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CRIMES EM ESPECIAL

INTRODUÇÃO
Sistematização do Código Penal
A parte especial do Código Penal (parte II) está organizada de acordo com o critério do bem
jurídico, não sendo apenas uma lista discricionária de crimes. Ou seja, o legislador escolheu organizar
esta parte especial de acordo com os bem jurídicos que são protegidos por cada crime: pondo em
primeiro lugar os crimes contra a vida e, só mais à frente, estipulando os crimes contra o Estado –
exprimindo uma certa importância dos bens jurídicos a ser protegidos.
Além disso, tal organização é ainda expressa nas sanções, sendo que o homicídio qualificado é aquele
punido com uma pena abstratamente maior. No entanto, encontram-se, aqui, alguns desvios a estas
prioridades, existindo por exemplo crimes contra o património a estipular uma pena abstratamente
mais longa do que os crimes contra a liberdade.
Esta parte especial reflete, ainda, a própria ordem de valores que resulta da CRP, tendo uma
certa prioridade perante as normas da parte geral – que apenas normas de extensão dos tipos de crime
estipulados nessa parte especial. Assim, quando se resolve um caso prático penal, é necessário
começar sempre pela parte especial, com prioridade metodológica à parte geral; só depois é que se
vai à parte geral se, por exemplo, existir mais do que um autor, sendo necessário, para o punir,
estender o tipo de crime preenchido.
No entanto, denota-se que os diferentes crimes que protegem o mesmo bem jurídico não estão
estritamente organizados pela gravidade da ofensa a esse bem – normalmente, começa-se pelo crime
base, fazendo-se depois as incriminações qualificadas ou privilegiadas.

Sistematização da Teoria do Crime


Para existir um crime, é necessário que se tenha uma ação típica, ilícita, culposa e punível.
Quanto à existência de ação, é necessário que esta seja um facto dominado ou dominável pela
vontade, não abrangendo situações em que o agente pratica o facto por motivo exterior físico (ex: ser
empurrado para uma montra, que parte). Existem, ainda, os casos de omissão pura – o facto que se
prevê é uma omissão em si –, e os casos de omissão impura – os factos podem ser praticados por
omissão por extensão, sendo a omissão equiparada à ação quando o agente tenha um dever jurídico
que o obrigue a evitar o resultado.
Quanto à existência de tipicidade, é necessário identificar o conjunto de acontecimentos que
são subsumíveis a uma determinada norma penal – ou seja, os elementos objetivos e os elementos
subjetivos, avaliando-se, depois, todos à luz da teoria do crime. Consequentemente, os
acontecimentos terão de ser imputados tanto objetivamente (em sede das três teorias faladas) como
subjetivamente (em sede de dolo ou negligência) ao agente em questão.
➔ Denota-se que, nos casos dos crimes específicos, o artigo 28º CP prevê que, nos casos em que
existam vários intervenientes, se a ilicitude do ato depender de certas qualidades da pessoa, basta
que as mesmas se verifiquem em qualquer deles. Portanto, quando se fala de circunstâncias do
qual depende o tipo de ilícito, essas como que se comunicam – ou seja, abrangem os restantes.
o Já o mesmo não se verifica em relação à culpa: segundo o artigo 29º CP, se a circunstância
de que se fala for relativa à culpa, está é analisada individualmente para cada um dos
intervenientes, ao abrigo do princípio da culpa.
Existe, neste contexto, uma distinção ainda entre os crimes de dano e os crimes de perigo. Nos crimes
de dano, para que este se consume, teve de haver um dano do bem jurídico que é protegido pela
norma; enquanto nos crimes de perigo, demonstra-se que o bem jurídico apenas foi colocado em
perigo pela conduta – nomeadamente, nos crimes de perigo concreto –; ou que este bem poderia ter
sido colocado em perigo por essa conduta – nomeadamente, nos crimes de perigo abstrato (em que
se proíbe uma determinada conduta que poderá ser perigosa) e nos crimes de perigo abstrato-concreto
(em que a conduta é proibida, desde que esta seja apta a gerar um certo perigo). Diferente será a
diferença estabelecida entre crimes de resultado – em que há um certo resultado que se tem de
produzir –, e crimes de mera atividade, onde apenas a conduta tem de ser preenchida, não existindo
uma diferença espacial-temporal entre a conduta e o resultado provocado pela mesma.
Quanto à ilicitude, terá de existir uma avaliação do desvalor dessa ação, traduzida na sua
contrariedade ao ordenamento jurídico. Tal avaliação resulta, por um lado, do preenchimento dos
pressupostos do crime; e, por outro lado, de uma inexistência de uma circunstância que apague esse
juízo de desvalor (nomeadamente, a existência de uma causa de exclusão de ilicitude). Denota-se que,
se se estiver em erro sobre os pressupostos de uma causa de justificação, exclui-se o dolo, mas não a
negligência.
Quanto à culpa, terá de existir um juízo de censura, avaliando-se se se pode censurar a pessoa,
em questão, por ter praticado aquele facto. Também existem causas de exclusão da culpa, que tornam
a atuação, apesar de ilícita, “compreensível”.
Finalmente, quanto à punibilidade, o juízo de valor já se faz sobre a adequação e a
necessidade da sanção. Tal punibilidade é, assim, afastada pela desistência (artigos 24º e 25º CP);
assim como pelas condições objetivas de punibilidade (ex: no incitamento ao suicídio, a punibilidade
depende do facto de o incitado tentar ou se conseguir suicidar).

CRIMES CONTRA A VIDA


Caracterização e Delimitação do Bem Jurídico Protegido
Nos crimes contra a vida, o bem jurídico a ser tutelado é o bem jurídico “vida”, previsto no
artigo 24º da CRP. No entanto, é necessário perceber como se delimita este bem jurídico – ou seja,
quando é que a “vida” protegida se inicia e acaba.
Relativamente ao seu início, existe, no artigo 66º, nº1 do Código Civil, um critério relativo à
descoberta do início da personalidade jurídica. No entanto, não será esse critério que, aqui, se aplica.
Assim, nos crimes contra a vida, a tutela da mesma começa ainda antes desse início da personalidade
jurídica – conclusão retirada do artigo 136º, que criminaliza o infanticídio. Assim, existe aqui o
critério do início do parto: a tutela da vida, a nível penal, começa com o início das contrações de
expulsão do bebé (nos partos naturais) ou com o início da intervenção médica (nos partos de
cesariana), e não com o nascimento completo e com vida.
➔ Não quer dizer isto, no entanto, que o ordenamento jurídico português não tutele a vida
intrauterina – nomeadamente, com o crime de aborto –, mas fala-se aqui de outro tipo de vida,
não tutelada como “homicídio” ou qualquer das suas variantes, mas sim como outro tipo de crime
específico. Nomeadamente, o crime de aborto tutela a vida intrauterina desde que o óvulo é
fecundado, normalmente passados 9 dias desde o ato sexual – daí que a pílula do dia seguinte não
seja considerada um ato de aborto. Portanto, entre esse período desde o 9º dia e o início do parto,
o crime é considerado aborto, e não homicídio – denotando-se que se continua a não prever, como
crime, lesões corporais ao feto nesta altura.
No entanto, é ainda importante falar das situações em que o bebé já nasce morto – existe, nestes casos,
a viabilidade do feto? Para integrar este problema do conceito de “vida humana formada”, é
necessário falar de dois critérios: 1) o do início do parto; e 2) o da maturidade biológica do feto.
Juntando estes dois critérios, conclui-se que o critério do “início do parto”, como o início da tutela da
vida, implica o nascimento de um feto com viabilidade – e, portanto, qualquer conduta praticada
contra tal vida é um homicídio. Consequentemente, se no início do parto já não existir qualquer vida,
o facto de o bebé nascer sem vida não pode ser considerado homicídio – podendo-se, no entanto,
tentar perceber se tal morte foi resultado de qualquer conduta médica –, pois quando a tutela
começaria, esse bem jurídico já está lesado/inexistente.
Concluindo, a partir do momento do início do parto, qualquer conduta lesiva da vida será um
homicídio – não sendo relevante o momento em que a criança morre, mas sim o momento da ação:
mesmo que o feto morra depois de expulsão, se a conduta que provocou tal morte ocorreu antes do
início do parto, a mesma será considerada um ato de aborto, e não de homicídio.
Relativamente ao ponto em que a vida acaba, o critério utilizado será o do “ponto físico de
não retorno”: nomeadamente, a vida acaba quando a pessoa em questão não tem qualquer
possibilidade de recuperar, no sentido de se encontrar em estado de morte cerebral. Este critério
resulta do artigo 12º da Lei nº12/93, assim como dos artigos 2º e 3º da Lei nº141/99: “A morte
corresponde à cessação irreversível das funções do tronco cerebral”. Sendo um critério médico-legal,
é preciso e, por um lado, faz com que qualquer ato executado depois deste momento seja considerado
não homicídio, mas sim profanação de cadáver; por outro lado, permite que outros tipos de atuações
sobre o cadáver de uma pessoa sejam lícitos (ex: recolha de órgãos).
Denotar, no entanto, que os atos de ocultação de cadáver, apesar de surgirem depois da morte, têm
muitas vezes a ver com questões de concurso com o crime de homicídio – nomeadamente, as
discussões sobre se estes crimes devem ser punidos em concurso efetivo ou em concurso aparente.

Homicídio Simples (artigo 131º)


O crime de homicídio simples é o crime-base dos crimes contra a vida, feitos entre o início e
o fim desta, sendo a sua pena máxima 16 anos – sendo que essa pena poderá, depois, agravar ou
diminuir conforme as diferentes variações ao nível da qualificação do homicídio que estão estipuladas
no CP (ex: artigo 132º CP – homicídio qualificado, com pena máxima de 25 anos). Na prática, no
entanto, os homicídios acabam por se enquadrar nessas outras variações, sendo que o homicídio
simples acaba apenas por ser utilizado de forma subsidiária – ou seja, quando o caso não entra em
nenhuma das variantes.
➔ Não existindo em Portugal muitos homicídios, uma parte substancial dos mesmos têm por base
uma relação jurídica – contexto de violência doméstica –, pelo que acaba sempre por existir uma
causa de qualificação que os retira do contexto do homicídio simples.
Homicídio Qualificado (artigo 132º)
CONCEITO INDETERMINADO VS. EXEMPLO-PADRÃO:
Quanto ao homicídio qualificado importa, em primeiro lugar, perceber a diferença entre os
“exemplos-padrão” e os conceitos indeterminados – isto, porque no nº2 deste artigo, existem vários
conceitos indeterminados tais como “motivo fútil”, “meio insidioso”, “frieza de ânimo”, etc.
Ora, no conceito indeterminado, o que existe é um problema de interpretação: o que o
julgador irá fazer é perceber se se está perante uma situação que se insere na definição do conceito
indeterminado – ou seja, se consegue interpretar esse conceito, que está previsto legalmente, de forma
que a situação do caso concreto se insira nele.
Já na técnica dos exemplos-padrão, o que se faz é a inserção da situação do caso concreto
nas alíneas previstas, recorrendo à analogia – ou seja, insere-se nestas alíneas situações que, embora
não estejam lá previstas, são parecidas com aquelas que estão previstas. Ora, isto traz à luz outra
questão: será a técnica dos exemplos-padrão compatível com o princípio da legalidade,
nomeadamente na sua vertente do princípio da tipicidade?
Essa questão é resolvida pelo Acórdão do TC nº852/2014. Segundo este, não se pode qualificar um
homicídio como sendo qualificado exclusivamente pela aplicação do artigo 132º, nº1 CP – ou seja,
pelo critério do especial tipo de culpa –, utilizando o mesmo para integrar tais situações neste tipo de
crime, dado que isso seria dizer que o nº2 do mesmo artigo é, apenas, lista exemplificativa (apesar do
“nomeadamente”). Pelo contrário, nos exemplos-padrão, existe a descrição de uma situação com uma
imagem “condutora”, sendo apenas as situações que exprimam o mesmo sentido de desvalor que
podem ser enquadradas (daí a expressão “entre outras”).
No entanto, esta técnica de aplicação conjunta do nº1 e do nº2, embora não colocando problemas de
legalidade (na medida em que não se está apenas a integrar situações análogas), é de facto uma técnica
que gera alguma insegurança, na medida em que os exemplos das situações que podem ser
enquadrados são sempre discutíveis.
➔ Por exemplo, será discutível se é possível inserir na alínea a) casos em que a pessoa, não sendo
adotada pela vítima/arguido, foi mesmo assim criada pelo mesmo – os chamados “parentes de
facto” –; ou mesmo casos de irmãos. A nível formal, apenas estão descritas relações em linha reta,
mas a nível substancial, tal alínea implica que haja uma relação de proximidade familiar bastante
forte, nos quais estas relações se poderão inserir.

➔ Já o enquadramento da situação do namoro será mais difícil, na medida em que esse


enquadramento irá depender exclusivamente daquilo que o tribunal achar ser um namoro
suficientemente forte/estável para ser compatível com o desvalor associado às situações de
casamento – sendo tal insegurança incompatível com uma definição de incriminação precisa e
necessária para o direito penal. Diferente são as “uniões de facto” que, mesmo não sendo formais,
acabam por ser mais seguras quanto ao seu enquadramento.
De qualquer das formas, o argumento ganhará muito mais força se as situações estiverem
expressamente previstas através de alterações, como o que aconteceu com a alínea b).
Consequentemente, o facto de o legislador estar sempre a fazer alterações acaba por destruir
tendencialmente esta técnica, na medida em que reconhece que é necessário haver mais segurança
jurídica no enquadramento das situações de homicídio qualificado. Por outro lado, no entanto, tal
crescente especificação acaba por fazer com que se feche um pouco demais a norma.
EXEMPLOS-PADRÃO: TIPO DE CULPA OU DE ILÍCITO?
Neste caso, questiona-se, no fundo, se as alíneas descritas no nº2 deste artigo traduzem tipos
de culpa ou tipos de ilícito. Importa, primeiro que tudo, esclarecer mais uma vez que, segundo o TC,
a verificação de qualquer uma das situações previstas nestas alíneas não dá, automaticamente, origem
à aplicação do artigo 132º CP: será necessário, além disso, que o critério de “especial censurabilidade”
do nº1 seja, também, aplicável de forma complementar (ex: um filho pode matar o pai – alínea a) –,
mas não existir tal “especial censurabilidade”, porque o pai abusou dele durante anos).
Consequentemente, a aplicação do crime de homicídio qualificado acaba sempre numa avaliação de
um tipo de culpa.
Assim, Fernanda Palma entende que o simples maior grau de culpa (“especial
censurabilidade”) não é apto de fazer agravar a moldura abstrata – ou seja, a justificar a qualificação
do homicídio. Para ela, teria sempre de haver, também, um maior desvalor da conduta e, portanto,
um maior grau de ilicitude da mesma.
Ora, em certas alíneas (a, b, c), tal desvalor da conduta é bem enquadrado: existe um desvalor da ação
(tipo de ilícito), na medida em que matar uma pessoa com quem se têm uma certa relação é mais
“grave” do que matar qualquer outra pessoa – ou seja, aqui censura-se não o agente em si, mas a ação
abstrata de matar um parente/filho/etc. A dificuldade de saber se estas constituem tipo de ilícito ou
tipo de culpa surge, então, nas alíneas como a e), f), ou g) – ou seja, nas alíneas onde se valoriza
(negativamente) a “motivação” do agente.
Esta avaliação tem, depois, consequências na aplicação da norma criminal ao agente. Se se
olhar para todas estas alíneas como comportando tipos de culpa, poderá haver situações em que certos
intervenientes na prática do crime não sejam responsabilizados pelo crime de homicídio qualificado.
Isto acontece, nomeadamente, em casos de comparticipação: se, por exemplo, A e B matarem o pai
de A, existe um homicídio em coautoria – ora, atendendo ao princípio da acessoriedade e ao artigo
29º CP, a culpa é avaliada individualmente para cada um dos agentes. Assim, se as alíneas forem
vistas como tipos de culpa, B não será punido por homicídio qualificado, dado que ele não matou o
seu pai, mas sim o pai de A.
Pelo contrário, se as alíneas forem vistas como tipos de ilícito (ou tipos mistos), de acordo com o
artigo 28º CP, a ação de B já poderá encaixar na alínea a), visto que a ilicitude dos crimes de coautoria
é partilhada por todos os agentes, desde que afete um deles. Ora, encaixando B na alínea a), este
poderá depois ser avaliado individualmente à luz do nº1 – ou seja, à luz da especial censurabilidade
–, e, consequentemente, ser punido pelo crime de homicídio qualificado.
Significa isto, então, que as agravantes do homicídio têm de ser vistas como tipos mistos de
culpa e de ilicitude, de forma a se poder aplicar o artigo 132º CP da melhor forma possível.

SITUAÇÕES DE ERRO:
Numa situação em que o agente mata uma pessoa, sem saber que este é seu pai, está-se perante
um “erro ignorância”: uma vez que o erro é sobre a circunstância qualificadora (artigo 131º, alínea
a) CP), não se irá aplicar o crime de homicídio qualificado – mas continua-se a estar perante um crime
de homicídio simples, dado que tal erro não exclui o dolo (ele quis, na mesma, matar uma pessoa).
No entanto, nas situações em que existe um erro de suposição – ou seja, em que o agente
pensa que está a matar o pai, mas está a matar outra pessoa qualquer –, existirá concurso entre uma
tentativa impossível do crime de homicídio qualificado e um crime de homicídio simples consumado?
Uma parte da doutrina acha que existe um concurso; havendo, no entanto, posições segundo as quais,
não existindo a qualificação, não se poderá de qualquer forma punir o agente pelo artigo 132º,
punindo-se apenas pelo homicídio consumado.
Este concurso, a existir, terá, no mínimo, de ser aparente – ora, sendo aparente, qual dos crimes deve
prevalecer? A doutrina diverge. Figueiredo Dias, por exemplo, diz que deverá prevalecer o homicídio
simples consumado, na medida em que a circunstâncias agravada não se verifica completamente:
aliás, se se fosse punir pela tentativa de homicídio qualificado, o assistente no processo (o ofendido)
seria esse pai, que nem sequer lá estava – enquanto o morto real não seria sequer representado.
Consequentemente, este autor acrescenta, então, a possibilidade de existir uma agravante em concreto
– nomeadamente, o facto de ele querido matar o pai pode ser visto como agravante da culpa, de forma
que a pena consiga, ao ser aumentada em função da culpa, consumir todo o desvalor da ação.

Resolução de Caso Prático – Hipótese 1:


António mantinha há 20 anos um diferendo com Bento, de 80 anos de idade, decorrente de umas obras
realizadas por António numa casa de Bento. António vinha reclamando o pagamento da parte do preço não
paga e Bento invocava que as obras não tinham sido concluídas, recusando o pagamento. O montante do
preço em dívida e reclamado por António era 300 euros.
Em virtude de tal diferendo, no dia 3 de dezembro, António foi a casa de Bento pedir-lhe o pagamento. No
entanto, Bento fechou-lhe a porta na cara, ficando António na rua a resmungar sozinho. Nessa sequência, por
vingança, António tomou a resolução de matar Bento.
Entre as 9h00 e as 10h00m do dia 18 de dezembro, António deslocava-se no seu veículo quando
verificou que Bento tinha o seu trator estacionado junto à sua propriedade (de B.), verificando que Bento
andava ali, sozinho, a fazer trabalhos agrícolas, limpando o terreno das suas oliveiras. Então, António foi à
sua residência e, após ter esperado que a sua mulher saísse (o que veio a suceder por volta das 11h15m),
António muniu-se da sua caçadeira calibre 12, de canos justapostos basculantes e foi ao encontro de Bento,
bem sabendo que este se encontrava sozinho.
Chegado ao local onde Bento se encontrava, por volta das 11h40m, António saiu do seu veículo e empunhou
a arma caçadeira municiada com pelo menos um cartucho calibre 12 carregado com chumbo. Aproximou-se
a uma distância de cerca de 20 metros e, estando Bento de costas, disparou um tiro na sua direção, atingindo-
o na região posterior do tórax, e no braço esquerdo. Ao disparar daquela maneira, António causou a Bento
múltiplas feridas perfurantes por toda a superfície posterior do tórax, na zona abdominal e ainda no membro
superior esquerdo.
Nas imediações andavam caçadores que acorreram ao local de onde provinha o disparo e o grito de
Bento, tendo verificado que Bento se encontrava, no meio das oliveiras, prostrado de barriga para baixo e a
gemer. Um dos caçadores ligou imediatamente para o 112, solicitando socorro, tendo o INEM chegado ao
local cerca de 10 minutos depois. Os elementos do INEM, depois de observarem o estado de Bento,
transportaram-na de imediato para o hospital, onde Bento veio a morrer pelas 12h38m em consequência dos
ferimentos sofridos.

Denota-se, aqui, que existe uma ação: A é dominado pela vontade de querer fazer aquela ação.
Quanto à tipicidade, o comportamento de A preenche os pressupostos do crime de homicídio:
agente (A), resultado (morte), vítima (B), etc. Existe, além disso, imputação objetiva do resultado
morte à conduta de A, passando o mesmo as três teorias; e imputação subjetiva, na medida em que A
tem o dolo direto de matar B, na medida em que prevê o resultado e age querendo que este aconteça
(artigo 14º CP).
Ainda dentro do comportamento típico, denota-se, no entanto, que A mata em circunstâncias
especiais, que poderão caber nas alíneas c), j), e), e i) do artigo 132º CP – homicídio qualificado:
➔ Alínea e): O STJ acabou por não aplicar esta alínea, na medida em que considerou que A poderia
ter morto B não apenas por uma dívida de 300 euros de à 20 anos – que demonstraria um motivo
fútil, na medida em que matar por um motivo destes mostra um desprezo pela vida humana –,
mas sim pela maneira como B o tratou, “fechando-lhe a porta na cara”. Assim, A poderá ter morto
B não por causa do motivo fútil da dívida, mas devido a sentir-se humilhado – não era só a questão
da dívida que teria de ser avaliada, mas todo o contexto e a dimensão que o problema já tinha
ganho, existindo toda uma irritação que rodeava o caso.

➔ Alínea i): O STJ não aplicou esta alínea, visto que, com a enunciação da utilização do veneno,
dá-se à mesma uma dimensão de o meio insidioso não ser detetável – ora, utilizar uma caçadeira,
mesmo sendo utilizada nas costas de B, não será equiparável a essa dimensão não detetável,
independentemente da maneira como é utilizada (Ex: a 20 metros vs. à queima-roupa).

➔ Alínea j): O STJ concordou com a aplicação desta alínea, visto que o facto de A ter pensado
naquilo durante 15 dias, assim como tendo demorado tempo a ir buscar a arma e esperar que a
mulher saísse, demonstra uma frieza de ânimo – a ação foi bem ponderada, não sendo um crime
de impulso.

➔ Alínea c): O STJ não aplicou esta alínea, dado que o facto de B ser mais velho não implica que a
sua morte se deveu a essa circunstância – qualquer pessoa, independentemente da idade, não se
conseguiria defender contra um tiro de caçadeira, podendo este ser fatal para qualquer um.
Quanto à ilicitude, não existe nenhuma causa de exclusão, pelo que não se justifica a ação.
Quanto à culpa, é notável que A pondera bem sobre a sua intenção de matar, ficando com esta
durante 15 dias e até ao momento em que mata B – ora, isto poderá indiciar especial censurabilidade?
Aqui, faz-se uma avaliação sobre todo o facto e o contexto em que este surge: o facto de este persistir
na sua intenção é importante, visto que A teve mais do que tempo para se acalmar, avaliar as
consequências e mudar de vontade – mas não o fez. Consequentemente, poder-se-á concluir que se
exigia a A um comportamento diferente, na medida em que o “fechar a porta na cara”, apesar de
acarretar irritação, não fará, mesmo junto com a questão da dívida, a sua intenção duradoura de querer
matar B “compreensível”.
Finalmente, e não existindo problemas quanto à punibilidade de A, condenar-se-ia o mesmo
por homicídio qualificado – no caso concreto, A foi condenado a 18 anos, dado ter sido condenado
em concurso efetivo pelo crime de posse ilegal de arma.

Homicídio Privilegiado (artigo 133º)


No homicídio privilegiado, existe, também, uma avaliação em dois patamares: em primeiro
lugar, este é exclusivamente um tipo de culpa – fala-se de estados de alma, estados emocionais que
conduzem a pessoa ao homicídio (consequentemente, está-se a “desculpar” a conduta Daquela pessoa
em específico, e não a conduta abstratamente e não contextualizada).
Nomeadamente, estão previstos quatro motivos – compreensível emoção violenta; compaixão;
desespero; e motivo de relevante valor social ou moral –, sendo que será necessário fazer, em relação
a cada um deles, uma avaliação suplementar, para saber se a culpa é, de facto, sensivelmente
diminuída. Ou seja, a diminuição sensível da culpa aplica-se a todos os motivos, pois a verificação
dos motivos não conduz automaticamente ao privilegiamento.

Compreensível Emoção Violenta


A emoção violenta é um estado de descontrolo emocional, sendo avaliada em concreto. Já a
compreensibilidade da mesma – ou seja, a razoabilidade (plausibilidade) da emoção –, será avaliada
em função de uma pessoa média nas condições do agente.
Assim, em relação à emoção violenta, existe um terceiro patamar, a acrescentar ao dois
primeiro apresentados. Ou seja, em primeiro lugar, é preciso provar que esta emoção violenta existiu
no momento do ato, e que o agente está dominado pela mesma – sendo isto uma verificação de facto
(e não se a emoção é positiva ou negativa). Em segundo lugar, é necessário perceber se essa emoção
é compreensível – ou seja, se uma pessoa normal do tipo do agente, naquelas circunstâncias, sentiria
o mesmo tipo de emoção violenta. Por fim, a questão de saber se tal emoção diminui ou não a culpa,
ou se a atuação tem uma censurabilidade diminuída em relação a isso, já constitui o terceiro patamar.
➔ Dito de outra forma, primeiro avalia-se se a emoção violenta é compreensível, tendo em conta a
posição em que a pessoa estava; e só depois é que se avalia se essa emoção, mesmo sendo
compreensível naquele contexto, poderia justificar a não exigibilidade do agente de agir de forma
diferente (avaliação da culpa).

PROVOCAÇÃO DA VÍTIMA:
Em ambos os acórdãos analisados em aula – Acórdão do STJ, de 16.10.2003 (caso básico de
homicídio privilegiado) e Acórdão do STJ, de 03.10.2007 (questão dos crimes passionais) – há um
momento em que se fala de “provocação” pela vítima. Significa isso que só se enquadram no
homicídio privilegiado os casos em que o agente, que está dominado por esses motivos, mata o
provocador? Não, visto que, ao estar-se a fazer uma exigência suplementar, acaba-se por fugir à
legalidade da questão, exigindo algo que a lei não exige. Aliás, tal exigência de provocação será ainda
mais refutada quando se perceber que não poderão ser enquadrados, neste tipo de crime, uma situação
de “provocação pré-ordenada”: ou seja, em que o autor instiga o outro, provocando-o, para ter um
pretexto para o matar (ex: legítima defesa).
Por exemplo, num caso em que alguém disse a A que B andava a dizer que A tinha tido
relações sexuais com C – e, num momento de emoção, A quer matar B; mas acaba por matar D, uma
vizinha que se mete à frente dela para a tentar parar. Neste caso, a vítima não é o provocador – no
entanto, isso não significa que não se esteja perante um homicídio privilegiado, visto que não há a
necessidade de haver esta provocação, ou seja, que exista uma coincidência entre a pessoa que
provocou e a pessoa morta. A única exigência que se faz é que exista um nexo de causalidade entre
o motivo e o homicídio feito: A só matou D porque estava dominada por uma compreensível emoção
violenta (neste caso).
➔ No entanto, será necessário ainda que exista uma diminuição sensível da culpa: ou seja, tendo D
o objetivo de fazer o bem, não seria exigível a A que agisse de outra maneira? Ora, neste caso,
não existirá tal diminuição, na medida em que A deveria ter-se resfriado perante a tentativa de D
de a parar – logo, sendo-lhe exigível outra conduta, não seria enquadrado neste tipo de crime.
Compaixão
Quanto à compaixão, este é um estado de piedade, solidariedade, ou empatia perante o
sofrimento da vítima. A esta não acresce um critério de compreensibilidade, dado ser uma emoção
positiva – ou seja, a mesma não tem de ser compreensível perante o caso concreto. No entanto, terá
de haver, na mesma, uma diminuição sensível da culpa, tendo em conta as circunstâncias do caso.
Além disso, não pressupõe o pedido da vítima (ao contrário do crime de homicídio a pedido) –
podendo, no entanto, ser um homicídio provocado para tentar aliviar o sofrimento de outra pessoa.

Desespero
O desespero é um estado de depressão, de perturbação interiorizada, angústia e revolta.
Denota-se, aqui, que existe uma diferença entre desespero e compreensível emoção violenta:
enquanto na emoção violenta, existe uma “provocação”, ou seja, um momento em que se escalou a
situação (ex: Acórdão do STJ, de 16.10.2003); no desespero, existe um agravamento da situação mais
prolongado, que faz com que a pessoa sinta que o homicídio é a única solução (ex: casos em que a
vítima de abusos sexuais mata o seu violador, num contexto em que este, depois do sucedido, continua
a “aterrorizá-la” – episódio 4 da temporada 15 de Law & Order).

Motivo de relevante valor social ou moral


No motivo de relevante valor social ou moral, será difícil compreender se existe uma menor
culpa (relacionada com a exigibilidade de conduta diferente, emitindo-se um juízo de censura sobre
o agente) ou uma menor ilicitude material do facto (relacionada com a conduta não estar justificada,
emitindo-se um juízo de censura sobre a mesma, objetivamente).
Ora, aqui já não se fala de uma emoção ou motivação tão intensa ao ponto de provocar um estado
emocional que perturba a capacidade da pessoa se dominar – pelo contrário, há aqui uma circunstância
de facto (nomeadamente, um facto de relevante valor social ou moral) que justificará que a conduta
“matar” seja mesmo desvalorizada: ou seja, poder-se-á dizer que existe uma menor ilicitude.
Consequentemente, sendo a vida o valor mais alto na ordem jurídica portuguesa, não será fácil
encontrar um exemplo em que um facto seja tão relevante ao ponto de diminuir a ilicitude da conduta
de “matar” – até porque existe a questão de perceber como se avalia a relevância social ou moral do
motivo. Um exemplo muitas vezes dado será o dos “homicídios para lavar a honra” – ex: o pai que
mata o violador da filha; ou que, pelo contrário, mata a filha devido à sua desonra e devassa na
prostituição e droga – ou, ainda, o tiranicídio.
Lembrar: Na comparticipação, a culpa é avaliada separadamente, por aplicação ao artigo 29º CC.

SITUAÇÕES DE ERRO:
Quando o agente age em erro quanto à existência dos factos que dão origem à emoção (ex:
afinal não foi B que espalhou os boatos), verifica-se, mesmo assim, a compreensível emoção violenta.
Isto porque, ao ser este um tipo de culpa, o que está na origem do mesmo é o facto de o agente sentir
aquela emoção – ao contrário do que acontece com os tipos de ilícito, em que são as condutas que
são “objetivamente”/abstratamente desvaloras, lavrando o erro esse desvalor (ex: o caso em que uma
pessoa mata pessoa que acha ser seu pai, mas não é).
Ou seja, o que importa é que tal emoção existe, podendo esta ser causada por uma situação real, mas
também por uma situação que o agente pensa que existe – sendo que tal erro terá de ser razoável, na
medida em que a pessoa média, nas mesmas circunstâncias, também incorreria nesse erro.
NOTA: Não pode existir concurso entre homicídio qualificado e privilegiado, visto que eles são
mutuamente exclusivos – a mesma ação não pode revelar, simultaneamente, menor e maior
censurabilidade.

Infanticídio (artigo 136º)


O infanticídio é um crime específico – é preciso o agente ser mãe para o preencher –, e
impróprio, dado ser uma variação do homicídio (ao contrário dos homicídios privilegiado ou
qualificado, que apenas são uma atenuante ou um agravante do crime base, respetivamente). Além
disso, este não é um crime de mão própria (crime fisicamente cometido pela própria pessoa): o
resultado “morte do bebé” pode ser cometido tanto por autoria imediata (embora seja raro), como por
omissão (ex: não tomar conta do bebé ou não tomar os cuidados necessários a seguir ao parto).
Retoma-se, aqui, a discussão anteriormente vista relativamente à determinação temporal do
início da vida: o infanticídio é considerado um homicídio, dado tipificar uma conduta ocorrida a partir
do início do parto – “a mãe que matar o filho durante ou logo após o parto”.
No entanto, a doutrina diverge quanto ao que se considera “logo após o parto”. Por um lado, há quem
defenda que não é possível determinar temporalmente a influência perturbadora (enquanto
perturbação psicológica próxima da inimputabilidade), dado que tal conceito terá de ser definido
medicamente – consequentemente, tal influência poder-se-ia estender por meses, abrangendo os casos
onde existe um diagnóstico de “depressão pós-parto”. Por outro lado, há quem defenda (Figueiredo
Dias) que o infanticídio apenas se aplica a situações “logo após o parto”, não abrangendo esses casos
de depressão pós-parto.
Esta última doutrina é, então, a doutrina maioritária, devido à letra da lei: será mais difícil alargar tal
norma dado falar-se do enquadramento de um crime e da qualificação de uma conduta como tal, à luz
do princípio da legalidade e da tipicidade – a utilização de “logo” é dificilmente compatível com a
ideia de vários meses.
➔ Defende-se, ainda, que o facto da influência perturbadora, embora fora deste âmbito de “logo
após o parto” – e, consequentemente, fora do âmbito do infanticídio –, poderá ser usado como
atenuante no crime de homicídio.

TIPO DE CULPA:
Não obstante de, também, se estar aqui perante um enquadramento que dá relevo à culpa, dado
se falar de uma “influência perturbadora do parto” enquanto tipo de culpa; tal culpa é pressuposta a
partir do momento em que se comprova a existência dessa influência. Dito por outras palavras, não é
necessário comprovar, em separado, a influência e a diminuição da culpa (ou seja, a menor
exigibilidade de uma conduta diferente) que é consequência dessa influência: a existência da
influência presume a diminuição da culpa.
➔ Anteriormente, previa-se um outro critério: o de matar para ocultar a desonra. Atualmente, no
entanto, este já não é algo que possa incluir um comportamento no âmbito do infanticídio.
Denota-se que o facto de não se exigir esta culpa diminuída faz com que o âmbito do
infanticídio seja maior do que o âmbito do homicídio privilegiado. Diferente é, no entanto, a questão
de saber quando é que se tem de formar a intenção de matar a criança: nomeadamente, esta tem de
ser feita sob a influência perturbadora do parto, e não antes do parto – caso contrário, se a intenção
de matar a criança surgir antes do parto (ex: casos de gravidez indesejada), tal já será considerado
homicídio e não infanticídio, não obtendo este privilégio.
Por fim, tratando-se este num tipo de culpa, as situações em que a mãe é ajudada a matar o
filho por outra pessoa são enquadradas pelo artigo 29º CP: A culpa é avaliada autonomamente, logo
só fica no âmbito deste privilegiamento a mãe, ficando de fora outros participantes.

Homicídio a Pedido da Vítima (artigo 134º)


O crime de homicídio a pedido da vítima exige vários critérios. Por um lado, é necessária a
existência de um pedido, por parte da vítima, que terá de ser expressamente formulado, sério e
instante. Este pedido é importante, visto que será a sua existência a tornar a conduta “matar” menos
desvaliosa – tendo, por isso, uma repercussão sobre a ilicitude da mesma. Além disso, com o pedido
existe, também, uma diminuição da culpa, na medida em que este se determinou pela existência do
mesmo: não lhe será exigido, de forma tão forte, que adotasse uma conduta diferente.
Isto significa, no entanto, que não se pode enquadrar neste artigo os casos em que o agente atua por
outras razões, e não apenas determinado pelo pedido (ex: o agente aproveita a existência de um pedido
e matar a pessoa – mas, na verdade, ele já a queria matar para receber a herança).
No entanto, o facto de ser determinado pelo pedido – e, portanto, não ser exclusivamente determinado
por outras razões – não significa que essa motivação tenha de ser altruísta: ou seja, não se exige que
o agente também tenha a motivação de aliviar a pessoa do sofrimento, por exemplo. Isto, visto que
aqui, ao contrário dos outros casos de homicídio, é a vítima que instiga o ato: ou seja, é a vítima que
coloca no agente a vontade de praticar o facto com esse pedido – pelo que não é preciso que essa
vontade, além disso, tenha uma natureza altruísta.
Este pedido tem, no entanto, de ser mantido até a pessoa morrer: significa isto que, se a
qualquer momento a vítima desistir, o agente não pode prosseguir com a conduta Se a execução já
estiver em curso quando a decisão muda, o agente tem de parar ou fazer todos os seus esforços para
que o resultado “morte” não se manifeste (ex: ligar para o 112).

SITUAÇÃO DE ERRO:
Na situação em que o agente mata, mas fá-lo sem o conhecimento de que existia um pedido
da vítima para o fazer, existe um erro de ignorância: assim, a partir do momento em que o agente
não sabe do pedido, não se pode determinar pelo mesmo – logo, não se poderá enquadrar neste artigo.
Já no caso em que o agente, pensando que há esse pedido, age conforme o mesmo e mata a
vítima, a situação é diferente. Uma parte da doutrina considera que o agente será punido em concurso
pela tentativa de homicídio a pedido da vítima, e homicídio negligente (com o enquadramento do
artigo 16º, nº2 CP). No entanto, e concentrando a análise na dimensão de ilicitude, tal solução não
parece ser a mais acertada: apesar de o erro incidir sobre a existência do pedido, o agente acaba por
ter dolo direto de matar, na medida em que age com a intenção de matar a vítima – o que faz com que
seja difícil de enquadrar tal ação na figura do homicídio negligente. Assim, outra parte da doutrina
considera que tal erro é irrelevante, dado que o interessa é que o agente apenas agiu determinado pela
ideia do pedido.
No entanto, refere-se, ainda, a posição de Silva Dias. Este entende que o erro, nestas situações, não
se refere ao facto de se estar a matar alguém, mas sim ao facto de não existir pedido, pelo que não se
pode enquadrar no artigo 134º CP – isto, porque apesar de o agente agir com a motivação do pedido,
a verdade é que este não existe; ora, não existindo, também não haverá a circunstância que faz com
que a ilicitude seja diminuída. Portanto, para ele, ou se verificam as circunstâncias do homicídio
privilegiado por compaixão (artigo 133º CP), se se verificar, no agente, um sentimento de compaixão
para com a vítima e o seu aparente sofrimento; ou o mesmo será um homicídio simples (artigo 131º
CP), com as circunstâncias do artigo 72º, nº2, alínea b) do CP relativas à diminuição da culpa (mas
não da ilicitude que, como já vimos, não pode ser aqui diminuída).
➔ Tal posição parece, para a professora, ser a mais acertada, por ser aquela que tenta dar resposta à
realidade.

HOMICÍDIO A PEDIDO DA VÍTIMA POR OMISSÃO?


Pergunta-se, também, se se poderá ter um homicídio a pedido por omissão – ou seja, em que
a morte decorre dessa omissão (ex: situação de intervenções médicas). Aqui, poder-se-ia ter a situação
de uma omissão impura, na medida em que, de acordo com o Código Deontológico dos Médicos,
estes têm uma posição de garante para fazer todos os esforços para que a pessoa sobreviva.
No entanto, e de acordo com a Lei nº25/2012, o regime do Testamento Vital faz cessar esse dever de
garante do médico pela manifesta vontade do paciente – ou seja, pelo seu pedido. Consequentemente,
neste caso, não se poderá enquadrar a morte do paciente como um crime de homicídio a pedido por
omissão, na medida em que tal possibilidade está legalmente prevista como lícita (ex: quando a
pessoa, conscientemente, recusa o tratamento, sob pena de praticar o crime do artigo 156º CP; ou,
estando inconsciente, tiver deixado instruções claras para não ser ressuscitado).
Outra situação será aquela em que a pessoa está inconsciente e não deixou tais instruções.
Ora, aqui, Figueiredo Dias defende a tese da recriação da vontade da pessoa – no entanto, esta posição
foi formulada em momento anterior ao regime da Lei nº25/2012. Ora, a partir do momento em que
há a possibilidade da pessoa deixar testamento vital e, assim, manifestar a sua vontade, não faz muito
sentido argumentar que essa recriação seja feita – quando a pessoa, em momento oportuno, a podia
ter manifestado, mas não o fez.
➔ NOTA: Isto poderá ter de ver, no entanto, com o modo ou tipo de tratamentos que se está a pensar.

Incitamento ou Ajuda ao Suicídio (artigo 135º)


Como introdução, denota-se que o artigo 135º CP, ao prever “quem incitar ou prestar ajuda”,
faz referência às modalidades de comparticipação criminal, nomeadamente, ao instigador e ao
cúmplice – com diferença em que, aqui, este instigador está a instigar não um facto ilícito (ex:
instigar no roubo de um banco); mas, sim, um facto lícito. Ou seja, está a colocar na cabeça da vítima
a decisão de fazer uma decisão que reporta a um facto lícito, já que o suicídio não é punível na ordem
jurídica.
Ora, não sendo este facto ilícito, será, então, este crime um crime de resultado? No caso de se
“prestar auxílio”, o crime não será de resultado, na medida em que a vítima já se decidiu suicidar –
não por causa do agente, mas por vontade própria, não havendo um desencadear de acontecimentos
que tenha sido originado no agente. No entanto, no caso de “incitar”, já terá de se provar que existe
uma correspondência entre a tentativa do suicídio e esse incitamento: ou seja, é necessário que a
origem da vontade da vítima esteja no incitamento do agente – mas isso não significa que o suicídio
seja o resultado, na mesma, deste crime.
Este é, então, apenas uma condição objetiva de punibilidade: ou seja, é uma condição
superveniente/posterior à consumação do crime, fora do dolo – condição essa exigida para que o
Estado possa exercer o seu poder punitivo. Isto é, o crime está consumado; mas ainda é preciso
acontecer algo mais para que o Estado possa punir o agente pelo mesmo (como dito no nº1, última
parte: “se o suicídio vier efetivamente a ser tentado ou a consumar-se”). Consecutivamente, conclui-
se que este crime é um crime de mera atividade.
Além disso, em relação ao bem jurídico “vida” a ser protegido, este é um crime de perigo
abstrato-concreto: é necessário, para que este possa ser punido, demonstrar que existiu um
incitamento (o perigo); e, além disso, que tal incitamento tem um nível de perigosidade suficiente
para a vida – ao ponto de a pessoa, no mínimo, tentar suicidar-se: será esta conduta que materializa o
perigo da ação de incitar. Além disso, e não existindo este crime na forma negligente, é sempre
necessário que exista dolo por parte da pessoa que incita/ajuda.

INCITAMENTO OU AJUDA VS. HOMICÍDIO A PEDIDO:


A diferença entre estes dois tipos legais estará relacionada com a teoria do domínio do facto
– ou seja, é determinar por quem detém o domínio do ato letal, que de forma imediata e irreversível
produz a morte. No homicídio a pedido da vítima, o protagonista do acontecimento é o agente que
produz a morte de outra pessoa; enquanto no incitamento e no auxílio, o protagonista do
acontecimento é o próprio suicida.
Por outras palavras, para se falar de homicídio a pedido da vítima, a vontade de cometer suicídio tem
de originar da vontade do agente, e não porque este está a ser coagido por fatores externos (ex: tentar
matar-se não porque quer, mas para impedir outro mal – “Baleia Azul”). A vítima não pode, assim,
estar a ser instrumentalizada: situação em qual existe autoria mediata por parte do agente, na medida
em que este acaba por “obrigar” a vítima a matar-se, gerando-se tal vontade de o fazer nele.
Além disso, o ato só se enquadra no incitamento ou ajuda ao suicídio quando tal suicídio (ou
tentativa de suicídio) só acontece pelas ações da vítima, sendo esta a pôr em prática a derradeira causa
que, em princípio, conduzirá à morte. É a vítima quem decide, em última instância, iniciar o percurso
fatal – continuando, depois, a ter o domínio de facto até morrer, na medida em que consegue parar o
curso de ação e impedir que o resultado “morte” aconteça (ex: Caso Gisela). Já no homicídio a pedido
da vítima, apesar de a vítima poder retrair o seu pedido, a decisão de pôr fim à sua vida fica na
dependência de um estranho a ela – exatamente, aquele a quem se pede que a determine –, deixando
de ter o domínio sobre o curso das ações e as consequências do seu exaurimento.

Caso Gisela:
A e a vítima Gisela estavam apaixonados um pelo outro. Como o namoro era proibido pelos pais de
Gisela, esta decidiu suicidar-se e A acordou com ela suicidarem-se em conjunto. Para o efeito, A
montou um dispositivo que conduzia os gases tóxicos do escape para dentro do carro. Estando ambos
dentro do carro, A pôs o motor a trabalhar e manteve o pé no acelerador até ficar inconsciente.
Ambos foram encontrados inconscientes, mas só A sobreviveu. Quid Iuris?
Aqui, A poderá ser punido pelo crime de incitamento ou ajuda ao suicídio, como disposto no
artigo 135º CP, e não pelo crime de homicídio a pedido da vítima. Isto, precisamente porque Gisela
manteve, até à sua morte, o domínio fáctico do que estava a acontecer, na medida em que, caso
mudasse de ideias, poderia abrir a porta do carro e sair do mesmo – impedindo, assim, que o resultado
“morte” se desse. Além disso, existindo um pacto entre os dois para praticar esta ação, enquadrar esta
ação como homicídio seria dizer que existiu um homicídio em coautoria contra as suas próprias vidas
– algo que acabará por ser bastante contraditório.
Aliás, tendo sido uma coisa planeada entre ambos, o plano foi executado tal como planeado,
não tendo havido uma ação de execução do mesmo que desviasse esse domínio para fora do campo
de domínio da vítima. E mais, a execução da morte de A ir-se-ia confundir com a execução d morte
de Gisela, na medida em que ambas iriam acontecer ao mesmo tempo – o que não se verificaria, por
exemplo, num caso de homicídio-suicídio, em que o agente primeiro mata a vítima, e só depois se
mata a si, em duas ações separadas.
Concluindo, ambos os participantes conservam, até ao fim, o domínio de conseguirem pôr fim
ao curso dos acontecimentos – pelo que se enquadra tal ação no crime de incitamento e ajuda ao
suicídio, e não no crime de homicídio a pedido da vítima.

INCITAMENTO AO SUICÍDIO DE MENORES:


Já relativamente ao nº2 deste artigo, existe um agravante de pena pelo facto de a vítima deste
crime ser menor de idade: “Se a pessoa incitada ou a quem se presta ajuda for menor de 16 anos ou
tiver, por qualquer motivo, a sua capacidade de valoração ou de determinação sensivelmente
diminuída, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos”.
A doutrina diverge na discussão sobre a existência deste limite de idade, relacionada com a
teoria do domínio do facto. Ora, se a vítima não pode estar a ser instrumentalizada, importa, para
aferir tal coisa, perceber qual a capacidade mental da mesma. Isto, porque poderá existir certas idades
em que esta é mínima e, consequentemente, a criança nunca teria a ideia de cometer suicídio por si
mesma – pelo que se estaria sempre perante casos em que o incitador tem autoria mediata (e não
de mera instigação). No entanto, por outro lado, terá de se considerar a possibilidade de casos de
depressão nas crianças, que poderão fazer com que este limite fixo falhe.
Assim, a possibilidade (ou não) de se instigar um menor a pôr termo à própria vida tem gerado
grande discussão na doutrina portuguesa.
Figueiredo Dias, por exemplo, apela ao princípio da autorresponsabilidade para concluir que um
agente menor de 16 anos não pode ser juridicamente responsabilizado pelo facto – e nessa medida,
deve ser visto como intermediário instrumentalizado pelo homem-de-trás. Contudo, em declarações
posteriores, admitiu a possibilidade de incitamento ao suicídio de inimputáveis, aceitando
expressamente como mero incitamento hipóteses em que a vítima tem menos de 14 anos. No seu
entender, é necessário que o juiz proceda à avaliação do caso em concreto, de forma a aferir se o
suicida tinha, ou não, o domínio do facto – por isso, mostra-se contra a introdução de uma presunção,
no sentido de até aos 14 anos se estar sempre perante situações de autoria mediata de homicídio.
Bárbara Brito partilha da mesma lógica, e vai mais longe: defende que, estando o critério de idade
relacionado com o facto de a vítima ter a sua controlada pelo incitador, poder-se-á dizer que esta é
um instrumento por parte do incitador desde que isso aconteça – logo, tal controlo poderá ocorrer em
qualquer idade, não se restringindo a um limite como o de 16 anos.
Já segundo Paulo Pinto de Albuquerque, nos casos em que a vítima não tem capacidade de valoração
e determinação, não detendo domínio do facto – defendendo, aqui, o critério dos 16 anos, e
salvaguardando que, mesmo com o atingir dessa idade, pode não se atingir a mencionada capacidade
–, afasta-se a liberdade da decisão de suicídio, sendo que nestes casos não se estará diante de um
incitamento ao suicídio, mas sim de autoria mediata de homicídio.
Por fim, Conceição Cunha indaga o sentido de não se reconhecer a um menor de 16 anos capacidade
para dispor dos seus bens, nem para pedir para ser morto (ao abrigo do artigo 134º CP) – mas, no
entanto, reconhecer-se capacidade para o mesmo dispor da própria vida. Questiona até “por que se é
mais exigente quanto à capacidade da vítima que pede para ser morta, por comparação com a
capacidade de quem se mata a si próprio por influência decisiva de terceiro”.

MORTE MEDICAMENTE ASSISTIDA:


Importa referir que a questão da eutanásia está enquadrada no artigo 134º – crime de homicídio
a pedido –; enquanto o suicídio medicamente assistido está enquadrado no artigo 135º – crime do
auxílio ao suicídio. A diferença será que, no primeiro caso, o doente é morte pelo médico (ex: este
injeta-lhe algo); enquanto no segundo, o médico fornece ao doente os medicamentos, sendo o próprio
doente que os toma e, consequentemente, morre.
No Acórdão do TC 5/2023, que incidia sobre o Decreto nº 23/XV, da Assembleia da
República, o tribunal entendeu que a eutanásia não viola o direito à vida (artigo 1º CRP): tal direito,
embora quase absoluto, poderá ser limitado quando em conflito com o princípio da autodeterminação
e o da dignidade humana. Tal argumento é dado, porque a pessoa não deverá ser obrigada a viver
quando não se encontra em situações condignas (ex: doença física ou debilitante), podendo e devendo
(até no âmbito da autonomia humana) ter uma possibilidade de acabar com a sua vida.
No entanto, para isso, a pessoa poder-se-á sempre matar, não sendo o suicídio infligido pelo próprio
um crime. Discute-se, aqui, então, a dimensão do suicídio pessoal vs. suicídio social: a intervenção
de um terceiro no ato de suicídio implica que essa ação sai da esfera mais pessoal da vítima, e se
sobreponha em outros, carregando-os a possibilidade de o fazer.
➔ Outros argumentos que são usados contra a eutanásia são: 1) o facto de grande parte dos médicos
não estar predispostos a fazer tal ação, invocando objeção de consciência (como, aliás, acontece
com o aborto); e 2) o facto de ser difícil perceber a própria vontade do doente, na medida em que
esta poderá ser fruto não da sua livre vontade, mas sim condicionada pela pressão social de o fazer
e deixar de ser um “peso” para a sociedade (família, amigos, etc.).
A eutanásia será, então, necessária em situações em que a pessoa não se consegue,
fisicamente, matar; assim como pode ser utilizada para dar à pessoa uma “morte digna”, através de
sedação ou outros instrumentos menos invasivos (que, por exemplo, um tiro ou uma overdose) –
apesar deste segundo argumento já ser mais fraco, no que toca ao que é permitido na esfera restrita
de “suicídio social”.
Ora, no diploma proposto anteriormente (Acórdão do TC 123/2021, que se debruça sobre o
Decreto n.º 109/XIV da Assembleia da República), não estava prevista nenhuma hierarquia entre a
possibilidade de suicídio medicamente assistido e a eutanásia. O novo diploma de 2023,
provavelmente já considerando este raciocínio de necessidade e proporcionalidade para limitar o
direito da vida (e o dilema “suicídio pessoal vs. suicídio social”), estabelece que, conseguindo-se
colocar término à vida da pessoa através do suicídio medicamente assistido, não fará sentido enredar
pela via da eutanásia, mais intensa por forçar a intervenção direta de um terceiro. Consequentemente,
a eutanásia só estaria permitida nas situações em que a pessoa, por motivos físicos, não se consegue
suicidar autonomamente, mesmo tendo os meios, fornecidos pelo médico, para o fazer.
No entanto, e não tendo a lei da eutanásia ainda entrado em vigor, discute-se a punição, dentro do
enquadramento legal atual, da pessoa que pratica eutanásia em alguém que não consegue provocar a
sua própria morte. Teresa Quintela defende que este facto de a pessoa não conseguir provocar a sua
própria morte seria visto como uma atenuação ou exclusão da culpa do agente, justificando-se a ação
com o consentimento da vítima. No entanto, legalmente, a figura do consentimento não vale para
direitos considerados largamente indisponíveis – nomeadamente, o direito à vida –, pelo que o agente
continuaria a ser punido pelo crime de homicídio a pedido da vítima.

Homicídio Negligente (artigo 137º)


Os homicídios anteriormente falados apresentam-se todos como crimes dolosos, dado ser essa
a regra geral em Direito Penal, nos termos do artigo 13º CP: para um crime ser punido por negligência,
essa possibilidade terá de ser expressamente prevista – possibilidade que o artigo 137º vem, então,
originar. O homicídio negligente é, diferentemente do que acontece com os homicídios dolosos, uma
figura predominante na maior parte dos homicídios verificados em Portugal (ex: acidentes de
trabalho, acidentes rodoviários).
Além disso, este artigo vem, ainda, introduzir um conceito novo no seu nº2: o conceito de negligência
grosseira. Esta é uma forma mais grave da negligência, que não está prevista na parte geral do CP,
aplicada aos casos em que a conduta do agente aumenta de tal forma o risco existente para o bem
jurídico, que qualquer pessoa poderia prever que este se iria concretizar.
➔ No entanto, importa realçar que o artigo 137º não se aplica quando exista previsão específica de
agravação pelo resultado: situações em que um resultado verificado não está compreendido dentro
daquilo que é o dolo do comportamento principal.
Por fim, discute-se, também, a punibilidade de uma conduta negligente que provoca várias
mortes: o agente será punido em concurso efetivo, por vários homicídios negligentes? Ou será punido
apenas por um homicídio, na medida em que há apenas uma conduta negligente, proveniente apenas
de uma violação do dever de cuidado? Esta última posição seria suportada pelo princípio da culpa: o
agente não deverá ser punido várias vezes pela mesma conduta. No entanto, denota-se que nestas
situações, existem vários bens jurídicos a ser lesados – nomeadamente, várias mortes imputadas
àquela ação –, pelo que a tendência jurisprudencial e doutrinária será punir o agente em sede de
concurso efetivo, dado que, da mesma conduta, se produzirem diferentes resultados, que terão de ser
devidamente acautelados.

PRESSUPOSTOS:
Para se condenar alguém por homicídio negligente, é necessário que três requisitos estejam
preenchidos: 1) violação de um dever de cuidado; 2) relação de conexão entre essa violação e uma
conduta do agente; e 3) o resultado “morte” proveniente dessa conduta. Tal resultado é um requisito,
dado que a “tentativa de homicídio negligente” não é punível, ao abrigo do artigo 23º, nº1.
Relativamente à violação de um dever de cuidado, este poderá ser de fonte normativa ou de
fonte “geral”, na medida em que seria razoável dizer que este existia (ex: será razoável dizer que
quem lida com fontes de perigo, terá de o fazer de forma cuidadosa). Tal violação poderá ser tanto
dolosa como negligente: o agente poderá tanto querer violar esse dever de cuidado, como o poderá
ter feito de forma inconsciente.
Relativamente à conduta do agente, esta terá de ser, sempre, negligente: ou seja, o agente
não pode ter representado a possibilidade de, com aquela conduta – e não com aquela violação do
dever de cuidado –, o resultado “morte” se verificar, como uma possibilidade séria (negligência
consciente); ou, até, como uma possibilidade de todo (negligência inconsciente).
No entanto, no âmbito da negligência, existe o princípio da confiança. Ou seja, existem situações em
que se pode presumir que não se tem de tomar cuidados, dado se poder esperar que as outras pessoas
atuem como deveriam (ex: um condutor pode presumir que, se estiver verde, pode passar com a
confiança de que os outros carros estarão parados). Este princípio não é, no entanto, absoluto,
dependendo das circunstâncias e da possibilidade de o condutor moldar a sua conduta para superar a
falta de dever de cuidado do outro (ex: numa situação em que um peão está a circular fora da
passadeira, o condutor não lhe pode bater só porque este violou o seu dever de cuidado).
➔ Por exemplo, numa cirurgia, o cirurgião não tem de ir verificar ele próprio que os utensílios estão
esterilizados, porque pode confiar que quem tem tal tarefa a seu encargo, dentro da equipa médica,
cumpriu o seu dever – a não ser, por exemplo, se vir que o bisturi está todo sujo antes de o usar.
Este raciocínio já não se aplica, no entanto, ao contexto de um acidente em autoestrada, em que o
agente se encontra a andar em excesso de velocidade. Neste caso, o perigo que potencia a norma do
excesso de velocidade será o perigo de acidentes nas autoestradas. Ora, a violação do dever de cuidado
de andar à velocidade permitida aumenta um risco que, depois, vem a ser concretizado no resultado
“morte”, ainda que indiretamente – o risco de haver acidentes entre automóveis. Consequentemente,
estar-se-á sempre perante uma situação de negligência pois era exigível ao agente ou que levasse a
representação desse resultado a sério (negligência consciente), ou que representasse esse resultado de
todo (negligência inconsciente) – aliás, poder-se-ia dizer que existe aqui uma negligência grosseira.
➔ O mesmo já poderá não ser dito numa situação de acidente na autoestrada com um peão (ex:
contexto do acidente do ex-Ministro Eduardo Cabrita), visto que aqui será possível argumentar
que o agente teria a confiança de que, mesmo andando em excesso de velocidade, não lhe era
exigível prever o embate num peão – dado que na autoestrada os peões estão proibidos de andar.
Este argumento poderá ser vetado, no entanto, se se tomar em conta as situações dos trabalhadores
da estrada; ou, ainda, de pessoas cujos veículos avariaram, e que se encontram fora do mesmo
para chamar ajuda.
Relativamente ao resultado “morte”, este será, mais uma vez, imputado à conduta do agente,
e não à violação do dever de cuidado, prévia a esta – isto, porque a morte, em si, resulta dessa conduta,
e não apenas da mera violação do dever de cuidado. Por exemplo, numa situação em que A está a
andar de carro em excesso de velocidade, mas no seu trajeto atropela B e este morre. Ora, a morte de
B resulta, diretamente, do facto de o carro de A bater nele, e não especificamente da violação do dever
de cuidado (que, neste caso, seria de fonte normativa: contraordenação) – até porque A podia ter feito
o seu trajeto todo em excesso de velocidade e não atropelar ninguém. Significa isto que apesar de a
violação do dever de cuidado poder ser dolosa, a conduta não é, porque A não bate em B de propósito
– pelo que, consequentemente, não se está perante um homicídio doloso, mas sim negligente.
➔ Denota-se que não existe diferença relativamente à imputação objetiva: nos casos de homicídio
negligente por ação, a imputação do resultado à conduta do agente faz-se em moldes muito
semelhantes aos que são utilizados nos restantes homicídios.
No entanto, para que isto se verifique, é necessário estabelecer uma relação anterior entre a conduta
de bater com o carro e a violação do dever de cuidado, dado que será essa violação a “justificação”
da conduta ter acontecido. Dito de outra forma, o resultado “morte” é imputado subjetivamente à
conduta de A ter atropelado B, conduta essa que, por sua vez, é crime dado originar de uma violação
desse dever de cuidado.
➔ Assim, se se demonstrasse que mesmo que A estivesse a andar dentro dos limites legais, o
atropelamento aconteceria (algo muito difícil – ex: B cai da árvore mesmo para o meio da estrada),
não existiria tal relação entre a conduta do agente e a violação do dever de cuidado, até porque
este nem foi violado. Consequentemente, afastar-se-ia o homicídio negligente.

CONCEITO DE AUTOR:
No caso da negligência, existe uma modalidade ou um conceito de autor que é distinto do
conceito verificado nos crimes dolosos. Ao passo que neste último o conceito de autor é mais
restritivo a apenas quem tem o controlo do facto (podendo depois os restantes ser punidos como
participantes); no caso dos crimes negligentes, são punidos como autores todos aqueles que violarem
o dever de cuidado e deem um contributo causal para o resultado. Significa, isto, que nos crimes
negligentes, não existe punição de instigadores, sendo estes punidos como autores.
Para ilustrar isto, Figueiredo Dias dá um exemplo bastante parecido ao do acidente do ex-
Ministro Eduardo Cabrita: A ordena o seu motorista que exceda o limite de velocidade;
consequentemente, o motorista atropela e mata um peão. Ora, se fosse um crime doloso, A seria
punido como instigador; mas num crime negligente, A já será punido como autor. Outro exemplo
será deixar, durante uma discussão, uma arma carregada perto de uma pessoa embriagada.

CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA


Crime de Ofensa à Integridade Física (artigo 143º)
BEM JURÍDICO:
Neste crime (semipúblico), os bens jurídicos tutelados serão “o corpo [integridade física e
moral] ou a saúde de outra pessoa” (artigo 25º CRP). Ora, em termos de condutas típicas, estes bens
jurídicos podem ser avaliados separadamente.
Por um lado, o bem jurídico “saúde” implica que a conduta do agente tenha uma consequência
negativa na saúde da pessoa, nomeadamente que lhe cause um estado de doença, física ou psíquica –
que se acaba por concretizar no artigo 144º CP (“afetar de maneira grave …” e “anomalia psíquica
grave e incurável”). Estas, assim, pressupõem que a conduta cause doença ou diminuição das
capacidades físicas ou mentais: por exemplo, a mera sujeição a ruído permanente não é uma ofensa à
integridade física – só será enquadrada como tal se o ruído tiver como consequência insónias, perda
de audição, etc.
Por outro lado, o bem jurídico “corpo” é aquele que é mais presente quando falamos no crime de
ofensa à integridade física. No entanto, dizer isto não significa que este exija as tais consequências
negativas faladas anteriormente: para este crime se consumar, exige-se que se cause um dano ao bem
que é a integridade física – daí ser um crime de dano –, mas esse dano não pressupõe que a conduta
deixe, por exemplo, uma marca no corpo ou qualquer outra lesão (no sentido lato). A integridade
física é, assim, ofendida a partir do momento em que o agente entra em contacto, de forma violenta,
com o corpo da vítima. Esse é o entendimento do TC, que confirmou que uma bofetada se enquadra
sempre enquanto ofensa à integridade física, mesmo não ficando nenhum traço da mesma.
➔ De notar que este crime abriga a ofensa a próteses ligadas ao corpo; já quando a próteses não
ligadas, mas necessárias à pessoa (ex: precisa dela para andar), a conduta será mais enquadrada
no crime de violência doméstica ou de maus-tratos.
Denota-se que este bem jurídico é, de acordo com o artigo 149º CP (nos termos do artigo 38º
CP), um bem disponível: a pessoa pode consentir a que a sua integridade física seja ofendida, sem
que isso seja considerado crime (ex: jogadores de boxe; cirurgias, exceto as previstas no artigo 150º
CP). No entanto, este não será o único critério para decidir da disponibilidade do crime: segundo o
nº2, esta ofensa não pode ser contrária aos bons costumes.
Isto leva uma parte da doutrina a concluir que as ofensas corporais graves não estão aptas a ser
justificadas por via de consentimento, a menos que haja um motivo que afaste esta cláusula da
avaliação dos bons costumes. No entanto, sendo este direito disponível, a ajuda à automutilação já
não será criminalizada – diferente do que acontece com o bem jurídico “vida”, segundo o qual existem
os crimes de ajuda ao suicídio e de homicídio a pedido da vítima.
➔ Estes “bons costumes” trazem outra questão: nomeadamente, a questão das “palmadas” – ofensas
à integridade física que não são típicas, na medida em que sejam socialmente adequadas. Tal tema
será desenvolvido na discussão do crime de violência doméstica, mais à frente.

OFENSA CORPORAL VS. HOMICÍDIO:


Discute-se, também, a existência de um concurso aparente ou efetivo entre o crime de ofensa
à integridade física e o homicídio – isto, porque para matar alguém, é necessário ofender-lhe o corpo
de uma maneira ou outra.
Ora, para existir um concurso aparente, o agente tem de ter o dolo de morte, na medida em
que ele lhe provocou tais ofensas com o objetivo de o matar. É possível, no entanto, haver situações
em que existe um distanciamento espácio-temporal entre a prática das ofensas corporais e a prática
do homicídio, suficientemente amplo para que a vontade do agente se renove.
Assim, por exemplo, se o agente dá três facadas na vítima no espaço de 10 minutos, o facto de existir
duas ofensas corporais não significa que o distanciamento espácio-temporal entre elas não seja
suficiente para renovar a sua vontade: todas as ofensas corporais foram feitas para matar a vítima,
pelo que existe concurso aparente – o crime de homicídio absorve toda a situação.
Se, pelo contrário, o agente raptar e torturar a vítima para que esta lhe diga algo e, depois, vendo que
esta não o vai fazer, a mata, já existe concurso efetivo: as duas ofensas corporais foram feitas com
objetivos diferentes – primeiro, o agente tinha a vontade de magoar a vítima para a obrigar a falar;
depois, o agente já tinha a vontade de o fazer para a matar. Assim, o objeto da vontade é diferente,
sendo que o distanciamento espácio-temporal entre elas fez com que esta não se renovasse, mas que
mudasse completamente.
Consequentemente, no caso de existir concurso aparente e a vítima não morrer, o agente será
condenado por tentativa de homicídio: a morte não ocorreu, mas as ofensas corporais feitas (ex: três
facadas) foram feitas com o dolo de morte, ou seja, para matar essa pessoa. No entanto, se o agente
provocou ofensas físicas com o objetivo de matar a vítima, mas acaba por desistir de forma relevante,
e a vítima sobrevive, já apenas subsistem as ofensas corporais: isto, porque o dolo da morte implica
o dolo das ofensas físicas, na medida em que quem quer matar alguém com uma facada quer,
implicitamente, dar uma facada a esse alguém – ora, com a desistência, fica-se apenas com o dolo das
ofensas corporais. Consequentemente, poder-se-á punir o agente pelo crime de ofensa à integridade
física, sem ter de recorrer ao concurso efetivo com tentativa de homicídio, visto que o dolo das ofensas
corporais está, de certa forma, abrangido pelo dolo da morte, existe tal dolo para o crime pode ser
apenas considerado o de ofensa à integridade física.

Violência Doméstica (artigo 152º)


O crime de violência doméstica, além de estar presente no artigo 152º CP, é encontrado,
também, na Convenção de Istambul (2011) – Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e
o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica –; e na Lei nº112/2019, que
estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência
das suas vítimas.

PRESSUPOSTOS:
Segundo o Código Penal, este crime exige a existência de uma relação entre o agressor e a
vítima, que daria (abstratamente) origem a um dever de cuidado mais especial. Consequentemente,
por um lado, tal dever faz com que os atos de violência, nesse contexto, sejam mais graves; e, por
outro lado, reconhece-se que as relações íntimas conseguem e podem ser mais perigosas,
especialmente para as mulheres.
Assim, a maior parte das vítimas são cônjuges ou ex-cônjuges; mas também se abrange, na alínea b),
outras relações – desde relações análogas ao casamento, até a simples namoros, tendo a ideia de
coabitação sofrido uma atenuação nestes últimos anos.
Além disso, a vítima poderá, também, ser alguém que tem a parentalidade em conjunto de alguém
com o seu agressor (alínea c), não se exigindo, mais uma vez, o requisito da coabitação; assim como
o próprio descendente biológico, adotivo ou por casamento (alínea e). Significa isto que a situação de
criança, que passa um fim de semana com o pai e que sofre maus-tratos deste, também se enquadra
neste crime.
O requisito da coabitação já se encontra nos casos da alínea d): ou seja, nos casos de pessoas
particularmente indefesas – nomeadamente, casos de filhos que batem nos pais. Esta exigência de
coabitação é criticada, na medida em que deixa bastantes casos desta natureza de fora; de qualquer
das formas, tais casos poderão ser sempre enquadrados no crime de ofensas à integridade física.
Se uma conduta prevista como violência doméstica for praticada em frente a um menor, que
coabite com a vítima ou com a vítima e o agressor (domicílio comum), tal circunstância será, segundo
o nº2, alínea a), uma qualificação da mesma. No entanto, esta poderá ser, também, considerada
autonomamente como um segundo crime de violência doméstica, devido aos maus-tratos psíquicos
provocados na criança ao assistir a tal conduta.
Este nº2 também prevê, na sua alínea b), a qualificação da conduta em casos da chamada “revenge
porn” – que surgem, tipicamente, depois da cessão de relacionamentos amorosos.
O nº3 do artigo prevê situações de agravamento da pena pelo resultado (negligente):
nomeadamente, se dos maus-tratos resultar ofensa à integridade física grave (alínea a); ou morte
(alínea b). Aqui, denota-se que a moldura penal da violência doméstica será aplicável, se não se
aplicar outra mais grave – regra de subsidiariedade. Além disso, acaba por haver, também, entre os
dois crimes (ofensa à integridade física vs. violência doméstica), uma relação de consumação – sendo
que o crime de violência doméstica acaba por conseguir abarcar todo o dolo da ação, sem se precisar
de recorrer, também, ao crime de ofensa à integridade física.
Por fim, os nº4 e 5 preveem penas acessórias específicas, que também se aplicam caso o agente venha
a ser punido por pena mais grave, por via dessa regra de subsidiariedade (“incluindo aqueles em que
couber pena mais grave por força de outra disposição legal”).

Discussão sobre o bem jurídico protegido


Como foi visto, este crime prevê a criminalização dos maus-tratos, não no sentido do artigo
152º-A (tendo as duas matérias sido autonomizadas em 2007), mas sim num contexto de uma relação
familiar – ou seja, em que há uma subordinação/posição de domínio de uma pessoa em relação à
outra. Em termos de comportamento típico, este crime abrange não só os maus-tratos físicos e
psíquicos, como também a conduta de “impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e
patrimoniais próprios ou comuns”.
Devido a esta adição, em 2021, questiona-se se o bem jurídico defendido aqui é o mesmo
defendido na previsão do crime de ofensa à integridade física – visto que esta alínea parece ir mais
além, protegendo os bens jurídicos “dignidade e liberdade da pessoa humana”. Nuno Brandão
distingue os crimes, defendendo que o crime da violência doméstica é um crime de perigo: ou seja,
não é preciso haver um dano efetivamente sobre o corpo ou a saúde para que este seja consumado –
os maus-tratos, em si, constituem um perigo para que esse dano se concretize. De todo o modo, esta
inclusão de 2021 faz com que, no mínimo, se tenha de reconhecer que existem mais bens jurídicos a
ser defendidos no crime de violência doméstica, que vão além dessa integridade física e psíquica.

PODER DE CORREÇÃO:
Dentro do crime de violência doméstica, discute-se a existência (ou não) do poder de correção:
nomeadamente, discute-se se, no âmbito de um poder de correção, atribuído essencialmente aos pais,
os castigos físicos às crianças poderão ser justificados pela sua existência.
Por um lado, há quem defenda que este poder de correção não existe, mas que certos castigos físicos
acabam por ser condutas banais, que não têm relevância penal – isto, baseando-se na ideia de que as
pessoas, pais ou não, não são de ferro e poderão “perder a cabeça” de vez em quando.
Por outro lado, há quem defenda a existência desse poder, quase como um direito dado aos pais:
portanto, esta conduta é justificada desde que seja exercida dentro deste poder de correção, ou seja,
desde que tenha uma finalidade educativa, e que seja exercida com proporcionalidade entre a ofensa
corporal e o que se pretende ensinar.
Esta segunda posição defende, então, que nem todas as ofensas corporais estarão consideradas
no âmbito do poder de correção – mas qual será o critério para distinguir os castigos físicos de
genuínas ofensas à integridade física?
A doutrina diverge. Há quem ressalve o critério já mencionado: o poder de correção abrange a
possibilidade dos pais de bater nos filhos, desde que a conduta em si não seja excessiva (ex: bofetada)
ou de grande relevo a nível da ofensa feita, e se a mesma tiver a tal finalidade educativa (ex: palmada).
Já outra parte defende que estes castigos físicos provocam mais consequências negativas do que
consequências positivas, na medida em que não existe nenhuma finalidade educativa com os mesmos
– a não ser, no entanto, em situações de perigo ativo, em que é preciso fisicamente afastar esse perigo
da criança, que não percebe o mesmo (ex: dar uma palmada nas mãos de uma criança que ia meter os
dedos na tomada). Ou seja, aqui, defende-se que as conceções sociais sobre o poder de correção
evoluíram ao ponto de excluir tais castigos físicos do âmbito do mesmo.
No fundo, discute-se, assim, a existência da tal finalidade educativa – como é que se justifica a
mesma? Porque uma coisa será dizer que certa conduta não é crime por ser insignificante; outra será
dizer que essa conduta não é crime porque está justificada por essa finalidade educativa. Ora, a
situação de uma palmada – situação mais comum –, acaba por ser, quase sempre, uma manifestação
de exasperação por parte dos pais, pelo que será difícil encontrar nesta uma finalidade educativa: esta
apenas ensina à criança que, se se comportar assim, recebe um castigo físico – e não, propriamente,
porque é que não se deve comportar daquela maneira.
De qualquer das formas, em quase todas as situações, as condutas terão de ter um limiar
mínimo de relevância para que sejam consideradas crimes – até ao abrigo, em certo sentido, do
princípio da intervenção mínima do Direito Penal. Considera-se, então, que uma palmada não será
suficientemente importante para ir a tribunal, visto que a criminalização da violência doméstica e dos
maus-tratos aos filhos foi feita tendo em consideração outros tipos de comportamentos (ex: bofetadas,
dar com o cinto, murros, etc.).
Consequentemente, tal não criminalização, na maior parte da jurisprudência, não se justifica pela
existência de um poder de correção – até porque este não se encontra expressamente previsto.
Justifica-se, sim, pelo facto de não atingirem esse limiar de relevância que está previsto seja na norma
sobre violência doméstica, seja na norma sobre as ofensas corporais.

Crime de Perseguição / Stalking (Artigo 154º-A)


O crime de perseguição veio a ser incluído no Código Penal, depois do caso de perseguição,
envolvendo o vocalista dos UHF, ter ganho grande relevância. Este é um crime doloso, não podendo
ser praticado de forma negligente: ou seja, quem pratica o crime de perseguição tem de entender que
está a cometer tal crime. Isso traz dúvidas acerca da sua tipicidade: como é que se percebe o limiar
entre o assédio e a “perseguição” romântica?
No caso do vocalista, por um lado, o facto de a fã lhe ter dado um livro perfumado” com páginas
indicativas para este ler seria uma situação de fronteira, dado que isto poderia ser visto pela fã como
um mero gesto amoroso. Assim, nestes casos, seria aconselhado (mas não necessário, a nível da
tipicidade do crime), que a vítima esclareça que tal atenção não era desejada. Isto porque, a partir daí,
todas as condutas praticadas pelo agressor serão vistas como dolosas. Por outro lado, existem
condutas em que esta situação de fronteira claramente já não existe – nomeadamente, quando a fã o
tentou atropelar devido à sua inveja.

PRESSUPOSTOS:
De qualquer das formas, assumindo-se o dolo como existente, a conduta típica deste crime é
a de perseguir ou assediar a vítima, podendo-se falar de perseguição física ou virtual, comunicação
não desejada, surgir nos locais frequentados pela vítima, fazer saber à vítima que é observada, etc.
Este não é um crime de resultado, na medida em que a conduta não tem de, efetivamente,
provocar medo à vítima – mas tem, no entanto, de ser “adequado” a provocar medo. Essa aptidão
afere-se em função das circunstâncias do caso, ou seja, tentando perceber se uma pessoa “média”, nas
circunstâncias da vítima, poderia sentir medo ou inquietação devido àquelas condutas.
Um fator a levar em conta será o género da vítima: as mulheres que são perseguidas acabam, muitas
das vezes, por ser mortas, quando comparadas com as situações em que os homens são perseguidos.
Assim, a circunstância, no caso das mulheres, acaba por ser mais agravada, existindo mais facilmente
esta possibilidade de provocar medo. No entanto, ressalva-se que existem algumas condutas que,
independentemente do género da vítima, serão objetivamente adequadas a provocar medo (ex: o
agente ficar mais possessivo).
Conclui-se, assim, que este é um crime semipúblico de perigo abstrato-concreto: é necessário, para
que o agente possa ser punido, demonstrar que existiu uma conduta capaz de provocar medo (o
perigo) – e, além disso, que isso se repercutiu na liberdade de determinação da vítima (bem jurídico
protegido). Consequentemente, a tentativa é punível.
Além de se exigir que a conduta 1) seja adequada a causar medo ou inquietação à vítima, de
forma a 2) prejudicar a sua liberdade de determinação; também se exige que 3) o comportamento do
agente seja reiterado. Será esta continuidade no tempo de tal comportamento que faz com que se
preveja este crime – até porque, isoladamente, as condutas podem traduzir-se em atos inofensivos.
Não se exige, no entanto, que apenas seja infligida sobre a vítima, podendo ser praticada direta ou
indiretamente (ex: abranger familiares, amigos, animais de estimação). Também abrange, por fim, o
cybserstalking (“por qualquer meio”).
➔ Estão previstos, no artigo 155º, certas agravações: por exemplo, se a vítima for menor, estão
previstos outros enquadramentos graves, que poderão ser aplicados (nº1, alínea b). Além disso,
existem penas acessórias que poderão ser aplicadas (ex: proibição de contactos).
Denota-se, por fim, que o facto de a vítima ser uma figura pública não legitima o crime: tal
circunstância conta, apenas, para avaliar a adequação dos comportamentos do agente –
nomeadamente, se é um comportamento adequado no contexto de a pessoa ser fã. No entanto,
existem, também, situações de figuras públicas que são bastante reservadas, pelo que, no fundo, o
facto de ser figura pública irá acabar por relevar apenas em certos casos: uma conduta adequada a
causar medo sê-lo-á, independentemente de a vítima ser figura pública ou não.

Fronteira entre a violência doméstica e a perseguição


O crime de perseguição não envolve a violação da integridade física, mas sim a liberdade
pessoal – daí se fazer uma distinção entre os casos de violência doméstica e os casos de perseguição.
No entanto, poderá existir uma situação de fronteira entre os dois: a violência doméstica abrange os
maus-tratos físicos ou psíquicos sobre pessoas com quem já não se tem, naquele momento, uma
relação; e o crime de perseguição, muitas vezes, também sucede no contexto de ex-relações.
Assim, fala-se aqui da existência (ou não) de uma relação de domínio. Ora, no caso da perseguição,
apesar de ser possível, não se exige a existência este tipo de relação entre o agente e a vítima. No caso
da violência doméstica, essa relação é obrigatória para a conduta típica – é essa especial relação entre
o agente e a vítima que faz com que o crime se destaque do mero crime de ofensas corporais.
Diferente questão será a de saber se uma situação de stalking já não estaria abrangida por
outros crimes: isto porque, na verdade, quando na consequência da perseguição, se dá um homicídio
ou uma ofensa corporal, o agente é condenado apenas por esses crimes. Assim, conclui-se que existirá
um concurso aparente, por relação de subsidiariedade: “é punido com pena de prisão até 3 anos ou
pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”.

Maus-Tratos (artigo 152º-A)


O âmbito do crime de maus-tratos é mais alargado, quando comparado à violência doméstica:
este abarca situações de maus-tratos físicos ou psíquicos, que acontecem no âmbito de instituições
de cuidado, às quais as pessoas são entregues (ex: escolas, lares, instituições de acolhimento, etc.).
Pretende-se, no fundo, proteger especificamente pessoas indefesas, que estão a cargo de outras
pessoas a nível institucional – e que podem tentar aproveitar-se e sobrecarregar as mesmas.
Significa isto que não existe, aqui, uma necessidade de relações familiares: a vítima é, muitas
das vezes, menor ou pessoa particularmente indefesa, não existindo uma exigência de coabitação
entre o agente e a vítima (ex: casos de lares, cujo crime é aplicado à própria pessoa coletiva, e não só
ao individual que praticou esses maus-tratos – artigo 11º CP). A relação que existe, aqui, é apenas
uma de cuidado, guarda, direção, educação ou de emprego.
Existe, ainda, uma possibilidade de agravamento em função do resultado (nº2):
nomeadamente, nos casos de resultados serem desencadeados de forma negligente, e não dolosos,
dado que isso iria acabar por ser um benefício para o próprio agente.

CRIMES CONTRA A HONRA


Introdução e Enquadramento
A honra poderá estar relacionada com a reputação, bom nome, dignidade, autoestima,
integridade moral, respeito, consideração, etc. Existem, então, duas ideias claramente distintas do que
seja a honra: por um lado, autoestima significa a perceção que cada pessoa tem sobre o respeito que
acha que lhe deve ser devido (conceção subjetiva); por outro lado, reputação significa a perceção
que a sociedade tem, num determinado contexto, do respeito que certa pessoa merece (conceção
objetiva).
Consequentemente, a honra, enquanto bem jurídico, traz algumas dificuldades. A nível
subjetivo, existe uma insegurança jurídica quanto aos comportamentos que estão criminalizados: ou
seja, não se pode criminalizar uma ação que dependa exclusivamente das valorações subjetivas da
vítima – tanto há pessoas que se ofendem com tudo, como há pessoas que não se ofendem com nada.
Já a nível objetivo, também poderá existir uma tutela desigual, dado variar de acordo com o que são
as convicções sociais da sociedade – e que vão mudando com os tempos, especialmente no que toca
à avaliação de alguns grupos minoritários –; e com o papel que certas pessoas têm na sociedade (ex:
um juiz tem mais respeito do que um desempregado?).
Acaba-se, assim, por assentar num conceito de honra, que é mais normativo. Este decorre
de a circunstância de todas as pessoas terem direito, em virtude da ideia de dignidade humana, a que
essa dignidade e integridade moral seja respeitada. Denotar que o artigo 26º, nº1 CRP dita uma
pretensão “ao bom nome e reputação”: este direito ao bom nome traz, apesar de tudo, um certo
conceito de reputação que complementa esta ideia de honra – esta expressão está associada a todos,
sendo, no fundo, um direito inato e inerente à circunstância de se ser pessoa.
Crime de Difamação (artigo 180º)
O crime de difamação pressupõe, na sua conduta típica, os seguintes requisitos: 1) dirigir a
um terceiro (importante para distinguir o crime de difamação do crime de injúria) uma 2) imputação
do facto OU formulação de um juízo que 3) ofenda a honra.
Importa, primeiramente, distinguir uma imputação de facto de uma formulação de um
juízo, dado existirem, depois, diferenças ao nível da causa de justificação.
Um facto é um acontecimento da vida real, lícito ou ilícito, que poderá ser verdadeiro ou falso – sendo
que a sua imputação é crime independentemente disso; podendo, no entanto, ter repercussões na
medida da pena. Denota-se, também, que mesmo que os factos não sejam imputados diretamente,
mas apenas em forma de suspeita, o ato continua a ser crime.
Já um juízo de valor é uma valoração, uma opinião que se exprime sobre aquela pessoa – ora,
precisamente pela circunstância de ser uma opinião, não é possível provar a verdade da mesma.
➔ Há, no entanto, situações dúbias: por exemplo, será difamação chamar “ladrão” a uma pessoa
condenada por furto? Segundo Faria Costa, isto já pressupõe um juízo de valor: tem uma carga
depreciativa distinta daquela de dizer que aquela pessoa foi condenada por aquele crime de furto
– mas é, na verdade, uma situação mista.
Este é, assim, um crime de dano: o facto de se dizer facto ou juízo que “ofenda a honra”
implica que, na verdade, a honra encontra-se lesada a partir do momento em que se imputam esses
factos ou juízos. Será que, no entanto, a sua consumação depende da compreensão pelo destinatário?
Discute-se isto, visto que uma ofensa só será ofensiva se for compreendida como tal – por exemplo,
num caso em que um jornal finlandês publica uma notícia sobre um político português, esta necessita
de ser compreensível para ser difamação? Ora, neste caso, a mesma seria facilmente compreensível,
bastando ser traduzida: logo, conclui-se que tem de existir, no mínimo, uma possibilidade de
compreender tal ofensa – não sendo completamente necessário que seja, na sua integridade,
compreendida na sua originalidade.
Já nas situações em que não existe uma compreensão do destinatário (ex: o mesmo não conseguir
perceber que é uma ofensa), acaba por existir uma válvula de escape: sendo este um crime que precisa
de queixa para ser averiguado (artigo 188º CP), o ofendido só irá fazê-lo se compreender a ofensa –
não compreendo, não se fará nada.
Assim, a exigência de compreensão do destinatário para a consumação parece, de facto, algo que é
mais favorável ao arguido, porque se não existir essa compreensão, ele fica impune. No entanto, isto
também poderá ser utilizado para atrasar o prazo de prescrição para o direito de apresentação de
queixa: fazendo este deferimento, este passará a contar a partir do momento em que existe esse
conhecimento e, posteriormente, consumação.
➔ Denotar que, no entanto, isto não atrasa o prazo de prescrição do crime, que começa a decorrer a
partir do momento em que o ato foi cometido.
O artigo 182º equipara, à imputação de facto ou formulação, gestos, imagens ou qualquer
outro meio de expressão – portanto, é possível atentar contra a honra através de outros métodos, sem
recorrer às palavras. Discute-se, aqui, se nesta equiparação se enquadram as situações em que as
pessoas nada fazem – ou seja, se é possível ofender por omissão. O exemplo mais dado será aquele
em que uma pessoa estende a mão para cumprimentar outra, mas essa deliberadamente não o
cumprimenta – ora, essa omissão poderá traduzir um juízo de valor sobre a primeira pessoa.
Incluem-se, aqui, as caricaturas e as sátiras, dado que estas podem ter efeito lesivo da honra dos
visados. Será necessário, no entanto, avaliar as mesmas: nomeadamente, quem retratam (ex: pessoas
que são conhecidas vs. pessoas que ninguém conhece a serem expostas); assim como qual a sua
mensagem – isto, especialmente relativo às sátiras feitas de políticos. Será, então, necessário avaliar
se existe uma interpretação de factos falsos ou não; assim como avaliar os modos como tal informação
está a ser passada – existindo, aí, uma liberdade mais ampla de criação artística.
➔ Relativamente ao desfasamento entre os títulos das notícias e o seu conteúdo, os títulos em si
podem ser avaliados autonomamente: pelo que se um título seja ofensivo, mesmo que o corpo da
notícia esteja acessível, poderá incorrer num crime de difamação. Justifica-se isto pelo facto de
existirem sempre pessoas que, na prática, apenas leem as “letras grandes”.

CAUSA DE JUSTIFICAÇÃO:
O nº2 deste artigo prevê duas causas de justificação: nomeadamente, a existência de um
interesse legítimo (alínea a) e o agente fazer prova de verdade (alínea b). Assim, se o agente imputar
tais factos para prosseguir um interesse legítimo, e conseguir fazer prova de verdade desses factos
(ou tiver fundação sólida para acreditar na sua verdade, em boa-fé), a conduta não será ilícita.

Interesse legítimo
Este interesse legítimo poderá ser público ou privado – a imputação pode ser feita para
qualquer interesse legítimo, mesmo que esse não seja público e, inclusive, particular. Isto é diferente
do que acontece nos crimes de devassa da vida privada, em que terá de existir um interesse público –
nomeadamente, um interesse público da imprensa, quando esta desempenha a sua função pública.
Neste âmbito, poder-se-á enquadrar a questão do exercício legítimo da liberdade de
expressão e da liberdade de imprensa. Decorre do artigo 3º da Lei da Imprensa que a função pública
da imprensa está pautada pelo rigor e objetividade da informação; assim como os limites à mesma.
Assim, este interesse legítimo encontra-se pela ponderação entre o equilíbrio do direito à
informação e da ofensa da honra: a ofensa da honra terá de ser feita no mínimo requerido para
prosseguir tal interesse legítimo (falando-se, aqui, por exemplo, da maneira como a informação é
divulgada, etc.). Tal ponderação é necessária porque a difamação acaba sempre por ser uma conduta
com desvalor, em que se fala mal das pessoas – logo, é preciso fazer uma certa ponderação entre o
interesse legítimo que se prossegue com tal difamação, e a honra da pessoa difamada.
Neste equilíbrio terá, ainda, de se ter em conta se os factos a serem imputados são correspondentes a
crimes prescritos. Isto porque, por um lado, o Estado admite, com os prazos de prescrição, que há um
tempo para apurar a prática dos factos, e que, dando-se o término desse prazo sem nada acontecer, o
interesse público na divulgação dos factos vai diminuindo quanto mais tempo passa. Por outro lado,
coloca-se o visado numa situação muito difícil: este não tem oportunidade de demonstrar, em
processo, que é inocente – mas nos jornais aparece esse relato dos factos, dos quais este já não se
pode defender nas instâncias certas. Aqui, o interesse público acaba então por ser tornar muito
diminutivo, sendo a honra considerada como sendo mais importante a proteger.

Prova da verdade
A “boa-fé” prevista pressupõe que o agente se tenha informado. No entanto, se este estiver
em erro, ou seja, se achar e estiver convencido de que os factos são verdadeiros, aplica-se, na mesma,
a causa de justificação, e não as consequências do erro – este regime que aqui está acaba, assim, por
ser um regime específico relativamente à difamação.
Estas causas de justificação aplicam-se, apenas, à imputação de factos, dado não ser
possível provar juízos de valores como verdadeiros – sendo estes meras opiniões. Consequentemente,
se o agente estiver, ao emitir ditos juízos, no exercício de um interesse legítimo, poderão aplicar-se
as regras gerais de desculpa, mas não este nº2.
Este também não se aplica quando estão em causa factos relativos à intimidade da vida privada e
familiar (nº3): se se permitisse que o agente, para se proteger, conseguisse provar estes factos, para
provar estes factos, ele acabaria por constituir uma devassa da vida privada.

Exemplo – Acórdão STJ, de 24/10/2014, processo nº 941/09:


Existe, neste caso, um comportamento ofensivo à honra – nomeadamente, o comportamento
de dizer que alguém está constituído arguido num inquérito. O facto de se noticiar tal ação é um facto
contrário ao bom nome: em si, o comportamento é típico, porque é a imputação de um facto ofensivo
à sua honra. No entanto, tratando-se a vítima de um gestor muito influente e conhecido, verificam-se
os dois pressupostos da causa de justificação do nº2 do artigo 180º CP?
Relativamente ao interesse legítimo, ponderando-se o equilíbrio entre o direito à informação
e a ofensa da honra, está-se aqui a falar da utilização dos dinheiros públicos – ora, será do interesse
público saber onde tal dinheiro está a ser utilizado. No entanto, será necessário perceber como é que
esse interesse foi prosseguido.
Por um lado, discute-se o facto de a informação estar em segredo de justiça: ou seja, existirá alguma
prossecução do interesse legítimo na divulgação de factos abrangidos pelo segredo de justiça? Ora, o
segredo de justiça cobre o processo, e não a vida: os jornalistas podem fazer investigações autónomas
sobre factos existentes, não podem é dizer que tais factos estão a ser abarcados num processo. No
entanto, aqui existe mesmo o relato da existência do processo – pelo que isso, aqui, não se põe.
Por outro lado, a questão de haver ou não a apresentação do nome é importante para o princípio
da necessidade: será que, para efeitos do interesse legítimo, é relevante identificar a pessoa em
questão? Isto, porque nem toda a comunicação social e liberdade de expressão corresponde à tal
função pública da imprensa: nomeadamente, que a designa como um garante do Estado democrático,
um “cão de guarda”. Consequentemente, apenas a imprensa que desempenhe esta função poderá cair
nesta causa de exclusão (e não, por exemplo, a chamada “imprensa cor-de-rosa”), nos termos do
artigo 1º, nº2 e 3 da Lei da Imprensa.
➔ Assim, a identificação dependerá, neste contexto, se esta é necessária no sentido de contribuir
para a avaliação que as pessoas têm de fazer das várias figuras do Estado. Diferente será a situação
em que pessoas comuns cometem crimes comuns, onde não será estritamente necessário a
revelação completa da identificação das pessoas para que o interesse legítimo fique cumprido. Ou
seja, tendo em vista a função pública da imprensa, avalia-se o que é necessário divulgar para
garantir o cumprimento cabal dessa função.
Relativamente à verdade dos factos, os jornalistas estão obrigados a manter segredo sobre as
suas fontes, o que pode tornar particularmente difícil a prova dos factos. Assim, estes, sem quebrar
este segredo, vão ter de demonstrar que cumpriram as normas de conduta dos jornalistas quanto à
verificação da veracidade da perícia – nomeadamente, através da demonstração do cumprimento de
tais normas deontológicas –, conseguindo, assim, demonstrar o tal “fundamento sério”.
Crime de Injúria (artigo 181º)
Enquanto no crime de difamação existe imputação a um terceiro, no crime de injúria existe
imputação de um facto a um visado. Além disso, o crime de injúria prevê, também, a modalidade de
comportamento de “dirigir palavras ofensivas da honra e consideração”. Contudo, aplicam-se regras
idênticas às do artigo 180º CP.
A dúvida está, no entanto, em como se deve enquadrar um comportamento em que a ofensa é
dirigida à pessoa, mas na presença de terceiros – será injúria ou difamação?
Na ótica de Figueiredo Dias, nesta situação, o visado poderá conseguir-se defender, logo estará mais
próximo da injúria – segue-se, então, a ideia de que, não estando a pessoa presente, existe uma maior
propagação da informação e, consequentemente, uma maior ofensa à honra. Assim, desde que a
pessoa visada esteja presente, em condições de reagir, este será um caso de injúria e não de difamação.
Já Paulo Pinto de Albuquerque defende que, nesta situação, existe um concurso entre o crime de
injúria e o crime de difamação. Dentro desta possibilidade, Helena Magalhães Bolina defende que
tal concurso será aparente: o crime de difamação, tendo a pena mais alta, consegue absorver a
totalidade do desvalor daquela ação – sendo que a desonra se consuma com o simples facto de o
agente dizer mal do ofendido perante terceiros, independentemente de este se conseguir logo defender
(até porque os terceiros não sabem se o que foi dito é ou não verdade).

Publicidade e calúnia (artigo 183º)


Este artigo agrava a pena decorrente das circunstâncias do comportamento de ofensa à honra,
enquadrando um acréscimo de pressupostos: nomeadamente, a publicidade e a calúnia.
Relativamente à publicidade (alínea a), discute-se aqui os meios utilizados para a divulgação
dos factos – que, no entanto, não abrangem a divulgação através da comunicação social. Ora, quais
são, então, os meios previstos? Ora, o meio em si tem de ser facilitador da divulgação desses factos,
dado ser isso que faz com que haja uma possibilidade de agravação: quanto mais fácil for a
divulgação, mais grave a ofensa será. Portanto, o exemplo dado de “à frente de outras pessoas” só
cairá neste artigo 183º se, por exemplo, a ofensa for feita numa reunião alargada com jornalistas.
Os meios de comunicação social estão, por sua vez, abrangidos no nº2: se o crime for cometido através
de meio de comunicação social, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de
multa não inferior a 120 dias. Faz-se, aqui, uma comparação sistemática com o artigo 197º, de forma
a preencher o conceito de “comunicação social” – concluindo-se que não poderá abranger toda a
Internet (ex: tendencialmente não abrange as redes sociais).
Relativamente à calúnia (alínea b), discute-se o facto de o agente saber a falsidade da
informação. Nestes casos, não há possibilidade de prova de verdade do facto, visto que não só estes
são falsos, como o agente está de má-fé – mas será que a exigência de conhecimento da falsidade da
informação dos factos é compatível com todas as modalidades de dolo?
Claramente que é compatível com o dolo direto; assim também com o dolo necessário. Mas e o dolo
eventual? Ou seja, será possível o agente saber que está a praticar um facto que prevê que irá ofender
a honra da pessoa, mas não se importar que essa consequência se concretize – isso já não estará
inserido no dolo direito?
Para responder a isto, será necessário saber qual é o objeto do dolo: nomeadamente, a imputação de
factos que são ofensivos da honra – o comportamento difamatório, de divulgar, é que será doloso.
Ora, há factos que são falsos, mas que não são ofensivos da honra: portanto, o agente pode saber que
o facto é falso; mas pode ter dúvida quanto a este ser ofensivo à honra – e, mesmo assim, divulgar
esse facto. Conclui-se, assim, que pode existir dolo eventual.

Acórdão Freitas Rangel


No que diz respeito a questões políticas, o TDEH tende a ser muito restritivo com a
possibilidade de se punir (“ingerência”) pessoas pelo facto de fazerem valorações ou de imputarem
factos. Isto, porque exige o preenchimento de três critérios: 1) a ingerência na liberdade de expressão
não pode ser prevista como crime; 2) tem de prosseguir um objetivo legítimo, descrito no nº2 do
artigo 10º CEDH; e 3) tem de ser necessária para atingir esse objetivo/fins.

Artigo 10° (Liberdade de expressão) CEDH

1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a
liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer
autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as
empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.

2. O exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas
formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa
sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da
ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem,
para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder
judicial.

Ora, neste acórdão estão em causa os artigos 183º, nº2 e 187º, nº1 e 2 CP. A vítima alega que
a sua condenação pelas instâncias nacionais é uma restrição à sua liberdade de expressão. Apesar de
o tribunal considerar que tal restrição é aceitável – tanto por ser legal, como por prosseguir um
objetivo legítimo –, esta acaba por falhar o terceiro requisito da necessidade. Por um lado, existe um
interesse político nas declarações de Rangel, cuja amplitude para não serem restringidas é, por isso,
bastante grande. Além disso, as afirmações foram consideradas juízos de valor, não podendo ser
considerados como falsos ou verdadeiros. Consequentemente, a Assembleia da República é um sítio
onde existe uma ampla liberdade de expressão – pelo que tal decisão implicaria que, no futuro,
pessoas que fossem igualmente convidadas a dar a sua opinião pudessem ficar com receio desta
sanção (na medida em que existiria um precedente).
No entanto, se isto não são factos, as afirmações não poderiam ser enquadradas no artigo 187º CP,
dado se falar aqui de uma entidade pública – pessoa coletiva. Já tentando enquadrar as mesmas no
artigo 180º CP, como é que um juízo de valor poderá ser considerado interesse legítimo? Ora, neste
caso, existe, de um lado, o direito da liberdade de expressão e, do outro lado, o direito à honra – logo,
este enquadramento só poderia ser feito com recurso ao artigo 37º CRP, relativo à liberdade de
expressão e de informação!

CRIMES CONTRA A VIDA PRIVADA


Introdução
Denota-se que não se fala, aqui, do artigo 199º CP, que já se encontra a tutelar crimes contra
o direito à palavra (nº2, alínea a) e o direito à imagem (nº2, alínea b). Assim, para a pessoa ser gravada
nas suas palavras, esta tem de ter dado o seu consentimento, mesmo que esteja em público – daí o
crime estar fora do âmbito dos crimes contra a vida privada. Já no caso da imagem, a pessoa já terá
de se opor à gravação explicitamente.
➔ A tutela da palavra é mais forte do que a tutela da imagem, dado que a palavra acaba por traduzir
opiniões, estados de espírito, etc.
Isto está fora do âmbito dos crimes da vida privada, pois o bem jurídico a ser protegido é distinto nos
dois crimes: evidentemente que também no artigo 199º CP está baseado na privacidade, mas não é
necessariamente a vida privada apenas que está a ser protegida.

Devassa da vida privada (artigo 192º)


A conduta típica deste crime será 1) obter, transmitir ou divulgar informação, relativamente
2) à vida privada de alguém, 3) sem o consentimento da pessoa em questão – sendo o acordo exclui
a tipicidade. Ou seja, fala-se aqui de acesso: da existência de uma conduta que representa um acesso
não consentido a essa esfera (podendo ser um acesso não autorizado ou a divulgação dessa
informação).
Existe, no entanto, uma causa de justificação possível (nº2), apenas aplicável à divulgação
de factos relativos à vida privada ou a doença grave de outra pessoa. Assim, tal não será punível
quando for praticado como meio adequado para realizar um interesse público legítimo e relevante.
Tal causa distingue-se, assim, da que se verifica no crime de difamação, onde a conduta não é punível
se for legitimada por interesses legítimos, podendo estes ser públicos ou privados. Já na devassa à
vida privada, esta exigência é maior: ou seja, ninguém pode relevar factos da vida privada deste tipo
de pessoas, se elas não quiserem – os interesses legítimos só podem ser públicos e, além disso, terão
de ser relevantes.
Pelo contrário, as condutas previstas no artigo 192º terão um agravamento de pena (artigo
197º CP) se forem feitas: a) para obter recompensa ou enriquecimento, para o agente ou para outra
pessoa, ou para causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado; ou b) através de meio de comunicação
social, ou da difusão através da Internet, ou de outros meios de difusão pública generalizada.
Relativamente a esta segunda alínea, esta agravação por divulgação na comunicação social aplica-se
autonomamente às penas agravadas que estão previstas para crimes cometidos na imprensa (ex:
manipulação dos mercados mobiliários através da comunicação social – dizer que uma empresa está
a fazer um negócio muito bom, para aumentar a cotação da empresa na Bolsa).
➔ Aliás, a propósito da Lei de Imprensa, existem regras específicas para crimes praticados através
da imprensa da televisão – artigo 31º da Lei de Imprensa, cujo nº3 representa um crime por
omissão, em relação aos dirigentes que, podendo fazê-lo, não se oponham à prática destes crimes.

BEM JURÍDICO:
Importa perceber qual o conceito de vida privada que aqui se fala. Isto, porque existem vários
tipos de conceitos de vida privada que, neste capítulos, se protegem: por exemplo, no artigo 190º CP,
criminaliza-se a intromissão num espaço físico considerado privado, que é de alguém – ora, aqui,
existe um elemento que constitui uma fronteira objetiva, que os outros não podem ultrapassar
(nomeadamente, a porta). No entanto, no artigo 192º CP, já existe uma punição autónoma da devassa
da vida privada, o que implica a existência de um conceito mais subjetivo/material do que é a vida
privada – como se define, então, este?
Associa-se, então, ao bem jurídico “privacidade” as ideias de dignidade, resguardo,
intimidade, controlo de acesso, isolamento, pretensão de resguardo. Fala-se, portanto, da ideia de
estar a salvo do escrutínio da sociedade – “the right to be alone”, sendo que este não pode ser
utilizado contra o seio familiar: ou seja, os filhos não poderão dizer que os pais, vivendo com eles,
estão a infringir o seu direito de privacidade. Dito por outras palavras, apesar de as crianças terem o
direito à intimidade e à reserva da vida privada, isso não impede que os pais a invadam no âmbito da
vida familiar – por exemplo, para ver se têm febre. Assim, este resulta comprimido, no âmbito do seu
dever de educar e cuidar, tendo se de fazer uma ponderação entre este e um mínimo de intervenção
necessário para esse dever.
Este direito ao isolamento enquadra-se, então, mais como a possibilidade de excluir a sociedade do
conhecimento da sua vida privada – relaciona-se com a avaliação, o escrutínio social e o estatuto
social que se tem, e não tanto com o facto de estarem fisicamente isoladas. Consequentemente,
envolve, por um lado, uma dimensão negativa, na medida em que a pessoa tem o direito de impedir
que outros acedam à sua vida privada; e, por outro lado, uma dimensão positiva, sendo a própria
pessoa que pode decidir sobre o acesso que os outros têm à sua vida privada, impondo ela os limites.
Além disso, a nível objetivo, a privacidade pode incidir sobre a vida sexual, condições
económicas, saúde, registo criminal, vida familiar, convicção política e religiosa, pensamentos e
emoções, informações profissionais, dados de localização, etc.
Ora, dentro desta lista, existem aspetos que são mais intensos que outros: informação como a vida
sexual (orientação sexual) e o pensamento, ou convicções religiosas, não poderão ser devassos, dado
serem pertencentes a um núcleo mais íntimo. Já outros aspetos dependem da situação, como
informação relativa à saúde (ex: certas profissões exigem atestados médicos) ou a vida familiar (ex:
situações de investigação de crimes de violência doméstica). Conclui-se, então, que existe, por um
lado, uma dimensão mais nuclear, que é intangível sem o consentimento da pessoa em questão; e,
por outro lado, uma dimensão menor nuclear, em que “depende” das circunstâncias apresentadas.

TEORIA DOS TRÊS PATAMARES:


Chega-se, então, à teoria dos três patamares. O primeiro será o patamar da vida íntima, que
constitui o núcleo intocável – e que, em princípio, não varia com as circunstâncias do caso ou as
condições da pessoa. Inclui a vida sexual, o pensamento e as emoções e/ou as convicções religiosas.
No entanto, mesmo em relação a esses aspetos, conseguem-se encontrar situações em que existe uma
causa de justificação para uma ação de devassa (ex: situações de segurança nacional) – mas são
situações absolutamente excecionais.
O segundo será o patamar da vida privada, que constitui os aspetos da vida da pessoa que
esta tem o direito de manter reservado, dado não ter nada a ver com o seu papel social ou público. No
entanto, esta é mais flexível, porque varia de acordo com a condição das pessoas – por exemplo,
poderá haver aspetos da vida privada dos políticos (como registo criminal) que, devido à sua
condição, seja lícito ser divulgado, mesmo sem o consentimento dos mesmos.
Por fim, o terceiro será o patamar da vida pública: nomeadamente, toda a restante
informação que não se intromete com o foro privado da pessoa.
Figuras públicas: Acórdão do TRLx (18.11.2021)
Sendo um direito constitucional, consagrado no artigo 26º, nº1 CRP (“direito à reserva da
intimidade da vida privada e familiar”), abrange todas as pessoas da sociedade, pelo reconhecimento
da sua dignidade enquanto vida humana. No entanto, o seu âmbito pode variar no caso de se tratar da
vida privada de figuras públicas: apesar de não se dizer que estas não têm direito à reserva da vida
privada, existirão algumas exceções possíveis devido ao seu estatuto social.
Nomeadamente, é necessário existir uma relação entre a informação em questão, e a posição
política ou profissional da pessoa sobre a qual esta consiste. Enquanto há situações claras – por
exemplo, na situação de um ministro de defesa ter uma amante, da qual são suspeitos crimes de
espionagem, esta informação vir a público será relevante para avaliar se meteria a segurança do
Estado em causa –, já outra situações são difíceis de delimitar – por exemplo, a de político
conservador ser apanhado numa orgia gay. No entanto, em ambos os exemplos se falam de figuras
políticas, sendo estas situações mais justificáveis: para o povo, é importante saber a credibilidade de
quem poderá vir a ganhar o seu voto. Assim, para fazer escolhas ideológicas, é importante ter-se
acesso a certas informações – mas e em situações em que a figura pública não se encontra na política?
Este acórdão fala da situação de uma atriz estar contra a publicação de um livro sobre a sua
luta contra o cancro (Fernanda Serrano) – autobiografia que não escreveu, e sobre a qual só descobriu
poucos dias antes de ser publicada. Ora, não está aqui em causa uma figura política; mas sim uma
mera figura pública, uma atriz. Em relação a pessoas, cujas posições não são relevantes para as
escolhas políticas, existe algum interesse público em saber da vida privada dessas pessoas – na
medida em que estas exponham a mesma na comunicação pública?
Assim, o tribunal começa por enquadrar as questões relativas à saúde como pertencendo ao
seio da intimidade pessoal, mesmo no caso de pessoas que têm alguma visibilidade pública. No
entanto, questiona-se sobre como é que opera, aqui, o consentimento enquanto causa de
justificação: isto, porque a atriz divulgou, por sua vontade, toda a informação contida no livro –
sendo que, só posteriormente, é que disse não quer falar mais sobre isso.
Aqui, o tribunal poderá ser criticado no facto de, ao expor tudo o que, ao longo da vida, a atriz
divulgou à comunidade pública, se justifica a “perda” do direito a poder decidir sobre o que partilha
e o que não partilha. Ou seja, ao ter aberto a sua vida íntima durante tantos anos e em tantas ocasiões,
existiria um “interesse legítimo” da sociedade em saber mais sobre a sua vida, mesmo contra a sua
vontade. No entanto, na instância em que o livro acaba por não divulgar factos posteriores novos, mas
sim factos divulgados anteriormente pela atriz, no âmbito do seu consentimento, este acabará
por não ser considerado uma devassa da vida privada.
Além disso, o tribunal esclarece, também, que a bibliografia, apesar de vendida em conjunto
com um jornal, não é uma peça jornalística, mas sim um livro – pelo que está no âmbito da liberdade
de criação artística. Consequentemente, a publicação da biografia seria, então, lícita, desde que fosse
deixado completamente explícito ao leitor que se tratava de uma biografia não autorizada: este aviso
serviria, então, para que ficasse claro que tal relato dos factos não foi feito pela própria pessoa, pelo
que estes podem não corresponder inteiramente à realidade – mas, em vez disso, serem
“romantizados”, no domínio da criação artística.

Resolução de Caso Prático – Hipótese 2:


O arguido A e B tiveram um relacionamento amoroso, como se de marido e mulher se tratassem, entre
2010 e maio de 2015. No referido período temporal, o arguido e B residiram na mesma casa, partilhando leito
e refeições. Na habitação viviam também os dois filhos menores da B e os dois filhos do arguido, todos fruto
de relações anteriores.
No dia 16 de maio de 2015, B tomou a decisão de colocar termo à relação, tendo disso informado o
arguido. O arguido não se conformou com tal decisão, e no dia 18 de maio de 2015, iniciou a prática de atos
de perseguição, ameaça à vida e integridade física de B, que culminaram com a tentativa de pôr termo à vida
daquela, através do disparo de vários tiros com arma de fogo. Assim, no dia 18 de maio de 2015, pelas
20h30m, quando B se encontrava no interior do seu veículo automóvel a realizar o percurso do local de
trabalho para a sua residência, o arguido, que conduzia o seu veículo automóvel, dirigiu-lhe as seguintes
palavras “tens sorte em estar gente à janela, senão limpava-te o sebo”, referindo-se à circunstância de se
encontrar uma pessoa à janela de um dos edifícios circundantes, a presenciar tais factos.
No dia 19 de maio, quando B efetuava o mesmo trajeto, nas mesmas circunstâncias, o arguido dirigiu-
lhe as seguintes palavras “Quero falar contigo, abre o vidro. Se não abres a bem abres a mal. É hoje que te
vou matar”, tendo de seguida se dirigido à mala do seu automóvel, momento em que B se pôs em fuga.
No dia 21 de maio, quando B se deslocava no seu veículo automóvel para o seu local de trabalho, ao
chegar junto dos semáforos, o arguido, conduzindo um veículo ciclomotor, atravessou esse veículo em frente
ao veículo automóvel de B, abalroando-o por duas vezes, e obrigando-a a imobilizar o veículo automóvel em
que seguia. B logrou reiniciar a marcha do seu veículo, tendo o arguido seguido em sua perseguição,
ultrapassou o veículo automóvel conduzido pela B e, novamente, atravessou o ciclomotor que conduzia em
frente ao veículo da ofendida e proferido: “Quero falar contigo”, ao que a ofendida respondeu “Se quiseres
fala, que eu não abro o vidro”. De imediato, o arguido desferiu pancadas na janela do veículo automóvel da
ofendida, tendo em seguida se dirigido ao ciclomotor e retirado do interior do banco do mesmo um objeto
embrulhado num saco preto, o qual exibiu a B, dizendo-lhe que a ia matar, tendo a B se posto em fuga.
Entre 31 de julho e 2 de agosto, o arguido enviou várias SMS para o telemóvel da B e para a filha
desta D, ameaçando-as que as iria matar. No dia 3 de agosto, no exterior da residência de B, o arguido
abordou a ofendida e agarrou-a pelos cabelos, tendo esta caído ao chão. Com a ofendida caída no solo o
arguido desferiu-lhe um número não concretamente apurado de pontapés nas pernas e socos na cabeça. Nas
mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido desferiu bofetadas na cara e pancadas nas costas a C,
filha da ofendida B, e pancadas no ombro e ouvido direitos a E, sobrinha da ofendida B, que nesse momento
ocorreram ao local com o intuito de porem termo às agressões.
Ato contínuo, o arguido dirigiu-se ao veículo automóvel, regressando com um saco preto, de onde retirou um
objeto, cujas características não foi possível apurar, mas que se assemelhavam a uma pistola, de cor preta,
deixando cair ao solo algumas munições. Quando o arguido apanhava as referidas munições do chão, a BB,
a sua filha e a sua sobrinha aproveitaram para se refugiarem no interior da residência. Após o arguido,
utilizando uma sachola, desferiu com ela pancadas no vidro da janela da cozinha da casa da ofendida,
partindo-o. Nesse momento, uma vizinha começou a gritar por auxílio, tendo o arguido, de imediato, proferido
as seguintes palavras Vou embora, mas isto não fica assim”, ausentando-se do local.
Como consequência direta e necessária de tais agressões, B sofreu várias equimoses e escoriações que lhe
causaram doença por 7 dias, com afetação da capacidade de trabalho geral por 7 dias e com afetação da
capacidade de trabalho profissional por 3 dias. Em consequência da agressão de A, E sofreu contusão do
ombro direito e dor no pavilhão auricular ipsilateral que lhe causaram doença por 3 dias, sem afetação da
capacidade para o trabalho geral e profissional. Em consequência da conduta do arguido, C sofreu dores,
não necessitando, porém, de assistência médica.
No dia 4 de agosto, o arguido, no seu veículo automóvel deslocou-se ao local onde B se havia
deslocado a fim de prestar trabalho como empregada doméstica numa habitação sita nesse local. Nesse
mesmo dia, mais tarde, a hora não concretamente apurada, quando a ofendida saia dessa residência, o
arguido agarrou-a e dirigiu-lhe as seguintes palavras “Vou-te estoirar os miolos”, dizendo a F,
acompanhante, que ainda ia sobrar para ela. Entre os dias 7 e 9 de agosto, o arguido procurou encontrar B
com o intuito de a matar, o que não conseguiu. Enviou-lhe, então, mensagens escritas do seu telemóvel para
o número utilizado pela ofendida B com ofensas e ameaças de morte.
No dia 10 de agosto, o arguido dirigiu-se à casa de habitação, residência de G, onde a ofendida
trabalhava como empregada doméstica. Ali chegado, o arguido escondeu-se atrás de uma carrinha defronte
da referida habitação e esperou a chegada de B. Quando esta se preparava para entrar na referida residência,
o arguido saiu detrás da dita carrinha, empunhando uma arma de fogo que era uma arma de alarme, a qual
previamente municiara com seis munições.
Ato contínuo, o arguido aproximou-se do portão da residência, apontou a arma na direção de B, que já se
encontrava próximo da soleira da porta, efetuou dois disparos na direção do corpo de B, tendo um deles,
atingido B na anca esquerda. B introduziu-se no interior da habitação e fechou a porta com o trinco, tendo,
contudo, deixado a chave na fechadura, do lado exterior da porta.
A ofendida e G, que se encontrava grávida de cinco meses de gestação, bem como a filha desta de três anos
de idade, procuraram refúgio no jardim situado nas traseiras da residência, de onde G e a filha conseguiram
fugir para o jardim dos vizinhos H e I, saltando um muro. A ofendida B, por já se encontrar ferida na anca,
devido ao disparo efetuado pelo arguido, não conseguiu transpor o muro. Nesse momento, surgiu o arguido
no telhado dos anexos da habitação, tendo efetuado mais um disparo na direção do corpo da ofendida que se
encontrava agachada junto da porta da cozinha, não lhe tendo acertado.
De imediato, B procurou refúgio no interior da habitação, sempre com o arguido no seu encalço. B dirigiu-
se ao piso superior da referida habitação, onde se escondeu num dos quartos de dormir, o qual não tinha
chave na porta. Colocou, então, o seu corpo contra a porta, exercendo força contra a mesma para impedir a
entrada do arguido. O arguido, contudo, conseguiu abrir a porta do quarto, tendo introduzido inicialmente o
braço com a arma, apontando-a na direção do tronco da ofendida, altura em que esta, vendo a arma, largou
a porta, tendo o arguido entrado no quarto, caindo sobre a cama aí existente, assim como a ofendida.
De imediato, após ambos se levantarem, o arguido tentou apontar a arma na direção do peito da ofendida,
porém, B reagiu e envolveu-se em luta com o arguido, enquanto esta lhe suplicava que não a matasse. Nessa
sequência, apontando a arma de fogo em direção da B, o arguido efetuou três disparos com a referida arma,
quando a B exerceu força, descendente, nos braços do arguido, tendo sido atingida na anca por dois deles, e
não na zona vital, como era intenção do arguido, e tendo o terceiro projétil ficado encravado no fecho das
calças de ganga da ofendida.
Enquanto lutavam, B suplicava-lhe pela sua vida, prometendo-lhe que o ia visitar à prisão, bem como que
iriam retomar a vida em comum quando este saísse da prisão, tudo a pedido do arguido e com o fito de o
convencer a desistir de a matar. O arguido saiu, então, da habitação e escondeu a arma de fogo na mata
existente em frente à residência, onde veio a ser apreendida, sem munições no interior do carregador. De
seguida, o arguido regressou para junto da ofendida, levou-a para a casa de banho, tirou-lhe as calças,
limpou-lhe o sangue e chamou o INEM, efetuando três chamadas para o 112 do seu telemóvel, tendo
permanecido na habitação até à chegada da GNR ao local.
Em consequência da agressão do arguido A, B foi assistida no hospital e foi observada a presença de três
projéteis de arma de fogo, com calibres longitudinais de 12 mm, alojados nas coxas. Dada a profundidade
dos projéteis os mesmos não foram removidos em cirurgia de imediato. BB esteve em internamento no hospital
até ao dia 17 de agosto. A situação clínica de BB não está, na presente data, estabilizada, continuando em
observação pelos serviços de Cirurgia Geral do Hospital.
O arguido sabia que com a sua descrita conduta lesava a sua ex-companheira no corpo e saúde, como
efetivamente lesou, e que, fazendo-a recear pela sua vida, a afetava na capacidade de livremente se decidir,
utilizando a violência com o intuito de reatar o relacionamento amoroso com a mesma, e ainda que a
humilhava e atacava a sua dignidade e consideração pessoais, perturbando o seu-bem estar no lar e não se
coibindo de adotar tais comportamentos na presença de menores. Agiu o arguido com o propósito,
concretizado, de atingir a integridade física de C e de E, as quais sabia serem menores.
O arguido A ao apontar o cano da arma de fogo supra descrita em direção do corpo da B e ao efetuar os
disparos, agiu com propósito, embora não concretizado, de tirar a vida a B, o que quis, como forma de retaliar
contra o fim do relacionamento amoroso, que não aceitou, persistindo na sua intenção de matar pelo menos
durante mais de 24 horas, bem conhecendo o arguido as características letais da arma e que a respetiva
utilização constituía meio adequado a provocar a morte, apenas não tendo conseguido concretizar os seus
intentos devido a circunstâncias alheias à sua vontade (a forte resistência que a ofendida exerceu, apesar de
já estar ferida), querendo, como resultado prévio à morte, atingir o corpo da B, admitindo que, com a sua
conduta, poderia afetar-lhe, de maneira grave, a sua capacidade de trabalho, a possibilidade de utilizar o seu
corpo e provocar-lhe doença particularmente dolorosa, afetando-lhe a mobilidade e locomoção.
Ao transportar a B para a casa de banho, despir-lhe as calças e limpar-lhe o sangue e ao providenciar por
socorro, o arguido pretendeu, de forma voluntária, impedir a que a morte da mesma viesse a ter lugar. O
arguido A agiu deliberada, livre e conscientemente, sabendo que as suas condutas eram punidas por lei penal.

Aqui, o facto de a relação entre A e B ter terminado é relevante como pressuposto do crime
de violência doméstica, nomeadamente (artigo 152º, nº1, alínea b) CP) – enquadrando-se as ações de
B como maus-tratos físicos e psíquicos. No entanto, a última ação do mesmo já se enquadra no crime
de tentativa de homicídio, estando o dolo extravasar o âmbito da violência doméstica.
Ou seja, existe um percurso decorrido com a violência doméstica; sendo que, posteriormente,
verifica-se uma ação que sai desse âmbito, por ser mais grave ainda, que corresponde à tentativa de
homicídio. Determina-se que B praticou uma conduta da qual poderia ter decorrido a morte da vítima,
não tendo esta ocorrido porque a vítima se defendeu – o que não faz com que B não tenha dolo direto
em relação ao homicídio, dado agir com o objetivo de a matar.
➔ O facto de a ter ajudado, depois, não significa que existe uma desistência: B desistiu não porque
houve um arrependimento voluntário da sua parte, mas exclusivamente porque A lhe prometeu
ficar com ele para sempre – tendo apenas socorrido a mesma por isso (artigo 24º CP).
Assim, a tentativa será de homicídio qualificado, nos termos do artigo 132º, alínea b) e j) CP,
sendo que existe, também, a especial censurabilidade (nº1) – que, nestes casos, existe quase sempre
(gerando mais dificuldades quando são casos em que, no âmbito familiar, A mata o seu abusador).
Quanto à sobrinha e a filha, a conduta de B também se pune pelo crime de violência doméstica
(artigo 152º, alínea e) CP), não se aplicando, neste caso, o artigo 152º-A, dado que este exige que o
arguido tivesse “ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direção ou educação”.
No entanto, será necessário discutir o concurso entre este crime e o crime de ofensas à integridade
física simples (artigo 143º CP): ora, sendo a pena deste último inferior ao do crime da violência
doméstica, este último prevalece, por relação de consumação – ou seja, o crime da violência
doméstica consegue consumir toda a ação do B. Assim, tanto quanto à filha, como à sobrinha, aplica-
se o crime da violência doméstica, dado ambas serem vítimas de ofensas à integridade simples.
➔ Se já se estivesse perante ofensas à integridade graves, atendendo à relação de subsidiariedade
entre os dois crimes, a pena do crime de ofensa à integridade física seria mais elevada, pelo que
seria este crime a ser aplicado, e não o da violência doméstica (artigo 152º, nº4 CP).

CRIMES CONTRA A PROPRIEDADE


Introdução
Os crimes contra a propriedade estão inseridos nos “crimes contra o património”, o que indicia
alguma distinção entre o que é, em geral o património, e o que é a propriedade. Ou seja, enquanto o
património é um acervo de bens que está numa esfera jurídica concreta, tendo um valor, a
propriedade já significa mais a fruição das utilidades da coisa.
Discute-se, nestes crimes, se as coisas que podem ser objeto de furto têm necessariamente de ter valor
patrimonial real: ou seja, se é possível furtar algo que não tem valor patrimonial. Consistindo o
direito de propriedade mais em usar o que lhe pertence, como já referido, esta propriedade será
independentemente do seu valor – o que significa que, no crime de furto, é mais importante a questão
de uso das utilidades, do que propriamente a do valor.
Assim, apesar dos crimes de furto terem em consideração o valor da coisa para as medidas da pena,
é possível que seja furtado algo que não tem valor económico, mas só tem, por exemplo, valor
sentimental para o proprietário. Na verdade, no direito da propriedade, a questão do valor pode não
estar em causa – uma pessoa pode ser proprietária de uma coisa que não tem valor económico
nenhum, mas não deixa de ser proprietária e de ter a posse e o usufruto dessa coisa.
➔ É importante, antes de se começar a analisar os crimes deste tipo, ter em consideração o artigo
202º CP, onde se encontram os vários conceitos relativamente a estes crimes – relevantes para se
saber, por exemplo, a diferença entre furto simples e furto qualificado.

Furto (artigo 203º)


Este crime, caracterizado por ser um crime de dano e de resultado, e cuja tentativa é punível,
pressupõe, mais uma vez, a possibilidade de dispor da fruição daquilo que se possui. Essencial, aqui,
será saber o que é uma “coisa móvel alheia”.
Quanto a coisa móvel, fala-se, aqui, de coisas corpóreas, dado que as incorpóreas – as ideias – não
são passíveis de ser furtadas (havendo outras previsões para tal – ex: direito à propriedade intelectual).
Discute-se, neste âmbito, se a eletricidade é passível de ser furtada: ora, sendo esta uma coisa
corpórea, na medida em que pode ser apreendida pelos sentidos, pode ser furtada – desde que implique
uma situação de valor patrimonial. Ou seja, no fundo, o critério para se decidir se tal será abrangido
será se, ao furtar, se está a acumular algo que seria pago pela quantidade (ex: eletricidade e água); ou
se, pelo contrário, se está apenas a usufruir de um serviço, cujo preço não muda de acordo com a
quantidade de utilização (ex: furtar TV cabo).
➔ O sinal da internet também seria uma questão de serviço; no entanto, também se poderá
argumentar que, ao furtar a mesma, poder-se-á estar a prejudicar a qualidade da wifi utilizada por
outros (ex: utilizar a password do vizinho pode fazer com que este fique com a wifi mais lenta).
Já quanto a coisa alheia, se houver uma situação de copropriedade, só existe furto se houver uma
clara distinção entre o que é de cada coproprietário; de outra maneira, quem furta um bem em sede
de copropriedade, não está a furtar uma coisa alheia.
Dentro dos elementos subjetivos, existe a exigência da intenção de apropriação, que permite
fazer a distinção entre o crime de furto e o furto de uso – no caso de furto de uso de veículo, embora
aja subtração, não esta há intenção de apropriação: o agente subtraí o veículo, mas apenas para o
utilizar e, depois, devolver.
Este é, então, um elemento subjetivo especial, indo para além do que é o tipo objetivo: não é
necessário existir uma apropriação efetiva (ligada à subtração), mas apenas uma intenção de se fazer
essa apropriação. Consequentemente, existindo “intenção”, o dolo é necessário enquanto elemento
subjetivo – mas será este crime compatível com todos os tipos de dolo? A ideia de o agente ter
intenção de apropriação, enquanto sabe que a coisa não é sua, exprime claramente a ideia de dolo
direto; mas já não tanto de dolo eventual.
Relativamente à subtração, discute-se se basta, para esta estar consumida, entrar em contacto
com uma coisa alheia e detê-la por um período de tempo, de forma pacífica; ou se será apenas
necessário que se faça cessar o domínio da coisa de quem é seu proprietário, e constituir um novo
domínio da coisa para quem furta. Esta teoria é a que é mais seguida pela jurisprudência,
nomeadamente chamada a teoria da esfera de domínio – sendo que o domínio não significa passar a
coisa para a esfera patrimonial (porque, por exemplo, no caso dos automóveis, isso depende do registo
formal). Domínio é, então, conseguir usufruir das utilidades da coisa que se furta – ou seja, conseguir
furtar o gozo da coisa associado ao direito de propriedade.
➔ Acórdão do TRLx (12.05.2015): “quebra de uma detenção originária e a constituição de uma nova
detenção por parte do agente e consiste no poder de facto sobre uma coisa, através do domínio
fáctico sobre a coisa, não no sentido de um contacto físico com a coisa ou de um relação material
direta com a coisa, mas sim de um domínio efetivo no sentido das regras da vida social.”

Furto qualificado (artigo 204º)


Para existir um furto qualificado (crime público, ao contrário do furto simples), existe, entre
outros, o critério do valor: ou seja, consoante o valor da coisa ou animal furtado seja de valor elevado
(nº1, alínea a)) ou consideravelmente elevado (nº2, alínea a)). Consequentemente, não há lugar à
qualificação se a coisa ou o animal furtados forem de diminuto valor (nº4), mesmo que se
verifique uma das outras circunstâncias previstas nas alíneas.
Denotar que estas alíneas são um elenco taxativo de circunstâncias qualificadoras: só se a
situação encaixar em alguma destas, é que o furto poderá ser qualificado. Não há nenhuma clausula
geral reveladora de maior culpa – existe, aqui, um rigoroso princípio da legalidade com o elemento
taxativo, sendo que as alíneas são, inclusive, explicadas a critério no artigo 202º.
Como já foi dito, o artigo 202º CP explicita os valores que terão de ser tomados em
consideração. Assim, o valor elevado será aquele que exceder 50 unidades de conta; o valor
consideravelmente elevado será aquele que exceder 200 unidades de conta; e o valor diminuto será
aquele que não exceder 1 unidade de conta. Existe, consequentemente, um valor médio, referido
implicitamente no artigo, que será aquele entre 1 e 50 unidades de conta.
➔ As unidades de conta, avaliadas no momento da prática do furto, não são euros: são, sim, um
valor que muda consoante a inflação – atualmente, uma unidade de conta são cento e pouco euros.

Acusação particular (artigo 207º)


Este artigo explicita as situações em que o furto depende de acusação particular, e não
apenas de queixa – ou seja, as situações em que está tudo nas mãos do particular constituído assistente.
Nomeadamente, assim será quando for, no caso de furto simples, existirem relações familiares entre
o agente e a vítima (nº1, alínea a)).
Além disso, o procedimento criminal também depende de acusação particular quando a conduta
ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público, relativamente à
subtração de coisas móveis ou animais expostos de valor diminuto e desde que tenha havido
recuperação imediata destas – salvo quando cometida por duas ou mais pessoas (nº2).
Outra situação já trata os chamados “crime de furto por necessidade”, um crime de furto
especial, relacionado com o facto de se furtarem coisas de valor diminuto e para satisfação de uma
necessidade imediata e indispensável do agente (nº1, alínea b). Este último depende de acusação
particular porque, atendendo à atuação concreta, terá de ser o particular a fazer os esforços de
promoção do processo, visto que o Ministro Público não vê grande interesse público em perseguir
estes agentes, dado o seu contexto socioeconómico.

Furto de uso de veículo (artigo 208º)


Este crime (semipúblico, em geral; particular, se se verificarem as condições do artigo 207º)
implica o agente furtar um veículo com o objetivo de o utilizar sem autorização. Um veículo,
para a determinação da conduta típica, não inclui comboios nem outros veículos a carris, visto que
não se consegue fazer a sua utilização fora destes carris. Além disso, também não se inclui, aqui, as
chamadas “roulottes”. No entanto, “veículo motorizado” já inclui os carros elétricos.
Outra discussão necessária será sobre o que consiste em “utilizar automóvel”. Esta
utilização pressupõe utilizar o veículo para a sua finalidade, ou seja, para o que ele serve. Logo, se
alguém arrombar o carro para dormir lá dentro, a sua conduta não se inclui no crime de furto de uso
de veículo; seria, sim, enquadrado no crime de introdução em lugar ou espaço alheio.
No entanto, se o proprietário deixar o carro na oficina, e o mecânico for dar uma volta com o
mesmo no fim de semana, tal conduta pode ser considerada furto de uso de veículo? Por um lado,
existe uma entrega voluntária inicial do carro pelo seu proprietário – e, por isso, não há subtração –;
mas, por outro lado, o artigo 208º não exige que haja esta subtração.
Esta exigência de subtração é defendida por Costa Pinto, dado se tratar, acima de tudo, de um crime
de furto. No entanto, o furto está, como já se viu, muito mais relacionado com o uso da coisa, do que
propriamente com a sua propriedade em geral – algo que, aqui, está ainda mais expresso, visto que
claramente não existe uma intenção de apropriação da coisa. Assim, o uso poderá ser usurpado sem
que a pessoa subtraia a propriedade da mesma, aliás como está previsto na própria letra da lei: “Quem
utilizar (...) sem autorização de quem de direito”, nunca se mencionado o requisito da subtração.
A mesma lógica aplica-se à situação em que o agente aluga um carro, mas só o entrega uns
dias depois do fim do contrato. Costa Pinto, considerando que as condutas abrangidas pelo artigo
208º também incluem subtração, defende que este seria um problema para a responsabilidade civil.
Mas importa também chamar, para aqui, o próprio princípio da legalidade dos crimes, aplicado na
sua vertente de princípio da tipicidade, na medida em que o legislador não prevê, como requisito, tal
subtração. No entanto, e de acordo com o princípio da intervenção mínima do Direito Penal, há quem
considere que tais casos, onde não existe subtração, não poderiam ser considerados furto, dado que
não serem do âmbito criminal, por não lesarem direitos fundamentais pessoais. Contudo, com a não
criminalização da conduta, acaba por se extinguir o direito à autodefesa do lesado: ou seja, a legítima
defesa deixa de ser possível, o que diminui os direitos do lesado.
Contudo, já a exigência de restituição do veículo considera-se mais problemática: tal
exigência acrescenta um pressuposto que tem efeito negativo no agente (e não em sentido positivo,
como acontece com o requisito da subtração), pois a não restituição, se necessária como pressuposto,
deixa cair a conduta no crime de furto simples, que tem uma moldura penal mais grave. Assim, o
agente não tem de restituir o veículo ao lesado, para a sua conduta ser considerada furto de uso.
Resolução de Caso Prático – Hipótese 3:
Numa viagem do elétrico 28, António tira a carteira a Carlos sem este se aperceber, passando-a a
Belinda. A carteira continha os documentos de identificação de Carlos e 90 euros em notas. António e Belinda
saem do elétrico na Basílica da Estrela e, nessa mesma altura, Carlos nota que não tem a carteira, percebendo
de imediato que foi António quem lha tirou.
Carlos sai do elétrico, persegue António, apanha-o, atira-o ao chão com violência, chama-lhe ladrão
e revista-o. António não tem a carteira porque a mesma está com Belinda que, assistindo à cena, assustada,
foge. Carlos não se apercebe disto e, fora de si, continua a agredir António exigindo que este lhe devolva a
carteira. António cai desamparado, batendo com a cabeça no chão: fica inanimado e é transportado para o
hospital onde morre duas horas depois devido a um traumatismo craniano causado pela queda.
Para vingar a morte do amigo, Belinda começa a perseguir Carlos ao fim da tarde, de forma discreta
e sem este se aperceber. Depois de identificar as rotinas de Carlos durante uma semana, espera-o num local
mais ermo e dispara três tiros contra o mesmo: um tiro acerta nas pernas, outro no peito e o terceiro falha o
alvo. Carlos é socorrido de imediato pela equipa do INEM que o conduz ao hospital, onde é operado e
sobrevive. Determine a responsabilidade penal dos intervenientes.

Importa, primeiro, ressalvar a necessidade de resolver a hipótese por grupos de factos (que,
neste caso, até estão por parágrafos).
Assim, primeiro, existe a conduta de A, que furta a carteira de C, com ajuda de B. Sabendo
que o momento da consumação do furto se dá com a subtração – e que, consequentemente, esta
implica alterar o domínio da coisa que o proprietário da carteira tem –, o furto consuma-se quando A
tira e entrega a carteira a B. Tal furto poderia ser considerado furto qualificado, por via do artigo 204º,
nº1, alínea b); mas acaba por não o ser, dado que a carteira é de valor diminuto, de menos de uma
unidade de conta (artigos 202º, alínea c) e 204º, nº4 CP). Existe, no entanto, dolo direto em relação à
subtração, sendo que A e B tinham intenção de se apropriarem da carteira.
Denota-se que existe coautoria entre A e B, dado que ambos planearam e executaram o plano de
forma conjunta (artigo 26º CP) – nomeadamente, praticando atos de execução (artigo 22º, nº2, alínea
a) CP), não se utilizando aqui o critério da jurisprudência de “o plano seria concretizado sem a
intervenção dos outros?”.
Seguidamente, C agride A, levando à morte deste. Em termos de tipo objetivo, a conduta de
C preenche vários crimes – nomeadamente, o de ofensa à integridade física grave (artigo 144º CP) e
o de tentativa de homicídio negligente (artigo 137º CP). Já em termos de imputação subjetiva, em
relação ao resultado “morte”, conclui-se que seria previsível que este se concretizasse da conduta de
C: segundo a teoria da causalidade adequada, bater em alguém com imensa violência pode levar a
que essa pessoa morra devido aos ferimentos – a conduta de bater é, então, uma causa adequada (e
não apenas consequente) da morte.
No entanto, no caso concreto, C não previu esse resultado (elemento cognitivo) e, consequentemente,
não se conformou com este (elemento volitivo – materialização dos pensamentos de uma pessoa
através dos seus atos) – apesar de essa previsão lhe ser exigível. Consequentemente, consegue-se
imputar a morte de A a C, a título de negligência inconsciente. Se, pelo contrário, este tivesse previsto
o resultado considerando as circunstâncias do caso, mas, mesmo assim, lhe continuasse a bater, já
seria uma situação de dolo eventual.
Contudo, não existe, por um lado, a possibilidade de punir alguém por tentativa de homicídio
negligente, nos termos do artigo 23º, nº1 CP. Por outro, o artigo 147º, nº1 CP resolve este conflito:
“Se das ofensas previstas nos artigos 143.º a 146.º resultar a morte da vítima, o agente é punido com
a pena aplicável ao crime respetivo agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo”. Assim,
e nos termos do artigo 18º CP, tal agravação é permitida visto que o resultado consegue ser imputado
a C a título de negligência – consequentemente, este será punido pelo crime de ofensa à integridade
física grave (artigo 144º CP), com agravação pelo resultado, dado que A acaba por morrer (artigo
147º CP).
➔ A sua conduta também não poderia ser justificada pela figura da ação direta: por um lado, há
excesso de ação direta; e, por outro, a carteira não está com A, mas sim com B – o que significa
que C está em erro quanto aos pressupostos de uma causa de justificação. Além disso, quando C
age, o furto já está consumado, pelo que a possibilidade de aplicar a ação direta se extingue.
Seria, também, necessário discutir se o ato de chamar “ladrão” seria considerado um crime de injúria,
ou uma mera imputação de factos. No caso concreto, talvez corresponda apenas a uma mera
designação colonial, descrevendo apenas a factualidade que se deu – até porque, neste caso, o crime
foi, de facto, consumado. Ou seja, mesmo preenchendo a tipicidade formal do crime de injúria, não
será razoável dizer que A não poderia gritar isto, tendo em conta o contexto em que foi gritado – até
para conseguir ser ajudado a reaver a sua carteira (“agarra que é ladrão!”).
Por fim, existe a conduta de B matar C. A perseguição que B faz a C não entra no âmbito do
crime de perseguição, dado faltar o requisito de “apto a provocar medo”: ora, se B o faz sem que C
dê por isso, a sua conduta não será apta a provocar este medo e inquietação. Aliás, está pressuposto
neste crime que a conduta seja tal que limite a liberdade da vítima, precisamente porque esta se
apercebe dessa conduta e fica com medo. Assim, não existe crime de perseguição.
Esta perseguição mostra, no entanto, que a tentativa de homicídio foi premeditada: assim, existe aqui
uma qualificação, nos termos do artigo 132º, nº2, alínea j). Além disso, denotar que o motivo de
“vingança” não poderá ser visto como compreensível emoção violenta, dado que esta implica que
exista um momento em que a pessoa “se passa” – ideia que não é compatível com o facto de terem
passado 15 dias até B agir.

CRIMES DE CORRUÇÃO
Introdução
CORRUPÇÃO PÚBLICA E PRIVADA:
Os crimes de corrupção abrangem, principalmente a atividade das entidades públicas – daí
que, no CP, estes se encontrem no capítulo de “Crimes contra o Estado, no exercício de funções
públicas”. Assim, o bem jurídico a ser protegido é a integridade, autonomia e independência do
Estado no exercício das suas funções públicas, nomeadamente quanto a interesses privados (artigo
266º CP) – respeito pelos princípios da igualdade, boa-fé, imparcialidade, etc.
No entanto, para além do CP, existem crimes de corrupção em legislação específica, visto
que a corrupção, sendo embora um crime cuja prática é mais frequente ou pretende abranger
essencialmente as entidades públicas, também pode ser praticada no seio do comércio internacional
(artigo 7º da Lei 20/2008) e nas entidades privadas (artigos 8º e 9º da Lei 20/2008) – onde o bem
jurídico a ser protegido será a preservação da concorrência.
Especificamente, existe, também, corrupção para falsear os resultados em competições desportivas –
artigo 8º da Lei 50/2007. Prevê-se, também, nos casos dos crimes desportivos, o crime de tráfico de
influência e de recebimento indevido. Aqui, o bem jurídico a ser protegido será a verdade desportiva
– ou seja, protege-se a lisura na atividade desportiva.
Existem, também, crimes específicos para certos políticos – assim, nos casos em que está um político
envolvido, aplica-se a Lei 34/87, relativa a titulares de cargos políticos. Estão previstos os crimes de
recebimento indevido de vantagem, corrupção passiva e corrupção ativa – existindo, nestes, um
agravamento no limite mínimo previsto no CP.

Outras Notas
➔ Os crimes de corrupção tendem a ser públicos, pois tutelam interesses sociais, não se percebendo
bem quem é o ofendido (nos termos de este ter de fazer queixa/acusação).
➔ Além disso, existe uma série de mecanismos preventivos – programas de cumprimento normativo
(compliance) – para evitar o risco de corrupção, que estão mais ligados ao regime das
contraordenações.

LADO PASSIVO VS. LADO ATIVO:


Além disso, as entidades privadas podem estar, também, envolvidas nos crimes de corrupção
do CP, mas do lado da corrupção ativa. Este lado ativo designa o corruptor, sendo um crime comum
– ou seja, que pode ser praticado por qualquer pessoa. O corruptor é aquele que propõe, praticando o
crime de corrupção independentemente de o lado passivo aceitar ou não.
Consequentemente, o lado passivo designa aquele que é corrompido, sendo este um crime
específico – ou seja, que só pode ser praticado quem tem a qualidade de funcionário (artigo 386º CP).
Sendo o lado passivo quem aceita, este incorre em atos mais gravosos.

Tráfico de influência (artigo 335º)


No crime de tráfico de influência, o bem jurídico a ser protegido é a preservação do Estado de
Direito, tal como este está previsto pela CRP. Isto, porque este tipo de crimes afeta os princípios
fundamentais do Estado de Direito – em específico, os princípios de igualdade e de legalidade. Ora,
a administração tem de se orientar por critérios iguais, gozando de uma liberdade de ação despida de
constrangimentos exteriores.
A conduta típica determinada no nº1 é a de tráfico de influência passivo: ou seja, é a conduta
de alguém que, a pretexto de ter influência junto de uma entidade pública, solicita ou aceita (caso lhe
seja proposto primeiro) a venda dessa influência a troco de vantagem patrimonial ou não patrimonial
– e, consequentemente, irá exercer dita influência sobre dita entidade pública, para que esta decida
num sentido favorável a quem pagou, independentemente dessa decisão ser lícita ou ilícita.
Já o nº2 prevê o tráfico de influência ativo: ou seja, a conduta de alguém que, para receber uma
decisão favorável de uma entidade pública, compra a influência de outrem que tem uma influência
junto dessa entidade, a troco de vantagem patrimonial ou não patrimonial.
➔ Significa isto que ambos o vendedor como o comprador são punidos no âmbito do artigo 335º.
Consequentemente, este é um crime comum, visto que nem o vendedor, nem o comprador de
influência tem de ser um funcionário – pode ser apenas alguém que tenha uma relação próxima
com alguém que é funcionário, por exemplo.
A influência que o vendedor de influência vende pode ser real ou suposta – ou seja, este
pode vender a terceiro uma influência que, na realidade, não tem. Tal requisito é, no entanto, criticado,
visto que criminaliza uma conduta que, no fundo, nunca meteu nenhum bem jurídico em perigo: se
ele não tem influência nenhuma, e sendo o bem jurídico protegido a proteção da imparcialidade do
Estado de Direito, esse bem jurídico nunca está em risco – apenas está em risco o património de quem
compra essa suposta influência, na medida em que foi burlado.
No fundo, tudo o que precisa de acontecer é que tal vendedor de influência prometa ir exercer
influência junto de uma identidade pública, a troco de vantagem dada pelo comprador. Por exemplo,
no caso da TAP, em que o Secretário de Estado (vendedor) enviou um e-mail à TAP (comprador) a
saber se se poderia mudar o voo do Marcelo de dia (prejudicando x pessoas para o favorecer) – qual
seria o valor da influência? Na verdade, o Secretário de Estado acaba por não receber nada, pelo que
esta situação parece cair mais no artigo 382º CP, relativo ao abuso de poder: o Secretário de Estado
tem a responsabilidade de praticar determinados atos enquanto funcionário, e um determinado poder
enquanto tal – poder que usa, no fundo, para praticar atos que não deveria ter praticado.
No entanto, se se colocar isto na perspetiva de se exercer esta influência para obter a simpatia do
Presidente («Hugo Mendes argumentava que era importante manter o apoio político de Marcelo
Rebelo de Sousa, considerando que era o "principal aliado" do Governo mas que poderia tornar-se o
"pior pesadelo"»), discute-se se seria melhor colocar esta situação no crime de tráfico de influências;
ou no crime de recebimento de indevida vantagem.

Questão do Lobby
Esta incriminação do tráfico de influência não prejudica o lobbying, a menos que este
tenha uma intenção corruptiva do funcionário público, nem abuse da sua posição. O lobbying
corresponde à obtenção, junto de entidades públicas e do legislador, de legislação criada a seu
favor/que vá de encontro aos seus interesses. Ou seja, aqui existe o caso de um grupo que tenta
influenciar uma entidade pública, não estando, no entanto, a vender a sua influência. Não existe uma
situação de superioridade, assim como não há um abuso de influência.
De qualquer das formas, em Portugal, o regime do lobby não está regulado, mas está em
discussão. Aqui, é importante reafirmar a questão da transparência: nomeadamente, fazendo-se o
registo da pessoa como lobista, o registo de quem representa, dos seus interesses, dos contactos com
entidades públicas, etc. – isto, uma vez que a atividade de lobby tem como principal interesse
influenciar opções legislativas, ou seja, moldar leis.
➔ Encontra-se, aqui, uma diferença entre o lobby e o tráfico de influência – em que, por oposição,
se fala de uma situação concreta de favorecimento, e não de opções legislativas.
Se, no entanto, o lobby for constituído por pessoas que financiam as campanhas eleitorais dos
políticos, já se estará a falar de tráfico de influência. No entanto, imagine-se que A contrata um
advogado muito famoso para resolver um problema junto de uma entidade pública – será isso tráfico
de influência? Não, visto que o papel dos advogados passa pela defesa dos seus interesses e a tentativa
de obtenção de decisões favoráveis: ora, este tráfico de influência caracteriza-se pela utilização da
influência fora das regras estabelecidas para um determinado cargo, etc.
➔ A tentativa passa pela tentativa de venda da influência e a recusa de compra por parte do suposto
comprador de influência. No entanto, se a decisão já tiver sido tomada no momento do negócio
de tráfico de influências, o agente é punido por tentativa impossível.

Crimes de corrupção (artigos 373º e 374º)


Tal como no tráfico de influência, as condutas típicas também passam por solicitar, aceitar,
prometer. Especificamente, no artigo 373º, criminaliza-se a corrupção passiva: ou seja, o
funcionário que solicita ou aceita vantagem ou promessa, para a prática de um qualquer ato ou
omissão contrários ou não aos deveres do seu cargo – diferenciando, por isso, as penas aplicadas –,
ainda que anteriores àquela solicitação ou aceitação. Este é um crime específico, dado só poder ser
praticado por quem tenha esta condição de funcionário.
Já o artigo 374º criminaliza a corrupção ativa: ou seja, aquele que dá ou promete vantagem a
funcionário (ou a 3º, por indicação deste), para que o funcionário pratique um qualquer ato ou omissão
contrários ou não aos deveres do seu cargo – diferenciando, por isso, as penas aplicadas. Este é um
crime comum, dado que qualquer pessoa o pode praticar.
NOTA: Artigo 374º-B – Dispensa ou atenuação de pena.

O crime de corrupção é considerado um crime de consumação instantânea: ou seja, este


consuma-se assim que existe a solicitação (ou seja, a “proposta”) ou a transferência (ou seja, dar o
dinheiro) de vantagem. Acontece que, na história da corrupção, estes dois momentos existem numa
linha temporal, associados um ao outro – ora, aqui, onde é que o crime de corrupção se consome?

1. Acórdão TRL de 13 de julho de 2010:


Aqui, retrata-se o caso do Isaltino Morais, que foi constituído arguido pelo crime de
prevaricação, corrupção, abuso de poderes, fraude fiscal, etc. etc. Este foi acusado do Crime de
corrupção passiva, com a finalidade para a prática de um ato ilícito ou lícito (ex: escolher os amigos
para x contratação), sendo o bem jurídico prejudicado, mais uma vez, a autonomia intencional do
Estado. Punha-se, então, a dúvida de saber quando o crime de corrupção se consumou, para questões
do prazo de prescrição do mesmo.
Ora, a 1ª instância classificou corrupção como um crime duradouro, que se prolonga no tempo
que só se consome quando a conduta para, tal como o sequestro – pelo que o crime prescreveu.
No entanto, a 2ª instância discordou, classificando corrupção como crime de consumação
instantânea no momento da solicitação que, por isso, acabou por prescrever – logo, todos os atos
posteriores à solicitação são irrelevantes, e não puníveis. Mesmo com o faseamento da corrupção –
ou seja, mesmo existindo promessa, aceitação da promessa, primeiro pagamento, segundo, terceiro,
etc. –, a consumação continua a dar-se no momento da prática do primeiro facto punível, sendo ele a
promessa ou a aceitação de vantagem. Tudo o que acontece a seguir a este primeiro facto punível são
meros factos posteriores não puníveis.

2. Acórdão TC Nº90/2019:
Em primeiro lugar, conclui-se, mais uma vez, este problema só se coloca se a factualidade
consistir numa promessa e consequente pagamento(s) posterior – visto que existindo só um deles,
esse será o momento de consumação. Ora, o TC defende que a expressão da corrupção como sendo
um crime instantâneo não tem sentido na lei. Será isto verdade?
À primeira vista, existem, no artigo, duas condutas que cabem no crime de corrupção: 1) o crime de
corrupção que é a aceitação da promessa; e 2) o crime de corrupção que é a aceitação do dinheiro. A
relação entre os dois poderá ser de consunção (concurso aparente), sendo que o último tem um
desvalor maior, porque, de facto, a lei prevê como crime o recebimento da vantagem – logo, acaba
por consumir todo o ilícito. Assim, sendo esta interpretação possível, o enquadramento do TC acaba
por ser peculiar.
No entanto, será mais difícil enquadrar esta lógica nas situações em que, por exemplo, a pessoa
que era funcionária quando aceitou a promessa, já não o é quando recebe o dinheiro (ex: caso do
Sócrates); ou no caso de faseamento do pagamento, seja o valor das “prestações” igual ou diferente.
Ora, o enquadramento dado já não faz sentido aqui: por exemplo, na primeira situação, receber o
dinheiro já não constitui um crime de corrupção, dado este ser um crime específico – e a pessoa
perdeu a qualidade que o qualificaria para o praticar.
➔ Denotar que praticar o ato consequência da vantagem é a finalidade da solicitação, mas não é uma
conduta que o funcionário tenha de ter para o crime estar consumado (nem é uma condição de
punibilidade) – portanto, o funcionário tem de ter a qualidade de funcionário quando aceita a
vantagem, e quando recebe.
Já o legislador, com a descrição do crime de corrupção, decidiu antecipar a tutela do bem,
configurando como crime desde logo a própria promessa, e não apenas o recebimento do dinheiro.
No entanto, este decidiu atacar a corrupção com tal intensidade, que acabou por fazer ricochete: ou
seja, acabou por fazer com que, sendo a consumação logo feita com a promessa (interpretação), os
atos posteriores ligam-se apenas ao primeiro facto punível, podendo apenas produzir-se no
agravamento da pena concreta.
No entanto, isto depois é prejudicado com os prazos de prescrição – até porque, normalmente, os
casos de corrupção só são descobertos com esse pagamento. Ora, os casos de corrupção poderiam
prescrever se a promessa fosse feita um momento, e o pagamento só fosse feito quando esse crime
prescrevesse.
Assim, o legislador, ao tentar abranger todos os atos, acabou por gerar esta consequência de uma certa
interpretação poder tornar não puníveis os atos posteriores que efetivamente, por um lado, são os atos
que traduzem as vantagens para o funcionário corrompido; e, pelo lado processual, são os momentos
em que se deteta a corrupção e comprova a mesma.

Concluindo…
➔ Tese do TC: O crime consuma-se com a promessa, e os restantes atos são meros agravantes.

➔ Tese do MP e do STJ: Existe uma diferença entre a consumação formal e a consumação material.
A consumação formal dá-se com a verificação de todos os pressupostos (promessa); enquanto a
consumação se dá com o “pagamento” – ou seja, aquilo que a norma pretende proteger só se
concretiza, mais tarde, com o exaurimento de todo o “plano” do agente (algo que acontece muito
nos crimes de perigo). Assim, a antecipação da tutela faz com que os atos de “execução” de um
plano mais longo acabem por ser também puníveis, e o “sentido” do crime acaba por ser adiado
para o momento da consumação material, apesar de já existir uma consumação formal – dado que
só aí é que há a “terminação do crime”.
o Será, também, a tese defendida por Nuno Brandão, que assinala a unidade de ação (enquanto
“crime instantâneo de consumação sucessiva”): ou seja, fala-se sempre de um único crime.

➔ Tese de Helena Magalhães Bolina: Olha-se para cada facto como um crime autónomo, tendo
entre elas uma relação de consunção – que, no entanto, tem as dificuldades já faladas.

Recebimento indevido de vantagem (artigo 372º)


No crime de recebimento indevido de vantagem, um funcionário que recebe um presente,
não para praticar especificamente algum ato (como na corrupção), mas, sim, pelo simples facto de
ele ser funcionário. Portanto, esta vantagem terá a finalidade de o terceiro tentar ter um bom
relacionamento com o funcionário, inspirar simpatias – e não para a prática de um facto em concreto.
Está, como em todos os outros crimes, previsto o recebimento indevido de vantagem passivo (nº1),
um crime específico; e a oferta indevida de vantagem ativa (nº2), um crime comum.
NOTA: Paulo Sousa Mendes fala sobre uma distinção estrita entre o crime de recebimento indevido
e o crime de corrupção – poderá haver, no entanto, situações que têm os dois objetivos. A corrupção,
sendo o mais grave, será o que consome todo o desvalor.
Discute-se, aqui, a fronteira entre o que é um crime de recebimento indevido de vantagem; e
o que corresponde a uma certa forma de as pessoas se relacionarem, e que possa ainda estar dentro
daquilo a que o artigo 372º chama de “condutas socialmente adequadas e conforme aos costumes”
(nº3). Sobre isto, Paulo Sousa Mendes relata um caso sobre um promotor que, todos os anos, enviava
mensagens de agradecimentos personalizadas a Ministros (“muito agradecendo a sua colaboração
sempre excelente) – mas, um ano, foi-lhe sugiro que também mandasse, com estas, vales de acesso a
jogos do campeonato da Alemanha. Ora, aplicando o artigo 372º CP, a conduta do recebimento
indevido não estaria preenchida, visto que os Ministros acabaram por não ir aos jogos – mas, em
relação à oferta indevida, discute-se se, efetivamente, isto seria uma situação enquadrável.
➔ Denotar que os patrocínios em si, não suscitam problema; o que será problemático é haver uma
aquisição de produto – ou seja, quando a entidade que é patrocinada ir, depois, fazer contratos
com a empresa que os patrocina, dado que as entidades públicas têm de fazer isso sempre através
de concurso público.
Se, no entanto, os Ministros tivessem ido, seria considerado recebimento indevido? O conceito de
vantagem tem evoluindo bastante, no sentido de se restringir cada vez mais essas ofertas –
existindo, até, regras sobre o “registo das prendas oferecidas e autorização dessas mesmas prendas”.
Portanto, há muitos anos atrás, havia uma maior amplitude para a aceitação desta prendas, sendo
normal dar gratificações aos funcionários. No entanto, com a evolução dos tempos, ficou determinado
que não é para receber nada – até um certo valor razoável (ex: caneta vs. relógio) –, apenas o seu
ordenado, recebido, aliás, pelo desempenho das suas funções.

Resolução de Caso Prático – Hipótese 4:


Duarte, empresário, tem um projeto de construção de um condomínio para ser aprovado há
três anos numa Câmara Municipal. Percebendo que o processo vai continuar a arrastar-se, Duarte,
em janeiro de 2022, promete a Eduardo, chefe de gabinete do presidente da Câmara, que contratará
para uma das suas empresas de construção o seu filho, Filipe, engenheiro recém-formado. Eduardo
aceita esta proposta de Duarte. A contratação de Filipe acontece em abril de 2022 e, em maio de
2022, o projeto de construção é finalmente aprovado. Gustavo, jornalista do jornal Expoente, publica
a história em junho de 2022, identificando expressamente Duarte, Eduardo e Filipe. Determine a
responsabilidade penal dos intervenientes.
Relativamente a Eduardo, este é funcionário (artigo 386º CP), sendo que a vantagem que lhe
é oferecida – o emprego do filho – tem como objetivo a obtenção de um ato concreto (a aprovação do
projeto). Eduardo, não sendo embora o responsável pelo ato final de aprovação, pratica no processo
atos dos quais decorre a aceleração dessa decisão: o projeto, que estava pendente há três anos, é
aprovado um mês após a contratação do filho de Eduardo. Assim, está-se perante um caso de
corrupção passiva: não será recebimento indevido de vantagem, dado não ser feito para “ter uma boa
relação com alguém”; nem tráfico de influência, dado que Eduardo não estaria a “influenciar” quem
faz tal decisão a fazê-la de forma positiva para Duarte (dar uma “palavrinha”) – estaria, sim, a mexer
nos papéis e a apresentar o projeto à frente de outros que possam ter sido apresentados primeiro.
➔ NOTA: Poder-se-ia discutir se, no crime de tráfego de influência, ter influência pressupõe uma
certa ascendência do influente relativamente ao influenciado, na medida em que o influenciado é
inferior ao mesmo? Isto porque, neste caso, Duarte (influente) é “inferior” a Eduardo. A letra da
lei, no entanto, diz que, pelo menos, este terá de demonstrar uma capacidade de influenciar (“real
ou suposta”) – assim, a criminalização da venda de uma influência suposta poderá colmatar tal
“inferioridade”.
Relativamente à responsabilidade de Duarte, este oferece a Eduardo (funcionário) uma
vantagem em troca da agilização do processo de aprovação do projeto de construção – crime de
corrupção ativa (artigo 374º CP). Filipe não tem nada a ver com isto, dado que foi só contratado: não
existem indicações que este tinha instigado ou agido como cúmplice no ato.
Relativamente à responsabilidade de Gustavo, a prática de crimes não se enquadra no âmbito
da reserva da vida privada, pelo que não se aplica o artigo 192º CP (devassa da vida privada). Pode
colocar-se a hipótese da difamação (artigo 180º CP), mas a divulgação de crimes praticados – que
será imputação de factos a pessoas, podendo estes ser desonrosos – no contexto do exercício de
funções públicas corresponde a um interesse legítimo (liberdade de informação e direito à
informação) e os factos são verdadeiros. A ponderação a realizar prende-se, então, com a divulgação
concreta de nomes – especialmente quanto a Filipe, que não é suspeito de crimes. Assim, mesmo no
caso de suspeitos (e não condenados por crimes), há que ponderar o âmbito da necessidade dessa
divulgação – referir a jurisprudência do TEDH sobre esta matéria: CASE OF FREITAS RANGEL v.
PORTUGAL (Application no. 78873/13). Conclui-se que, quanto ao funcionário Eduardo, tal seria
necessário; quanto a Duarte e Filipe, a menção dos seus nomes já seria mais questionável.

Resolução de Caso Prático – Caso Prático Nº 141:


1. Responsabilidade jurídico-penal de A:
Quanto a ter batido em B:
Tipicidade objetiva:
Ofensa à integridade física simples (artigo 143º CP). B acabou por morrer, não sendo, porém, a sua
morte imputável ao comportamento de A, como se pode comprovar por aplicação da teoria do risco. Com
efeito (e aplicando a teoria do risco), é inegável que o comportamento de A criou o risco (proibido) de matar
B. Isto, porque, por um lado, o choque por aquele provocado torna-se previsível, segundo critérios de
experiência comum, a morte deste (criação do risco de matar) e, por outro lado, a condução em excesso de
velocidade com uma taxa de álcool no sangue (TAS) superior ao legalmente permitido torna o seu
comportamento não tolerável pela sociedade (proibido).
A efetiva morte de B, porém, não corresponde à materialização do risco criado por A, devido a
intervenção relevante (porque imprevisível) de comportamento de terceiro (X). Ao colocar a garrafa partida
na estrada, X comporta-se, com efeito, de forma não expectável (imprevisível, à luz, também, de critérios de
experiência comum), acabando por interferir relevantemente no desenvolvimento do risco criado por A. Não
se imputa, deste jeito, a morte de B a A, não se subsumindo a respetiva conduta no tipo legal de crime de
homicídio (artigo 131º CP).
Apenas a ofensa à integridade física simples (artigo 143º CP) infligida a B resultante do choque de
veículos se pode imputar a A. Como bem se compreende, o mencionado risco (proibido) para a vida de B é
também, logicamente, risco (proibido) para a integridade física de mesmo B. E, desta feita (isto é, para tal
resultado), não existe qualquer interferência de terceiro. A ofensa à integridade física de B é, portanto,
materialização do risco (proibido) criado por A, enquadrando-se, assim, o comportamento deste na previsão
normativa do artigo 143º CP.

Tipicidade subjetiva: Como se deduz do texto do caso prático, A não teve intenção de provocar a ofensa à
integridade física de B, donde lhe não é dolosamente imputável tal resultado (artigo 14º CP). Violou, portanto,
A dois deveres de cuidado a que estava adstrito em razão das regras do Código de Estrada. Em conformidade
com o teor do artigo 15º CP, a violação de tais deveres de cuidado revela um comportamento negligente,
devendo a ofensa à integridade física de B ser imputada a A a título de negligência, por conjugação dos artigos
15º e 148º CP.
Quanto a ter fugido, depois do embate:
Tipicidade objetiva e subjetiva:
Existe erro-suposição de uma realidade típica que é característico da chamada “tentativa impossível”
de um crime. Se efetivamente B estivesse vivo, A estaria adstrito a um dever jurídico que pessoalmente o
obrigaria a evitar o resultado (morte), enquadrando-se a situação no artigo 10º, nº2 CP. A fonte de tal dever de
garante seria a ingerência ilícita precedente, pois a suposta situação de perigo em que se encontrava B foi
provocada pelo choque protagonizado ilicitamente por A. Posto isto, conjugando os artigos 10º, nº2, 22º, nº2,
b) e 131º CP, A, ao não socorrer B, deixando-o na suposta situação de perigo para a vida por desejar a sua
morte, iniciaria uma tentativa dolosa de homicídio por omissão.
Esta tentativa não é, porém, apta a ser consumada dada a inexistência do objeto da ação (ou omissão)
de matar (ou deixar morrer), ou seja, uma pessoa. Existe, não obstante, por parte de A, dolo de homicídio por
omissão (intenção de deixar morrer alguém) por supor que B estava vivo, pelo que se nos depara aqui uma
tentativa impossível, por inexistência do objeto (artigo 23º, nº3 CP) de homicídio (artigo 131º CP) por omissão.

Punibilidade: Trata-se de uma tentativa impossível punível por não ser manifesta a inexistência do objeto
essencial à consumação do crime, isto é, por não ser manifesta a inexistência de uma pessoa. Com efeito,
ocultado o pedaço de vidro pelo corpo de B, seria normal conjeturar que este se encontraria desmaiado, mas
vivo. Este regime jurídico resulta de interpretação enunciativa com juízo a contrario sensu de uma norma
excecional, o artigo 23º, nº3 CP, aplicando-se, por congruente, o comando da norma geral que regula a
punibilidade da tentativa, qual seja, o artigo 23º, nº1 CP. A deve, então, ser punido por tentativa impossível de
homicídio por omissão pela conjugação dos artigos 22º, 23º, 10º e 131º, aplicando-se a tal punibilidade o
regime do artigo 73º, nº1, a) e b) ex vi do artigo 23º, nº2 CP.

2. Responsabilidade jurídico-penal de X:
Tipicidade objetiva: B caiu em cima de um dos pedaços de vidro da garrafa partida que X colocara na
estrada e teve morte imediata. Indicia-se um crime de homicídio previsto no artigo 131º CP. Sendo o homicídio
um crime de resultado impõe-se a aplicação da teoria do risco. X, com o seu comportamento, criou o risco
(não tolerável pela sociedade) de matar quem ali eventualmente caísse. Tal resultado é, com efeito, previsível
segundo critérios de experiência comum (criação do risco de matar) e a “brincadeira” de X é de “terrível mau
gosto” (não tolerável pela sociedade). A morte de B corresponde, por sua vez, à materialização do risco criado
por X, pois nada mais ocorreu que impedisse essa materialização. O comportamento de X de onde acabou por
resultar a morte de B enquadra-se, assim, no tipo legal de crime de homicídio (artigo 131º CP).

Tipicidade subjetiva:
Não terá tido X a intenção de matar, mas, com o seu comportamento violou um dever de cuidado a
que estava adstrito, e que era capaz de cumprir. A colocação do vidro partido na via pública viola as mais
elementares regras de confiança que das normais relações da vida social resultam. A morte de B é, assim,
imputada a X a título de negligência, nos termos do artigo 137º CP.
Tão básicas são as regras de confiança aqui violadas (tornando provável a verificação do resultado
ocorrido) que poderiam levar a problematizar se o comportamento de X não implicaria mesmo dolo eventual
de homicídio. Levantar-se-ia, então, a clássica temática da distinção entre o dolo eventual e negligência
consciente. Não parece, contudo, que a atitude interior de X revele uma conformação com o homicídio
enquanto resultado da sua conduta (como exige o artigo 14º, nº3 CP), mas, tão-somente, a de efetivar a sua
“brincadeira” de furar pneus a automóveis. Trata-se, não obstante, de uma situação negligência próxima do
dolo eventual e, enquanto tal, uma clara situação de negligência grosseira (artigo 137º, nº2 CP). Assim, X deve
ser punido pelo crime de homicídio por negligência grosseria, em conformidade com o artigo 137º, nº2 CP.
3. Responsabilidade jurídico-penal de E:
Relativamente a A:
Tipicidade objetiva: O disparo de um tiro é naturalmente um ato idóneo a matar, configurando-se, pois,
como um ato de execução de um crime de homicídio que não chegou a consumar-se, em sintonia com os
artigos 22º, nº1 e 2, b) e 131º CP.

Tipicidade subjetiva: E disparou com intenção de matar, pelo que o ato de disparar na direção de A foi
executado com dolo de homicídio em conformidade com os artigos 14º, nº2 e 131º CP. E executou, pois, um
ato de um crime (de homicídio) que decidiu cometer, preenchendo, assim, com a sua conduta o tipo subjetivo
de homicídio na forma tentada (artigos 22º, nº1 e 2, b) CP).

4. Responsabilidade jurídico-penal de D:
D, com intenção de matar A, convenceu (determinou) E, mediante pagamento de quantia pecuniária,
a cometer o crime de homicídio. Este, por sua vez, executou-o, ainda que não tenha havido consumação. Em
conformidade com o artigo 26º, nº4 CP, ao dolosamente determinar E a matar A, D configura-se como
instigador do crime de homicídio e, nessa medida, como participante desse crime. A circunstância de D, na
chamada posição de “homem-de-trás”, não ter viciado a vontade (ou de não ter aproveitado uma eventual
vontade viciada) do “homem-da-frente” E impede-o de assumir o domínio da vontade sobre o comportamento
deste e, portanto, o domínio do facto criminoso. Assim, e atendendo ao critério do “domínio de facto” na
distinção entre autores e participantes no contexto da dogmática da comparticipação, D é participante e não
autor do crime.
A punibilidade do participante em crime de outrem opera através da teoria da acessoriedade limitada.
Significa isto que do autor do crime (E) para o participante (D, instigador) se comunica a ilicitude (típica) do
seu comportamento, como se retira da conjugação do artigo 26º, nº4 proposição (sendo instigador o
participante), com o artigo 29º, ambos do CP. Se, na verdade, cada comparticipante responde pela sua culpa
(artigo 29º CP), então a equiparação do instigador ao autor sufragada pelo artigo 26º, 4ª proposição CP não
pode abranger mais do que a ilicitude típica. Vale por dizer, o instigador responde pelo comportamento típico
e ilícito do autor (instigado). Posto isto, de E, autor material e instigado, para D, instigador, comunica-se a
ilicitude do comportamento típico, qual seja, tentativa de homicídio; mas não mais do que a ilicitude,
respondendo, assim, D pela sua culpa, em conformidade com o mencionado artigo 29º CP.
Ora, no plano do pressuposto da culpa, há que considerar que D se encontra em erro sobre a ilicitude
do facto, dado estar convencido de que tem o direito de matar A ao abrigo de uma causa de justificação – não
obstante ter sido a agressão sobre B à sua integridade física e vida (e não à honra) e esta estar já consumada
(D agiu em retaliação). Trata-se, com efeito, de um erro de valoração, que se enquadra na figura de erro sobre
a ilicitude prevista no artigo 17º, nº1 CP: D está em erro não sobre qualquer circunstância fáctica, mas sobre a
valoração jurídico-penal do comportamento a que instigou E. Este erro é, no entanto, claramente censurável,
pois o convencimento da licitude de um homicídio nestas circunstâncias é relevador de um grave alheamento
dos valores jurídico-penalmente reconhecidos e, portanto, de uma atitude interior indiferente ou mesmo
contrária a tais valores. É um erro que resulta, assim, de uma “culpa pela personalidade” do agente, e, enquanto
tal, censurável, aplicando-se a sua conduta o preceituado no artigo 17º, nº2 CP.
Quanto à punibilidade, deve, então, ser punido D (enquanto instigador) como autor (artigo 26º, 4ª
proposição CP) de uma tentativa de homicídio em erro sobre a ilicitude censurável. À moldura penal aplicável
à tentativa de homicídio, pode, assim, o tribunal proceder a atenuação especial que, a ocorrer, deverá ser feita
em conformidade com o artigo 73º, nº1 e 2 CP.

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