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Direito Penal I

Aulas Teóricas Dr. Pedro Caeiro

1.º Capítulo - O Direito Penal em sentido formal

O que é o Direito Penal?

O Direito Penal trata das penas mas a realidade é que este nome não é
completamente correto porque para além das penas também trata das medidas de
segurança, e há aqui de facto uma diferença muito importante:

PENAS -> reações criminais que se impõem a pessoas que atuam com culpa, o crime é
um facto culposo e ilícito;

MEDIDAS DE SEGURANÇA -> já não requerem a culpa, assentam sobretudo na


perigosidade individual, são aplicadas pelos tribunais ao processo penal, portanto
pertencem ainda à designação de direito penal que é curta.

Porque não direito criminal em vez de direito penal?

Também não é uma designação totalmente correta porque para que haja um
crime é preciso que haja um facto ilícito culposo, mas o direito penal também se dedica
aos factos dos inimputáveis e portanto também pode aplicar medidas de segurança sem
culpa, portanto falar de direito criminal também seria incompleta, falta-lhe um
elemento essencial que é a culpa.

Em suma, nenhuma destas designações é totalmente correta, porém o Dr.


Figueiredo Dias prefere a expressão Direito Penal porque vamos ver que existe a
tentativa de orientar o direito penal para a consequência jurídica, ou seja, vamos pensar
não só a partir dos facto, mas sobretudo a partir da consequência jurídica, da reação
criminal, o que dá especificidade na realidade ao direito penal.
O que é verdadeiramente privativo no direito penal é a pena e portanto vamos
ver como isso se retroprojeta sobre o facto e o facto de se tratar de uma pena tem
implicações importantes para a própria construção do conceito e é a isto que chamamos
uma divisão teleológico funcional, orientada para a consequência jurídica por isso
mesmo é mais correto falar de direito penal em vez de direito criminal.

O que são as Penas?

O Tribunal europeu dos direitos do homem é uma instância jurisdicional que tem
como função apreciar as queixas dos cidadãos relativamente aos estados por violação
dos seus direitos humanos, dedica-se por fiscalizar e por vezes condena os estados por

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violarem os direitos fundamentais dos cidadãos. E nesse âmbito o tribunal sentiu a
necessidade de construir o seu próprio conceito de pena, percebeu que não poderia ser
uma escapatória para os estados qualificarem certos factos e dessa maneira subtraírem-
se ao cumprimento das obrigações que intendem sobre os estados em matéria penal.
Não compete só aos estados dizer o que é pena e o que não é, quando o estado dizem
que certa matéria é penal, certa sanção é uma pena, o tribunal não faz mais nada a partir
daí, mas se os estados qualificam uma certa reação criminal ou um certo processo como
não penal o tribunal tem o direito de qualificar se não se está numa burla de etiqueta,
de algo que na sua essencialidade não se estará a tratar de uma matéria penal. Isto
permitiu ao tribunal criar uma noção própria de pena, para a garantia dos direitos
humanos atingidos por essas decisões.

Direito Penal Objetivo Vs Direito Penal Subjetivo

O Direito Penal Objetivo é o ordenamento jurídico penal, é o sistema.


O Direito Penal Subjetivo é o direito de punir, hoje é claro que pertence apenas ao
estado, mediante a constituição.

Qual é o âmbito do Direito Penal?

Tem uma parte substantiva material e uma parte adjetiva processual, para além
disso ainda existe o direito penal executivo, que é o direito da execução das reações
criminais onde tem importância o direito penitenciário, é claro que o direito penal
material e o processual penal são disciplinas diferentes.
Em nenhum outro caso existe uma relação tão estreita entre a parte material e
processual (substantivo e adjetivo) porque o direito penal só vive dentro do processo
penal, necessita do processo, isso é uma diferença muito grande de todos os outros
ordenamentos jurídicos, por exemplo o direito civil está presente em tudo o que nos
rodeia, mesmo se passa com o direito administrativo.

Por vezes existem certos problemas de classificação de alguns institutos, quer de


natureza administrativa ou de natureza processual, por exemplo o problema da
prescrição do procedimento criminal e discute-se saber se tem um caráter substantivo
ou administrativo. Essa discussão pode ter algum sentido do ponto de vista
classificatório mas é um falso problema do ponto de vista do regime,
independentemente dessa classificação não devemos deduzir da classificação que
fizemos, porque mesmo no domínio processual existem garantias semelhantes. Muitas
vezes é preciso discussões sobre a natureza dos institutos transcendem um mero
interesse classificatório para depois de uma forma conceitualista pretender extrair o
regime aplicado a esse problema.

Independentemente da natureza processual ou material toda agente está de


acordo que se surgir uma lei nova que vem albergar uma situação de um caso que já
está encerrado, não se vai reabrir o caso, essa lei não pode ter um efeito retroativo no

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sentido de voltar a abrir um caso que já está encerrado com a lei anterior. Isto é claro
devido ao principio da segurança jurídica (artigo 2º CRP), portanto não podemos
problematizar a classificação com a finalidade de encontrar necessariamente um
regime, temos de pensar sempre no problema por si, independentemente do âmbito
que ele possa ser inserido, é por isso que o Dr. Orlando Carvalho chama de normas
processuais materiais.

Vamos centrar no direito penal substantivo (material) é separado em duas grandes


partes: parte geral e a parte especial.

A parte geral está contida no Código Penal entre os artigos 1º e 130º qual é o
significado? Nem todos países tem uma criação de um sistema, qual é o fim? É composta
por 2/3 subpartes:
1º- Primeiros artigos e diz respeito aos fundamentos gerais, funções,
princípios, limites, fontes, âmbito de vigência temporal e espacial do
direito penal, todos estes temas introdutórios relativos a lei penal,
fundamentos e princípios gerais de atribuição do direito penal;
2º- Construção do facto punível ou doutrina geral do crime, isto é, quais são
as características que um certo facto tem para ser juridicamente
qualificado como crime, é o objetivo da doutrina geral do crime, e isso é
um esforço formidável de abstração, resulta de um método dedutivo, do
particular para o geral, o que existe em cada crime concreto que são
constante, o que é comum entre os crimes? Na sua expressão
fenomenológica são factos completamente diferentes, e todavia, a
ambição da doutrina geral do crime é mostrar que em todos esses factos
existem constantes, elementos comuns, o que tem de haver em cada um
para que possamos dizer que estamos perante um crime em sentido
jurídico. Esta é a ambição da doutrina geral, vamos estudar os elementos
que nos permitem perceber quando estamos perante um facto típico,
ilícito, culposo e punível. Elementos característicos constantes em todos
os crimes: TIPICIDADE, ILICITUDE, CULPA E PUNIBILIDADE.
3º- A ultima subparte é a que se encontra nos artigos 41º e 130º e relativa às
reações criminais.
Sobra-nos o artigo 40º que funciona como uma ligação entre a construção do
facto e as reações criminais, porque é este que na perspetiva do curso que ilumina o que
está para trás e o que está a diante, é a ligação.
Não vamos estudar a parte especial, vamos recorrer a ela, é uma descrição dos
crimes em especial, são os elementos específicos de cada crime, enquanto que a parte
geral é uma súmula de todos os elementos comuns , parte geral evita que se estudasse
crime por crime em cada situação específica, o que o legislador fez foi o esforço de
abstração, de criar as regras do sistema.

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2.º Capítulo - A localização do Direito Penal no sistema jurídico

Onde se localiza o Direito Penal?

Tradicionalmente ouvia-se que era um ramo do direito interno, de cada estado


e no essencial ainda podemos dizer que é assim, mas nos últimos anos surgiram novas
dimensões, novos perfis transnacionais do direito penal. Podemos definir assim dois
perfis básicos:

1º Perfil – trazido pelo direito internacional público que trouxe para os Estados
obrigações de punir e obrigações de não punir, os estados estão sujeitos ao dever de
punir e de não punir certas condutas. Os deveres de punir decorrem de convenções
internacionais aplicadas à regulação de certas formas de criminalidade (por exemplo: a
convenção da ONU sobre a corrupção), são convenções onde os estados se obrigam a
punir certos comportamentos, nesse aspeto o direito penal tem uma dimensão
internacional, não está apenas sujeito ao abrigo do direito nacional porque existe um
problema comum, um interesse comum na resolução desses crimes, os estados unem-
se no sentido de criar convenções entre si.
Por outro lado a partir do fim da 2º guerra mundial também ficou claro que os
estados tem certos direitos de punir que derivam do direito costumeiro, como o
genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra, escravatura, etc., não é
preciso que o estado se comprometa a punir esses crimes, daqui decorre uma
impretensão importante do direito internacional sobre o direito penal, todos somos
destinatários dos deveres destas normas impostas pelo direito costumeiro, o direito
internacional sobrepõe se e torna-nos a todos destinatários desses deveres.
Quando se trata destas normas de direito internacional, elas são aplicadas não
só pelos tribunais internacionais mas também pelos nacionais, dependendo do estado
em causa permitir a sua aplicação direta, em Portugal é possível art. 8º e 29º/2 CRP
percebemos que o estado português pode aplicar diretamente normas de direito
internacional costumeiras, já o nº5 trata das convenções. O direito internacional traz
obrigações de punir e de não punir porque existem vários instrumentos internacionais
que garantem certos direitos as pessoas, por exemplo: liberdade de expressão, estado
está obrigado a não punir alguém por exercer o direito como liberdade garantida.
Direito penal é visto como um direito interno mas temos 2 perfis transnacionais
que se acentuaram. Hoje constitui se como um direito autónomo, direito internacional
penal.

2º Perfil – é nos dado pela integração europeia, porque a pertença à união europeia
também traz para os estados obrigações de punir e de não punir.
As obrigações de não punir são anteriores, chamam-se efeito negativo ou
incidência negativa do direito europeu sobre o sistema penal dos estados. O efeito
negativo não tem um sentido valorativo, por ser mau, mas sim porque nega a norma
penal interna, afasta-a. Como sabemos o direito comunitário tem uma característica
muito marcante que foi a criação de direitos e liberdades económicas para as pessoas,

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de circulação, etc., estas liberdades conjugadamente com o principio do primado do
direito internacional, levaram a que os estados não pudessem punir condutas que eram
garantidas pelo direito comunitário. Por exemplo, a certa altura houve um regulamento
comunitário que veio permitir o cultivo de cannabis para efeito de fabrico têxteis, este
era um senhor sueco que foi processado pelas autoridades suecas com base em um
crime contra a saúde pública, mas isso era uma atividade permitida pelo regulamento
da união europeia e o tribunal sueco levantou a questão junto do tribunal de justiça e
perguntou se de facto o direito comunitário proibia e o tribunal respondeu
passivamente, portanto o tribunal sueco teve de desabilitar a norma interna. O direito
comunitário cria uma liberdade, um direito às pessoas e portanto o estado fica impedido
de retirar essa liberdade às pessoas. Mesmo numa altura em que a comunidade
europeia não tinha qualquer competência em matéria penal, o efeito do direito
comunitário geral podia afastar e levar à desaplicação o direito penal dos estados –
incidência negativa do direito europeu sobre o direito penal dos estados.
Mas a partir de um certo momento a União Europeia passou a ter poderes
positivos em matéria de direito penal, porque a partir do Tratado de Amesterdão e do
tratado de lisboa – artigo 83º TFUE – União Europeia pode aprovar diretivas que
obriguem os estados a criminalizar certas condutas e a prever penas para essas
condutas, de certo nível, em relação a esses âmbitos (artigo 83º) a União Europeia pode
impor aos estados deveres de criminalização, trata-se de algo diferente em relação ao
direito internacional geral, porque não tem aplicabilidade direta, as diretivas tem de ser
transportas para o ordenamento jurídico interno.
Estamos aqui a falar sobretudo do direito penal material, mas há uma outra
dimensão dentro do sistema penal que também sofre uma fortíssima influencia tanto
do direito internacional como do direito europeu, que é a cooperação judiciária
internacional – é paradigmaticamente representada pelo processo de extradição.
O Direito Penal é um ramo de direito público, o estado aparece na sua veste de
ius imperi e portanto há uma relação de suprainfraordenação entre o estado e a
população. O direito Penal é a forma mais agressiva de restringir os direitos individuais,
apesar de ser um ramo do direito publico não impede que surjam certos perfis
vocacionados para os particulares, pensando sobretudo no papel da vitima, nas últimas
décadas a vítima tem ganhado um estatuto cada vez mais importante, antes o direito
penal era visto como uma relação puramente entre o estado e os infratores, hoje os
interesses da vítima são chamados ao processo, tendo a própria vítima com um instituto
processual próprio, hoje tanto o direito penal como o processo penal passou a
reconhecer à vítima uma palavra durante o processo.

Autonomia e dependência do direito penal perante outros ramos de direito

Em 1º lugar temos que autonomizar a relação do direito penal com o direito


constitucional, é uma relação de tensão, há até quem diga que o processo penal é um
direito constitucional aplicado pois o direito penal conduz na sua essência à restrição de
direitos com origem constitucional, há de facto esta relação muito próxima mas também
tensa.

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Mas e em relação a outros ramos de direito? Como o direito penal se comporta?

Há duas maneiras de ver as coisas: de uma maneira mais antiga, haveria uma
categoria de ilicitude comum ao ordenamento jurídico, seria una, o facto seria ilícito ou
licito em todo o ordenamento jurídico, não haveria distinção entre direito
administrativo, direito penal, ou é licito ou ilícito, ou é antijurídico ou é conforme com
o direito e depois o direito penal surgia como mera sanção dessa ilicitude, não teria
qualquer autonomia, limitar-se-ia a sancionar condutas consideradas ilícitas de outros
ramos, seria apenas um ramo de direito acessório.
Hoje não é esta a visão das coisas que vigoram porque quando o direito penal
sanciona certos comportamentos há uma seleção desses comportamentos, essa seleção
não é feita ao acaso, nem de acordo com critérios da ordem jurídica geral, é uma seleção
orientada por critérios específicos e autónomos, é o próprio direito penal que configura
o seu âmbito de aplicação, por isso aplicam-se sanções especificas o que significa que só
se justifica esta especificidade se tivermos uma ilicitude especifica, uma contrariedade
autónoma do direito, só nesses casos é que se justifica aplicar penas criminais, portanto
hoje considera-se que o direito penal cria uma ilicitude autónoma sem prejuízo de haver
uma certa unidade na ordem jurídica no sentido em que aquilo que é autonomizado,
permitido por outro ramo de direito não pode ser penalmente ilícito, se eu tenho um
direito administrativo ou um direito civil e praticar um certo facto não posso ser punido
penalmente por esse facto, caso contrário teríamos uma ordem jurídica esquizofrénica.
O direito penal cria a sua própria ilicitude autonomamente. Mas é evidente que há
muitos factos criminosos que também constituem um ilícito à face do direito,
administrativo, civil, etc., de acordo com esses ramos de direito.

O que justifica a especificidade da ilicitude penal?

O facto de se ter de aplicar certas penas a certas situações especificas. E explica


uma outra coisa, que é precisamente pelo direito penal ter esta autonomia
relativamente a outros ramos de direito, haverá muitos casos em que os conceitos que
utilizamos no direito penal tem um conteúdo que pode ter que ser reconfigurado, isto
é, nem sempre uma palavra caracterizada num certo ramo de direito tem o mesmo
significado no direito penal. Por exemplo, o termo insolvência no direito penal, não tem
sempre o sentido que a Lei da insolvência dá a esse conceito.

3º Capítulo – Ciência conjunta do Direito Penal

Em meados do século XIX o crime tinha um tratamento puramente jurídico


(dogmático) quando falamos em dogmática estamos a falar de um conjunto de regras e
princípios que nos permitem trabalhar juridicamente, é gramática do direito. Com as
ciências auxiliares da filosofia e da história, a partir do século XIX intervém dois fatores
que vão transformar radicalmente o pensamento:

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1º- fator é um aumento da criminalidade de massas, a partir do século XIX à
grande afluência das pessoas para as cidades, começa a crescer uma
classe operária, grandes concentrações urbanas e começa a criar-se um
aumento de medo, de insegurança (a chamada criminalidade de rua) que
o poder politico tem de controlar.
2º- é também no século XIX que se dá o crescimento das ciências exatas e do
cientismo, é também nesta altura que a biologia, física, todos dias trazem
novidades e esse prestígio das ciências leva ao tal cientismo, tudo o que
não siga o método cientifico não é uma verdade, é claro que as ciências
humanas como o direito sofreram esse impacto e por isso surge o
positivismo jurídico, uma forma do direito se afirmar e responder como
ciência, esse surgimento das ciências vieram dizer que o crime não se
trata com o direito, porque o direito é metafísica, o que existe é uma
herança da escolástica, então como se responde ao crime? Estudando o
criminoso, ele é um ser a parte que sofre uma patologia e portanto cabe
a medicina estudar o criminoso, através de terapêutica e de preferência
cruzando esses métodos previamente ao crime.
O que interessa é uma politica criminal que seja efetiva em relação crime, que o
estado resolva o problema criminal e para isso tem de estudar o crime – surgindo assim
a ciência da criminologia.
É claro que contra esta ideia de que é necessário estudar o crime e o criminoso
houve criticas, a politica criminal não pode violar a dogmática. E foi na altura de
princípios do século XX que se propôs essa ciência conjunta do direito penal composta
por esses três pilares: dogmática (aplicar os aspetos jurídicos do crime), criminologia e
uma politica criminal (que indicaria os caminhos a seguir). Três núcleos embora
relativamente autónomos, procuram concorrer para um modelo eficaz e justo do
fenómeno da criminalidade.
Este paradigma foi de alguma maneira desvinculado com o estado social com as
garantias da racionalização dada pela dogmática penal cederam perante a politica
criminal autoritária de estados como Alemanha, União soviética, estados com uma
intencionalidade voluntarista de aplicar certas soluções com muito mérito. Por isso no
fim do século XX alguns autores viram sempre a politica criminal com alguma
desconfiança.
Hoje as relações sobretudo entre a politica criminal e a dogmática devem ser
compreendidas de um modo diferente que eram no século XIX e no século XX porque
quando pensamos na política criminal, não pensamo-la fora do direito, fruto de decisões
voluntarista, hoje toda a politica criminal é jurídico constitucionalmente conformada,
funciona num âmbito do estado de direito, portanto aquele medo que existia sobre qual
deveria ter a prevalência, dizia-se que a dogmática era a barreira intransponível da
politica criminal no sentido de que os princípios jurídicos (da legalidade, da culpa)
constituíam limites á politica criminal, o que aconteceu foi que a própria politica criminal
com o estado de direito absorveu esses princípios, são princípios hoje também eles com
relevância axiológica e jurídico constitucionalmente consagrados, portanto hoje não

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existe lugar para essa tensão entre dogmática e politica criminal. Por isso fomos levados
a afirmar que todas as categorias dogmáticas tem que ser politico criminalmente uteis,
desenhadas, não há lugar no direito penal, nem na dogmática para conceitos que não
sirvam para uma função legitimada à luz da politica criminal.

Direito Penal do Inimigo

Esta construção deve-se essencialmente ao pensamento de um grande jus


penalista alemão que criou um grande discípulo contemporâneo, e no fim do século XX
começa a falar do direito penal do inimigo dizendo que nós estamos já a ter na europa
um direito penal com regras excecionais, criando por todo o lado normas de exceção,
particularmente severas e agressivas do direito das pessoas, e a grande diferença é que
nos estados unidos já compreenderam isso e assumem-no formalmente, há um direito
penal excecional (para ligar sobretudo com o terrorismo) que nós na europa ainda não
assumimos, um direito muito mais violento para os indivíduos e o jus penalista
acreditava que existe um corpo de regras que não respeitam os princípios que estamos
habituados e que deve ser circunscrito à excecionalidade com que estamos a lidar (como
por exemplo o terrorismo).
Na primeira versão da construção direito penal do inimigo a intenção era limitar
esse conjunto de regras, que ele não se alastrasse, mas depois do 11 de setembro, levou
ainda mais a sério a ideia do direito penal do inimigo dando-lhe o seguinte fundamento
teórico: há de facto um grupo de indivíduos que se põe por sua própria vontade fora do
contrato social (pretendem destruir o estado de direito) e assim sendo não devem
beneficiar dos direitos e garantias que o pacto prevê, nem são consideradas pessoas,
mas sim indivíduos. Mas o que o estado pretende é modelar esses indivíduos de forma
a inseri-los novamente no pacto social. Isto é um exercício muito notável de articulação
entre fins politico criminais.
Esta construção é um bom exemplo de uma tentativa de por um lado ter uma
politica criminal nova de certa maneira revolucionária e integrar essa linha dentro de
uma construção dogmática, através da ideia de que nem todos os indivíduos são
pessoas, o direito em relação a eles não está limitado. Esta construção tem sido rejeitada
pela esmagadora maioria da doutrina, embora já tenha sido aplicada pelo Supremo
Tribunal da Colômbia na analise de certas regras para o tráfico de estupefacientes, mas
a maioria da doutrina tem rejeitado estra construção porque assenta num princípio
fundamentalmente errado que é o de que nem todos os indivíduos são pessoas, isso não
é algo que esteja na disponibilidade do legislador.
A crítica ao direito penal do inimigo tem sido bastante forte, mas bastante
generalizada, isto serve para mostrar como exemplo um caso em que se tenta contestar
uma certa linha de politica criminal com princípios jurídicos e é dentro do próprio campo
desses princípios jurídicos que nós podemos rebater a própria construção do direito
penal do inimigo.

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4º Capítulo – Quais são as finalidades da pena criminal? Porque
é que se pune as pessoas? Qual é o sentido?

A resposta a esta questão foi dada em torno de duas grandes ideias: teorias
absolutas ou teorias da retribuição às quais se opõem as teorias relativas da prevenção,
além disso temos ainda várias correntes que constituem combinações destes dois
grupos que procuram juntar ou complementar estes dois tipos de teorias.

Doutrinas absolutas ou da retribuição

O que estas doutrinas dizem é que a pena existe porque é o preço a pagar pelo
infrator por ter cometido o crime, a pena é um castigo. Neste sentido, esgota-se em si
mesma, tira o seu sentido de si própria e olha para o passado, “pune-se porque se
pecou”.
Estas doutrinas inspiram-se em vários textos antigos (olho por olho, dente por
dente), numa ideia de retribuição em espécie, mas sobretudo as doutrinas absolutas,
tem na base as construções religiosas da reprodução da justiça divina na terra, da
mesma maneira que na religião o pecado é pago com penitencia, o mesmo aconteceria
na terra, cabia ao rei castigar pelos crimes cometidos, tendo a religião uma influencia
grande nesta ideia da retribuição, até porque grande parte dos crimes eram
considerados pecado, portanto podiam ser julgados quer pelas autoridades religiosas
quer pela justiça, originando doutrinas de retribuição.
Receberam um novo impulso importantíssimo com a filosofia idealista alemã,
desde logo com Kant que considerava a pena um imperativo categórico, uma sociedade
que deixa um crime por punir está a violar um imperativo categórico, mesmo que não
haja perspetivas de uma continuação na vida social, é obrigatório punir aqueles que já
foram condenados.
Também Hegel sustentou uma doutrina absoluta dos fins das penas mas não
como imperativo categórico, mas aplicou ao problema do crime e da pena a sua teoria
dialética dizendo que existe a norma jurídica, o crime é a negação da ordem jurídica e
portanto a pena é a negação da negação, a pena serve para negar a negação do direito
levando ao restabelecimento da norma, a norma volta a estar intacta porque a pena
apaga a própria negação do direito.

O que há de comum a todas estas doutrinas?

• Todas assentam numa qualquer ideia de justiça, a pena é imposta por uma
questão de justiça e tem naturalmente que respeitar uma equivalência, a medida
justa.
Se a pena significa uma reprovação do agente pelo ato cometido, então o
fundamento da pena há que ser igual à culpa, pena e culpa são entidades indissociáveis,

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não há pena sem culpa e além disso a culpa é também a medida da pena, pune-se
porque existe culpa, mas vai ser a culpa que irá determinar a medida da pena.
Todas estas teorias tem isto em comum, nenhuma delas diz que pune-se porque
isso tem uma certa utilidade social, é exatamente o contrário, a pena existe por si
mesma e não tem de garantir nenhuma utilidade social.
O estado ao limitar direitos através das penas só pode faze-lo se estiver a
proteger direitos constitucionalmente protegidos – artigo 18º/2 CRP. E aqui surgem dois
princípios fundamentais:
o Princípio liberal do estado – o estado não deve intervir sobre os direitos
das pessoas, em principio deve preservar as liberdades e as garantias do
cidadão, é para isso que serve em primeiro lugar o estado.
o Princípio da necessidade – todos nós estamos sujeitos a limitações de
direito mas que apenas são legítimas quando sejam necessárias para
proteger outros interesses de ordem constitucional.
E a conjugação desses dois princípios, leva-nos a concluir que as doutrinas da
retribuição não constituem uma explicação, uma fundamentação legitima das penas
criminais, porque qualquer que seja a visão que está subjacente a essas doutrinas
nenhuma delas cumpre a função do estado.
Portanto a pena tem que de alguma forma servir o propósito do estado, servir a
proteção de bens jurídicos, o direito penal só é legitimo de forma a servir a proteção de
bens jurídicos e no fundo é isso que o direito penal faz, regular as condições de aplicação
de uma pena, logo por aqui as doutrinas da retribuição não merecem acolhimento.
Para além disso existe ainda um outro problema mais conexionado com o
principio liberal, que se traduz no facto de nenhum de nós deu autoridade ao estado de
nos castigar, de punir em nome de uma ideia de justiça, o que demos foi autoridade ao
estado para restringir os nossos direitos quando isso seja necessário para proteger
outros direitos, mas todos nós temos o direito à liberdade de consciência, o estado tem
autoridade para me punir quando eu colocar um bem jurídico, mas não me pode punir
em nome de uma certa ideia de justiça.
Ainda podemos juntar um último argumento, que nos diz que as doutrinas de
retribuição tem uma feição puramente negativa de infringir um mal, com um sofrimento
responde-se com outro sofrimento, há uma adição do mal, esse mal tem de ter uma
função útil e é por isso que o Dr. Eduardo Correia ponha uma grande tónica a
ressocialização do delinquente, era um mal que era um bem, porque ao ser executada
deve permitir ressocializar o delinquente.

Doutrinas relativas ou da prevenção

A grande diferença das teorias relativas em relação às absolutas é que a pena nas
teorias relativas, tem uma finalidade que a transcende, não se esgota em si própria, é
um mal que tem de servir um propósito e este não pode deixar de ser a prevenção
criminal, isto é, evitar a prática futura de crimes.

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A crítica que se fez às teorias da prevenção, uma critica geral, diz-se que as
teorias da prevenção o que fazem é instrumentalizar o homem, porque o estado aplica
uma pena a uma pessoa para ela servir de exemplo para os outros cidadãos, para servir
os fins do estado, está a coisificar a pessoa e portanto a violar a sua dignidade.
A verdade é que se isto fosse assim, o estado nunca poderia restringir direitos
individuais para alcançar os seus fins, claro que coisa diferente são as penas que atingem
a dignidade da pessoa, essas são proibidas enquanto tal, mas isso não tem que ver com
a fundamentação do direito penal, tem que ver com os limites das próprias penas, se a
pena for o chicoteamento ou se for o corte de membros são penas que atentam com a
dignidade da pessoa humana, mas isso tem que ver com o próprio conteúdo das penas
e não com a fundamentação.
Dentro das doutrinas da prevenção podemos distinguir dois grupos distintos:
- Doutrinas da prevenção geral: visam atuar sobre a generalidade das pessoas de
maneira a que não venham a ser cometidos crimes, haveria primeiro uma
ameaça no momento da feitura da norma, “quem matar outra pessoa é punido
com pena de x”, isto serviria como aviso geral à comunidade e depois na
execução da pena isto continuaria a reforçar esse aviso de que a infração daquela
norma acarreta aquele tipo de consequência. Neste sentido ainda podemos
distinguir na prevenção geral duas vertentes distintas:
❖ Prevenção geral de intimidação ou doutrina da coação psicológica:
formulação de Feuerbach, dizia-se que o homem age movido por
instintos de procurar o prazer e evitar o sofrimento e a ideia é que
temos de conseguir através das penas que as pessoas sejam
demovidas da prática de factos porque as penas lhes vão trazer um
sofrimento maior do que o sofrimento de não cometer o crime. Os
destinatários são os potenciais criminosos, a coação psicológica,
sendo a ameaça uma forma de os fazer com que se afastassem desse
projeto e cumprissem com o direito;
❖ Prevenção geral positiva ou prevenção geral de integração: procura-
se dizer que as penas não visam apenas intimidar, a norma jurídica
impõe-nos uma série de comportamentos, quando alguém viola essa
norma, as expectativas da comunidade ficam inseguras, portanto a
aplicação e execução da pena visa restaurar a confiança da
comunidade, serve para promover a coesão social em torno das
normas.
Em relação à teoria da prevenção geral negativa, já vimos que a critica de
que ela instrumentaliza o homem não é uma critica razoável porque o estado
limita os direitos das pessoas para muitos outros efeitos, para servir os seus
próprios interesses, por isso não se pode dizer que isso é um atentado à
dignidade da pessoa humana, mas há uma crítica que se faz também e é
importante é que não é possível determinar qual é a quantidade de pena
necessária para intimidar as pessoas, e normalmente como crime é uma
realidade fisiológica a teoria da coação psicológica leva muito provavelmente a

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um aumento exponencial das penas, 10 anos não são suficientes para intimidar
então vamos prever 12, 20, etc., portanto tem este inconveniente de não ser
possível determinar o quantum se possa dizer capaz de evitar a prática de crimes
ficando própria legitimação da pena e do direito penal em causa.
A doutrina que vamos adotar é a prevenção geral positiva como principal forma
de fundamentação da pena e do direito penal porque:
✓ É uma doutrina que facilmente se compatibiliza com a função de
proteção de bens jurídicos, é precisamente isso que cabe ao estado fazer.
✓ Responde a algumas das questões que não são satisfatoriamente
respondidas pela prevenção geral negativa porque podemos encontrar
um conjunto de penas que são adequadas para estabilizar a confiança da
comunidade em relação a determinados factos, o legislador, perante um
crime de homicídio (artigo 131º CP) o que está a fazer aí é encontrar um
conjunto de penas que vão entre os 8 e os 16 anos que em principio serão
todas elas adequadas a satisfazer as exigências comunitárias e permitir a
restauração da confiança da comunidade, mais do que 16 anos será
desnecessário, menos do que 8 anos será uma imposição que não cumpre
o dever jurídico, mas isto nos casos comuns de homicídio normal. O limite
máximo é dado pela necessidade e menos do que o mínimo não se
cumpre satisfatoriamente a defesa do ordenamento jurídico. Dentro
desse espaço de prevenção, o juiz tem de encontrar o limite máximo
permitido pela culpa do agente, quer dizer se todas essas penas são aptas
a cumprir as exigências de prevenção há de haver um limite qualquer
porque mais do que isso seria contrário ao principio da culpa, portanto a
culpa continua a ter um papel fundamental, pressuposto e limite. Se a
culpa nos dá o limite máximo da pena, continuamos a ter um espaço de
manobra para um juiz fundamente a aplicação da pena concreta, que
será determinada por exigências de prevenção especial, é em função
desta, que a pena se vai aproximar mais do limite da culpa. No fim a pena
que o juiz vai encontrar vai cumprir todas as exigências que se pede à
pena: ser conforme com a prevenção geral de ressocialização, ser capaz
de proteger bens jurídicos, vai ser uma pena respeitadora da culpa.

- Doutrinas de prevenção especial: diz que a pena serve para evitar a prática de
crimes futuros mas atuando sobre o próprio delinquente impedindo que ele
cometa mais crimes e neste sentido podemos falar numa prevenção de
reincidência. Como se consegue isto? Aqui podemos falar de três modelos:
o Prevenção especial negativa: a pena deve agir como ferramenta de
intimidação do próprio condenado, tem que ser orientado no sentido de
que ele sofra e para que com receio desse sofrimento não venha a
cometer mais crimes ou então no sentido da sua neutralização, a pena é
vista como um instrumento para neutralizar o fim. Isto depois tem
consequências no tipo, duração das penas;

Daniela Costa Amaral


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o Modelo médico: é nos trazido pelo positivismo e é defendido em Portugal
por psiquiatras, médicos que dizem que o problema criminal não pode
ser resolvido com o direito, o criminoso é um doente que tem de ser
tratado, portanto a abordagem certa não é uma abordagem metafísica,
mas sim que o criminoso deva ser tratado como um doente que requer
uma terapêutica especifica. Durante o século XX houve outras tentativas
de instaurar modelos médicos de controlo do crime em alguns países já
não com a ideia de que se trata de pessoas diferentes dos outros, mas
que de facto alguns crimes se resolvem com abordagens médicas.
o Prevenção especial positiva: dentro desta também podemos distinguir
duas abordagens diferentes, num primeiro momento procurava-se a
emenda moral do delinquente, uma transformação do delinquente a
uma pessoa má para uma pessoa boa, sucedeu-se a esta corrente uma
outra corrente – corrente correcionalista (correcionalismo jurídico, a
pena deveria ter o efeito de corrigir o delinquente, para isso foi
fundamental a importação das experiencias penitenciárias de outros
países que visam corrigir o delinquente, aqui já se estava um pouco para
lá da ideia moral, já se pretende mais incidir sobre as suas capacidades,
as suas competências de trabalho, etc. essa corrente manteve-se no
direito português até hoje, não que a prevenção especial tenha sido
considerada alguma vez como principal finalidade (pois esta é
restabelecer o estado de direito pelo crime) mas o relevo dada a
prevenção especial desde aí foi uma constante. Para além do
correcionalismo, a prevenção especial positiva transformou-se numa
prevenção especial de socialização ou de ressocialização, mantemos a
ideia da prevenção da reincidência, de que o condenado consiga conduzir
a sua vida sem praticar crimes, mas como é que isso se faz? O estado
continua a ter um dever de oferecer oportunidades de ressocialização,
não pode obrigar o condenado a seguir um certo programa de
ressocialização, mas deve oferecer as oportunidades que lhe permitam
conduzir uma vida sem crimes, prendem-se com aspetos variadíssimos,
desde a saúde, competências laborais, etc. tudo isso são deveres que o
estado tem de cumprir com os condenados.
Qual é o principio do estado de direito moderno que subjaz a esta visão
das coisas?
É o chamado principio do estado social, um estado que não se
limita a respeitar os direitos e as garantias dos cidadãos, mas também
promove-los. E um condenado é alguém que está a sofrer um mal para
servir interesses do estado, porque isso é conveniente para o estado, por
isso ao mesmo tempo que essa pena é cumprida com essas finalidades,
deve também aproveitar-se para procurar fornecer ao condenado os
instrumentos necessários para poder conduzir uma vida sem crimes,
claro que isto não permite nenhum tratamento coativo, tem de se

Daniela Costa Amaral


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respeitar a autonomia do condenado que pode ou não aproveitar as
oportunidades que lhe vão sendo oferecidas.
Pode haver casos em que a pena de prisão não tem finalidade de
ressocialização porque a pessoa não precisa, nesses casos a prevenção
especial terá uma função puramente negativa, de aviso, segundo a qual
o estado espera que essa pessoa não possa voltar a cometer crimes no
futuro.
Nota: este problema dos casos em que não existe uma carência de ressocialização não
deve confundir-se com a ideia de que as pessoas de elevado estatuto social não tem
carência de ressocialização (crime de colarinho branco), esta ideia é errada, a
ressocialização não deve pracista segundo a qual só as pessoas provindas de classes
desfavorecidas é que necessitariam de ser ressocializadas, também os crimes de
colarinho branco pode ter carências de ressocialização.
Há ainda quem pretende salientar mais uma finalidade da pena, que é uma
finalidade autónoma da reparação do dano.
O Dr. Figueiredo Dias a esse propósito diz que a reparação do dano é muito
importante, pois é um sinal de uma certa recomposição social e é bom que se faça
depender certos instrumentos da existência dessa reparação, todavia a reparação do
dano não deve ser considerada em si mesma como uma finalidade autónoma da pena,
muitas vezes o dano nem sequer é reparável, noutras é recomposto seja por acordo ou
pela ação civil de indeminização, portanto não há verdadeiramente razões para
considerar a reparação como uma finalidade autónoma da pena, podemos dizer é que
a reparação é um instrumento importante ao serviço da prevenção geral de integração.

Em síntese:

Todas as penas tem uma natureza exclusivamente preventiva portanto não há


penas que tenham outra finalidade, que não a finalidade preventiva, sejam finalidades
preventivas gerais, sejam finalidades preventivas especiais, só esta perspetiva está de
acordo com a legitimação que o estado tem que ter quando exerce o direito de punir.

• todas as penas tem uma finalidade preventiva, geral e especial, portanto


nenhuma pena pode ter uma finalidade retributiva.
Ora estas finalidades preventivas que são finalidades próprias do estado, seguem
programas politico criminais próprios do estado de acordo com os seus interesses tem
sempre um limite inultrapassável – a culpa. O que nós herdamos da doutrina da
retribuição é precisamente a ideia de culpa como um pressuposto imprescindível da
pena “não há pena sem culpa”, a culpa é também o limite máximo da pena, não pode
haver pena para além da culpa, mas ao contrário do que dizem as doutrinas da
retribuição, pode haver culpa e não haver pena, são os casos da dispensa de pena, em
que existe um facto típico, ilícito, culposo e todavia não havendo razões de prevenção
suficientes não existe pena.

Daniela Costa Amaral


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Com isto conseguimos compreender o tal modelo de determinação da pena
concreta que o juiz vai utilizar. Nesse modelo o juiz tem de ver se a moldura que é dada
na lei é uma moldura capaz de satisfazer as exigências de prevenção e de integração, se
não forem, tem ele próprio que linear essa moldura. Portanto todo aquele conjunto de
penas é suficiente para o cumprimento das exigências de prevenção geral positiva, a
pena da culpa é respeitada porque não pode ser superior à culpa e depois dentro desse
espaço funcionam as exigências de prevenção especial, quanto mais intensas elas forem,
mais grave será a pena e mais se aproximará do limite da culpa. Quanto menos
importantes forem, menor será a pena e mais se aproximará do limite inferior da
prevenção geral de integração.

Esta compreensão das finalidades das penas é compatível com a nossa


constituição?

Sim, se olharmos para o artigo 18º/2 CRP vemos que a constituição permite a
restrição de direitos, desde que ela seja necessária, proporcional e adequada para a
proteção de outros interesses constitucionalmente protegidos. Por outro lado, para
além do art. 18º/2, temos o artigo 40º CP que diz-nos precisamente isso.

5º Capítulo – Medidas de Segurança

Tem dois campos de aplicação essenciais:


1º. Os inimputáveis em razão de anomalia psíquica que além disso sejam
criminalmente perigosos
Estes agentes sendo inimputáveis (incapacidade de culpa, agente inimputável é
aquele que atuou sem culpa, seja porque é menor de 16 anos, ou porque sofre de uma
anomalia psíquica), isto corresponde à ideia antiga de “não se punem os loucos”, mas
em alguns casos pode acontecer que o inimputável seja criminalmente perigoso, isto é,
exista o receio fundado de que essa pessoa venha a cometer novos factos da mesma
espécie no futuro precisamente por força dessa inimputabilidade que essa pessoa sofre.
Quando assim é, falamos numa perigosidade criminal, além do facto ilícito típico, esse
agente apresenta perigosidade criminal, perante isto é evidente que o estado não pode
abster-se de agir – função de defesa social – o estado não pode permitir que uma pessoa
sendo inimputável continue a praticar factos graves e é por isso que existem as medidas
de segurança que não tem um sentido punitivo mas servem essencialmente para
propósitos de defesa social, de proteção social contra a perigosidade individual.
2º. Domínio dos delinquentes imputáveis especialmente perigosos
Quando o legislador calcula as penas está a pensar precisamente em casos
normais, mas pode haver casos em que certos agentes podem ser extraordinariamente
perigosos, isto é, são agentes que embora sejam imputáveis, tem uma personalidade tal
que os leva a repetidamente cometer crimes da mesma espécie. E portanto as penas
previstas para os casos comuns, não são suficientes para combater esses agentes.

Daniela Costa Amaral


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Em relação a estes casos põe-se a questão do monismo ou dualismo das reações
criminais. Podemos dizer que o sistema monista das reações criminais é aquele que
aplica penas a imputáveis e medidas de segurança a inimputáveis, isto é, não é possível
aplicar uma pena e uma medida de segurança complementar a um agente imputável
pelo mesmo facto, no fundo reserva as medidas de segurança para os agentes
inimputáveis. No sistema dualista permite a aplicação de uma pena e de uma medida
de segurança a imputáveis especialmente perigosos, portanto agentes que são
considerados imputáveis mas também perigosos pode lhes ser aplicada uma pena e
depois uma medida de segurança como reação à especial perigosidade. Este sistema
dualista existe claramente na Alemanha, por exemplo.

Qual é a finalidade primordial das medidas de segurança?

É a prevenção especial, não é a prevenção geral porque não se trata em primeira


linha de comunicar uma mensagem punitiva à generalidade dos cidadãos, mas sim de
reagir contra uma perigosidade individual, mas que deve ter ainda presente uma função
de socialização, em particular tratando-se de inimputáveis, traduzir-se-á em atividades
terapêuticas. Portanto uma função de socialização que deve prevalecer sob uma função
de pura segurança.
É claro que em alguns casos isso não é possível e a própria medida de segurança
como está pensada nem permite uma função de socialização, por exemplo, as medidas
de segurança previstas no artigo 274º-A/2 do CP, que são as aplicadas aos incendiários,
apenas lhes são aplicados durante o período dos fogos. Mas em geral as medidas de
segurança devem ter uma função de socialização e não devem resumir-se a uma função
de segurança.
Contudo, a prevenção geral também desempenha aqui um papel ainda que seja
secundário. Desde logo havia aquela ideia de que as medidas de segurança não tem
papel de prevenção geral porque o cidadão comum não se revê na posição de
inimputável, quer dizer, o facto praticado pelo inimputável não constitui um mau
exemplo para a comunidade, não abala as expectativas comunitárias relativas à vigência
da norma.
Isto não é bem assim, por duas razões: em primeiro lugar porque em alguns
sistemas as medidas de segurança podem ser aplicadas em imputáveis e algumas
medidas de segurança que em Portugal são claramente aplicáveis em imputáveis, por
exemplo a proibição ou interdição a certas profissões (artigo 100º) ou a cassação da
licença de condução (artigo 101º). A única medida de segurança no direito português
que só pode ser aplicada a inimputáveis é a medida de segurança do internamento. Logo
por isso não podemos dizer que a generalidade dos cidadãos não fica afetada, dizem
respeito também a imputáveis.
Mas mesmo em relação aos inimputáveis a medida cessa assim que cessar a
perigosidade do agente. Aqui se vê também como é uma medida comandada pela
prevenção especial, só que o artigo 91º CP prevê-se que tratando-se de crimes graves
contra pessoas, a medida de segurança de internamento tem uma duração mínima de
3 anos, mesmo que a perigosidade tenha cessado, a não ser que a libertação da pessoa

Daniela Costa Amaral


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se revele compatível com a paz social. No fundo é dizer que mesmo quando se trata de
um facto praticado por um inimputável, se for um facto muito grave, se for um homicídio
muito violento, a sociedade não se sente confortável que a pessoa seja libertada ao fim
de seis meses, mesmo que se prove que está medicado, há aqui um elemento de
confiança que também é preciso acautelar, por isso nesses casos o agente deve
permanecer internado, a não ser que do ponto do vista da prevenção geral seja
compatível, ele pode ser libertado.

Temos falado bastante da perigosidade criminal mas não nos podemos esquecer
que qualquer medida de segurança tem dois pressupostos fundamentais:
1) A prática de um facto ilícito típico – isto é, um facto que se fosse praticado
por alguém com culpa seria considerado crime
2) Perigosidade
Ambos os requisitos são fundamentais para a aplicação de uma medida de
segurança, significa que o agente que cometer um facto ilícito, for considerado
inimputável, mas não for criminalmente perigoso, não há lugar a uma medida de
segurança, mesmo que tenha sido um crime terrível (por exemplo: homicídio múltiplo).
Não se pode aplicar medidas de segurança a pessoas com base na sua
perigosidade individual que não estão documentadas na prática de um facto típico
ilícito, mesmo que fosse possível determinar que certa pessoa é criminalmente perigosa,
pela sua personalidade, modo de vida, não é suficiente para aplicar uma medida de
segurança. Não há lugar no direito português para medidas de segurança pré-delituais.
Por isso também se justifica que a matéria das medidas de segurança continue
no direito penal e no processo penal precisamente porque é preciso determinar se
existiu ou não o comportamento de um facto típico ou ilícito e isso cabe aos tribunais.
Hoje em dia mantem-se a discussão sobre as medidas de segurança devem passar para
o direito administrativo ou não, o Dr. Figueiredo Dias considera que deverá manter-se
no direito penal.

Daniela Costa Amaral


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Isto é a grande distinção entre a pena e a medida de segurança. A pena tem como
pressuposto um facto ilícito típico e além disso a culpa do agente, vimos que não existe
pena sem culpa, as medidas de segurança tem como pressuposto um facto ilícito típico
e a perigosidade, já não pressupõe a culpa, não está excluído que as medidas de
segurança possam ser aplicadas a quem agiu com culpa, os seus pressupostos são o facto
ilícito típico e a perigosidade, e isso tem duas consequências:
1º- não existem medidas se segurança pré-delituais, isto é, não existem
medidas de segurança anteriores, não se pode aplicar uma medida de
segurança a uma pessoa antes dela ter praticado um facto típico e ilícito;
2º- a perigosidade é um juízo sempre de prognose, perigosidade criminal
significa o perigo do agente cometer factos da mesma espécie para o
futuro.
Portanto as medidas de segurança tem este caráter prospetivo de reação a uma
perigosidade futura, ao passo que as penas tem um sentido retrospetivo. As penas tem
por referência um facto passado e as medidas é para o futuro.

Formas das reações criminais

A primeira distinção a fazer é entre penas principais e acessórias.


➢ As principais são aquelas que estão cominadas na própria norma que
pune determinado crime, as penas principais são a prisão e a pena de
multa que podem estar previstas sozinhas ou acompanhadas de outras.
➢ As penas acessórias são decretadas conjuntamente com uma pena
principal. Elas não existem para todos os crimes, mas só para alguns,
proibição do exercício de função, proibição de conduzir veículos com
motor, etc., visam censurar especialmente um agente pela infração de
um dever especial.
As medidas de segurança não tem esta divisão. O que existe são medidas de
segurança detentivas (privação da liberdade, em Portugal há apenas o internamento de
inimputáveis) e depois as medidas de segurança não detentivas (aqui também se visa
reagir contra a perigosidade do agente, a interdição de atividades e a cassação de titulo
de condução – artigos 100º e 102º CP).

Quais são os sentidos possíveis do binómio monismo e dualismo? O que


queremos dizer com um sistema dualista?

Pode ter vários sentidos, desde logo pode querer o sentido de dizer que um
sistema penal prevê duas espécies de sanções: penas e medidas de segurança, neste
sentido não levanta qualquer problema porque virtualmente todos os sistemas do
mundo preveem dois tipos de sanções; podemos ainda dizer que o sistema é dualista no

Daniela Costa Amaral


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sentido em que permite a aplicação de certas medidas de segurança a imputáveis e
cumulando-as com penas, esse sentido também não é particularmente problemático, o
sistema português prevê isso mesmo, uma pessoa pode ser condenada por um crime
praticado pelo exercício da condução, sendo imputável e simultaneamente pode ser
implicada uma medida de segurança de cassação do titulo de condução, se se
verificarem os devidos pressupostos.
Se o juiz entender que naquele caso não basta uma pena acessória porque existe
um perigo fundado que o agente venha a cometer os mesmos factos, pode implicar uma
medida de segurança a este agente que é imputável e portanto neste sentido temos
uma aplicação de penas e medidas de segurança, este sentido já é um pouco
problemático porque estamos a permitir que a aplicação a agentes imputáveis do
mesmo facto de uma pena e de medida de segurança.
Há um terceiro sentido em que não se levantam problemas maiores, podemos
dizer que um sistema é dualista porque permite a aplicação do mesmo agente de uma
pena e medida segurança por factos diferentes e isto não tem um problema particular
porque é perfeitamente possível, uma pessoa pode ser imputável para um certo crime
e inimputável para outro: ex: agente que comete violação e furto da carteira da vítima,
pode ser inimputável em relação a um deles e imputável ao outro, porque sofre de uma
anomalia psíquica que o impede de entender a violação mas não tem reflexos no outro
crime. Portanto nestes casos é perfeitamente normal e possível que o tribunal aplique
ao agente por factos diferentes, uma pena e uma medida de segurança.
O problema levanta-se na segunda situação, olhando para o diagrama, o sentido
relevante desta oposição entre monismo e dualismo é este, é que num sistema monista
puro existe uma relação biunívoca entre penas e imputáveis e também uma relação
biunívoca entre medidas de segurança e inimputáveis, quer isto dizer que:

São dois círculos fechados que não se tocam em momento algum.


No sistema dualista (também chamado da dupla via ou do duplo binário)
mantém-se a ideia de que as penas só se aplicam a imputáveis (a quem agiu com culpa),
mas já não é verdade que aos agentes imputáveis só possam aplicar-se penas, porque
as medidas de segurança são aplicadas a inimputáveis, mas também podem ser
aplicadas pelo mesmo facto a agentes imputáveis perigosos e nisto reside todo o

Daniela Costa Amaral


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problema do dualismo, na aplicação de medidas de segurança em função da
perigosidade a agentes imputáveis.
Ainda na definição destes conceitos, temos uma pequena diferença, mas
definições que dava o Dr. Eduardo Correia e na definição que dá o Dr. Figueiredo Dias.
o Eduardo Correia: Sistema português é monista porque o dualismo
pressupõe: 1) cumulação de penas e medidas de segurança 2) detentivas 3)
pelo mesmo facto;
Para este professor, em Portugal não temos um sistema dualista, porque teriam
que se verificar esses 3 requisitos.
o Figueiredo Dias: diz que saber se a medida de segurança é ou não privativa
da liberdade para este efeito é relevante, não nos importa se a medida de
segurança é privativa da legalidade ou não, basta que seja possível aplicar
ao mesmo agente pelo mesmo facto uma pena e uma qualquer medida de
segurança, para podermos dizer que se trata de um sistema dualista.

Mas porque importa saber se um sistema é monista ou dualista?

É que cada um destes sistemas levanta certos problemas.

MONISMO PURO-> toda a punição de agente imputáveis seja limitada pela culpa
provavelmente vamos deixar descoberto uma zona da criminalidade que trará
problemas ao próprio sistema, isto é, delinquentes especialmente perigosos onde não
é suficiente as penas previstas pelos tribunais em função da normalidade dos casos.
Pode acontecer que certa perigosidade individual não seja suficientemente atalhada
através das molduras penais que são as normas gerais legisladas pelo legislador, e
portanto um direito da culpa em sentido absolutamente estrito levaria a alguma
vulnerabilidade social porque deixaria a sociedade sem maneira de responder aos
delinquentes especialmente perigosos. Este é portanto o problema do monismo a
vulnerabilidade social perante imputáveis especialmente perigosos.

DUALISMO PURO -> é que a aplicação cumulativa de reações criminais da mesma


espécie pode levar a uma violação do princípio da culpa (limite das reações criminais)
ou uma violação da proporcionalidade do poder político. Todos os argumentos contra o
dualismo dizem isto, de que é que serve nós dizer-mos que a culpa é o limite da pena, e
depois o tribunal no caso concreto diz que este é especialmente perigoso e portanto
cumpre a pena em função da culpa e quando a pena terminar cumpre uma medida de
segurança enquanto for um agente perigoso, pode dizer-se que a certo ponto isto é uma
burla de etiqueta, a culpa vem limitar a reação penal, mas na verdade não limita nada.
Esta é a questão do dualismo, é uma falsidade. Está errado chamar o principio da culpa
porque ele acaba por não limitar nada.

Daniela Costa Amaral


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A posição que o Dr. Figueiredo Dias adota, e que o Dr. Pedro Caeiro segue, diz
que o dualismo não é necessariamente ilegítimo porque a limitação do poder punitivo
do estado não se faz sempre através do principio da culpa, há certos ramos do direito
onde existe responsabilidade sem culpa, e mostra que tem de existir outras formas de
limitar o poder punitivo do estado, de garantir os direitos individuais que não seja o
principio da culpa e uma das formas é o principio da proporcionalidade, invoca-se este
principio quando o principio da culpa não seja suficiente para responder ao problema.

Características do Sistema Português

Em primeiro lugar podemos afirmar que o sistema português é monista no


sentido que não permite a aplicação cumulativa de uma pena de prisão e de uma medida
de segurança pelo mesmo facto, o tribunal não pode dizer assim: você vai 14 anos para
a cadeia e quando acabarem vai cumprir uma medida de segurança de internamento
até acabar a perigosidade, isto não é permitido. Porém o sistema português se aproxima
do sistema dualista em alguns pontos:
1º- Permite a aplicação de medidas de segurança não detentivas a agentes imputáveis
e isto em acumulação de penas de prisão ou multa, o tribunal pode aplicar uma pena
de prisão a uma pessoa e simultaneamente a interdição de exercer um certo cargo
ou profissão, ou cassação do titulo de conduzir;
2º- Aproxima-se do paradigma das medidas de segurança o tratamento dos
delinquentes imputáveis especialmente perigosos ou por tendência. Há 2 institutos
no nosso direito que são destinados a tratar delinquentes especialmente perigosos
e de facto tem muito mais semelhança às medidas de segurança do que as penas:
o Artigo 20º/2 e 3 CP – imputabilidade diminuída – a imputabilidade não é
uma questão de 2 cores contrastantes, tem nuances, gradações e isso
compreende-se, há certas anomalias psíquicas que retiram às pessoas parte
de compreender o que estão a fazer, mas não completamente e por isso
essas pessoas tem a capacidade de agir com o direito diminuída, a nossa lei
permite nestes casos uma ficção de inimputabilidade, permite ao juiz e ao
tribunal declarar essa pessoa que é imputável (ainda tem capacidade para
avaliar a ilicitude dos factos) mas o que o artigo 20º/2 e 3 permitem que o
tribunal declare essa pessoa inimputável, os agentes que estão nessa
situação tem uma culpa muito diminuta, levando a que as penas aplicadas
também sejam muito diminutas, o que não permite reagir contra a
perigosidade desses agentes. Portanto permite-se ao juiz que declare a
inimputabilidade dessas pessoas para permitir uma terapêutica própria das
medidas de segurança num estabelecimento destinado a pessoas
inimputáveis. Aplicação de uma medida de segurança a uma pessoa que
ainda é imputável;
o Artigo 83º e ss. do CP – pena relativamente indeterminada – aqui já não
estão em causa anomalias psíquicas mas sim casos de multi reincidência,
isto é, pessoas que cometem vários crimes ao longo do tempo, parece que

Daniela Costa Amaral


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o sistema penal não está a resultar, já cumpriram várias penas e existe uma
perigosidade de repetição de cometimento de novos crimes, e para esse
efeito o Dr. Eduardo Correia inventou esta pena relativamente
indeterminada – o tribunal determina a pena do facto, a que caberia a uma
moldura de 8-16 anos por crime de homicídio, por exemplo 14 anos de
prisão e a partir desses 14 anos estabelece uma moldura da pena
relativamente indeterminada, subtrai um certo número de anos, por
exemplo 2 anos, consoante os casos, e a moldura da pena relativamente
indeterminada soma à pena concreta também um X de anos e portanto
desses 14 a pena relativamente indeterminada transformou-se numa pena
entre 12 a 18 anos, tendo como referencia os 14 anos. Portanto a pena
transforma-se numa moldura e dentro dessa, vai ser executada no sentido
de avaliar quando é que cessa a perigosidade do agente, e quando esta
cessar o agente é libertado. Esta pena ainda é conforme com um direito
penal da culpa, porque no entender do Dr. Eduardo Correia os delinquentes
especialmente perigosos tem uma culpa suplementar, para além da culpa
do facto teria a chamada culpa pela não formação da personalidade, se tem
uma acentuada inclinação para o crime, tem de lutar contra essa. O excesso
ou o acrescento de pena que esta gente cumpriria ainda seria justificado à
luz de uma ideia de culpa, pois não formou a sua personalidade de acordo
com o direito e isso leva a que seja especialmente censurado, isto era muito
conveniente para o Dr. Eduardo Correia para dizer que o nosso sistema é
monista, respeita o principio da culpa. Só que as coisas não são exatamente
assim na perspetiva do Dr. Figueiredo Dias, primeiro porque não existe no
direito penal uma culpa pela não formação da personalidade, o que nós não
podemos é na nossa atuação, na nossa ação social, por em causa os bens
jurídicos protegidos. Isto significa que a partir do momento em que se
ultrapassa na execução da pena, a pena que caberia até ao limite da culpa
(supor os 14 anos) é claro que já não estamos perante uma pena justificável
à luz do principio da culpa, só se pode justificar através da perigosidade
individual, portanto materialmente em certo momento a pena
relativamente indeterminada adquire a natureza de uma medida de
segurança embora formalmente continue a chamar-se uma pena.
Por isso é que a doutrina defende que o nosso sistema não é verdadeiramente
monista, é apenas tendencialmente monista ou monismo prático, porque se preserva a
unidade das penas de um lado e das medidas de segurança no outro. O Dr. Figueiredo
Dias chama muito à atenção nesse ponto, a importância do vicariato na execução – quer
dizer substituição – e portanto o que se procura aqui é que as penas e as medidas de
segurança sejam unificadas na sua execução, apareçam como uma unidade de sentido
e é isso que permite compreender que quando um agente é condenado numa pena e é
aplicada uma medida de segurança por outro facto, a medida de segurança é aplicada
primeiro e o tempo que a pessoa cumprir é descontado na pena, isso mostra bem o
vicariato na execução, embora sejam duas medidas autónomas elas encontram-se na

Daniela Costa Amaral


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execução, esta unificação acaba por mitigar o problema da acumulação de sanções
diferentes.

Como podemos avaliar o sistema português em face do monismo e do


dualismo puros?

Quanto ao monismo:

Temos um problema politico-criminal e é daí que temos de partir – delinquentes


imputáveis especialmente perigosos. O sistema português tem de facto vantagens tanto
em relação ao monismo, como ao dualismo puros, porque se nós quiséssemos respeitar
integralmente o monismo puro, tínhamos de consagrar penas de prisão muito longas,
do que aquelas que hoje existem, para acomodar a eventual perigosidade de certos
delinquentes, mas esta opção de agravar as penas, teria muitos inconvenientes, o
primeiro é agrava o punitivismo de um sistema que já é altamente punitivo.
Em segundo lugar, esta consagração de penas muito longas, também constituiria
uma utilização indevida das penas, que tem por referencia o facto passado e a culpa
expressa do agente, para responder a um problema que tem por referencia uma
questão futura, que é a perigosidade, as penas não servem para isso em primeira mão,
faria perder a relação entre a gravidade dos factos e as penas.
Além disto este agravamento das penas abstratas, seria inútil sempre que a culpa
fosse diminuta, ora estamos a considerar um sistema monista puro, que respeita
integralmente a culpa do agente, se o agente atuar com uma culpa leve, por mais
perigoso que seja este sistema também não responde, havia de continuar a ser uma
pena diminuta, neste ponto de vista nem seria um sistema útil.
Este tipo de penas teria um efeito ainda mais desfavorável para os cidadãos,
porque quando se decreta uma pena, esta cessa quando tiver de cessar, ora a aplicação
de medidas de segurança para reagir a estes casos é muito mais plástica, porque as
medidas de segurança cessam quando cessa a perigosidade, portanto com a
consagração de penas muito longas, já não seriam requeridas pela proteção dos bens
jurídicos, já não tem que ver com o facto, já cessou a perigosidade deles, mas não há
maneira de fazer cessar aquela pena, portanto trata-se um sistema inútil. Por estas
razões o monismo puro não será o sistema mais adequado.

Quanto ao dualismo:

Este implica sempre uma fratura entre duas espécies de sanções (penas e
medidas de segurança) comportam-se como universos fechados e não existe aí uma
unidade de execução que o nosso sistema permite, portanto essa autonomia formal não
é conveniente.
O dualismo representa uma verdadeira burla de etiqueta quando as medidas
sejam da mesma espécie, aqui o Dr. Eduardo Correia tem toda a razão, se aplicamos
uma pena a um agente no limite da culpa e no mesmo ato uma medida de segurança

Daniela Costa Amaral


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privativa da liberdade para cumprir depois da pena, a culpa não importa para nada,
existe aqui quando se trata de medidas da mesma espécie uma clara burla de etiqueta
que o nosso sistema evita com a pena relativamente indeterminada.
Última critica é que no sistema dualista, a medida de segurança que reage contra
a perigosidade de agentes imputáveis não tem no seu ADN qualquer relação de
proporcionalidade com o facto, esta faz-se com a perigosidade do agente, parte do
legislador pode impor alguns limites a medida de segurança. Se a perigosidade não
cessar, não cessa a medida. No caso português o facto e a gravidade do mesmo são
pressupostos da medida de segurança, o facto também entra, e até na pena
relativamente indeterminada tem um limite absoluto, quer dizer se chegarmos ao
ultimo limite e o agente continua a ser perigoso, a sociedade tem de suportar esse risco,
a proporcionalidade tem haver com o facto praticado, uma vez atingido o limite
extingue-se a pena em que o agente foi condenado, portanto este limite de
proporcionalidade com o facto independentemente da perigosidade do agente é
também uma vantagem em relação ao sistema dualista puro.

Portugal é um sistema tendencialmente monista das reações criminais, a sua


característica mais notória é que não permite a aplicação cumulativa de penas e
medidas de segurança de internamento a agentes imputáveis pelo mesmo facto.
Todavia há de facto alguns pontos do regime onde existe uma aproximação ao sistema
dualista, por isso é que dizemos que é um sistema tendencialmente monista.

6º Capítulo – Definição do Comportamento Criminal

Como definimos o crime em sentido jurídico?

Perspetiva Positivista-legalista

➔ Crime será tudo aquilo que o legislador disser que é, todas as condutas que o
legislador ameaçar com uma pena, isto é um conceito formal de crime, porque
estamos a remeter para o legislador a definição do que é um crime.
Esta perspetiva tem uma vantagem, que é mostrar que não existe crime para
fora da lei, é necessário que a lei o defina como tal e isso é precisamente a cominação
de penas criminais para essa conduta. Porém, esta perspetiva tem algumas
desvantagens, ou algumas insuficiências, desde logo porque remete a definição do
crime acriticamente para o voluntarismo do legislador, tudo o que este disser que é
crime, é crime, mas isso não dá ao legislador um padrão daquilo que deve ou não ser
crime. E o legislador também precisa desse critério. Portanto o conceito positivista-
legalista a única vantagem que tem é mostrar a vinculação do crime à lei.

Daniela Costa Amaral


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Perspetiva do Positivismo-sociológico

➔ Crime seria o que a sociedade universalmente considerasse como tal


independentemente do lugar e da época.
Isto reconduzir-nos-ia à ideia religiosa dos mandamentos e dos pecados, o que
for universal está condensado nesses enunciados religiosos e que podemos resumir a
relação de sentimentos altruísticos. E que são na verdade por um lado a violação da
piedade, estaria na base da generalidade de todos os crimes contra as pessoas, e por
outro lado a probidade que seria a virtude cuja a infração subjaz aos crimes patrimoniais,
que revelam defeitos de cobiça e ganancia.
Esta abordagem sociológica veio a ser desenvolvida mais tarde pelo sociólogo
Durkheim e este adaptou a sua teoria da sociedade à definição do conceito de crime,
também buscava de uma forma menos universalista do que Garófolo porque se referia
a sociedades concretas e falava dos sentimentos claros, precisos e fortes daquilo que é
considerado como um crime.

Importância desta perspetiva para o nosso problema -> deu origem a correntes
criminológicas que ainda hoje são atuais, a criminologia procurou definir o seu objeto
fora da lei e começou a centrar-se no comportamento desviante, que de alguma forma
não cumpre as regras sociais, porque só assim é que podemos avaliar a danosidade
social dos comportamentos, ver se existem condutas que devem ser criminalizadas e
condutas que sendo formalmente consideradas como crime não causam dano social
suficiente para serem criminalizadas. É preciso estudar empiricamente os casos em que
a conduta é desviante e perceber porque algumas condutas são crime e outras não.

Foi também importante para o surgimento de duas formulações, o principio da


danosidade, que dizia que só pode ser criminalizada a conduta que causar um dano
social. E o principio da ofensividade, que aponta para uma ideia de danosidade social, a
conduta relevante é a socialmente danosa.
Em suma podemos dizer que todas estas teorias de raiz sociológica apontam para
uma ideia de crime como dano social, independentemente da forma como a lei
considera essa conduta. Pune-se porque há um dano social, todavia esta ideia de
prejuízo não é uma doutrina ainda suficiente porque é demasiado vaga, suscetível de
certas apropriações subjetivas, não delimita a conduta criminal em relação ás restantes.
Além disso hoje é cada vez mais difícil procurar um conceito sociológico de crime,
porque hoje vivemos em sociedades pluri éticas, compostas por mundividências muito
diversas e portanto aquilo que para uma parte da sociedade é um dano social, para a
outra parte é um exercício de um direito, por exemplo a mutilação feminina para
algumas camadas da população é considerado um crime e para outras é uma tradição.
Portanto procurar o conceito de crime só na ideia de dano social é muito
insuficiente.

Daniela Costa Amaral


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Perspetiva Ético-Social

➔ Crime é a violação de deveres ético-sociais fundamentais


Aqui devemos destacar o nome de Hans Welzel, um professor alemão que
identificava a função do direito penal com a proteção daquilo que ele chamava os
elementares valores de ação ético-sociais, portanto o direito penal serviria de reforço à
proteção desses deveres ético-sociais. A ideia é dizer que a ética é tão importante que
não pode ser apropriada parcialmente pela ordem jurídica, é um problema pessoal, da
nossa relação do eu com o outro, mas não é suscetível de formalização num ambiente
jurídico e portanto deve permanecer na esfera da nossa relação intersubjetiva, mas o
direito não pode usurpar-se da ética e impor uma certa visão do mundo, existe o direito
à diferença e da liberdade de consciência, são dois mandamentos fundamentais das
sociedades modernas. A pena é uma necessidade, mas não pode ser um reforço estatal
de uma certa maneira de ver o mundo.
Por outro lado repete-se a critica que fizemos à perspetiva sociológica, é que
hoje também não existe uma única ordem ético social, pelo contrário, existe um
pluralismo ético nas sociedades contemporâneas, várias ordens de valor diferentes e
portanto neste sentido as sociedades contemporâneas são feitas deste espaço de
consenso e de conflito. O Dr. Canotilho fala do patriotismo constitucional, a ética
constitucional é a ética da república, a CRP é a ordenação ética da sociedade e a única
que pode inspirar soluções jurídicas.

Perspetiva racional ou funcional teleológica

➔ Crime é uma conduta cuja a danosidade social se traduz na ofensa de um bem


jurídico digno de pena e carecido de proteção penal
Uma conceção teleológico funcional, ordenada à função do direito penal e uma
visão racional, porque só nesse sentido é que o conceito de crime se pode compatibilizar
com a função do próprio direito penal.
Claro que os adversários desta conceção das coisas, criticam a formulação,
dizendo que só esta é racional e as outras não, não é isto que está em causa, ser racional
aqui significa que é uma perspetiva que consegue expor de forma apreensível pelos
membros de uma comunidade o fundamento do conceito de crime, é uma racionalidade
dialógica, de explicitação dos conceitos.
Então o conceito de crime tem de ser inspirado pela função do direito penal –
tutela subsidiária de bens jurídicos ou de ultima ratio de bens jurídicos.

A nossa atenção passa a focar-se no bem jurídico, essa é a função do direito penal
e o ponto de referencia da criminalização e descriminalização.

Daniela Costa Amaral


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O que é o bem jurídico?

O bem jurídico é sempre a expressão de um interesse da comunidade na


integridade de um certo estado, objeto ou relação em si mesmo socialmente relevantes
e por isso reconhecidos como valiosos. Esta é a primeira aproximação ao bem jurídico,
que foi primeiramente cunhada pela doutrina alemã e era vista como um bem para o
direito, transcendente ao direito penal e lhe é reconhecido. Mas esta categoria sofreu
alguma evolução.

Perspetiva Teleológico-
Perspetiva Liberalista Perspetiva Metodológica
funcional e racional
bem jurídico nessa altura o bem jurídico era uma
era identificado pela espécie de instrumento de o bem jurídico tem que ter
doutrina com direitos interpretação dos tipos de um certo conteúdo
individuais, subjetivos, era crime, seria o resumo do material, tem de ter uma
como uma identidade conteúdo do tipo de crime, certa espessura, alguns
a ideia seria ler o tipo de exemplos que não tem
crime e a partir dessa essa espessura é por
leitura dizer que o bem exemplo a dignidade da
jurídico é isto ou aquilo. pessoa humana, é tanto
Mas o bem jurídico deve que não é suscetível de
servir de pressuposto da apreensão num único tipo
norma e não é correto ele de crime
resultar da interpretação
de uma norma.

O que se pede então a categoria do bem jurídico é que possam servir de padrão
crítico ao direito vigente, mas também ao direito a constituir, tanto o discurso da
descriminalização como da criminalização implicam esta propriedade, mas para isso o
bem jurídico tem de ser transcendente, estar para lá do direito penal, pois só assim é
que se pode criticá-lo, tem de estar dentro da constituição, mas fora do direito penal.
A primeira sede do bem jurídico é a sede constitucional. Só que esta implica ainda
algumas concretizações, nem todos os bens jurídico-constitucionais são bens jurídico-
penais portanto há até quem por causa desse facto se desvie da ideia da constituição
dizendo que o bem jurídico é o próprio funcionamento regular da sociedade, e o crime
é qualquer disfunção sistémica.
Numa outra aproximação o bem jurídico seria um objeto valioso que exprime o
reconhecimento intersubjetivo, do direito por uma relação que a comunidade considera
ser fundamental para a realização do indivíduo e a partir desta ideia a conclusão é que
só existe bens jurídico-penais quando se trata de reconhecer bens jurídicos pessoais, só
estes é que são dignos de proteção penal. Esta visão tem grandes fragilidades porque é
muito redutora, na realidade existem vários bens jurídicos que são instrumentais, que
estão sempre ordenados à pessoa, mas por causa disso, o estado não está impedido de
construir certos bens jurídicos que funcionam como uma espécie de entreposto entre a
ação protetora do estado e a pessoa, por exemplo, quando falamos do bem jurídico

Daniela Costa Amaral


27
ambiente, é supra individual, visa garantir uma certa qualidade do bem ambiente, é
evidente que os beneficiários últimos são as pessoas, mas não significa que só bens
jurídicos pessoais possam ser objeto de proteção penal, o mesmo acontece com a saúde
pública. Esta visão não deve ser acolhida porque é exageradamente redutora –
corresponde à escola de Frankfurt.
O que o Dr. Figueiredo Dias propõe como critério:

• Principio de congruência substancial ou uma analogia material entre os bens


jurídico penais e os valores constitucionais
Isto não significa que se deva proteger todos os bens jurídicos com relevância
constitucional, a constituição é só um ponto de partida, por isso ele fala do principio da
referencia. A Constituição contém os direitos, liberdades e garantias e depois os direitos
sociais e económicos, isto já nos sugere uma distinção entre o direito penal de justiça
(clássico) e o direito penal secundário. A segunda pista é que sendo o ponto de partida
do direito penal a constituição exige uma mutabilidade histórica do bem jurídico, estes
não são entidades fixas imutáveis, são vulneráveis à dinâmica social e portanto é normal
que despontem certos bens jurídicos que não eram no passado.
Isto é confirmado quando percebemos que grande parte das discussões à volta
da criminalização não se liga em saber se existe ou não um bem jurídico com dignidade
criminal, mas sim com a dignidade penal e a necessidade de pena de certas condutas,
por exemplo o consumo de estupefacientes, há alguns anos foi descriminalizado, pode
dizer-se que não existe aí um bem jurídico, porque o bem jurídico saúde publica
continua a existir, mas o que se entende é que a proibição de consumo não era uma
forma eficaz de proteger a saúde pública, por um lado não havia dignidade penal nessa
conduta e por outro não era uma estratégia com eficácia.
Esta referencia constitucional tem várias consequências, por um lado, é a forma
de legitimar materialmente o direito penal, só na constituição podemos encontrar bens
jurídicos fundamentais, por outro lado é também uma imposição da própria
constituição porque vimos no art. 18º CRP que os DLG’s só podem ser limitados para a
proteção de outros interesses constitucionalmente consagrados.
Não são admissíveis criminalizações que consistam em violações da moral, por
exemplo o crime de lenocínio – incentivo ao auxilio de prática de atos da prostituição –
durante muito tempo o nosso código penal incriminou o lenocínio na medida em que o
autor explorasse uma situação de fragilidade económica da pessoa que se prostituísse,
a certa altura o nosso código penal abandonou essa exigência, portanto hoje há
lenocínio sempre que alguém favorece ou auxilia o exercício da prostituição por parte
de outra pessoa e grande parte da doutrina insurgiu-se contra essa nova formulação
dizendo que aí não existe a ofensa a nenhum bem jurídico digno de pena porque não
está em causa a liberdade sexual, que estaria na formulação anterior, portanto a
doutrina disse auxiliar ou favorecer ou fomentar pelo menos no caso da prostituição
pode ser o taxista que transporta a prostituta para o seu local de trabalho sabendo
perfeitamente qual a atividade que a pessoa exerce, isto não afeta nenhum bem jurídico
e alguns tribunais foram começando a considerar essa norma inconstitucional pela

Daniela Costa Amaral


28
ausência da proteção de um bem jurídico dizendo que o que está aqui em causa são
puras violações morais.
Por outro lado, também não podem ser acolhidas como bens jurídicos as
proposições meramente ideológicas de promoção de certos valores e o mesmo se diga
dos valores de mera ordenação da vida social, por exemplo, a obrigatoriedade do uso
de máscara na rua, não existe um bem jurídico suficientemente importante para
justificar que andar na rua sem mascara seja crime, é uma conduta de mera ordenação.
Ainda à volta do problema do bem jurídico, este tem de ser extra penal,
transcender o sistema penal, não pode ser criado pelo legislador penal mas tem de ser
intra constitucional, temos de o angariar na constituição. Não chega que seja um bem
jurídico com dignidade constitucional, nem todos os bens jurídico-constitucionais
passam pelo direito penal, isso passa por certos critérios e portanto vamos estudar esses
critérios: critério da dignidade de pena e necessidade de pena. Isto significa que se o
bem jurídico é transcendente ao sistema penal mas imanente ao sistema constitucional
não pode ser o legislador a criar do nada o bem jurídico, a afirmar a sua existência. O
tribunal constitucional é e considera-se competente para sindicar a violação do principio
do bem jurídico pela legislação ordinária, tem essa competência e exerce-a.

1) Dignidade de Tutela Penal


Para que haja um bem jurídico penal ele tem de ser digno de tutela penal, a tutela
penal implica sempre uma restrição de direitos, seja quando proibimos alguém de fazer
uma certa conduta, seja quando comina uma sanção ou uma pena. Nem todos os bens
acolhidos na CRP tem suficiente dignidade para restringir estes direitos, tem ser bens
com suficiência dignidade para que se estabeleça uma proporcionalidade entre aquilo
que se restringe e o bem que se quer proteger.
Também a própria conduta incriminada tem de ser digna ou merecedora de
tutela penal, por exemplo, o património é um bem com proteção penal, furto, burla,
insolvência, etc., porém o património não é protegido contra todas as condutas que o
atingem, como o simples incumprimento de um contrato, ou a mora, no pagamento de
uma renda de casa, tudo isso são condutas que atingem o património de alguém,
quando alguém se atrasa a pagar a renda o senhorio tem um prejuízo, ora estas
condutas não são condutas suficientemente dignas de tutela penal. Podemos dizer que
existe aqui quase uma lei que estabelece uma relação entre a importância de bens
jurídicos e a quantidade de condutas puníveis que atentam contra esses bens jurídicos,
quanto mais importante é um bem jurídico, maior é a extensão da criminalização das
condutas que o ofendem, por exemplo o bem jurídico vida é protegido virtualmente
contra qualquer forma de ofensa, todas as formas de ofensa contra o bem jurídico vida
são dignas de tutela penal, pelo contrário quanto menos importante é o bem jurídico
maior é a fragmentaridade da sua tutela – património – é como um queijo suíço, é um
bloco cheio de buracos, porque apesar de ser protegido por uma série de condutas, não
é protegido por outras condutas que o ofendem e precisamente por isto podemos dizer
que o direito penal é uma ordem fragmentária em dois sentidos, no sentido em que não
protege todos os bens jurídicos existentes (fragmentaridade de 1º grau), ao contrario

Daniela Costa Amaral


29
do direito civil, falamos ainda numa fragmentaridade de 2º grau, legislador seleciona as
áreas do bem jurídico que quer proteger, podem ser mais extensas (vida) ou menos
extensas, a área é o conjunto das incrementações que dizem respeito ao bem jurídico.

2) Necessidade ou carência de tutela penal


Principio da necessidade da tutela penal – desdobra-se em 2 momentos:
1º- Tutela penal tem de ser eficaz, tem de ser um modo adequado de proteger o
bem jurídico. Exemplos onde esta característica estava ausente e levou a
discriminação das condutas em causa: consumo de estupefacientes, se o bem
jurídico protegido é a saúde publica não é através do direito penal que se vai
impedir que as pessoas prejudiquem a sua saúde, existe aí uma ineficácia, essa
é a razão que levou a descriminalização do consumo de estupefacientes. Outro
exemplo da falta de eficácia da lei, foi a interrupção voluntaria da gravidez, o
bem jurídico é a vida intrauterina, todavia entendeu-se que o direito penal não
era o meio eficaz de impedir a interrupção voluntária da gravidez.
2º- Plano é o plano da subsidiariedade, isto é diferente do anterior, há certos casos
onde a lei penal até pode ser eficaz no sentido de atingir a prevenção que se
propõe, mas pode acontecer que hajam outros meios igualmente eficazes para
conseguir o mesmo fim, e nesse caso falta a necessidade da lei penal – PRINCIPIO
DA SUBSIDIARIEDADE OU DA ULTIMA RATIO DA LEI PENAL. Exemplo que levou a
descriminalização dessa conduta em causa: ate ao fim da década de 90 era
punível o simples facto de emitir um cheque que não tinha provisão, constituía
crime que ocupava 90% dos processos em tribunal, o que estava a acontecer é
que o direito penal tinha se transformado num meio de executar créditos civis,
e por essa razão a certa altura entendeu-se que não era função do direito penal
exercer esta tarefa, o que o legislador fez foi descriminalizar esta conduta.
Esta conjugação é que nos vai definir as possibilidade de criminalização ou
descriminalização, pode acontecer que em certo momento histórico, o legislador
entenda que este bem jurídico não é digno de tutela penal. Por exemplo, quando em
1995 o legislador entendeu que os sentimentos gerais sobre a moralidade sexual não
era um bem jurídico crime de tutela, portanto os crimes sexuais não deviam estar
ordenados a proteção de uma qualquer moralidade social, que estava em causa sim era
a liberdade sexual das pessoas.

Existem imposições constitucionais implícitas de criminalização?

A resposta aqui é negativa, a constituição não impõe a criminalização de


comportamentos de forma implícita. Às vezes há imposições explicitas de
criminalização, como a do artigo 117º, refere-se a responsabilidade criminal de cargos
políticos, é uma ordem para o legislador ordinário, que tem o dever de criar uma lei
onde se prevejam os crimes de responsabilidade para os cargos políticos – imposição
constitucional expressa. Pelo contrário já não se deve entender que a constituição

Daniela Costa Amaral


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impõe a criminalização implicitamente desta ou daquela conduta porque isso é uma
matéria reservada ao legislador ordinário.
Dr. Figueiredo Dias diz que só em casos flagrantes é que poderíamos entender
que a constituição poderia ser violada por não se criminalizar certa conduta, por
exemplo o homicídio, só em casos verdadeiramente excecionais poderíamos entender
que estaria em causa um mandamento constitucional de criminalização, fora esses casos
excecionais cabe na margem de apreciação do legislador ordinário este processo de
seleção dos bens jurídicos e das condutas que devem ser criminalizadas. Esta visão
também é consistente da ideia de direito como produto cultural.

Qual o contributo destas ideias para o discurso da criminalização e da


descriminalização?

Só quando esteja em causa a lesão ou perigo de lesão para bens jurídicos é que
o legislador estará legitimado para agir, é chamada uma não intervenção moderada, ou
seja, rigorosa vigilância por parte do legislador, vale para o direito vigente, o legislador
tem o dever de verificar se o direito vigente não está a intervir excessivamente na
liberdade das pessoas, mas também tem importância para a criação de novos crimes,
também aí tem o dever de verificar se existe uma lesão ou crime de lesão.

Quando a um ponto estabilizado da nossa matéria – definição jurídica de crime


– vimos o que é necessário do ponto de vista jurídico, quais as condições da legitimidade
de uma incriminação, mas na realidade há o outro lado das coisas e o crime é o produto
não só de uma definição jurídica mas também de uma definição social que já não é
normativa, mas sim empírica. Porque se conseguimos compreender juridicamente a
definição do crime, a verdade é que nem todos os factos que correspondem a estas
características são etiquetados como crimes, porque o processo de produção do crime
também passa por mecanismos sociais, isto é, nem todos os crimes cometidos em
Portugal são efetivamente investigados, acusados, condenados resultando no
cumprimento de pena, porque temos pelo meio uma série de mecanismos ou processos
de seleção da criminalidade, esta forma de compreender a definição social do crime,
vem de uma corrente criminológica chamada interacionismo, que nos diz que a crime
não é só o que a lei diz, mas também é determinado pelas instancias funcionais de
controle (policia, tribunais) e esses mecanismos selecionam apenas alguns crimes para
ser formalmente etiquetados como tal e aqui pesam várias considerações ou
representações sociais que explicam porque certos grupos sociais tem muito mais
representação do que outros. Dr. Figueiredo Dias dava o exemplo de se a policia fizer 3
rusgas na mesma semana a um bairro altamente desfavorecido, é muito mais provável
que nessas rusgas encontre estupefacientes e armas proibidas e possa afirmar que é um
bairro problemático, mas isso não exclui que pudesse encontrar os mesmos objetos em
outros bairros que essas rusgas não foram encontradas.
Estes processos de seleção vão escolhendo quais são os agentes a que se
etiquetará as pessoas como criminosas ou não. Portanto quando falamos numa

Daniela Costa Amaral


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definição jurídica de crime, não podemos esquecer esta outra dimensão, vertente da
produção do crime como realidade social.

Até agora estivemos a falar da importância da ideia de bem jurídico, mas a


verdade é que esta ideia de bem jurídico hoje passa por alguma crise e
porquê?

Hoje em dia na generalidade dos países com a nossa tradição cultural, a noção
de bem jurídico vem do iluminismo, vem do contrato social, ela desligou-se a certa altura
dos direitos subjetivos, mas a matriz da ideia de bem jurídico ainda é construída sobre
a pessoa, portanto esta é a matriz – bem jurídico sobre a pessoa. Com o processo
histórico foram surgindo outros bens jurídicos já não tão direcionados com a pessoa mas
carecem de proteção, por exemplo, segurança no tráfico rodoviário. O problema que se
põe em bem jurídico hoje é que nas últimas décadas vivemos na sociedade de risco, foi
o sociológico Beck, teorizou esta sociedade do risco dizendo que hoje tomamos por
força da evolução tecnológica e social, tomamos decisões que representam riscos
difíceis de dominar a nível global, por força da evolução tecnológica, hoje os riscos
transcendem os quadros do espaço e do tempo que eram conaturais a qualquer decisão
que envolva perigos. Basta pensar no problema nuclear onde a decisão de instalação de
uma fábrica nuclear pode afetar não só o país e a manipulação genética que pode ter
efeitos daqui a muitas gerações. Estes riscos de eventuais resultados de índole mundial
ou num futuro muito longínquo, põem de facto o problema de saber se isto será
compatível com a doutrina do bem jurídico, nem sabemos o que está verdadeiramente
em causa as implicações ou resultados dessas técnicas, como vamos dizer que está em
causa a proteção de um bem jurídico? Desde logo temos um problema da legitimação
do direito penal e também problemas à construção do conceito de crime.
A sociedade de risco com as suas implicações, põe problemas novos ao direito
penal, ao discurso do bem jurídico. Vem dizer que o bem jurídico não é suficiente porque
o direito penal tem de olhar para outras coisas.

Quais são as respostas que até agora se deram a este problema?

Em primeiro lugar a resposta mais conservadora, que tem uma visão minimalista
do direito penal centrada nos bens jurídicos da pessoa, vida, propriedade, etc. E diz a
Escola de Frankfurt que de facto os novos riscos existem mas tem de ser tratados fora
do âmbito do direito penal, tem de se pedir a outros ramos do direito que trate essas
realidades porque se não encontramos aí bens jurídicos com suficiente materialidade
sob os quais construir a tutela penal é uma intervenção ilegítima na liberdade das
pessoas, portanto os bens jurídicos reduzem-se àqueles que são os bens jurídicos
individuais, os da pessoa.
No outro extremo, temos as Escolas que dizem não, estes novos riscos, é
precisamente um sintoma, a indicação que temos de repensar todo o direito penal, não
pode ficar agarrado á velha tradição do bem jurídico, o que o direito penal tem de fazer

Daniela Costa Amaral


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é proteger e adaptar-se às novas realidades, isto passa por várias intervenções e
modificações no próprio direito penal:
1º- quem deve estar legitimado para legislar em matéria penal não deve ser o
parlamento, mas sim o Governo, porque é ele que está capacitado e legitimado
para descobrir no momento quais são os riscos e medidas necessárias para evitar
os mesmos;
2º- as incriminações, a expressão dos tipos legais de crime, deve antecipar bastante
a tutela penal, não é pensável estruturar-mos os crimes sobre a lesão, a proteção
penal tem de ser muito antecipada, temos de antecipar crimes. No fundo temos
de proteger certas funções do estado em vez dos bens jurídicos, função de vigiar
estas fontes de risco.
Por outro lado, isto pode levar ao abandono de certos princípios básicos e em
alguns casos isto dá até origem a uma nova corrente politico criminal, na década de 80
começou a falar-se de uma justiça atuarial (utilização de certos algoritmos na atividade
de seguro), começou a dizer se que o direito penal deve ser um sistema de gestão de
riscos, a ideia é deixar de olhar a pessoa em concreto para passar a olhar para os riscos.
A justiça atuarial o que busca é a máxima eficiência do sistema penal, a maximização
dos ganhos com a minimização dos custos. Tudo isto são resposta a estas novas
realidades assentes numa ideia de eficácia e em alguns casos uma ideia de eficiência do
direito penal.
Entre uma visão totalmente antropocêntrica do bem jurídico e uma visão que
prescinde do bem jurídico para a substituir por a tutela das funções do estado temos
várias correntes que funcionam como intermédios na resposta a este problema.
A primeira dela é nos trazida por um professor suíço que nos fala de um direito
penal de tutela das relações da vida, o homem com a evolução tecnológica hoje aspira
ao domínio do mundo e tem uma capacidade de intervenção muito grande, pode
simplesmente destruir o mundo e essa capacidade, levou a um predomínio da razão
técnica, tudo é medido em função dos objetivos a que a ação se destina e que são
legitimados por essa racionalidade técnico-instrumental e sendo assim muitas dessas
intervenções não sabemos quais são os seus efeitos possíveis, homem tem os
instrumentos a sua disposição, que consegue mudar a realidade, mas não domina
completamente todas as suas implicações, é preciso estabelecer normas de
comportamento, sem que as proibições ou imposições estejam necessariamente ligadas
a proteção do bem jurídico. Temos de aplicar um principio de precaução
independentemente de saber se há um bem jurídico que possa ser referencia desta
proibição, portanto normas que visam proibir ou impor comportamentos.
Uma outra tentativa de resposta ao problema é nos trazida por um professor de
Barcelona, Sanches, que propõe uma reconstrução do direito penal que ele chama um
direito penal de duas velocidades:
➔ Primeira seria o chamado direito penal clássico (onde entra o homicídio, a
violação, os tais bens jurídicos com uma referencia pessoal) e para essa primeira
velocidade devem se manter os princípios e garantias tradicionais do iluminismo;

Daniela Costa Amaral


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➔ Segunda velocidade onde trata-se de proteger interesses de natureza
basicamente administrativa e aí devemos poder flexibilizar alguns desses
princípios que valem para o direito penal primeira velocidade. Seria um direito
penal mais flexível, ele põe todavia uma reserva, estes crimes que se contem
nesta segunda velocidade não poderiam nunca dar lugar a uma pena de prisão,
só poderiam dar lugar a privações de direitos e a penas pecuniárias, isto seria
portanto o direito penal a duas velocidades, uma tradicional e depois uma
segunda onde os princípios poderiam flexibilizar em função de proteger certos
bens ou proibir certos comportamentos.
Outra tentativa de resposta é nos dada pelo D. Augusto Silva Dias que propôs
que o direito penal deve limitar-se a bens jurídicos com um referendo pessoal e quais
são eles? São os chamados bens jurídicos individuais, aqueles que são sempre
transportadas por uma pessoa, mas além desses, também existem certos bens jurídicos
supra individuais mas que podem ser fruídos por cada um de nós, individualmente – por
exemplo o ambiente. Nesses casos esses bens jurídicos também são um objeto legitimo
de tutela penal já não o são aqueles bens jurídicos que não tem qualquer referendo
pessoal, nomeadamente puras funções do estado – por exemplo, a segurança do estado
ou se olharmos para a lei da prevenção do branqueamento de capitais, existem dois ou
três crimes que protegem o próprio sistema de branqueamento, isto é um crime que
visa proteger a capacidade de funcionamento de um sistema, uma função do estado que
é prevenir o branqueamento de capitais, não existe um bem jurídico próprio fora dessa
capacidade de funcionamento. O que aqui se protege é apenas uma função do estado.
Portanto para o Dr. Silva Dias neste caso a conclusão seria, todos os bens
jurídicos que tenham um referendo pessoal são objeto da tutela legitima do direito
penal, todo o resto que não caiba no referendo pessoal, deve ser retirado.
Uma última corrente intermédia, foi também proposta entre nós pelo Dr.
Almeida Costa que procurou mostrar que para além dos bens jurídicos individuais, que
são bens jurídicos fins, valores em si mesmo, liberdade, integridade física, etc., existia
ainda os bens jurídicos meio ou instrumentais que no fundo são bens jurídicos que
funcionam como condições de proteção daqueles bens jurídicos fins, são uma espécie
de proteção antecipada. A novidade desta construção é que permite legitimar estes
bens jurídicos instrumentais dizendo que estes tomam por empréstimo o valor desses
bens jurídicos, isto é, fundem-se com estes últimos, pedem emprestado a eles o valor
que eles tem, e por isto é possível considerar estes bens jurídicos instrumentais como
bens jurídicos autónomos, como qualquer bem jurídico deve ser e além disso um bem
jurídico valioso, digno de tutela penal – exemplos: bens jurídicos supra individuais, como
a administração da justiça, são bens jurídicos instrumentais, não derivam
imediatamente da pessoa, mas são ainda condições de preservação desses bens
jurídicos fins, portanto a grande novidade desta construção é legitimar estes bens
jurídicos instrumentais, existem para lá da pessoa mas são objetos legítimos de tutela,
na medida em que acabam por permitir uma melhor proteção dos bens jurídicos finais.
Vamos supor um crime contra a administração da justiça sendo o suborno de uma
testemunha, compreendemos que quando se suborna uma testemunha existe uma

Daniela Costa Amaral


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lesão imediata do bem jurídico administração da justiça porque está a ser falseada, é
claro que em termos finais isso vai se repercutir em alguém. Com esta construção o que
se consegue é legitimar os bens jurídicos que estão antes, dos bens jurídicos pessoais
que são os bens jurídicos em si, os finais.
Seguindo a opinião do Dr. Figueiredo Dias, dir-se-ia que há aqui duas proposições
fundamentais:

• O direito penal não pode ser instrumento do governo da sociedade, não é feito
para governar a sociedade, não deve ser usado para promover certos
interesses de oportunidade, a grande parte das teorias funcionalistas podem
desembocar nesta utilização do direito penal como um instrumento do
governo diário da sociedade, esta ideia de que o direito penal pode servir de
promoção deste tipo de interesses é uma ideia que deve ser rejeitada, a noção
de bem jurídico serve para evitar este tipo de adulteração politica do direito
penal, o direito penal não pode ser usado como instrumento do governo. A
doutrina do bem jurídico deve manter-se absolutamente firme e
absolutamente inderrogável, a doutrina do bem jurídico é o instrumento mais
eficaz para resistir e impedir o desvirtuamento politico do direito penal.
• Há de facto novos riscos às quais por força da potencial gravidade desses riscos
o direito penal não pode virar a cara e contra esta ideia não são corretas as
abordagens dos autores que pretendem atirar estes novos riscos para outras
formas de controlo social, porque muitas vezes o direito penal é a única chance
dessas condutas serem impedidas, se mandarmos estas condutas para fora do
direito penal é por a subsidiariedade de pernas para o par, o direito penal não
pode fingir que não tem nada a dizer sobre essas condutas e sobre a prevenção
dessas condutas.
De maneira que a solução aqui, entendida pelo Dr. Figueiredo Dias, é que há uma
nova estirpe de bens jurídicos a que podemos chamar bens jurídicos coletivos, para os
diferenciar tanto dos bens jurídicos pessoais, como também dos bens jurídicos
puramente supra individuais. Estes bens jurídicos coletivos são da coletividade, são de
todos nós, mesmo que não sejam experienciáveis na nossa vida individual – exemplo:
preservação da fauna e da biodiversidade, por exemplo o petroleiro que no mar faz uma
descarga altamente poluente e extermina uma espécie de aves que só existiam naquela
zona e a espécie extingue-se, não está aqui em causa o ambiente, nenhum de nós vai
sentir o efeito daquela descarga, mas perdeu-se ali uma parte do nosso património
coletivo. A ideia do bem jurídico coletivo é no fundo por um lado permitir responder a
estes novos riscos, mas mantendo tanto quanto possível a noção do bem jurídico,
procurar a quadratura do círculo. Esses bens jurídicos coletivos tem vários problemas,
por um lado são bens jurídicos mais vagos, tem uma delimitação mais difícil, é mais difícil
captar a materialidade necessária para o bem jurídico.
Há também no bem jurídico coletivo uma certa acessoriedade em relação ao
direito administrativo, muitas vezes estes bens jurídicos coletivos são construídos pelo
direito administrativo, isto é, existe uma politica do estado que é jurisdificada através

Daniela Costa Amaral


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de certas regras administrativas e o bem jurídico aparece depois dessa intervenção
administrativa, quer dizer é o direito administrativo que gera esse bem jurídico.
Outro problema ainda é o dos delitos ou crimes cumulativos ou crimes aditivos,
alguns destes bens jurídicos só são ofendidos quando aquela conduta é repetida ou
praticada por muita gente, quer dizer uma única conduta por si mesma não tem
capacidade para afetar o bem jurídico, mas se essa conduta for generalizada, praticada
em massa por várias pessoas então isso pode ter um efeito promicioso sobre o bem
jurídico – por exemplo, a utilização de sprays e a sua relação com a destruição da camada
de ozono, é evidente que se uma passa comprar um spray e o utilizar, esse spray por si
só não tem qualquer efeito sobre a camada de ozono, mas se uma população fizer isso
já pode ter um efeito, portanto quando se proíbe é com base nos efeitos que essa
conduta pode ter na conjugação com outras.
Esta ideia dos bens jurídicos coletivos é uma referencia preferível à ideia de um
direito penal do comportamento, por muitos defeitos que encontremos nos bens
coletivos não são bens tao exatos, são preferíveis a um direito penal pura e
simplesmente do comportamento. O bem jurídico coletivo ajuda a delimitar as condutas
permitidas das não permitidas.

7.º Capítulo - Os limites do Direito Penal

Uma das características do antigo regime era o chamado estado policia, no


sentido em que o estado através da administração controlava a vida social nos seus mais
ínfimos pormenores. A administração era um braço do monarca e não estava sujeita à
lei nem ao direito, mas as coisas mudaram com as revoluções liberais: por um lado, a
ação do estado passou a estar sujeita ao direito, juridificação da administração, que
passa a ter uma atividade limitada; por outro a não intervenção ou intervenção mínima,
a administração deixa de ordenar para se concentrar ao estado de guarda noturna, isto
é, de acordo com o ideário liberal cada um deve poder fazer o que bem entende, a lei
surge como uma medida necessária para limitar as liberdades de cada um quando seja
necessária proteger certos interesses comuns, a visão das relações entre o estado e o
indivíduo altera-se completamente com as revoluções liberais. Muda completamente
esta relação entre o estado e o cidadão e a administração passa a concentrar a sua
atividade na proteção contra crimes individuais, foca a sua atenção na chamada
atividade de policia mas entendida como prevenção de perigos para os direitos
individuais, existe uma dimensão negativa da administração, é garantir as condições
para que cada um possa exercer os seus direitos da forma mais livre possível.
Precisamente porque a administração tem que ter este poder de prevenção de
perigos, surgiu também a ideia das contravenções que apareceu pela primeira vez no
código penal de Napoleão em três categorias: crimes, delitos e contravenções – divisão
tripartida das infrações criminais.
No caso português, nunca adotamos integralmente esta classificação do código
francês. O nosso primeiro código penal data de 1852 e distingue apenas entre crimes e
contravenções – distinção bipartida.

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A relação disto com o direito administrativo é que os crimes e os delitos eram
infrações penais por direito próprio, os crimes eram os mais graves, depois os delitos
menos graves e as contravenções eram as violações dos regulamentos de policia, contra
a atividade da administração. Este conjunto das contravenções davam corpo à ideia de
direito penal administrativo.
A partir da II Guerra Mundial, dá-se uma nova alteração importante, grande
parte da Europa estava destruída, foi preciso um grande esforço público de reconstrução
dos vários países, portanto o Estado em todos os países afetados, e sobretudo na
Alemanha teve um papel importantíssimo de promoção da economia e de certas regras
de organização social. Por isso começou a falar se de um estado social, um estado que
quer intervir na sociedade e na economia, que quer proibir as pessoas de encarbarcarem
alimentos, é uma intervenção social, um estado que só assim consegue atingir os seus
objetivos. Claro que a maneira mais simples de o fazer é sempre a utilização do direito
penal e portanto rapidamente esta ambição do estado de intervir na economia e na
sociedade foi acompanhada de normas de natureza penal no sentido de reforçar estas
prescrições. Isto levou a um fenómeno de híper criminalização, cresceu enormemente.
Este fenómeno teve várias consequências prejudiciais também, desde logo do
ponto de vista prático ou empírico as instancias de controle mostram não ser capazes
de processar aquela quantidade de infrações penais, os tribunais ficaram
sobrecarregados com o serviço de processo penal e isto levou a uma certa vulgarização
do direito penal, no sentido em quem tem todos a mesma natureza, o homicídio,
violação e estacionar um automóvel num sitio proibido, então na verdade quando tudo
é proibido, nada é proibido, há uma vulgarização do direito penal, isso era também um
fenómeno do resultado indesejado.
A partir dos anos 70, começa a desenhar-se um movimento de sinal contrário,
começa a surgir a ideia de que o direito penal deve restringir-se aos bens jurídicos
fundamentais, e esta ideia de descriminalização e não intervenção moderada ia em
contracorrente com a híper criminalização provocada ao nível do direito penal
administrativo.
Por todos estes fatores houve uma transformação do direito penal
administrativo e que perdura até aos dias de hoje. Dentro desse corpo das
contravenções, fez-se uma cisão entre duas realidades diferentes. Certas infrações eram
infrações contra bens jurídicos importantes, dignas de pena e carecidas de pena,
portanto essas infrações deveriam manter-se como crimes propriamente ditos no
código penal, ou em legislação extravagante, pense-se por exemplo, na venda de
alimentos estragados, abate clandestino, na fraude aos subsídios, em todos esses casos
tratam-se de condutas contra uma certa atividade conformadora do estado, mas que
tem subjacente um bem jurídico digno de tutela penal, portanto infrações dignas e
carecidas de pena. Por outro lado, havia uma série de contravenções que não tinham
esse relevo, nem ao nível do bem jurídico, nem ao nível das condutas propriamente
ditas. Normalmente eram condutas com reduzido ou nenhum conteúdo axiológico onde
a ilicitude de facto é dada porque é proibido. O que dá relevo é a proibição. Estas
condutas deste género passaram para outro ramo do direito – direito de mera
ordenação social. O objetivo era a substituição total das contravenções.

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1º Limite -> Direito de mera ordenação social

NÃO É DIREITO PENAL. É a todos os títulos, direito administrativo, porque tutela


interesses da administração, é um direito aplicado pelos órgãos da administração, não
são os tribunais, a infração das contraordenações não dá lugar a penas, mas sim a
coimas. Além destas existem certas suspensões e interdições de direitos profissionais e
ainda um direito sancionatório externo da administração para não confundir-mos com
o interno da administração que é o direito disciplinar, aquele que regula a conduta dos
funcionários dentro da administração.
O objetivo do direito de mera ordenação social era a substituição das
contravenções, em Portugal ele foi projetado pela primeira vez em 1963, mas na
realidade só veio a ser consagrado em lei em 1979. Entre 1979-2006 ele substitui
algumas contravenções, mas ainda subsistiram outras, durante este período os dois
sistema coexistiram, mas em 2006 acabaram-se com as contravenções, sendo hoje o
panorama muito mais simplificado porque só temos crimes e contraordenações.
Daqui decorre que temos então hoje dois grandes blocos do direito
sancionatório:

• Direito penal:
- Direito penal clássico ou direito penal de justiça (está previsto no CP)
- Direito penal secundário (também chamado de direito penal económico)
que é o ramo do direito que trata dos crimes contra os bens jurídicos
próximos dos bens sociais.
• Direito de contraordenação social.

Evolução do direito de mera ordenação social

Quando ele nasceu, em 79, foi pensado para ser o ramo de direito de muito
simples aplicação, quando estão em causa violações de normas axiologicamente
neutras, sem conteúdo ético, normas que não tem relevância ao nível do bem jurídico e
as coimas foram pensadas como advertências sociais. Este era o protótipo pensado para
o direito de mera ordenação social. Ao longo das décadas passou a disciplinar áreas da
economia muito importantes, onde intervém agentes com muito poder económico e
com práticas que se contem dificilmente dentro da prática de mera ordenação social,
por exemplo a bolsa, regime da concorrência, e portanto o direito de mera ordenação
social passou a englobar também as grandes contraordenações, já não é a advertência
social, e em consequência dessa importância aumentaram muito também a gravidade
das sanções.

Qual foi a consequência disso também?

Foi que perante a gravidade destas sanções e o impacto que elas tem nos direitos
individuais, é claro que o direito de mera ordenação social teve que ser reequilibrado,
dando mais garantias às pessoas, e isto resultou numa aproximação indesejável do

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direito de mera ordenação social ao próprio direito penal, criámos uma coisa diferente
para termos mais flexibilidade e podermos agir mais depressa. Com a evolução recente
do direito de mera ordenação social o caminho fez-se ao contrário, colocar
determinadas coisas no direito de mera ordenação social que tinha carater de direito
penal. O que nos leva a perguntar se na realidade, pelo menos algumas destas
contraordenações não devem constituir crimes, isto é, estamos a utilizar o direito de
mera ordenação social para uma coisa para a qual ele não está capacitado.
Uma outra característica da evolução é a abundância nas últimas décadas dos
chamados regimes setoriais do direito de mera ordenação social, a ideia era que
tivéssemos na lei de 1982 o quadro geral das contraordenações e depois o governo
pudesse ir aprovando mais contraordenações, consoante a necessidade dos tempos.
Aquilo a que assistimos nas ultimas décadas é a criação de regimes completos para cada
setor da vida social, começam com uma parte geral, sanções, partes especial, como se
não existisse já uma parte geral na lei prevista. Isto leva a uma fragmentação do direito
de mera ordenação social e dificulta uma teoria geral do direito contraordenacional.

Como podemos distinguir o direito penal do direito de mera


ordenação social?
Do ponto de vista das infrações/factos:

Ambos são direitos sancionatórios, o direito de mera ordenação social prevê


várias sanções acessórias que se traduzem em inibições ou restrições de direitos
profissionais, tal como o direito penal, portanto existem semelhanças entre os dois, e
para os distinguir temos de separar dois planos diferentes:
1º- Plano do aplicador: somos nós os juristas, aqui devemos seguir um critério
estritamente formal. A contraordenação é o facto punível com coima, portanto
o primeiro critério é olhar para a sanção, se for uma coima é uma
contraordenação, se for uma pena é um crime. É quando o direito já está
produzido e agora importa ao aplicador como distinguir os dois ramos.
2º- Plano do legislador: há alguns critérios que apontam necessariamente para uma
das duas soluções, são definitivos.
→ O primeiro é a ausência de um bem jurídico: quando certa conduta não
ofenda um bem jurídico claramente determinado e o legislador queira
proibir essa conduta, não pode criminaliza-lo, se não houver um bem
jurídico claramente identificado, decorre do principio de proteção de
bens jurídicos, o legislador não pode criminalizar uma conduta que não
ofenda um bem jurídico claramente determinado e por isso mesmo só
lhe restará a opção do direito de mera ordenação social.
→ O segundo critério é a irrelevância axiológica ou irrelevância ética da
conduta, há condutas que de facto não tem relevância ética, não nos
suscitam nenhum juízo negativo só por si e nesses casos tendencialmente
condutas sem relevância ética devem pertencer ao direito de mera
ordenação social, condutas que não ofendem valores – por exemplo: não
fazer a inspeção do automóvel quando ela é devida, a reprovação desta

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conduta vem de um dever imposto por lei. A este propósito quando
falamos da irrelevância ética da conduta, não devemos confundir com a
irrelevância do ilícito, o ilícito é sempre eticamente relevante, se uma
conduta é proibida é claro que é relevante violar essa proibição,
censuramos as pessoas que não metem os piscas, temos uma reação
porque aquilo era obrigatório. Não confundir a irrelevância ética da
conduta em si mesmo considerada com a relevância ética do ilícito, o
ilícito é sempre relevante.
Estes são dois critérios que nos podem já apontar algumas saídas para o
legislador: ausência do bem jurídico e a irrelevância ética da conduta. Mas pode
acontecer em alguns casos que estes critérios não sejam suficientes porque
existe um bem jurídico, isto é, aquela conduta atenda contra um bem jurídico
claramente identificado, e além disso é uma conduta que também tem
relevância axiológica e aí é que o problema se põe com maior acuidade, o que o
legislador deve fazer quando não existe distinção neste plano, por exemplo
condução sob efeito de álcool ate 1.2 é uma contraordenação, mas a partir de
1,2 é crime, é o exemplo perfeito de como existe um bem jurídico, é o mesmo
bem jurídico são condutas com relevância ética, todavia ate certo ponto é uma
contraordenação e depois passa a ser um crime, mas o que leva o legislador a
distinguir estas duas formas? São essencialmente razões de dignidade penal e
necessidade de pena, são critérios que guiam todo o discurso da criminalização,
portanto o que leva o legislador a separar as coisas é considerar que até certo
ponto, esta conduta não tem merecimento penal, não se justifica privar alguém
da liberdade por infração de conduzir com menos de 1,2 L álcool no sangue,
abaixo de 1,2 a violação não tem suficientemente gravidade penal. Esta escolha
entre crime ou contraordenação é uma escolha com muita importância, também
do ponto de vista do próprio regime a que estão sujeitas as contraordenações e
os crimes, logo no plano do procedimento legislativo há uma diferença
fundamental entre o direito de mera ordenação social e o direito penal, para que
se possa criminalizar uma conduta, é necessário uma lei formal da assembleia da
república, seja através de uma lei própria, seja através de uma lei do governo. Já
no que toca as contraordenações não são assim, a AR só tem uma competência
reservada para o regime geral. Já para a consagração de contraordenações
concretas, o governo tem uma competência própria, pode produzir ele próprio
para dizer que uma certa conduta é uma contraordenação. Se for para dizer que
é crime, o governo tem de ter uma autorização da AR, se for contraordenação
pode legislar ele próprio.
Até que ponto é que o TC pode controlar as escolhas feitas nesta matéria? Pode
controlar se o legislador ordinário ao consagrar uma conduta como crime e não como
contraordenação seguiu os critérios constitucionalmente impostos?

Em princípio existe aqui uma discricionaridade do legislador ordinário, uma


grande margem de apreciação sobre o que deve constituir crime e o que deve constituir

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contraordenação. Só em casos limite é que o tribunal constitucional teria competência
para controlar o emprego destes critérios e para considerar que certa norma não
deveria ser crime de acordo com a constituição, mas sim uma contraordenação e vice
versa.
Toda via, o Dr. Caeiro tem sérias dúvidas que o TC possa controlar e declarar
inconstitucionalidade de normas em que o legislador ordinário usou o direito de mera
ordenação social e devia ter usado o direito penal, considera que essa atuação do TC é
altamente improvável ou impossível, porque permitir isto equivaleria a admitir
obrigações implícitas de criminalização na constituição, aquilo que já estudamos que
não existe. A constituição não impõe obrigações implícitas de criminalização, portanto
nestes casos não parece que o TC possa sindicar as opções do legislador ordinário. Já o
caso contrário é precisamente plausível, o TC pode dizer que o legislador criminalizou
uma conduta quando devia ter colocado em causa outro meio, claro que pode estar em
causa o principio da necessidade da lei penal, mas isso não é especifico da contraposição
entre direito de mera ordenação social e direito penal, é a aplicação dos critérios gerais
que guiam o discurso da criminalização, é perfeitamente possível que o TC diga que esta
norma que prevê este crime é inválido constitucionalmente, porque viola o principio da
necessidade penal, o legislador ordinário poderia ter empregado o direito de mera
ordenação social que seria suficiente e neste caso está-se a violar o principio da
necessidade da lei penal.
Estes poderes de controlo do TC não decorrem verdadeiramente de um critério
constitucional de distinção entre o direito penal e o direito de mera ordenação social,
isso são soluções do TC que decorrem dos princípios gerais que guiam o direito penal
(principio da proteção do bem jurídico, da dignidade penal, etc.). Não existe nada de
muito particular na distinção entre os dois ramos do direito do ponto de vista de
escolher um ou outro para o legislador ordinário.

Do ponto de vista do plano da sanção:

A sanção principal do direito de mera ordenação social é a coima, e esta consiste


num pagamento em dinheiro. Há uma grande diferença desde logo entre a coima e a
multa, ambas se traduzem no pagamento de um montante, mas a grande diferença é
que a coima vem sempre expressa num quantitativo, as multas diferentemente vem
expressas em dias de multa, depois cada dia de multa tem um certo quantitativo. A ideia
aqui na multa é garantir a igualdade de aplicação, no caso da pena de multa o que se faz
é igualar os dias de multa em relação ao facto praticado, aquele facto é punível com 120
dias de multa independentemente da condição financeira de quem o pratica, e depois
de acordo com os critérios da lei calcula-se cada dia de multa de acordo com a condição
económica da pessoa.

Funções da coima

• Prevenção tanto geral como especial e de função negativa, de intimidação;

Daniela Costa Amaral


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• Não existe aqui qualquer ideia de retribuição, é alheia ao direito de mera
ordenação social;
O tribunal construiu a sua própria noção do que é uma pena e do que é a matéria
penal e um dos critérios que leva a considerar certa sanção como penal é a gravidade
da sanção, o que significa que quando se trata de sanções muito elevadas isso pode
implicar a aplicação da condição europeia dos direitos humanos na parte do direito
penal mesmo que o estado não classifique essa sanção como criminal.
Há de facto algum risco para distinção entre as coimas e as multas em geral,
porque há dois movimentos que levam a aproximar dois ramos de direito. O 1º é um
movimento que se pronuncia a favor de uma redução drástica do direito penal – escola
de Frankfurt – direito penal deveria se limitar a defesa dos direitos individuais e pouco
mais. Isso deixa uma enorme área da vida social desprotegida e portanto teríamos uma
espécie de um direito preventivo, de intervenção que seria direito administrativo mas
com sanções muito pesadas. O 2º movimento que leva a esta aproximação e uma cada
vez maior indistinção entre o direito penal e o direito de mera ordenação social, é a
forma como o direito de mera ordenação social vai copiando os institutos do direito
penal, vai absorvendo-os porque aplicam as sanções muito graves, o legislador acaba
por se ver obrigado a introduzir no direito de mera ordenação social uma série de regras
próprias das sanções muito graves que é o direito penal. Também aquilo existe uma
erosão da distinção entre o direito penal e o direito de mera ordenação social.
Há apenas um caso onde a sanção principal da contraordenação não é uma
coima, mas sim o internamento voluntário numa comunidade terapêutica, que é o caso
de consumo de estupefacientes.

2º limite -> Direito Disciplinar

O direito disciplinar nasce como direito administrativo, como imposições de


dever aos funcionários da administração e esta relação de dever traduz-se em que o
funcionário deve preservar a integridade e confiança do serviço. Nós falamos do direito
de mera ordenação social como um direito sancionatório externo da administração, o
direito disciplinar é um direito interno da administração, pretende proteger certos
interesses administrativos contra violações praticadas pelos próprios funcionários, o
que se visa aqui proteger é a confiança publica no serviço.
Durante muito tempo o direito disciplinar foi visto como um direito do agente e
isto teve várias consequências, por exemplo, podia ser infração disciplinar o facto
praticado pelo funcionário, fora do seu horário de serviço, das suas funções, mas que
causasse uma lesão da imagem do estado, o funcionário carregava o seu estatuto onde
quer que estivesse e todos os atos que praticasse poderiam colidir com os deveres que
estava obrigado. Hoje já não é assim, o direito disciplinar é um direito do facto e não do
agente, existe um esforço de tipificação dos factos proibidos ou dos deveres a que está
sujeito o funcionário.

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Quais são as funções das sanções disciplinares?

Não são funções de prevenção criminal, não se aplicam a factos que constituam
crime, mas sim a factos que constituam violação disciplinar. Portanto podemos dizer
que estas penas tem funções de prevenção de novos factos disciplinares, seja prevenção
especial ao próprio funcionário mas também uma prevenção geral, englobando os
funcionários adstritos a esses particulares deveres. Embora a prevenção aqui não seja
entendida no sentido criminal.
Como as sanções disciplinares são muito mais leves do que as penas criminais,
também se reflete na construção do próprio direito disciplinar, não há as mesmas
exigências ao nível da tipicidade dos factos. Uma das características principais da lei
penal é a tipicidade, a lei penal tem de exprimir as proibições em tipos de crime, isto
não existe da mesma maneira no direito disciplinar, nem relativamente a culpa do
agente, a culpa é fundamental na compreensão do direito penal, sem ela não há pena.
No direito disciplinar exige-se uma censura ao agente mas não é uma culpa
entendida com o peso que tem no direito penal. As exigências relativas ao direito
disciplinar são mais brandas do que o direito penal. TODAVIA há certas regras
constitucionais que se aplicam a todo o direito sancionatório, porque são impostas
desde logo pelo principio da segurança jurídica, aplica-se a toda a atividade repressiva
do estado independentemente de se tratar direito penal, disciplinar, mera ordenação
social.
Mas como o direito disciplinar não é direito penal, como as penas disciplinares
não são criminais, é perfeitamente possível que se cumulem penas criminais e penas
disciplinares, são processos que correm sempre separadamente, por exemplo, o
funcionário que comete um crime de corrupção, o processo penal corre os seus termos
do processo penal e a infração disciplinar no processo disciplinar dentro do órgão a que
o funcionário pertence e estas sanções podem ser cumuladas, não se viola o principio
non bis in idem. Em principio as penas disciplinares não representam a mesma punição
relativamente às penas criminais, portanto podem ser cumuladas. EM PRINCIPIO,
porque pode haver aqui algumas complicações, nomeadamente no que diz respeito à
prisão disciplinar. De facto, pode ser complicado acumular penas de prisão disciplinar
com penas de prisão por virtude de crimes.

3º limite -> Sanções de conformação processual

São sanções que o tribunal pode aplicar no decurso de um processo penal


relativamente a violações das regras do próprio processo. Por exemplo, quando a defesa
faz requerimentos infundados, que só tem como intenção a dilação do processo, quando
alguém falta injustificadamente a um ato processual para o qual foi notificado e em
todos estes casos estas sanções podem ser aplicadas pelo tribunal, normalmente são
expressas por unidades de conta que tem um certo valor que o tribunal aplica varias
unidades de conta a essa violação.
Não confundir as sanções de conformidade processual com as medidas de
coação, que são medidas preventivas ordenadas ao bom prosseguimento do processo,

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por exemplo a prisão preventiva, tem um caráter preventivo ao contrário das medidas
de conformação que tem um caráter sancionatório, repressivo.

4º Limite -> Cláusulas penais do direito civil

Nos contratos as partes podem inserir clausulas penais para o seu não
cumprimento são as chamadas penas privadas, trata-se de sanções aceites pelas duas
partes que são completamente diferentes das sanções previstas pelo direito penal que
se impõem independentemente da vontade das pessoas, portanto não se pode
confundir uma clausula penal com uma sanção criminal.

5º limite -> Sanções previstas na responsabilidade financeira que existe na lei do


tribunal de contas

A lei do tribunal de contas prevê a responsabilidade de certos agentes públicos


que tem como função, a administração e a gestão de dinheiros públicos de acordo com
certas regras e a lei do tribunal de contas, prevê dois tipos de responsabilidade:

• Reintegratória: pela reparação do dano causado


• Sancionatória: o tribunal de contas aplica multas a esses agentes públicos que
tenham praticado certos atos de má gestão.
A ideia hoje é que se trata de um ramo de direito sui generis que não
verdadeiramente direito penal. Não são sanções que vão para o registo criminal, não
pertencem inteiramente nem ao direito penal, nem ao direito disciplinar, tem uma
configuração diferente, também aqui se trata de um limite ao direito penal.

8º Capítulo - Princípio da Legalidade Criminal

“Não existe pena sem lei” -> é uma das expressões mais vivas de como o direito
penal é um direito do cidadão contra o estado.
Esta ideia da descrição pela lei dos factos que podem ser considerados crime, é
uma ambição antiga da humanidade, que surge pela primeira vez na Magna Carta de
Inglaterra no principio do século XIII. Essa ideia foi repetida mais tarde no fim do século
XVII e depois foi acarinhada pelas revoluções liberais.
Dr. Figueiredo Dias diz nos que hoje existe uma proteção multinível do principio
da legalidade, tanto a nível interno como em vários documentos internacionais, super
estatais e regionais. É claro que apesar da sua consagração em muitos instrumentos
internacionais desde o fim do século XVIII não foi uma evolução linear, houve muitos
atropelos, houve instancias na história de supressão do principio da legalidade não é por
acaso que essas instâncias nasceram de cariz autoritário. No direito português o
principio da legalidade tem consagração constitucional – artigo 29º/1 CP.
O artigo 29º/2 introduz uma ressalva diferente, os tribunais portugueses tem
competência para aplicar sanções penais relativamente a factos que sejam considerados

Daniela Costa Amaral


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crimes por normas de direito constitucional costumeiro, mesmo que não estejam
descritos na lei interna. Não é o principio da legalidade que consagramos na constituição
que impede os tribunais portugueses de punir os crimes contra o direito internacional,
os crimes contra este tem um estatuto à parte. Portanto se acontecesse que um
determinado crime contra o direito internacional, não estivesse coberto pela lei
portuguesa, continuava-se a ter legitimidade para aplicar as normas internacionais
consuetudinárias que proíbem esses factos. Significa que os tribunais portugueses só
podem aplicar as penas conhecidas pelo direito nacional. Os limites da lei interna
também abrangem o processo penal, que será o previsto pela ordem jurídica portuguesa
– artigo 29º/2 - artigo 8º CRP que prevê a receção automática do direito internacional.
Pode ser algo problemático aplicar normas de direito costumeiro em direito
penal, uma das consequências do principio da legalidade é precisamente proibir o
costume, portanto será um pouco estranho aplicar normas costumeiras, mas hoje em
dia a norma costumeira, embora não perca a sua natureza, está muito mais concretizada
em termos positivos em vários estatutos dos tribunais internacionais.

Quais são os fundamentos? Quais são as razões pela qual o principio da legalidade é
consagrado?

A este propósito é costume distinguir entre fundamentos externos/políticos e


fundamentos internos.
✓ Fundamentos externos são essencialmente o principio liberal, democrático e de
separação de poderes. O principio liberal trazido pelas revoluções liberais, foi
uma das grandes conquistas da humanidade, dizer que o principio de tudo está
na liberdade do cidadão e qualquer restrição a essa liberdade deve ser guiada
por um principio de necessidade, portanto essa necessidade tem de resultar da
vontade coletiva das pessoas e da comunidade, daqui decorre que só pode haver
um crime se a generalidade das pessoas exprimir essa vontade numa lei que
inclua a todos. O principio democrático também implica que só quando exista
uma preponderância de uma certa vontade coletiva de restringir a liberdade em
determinada situação é que ela possa ser consagrada, impõe que os crimes só
possam resultar da vontade coletiva. E por ultimo o principio da separação de
poderes, nem sempre foi assim, o rei era simultaneamente legislador e juiz. Hoje
desde a revolução francesa, o principio da legalidade é importo também pelo
principio da separação de poderes. Todos estes princípios de organização politica
do estado, impõe que os crimes devam estar previstos na lei.
✓ Fundamentos internos, que já se prendem com a própria função do direito
penal, são por um lado a função de prevenção, seja especial ou geral, como se
pode exigir as pessoas que não voltem a cometer crimes se elas não puderem
conhecer que factos é que se trata, o principio da legalidade cumpre essa função
de comunicação quais são os factos proibidos para que as pessoas possam
modelar os seus comportamentos de forma obediente a essas proibições.
Portanto as exigências de prevenção dependem de uma publicitação através do

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principio da legalidade e quais são os comportamentos proibidos. Por outro lado,
também o principio da culpa, que é essencialmente um juízo de censura ao
agente por ter violado uma prescrição jurídica, ora só se pode violar uma pessoa
se a pessoa estava obrigada a conhecer esse comando. Também o principio da
culpa requer como exigência o principio da legalidade.
Em que consiste a ideia de não há crime sem lei?

Tudo o que não estiver previsto na lei penal é permitido ou pelo menos não pode
ser sancionado com penas criminais, por isso se diz que a lei penal de certa maneira é a
magna carta das pessoas, é a defesa contra a ação do estado, e portanto o principio da
legalidade serve esta funcionalidade contra o arbítrio estatal, tudo o que não estiver
previsto na lei, não pode ser punido. Isto significa que os erros, as omissões, as falhas
não podem funcionar contra as pessoas, acontece por vezes que o legislador não
formula as condutas de maneira mais adequada, portanto as falhas tem que ser
imputados ao próprio estado, e não podem ser emendados à custa da liberdade das
pessoas.
Em relação às penas, tem de estar consagradas na lei, e isto abrange tanto as
penas como as medidas de segurança. Este ponto é importante porque até há algum
tempo atrás entendia-se que as medidas de segurança não eram cobertas pelo principio
da legalidade porque se dizia que na verdade são medidas que favorecem o agente, são
medidas para o bem daquele a quem são aplicadas e portanto se são favoráveis à pessoa
não faz sentido pô-las sob o principio da legalidade e isto tem aplicações a vários níveis.
A consequência da aplicação do principio da legalidade às penas e às medidas de
segurança, é que os juízes, os tribunais, não podem criar as penas, que não estejam
previstas na lei.
O principio da legalidade exprime-se em cinco planos:

1º Plano – Âmbito ou sentido de aplicação do princípio da legalidade (contra reum)


(MUITO IMPORTANTE)

Se tivermos em conta a função que apontamos ao principio da legalidade,


compreendemos que este só se aplica relativamente às normas que fundamentam ou
que agravam a responsabilidade da pessoa, se a ideia é proteger o cidadão contra o
poder do estado, evidentemente que o principio da legalidade só se aplica às normas
que atingem essa liberdade, que fundamentam a responsabilidade penal e ás normas
que agravam a mesma e portanto não devemos confundir o respeito pela legalidade e
o principio da legalidade, este ultimo só se aplica em relação ás normas contra o arguido,
contra a liberdade.
Isto tem variadíssimas implicações em todo o sistema, por exemplo, no domínio
da analogia, é proibida a analogia que visa fundamentar a responsabilidade da pessoa,
porque é uma norma que fundamenta a responsabilidade mas não se proíbe a analogia
que tem resultado excluir ou diminuir a responsabilidade do agente não é proibida pelo
principio da legalidade. Nunca esquecer esta ligação profunda entre o principio da

Daniela Costa Amaral


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legalidade e a defesa do cidadão contra o estado, o âmbito do principio da legalidade
são as normas que fundamentam ou que agravam a responsabilidade do agente.

2º Plano – Da fonte (lex scripta)

Aqui também se exige uma lei em sentido formal, para que haja crime exige-se
uma lei da AR ou uma lei de autorização ao Governo. A questão que se levanta é se o
governo tem competência própria para descriminalizar um certo comportamento,
porque se estamos a dizer que o principio da legalidade só diz respeito as normas que
fundamentam ou agravam a responsabilidade da pessoa, mas pode haver intervenções
legislativas que visam descriminalizar um certo comportamento ou que visam reduzir a
pena aplicável. E isto é permitido pelo principio da legalidade? Em tese nada obstaria a
que o governo por sua própria iniciativa pudesse descriminalizar um certo
comportamento ou reduzir uma moldura penal, todavia o nosso TC já disse que a
definição dos crimes e das penas, seja em que sentido for é sempre uma reserva relativa
de competência da AR – artigo 165º/1 c) CRP. Compreende-se que do ponto de vista
jurídico politico, orgânico, deva competir ao mesmo órgão o decurso da criminalização
ou da descriminalização e compreende-se que o TC interprete esta norma no sentido de
entregar à AR qualquer intervenção sobre a matéria penal, seja num sentido seja no
outro, o que não podemos é imputar essa solução ao principio da legalidade. Uma coisa
é o principio da legalidade na sua veste substantiva e o principio da legalidade não se
oporia a uma intervenção do governo fosse no sentido de descriminalizar um
comportamento ou de reduzir a pena aplicada, mas de facto existem boas razões do
ponto de vista orgânico, para que seja o mesmo órgão a criminalizar e a descriminalizar.
Outro problema em relação à fonte é o problema das normas penais em branco
– são normas que remetem uma parte da sua definição para outros instrumentos
normativos, normalmente de natureza infralegal, por exemplo, uma norma de direito
penal secundário diz que “quem pescar sardinha com uma dimensão inferior à
autorizada”, há um espaço branco nesta norma penal porque não adquirimos inteiro
conhecimento sobre o comportamento proibido, não sabemos qual é a dimensão
autorizada, para o saber temos de recorrer a uma portaria do ministério das pescas que
todos os anos estabelece o tamanho permitido para a pesca da sardinha. Porque as
normas penal estabelecem este expediente? Muitas vezes estas normas para onde se
remete são muito mutáveis e a lei penal é difícil de se mudar, portanto a maneira de
preservar uma certa estabilidade da norma é usar este expediente de remissão parcial
do sentido da norma para um instrumento normativo.
Dr. Caeiro não gosta muito do nome norma penal em branco. O problema que
se põe é saber se isto é contrário ao principio da legalidade atendendo a que quem vai
definir uma parte do espaço da norma é o ministério, é um órgão que faz parte do
executivo através de um instrumento que não tem valor de lei. Do ponto de vista da
fonte aqui não existe qualquer problema desde que exista uma lei formal a fazer essa
remissão as remissões feitas aí tem esta cobertura por parte da assembleia, é o órgão
titular do poder punitivo que deliberadamente remete uma parte da norma para outro

Daniela Costa Amaral


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poder, portanto do ponto de vista da fonte não levantam quaisquer problemas e isto
vale também para os regulamentos da união europeia.

Nota: a união europeia não tem uma competência própria em matéria penal, portanto
exige uma intervenção da AR.

3º Plano – Determinabilidade do tipo legal de crime (lex certa)

A norma tem de estar construída de uma forma tal que os comportamentos


proibidos possam ser objetivamente determináveis pelos cidadãos. O cidadão quando
conhece a norma tem de compreender qual é o sentido da proibição, para orientar o
seu comportamento de acordo com essa proibição, tem de ser capaz de determinar
aquilo que é proibido.

Exemplos de normas que não são suficientemente determinadas: crime que dizia que
quem prejudicar outra pessoa é punido com pena de X, isto é extraordinariamente
amplo, nem sabia identificar corretamente quais são os comportamentos, ou então
quem incomodar uma autoridade pública, é muito amplo, formulações que não
cumpririam o principio da determinabilidade. Seriam normas inconstitucionais por
violação do artigo 29º/1 CRP.
(Este é o plano mais problemático do principio da legalidade)

Por outro lado, por vezes a norma penal, o legislador, tem de empregar certos
elementos normativos, certas clausulas gerais que trazem alguma indeterminação à
norma, por exemplo na qualificação do homicídio, um dos motivos que pode levar a
qualificação do homicídio é a utilização de um meio insidioso, não é muito claro o que
isso é, portanto também existe aqui uma certa vaguidade neste elemento. Dr.
Figueiredo Dias diz que o importante aqui é nós olharmos para norma globalmente, e
muitas vezes isso ajuda a eliminar o sentido destes elementos mais indeterminados,
temos de olhar globalmente para o sentido da norma e ver se na sua globalidade
conseguimos apreender o sentido da proibição.
Volta a levantar-se o problema das normas penais em branco, mas de um outro
ponto de vista, no exemplo da pesca da sardinha, agora suponhamos que essa norma
ainda cumpre o essencial da determinação, temos aqui uma clausula geral remissiva que
não está determinada, mas quem lê esta norma percebe que há um limite pela qual não
pode pescar abaixo e isto impõe ao cidadão um dever de informação. Neste caso a
norma penal ainda oferece ao cidadão um sentido para a sua conduta, ainda que a
perfeição só se alcance através da informação de outros elementos da norma. Mas
agora suponhamos que a norma penal dizia que quem violar o disposto nos
regulamentos de pescas é punido com pena de X, é uma norma penal em branco, mas
será compatível com o principio da legalidade? Não porque não oferece ao cidadão
qualquer sentido de comportamento, é uma remissão genérica e indistinta. Deverá ser
considerada inconstitucional em virtude da violação do principio da legalidade pelo
artigo 29º/1 CRP.

Daniela Costa Amaral


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4º Plano – Proibição da Analogia (lex stricta)

Não tem a mesma importância prática que os outros, mas do ponto de vista
teórico é bastante importante. A analogia é um procedimento de aplicação do direito
geralmente permitido, portanto o legislador pode perante situações análogas aplicar
sempre que exista uma lacuna, uma norma prevista para uma outra situação desde que
a situação lacunosa seja semelhante à que está regulada pela norma. TODAVIA no
direito penal é um procedimento proibido – artigo 1º/3 CP.
Olhando de novo para a função do principio da legalidade, reparamos também
que a analogia só é proibida quando se trata de qualificar um facto como crime, quando
se trata de fundamentar a responsabilidade do agente ou determinar a pena ou medida
de segurança que lhe corresponde, também aqui devemos olhar para as finalidades do
principio da legalidade, a analogia é proibida quando funcione contra a liberdade das
pessoas, é proibida quando se trata de dizer que este facto não é considerado pela lei
como crime, mas é muito semelhante, nesses casos a lei não pode utilizar a analogia, da
mesma forma não pode aplicar uma pena análoga.
O problema que se põe aqui é na distinção entre o que é interpretação extensiva
e a analogia. Todavia no direito penal é fundamental garantir essa separação para
garantir a eficácia do principio da legalidade. Temos de proceder a essa separação e o
critério que o Dr. Figueiredo Dias dá é o:
➔ critério do quadro possível de significações das palavras, quando o legislador
constrói uma norma penal, esta é um ato de comunicação, faz-se com palavras
e estas tem sentidos limitados que compõem um quadro fechado. De acordo
com esta visão das coisas cada norma tem um quadro limitado de possibilidades
de interpretação, para lá desse quadro já não estamos a interpretar a norma,
estamos a fazer uma analogia e essa será proibida, agora dentro do quadro de
significações que a norma permite, aí valem inteiramente todos os
procedimentos de interpretação que a ciência jurídica acolhe, todos os métodos
de interpretação acolhidos pela ciência jurídica são inteiramente válidos.
Por outro lado este respeito por este quadro de significações possíveis vale nos
vários momentos de construção do crime, por exemplo quando sabemos o que são atos
de execução para efeitos de tentativa, quando definimos quem é autor e quem é
cúmplice a lei dá definições desses institutos e aí também vale a proibição de analogia.
Mais concretamente para apreciarmos o âmbito de proibição de analogia podemos
concluir que ela vale sempre que funcione contra o arguido, vale em relação aos tipos
legais de crime, vale para aqueles casos em que se utilizam as normas penais em branco,
não se pode utilizar a analogia para qualificar um facto como análogo, vale para as
penas, não se pode aplicar penas por analogia.
Onde é que a analogia é permitida? É permitida na aplicação das causas de
justificação ou causas de exculpação. Estas normas visam afastar a responsabilidade do
agente, são normas que justificam factos (legitima defesa, estado necessidade), nesses
casos o propósito da norma é afastar a responsabilidade, são aplicáveis por analogia.

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5º Plano – Proibição de Retroatividade

O Dr. Figueiredo Dias trata esta matéria dentro do principio da legalidade e


depois fala do âmbito de validade da lei penal temporal. A própria construção do
problema é que não é do ponto de vista do Dr. Caeiro satisfatória, porque a aplicação
da lei penal é uma instancia normal da aplicação da lei no tempo, todas as leis tem regras
para determinada aplicação no tempo e por isso se diz o âmbito de validade temporal
da lei. Ora isto não se confunde com a proibição de retroatividade que decorre do
principio da legalidade, uma coisa é o âmbito de validade temporal da lei, que por acaso
no direito penal tem uma conotação diferente em virtude do principio da legalidade,
este concorre para que a aplicação da lei penal no tempo tenha um certo regime, mas o
problema da aplicação da lei penal no tempo é de certa maneira independente do
principio da legalidade, problema continuava a por se se o principio da legalidade não
existisse. Mas que o principio da legalidade tem de facto consequências para isso, tem,
o principio da legalidade tem influencia na maneira como concebemos a aplicação da lei
penal no tempo.

9.º Capítulo - O âmbito de validade temporal da lei penal (a


“aplicação da lei no tempo”)

Toda a norma jurídica enquanto regra de comportamento tem uma natureza


percetiva, prescreve certos comportamentos ou proíbe-os, e enquanto regra de
comportamento, evidentemente não pode prescrever comportamentos para o passado,
isso faz parte das próprias condições de possibilidade de uma norma qualquer, portanto
a natureza percetiva da norma, não é possível prescrever comportamentos para o
passado – principio da não transconexão – uma norma só pode prescrever
comportamentos para as pessoas para os quais tem contacto.
Uma norma não pode ter contactos com o passado, isto leva-nos a outro aspeto
da validade temporal das normas que é a dupla função das normas: por um lado serve
de regras de comportamento e de regras de valoração, por outro, no momento em que
se infringe uma dessas normas, quando não se adota o comportamento imposto, ou
quando se viola a proibição, esse comportamento depois é valorado negativamente,
como ilícito. Esta dupla função como regra de comportamento e como regra de
valoração, para que as expectativas das pessoas sejam protegidas temos de respeitar
dois momentos:
1º- As pessoas devem poder confiar na lei que vigora no momento em que praticam
os factos
2º- Deve haver uma coincidência entre a lei que regula as condutas com a lei à luz
da qual esses comportamentos são valorados, só assim e que protegemos as
expectativas dos cidadãos. Em principio requer uma coincidência das duas leis.
No direito Penal o problema torna-se mais agudo, por 2 razoes:

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1. Normas penais são aquelas que afetam mais gravemente os direitos das pessoas
portanto as expectativas são particularmente importantes porque o que está em
causa é sofrer a força do estado mais agressiva dos direitos individuais;
2. Também existe um problema particular no direito sancionatório em geral que é
uma dissociação entre a norma de comportamento e a norma de valoração, quer
dizer o destinatário da norma de comportamento são os cidadãos, mas o
destinatário da norma de valoração são os tribunais que aplicam as
consequências previstas para a violação das normas penais.
No plano cronológico estes dois momentos podem estar muito distantes e isso
tem aplicações importantes, porque é comum que as leis entretanto se alterem.
Com este pano de fundo, necessidade de coincidência entre a norma de
comportamento e a norma de valoração para proteção das expectativas e a sua
particular intensificação no direito penal, percebemos que o momento seguinte é muito
importante que é a determinação do momento da prática do facto. É fundamental para
este efeito, para sabermos qual a lei aplicável pelo tribunal àquele facto temos de saber
quando vamos considerar aquele facto como praticado.
E para esse efeito rege o artigo 3º CP – o momento relevante é o momento da
ação, ou momento em que o agente devia ter agido, porque há certos crimes – crimes
materiais ou de resultado – crimes que só se consumam, com a produção de um certo
resultado – por exemplo: homicídio – temos a ação disparar a arma, ou deixar morrer
quando se devia salvar, e depois temos o momento do resultado que é o momento da
morte, que pode ser imediato ou não.
Porque a lei adota este critério? Evidentemente que o fundamento é do
momento da ação/omissão que o agente pode determinar a sua conduta, portanto pode
obedecer ou desobedecer à norma, por isso não importa se a lei muda entre a prática
da ação e o resultado, interessa é a lei através da qual o agente podia determinar o seu
comportamento. Só respeitando este critério e que podemos manter as expectativas
legitimas.
Este critério abrange todos os comparticipantes e portanto ele aplica-se à
atuação de cada um, é perfeitamente possível que um cúmplice atue num momento
diferente do autor do crime, cada um dos comparticipantes atua no momento em que
se pratica a ação ou omissão e é nesse momento que se aplica a lei aplicada.
Há alguns problemas particulares em certos crimes duradouros ou crimes de
execução permanente, são aqueles que onde a ação ou a omissão não são instantâneas.
Convém distinguir entre crimes permanentes e crimes de efeitos permanentes:
o Crimes permanentes são aqueles que a própria ação ou omissão perdura
no tempo;
o Crimes de efeitos permanentes são aqueles cujas consequências durarão
para sempre – ex: homicídio, embora seja um crime de execução
imediata, os seus efeitos são permanentes, não levantam grandes
problemas.

Daniela Costa Amaral


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Coisa diferente são os crimes duradouros, por exemplo o sequestro, que tem 2
momentos: momento em que se encerra alguém numa casa e perdura durante todo o
tempo em que a pessoa está privada dessa liberdade até ser libertada, durante todo
esse tempo o crime de sequestro está a ser executado. O agente do sequestro viola dois
deveres: dever de abstenção, de não encerrar a pessoa e depois viola o dever de libertar
a pessoa.
Quando a execução do crime se prolonga no tempo pode acontecer que a lei que
vigorava no momento em que a execução do crime foi iniciada não seja a mesma que
daquela que vigora durante a própria execução do sequestro.

Qual a lei aplicável?

Aqui temos o chamado facto partilhado, porque é o mesmo crime mas é regulado
por 2 leis diferentes, temos ai um conflito de leis porque ambas incidem sobre o mesmo
facto, qual se deve aplicar? Deve seguir-se a regra geral que a lei posterior revoga a lei
anterior, deve aplicar-se a segunda lei mas apenas se os pressupostos do sequestros se
realizarem integralmente durante a segunda lei. Portanto não temos que nos preocupar
se a segunda lei é mais grave ou mais favorável do que a primeira, porque os
pressupostos do crime realizam-se integralmente na vigência da segunda lei, esta aplica-
se independentemente do seu conteúdo.
Se for um crime de execução instantânea, tem de se aplicar a lei que estava em
vigor no momento da prática do facto, essa é a lei geral. Se for um crime duradouro, em
principio aplica-se a segunda lei.
Mas há que fazer uma ressalva, suponhamos que é uma circunstancia
modificativa do sequestro, a duração do sequestro, evidentemente que aplicando a
segunda lei, que tem essa circunstancia nova, não se pode contabilizar na aplicação da
nova lei, o período de tempo que a pessoa esteve encerrada durante a primeira lei.

No que diz respeito às medidas de segurança como é que as coisas


funcionam?

As medidas de segurança dependem de 2 pressupostos: a prática de um facto


típico ilícito e o agente seja considerado perigoso. Mas a perigosidade tem dois
momentos de referência: por um lado tem de ser a perigosidade manifestada num facto,
exige-se que tenha uma expressão no facto praticado, mas por outro lado, tem de
subsistir no momento da decisão, só se ela se persistir no momento do julgamento é
que se pode aplicar uma medida de segurança.
Isto põe alguns problemas para a aplicação da lei no tempo. Durante muito
tempo entendeu-se que a medida de segurança era inteiramente regulada pela lei que
vigorava no momento do julgamento, porque independentemente do seu conteúdo
deviam de ser reguladas no momento do seu julgamento porque se entendia que não
era uma medida que restringisse direitos das pessoas, pelo contrário era uma medida
que visava promover os direitos das pessoas, para o bem da pessoa, então devia ser a
lei aplicada no momento do julgamento.

Daniela Costa Amaral


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Hoje as coisas já são vistas de outra forma porque as medidas de segurança são
medidas que afetam os direitos individuais. A própria compreensão das medidas de
segurança alterou-se. Também aqui nas medidas de segurança, quando se trata de
avaliar o facto típico ilícito, a lei aplicável é a lei que vigora no momento da prática desse
facto. Isto significa que não se pode aplicar uma medida de segurança a alguém que
cometeu um certo facto que é descrito como crime no momento do julgamento, mas
que não era descrito no momento em que a pessoa o praticou, a lei que se avalia é a lei
que vigorava no momento em que o facto foi praticado.
Em relação ao estado de perigosidade as coisas já são diferentes, porque o
estado perigosidade tem esta dupla referência, por um lado a perigosidade tem de se
manifestar num facto e por outro lado, tem de subsistir no momento da decisão, a
definição de perigosidade pode ser diferente num momento e no outro, a lei pode ter
definições diferentes de perigosidade criminal, no momento em que o agente praticou
um facto podia vigorar uma lei que tinha uma certa definição de perigosidade criminal
e no momento do julgamento pode vigorar uma lei que tem uma outra definição de
perigosidade criminal. Pergunta-se qual destas leis é que se aplica. Mais uma vez
estamos perante um facto partilhado e portanto nestes casos não é possível aplicar só
a segunda lei porque existe uma parte que foi praticada durante a vigência da primeira
e portanto parece que, embora a questão seja discutível, é necessário preencher os
pressupostos do estado de perigosidade tanto como estão definidos na nova lei, mas
também tem de se preencher os pressupostos de perigosidade manifestados no facto
de acordo com a lei que vigorava nesse momento.

E se mudar a jurisprudência? No momento do julgamento os tribunais já


passam a considerar determinado facto como crime que antes não era, nesse caso o
que se faz?

Há um caso emblemático, durante muitos anos o common law inglês não


considerava que havia violação dentro do casamento, mas os tribunais ingleses
mudaram a sua interpretação da lei e passaram a considerar esse facto como crime de
violação, o arguido recorreu ao tribunal europeu dos direitos humanos por se estar a
violar o principio da legalidade aplicando retroativamente a nova jurisprudência, e a
conclusão é que verdadeiramente a jurisprudência não cabe no conceito de lei, isto é a
alteração de certo entendimento jurisprudencial não afeta as garantias dadas pela lei,
nada impede o tribunal de mudar a sua interpretação mesmo que seja no sentido mais
desfavorável ao agente, a lei não muda e assim sendo não se aplicam as garantias
relativas à sucessão das leis penais no tempo. Em suma não é relevante para o nosso
problema a alteração da jurisprudência.

Dimensão da retroatividade

Em principio os factos devem ser valorados à luz da norma que valorava no


momento da sua prática, mas pode acontecer que o legislador atribua efeitos
retroativos à lei porque no fundo implica uma cisão entre a norma de valoração e a

Daniela Costa Amaral


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norma de comportamento e isto acontece porque entram em conflito os dois interesses
fundamentais que o direito tem de assegurar (estabilidade e o interesse na adaptação),
muitas vezes as sociedades precisam de conferir certos efeitos ou factos já passados,
para permitir uma melhor dinâmica social. Portanto às vezes o legislador em
homenagem a certos interesses específicos introduz uma quebra, aqueles factos
passados devem ser valorados à luz da nova lei, continua a ser um problema geral de
direito. E é aqui de facto que inserimos a tal proibição da retroatividade que deriva do
principio da legalidade. Logo na CRP no artigo 29º/1 diz que ninguém pode ser punido
a não ser em virtude de lei anterior e portanto a proibição da retroatividade a nível
constitucional visa exatamente impedir que o legislador promova um interesse na
adaptação, diga, aqueles factos não eram crime mas agora vemos que o ideal é tratar
aqueles casos como crime, é isso que o legislador constitucional vem impedir, proibir a
retroatividade desfavorável, isto é de facto uma decorrência clara mas especificamente
é uma decorrência do principio da legalidade, é uma proteção dos direitos, liberdades e
garantias contra o arbítrio do estado.
A proibição da retroatividade desfavorável primeiro só diz respeito a um certo
numero de normas, só aquelas que tem um certo conteúdo, e além disso não é um
principio regulativo geral, visa responder a uma realidade muito limitada, é para aquele
fim e não organizar todo o problema da aplicação da lei penal no tempo. É aqui que
inserimos o proibição da retroatividade como consequência do principio da legalidade.

Retroatividade mais favorável

No art. 29º/4 diz-se que a nossa CRP impõe a retroatividade mais favorável, se
houver uma sucessão de leis, a nossa lei impõe que sejam aplicadas retroativamente as
leis mais favoráveis, o fundamento disto é dizer se a lei vigora agora não considera este
facto como crime, não tem sentido puni-lo, esta imposição nada tem que ver com o
principio da legalidade, tem haver é com o principio da necessidade da lei penal. Estes
casos a aplicação retroativa de tratamento mais favorável fundamenta-se é na
desnecessidade da intervenção penal. Não tem nada que ver com o principio da
legalidade. Isto é uma decorrência do principio da necessidade e por isso é incorreto
dizer que a aplicação retroativa da lei penal mais favorável é uma exceção do principio
da legalidade, NÃO, o princípio da legalidade só tem o seu âmbito as leis desfavoráveis.

Como é que se exprime este tratamento mais favorável?

Através de duas formas:


1) Descriminalização
Está prevista no artigo 2º/2 do CP e são casos em que o agente praticou um certo
facto durante a vigência de uma lei que incriminava o facto, mas depois uma lei nova
vem eliminar esse facto, vem dizer que este facto já não é crime. Por exemplo aconteceu
isto entre nós com o consumo de estupefacientes e com a interrupção voluntária da
gravidez, foram dois casos de descriminalização dessas condutas. Isto compreende-se

Daniela Costa Amaral


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bem porque por um lado, estamos aqui a falar do principio da intervenção penal, está
sujeita a uma cláusula de necessidade, se a própria comunidade através da lei
descriminalizadora vem atender que aquele comportamento não atinge o bem jurídico,
não existem razões de prevenção geral nem de prevenção especial que limitem a
aplicação dos direitos. Por um lado não é preciso estabilizar as expectativas da
comunidade, porque elas não existem, e por outro não existem razões de prevenção
especial porque não é necessário que o direito penal incute no agente a inconveniência
de repetição dessa conduta, se um facto não é crime não cabe ao direito penal impedir
o agente de praticar novos crimes.
Portanto nestes casos de descriminalização o direito penal deve pura e
simplesmente abster-se de aplicar sanções a factos que não constituem crime, e a lei foi
mais longe, diz se o agente já tiver sido condenado por este crime e estiver a cometer
pena, cessa imediatamente a execução dos efeitos penais, significa que se houver
pessoas a cumprir penas porque cometeram um certo facto que foi descriminalizado,
essas pessoas devem ser imediatamente libertadas e devem cessar os seus efeitos
penais, nomeadamente o principal efeito que é relevante é a inscrição no registo
criminal, deve ser cancelado.
Há aqui uma questão muito discutida tanto na doutrina como na jurisprudência
que é aqueles casos que ocorrem com alguma frequência, em que a lei vem substituir
os crimes por contraordenações (caso dos estupefacientes) e depois aqui a questão de
saber se se aplica aqui o artigo 2º/2 e se se aplica ou não a consequência prevista pela
contraordenação que nos atira para o artigo 2º/4 e há aqui duas correntes:

• Existe aqui uma continuidade no regime sancionatório, há uma


continuidade do juízo e portanto como assim é, deve se aplicar a
contraordenação porque é mais favorável que a norma penal. Aqui
privilegia-se o estado;
• Há quem diga que não, que nestes existe é uma descriminalização porque
o facto deixou de ser crime, e também não se pode aplicar
retroativamente a contraordenação porque o direito das
contraordenações também está sujeito ao princípio da legalidade e
também está sujeito à não retroatividade, não se pode invocar o artigo
2º/4 porque não se trata de uma sucessão de leis penais, trata-se de uma
sucessão de uma lei penal com uma lei administrativa. Nesta segunda
corrente o agente continuaria impune. Aqui privilegiam-se os direitos
individuais;
Já vimos que existem certas regras constitucionais que podem ser interpretadas
de uma forma mais contemporizadora do que as regras do direito penal, portanto talvez
caiba ainda nesses limites uma aplicação retroativa da contraordenação nos casos em
que a conduta foi descriminalizada, apenas nesses casos, porque nos casos em que a
conduta era crime passa a ser uma contraordenação, mas isso seria necessário pelo
menos uma previsão expressa da lei nova de aplicação retroativa aos factos praticados
durante a lei que considerava o facto como um crime. No fundo é trazer mais algumas

Daniela Costa Amaral


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exigências e mais algum conforto teórico à primeira corrente, mas não é certo que essa
primeira corrente seja uma construção legitima.
Dr. Figueiredo Dias diz que uma pessoa que comete um facto quando ele punível
como crime e depois é transformado numa contraordenação não se compreenderia que
essa pessoa não sofresse qualquer sanção jurídica visto que não houve um hiato
verdadeiramente no regime sancionatório, o Dr. Caeiro não sabe se este argumento não
colide com a ideia que o Dr. Figueiredo Dias também avança que por força do principio
da legalidade por vezes existem erros ou omissões do legislador, existem inconsistências
e incoerências, isto é, o principio da legalidade tem custos para o sistema e portanto o
Dr. Caeiro não sabe até que ponto este tipo de incoerência não é um desses custos que
o principio da legalidade implica.
2) Despenalização
Este é uma maneira de distinguir era o nº2 e o nº4. Por despenalização entende-
se que não existe verdadeiramente uma descriminalização, portanto o facto continua a
ser crime, mas beneficia na lei posterior de um tratamento mais favorável, diz o artigo
2º/4, o que se passa aqui é que existe uma sucessão de leis penais em sentido próprio,
há duas leis de natureza penal que se seguem e daí também por força do enunciado do
art. 2º/4 que parece difícil de aplicar esse artigo para resolver o problema da
transformação de uma contraordenação, porque este artigo refere-se especificamente
às disposições penais, portanto supõe o concurso de sucessão de leis penais, o que não
é o caso quando existe uma sucessão entre crimes e contraordenações, aqui aplica-se a
analogia, mas é uma analogia desfavorável. O que está aqui em causa é uma suavização
da reação penal em relação ao momento da prática do facto e o novo tratamento, mais
favorável, deve ser aplicável retroativamente.

Mas como sabemos que a lei nova é mais favorável que a lei anterior?

No caso do artigo 2º/2 isso é evidente, existe uma lei que descaracterizou aquela
conduta como crime, não temos que avaliar nada, mas aqui a questão é diferente, o
facto continua a ser crime e temos de saber se a nova lei é mais favorável do que a lei
que vigorava na prática do facto.

Nota: não digam que a o artigo 2º/4 visa a aplicação da lei mais favorável, não é isso,
tem uma logica de principio exceção, principio de regra especial, o principio é que se
aplica a lei no momento da prática do facto, isso é o principio geral sempre, o que
estamos aqui a discutir é se podemos fazer uma exceção a esse principio, excecionar a
aplicação da lei no momento da prática do facto, que só acontecerá se a segunda lei for
mais favorável, portanto não é propriamente escolher qual delas é mais favorável, isto
tem uma lógica, aplica-se o principio no momento da prática do facto, a não ser que a
lei do momento posterior seja mais favorável do que a lei do momento anterior.

O que o juiz tem de fazer é uma aplicação dos dois regimes simuladamente e ver
qual é o resultado final de cada um deles e depois deve comparar esses resultados, ver

Daniela Costa Amaral


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se a segunda é mais favorável, se assim o for deve aplicar retroativamente esse
tratamento de maior favor, é um procedimento que não se basta com uma análise
simples. É sempre preciso ensaiar uma aplicação das duas soluções ao caso para avaliar
se a segunda lei é mais favorável que a primeira.
O juiz ao ensaiar essa aplicação deve faze-lo em bloco, ou seja, deve aplicar a lei
vigente no momento da prática do facto em bloco e depois também a lei vigente no
momento em bloco, isto é, o juiz não pode andar a selecionar as disposições mais
favoráveis da primeira lei e depois as disposições mais favoráveis da segunda lei, pelo
menos quando haja uma conexão intima entre elas.

Exemplo: suponhamos que na lei anterior o facto é punido com determinada pena de
prisão e existe um prazo de prescrição bastante alongado, depois na segunda lei é
punido com pena de prisão superior mas existem prazos de prescrição mais curtos, os
prazos de prescrição do procedimento são calculados em função das molduras penais,
o juiz não pode estar a escolher as molduras penais de um dos regimes e aplicar depois
porque é mais favorável um prazo prescricional previsto num outro regime, são dois
institutos conexionados e o juiz não pode andar a fazer essa desmoldagem para aplicar
o regime mais favorável com bocadinhos de cada uma das leis, tendencialmente deve
ser em bloco, mas claro que deve haver situações em que se justifique uma aplicação.

Suponhamos que alguém é condenado a uma pena de 14 anos de prisão por um


crime que é punível com uma pena de 6 a 14 anos de prisão, é condenado com uma
pena máxima e depois vem a lei nova com um abaixamento para 2 a 12 anos de prisão,
o que o artigo 2º/4 diz é que aquela pessoa que está a cumprir uma pena de 14 anos de
prisão deve ser libertada quando atingir o limite máximo da nova lei, os 12 anos, nesse
momento deve cessar a execução da sentença, a ideia é de que se o legislador na sua
ultima apreciação do problema veio dizer que mais de 12 anos de prisão é
desnecessário, então não se compreenderia que alguém estivesse privado da liberdade
durante 14 anos, portanto ainda é uma consequência do principio da necessidade da lei
penal.
Este é portanto o regime do artigo 2º/4, já vimos a diferença com a
descriminalização, trata-se de um regime mais suave, embora continue a ser crime. Uma
questão curiosa é que suponhamos que a lei anterior consagra uma certa circunstancia
agravante do facto e depois a lei nova elimina essa circunstancia agravante, mas vem
consagrar como agravante uma outra circunstancia que também se verifica no facto,
será que neste caso se pode aplicar a nova lei retroativamente? Ou será que se mantem
a aplicação da nova lei? Aqui a resposta é simples, não se pode aplicar a agravação da
primeira lei porque ela foi eliminada, é como se fosse uma descriminalização, não pode
ser aplicada na segunda lei, mas também não se pode aplicar retroativamente a nova
circunstancia agravante que não existia na primeira lei, este não é um fenómeno de
desmontagem, apenas é um fenómeno que não se pode aplicar hoje uma agravação que
o legislador já não considere relevante e também não se pode aplicar retroativamente
uma circunstancia que estava prevista na lei quando o facto foi praticado. Neste caso

Daniela Costa Amaral


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tem que se conjugar o artigo 2º/2 com o nº4 para chegar a esta solução que é também
a solução correta.

Leis intermédias: definição e regime

É uma lei que está no meio de duas outras leis, temos aqui um fenómeno de
sucessão não de duas leis, mas sim de pelo menos três leis, sendo certo a lei intermédia
não tem qualquer contacto com o facto, isto é, não estava em vigor no momento em
que o facto foi praticado e já não está em vigor no momento do julgamento. Lei 1
vigorava na prática do facto, depois temos a Lei 2 e depois a Lei 3 que é a que vigora no
momento do julgamento.

A lei 2 pode ser aplicada nesta situação em que não estava em vigor nem
no momento da prática do facto, nem no momento do julgamento?

Sim, a lei 2 está sujeita ao regime do artigo 2º/2 e do nº4 o que significa que se
ela for mais favorável ao agente mesmo não tendo qualquer contacto com a prática do
facto, ela será a lei aplicada. E isto pode dar-se em duas circunstancias: a lei 2 pode ser
uma lei descriminalizadora, isto é, pode perfeitamente acontecer que suponhamos que
uma força politica mais conservadora voltava a criminalizar a interrupção voluntária da
gravidez, podíamos ter casos de leis intermédias inúteis, casos de pessoas que tivessem
praticado o facto antes da descriminalização, entretanto houve leis descriminalizadora
e agora havia uma recriminalização por parte do legislador, ora bem nestes casos a lei
intermédia pode ser tanto descriminalizadora e nesses casos o agente deve ser
absolvido porque se aplica retroativamente a lei intermédia com fundamento no artigo
2º/2 e pode ser uma lei despenalizadora, que não tenha despenalizado o facto mas que
se tenha limitado a suavizar a responsabilidade do agente tratando-a menos
gravemente (artigo 2º/4).

Qual é o fundamento deste regime? Porque é que a lei intermédia mais


favorável é aplicada retroativamente?

Há no fundo duas razões essenciais para que isso aconteça:


1º- Razão mais importante, razão decisiva para garantir o principio da igualdade: se
dois agentes praticarem um facto no domínio da lei 1 e um for julgado no
domínio da lei 2 e o outro for julgado só no domínio da lei 3 não se
compreenderia que um deles que fosse julgado pela lei intermédia fosse
absolvido porque o facto já não era crime nessa altura e o outro continuasse a
responder porque o facto foi julgado só depois, em que a lei já tinha
recriminalizado aquele facto, portanto por uma questão do principio da
igualdade, como cometeram o facto no domínio da mesma lei devem também
receber um tratamento por igual e portanto em virtude do principio da
igualdade, deve se aplicar a lei intermédia.

Daniela Costa Amaral


58
2º- Na maioria dos casos o protelamento da ação penal é imputável ao estado, quer
dizer, não se compreenderia que este agente viesse a ser punido ou pela Lei 1
ou pela 3 apenas porque no processo dele o estado demorou mais a fazer a
investigação. Também por isso se deve aplicar a lei intermédia mais favorável.
Por último, temos ainda uma exceção a esta imposição de aplicação retroativa
do tratamento mais favorável que são as chamadas leis temporárias e leis de
emergência.

Leis Temporárias e Leis de Emergência

Dr. Figueiredo Dias fala nas lições nas leis temporárias em sentido amplo, que
inclui as leis de emergência. Portanto teríamos as leis temporárias em sentido estrito e
as leis de emergência. Uma lei temporária é uma lei que é aprovada para vigorar durante
um certo período de tempo, isto é, uma lei que tem um termo, seja explícito (a própria
lei diz que serve para vigorar de tantos a tantos), seja um termo implícito, uma lei que
está associada a uma circunstancia e implicitamente vigora enquanto essa
circunstancias for presente.
As leis de emergência são leis que vigoram para fazer face a um estado
excecional. Seja uma lei de emergência, seja uma lei temporária, são feitas para vigorar
durante um período de tempo determinado. Esta é a grande característica destas leis
em contraposição com as leis comuns.

Porque estas leis são uma exceção à retroatividade do tratamento mais


favorável?

Porque de acordo com o artigo 2º/3 do CP quer dizer que os factos praticados na
vigência de uma lei temporária e de uma lei de emergência continuam a ser puníveis
mesmo depois de terminar a vigência da lei temporária ou da lei de emergência, ao
contrário do que acontece com o artigo 2º/2. O nº3 diz que quando se trata de uma lei
que vale para um certo período de tempo os factos praticados para esse período
continuam a ser puníveis mesmo que sejam julgados já depois de terminar a vigência
dessa lei. Isto é assim porque se não fosse este regime a eficácia preventiva das leis
temporárias a emergência era nula, as pessoas já sabiam de ante mão que dificilmente
seriam julgadas durante a vigência dessa lei. Se não houvesse esta ressalva a aplicação
do artigo 2º/2 implicaria a impunidade, ninguém ia cumprir as normas das leis
temporárias e das leis de emergências.

Nota: não confundir as leis temporárias com as leis que se aplicam de forma fracionada
no tempo, isto é, leis que só se aplicam durante um certo período num ano. Não são leis
temporárias, estão sempre em vigor. O conteúdo é modelado pelo tempo. Por exemplo:
lei da caça ou a lei que proíbe as queimadas.

Daniela Costa Amaral


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Portanto quando se trata de leis temporárias e de leis de emergência, o facto
continua a ser punido mesmo depois de terminar a vigência dessas leis temporárias ou
de emergência.
Todavia existe aqui uma exceção, por isso falamos de uma exceção à exceção,
são os casos que apesar de serem leis temporárias se continua aplicar o regime do artigo
2º/4. Pode suceder que exista uma sucessão de leis temporárias ou de emergência, isto
é, em vez de existir só uma lei de emergência, pode existir uma sucessão de leis de
emergência e pode acontecer que as disposições penais da segunda lei de emergência,
sejam menos graves, mais favoráveis do que as disposições da primeira lei de
emergência e voltamos a ter um concurso de leis e pergunta-se qual das leis aplicar
então? De acordo com o artigo 2º/3 temos de aplicar sempre a primeira lei no domínio
da qual foi praticado o facto ou podemos aplicar a segunda lei de emergência que é mais
favorável ao agente? Aqui para resolvermos isto, temos que ser capazes de determinar,
avaliar o que mudou de uma lei para a outra. Mudaram as circunstancias de facto?
Melhoraram? Justifica-se um tratamento penal mais brando? Então continua a aplicar-
se a primeira lei, mais grave, se o que mudou foram as circunstancias objetivas, no fundo
é dizer se o legislador voltasse a estar perante as circunstancias da primeira lei, voltava
a adotar a lei 1, se for uma mudança das circunstancias objetivas, continua a aplicar-se
a lei mais grave que vigorava no momento da prática do facto. Mas pode ter mudado a
conceção do legislador, pode vir a reconhecer que as disposições penais que tinha
adotado na primeira lei eram demasiado graves e pode ter mudado as penas para mais
suaves por entender que não se justificava uma punição tão severa, quer dizer que
mantém-se as mesmas circunstancias de facto, o que mudou foi a conceção do
legislador e assim sendo, não existe nenhuma razão para não aplicar esta segunda
conceção porque é a ultima e a melhor. Aqui seria uma aplicação do artigo 2º nº2 e 4 e
o nº3 não é obstáculo a esta solução dado que só diz um facto continua a ser punível
praticado durante esse período, mas não diz qual a lei, apenas diz que tem de continuar
a ser punível.

10º Capítulo – O âmbito de validade espacial da lei penal


portuguesa (aplicação da lei no espaço)

1. Crítica da designação tradicional ("direito penal internacional")


Já falamos entre a oposição entre “direito penal internacional” e “direito
internacional penal”. Vimos que o direito penal é um ramo do direito interno, mas existe
de facto o direito internacional penal que disciplina os crimes contra o direito
internacional. Nesta distinção tradicional, o direito penal internacional referir-se-ia a um
conjunto de normas que disciplinam os pressupostos da chamada aplicação da lei penal
no espaço, seria o conjunto das normas de direito interno que disciplinam o âmbito de
aplicação das normas materiais. Já o direito internacional penal seria o ramo do direito
internacional público que regula, proíbe e pune os crimes mais graves contra o direito

Daniela Costa Amaral


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internacional (escravatura, crimes de guerra, genocídio, etc.). Na primeira usa-se a
solução das normas e o segundo recorre à fonte e à matéria.
2. O problema e a doutrina da jurisdição
As condições de aplicação das normas internas não tem de cometer elementos
da externidade para termos de recorrer a certas normas que organizam a aplicação das
normas materiais internas e é por isso que o direito anglo americano utiliza o conceito
de jurisdição. Quando temos vários estados no mundo, o poder de punir
necessariamente tem de ter regras de distribuição, a jurisdição é sempre um problema
que existe porque existem vários estados e é um problema plural.
A jurisdição é definida primariamente pelo direito internacional público e tem 3
formas básicas:
o Jurisdição prescritiva: é o poder de evitar as normas penais e de dizer em que
casos elas são aplicadas, prescrever certos comportamentos e de desenhar quais
são os casos em que são aplicadas, por exemplo, se forem condutas praticadas
em território português, condutas praticadas por nacionais portugueses no
estrangeiro, etc., é o desenho do sistema penal português;
o Jurisdição judicativa: é o poder do estado de aplicar as normas que já desenhou
a certos casos concretos;
o Jurisdição executiva: poder de executar as decisões tomadas no momento
judicativo.
A nós interessa-nos, quando falamos na aplicação da lei no espaço, a jurisdição
prescritiva, o que temos nos artigos 4º e ss. Do CP são precisamente as condições que
os factos tem de reunir para que lhes seja aplicável a lei portuguesa.
É claro que a jurisdição é sempre um quadro de possibilidades aberto pelo direito
internacional, onde os estados que podem exercer a sua jurisdição dentro deste quadro
de possibilidades, mas nenhum está obrigado a legislar sobre todas essas possibilidades,
podem escolher quais são as conexões que querem adotar para a aplicação da sua lei
penal. O que não podem é extravasar esse quadro, aí estão a cometer um ilícito
internacional. O direito internacional exige que o estado tenha uma conexão
significativa com os factos para poder aplicar a sua lei.
Uma nota característica do direito penal e que é muito diferente do direito civil,
é a coincidência entre o âmbito do sistema normativo penal e o âmbito da jurisdição
judicativa: sempre que um facto preenche os requisitos de aplicabilidade das normas
portuguesas, ele é da competência dos tribunais portugueses, existe aqui uma
coincidência, os tribunais portuguesas julgam todos os factos que cabem dentro das
regras de aplicação da lei penal portuguesa, e em princípio julgam apenas esses factos.
Portanto existe uma coincidência de principio, entre o âmbito de aplicabilidade da lei e
o âmbito da competência dos tribunais, os tribunais julgam aqueles factos que são
proibidos pela lei portuguesa e só mesmo esses. Isto não é assim no direito civil, no
direito civil as regras de competência internacional dos tribunais não tem nada haver
com o âmbito de aplicação da lei civil nacional. Há aqui uma diferença entre o
ordenamento penal e os outros ramos do direito e é esta sobreposição quase perfeita

Daniela Costa Amaral


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entre o âmbito de competência dos tribunais e o âmbito de aplicabilidade das leis
penais.
3. As regras de aplicabilidade: factos territoriais, factos extraterritoriais e a
determinação do locus delicti.
Primeira distinção que temos de fazer é ente factos territoriais e factos não
territoriais: porque esta distinção vai nos levar para dois regimes completamente
diferentes, que é o dos factos praticados em território nacional (artigo 4º) e dos factos
praticados no estrangeiro (artigo 5º). Para fazermos esta distinção temos que olhar ao
artigo 7º do CP, este é o artigo que disciplina a determinação do lugar da prática do
facto.
O artigo 7º tem vários critérios para determinar o lugar da prática do facto, mas
a função destes critérios é procurar conectar na sua maior abrangência possível cada
facto com o território português, por isso isto se chama uma solução de pluri localização.
Quando falamos na aplicação da lei no tempo vimos que a lei opta apenas por um
critério que é a ação ou omissão – artigo 3º. Agora no artigo 7º para determinar o lugar
são relevantes uma série de lugares diferentes – onde o agente atuou, onde omitiu,
onde o agente representou que o resultado se havia de produzir, etc.
Qual a consequência disto? É que basta que um destes lugares seja o território
português, para que a lei portuguesa seja competente. Uma outra finalidade desta
solução é evitar os chamados conflitos negativos de competência, imaginemos que em
Valença do Minho alguém dispara um tiro contra um espanhol que estava do outro lado
do rio e mata-o, a questão que se põe é a seguinte: se Portugal considerasse como único
critério do lugar da prática do facto o lugar onde se produziu o resultado e se a Espanha
considerasse como lugar da prática do facto, o lugar da ação, nenhum dos países seria
competente para conhecer deste crime e isto seria um conflito negativo. E a solução
plurilocalizada pretende evitar isso mesmo, porque aumenta as possibilidades de cada
estado poder aplicar a sua lei em função do território.
Os critérios previstos na lei nacional, a ação omissão, lugar de ocorrência do
resultado, foram ampliados na revisão do código penal de 1998, em dois casos:
1º- o resultado não compreendido no tipo de crime – há certos crimes onde o
legislador antecipa a tutela penal, deixa um certo resultado de fora do tipo legal,
o tipo consuma-se mesmo sem a produção desse resultado, é irrelevante para a
consumação, por exemplo: no artigo 325º onde se diz que o resultado não
compreendido neste tipo de crime é a efetiva alteração, destruição, etc. é um
resultado que está fora do tipo legal mas é em função desse resultado que o tipo
legal é construído. Isto significa que de acordo com a nova redação de 1998 do
artigo 7º se for em Portugal que ocorrer o resultado não compreendido no tipo
de crime, então a lei portuguesa também é competente em virtude da regra da
territorialidade.
2º- O nº2 do artigo 7º aqui já não é resultados que não pertencem ao tipo de crime,
mas sim do tipo legal de crime, por exemplo o homicídio, e basta que o agente
projete a ocorrência de resultado em Portugal, mesmo que ele não venha a

Daniela Costa Amaral


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verificar-se e por isso é que é uma tentativa, esse facto é da competência da lei
portuguesa. Um exemplo: uma senhora em França envia para Portugal um
pacote armadilhado para matar outra pessoa que está em Portugal, mas a
bomba é descoberto pelos correios e a carta não chega a ser entregue nem a
pessoa chega a ser morta, esta senhora atuou em frança, mas projetou o
resultado típico (a morte) para que ele ocorresse em Portugal e neste caso de
acordo com o artigo 7º/2 a lei portuguesa também é aplicável neste caso.
O artigo 7º procura ampliar o mais possível os vários critérios de localização do
facto para permitir a sua inserção na regra da territorialidade. Os dois últimos casos que
podem ser problemáticos do ponto de vista da determinação do crime, são em primeiro
lugar o da comparticipação, o artigo 7º diz que a lei portuguesa é competente para julgar
qualquer comparticipante. Esta norma não tem uma interpretação pacífica mas parece
que a lei portuguesa será competente para julgar um cúmplice que atuou em Portugal
quando o facto principal foi praticado por um estrangeiro num outro país, mesmo que
a lei portuguesa não tenha competência para julgar o facto principal.

Delitos itinerantes ou delitos de transito

São aqueles crimes onde o contacto com o território nacional é fugaz e não
implica uma atuação do agente, um exemplo é o caso em que uma encomenda de um
pacote de droga vem de um país da américa central, Colômbia, atravessa Portugal para
ir para a holanda, a questão que se põe é saber se nestes casos o facto se considera
praticado em território nacional de acordo com o artigo 7º ou artigo 4º, será que este
contacto com o território nacional é suficiente? Não há aqui uma regra geral para todos
os casos, neste caso em especifico a lei portuguesa tem competência, basta que a droga
esteja em território nacional, o perigo que a droga implica tem um contacto com a
comunidade nacional, portanto trata-se de um facto praticado também em território
português.
Mas já suscitam-se dúvidas quando o contacto com o território nacional não
implica qualquer perigosidade daquele específico tipo de crime, imaginemos que um
cidadão português envia para Bruxelas por correio físico, uma série de documentos para
se candidatar a um subsídio comunitário, esses documentos são falsos e comete um
crime de fraude na obtenção de subsídios, será que o facto dos documentos passarem
por território espanhol e francês torna essas leis competentes em função do território?
Não, porque a perigosidade dos documentos não se reflete minimamente no contacto
com o território nacional.
4. A aplicação incondicionada:
1ª Regra da Territorialidade
Quando se trata de factos praticados em território português ou que podemos
conectar de acordo com as situações previstas no artigo 7º, a lei portuguesa aplica-se
seja qual for a nacionalidade do agente ou da vítima, por isso é que se fala de uma
aplicação incondicionada da lei nesses casos. É importante lembrar que quando se trata

Daniela Costa Amaral


63
de factos praticados em Portugal não é relevante a nacionalidade nem da vítima nem
dos interesses protegidos. Dr. Figueiredo Dias dá o exemplo daquele que viola uma
obrigação de alimentos, cometendo o crime do artigo 250º, de um beneficiário que tem
nacionalidade estrangeira e reside lá, nesse caso se houver violação dessa obrigação
continua a aplicar-se o artigo 250º porque a omissão começa aqui em Portugal.
Há certas normas que são normas espacialmente autolimitadas, são normas que
implicam por natureza a sua prática em território nacional e nesse caso esses factos só
são puníveis se forem praticados em território nacional. Olhando para o artigo 352º CP
– a invasão é um crime contra justiça e a autoridade pública portuguesa, portanto nestes
casos a norma é territorialmente limitada, Portugal não tem prisões no estrangeiro,
portanto este crime de invasão só se aplica as invasões que se aplicam nas prisões
portuguesas, o mesmo acontece ao crime do artigo 320º e 321º - aqui a norma
autodelimita a sua aplicação no espaço e isto leva à necessidade de interpretar
corretivamente o artigo 5º/1 al. a) quando fala dos crimes contra os interesses
nacionais.
Repare-se que o artigo 4º começa por ressalvar tratado ou convenção
internacional em contrário, quer dizer que o estado português pode em tratado ou
convenção internacional obrigar-se a não aplicar a lei portuguesa a factos praticados em
território nacional.

Nota: território português é o que está definido como tal na constituição, parcela de
território continental entre o Atlântico e a Espanha, 12 milhas, espaço aéreo, etc.

2º Regra do Pavilhão – artigo 4º/b)

Trata-se de navios ou aeronaves registados em Portugal, que são equivalentes a


um espaço nacional e considera-se que a aqui a lei nacional também é aplicável sem
qualquer condição, esta norma está pensada para aqueles casos em que os navios e as
aeronaves estão em espaço não subordinado a outro pais. Em certas situações isto pode
levar a conflitos positivos de competência, porque pode acontecer que o navio ou
aeronave esteja num espaço territorial de outro país, por exemplo um avião que
sobrevoa um espaço aéreo de outro país, nesse caso temos um conflito positivo de
competências, isto é, temos duas ordens jurídicas que se consideram aplicadas.
No direito penal não existe uma instancia que determine qual é a ordem jurídica
aplicável, existe sim são duas ordens jurídicas que soberana e concorrentemente podem
aplicar a sua lei ao caso. É normal que haja conflitos positivos de competência, dois
estados serem competentes para tratar do mesmo facto, desde que isso seja feito
dentro do respeito pelo direito internacional.

3º Regra da Proteção dos interesses fundamentais do Estado Português

Alínea a) do artigo 5º/1, o que há de comum entre todos estes crimes? Qual é a
razão de ser da aplicação da lei portuguesa a factos praticados fora do território
português quando se trate destes crimes? Entende-se que todos estes crimes atentam

Daniela Costa Amaral


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contra interesses iminentemente nacionais e portanto constitui obrigação do estado
português reprimir estes crimes onde quer que sejam praticados, seja qual for a
nacionalidade do agente, independente do agente ser ou não encontrado em Portugal,
por isso falamos numa aplicação incondicionada da lei portuguesa, ela é em quase tudo
semelhante à regra da territorialidade, não está subordinada a mais nenhuma condição,
são no fundo os crimes de traição á pátria, falsificação de moeda, são crimes que se não
forem puníveis pelo estado português dificilmente serão puníveis pelo estado onde foi
praticado. O estado português aqui em relação a estes crimes contra interesses
iminentemente nacionais aplica a sua lei, independentemente da nacionalidade do
agente, sejam praticados no estrangeiro e de ele ser encontrado ou não em Portugal.
É conforme com o direito internacional que um exerça desta maneira a sua jurisdição
sobre factos que estão sujeitos à soberania de um outro estado?
A resposta é tendencialmente positiva desde que se trate de factos que atentam
contra interesses muito importantes do estado em causa, encara-se isto como uma
defesa do próprio estado e portanto ainda é conforme com o direito internacional que
se estenda a jurisdição de cada estado incondicionalmente a factos praticados no
estrangeiro nestes casos. O que já não é possível é estender esta forma de aplicação da
lei a factos que já não tem nada que ver com os interesses fundamentais do estado
português, por exemplo crimes de furto ou homicídio. Desde que o estado se autolimite
também na sua forma de jurisdição isto ainda será conforme com o direito internacional.
5. A aplicação condicionada:
Casos em que a lei encontra certas conexões que importam para a aplicação das
normas materiais, mas que sujeitam ainda algumas condições, todas elas dizem respeito
a factos praticados no estrangeiro e estão descriminadas no artigo 5º do CP.
a) Regra da nacionalidade – art. 5º/1/e)
A lei portuguesa é aplicada no estrangeiro por português ou por estrangeiros
contra portuguesas (nacionalidade ativa e nacionalidade passiva). Importante distingui-
las porque embora elas tenham um regime comum, tem um fundamento muito
diferente.

Nacionalidade ativa – factos praticados por portugueses no estrangeiro

Esta era a regra base do direito feudal, nesta altura não havia um direito
territorial, o direito aplicava-se aos vassalos, súbditos daquele senhor feudal, portanto
o laço que justificava a conexão da lei era um laço pessoal, o vassalo respondia perante
o seu senhor independentemente do lugar onde praticasse o facto.
Depois com as revoluções liberais destrui-se esses laços de vassalagem e passou
a territorialidade a assumir a forma básica de conexão da lei, até por causa da nascente
soberania, a territorialidade era a expressão mais óbvia da soberania.
Esta regra da nacionalidade ou personalidade vem a ser ressuscitada pelo código
penal alemão no fim da década de 30 do século XX, isto tinha uma função ideológica

Daniela Costa Amaral


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óbvia, a ideia era que o direito alemão é feito para os alemães portanto estes estão
subordinados às regras e ao direito alemão, a regra era aplicar em função da
nacionalidade alemã e não em função do território, o que também correspondia a uma
certa visão imperialista do próprio projeto político nacional socialista, não importava se
o facto era praticado num outro país, o que importava era a nacionalidade do agente.
Com a derrota do nacional socialismo, o código penal alemão voltou á regra da
territorialidade, que é a regra base na generalidade dos países.
Isto é um pouco as tensões entre o sistema de aplicação territorial e nacional,
hoje essa tensão desapareceu e por isso mesmo a regra da nacionalidade surge com
uma função complementar da regra da territorialidade.

Qual é o seu fundamento?

Há aqui várias construções possíveis, uma construção um pouco mais antiga que
encontra nessa ideia do código nacional socialista é a da fidelidade do cidadão ao seu
direito. Depois uma segunda perspetiva diz-se: a regra da nacionalidade é uma
compensação pela não extradição de nacionais, como Portugal não extradita os seus
nacionais, tem de administrar a justiça sob pena de entrar em grave incumprimento com
os outros países, porque se um cidadão português comete um crime no estrangeiro e
Portugal não o pode extraditar para o estrangeiro porque a sua constituição não lhe
permite, se o deixa impune isso é uma violação do dever de respeito e cooperação para
com os países onde o cidadão tenha praticado o crime.
Portanto regra da nacionalidade ativa nesta perspetiva compensa a proibição de
extradição de nacionais. Dr. Caeiro diria que há algo de verdade nesta perspetiva, até
porque certos países que não tem a regra da nacionalidade são países que extraditam
os seus nacionais (ex: Reino Unido), só conhecem factos praticados no território da sua
jurisdição, mas a verdade é que esta explicação não é totalmente satisfatória porque se
o fundamento desta regra da nacionalidade fosse não permitir que o estado estrangeiro
saia defraudado do nosso esquema legal, não possa haver um agente julgado e punido,
se fosse só em virtude da cooperação internacional que existiria esta regra, então para
isso teríamos não a regra da nacionalidade mas uma regra da administração supletiva
da justiça penal mais ampla. Que é uma regra que diz o seguinte, se um estado pede a
extradição de uma pessoa a outro estado e este nega, então julga essa pessoa, ou
entregas ou julgas, se o problema fosse esse então a regra da nacionalidade também
não era necessária.
Do ponto de vista do Dr. Caeiro a regra da nacionalidade tem um fundamento
diferente, não é só uma questão de compensar a não extradição de nacionais, o que se
passa é que os crimes praticados por cidadãos nacionais no estrangeiro também provoca
alarme na comunidade nacional e portanto o estado português tem também uma
responsabilidade de administrar a justiça nesses casos, mesmo que os bens jurídicos
atingidos sejam bens jurídicos estrangeiros. Esse é do ponto do vista do professor o
fundamento atual da regra da nacionalidade.

Daniela Costa Amaral


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Quem se considera nacional?
(para a nacionalidade ativa e passiva)

É nacional todo o cidadão que se considera português de acordo com a regra da


nacionalidade, seja um português nato ou naturalizado, no momento da prática do
facto, momento em que o crime foi cometido.

Nacionalidade Passiva – factos praticados por estrangeiros contra portugueses

Nestes casos a conformidade com o direito internacional já é mais discutível, há


muitos países que rejeitam por completo esta ideia de proteção de nacionais no
estrangeiro, nos EUA tem a longa tradição de contestação da aplicação destas normas.
Mas o que está aqui em causa já não é tanto a responsabilidade do estado português de
administrar a justiça penal como forma de contrariar o alarme causado pela comunidade
portuguesa, o que está aqui em causa é uma proteção de bens jurídicos nacionais
independentemente do lugar onde ficam sacrificados.
É uma derivação da regra da proteção dos interesses nacionais que vimos na
alínea a), já não são interesses do estado, mas sim de cidadãos, portanto nesse sentido
são ainda bens jurídicos nacionais. Essa é a grande diferença do fundamento da
nacionalidade ativa e passiva.

Ambas as dimensões do princípio da nacionalidade estão sujeitas ao mesmo


regime descriminado na alínea e) do artigo 5º/1:
1º- Agente seja encontrado em Portugal: condição de jurisdição judicativa do
estado, é uma circunstancia que condiciona a atuação do aparelho judiciário
português. Porque se exige esta condição? Porque é uma forma de
contrabalançar o principio da legalidade processual, que diz que todos os crimes
chegam ao conhecimento do MP tem de ser investigados, este opõe-se ao
principio da oportunidade em que o MP pode selecionar. Esta dimensão é um
limite a este principio da legalidade processual, é dizer que os tribunais
portugueses não vão investigar casos praticados no estrangeiro se o agente não
se encontrar em Portugal, visa limitar o dever que o MP tem; Estado português
não pode pedir extradição do agente e dar esta condição como preenchida.
→ Agente não possa ser extraditado ou entregue em virtude de um
mandado de detenção europeu: aqui a lei portuguesa diz, se o agente for
encontrado em Portugal mas houver um pedido de entrega por parte do
estado onde o crime foi cometido é preferível extradita-lo ou entrega-lo
do que julga-lo em Portugal, porque em principio o foro que pede a
extradição desta pessoa deve estar mais bem preparado para julgar este
agente, existe uma ideia de subsidiariedade da lei portuguesa em relação
ao estrangeiro;
Isto acontece em relação aos agentes nacionais portugueses que em principio
não podem ser extraditados, embora hoje o regime já seja mais flexível, já admite a

Daniela Costa Amaral


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extradição de cidadãos portugueses quando haja condições de reciprocidade com o país
que pede a extradição, e só em relação aos crimes de terrorismo ou criminalidade
internacional organizada.
Portugal pode ainda entregar os seus nacionais dentro da união europeia –
mandado de detenção europeu que vem substituir a extradição dentro da UE e a CRP
abriu uma exceção para o mandado de detenção europeu permitindo que para estados
membros Portugal deve entregar cidadãos que sejam procurados por outros países,
única especialidade aqui é que só pode ser uma extradição para julgamento, não pode
ser para cumprir pena, e se a pessoa for condenada, deve ser devolvido a Portugal para
que a pena seja cumprida nas prisões portuguesas.
Esta é uma das situações em que o agente não pode ser extraditado, outras
situações são as penas aplicáveis em princípio, o estado português não extradita pessoas
a quem possa ser aplicada pena de morte a não ser que haja garantias de não aplicação
dessa pena e também em casos de prisão perpétua, o estado português só pode
extraditar para o país que aplica prisão perpétua a esse crime se esse país der garantias
que não aplicará essa pena naquele caso. De novo, há uma exceção em relação à UE,
porque quase todos os países tem prisão perpétua à exceção de Portugal e Espanha. No
âmbito da UE no mandato de detenção europeu pode acontecer que um cidadão seja
pedido a sua entrega para ser julgado por um determinado crime e nesses casos mesmo
que a prisão perpétua seja aplicável o estado português tem o dever de entregar essa
pessoa desde que a pena de prisão perpétua não seja fixa e absolutamente inderrogável,
tem de estar garantida uma revisão da pena ou que a pessoa possa beneficiar de certas
medidas, mas de toda a maneira não é uma proibição absoluta, em principio o estado
português deve entregar essa pessoa ao estado membro que pede a sua entrega. Uma
ultima situação em que a pessoa não possa ser extraditada, é simplesmente quando
nenhum estado pede a sua extradição, simplesmente se a extradição não é oficiosa, é
sempre a pedido de um estado estrangeiro e se não o fizer a pessoa não pode ser
extraditada. Em todos estes casos a extradição não é possível e assim sendo pode-se
aplicar a lei portuguesa.
2º- Regra da dupla incriminação – que está na alínea e), alínea ii, esta regra significa
que para que o agente seja punível à luz da lei portuguesa, é necessário que o
facto seja também punível pela lei do lugar onde foi praticado, quando dizemos
punível temos de interpretá-la num sentido de constituir um tipo de ilícito na lei
do lugar onde foi praticado. E porque isto é assim? Essencialmente porque isto
é uma expressão do principio da não ingerência, em principio um estado não
pode intrometer-se na regulamentação da vida feita por um outro estado numa
outra sociedade e portanto o estado português não pode punir alguém por um
facto que no lugar onde foi praticado não é crime. Vamos supor que temos um
médico português a trabalhar na Suíça ou na Holanda e faz parte do seu trabalho
a assistência em processos de eutanásia que é permitida nesses países, o estado
português não pode aplicar a sua lei penal e punir este agente (porque ele é
português) em virtude de um facto que no lugar onde ele é praticado não
constitui crime, isso seria uma intromissão inadmissível em relação ao estado

Daniela Costa Amaral


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estrangeiro. Naturalmente esta regra não tem aplicação quando no lugar onde
foi praticado o facto não se exercer poder punitivo, aí não existe nenhum estado
estrangeiro para respeitar, se o facto foi praticado em alto mar ou lugar onde
não se exercer poder punitivo, esta regra deixa de ter sentido.

Onde se diz “constituir em crime que admita extradição” isto significa que
há certos crimes por sua natureza não admitem extradição, quais são?
De acordo com a lei portuguesa são os crimes políticos ou crimes conexos a
crimes políticos e os crimes puramente militares (aqueles que só violam a lei militar, mas
não a lei comum, por exemplo, o crime de abandono de sentinela), aqui só há uma
exceção que é os casos em que Portugal tem um tratado ou uma convenção com esse
país onde se compromete a dar ajuda mútua relativamente aos assuntos militares. Por
outro lado, crimes políticos ou infrações conexas a eles, esta é uma das regras mais
antigas do direito da extradição - a proteção dos criminosos políticos por se entender
que o que se quer é proteger a pessoa de uma perseguição politica, alguém pratica um
crime objetivamente e subjetivamente politico, um crime praticado com um fundo
politico e que na sua materialidade também tem uma expressão politica e muitas vezes
esses crimes são perseguidos em virtude de discriminação politica proibida, a ideia é
proteger esses agentes relativamente a perseguições discriminatórias. No caso dos
militares, é que um estado não tem de proteger uma parede militar de um outro estado,
são coisas estritamente nacionais. No passado ainda havia uma 3ª categoria de crimes
que não admitiam extradição que eram os crimes fiscais também um pouco com a ideia
de que atentam a uma organização fiscal de cada estado, um assunto interno. Hoje não
é assim, os crimes fiscais são fundamento da extradição.
Diferenças entre a extradição, entrega no mandado de detenção europeu, entrega aos
tribunais penais internacionais, etc. -> a extradição é um procedimento tradicional de
cooperação entre os estados, trata-se de uma situação em que o estado procura uma
determinada pessoa, para a julgar ou executar uma pena que já foi aplicada, essa pessoa
está fugida num outro estado, portanto existe um pedido de extradição para que ela
seja entregue ao estado que tem a pretensão de aplicar ou de executar uma pena sobre
esse indivíduo. O mandato de detenção europeu tem como finalidade o mesmo que a
extradição, mas os estados entenderam que não se justificava aqueles processos
complexos da extradição atendendo à confiança entre os estados da mesma união. Os
procedimentos de entrega aos tribunais internacionais, é necessária a cooperação dos
estados para que lhe sejam entregues as pessoas procuradas para efeitos de
julgamento, esses procedimento de entrega estão descritos no estatuto de Roma no TPI
e os estados desses estatutos estão vinculados ao TPI.
b) A “nacionalidade dupla”
Já vimos a regra da nacionalidade ativa, a regra da nacionalidade passiva, os
respetivos fundamentos e em ligação com esta regra temos aquela que se encontra na

Daniela Costa Amaral


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alínea b) do artigo 5º/1. Podemos chamar a esta a regra da nacionalidade dupla porque
exige que tanto a vitima como o agente sejam de nacionalidade portuguesa.
Será que esta alínea é necessária? Já vimos que a lei portuguesa se aplica tanto em
função da nacionalidade do agente como em função da nacionalidade da vitima,
porque temos uma alínea especifica sobre os casos em que tanto o agente como a
vitima são portugueses, faz sentido?
Na realidade não, de acordo com o entendimento do legislador, dispensa-se
parte dos requisitos a que estão sujeitas a regra da nacionalidade ativa e da
nacionalidade passiva em particular a regra da dupla incriminação, portanto a finalidade
principal desta regra é isentar estes casos da exigência de que o facto também seja
punível pela lei do lugar em que foi praticado e o pensamento do legislador é que no
fundo trata-se de casos em que todos os interesses em presença são nacionais, trata-se
de um agente que vive habitualmente em Portugal, reparem que é uma exigência que
não existe para a nacionalidade ativa, mas aqui na alínea b) exige-se precisamente para
garantir que é uma pessoa que está dentro das valorações da lei portuguesa, a vitima
também é portuguesa, portanto no entendimento do legislador todos os interesses em
presença são portugueses logo podemos tratar isto quase como se fosse um crime
praticado em território nacional, podemos dispensar o resto das exigências.
O objetivo desta regra especial foi evitar que os cidadãos nacionais praticassem
uma espécie de fraude à lei, que fossem ao estrangeiro praticar crimes em lugares onde
os factos não seriam puníveis e assim defraudassem a aplicação da lei nacional.

Exemplo: o agente que se encontrava em lua de mel com a mulher casados de fresco
num país que admite o sequestro ou até a punição física do marido em relação à mulher
e praticava esses factos nesse país, o legislador português entendeu que esses factos
praticados entre portugueses mesmo não puníveis pela lei do lugar deveriam ser
perseguidos pela lei nacional.

Esta regra da competência é uma regra muito duvidosa do ponto de vista da sua
conformidade com o direito internacional, porque o instituto da fraude à lei, se existe
no direito civil, é dificilmente pensável no direito penal, porque no direito penal cada
estado rege livremente as condutas praticadas no seu território, portanto o principio é
o da liberdade, se uma conduta não é proibida em determinado lugar, em principio este
estado tem a prerrogativa de garantir que a pessoa não é punível por um outro estado,
salvo naqueles casos excecionais que vimos. Cada estado tem a prerrogativa de garantir
a liberdade das pessoas que se encontram no seu território contra a ingerência de outros
estados que procurem punir esses crimes e portanto do ponto de vista do direito
internacional, considerar esses casos como sujeitos à lei portuguesa, punir agentes que
atuam de forma ilícita perante a lei do lugar é muito duvidoso porque provavelmente
existe aqui uma ingerência na lei no estado do lugar da prática do facto. Outro exemplo
atual será o da mulher que ajuda o marido a suicidar-se (marido tem uma doença
terminal) vão para outro país onde o suicídio não é punível, de acordo com a lei

Daniela Costa Amaral


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portuguesa haveria aqui um crime, estaríamos perante um crime porque se trata de
agente e vitimas portuguesas mesmo que no lugar onde foi praticado não fosse punível.
c) A sede das pessoas jurídicas
Uma outra conexão relacionada com a nacionalidade é a que está na alínea g) do
artigo 5º/1. O que está aqui em causa é a responsabilidade das pessoas jurídicas,
veremos que as pessoas jurídicas são sujeitos de responsabilidade criminal na lei
portuguesa, as pessoas jurídicas podem cometer certos crimes desde que a lei o indique
e essas pessoas jurídicas precisamente porque podem ser sujeitos de responsabilidade
criminal, a lei encontrou esta conexão da sede que no fundo é um equivalente para a
pessoa jurídica tanto na nacionalidade ativa, como na passiva, é uma réplica das
conexões da nacionalidade para as pessoas humanas.
d) A Universalidade
Está prevista essencialmente na alínea c) e d) do nº1 do artigo 5º. A ideia aqui é
a seguinte, existem certos bens jurídicos de toda a humanidade, não dependem da
existência de uma lei nacional que proíba os factos que os ofendem, são essencialmente
aqueles 4 grupos de crime: genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra,
agressão, escravatura, etc., nesses casos não é necessário uma lei nacional que incrimine
esses factos, o próprio direito internacional impõe a cada um de nós diretamente
deveres de não praticar estes factos, cada um de nós responde contra o direito
internacional penal, existe aqui uma responsabilidade imediata pela prática destes
factos, mesmo que a sua lei não puna esses factos.
Se estes bens jurídicos carecem de uma proteção universal, também se
compreende que os estados são os primeiros agentes da proteção destes bens jurídicos,
para esse efeito é necessário que os estados tenham esta jurisdição universal, que
possam criar uma lei interna própria para garantir a proteção destes bens jurídicos, mas
na ausência desta lei as normas do direito internacional continuam a aplicar-se.
Na alínea c) e d) estão indicados os artigos que constituem os crimes sujeitos à
jurisdição universal, para além disso temos de entrar em linha de conta com a Lei
31/2004 onde também existe uma norma de jurisdição universal, mas em principio são
crimes que se dirigem contra bens coletivos da humanidade, bens jurídicos universais.
Grande parte dos crimes que estão previstos aqui dentro das alíneas c) e d)
verdadeiramente não constituem crimes contra o direito internacional e portanto mais
uma vez, sujeitar estes crimes à jurisdição universal pode ser um abuso de jurisdição por
parte do estado português, isto também acontece com os outros estados.
Na alínea c) prevê-se para a aplicação da jurisdição universal, prevê-se que o
agente tenha de ser encontrado em Portugal e não possa ser extraditado ou entregue,
portanto algo de semelhante àquilo que já vimos no que toca ao principio da
nacionalidade. Porque aqui se exige que o agente seja encontrado em Portugal? Porque
os estados tem a obrigação de administrar a justiça penal internacional, mas não de
andar a procura das pessoas, portanto aqui a presença do agente no território, ativa a
jurisdição do estado, se o agente está presente no território nacional, deve o estado

Daniela Costa Amaral


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julgá-lo, mas o estado não tem propriamente a obrigação de andar à procura dos
criminosos internacionais, só em relação àqueles que se encontram no seu território.
Portanto este dever de perseguir os crimes contra o direito internacional cabe
ao estado do território onde eles foram praticados, cabe ao estado da nacionalidade do
agente e ainda ao estado onde esse agente é encontrado (estado da custódia).
Nesta matéria vale redobradamente o principio de que o estado pode cumprir o
seu dever para com o direito internacional julgando a pessoa ou cumpre igualmente se
extraditar essa pessoa a pedido do estado onde os factos foram cometidos ou da
nacionalidade do agente, aqui os estados podem optar.
A alínea d) é uma análoga de várias conexões, nestes casos é muito duvidoso que
o direito internacional permita ao estado português julgar um suspeito de factos
praticados de ofensas corporais a um menor que resida em Portugal, só pelo facto de
este se tratar de um menor, é altamente duvidosa a compatibilidade desta alínea d) com
o direito internacional.

Nota: não esquecer que a nossa CRP, se for caso disso, no artigo 29º/2 permite a
aplicação direta de normas penais geradas pelo direito internacional comum.

e) A administração supletiva da justiça penal e a sua diferente natureza em face


das restantes (normas aplicadas como puras regras de valoração)
Ultima regra de aplicabilidade que a nossa lei especifica é a que está na alínea f)
do nº1 que se chama administração supletiva da justiça penal, o que interessa aqui
sobretudo é a 1ª parte da norma que nos diz qual é a conexão, estra regra tem uma
natureza bastante diferente, porque em todas as outras conexões, as normas que vão
ser aplicadas ao agente, foram normas que serviram de guia, de comportamento no
momento da prática do facto, nesta regra isto não acontece, trata-se de factos que não
tem qualquer conexão com o direito português, no momento em que o agente atuou,
não estava em Portugal, não era português, não praticou os factos contra portugueses,
o que justifica aqui a aplicabilidade da lei portuguesa nestes casos? Dr. Figueiredo Dias
defende que é para evitar que Portugal se torne num refúgio de criminosos, porque se
não existir uma regra destas, o que acontece? Pessoas que cometeram crimes muito
graves na Alemanha, às quais são aplicáveis penas de prisão perpétua, vem refugiar-se
em Portugal, este não pode extraditá-las e as pessoas ficam aqui, isto tornava-se num
refugio de criminosos. Dr. Caeiro não é muito adepto desta ideia, desde logo porque
pelo menos nos casos em que a extradição destas pessoas é pedida para julgamento,
ainda não estamos perante um criminoso, de facto o que há aqui é a cooperação
internacional na prevenção e repressão dos crimes, isso sim é uma obrigação do estado
português, e de facto se um estado estrangeiro procura uma pessoa para esclarecer a
sua responsabilidade e o estado português por causa do seu direito interno não pode
extraditar essa pessoa, tem de cooperar de alguma maneira com estado estrangeiro,
julgando esta pessoa aplicando a lei nacional.
Por isso se chama de supletiva, “em vez de”, ou justiça por representação. Esse
é o fundamento – a cooperação.

Daniela Costa Amaral


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Para que se atue esta alínea f) é necessário que a extradição seja requerida, ao
contrário do que acontece nas outras alíneas. Nestes casos a norma penal funciona
como pura regra de valoração.
Ultimo ponto da aplicação da lei no espaço é o nº2 do artigo 5º, vem lembrar que
se o estado português se obrigar internacionalmente a julgar determinados factos então
nesses casos a sua lei será aplicável em virtude da obrigação internacional assumida
nesse momento.
6. Condições gerais de aplicação da lei a factos extraterritoriais (art. 6.º)
ARTIGO 6º - contém várias condições relativamente à aplicação da lei portuguesa a
factos extraterritoriais portanto podemos tratar conjuntamente todos os casos que
cabem no artigo 5º, estão sujeitas as restrições do artigo 6º

1º condição (artigo 6º/1) – só se pode julgar o agente em Portugal quando praticou um


crime no estrangeiro se ele não foi julgado por esse crime, ou se tendo sido julgado se
escapou.

O principio que inspira esta norma é o principio ne bis in idem, que impede que
uma pessoa seja punida 2 vezes pelo mesmo facto. Há aqui várias questões que se
podem levantar a este propósito e a primeira é a seguinte:

• Distinção entre o ne bis in idem nacional e o internacional, isto não tem


haver com a fonte dos instrumentos que garantem o ne bis in idem, mas
sim com o seu âmbito de eficácia, porque? Há vários instrumentos
internacionais, por exemplo a convenção europeia dos direitos humanos,
que garantem o ne bis in idem, mas o garantido por estes instrumentos
embora sejam internacionais, é um ne bis in idem nacional, isto é, é uma
garantia que diz respeito apenas a cada país, não se entra em linha de
conta com a possibilidade de julgamento em dois países diferentes. O ne
bis in idem internacional é de facto garantido dentro do âmbito da união
europeia desde esta decisão Gozutok/ Brugge do Ac. TJUE 11-2-2003 que
veio dizer que dentro da UE um cidadão europeu não pode ser julgado 2x
pelo mesmo facto por tribunais de países membros, por exemplo, se
alguém foi julgado por um certo facto na Bélgica, essa pessoa não pode
ser julgada pelos mesmos factos na Alemanha ou na França, isto é uma
eficácia inter-jurisdicional do principio ne bis in idem, portanto temos que
distinguir as duas facetas, a faceta interna, mesmo quando é garantia por
instrumentos internacionais e a faceta internacional que já diz respeito a
decisões de dois países. No artigo 6º o que está em causa é esta dimensão
internacional, julgar o agente duas vezes. Portanto se o agente já foi
julgado no estrangeiro não pode voltar a ser em Portugal pelo artigo 6º/1.
Pode acontecer que o agente tenha sido julgado mas se tenha subtraído
total ou parcialmente à condenação e aqui volta a ser aplicável a lei
portuguesa, por exemplo, supondo que o agente foi julgado e condenado

Daniela Costa Amaral


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a uma pena de prisão, mas fugiu, nesses casos a lei portuguesa permite
que os tribunais portugueses julguem de novo este agente e aqui temos
de fazer uma segunda distinção.
• Distinção entre o ne bis in idem material e o processual. O processual
implica que o agente não possa sequer ser perseguido duas vezes pelo
mesmo facto (muito mais favorável para as pessoas), no nº1 temos é uma
perspetiva material, quer dizer que se o agente foi julgado e cumpriu
apenas parte da pena pode ser julgado outra vez, o que significa que não
está em causa uma segunda perseguição, mas sim uma segunda punição,
pode ser julgado e aí pode-lhe ser aplicada uma outra pena, só que temos
que depois relacionar o artigo 6º/1 com o artigo 82º do CP que permite
o chamado desconto. Na pena que lhe for aplicada no 2º julgamento é
descontado aquilo que ele já cumpriu em virtude do primeiro julgamento.

2º condição (artigo 6º nº2) – temos aqui um afloramento do chamado princípio do


tratamento mais favorável. Permite-se que o agente seja julgado embora nos tribunais
portugueses, sobre a lei do país em que praticou o facto sempre que esta seja mais
favorável, como sabemos isto? O tribunal tem de aplicar as duas leis ao facto
simuladamente e ver qual o resultado mais concretamente favorável ao agente.

Quando se aplica a lei estrangeira pode acontecer que a pena aplicável não seja
exatamente igual às penas que existem no direito português e aqui temos um problema
de ordem pública, porque o estado português não pode aplicar penas que não conhece
e portanto se aquela pena não tiver correspondência direta na lei portuguesa, tem de
ser convertida naquela que lhe seja mais próxima, portanto a execução segue nos
termos da lei portuguesa, se não houver nenhuma correspondência próxima, temos de
aplicar a pena que a lei portuguesa prevê o facto.
Ultima ressalva do artigo 6º é que este principio do tratamento mais favorável
não se aplica quando a competência da lei portuguesa se fundamento nas alíneas a) ou
b) do artigo 5º, portanto há aqui uma exceção ao principio do tratamento mais favorável
quando se trata de crimes contra os interesses nacionais, portanto a regra da defesa
contra os interesses nacionais ou quando se trata da regra da nacionalidade dupla, tanto
num caso como no outro não se aplica a lei mais favorável porque o raciocínio aqui é o
seguinte: remeter o tratamento do caso para a aplicação da lei mais favorável significaria
não haver punição porque a lei estrangeira não pune esses factos e isso entende-se que
a proteção dos interesses mais importantes do estado português não deve ser definida
pela lei estrangeira, mas sim pela nacional.
Raciocínio semelhante deve ser desenvolvido em relação à alínea d), pois se a
especificidade da alínea b) é desconsiderar totalmente a lei do lugar, é dizer
independentemente do que diz a lei do lugar, a lei portuguesa aplica-se a factos
praticados por portugueses contra portugueses, se a competência da lei portuguesa se
fundamenta dessa maneira não tem sentido depois remeter o tratamento de um caso
para a lei estrangeira mais favorável.

Daniela Costa Amaral


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11.º Capítulo - Questões fundamentais

Nota: ESTE CAPÍTULO NÃO SAI, mas era importante que lêssemos para compreender o
resto da matéria, embora não saiam perguntas diretas sobre esta matéria.

Vamos falar do facto punível e não do agente criminoso, e esta ressalva tem
razão de ser porque nem sempre se entendeu o direito penal como um direito penal do
facto, houve momentos na história em que o direito penal atendeu não tanto aos factos,
mas ao agente desses factos, ao criminoso e não ao crime. Na época das ordenações o
foco do direito penal centrava-se no agente e não no facto. Isto hoje não é assim.
Quando falamos na construção do facto punível já estamos a dar uma certa
orientação metodológica ao nosso estudo, é o estudo do crime. O conceito jurídico de
crime foi evoluindo ao longo do tempo, houve várias perspetivas que procuraram
traduzir o conceito jurídico de crime, isso deu origem aos vários elementos do crime.
Isto implica olhar para todos os crimes de todas as espécies e encontrar elementos
comuns, é um esforço de racionalização notável, e isso começou a ser feito com a escola
clássica, com grande influencia do positivismo, onde se procurou estudar o crime de
forma positiva, copiando as ciências exatas. Partiram do particular para o geral para
encontrar as categorias fundamentais do crime – método categorial classificatório – à
qual se subordinam todas as espécies das infrações criminais.

Perspetiva da Escola Clássica

Começou por ver o que é que


havia de comum em todos os crimes e
traçou-se nesse momento:

*pois na perspetiva que vamos adotar vamos ver que


não é uma característica essencial

AÇÃO – era vista como um elemento corpóreo que levava a uma modificação do mundo
exterior;
TÍPICA – tinha de ser englobada num tipo de crime, por seu lado essa ação tinha de ser
englobada num tipo de crime e para a escola clássica tratava-se apenas de uma lógica
formal, A matou B, existe um tipo de crime que diz quem matar outra pessoa, então essa
ação é típica;
ILÍCITA – tem de ser uma ação contrária ao direito, escola clássica via isto de uma
maneira muito pobre porque seriam ilícitas todas as ações típicas que não beneficiassem
de uma causa de justificação, a ação típica era uma ação contrária ao direito a não ser
que beneficiasse de uma causa de justificação;
CULPA – seria uma mera psicológica entre o agente e o facto, que se exprimia ou através
do dolo ou da negligencia;
PUNIBILIDADE – não tinha autonomia, só surge mais tarde portanto não iremos abordá-
la dentro da conceção da escola clássica.

Daniela Costa Amaral


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É desenhada numa forma piramidal para dar a entender que cada categoria são
em menor numero do que na categoria anterior, como: nem todas as ações são típicas,
nem todas as ações típicas são contrárias ao direito, etc. cada nova categoria vai
estreitando o conceito de crime.
A corrente que se seguiu ao positivismo, não deixou de fazer a crítica do
positivismo naturalista, vamos ver perspetivas sobre a construção do crime e todas elas
procuram superar a perspetiva anterior, não se trata de substituir uma visão pela outra,
mas sim de superar e progredir cientificamente.

Escola neoclássica ou normativista

Foi um movimento geral do direito, uma luta de vários setores da filosofia que
se manifestou contra a abordagem positivista ao direito. O que se criticava ao
positivismo? Desde logo os seus pressupostos metodológicos, o que o normativismo
veio dizer é que não se pode estudar o crime enquanto fenómeno humano como se
tratasse de um fenómeno físico, mecânico, causal, as ciências humanas tem os seus
próprios sentidos. As condutas humanas são guiadas por valores e por sentidos de ação.
Depois críticas mais específicas, por exemplo, diziam os normativistas e com
razão, que a forma de compreender o crime por parte do positivismo no que toca à
tipicidade e ilicitude do comportamento, são meras operações lógicas, não fazem uma
unidade de sentido para as condutas humanas, a categoria da ilicitude é muito pobre
porque consiste apenas de uma coisa objetiva que se reduz a saber se existe ou não uma
cláusula de justificação. O comportamento para ser valorado como ilícito teria que ter
um conteúdo material para isto, não podemos limitar-nos a refugiarmo-nos nos
conceitos formais de tipo e ilicitude.
Outro argumento é que o positivismo via a culpa como uma pura ligação
psicológica entre o agente e o facto, qual era essa ligação? Era a que se continha nas
fórmulas do dolo e da negligencia. Dizem os autores do normativismo que a culpa não é
só isso, há uma série de outros elementos que também conformam o juízo de culpa, por
exemplo a inimputabilidade, o inimputável (aquele que age sem culpa) também pode
agir com dolo ou negligencia, por outro lado há certos casos em que não é exigível ao
agente que pratique uma outra conduta (casos de exclusão da culpa), o agente atua com
dolo, mas não lhe era exigível que praticasse uma conduta diferente (que obedecesse à
lei), aqui temos mais uma elemento que não se reduz ao dolo e à negligencia, que é a
exigibilidade. E por ultimo dizem ainda os normativistas que há certos casos em que o
desconhecimento do ilícito, isto é, a circunstancia do agente não perceber que está a
atuar contra o direito também deve excluir a culpa. Em suma o conceito de culpa do
positivismo era muito estreito, muito orientado para as realidade psicológicas e incapaz
de oferecer um juízo material.
Normativismo propõe um sistema com outros pressupostos metodológicos do
reino da cultura, do sentido e não ao reino causal, embora depois o normativismo não
se desviava muito do positivismo num aspeto, adotava que o que estava na base do
crime seria a ação vista como uma modificação do mundo exterior, nesse aspeto era

Daniela Costa Amaral


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semelhante embora, alguns autores normativistas já proponham outro conceito de
ação, como por exemplo, o Dr. Eduardo Correia defendia que a ação relevante é a
negação de valores, um crime é uma negação de valores, embora nem todas as negações
de valores sejam criminosas.
Já em relação ao tipo, o normativismo proponha algo completamente diferente,
seria uma unidade de sentido socialmente danoso, o normativismo trazia a ideia de
danosidade social, o tipo era a representação de uma perda para o sistema social e na
verdade tinha um sentido desvalioso. No positivismo não havia espaço para valorações.
Quanto à categoria da ilicitude diz que esta embora seja uma categoria
essencialmente objetiva, também tem por vezes elementos subjetivos que concorrem
para a caracterização do próprio ilícito, por exemplo, no furto no plano objetivo a ação
consiste na subtração de uma coisa móvel alheia, mas nem toda a substração da coisa
móvel alheia integra o tipo de ilícito do furto, porque só é ilícita se for feita com uma
ilegítima intenção de apropriação, esta intenção é ainda um elemento que caracteriza a
ilicitude do facto, portanto o normativismo defendia que em certos casos a ilicitude
podia comportar certos elementos subjetivos.
Por ultimo, a modificação do conceito de culpa, este é mais do que o dolo e
negligencia, é um juízo de censura ao agente por ter praticado o facto quando podia não
o ter feito e por isso se chamou a esta conceção de culpa a conceção normativa de culpa
por ser um juízo de censura, e é claro que para fazer isso é preciso passar pelos outros
elementos que vem de trás.
Conclusão: normativismo já veio aproximar bastante a construção do conceito
de crime daquilo que nós hoje sustentamos. Do positivismo herdamos a divisão do crime
em categorias. Do normativismo herdamos pressupostos metodológicos, um certo
conceito de culpa e ainda a ideia de que o tipo tem de respeitar uma unidade de sentido
portadora da danosidade social.

Finalismo ou Escola da ação final

Que ao contrário das correntes anteriores, nasceu da obra de uma pessoa, Hans
Welzel que erigiu uma perspetiva do crime dele e que condicionou durante muito tempo
e ainda hoje a visão do conceito de crime.
O ponto de partida era: o normativismo não chegou a superar o positivismo, caiu
em grande parte dos erros do mesmo, nomeadamente o normativismo parte do mesmo
conceito de ação, e a este propósito este autor diz que o direito não faz parte do tal
paradigma causal, direito vive no mundo do sentido, mas então é preciso levar esse
pensamento até ao fim e temos de ver em que consiste a ação humana, é que uma vez
que consigamos determinar o conceito de ação humana, o direito não pode manipular
esse conceito, e na busca desse conceito derivado da natureza das coisas, este autor diz
que o que é característico da ação humana é que o homem quando age, age motivado
por finalidades, a ação humana é dirigida a certos fins, daí a ideia de ação final, é uma
ação com sentido, ao contrário do que acontece com os fenómenos naturais, a ação
humana é dirigida a fins, é uma supera determinação final de um processo causal, quer

Daniela Costa Amaral


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dizer que o homem antecipa um certo fim e depois põe em marcha um processo causal
para atingir esse fim e é nisso que consiste toda a ação humana.
Por isso é que se chamava uma doutrina de um certo ontologismo porque
procurava extrair a ação da natureza das coisas. Se a ação é isto, não podemos deixar
de concluir que o lugar do dolo não é na culpa, é na própria ação, porque o homem age
orientado por fins, se eu quero matar alguém a minha ação disparar a arma já é
conformada pelo dolo. o dolo e a negligencia pertencem à categoria da ação e não da
culpa.
Uma outra inovação muito importante diz respeito à categoria do ilícito e
prende-se com os pressupostos metodológicos da escola da ação final, porque diz este
autor que o direito não serve para regular fenómenos naturais, serve para regular ações
humanas. As normas não se dirigem a factos do mundo empírico, dirigem-se às pessoas,
tem destinatários, as consequências desta ideia é a criação do chamado ilícito pessoal,
toda a ação contrária ao direito é necessariamente um ilícito pessoal, para este autor o
que é ilícito não é a morte de alguém (esta é um facto empírico), o que o direito pode
regular são as ações que provocam as mortes, neste sentido todo o ilícito é pessoal e
também por uma outra razão, ele também tem uma fundamentação dogmática, se toda
a ação é dolosa ou negligente, então só há verdadeiramente uma ação ilícita quando o
agente atua com dolo ou negligencia, quer dizer, todo o ilícito é pessoalmente
conformado. A partir do finalismo e até aos dias de hoje todo o ilícito é um ilícito pessoal
porque não existe ilicitude fora do dolo e da negligencia – defendido pelo Dr. Figueiredo
Dias.
Para o positivismo e normativismo o direito é visto como normas de valoração,
mas Welzel diz que não, que a função do direito é primariamente dar normas de
comportamento às pessoas, portanto a norma visa prescrever um certo comportamento
e só quando a pessoa viola esse comportamento é que temos a violação da norma.
No plano da culpa esta passa a ser um juízo descarnado do facto, não tem presa
no facto, a culpa não tem nada haver com dolo ou neglicência é só a censura pelo direito
por ter atuado daquela maneira.
Conclusão: a primeira critica que se faz à doutrina da ação final é uma critica aos
seus pressupostos, não está dita em lado algum que a ação humana tenha de ser
concebida daquela maneira, seria a natureza das coisas e a ninguém pode arrogar-se a
defini-la daquele modo. Mesmo que isso fosse assim, mesmo que pudéssemos dizer que
a ação humana só podia ser concebida como uma ação final, não significa que o direito
tenha que a tomar enquanto tal que o direito não possa introduzir no conceito de crime
as modificações adequadas para um tratamento correto para as finalidades a que o
direito se destina, novamente está em primeiro lugar procurar saber quais são as
finalidades do direito penal e é perante isso que temos de construir o conceito de crime,
não é perante uma certa fantasia ontológica.
Ainda uma outra critica é que a verdade é que a doutrina da ação final foi
pensada para um certa categoria de crimes, os crimes dolosos por ação, mas nem todos
os crimes são dolosos ou por ação e isso complica muito a estrutura da própria ação
final, é que é muito difícil dizer que quando o agente age de forma negligente, por
exemplo, a mãe que foi ao cinema e deixou o filho sozinho em casa e negligentemente

Daniela Costa Amaral


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abandonou a criança e esta feriu-se com uma faca, é muito difícil dizer que esta ação de
ir ao cinema é a base da construção de um conceito de crime de ofensas corporais,
porque aqui a supera determinação final da ação é a ação de ir ao cinema, não é a ação
de lesar corporalmente alguém, portanto este conceito de ação final dificilmente pode
ser adaptado aos crimes com negligencia, o mesmo vale para os crimes por omissão,
porque o processo causal existe independentemente da vontade do agente. Portanto
esta é também uma critica procedente contra o conceito de ação final, dificilmente
cobre os crimes negligentes e por omissão.
Em relação à categoria da ilicitude, a inovação trazida por este autor é
fundamental e ainda hoje mantemos essa visão das coisas, o dolo e a negligencia
conformam a própria noção de ilicitude.
Em relação à culpa, aqui esta escola foi longe demais e não é correto retirar
integralmente o dolo e a negligencia da culpa, porque se olharmos para o CP
rapidamente nos apercebemos de duas coisas que diferenciam os crimes dolosos dos
crimes negligentes: 1º nem todos os crimes negligentes são punidos, a punição dos
crimes negligentes é muito menor em relação aos crimes dolosos, isto não pode deixar
de implicar também uma diferença de culpa, logo o dolo e a negligencia também tem
de ser valorados em sede de culpa porque implicam uma diferente gravidade das penas
aplicadas.
Por outro lado, é que essa é na verdade a relação do agente com o facto, o
positivismo falava numa relação psicológica, que hoje falamos numa imputação
subjetiva ao agente, essa é a relação principal do agente com o facto, há uma atitude
pessoal que só pode ser valorada em sede de culpa. Hoje devemos considerar que o
juízo de culpa abrange a exigibilidade, imputabilidade, dolo e negligencia. Quer dizer em
consequência que o dolo e negligencia pertencem tanto ao ilícito como à culpa, são
valorados tanto no plano da ilicitude como da culpa, só que o que se valora em cada
uma dessas categorias, não são os mesmos elementos, vamos ver que o dolo e
negligencia tem vários elementos, uma parte desses elementos é relevante para a
ilicitude e outra para a culpa, não existe uma dupla valoração sobre a mesma coisa.

Construção funcional-teleológica e racional do conceito de crime (nossa perspetiva)

1º nota importante é a ideia de Dr. Figueiredo Dias da desnecessidade e até


impossibilidade de um conceito de ação que esteja na base da construção do crime e
que cumpra todas as finalidades que lhe pedem.
Há aqui uma diferença fundamental entre a ação e as outras categorias, é que a
ação é a única categoria do crime que não pertence ao direito, tem de ser um
substantivo exterior ao direito, uma entidade exterior ao direito neste sentido pré-
jurídico, a ação representa a inserção do conceito de crime no mundo social, aquilo que
agarra o crime ao mundo social, não é possível nós termos um conceito de ação que
cumpra as 3 funções que são pedidas, porque todas as categorias que se seguem ao
conceito de ação são predicações jurídicas, quais são as funções que se pediriam a este
conceito de ação? Seria uma função de classificação porque teria de abranger todas as
formas de aparecimento do crime, dolo, negligencia, ação ou omissão, uma função de

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ligação que permitiria cumular todos estes predicados sem todavia os antecipar e ainda
uma função de delimitação, uma função negativa de excluir à partida aquilo que não
pode ser considerado ação. Dr. Figueiredo Dias explica as razões pelas quais não é
possível nenhum dos conceitos de ação que estão em causa, cumprir simultaneamente
todas as funções que se lhe pedem, porque algumas acabam por ser contraditórias, por
exemplo, no caso dos crimes de omissão, é muito difícil que um qualquer conceito de
ação cumpra a função de ligação porque a omissão só é socialmente relevante na
medida que o direito o disser, temos então uma influencia do direito a pré-determinar
o conceito de ação para depois daí extrairmos as consequências e isto torna-se num
ciclo vicioso e o próprio conceito de ação perde interesse.
Como as funções que o conceito de ação deveria cumprir e não consegue, são
exigidas pelo sistema jurídico ele próprio, na verdade devemos não procurar ter um
conceito de ação mas sim imputar aquilo que possa ser necessário ter no conceito de
ação ao próprio sistema jurídico. O 1º passo é prescindir da ação como primeiro grau da
categoria do crime, o sistema neste sentido perde um pouco a sua realidade social,
vamos ter um sistema totalmente determinado por conceitos jurídicos, crime passa a
ser a realização típica, o conceito base que vamos partir, vamos partir do tipo, e é uma
consequência com que temos de nos conformar. E assim sendo, uma das criticas é o seu
extremo juridicismo, é um conceito exclusivamente jurídico, não tem uma substancia
prévia no sistema social.

Quer isto dizer então que a ação perde completamente relevância no sistema
de crime?

Não, há de facto certos comportamentos que nem sequer são considerados


ações e portanto mantemos a tal função negativa de delimitação, só que se é ou não
ação, já é uma questão determinada pelo próprio sistema jurídico, a qualidade de ser
ou não ação não é algo que se imponha previamente ao sistema jurídico, é este que
determina aquilo que pode ser ou não considerado ação, por exemplo os atos praticados
em estado de sonambulismo.

Exemplo: uma pessoa que sofre um ataque epilético e com o ataque parte o objeto de
outrem, isto não é uma ação humana, não chega aqui a haver uma ação e portanto nem
sequer se realiza o tipo de crime de dano de destruição de um objeto alheio. Mas se o
agente teve esse ataque porque não tomou a medicação que devia ter tomado, aí o
direito já pode dizer não, temos aí uma ação relevante, o que significa que será sempre
o sistema jurídico a determinar a relevância típica de certa ação.

Então partindo da ideia da realização típica, então temos 4 formas de realização


típica, porque os crimes apresentam-se em quatro formas diferentes:

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A isto se chama a construção quadripartida do
crime, porque todas elas se oferecem como realizações
típicas diferentes. Isto é a doutrina da realização típica em
vez da doutrina da ação, vamos agora ver o problema do
chamado tipo de ilícito.

Relação entre o tipo e a ilicitude

Há duas formas básicas de compreender esta relação:


1º- Autonomiza completamente estas categorias e tem funções diferentes no
âmbito da construção do conceito de crime.
O tipo é o juízo abstrato da danosidade social, por exemplo o tipo que descreve
o homicídio, matar outra pessoa, isto seria a expressão de um dano social e seria
autónomo da ilicitude, que se trata de um momento posterior que já tem em
consideração as condições concretas da prática daquele facto, já não é matar uma
pessoa em abstrato, mas é saber se naquele caso concreto, o facto foi contrário ao
direito, porque pode ter intervindo numa causa de justificação, por exemplo, pode ter
havido legitima defesa, pode haver situações em concreto onde intervém uma causa da
exclusão da ilicitude e aí já é um juízo concreto sobre a contrariedade ao direito de
determinado comportamento.
Para outros autores, como Dr. Figueiredo Dias as coisas passam-se de maneira
diferente, diz este (com um pensamento sempre a partir da consequência) que o direito
não tem por função proibir comportamentos típicos, mas sim comportamentos ilícitos,
que são contrários ao direito. É indiferente se o agente mata uma pessoa em legitima
defesa ou matar uma mosca, ambos são comportamentos lícitos, o direito penal não
prevê nenhuma consequência para aquele que mata uma pessoa em legitima defesa,
isso é um ato que não tem qualquer repercussão em termos de consequência no direito
penal. É claro que esta perspetiva é também ancorada por uma visão do direito penal
composta por normas de comportamento, quer dizer nós dizemos que o direito penal
não tem por função proibir condutas típicas, mas sim oferecer às pessoas, normas de
comportamento, atuar de acordo com o direito, então o que é fundamental é saber se
o comportamento é ilícito.
Só que a ilicitude no direito penal tem uma feição particular, é que por força do
principio da legalidade, não podemos ter um único crime no direito penal que diga só
“quem atuar contra o direito é punido com pena de X” não podemos fazer isso no código
penal porque existe o principio da legalidade, os comportamentos tem de estar
tipicamente descritos. Por isso é que o juízo da ilicitude precisa de tipos, o tipo como
uma complementaridade da ilicitude: tipos incriminadores e os tipos justificadores. É do
confronto destes dois que resulta o conceito de ilicitude.

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Exemplo: o homem que mata outro em legitima defesa, temos o preenchimento do tipo
incriminador, mas também de um tipo justificador, em legitima defesa, então o
resultado é que esse comportamento não é considerado ilícito.

Mas estes dois tipos tem uma diversidade estrutural e são estudados em
momentos diferentes, os tipos incriminadores gravitam à volta de um bem jurídico, e os
tipos justificadores são tipos de aplicação geral e estão na parte geral do CP.
Em conclusão, o tipo é instrumental em relação à ilicitude, não tem
verdadeiramente qualquer autonomia em relação ao juízo de ilícito. Não deixa de ser
verdade que esta diferença entre tipos incriminadores e justificadores já nos sugere
outra coisa, que o incriminador tem a função de descrever em abstrato o juízo de
danosidade social. O confronto entre os dois tipos dá-nos um juízo de ilicitude, que é
sempre sobre uma conduta concreta.
É por força desta visão que o Dr. Figueiredo Dias propõe que nós falaremos
frequentemente do ilícito típico (ou tipo de ilícito), podemos dizer que as categorias tipo
e ilicitude não devem estar isoladas – são uma fusão, mas sempre por base na ideia de
que o preenchimento do tipo por si só não desencadeia uma ação criminal, mas o tipo
de ilícito sim.
Em relação ao dolo e à negligencia, são condutas partilhadas entre o tipo de
ilícito e a culpa, são categorias heterogéneas que tem dois lugares de valoração dentro
do sistema penal que estudaremos mais à frente.
A ultima categoria do crime é a punibilidade, concentra as exigências de
dignidade penal, nem todos os tipos de ilícitos culposos são dignos de pena, punibilidade
serve como um filtro a determinados comportamentos.

12.º Capítulo - O tipo objetivo de ilícito


A. Questões gerais de tipicidade
Crimes Dolosos de Ação
Tanto no plano dogmático como no empírico, estes são os crimes mais
emblemáticos que marcam e dão caráter ao direito penal, mas para além disso, também
são os estatisticamente mais frequentes. Portanto as outras variações (quando vimos a
construção quadripartida do crime) são formas subsidiarias são menos frequentes.
1. Determinações conceptuais: tipo de garantia, tipo de erro e tipo de ilícito
Tipo Garantia – estamos a dizer que existe uma série de pressupostos que condicionam
a punição que tem de ser determinados pela lei e nesse sentido fala-se de um tipo legal
ou garantia, porque é o conjunto dos pressupostos da punição que tem de ser
determinado pela lei, isto não se reduz ao tipo incriminador, também tem de englobar
o tipo de culpa.
Tipo de Erro – é composto pelos elementos que o agente tem de conhecer para que se
possa afirmar o dolo, se falhar o conhecimento de um desses elementos então estamos

Daniela Costa Amaral


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perante um erro relevante que exclui o dolo. Existem assincronias entre o tipo de
garantia e o tipo de erro, porque servem funções diferentes, o tipo de garantia visa
proteger o agente e as suas liberdades, e o tipo de erro tem uma função estritamente
dogmática de concentrar os elementos relevantes para a afirmação do doma.
Tipo incriminador – é o conjunto de elementos que nos leva a afirmar que houve uma
lesão do bem jurídico, é este portador da danosidade que vamos começar por estudar.
2. Desvalor de ação e desvalor de resultado
Esta contraposição já vem das várias correntes que estudamos, vimos que no
positivismo e no normativismo o desvalor penal é visto como um desvalor de resultado,
a ideia da morte da pessoa que foi assassinada, porque a norma é vista como norma de
valoração do resultado causado.
Welzel vem contestar esta visão das coisas dizendo que o que é essencial no
crime é o desvalor de ação, não é o agente ter matado o outro, mas sim ele ter querido
matar o outro. Até porque se a vitima morre ou não muitas vezes é uma questão do
acaso, o que pertence ao direito valorar é a intenção daquele agente. Para Welzel a
tentativa era o protótipo perfeito do crime, o resultado seria só para agravar a
responsabilidade. A norma de ser vista como norma de valoração para Welzel, para ser
vista como norma de comportamento.
Por um lado, todos os sistema jurídicos punem mais gravemente os crimes
consumados do que a tentativa, é uma questão de diferente peso do ilícito, é claro que
do ponto de vista da proteção dos bens jurídicos, evidentemente que se o bem jurídico
for efetivamente lesado, a ilicitude do facto é muito mais grave do que se o bem jurídico
for simplesmente posto em perigo através de uma tentativa e por isso é punível com
uma pena atenuada. Por outro lado, o desvalor criminal não reside apenas no resultado
produzido, se não a tentativa nunca podia ser punida, o que significa que ambos os
momentos são essenciais para a compreensão do desvalor criminal, tanto o desvalor da
ação como do resultado.
3. Elementos típicos descritivos e normativos
Tipo incriminador usa para descrever as condutas, elementos de duas espécies:
elementos descritivos e normativos. É discutível se se trata de elementos de natureza
diferente, Dr. Figueiredo Dias diz que se trata sim de elementos de natureza diferente.
Com esta descrição os elementos descritivos são aqueles que remetem para realidades
materiais, que não necessitam de uma valoração, elementos como matar, subtrair, são
elementos que estão contidos no tipo de crime e não necessitam de uma valoração por
parte do intérprete para se apreender o sentido dos mesmos.
Já os elementos normativos passam obrigatoriamente por uma valoração, seja
ela cultural, jurídica, exigem do interprete uma atividade de interpretação em termos
diferentes, por exemplo, quando no crime de furto temos a subtração de coisa alheia,
como definimos isto? Apenas recorrendo as normas da propriedade, é sempre
necessário recorrer a outras normas para podermos afirmar a realização de um destes
elementos. Dr. Caeiro entende que se mantenha esta distinção, mas de acordo com as

Daniela Costa Amaral


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novas correntes metodológicas, de facto todos os elementos das normas são carecidos
de interpretação, mesmo os mais fáceis, como por exemplo “pessoa” todos diremos que
não é preciso fazer uma valoração prévia, e todavia levantam-se questões como: quando
é que já há uma pessoa? A até quando? Se pensarmos na doutrina do direito penal do
inimigo, diz-se claramente que nem todos os indivíduos tem o estatuto de pessoa, é o
direito que determina quem o tem. Estes exemplos visam só mostrar que por mais
descritivo que um elemento típico se apresente pode carecer de interpretação
especificamente jurídico penal.
4. Tipos abertos, elementos valorativos globais e adequação social
Um bom exemplo deste problema é o crime de coação que está no artigo 154º
do CP, no nº3 encontramos um elemento valorativo global porque isto significa que a
coação só é crime quando esse forçamento da vontade alheia é dirigido a um fim
censurável, toda a criminalidade do ato depende da censurabilidade do fima que o ato
se destina, isto é um elemento totalmente aberto carecido de interpretação.
O uso destes elementos valorativos globais que condicionam toda a imagem do
tipo incriminador, deve distinguir-se das chamadas menções redundantes da ilicitude,
consistem no emprego de certas expressões que o legislador inclui nos tipos
incriminadores e não acrescentam nada ao sentido do tipo e por isso não devem ser
utilizadas. Já estamos a ver a diferença em relação ao crime de coação, se retirarmos
um elemento valorativo global estamos a aumentar imenso o âmbito de aplicação do
tipo, a ideia de se por debaixo da clausula “só há crime se o fim da coação for censurável”
restringe o âmbito de aplicação da norma.
A segunda clausula que também se põe é a chamada adequação social, há vários
comportamentos que correspondem num sentido literal a um tipo de crime, realizariam
um tipo incriminador e todavia ninguém consideraria esse facto como realizando um
tipo de crime, por exemplo, ao entrar no metro uma pessoa pisa a outra, ninguém diria
que existe aqui um crime, é uma conduta socialmente adequada, existe um espaço livre
de direito onde estas condutas se inserem portanto nem chegam a realizar um tipo de
crime.

B. A construção dos tipos incriminadores


O tipo incriminador tem 3 elementos fundamentais:
1. O autor
O nosso sistema jurídico a regra é que quem pode ser autor de um crime são as
pessoas humanas, mas a nossa lei também abre a possibilidade das pessoas jurídicas
responderem pela prática de um crime, aquilo que se chamam as pessoas coletivas e
entidades equiparadas (artigo 11º CP) também podem responder criminalmente nos
casos em que a lei o disser. Pessoas humanas respondem sempre, mas as pessoas
jurídicas apenas nos casos em que a lei expressamente indicar. Esta questão não é
tratada igualmente por todos os sistemas.

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Em Portugal a doutrina tem defendido a viabilidade e conformidade da
responsabilidade das pessoas jurídicas e o Dr. Figueiredo Dias tem uma tese muito
certeira, as pessoas jurídicas são criações do homem e por isso mesmo são criações do
ser livre, direito permite às pessoas humanas criar pessoas jurídicas como obra da sua
liberdade e portanto temos de funcionar em relação às pessoas jurídicas de uma forma
analógica. Existem razões fortes politico criminais para responsabilizar as pessoas
jurídicas por exemplo nos casos de fraudes fiscais.
Precisamos saber ainda que o modelo de atribuição do crime às pessoas jurídicas
no direito português segue o modelo de hétero responsabilidade (ou responsabilidade
derivada) segundo o qual a pessoa jurídica responde pelos crimes praticados pelos seus
representantes e não por defeitos próprios como se faz nos modelos de auto
responsabilidade. Aqui o nosso modelo o que está em causa é fazer a pessoa jurídica
responder pelos factos praticados pelos seus gerentes, etc.
Além disso o artigo 11º do CP alargou este modelo da hétero responsabilidade,
porque estendeu a responsabilidade da pessoa coletiva aos casos em que alguém atua
sob a autoridade dos gerentes que violam os deveres de vigilância ou controlo que lhe
incumbem. Num modelo puro de hétero responsabilidade a pessoa coletiva só responde
quando as pessoas que estão numa posição de liderança praticarem o crime no exercício
de funções e no interesse da sociedade.
A segunda questão que suscita em relação ao autor é a distinção: crimes
específicos e crimes comuns. Há crimes que consistem na violação de um dever que é
geralmente imposto e daí chamarem-se crimes gerais. Há certos casos em que só existe
conduta criminosa pessoas que praticarem a conduta descrita no tipo quando elas
tenham um particular dever e para indicar isso a lei segue uma de três formas de
indicação:
o Indicação da própria qualidade do agente, quando a lei diz o funcionário
que solicitar um suborno, aí nomeia-se uma especifica categoria de
agentes.
o Há outros crimes onde a lei não nomeia essa categoria mas pela
interpretação do tipo somos levados a compreender que a norma se
aplica apenas a um conjunto limitado de pessoas que tem um especial
dever, por exemplo o crime de abuso sexual de menores dependentes,
só se aplica aqueles que tem menores em seu poder, é um crime
especifico porque aqueles que tem menores à sua guarda tem um dever
diferente;
o Pode ainda acontecer que a natureza especifica do crime resulte de uma
relação interpessoal por exemplo no crime de bigamia, só haverá crime
quando o agente já é casado com outra pessoa;
Mas dentro dos crimes específicos temos ainda de distinguir os crimes puros ou
impuros. Os crimes específicos puros são aqueles em que a qualidade e o dever especial
do agente fundamenta a própria ilicitude, aquela conduta só é incriminada em relação
a agentes que tem aquele particular dever, só nesses casos é que a conduta constitui
crime. Os crimes específicos impuros trata-se de condutas que tem na base crimes

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gerais, mas a particular qualidade do agente agrava a responsabilidade, prevê-se uma
pena mais grave quando existe um agente com essa qualidade – exemplo: violação de
domicílio no artigo 378º que é a mais grave em relação ao artigo 190º que é o crime
normal de violação de domicilio. Significa que na realidade o crime especifico impuro
não é na realidade um crime especifico porque na base pode ser praticado por qualquer
pessoa, mas o dever serve apenas de agravação da responsabilidade.
Diferentes dos crimes específicos são os chamados crimes de mão própria, são
crimes que só podem ser executados pelo corpo do próprio agente e isto implicaria que
não poderia haveria autoria mediata, autoria moral, só quando o agente executa o crime
com o seu corpo é que esse facto é punível – exemplo: crime de violação no passado
exigia que o agente com o seu corpo violasse a vítima, hoje as coisas já não são assim.

2. A conduta. Crimes de resultado e crimes de mera atividade


Há aqui vários problemas, o primeiro é a exclusão de certos atos que não podem
ser considerados ações, não há ação criminalmente relevante em relação a
comportamentos que não sejam humanos, desde logo fenómenos naturais ou danos
provocados por animais.
O comportamento deve ser voluntário, mas há que especificar que esta
voluntariedade não tem nada haver com a intencionalidade, voluntário com a ligação à
vontade. Não constituem ações os meros pensamentos, intervém a liberdade de
consciência.
Esta classificação que distingue entre crimes formais e materiais, tem em vista o
seguinte critério: há crimes que se esgotam numa mera atividade, num mero fazer ou
não fazer e há outros que a consumação depende da produção de um resultado, esta é
a grande distinção. Os crimes formais podem ser meras atividades ou omissões puras.
Os crimes materiais englobam o resultado e esse resultado pode ser conseguido por
ação ou por omissão (impura art. 10º).
De que resultado é que falamos aqui?
Um resultado que é tomado no sentido de um evento no mundo exterior que se
distingue da ação ou omissão do agente, é algo conceitualmente distinto do ponto de
vista lógico como cronológico, resultado acontece de uma maneira separada da ação do
agente. Este conceito de resultado por um lado trata-se de resultados fáticos puramente
materiais (como a morte), outras vezes tem uma natureza que pode ser compreendida
através do espirito, por exemplo, o crime de burla prevê-se o resultado típico do prejuízo
patrimonial, está no artigo 217º do CP.
Este conceito de resultado não se confunde com a contraposição de desvalor de
ação e de resultado, essa expressão de valor de resultado nesse caso, não é entendido
desta maneira, nesse caso estamos a falar de um desvalor objetivo, isto é, de uma
intranquilidade, de uma afetação de bem jurídico, daí dá-se um desvalor de resultado
em contraposição com o desvalor de ação que tem haver com o mundo do agente. Este
conceito de resultado a propósito dos crimes materiais, não é o mesmo. Alguns
exemplos:

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Crimes materiais – homicídio, aborto
Crimes formais – violação de domicilio (artigo 190º) entrar em casa de alguém sem
consentimento ou não abandonar quando o dono insta o agente a ausentar-se, a
consumação dá-se com o ato de entrar ou de não sair; crime de recusa do médico (artigo
284º) também aqui existe uma omissão pura;
Como se distingue um crime de mera atividade (formal) de um crime de resultado
(material)?
Temos que analisar o tipo de crime e ver se existe este evento exterior que seja
destacável da atuação do agente, mas em alguns casos a distinção pode não ser tão clara
e costumava dar-se o critério da frustração – que era uma forma agravada da tentativa
– porque consistia em o agente tentar a prática do crime e este só não ocorrer por
circunstancias alheias à sua vontade. Por exemplo, existe uma tentativa de um crime de
homicídio se eu apontar uma arma a alguém mas ao tentar disparar a arma encrava,
existe frustração, e para o código anterior era mais grave do que a tentativa, no nosso
código atual já não fazemos esta distinção.
Para o que nos interessa esta distinção hoje?
Pode ajudar-nos a compreender a diferença entre os crimes formais e os crimes
materiais, é que nos crimes formais, se o agente praticar todos os atos de execução,
necessariamente o crime consuma-se não é possível o crime não se consumar, ao passo
que nos crimes materiais o agente pode praticar todos os atos de execução e ainda assim
o crime não se consumar. Por exemplo no crime de violação sexual, se o agente praticar
todos os atos de execução do crime, a prática implica necessariamente consumação do
crime. No caso dos materiais, o agente pode praticar todos os atos de execução do
crime, mas apesar disso o resultado não acontecer.
Isto tem importância também para a distinção entre crimes de execução livre e
crimes de execução vinculada. Nos crimes de execução livre a lei não descreve um
particular do processo causal, por exemplo o homicídio, é claro que o processo causal é
um elemento tipo, tem de se verificar certas regras para podermos dizer que houve
causalidade, adequação entre ação e resultado, a lei não descreve um particular
processo causal, diz só quem matar outra pessoa, não importa a lei o modo. Já nos
crimes de execução vinculada, a lei só incrimina a produção daquele resultado se ele for
conseguido através de certo meio.
Exemplo: crime de burla é um crime material, tem um resultado típico que é o prejuízo
patrimonial, está previsto no artigo 217º do CP, só que a lei não incrimina a simples
causação de execução livre, a lei só dá relevância penal a estas condutas quando o
prejuízo seja conseguido através de um particular processo causal e ele está descrito
aqui, o agente tem de enganar a vitima e através desse engano determina-la à prática
de atos que lhe causem prejuízo, só quando esse processo se verifica é que se preenche
o processo causal.

Daniela Costa Amaral


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A grande diferença é esta -> todos os processos causais preenchem o tipo de
crime desde que sejam adequados. O caso de tipo de execução vinculada o crime só se
preenche se o agente proceder de um modo especifico.
3. O bem jurídico. Crimes de dano e crimes de perigo; crimes simples e crimes
complexos
Nota: esta classificação que vamos ver confunde-se muitas vezes com a classificação que
acabamos de estudar, mas são coisas totalmente distintas.

Primeiramente temos de começar pela distinção do objeto de bem jurídico e o


objeto da ação. Vamos supor que A subtrai um anel a B, pratica um crime de furto, o
objeto da ação neste caso é o anel, o bem jurídico não é o anel, o objeto da ação é uma
manifestação, uma expressão que tem uma natureza mais idealizada. Há outros casos
em que a distinção não é tão clara, por exemplo, quando se trata do bem jurídico vida,
o objeto da ação é a pessoa, mas aí pode dizer-se que a vida funciona tanto como bem
jurídico como objeto da ação.
Vimos que o direito penal serve para proteger bens jurídicos, mas contra quê?
Há duas formas básicas de ofender os bens jurídicos, podemos pensar em ofensas de
dano – crimes de dano (lesam efetivamente o bem jurídico) e depois temos as chamadas
ofensas de perigo – que são condutas que não lesam o bem jurídico mas colocam-no em
perigo.
Exemplos de crimes de dano: homicídio, se A mata B lesa o bem jurídico vida, um
furto, etc. bem jurídico neste caso fica diminuído, há uma afetação.
Exemplos de crimes de perigo: há uma espécie de antecipação da tutela, a lei
para tornar aquela conduta criminosa, não espera que ela lese efetivamente o bem
jurídico, contenta-se com o simples por em perigo e neste sentido os crimes de perigo
já são uma tutela antecipada. Neste caso não existe lesão do bem jurídico, a vitima não
tem de morrer, o crime consuma-se com o simples por em perigo a vida daquela pessoa.
Estes crimes de perigo ainda se podem dividir em duas categorias:
o Crimes de perigo concretos: o perigo é um elemento do tipo de crime, significa
que em tribunal tem de se provar que existiu uma situação de perigo para o bem
jurídico; por exemplo condução perigosa de veículo rodoviário.
o Crimes de perigo abstrato: aqui a lei não exige uma verificação de um perigo
concreto para punir a conduta, não se trata de crimes de dano, mas a lei
prescinde da causação concreta de um perigo e por isso diz-se que o perigo é só
o motivo da proibição da conduta, o legislador presume que aquela conduta é
perigo, exemplo o artigo 292º, aqui o perigo é o motivo. Existe aqui uma
intensificação da antecipação da tutela, porque nem sequer se exige que aquele
bem jurídico concretamente tenha sofrido um perigo. Também se diz que o
perigo é uma presunção ilidível por parte do legislador.
Levanta-se a este propósito o problema da validade constitucional das
normas que preveem os crimes de perigo abstrato, então se nós dissemos que o
direito penal serve para proteger bens jurídicos contra ofensa de perigo e contra

Daniela Costa Amaral


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ofensa de dano, mas se estamos a dizer que para punir estes casos nem sequer
se exige a produção de um perigo, isto ainda é compatível com a função do
direito penal? A esmagadora maioria da doutrina portuguesa já afirmaram a
conformidade constitucional dos crimes de perigo abstrato, com 3 condições:
1º tem de se tratar de um bem jurídico altamente relevante;
2º esse bem jurídico tem de estar claramente identificado;
3º é preciso que a conduta esteja identificada com precisão;
Dr. Caeiro é de acordo com estas 3 condições, embora considere que a
primeira suscita algumas reserva, que pode ser equívoco porque a generalidade
dos crimes de perigo abstrato, são os atos precisamente para bens jurídicos que
não são assim tão importantes. O que de facto é essencial é que o bem jurídico
esteja claramente identificado, um conduta descrita com muita precisão e a 3ª
condição é poder afirmar que quando aquelas duas condutas estiverem
verificadas, existe um perigo para o bem jurídico.
Nota: quando falamos em concreto e abstrato não estamos a referir este adjetivo aos
crimes mas sim ao perigo – NOTA PARA ORAIS

Agora vamos ver uma categoria que na realidade nunca foi muito aceite pela
doutrina portuguesa, que são os chamados crimes de perigo abstrato-concreto: são
ainda crimes de perigo abstrato, mas a prova de que o bem jurídico não correu qualquer
perigo, afasta a imputação do crime, a prova negativa seria suficiente. Estes crimes
devem ser diferenciados dos chamados crimes de aptidão, estes sim, existem vários
onde a capacidade da conduta para produzir perigo faz parte do próprio tipo de crime,
por exemplo no crime de terrorismo na Lei 52/2003, há uma clausula de aptidão que dá
uma coloração diferente à perigosidade da conduta, é um elemento do tipo e não é um
crime de perigo abstrato.
Uma outra distinção ainda é aquela que contrapõe os crimes simples aos crimes
complexos. A generalidade dos crimes são simples porque se destinam a proteger um
único bem jurídico, mas em alguns tipos de crime protege-se mais do que um bem
jurídico – crimes complexos. Por exemplo o crime de roubo (artigo 210º CP) protege
simultaneamente a propriedade e a integridade física. Que interesse é que esta
classificação tem? Pode ter interesse para certas causas de justificação.
Podemos ter também:

Crimes Formais e Crimes Materiais

Crimes de Dano e Crimes de Perigo


▪ Crime formal de dano – a violação de domicilio, lesa o bem jurídico (reserva da
vida privada), e há um crime formal;
▪ Crime formal de perigo – condução sob efeito do álcool (artigo 292º) e portanto
aqui a conduta é um crime formal porque não exige qualquer resultado;

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▪ Crime material de dano – homicídio, ofensas à integridade física, artigo 212º,
etc.
▪ Crime material de perigo – artigo 291º onde se incrimina uma certa conduta
que tem um resultado de perigo
Uma outra classificação diz respeito aos tipos fundamentais, tipos qualificados e
tipos privilegiados. Se repararmos no artigo 131º e ss. Temos o 131º o tipo fundamental,
mas depois no 132º temos um tipo de crime que é construído sobre o tipo fundamental
mas à qual acrescem certas circunstancias de qualificação da culpa e que levam a
qualificar a previsão de uma pena muito mais grave. Uma crime qualificado é uma
agravação da pena do tipo fundamental em função de certas circunstancias.
Inversamente o tipo privilegiado (artigo 133º) atende-se aqui a certas circunstancias que
diminuem a gravidade do homicídio e portanto o privilegiado leva a prever uma pena
mais reduzida, uma pena mais leve para estes casos.
Podemos ainda falar de crimes instantâneos e crimes duradouros ou
permanentes. O critério é sempre o da consumação, aí podemos distinguir os casos em
que a consumação se dá num momento único, como por exemplo a lesão á integridade
física, produz-se num único momento. Depois temos os crimes duradouros onde a
consumação perdura no tempo, pode prolongar-se no tempo, como o crime de
sequestro, violação de domicílio quando a conduta acontecer porque o agente se recusa
a sair da casa onde se encontra, o crime dura todo o tempo que durar a omissão, já a
violação de domicilio por ação trata-se de um crime instantâneo.
Qual o interesse desta classificação?
Desde logo o interesse da aplicação da lei no tempo, se se tratar de um crime
duradouro, eventuais alterações da lei num sentido menos razoável ao agente
continuam a poder ser aplicadas. O Dr. Figueiredo Dias aponta a relevância desta
distinção para efeitos de legitima defesa, dizendo enquanto se mantiver a consumação
ainda se mantém a agressão que justifica a legitima defesa.
Há que atender ainda aos crimes habituais, são crimes que incriminam modos
de vida ou condutas que tendem a ser praticadas repetida ou mesmo profissionalmente,
por exemplo, o crime de lenocínio (explorar a atividade de prostituição por parte de
outra pessoa), normalmente é um crime habitual, mesmo acontece com o tráfico de
estupefacientes.
Temos ainda os crimes de empreendimento, repare-se no artigo 325º do CP que
é a alteração violenta do estado de direito, nestes casos a lei equipara a tentativa à
consumação, tanto faz com o agente tente ou consume este crime, outros exemplos são
o artigo 327º. Quais são as consequências destes crimes? Nestes crimes não se aplica a
atenuação especial da pena prevista para a tentativa, esta em geral é menos punível do
que o crime consumado, aqui a tentativa é a consumação. Além disso aqui não há lugar
à chamada desistência da tentativa, leva à não punição, pelo menos nos casos normais
de abandonar a execução, pode haver sim desistência sob a forma de arrependimento
ativo.

Daniela Costa Amaral


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Uma outra classificação é a dos chamados crimes agravados pelo resultado, um
exemplo está no artigo 147º do CP, há outras normas mas esta é uma das mais
paradigmáticas. Crimes agravados pelo resultado estão sempre previstos na lei, a lei
agrava em função de um certo resultado, o regime destes crimes está no artigo 18º. Em
que consiste a estrutura destes crimes? Trata-se sempre de um crime base e que produz
um outro resultado que leva o legislador a quando esse resultado se produz criar uma
figura especial de agravação da pena.
Temos de pensar numa figura anterior que eram os chamados crimes preter
intencionais (aquilo que está para além de) seriam crimes que alguma coisa vai para
além da intenção do agente, portanto o que tínhamos nesta figura era um crime base
doloso e esse crime base acrescia um outro resultado criminoso que implicava a criação
de uma figura legal especial de agravação da pena.
Num primeiro momento esta conexão do resultado com o crime base doloso era
uma conexão puramente objetiva, bastava que o crime doloso tivesse produzido
talqualmente o resultado criminoso, por exemplo A quer agredir B para lhe causar
ofensas corporais sérias, só que um dos golpes acerta na cabeça da vitima e esta vem a
morrer, temos um crime de base doloso, e o resultado que é a morte, nestes casos
criava-se uma agravação da pena que resultaria do concurso entre o crime de ofensas à
integridade física mais o crime de homicídio negligente. O agente não queria matar a
vitima, a ideia era punir estes casos mais gravemente do que a punição que resultaria
do concurso entre crime doloso e o crime negligente e porque estes casos deviam ser
mais punidos do que o concurso entre aqueles crimes? Porque há certos casos onde o
risco de produção do resultado agravante é muito elevado e portanto existe aqui um
dever especial do agente de não praticar o crime doloso base, precisamente porque
anda associado a esse uma alta probabilidade de verificação do resultado que ele não
quer, mas que é facilmente produzido e portanto nestes casos justifica-se punir mais o
agente
Num segundo momento por introdução da doutrina, veio-se dizer que era
necessário que este resultado criminoso fosse pelo menos produzido com negligencia,
se não, haveria uma responsabilidade puramente objetiva pelo resultado agravante,
bastava que este viesse a ocorrer para que o agente tivesse de responder por ele e de
forma agravada, isto seria uma responsabilidade objetiva e portanto uma
responsabilidade que violaria o principio da culpa.
O que o nosso código tem hoje é uma figura diferente, são os chamados crimes
agravados pelo resultado, a estrutura começa por ser semelhante, também temos um
crime base e um resultado agravante só que o crime base pode ser doloso ou negligente,
o resultado agravante não tem de constituir necessariamente um crime negligente,
porque pode nem ser crime autónomo, por exemplo o artigo 177º CP que prevê várias
normas de agravação para os crimes sexuais, no nº5 a gravidez não é um resultado
criminoso, o suicídio a mesma coisa, não é um crime autonomamente, o resultante
agravante pode em si mesmo não constituir um crime autónomo, mas mesmo quando
o constitui pode não ser punível por negligencia, suponhamos que o crime de ofensas
corporais pode ter como resultado agravante o aborto no caso da mulher estar grávida,

Daniela Costa Amaral


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embora fazer abortar seja crime em Portugal, não é crime fazer abortar por negligencia.
Uma ultima diferença é que também pode haver imputação de resultado agravante,
quando o agente tenha produzido o resultado agravante com dolo eventual e a lei exija
normalmente só o direto, quer dizer, pode acontecer que para um certo crime a lei exija
dolo direto, e o agente pode ter apresentado esse resultado apenas com dolo eventual,
isso não constituiria um crime autónomo, mas o resultado pode ainda assim ser
agravante. Todas estas notas são notas de diferenciação entre os crimes agravados pelo
resultado e aquilo que se chamavam crimes preter intencionais.
Esta é portanto a doutrina relativa aos crimes agravados pelo resultado,
devemos continuar a manter a ideia porque o legislador nestes casos deve criar
agravações nas penas? Aqui deve-se manter o raciocínio que já vinha.
Por isso mesmo quando no artigo 18º se diz que é preciso que haja pelo menos
negligencia, sob pena de violação do principio da culpa, mas o pelo menos também tem
o sentido de nestes casos o agente poder estar a atuar com dolo, suponhamos que o
agente viola uma mulher com dolo de a engravidar, de acordo com o esquema dos
crimes preter intencionais aqui não podia haver imputação do resultado agravante
(porque este é só a titulo de negligencia), se a gravidez não é em si mesmo um crime
autónomo nada impede que possa ser imputado com resultado agravante mesmo
quando o agente atua com dolo.
Claro que temos de distinguir isto de um cenário completamente diferente, se
um agente quer matar outra pessoa à pancada, existe aí é um crime de homicídio
provocado através de várias ofensas corporais.

13.º Capítulo - A imputação objetiva do resultado à conduta


1. Sentido do problema
Este problema surge-nos no âmbito dos crimes materiais, a especificidade destes
é exigirem o resultado para a respetiva consumação. Aqui propomo-nos em examinar
em que condições podemos dizer que o resultado deve ser imputado à ação? Em que
circunstancias é que podemos dizer que o resultado foi causado por aquela ação,
quando perguntamos pela causa neste sentido, é uma causação natural, é sempre um
juízo fático, aqui só uma resposta é verdadeira. Segunda questão é: supondo que
podemos afirmar a causalidade no primeiro segmento, deve o resultado ser imputado á
ação? Aqui o que queremos saber já não é uma relação de produção, mas sim estamos
à procura de um juízo e nisto consiste o problema da imputação objetiva do resultado.
Vamos agora falar das várias respostas que podemos encontrar à nossa questão
normativa, porque se a primeira só tem uma resposta verdadeira, as outras perguntas
podem ter várias respostas.
2. Primeiro degrau: a categoria da causalidade
Foi construído na base das condições equivalentes, esta doutrina dá uma
tentativa de limitação, ou uma resposta nacional à nossa questão afastando nexos de
imputação meramente religiosos ou irracionais, procurou-se dizer que são causa do

Daniela Costa Amaral


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resultado todas as condições que sem as quais o resultado não teria acontecido e por
isso é que todas as condições são equivalentes, se o agente comprou uma arma e
utilizou-a para matar terceiro, podemos dizer que tanto a venda da arma, como a
utilização são condições equivalentes se uma delas não tivesse ocorrido o resultado não
se teria produzido.
Como é que na altura se procurava determinar o caráter sine qua non de uma
certa condição?
A ideia é que o juiz tinha de fazer uma superação mental das condições, no fundo
o juiz tinha de se perguntar: “se eu tirar esta condição o resultado produzia-se a mesma
ou não?” se sim, essa condição não era relevante, se não, então era uma condição
relevante.
Esta maneira de ver o problema foi objeto de várias críticas, a primeira e é uma
crítica importante, foi de que esta era mais instancia de transposição pura e simples para
o direito penal das regras que vigoram na física e nas ciências naturais, esta construção
importava para o direito penal aquilo que na realidade servia para explicar fenómenos
naturais. Por outro lado esta construção permitia aquilo que se chamou uma regressão
ao infinito, para caricaturar as coisas, o ato dos pais do criminoso que o geraram,
também era uma condição do crime que ele viesse a cometer, isto permitia uma
regressão às condições mais remotas desde que elas fossem imprescindíveis para o
resultado. E por isso mesmo estas doutrinas tinham que depois limitar esta imputação
noutra sede.
Uma outra crítica que se dirigia ainda a esta teoria para além da sua excessiva
amplitude, é que não nos diz se as condições são todas equivalentes, então porque
vamos atribuir o resultado a uma das condições, se há várias que concorrem para o
resultado. Tudo isto levou a considerar-nos que isto é um ponto de partida, só há
condições relevantes se elas forem imprescindíveis para a causação do resultado e
portanto o nosso ponto de partida deve ser este ponto da causalidade natural. Se não
podermos afirmar que uma ação causou um certo resultado no plano do conhecimento
empírico, então esse resultado nunca pode ser imputado àquela ação.
3. Segundo degrau: a causalidade jurídica sob a forma da teoria da adequação
A questão aqui é se podemos imputar o resultado à ação e o ponto de partida
aqui é que o direito é dirigido a pessoas e não pode ir para além da capacidade que as
pessoas tem de dominar os processos causais, o direito não pode imputar às pessoas
uma responsabilidade por certos eventos que estejam para além da capacidade que nós
temos de dominar os processos causais.
Só são relevantes as condições que segundo as regras da experiência são
adequadas a produzir o resultado. Esta doutrina da adequação foi consagrada no artigo
10º do CP, a palavra chave aqui é a previsibilidade – só devemos imputar o resultado à
ação quando o resultado surja como uma consequência normal, típica e previsível
daquela ação.

Daniela Costa Amaral


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Como é que sabemos se o resultado era uma consequência previsível e típica
daquela ação?

Através do chamado juízo de prognose póstuma ex ante, o juiz no momento de


saber se deve atribuir o resultado àquela ação deve fazer este juízo. Prognose significa
previsão, póstuma porque vai ser feito depois do crime ter sido cometido, mas é ex ante
quer dizer que o juiz tem de se reportar ao momento em que o facto foi praticado e ver
se para um observador comum aquele resultado era ou não uma consequência
previsível normal.

Quais são os instrumentos que o juiz usa para fazer este juízo de prognose?

Desde logo as regras da experiencia, desde logo é aquilo que se pode designar
pelo senso comum, para além destas o juiz tem também de levar em conta
conhecimentos especiais que o agente tem sobre determinada situação, exemplo,
vamos supor que A cozinha um jantar para o seu vizinho B e inclui um aperitivo
composto de amendoins, B come essa mousse e morre porque era alérgico a
amendoins, bom se fizermos um juízo póstuma ex ante, ninguém morre por comer uma
mousse feita com amendoins e nesse caso seriamos levados a negar a imputação do
resultado porque se trata de uma consequência anormal e imprevisível, porém, se ele
sabia que o vizinho era alérgico, então os conhecimentos que o agente tinha também
devem ser usados para medir a previsibilidade da ocorrência do resultado. E ainda os
conhecimentos técnicos e científicos que sejam necessários no caso. Muitas vezes o juiz
não tem competência para saber se era ou não previsível que aquela intervenção
conduzisse ao resultado, muitas vezes é preciso recorrer a conhecimentos técnicos e
científicos.
O resultado só deve ser imputado à ação quando de acordo com este juízo se
possa afirmar que é uma consequência previsível, típica e normal naquela espécie de
ações.
Além disso, outra das consequências da doutrina da adequação é que esta tem
de se manter ao longo de todo o processo causal, quer dizer, que não pode haver
interferências imprevisíveis no decurso do processo causal, a este propósito costuma
falar-se dos problemas de interrupção do nexo causal e intervenção de terceiros.
Nós temos duas formas básicas de interrupção do processo causal, temos um
grupo de casos em que o que se interrompe é o processo causal propriamente dito e
portanto é claro que nesses casos, o resultado não deve ser imputado porque não é
causado pela ação do agente, por exemplo A leva um tiro que lhe pode provocar a
morte, vai para o hospital e enquanto está lá em coma sofre uma infeção hospitalar e
morre em virtude da infeção, neste caso há uma interrupção de nexo causal, a morte
não deve ser imputada ao agente que disparou o tiro, porque aquilo não podemos dizer
que foi aquele agente a causar a morte, o agente morreu da infeção, o que existe aqui
é a substituição do processo causal originário por um novo processo causal que decorre
da infeção, logo só poderá haver responsabilidade pelo agente que deu o tiro por

Daniela Costa Amaral


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tentativa do homicídio, mas o resultado não pode ser imputado ao agente. Nestes casos
o que se interrompe é o próprio decurso natural do processo causal.
Coisa diferente desta são os casos em que existe uma intervenção imprevisível
por parte de terceiros, normalmente sob a forma de uma omissão que mantém vivo o
processo causal originário mas que mesmo assim leva a considerar que não se deve
imputar o resultado, exemplo: A administra a B um veneno mortal, ou que C dá uma
facada na coxa de D, ambas as ações se não forem convenientemente tratadas são aptas
a causar a morte, e a vítima vai para o hospital e lá não é tratado, aqui temos uma
intervenção imprevisível de terceiros, porque é previsível que a pessoa seja tratada
quando chega ao hospital e o não tratamento da vitima interrompe o nexo de
imputação, aqui é uma questão normativa porque a vitima vem a morrer por força da
ação originária, mas o resultado não deve ser imputado a essa ação mas sim à omissão
do pessoal do hospital.
4. Terceiro degrau: a conexão do risco
O resultado só deve ser imputado a uma pessoa quando a ação criou ou
potenciou o risco proibido de ocorrência desse resultado. Esta formulação tem a
ambição de compreender de uma forma complexiva todos os casos de imputação do
resultado, aplica-se a todos os casos. E além disso o resultado tem de surgir também
como concretização desse risco proibido.
5. Problemas práticos e aplicação das regras de exclusão da imputação do resultado
Risco permitido

De acordo com esta formulação é preciso que estas condições se verifiquem


sempre para que o resultado seja imputado à ação e isto é assim porque nas sociedades
modernas há uma parte do risco que são riscos permitidos, isto é, na sociedade dos dias
de hoje não podemos viver sem um certo risco partilhado sobre todos nós, era muito
fácil acabar com os mortos por acidentes rodoviários, acaba-se com a circulação
rodoviária, isso era impensável, portanto o desafio está no controlo dos riscos, na
separação do risco permitido e do risco proibido. Por exemplo, quando se cumprem as
reras de transito, o risco é um risco permitido e quando se ultrapassa é um risco
proibido. Portanto o que está na base desta ideia de conexão do risco é esta separação.
Para explicar esta regra do risco permitido que leva a negar a imputação do
resultado, por exemplo, aquele que sabe ser portador de uma doença que se transmite
por via sexual e tem relações sexuais com alguém que é conhecedor desse facto,
também aqui se a pessoa que está sã ficar infetada deve-se entender que esta situação
se produziu dentro do âmbito de risco permitido, desde que a outra pessoa saiba.

Diminuição do risco

Casos em que a ação do agente diminui um risco já existente para o bem jurídico
ou para o portador do bem jurídico, não há uma coincidência entre o bem jurídico
afetado pela ação do agente e o bem jurídico que se encontra em risco, mas ambos são

Daniela Costa Amaral


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titularidade do mesmo portador. Por exemplo, dois amigos vão atravessar a rua, um
deles da conta que o outro vai atravessar a rua sem olhar e vem um carro em alta
velocidade e para evitar isso arrasta o amigo para fora da estrada e causa-lhe algumas
feridas, neste caso, este resultado das ofensas corporais não deve ser imputado sequer
à ação do agente porque ele diminuiu o risco em que o bem jurídico se encontrava, havia
um risco já existente para a integridade física da vitima e com a sua ação o agente
diminuiu esse risco.
Um exemplo de não coincidência pode acontecer quando alguém percebe que o
vizinho está em casa inanimado por uma fuga de gás e quebra a janela para tirar o
vizinho, neste caso o resultado do dano, a destruição do vidro, não deve ser imputado a
ação do agente, porque ele diminuiu o risco.

Comportamento lícito alternativo

Uma das condições de imputação do resultado é que o resultado surja como


concretização do risco não permitido. Isto conduz-nos à terceira regra de imputação do
comportamento lícito alternativo.

Exemplo: num caso que ocorreu na Alemanha, provou-se que uma certa fábrica que
produzia pincéis para a barba, estava a causar doenças nos seus trabalhadores, e
apurou-se também que a fábrica não tinha procedido à desinfeção obrigatória daqueles
produtos e portanto tudo apontaria para causalidade adequada, é previsível que
produtos de origem animal que não sejam desinfetados adequadamente, tenham
consequências para a saúde e portanto até podemos dizer que ao não proceder a essa
desinfeção a empresa criou um risco proibido na ocorrência do resultado, só que
provou-se em tribunal que os produtos regularmente indicados para fazer a desinfeção
daqueles materiais, seriam absolutamente inócuos para o tipo de bactéria que eles
continham, mesmo que a empresa tivesse atuado conforme o direito, o resultado ter-
se-ia produzido na mesma e pela forma forma.

Isto leva-nos a negar nestes casos a imputação do resultado, porque este não
surge como uma imputação do risco proibido, e portanto como o risco proibido não se
materializa no resultado não se deve imputar o mesmo à ação do agente. Por isso se fala
numa regra de comportamento lícito alternativo, porque deve se excluir a imputação do
resultado sempre que se o agente tivesse atuado conforme o direito, o resultado era o
mesmo e portanto também nesses casos se deve negar a imputação do resultado.

Âmbito de proteção da norma

Não se deve imputar a ação àqueles resultados que não estão compreendidos
no âmbito da proibição, as normas existem para prevenir certos resultados ou certas
formas de causação de resultados e por vezes há de facto uma violação da norma que
origina um certo resultado, mas este é diferente do resultado que aquela norma quer

Daniela Costa Amaral


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prevenir, e o Dr. Figueiredo Dias faz uma distinção importante: uma coisa é o resultado
não caber na chamada norma de cuidado, não se afirmará a responsabilidade.

Exemplo: se existe uma proibição de utilizar a buzina do automóvel em frente a um


hospital para garantir o sossego dos doentes, e se um agente violando essa proibição
usa a buzina para chamar um amigo e por causa disso assusta uma pessoa e esta é
atropelada, aqui não haverá conduta negligente porque o âmbito daquela proibição não
compreende resultados causados por sustos provocados, visa apenas garantir o sossego
das pessoas que estão no hospital.

Mas isto é a norma de cuidado, aquilo que estamos a tratar ainda não é um
problema do cuidado devido, mas sim do âmbito de proteção das normas
incriminadoras e a esse respeito há 3 constelações de casos diferentes:
1) Casos de auto colocação em risco, casos em que a própria pessoa se coloca em
risco, Dr. Figueiredo Dias dá o exemplo de uma corrida de carros por aposta e
uma pessoa fere-se;
2) Hétero colocação em risco aceite por terceiro, alguém coloca outra pessoa em
risco mas esse risco é aceite pelo terceiro, por exemplo o passageiro do táxi que
ordena o taxista para ir mais depressa e em virtude dessa velocidade acaba por
ter um acidente;
3) Responsabilidade alheia, por exemplo A põe um incendio numa floresta e o
bombeiro que vai apagar esse incendio acaba por morrer, aqui a morte do
bombeiro não cabe dentro do âmbito da proibição estabelecida.
Diz o Dr. Figueiredo Dias que todos estes casos não acrescentam muito em
termos de imputação objetiva, porque aqui o que está em causa é o principio da auto
responsabilidade.
6. A irrelevância da causa virtual para a exclusão da imputação do resultado
A questão aqui é a inversa do comportamento lícito alternativo, o que aqui se
procura saber é: A causou o resultado B, mas esse resultado seria causado com certeza
noutro tempo e noutra condição por um evento natural ou por ação de C.

Exemplo: A é uma hospedeira de bordo e vê o seu antigo inimigo no avião, e põe-lhe um


veneno mortal na bebida e o B ingere esse veneno e morre ainda durante o voo, mas
passado 1h o avião tem uma avaria e há um acidente que mata todos os passageiros. O
que aqui se pergunta é se o facto de este evento natural vir a produzir a morte por
outros passageiros, deve levar a excluir o resultado causado pela hospedeira, como a
pessoa ia morrer de qualquer maneira, será que isto deve levar a excluir a
responsabilidade da hospedeira? A resposta é NÃO, a causa virtual não tem relevância,
portanto o resultado deve continuar a ser imputado à ação.

No caso dos pincéis o resultado não é causado pela pessoa cujo problema de
responsabilidade se põe, neste caso existe um processo causal em curso que culmina na

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infeção dos trabalhadores, mas esse processo causal não é desencadeado pelo agente,
este limita-se a não fazer parar esse processo causal que vai conduzir ao resultado. Já
no caso da hospedeira ela causa efetivamente um resultado, não é um processo que já
esteja em curso, daí a grande diferença entre o comportamento lícito alternativo e a
relevância negativa da causa virtual.
A classificação entre crimes de dano, crimes de perigo, crimes formais e crimes
materiais, são tomadas a partir de perspetivas diferentes e pode acontecer que o
resultado se traduza numa lesão do bem jurídico, ou que o resultado tenha a natureza
de um perigo. A esse propósito importa notar que o perigo não é algo de materializável
como a morte, é uma situação que só podemos compreender através do apelo a certos
categorias culturais, jurídicas, normativas e existe uma situação de perigo para o bem
jurídico quando só por um acaso é que a ação não se materializa num dano.
Note-se que todo este ponto da imputação do resultado não é uma resposta
definitiva sobre a responsabilidade do agente, isto não significa que o agente deva ser
absolvido, significa apenas que não pode responder pela consumação do crime, mas
pode responder por tentativa, por exemplo.

14.º Capítulo - O tipo subjetivo de ilícito

I. A construção do tipo subjetivo de ilícito

Qual é o significado de nós dizermos que a ilicitude penal é subjetivamente


conformada?

Quando falamos das escolas de construção do crime, vimos que para o


positivismo naturalista, a ilicitude era uma categoria exclusivamente objetiva, não
intervinham elementos subjetivos. No normativismo já se admitia que certos elementos
subjetivos já participassem do tipo de ilícito, mas não em relação ao dolo e negligencia,
que eram ainda vistas como forma de culpa. Com Welzel, a perspetiva muda
radicalmente e diz-nos que a ilicitude é sempre conformada subjetivamente porque não
há nenhuma conduta penalmente ilícita que não seja ou dolosa ou negligente, portanto
isto não é só uma questão de culpa, mas também da própria construção da ilicitude
penal.
Todos os elementos do tipo subjetivo existem no interior do agente e por isso é
que são subjetivos, ao contrário da conduta que é externamente visível, ou do bem
jurídico, estes elementos do tipo subjetivo são factos que se produzem no interior do
agente.

II. O dolo do tipo/ dolo natural/ dolo do facto


1. A estrutura do dolo do tipo
Dolo do tipo -> representação e a vontade de praticar a conduta descrita no tipo
objetivo. Para que este se afirme, é necessário que o agente represente e queira todos
os factos do tipo objetivo, a congruência entre o tipo objetivo e subjetivo.

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Exemplo: A dispara uma arma e mata B, para haver dolo é preciso que o agente
represente e queira a morte de B, que o dolo do agente cubra todos os factos
constitutivos.
É muito importante saber se o agente atuou com dolo ou negligencia, porque
como refere no artigo 13º e 14º CP, a punição do dolo não é igual à punição da
negligência, é que todos os crimes são puníveis por dolo, mas só alguns crimes são
puníveis por negligencia, isto tem a consequência de chegarmos à conclusão que o
agente atuou com negligencia e não por dolo, pode ser um caso em que a lei não preveja
a punição daquele crime por negligencia, portanto decidir se houve dolo ou não, em
ultimo termo pode decidir sobre a punição do agente, se o crime não for punível a título
de negligencia e não existir dolo o agente pura e simplesmente não é punido. Os crimes
dolosos são sempre muito mais punidos do que os crimes negligencias, a reprovação
jurídica em relação aos crimes dolosos é bastante superior.
No dolo encontramos o elemento intelectual e o elemento volitivo (a vontade de
praticar o facto). Estes dois elementos tem um relevo diferente para a configuração do
dolo, porque o que é verdadeiramente especifico do dolo é esse vontade de praticar o
facto, o elemento volitivo tem um peso mais intenso, vamos ver que em certas formas
de negligencia o agente também representa a possibilidade do facto ocorrer, pode se
verificar um elemento semelhante no dolo e na negligencia quando se trata na
possibilidade de certo facto ocorrer.
Mas o que é especifico do dolo é este elemento volitivo, porque quem atua com
vontade de matar outra pessoa, indicia já uma culpa dolosa, mais grave, que justifica
uma pena mais pesada, este elemento é a marca contraste à categoria do dolo.
Porque se exige que o agente conheça a factualidade típica?
Porque só quando o agente no momento da prática do facto representa essa
factualidade típica, só aí é que o direito se abstenha de o fazer, que não pratique o facto,
portanto a representação do facto típico é essencial para o agente possa resolver o
problema da ilicitude (desistir de disparar a arma, por exemplo). A isto chama-se
também a atualização da consciência intencional, ou seja, aquela parte da consciência
que nos permite conhecer os factos.
A este propósito do conhecimento da factualidade típica, falamos nos elementos
normativos, por exemplo no crime de furto, coisa alheia, o que é preciso que o agente
saiba para podermos dizer que atuou com dolo? não é preciso que o agente conheça o
código civil, é preciso é que ele saiba que a coisa pertence a outra pessoa.
Às vezes a lei utiliza elementos que não tem uma correspondência direta num
certo substrato, por exemplo, num crime fiscal onde o agente se furta ao pagamento da
prestação tributária devida, aqui já não é só uma maneira de qualificar certas realidades
culturais, esta exige certas operações jurídico-fiscais, ora o que se exige nestes casos ao
agente para que haja dolo é preciso que ele saiba que está a invadir-se ao fisco com um
imposto que tem o dever de pagar, naturalmente que ainda aqui o agente não tem de
saber quais são as normas que regulam a prestação tributária devida, se o agente não
conhece essas normas trata-se apenas de um erro de subsunção que não é relevante.

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Ainda há um outro típico de elementos normativos ainda mais rarefeitos, que
recorrem a clausulas de valor que não são imediatamente traduzíveis em certas
realidades, por exemplo já falamos do crime de coação onde o nº3 do artigo 154º diz-
nos que a coação só é punível se o fim visado pelo agente for censurado, o que é um fim
censurado? Aqui não temos uma correspondência imediata entre um fim censurável e
determinadas realidades culturais, aqui é preciso apenas que o agente para que haja
dolo represente determinado fim e esse seja considerado como censurável.
2. O momento intelectual
Para afirmar o dolo, é preciso que o agente atualize a consciência intencional no
momento da ação, isto é, que no momento da ação o agente saiba que está a praticar
aquela conduta. Há certos conhecimentos genéricos que as pessoas tem mas não
acompanham continuamente, por exemplo, vamos supor que um certo médico sabe
que administrar um determinado medicamento a pessoas que tem certas alergias pode
causar uma reação adversa, mas isso não significa que em determinado momento ele
tenha agido com dolo, porque é um saber que existe mas não é atualizado no momento
preciso daquela ação.
Isto é completamente diferente daqueles casos em que existe um permanente
saber acompanhante, e o exemplo é o caso do funcionário que pede certo montante em
dinheiro para praticar um ato ilícito, no momento em que pede esse montante, até pode
ser que o funcionário não esteja a pensar “eu sou funcionário” e todavia o seu estatuto
de funcionário é o tal permanente saber acompanhante e portanto não é preciso que
naquele particular momento o agente representou a sua qualidade de funcionário. Este
tipo de saber acompanhante é suficiente para afirmar o dolo.
3. Os erros sobre a factualidade típica (matéria importante para conteúdo prático)
Erro sobre a atualidade típica

É o reverso do dolo. O dolo e o erro são elementos que se excluem mutuamente,


quando existe dolo é porque não existe erro relevante, se existe erro relevante, é porque
não existe dolo. Ou há dolo, ou há erro.
Está regulado no artigo 16º/1 na parte em que diz “o erro sobre elementos de
facto ou de direito de um tipo de crime excluem o dolo”, porque o que se prevê no resto
da norma é o chamado erro sobre proibições legais (que iremos abordar no 2º
semestre).
Quando se diz que este erro exclui o dolo, há dois avisos a fazer: a palavra
exclusão não quer dizer que se esteja a afastar alguma coisa que existiu a certo
momento, aqui excluir o dolo não tem este sentido, trata-se apenas dizer que
impossibilita a existência do dolo.
Qual é o âmbito do erro sobre a factualidade típica?
É o próprio tipo de crime, são os elementos de direito, por exemplo, A caçador
ve um movimento atrás de um arbustos e pensa que é uma presa da caça e dispara, mas
afinal estava uma pessoa e mata-a, aqui não existe dolo porque o agente não

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representou corretamente um dos elementos do tipo de crime, que é a existência de
uma pessoa. O erro vale tanto para os casos em que não se representa no facto como
para os casos em que se representa falsamente, aqui nem existe representação portanto
deve-se excluir o dolo (não é dizer que o agente deve ser absolvido, são coisas
diferentes). Utilizamos um exemplo sobre um erro sobre um elemento de facto, agora
vejamos sobre um elemento de direito, suponhamos que A ao sair da sala leva um
guarda chuva achando que é o seu, aqui existe um erro sobre a factualidade típica, em
relação ao crime de furto não representou o caráter alheio da coisa, se não souber que
a coisa pertence a outra pessoa não existe dolo relativamente ao furto.
O erro também pode incidir sobre elementos qualificativos ou agravantes do tipo
de crime, também aí é relevante, suponhamos o crime de furto qualificado, uma das
possibilidades de qualificação do furto, aliás tem muitas, é difícil cometer um furto
simples, quase todos acabam por cair na norma do artigo 204º CP. Suponhamos que o
agente furta um objeto alheio mas não representa que esse objeto tem um valor
elevado, julga que é um objeto simples, para que haja dolo, ele tem de representar que
se trata de uma coisa de valor elevado, se não representar esse elemento não existe
dolo em relação à qualificação e portanto o agente só pode ser punido pelo furto
simples.
Já é mais discutível o caso inverso, são os casos em que o agente representa
erroneamente a existência de uma circunstancia atenuante que na realidade não existe.
Por exemplo, A mata B julgando erroneamente que B o pediu insistentemente para o
matar, interpretou certas atitudes de B como sendo um pedido sério e mata-o em
virtude disso. O homicídio a pedido da vitima está previsto no artigo 134º e é muito
menos punido do que o homicídio simples, até 3 anos, ao passo que o homicídio simples
é punido com prisão de 8 a 16 anos. O agente acredita que a vitima o pediu para matar
quando na verdade não foi isso que aconteceu, o Dr. Figueiredo Dias aceita que nestes
casos também existe um erro relevante, a representação errónea de uma circunstancia
atenuante leva a excluir o tipo fundamental e a punir o agente apenas pelo homicídio a
pedido da vitima.
Portanto este é o âmbito possível sobre a factualidade típica -> o tipo
propriamente dito, as circunstancias qualificativas e as circunstancias que levam a
atenuar a pena, os chamados crimes privilegiados.

Qual a consequência deste erro?


A exclusão do dolo em relação àquele facto efetivamente praticado, mas isso não
significa que o agente não possa ser punível por um outro crime doloso que possa ter
cometido e ainda há certos casos onde a exclusão do dolo deixa subsistir a punição do
facto a título de negligencia – artigo 16º/3 CP.

O que é preciso para que o facto seja punível por negligencia?


1º- Que esse crime admita a punição por negligencia;
2º- Preciso que se comprove que no caso concreto o agente atuou com negligencia;

Daniela Costa Amaral


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Erro sobre o processo causal

Há certos casos em que o agente projeta um crime de certa maneira, obter o


resultado de certa maneira e ele veio a ocorrer por um processo diferente daquele que
o agente projetou. E a questão que se põe aqui é se este é um erro relevante ou não e
a resposta passa por uma distinção entre: crimes de execução livre (o processo causal é
relevante desde que preencha os requisitos da adequação) e crimes de execução
vinculada (a lei só pune a produção daquele resultado se ele for especificamente
descrito na lei).

Crime de execução livre -> erro é IRRELEVANTE, porque o processo causal não faz parte
do tipo e assim incide sobre uma matéria que não pertence ao tipo (NÃO ESCREVER ISTO NO
EXAME)

Crime de execução vinculada -> erro é RELEVANTE, se o agente projeta um crime de


execução vinculada e o resultado vem a ocorrer por um outro meio diferente, ou o
resultado ocorre de acordo com os preceitos da lei mas diferente do que o agente
entendeu e nesse caso há consumação do tipo objetivo, mas não há dolo do processo
causal, o agente não representou que ia conseguir o resultado daquela maneira, ou
inversamente se o agente planeia obter o resultado através do processo descrito na lei
mas vem a obtê-lo de outra forma, aí nem existe imputação do resultado porque não se
preenche o tipo objetivo.

O principio da resposta está certo, o fundamento é que está errado, é que não
se pode dizer nos crimes de execução livre que o processo causal não faz parte do tipo,
claro que faz, o que acontece é uma coisa diferente, é que qualquer processo causal que
seja adequado, que cumpra as regras de imputação objetiva é suficiente para imputar o
resultado, não é necessário que o agente represente aquele particular processo causal
que quis produzir – exemplo: A quer matar B por afogamento, atira-o para uma ponte
abaixo mas o agente acaba por morrer porque bateu com a cabeça mas não por
afogamento, há aqui uma divergência entre o processo causal projetado e o
efetivamente ocorrido, mas isto não é relevante, porque este resultado morte é
imputável à ação do agente e portanto é indiferente o modo como o agente queria
produzir a morte.
Já se o agente produz o resultado de acordo com o processo causal descrito na
lei, mas ele não conhece esse processo causal, por exemplo num crime de burla vamos
supor que o agente está a brincar com a vitima e ela acaba por sofrer um prejuízo
patrimonial com isso, o agente não representa que está a determinar a vítima à prática
de atos que lhe vão causar um grande prejuízo.
Grande parte dos casos onde se discute o erro sobre o processo causal, são casos
que na realidade levantam problemas é ao nível da imputação objetiva, por exemplo A
quer matar B por afogamento, atira-o da ponte, mas A consegue salvar-se, nada até a
margem, agarra-se a uma pedra para sair do rio, mas esta rola e acaba por esmaga-lo,
aqui o problema é se ainda podemos imputar a morte daquela pessoa àquela ação, se

Daniela Costa Amaral


102
ainda é um risco criado pela ação do agente, provavelmente neste caso ainda sim, mas
a partir do momento em que possamos dizer que o resultado deve ser imputado à ação
o dolo também estará afirmado. Grande parte destes problemas são de imputação
objetiva e não do dolo.

Dolos Generalis

Que consistem em casos onde o agente pratica um conjunto de ações para


atingir um resultado, mas a ação que produz o resultado não é aquela que ele julga que
verdadeiramente o produz – por exemplo: suponhamos que o agente quer matar
alguém e dá uma pancada na cabeça a essa pessoa e julgando que essa pessoa já está
morta, enforca-a para simular um suicídio, sucede que aquilo que vem a matar a pessoa
não é a pancada na cabeça mas sim o enforcamento, aqui temos um problema, na
conduta dolosa o resultado não se produziu e na segunda conduta o resultado produziu-
se mas o agente não o queria produzir, ainda assim parece que nesses casos se estes
dois factos foram planeados antecipadamente, aqui existe a possibilidade de afirmar o
dolo em relação ao processo causal.
Mais complicados são os casos em que o resultado ocorre não na primeira, mas
na segunda ação – por exemplo: A quer matar B, mas como tem pena, decide primeiro
dar-lhe uma anestesia muito forte e depois atirá-lo de um precipício, só que quando dá
a anestesia a B, este morre imediatamente porque faz uma alergia rara e mesmo assim
atira-o julgando que ele ainda está vivo, o Dr. Figueiredo Dias diz que deve-se afirmar o
dolo se o agente ainda pratica o segundo ato, o Dr. Caeiro tem algumas duvidas porque
na realidade o ato que produz a morte, o resultado não é imputável objetivamente ao
agente porque se trata de uma alergia rara e portanto estamos a ficcionar que o agente
produziu a morte atirando a vitima, quando não foi isso que aconteceu. Aqui dever-se-
ia resolver o problema através da imputação objetiva excluindo o resultado.

Erro na execução

Trata-se de casos em que o agente projeta um determinado crime, mas ao


executar esse crime a sua ação acaba por preencher uma conduta diferente, acaba por
praticar outro tipo de crime – por exemplo: A dispara um tiro contra B mas em vez de o
atingir atinge a sua janela e parte-lhe um vidro, trata-se de erros na execução.
Em todos estes casos o agente é punido pela tentativa do crime que quis praticar
em concurso com o crime que efetivamente praticou a título de negligencia nos termos
gerais.

Erro sobre a pessoa ou sobre o objeto

Aqui trata-se de um erro na formação da própria vontade criminosa,


suponhamos que A quer matar B e dispara um tiro contra uma pessoa que ele julga ser
B mas na realidade é C. Nestes casos quando há identidade típica entre os objetos, o

Daniela Costa Amaral


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erro é irrelevante, porque o agente queria matar uma pessoa e efetivamente matou
uma pessoa, o nome da pessoa não faz parte do tipo de crime
Se os objetos da ação dor tipicamente distintos, A quer matar o cão do vizinho,
vê um vulto dentro da casota do cão e na realidade quem estava era o filho do vizinho,
aqui não temos identidade típica entre os objetos, temos um crime de dano (destruição
de um animal) e depois temos o homicídio de uma criança (que ele não representou).
De acordo com o artigo 16º o dolo aqui é excluído porque ele não representou que
estava a matar uma pessoa.
4. O momento volitivo: as modalidades de dolo
É este elemento que nos vai ajudar a distinguir o dolo da negligencia, e isto tem
muita relevância prática, porque pode decidir se a pessoa vai ser punida ou não por
exemplo.
O dolo está tipificado no artigo 14º CP:
o Nº1: Dolo direto – A quer matar B, dispara um tiro e consegue matá-lo.
Repare-se que não quer dizer que só haja dolo direto quando a prática
desse facto é o fim último do agente, pode haver dolo direto mesmo
noutras circunstancias, por exemplo A quer assaltar um banco e para o
fazer tem de matar o segurança, mesmo que não seja a finalidade ultima
da sua ação continua a haver dolo direto.
o Nº2: Dolo necessário – a ação do agente não é propriamente dirigida
àquele facto, mas ele sabe que aquele facto vai ocorrer como
consequência necessária da sua ação, por exemplo A põe uma bomba no
avião para matar o seu inimigo que vai nesse avião, age com dolo direto
relativamente a esse inimigo e com dolo necessário em consequência da
morte das outras pessoas.
o Nº3: Dolo eventual – não que o agente queira aquele facto, mas
conforma-se com a sua realização, a questão difícil está em perceber o
que significa esta “conformação” e para isto há várias tentativas de
aproximação e mais uma vez aqui põe-se o problema da distinção do dolo
com a negligencia, pois aqui tem um elemento comum, que é a
representação do facto como possível. Portanto o que nos vai levar a
distinguir é precisamente o elemento volitivo e para os distinguir:
- Haveria dolo eventual se o agente representasse o facto como
muito provável e haveria negligencia consciente se
representasse a probabilidade como muito baixa -> CRÍTICA: a
existência de dolo dependeria da forma como o agente
representa a probabilidade e portanto das suas aptidões de
cálculo; a questão da distinção não passa por o resultado ser
mais ou menos provável, não é decisivo.
- Teorias da aceitação: haveria dolo eventual se o agente
intimamente aceita o resultado -> CRÍTICA: isto conduz-nos ao

Daniela Costa Amaral


104
dolo direto, quem aceita o resultado, de alguma maneira quer
esse resultado e o dolo eventual não serve para isso.
- Teorias da conformação: para o Dr. Eduardo Correia
considerava que havia dolo eventual sempre que o agente não
confie que o resultado não se vai produzir, haveria dolo
eventual sempre que o agente não afastasse do seu horizonte a
possibilidade do facto acontecer -> CRÍTICA: Dr. Figueiredo Dias
dizia que era uma definição pela negativa e por outro lado, dizia
que tudo depende da confiança que o agente põe nas coisas,
portanto propõe uma outra formulação – haverá dolo eventual
se o agente tomou a sério o risco da produção do facto e mesmo
assim decidiu-se a realizar esse facto, o agente como que se
dispõe a arcar com as consequências desse facto, ao contrário
da negligencia consciente, como dispõe o artigo 15º. Dr. Caeiro
considera que a formulação do Dr. Correia não é tão má, porque
a do Dr. Figueiredo Dias não nos dá de uma forma tão positiva
o que é o dolo eventual.
O que está por trás do dolo eventual e justifica a punição a título de dolo nestes
casos, é uma atitude de indiferença perante o direito, de não rejeição da lesão do bem
jurídico, do ilícito e se é assim, talvez a formula do Dr. Correia seja adequada a exprimir
essa indiferença, o agente percebe que aquilo pode acontecer e não confia que não vai
acontecer, é um problema controverso, mas mais importante do que isso é a sugestão
do Dr. Figueiredo Dias de dizer que há um espaço que se devesse reconfigurar para
acrescentar um terceiro grau de imputação subjetiva, entre o dolo e a negligencia que
seria a temeridade – é uma pista que no futuro se poderá seguir.
Temos ainda os casos de dolo alternativo, isto é, casos em que o agente
representa que vai pratica 1 de 2 factos e nesses casos naturalmente que existe o dolo,
por exemplo vejo um casal de inimigos na rua, se disparar sei que vou acertar em pelo
menos um deles, aquele em que eu acertar existe dolo, é um caso de dolo alternativo.
Quanto á conexão temporal, o dolo tem de existir no momento do facto, não
basta que exista antes do facto, nem depois, aqueles casos em que a sem dolo mata
uma pessoa, mas depois fica todo contente com isso, isso não é suficiente para afirmar
o dolo, ele tem de existir no momento em que se pratica o facto. Note-se que certos
tipos de crime na parte especial restringem as modalidades de dolo possíveis, em certos
casos o facto só preenche o tipo subjetivo se for praticado com dolo direto ou necessário
(está excluído o dolo eventual) – exemplo: caso do crime de recetação artigo 231º a
doutrina é unanime em exigir que o agente saiba efetivamente que a coisa recetada
provém de um crime contra o património, é preciso que o agente conheça a origem da
coisa. Não basta que o agente atue com dolo eventual.

Daniela Costa Amaral


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III. Elementos subjetivos da ilicitude
Vimos que o tipo subjetivo se compõe do dolo e dos elementos subjetivos da
ilicitude. Estes últimos não se confundem com o dolo, trata-se de particulares intenções
do agente que transcendem o tipo objetivo doloso, criam tipos incongruentes, porque
o tipo subjetivo passa a dizer respeito a uma realidade que já não está contida no tipo
objetivo. Por exemplo o crime de insolvência dolosa no artigo 227º, esta intenção de
prejudicar os credores não se confunde com dolo, o dolo tem de abranger as condutas
que vem a seguir, mas só existe crime de insolvência dolosa se a presidir essas condutas
houver a intenção de prejudicar os credores.
Porque é que isto é um tipo incongruente?
Porque o prejuízo efetivo dos credores não faz parte do tipo objetivo, não é
preciso que ele efetivamente prejudique os credores, basta que tenha a intenção de o
fazer, por isso chama a estes – crimes de resultado cortado.
Estes elementos subjetivos do tipo tem como função restringir a área da
punibilidade, para ser mais exigente na imputação dos crimes, não basta que se pratique
as condutas descritas no tipo objetivo, é preciso para que haja crime, que elas sejam
praticadas com aquela particular intenção.

FUNÇÃO DOS ELEMENTOS SUBJETIVOS -> restringir o alcance do tipo de crime,


estabelecer um filtro para o tipo de crime.

NÃO DEVEM SERVIR, e ás vezes servem (de forma inapropriada) de próprio


fundamento á incriminação. Exemplo: a nossa lei do terrorismo hoje em dia pune as
pessoas que viajam para zonas de conflito com a intenção de se juntar a uma
organização terrorista. Olhando para o artigo que incrimina estes factos vemos que diz
“quem viajar ou tentar para outro país com a intenção de se juntar a um grupo terrorista
é punido com pena de x” isto é exatamente o contrário do que aprendemos e do que
mandam as regras do direito penal porque aqui o momento subjetivo da ilicitude é o
próprio fundamento da incriminação, o tipo objetivo (viajar para outro país) não tem
mal nenhum, toda a conotação ilícita vem do elemento subjetivo e isto é que não pode
acontecer, legislador não pode fazer assentar os crimes em elementos subjetivos.
Por outro lado, por vezes a lei dá relevo a certos impulsos de uma atitude interior
do agente, nesses casos essas características são da culpa, não são elementos subjetivos
do ilícito, não caracterizam o facto típico.

FIM
Bom estudo malta!

Daniela Costa Amaral


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