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INTRODUÇÃO
Sistematização do Código Penal
A parte especial do Código Penal (parte II) está organizada de acordo com o critério do bem
jurídico, não sendo apenas uma lista discricionária de crimes. Ou seja, o legislador escolheu organizar
esta parte especial de acordo com os bem jurídicos que são protegidos por cada crime: pondo em
primeiro lugar os crimes contra a vida e, só mais à frente, estipulando os crimes contra o Estado –
exprimindo uma certa importância dos bens jurídicos a ser protegidos.
Além disso, tal organização é ainda expressa nas sanções, sendo que o homicídio qualificado é aquele
punido com uma pena abstratamente maior. No entanto, encontram-se, aqui, alguns desvios a estas
prioridades, existindo por exemplo crimes contra o património a estipular uma pena abstratamente
mais longa do que os crimes contra a liberdade.
Esta parte especial reflete, ainda, a própria ordem de valores que resulta da CRP, tendo uma
certa prioridade perante as normas da parte geral – que apenas normas de extensão dos tipos de crime
estipulados nessa parte especial. Assim, quando se resolve um caso prático penal, é necessário
começar sempre pela parte especial, com prioridade metodológica à parte geral; só depois é que se
vai à parte geral se, por exemplo, existir mais do que um autor, sendo necessário, para o punir,
estender o tipo de crime preenchido.
No entanto, denota-se que os diferentes crimes que protegem o mesmo bem jurídico não estão
estritamente organizados pela gravidade da ofensa a esse bem – normalmente, começa-se pelo crime
base, fazendo-se depois as incriminações qualificadas ou privilegiadas.
SITUAÇÕES DE ERRO:
Numa situação em que o agente mata uma pessoa, sem saber que este é seu pai, está-se perante
um “erro ignorância”: uma vez que o erro é sobre a circunstância qualificadora (artigo 131º, alínea
a) CP), não se irá aplicar o crime de homicídio qualificado – mas continua-se a estar perante um crime
de homicídio simples, dado que tal erro não exclui o dolo (ele quis, na mesma, matar uma pessoa).
No entanto, nas situações em que existe um erro de suposição – ou seja, em que o agente
pensa que está a matar o pai, mas está a matar outra pessoa qualquer –, existirá concurso entre uma
tentativa impossível do crime de homicídio qualificado e um crime de homicídio simples consumado?
Uma parte da doutrina acha que existe um concurso; havendo, no entanto, posições segundo as quais,
não existindo a qualificação, não se poderá de qualquer forma punir o agente pelo artigo 132º,
punindo-se apenas pelo homicídio consumado.
Este concurso, a existir, terá, no mínimo, de ser aparente – ora, sendo aparente, qual dos crimes deve
prevalecer? A doutrina diverge. Figueiredo Dias, por exemplo, diz que deverá prevalecer o homicídio
simples consumado, na medida em que a circunstâncias agravada não se verifica completamente:
aliás, se se fosse punir pela tentativa de homicídio qualificado, o assistente no processo (o ofendido)
seria esse pai, que nem sequer lá estava – enquanto o morto real não seria sequer representado.
Consequentemente, este autor acrescenta, então, a possibilidade de existir uma agravante em concreto
– nomeadamente, o facto de ele querido matar o pai pode ser visto como agravante da culpa, de forma
que a pena consiga, ao ser aumentada em função da culpa, consumir todo o desvalor da ação.
Denota-se, aqui, que existe uma ação: A é dominado pela vontade de querer fazer aquela ação.
Quanto à tipicidade, o comportamento de A preenche os pressupostos do crime de homicídio:
agente (A), resultado (morte), vítima (B), etc. Existe, além disso, imputação objetiva do resultado
morte à conduta de A, passando o mesmo as três teorias; e imputação subjetiva, na medida em que A
tem o dolo direto de matar B, na medida em que prevê o resultado e age querendo que este aconteça
(artigo 14º CP).
Ainda dentro do comportamento típico, denota-se, no entanto, que A mata em circunstâncias
especiais, que poderão caber nas alíneas c), j), e), e i) do artigo 132º CP – homicídio qualificado:
➔ Alínea e): O STJ acabou por não aplicar esta alínea, na medida em que considerou que A poderia
ter morto B não apenas por uma dívida de 300 euros de à 20 anos – que demonstraria um motivo
fútil, na medida em que matar por um motivo destes mostra um desprezo pela vida humana –,
mas sim pela maneira como B o tratou, “fechando-lhe a porta na cara”. Assim, A poderá ter morto
B não por causa do motivo fútil da dívida, mas devido a sentir-se humilhado – não era só a questão
da dívida que teria de ser avaliada, mas todo o contexto e a dimensão que o problema já tinha
ganho, existindo toda uma irritação que rodeava o caso.
➔ Alínea i): O STJ não aplicou esta alínea, visto que, com a enunciação da utilização do veneno,
dá-se à mesma uma dimensão de o meio insidioso não ser detetável – ora, utilizar uma caçadeira,
mesmo sendo utilizada nas costas de B, não será equiparável a essa dimensão não detetável,
independentemente da maneira como é utilizada (Ex: a 20 metros vs. à queima-roupa).
➔ Alínea j): O STJ concordou com a aplicação desta alínea, visto que o facto de A ter pensado
naquilo durante 15 dias, assim como tendo demorado tempo a ir buscar a arma e esperar que a
mulher saísse, demonstra uma frieza de ânimo – a ação foi bem ponderada, não sendo um crime
de impulso.
➔ Alínea c): O STJ não aplicou esta alínea, dado que o facto de B ser mais velho não implica que a
sua morte se deveu a essa circunstância – qualquer pessoa, independentemente da idade, não se
conseguiria defender contra um tiro de caçadeira, podendo este ser fatal para qualquer um.
Quanto à ilicitude, não existe nenhuma causa de exclusão, pelo que não se justifica a ação.
Quanto à culpa, é notável que A pondera bem sobre a sua intenção de matar, ficando com esta
durante 15 dias e até ao momento em que mata B – ora, isto poderá indiciar especial censurabilidade?
Aqui, faz-se uma avaliação sobre todo o facto e o contexto em que este surge: o facto de este persistir
na sua intenção é importante, visto que A teve mais do que tempo para se acalmar, avaliar as
consequências e mudar de vontade – mas não o fez. Consequentemente, poder-se-á concluir que se
exigia a A um comportamento diferente, na medida em que o “fechar a porta na cara”, apesar de
acarretar irritação, não fará, mesmo junto com a questão da dívida, a sua intenção duradoura de querer
matar B “compreensível”.
Finalmente, e não existindo problemas quanto à punibilidade de A, condenar-se-ia o mesmo
por homicídio qualificado – no caso concreto, A foi condenado a 18 anos, dado ter sido condenado
em concurso efetivo pelo crime de posse ilegal de arma.
PROVOCAÇÃO DA VÍTIMA:
Em ambos os acórdãos analisados em aula – Acórdão do STJ, de 16.10.2003 (caso básico de
homicídio privilegiado) e Acórdão do STJ, de 03.10.2007 (questão dos crimes passionais) – há um
momento em que se fala de “provocação” pela vítima. Significa isso que só se enquadram no
homicídio privilegiado os casos em que o agente, que está dominado por esses motivos, mata o
provocador? Não, visto que, ao estar-se a fazer uma exigência suplementar, acaba-se por fugir à
legalidade da questão, exigindo algo que a lei não exige. Aliás, tal exigência de provocação será ainda
mais refutada quando se perceber que não poderão ser enquadrados, neste tipo de crime, uma situação
de “provocação pré-ordenada”: ou seja, em que o autor instiga o outro, provocando-o, para ter um
pretexto para o matar (ex: legítima defesa).
Por exemplo, num caso em que alguém disse a A que B andava a dizer que A tinha tido
relações sexuais com C – e, num momento de emoção, A quer matar B; mas acaba por matar D, uma
vizinha que se mete à frente dela para a tentar parar. Neste caso, a vítima não é o provocador – no
entanto, isso não significa que não se esteja perante um homicídio privilegiado, visto que não há a
necessidade de haver esta provocação, ou seja, que exista uma coincidência entre a pessoa que
provocou e a pessoa morta. A única exigência que se faz é que exista um nexo de causalidade entre
o motivo e o homicídio feito: A só matou D porque estava dominada por uma compreensível emoção
violenta (neste caso).
➔ No entanto, será necessário ainda que exista uma diminuição sensível da culpa: ou seja, tendo D
o objetivo de fazer o bem, não seria exigível a A que agisse de outra maneira? Ora, neste caso,
não existirá tal diminuição, na medida em que A deveria ter-se resfriado perante a tentativa de D
de a parar – logo, sendo-lhe exigível outra conduta, não seria enquadrado neste tipo de crime.
Compaixão
Quanto à compaixão, este é um estado de piedade, solidariedade, ou empatia perante o
sofrimento da vítima. A esta não acresce um critério de compreensibilidade, dado ser uma emoção
positiva – ou seja, a mesma não tem de ser compreensível perante o caso concreto. No entanto, terá
de haver, na mesma, uma diminuição sensível da culpa, tendo em conta as circunstâncias do caso.
Além disso, não pressupõe o pedido da vítima (ao contrário do crime de homicídio a pedido) –
podendo, no entanto, ser um homicídio provocado para tentar aliviar o sofrimento de outra pessoa.
Desespero
O desespero é um estado de depressão, de perturbação interiorizada, angústia e revolta.
Denota-se, aqui, que existe uma diferença entre desespero e compreensível emoção violenta:
enquanto na emoção violenta, existe uma “provocação”, ou seja, um momento em que se escalou a
situação (ex: Acórdão do STJ, de 16.10.2003); no desespero, existe um agravamento da situação mais
prolongado, que faz com que a pessoa sinta que o homicídio é a única solução (ex: casos em que a
vítima de abusos sexuais mata o seu violador, num contexto em que este, depois do sucedido, continua
a “aterrorizá-la” – episódio 4 da temporada 15 de Law & Order).
SITUAÇÕES DE ERRO:
Quando o agente age em erro quanto à existência dos factos que dão origem à emoção (ex:
afinal não foi B que espalhou os boatos), verifica-se, mesmo assim, a compreensível emoção violenta.
Isto porque, ao ser este um tipo de culpa, o que está na origem do mesmo é o facto de o agente sentir
aquela emoção – ao contrário do que acontece com os tipos de ilícito, em que são as condutas que
são “objetivamente”/abstratamente desvaloras, lavrando o erro esse desvalor (ex: o caso em que uma
pessoa mata pessoa que acha ser seu pai, mas não é).
Ou seja, o que importa é que tal emoção existe, podendo esta ser causada por uma situação real, mas
também por uma situação que o agente pensa que existe – sendo que tal erro terá de ser razoável, na
medida em que a pessoa média, nas mesmas circunstâncias, também incorreria nesse erro.
NOTA: Não pode existir concurso entre homicídio qualificado e privilegiado, visto que eles são
mutuamente exclusivos – a mesma ação não pode revelar, simultaneamente, menor e maior
censurabilidade.
TIPO DE CULPA:
Não obstante de, também, se estar aqui perante um enquadramento que dá relevo à culpa, dado
se falar de uma “influência perturbadora do parto” enquanto tipo de culpa; tal culpa é pressuposta a
partir do momento em que se comprova a existência dessa influência. Dito por outras palavras, não é
necessário comprovar, em separado, a influência e a diminuição da culpa (ou seja, a menor
exigibilidade de uma conduta diferente) que é consequência dessa influência: a existência da
influência presume a diminuição da culpa.
➔ Anteriormente, previa-se um outro critério: o de matar para ocultar a desonra. Atualmente, no
entanto, este já não é algo que possa incluir um comportamento no âmbito do infanticídio.
Denota-se que o facto de não se exigir esta culpa diminuída faz com que o âmbito do
infanticídio seja maior do que o âmbito do homicídio privilegiado. Diferente é, no entanto, a questão
de saber quando é que se tem de formar a intenção de matar a criança: nomeadamente, esta tem de
ser feita sob a influência perturbadora do parto, e não antes do parto – caso contrário, se a intenção
de matar a criança surgir antes do parto (ex: casos de gravidez indesejada), tal já será considerado
homicídio e não infanticídio, não obtendo este privilégio.
Por fim, tratando-se este num tipo de culpa, as situações em que a mãe é ajudada a matar o
filho por outra pessoa são enquadradas pelo artigo 29º CP: A culpa é avaliada autonomamente, logo
só fica no âmbito deste privilegiamento a mãe, ficando de fora outros participantes.
SITUAÇÃO DE ERRO:
Na situação em que o agente mata, mas fá-lo sem o conhecimento de que existia um pedido
da vítima para o fazer, existe um erro de ignorância: assim, a partir do momento em que o agente
não sabe do pedido, não se pode determinar pelo mesmo – logo, não se poderá enquadrar neste artigo.
Já no caso em que o agente, pensando que há esse pedido, age conforme o mesmo e mata a
vítima, a situação é diferente. Uma parte da doutrina considera que o agente será punido em concurso
pela tentativa de homicídio a pedido da vítima, e homicídio negligente (com o enquadramento do
artigo 16º, nº2 CP). No entanto, e concentrando a análise na dimensão de ilicitude, tal solução não
parece ser a mais acertada: apesar de o erro incidir sobre a existência do pedido, o agente acaba por
ter dolo direto de matar, na medida em que age com a intenção de matar a vítima – o que faz com que
seja difícil de enquadrar tal ação na figura do homicídio negligente. Assim, outra parte da doutrina
considera que tal erro é irrelevante, dado que o interessa é que o agente apenas agiu determinado pela
ideia do pedido.
No entanto, refere-se, ainda, a posição de Silva Dias. Este entende que o erro, nestas situações, não
se refere ao facto de se estar a matar alguém, mas sim ao facto de não existir pedido, pelo que não se
pode enquadrar no artigo 134º CP – isto, porque apesar de o agente agir com a motivação do pedido,
a verdade é que este não existe; ora, não existindo, também não haverá a circunstância que faz com
que a ilicitude seja diminuída. Portanto, para ele, ou se verificam as circunstâncias do homicídio
privilegiado por compaixão (artigo 133º CP), se se verificar, no agente, um sentimento de compaixão
para com a vítima e o seu aparente sofrimento; ou o mesmo será um homicídio simples (artigo 131º
CP), com as circunstâncias do artigo 72º, nº2, alínea b) do CP relativas à diminuição da culpa (mas
não da ilicitude que, como já vimos, não pode ser aqui diminuída).
➔ Tal posição parece, para a professora, ser a mais acertada, por ser aquela que tenta dar resposta à
realidade.
Caso Gisela:
A e a vítima Gisela estavam apaixonados um pelo outro. Como o namoro era proibido pelos pais de
Gisela, esta decidiu suicidar-se e A acordou com ela suicidarem-se em conjunto. Para o efeito, A
montou um dispositivo que conduzia os gases tóxicos do escape para dentro do carro. Estando ambos
dentro do carro, A pôs o motor a trabalhar e manteve o pé no acelerador até ficar inconsciente.
Ambos foram encontrados inconscientes, mas só A sobreviveu. Quid Iuris?
Aqui, A poderá ser punido pelo crime de incitamento ou ajuda ao suicídio, como disposto no
artigo 135º CP, e não pelo crime de homicídio a pedido da vítima. Isto, precisamente porque Gisela
manteve, até à sua morte, o domínio fáctico do que estava a acontecer, na medida em que, caso
mudasse de ideias, poderia abrir a porta do carro e sair do mesmo – impedindo, assim, que o resultado
“morte” se desse. Além disso, existindo um pacto entre os dois para praticar esta ação, enquadrar esta
ação como homicídio seria dizer que existiu um homicídio em coautoria contra as suas próprias vidas
– algo que acabará por ser bastante contraditório.
Aliás, tendo sido uma coisa planeada entre ambos, o plano foi executado tal como planeado,
não tendo havido uma ação de execução do mesmo que desviasse esse domínio para fora do campo
de domínio da vítima. E mais, a execução da morte de A ir-se-ia confundir com a execução d morte
de Gisela, na medida em que ambas iriam acontecer ao mesmo tempo – o que não se verificaria, por
exemplo, num caso de homicídio-suicídio, em que o agente primeiro mata a vítima, e só depois se
mata a si, em duas ações separadas.
Concluindo, ambos os participantes conservam, até ao fim, o domínio de conseguirem pôr fim
ao curso dos acontecimentos – pelo que se enquadra tal ação no crime de incitamento e ajuda ao
suicídio, e não no crime de homicídio a pedido da vítima.
PRESSUPOSTOS:
Para se condenar alguém por homicídio negligente, é necessário que três requisitos estejam
preenchidos: 1) violação de um dever de cuidado; 2) relação de conexão entre essa violação e uma
conduta do agente; e 3) o resultado “morte” proveniente dessa conduta. Tal resultado é um requisito,
dado que a “tentativa de homicídio negligente” não é punível, ao abrigo do artigo 23º, nº1.
Relativamente à violação de um dever de cuidado, este poderá ser de fonte normativa ou de
fonte “geral”, na medida em que seria razoável dizer que este existia (ex: será razoável dizer que
quem lida com fontes de perigo, terá de o fazer de forma cuidadosa). Tal violação poderá ser tanto
dolosa como negligente: o agente poderá tanto querer violar esse dever de cuidado, como o poderá
ter feito de forma inconsciente.
Relativamente à conduta do agente, esta terá de ser, sempre, negligente: ou seja, o agente
não pode ter representado a possibilidade de, com aquela conduta – e não com aquela violação do
dever de cuidado –, o resultado “morte” se verificar, como uma possibilidade séria (negligência
consciente); ou, até, como uma possibilidade de todo (negligência inconsciente).
No entanto, no âmbito da negligência, existe o princípio da confiança. Ou seja, existem situações em
que se pode presumir que não se tem de tomar cuidados, dado se poder esperar que as outras pessoas
atuem como deveriam (ex: um condutor pode presumir que, se estiver verde, pode passar com a
confiança de que os outros carros estarão parados). Este princípio não é, no entanto, absoluto,
dependendo das circunstâncias e da possibilidade de o condutor moldar a sua conduta para superar a
falta de dever de cuidado do outro (ex: numa situação em que um peão está a circular fora da
passadeira, o condutor não lhe pode bater só porque este violou o seu dever de cuidado).
➔ Por exemplo, numa cirurgia, o cirurgião não tem de ir verificar ele próprio que os utensílios estão
esterilizados, porque pode confiar que quem tem tal tarefa a seu encargo, dentro da equipa médica,
cumpriu o seu dever – a não ser, por exemplo, se vir que o bisturi está todo sujo antes de o usar.
Este raciocínio já não se aplica, no entanto, ao contexto de um acidente em autoestrada, em que o
agente se encontra a andar em excesso de velocidade. Neste caso, o perigo que potencia a norma do
excesso de velocidade será o perigo de acidentes nas autoestradas. Ora, a violação do dever de cuidado
de andar à velocidade permitida aumenta um risco que, depois, vem a ser concretizado no resultado
“morte”, ainda que indiretamente – o risco de haver acidentes entre automóveis. Consequentemente,
estar-se-á sempre perante uma situação de negligência pois era exigível ao agente ou que levasse a
representação desse resultado a sério (negligência consciente), ou que representasse esse resultado de
todo (negligência inconsciente) – aliás, poder-se-ia dizer que existe aqui uma negligência grosseira.
➔ O mesmo já poderá não ser dito numa situação de acidente na autoestrada com um peão (ex:
contexto do acidente do ex-Ministro Eduardo Cabrita), visto que aqui será possível argumentar
que o agente teria a confiança de que, mesmo andando em excesso de velocidade, não lhe era
exigível prever o embate num peão – dado que na autoestrada os peões estão proibidos de andar.
Este argumento poderá ser vetado, no entanto, se se tomar em conta as situações dos trabalhadores
da estrada; ou, ainda, de pessoas cujos veículos avariaram, e que se encontram fora do mesmo
para chamar ajuda.
Relativamente ao resultado “morte”, este será, mais uma vez, imputado à conduta do agente,
e não à violação do dever de cuidado, prévia a esta – isto, porque a morte, em si, resulta dessa conduta,
e não apenas da mera violação do dever de cuidado. Por exemplo, numa situação em que A está a
andar de carro em excesso de velocidade, mas no seu trajeto atropela B e este morre. Ora, a morte de
B resulta, diretamente, do facto de o carro de A bater nele, e não especificamente da violação do dever
de cuidado (que, neste caso, seria de fonte normativa: contraordenação) – até porque A podia ter feito
o seu trajeto todo em excesso de velocidade e não atropelar ninguém. Significa isto que apesar de a
violação do dever de cuidado poder ser dolosa, a conduta não é, porque A não bate em B de propósito
– pelo que, consequentemente, não se está perante um homicídio doloso, mas sim negligente.
➔ Denota-se que não existe diferença relativamente à imputação objetiva: nos casos de homicídio
negligente por ação, a imputação do resultado à conduta do agente faz-se em moldes muito
semelhantes aos que são utilizados nos restantes homicídios.
No entanto, para que isto se verifique, é necessário estabelecer uma relação anterior entre a conduta
de bater com o carro e a violação do dever de cuidado, dado que será essa violação a “justificação”
da conduta ter acontecido. Dito de outra forma, o resultado “morte” é imputado subjetivamente à
conduta de A ter atropelado B, conduta essa que, por sua vez, é crime dado originar de uma violação
desse dever de cuidado.
➔ Assim, se se demonstrasse que mesmo que A estivesse a andar dentro dos limites legais, o
atropelamento aconteceria (algo muito difícil – ex: B cai da árvore mesmo para o meio da estrada),
não existiria tal relação entre a conduta do agente e a violação do dever de cuidado, até porque
este nem foi violado. Consequentemente, afastar-se-ia o homicídio negligente.
CONCEITO DE AUTOR:
No caso da negligência, existe uma modalidade ou um conceito de autor que é distinto do
conceito verificado nos crimes dolosos. Ao passo que neste último o conceito de autor é mais
restritivo a apenas quem tem o controlo do facto (podendo depois os restantes ser punidos como
participantes); no caso dos crimes negligentes, são punidos como autores todos aqueles que violarem
o dever de cuidado e deem um contributo causal para o resultado. Significa, isto, que nos crimes
negligentes, não existe punição de instigadores, sendo estes punidos como autores.
Para ilustrar isto, Figueiredo Dias dá um exemplo bastante parecido ao do acidente do ex-
Ministro Eduardo Cabrita: A ordena o seu motorista que exceda o limite de velocidade;
consequentemente, o motorista atropela e mata um peão. Ora, se fosse um crime doloso, A seria
punido como instigador; mas num crime negligente, A já será punido como autor. Outro exemplo
será deixar, durante uma discussão, uma arma carregada perto de uma pessoa embriagada.
PRESSUPOSTOS:
Segundo o Código Penal, este crime exige a existência de uma relação entre o agressor e a
vítima, que daria (abstratamente) origem a um dever de cuidado mais especial. Consequentemente,
por um lado, tal dever faz com que os atos de violência, nesse contexto, sejam mais graves; e, por
outro lado, reconhece-se que as relações íntimas conseguem e podem ser mais perigosas,
especialmente para as mulheres.
Assim, a maior parte das vítimas são cônjuges ou ex-cônjuges; mas também se abrange, na alínea b),
outras relações – desde relações análogas ao casamento, até a simples namoros, tendo a ideia de
coabitação sofrido uma atenuação nestes últimos anos.
Além disso, a vítima poderá, também, ser alguém que tem a parentalidade em conjunto de alguém
com o seu agressor (alínea c), não se exigindo, mais uma vez, o requisito da coabitação; assim como
o próprio descendente biológico, adotivo ou por casamento (alínea e). Significa isto que a situação de
criança, que passa um fim de semana com o pai e que sofre maus-tratos deste, também se enquadra
neste crime.
O requisito da coabitação já se encontra nos casos da alínea d): ou seja, nos casos de pessoas
particularmente indefesas – nomeadamente, casos de filhos que batem nos pais. Esta exigência de
coabitação é criticada, na medida em que deixa bastantes casos desta natureza de fora; de qualquer
das formas, tais casos poderão ser sempre enquadrados no crime de ofensas à integridade física.
Se uma conduta prevista como violência doméstica for praticada em frente a um menor, que
coabite com a vítima ou com a vítima e o agressor (domicílio comum), tal circunstância será, segundo
o nº2, alínea a), uma qualificação da mesma. No entanto, esta poderá ser, também, considerada
autonomamente como um segundo crime de violência doméstica, devido aos maus-tratos psíquicos
provocados na criança ao assistir a tal conduta.
Este nº2 também prevê, na sua alínea b), a qualificação da conduta em casos da chamada “revenge
porn” – que surgem, tipicamente, depois da cessão de relacionamentos amorosos.
O nº3 do artigo prevê situações de agravamento da pena pelo resultado (negligente):
nomeadamente, se dos maus-tratos resultar ofensa à integridade física grave (alínea a); ou morte
(alínea b). Aqui, denota-se que a moldura penal da violência doméstica será aplicável, se não se
aplicar outra mais grave – regra de subsidiariedade. Além disso, acaba por haver, também, entre os
dois crimes (ofensa à integridade física vs. violência doméstica), uma relação de consumação – sendo
que o crime de violência doméstica acaba por conseguir abarcar todo o dolo da ação, sem se precisar
de recorrer, também, ao crime de ofensa à integridade física.
Por fim, os nº4 e 5 preveem penas acessórias específicas, que também se aplicam caso o agente venha
a ser punido por pena mais grave, por via dessa regra de subsidiariedade (“incluindo aqueles em que
couber pena mais grave por força de outra disposição legal”).
PODER DE CORREÇÃO:
Dentro do crime de violência doméstica, discute-se a existência (ou não) do poder de correção:
nomeadamente, discute-se se, no âmbito de um poder de correção, atribuído essencialmente aos pais,
os castigos físicos às crianças poderão ser justificados pela sua existência.
Por um lado, há quem defenda que este poder de correção não existe, mas que certos castigos físicos
acabam por ser condutas banais, que não têm relevância penal – isto, baseando-se na ideia de que as
pessoas, pais ou não, não são de ferro e poderão “perder a cabeça” de vez em quando.
Por outro lado, há quem defenda a existência desse poder, quase como um direito dado aos pais:
portanto, esta conduta é justificada desde que seja exercida dentro deste poder de correção, ou seja,
desde que tenha uma finalidade educativa, e que seja exercida com proporcionalidade entre a ofensa
corporal e o que se pretende ensinar.
Esta segunda posição defende, então, que nem todas as ofensas corporais estarão consideradas
no âmbito do poder de correção – mas qual será o critério para distinguir os castigos físicos de
genuínas ofensas à integridade física?
A doutrina diverge. Há quem ressalve o critério já mencionado: o poder de correção abrange a
possibilidade dos pais de bater nos filhos, desde que a conduta em si não seja excessiva (ex: bofetada)
ou de grande relevo a nível da ofensa feita, e se a mesma tiver a tal finalidade educativa (ex: palmada).
Já outra parte defende que estes castigos físicos provocam mais consequências negativas do que
consequências positivas, na medida em que não existe nenhuma finalidade educativa com os mesmos
– a não ser, no entanto, em situações de perigo ativo, em que é preciso fisicamente afastar esse perigo
da criança, que não percebe o mesmo (ex: dar uma palmada nas mãos de uma criança que ia meter os
dedos na tomada). Ou seja, aqui, defende-se que as conceções sociais sobre o poder de correção
evoluíram ao ponto de excluir tais castigos físicos do âmbito do mesmo.
No fundo, discute-se, assim, a existência da tal finalidade educativa – como é que se justifica a
mesma? Porque uma coisa será dizer que certa conduta não é crime por ser insignificante; outra será
dizer que essa conduta não é crime porque está justificada por essa finalidade educativa. Ora, a
situação de uma palmada – situação mais comum –, acaba por ser, quase sempre, uma manifestação
de exasperação por parte dos pais, pelo que será difícil encontrar nesta uma finalidade educativa: esta
apenas ensina à criança que, se se comportar assim, recebe um castigo físico – e não, propriamente,
porque é que não se deve comportar daquela maneira.
De qualquer das formas, em quase todas as situações, as condutas terão de ter um limiar
mínimo de relevância para que sejam consideradas crimes – até ao abrigo, em certo sentido, do
princípio da intervenção mínima do Direito Penal. Considera-se, então, que uma palmada não será
suficientemente importante para ir a tribunal, visto que a criminalização da violência doméstica e dos
maus-tratos aos filhos foi feita tendo em consideração outros tipos de comportamentos (ex: bofetadas,
dar com o cinto, murros, etc.).
Consequentemente, tal não criminalização, na maior parte da jurisprudência, não se justifica pela
existência de um poder de correção – até porque este não se encontra expressamente previsto.
Justifica-se, sim, pelo facto de não atingirem esse limiar de relevância que está previsto seja na norma
sobre violência doméstica, seja na norma sobre as ofensas corporais.
PRESSUPOSTOS:
De qualquer das formas, assumindo-se o dolo como existente, a conduta típica deste crime é
a de perseguir ou assediar a vítima, podendo-se falar de perseguição física ou virtual, comunicação
não desejada, surgir nos locais frequentados pela vítima, fazer saber à vítima que é observada, etc.
Este não é um crime de resultado, na medida em que a conduta não tem de, efetivamente,
provocar medo à vítima – mas tem, no entanto, de ser “adequado” a provocar medo. Essa aptidão
afere-se em função das circunstâncias do caso, ou seja, tentando perceber se uma pessoa “média”, nas
circunstâncias da vítima, poderia sentir medo ou inquietação devido àquelas condutas.
Um fator a levar em conta será o género da vítima: as mulheres que são perseguidas acabam, muitas
das vezes, por ser mortas, quando comparadas com as situações em que os homens são perseguidos.
Assim, a circunstância, no caso das mulheres, acaba por ser mais agravada, existindo mais facilmente
esta possibilidade de provocar medo. No entanto, ressalva-se que existem algumas condutas que,
independentemente do género da vítima, serão objetivamente adequadas a provocar medo (ex: o
agente ficar mais possessivo).
Conclui-se, assim, que este é um crime semipúblico de perigo abstrato-concreto: é necessário, para
que o agente possa ser punido, demonstrar que existiu uma conduta capaz de provocar medo (o
perigo) – e, além disso, que isso se repercutiu na liberdade de determinação da vítima (bem jurídico
protegido). Consequentemente, a tentativa é punível.
Além de se exigir que a conduta 1) seja adequada a causar medo ou inquietação à vítima, de
forma a 2) prejudicar a sua liberdade de determinação; também se exige que 3) o comportamento do
agente seja reiterado. Será esta continuidade no tempo de tal comportamento que faz com que se
preveja este crime – até porque, isoladamente, as condutas podem traduzir-se em atos inofensivos.
Não se exige, no entanto, que apenas seja infligida sobre a vítima, podendo ser praticada direta ou
indiretamente (ex: abranger familiares, amigos, animais de estimação). Também abrange, por fim, o
cybserstalking (“por qualquer meio”).
➔ Estão previstos, no artigo 155º, certas agravações: por exemplo, se a vítima for menor, estão
previstos outros enquadramentos graves, que poderão ser aplicados (nº1, alínea b). Além disso,
existem penas acessórias que poderão ser aplicadas (ex: proibição de contactos).
Denota-se, por fim, que o facto de a vítima ser uma figura pública não legitima o crime: tal
circunstância conta, apenas, para avaliar a adequação dos comportamentos do agente –
nomeadamente, se é um comportamento adequado no contexto de a pessoa ser fã. No entanto,
existem, também, situações de figuras públicas que são bastante reservadas, pelo que, no fundo, o
facto de ser figura pública irá acabar por relevar apenas em certos casos: uma conduta adequada a
causar medo sê-lo-á, independentemente de a vítima ser figura pública ou não.
CAUSA DE JUSTIFICAÇÃO:
O nº2 deste artigo prevê duas causas de justificação: nomeadamente, a existência de um
interesse legítimo (alínea a) e o agente fazer prova de verdade (alínea b). Assim, se o agente imputar
tais factos para prosseguir um interesse legítimo, e conseguir fazer prova de verdade desses factos
(ou tiver fundação sólida para acreditar na sua verdade, em boa-fé), a conduta não será ilícita.
Interesse legítimo
Este interesse legítimo poderá ser público ou privado – a imputação pode ser feita para
qualquer interesse legítimo, mesmo que esse não seja público e, inclusive, particular. Isto é diferente
do que acontece nos crimes de devassa da vida privada, em que terá de existir um interesse público –
nomeadamente, um interesse público da imprensa, quando esta desempenha a sua função pública.
Neste âmbito, poder-se-á enquadrar a questão do exercício legítimo da liberdade de
expressão e da liberdade de imprensa. Decorre do artigo 3º da Lei da Imprensa que a função pública
da imprensa está pautada pelo rigor e objetividade da informação; assim como os limites à mesma.
Assim, este interesse legítimo encontra-se pela ponderação entre o equilíbrio do direito à
informação e da ofensa da honra: a ofensa da honra terá de ser feita no mínimo requerido para
prosseguir tal interesse legítimo (falando-se, aqui, por exemplo, da maneira como a informação é
divulgada, etc.). Tal ponderação é necessária porque a difamação acaba sempre por ser uma conduta
com desvalor, em que se fala mal das pessoas – logo, é preciso fazer uma certa ponderação entre o
interesse legítimo que se prossegue com tal difamação, e a honra da pessoa difamada.
Neste equilíbrio terá, ainda, de se ter em conta se os factos a serem imputados são correspondentes a
crimes prescritos. Isto porque, por um lado, o Estado admite, com os prazos de prescrição, que há um
tempo para apurar a prática dos factos, e que, dando-se o término desse prazo sem nada acontecer, o
interesse público na divulgação dos factos vai diminuindo quanto mais tempo passa. Por outro lado,
coloca-se o visado numa situação muito difícil: este não tem oportunidade de demonstrar, em
processo, que é inocente – mas nos jornais aparece esse relato dos factos, dos quais este já não se
pode defender nas instâncias certas. Aqui, o interesse público acaba então por ser tornar muito
diminutivo, sendo a honra considerada como sendo mais importante a proteger.
Prova da verdade
A “boa-fé” prevista pressupõe que o agente se tenha informado. No entanto, se este estiver
em erro, ou seja, se achar e estiver convencido de que os factos são verdadeiros, aplica-se, na mesma,
a causa de justificação, e não as consequências do erro – este regime que aqui está acaba, assim, por
ser um regime específico relativamente à difamação.
Estas causas de justificação aplicam-se, apenas, à imputação de factos, dado não ser
possível provar juízos de valores como verdadeiros – sendo estes meras opiniões. Consequentemente,
se o agente estiver, ao emitir ditos juízos, no exercício de um interesse legítimo, poderão aplicar-se
as regras gerais de desculpa, mas não este nº2.
Este também não se aplica quando estão em causa factos relativos à intimidade da vida privada e
familiar (nº3): se se permitisse que o agente, para se proteger, conseguisse provar estes factos, para
provar estes factos, ele acabaria por constituir uma devassa da vida privada.
1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a
liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer
autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as
empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.
2. O exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas
formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa
sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da
ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem,
para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder
judicial.
Ora, neste acórdão estão em causa os artigos 183º, nº2 e 187º, nº1 e 2 CP. A vítima alega que
a sua condenação pelas instâncias nacionais é uma restrição à sua liberdade de expressão. Apesar de
o tribunal considerar que tal restrição é aceitável – tanto por ser legal, como por prosseguir um
objetivo legítimo –, esta acaba por falhar o terceiro requisito da necessidade. Por um lado, existe um
interesse político nas declarações de Rangel, cuja amplitude para não serem restringidas é, por isso,
bastante grande. Além disso, as afirmações foram consideradas juízos de valor, não podendo ser
considerados como falsos ou verdadeiros. Consequentemente, a Assembleia da República é um sítio
onde existe uma ampla liberdade de expressão – pelo que tal decisão implicaria que, no futuro,
pessoas que fossem igualmente convidadas a dar a sua opinião pudessem ficar com receio desta
sanção (na medida em que existiria um precedente).
No entanto, se isto não são factos, as afirmações não poderiam ser enquadradas no artigo 187º CP,
dado se falar aqui de uma entidade pública – pessoa coletiva. Já tentando enquadrar as mesmas no
artigo 180º CP, como é que um juízo de valor poderá ser considerado interesse legítimo? Ora, neste
caso, existe, de um lado, o direito da liberdade de expressão e, do outro lado, o direito à honra – logo,
este enquadramento só poderia ser feito com recurso ao artigo 37º CRP, relativo à liberdade de
expressão e de informação!
BEM JURÍDICO:
Importa perceber qual o conceito de vida privada que aqui se fala. Isto, porque existem vários
tipos de conceitos de vida privada que, neste capítulos, se protegem: por exemplo, no artigo 190º CP,
criminaliza-se a intromissão num espaço físico considerado privado, que é de alguém – ora, aqui,
existe um elemento que constitui uma fronteira objetiva, que os outros não podem ultrapassar
(nomeadamente, a porta). No entanto, no artigo 192º CP, já existe uma punição autónoma da devassa
da vida privada, o que implica a existência de um conceito mais subjetivo/material do que é a vida
privada – como se define, então, este?
Associa-se, então, ao bem jurídico “privacidade” as ideias de dignidade, resguardo,
intimidade, controlo de acesso, isolamento, pretensão de resguardo. Fala-se, portanto, da ideia de
estar a salvo do escrutínio da sociedade – “the right to be alone”, sendo que este não pode ser
utilizado contra o seio familiar: ou seja, os filhos não poderão dizer que os pais, vivendo com eles,
estão a infringir o seu direito de privacidade. Dito por outras palavras, apesar de as crianças terem o
direito à intimidade e à reserva da vida privada, isso não impede que os pais a invadam no âmbito da
vida familiar – por exemplo, para ver se têm febre. Assim, este resulta comprimido, no âmbito do seu
dever de educar e cuidar, tendo se de fazer uma ponderação entre este e um mínimo de intervenção
necessário para esse dever.
Este direito ao isolamento enquadra-se, então, mais como a possibilidade de excluir a sociedade do
conhecimento da sua vida privada – relaciona-se com a avaliação, o escrutínio social e o estatuto
social que se tem, e não tanto com o facto de estarem fisicamente isoladas. Consequentemente,
envolve, por um lado, uma dimensão negativa, na medida em que a pessoa tem o direito de impedir
que outros acedam à sua vida privada; e, por outro lado, uma dimensão positiva, sendo a própria
pessoa que pode decidir sobre o acesso que os outros têm à sua vida privada, impondo ela os limites.
Além disso, a nível objetivo, a privacidade pode incidir sobre a vida sexual, condições
económicas, saúde, registo criminal, vida familiar, convicção política e religiosa, pensamentos e
emoções, informações profissionais, dados de localização, etc.
Ora, dentro desta lista, existem aspetos que são mais intensos que outros: informação como a vida
sexual (orientação sexual) e o pensamento, ou convicções religiosas, não poderão ser devassos, dado
serem pertencentes a um núcleo mais íntimo. Já outros aspetos dependem da situação, como
informação relativa à saúde (ex: certas profissões exigem atestados médicos) ou a vida familiar (ex:
situações de investigação de crimes de violência doméstica). Conclui-se, então, que existe, por um
lado, uma dimensão mais nuclear, que é intangível sem o consentimento da pessoa em questão; e,
por outro lado, uma dimensão menor nuclear, em que “depende” das circunstâncias apresentadas.
Aqui, o facto de a relação entre A e B ter terminado é relevante como pressuposto do crime
de violência doméstica, nomeadamente (artigo 152º, nº1, alínea b) CP) – enquadrando-se as ações de
B como maus-tratos físicos e psíquicos. No entanto, a última ação do mesmo já se enquadra no crime
de tentativa de homicídio, estando o dolo extravasar o âmbito da violência doméstica.
Ou seja, existe um percurso decorrido com a violência doméstica; sendo que, posteriormente,
verifica-se uma ação que sai desse âmbito, por ser mais grave ainda, que corresponde à tentativa de
homicídio. Determina-se que B praticou uma conduta da qual poderia ter decorrido a morte da vítima,
não tendo esta ocorrido porque a vítima se defendeu – o que não faz com que B não tenha dolo direto
em relação ao homicídio, dado agir com o objetivo de a matar.
➔ O facto de a ter ajudado, depois, não significa que existe uma desistência: B desistiu não porque
houve um arrependimento voluntário da sua parte, mas exclusivamente porque A lhe prometeu
ficar com ele para sempre – tendo apenas socorrido a mesma por isso (artigo 24º CP).
Assim, a tentativa será de homicídio qualificado, nos termos do artigo 132º, alínea b) e j) CP,
sendo que existe, também, a especial censurabilidade (nº1) – que, nestes casos, existe quase sempre
(gerando mais dificuldades quando são casos em que, no âmbito familiar, A mata o seu abusador).
Quanto à sobrinha e a filha, a conduta de B também se pune pelo crime de violência doméstica
(artigo 152º, alínea e) CP), não se aplicando, neste caso, o artigo 152º-A, dado que este exige que o
arguido tivesse “ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direção ou educação”.
No entanto, será necessário discutir o concurso entre este crime e o crime de ofensas à integridade
física simples (artigo 143º CP): ora, sendo a pena deste último inferior ao do crime da violência
doméstica, este último prevalece, por relação de consumação – ou seja, o crime da violência
doméstica consegue consumir toda a ação do B. Assim, tanto quanto à filha, como à sobrinha, aplica-
se o crime da violência doméstica, dado ambas serem vítimas de ofensas à integridade simples.
➔ Se já se estivesse perante ofensas à integridade graves, atendendo à relação de subsidiariedade
entre os dois crimes, a pena do crime de ofensa à integridade física seria mais elevada, pelo que
seria este crime a ser aplicado, e não o da violência doméstica (artigo 152º, nº4 CP).
Importa, primeiro, ressalvar a necessidade de resolver a hipótese por grupos de factos (que,
neste caso, até estão por parágrafos).
Assim, primeiro, existe a conduta de A, que furta a carteira de C, com ajuda de B. Sabendo
que o momento da consumação do furto se dá com a subtração – e que, consequentemente, esta
implica alterar o domínio da coisa que o proprietário da carteira tem –, o furto consuma-se quando A
tira e entrega a carteira a B. Tal furto poderia ser considerado furto qualificado, por via do artigo 204º,
nº1, alínea b); mas acaba por não o ser, dado que a carteira é de valor diminuto, de menos de uma
unidade de conta (artigos 202º, alínea c) e 204º, nº4 CP). Existe, no entanto, dolo direto em relação à
subtração, sendo que A e B tinham intenção de se apropriarem da carteira.
Denota-se que existe coautoria entre A e B, dado que ambos planearam e executaram o plano de
forma conjunta (artigo 26º CP) – nomeadamente, praticando atos de execução (artigo 22º, nº2, alínea
a) CP), não se utilizando aqui o critério da jurisprudência de “o plano seria concretizado sem a
intervenção dos outros?”.
Seguidamente, C agride A, levando à morte deste. Em termos de tipo objetivo, a conduta de
C preenche vários crimes – nomeadamente, o de ofensa à integridade física grave (artigo 144º CP) e
o de tentativa de homicídio negligente (artigo 137º CP). Já em termos de imputação subjetiva, em
relação ao resultado “morte”, conclui-se que seria previsível que este se concretizasse da conduta de
C: segundo a teoria da causalidade adequada, bater em alguém com imensa violência pode levar a
que essa pessoa morra devido aos ferimentos – a conduta de bater é, então, uma causa adequada (e
não apenas consequente) da morte.
No entanto, no caso concreto, C não previu esse resultado (elemento cognitivo) e, consequentemente,
não se conformou com este (elemento volitivo – materialização dos pensamentos de uma pessoa
através dos seus atos) – apesar de essa previsão lhe ser exigível. Consequentemente, consegue-se
imputar a morte de A a C, a título de negligência inconsciente. Se, pelo contrário, este tivesse previsto
o resultado considerando as circunstâncias do caso, mas, mesmo assim, lhe continuasse a bater, já
seria uma situação de dolo eventual.
Contudo, não existe, por um lado, a possibilidade de punir alguém por tentativa de homicídio
negligente, nos termos do artigo 23º, nº1 CP. Por outro, o artigo 147º, nº1 CP resolve este conflito:
“Se das ofensas previstas nos artigos 143.º a 146.º resultar a morte da vítima, o agente é punido com
a pena aplicável ao crime respetivo agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo”. Assim,
e nos termos do artigo 18º CP, tal agravação é permitida visto que o resultado consegue ser imputado
a C a título de negligência – consequentemente, este será punido pelo crime de ofensa à integridade
física grave (artigo 144º CP), com agravação pelo resultado, dado que A acaba por morrer (artigo
147º CP).
➔ A sua conduta também não poderia ser justificada pela figura da ação direta: por um lado, há
excesso de ação direta; e, por outro, a carteira não está com A, mas sim com B – o que significa
que C está em erro quanto aos pressupostos de uma causa de justificação. Além disso, quando C
age, o furto já está consumado, pelo que a possibilidade de aplicar a ação direta se extingue.
Seria, também, necessário discutir se o ato de chamar “ladrão” seria considerado um crime de injúria,
ou uma mera imputação de factos. No caso concreto, talvez corresponda apenas a uma mera
designação colonial, descrevendo apenas a factualidade que se deu – até porque, neste caso, o crime
foi, de facto, consumado. Ou seja, mesmo preenchendo a tipicidade formal do crime de injúria, não
será razoável dizer que A não poderia gritar isto, tendo em conta o contexto em que foi gritado – até
para conseguir ser ajudado a reaver a sua carteira (“agarra que é ladrão!”).
Por fim, existe a conduta de B matar C. A perseguição que B faz a C não entra no âmbito do
crime de perseguição, dado faltar o requisito de “apto a provocar medo”: ora, se B o faz sem que C
dê por isso, a sua conduta não será apta a provocar este medo e inquietação. Aliás, está pressuposto
neste crime que a conduta seja tal que limite a liberdade da vítima, precisamente porque esta se
apercebe dessa conduta e fica com medo. Assim, não existe crime de perseguição.
Esta perseguição mostra, no entanto, que a tentativa de homicídio foi premeditada: assim, existe aqui
uma qualificação, nos termos do artigo 132º, nº2, alínea j). Além disso, denotar que o motivo de
“vingança” não poderá ser visto como compreensível emoção violenta, dado que esta implica que
exista um momento em que a pessoa “se passa” – ideia que não é compatível com o facto de terem
passado 15 dias até B agir.
CRIMES DE CORRUÇÃO
Introdução
CORRUPÇÃO PÚBLICA E PRIVADA:
Os crimes de corrupção abrangem, principalmente a atividade das entidades públicas – daí
que, no CP, estes se encontrem no capítulo de “Crimes contra o Estado, no exercício de funções
públicas”. Assim, o bem jurídico a ser protegido é a integridade, autonomia e independência do
Estado no exercício das suas funções públicas, nomeadamente quanto a interesses privados (artigo
266º CP) – respeito pelos princípios da igualdade, boa-fé, imparcialidade, etc.
No entanto, para além do CP, existem crimes de corrupção em legislação específica, visto
que a corrupção, sendo embora um crime cuja prática é mais frequente ou pretende abranger
essencialmente as entidades públicas, também pode ser praticada no seio do comércio internacional
(artigo 7º da Lei 20/2008) e nas entidades privadas (artigos 8º e 9º da Lei 20/2008) – onde o bem
jurídico a ser protegido será a preservação da concorrência.
Especificamente, existe, também, corrupção para falsear os resultados em competições desportivas –
artigo 8º da Lei 50/2007. Prevê-se, também, nos casos dos crimes desportivos, o crime de tráfico de
influência e de recebimento indevido. Aqui, o bem jurídico a ser protegido será a verdade desportiva
– ou seja, protege-se a lisura na atividade desportiva.
Existem, também, crimes específicos para certos políticos – assim, nos casos em que está um político
envolvido, aplica-se a Lei 34/87, relativa a titulares de cargos políticos. Estão previstos os crimes de
recebimento indevido de vantagem, corrupção passiva e corrupção ativa – existindo, nestes, um
agravamento no limite mínimo previsto no CP.
Outras Notas
➔ Os crimes de corrupção tendem a ser públicos, pois tutelam interesses sociais, não se percebendo
bem quem é o ofendido (nos termos de este ter de fazer queixa/acusação).
➔ Além disso, existe uma série de mecanismos preventivos – programas de cumprimento normativo
(compliance) – para evitar o risco de corrupção, que estão mais ligados ao regime das
contraordenações.
Questão do Lobby
Esta incriminação do tráfico de influência não prejudica o lobbying, a menos que este
tenha uma intenção corruptiva do funcionário público, nem abuse da sua posição. O lobbying
corresponde à obtenção, junto de entidades públicas e do legislador, de legislação criada a seu
favor/que vá de encontro aos seus interesses. Ou seja, aqui existe o caso de um grupo que tenta
influenciar uma entidade pública, não estando, no entanto, a vender a sua influência. Não existe uma
situação de superioridade, assim como não há um abuso de influência.
De qualquer das formas, em Portugal, o regime do lobby não está regulado, mas está em
discussão. Aqui, é importante reafirmar a questão da transparência: nomeadamente, fazendo-se o
registo da pessoa como lobista, o registo de quem representa, dos seus interesses, dos contactos com
entidades públicas, etc. – isto, uma vez que a atividade de lobby tem como principal interesse
influenciar opções legislativas, ou seja, moldar leis.
➔ Encontra-se, aqui, uma diferença entre o lobby e o tráfico de influência – em que, por oposição,
se fala de uma situação concreta de favorecimento, e não de opções legislativas.
Se, no entanto, o lobby for constituído por pessoas que financiam as campanhas eleitorais dos
políticos, já se estará a falar de tráfico de influência. No entanto, imagine-se que A contrata um
advogado muito famoso para resolver um problema junto de uma entidade pública – será isso tráfico
de influência? Não, visto que o papel dos advogados passa pela defesa dos seus interesses e a tentativa
de obtenção de decisões favoráveis: ora, este tráfico de influência caracteriza-se pela utilização da
influência fora das regras estabelecidas para um determinado cargo, etc.
➔ A tentativa passa pela tentativa de venda da influência e a recusa de compra por parte do suposto
comprador de influência. No entanto, se a decisão já tiver sido tomada no momento do negócio
de tráfico de influências, o agente é punido por tentativa impossível.
2. Acórdão TC Nº90/2019:
Em primeiro lugar, conclui-se, mais uma vez, este problema só se coloca se a factualidade
consistir numa promessa e consequente pagamento(s) posterior – visto que existindo só um deles,
esse será o momento de consumação. Ora, o TC defende que a expressão da corrupção como sendo
um crime instantâneo não tem sentido na lei. Será isto verdade?
À primeira vista, existem, no artigo, duas condutas que cabem no crime de corrupção: 1) o crime de
corrupção que é a aceitação da promessa; e 2) o crime de corrupção que é a aceitação do dinheiro. A
relação entre os dois poderá ser de consunção (concurso aparente), sendo que o último tem um
desvalor maior, porque, de facto, a lei prevê como crime o recebimento da vantagem – logo, acaba
por consumir todo o ilícito. Assim, sendo esta interpretação possível, o enquadramento do TC acaba
por ser peculiar.
No entanto, será mais difícil enquadrar esta lógica nas situações em que, por exemplo, a pessoa
que era funcionária quando aceitou a promessa, já não o é quando recebe o dinheiro (ex: caso do
Sócrates); ou no caso de faseamento do pagamento, seja o valor das “prestações” igual ou diferente.
Ora, o enquadramento dado já não faz sentido aqui: por exemplo, na primeira situação, receber o
dinheiro já não constitui um crime de corrupção, dado este ser um crime específico – e a pessoa
perdeu a qualidade que o qualificaria para o praticar.
➔ Denotar que praticar o ato consequência da vantagem é a finalidade da solicitação, mas não é uma
conduta que o funcionário tenha de ter para o crime estar consumado (nem é uma condição de
punibilidade) – portanto, o funcionário tem de ter a qualidade de funcionário quando aceita a
vantagem, e quando recebe.
Já o legislador, com a descrição do crime de corrupção, decidiu antecipar a tutela do bem,
configurando como crime desde logo a própria promessa, e não apenas o recebimento do dinheiro.
No entanto, este decidiu atacar a corrupção com tal intensidade, que acabou por fazer ricochete: ou
seja, acabou por fazer com que, sendo a consumação logo feita com a promessa (interpretação), os
atos posteriores ligam-se apenas ao primeiro facto punível, podendo apenas produzir-se no
agravamento da pena concreta.
No entanto, isto depois é prejudicado com os prazos de prescrição – até porque, normalmente, os
casos de corrupção só são descobertos com esse pagamento. Ora, os casos de corrupção poderiam
prescrever se a promessa fosse feita um momento, e o pagamento só fosse feito quando esse crime
prescrevesse.
Assim, o legislador, ao tentar abranger todos os atos, acabou por gerar esta consequência de uma certa
interpretação poder tornar não puníveis os atos posteriores que efetivamente, por um lado, são os atos
que traduzem as vantagens para o funcionário corrompido; e, pelo lado processual, são os momentos
em que se deteta a corrupção e comprova a mesma.
Concluindo…
➔ Tese do TC: O crime consuma-se com a promessa, e os restantes atos são meros agravantes.
➔ Tese do MP e do STJ: Existe uma diferença entre a consumação formal e a consumação material.
A consumação formal dá-se com a verificação de todos os pressupostos (promessa); enquanto a
consumação se dá com o “pagamento” – ou seja, aquilo que a norma pretende proteger só se
concretiza, mais tarde, com o exaurimento de todo o “plano” do agente (algo que acontece muito
nos crimes de perigo). Assim, a antecipação da tutela faz com que os atos de “execução” de um
plano mais longo acabem por ser também puníveis, e o “sentido” do crime acaba por ser adiado
para o momento da consumação material, apesar de já existir uma consumação formal – dado que
só aí é que há a “terminação do crime”.
o Será, também, a tese defendida por Nuno Brandão, que assinala a unidade de ação (enquanto
“crime instantâneo de consumação sucessiva”): ou seja, fala-se sempre de um único crime.
➔ Tese de Helena Magalhães Bolina: Olha-se para cada facto como um crime autónomo, tendo
entre elas uma relação de consunção – que, no entanto, tem as dificuldades já faladas.
Tipicidade subjetiva: Como se deduz do texto do caso prático, A não teve intenção de provocar a ofensa à
integridade física de B, donde lhe não é dolosamente imputável tal resultado (artigo 14º CP). Violou, portanto,
A dois deveres de cuidado a que estava adstrito em razão das regras do Código de Estrada. Em conformidade
com o teor do artigo 15º CP, a violação de tais deveres de cuidado revela um comportamento negligente,
devendo a ofensa à integridade física de B ser imputada a A a título de negligência, por conjugação dos artigos
15º e 148º CP.
Quanto a ter fugido, depois do embate:
Tipicidade objetiva e subjetiva:
Existe erro-suposição de uma realidade típica que é característico da chamada “tentativa impossível”
de um crime. Se efetivamente B estivesse vivo, A estaria adstrito a um dever jurídico que pessoalmente o
obrigaria a evitar o resultado (morte), enquadrando-se a situação no artigo 10º, nº2 CP. A fonte de tal dever de
garante seria a ingerência ilícita precedente, pois a suposta situação de perigo em que se encontrava B foi
provocada pelo choque protagonizado ilicitamente por A. Posto isto, conjugando os artigos 10º, nº2, 22º, nº2,
b) e 131º CP, A, ao não socorrer B, deixando-o na suposta situação de perigo para a vida por desejar a sua
morte, iniciaria uma tentativa dolosa de homicídio por omissão.
Esta tentativa não é, porém, apta a ser consumada dada a inexistência do objeto da ação (ou omissão)
de matar (ou deixar morrer), ou seja, uma pessoa. Existe, não obstante, por parte de A, dolo de homicídio por
omissão (intenção de deixar morrer alguém) por supor que B estava vivo, pelo que se nos depara aqui uma
tentativa impossível, por inexistência do objeto (artigo 23º, nº3 CP) de homicídio (artigo 131º CP) por omissão.
Punibilidade: Trata-se de uma tentativa impossível punível por não ser manifesta a inexistência do objeto
essencial à consumação do crime, isto é, por não ser manifesta a inexistência de uma pessoa. Com efeito,
ocultado o pedaço de vidro pelo corpo de B, seria normal conjeturar que este se encontraria desmaiado, mas
vivo. Este regime jurídico resulta de interpretação enunciativa com juízo a contrario sensu de uma norma
excecional, o artigo 23º, nº3 CP, aplicando-se, por congruente, o comando da norma geral que regula a
punibilidade da tentativa, qual seja, o artigo 23º, nº1 CP. A deve, então, ser punido por tentativa impossível de
homicídio por omissão pela conjugação dos artigos 22º, 23º, 10º e 131º, aplicando-se a tal punibilidade o
regime do artigo 73º, nº1, a) e b) ex vi do artigo 23º, nº2 CP.
2. Responsabilidade jurídico-penal de X:
Tipicidade objetiva: B caiu em cima de um dos pedaços de vidro da garrafa partida que X colocara na
estrada e teve morte imediata. Indicia-se um crime de homicídio previsto no artigo 131º CP. Sendo o homicídio
um crime de resultado impõe-se a aplicação da teoria do risco. X, com o seu comportamento, criou o risco
(não tolerável pela sociedade) de matar quem ali eventualmente caísse. Tal resultado é, com efeito, previsível
segundo critérios de experiência comum (criação do risco de matar) e a “brincadeira” de X é de “terrível mau
gosto” (não tolerável pela sociedade). A morte de B corresponde, por sua vez, à materialização do risco criado
por X, pois nada mais ocorreu que impedisse essa materialização. O comportamento de X de onde acabou por
resultar a morte de B enquadra-se, assim, no tipo legal de crime de homicídio (artigo 131º CP).
Tipicidade subjetiva:
Não terá tido X a intenção de matar, mas, com o seu comportamento violou um dever de cuidado a
que estava adstrito, e que era capaz de cumprir. A colocação do vidro partido na via pública viola as mais
elementares regras de confiança que das normais relações da vida social resultam. A morte de B é, assim,
imputada a X a título de negligência, nos termos do artigo 137º CP.
Tão básicas são as regras de confiança aqui violadas (tornando provável a verificação do resultado
ocorrido) que poderiam levar a problematizar se o comportamento de X não implicaria mesmo dolo eventual
de homicídio. Levantar-se-ia, então, a clássica temática da distinção entre o dolo eventual e negligência
consciente. Não parece, contudo, que a atitude interior de X revele uma conformação com o homicídio
enquanto resultado da sua conduta (como exige o artigo 14º, nº3 CP), mas, tão-somente, a de efetivar a sua
“brincadeira” de furar pneus a automóveis. Trata-se, não obstante, de uma situação negligência próxima do
dolo eventual e, enquanto tal, uma clara situação de negligência grosseira (artigo 137º, nº2 CP). Assim, X deve
ser punido pelo crime de homicídio por negligência grosseria, em conformidade com o artigo 137º, nº2 CP.
3. Responsabilidade jurídico-penal de E:
Relativamente a A:
Tipicidade objetiva: O disparo de um tiro é naturalmente um ato idóneo a matar, configurando-se, pois,
como um ato de execução de um crime de homicídio que não chegou a consumar-se, em sintonia com os
artigos 22º, nº1 e 2, b) e 131º CP.
Tipicidade subjetiva: E disparou com intenção de matar, pelo que o ato de disparar na direção de A foi
executado com dolo de homicídio em conformidade com os artigos 14º, nº2 e 131º CP. E executou, pois, um
ato de um crime (de homicídio) que decidiu cometer, preenchendo, assim, com a sua conduta o tipo subjetivo
de homicídio na forma tentada (artigos 22º, nº1 e 2, b) CP).
4. Responsabilidade jurídico-penal de D:
D, com intenção de matar A, convenceu (determinou) E, mediante pagamento de quantia pecuniária,
a cometer o crime de homicídio. Este, por sua vez, executou-o, ainda que não tenha havido consumação. Em
conformidade com o artigo 26º, nº4 CP, ao dolosamente determinar E a matar A, D configura-se como
instigador do crime de homicídio e, nessa medida, como participante desse crime. A circunstância de D, na
chamada posição de “homem-de-trás”, não ter viciado a vontade (ou de não ter aproveitado uma eventual
vontade viciada) do “homem-da-frente” E impede-o de assumir o domínio da vontade sobre o comportamento
deste e, portanto, o domínio do facto criminoso. Assim, e atendendo ao critério do “domínio de facto” na
distinção entre autores e participantes no contexto da dogmática da comparticipação, D é participante e não
autor do crime.
A punibilidade do participante em crime de outrem opera através da teoria da acessoriedade limitada.
Significa isto que do autor do crime (E) para o participante (D, instigador) se comunica a ilicitude (típica) do
seu comportamento, como se retira da conjugação do artigo 26º, nº4 proposição (sendo instigador o
participante), com o artigo 29º, ambos do CP. Se, na verdade, cada comparticipante responde pela sua culpa
(artigo 29º CP), então a equiparação do instigador ao autor sufragada pelo artigo 26º, 4ª proposição CP não
pode abranger mais do que a ilicitude típica. Vale por dizer, o instigador responde pelo comportamento típico
e ilícito do autor (instigado). Posto isto, de E, autor material e instigado, para D, instigador, comunica-se a
ilicitude do comportamento típico, qual seja, tentativa de homicídio; mas não mais do que a ilicitude,
respondendo, assim, D pela sua culpa, em conformidade com o mencionado artigo 29º CP.
Ora, no plano do pressuposto da culpa, há que considerar que D se encontra em erro sobre a ilicitude
do facto, dado estar convencido de que tem o direito de matar A ao abrigo de uma causa de justificação – não
obstante ter sido a agressão sobre B à sua integridade física e vida (e não à honra) e esta estar já consumada
(D agiu em retaliação). Trata-se, com efeito, de um erro de valoração, que se enquadra na figura de erro sobre
a ilicitude prevista no artigo 17º, nº1 CP: D está em erro não sobre qualquer circunstância fáctica, mas sobre a
valoração jurídico-penal do comportamento a que instigou E. Este erro é, no entanto, claramente censurável,
pois o convencimento da licitude de um homicídio nestas circunstâncias é relevador de um grave alheamento
dos valores jurídico-penalmente reconhecidos e, portanto, de uma atitude interior indiferente ou mesmo
contrária a tais valores. É um erro que resulta, assim, de uma “culpa pela personalidade” do agente, e, enquanto
tal, censurável, aplicando-se a sua conduta o preceituado no artigo 17º, nº2 CP.
Quanto à punibilidade, deve, então, ser punido D (enquanto instigador) como autor (artigo 26º, 4ª
proposição CP) de uma tentativa de homicídio em erro sobre a ilicitude censurável. À moldura penal aplicável
à tentativa de homicídio, pode, assim, o tribunal proceder a atenuação especial que, a ocorrer, deverá ser feita
em conformidade com o artigo 73º, nº1 e 2 CP.