dos quatro tipos de operações previstas em lei, a saber, incorpora­
ção fusão, cisão e transformação. Assim, do art. 223 até o art. 226, a LSA
se refere genericamente à competência, processo, protocolo, justificação
e formação do capital da incorporação. O que o legislador apresenta no
subseqüente art. 227 é uma definição de incorporação de sociedades,
espécie do gênero de que vinha tratando desde o início do Capítulo, junta­
mente das outras modalidades de reorganização previstas em lei. Ora:
quando o legislador pretende definir um dado instituto ele o faz antes de
passar a regulá-lo de maneira efetiva. Não faria sentido hermenêutico o
MARCELO GUEDES NUNES - 281

legislador utilizar-se da expressão incorporação em diversos artigos inici­


ais do capítulo dedicado às operações societárias da LSA, para apenas
depois apresentar a definição daquilo que vinha tratando há tempos. Vê­
se, assim, que os artigos de abertura do capítulo XVIII da LSA se refe­
rem à incorporação gênero, que contém em si tanto a incorporação de
sociedades como a incorporação de ações, ambas definidas mais adiante
pelos arts. 227 e 252 da LSA, respectivamente.
Dito isso, não é difícil concluir que o art. 223, o primeiro dentro do
Capítulo XVIII a tratar de incorporação, é um dos dispositivos da LSA
que se referem ao gênero dessa operação, e não apenas a uma de suas
espécies. D a mesma forma, os parágrafos 3º e 4° do art. 223, que tratam
da não abertura de capital e da outorga do direito de recesso após 120
dias do fechamento, são aplicáveis a toda e qualquer modalidade de in­
corporação, e não apenas àquela prevista no art. 227 da LSA.
Além do mais, vimos que a função do recesso é dar ao acionista que
tenha tido as bases essenciais de seu investimento alteradas uma oportu­
nidade de saída, obrigando a companhia a adquirir a participação por ela
própria desfigurada. A alteração de base essencial a que o recesso do art.
223, parágrafo 4°, da LSA busca evitar é a perda do acesso ao mercado
organizado de ações, decorrente da substituição das ações de uma com­
panhia de capital aberto por outra de capital fechado. Está bastante claro
a esta altura que tal perda ocorre de maneira idêntica em ambas modali­
dades de incorporação (de sociedades ou de ações), sendo indiferente ao
minoritário da incorporada, compulsoriamente levado à incorporadora,
se o objeto da incorporação foi as suas ações ou o patrimônio por elas
representado. Nada mais equilibrado, portanto, do que outorgar, para
situações idênticas, soluções jurídicas equivalentes, concedendo o direi­
to de recesso previsto no art. 223, parágrafo 4º, tanto para incorporação
de ações como para incorporação de sociedades.

6. PROCEDIMENTO DO RECESSO
O procedimento do recesso se inicia com a apresentação do pedido
de retirada e termina com o pagamento do reembolso.
282 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

O pedido de retirada é a reclamação formal que o acionista apre­


senta à companhia comunicando o exercício do recesso (art. 136, IV, da
LSA) e requerendo o pagamento do reembolso de suas ações (art. 45 da
LSA). Em sendo um negócio unilateral, o pedido de retirada é a mani­
festação de vontade do acionista, que o aperfeiçoa.
Em regra, o pedido de retirada deve ser apresentado à administração
da companhia no prazo de 30 dias, contados da publicação da ata da as­
sembléia geral que deliberou pela alteração de base essencial. A entrega
deve ser feita na sede da empresa, ou em outro endereço preestabelecido
pelas partes, não havendo forma especial que lhe seja inerente. Basta ser
por escrito, contendo a identificação do acionista.
O prazo para entrega do pedido de retirada é contado do primeiro
dia útil subseqüente ao da publicação da ata, data em que os represen­
tantes da companhia estavam disponíveis para o protocolo. No entanto,
o termo inicial da contagem e o prazo variam na lei4 • Nos casos de fusão,
incorporação e incorporação de ações (arts. 136, IV, e 252 da LSA), dada
à multiplicidade de assembléias de que depende a operação, o prazo de
30 dias será contado, isoladamente para cada companhia envolvida, da
data de publicação da ata da respectiva companhia que aprovar o proto­
colo ou justificação. O pagamento do reembolso, no entanto, fica condi­
cionado à posterior efetivação da operação (art. 230 da LSA).
No caso de recesso por não-abertura de capital decorrente de incor­
poração, fusão ou cisão, que envolva companhia aberta sucedida por com­
panhia fechada (art. 223, parágrafo 4º, da LSA), o prazo para apresentação
do pedido conta-se não da assembléia que deliberou pela reorganização
societária. Os 30 dias devem ser contados do primeiro dia útil subse-

4 É curioso notar que, das 1 2 hi póteses hoje existentes, sete não seguem à risca a regra geral
de apresentação do pedido de retirada 30 dias após a publ icação da ata que del iberou pela
alteração de base essencial, o que faz da exceção a regra, e da regra a exceção. A reforma
introduzida no Codice Civile italiano em 2003 atentou para o fato de que nem todas as
hi póteses de recesso decorrem de deliberações assembleares. Por isso, o art. 2.347_bis dis­
põe agora que, caso o recesso tenha por fundamento ato diverso de uma deliberação em
assembléia, o termo inicial da contagem do prazo para a apresentação do pedido de retira­
da (/ettera raccomandata} será a ciência inequívoca do acionista, e o prazo será de 30 dias,
contra os 1 5 que vigoram como regra geral.
MARCELO GUEDES NUNES - 283

qüente ao término do prazo de 120 dias que a companhia resultante da


reorganização tinha para obter o registro de companhia aberta ou, se for
o caso, para ter admitida as novas ações no mercado secundário (art. 223,
parágrafo 3º, da LSA).
O direito de recesso é negócio unilateral, potestativo e receptício,
ou seja: se aperfeiçoa pela declaração de uma das partes, ante um ato
praticado pela outra. Essa declaração não precisa ser aceita, ratificada ou
reconhecida pelo recipiente. O aperfeiçoamento do negócio depende do
recebimento da declaração dentro do prazo legal. Recebimento e reco­
nhecimento são fenômenos distintos. Se a declaração não é entregue ao
destinatário ou não é entregue dentro do prazo correto, o direito não foi
exercido. No entanto, uma vez entregue, o aperfeiçoamento do negócio
independe da concordância ou do reconhecimento dos efeitos pelo des­
tinatário daquele ato.
O prazo para a apresentação do pedido de retirada e conseqüente
exercício do direito de recesso é decadencial, nos termos do art. 137,
parágrafo 4º, da LSA. Tanto o prazo decadencial como o prescricional
são estabelecidos para que o obrigado não fique refém da inércia do
titular do direito por prazo indeterminado. O fato de o prazo ser deca­
dencial traz conseqüências importantes. A decadência difere da pres­
crição por afetar o direito material (o direito de recesso e à percepção
do reembolso) e não o direito processual de provocar as autoridades
judiciárias para declarar esses direitos. O direito decadencial extingue
não os meios para se valer o direito, mas o direito em si, o objetivo a
que o meio pretendia atingir. Diferentemente de prazos prescricionais,
os prazos decadenciais não se interrompem ou suspendem. Correm
ininterruptamente, até o seu termo. Por isso, qualquer medida, judicial
ou extrajudicial, que pretenda suspender ou interromper o prazo para
exercício do direito de recesso é inoperante.
Uma vez entregue o pedido de retirada e aperfeiçoado o negócio
jurídico, não poderia mais o acionista se retratar, voltando em sua inten­
ção de se retirar da companhia. O recesso é negócio jurídico unilateral,
ou seja, se forma com uma só manifestação de vontade. A desistência do
284 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÃRIA

recesso dependeria de uma concordância da companhia, sem o que não


seria possível o desfazimento do negócio.
No entanto, o recesso também é um negócio oneroso, em que as
partes possuem obrigações recíprocas: a companhia deve pagar o reem­
bolso, e o acionista deve tomar as providências para a sua saída do qua­
dro social. Caso o acionista apresente o pedido de reembolso, e a
companhia se recuse a pagá-lo, entende-se que essa recusa é uma mani­
festação tácita da vontade da companhia de que o acionista permaneça
em seu quadro de investidores. Como não há necessidade de expressa
manifestação dessa vontade, entendemos que, caracterizada a recusa no
pagamento do reembolso, poderia o acionista se retratar de sua decisão,
permanecendo vinculado à companhia.
O objeto do direito de recesso é as ações da classe ou espécie de que
o acionista era comprovadamente titular, à época da primeira publicação
do edital de convocação da assembléia que deliberar pela alteração ou na
data da comunicação do fato relevante (art. 137, parágrafo 1 º, da LSA).
A solução deixa uma lacuna: definir o objeto e a extensão do recesso para
as hipóteses que não decorram diretamente de assembléia, como no caso
do art. 223 da LSA. Nesta hipótese, não há assembléia que acione o
direito de recesso, mas o transcurso do prazo de 120 dias para abertura
do capital. Por isso entendemos que o acionista terá direito de recesso
sobre todas as ações de que se tornou titular em razão da incorporação.
As ações adquiridas depois da operação o foram com a consciência de
serem participação de companhia de capital fechado e não podem ser
objeto da retirada.
Decidida e implementada a alteração de base essencial, se esta ocorrer
por meio de assembléia geral da companhia, o art. 1 37, parágrafo 3º, da
LSA dá à companhia o direito de retratar-se da deliberação no prazo de
dez dias subseqüentes ao término do prazo dos incisos IV e V do mesmo
artigo (30 dias a partir da publicação da ata de assembléia). A idéia da
retratação em até dez dias após o término do prazo para apresentação
dos pedidos de retirada é possibilitar à companhia, uma vez verificado o
montante a ser pago a título de reembolso, voltar atrás na decisão toma-
MARCELO GUEDES NUNES - 285

da, caso o custo desses pagamentos seja excessivo ou proibitivo. Seria


uma oportunidade para reavaliar a conveniência da deliberação (GUER­
REIRO, RDM 44, p. 22-27, e TEIXEIRA e GUERREIRO, 1979, p.
429-430).
A assembléia de retratação só é possível nas hipóteses nas quais a
companhia foi a responsável pela deliberação que deu caso ao recesso.
Excetuam-se, portanto, a hipótese do art. 223, parágrafo 4º (não-abertu­
ra do capital após 120 dias), e também a, para dizer o mínimo, esquisita
hipótese do art. 236 (desapropriação pelo Poder Público). Por se tratar
de direito subjetivo, de uma faculdade da administração da companhia,
parece-nos que o prazo para convocação de assembléia de retratação da
companhia é decadencial, e que, portanto, não seria passível de suspen­
são ou interrupção. JOS É ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO
(RDM 44, p. 26), no entanto, entende que, pelo fato de o interesse tute­
lado pela norma ser de administração da companhia, não há direito sub­
jetivo, mas um poder, o que torna inapropriado falar em decadência. Para
ele, a companhia poderia suspender o prazo se os pedidos de recesso não
contivessem fundamentação suficiente à apreciação do juízo de conve­
niência da manutenção ou não da deliberação.
Apesar das considerações do ilustre doutrinador, mantemos nossa
posição. Qiando tratamos do pedido de retirada, verificamos que esse
ato do acionista minoritário independe de qualquer tipo de formalidade
para ser válido. Também acabamos de verificar que a função da assem­
bléia de reconsideração é apenas a de dar à companhia uma oportunida­
de de voltar atrás na deliberação, caso o volume de pedidos apresentados
torne financeiramente inviável a operação. A única "justificativa" de que
necessita o acionista para exercer o direito é a caracterização da hipótese
do recesso. Uma vez presente, ele não está obrigado a se estender em
maiores explicações sobre as motivações de sua retirada. Da mesma for­
ma, o juízo de conveniência e oportunidade a ser feito pela administra­
ção da companhia se restringe a um cálculo econômico a respeito do
montante total de reembolsos a ser pago. Para que esse cálculo seja feito,
basta saber o valor do reembolso e a quantidade de ações dos retirantes.
286 - REORGAN IZAÇÃO 50CIETÃRIA

Durante esses dez dias, não pode o acionista, nos termos do art.
137, inciso VI, da LSA, reclamar o pagamento do reembolso. No entan­
to, nada impede que a companhia o pague espontaneamente. Caso seja
convocada a assembléia de reconsideração, a reclamação do pagamento
do reembolso é vedada até a sua realização. Não há prazo máximo entre
a convocação e a realização de uma assembléia. Para as companhias fe­
chadas, há um prazo mínimo de oito dias em primeira convocação e de
cinco dias em segunda convocação e, para as abertas, há um prazo tam­
bém mínimo de quinze e oito dias, em primeira e segunda convocação,
respectivamente.
A inexistência de um prazo máximo cria o problema de haver uma
convocação para assembléia a se realizar em data distante, deixando os
acionistas em suspenso quanto à efetividade ou não do recesso. Nesse ponto,
a nova legislação italiana apresentou uma solução mais feliz. Em vez de
falar em prazo para convocação, o novo art. 2.437_bis do Godice Civile dá à
companhia 90 dias para efetivamente reconsiderar a deliberação: "II recesso
non pub essere esercitato e, se già esercitato, eprivo di efficacia, se, entro novanta
giorni, la società revoca la delibera que lo legittima ovvero se e deliberato lo
scioglimento dei/a società. "

7. VALOR DE REEMBOLSO E INCORPORAÇÃO DE CONTROLADA


O reembolso está previsto no art. 45 da LSA e é ali definido como
"a operação pela qual, nos casos previstos em lei, a companhia paga aos
acionistas dissidentes de deliberação de assembléia geral o valor de suas
ações".
Já na definição legal uma impropriedade aparece. O pagamento
do reembolso nem sempre decorre de uma dissidência de assembléia
geral. Há hipóteses que não têm relação com matérias aprovadas em
assembléia e, ainda assim, são compensadas com pagamento do valor
do reembolso de que trata o art. 45. Essa impropriedade é resultado da
visão do recesso como exceção ao princípio majoritário, que, ante as
novas modificações da lei e do avanço dos estudos do recesso, não mais
se mostram válidas. O ideal seria retirar da lei a menção aos "dissiden-
MARCELO GUEDES NUNES - 287

tes de deliberação", substituindo-a pela expressão "minoritários" ou


"não-controladores".
Os demais elementos da definição são apropriados, porém insufici­
entes. Ao mencionar os "casos previstos em lei", a definição remete ao
rol restrito de hipóteses do recesso, fazendo constar que o reembolso não
resulta de qualquer pagamento feito em favor do acionista, mas apenas
daqueles que têm sua origem no exercício desse direito. No entanto, a
impropriedade da expressão "dissidente de assembléia geral" turva esse
conceito e, se desconsiderada, como de fato deve ser, faz com que o con­
ceito de reembolso se confunda com outras hipóteses legais de negocia­
ção forçada, como a Oferta Pública de Ações (OPA), o resgate e a
amortização, que também são "operações em que a companhia paga aos
acionistas o valor de suas ações nos casos previstos em lei".
Para construir uma definição exata por gênero e diferença do reem­
bolso falta acrescer à formulação original os elementos que distinguem
essa operação das demais previstas na mesma seção da LSA, sendo o prin­
cipal deles o fato de o reembolso ser a única operação que pode ser paga
contra a conta capital social da companhia. As demais dependem da exis­
tência de lucros ou reservas disponíveis na mesma.
Dessa forma, propomos a seguinte definição: reembolso é a opera­
ção pela qual, na hipótese de exercício do direito de recesso, a compa­
nhia paga aos acionistas minoritários o valor de suas ações, com ou sem
redução do capital social.
Na atual redação do art. 45, o patamar de fixação do reembolso é o
do valor patrimonial contábil da ação. A adoção do valor patrimonial
contábil fica clara por meio da adoção da expressão "valor do patrimônio
líquido constante do último balanço aprovado pela assembléia geral" no
parágrafo 1 º do artigo em questão. Só poderá haver reembolso em valor
inferior ao patrimonial contábil caso o estatuto preveja reembolso com
base no valor econômico da ação.
A doutrina, contudo, quase nunca discute a existência de um limite
máximo para fixação do valor do reembolso. Se, por um lado, o art. 45
fixa pisos a serem respeitados pela companhia, por outro, dá liberdade
288 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

para estabelecer esse valor livremente no estatuto, desde que respeitados


os limites mínimos. Essa liberdade, no entanto, não é irrestrita, à medida
que o pagamento do reembolso ao acionista afeta diretamente o patrimô­
nio da companhia, que, por sua vez, se presta à garantia de terceiros, credo­
res negociais ou não-negociais, que titularizam créditos frente à empresa.
Em países em que há verdadeira competição pela captação de in­
vestimentos no mercado de ações, a fixação de um valor de reembolso
atraente pode ser o fiel da balança, que pesará em favor de uma compa­
nhia em detrimento da outra, na busca de novos interessados na aquisi­
ção de seus papéis. No entanto, a fixação de valores elevados de reembolso,
que num primeiro momento pode interessar à companhia (que visa a
atrair investidores) e ao acionista (que visa a ser bem remunerado em
caso de recesso), é potencialmente lesiva a terceiros credores da empresa,
que vêem ali uma via de escape dos valores patrimoniais da empresa em
favor de seus sócios e um meio de esvaziar a única garantia de realização
de seus créditos. Esse risco perante terceiros fica ainda mais evidente
quando lembramos que o reembolso pode ser pago com valores da conta
capital social da companhia, caso essa não disponha ou não queira dispor
de seus lucros acumulados ou reservas.
A empresa é constituída de relações plurilaterais, em que devem
estar representados os interesses de todas as partes que tomam lugar no
processo de produção e fornecimento de bens (empregados, fornecedo­
res, sócios, administradores etc.). Logo, entendemos que a liberdade de
fixação do valor do reembolso deve respeitar os parâmetros de mercado,
para não servir como via de espoliação do patrimônio social. Esses parâ­
metros estão expressos dentro do conceito de preço justo da ação, que,
apesar de flexível, encontra referências indicativas na LSA (vide art. 1 70,
incisos I, II e III, e BULGARELLI, 1977, p. 75) e nas normas regula­
mentadoras da CVM (vide Instrução CVM nº 361, art. 8°). Assim, o
valor do reembolso não precisa se limitar ao valor patrimonial contábil, a
preços de mercado ou ao valor econômico da ação, mas deve estar dentro
dos padrões de negociação aceitos no mercado, sob pena de enriqueci­
mento sem causa do acionista.
MARCELO GUEDES NUNES - 289

Mas tratemos da incorporação de controladas. A operação de in­


corporação de controlada por sua controladora, em razão do potencial
conflito substancial de interesses e abuso de poder de controle, tem na
LSA uma regulação específica no art. 264 da LSA que busca proteger o
interesse dos acionistas minoritários. Controlada, para os fins do artigo
de lei, é a companhia cuja incorporadora detém, direta ou indiretamen­
te, ações que lhe garantam de modo permanente preponderância nas
deliberações e a capacidade de escolher os administradores. O conflito
de interesses potencial se manifesta no fato de que a empresa incorpora­
dora é também a controladora da incorporada, apresentando a operação
caráter que, na prática, se assemelha ao do contrato consigo mesmo.
Por ser uma incorporação, a operação prevista no art. 264 da LSA
dá aos acionistas da controlada direito de recesso, nos termos dos arts.
136, inciso IV, e 137 da LSA. No entanto, o valor do reembolso da in­
corporação de controlada possui uma especificidade em relação às ope­
rações de incorporação em geral.
O art. 264, caput, da LSA determina que, além das informações dos
arts. 224 e 225 da LSA, a justificação deverá apresentar uma compara­
ção entre o valor do patrimônio líquido a preços de mercado (ou outro
critério aceito pela CVM, na hipótese de companhias abertas, como o
bursátil ou o econômico) das duas companhias, de forma a extrair dali
uma relação de substituição das ações a preços de mercado. Diz o subse­
qüente parágrafo 3º que, caso a relação de substituição constante do pro­
tocolo de incorporação for desvantajosa quando comparada com a relação
de substituição resultante da comparação do caput, poderão os acionistas
minoritários da companhia incorporada exercer o recesso, optando pelo
valor do reembolso nos termos: (i) do estatuto com o patamar mínimo
do art. 45 ou (ii) da comparação do art. 264, caput (TEIXEIRA e GUER­
REIRO, 1979, p. 674).
Vemos que a intenção do legislador foi, sem subverter as normas
que regulamentam o recesso e a apuração do valor de reembolso, facultar
aos dissidentes de incorporação de controlada o recebimento de uma
contrapartida por suas ações com base no valor patrimonial de mercado
290 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

ou, para os casos e companhias abertas, com base em critério aceito pela
CVM, órgão que regula e defende o mercado de valores mobiliários.
Uma questão que surge aqui é a do que seria esse critério de
avaliação aceito pela CVM. Não há nenhuma norma que trate espe­
cificamente do assunto editada pela autarquia. Há, porém, a Instru­
ção CVM nº 3 6 1 , que trata da formulação de OPA. Em seu art. 8°, a
Instrução indica diversos critérios de avaliação que j á são reputados
como válidos pela CVM, sem prejuízo de outros que expressem um
valor justo. Da redação do artigo, vemos que a CVM reputa como
válidos o critério do valor bursátil (calculado com base na média pon­
derada dos últimos 12 meses), o valor econômico (seja com base no
método de caixa descontado ou por múltiplos) e o valor patrimonial
a preços de mercado. No entanto, dada à dificuldade e subjetividade
inerentes à avaliação de empresas, a idéia do legislador foi a de deixar
uma cláusula aberta na lei, permitindo à CVM avaliar, nos casos que
envolvam companhias abertas, a pertinência ou não da avaliação le­
vada a efeito pela incorporadora-controladora, como consta do con­
ceito de preço justo do inciso IV.
O reembolso deve ser, em regra, pago à vista, contra a apresentação
do pedido de retirada ou, no mais tardar, imediatamente após o trans­
curso do prazo para convocação da assembléia de retratação (art. 137,
VI, da LSA). Há, no entanto, duas exceções a essa regra. Nos casos em
que o acionista retirante requerer a elaboração de um balanço especial
(art. 45, parágrafo 2°), o reembolso poderá ser pago em duas vezes, a
primeira à vista, em valor correspondente a 80% do reembolso com base
no balanço ordinário, e o restante no prazo de 120 dias, contados da data
da deliberação da assembléia geral.
A segunda exceção está prevista no art. 230 da LSA, e não diz
respeito ao número de parcelas, mas ao momento do pagamento da
parcela única. Assim, quando ocorrer incorporação ou fusão, o paga­
mento do preço de reembolso não será devido no ato da apresentação
do pedido de retirada, mas apenas imediatamente após a efetivação da
operação (TEIXEIRA e GUERREIRO, 1979, p. 261).
MARCELO GUEDES NUNES 291
-

No que diz respeito à extinção da obrigação do reembolso, o meio


usual é o pagamento em dinheiro (arts. 304 a 333 do CC). Isso porque o
art. 45 da LSA é claro ao definir o reembolso como a operação por meio
da qual a companhia paga ao acionista o valor de suas ações. Da mesma
forma, o art. 230 da LSA fala expressamente em preço do reembolso, não
deixando dúvidas quanto ao caráter de pagamento monetário da obrigação.
Mas daí surge a questão: o reembolso realmente só pode ser extin­
to pelo pagamento? Em princípio, essa não é uma verdade absoluta.
Além do pagamento, outra forma de extinção do reembolso que inde­
pende da prévia concordância do acionista é a compensação (arts. 368
a 380 do CC), nos casos de ações amortizadas, acionistas remissos ou
em mora, em que os débitos dos acionistas para com a companhia (va­
lor da amortização e parcelas do preço de emissão) são abatidos ou com­
pensados contra o reembolso. Perde-se o caráter de pagamento, porém
mantém-se a natureza monetária da obrigação.
Permanece a questão sobre se o reembolso pode ser extinto por meio
de uma dação, faculdade legal que permite ao credor receber prestação
diversa da que lhe é devida (art. 356 do CC). O reembolso é uma obriga­
ção atípica, à medida que o seu pagamento pode ser feito até mesmo
contra o capital social, afetando não só às partes diretamente envolvidas
(companhia e acionistas retirantes), mas também terceiros, credores da
empresa que têm no seu patrimônio uma garantia de satisfação. A ne­
cessidade de pagamento da prestação exata estabelecida em lei e no esta­
tuto decorre exatamente da responsabilidade que estes têm perante
terceiros e, daí, da impossibilidade de o credor e de a companhia transi­
girem a respeito da prestação que pretendam pagar, com efeitos impre­
vistos sobre o seu patrimônio e, talvez, sobre a conta do capital social.
Pressupõe-se que, incluído o critério no estatuto, os credores da
companhia tenham dele conhecimento, tendo também computado os
riscos de eventual pagamento do reembolso no preço de seus negócios
com a companhia. E é exatamente por haver previsão no estatuto - um
documento público que influencia diretamente no cálculo das relações
entre a companhia, acionistas, empregados e terceiros -, que as partes
292 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

do recesso não podem, imediatamente antes do pagamento do reem­


bolso, alterar por sua conta o critério estatutário, substituindo a forma
de pagamento por outra até então desconhecida de todos.
Além disso, o pagamento por meio de dação impede o tratamento
equânime de todos os acionistas retirantes, especialmente se a dação se
der por meio da entrega de bens infungíveis (PEIXOTO, 1972, vol. 1 ,
p. 1 94, e CO STA, 1 965, p. 141/142). Dessa forma, ao que nos parece,
assim como não é possível a novação do recesso em qualquer forma (o
critério estatutário vincula), não é possível a dação em pagamento ou
mesmo a cessão de crédito como forma de extinção do reembolso
(CARVALHOSA, 2002, vol. 1, p. 445) .

. 8. CONCLUSÕES
As conclusões relevantes desse artigo são as seguintes:
1. O recesso não mais pode ser encarado como um ato de resilição do
pacto social por parte de um acionista dissidente de assembléia geral. Há
hipóteses de recesso que não decorrem de deliberação majoritária em as­
sembléia e a 'margem de liberdade outorgada pela LSA para a fixação priva­
da do valor do reembolso, do destino das ações e mesmo de reconsideração
da assembléia geral demonstram que o recesso não é o desfazimento de um
antigo negócio (resilição), mas um novo negócio jurídico envolvendo a com­
panhia e ações de sua emissão. Não por outra razão, o recesso está relaciona­
do no rol de exceções do art. 30 da LSA.
2. A incorporação é gênero de operação de reorganização societá­
ria, que engloba duas espécies: a incorporação de sociedades (art. 227 da
LSA) e a incorporação de ações (art. 252 da LSA). Nos termos do art.
252, a incorporação de ações dá direito de recesso tanto aos minoritários
da incorporadora como da incorporada. Já na incorporação de socieda­
des do art. 227, o recesso é dado apenas para os acionistas da incorpora­
da, sem qualquer justificativa aparente.
3. Nos casos de incorporação de companhia aberta por companhia
fechada, há direito de recesso pela não abertura de capital, nos termos do
art. 223 da LSA, em quaisquer das espécies de incorporação, seja ela de
MARCELO GUEDES NUNES - 293

ações ou de sociedades. O art. 223 se refere ao gênero incorporação, e


não à espécie incorporação de sociedades, que só é definida no subse­
qüente art. 227.
4. O prazo para apresentação do pedido de recesso por não�abertu­
ra de capital é de 30 dias. Seu termo inicial é o primeiro dia útil subse­
qüente ao término do prazo de 120 dias que a companhia resultante da
reorganização tinha para obter o registro de companhia aberta. Nesta
hipótese o acionista terá direito de recesso sobre todas as ações de que
era titular ao final do 120º dia do prazo, o último que a companhia tinha
para atender a determinação legal.
5. O art. 264, caput, da LSA determina que a justificação de incorpora­
ção de controlada deverá apresentar uma comparação entre o valor do patri­
mônio líquido a preços de mercado das duas companhias, de forma a extrair
dali uma relação de substituição das ações a preços de mercado. O subse­
qüente parágrafo 3º diz que, caso a relação de substituição constante do
protocolo de incorporação for desvantajosa quando comparada com a relação
de substituição resultante da comparação do caput, poderão os acionistas mi­
noritários da companhia incorporada exercer o recesso, optando pelo valor do
reembolso nos termos: (i) do estatuto com o patamar mínimo do art. 45 ou (ii)
da comparação do art. 264, caput
6. A obrigação de reembolso deve ser paga, em regra, à vista. Há, no
entanto, duas exceções. Nos casos em que o acionista requerer a elaboração
de um balanço especial (art. 45, parágrafo 2°), o reembolso poderá ser pago
em duas vezes, a primeira à vista, em valor correspondente a 80% do reem­
bolso, e o restante no prazo de 120 dias. A segunda exceção é a do art. 230 da
LSA, e não diz respeito ao número de parcelas, mas ao momento do paga­
mento da parcela única. Qyando ocorrer incorporação ou fusão, o reembol­
so não será devido no ato da apresentação do pedido de retirada, mas apenas
após a efetivação da operação.
7. O reembolso deve, em regra, ser extinto através de pagamento
em dinheiro, mas pode também ser objeto de compensação de obriga­
ções. No entanto, é vedada a extinção do reembolso através de dação em
pagamento ou novação.
294 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

9. BIBLIOGRAFIA
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mas no direito brasileiro. São Paulo: José Bushatsky, 1979.
Considerações sobre a
Responsabilidade
Tributária na Cisão Parcial

Marcelo Knoepfelmacher

Advogado em Sáo Paulo


Mestrando em Direito Tributário na PUC/SP
Diretor Administrativo do Instituto de Pesquisas Tributárias - IPT
296 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

1. INTRODUÇÃO
Muito honrados com o convite para participar de obra coletiva,
em meio a tão ilustres advogados societaristas, decidimos discorrer
sobre tema que envolve ambas as sub-áreas do direito.
No presente estudo, apresentaremos considerações sobre a respon­
sabilidade tributária, na hipótese de cisão parciaP , oportunidade em que
daremos especial atenção aos limites para atribuição de responsabilida­
de solidária entre a sociedade cindida e as que absorverem parcela de
seu patrimônio.
Isto porque, em casos práticos, pudemos verificar que a D. Procu­
radoria da Fazenda Nacional está a entender que, mesmo nas hipóte­
ses de cisão parcial, com clara separação de obrigações no ato da cisão,
à luz do que prevê a Lei das Sociedades Anônimas, existiria solidarie­
dade, relativamente ao montante total de eventual crédito tributário,
entre a sociedade cindida e as que tenham absorvido parcela de seu
patrimônio. 2
No nosso entendimento, a posição da Procuradoria da Fazen­
da Nacional não parte, data maxima venia, da melhor interpretação
acerca das normas jurídicas válidas em nosso ordenamento, as quais
expressamente desautorizam a conclusão alcançada por esse D.
Ó rgão.
É o que passaremos a expor nos tópicos seguintes.

Como é de conhecimento, a Lei das Sociedades Anônimas estabelece, em seu artigo 229,
o conceito de cisão, definido como "a operação pela qual a companhia transfere parcelas
do seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constitu/das para esse fim ou já existentes,
extinguindo-se a companhia cindida, se houver versão de todo o seu patrímônio, ou divi­
dindo-se o seu capital, se parcial a versão. "
2 Agravo de I nstrumento nº 2004.03.00.0581 23-1 (TRF/3' Região), interposto nos autos do
Mandado de Segurança nº 2004.61 .00.025745-5, relativo à expedição de certidão negati­
va de débitos de companhia que absorveu, por meio de cisão parcial, parcela de patrimônio
de outra companhia, e que, no entendimento da Procuradoria da Fazenda Nacional, deve­
ria responder por todo o montante do suposto crédito tributário.
MARCELO KNOEPFELMACHER - 297

l i . A RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA NA FUSÃO,


TRANSFORMAÇÃO E INCORPORAÇÃO PERANTE o CTN
O Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/66), recepcionado com
status de lei complementar perante a Constituição de 19883 , trata da res­

ponsabilidade tributária ao longo dos seus artigos 128 a 138.


No que tange à responsabilidade dos sucessores, o CTN apresenta
dispositivo (artigo 132) que cuida das hipóteses de fusão, transformação ou
incorporação de pessoas jurídicas de direito privado, nos seguintes termos:
''Art. 132. A pessoa jurídica de direito privado que resultar de fusão,
transformação ou incorporação de outra ou em outra é responsável pe-
los tributos devidos até a data do ato pelas pessoas jurídicas de direito
privado fusionadas, transformadas ou incorporadas.

Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se aos casos de extinção


de pessoas jurídicas de direito privado, quando a exploração da respec­
tiva atividade seja continuada por qualquer sócio remanescente, ou seu
espólio, sob a mesma ou outra razão social, ou sob firma individual."

Da leitura do dispositivo supra transcrito, verifica-se que não há


sequer a alusão à hipótese de cisão, limitando-se o legislador do CTN a
tratar das hipóteses de fusão, transformação4 ou incorporação.

3 O entendimento predominante perante o Plenário do Supremo Tribunal Federal é no senti­


do de que o CTN é a Lei Complementar de que trata o artigo 1 46, Ili, da Constituição,
segundo o qual "compete à lei complementar estabelecer normas gerias em matéria de
legislação tributária, especialmente sobre (a) definição de tributos e de suas espécies, bem
como, em relação aos impostos discrimi nados nesta Const ituição, a dos respectivos fatos
0
geradores, bases de cálculo e contribui ntes; (b) obrigação, lançamento, crédito, prescri­
ção e decadência tributários ( ... )" (destacamos).
É o que se verifica de excerto do voto do Min . CARLOS VELLOSO, proferido nos autos do
célebre R E nº 1 38.284-8/CE, relativo à Contribuição Social sobre o Lucro das Pessoas Jurí­
dicas: "Todas as contribuiçôes, sem exceção, sujeitam-se à lei complementar de normas
gerais, assim, ao CTN (art. 146, Ili, ex vi do disposto no artigo 149). (... ) A questão da
prescrição e da decad�ncia, entretanto, parece-me pacificada. É que tais institutos são
próprios da lei complementar de normas gerais (art. 146, Ili, "b"). Quer dizer, os prazos
de decad�ncia e de prescrição inscritos na lei complementar de normas gerais (CTN)
são aplicáveis, agora, por expressa previsão constitucional, às contribuiçôes parafiscais
(CF, art. 146, Ili, b; art. 149)" (destacamos e grifamos)
4 Na opinião de IVES GANDRA DA SI LVA MARTINS, o termo "transformação", util izado
pelo legislador do CTN, "abrange qualquer tipo de alteração procedida na forma exterior da
sociedade, inclusive atingindo a alteração de controle acionário, mais bem definida na regra do
art. 133. " in Comentários ao Código Tributário Nacional, Volume 2, Saraiva, 2002, pág. 249.
298 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

Não havendo expressa menção à hipótese de cisão (seja total, seja


parcial), também não há, nos termos do CTN, referência expressa à atri­
buição de responsabilidade tributária solidária5 , nessa mesma hipótese.
Assim, considerando que o CTN é a lei complementar que trata das
normas gerais em matéria tributária (inclusive sobre "Obrigação Tributá­
ria", Título no qual se insere o Capítulo da "Responsabilidade Tributária"),
a atribuição de responsabilidade tributária solidária, na hipótese de cisão
parcial, somente poderia estar disposta em veículo normativo de equivalen­
te hierarquia, nos termos do que exige a Constituição.
Todavia, como se verá a seguir, a responsabilidade tributária no
caso de cisão parcial, decorre de dispositivo de Decreto-lei, de duvidosa
recepção6 perante a Constituição de 1988.

I l i . A RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA NA CISÃO E o RIR/99


A expressa atribuição de responsabilidade tributária, na hipótese de
cisão, sobreveio com o Decreto-lei nº 1.598, de 1977, em especial o seu arti­
go 5°, cujos dispositivos foram consolidados na redação do artigo 207 do
atual Regulamento do Imposto de Renda (RIR/99), nos seguintes termos:
"Art. 207. Respondem pelo imposto devido pelas pessoas jurídicas
transformadas, extintas ou cindidas (Lei nº 5 .172, de 1966, art. 132, e
Decreto-Lei nº 1.598, de 1977, art. 5°):

Para nós, contudo, e levando em conta as di sposições do art. 220 da LSA, "a transformação
é a operação pela qual a sociedade passa, independentemente de dissolução e liqui dação,
de um tipo para outro."
5 Perante as di sposições do CTN, não custa relembrar, a solidariedade produz, salvo disposi­
ção de lei em contrário, os seguintes efeitos: (a) o pagamento efetuado por um dos obriga­
dos aproveita aos demais; (b) a isenção ou remissão de crédito exonera todos os obrigados,
salvo se outorgada pessoalmente a um deles, subsistindo, nesse caso, a solidariedade quan­
to aos demais pelo saldo; e (e) a interrupção da prescrição, em favor ou contra um dos
obrigados, favorece ou prejudica aos demais (artigo 1 25 do CTN).
6 Nos dizeres de MICHEL TEMER, sobre o fenômeno da recepção, "com o advento de nova
Constituição, a ordem normativa anterior, comum, perde seu antigo fundamentn de validade
para, em face da recepção, ganhar novo suporte. Da mesma forma, aquela legislação, ao ser
recebida, ganha a natureza que a Constituição nova atribuiu a atos regentes de certas maté­
rias. Assim, leis anteriores tidas por ordinárias podem passar a complementares; decretos-leis
podem passar a ter natureza de leis ordinárias; decretos podem obter característica de leis
ordinárias. " in Elementos de Direito Constitucional, Malheiros, 1 3ª edição, pág. 38.
MARCELO KNOEPFELMACHER - 299

l - a pessoa jurídica resultante da transformação de outra;

II - a pessoa jurídica constituída pela fusão de outras, ou em decor­


rência de cisão de sociedade;

III - a pessoa jurídica que incorporar outra ou parcela do patrimônio


de sociedade cindida;

IV - a pessoa física sócia da pessoa jurídica extinta mediante liquida­


ção, ou seu espólio, que continuar a exploração da atividade social, sob
a mesma ou outra razão social, ou sob firma individual;

V - os sócios, com poderes de administração, da pessoa jurídica que


deixar de funcionar sem proceder à liquidação, ou sem apresentar a
declaração de rendimentos no encerramento da liquidação.

Parágrafo único. Respondem solidariamente pelo imposto devido pela


pessoa jurídica (Decreto-Lei nº 1.598, de 1977, art. 5°, § 1°):

I - as sociedades que receberem parcelas do patrimônio da pessoa


jurídica extinta por cisão;

II - a sociedade cindida e a sociedade que absorver parcela do seu


patrimônio, no caso de cisão parcial;

III - os sócios com poderes de administração da p essoa jurídica ex­


tinta, no caso do inciso V." (destacou-se)
Referido Decreto-lei nº 1.598/77, subscrito pelo então Ministro
MARIO HENRIQUE SIMONSEN, visava adaptar a legislação do
imposto sobre a renda às inovações então trazidas pela Lei de Socieda­
des por Ações, conforme se depreende do seu próprio texto.7
Como se verifica da leitura do dispositivo consolidado no RIR/99,
pretendeu-se estabelecer responsabilidade solidária pelo imposto8 de­
vido pela pessoa jurídica entre 'a sociedade cindida e a sociedade que absor-

7 Do Decreto-lei consta: "O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso das atribuições que lhe
confere o artigo 55, item 11, da Constituição, e tendo em vista a necessidade de adaptar a
legislação do imposto sobre a renda às inovações da lei de sociedades por ações (Lei nº
6.404, de 15 de dezembro de 1 976), DECRETA: (... ) "
8 O R IR/99 se refere apenas ao imposto sobre a renda, mas o Decreto-lei n''ºl 598/77 mes­
. ,

mo declarando alterar a legislação desse imposto, acaba por se referir genericamente a


"tributos" quando trata da responsabilidade tributária na hi pótese de cisão (artigo 5º"do
referido Decreto-lei).
300 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

ver parcela do seu patrimônio, no caso de cisão parcial" (inciso II do pará­


grafo único do artigo 207 do RlR/99).
Parece-nos, todavia, que, não fosse a sua duvidosa recepção como
lei complementar perante a Constituição de 1988 (o que já seria sufi­
ciente para invalidar a aplicação das suas disposições nos casos concre­
tos)9 , o dispositivo do Decreto-lei em questão deve ser interpretado
com cautela e prudência, evitando-se, assim, o conflito de suas disposi­
ções com as da Lei das Sociedades Anônimas e do próprio Código Tri­
butário Nacional, legislações essas em relação às quais se pretendeu
justamente "adaptar".
Senão vejamos.

IV. A ÜSÃO E o ARTIGO 233 DA LSA: ASPECTOS DA


EXCLUSÃO DA SOLIDARIEDADE
Com efeito, dispõe o artigo 233 da LSA, in verbis, que:
"Art. 233. Na cisão com extinção da companhia cindida, as socieda­
des que absorverem parcelas do seu patrimônio responderão solidari­
amente pelas obrigações da companhia extinta. A companhia cindida
que subsistir e as que absorverem parcelas do seu patrimônio respon­
derão solidariamente pelas obrigações da primeira anteriores à cisão.

Parágrafo único. O ato de cisão parcial poderá estipular que as soci­


edades que absorverem parcelas do patrimônio da companhia cindida
serão resp onsáveis apenas pelas obrigações que lhes fo rem
transferidas, sem solidariedade entre si ou com a companhia cindida,
mas, nesse caso, qualquer credor anterior poderá opor-se à estipula­
ção, em relação ao seu crédito, desde que notifique a sociedade no
prazo de 90 (noventa) dias a contar da data da publicação dos atos da
cisão." (destacou-se)

9 Registre-se a seguinte passagem de HANS KELSEN: "Da análise precedente resulta que
entre a lei e a decisão jurisdicional, entre a Constituição e a lei, a Constituição e o decreto,
a lei e o decreto, ou, numa fórmula inteiramente geral, entre uma norma superior e uma
norma inferior de uma ordem jurídica, não é possível qualquer conflito que destrua a
unidade deste sistema normativo, tornando impossível descrevé-lo em proposiçôes jurí­
dicas que não sejam contraditórias entre si." ln Teoria Pura do Direito, Martins Fontes,
pág. 306 (destacou-se).
MARCELO KNOEPFELMACHER - 301

Comentando o referido artigo da Lei de Sociedades Anônimas,


assim se pronunciou FRAN MARTINS:
"Havendo, entretanto, cisão parcial, as partes dessa operação
poderão fazer estipulações a respeito da responsabilidade das
obrigações sociais, devendo tais estipulações constar do proto­
colo, que é o documento que contém as condições em que a
cisão se realiza. E a lei expressamente permite que, nesse caso
especial da cisão parcial, seja estipulado que as sociedades que
absorverem parcelas do patrimônio da sociedade cindida se­
jam responsáveis apenas pelas obrigações que lhes foram
transferidas, não havendo, desse modo, solidariedade entre a
cindida e a que recebe parcela do seu patrimônio pelas obriga­
ções da primeira, como dispõe, de modo geral, o caput do ar­
tigo. O mesmo poderá acontecer se várias forem as socieda­
des que receberem parcelas do patrimônio da cindida: ao se­
rem transferidas essas parcelas são enumeradas, também, as
obrigações que passam a ser de responsabilidade da sociedade
receptora, devendo, por isso, do documento da cisão constar
que não haverá solidariedade pelo pagamento das obrigações
da sociedade cindida, assumidas antes da operação, não ape­
nas entre a sociedade que recebeu a parcela e a cindida como
entre estas." ln Comentários à Lei das Sociedades Anônimas, Fo­
rense, Volume 3, pág 180/181 (destacou-se)
.

Já MODESTO CARVALHOSA, comentando o mesmo dispositi­


vo legal relativo à exclusão da solidariedade no caso de cisão parcial, regis­
tra que, da exposição de motivos da LSA, "procurou-se assegurar maior liberdade
nafixação de suas condições, sem prejuízo dos credores'', mas apresenta críticas
ao regime de oposição por parte dos credores, consagrado no direito itali­
ano, por identificar "um aumento de risco de não recebimento dos créditos, na
medida em que, na sociedadeparcialmente cindida, opatrimôniofoi.fragiliza­
do pela traniferência de parte dele às sociedades beneficiárias. '10

1O ln Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, Saraiva, 4º Vo lume, Tomo 1 , Artigos


206 a 242.
302 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

Seja como for, o fato é que a doutrina, ao interpretar o parágrafo único


do artigo 233 da LSA, aponta a não ocorrência de solidariedade entre a
sociedade que recebeu a parcela do patrimônio e a cindida, desde que (i) haja
clara estipulação de separação de obrigações, a constar no protocolo da ci­
são; e (ii) não haja oposição por parte de qualquer credor anterior, no prazo
de 90 (noventa dias), contados da data da publicação dos atos da cisão.
Como a LSA se refere a "qualquer credor anterior'', sem especificá­
lo, pensamos que nesse conceito também está contemplada a Fazenda
Pública.
Assim, não se opondo a Fazenda Pública aos termos constantes do
protocolo de cisão no prazo legal, relativamente à separação de obrigações e
responsabilidades entre os credores, entendemos que a regra do artigo 233
é plenamente aplicável, devendo ser observada, com rigor, pelos operadores
do direito - mesmo por aqueles que enxergam, no artigo 207 do RIR/99, a
cômoda solução para todos os seus problemas.11

V. HARMONIA DO ARTIGO 233 DA LSA EM RELAÇÃO AO


ARTIGO 1 23 DO CTN
Registre-se, por outro lado, que não se desconhece a norma do artigo
123 do CTN, segundo a qual "salvo disposições de lei em contrário, as con­
venções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos,
não podem ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do
sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes. "

11 O mesmo também se diga em relação ao artigo 76 da MP nº 2.1 58-35/2001 , que, mediante


confusa redação, dispõe, in verbis, que: "Art. 76. As normas que estabeleçam a afetação ou
a separação, a qualquer t(tulo, de patrimônio de pessoa f(sica ou jurtdica não produzem
efeitos em relação aos débitos de natureza fiscal, previdenciária ou trabalhista, em especial
quanto às garantias e aos privilégios que lhes são atribuldos.
Parágrafo único. Para os fins do di sposto no caput, permanecem respondendo pelos débi­
tos ali referidos a totalidade dos bens e das rendas do sujeito passivo, seu espólio ou sua
massa falida, incl usive os que tenham sido objeto de separação ou afetação."
Da confusa redação desse dispositivo legal não se consegue extrair uma conclusão lógica,
pois ao mesmo tempo em que pretende afastar as normas que estabeleçam separação de
patrimônio, imputa ao sujeito passivo originário (a redação utiliza o gerúndio: "permane­
cem respondendo pelos débitos ... ") a responsabilidade pelos débitos referidos na separa­
ção ou afetação. Daí a falta de lógica nas suas disposições.
MARCELO KNOEPFELMACHER - 303

Mas, pensamos que a ressalva "salvo disposição de lei em contrário"


autoriza e ao mesmo tempo confirma, com tranqüilidade, o nosso raciocí­
nio, exatamente porque o parágrafo único do artigo 233 da LSA (dispo­
sição de lei em contrário, posterior ao CTN) estipula, de maneira
cristalina, as hipóteses de separação de responsabilidades no caso de
cisão parcial, demonstrando, por tal razão, absoluta harmonia em rela­
ção ao artigo 123 do CTN.
Dessa forma, uma vez observados os requisitos constantes do pará­
grafo único do artigo 233 da LSA, mediante clara estipulação de res­
ponsabilidades e obrigações entre sociedade cindida e a que recebeu
parcela do seu patrimônio, a Fazenda Pública não poderá atribuir res­
ponsabilidade solidária entre essas sociedades, salvo se apresentar, em
tempo, a competente oposição.

VI. PROPOSTA DE SOLUÇÃO DE APARENTE ANTINOMIA ENTRE


O ARTIGO 5º DO DECRETO-LEI Nº 1 .598/77 E O
PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 2 3 3 DA LSA
Por derradeiro, não se nega que da interpretação das normas jurídi­
cas ora analisadas (artigo 5° do Decreto-lei nº 1 .598/77 e parágrafo
único do artigo 233 da LSA) possa resultar antinomia aparente12• 13 entre
suas disposições. Sua solução, contudo, é facilmente alcançada, a nosso
ver, pelo critério da especialidade.
De fato, o critério cronológico (!ex posterior derogat legi priori) não
se aplica, a nosso ver, ao caso em questão, seja porque (i) a recepção do
artigo 5° do Decreto-lei 1. 598/77 como lei complementar perante a

12 A antinomia j urídica, na lição do Professor TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR., é "a oposição
que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou parcialmente), emanadas de autori­
dades competentes num mesmo âtnbito normativo que colocam o sujeito numa posição
insustentável pela ausência ou ;nconsistência de critérios aptos a permitir-lhe uma saída
nos quadros de um ordenamento dado. " Antinomia, in Enciclopédia Saraiva do Direito, V.
7, pág. 1 4 .
13 N a antinomia aparente, "os critérios para solucioná-la são normas integrantes do
ordenamento jur(dico", segundo o magistério de MARIA H ELENA DINIZ, i n Conflito de
Normas, Saraiva, 2003, pág. 25
304 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

Constitµição de 1988 é duvidosa, de modo que não poderia tratar de


matéria afeta ao CTN (que é a norma geral em matéria tributária, se­
gundo a jurisprudência do STF)14 ; seja porque {ii), ainda que assim não
fosse, as suas disposições (do referido Decreto-lei) sobrevieram exata­
mente para "adaptar a legislação do imposto sobre a renda às inovações in­
troduzidas porforça da Lei das SociedadesporAções" não devendo, por essa
razão, com esta última - nem com o próprio CTN - conflitar.
Em outras palavras, o seu âmbito de aplicação (do artigo 5° do refe­
rido Decreto-lei) é distinto daquele verificado na especificidade da hipó­
tese descrita pelo parágrafo único do artigo 233 da Lei nº 6.404/76,
devendo, por tal razão, ser observado o critério da especialidade (!ex speci­
alis derogat legi generali) para afastar o aparente conflito.
Com efeito, o critério da especialidade visa a consideração da ma­
téria normada, com o recurso aos meios interpretativos. Entre a !ex spe­
cialis e a !ex generalis há um quid specie ou uma genus au speci, como nos
ensina a Professora MARIA HELENA DINIZ.15 Assim, uma norma
é especial se possuir em sua definição legal todos os elementos típicos
da norma geral e mais alguns de natureza objetiva ou subjetiva, deno­
minados especializantes.
A norma especial, por assim dizer, ''acresce um elemento próprio à
descrição legal do tipo previsto na norma geral, tendo prevalência sobre esta,
afastando-se assim o bis in idem, pois o comportamento só se enquadrará na
norma especial, embora também esteja previsto na geral. '16
No caso em questão, a norma do parágrafo único do artigo 233 da
LSA, ao estabelecer hipótese especial de não ocorrência de solidarieda­
de, desde que respeitados os requisitos que impõe (clara separação das
obrigações no protocolo da cisão e não oposição dos credores anteriores

14 Registre-se, por oportuno, a lição de HANS KELSEN, apontando que para haver conflito
normativo as duas normas devem ser válidas, pois se uma delas não o for não haverá qual­
quer antinomia, já que uma das duas normas não existiria juridicamente, não se podendo
jamais afirmar que apenas uma é válida, apud MARIA HELENA DI NIZ, op. cit. pág. 33
15 op. cit., pág. 40
16 MARIA H E LENA DINIZ, op. cit., pág. 40
MARCELO KNOEPFELMACHER - 305

no prazo assinalado), é, segundo pensamos, norma especial em relação


às disposições gerais do artigo 5° do Decreto-lei nº 1 .598/77, referentes
à responsabilidade tributária no caso de cisão - as quais não levam em
conta as especificidades de cada operação em que se venha a estipular a
separação das obrigações e, via de conseqüência, das responsabilidades.
Como se verifica, pela análise sistemática dos dispositivos tanto da
LSA como do CTN, não há dúvidas acerca da impossibilidade de se atri­
buir responsabilidade solidária, entre a sociedade cindida e a que recebeu
parcela do seu patrimônio, sobre a totalidade do eventual crédito tributá­
rio, na hipótese de cisão parcial (i) com clara estipulação, no competente
protocolo, acerca da separação de obrigações e responsabilidades de que
trata o parágrafo único do artigo 233 da Lei das Sociedades Anônimas; e
(ii) desde que não exercida, no prazo legal, a competente oposição.

VI I . CONCLUSÕES
Diante das considerações expostas acima, passamos a apresentar
nossas conclusões:
A) O Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/66), recepcionado
com status de lei complementar pela Constituição de 1988, é, segundo a
jurisprudência do STF, a norma jurídica que integra as disposições do
artigo 146, III da Constituição, relativas ao estabelecimento de normas
gerais em matéria de legislação tributária (inclusive sobre obrigação tri­
butária, na qual se insere a temática da responsabilidade tributária);
B ) Sendo o CTN a lei complementar de que trata o artigo 146, III
da Constituição, quaisquer outros atos normativos que pretendam re­
gular a responsabilidade em matéria tributária não podem, por imposi­
ção constitucional, com ele (CTN) conflitar;
C) O CTN não trata da responsabilidade tributária na hipótese de
cisão parcial, cujo regramento surgiu no ordenamento jurídico com o
advento do Decreto-lei nº 1 .598/77, destinado a "adaptar a legislação do
imposto sobre a renda às inovações introduzidasporforça da Lei das Socieda­
des por Ações";
306 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

D) Ainda que o artigo 5° do referido Decreto-lei nº 1 .598/7717• 18 ti­


vesse sido recepcionado com força de lei complementar perante a Cons­
tituição de 1988, mesmo assim sua aplicação não poderia conflitar com
a norma do parágrafo único do artigo 233 da Lei das Sociedades Anô­
nimas, segundo o qual 'o ato de cisão parcialpoderá estipular que as socie­
dades que absorverem parcelas do patrimônio da companhia cindida serão
responsáveis apenas pelas obrigações que lhesforem transferidas, sem solida­
riedade entre si ou com a companhia cindida, mas, nesse caso, qualquer credor
anterior poderá opor-se à estipulação, em relação ao seu crédito, desde que
notifique a sociedade no prazo de 90 {noventa) dias a contar da data da
publicação dos atos da cisão':·
D.1) Isto porque, diante de eventual antinomia aparente, deve-se
aplicar o critério da especialidade (!ex specialis derogat legi generali) para
solucioná-la, já que, no caso em questão, a norma do parágrafo único do
artigo 233 da LSA, ao estabelecer hipótese especial de não ocorrência
de solidariedade, desde que respeitados os requisitos que impõe (clara
separação das obrigações no protocolo da cisão e não oposição dos cre­
dores anteriores no prazo assinalado), é norma especial em relação às
disposições gerais do artigo 5° do Decreto-lei nº 1 .598/77, referentes à
responsabilidade tributária no caso de cisão - as quais não levam em

17 Com a seguinte redação:


"Art 5º - Respondem pelos tributos das pessoas jurídicas transformadas, extintas ou cindidas:
1 - a pessoa j urídica resultante da transformação de outra;
li - a pessoa jurídica constituída pela fusão de outras, ou em decorrência de cisão de sociedade;
I l i a pessoa jurídica que incorporar outra ou parcela do patrimônio de sociedade cindida;
-

IV - a pessoa física sócia da pessoa jurídica extinta mediante liqu idação que continuar a
exploração da atividade social, sob a mesma ou outra razão social, ou sob firma individual;
V - os sócios com poderes de administração da pessoa ju rídica que deixar de funcionar sem
proceder à liqu idação, ou sem apresentar a declaração de rendimentos no encerramento
da liquidação.
§ 1 º - Respondem solidari amente pelos tributos da pessoa jurídica:
a) as sociedades que receberem parcelas do patrimônio da pessoa jurídica extinta por cisão;
b) a sociedade cindida e a sociedade que absorver parcela do seu patrimônio, no caso
de cisão parcial;
e) os sócios com poderes de administração da pessoa extinta, no caso do item V.
(... )" (destacou-se)
18 Atualmente, esse di spositivo legal se encontra consolidado no artigo 207 do RIR/99.
MARCELO KNOEPFELMACHER - 307

conta as especificidades de cada operação em que se venha a estipular a


separação das obrigações e, via de conseqüência, das responsabilidades;
E) Considerando que o parágrafo único do artigo 233 da LSA se
refere a "qualquer credor anterior", sem especificá-lo, nesse conceito tam­
bém está contemplada a Fazenda Pública, para os efeitos da oposição a
que se refere o aludido dispositivo legal;
F) A ressalva "salvo disposição de lei em contrário" constante do artigo
123 do CTN19 autoriza e ao mesmo tempo confirma, com tranqüilida­
de, o raciocínio no sentido de que esse dispositivo está em perfeita har­
monia com o parágrafo único do artigo 233 da LSA (disposição de lei
em contrário, posterior ao CTN), que estipula, de maneira cristalina, as
hipóteses de separação de responsabilidades no caso de cisão parcial.
G) Verifica-se, assim, pela análise sistemática dos dispositivos em
questão, que não pode haver mesmo dúvidas acerca da impossibilidade
de se atribuir responsabilidade solidária, entre a sociedade cindida e a
que recebeu parcela do seu patrimônio, sobre a totalidade do eventual
crédito tributário, na hipótese de cisão parcial (i) com clara estipulação,
no competente protocolo, acerca da separação de obrigações e respon­
sabilidades de que trata o parágrafo único do artigo 233 da Lei das
Sociedades Anônimas; e (ii) desde que não apresentada oposição, pela
Fazenda Pública, no prazo legal.

19 Com a seguinte redação:


"Art. 1 23 . salvo disposições de lei em contrário, as convenções particulares, relativas à res­
ponsabilidade pelo pagamento de tri butos, não podem ser opostas à Fazenda Pública, para
modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes."
O Sistema de Proteção
aos Credores nas
Operações de
I ncorporação, Fusão e
Cisão

Paulo Mattar Filho

Advogado em São Paulo, graduado em Direito e pós-graduado (la tu sensu ) em


Direito Empresarialpela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo -
PUC-SP
Membro do IDSA
J1 0 - REORGANIZAÇÃO 50CIETÃRIA

INTRODUÇÃO
As operações de incorporação, fusão e cisão têm, cada vez mais,
grande importância na reestruturação administrativa de sociedades, gru­
pos de sociedades e conglomerados econômicos, na reorganização de
setores produtivos, no planejamento tributário de atividades econômi­
cas, na viabilização de aquisição de controle e na busca de economias de
escala. Mas não é só.
Como qualquer reestruturação, essas operações são de extrema rele­
vância, pois geram ou, ao menos, são potencialmente capazes de gerar
efeitos - diretos ou reflexos - significativos na atividade econômica como
conseqüência não só da nova estrutura proposta, mas também das modi­
ficações introduzidas nas suas próprias relações comerciais com terceiros.
Especificamente, os negócios de incorporação, fusão e cisão podem
afetar as relações com credores e resultar, inclusive, na diminuição dos
direitos destes, na medida em que implicam, normalmente, alterações
expressivas dos elementos que compõem o patrimônio da sociedade.
Nesse aspecto, é importante ressaltar que as relações comerciais en­
tre sociedades, ou entre elas e particulares, são, na maioria das vezes, de­
terminadas por sua solidez e, portanto, pelo patrimônio líquido de cada
uma delas, principalmente no que diz respeito à definição dos termos e
das condições sobre as quais tais relações serão fundadas ou, até mesmo,
no que se refere à decisão sobre a própria viabilidade dessas relações co­
merciais. E não poderia ser de outra forma, pois é o patrimônio a garantia
de pagamento das obrigações e responsabilidades da sociedade.
Este patrimônio social é, assim, fator determinante nos negócios
sociais e atividades econômicas, sobretudo em operações que envolvem
a concessão de algum tipo de crédito. O próprio crédito direto concedi­
do por instituição financeira é exemplo característico - mas longe de ser
único - de operação na qual se exige uma análise das demonstrações
financeiras da sociedade, sendo certo que qualquer relação comercial
nesse sentido só se tornará viável se a instituição financeira, possível
credora, estiver diante de uma situação clara de uma boa posição dos
ativos da sociedade, pretensa tomadora.
PAULO MATIAR FILHO - 31 1

Desta forma, diante do princípio da segurança jurídica das relações


contratuais, é inegável a necessidade de se construírem mecanismos de
proteção aos interesses dos credores contra as mutações do patrimônio
social decorrentes das operações societárias conduzidas pela vontade
exclusiva dos sócios ou acionistas.
Nesse sentido, a legislação brasileira, como outras legislações, cria
um sistema de proteção aos credores das sociedades envolvidas nos ne­
gócios de incorporação, fusão e cisão.

1 LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
.

Em relação ao direito pátrio especificamente, há uma série de nor­


mas que estruturam esse sistema. Vale destacar, como principais, as dis­
posições das legislações societárias, contidas na Lei nº 6.404 de 15-12-1976
- Lei das Sociedades Anônimas (LSA) e na Lei nº 10.406 de 10-01-
2002 Código Civil (CC 2002), aplicáveis aos créditos civis1 •
-

2. LEI DAS SOCIEDADES ANÔNIMAS


O sistema de proteção aos credores da Lei das Sociedades Anôni­
mas está fundado, sobretudo, no princípio da segurançajurídica das rela­
ções contratuais, uma vez que visa preservar os direitos constituídos antes
da operação de incorporação, fusão ou cisão. Assim, destacam-se as
seguintes estruturas e disposições legais nas operações que envolvem
sociedades anônimas.

2.1 . SUCESSÃO

A principal garantia conferida aos credores pela LSA - e daí decor­


rem uma série de outras garantias - são as diversas previsões de sucessão
de direitos e obrigações nas operações de incorporação, fusão e cisão, mais

"Quando se trata de crédito trabalhista, tributário ou titularizado pelo INSS, o regime jurídi­
co correspondente confere ao credor garantias para que a transformação, inco rporação,
fusão ou cisão da sociedade devedora não o prejudique. Quando se cuida de crédito civil,
o assunto vem tratado na legislação societária e os direitos dos credores variam de acordo
com a operação realizada", COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 5ª edi­
ção. São Paulo: Saraiva, 2002, vai. 2, p. 482.
312 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

precisamente aquelas contidas no caput dos artigos 227, 228 e 229, §1 º,


respectivamente. Trata-se de regra que visa, primordialmente, garantir a
segurançajurídica das relações anteriores àquelas operações.
Nesses casos, a sucessão ocorre no momento da versão do patrimô­
nio líquido e formação do capital social. Com isso, os direitos dos cre­
dores passam, de imediato, a ser obrigações das sociedades resultantes
dos negócios de incorporação, fusão e cisão, com determinadas varia­
ções para cada um destes.
INCORPORAÇÃO E FUSÃO
Nas operações de incorporação e fusão, a sucessão opera-se a título
universal, i.e. a sociedade incorporadora e a resultante da fusão sucedem a
incorporada e as fusionadas em todos os direitos, obrigações e responsa­
bilidades destas, sem distinções e sem comportar nenhum vício eventual.
A sucessão ocorre no momento da aprovação, pelos sócios ou acionis­
tas das sociedades participantes, do laudo de avaliação do patrimônio líqui­
do ou dos patrimônios líquidos e da versão destes para a formação do capital
social da sociedade incorporadora ou da sociedade resultante da fusão.
A extinção da incorporada e das fusionadas, por outro lado, decorre
de lei - artigo 219, II, LSA - como resultado imediato da própria opera­
ção e sem a necessidade de deliberação em assembléia nesse sentido.
Desta forma, os direitos dos credores passam, ato contínuo, a repre­
sentar obrigações da sociedade incorporada ou daquela resultante da fu­
são pela simples versão do patrimônio líquido ou dos patrimônios líquidos.
CISÃO
Com algumas variações, os mesmos princípios acima se aplicam à
cisão. Assim, a sociedade ou sociedades que absorverem a totalidade ou
parcela do patrimônio líquido sucedem a sociedade cindida nos direi­
tos, nas obrigações e nas responsabilidades desta, assegurando-se os di­
reitos dos credores2 •

2 REQUI ÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 23' edição. São Paulo: Saraiva, 2003,
vol. 2, p. 258.
PAULO MATIAR FILHO 31 3
-

A diferença reside no fato de que, nesse caso, a sucessão poderá


ser pactuada. Com isso, na cisão parcial, a sucessão se dá apenas em
relação aos direitos e obrigações discriminados no ato da cisão, ou
seja, somente aqueles que estiverem relacionados nas atas ou nas alte­
rações contratuais são transferidos à sociedade ou às sociedades para
as quais parcelas do patrimônio líquido foram vertidas. Aqueles direi­
tos e obrigações que não estiverem relacionados restarão, portanto, na
sociedade cindida.
O mesmo ocorre na cisão total, mas com uma alteração: se o ato
societário da cisão deixar de relacionar os direitos e obrigações que se­
rão transferidos a cada uma das sociedades ou se algum destes direitos
ou obrigações restarem, por algum motivo, não relacionados, então se­
rão transferidos na proporção dos patrimônios líquidos vertidos a cada
uma das sucessoras.
Portanto, sem prejuízo da solidariedade instituída pelo artigo 233
da LSA, as sociedades que absorverem parcela do patrimônio líquido
cindido se tornam sucessoras3 , mas, somente, "na exata medida da par­
cela do patrimônio que lhes é transferido"4 •

2.2. PROTOCOLO

A Lei das Sociedades Anônimas - artigo 224 impõe aos órgãos -

da administração da companhia ou aos sócios das sociedades interessa­


das a necessidade, nos casos de incorporação, fusão e cisão com incorpo­
ração em sociedade existente, de aprovação de protocolo5 , o que permite,
juntamente com a justificativa, a publicidade das condições e da estrutu­
ra da operação, em benefício de acionistas e também de credores.

3 Sobre sucessão a título singular na cisão, v.: LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Pareceres.
São Paulo: Singular, 2004, v. 2,, p. 921 e 922.
4 CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. São Paulo: Sarai­
va, 1 998, vol. 4, tomo 1, p. 287.
5 Ibidem, p. 227, ao conceituar o protocolo: "Protocolo constitui convenção de natureza
pré-contratual que man ifesta e vincula a vontade das sociedades envolvidas através (. .. ).
Constitui um pacto necessário, que produz a manifestação confluente (pluri lateral) de von­
tade das sociedades sobre as bases essenciais do negócio jurídico (. .. ) .
"
314 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

Além disso, determina que deverá constar no protocolo, entre ou­


tras coisas, "os elementos ativos e passivos que formarão cada parcela do
patrimônio, no caso de cisão"6 , e "os critérios de avaliação do patrimô­
nio líquido"7 •

Em relação à cisão, a delimitação dos elementos que compõem


o ativo e o passivo do patrimônio cindido permite aos credores da
cindida que verifiquem a exata extensão e força do patrimônio que
servirá como garantia de seus interesses e, com base nessa análise,
possibilita que adotem as medidas que julgarem necessárias para res­
guardá-los.
Já a obrigatoriedade de se indicar os critérios adotados para avalia­
ção do patrimônio líquido, além de vincular os administradores e sócios
atribuindo-lhes responsabilidades sobre tais decisões, impõe a utiliza­
ção de regras para a avaliação do ativo e do passivo na formação do
capital das sociedades resultantes das operações de incorporação, fusão
e cisão com incorporação em sociedade existente.

2.3. FORMAÇÃO DO CAPITAL


Controvertida é a regra contida no artigo 226, caput, da LSA, se­
gundo a qual "as operações de incorporação, fusão e cisão somente po­
derão ser efetivadas nas condições aprovadas se os peritos nomeados
determinarem que o valor do patrimônio ou patrimônios líquidos a se­
rem vertidos para a formação de capital social é, ao menos, igual ao
montante do capital a realizar".
Muito se discute, na doutrina, acerca dos critérios que devem ser
adotados na avaliação feita pelos peritos no momento em que deter­
minarem o valor do patrimônio líquido que será vertido para a forma­
ção do capital da sociedade incorporada, da resultante da fusão ou
daquelas sociedades que absorverem parcelas do patrimônio da socie­
dade cindida.

6 LSA, art. 224, inciso l i .


7 LSA, art. 224, inciso 111.
PAULO MATIAR FILHO 3 1 5
-

VALOR CONTÁBIL
Há quem defenda que o patrimônio líquido poderá ser determina­
do com base no valor contábil apenas. São os principais fundamentos
dessa vertente: (i) a inexistência de norma no direito brasileiro que obri­
gue a adoção do valor de mercado, podendo, assim, os administradores
adotarem livremente qualquer critério, com fundamento no princípio
da liberdade contratual8 , e (ii) o valor contábil dos bens é menor que seu
valor de mercado e, por essa razão, se o ativo for vertido com base no
valor escritural deles, o valor real do patrimônio líquido será necessari­
amente maior, beneficiando acionistas e credores das sociedades.
Equivocada, contudo, é essa posição. Nem sempre o valor dos bens
que compõem os elementos do ativo será inferior ao valor de mercado.
Além disso, a falta de referência legislativa específica como justificativa
para a liberdade de critério não é a melhor interpretação sistemática e
teleológica da LSA e do artigo 226, pois a finalidade aqui é a proteção
não só da sociedade e dos acionistas minoritários, mas também dos cre­
dores. Por fim, vale lembrar que há diversas disposições legais que deter­
minam a nomeação de peritos e a aprovação de laudo de avaliação, sendo
certo que permitir a adoção pura e simples do balanço patrimonial seria
esvaziar por completo todas essas disposições, tornando-as letra morta na
Lei das Sociedades Anônimas, o que parece não ser a melhor exegese.
VALOR DE MERCADO
Outros, ao contrário, sustentam a obrigatoriedade da avaliação do pa­
trimônio líquido pelo valor de mercado dos ativos que o compõe9 , senão
pelas razões acima, em função do princípio da realidade do capital social. E
essa posição é, ao nosso ver, mais acertada, porém, não absoluta.
A esse respeito, vale destacar que a finalidade primeira da norma contida
no caput do artigo 226 é atender ao princípio da realidade do capital socia/1° ,

8 Cf. CARVALHOSA, Modesto, e EIZIRIK, Nelson. A nova Lei das 5/A. São Paulo: Saraiva,
2002, p. 374.
9 Cf. CARVALHOSA, op. cit., vol. 4, tomo 1, p. 247.
1O Cf. BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 8ª edição. Rio de janeiro: Renovar,
2003, p. 5 1 .
316 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

na forma11 já antecipada pelos artigos 8° e 170, §3°, da LSA e no pro­


pósito de "tutelar diferentes interesses: dos acionistas ou subscritores
que contribuem em dinheiro; dos futuros compradores de ações, ou
seja, dos investidores; dos credores, que têm na integridade do capital a
sua principal garantia; o interesse público, representado pela preocupa­
ção do Estado na continuidade da empresa, resguardando-a contra que­
bra advinda da atribuição de um valor fictício ao capital"12 .
Assim, ao se observar esse princípio e, com isso, impor à sociedade
e aos seus acionistas, quando de sua constituição, determinadas regras
para a formação do capital social, fazendo com que este represente o
exato valor dos bens e direitos que o compõem, impede-se, entre outras
coisas, a superavaliação deles e, conseqüentemente, a emissão de ações
sem lastro, em prejuízo dos credores e, ainda, da própria sociedade, dos
seus acionistas e do mercado de capitaisn .
Além disso, muito embora o capital social esteja, de certa forma,
dissociado do patrimônio líquido - enquanto este sofre variações a cada
dia e representa a força econômica da sociedade, aquele pouco altera e
significa apenas a medida de contribuição inicial dos sócios acionistas
quando da formação da companhia, sendo iguais somente no exato
momento da constituição desta - não deixa de ser uma demonstração
de força dos acionistas e da sociedade e uma medida do desempenho
social14 , e, com isso, uma proteção relativa aos credores15 • Assim, mui­
tos destes negociam com as sociedades e a elas estendem créditos de
diferentes naturezas - não somente créditos diretos, mas também, p.ex.,
decorrentes de vendas a prazo - tendo por base o montante do capital
social previsto nos seus atos constitutivos. Mais uma razão para que o
capital não seja fictício.

11 Cf. CARVALHOSA, op. cit., vol. 1 , p. 65 ("momento da avaliação dos bens").


12 CARVALHOSA, op. cit., vol. 1 , p. 65 ("interesses tutelados").
13 Ibidem.
14 Cf. BORBA, op. cit., p. 52, 209 e 2 1 0.
15 Cf. COELHO, op. cit., vol. 2 , p. 1 5 7.
PAULO MATIAR FILHO - 317

É importante destacar, ainda, que o título do artigo 226 é "Forma­


ção do Capital'', sendo inevitável, pois, a relação com o Capítulo II -

"Capital Social", Seção II "Formação'', onde está inserido o artigo 8°,


-

que determina a necessidade de laudo de avaliação para a subscrição de


bens pelo seu valor real.
Desta forma, é difícil vislumbrar outra finalidade para o artigo 226
que não a de procurar estabelecer as mesmas garantias aos credores16 das
sociedades participantes nos negócios da incorporação, fusão ou cisão,
além, por certo, de pretender estabelecer garantias às próprias sociedades
e a seus acionistas ou sócios.
Nesse sentido, o princípio da realidade do capital social, quando con­
siderado no âmbito do referido artigo, restringe a possibilidade de mo­
dificações forçadas nos valores do ativo e do passivo constantes do balanço
patrimonial e de eventual superavaliação do patrimônio líquido ou pa­
trimônios líquidos que formarão o capital social das sociedades resul­
tantes dos negócios de reestruturação societária.
Trata-se de garantia efetiva aos credores, principalmente contra ope­
rações que tenham por finalidade exclusiva prejudicar seus interesses. É
fácil imaginar, p.ex., uma situação na qual os acionistas deliberam uma
cisão parcial com base num balanço patrimonial irreal e, a partir dela,
determinam a versão de um ativo subavaliado para uma sociedade nova
ou existente, que passa a deter também parcela mínima do passivo da
sociedade cindida, enquanto esta mantém ativos superavaliados e uma
grande parcela do passivo. Nesse caso, os credores da sociedade cindida
restariam, por razões óbvias, consideravelmente prejudicados, ao passo
que essa "falsa cisão"17 daria, aos acionistas, oportunidade de ocultar
parcela do seu patrimônio sob o manto de uma outra sociedade que
indiretamente controlaria.

16 Cf. CARVALHOSA, op. cit., vol. 4 , tomo 1 , p . 243.


17 O termo "falsa cisão" não é adotado aqui na acepção dada por Claude Champaud, vide:
BULGARELLI, Waldirio. Fusões, Incorporações e Cisões de Sociedades. 6' edição. São
Paulo: Atlas, 2000, p. 1 99.
318 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

O princípio da realidade do capital social garante, ademais, aos cre­


dores a possibilidade de considerar, de forma mais precisa, o patrimônio
líquido ou os patrimônios líquidos transferidos com a operação e tam­
bém as garantias a que seus créditos estarão sujeitos após a reestrutura­
ção, permitindo-lhes, se necessário, que adotem as medidas previstas na
LSA para proteção de seus interesses18 •
Com base nessas premissas, poder-se-ia dizer que o patrimônio
líquido transferido a partir dos negócios de incorporação, fusão e cisão
deveria refletir fielmente a realidade, i.e. deveria necessariamente ser
avaliado pelo valor de mercado, da mesma forma que ocorre com no
negócio de incorporação de companhia controlada, em relação a qual a
LSA expressamente determina a adoção desse critério19 •
Contudo, o princípio da realidade do capital social não se aplica de
forma absoluta ao artigo 226 e deve ser relativizado de forma a acomo­
dar os interesses da sociedade, dos acionistas e de terceiros, inclusive
credores.
VALOR JUSTO
Nem a regra do valor contábil - liberdade plena, nem a regra do valor
real - obrigatoriedade da avaliação a preço de mercado - devem ser in­
condicionais. Em outros termos, a avaliação do patrimônio líquido, no
contexto das operações de incorporação, fusão e cisão, não poderá estar
fundada exclusivamente no valor escriturai dos bens, mas nem por isso
todos estes devem ser considerados pelos seus valores de mercado.
É desnecessário impor à sociedade que todos os bens do seu patri­
mônio sejam efetivamente avaliados a preço de mercado se o objetivo é
proteger interesses de credores. É possível que se adote o critério do

18 Cf. CARVALHOSA, op. cit., vai. 4, tomo 1, p. 244.


19 LSA: "Art. 264. N a incorporação, pela controladora, de companhia controlada, a justifica­
ção, apresentada à assembléia geral da controlada, deverá conter, além das i nformações
previstas nos arts. 224 e 225, o cálculo das relações de substituição das ações dos acionis­
tas não controladores da controlada com base no valor do patrimônio líquido das ações da
controladora e da controlada, avaliados os dois patrimônios segundo os mesmos critérios e
na mesma data, a preços de mercado, ou com base em outro critério aceito pela Comissão
de Valores Mobil iários, no caso de companhias abertas11 •
PAULO MATIAR FILHO 3 1 9
-

valor contábil, desde que, no entanto, o valor atribuído ao patrimônio


líquido seja, por este critério, igual ou inferior ao valor real dos bens que
o compõem, jamais, portanto, superior a este.
Com isso, assegura-se que o montante atribuído ao patrimônio lí­
quido a ser vertido tenha valor concreto, ainda que inferior ao valor de
mercado, mas que, ao menos, não seja fictício, representando, assim, um
patrimônio verdadeiro. E essa é a finalidade última da norma contida
no artigo 226 da Lei das Sociedades Anônimas e também a garantia
maior dos credores das sociedades, no que diz respeito à formação do
capital social.
Nessa linha de raciocínio, os peritos devem ser nomeados e o lau­
do de avaliação aprovado com o objetivo de não só verificar a correção
e validade dos lançamentos contábeis do balanço específico20 , mas,
principalmente, para apurar que o patrimônio efetivo e autêntico da
sociedade ou das sociedades participantes do negócio de reestrutura­
ção é ao menos igual, jamais inferior, ao montante do patrimônio lí­
quido avaliado pelo valor contábil, para que este possa servir de base
para a operação21 •

Em síntese, é indispensável a avaliação do patrimônio a preços de


mercado, mas, apenas, para garantir que os valores dos elementos que
compõem o ativo da sociedade são iguais ou maiores em relação aos
indicados no balanço específico. Não basta, pois, o balanço patrimonial
como único documento a sustentar o negócio da reestruturação. É im­
prescindível a atuação efetiva dos peritos tanto na análise dos lança­
mentos contábeis no balanço patrimonial, quanto na avaliação real dos
bens da sociedade e na apresentação do laudo de avaliação, ainda que
para garantir patamares mínimos apenas.

20 Para fins tributários é irrelevante se o ativo será avaliado pelo valor contábil ou a preço de
mercado, mas a sociedade deverá, obrigatoriamente, levantar balanço específico: Lei nºº
9 .249/95, art. 2 1 : "A pessoa jurídica que tiver parte ou todo o seu patrimônio absorvido em
vi rtude de i ncorporação, fusão ou cisão deverá levantar balanço específico para esse fim,
no qual os bens e di reitos serão avaliados pelo valor contábil ou de mercado. 1º O -

balanço a que se refere este artigo deverá ser levantado até trinta dias antes do evento".
21 Cf. BORBA, ob. cit., p . 485, e REQUI ÃO, ob. cit., vai. 2 , p . 2 6 1 .
320 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÃRIA

E nem há que se falar que a avaliação do patrimônio a preço de


mercado deveria ser regra absoluta, pois teria o objetivo também de
proteger acionistas minoritários. Estes aprovam a operação, a nomea­
ção de peritos, o protocolo no qual constam os critérios de avaliação e o
próprio laudo e, ainda, têm o direito de recesso22 • São instrumentos
adicionais às regras de formação do capital social mais do que suficien­
tes para garantir seus interesses.
Assim, se por um lado o negócio da reestruturação não se sustenta
exclusivamente no balanço específico, por outro não se obriga que este
balanço seja levantado com base no valor de mercado dos ativos, inclu­
sive, ressalte-se, tornando complexa a operação e onerando excessiva­
mente as sociedades. E isso não significa desatender ao princípio da
realidade do capital social - mas uma relativização deste - ou reduzir as
garantias dos credores, na medida em que o valor do patrimônio líquido
vertido será, ao final, concreto, possibilitando, ainda, que se considere as
garantias decorrentes dele.
A avaliação do patrimônio líquido poderá, portanto, ser feita com
base nos preços de mercado ou nos valores de livro dos ativos, neste últi­
mo caso, desde que observados, no entanto, os limites ressaltados acima.

2 .4. PERITOS E LAUDO DE AVALIAÇÃO


É interessante notar que, ao disporem sobre a incorporação, fusão e
cisão, os artigos 227, § § 1° e 3°, 228, § § 1° e 2°, e 229, § § 2° e 3° - este
ao fazer remissão ao artigo 227 - retomam a necessidade de se nomear
peritos e de se aprovar, no âmbito de cada uma das sociedades, o laudo
de avaliação por eles elaborados.
Assim, reforça-se o argumento de que o balanço patrimonial, por
si só, não é suficiente para dar bases ao negócio de reestruturação, sendo
necessário, portanto, a avaliação do patrimônio a preços de mercado
para, ao menos, garantir que este é igual ou maior que o patrimônio
líquido contábil.

22 LSA, art. 230.


PAULO MATIAR FILHO - 321

2.5. CONFLITO DE I NTERESSES


Nessa mesma linha, o artigo 228 traz um conceito importante. Além
de prever, como referido acima, a necessidade de se nomear peritos e,
ainda, de se aprovar laudo de avaliação, este dispositivo impede que, na
fusão, os sócios ou acionistas votem na assembléia ou reunião que deli­
berar a nomeação dos peritos23 e a aprovação do laudo de avaliação do
patrimônio da sociedade ou companhia da qual fazem parte.
É exatamente a mesma regra dos artigos 8°, §5°, e 1 15, § 1°, da
LSA, que também determinam a necessidade de nomeação de peritos
ou de empresa especializada para a avaliação dos bens que serão, na
constituição ou aumento do capital social, incorporados ao patrimônio
da companhia, e impedem, igualmente, que os acionistas subscritores
votem nas assembléias que deliberarem acerca de peritos e laudos.
Isso porque há, no caso, conflito de interesses, decorrente da própria
natureza da relação - bilateral - que o acionista manterá com a socieda­
de quanto ao negócio de avaliação de seus bens. Seria incompatível que,
sendo parte nessa relação, também pudesse formar, por meio de seu
voto, a vontade da sociedade. Ademais, é inegável a inclinação do acio­
nista subscritor em buscar maximizar o valor de seus bens. E tanto há
essa tendência que este sócio ou acionista responde por culpa ou dolo na
avaliação deles24 , inclusive na esfera penal, se houver avaliação fraudu- .
lenta25 • Assim, é inegável também o risco de se aprovar um laudo com
imprecisões ou incorreções e, em razão disto, o valor dos bens vir a se
distanciar do valor de mercado, contrário, desta forma, ao interesse so­
cial e ao princípio da realidade do capital social.
Com a mesma sistemática, é justamente esse conflito de interesses e
risco que os parágrafos 1° e 2° do artigo 228 da LSA pretendem evitar.
Portanto, a avaliação do patrimônio líquido a ser vertido para a socie­
dade resultante da fusão deverá abstrair-se de qualquer interesse indi-

23 Cf. CARVALHOSA, op. cit, vol. 4, tomo I, p.26 1 .


24 Cf. REQU IÃO, op. cit., vol. 2, p. 60.
25 Cf. CARVALHOSA, op. cit., vol. 1 , p. 7 1 .
322 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

vidual do sócio ou acionista que o subscreveu, devendo observar o prin­


cípio da realidade do capital social e, assim, ser avaliado e transferido pelo
valor contábil apenas se este for ao menos igual ou menor em relação ao
patrimônio líquido a preço de mercado.

2 .6. ÜPERAÇÔES COM SOCIEDADES COLIGADAS

Outra regra que acaba por proteger os interesses de credores é aquela


contida no artigo 226, § § 1° e 2°, da LSA.
Dispõe este artigo acerca do tratamento a ser dado às ações ou quotas
do capital social (i) da sociedade a ser incorporada que são de propriedade
da sociedade incorporadora, (ii) de uma das sociedades fundidas que são de
propriedade da outra participante da operação e (iii) da sociedade cindida
que são de propriedade da sociedade ou das sociedades para as quais tais
ações ou quotas serão transferidas como parcela do patrimônio vertido.
Duas são as opções que a lei do anonimato permite serem adotadas
para essas ações ou quotas: o protocolo poderá determinar a extinção delas
ou estabelecer que sejam substituídas por ações em tesouraria da sociedade
incorporadora, da resultante da fusão ou da sociedade que absorveu as ações
ou quotas da sociedade cindida, dependendo do tipo de operação.
A razão da norma é, mais uma vez, atender o princípio da realidade
do capital social, como forma de, entre outras coisas, proteger os credores
da sociedade anteriores ao negócio de reestruturação.
Se, por exemplo, as ações ou quotas da sociedade incorporada de
propriedade da incorporadora pudessem compor o patrimônio líquido
que seria utilizado para aumento do capital social, haveria um falso au­
mento do patrimônio líquido e do próprio capital social da incorpora­
dora, considerando que tais ações ou quotas já representavam parte do
ativo desta. Em outras palavras, a sociedade incorporaria algo que já
estaria nela26 , ou seja, haveria uma incorporação fictícia em relação ao
montante do ativo representado pelas referidas ações ou quotas.

26 Cf. B U LGARELLI, op. cit., p. 1 5 1 .


PAULO MATIAR FILHO 323-

Assim, a Lei das Sociedades Anônimas determina a extinção das


quotas ou ações para que seja excluída, do aumento do capital social da
incorporadora, a parcela do patrimônio líquido - apurado em avaliação
e não o valor nominal27 - da incorporada que j á compõe o patrimônio
daquela.
A substituição por ações em tesouraria, como alternativa à extin­
ção, permite que o capital social da incorporadora seja aumentado utili­
zando-se todo o patrimônio líquido da incorporada, inclusive o valor
das quotas ou ações de propriedade daquela.
A emissão de ações da incorporadora deverá, contudo, ser feita até
o valor de lucros acumulados ou reservas - exceto a reserva legal, como
se as ações da incorporada de propriedade da incorporadora fossem, na
verdade, de propriedade de terceiro. E, com a incorporação, este viesse
a receber as ações da incorporadora e esta, em seguida, as comprasse
para mantê-las em tesouraria ou cancelá-las. Trata-se de uma "aquisi­
ção fictícia"28 , pela incorporada, de suas ações, nas mesmas bases do
artigo 30, b, da LSA29 , como forma de não se comprometer o capital da
companhia30 •

2.7. DIREITOS DOS CREDORES NA INCORPORAÇÃO E FUSÃO


Disposições legais de extrema relevância são aquelas previstas nos
artigos 232 e 233 da Lei das Sociedades Anônimas. Diferentemente
das demais, que inserem os credores dentro de um contexto mais amplo
e compreendendo diversos outros objetos, estas são normas específicas,
exclusivamente criadas para resguardar os direitos de credores anterio­
res às operações de incorporação, fusão e cisão.

27 Cf. CARVALHOSA, op. cit., vol. 4, tomo 1, p. 244.


28 CARVALHOSA, op. cit., vol. 4, tomo I, p. 245.
29 LSA: "Art. 30. A companhia não poderá negociar com as próprias ações. § 1 ° Nessa
proibição não se compreendem: ( ... ) b) a aquisição, para permanência em tesouraria ou
cancelamento, desde que até o valor do saldo de lucros ou reservas, exceto a legal, e sem
dimin uição do capital social ou por doação;"
30 Cf. COELHO, op. cit., vol. 2, p. 1 20.
324 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÃRIA

Em relação à primeira, relativa à incorporação e à fusão, convém


relembrar que os credores das sociedades extintas terão, depois de realiza­
da a operação, suas garantias na sociedade incorporadora ou na sociedade
resultante da fusão. E essa nova situação a que estarão sujeitos poderá
causar-lhes prejuízos.
Assim, o artigo 232 confere aos credores o direito de requerer a
anulação tanto do negócio da incorporação quanto da fusão. Para isso,
deverá fazê-lo por meio de ação judicial e no prazo decadencial de 60
dias, contados da publicação dos atos relativos à operação. Além disso,
deverá demonstrar o prejuízo efetivo - alteração do próprio crédito - ou
potencial - alteração das garantias31 •

Nesse caso, a sociedade incorporadora ou resultante da fusão terá a


faculdade de consignar em pagamento o montante do crédito, o que pre­
judicaria a ação de anulação. De outra forma, isto é, não realizada a con­
signação e se demonstrado o prejuízo pelos credores, a decisão judicial
poderá ser no sentido de anular, definitivamente, a operação.
Se o crédito for ilíquido, impedindo, com isso, a consignação em
pagamento, é facultado à sociedade garantir a execução, de tal sorte que
a ação de anulação ficará suspensa, até que o crédito seja definitivamen­
te pago.
Ademais, se for decretada a falência da sociedade dentro do mes­
mo prazo de 60 dias, qualquer credor poderá pedir a separação dos pa­
trimônios, revertendo, portanto, a operação, para que os créditos sejam
pagos, separadamente, pelas respectivas massas, sem confusão entre elas.

2 .8. DIREITOS DOS CREDORES NA ÜSÃO

Regras diferentes e ainda mais específicas são reservadas pela Lei


das Sociedades Anônimas para a cisão.
Isso porque é característica desta operação a divisão de um único
patrimônio líquido, que é vertido para uma ou mais sociedades, novas
ou existentes, ao contrário da incorporação e da fusão, que possuem em

31 Cf. CARVALHOSA, op. cit., vol. 4 , tomo 1 , p . 3 1 3 .


PAULO MATIAR FILHO - 325

comum a união de, ao menos, dois patrimônios líquidos diversos, verti­


dos para uma única sociedade.
Assim, considerando essa particularidade da cisão, i.e. duas ou mais
sociedades ao fim da operação, a partir de um mesmo patrimônio líqui­
do, a LSA, mais precisamente o caput do artigo 233, determina a solida­
riedade entre elas, como forma de proteger os credores. E o faz de
forma precisa, pois, havendo cisão, os credores, que eram garantidos por
todo patrimônio da sociedade cindida, serão garantidos apenas por par­
te dele.
Desse modo, na cisão total, as sociedades que absorverem o patri­
mônio líquido respondem solidariamente pelas obrigações e responsa­
bilidades da sociedade extinta. Na cisão parcial, as sociedades que
absorverem parcelas do patrimônio líquido respondem solidariamente,
entre si e com a sociedade cindida, pelas obrigações e responsabilidades
desta anteriores à cisão.
As sociedades participantes na cisão parcial poderão, contudo, esti­
pular de forma diversa. Poderão excluir por completo a solidariedade,
submetendo-se, exclusivamente, às obrigações que lhe foram transferi­
das no ato da cisão.
Nesse caso, tendo em vista que a limitação convencional da solidari­
edade poderá causar prejuízos aos credores, a LSA lhes confere o direito
de se opor a esta estipulação, notificando a sociedade cindida no prazo
decadencial de 90 dias a contar da data da publicação dos atos da cisão. É
o que determina o parágrafo único do artigo 233 da LSA.

2.9. OPOSIÇÃO E ANULAÇÃO


Muito se discute acerca da forma e das conseqüências da oposição.
A Lei das Sociedades Anônimas não as prevê expressamente, mas é
inevitável afirmar que, no que diz respeito à forma, a oposição pode32
ser feita extrajudicialmente - por meio de notificação endereçada à so-

32 Superior Tribunal de Justiça, 3' Turma, Rei. Min. Cláudio Santos, DJU de 08/05/1 995, Resp
1 5 .078-0 RJ.
-
326 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

ciedade - e, quanto às conseqüências, trata-se de medida que afasta,


desde logo, o ajuste feito no ato da cisão para exclusão da solidariedade.
A cisão é, desta forma, diferente da incorporação e da fusão, em
relação às quais a lei do anonimato determina, como instrumento de
proteção aos credores, uma medidajudicial (forma) para anular a opera­
ção como um todo (conseqüência) .
Isso porque, na incorporação e na fusão, a maneira de se proteger
os credores não poderia ser outra senão a anulação de todo o negócio da
reestruturação, pois a oposição não lhes daria maior garantia. E, na
cisão, a anulação seria medida descomedida, eis que basta o simples res­
tabelecimento da solidariedade.
A esse propósito, é importante notar que a divisão do patrimônio
único na cisão não representa uma alteração do passivo original. Dentro
do conjunto de todos os patrimônios das sociedades resultantes da opera­
ção, não há novos passivos a concorrerem com os credores anteriores à
cisão. Há, apenas, uma alteração do patrimônio líquido - sujeito - que
deverá suportar determinadas obrigações e responsabilidades, créditos
inclusive. De qualquer forma, a operação poderá prejudicar credores di­
ante não da criação de uma concorrência, mas da divisão do patrimônio e
exclusão da solidariedade. Assim ocorre, p.ex., em uma sociedade A com
ativo de R$ 100.000,00 e um passivo de R$ 10.000,00, este representado
por um único débito. Se esta sociedade A for parcialmente cindida, com
a versão de R$ 20.000,00 do ativo e R$ 10.000,00 do passivo para uma
sociedade B e mantendo-se, na sociedade A, R$ 80.000,00 do ativo e
nenhum passivo, excluindo-se, ademais, a solidariedade, então há eviden­
te diminuição das garantias do credor - agora da sociedade B - que terá
como garantia um ativo de R$ 20.000,00 contra seu crédito de
R$10.000,00.
A união de patrimônios líquidos diversos na incorporação e na
fusão representa, por sua vez, uma modificação do passivo individual
anterior das sociedades participantes da operação, surgindo um novo
cenário de concorrência entre novos credores dentro de uma única
sociedade. Exemplo: duas sociedades, A e B, tendo a primeira um
PAULO MATIAR FILHO 327
-

ativo de R$ 90.000,00 e um passivo de R$ 10.000,00, este representado


por um único débito (credor 1), e a segunda um ativo de R$ 60.000,00
e um passivo de R$ 40.000,00, este também um único débito (credor 2).
Se a sociedade A incorporar a sociedade B, aquela restará com um pa­
trimônio representado por R$ 150.000,00 em ativos e R$ 50.000,00 em
passivos. Com isso, o credor 1 passará a concorrer com o credor 2 na
sociedade A, que tinha, inicialmente, um passivo que representava, apro­
ximadamente, 1 1% do ativo e, após a incorporação, passou a representar
algo em torno de 33% dele, ou seja, três vezes mais. Convém ressaltar,
nesse aspecto, que a simples redução do valor do patrimônio líquido da
incorporadora ou da sociedade resultante da fusão não significa, necessa­
riamente, prejuízo efetivo ou potencial aos credores. Dependerá tam­
bém da dimensão de patrimônios e débitos.
Assim, a divisão do patrimônio na cisão parcial não implica, a prin­
cípio, prejuízos aos credores, pois todas as sociedades respondem solidari­
amente pelas obrigações da cindida. Estes prejuízos somente poderão
existir se as sociedades deixarem de responder, direta e solidariamente,
por estas obrigações. Trata-se de uma questão relacionada ao patrimônio
- sujeito - que responderá pelas obrigações. Por isso, a LSA prevê a opo­
sição como forma de restabelecer o status quo ante e manter a solidarieda­
de, obrigando todos os patrimônios das sociedades participantes da
operação a responderem pelas obrigações da cindida. E tal medida, por si
só, preserva os direitos dos credores, sem a necessidade de anulação de
todo negócio da cisão, em detrimento de diversos outros interesses das
sociedades e dos acionistas.
A incorporação e a fusão, ao contrário, representam não só a altera­
ção do sujeito responsável pela obrigação, mas, principalmente, uma
possibilidade de redução imediata das garantias de pagamento dos cré­
ditos, na medida em que consolida diversos patrimônios - ativos e pas­
sivos - dentro de uma mesma sociedade. E a oposição pouco
representaria na incorporação e na fusão, pois só a anulação da operação
- ou a consignação ou garantia da execução - significa garantia efetiva
aos credores, como instrumento adequado à separação dos patrimônios
328 - REORGANIZAÇÀO SOCIETÁRIA

unidos e restabelecimento do status quo ante. Em outros termos, aos


credores das sociedades participantes na incorporação ou fusão só inte­
ressa a anulação de todo o negócio de reestruturação, pois, de outra for­
ma, os diversos patrimônios seriam mantidos na mesma sociedade -
incorporada ou resultante de fusão - e sujeitos à mesma sorte.
Por esses motivos, a oposição é medida contra a restrição da solida­
riedade e a ação de anulação contra toda operação.
Ressalte-se, ademais, que a oposição beneficia exclusivamente o
credor que a apresentou, não se estendendo aos demais credores da so­
ciedade cindida.
Alguns doutrinadores, no entanto, sustentam que o efeito imedia­
to da oposição é a suspensão da eficácia do negócio da cisão parcial. As­
sim, se o crédito não for antecipadamente pago, "o benefício da retratação
quanto à exclusão da solidariedade será de todos os credores, além, por­
tanto, daquele que se opôs"33 •
Ocorre que o efeito imediato é, na verdade, o restabelecimento da
solidariedade34 convencionalmente excluída e qualquer eventual retrata­
ção da sociedade ou das sociedades nesse sentido - o que não precisa
ocorrer necessariamente - é apenas em relação ao credor que se opôs, não
uma retratação de toda o negócio da cisão. Não ocorrerá qualquer altera­
ção dos atos societários, mas somente uma ineficácia35 deles quanto à
estipulação da exclusão de solidariedade em relação àquele credor36 •
A anulação, diferentemente, alcança todos os demais credores das
sociedades participantes do negócio de incorporação ou fusão, tendo
em vista que prejudica a operação como um todo. Considerando, desta
forma, a extensão dos efeitos da anulação e seu impacto sobre as socie­
dades e os acionistas, não se poderia prever de outra forma senão que
fosse feita judicialmente.

33 CARVALHOSA, op. cit., vol. 4, tomo I, p. 3 1 9 .


34 Cf. BORBA, op. cit., p. 49 1 .
35 Cf. COELHO, op. cit., vol. 2, p. 483.
36 Cf. MARTINS, Fran. Comentários à Lei da Sociedades Anônimas. 2ª edição. Rio de Janei­
ro: Forense, 1 9 85, vol. 3 , p . 1 82.
PAULO MATTAR FILHO - 329

Em termos práticos, muito embora a LSA faculte aos credores das


sociedades participantes nos negócios de incorporação, fusão e cisão utili­
zarem-se da oposição e da ação de anulação, não se pode dizer que estes
sejam instrumentos plenamente eficazes para a proteção de seus interes­
ses37 , como o sistema de reserva patrimonial adotado por outras legislações.
Os credores poderão encontrar dificuldades diante do fato de que o
exercício de seus direitos dependerá do efetivo conhecimento da opera­
ção. Em outras palavras, se a publicação dos atos societários38 não che­
gar, por algum motivo, ao conhecimento dos credores, prejudicado estará
o cumprimento do prazo legal para oposição ou ação de anulação, deca­
indo seu direito.
É perfeitamente possível, p.ex., que sociedades realizem operações
de cisão e convencionem a exclusão de solidariedade com o objetivo
exclusivo de prejudicar os credores desatentos.
Nesses casos, contudo, o pedido de anulação deve ser admitido como
forma de proteger os credores da sociedade cindida e independentemente
dos prazos decadenciais previstos na LSA39 , considerando que a oposição
é instrumento criado para a cláusula lícita de exclusão de solidariedade,
sendo certo que a cláusula será ilícita se evidentemente levada a efeito
para fraudar credores40 •
Assim, em que pese a falta de referência legislativa específica no ar­
tigo 233 da Lei das Sociedades Anônimas, o credor ainda poderá, sem
prejuízo da oposição, requerer a anulação da cisão, se com base em ato
ilícito, como, p.ex., a operação cujo objetivo é o esvaziamento da socieda­
de em prejuízo dos credores41 •

37 Cf. CARVALHOSA, op. cit., vai. 4 , tomo 1 , p . 2 2 1 , ao comentar o di reito argentino: "Deve,
outrossim, haver expressa concordância dos credores. A oposição destes impede a fusão,
na medida em que não pode efetivar-se se eles não aprovarem ou se não forem devidamen­
te garantidos ou ainda se houver discrepância acerca dessas mesmas garantias".
38 Frise-se que as operações de reestruturação só têm efeitos perante terceiros, inclusive cre-
dores, depois de publ icados.
39 Cf. BOR BA, ob. cit., p. 492.
40 Cf. CARVALHOSA, op. cit., vai. 4, tomo 1, p. 296, 3 1 8 e 3 1 9.
41 A o manter decisão que ju lgou i mprocedentes certos embargos d e devedor, o Superior Tri­
bunal de Justiça afastou a estipulação que excluiu a solidariedade e admitiu a possibil idade
330 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

De todo modo, é importante frisar que a alternativa prevista no pa­


rágrafo único desse artigo - a exclusão da solidariedade - é bastante útil e
válida em diversas operações de cisão, inclusive, p.ex., naquelas que têm
como objetivo a dissolução parcial da sociedade, visando acomodar os
interesses dos diversos acionistas em relação às parcelas dos ativos e dos
passivos que cada um deles deverá absorver, bem como naquelas opera­
ções nas quais a cisão é estruturada para a aquisição indireta de ações,
como forma de planejamento tributário.

2 . 1 0 . DIREITOS DOS DEBENTURISTAS


Sem entrar no mérito de discussões relacionadas à natureza42 das
debêntures43 , cabe ressaltar que os debenturistas gozam de especial pro­
teção em relação ao direito de crédito44 que elas lhes conferem.
Os negócios de incorporação, fusão e cisão dependem, nos termos
do artigo 231 da LSA, de prévia aprovação dos debenturistas, reunidos
em assembléia especial.
Esta aprovação só é dispensada se lhes for assegurado, pelo prazo míni­
mo de seis meses a contar da data da publicação da ata de assembléia que
aprovar a operação, o direito de resgate das debêntures, em condições ao me­
nos iguais às previstas na escritura de emissão. E, neste caso, a sociedade
cindida e as que absorverem a parcela do patrimônio líquido - ou apenas
estas, se total a cisão - respondem solidariamente pelo resgate das debêntures.
Esta regra de solidariedade, que se aplica somente ao negócio da
cisão, também é resultado da diferença essencial desta em relação à incor­
poração e fusão: a divisão do patrimônio e a conseqüente redução das
garantias dos credores. Necessária, portanto, a solidariedade.

de se mover ação de execução contra sociedade cindida (muito embora o crédito corres­
pondente integrasse a parcela do passivo vertida para a nova sociedade), considerando
que não restou comprovado que a cisão tenha se concretizado de lato, ainda que constata­
da a ausência de oposição por parte do credor (3' Tu rma, Rei. Min. Castro Filho, DJU de 1 O/
06/2002, Resp 276.0 1 3 MG).
-

42 Cf. COELHO, op. cit., vol. 2, p. 1 39 e 1 40.


43 REQU IÃO, op. cit., vol. 2, p. 262, insere as regras de proteção aos debenturistas no título
" D i reito dos Credores".
44 LSA, art. 52.
PAULO MATIAR FILHO - 331

3. CóDIGO CIVIL
A Lei das Sociedades Anônimas é aplicada aos negócios de incorpo­
ração, fusão e cisão que envolvem sociedades por ações ou sociedades por
ações e outros tipos societários. O Código Civil de 2002, por sua vez, é
aplicado quando a operação envolve apenas outros tipos societários.
Contudo, as disposições do Código Civil de 2002 são substancial­
mente semelhantes às da LSA, embora extremamente limitadas, razão
pela qual, será necessário invocar, por remissão expressa do contrato so­
cial ou por analogia45 , a lei do anonimato para os casos nos quais o CC
2002 é omisso.
No que diz respeito à proteção dos credores, haverá, da mesma for­
ma, sucessão dos direitos, das obrigações e das responsabilidades para a
sociedade incorporadora46 e pela sociedade resultante da fusão47 • Além
disso, inexiste previsão acerca do critério de avaliação do patrimônio lí­
quido da sociedade incorporada ou dos patrimônios líquidos das socieda­
des fundidas, muito embora também exista previsão determinando a
nomeação de peritos48 • Há, ainda, proibição aos sócios de votarem na
fusão o laudo de avaliação do patrimônio da sociedade da qual fazem
parte, como também previsto na lei do anonimato.
Afora a referência no título do Capítulo X, a cisão só é mencionada
pelo CC 2002 quando este dispõe sobre a ação de anulação49 • Mas nem
por isso os preceitos anteriores devem deixar de ser aplicados, ainda
que, para isso, a sociedade, os sócios ou credores tenham que se valer,
subsidiária ou analogicamente, da Lei das Sociedades Anônimas50 , o

45 Cf. BORBA, ob. cit., p. 482.


46 CC 2002, art. 1 . 1 1 6.
47 C C 2002, art. 1 . 1 1 9.
48 CC 2002, arts. 1 . 1 1 7, §2º, e 1 . 1 20, § 1º.
49 CC 2002, art. 1 . 1 2 2.
50 COELHO, op. cit., vol. 2, p. 478, sobre a apl icação da LSA aos casos de cisão nas socieda­
des contratuais: "Se a operação é a cisão total, qualquer que sejam os tipos de sociedades
envolvidas, reger-se-á a operação pela LSA, já que o Código Civil de 2002 não a disciplina
(possui, na verdade, uma única norma sobre o assunto, relacionada aos di reitos dos credo­
res: art. 1 . 1 22)".
332 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

que nos parece ser a medida mais correta nos casos de omissão do CC
2002. De todo modo, é importante notar que, pela legislação civil,
diferentemente da legislação das sociedades anônimas, não há o ins­
trumento da oposição, mas apenas a ação de anulação, mesmo porque
inexiste disposição prevendo a solidariedade entre as sociedades que
absorverem parcelas do patrimônio líquido da sociedade extinta ou
cindida.
Nos mesmos moldes da LSA, a anulação deve ser requerida judici­
almente, porém no prazo decadencial de 90 dias. A consignação em
pagamento e a garantia da execução são, igualmente, remédios para as
sociedades participantes da operação; e a decretação da falência garante
aos credores o direito de requerer a separação dos patrimônios. Essas
normas se aplicam às operações de incorporação, fusão e cisão.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em conclusão, é fundamental destacar que todas essas regras pre­
vistas na Lei das Sociedades Anônimas e no Código Civil de 2002 dire­
cionadas ao negócio de reestruturação societária acabam por criar um
importante sistema de proteção aos credores cujo propósito é atender,
sobretudo, ao princípio da segurançajurídica, informador de todo o orde­
namento jurídico brasileiro.
Pode-se dizer, assim, que a razão fundamental dessas regras é per­
mitir aos credores que, ao negociarem com as sociedades, tenham uma
garantia mínima: a de que seus direitos não serão substancialmente
alterados e prejudicados por operações impulsionadas pela vontade ex­
clusiva das sociedades e de seus sócios ou acionistas.
Convém ressaltar, neste aspecto, que os efeitos dessa garantia vão
além das relações individuais das sociedades e indivíduos envolvidos,
alcançando âmbito muito maior do que certas relações comerciais espe­
cíficas. Ela influencia, do mesmo modo, toda a atividade econômica do
país, na medida em que, aumentando ou diminuindo a segurança das
relações comerciais, aumentam ou diminuem os riscos e os custos das
transações, permitindo a ampliação ou redução da produção e dos negó-
PAULO MATTAR FILHO - 333

cios. Trata-se do direito-custo, i.e. da influência de algumas normas jurí­


dicas no custo da atividade econômica51 •
O sistema de proteção aos credores nas operações de incorporação,
fusão e cisão é, portanto, de extrema importância para a atividade eco­
nômica do país, motivo pelo qual não se pode jamais perder de vista, na
interpretação e na aplicação das normas que sustentam esse sistema, o
princípio da segurança jurídica dentro dessa perspectiva de direito-custo.
Em outros termos, devem-se assegurar as garantias dos credores e con­
seqüente estabilidade das relações comerciais, como elemento essencial
para melhor desempenho das atividades econômicas do país. Portanto,
os mecanismos existem. É preciso apenas conseguir deles seus melho­
res resultados.

BI BLIOGRAFIA
BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 8• edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
BULGARELLI, Waldirio. Fusões, Incorporações e Cisões de Sociedades. 6ª edição. São Paulo:
Atlas, 2000.
CAMPINHO, Sérgio. O Direito de Empresa à Luz do Novo Código Civil. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002.
CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. São Paulo: Saraiva,
1998.
Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. São Paulo: Saraiva,
2002.
Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003. Volume
13.
CARVALHOSA, Modesto, e EIZIRIK, Nelson. A nova Lei das S/A. São Paulo: Saraiva,
2002.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 5• edição. São Paulo: Saraiva, 2002.
LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Pareceres. São Paulo: Singular, 2004.
MARTINS, Fran. Comentários à Lei da Sociedades Anônimas. 2' edição. Rio de Janeiro: Foren­
se, 1985.
REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 23• edição. São Paulo: Saraiva, 2003.

51 Cf. COELHO, op. cit., vol. 1 , p. 37.


O Acionista Minoritário e
as Operações Societárias

Caesar Augustus F. S. Rocha da Silva

Advogado
Especialista em Direito Processual Civilpela PUCISP - COGEAE
Especialista em Direito Empresarialpela PUCISP - COGEAE
Mestrando em Direito Comercial na PUC/SP
Membro do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo
Membro do IDSA
336 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

Ü ACIONISTA MINORITÁRIO E AS ÜPERAÇÕES SOCIETÁRIAS


Qyando se fala em operações societárias, logo vem à cabeça o lado
glamouroso do negócio. No entanto, esta é apenas uma das faces da
moeda. A outra, pouco falada ou nunca lembrada, é a posição do acio­
nista minoritário prejudicado com a fusão, cisão ou incorporação.
Dirão alguns: a ele a lei assegura o direito de recesso. Contudo,
não é apenas o direito de recesso que lhe é garantido! Aliás, nem sem­
pre o recesso será solução, pois poderá, ao revés, significar dupla pena­
lização em algumas situações.
Com efeito, imaginemos, por exemplo, uma situação em que a
sociedade incorporada tenha patrimônio líquido negativo, não porque
a atividade seja deficitária, mas por conveniências tributárias. Supo­
nhamos ainda que o estatuto da hipotética companhia não preveja a
avaliação por valor econômico. Pois bem, nessa situação, que vantagem
o acionista dissidente teria ao pedir o recesso? Nenhuma, pois deixaria
de ser acionista e não teria haveres para receber. Vê-se, portanto, que o
direito de recesso j amais pode ser entendido como o único que o acio­
nista dissidente da deliberação tem; caso contrário o minoritário do
exemplo criado ficaria sem ação, seria mero espectador.
Por isso, o que aqui se busca é, de uma forma absolutamente su­
cinta, apontar alguns dos caminhos e posturas que o acionista dissi­
dente de uma operação societária pode percorrer e assumir. Antes,
porém, de elencar quais são os direitos que os minoritários têm e que,
assim como o recesso, poderão ser exercidos quando se sentirem preju­
dicados em uma operação societária, é preciso conceituar e precisar o
que se entende por fusão, cisão e incorporação, bem como quem é con­
siderado minoritário.
Rubens Requião conceitua a incorporação como sendo "a operação
pela qual uma ou mais sociedades, de tipos iguais ou diferentes, são ab­
sorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações." 1

Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, Vol. 2, Saraiva, São Paulo, 1 995, pág. 207
CAESAR Aucusrns F. S. RocHA DA S1LvA - 337

Por outro lado, fusão, para Requião é "a operação pela qual se unem
duas ou mais sociedades, de tipos iguais ou diferentes, para formar sociedade
nova que lhes sucederá em todos os direitos e obrigações." 2
Reportamo-nos ainda ao mesmo doutrinador para definir a cisão,
que, para ele é "a operação pela qual a companhia transfere parcela do
seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse
fim ou j á existentes, extinguindo-se a companhia cindida, se houver
versão de todo o seu patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se par­
cial a versão." 3
A doutrina, nesse aspecto, não é divergente, daí porque se torna
despiciendo fazer novas citações, que nada acrescentariam, até porque as
definições acima mencionadas são muito semelhantes, para não dizer
equivalentes, àquelas adotadas na própria lei das Sociedades Anônimas,
como se pode verificar pela leitura do caput dos artigos 227, 228 e 229
deste diploma legal.
O conceito de minoritário, por sua vez, se obtém de forma inversa.
Isto é, o artigo 1 1 6 da Lei das Sociedades Anônimas define o controla­
dor; logo, todos aqueles que não se enquadram em tal conceito legal são
minoritários.
Vejamos.
O dispositivo retro mencionado estabelece que:
"Art. 1 16 . Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou
jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob
controle comum, que:

a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanen­


te, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia-geral e o poder
de eleger a maioria dos administradores da companhia; e,

b) usa efetivamente seu poderpara dirigir as atividades sociais e orientar o


funcionamento dos órgãos da companhia. "

2 Idem, pág. 208


3 Ibidem, pág. 209
338 7 REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

Note-se que a lei não diz que acionista controlador é o detentor do


maior número de ações, como, em um primeiro momento, equivocada­
mente se poderia pensar.
É que, pelas mais diferentes razões, nem sempre o acionista que
detém o maior número das ações com direito a voto tem interesse em
participar ativamente da administração da companhia.
Veja-se, a propósito, a precisa lição de Fábio Ulhoa Coelho, verbis:
" ... nem sempre a minoria acionária, malgrado o nome, reúne
os detentores das menores parcelas do capital social. Pelo con­
trário, muitas vezes, em razão dos mecanismos de organização
do poder utilizados (item 2.1), o controle da sociedade anôni­
ma está nas mãos de quem contribuiu com parcela reduzida
para a constituição do capital social. Não há relação direta en­
tre o poder e a proporcionalidade na subscrição das ações da
companhia. Os negócios sociais podem ser dirigidos pelos aci­
onistas que menos aportes realizaram na sociedade. Em
contrapartida, os acionistas alijados das deliberações sociais
podem ser os que mais recursos investem na empresa. Qyando
se fala, portanto, em maioria e minoria, no contexto das rela­
ções entre acionistas, as expressões não dizem respeito à maior
ou menor participação no capital social, mas, sim, à maior ou
menor influência na condução dos negócios da sociedade." 4

No mesmo diapasão a observação de Ecio PerinJunior, para quem: "Via


de regra, nas grandes sociedades por ações, os ausentes costumam constituir a
maioria, concentrando-se em uma minoria o quadro ativo da sociedade. "5
Atento a isso, o legislador foi extremamente feliz, pois a definição de
controlador adotada na legislação é ampla, abarcando todas as situações.
Comentando o conceito, Vera de Paula Noel Ribeiro igualmente
assevera que "maioria é o controlador - aquele que deJato tem o poder decisó-

4 Fábio U l hoa Coelho, Curso de Direito Comercial, Vol. 2, Saraiva, São Paulo, 2002, pág. 275
5 Ecion Perin Junior, A Lei n. 70.303/200 7 e a proteção do acionista minoritário, Saraiva,
2004, pág. 29
CAESAR AUGUSTUS F. 5. ROCHA DA SILVA - 339

rio e dirige a sociedade" 6 e arremata: "Há que sefrisar que nem sempre é a
maioria de acionistas que controla a sociedade, podendopeifeitamente esse con­
trole ser detidopela minoria, capaz diante da dispersão e desinteresse dos aci­
onistas - especuladores e rendeiros - de aglutinar maior número de ações,
inclusive através de procurações. " 7
A mesma advertência também faz Waldirio Bulgarelli, quando afir­
ma que "o grupo no controle da sociedade possui, às vezes, uma minoria ou até
uma pequena porcentagem das ações. " 8
Osmar Brina Corrêa Lima é ainda mais enfático. Diz, com a lin­
guagem candente que é característica de sua obra, que: "A expressão acio­
nista minoritário é delusória e enganadora. O conceito de minoria, na
companhia, situa-se no seio de um paradoxo. O poder, na companhia, é quase
sempre exercido, defato e de direito, por uma minoria que se apresenta como
maioria, em termos de deliberação. " 9
E, mais adiante, o ilustrado mestre explica a razão pela qual assim
se posiciona: . . . a maioria -frise-se - não representa, necessariamente, a
"

maioria dos acionistas, nem mesmo de acionistas votantes, mas de ações vo­
tantes existentes presentes à assembléia geral, diretamente ou por procuração
(art. 126, § 1°). " 10
O exemplo mais citado para ilustrar que o conceito de maioria para
o direito societário não se confunde com maioria quantitativa é o da
Standard Oi! Company, cujo acionista controlador era John Rockfeller Jr. ,
que detinha menos de 15% (quinze por cento) das ações votantes.
Waldirio Bulgarelli nos informa 1 1 , outrossim, que, no Brasil, Fábio
Konder Comparato alertou para o fato de que, teoricamente, um só acio­
nista, detentor de uma única ação, pode constituir a Assembléia Geral.

6 Vera de Paula Noel Ribeiro, A minoria nas S.A., Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1 99 1 , pág. 1 6
7 ln op.cit., pág. 1 7
8 Waldirio Bu lgarelli, Regime Jurídico da proteção às minorias nas 5/A, Ed. Renovar, Rio de
Janeiro, 1 998, pág. 1 6
9 Osmar Brina Corrêa Lima, O acionista minoritário no Direito Brasileiro, Ed. Forense, Rio de
Janeiro, 1 994, pág. 7
10 Idem, pág. 8
11 ln op.cit., pág. 32
340 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

Isso é possível primeiro porque a lei só estabelece quorum de insta­


lação em primeira convocação; segundo, porque, repita-se, minoria é
noção quantitativa de poder; terceiro, porque existem quatro modalidades
de controle da sociedade anônima 12 , como observaram Adolf A. Berle e
Gardiner C. Means, nas pesquisas que desenvolveram na Columbia University
e que deram origem ao livro publicado em 1932, intitulado ''A moderna soci­
edade anônima e a propriedade privada", obra essa que, segundo Fábio Ulhoa
Coelho, com o qual concordamos plenamente, é de fundamental importân­
cia para os estudiosos do direito societário.
Exatamente pela possibilidade de o controle ser minoritário é que,
como nos informa Waldirio Bulgarelli 13 , Ascarelli chegou a constatar
que, em geral, o problema da proteção às minorias se convertia em pro­
teção às maiorias.
De qualquer forma, o que se pode concluir é que ser minoria não é
uma condição perene. É , nas palavras do já tantas vezes citado Waldirio
Bulgarelli, '. . . umaposição -eventual ou não - que o acionista atravessa;pode­
'

se dizer que o acionista não é minoria, mas está em minoria. " 14


Fábio Ulhoa Coelho encontrou uma forma extremamente inteli­
gente e simples de resolver a questão. Para ele, "quem não dispõe de ações
correspondentes a mais da metade do capital com direito a voto deve ser consi­
derado controlador se, nas três últimas assembléias,fez a maioria nas delibe­
rações sociais. " 15

12 As quatro modalidades de controle identificadas por Adolf A. Berle e Gardiner C. Means


são: totalitário, majoritário, minoritário e gerencial. O controle totalitário se dá pela concen­
tração da quase-totalidade das ações com direito de voto na propriedade de uma única
pessoa. O majoritário ocorre quando o controle é exercido por quem é titular de mais da
metade das ações com di reito de voto. É minoritário se o acionista que detém menos da
metade das ações com di reito de voto decide sobre os destinos da companhia. Isso geral­
mente ocorre em sociedades cujas ações com direito de voto estejam dispersas entre vários
acionistas. A última modalidade de controle é a gerencial. Nessa, a dispersão de ações é tão
grande que os próprios administradores devem ser considerados os controladores, pois aca­
bam se perpetuando na direção da companhia. Contudo, não se tem notícia da existência,
no Brasil, de sociedades cujo controle seja gerencial.
13 ln op.cit., pág. 3 1
14 l n op.cit., pág. 40
15 ln op.cit., pág. 280
CAESAR AuGUSTUS F. 5. ROCHA DA SILVA - 341

Por outro lado, o simples fato de ser minoria não é bastante para se
concluir ser ruim a relação deste grupo com a maioria. Com efeito, como
observa Fábio Ulhoa Coelho: "As relações entre o controlador e a minoria
nem sempre são conflituosas. Se a empresa se desenvolve bem, sob o comando
do controlador, que a dirige com competência e regularidade, e está, assim,
gerando aos minoritários rendimentos satiifatórios, não há ensejos para ten­
sões no interior da companhia. Cada acionista respeita, no outro, a contribui­
ção diferenciada à realização do objeto social, e as relações depoder reproduzem
o justo equilíbrio da diferença. " 16
Muitas companhias já perceberam que se o acionista minoritário
for bem tratado, isto é, se tiver seus direitos respeitados, e a sociedade for
gerida com transparência, independência e profissionalismo, mais pes­
soas se sentem estimuladas a investir suas economias nas ações dessa
pessoa jurídica. Tal prática ficou conhecida como Governança Corpora­
tiva e tem sido empregada tanto nas comRanhias fechadas como nas
abertas, compondo estas últimas o que hoje se chama de "Novo Merca­
do" da B OVESPA.
Ocorre que o brasileiro não tem a cultura de investir em ações. É
arredio a riscos, até pelo histórico da nossa economia. Aliás, ficou céle­
bre a frase atribuída ao banqueiro de Fürstenberg ("o acionista é um tolo
e um arrogante; tolo, porque nos dá o seu dinheiro; arrogante, porque
deseja ainda receber dividendos"), que dava bem a dimensão das razões
que levavam os poupadores brasileiros a ter aversão à aplicação bursítica.
Não por outra razão, a aplicação que tem o maior volume de inves­
timento é a caderneta de poupança, a despeito da baixa rentabilidade
que propicia, mormente se considerada em relação aos demais fundos de
investimento.
Sem embargo, de 1 994 para cá, com o advento do "plano real", esta
característica do investidor nacional tem, paulatinamente, sido modifi­
cada, mesmo porque com a estabilização da moeda, a inflação sob con-

16 ln op.cit., pág. 276


342 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÀRIA

trole e a taxa de juros em declínio, o retorno propiciado pela caderneta


de poupança, que sempre foi modesto, tem ficado em muitos meses até
mesmo aquém dos índices inflacionários. Daí porque se pode dizer que a
criação desse "Novo Mercado" vem em boa hora, pois o poupador brasileiro
está começando a se interessar por outras aplicações e o "Novo Mercado"
rompe com o estigma de que as companhias que têm suas ações negociadas
no mercado de capitais não se preocupam em assegurar direitos mínimos
aos minoritários, sequer dividendos.
Aliás, como anota Waldirio Bulgarelli, foi justamente porque a
maioria abusava do seu poder, que se detectou a necessidade de tutelar a
minoria. "Portanto, a proteção à minoria não se deve a ela mesma, mas à
violação de seus direitos pela maioria. " 1 7
Comunga do mesmo pensar Fábio Ulhoa Coelho, quando aduz que:
"O conflito entre acionistas deriva, normalmente, das tentativas de desequili­
brar a relação. Se o controlador (empreendedor) aprecia a contribuição do mino­
ritário (rendeiro ou especulador), mas não a remunera comopoderia (aprovando,
em assembléia, retenção de lucros desnecessária), ou, por considerar a companhia
propriedade exclusiva dele, apropriando-se abusivamente de recursos sociais (ele­
gendo-se para administrador e atribuindo-se remuneração elevada, por exem­
plo), essas condutas geram conflitos. Por outro lado, se um minoritário (com espírito
empreendedor) quer ampliar sua ingerência na administração da sociedade, ou
mesmo tomar o controle para suas mãos, isso também desequilibra as relações de
poder, e gera conflitos. " 1 8
Uma outra questão que exsurge é saber se os preferencialistas se
enquadram ou não no conceito de minoria. Isto porque, se considerar­
mos que o que é determinante para definir quem é controlador é a influ­
ência que o acionista tem na condução dos negócios da sociedade e
lembrarmos que, no mais das vezes, os preferencialistas não têm direito
a voto, poder-se-ia questionar se por não opinarem sobre os destinos da

17 ln op.cit., pág. 4 1
18 ln op.cit., pág. 276
(AESAR AUGUSTUS F. s. ROCHA DA SiLVA - 343

companhia os acionistas que têm ações preferenciais sem direito a voto


seriam minoritários.
Leslie Amendolara, de uma forma absolutamente pragmática, ex­
plica que 'a própria Lei 6.404176 em seus 300 artigos não é unívoca no
tratamento do conceito das minorias, às vezes referindo-se elas sob a expressão
Capital Socialpara dizer que também detêm aqueles direitos ospreferencialis­
tas. " 19 Cita, em reforço à sua argumentação, que a CVM, quando pre­
tendeu englobar todos os acionistas não controladores (inclusive
preferencialistas) como minoria, foi taxativa, como ocorreu quando edi­
tou a Resolução nº 361/02.
Erasmo Mendonça de Boer, citado por Osmar Brina Corrêa Lima,
tem uma posição um pouco diferente, sustentando que 'as expressões
'm inoria' e 'm inoritário', empregadas pelos autores do projeto, referem-se a
todos os acionistas não controladores, e não somente aos titulares de ações
ordinárias, ou seja, ações com direito a voto. " Segundo Boer, "o acionista
minoritário não tem o seu conceito definido a partir da sua possibilidade de
votar, ainda que não podendofazerfrente aos desígnios do acionista contro­
lador. Minoria não exprime, como pode parecer a princípio, uma relação
numérica de inferioridade em assembléia geral de acionistas, mas traduz,
sobretudo, uma situação jurídica, uma correlação de direitos e deveres, um
status em relação à sociedade. " Boer enfatiza que 'a minoria não é minoria
apenas quando vota e perde. " 20
Disso se extrai que embora tecnicamente os preferencialistas não
possam ser considerados minoria, a doutrina em geral trata os preferen­
cialistas como minoritários e aqui não será diferente.
Um outro sofisma que precisa ser corrigido é a confusão que se faz
entre direitos dos acionistas minoritários e direitos essenciais. Waldirio
Bulgarelli faz bem a distinção entre uns e outros, razão pela qual se faz
oportuna a transcrição de suas precisas lições, verbis:

19 Leslie Amendolara, Direito dos Acionistas Minoritários, Quartier Latin, São Paulo, 2003,
pág. 2 1
20 ln op.cit., pág. 1 1
344 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

"Enquanto os direitos conferidos aos acionistas em relação à so­


ciedade visam a garanti-los, mantendo intocável a sua posição de
acionista ou possibilitando que defendam seus intere�ses indivi­
duais contra o grupo ou especificamente contra a administração, já
aqueles conferidos aos acionistas, como minoria, objetivam per­
mitir que possam intervir na vida societária.

Daí que podemos considerar os direitos dos acionistas, em ge­


ral, e enquanto tal, como os concedidos contra qualquer viola­
ção, objetivando protegê-los, salvaguardando a essencialidade
de sua condição de sócio e voltados contra quem quer que seja.

Já os direitos concedidos aos acionistas, enquanto minoria, vale


dizer, quando sujeitos aos controladores, têm como objetivo
protegê-los contra qualquer violação ou manobra da maioria
tendente a prejudicar seus interesses.

Daí a noção, hoje, bem aceita, de que a minoria é o acionista ou


conjunto de acionistas que, na Assembléia Geral, detém uma
participação em capital inferior àquela de um grupo oposto. " 2 1
Partilha da mesma opinião, qual seja, de que direitos dos acionistas
minoritários e direitos essenciais não são sinônimos, Vera de Paula Noel
Ribeiro, tanto que diz que "Os direitos essenciais são inderrogáveis, concedidos
a todos os acionistas, independentemente da sua posição no quadro acionário
(Lei nº 6.404, art. 109). '', e, ainda, "O que a Lei nº 6.404 concede ao minoritá­
rio são meios legais para a sua defasa, utilizáveis na exata medida do eventual
uso abusivo do poder dos controladores. Procura-se, assim, manter o equilíbrio,
que éfundamental na vida societária. " 22
Dominique Schmidt ressalta, por seu turno, que "os direitos da mi­
noria não visam a limitar o poder majoritário, mas criam um poder concor­
rente, capaz de controlá-lo, atuando como um verdadeiro contrapeso, lógico e
indispensável, para o bomfuncionamento da sociedade. " 23

21 ln op.cit., pág. 4 0
22 ln op.cit., pág. 3 2
23 Apud Osmar Brina Corrêa Lima, O acionista minoritário no Direito Brasileiro, cit., pág. 32
(AESAR AUGUSTUS F. 5. ROCHA DA SILVA - 345

Joaquim Garrigues, jurista espanhol, também concorda que não se


pode confundir os direitos essenciais com os direitos dos acionistas mi­
noritários; aliás, no seu entender, confundir a defesa da minoria com os
direitos conferidos aos acionistas para defender a lei, os estatutos ou os
direitos individuais é incorrer numa ilusão de ótica, pois a defesa da mi­
noria, em sentido estrito, se referiria à hipótese de deixar em suspenso o
princípio majoritário, concedendo à minoria ou ao acionista isolado o
direito de resistir, de opor-se ao acordo majoritário, sem necessidade de
invocar nem o excesso de poderes da Assembléia Geral, nem a trans­
gressão da lei ou do estatuto ou do interesse social. A lei, neste caso de
estrita defesa da minoria, protege a atitude discrepante desta sem inda­
gar se é ou não fundada, se é ou não razoável, se está ou não inspirada no
verdadeiro interesse social, verbis:
"Hay en la ley espanola un grupo depreceptos que amparan a la minoría
por su mera discrepancia com la mayoría. La leyprotege la actitud dis­
crepante deisocio minoritario sin preguntarse si esfandaday razonab!e,
sin preguntarse si se inspira o no en el interés de la sociedad." 24
Por óbvio que ao se examinar os direitos que os acionistas minoritá­
rios têm quando, nas operações societárias, se deparam com abusos da
maioria, não se pode deixar de mencionar o direito essencial de fiscaliza­
ção. O que se quer, todavia, é deixar bem claro que direito essencial de
acionista não se confunde com direito de acionista minoritário.
Não obstante, é evidente que o minoritário também terá, dentro do
universo dos direitos de que dispõe para impugnar, contestar ou respon­
sabilizar os administradores e/ou acionistas majoritários que votaram
pela operação societária lesiva aos seus interesses, o direito essencial de
fiscalizar, pois deste, como a própria lei diz, nem o estatuto nem a as­
sembléia geral poderá privá-lo.
Logo, enquanto ostentar a condição de minoria, gozará o acionis­
ta dos direitos dos acionistas minoritários e os essenciais. A partir do

24 Joaquim Garrigues, La protecion de las minorias en el derecho espaíiol in Studi in Memoria


di Lorenzo Mossa, Volume 2, Padova - CEDAM, 7 96 7, págs. 333/350
346 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÃRIA

momento em que passar a integrar a maioria, terá apenas os direitos


essenc1a1s.
Comecemos, então, pelos direitos essenciais. Estão eles previstos
no artigo 109 da Lei das Sociedades Anônimas. Para melhor visualiza­
ção, transcrevemos o texto da lei:
''Art. 109. Nem o estatuto nem a assembléia geral poderão privar o
acionista dos direitos de:

I - participar dos lucros sociais;

II - participar do acervo da companhia, em caso de liquidação;

III fiscalizar, na forma prevista nesta lei, a gestão dos negócios sociais;
-

IV preferência para subscrição de ações, partes beneficiárias conver­


-

síveis em ações, debêntures conversíveis em ações e bônus de subscri­


ção, observando o disposto nos arts. 171 e 172;

V - retirar-se da sociedade nos casos previstos nesta lei."

Para o escopo do presente estudo, somente nos iremos ocupar do de


fiscalização, pois, dos direitos essenciais, é o único que se presta a des­
cortinar eventuais abusos praticados nas operações societárias e a forne­
cer subsídios para reprimi-los. Vejamos.
Vera de Paula Noel Ribeiro diz que o direito essencial previsto no
inciso III do artigo 109 da Lei de Sociedades Anônimas "Trata-se de um
dos direitos mais importantes do acionista, permitindo, tais srijam os meios
concedidospara isso, manter-se a par da marcha da sociedade, acompanhando
o desenrolar das atividades empresariais. " 25
Fábio Ulhoa Coelho, por seu turno, faz questão de ressaltar que o
acionista "não é livre para determinar o meio pelo qual irá exercer esse direi­
to. " 26 Pelo contrário, o inciso é claro e basta lê-lo atentamente para veri­
ficar que, ao mesmo tempo em que conferiu esse direito aos acionistas,
não quis o legislador deixar que esse poderosíssimo instrumento pudes­
se ser utilizado para tumultuar a condução dos negócios e/ou chantagear

25 ln op.cit., pág. 46
26 ln op.cit., pág. 292
CAESAR AUGUSTUS f. 5. ROCHA DA SILVA 347
-

os controladores com o intuito de forçar a realização de acordos visando


à retirada dos minoritários, como aconteceria se fosse ilimitado ou in­
condicionado. Por tal motivo, limitou o direito à fiscalização às formas
previstas na Lei de Sociedades Anônimas.
Assim, como nos ensina Fábio Ulhoa Coelho, "o acionista não pode,
a pretexto de exercer seu direito essencial defiscalização, pretender assistir às
reuniões de diretoria, ser informado das balizas das negociações em que está
envolvida a sociedade, inspecionar o estabelecimento empresarial, fazer o
controle físico do estoque, ou outras ações que, mesmo reputadas relevantes
por ele, não estão especificamente mencionadas na lei como instrumento ao
seu alcance. Afalta de liberdade para a definição do meio dá os contornos
para o direito defiscalização, estabilizando as relações de poder. Afiscaliza­
ção da gestão da empresa, pelo acionista, não pode inteiferir no regular de­
senvolvimento desta. " 2 7
Vale lembrar que sequer pode o acionista exigir que os administra­
dores prestem contas de sua gestão judicialmente, pois, nas sociedades
anônimas, o foro próprio para prestação de contas é a assembléia geral,
mais precisamente, a ordinária.
O Conselho Fiscal é o instrumento mais importante para o exercí­
cio do direito de fiscalização, mas não é o único. Tem o acionista tam­
bém o direito de requerer a exibição dos livros (art. 105 LSA), analisar,
opinar e votar sobre as contas dos administradores (arts. 133 e 134 LSA)
e ver as demonstrações financeiras serem examinadas por auditores in­
dependentes (art. 177, § 3° e art. 163, § 5° LSA).
Osmar Brina Corrêa Lima dá uma explicação lógica para o fato
de a Lei de Sociedades Anônimas não assegurar aos acionistas direito
amplo, geral e irrestrito de fiscalizar: 'Imagine-se, por exemplo, o que
seria de uma sociedade anônima como o Banco do Brasil, se cada acionista, a
qualquer momento, pudesse reivindicar o direito defiscalizar a gestão dos
negócios sociais. . . " 28

27 ln op.cit., pág. 292/293


28 ln op.cit., pág. 29
348 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

Giuseppe Ferri, por seu turno, nos mostra que no direito italiano
também é assegurado aos sócios o direito de consultar os livros sociais e
exigir prestação de contas por parte dos administradores:
"Cosi ciascun socio há diritto di consultare i libri sociali e di avere
dagli amministratori notizie sul/o svolgimento degli ajfari sociali;
cosi i soei che rappresentano almeno il terzo dei capita/e sociale hanno
diritto difar eseguire annualmente aproprie spese la revisione dei/a
gestione (art. 2489 cod. civ.). Talipoteri sono conferiti ai socio o alia
minoranza nel proprio interesse: non e pertanto che il socio,
esercitando talipoteri, adempia aJunzioni sociali e assurga ad organo
de/la società. Si tratta pero dipoteri che spettano ai socio ex lege e che
non possono essere rinunziati validamente dai socio (ar!. 2489
secondo comma cod. civ.). " 29
Não obstante o artigo 161 da Lei nº 6.404/76 estabeleça que: "A
companhia terá um conselhofiscal'', certo é que o seu funcionamento não
tem que ser, necessariamente, permanente.
A contradição da assertiva é apenas aparente, pois como elucida
Modesto Carvalhosa, ". . . o Conselho épermanente. Seufuncionamento é que
poderá serfacultativo, conforme dispuser o estatuto. Se este declará-lo defun­
cionamento não permanente, cabe à assembléia geral instalá-lo pela vontade
dos minoritários e dos titulares de preferenciais sem voto. " 30
Além disso, segundo ainda o mesmo jurista: "Sendo órgão necessário,
porque a lei determina a sua existência, deverá o estatuto obrigatoriamente
instituí-lo. A não inserção da matéria na lei interna da companhia invalida
o contrato social, sendo vedado ao Registro do Comércio arquivá-lo. Não esta­
rá, portanto, a companhia constituída nessa hipótese. " 31
Diz a Lei de Sociedades Anônimas que o número de membros que
compõe o Conselho Fiscal varia de 3 (três) a 5 (cinco). Não consigo,

29 Giuseppe Ferri, Manuale di Diritto Commercia/e, Unione Tipografico-Editrice Tori nese, Torino,
1 950, pág. 238
30 Modesto Carvalhosa, Comentários à lei de Sociedades Anônimas, 3° vai., Saraiva, São Pau­
lo, 2003, pág. 4 1 8
31 ln op.cit., pág. 4 1 8
CAESAR Aucusrns F. 5. RocHA DA S1LvA 349
-

entretanto, vislumbrar uma hipótese em que o Conselho seria composto


por 4 (quatro) membros, exceção de quando o estatuto previr expressa­
mente essa situação. Explico-me.
Aplicando-se apenas o disposto na letra "b" do § 4° do artigo 161,
salvo engano, o Conselho jamais seria composto por 4 (quatro) mem­
bros. De fato, se na companhia existissem acionistas preferencialistas e
minoritários que isolada ou conjuntamente possuam 10% (dez por cen­
to) das ações com direito a voto, seriam 5 (cinco) os membros, pois 'os
demais acionistas com direito a voto poderão eleger os membros efetivos e su­
plentes que, em qualquer caso, serão em número igual ao dos eleitos nos termos
da alínea a, mais um. "
Por outro lado, se não houver acionistas preferencialistas e minoritá­
rios que isolada ou conjuntamente possuam 10% (dez por cento) das ações
com direito a voto, serão 3 (três) os membros a serem eleitos. Da mesma
forma, se existirem apenas acionistas preferencialistas ou minoritários que
isolada ou conjuntamente possuam 10% (dez por cento) das ações com
direito a voto, serão 3 (três) os membros.
Justamente por isso, Modesto Carvalhosa critica a redação do texto
legal, e suas considerações, por serem extremamente elucidativas, mere­
cem ser reproduzidas:
"
( . . .) A disposição estatutária restritiva é inútil e contraria a re­
gra imperativa de dupla representação minoritária no órgão
fiscalizador da companhia. Entendendo-se o inverso, ou seja,
de que prevaleceria o número mínimo de conselheiros estabe­
lecido no estatuto, teríamos a eleição de dois membros dos
minoritários e apenas um dos controladores. Tal situação, por
sua vez, contrariaria o princípio majoritário da lei societária.

Por outro lado, a disposição estatutária que fixa em cinco o núme­


ro de conselheiros é igualmente inútil, pois levaria a companhia a
despesas desnecessárias (art. 162) na hipótese de se apresentar ape­
nas um representante dos minoritários. Seria o caso de companhi­
as que não emitam ações preferenciais, ou que nelas havendo tal
classe os controladores tenham mais de 0,9 décimos das ações vo-
350 - REORGAN IZAÇÃO 50CIETÃRIA

tantes. Em ambas as hipóteses a eleição de cinco membros do


Conselho Fiscal levaria ao desperdício ao se formar um colégio
com quatro membros eleitos pelos controladores e apenas um
pelos minoritários. Por aí se vê a inconformidade da fixação
estatutária do número de conselheiros. Se tal ocorrer, será a regra
interna inteiramente inútil e incompatível com a norma imperati­
va que flexivelmente disciplina a matéria, exatamente para possi­
bilitar a representação plena e suficiente tanto dos minoritários
(votantes e não votantes) como, majoritariamente, dos
controladores." 32

Posto isso, resta saber como se faz a instalação do Conselho Fiscal


quando seu funcionamento não é permanente. Neste particular, a pri­
meira coisa que se faz necessário destacar é que, estando os acionistas
reunidos em assembléia, seja ela ordinária ou extraordinária, é possível
que seja requerido o funcionamento do órgão, ainda que a matéria não
conste do anúncio de convocação, consoante estabelece o § 3° do artigo
161 da Lei nº 6.404/76.
Feito o pedido, por acionistas que representem, no mínimo, um
décimo das ações com direito a voto, ou 5% (cinco por cento) das ações
sem direito a voto, a assembléia elegerá seus membros (art. 161, § 2°, da
LSA).
O funcionamento terminará na primeira assembléia geral ordinária
após sua instalação (art. 161, § 2°, da LSA).
Não estando os acionistas reunidos em assembléia, a qualquer tem­
po pode ser requerida à Diretoria a convocação de conclave para instalar
o Conselho Fiscal e, não sendo atendido o pedido no prazo de 8 (oito)
dias, acionistas representando 5% (cinco por cento) das ações com direi­
to a voto ou 5% (cinco por cento) das ações preferenciais sem direito a
voto, podem convocar a reunião assemblear para tal fim (art. 123, d).
Podem ser eleitas para o Conselho Fiscal pessoas naturais, residen­
tes no País, diplomadas em curso de nível universitário, ou que tenham

32 ln op.cit., pág. 420/42 1


CAESAR AucusTus F. S. RocHA DA.SrLvA - 351

exercido, por prazo mínimo de 3 (três) anos, cargo de administrador de


empresa ou conselheiro fiscal. (art. 162)
Na mesma assembléia que eleger os membros do Conselho Fiscal,
será fixada a sua remuneração, que, além do reembolso, obrigatório, das
despesas de locomoção e estada necessárias ao desempenho da função,
contemplará também um pro labore que não poderá ser inferior, para
cada membro em exercício, a 10% (dez por cento) da que, em média, for
atribuída a cada diretor.
Uma outra questão que foi objeto de inúmeras discussões no passa­
do, mas que com o advento da Lei nº 10. 303/01 restou pacificada, é a
possibilidade de o conselheiro agir isoladamente.
Isto porque, como na redação antiga não se explicitava que poderia
o Conselho Fiscal, por qualquer de seus membros, fiscalizar e denunciar,
os conselheiros eleitos pelos controladores sustentavam que somente se
houvesse deliberação do órgão é que determinada providência poderia
ser executada.
Modesto Carvalhosa espanca essa distorcida interpretação do tex­
to legal quando afirma que: "O regime deliberatório será decisório tão­
somente no que respeita aos pareceres do Conselho, os quais, não obstante,
deverão conter os votos, em separado, dos conselheiros discordantes (art.
1 64). " 33 E, para afastar qualquer dúvida, reforça seu modo de pensar
sobre a atuação individual dos conselheiros: "Não depende de delibera­
ção do Conselho a eficácia do pedido de informações individualmentefeito
por qualquer de seus membros aos órgãos da administração aos auditores e
aos peritos (inciso I e § 2°, 4° e 8°). Trata-se de prerrogativa individual
estabelecida em lei. " 34
Não obstante, Ecio Perin Junior nos informa que "é ainda comum,
na praxis societária, o bloqueio da atuação do conselheirofiscal eleito pela mi­
noria, sob o fundamento de que deve ele subordinar-se à deliberação adotada
por maioria no seio do órgão de .fiscalização, fazendo com que os acionistas

33 ln op.cit, pág. 44 1
34 idem, pág. 440
352 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

controladores inibam uma ação individua! mais eficiente, sob o manto do ci­
tado princípio majoritário. " 35
O maior problema que se verifica para execução desse direito se dá
no momento da própria eleição, pois, muito :mbora a lei preveja até 3
(três) eleições separadas, uma para os preferencialistas sem direito a voto,
uma para os minoritários e outra para os majoritários, não é incomum os
minoritários verem frustrado o direito de eleger os membros que os re­
presentarão.
Isso se dá, muitas vezes, com a utilização de um expediente que
Fábio Ulhoa Coelho denominou minoria amigáve/36 e que nada mais é
do que a utilização de acionista ou acionistas que formalmente não inte­
gram o bloco de controle, mas que colaboram com este, ao participarem
das eleições em separado.
E o problema maior constatado por tal jurista é que não há meca­
nismo jurídico que possa eficientemente contornar esse tipo de manipu­
lação dos controladores.
Um outro artifício que costumeiramente se adota é a simulação de
transferência de parte de participação acionária, pois enquanto não anula­
do o ato, coisa que sabemos que leva anos no Judiciário, passam os acionis­
tas adquirentes a votar como se minoritários fossem, elegendo os membros
do Conselho Fiscal que por direito caberiam à verdadeira minoria.
Feitos esses esclarecimentos sobre a forma de fiscalização que a lei
propicia e os instrumentos que os acionistas têm para realizá-la, resta
fazer a correlação entre esse direito e sua utilidade para o acionista dissi­
d �nte de uma operação societária.
É que as fusões, cisões e incorporações são deliberadas em assem­
bléia geral. Em outras palavras, isto significa que a realização ou não da
operação será decidida pela maioria, independentemente da concordân­
cia dos demais acionistas.

35 ln op.cit., pág. 1 37
36 ln op.cit., pág. 230
(AESAR AUGUSTUS f. 5 . ROCHA DA SILVA 353
-

Ademais, saliente-se que após a aprovação do protocolo de justifi­


cação, o restante do processo será conduzido pelos administradores, sem
novas consultas à assembléia, visto que a deliberação que decide pela
realização da operação societária ao mesmo tempo os autoriza a praticar
os atos necessários à fusão, cisão ou incorporação (leia-se: subscrição do
aumento de capital, substituição das ações da incorporada por valores
mobiliários da incorporadora, etc.).
Veja-se, portanto, a importância e aplicação do direito de fiscaliza­
ção. De fato, estando o Conselho Fiscal em funcionamento, terá o mi­
noritário mais elementos e informações para se garantir contra eventuais
abusos dos controladores nas operações societárias, pois, consoante esta­
belece o inciso III do artigo 163 da Lei das S/A, compete ao Conselho
Fiscal opinar sobre propostas dos órgãos de administração, a serem sub­
metidas à assembléia geral, relativas à incorporação, fusão ou cisão.
Evidente que o simples fato de haver Conselho Fiscal em funcio­
namento não tem o condão de retirar da maioria o poder de decisão
sobre a conveniência ou não da operação societária. A presença dos
conselheiros (princip'almente se o órgão tiver sido composto por mem­
bros representativos dos verdadeiros minoritários e dos controlado­
res, ou seja, se não houver simplesmente uma representação fictícia
da minoria, como sói acontecer quando há uma minoria amigável)
tem por escopo inibir a prática de atos flagrantemente lesivos ao pa­
trimônio ou direitos da minoria, ou, quando menos, municiar os acio­
nistas minoritários com os documentos necessários à responsabilização
dos controladores e administradores, notadamente pelo abuso do po­
der de controle e prejuízos que venham a causar à companhia e aos
acionistas diretamente.
É que como salienta Leslie Amendolara: "O § 6° do art. 163, por sua
vez, obriga o Conselho Fiscal afornecer a acionista ou a grupo de acionistas
que representem, no mínimo, 5% do capital social, informações sobre a matéria
de sua competência. " 37

37 ln op.cit., pág. 53
354 - REORGANIZAÇÃO SornTÃRIA

Assim, de posse dessas informações, tem o acionista ou grupo


de acionistas os meios para apontar atos violadores da lei ou do
es tatuto ou irregularidades praticadas por qualquer dos órgãos da
companhia.
Inexistindo Conselho Fiscal em funcionamento, um outro ins­
trumento que também pode ser usado pelos minoritários para tentar
buscar provas de eventuais abusos cometidos, seja na avaliação dos
ativos, seja na regularidade formal da assembléia, é requerer a exibi­
ção judicial por inteiro dos livros da companhia. É verdade que se
trata de medida excepcional, pois a fiscalização nas sociedades anôni­
mas ordinariamente é feita pelo Conselho Fiscal e pelos auditores in­
dependentes, quando estes existem, pois somente nas sociedades
anônimas abertas é que é obrigatória a auditoria, conforme dispõe o
artigo 1 77, § 4° da Lei das S/A.
Contudo, muito embora em princípio o direito da exibição dos li­
vros seja medida excepcional e possa ser entendido como um direito
instrumental dos minoritários para comprovar as informações que obti­
veram junto ao Conselho Fiscal, nada impede que a providência possa
ser requerida autonomamente, isto é, independentemente de estar o ór­
gão funcionando. Basta, para tanto, que haja fundada suspeita de graves
irregularidades praticadas por qualquer dos órgãos da companhia ou se­
jam apontados atos violadores da lei ou do estatuto, pois, ainda que os
livros sejam invioláveis por medida de proteção ao sigilo negocial, certo
é que o princípio do segredo da escrituração cede ante ao direito que os
acionistas têm de fiscalizar a companhia.
Mister salientar que é pré-requisito para requerer a exibição dos
livros que o acionista solicitante (ou acionistas) represente, pelo menos,
5% (cinco por cento) do capital social.
Pode ainda o acionista, a fim de se preparar para um eventual litígio
derivado da operação societária da qual dissentiu pedir a autenticação de
exemplar ou cópia de proposta, declaração de voto ou dissidência, ou protes­
to apresentado, na assembléia geral (art. 130, § 1º, alínea b da Lei nº 6.404/
76) e obter certidões dos assentamentos constantes dos livros da companhia,
CAESAR AUGUSTUS f. 5. ROCHA DA SILVA 355
-

desde que se destinem à defesa de direitos e esclarecimentos de situações de


interesse pessoal (art. 100, § 1°).
Além disso, e com base nas informações e provas que obtiver de que
a operação acarretou prejuízo à companhia, o acionista (ou acionistas)
com a titularidade de ações representando 5% (cinco por cento) do capi­
tal social tem o direito de propor ação de responsabilidade civil contra os
administradores, se a assembléia geral for contrária a tal medida, isto é,
deliberar não ajuizá-la (art. 159, § 4°).
Da mesma forma, os acionistas dissidentes e prejudicados pela incor­
poração, fusão ou cisão podem propor ação social uti singuli de perdas e
danos contra o administrador, devendo, neste caso, demonstrar que foram
diretamente prejudicados por ato deste (art. 159, § 7°).
Mesmo não sendo o enfoque principal da abordagem, pois, ao
contrário, tudo o que foi escrito foi justamente para demonstrar que o
recesso não é a única opção do acionista dissidente da deliberação que
aprovar a operação societária, mas apenas um dos direitos que lhe são
dados, parece indispensável mencionar algumas características do di­
reito de retirada, também chamado de dissidência.
Dispõe o artigo 13 7 da Lei das S/A que:
''Art. 137. A aprovação das matérias previstas nos incisos I a VI e IX
do art. 136 dá ao acionista dissidente o direito de retirar-se da compa­
nhia, mediante reembolso do valor das suas ações (art. 45), observadas
as seguintes normas:

I - nos casos dos incisos I e II do art. 136, somente terá direito de


retirada o titular de ações de espécie ou classe prejudicadas;

II - nos casos dos incisos IV e V do art. 136, não terá direito de retira­
da o titular de ação de espécie ou classe que tenha liquidez e dispersão
no mercado, considerando-se haver:

a) liquidez, quando a espécie ou classe de ação, ou certificado que a


represente, integre índice geral representativo de carteira de valores
mobiliários admitido à negociação no mercado de valores mobiliá­
rios, no Brasil ou no exterior, definido pela Comissão de Valores
Mobiliários; e
356 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

b) dispersão, quando o acionista controlador, a sociedade controladora


ou outras sociedades sob seu controle detiverem menos da metade da
espécie ou classe de ação;

III - no caso do inciso IX do art. 136, somente haverá direito de reti­


rada se a cisão implicar:

a) mudança do objeto social, salvo quando o patrimônio cindido for


vertido para sociedade cuja atividade preponderante coincida com a
decorrente do objeto social da sociedade cindida;

b) redução do dividendo obrigatório; ou

c) participação em grupo de sociedades;

IV o reembolso da ação deve ser reclamado à companhia no prazo de


-

30 (trinta) dias contado da publicação da ata da assembléia geral;

V - o prazo para o dissidente de deliberação de assembléia especial


(art. 136, § 1°) será contado da publicação da respectiva ata;

VI - o pagamento do reembolso somente poderá ser exigido após a


observância do disposto no § 3° e, se for o caso, da ratificação da deli­
beração pela assembléia geral.

§ 1° O acionista dissidente de deliberação da assembléia, inclusive o


titular de ações preferenciais sem direito de voto, poderá exercer o direi­
to de reembolso das ações de que, comprovadamente, era titular na data
da primeira publicação do edital de convocação da assembléia, ou na
data da comunicação do fato relevante objeto da deliberação, se anterior.

§ 2° O direito de reembolso poderá ser exercido no prazo previsto nos


incisos IV ou V do caput deste artigo, conforme o caso, ainda que o
titular das ações tenha se abstido de votar contra a deliberação ou não
tenha comparecido à assembléia.

§ 3° Nos 10 (dez) dias subseqüentes ao término do prazo de que tratam


os incisos IV e V do caput deste artigo, conforme o caso, contado da
publicação da ata da assembléia geral ou da assembléia especial que ra­
tificar a deliberação, é facultado aos órgãos da administração convocar a
assembléia geral para ratificar ou reconsiderar a deliberação, se entende­
rem que o pagamento do preço do reembolso das ações aos acionistas
dissidentes que exerceram o direito de retirada porá em risco a estabili­
dade financeira da empresa.
CAESAR AucusTus F. S. RocHA DA S1LvA - 357

§ 4° Decairá do direito de retirada o acionista que não o exercer no


prazo fixado."

Pois bem. A primeira observação que deve ser feita é que a enume­
ração das matérias que dão ensejo ao recesso é taxativa. Um outro aspec­
to que merece destaque é que, enquanto na outra forma de um acionista
se desligar da sociedade (alienação da sua participação societária) há uma
negociação e, por conseqüência, deve haver um consenso entre o acio­
nista que está deixando a companhia e o interessado em ingressar para
que o negócio jurídico se concretize, no recesso a minoria apenas mani­
festa seu interesse em deixar a sociedade, tratando-se de legítima decla­
ração unilateral de vontade.
O valor que o acionista receberá por suas ações também varia de
uma situação para outra. Enquanto na alienação receberá o valor de ne­
gociação, na dissidência receberá o valor patrimonial.
Modesto Carvalhosa, Mauro Rodrigues Penteado, Nelson Eizi­
rik e Francisco Müssnich discordam do entendimento de Fábio Ulhoa
Coelho, pois sustentam que quando o artigo 45 previu, em seu parágrafo
1°, que o valor de reembolso poderá ser inferior ao patrimônio líquido se
o estatuto estabelecer que este se fará pelo valor econômico da compa­
nhia, quis o legislador introduzir a obrigação de a sociedade pagar ao
dissidente o valor econômico da ação.
Os próprios motivos que ensejaram a introdução do referido dispo­
sitivo derrubam o argumento, pois como rememora Fábio Ulhoa Coe­
lho, o objetivo dos elaboradores do projeto seria justamente desestimular
a chamada indústria do recesso. Ora, seria de todo incongruente preten­
der coibir o recesso criando uma fórmula que, aplicada, resultasse em um
maior valor de reembolso, isto porque, nas sociedades cujo patrimônio
líquido é negativo por conveniências tributárias, mas o negócio tem um
elevado potencial de rentabilidade, invariavelmente, o valor econômico
da ação será maior do que o valor patrimonial.
Por essas razões, Fábio Ulhoa Coelho sugere que para conciliar o
equívoco conceito empregado pelo legislador na redação do § 1° com o
objetivo da criação da norma, deve-se entender a expressão "valor eco-
358 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

nômico da companhia" como uma referência pouco técnica a valor patri­


monial contábil atual da ação. 38
Imperioso notar que no caso de fusão da companhia, sua incorpora­
ção por outra ou participação em grupo de sociedades, somente o acio­
nista da sociedade incorporada é que tem direito ao recesso: ''Note-se que
o acionista da companhia incorporadora insatisfeito com a operação não tem
direito de retirada. " 39
A dissidência, nesse caso, fica condicionada à hipótese de iliquidez
e concentração das ações, isto é, se as ações da companhia integrarem
índice representativo de carteira de valores mobiliários admitidos à ne­
gociação no mercado, no Brasil ou no exterior, e o acionista controlador
detiver menos da metade da espécie ou classe de ação do dissidente, não
terá ele direito à retirada, visto que poderá alienar suas ações no mercado
de capitais.
Tratando-se de companhia aberta, se a sociedade que a suceder não
abrir o seu capital nos 120 (cento e vinte) dias subseqüentes à data da
assembléia geral que aprovou a operação, o dissidente, acionista da outrora
companhia aberta, poderá exercer direito de retirada. (art. 223, § 4°)
Na hipótese de cisão, assim como na incorporação, também não são
todos os acionistas que têm direito de recesso. Apenas os acionistas dis­
sidentes da cindida. Outrossim, imperioso salientar que a cisão, em si,
não gera direito de recesso; haverá dissidência se a cisão implicar mu­
dança do objeto social, redução do dividendo ou participação em grupo
de sociedades.
Por fim, na incorporação, os acionistas minoritários tanto da in­
corporadora, como da empresa a ser convertida em subsidiária integral
que dissentirem da assembléia geral poderão retirar-se da sociedade,
mediante o reembolso do valor de suas ações, salvo se as ações tiverem
liquidez e dispersão.

38 ln op.cit., pág. 308


39 Curso de Direito Comercia/, Vol. 2, cit., pág 484
CAESAR AucusTus F. S. RocHA DA SILVA - 359

Como se viu, o legislador foi pródigo na concessão de direitos aos


acionistas minoritários; porém, as práticas de abuso de poder de controle
nas operações societárias são sempre diversas, de modo que o esforço
que o legislador fez para coibi-las não foi suficiente para satisfatoria­
mente proteger a minoria, mesmo porque temos que concordar que é
difícil abranger todas as modalidades possíveis e imagináveis de abuso e,
mesmo que fosse possível, não temos dúvida que isso provavelmente não
evitaria que fosse descoberto um meio mais criativo de praticá-lo.
Justamente por isso os minoritários vêem seu patrimônio reduzido
a uma montanha de papéis sem negociabilidade, que rendem novos pa­
péis, mas raramente algum dividendo.
Infelizmente, no estágio atual em que nos encontramos, o melhor e
mais prudente será seguir o conselho de Philomeno J. de Costa, qual
sej a, "mais que sempre o poupante não deve investir, entre nós, no capital da
sociedade por ações'', a não ser como controlador 40 , como acrescenta Os­
mar Brina Corrêa Lima.
Para os que já são minoritários, também faço minha a proposição
do mesmo doutrinador anteriormente citado, invocando o dilema ana­
lisado por Rudolf von Ihering: resistir ou ceder. "Qualquer que seja a
escolha deveráfazer sempre um sacrifício; ou sacrificará o direito à paz ou a
paz ao direito. " 41

40 Apud Osmar Brina Corrêa Lima, O acionista minoritário no Direito Brasileiro, cit., pág. 1 36
41 Rudolf von lhering, A luta pelo Direito, São Paulo, Ciência e Cu ltura, 1 988, pág. 25 apud
Osmar Brina Corrêa Lima, O ac;onista minoritádo no Direito Brasileiro, Ed. Forense, Rio de
Janeiro, 1 994, pág. 1 3 8
Trespasse e Cisão Parcial
- Similitudes

Alex Prandini Jr.

Advogado
Formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (1987)
Especialização em direito constitucional norte-americano, pela Southwestern
Legal Foundation/University ofTexas, EUA (1992)
Mestre em direito comparado, pela Universidade de Illinois, EUA (1994)
Especialização emfinanças, pela New York University, EUA (1995)
Diretor Social do IDSA
362 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

1 . INTRODUÇÃO
O presente artigo procura estabelecer alguns pontos de contato entre
dois negócios jurídicos, complexos, de direito empresarial, a saber, a venda
de estabelecimento ou trespasse, regida pelos artigos 1 . 144 e seguintes
do Código Civil, e a cisão parcial, positivada no artigo 229 e seguintes,
da Lei das Sociedades por Ações.
A novidade, na órbita legislativa, fica por conta da inserção, no
Código Civil, de capítulo especialmente concebido para a tipificação
do estabelecimento, objeto de compra e venda (trespasse) de que trata
este artigo.
No demais, o presente texto desenha-se no entorno de conceitos e
abstrações de direito civil, comercial e societário, sucintamente compi­
lados.
O propósito da simples comparação, em que nos lançaremos, pou­
co explorada pela doutrina, parece válido, a um por reduzir a termo as
distinções legais mais relevantes, entre uma e outra figura, a dois pela
dificuldade de visualização da correspondência de suas finalidades, não
raro análogas, do ponto de vista econômico.
A deambulação é pertinente, em vista da mutação patrimonial que
acompanha a vida empresarial, nas sociedades, ao longo de toda a sua
existência. A alusão a um caso prático, singelo, pode ajudar o leitor a
vislumbrar tais mutações, a que a empresa freqüentemente é submetida,
em cujo contexto se inserem os institutos da cisão parcial e do trespasse.
Imagine-se uma indústria química, dotada de uma planta principal
e de vários estabelecimentos-filiais, num dos quais fabrica uma resina
especial. Por razões de mercado, digamos, a produção dessa resina não
mais interessa ao fabricante, culminando com a desativação da filial. No
caso do desfazimento desses ativos, a empresa poderá alcançar o objeti­
vo colimado de várias maneiras, como (i) pelo desmantelamento da fili­
al e venda parcial de seus ativos, (ii) por meio da alienação da
integralidade do estabelecimento, via trespasse, (iii) através da cisão par­
cial da sociedade, mediante destaque e versão do patrimônio em que se
ALEX PRANDINI ]R. - 363

constitui dita filial, a nova sociedade, resultante da cisão, ou a sociedade


pré-existente, ou, ainda, (iv) promovendo o encerramento das ativida­
des do estabelecimento-filial em apreço, e a liquidação de parte ou tota­
lidade de seus ativos, com o retorno aos sócios do produto financeiro
então obtido, na proporção de suas participações no capital social da
empresa, após a sua redução.
A decisão, entre uma ou outra alternativa, tomará em conta aspec­
tos jurídicos dos mais variados, a mencionar o campo do direito civil
(obrigacional) , societário, contratual, tributário, trabalhista e previden­
ciário, concorrencial, dentre outras preocupações e motivadores, de or­
dem contábil.
Dentre as alternativas acima indicadas, abordaremos neste traba­
lho, sob a ótica comparatística, somente, o trespasse e a cisão parcial, os
quais passaremos a definir, e associar, intercaladamente, com pinçamentos
da doutrina mais autorizada, para, ao final, trazermos à baila alguns
paralelos e similitudes que entendemos haver entre tais operações. Com
isso esperamos que os parágrafos seguintes ajudem, em alguma medida,
na avaliação dessas alternativas.

2. TRESPASSE
CONCEITO DE TRESPASSE E ESTABELECIMENTO
O trespasse é contrato de compra e venda, civil, de subespécie mer­
cantil. Para ser mercantil, preleciona Fábio Ulhoa Coelho1 , comprador e
vendedor devem ser empresários, a coisa objeto de contrato deve ser uma
mercadoria e o negócio deve se inserir na atividade empresarial de circu­
lação de bens2 •

No trespasse, o objeto do negócio jurídico de compra e venda mer­


cantil é o estabelecimento, comercial ou industrial. A alienação, cabe

Curso de Direito Comercial, Volume 3, pág. 05


2 Incl uem-se entre as coisas suscetíveis de compra e venda mercantil, os valores mobiliários,
as quotas de sociedade limitada, as ações de sociedade anônima, assim como o estabeleci­
mento empresarial, no trespasse, posto à venda.
364 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

pontuar, de parte do estabelecimento (alguns elementos esparsos que o


integram, como máquinas e equipamentos) redunda no seu desmante­
lamento. O trespasse, portanto, pressupõe a transferência da totalidade
do estabelecimento, i.e., dos elementos que o consubstanciam e defi­
nem como universalidade de fato.
A doutrina mais autorizada costuma definir o estabelecimento comercial
como o "conjunto de bens (materiais e imateriais) e serviços, organizadospelo em­
presário, para a atividade da empresa. É o complexo dos elementos que o comerciante
congrega e organiza, tendo em vista obter êxito na suaprifzssãd' 3 •

Embora mais ligada ao direito comercial clássico, que identifica a


atividade empresária aos chamados "atos de comércio", ainda permane­
ce válido o conceito de Oscar Barreto Filho4 , que o reputa como o "com­
plexo de bens, materiais e imateriais, que constituem o instrumento utilizado
pelo comerciante para a exploração de determinada atividade mercantil. "

Nesse mesmo sentido, J. X. Carvalho de Mendonça5 classifica o fundo


de comércio como "complexo de meios idôneos, materiais e imateriais, pelos
quais o comerciante explora determinada espécie de comércio; é o organismo
econômico aparelhado para o exercício do comércio".
Para Rubens Requião6 , o ''fundo de comércio ou estabelecimento co­
mercial é o instrumento da atividade do empresário. Com ele o empresário
comercial aparelha-separa exercer sua atividade. Forma ofundo de comércio
a basefísica da empresa, constituindo um instrumento da atividade empresa­
rial. O Código italiano o define como o complexo dos bens organizados pelo
empresário, para o exercício da empresa".
Como restou patenteado, o estabelecimento é composto de um con­
junto de bens, abrangendo tanto bens materiais quanto bens imateriais.
Na primeira categoria encontramos mercadorias do estoque, mobiliá­
rio, equipamentos e maquinaria. Já na segunda categoria, encontramos

3 Waldo Fazzio Júnior, Fundamentos de Di reito Comercial, 3' Edição, Editora Atlas, pág. 1 9
4 Teoria do Estabelecimento Comercial, 2' Edição, Editora Saraiva, pág. 8 e ss
5 Tratado de Direito Comercial Brasileiro, 7ª Edição, Editora Freitas Bastos, pág. 503
6 Curso de Direito Comercial, 1 º Volume, Editora Saraiva, pág. 203
ALEX PRANOINI )R. - 365

patentes de invenção, marca registrada, nome empresarial, título do es­


tabelecimento e o ponto comercial. Todos estes elementos formam o
estabelecimento, não havendo que se confundir o mesmo com o local
do exercício da atividade. A este propósito, bem oportuna a lembrança
do trespasse de estabelecimento virtual, no qual pouco ou nada importa
o endereço no qual se instalou fisicamente a operação, dado o elevado
grau tecnológico, eletrônico, de tantas atividades econômicas ultra mo­
dernas, hoje albergadas pela rede invisível da internet.
Enfim, o estabelecimento comercial, agora chamado de estabeleci­
mento empresarial, conforme mencionado acima, é todo o complexo de
elementos, o conjunto de bens que o empresário ou a sociedade empre­
sária organizam para o exercício da empresa, entendida empresa, no
dizer de Rubens Requião7 , como a atividade desenvolvida pelo empre­
sário. Vale dizer: é o instrumental do empresário e, por conta disso, ins­
trumento indissociável da sociedade, sem o qual não é possível a prática
da exploração econômica.
Juridicamente, estabelecimento empresarial é o conjunto de bens
heterogêneos8 •

Trata-se de um conjunto de bens ligados pela destinação comum de


constituir o instrumento da atividade empresarial. Tal liame entre os bens
que compõem o estabelecimento permite-nos tratá-lo de forma unitária,
distinguindo-o dos bens singulares que o compõem, classificando-o como
uma coisa coletiva ou universalidade de fato.
Tanto isto é verdade que o novo Código Civil permite expressa­
mente que o estabelecimento seja como um todo objeto unitário de di­
reitos e negócios jurídicos (art. 1 . 142), sem, contudo, proibir a negociação
isolada dos bens integrantes do estabelecimento.

7 Op. Cit.
8 O Código Civil trouxe em seus artigos 1 . 1 42 a 1 . 1 49, um regramento específico sobre o
estabelecimento empresarial, defini ndo-o como "todo complexo de bens organizado, para
exerc/cío de empresa, por empresário, ou por sociedade empresária". Isto significa que
estabelecimento é o complexo de bens reunidos para a prática de uma atividade econômi­
ca organizada pelo empresário ou por uma sociedade empresária, ou titularizada pelo
empresário, na sua forma singular ou coletiva.
366 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

Portanto, as universalidades de fato são o conjunto de coisas singu­


lares, simples ou compostas, agrupadas pela vontade da pessoa, com
destinação comum, em sintonia com o conceito de estabelecimento, pois
se trata de conjunto de bens, ligados pela vontade do empresário a uma
finalidade comum, o exercício da empresa.
Como universalidade de fato, passível de avaliação econômica, o es­
tabelecimento pode ser objeto de negócios jurídicos de alienação.
Muito embora a princípio não integrem o estabelecimento, pois não
são bens, em sentido estrito, o novo Código Civil (art. 1 .148) estabelece
que, salvo disposição em contrário, o adquirente se sub-roga nos contra­
tos estipulados para exploração do estabelecimento, exceto quanto aos de
caráter personalíssimo. A medida é coerente, posto que protege a manu­
tenção da unidade econômica do estabelecimento, sem, contudo, afetar as
relações personalíssimas, nas quais não haverá sucessão9 •
A regra mencionada no parágrafo anterior é exceção à regra geral
dos contratos, pois a sub-rogação opera-se independentemente do con­
sentimento do outro contratante. Entretanto, este não será prejudicado, já
que se admite a rescisão do contrato nos noventa (90) dias seguintes à
publicação do trespasse, desde que haja justa causa para tal rescisão. Esta
justa causa diz respeito às qualidades pessoais do adquirente do fundo de
comércio, pois se as condições pessoais do alienante foram determinantes
na formulação do negócio, não se pode exigir que o contratante prossiga
com outra parte na avença, e também a questões de formulação objetiva
como, por exemplo, a existência de uma ação judicial do terceiro contra­
tante em desfavor do adquirente. Em tais casos, há um inadimplemento
por parte do alienante do estabelecimento, que conseqüentemente deve
ser responsabilizado.

9 Nos contratos de caráter pessoal, protege-se o adquirente, pois o caráter pessoal aqui refe­
rido, diz respeito às qualidades do terceiro contratante, que não poderá ser i mposto ao
adquirente. Giampaolo Dalle Vedove sustenta que neste particular não se pode entender
que a regra seja em benefício do adqui rente, pois o mesmo poderia estipular pela não
transferência do contrato ao firmar a alienação do estabelecimento, destarte, atuaria esse
caráter pessoal em favor do terceiro contratante, que teria levado em conta as característi­
cas pessoais do alienante.
ALEX PRANDINI JR. - 367

Não se confunde, outrossim, a transferência do estabelecimento,


bem qualificada nos parágrafos precedentes, com a transferência de con­
trole societário, que tem lugar com a cessão e transferência de quotas
sociais ou ações. Neste caso, a titularidade do estabelecimento não se
modifica, permanecendo sob o império da propriedade do mesmo su­
jeito de direito.10 Ainda, os credores continuam titulares de seus direi­
tos de crédito em face da sociedade, independentemente da alteração
societária.
Como sugerido, alhures, trespasse é o contrato de compra e venda
do estabelecimento empresarial, mediante a transferência de sua titula­
ridade. Através deste contrato, o trespassante obriga-se a transferir o
domínio do complexo unitário de bens instrumentais, que servem à ati­
vidade empresarial, e o trespassário obriga-se ao pagamento do preço
da aquisição. Tal transação, como dito, abrange o aviamento11 , a clien­
tela, o "ponto", o material, os utensílios, as máquinas, as mercadorias, as
marcas de comércio, salvo estipulação expressa em contrário.
O trespasse ocorre quando o estabelecimento deixa de integrar o
patrimônio de um empresário e passa a ser objeto de direito de propri­
edade de outro.
PROTEÇÃO DOS CREDORES DO ALIENANTE NO TRESPASSE
O Código Civil prescreve expressamente no artigo 1. 146 que o passi­
vo integra o estabelecimento empresarial e, desde que regularmente conta­
bilizado, transfere-se junto com o estabelecimento, quando da sua
alienação. Dessa forma, na hipótese de alienação do estabelecimento, o
adquirente responde pelo pagamento dos débitos anteriores à transfe-

1O Estabelecimento empresarial não se deve confundir com sociedade empresária. Enquanto


o estabelecimento empresarial é objeto de direito, a sociedade empresária é o sujeito de
direito que exerce a atividade empresarial. Portanto, compra de estabelecimento não resul­
ta compra de sociedade empresária, a qual se opera com a transferência da titularidade das
ações ou quotas.
11 Aviamento é o sobrevalor em relação a simples soma dos valores dos bens singul ares que
integram o estabelecimento e resumem a capacidade do estabelecimento, por meio dos
nexos organizativos entre os seus componentes singulares, de oferecer prestações de em­
presa e de atrair cl ientela. Em outras pal avras, o aviamento é a aptidão da empresa para
produzir lucros, decorrente da qualidade e da melhor perfeição de sua organização.
368 - REORGAN IZAÇÃO SOCIETÁRIA

rência, continuando o devedor primitivo solidariamente obrigado pelo prazo


de um ano a partir da data da publicação do contrato de alienação, quanto
aos créditos vencidos, ou da data do vencimento dos créditos.
Ressalte-se que, para produzir efeitos jurídicos em relação a tercei­
ros, o contrato que tenha por objeto a alienação, o usufruto ou arrenda­
mento do estabelecimento deverá ser averbado no Registro Público de
Empresas Mercantis e publicado na imprensa oficial, de acordo com o
artigo 1 . 1 44 do Código Civil.
Ademais, prevê o Código Civil que o estabelecimento empresarial ser­
virá de garantia para os credores da empresa, devendo a alienação deste
seguir certas determinações estabelecidas no artigo 1 . 145: "Se ao alienante
não restarem bens szeficientespara solver o seupassivo, a eficácia da alienação do
estabelecimento depende do pagamento de todos os credores, ou do consentimento
destes, de modo expresso ou tácito, em 30 (trinta) dias apartir de sua notificação".
Ao estabelecer estas condições, pretendeu o Código Civil viabilizar a
transferência do estabelecimento sem ferir o direito dos credores e, conse­
qüentemente, sem que a empresa fique vulnerável ao instituto da falência.
Se não pactuaram as partes a transferência do passivo, ou seja, se o
adquirente do estabelecimento empresarial não suceder o alienante, o
credor deste último não poderá responsabilizar o adquirente. Exceção
feita ao credor trabalhista, nos termos do art. 448 da CLT, que consagra
a imunidade dos contratos de trabalho em face da mudança na propri­
edade ou estrutura jurídica da empresa, e ao credor tributário, conso­
ante o previsto pelo art. 133 do CTN, que prevê a responsabilidade
subsidiária ou integral do adquirente, caso o alienante continue ou
não a explorar o comércio. Evidentemente, por tais encargos junto ao
credor trabalhista ou fiscal do antecessor, o adquirente do estabeleci­
mento empresarial terá direito de regresso12 .

12 H á u m a previsão expressa d e assunção pelo adqui rente do passivo regularmente


contabi l izado da sociedade alienante, relacionado com a atividade realizada no estabele­
cimento adquirido. O adquirente do estabelecimento responde pelo pagamento dos débitos
anteriores à transferência do estabelecimento, continuando o alienante solidariamente respon­
sável por tais dívidas, pelo prazo de um ano, a partir, quanto às dívidas vencidas, da publicação
do contrato e, quanto às vincendas, da data do vencimento. Pelas dívidas trabal h istas e fiscais,
ALEX PRANDINI JR. - 369

Segundo Fábio Ulhoa Coelho13 , o estabelecimento empresarial,


por integrar o patrimônio do empresário, é também garantia dos seus
credores. Por esta razão, a alienação do estabelecimento comercial está
sujeita à observância de cautelas específicas, que a lei criou com vistas à
tutela dos interesses dos credores de seu titular.
O empresário tem sobre o estabelecimento a mesma livre disponibili­
dade que tem sobre os demais bens de seu patrimônio. Ocorre que a lei
sujeita a alienação do estabelecimento empresarial à anuência dos seus cre­
dores, nas hipóteses em que, trespassado o estabelecimento, ao vendedor
não restam bens suficientes para liquidar o seu passivo. Aludida anuência
pode ser expressa ou tácita, decorrendo esta última modalidade do silêncio
do credor, após 30 dias da notificação da alienação que o devedor deve-lhe
endereçar. Ao proceder à alienação de seu estabelecimento empresarial, cabe
ao empresário que não possui bens suficientes para saldar o seu passivo,
colher a concordância por escrito de seus credores, ou notificá-los.
A QU ESTÃO DO RESTABELECIMENTO E SUA VEDAÇÃO

A constituição consagra, no Título VII - Da Ordem Econômica -,


em seu Capítulo I, os princípios gerais da atividade econômica, entre os
quais ressalta, inserido no inc. IV, do art. 170, o princípio da livre con­
corrência. E o § 4°, do art. 173, estipula que: "A Lei reprimirá o abuso do
poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concor­
rência e ao aumento arbitrário dos lucros."
José Afonso da Silva argumenta que "A livre concorrência está con­
figurada no art. 1 70, IV, como um dos princípios da ordem econômica.
Ele é uma manifestação da liberdade de iniciativa e, para garanti-la, a
Constituição estatui que a lei reprimirá o abuso de poder econômico que
vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao au-

relativas ao estabelecimento, permanece o adquirente integralmente responsável, inde­


pendentemente de provisão contáb il. A regra de sucessão prevista no Código não abrange,
por óbvio, os negócios celebrados anteriormente à sua entrada em vigor. Se ao al ienante
não restarem bens suficientes para pagamento das dívidas anteriores, a eficácia da aliena­
ção do estabeleci mento dependerá do pagamento de todos os credores, ou do consenti­
mento destes, de modo expresso ou tácito, em trinta dias, a partir de sua notificação.
13 Curso de Direito Comercial, Volume 3, págs. 1 1 8 e 1 1 9.
370 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

mento arbitrário dos lucros. Os dois dispositivos se complementam no


mesmo objetivo. Visam tutelar o sistema de mercado e, especialmente,
proteger a livre concorrência contra a tendência açambarcadora da con­
centração capitalista. A Constituição reconhece a existência do poder eco­
nômico. Este não é, pois, condenado pelo regime constitucional. Não raro
esse poder econômico é exercido de maneira antisocial. Cabe, então, ao
Estado coib ir este abuso."14
A livre concorrência é princípio geral para o fomento da sociedade,
permitindo aos seus agentes econômicos o desenvolvimento de ações
próprias para incremento do mercado. É o livre jogo das forças do mer­
cado na constante disputa de clientela. Essa disputa é salutar numa eco­
nomia de mercado, pois impulsiona a competitividade das empresas,
forçando-as a um constante aprimoramento dos seus métodos tecnoló­
gicos, dos seus custos, enfim, na permanente busca de condições mais
favoráveis ao consumidor.
No caso da alienação do estabelecimento empresarial, a observân­
cia aos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência manifesta-se
através de uma limitação, que consiste no impedimento do restabeleci­
mento da parte alienante.
Temos, portanto, que a continuidade do exercício da atividade eco­
nômica do empresário-alienante fica adstrita a determinadas condições
que têm o intuito de evitar que essa prática mercantil assuma as caracte­
rísticas de concorrência desleal.
Dessa forma, verificamos que a cláusula de não restabelecimento
representa uma garantia que o adquirente tem da integridade do valor
despendido ao remunerar o estabelecimento.
A este propósito, o artigo 1 . 147 do Código Civil estatui que "não
havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento não pode
fazer concorrência ao adquirente, nos cinco anos subsequentes à trans­
ferência."

14 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 1 S' ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 1 998. 876p
ALEX PRANDINI ]R. - 371

O restabelecimento indireto, ou seja, aquele realizado através de


pessoas interpostas, ou ainda, como sócio ou empregado de empresa
concorrente, também é proibido.
Outrossim, é perfeitamente legítima a estipulação da cláusula de
não-restabelecimento nos negócios de cessão de controle, mormente
quando o cedente goza de grande prestígio no setor empresarial em
questão e exercia, efetivamente as funções de empresário, na companhia
cujo controle cedeu.15
Assim, para evitar discussões acerca da possibilidade ou não do res­
tabelecimento, deve-se inserir nos contratos de trespasse a cláusula de
interdição de novo estabelecimento, visando a impedir o enriquecimen­
to indevido do alienante, através do desvio eficaz de clientela, que natu­
ralmente ocorrerá se esse continuar praticando a atividade que está
transferindo.
Para De Plácido e Silva16 , restabelecimento, na linguagem jurídica,
é empregado para designar o reatamento ou o revigoramento do que se
havia dissolvido ou terminado. É o retorno ou a volta ao estado ou à
condição anterior, fixando-se, por ele, a mantença da relação jurídica ou
do vínculo jurídico, que se rompera ou se desfizera. Não é mera conti­
nuação: é renovação, é restauração, revalidamento, revigoramento, em
virtude do que o ato jurídico ou a relação jurídica, que perdera eficácia
ou se extinguira, volte a surtir os efeitos legais, prevalecendo na forma
da lei. Assim, na linguagem jurídica é usado para designar o reatamento
do que se havia dissolvido ou terminado.
No caso do estabelecimento empresarial, temos que o restabeleci­
mento seria o retorno à prática da atividade que fora alienada através do
trespasse ou outra forma.
Tema muito debatido na doutrina e na jurisprudência, a concor­
rência entre o adquirente e o cedente de estabelecimento empresarial

15 Renata Homem de Melo, Não concorrência na transferência de estabelecimento empresa­


rial, www.societario.com.br
1 (, Vocabulário Jurídico, Vol. IV, 3ª Ed., Rio de janeiro, Forense, pág. 1 29
372 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

passa, como acima referido, agora a ter expressa previsão legal no Código
Civil, em seu artigo 1 . 147. Trata-se da cláusula de não restabelecimento
da atividade comercial, pelo antigo alienante, com o fito de se preservar a
clientela. Qiando alguém adquire um estabelecimento empresarial, está
também interessado na clientela deste fundo empresarial. Logo, se o an­
tigo proprietário iniciar um outro estabelecimento empresarial, com a
mesma atividade, possivelmente atingirá a mesma clientela.
Como já dito, anteriormente, a clientela não é um elemento separá­
vel do estabelecimento, que, como coisa incorpórea, possa formar objeto
de contrato autônomo. Qiando ocorre o trespasse do estabelecimento,
um efeito natural do negócio, que se contém na vontade normal das par­
tes, é o de manter a integridade do fundo, com todos os elementos e atri­
butos que o individuam e caracterizam, inclusive a organização e os demais
fatores do aviamento, a fim de conservar para o adquirente a mesma capa­
cidade objetiva de obtenção de lucros. E, para atingir esse objetivo normal
e desejado pelas partes, pode-se entender que, implicitamente, o alienan­
te se obriga a não abrir concorrência ao adquirente, em circunstâncias que
ensejem o desvio da clientela do estabelecimento transferido.
O argumento de que a liberdade do exercício profissional obstaria
a interdição de concorrência não se sustenta, pois o exercício dos direi­
tos individuais pode perfeitamente ser condicionado e admite as limita­
ções imposta s pela lei. Lógico que a proibição absoluta de
restabelecimento do alienante do fundo, sem quaisquer restrições, seria
incompatível com a Constituição Federal, por violar os princípios da
livre iniciativa e da livre concorrência previstos no artigo 1 70.
Por tudo isso, procurando pôr fim a controvérsias, o Código Civil
estabeleceu em seu artigo 1. 147 limitações ao restabelecimento da ati­
vidade empresarial, pelo antigo alienante, com o objetiv_o de preservar a
clientela do estabelecimento empresarial, que é também de interesse do
adquirente. Vejamos, novamente, o referido artigo 1 . 147:
"Não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento
não pode fazer concorrência ao adquirente, nos 5 (cinco) anos subse­
qüentes à transferência".
ALEX PRANDINI ]R. - 373

Q CONFLITO ENTRE A PUBLICIDADE OBRIGATÓRIA E A QUESTÃO DO


SIGILO NOS CONTRATOS DE TRESPASSE
Chama-nos a atenção o fato de que os contratos de trespasse são, na
maioria das vezes, extensos, além de conterem informações sigilosas so­
bre o negócio jurídico (i.e. segredos de empresa e tecnologia).
As formalidades de publicação e registro de tais contratos clamam
por reflexão sobre as alternativas que permitam o cumprimento da lei e
a preservação do sigilo de certas condições do negócio jurídico. Uma
possível alternativa seria a celebração de um contrato principal, onde
estariam reguladas as premissas do negócio jurídico, dispondo, em con­
tratos acessórios, os pormenores e condições sigilosas da aquisição.
Dessa forma, poder-se-ia evitar a quebra de sigilo de informações con­
fidenciais que a publicidade do negócio geraria.

3. CISÃO
CONCEITO
A cisão parcial ou spin-ef, como a batiza o direito norte-americano,
consiste na transferência de p�rcela do patrimônio de uma sociedade, à
outra, pré-existente ou não, mediante a contrapartida, aos sócios da cindi- .
da, de quotas ou ações da empresa receptora dos ativos.
Em linhas gerais a cisão mostra-se como instrumento jurídico capaz
de atender às mais diversas finalidades visadas pelos processos de reestru­
turação societária, inclusive aqueles prévios à desestatização de empresas
estatais, como os referentes aos setores de energia elétrica e telecomuni­
cações, na medida em que viabiliza a separação das atividades empresa­
riais para atribuir-lhes destinações específicas e diversificadas.
Dada a natureza de reorganização societária da cisão, entendeu o
legislador por bem agregá-la à incorporação e à fusão, na mesma seção da
Lei das Sociedades por Ações. No direito anglo-americano, o spin-ef, é
também inserido no capítulo da reorganização societária.
Nesse sentido, a Lei das Sociedades Anônimas assim estatui, em seu
artigo 229: 'a cisão é a operaçãopela qual a companhia tranifereparcelas do seu
3 74 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídaspara esse.fim oujá exis­


tentes, extinguindo-se a companhia cindida, se houver versão de todo o seu pa­
trimônio, ou dividindo-se o seu capital, separcial a versão. "
Do ponto de vista doutrinário, a cisão é a operação pela qual uma
companhia (cindida) transfere parcelas de seu patrimônio para uma ou
mais sociedades, as quais podem já existir ou ser criadas precipuamente
para este fim. A cisão pode ser total, quando houver a versão de todo o
patrimônio da sociedade cindida (que se extinguirá), ou parcial, quando
apenas parte do patrimônio é vertido para outras sociedades, e a persona­
lidade jurídica da companhia cindida subsiste.
Logo, a cisão é um instituto de divisão de sociedades, pois ne­
nhuma contraprestação, de natureza pecuniária, é devida à empresa
que transfere parte ou a totalidade do seu patrimônio. Há, sim, con­
traprestação, traduzida por ações ou quotas, no contrato de permuta
que celebram os sócios da cindida com a sociedade resultante da cisão
ou sociedade já constituída, pela contrapartida da parcela de patrimô­
nio nela integralizada17 • O encapsulamento ou recepção da parcela do
patrimônio da cindida, pela sociedade resultante da cisão ou sociedade pré­
existente, aparece refletido na permuta, antes comentada.
Em nosso entendimento, a permuta das quotas ou ações, represen­
tativas do capital social da sociedade resultante da cisão ou entidade
previamente constituída, em contrapartida à conferência de parcela do
patrimônio da cindida, é também contrato mercantil. Todavia, a posi­
ção ora esposada não é uníssona na doutrina.
Com efeito, a problemática da catalogação da cisão parcial, no rol
dos contratos normatizados pelo direito pátrio, defronta-se com contor­
nos mais sofisticados, dada a pluralidade que permeia o pacto societário.

17 O protocolo de cisão deverá expor as condições da operação de cisão, destacando-se,


dentre elas, os elementos ativos e passivos que formarão cada parcela do patrimônio, no caso
da cisão. A disposição é específica para cisão, porquanto somente nesta há fragmentação
patrimonial. A redução de capital, da sociedade cindida, é também pressuposto da opera­
ção, dado o destacamento de parte de seu patrimônio, defluindo, tal qual no monte da
sociedade al ienante no trespasse, o encolhimento patrimonial da cindida.
ALEX PRANDINI )R. - 375

Tullio Ascarelli18 preceitua que "os contratos plurilaterais se prendem


à constituição de uma organização, em que há a possibilidade de deliberar
por maioria, o que, ao contrário, é inadmissível nos demais contratos. Se as
deliberações sociais, tomadas no plano da sociedade cindida, têm feições de
contrato plurilateral, o desfecho da operação, por assim dizer, no enunciado
do parágrafo quinto do artigo 229, da Lei das Sociedades por Ações19 , tem
lugar num contrato de permuta, bilateral e sinalagmático, com a participa­
ção de dois blocos de interesse distintos".
A operação de cisão é bastante peculiar. Por esse motivo, no enten­
der de Julia Cunha Tanaka20 , é aceita pela maioria da doutrina nacional
como negócio jurídico sui generis de constituição de sociedade ou de
aumento de capital de sociedade existente, o qual na prática pode assu­
mir diversas funções.
A causa jurídico-econômica da cisão é a intenção válida e eficaz dos
sócios ou acionistas - conforme se tratar de sociedade limitada ou socie­
dade por ações - de racionalizarem suas participações no capital social da
sociedade cindida, mediante sua repartição em outras sociedades novas
ou já existentes. Trata-se de instituto jurídico voltado à composição de
interesses individuais que, usualmente, levariam à dissolução da socieda­
de ou à concentração ou desconcentração empresarial, cujo objetivo é a
união ou desunião de divisões específicas de empresas. Assim, a cisão pode
ser conceituada como negócio jurídico plurilateral que tem como finali­
dade a separação do patrimônio social em parcelas para a constituição ou
integração destas em sociedades novas ou já existentes.
Na cisão parcial permanece a personalidade jurídica da sociedade
cindida, sendo apenas o seu patrimônio afetado. De qualquer maneira,
tanto a cisão total quanto a cisão parcial acarretam a sucessão universal da
parcela do patrimônio transferido para a nova sociedade ou para a socie-

18 Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado, 1 ª Edição, págs. 392 e 393,
Bookseller
19 "As ações i ntegralizadas com parcelas de patrimônio d a companhia cindida serão atribuí­
das a seus titulares, em substituição às extintas, na proporção das que possuíam" (art. 229
da Lei 6404/76)
20 J u l i a Cunha Tanaka, Contabilidade Apl icada ao D i reito Societário, www.direitonet.com.br
376 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

dade já existente. Portanto, todos os direitos, obrigações e responsabilida­


des inerentes à parcela de patrimônio cindida são assumidos pelas socie­
dades que o receberam, novas ou existentes21 •

As ações integralizadas com parcelas de patrimônio da companhia


cindida serão atribuídas a seus titulares, em substituição às extintas, na
proporção das que possuíam; a atribuição em proporção diferente requer
aprovação de todos os titulares, inclusive das ações sem direito a voto.
Na cisão parcial, a sociedade cindida subsiste como também a
sociedade que absorveu parte de seu patrimônio. No entanto, poderão
se estabelecer regras que distingam limites de responsabilidade somen­
te quanto àquela parte que houver a cisão.
FORMALIZAÇÃO CONTRATUAL DA CISÃO E A PROTEÇÃO AOS CREDORES
DA EMPRESA CINDIDA
O artigo 224 da Lei das Sociedades por Ações estabelece que as con­
dições da cisão com incorporação em sociedade existente constarão de
protocolo firmado pelos órgãos de administração ou sócios das interessa­
das. Embora não pacífica na doutrina, a qualificação jurídica do protocolo é
a de contrato preliminar, que se convola em contrato definitivo pela apro­
vação pela assembléia geral das sociedades anônimas participantes ou
pelos demais sócios das sociedades não anônimas.22
Na ótica de Maria Isabel Alvarenga23 , a freqüente utilização da cisão
como instrumento de reestruturação societária tem gerado dúvidas com
relação à interpretação da disciplina jurídica aplicável, especialmente no
que se refere aos direitos dos credores da sociedade a ser cindida.
Cumpre, nesse contexto, examinar os mecanismos de proteção aos ter­
ceiros credores da sociedade cindida previstos na Lei nº 6.404/76.

21 A cisão, portanto, pode ser total o u parcial. Ocorrerá cisão total quando houver completa
transferência de patrimônio, caso em que a sociedade cindida se extingu i rá; a cisão parci­
al, por sua vez, importa versão parcial do ativo e do passivo para outra sociedade,
remanescendo a sociedade originária com uma parcela do patrimônio em seu poder e
reduzi ndo-se seu capital social na proporção do patrimônio líquido transmitido.
22 Waldírio Bulgarelli , Manual das Sociedades Anônimas, Ed. Atlas, 1 988, p. 240
23 Maria Isabel Alvarenga, Direito dos Credores na Cisão, www.jus.com.br
ALEX PRANDINI ]R. - 377

O patrimônio social constitui, via de regra, a garantia dos credores da


sociedade. Com a cisão, ocorre transferência da totalidade ou de uma parce- .
la do patrimônio da sociedade cindida para outra sociedade, com o que se
verificaria uma redução da garantia dos credores da sociedade original.
Na hipótese de cisão parcial, estabelece o artigo 229 a existência de
sucessão apenas quanto aos direitos e obrigações relacionados no ato da
cisão. Como regra geral para proteção dos credores, o artigo 233 prevê que
a sociedade cindida que subsistir e as sociedades que receberem parte de seu
patrimônio serão solidariamente responsáveis pela satisfação das obriga­
ções da sociedade cindida anteriores à cisão.
Entretanto, ainda em caso de cisão parcial, o artigo 233, parágrafo
único, prevê que o protocolo pode estipular que inexistirá solidariedade,
respondendo cada sociedade apenas pelas obrigações transferidas na cisão.
Em contrapartida, é conferido ao credor o direito de opor-se à estipulação
de ausência de solidariedade. O fundamento da outorga ao credor de tal
direito é, justamente, protegê-lo da diminuição da garantia que seu crédito
teria caso houvesse a solidariedade.
Assim, no caso de o protocolo estipular que inexistirá solidariedade
entre a sociedade cindida e a sociedade que absorver parcela do patrimônio
cindido, os credores anteriores à cisão podem se opor à estipulação de au­
sência de solidariedade com relação a seus créditos, mediante o envio de
notificação à sociedade no prazo de 90 dias a contar da publicação dos atos
da cisão.
Qiestão que gera divergências na doutrina diz respeito aos efeitos da
oposição dos credores à estipulação de ausência de solidariedade.
O efeito imediato da oposição é suspender a eficácia do negócio de
cisão parcial, até que se restabeleça a solidariedade plena ou que seja seu
crédito antecipadamente pago. Se as sociedades envolvidas na cisão opta­
rem por não satisfazer antecipadamente o crédito do opositor, o benefício
da retratação quanto à estipulação de ausência de solidariedade será de
todos os credores24 •

24 Maria Isabel Alvarenga, Direito dos Credores na Cisão, www.jus.com.br


3 78 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

Em sentido contrário, é caudalosa a doutrina que entende que a


oposição do credor importa tão-somente na existência de solidariedade
entre as companhias exclusivamente com relação ao crédito do opositor,
de forma a garantir a solidariedade entre as companhias, não tendo o
condão de anular o ato de cisão como um todo, suspender sua eficácia
ou de impedir sua consecução.
O artigo 233 da Lei nº 6.404/76, quer-nos parecer, não confere ao cre­
dor o direito de opor-se ao negócio de cisão. O único direito do credor é opor­
se à estipulação de ausência de solidariedade. Não tem o credor, pois, sequer
legitimidade processual para pleitear a suspensão ou anulação da cisão, que,
pelo regime da Lei nº 6.404/76, é matéria interna das companhias envolvi­
das, a ser deliberada em assembléia geral dos acionistas.
A mera notificação do credor manifestando sua oposição à estipu­
lação de ausência de solidariedade já é suficiente par� que se opere a
elisão para seu crédito, uma vez que tal efeito decorre de lei. A produção
dos efeitos da oposição não depende de qualquer ato da sociedade, como
o envio de resposta à notificação do credor ou a indicação no ato de
cisão da existência de solidariedade passiva quanto àquele crédito, sen­
do descabidas quaisquer exigências nesse sentido.

4. PONTOS DE CONTATO ENTRE TRESPASSE E CISÃO PARCIAL: A


QUESTÃO DA REALOCAÇÃO DE RIQUEZAS NA ATIVIDADE
EMPRESARIAL
A circulação de riquezas, por assim dizer, no plano societário, dá-se
na razão da necessidade de reacomodação dos ativos que as compõem, e
decorre das mais variadas razões, no seio das vicissitudes e idiossincrasi­
as do mundo dos negócios. Nesse contexto, tanto trespasse quanto cisão
parcial servem a tal propósito.
O desfazimento de parte do patrimônio social, mediante a venda de
um estabelecimento ou trespasse, por exemplo, presta-se, em tese, à otimi­
zação da cadeia produtiva, por permitir a cessão de ativos àquele melhor
dotado para a exploração econômica da atividade em comento. A seu turno,
enquanto a venda de estabelecimento propõe-se ao fim da substituição de
ALEX PRANDINI )R. - 379

ativos - bens por dinheiro - por intermédio da celebração do contrato mer­


cantil de trespasse, o desiderato da cisão parcial é, similarmente, o de per­
mitir a realocação de riquezas, por meio da reorganização societária.
A cisão parcial ganha vida como instrumento de composição e,
novamente, reacomodação de interesses societários e econômicos, via­
bilizando a continuação da atividade empresarial, agora bipartida, entre
sociedade cindida e resultante da cisão ou sociedade pré-existente, sal­
vando-se (a cindida), muitas vezes, da dissolução societária, ainda que
também parcial, ocasionada pela dissensão.
Assim, já se depreende um primeiro ponto de interseção entre os
institutos: ambos os contratos - trespasse e cisão parcial - são meio, e
não fim em si mesmos. Tanto um quanto outro acolhem em si a finali­
dade da transferência de riquezas, propulsionada pelas forças dinâmicas
que impelem o meio empresarial.
Com efeito, a modificação patrimonial, sofrida pela sociedade, na ci­
são parcial, pelo destaque e versão de parcela de seu acervo a outrem, é
senão, em fenômeno, próximo ao trespasse, caracterizado pela alienação de
bens constitutivos do estabelecimento empresarial. Vale frisar que na cisão
parcial, inconcebível, sob o prisma operacional, o destaque de patrimônio
amorfo, sem função, que não se destine à consecução de uma atividade
econômica, a não ser em casos específicos, de exceção, subordinados a ou­
tros interesses, não menos legítimos, estratégicos, de natureza concorrenci­
al, de planejamento sucessório, tributário, ilustrativamente.
Num e noutro casos, promove-se a desconcentração da atividade pro­
dutiva, embora tais operações possam ser vistas do ponto de vista da agluti­
nação, quando os ativos migram para pólos magnéticos de concentração de
capital. Em tese, o trespasse ou a cisão parcial podem classificar-se como
movimentos concentradores, sempre que o cessionário, para quem a parcela
do patrimônio deságua, seja um ente de polarização econômica25 •

25 Mauro Brandão Lopes esclarece que a "cisão pode ser i n strumento de concentração por­
que permite a in corporação, de parcela do patrimônio à sociedade pré-existente e porque
permite a fusão de várias parcelas de patrimônio para fo rmação de um patrimônio mai or,
v i n das cada u m a delas do patri mônio de diferente sociedade; e pode ser i nstrumento de
380 - REORGANIZAÇÃO 50CIETÀRIA

A nosso ver, o trespasse ou venda de estabelecimento pode, igual­


mente, pelos mesmíssimos fundamentos acima colacionados, servir ao
mister da concentração e ao movimento da desaglutinação, dependendo
das circunstâncias econômicas que conduzirem à sua celebração.
Cisão parcial e trespasse não têm, no mais das vezes, fito de lucro,
não foram concebidas para a geração de riquezas. Servem ao propósito
da transferência, realocação, substituição de riquezas.
Não obstante, quando a sociedade receptora, ou sociedades recep­
toras, pré-existentes, incorporam parcela do patrimônio da cindida, ve­
rific a-se, em tese, o incremento de sua mais-valia, em medida superior
ao valor atribuído à parcela absorvida. Nesse sentido, economicamente,
a cisão parcial pode culminar, teoricamente, na efetiva geração de rique­
zas. O mesmo fenômeno pode ocorrer no trespasse.
Contudo, na cisão parcial, os sujeitos da operação, ou aqueles a
quem o produto do negócio aproveita, são os sócios ou acionistas da
cindida26 , que recebem quotas ou ações da nova sociedade ou sociedade
pré-existente, em contrato de permuta. Portanto, os sujeitos de cada
operação não são os mesmos. Na cisão parcial, a cindida nada recebe,
pela versão de parte do seu patrimônio, são seus sócios ou acionistas que
recebem (ações ou quotas da sociedade receptora). No trespasse, por
outro lado, a sociedade alienante é o sujeito ativo da transação. Seus
sócios ou acionistas dela não participam.
Os paralelismos - sob o ponto de vista finalístico e funcional -
existentes entre trespasse e cisão parcial restam ainda mais claros nos
casos em que o objeto da cisão é constituído por ativos dotados de certa
autonomia, e que, em tese, poderiam compor unidade empresarial de
vida própria (pense-se na divisão de peças de uma indústria automotiva,
no centro oftalmológico de um grande hospital ou na planta de resinas,

desconcentração porque permite a fragmentação de patrimônio com a transferência de


cada parcela à d i ferente sociedade nova." (A Cisão no D i reito Societário, Ed. Revista dos
Tribunais, 1 980, p. 1 4)
26 Reflexamente, a operação também aproveita aos mesmos sócios, agora na qualidade de
detentores de participação no capital da sociedade receptora.
ALEX PRANDINI ]R. - 381

do exemplo exordial). Tais pontos de contato entre trespasse e cisão


são destacados por Vasseur, ao apresentar o conceito de cisão: "há cisão
ou divisão de sociedades, quando uma sociedade originária transfere a uma
sociedade seus estabelecimentos relativos a uma determinada atividade e a
outra, os estabelecimentos das demais atividades, desaparecendo. Entende-se,
portanto, como um procedimento de desconcentração, que ocorre nas empresas
muito grandes, para delimitá-las ou para a especialização das várias ativi­
dades desenvolvidas."27
De fato, tal como ocorre no trespasse, é da essência da cisão parcial,
que o destaque do patrimônio da cindida tenha significância econômi­
.
ca, empresarial. Daí porque, muito comumente, as cisões parciais fazem
despregar da cindida uma "divisão" industrial ou comercial, autônoma,
composta de um ou mais estabelecimentos inteiros, verdadeiras unida­
des autônomas de geração de riquezas.
Os motivos que dão azo à sobredita transferência de riquezas, para
a qual são empregados o trespasse e a cisão parcial, não são objeto deste
artigo, mas podem incluir uma miríade de hipóteses econômicas, e não
legais, como a perda de mercado pelos empresários inaptos, em favor
dos aptos, premências econômico-financeiras do trespassante, pressões
externas, resultantes de vetores macro-econômicos, ou reorganização
como instrumento de solução de conflitos entre sócios, que induzem a
segmentação societária, e tantas outras.
Ambos, enquanto negócios jurídicos de concentração/desconcen­
tração, trespass.e e_ cisão parcial têm, potencialmente, o agasalho do di­
reito econômico, se de seus epicentros partirem movimentos invasivos,
das microesferas de interesse que tal direito procura tutelar, como nas
hipóteses de concentração, em detrimento do regular funcionamento
do mercado. Cumpre asseverar, contudo, que, sob o aspecto do direito
econômico, o trespasse traduz-se normalmente em contrato de menor
quilate, de expressão monetária e importância contextual inferiores, em
comparação com a cisão parcial, que não raro, por conta da magnitude

27 Apud Waldírio Bulgarelli , 2000, p . 1 98


382 - REORGANIZAÇÃO SOCIETÁRIA

de suas reverberações econômicas, ganha páginas de publicidade, nas


mídias escrita e falada.
Por outro lado, se sob o prisma das posições jurídicas de adqui­
rente - no caso do trespasse - e empresa resultante ou beneficiária da
cisão parcial, os efeitos são análogos, diferem sobremaneira no polo em
que se encontram alienante do estabelecimento e sociedade cindida. Isso
porque, no trespasse, o beneficiário da contrapartida patrimonial é a pró­
pria sociedade trespassante, que mantém, por conta disso, uma equivalên­
cia econômica entre os bens que transferiu ao adquirente e aquilo que
deste recebeu. Já na cisão parcial, a contraprestação consiste em ações ou
quotas que reverterão diretamente ao patrimônio dos acionistas/sócios da
cindida, e não ao desta. Portanto, neste último caso, dá-se, com efeito, o
encolhimento do patrimônio da cindida.
Em conclusão, muito embora distintos em suas estruturas jurídicas,
trespasse e cisão parcial repercutem inexoravelmente nos mesmos ramos
do direito: no direitos obrigacional e contratual, no que tange à substitui­
ção necessária das posições jurídicas do alientante/empresa cindida por
adquirente e empresa resultante da cisão, respectivamente, ocorrendo o
mesmo quanto aos contratos de trabalho; no direito societário e registrá­
rio, por trazerem reflexos na estrutura patrimonial das sociedades, exigin­
do-se assim a devida publicidade de tais atos; no direito econômico e
concorrencial, quando acarretarem em atos de concentração que impac­
tem nos princípios de política econômica. Por conta disso, resta evidente
que, do ponto de vista prático, ressalvadas as nuances abordadas no pará­
grafo precedente, tanto cisão parcial quanto trespasse podem fazer as ve­
zes um do outro, sendo certo que a escolha duma ou doutra via variará em
razão das situações de fato que permearem a atividade de determinada
empresa.

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