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Direito Penal I

2019/2020 – 1º Semestre
PARTE I – QUESTÕES FUNDAMENTAIS
TÍTULO I – O Direito Penal e a sua ciência no sistema jurídico estadual
1º Capítulo – o Direito Penal em sentido formal
I. O conceito de direito penal
1. Definição e designação
Direito Penal é designado como o conjunto de normas jurídicas que ligam comportamentos humanos – crimes –
a determinadas consequências jurídicas. A mais importante destas consequências é a pena, a qual só pode ser
aplicada quando o agente tenha atuado com culpa. Ao lado da pena, existem outras consequências, as medidas
de segurança, que não supõem a culpa do agente, mas a sua perigosidade.

 Em sentido formal, é o conjunto de normas que elenca um conjunto de comportamentos proibidos e que
faz corresponder uma específica sanção.
Para melhor designar este ramo, melhor seria ter em conta não apenas uma das consequências jurídicas, a pena,
mas sim o conjunto de pressupostos de que aquela consequência depende – o crime – chamando a esta disciplina
direito criminal. No entanto, as medidas de segurança ligam-se a comportamentos levados a cabo sem culpa, e
sendo esta culpa elemento essencial do crime, não podemos então considerar “criminal” o conceito das medidas
de segurança. Desde que não se perca consciência desta ideia, podem reputar-se “equivalentes” os designativos
direito penal e direito criminal. No entanto, prefere-se o primeiro, quer porque se chama Código Penal o diploma
legislativo, quer porque “Direito Penal” é o nome escolar oficial.

 Considerando o sentido material, temos que pensar no que deve ser crime, e não no que é. Um preceito
legal pertencerá apenas ao nosso ramo de direito se e quando, para sancionamento de um certo
comportamento ilícito ou antijurídico que prevê, for prescrita uma pena ou medida de segurança. Existem
comportamentos que põem em causa os valores sob os quais cada comunidade se constitui. Todo o
direito penal e a sua ciência devem ser perspetivados a partir das valorações político-criminais imanentes
ao sistema. É necessário aferir que comportamentos são esses.

2. Direito penal e ius puniendi


Ius poenale – o que ficou definido como constituinte do direito penal em sentido objetivo.
Ius puniendi – direito penal em sentido subjetivo, como poder punitivo do Estado resultante da sua soberana
competência de julgar crimes certos comportamentos humanos e ligar-lhe sanções específicas.
II. O âmbito do direito penal
1. Direito penal substantivo, direito penal executivo e direito processual penal
O ordenamento jurídico-penal abrange, além do direito penal substantivo, o direito processual penal, adjetivo ou
formal, e o direito de execução das penas e medidas de segurança ou direito penal executivo.

 Direito penal substantivo – visa a definição dos pressupostos do crime e das suas concretas formas de
aparecimento, e a determinação das consequências ou efeitos que à verificação de tais pressupostos se
ligam (penas e medidas de segurança).
 Direito processual penal – cabe aqui a regulamentação jurídica dos modos de realização prática do poder
punitivo estadual, nomeadamente através da investigação e da valoração judicial do crime indiciado ou
acusado.
 Direito penal executivo – pertence aqui a regulamentação jurídica da efetiva execução da pena e/ou
medida de segurança decretadas na condenação proferida no processo penal.
2. Parte geral do direito penal e as suas componentes
O direito penal em sentido estrito, tal como o Código Penal, compõe-se de:

 Uma parte geral, onde estão definidos os pressupostos de aplicação da lei penal, os elementos
constitutivos do conceito de crime e as consequências gerais que da realização de um crime, total ou
parcial, derivam: as penas e as medidas de segurança;
 Uma parte especial, na qual se estabelecem os crimes singulares (homicídio, violação sexual, furto, abuso
de confiança, genocídio, etc), e as consequências jurídicas que à prática de cada um deles se ligam.
A doutrina da parte geral do direito penal – produto de uma abstração das concretas espécies de crime em ordem
à eleição dos seus pressupostos e das suas consequências gerais – divide-se em dois tratamentos fundamentais:
o Fundamentos gerais de todo o direito penal, considerando a função do direito penal no sistema
social e os seus limites, as fontes e o âmbito de vigência, temporal e espacial, da lei penal. Artigos 1º
a 39º.
o Conceito do facto (punível) ou doutrina geral do crime, considerando os elementos constitutivos
daquele conceito, em relação à forma básica ou geral, seja a formas particulares ou especiais de
aparecimento do crime. Artigos 40º a 130º.
Crime – reúne vários componentes e diversas áreas. Qual o conceito material de crime? O que é crime para
penal?
Comportamentos reprováveis e lesivos pela sociedade.
Mas serão todos os comportamentos com tais características?
Bem jurídico – valor/interesse fundamental de uma comunidade, sem o qual ela própria se nega/descaracteriza, e
que, por isso, entende que deve ser juridicamente protegido pelo Direito Penal (o seu sentido material parte deste
mesmo conceito de bem jurídico). Portanto, os comportamentos reprováveis e lesivos inseridos no conceito crime
devem, por isso, ofender um bem jurídico.
Procuramos estes bens jurídicos na Constituição.
Toda a responsabilidade do Direito Penal é subjetiva, não há objetividade.
Consequências jurídicas do Direito Penal
Penas (multa, prisão…) – aplicam-se a pessoas imputáveis.
Sanções
Medidas de segurança – aplicam-se a pessoas inimputáveis (quando sem culpa).
2º Capítulo – A localização do Direito Penal no sistema jurídico
I. Direito penal intraestadual e direito internacional penal
Direito Penal Intraestadual vs Direito Penal Interestadual?
Cada país é que define o seu direito penal, divergindo de país para país. Consequentemente, justifica-se este facto
pela divergência de valores essenciais nas diferentes comunidades. Este direito é, ainda hoje, essencialmente
intraestadual, que encontra a sua fonte formal e orgânica na produção legislativa estadual e é aplicado por órgãos
estaduais. O Direito Penal é um direito intraestadual e revela-se como o último reduto da soberania. O direito
penal é uma manifestação pura de soberania. Um estado em funcionamento é aquele que consegue efetivar o seu
direito penal.
É produzido no Estado, para aquele Estado.
Os fenómenos mundiais (globalização, etc.) não ficam aquém e atingem também o direito penal. Surge, assim,
um Direito Penal Internacional para dar resposta a estes fenómenos. A quantidade de instrumentos internacionais
é hoje muito significativa e está a gerar uma aproximação dos Direitos Penais de cada Estado, sobretudo em
matérias de direito penal transnacional. Existem múltiplas normas de direito internacional (Declaração Universal
dos Direitos do Homem, Convenção Europeia dos Direitos do Homem, etc) de conteúdo jurídico-penal.
Todavia, a partir da última década do séc. XX assistiu-se a um incremento da relevância do direito internacional
em matéria penal. Existem múltiplas normas de direito internacional de conteúdo jurídico-penal e de relevo
indiscutíveis para a aplicação do direito penal. Há que ter em conta também os, cada vez mais numerosos,
instrumentos de direito internacional em matéria penal, onde se contêm certas opções de política criminal
internacionalmente convencionadas, que implicam para o Estado Português, enquanto parte dos mesmos, a
obrigação de editar normas internas que lhes deem corpo (artigos 243.º e ss CP).
Por fim, existem alguns princípios de direito internacional que podem servir como lei penal incriminadora, à luz
do disposto no artigo 29.º, n.º2 CRP, quebrando-se assim o clássico princípio de direito internacional segundo o
qual este só poderia conceder direitos e impor-se aos Estados, não às pessoas e aos cidadãos. A verdade é que
tanto as normas, como os princípios de direito internacional penal vigoram na ordem jurídica portuguesa não em
si mesmos, mas em último termo, por força no artigo 8.º CRP.
O direito internacional penal conheceu recentemente desenvolvimentos enormes com a instituição dos Tribunais
Internacionais Penais ad hoc para a antiga Jugoslávia e Ruanda, e com a aprovação do Estatuto do TPI (Estatuto
de Roma). Em todos estes casos, trata-se de verdadeira aplicação, por órgãos internacionais ou mesmo nacionais,
de direito internacional penal, embora essa competência seja limitada ao conhecimento de certos crimes. O que
significa que o direito penal já não é monopólio da legislação e jurisdição dos Estados.
O Estatuto de Roma visou a instituição de um Tribunal Penal Internacional permanente com competência para
conhecer, exclusivamente, dos delicta iuris gentium. As duas notas marcantes desta nova jurisdição são o
princípio da vinculação voluntária, segundo o qual a jurisdição do TPI apenas vincula os Estados que se tornem
partes no Estatuto e o exercício da mesma só é possível se o Estado em cujo território o facto tiver ocorrido, ou o
Estado de que a pessoa acusada é nacional, forem partes no Estatuto ou, não o sendo, aceitarem a jurisdição do
Tribunal naquele caso; e o princípio da subsidiariedade, segundo o qual o TPI só poderá exercer a sua jurisdição
se os Estados com competência para conhecer do facto não o conhecerem ou não puderem fazê-lo.
A doutrina da essencial intra-estadualidade do direito penal não se modifica, apesar de tudo, em face dos
problemas suscitados pelo processo de integração europeia. No estado atual desta integração, não existe ainda um
direito penal comunitário e, como tal, supranacional de aplicação direta pelos Estados Membros. É possível falar-
se de um ius puniendi negativo, na medida em que, dada a prevalência do direito comunitário sobre o direito
nacional (artigo 8.º, n.º4 CRP), o legislador nacional não poderá qualificar como penalmente ilícitas condutas
exigidas ou autorizadas pelo direito comunitário.
Há um conjunto de crimes combinados internacionalmente.
Direito Penal na União Europeia: possibilita que os órgãos europeus criem leis que se apliquem direta e
imediatamente, em caso de limite, a todos os indivíduos dos Estados Membros da União Europeia. O nosso
direito penal que era absolutamente intraestadual, hoje vê-se confrontado com uma forte transnacionalização.
II. O Direito Penal como parte do Direito Público
O Direito Penal é, especialmente, público. O direito público usa a sua grande figura que se denomina Ius
Imperium, ou seja, há intervenção do Estado dotado de poderes máximos. Materialmente, o direito penal é
público, visto que, visa o interesse público estando em discussão bens jurídicos essenciais de uma comunidade.
Em nenhuma outra disciplina jurídica surgirá uma relação tão nítida de supra/infra-ordenação entre o Estado
soberano, dotado de ius puniendi, e o particular submetido ao império daquele.
“O direito penal é duplamente público – o estado aparece dotado de ius imperium e porque está em causa bens
jurídicos essenciais.” O direito Penal tem uma íntima relação com o direito constitucional, dado que, o direito
penal protege bens jurídicos previstos na constituição. Está sucessivamente a recorrer à constituição.
Art.º 27º - as privações à liberdade estão constitucionalmente previstas;
III. O Direito Penal perante outros ramos do Direito. Autonomia e dependência do Direito Penal
Ligação com outros ramos de direito:
O direito penal é autónomo, porque tem uma ilicitude própria. Um comportamento pode ser proibido no direito
civil e não ser proibido no direito penal. Há matérias que não interessam ao direito penal.
Relativamente ao Direito Constitucional, o direito penal assume um caráter de dependência análogo ao de
qualquer outro ramo do direito ordinário. Existe uma tese que vai no sentido de pôr em evidência o caráter
dependente do direito penal face aos outros ramos de direito. Estes seriam criadores de verdadeira ilicitude, ao
contrário do direito penal, a quem pertenceria uma função puramente sancionatória: a de intervir com o arsenal
dos seus meios e instrumentos próprios para sancionar certos ilícitos criados por outros ramos do direito.
Binding, autor desta tese, distinguia normas primárias, que contêm imposições e proibições, das normas
secundárias, que visam conferir proteção e efetividade a certas normas primárias, assegurando o seu
cumprimento através de sanções de espécie particular.
Segundo Figueiredo Dias, esta tese não parece correta porque a função do direito penal radica na proteção das
condições indispensáveis da vida comunitária, cumpre-se selecionar, dentro dos comportamentos em geral
ilícitos, aqueles que representam um ilícito geral digno de uma sanção de natureza criminal. Nesta aceção, o
direito penal é autónomo e criador de uma específica ilicitude penal, correspondente à especificidade e à
qualificação das consequências jurídicas que a um tal ilícito se ligam: à especificidade da consequência tem de
corresponder a especificidade dos pressupostos de que aquela depende.
Direito Penal vs Direito Criminal?
Dr. Eduardo Correia defende a denominação “Direito Criminal”. A partir de uma dada altura, direito penal foi
sendo enraizado, mas atualmente Direito Criminal e Direito Penal são sinónimos. O direito penal surgiu a partir
da intenção de dar enfoque à finalidade e não ao facto.
Só podemos falar de crime quando estiverem preenchidos pressupostos (5) e como tal, “direito criminal” não é
adequado. Os inimputáveis não praticam crimes.
Ação, tipicidade, ilicitude, culpa, punibilidade – cumulativos; se faltar um pressuposto, não há crime.
O Direito Penal é dividido em 2: parte geral e parte especial. Assim está também o respetivo código. Na parte
geral incluem-se pressupostos da aplicação da lei penal, os elementos constitutivos do crime (os 5 pressupostos)
e as sanções – em abstrato. Na parte especial incluem-se os tipos (os crimes) e as sanções – em concreto – dos
crimes.
Qual é a função do Direito Penal? O direito penal serve para proteger subsidiariamente bens jurídicos. A proteção
subsidiária, ou de ultima ratio, significa que só entra quando o resto do aparelho estatal falha.
3º Capítulo – A ciência conjunta do Direito Penal
O crime constitui um fenómeno de patologia social diversificado, que revela não apenas condicionalismos
externos e sociais, mas de substratos internos e individuais, componentes da mais complexa de todas as
realidades: a realidade humana. Isto faz compreender que, ao longo do séc. XIX, quando se estabeleceu o
estatuto do pensamento científico moderno, o crime se tenha tornado em objeto de uma multiplicidade de
ciências.
Os conhecimentos provenientes de todas estas ciências não podem hoje deixar de ser tidos em conta pela ciência
estrita do direito penal ou dogmática jurídico-penal. O conjunto das ciências criminais não passa de uma
“enciclopédia” e cada uma delas não pode aspirar a outro estatuto que não o de ciência auxiliar da dogmática
jurídico-penal.
Até finais do séc. XIX, a dogmática jurídico-penal era a única ciência que servia a aplicação do direito penal e a
única que o jurista podia e devia legitimamente cultivar. Posteriormente, reconheceu-se que a tarefa social do
controlo do crime não podia bastar-se com uma ciência puramente jurídica, normativa e dogmática. A realização,
com êxito, daquela tarefa dependia antes também de uma definição das estratégias de controlo social do
fenómeno da criminalidade, cujas quotas aumentavam por todo o lado: este era o domínio da política criminal.
Assim como dependia do conhecimento empírico da criminalidade, dos seus níveis e das suas causas, que
precisamente uma nova ciência então nascente pretendia abarcar: este era o domínio da criminologia.
Von Liszt criou assim o modelo tripartido a que chamou de ciência conjunta do direito penal. Uma ciência
conjunta que compreendia como ciências autónomas:

 Dogmática jurídico-penal: conjunto de princípios que subjazem ao ordenamento jurídico-penal e devem


ser explicitados dogmática e sistematicamente;

 Criminologia: ciência das causas do crime e da criminalidade;

 Política Criminal: conjunto sistemático de princípios fundados na investigação científica das causas do
crime e dos efeitos da pena, segundo as quais o Estado deve levar a cabo a luta contra o crime por meio
da pena e das instituições com esta relacionadas.
Evolução do estatuto das ciências criminais no contexto do Estado de Direito formal e do positivismo jurídico
A dogmática jurídico-penal devia continuar a ocupar o primeiro lugar na hierarquia das ciências criminais, pois é
a esta que cabe a função primária dentro da ciência conjunta do direito penal, por ser a única que competente
para a explicitação das normas jurídico-penais no seu encadeamento interno.
A competência para definir o sentido e os limites da punibilidade não podia pertencer a outra instância que não
fosse a dogmática jurídico-penal, isto é, a das normas legais do direito penal e da vontade do legislador histórico.
Para a política criminal restava a função de, baseada nos conhecimentos da análise da realidade criminal, dirigir
ao legislador recomendações e propor-lhe diretivas em tema de reforma penal.
Evolução do estatuto das ciências criminais no contexto do Estado Social e do sociologismo jurídico
O Estado de Direito formal foi substituído, na teorização das doutrinas do Estado, pelo paradigma do Estado
Social: um Estado que atenuou as exigências da legalidade formal em favor da promoção e realização das
condições de desenvolvimento harmónico e equilibrado do sistema social. A política criminal tornou-se
independente face ao direito penal e à sua dogmática. A função integradora da ciência conjunta do direito penal
era agora substituída pelo sistema social ele mesmo, como máximo denominador comum da política criminal, da
criminologia e da dogmática jurídico-penal.
Estatuto das ciências criminais no quadro no Estado de Direito contemporâneo
A evolução do estatuto da política criminal perante a dogmática jurídico-penal e a criminologia em direção a um
novo estádio foi cumprida quando as conceções próprias do Estado de Direito formal e do Estado social cederam
lugar à conceção de Estado de Direito material contemporâneo, ou seja, todo o Estado democrático e social que
mantém intocada a sua ligação ao direito, e mesmo um esquema rígido de legalidade, e se preocupa antes de tudo
com a consciência dos direitos, liberdades e garantias da pessoa; mas que, por essa razão, se deixa mover, dentro
daquele sistema, por considerações de justiça na promoção e realização de todas as condições do
desenvolvimento mais livre possível da personalidade ética de cada um.
Transformação da função da dogmática jurídico-penal
O jurista deixa de ser considerado como um simples fazedor de silogismos, que se limita a deduzir do texto da lei
as soluções dos concretos problemas jurídicos da vida, para se tornar em alguém sobre quem recai a indeclinável
responsabilidade de procurar e encontrar a solução mais justa para cada um daqueles problemas. O sistema
jurídico-penal, antes fechado, passa a ser um sistema aberto: um sistema que em cada dia se vai refazendo porque
em cada dia a dogmática vai sendo confrontada com novos problemas, ou com problemas velhos mas que, à luz
de uma nova ou mais perfeita compreensão da teleologia, da funcionalidade e da racionalidade do sistema,
reclama novas soluções.
Dogmática jurídico-penal e criminologia
Até aos anos 60, existia uma completa separação entre as duas. O que mudou radicalmente com o aparecimento
da chamada “criminologia dos anos 60”, onde o objeto desta passou a ser constituído pelo fenómeno jurídico-
criminal, deixando de se limitar estritamente à investigação das causas do facto criminoso e da pessoa do
delinquente, para passar a abranger a totalidade do sistema de aplicação da justiça penal.

IV. Síntese conclusiva


Sabemos hoje que, por um lado, é à política criminal que pertence a competência para definir quer no plano do
direito constituído, quer do direito constituendo, os limites da punibilidade; como, por outro lado, a dogmática
jurídico-penal não pode evoluir sem atenção ao trabalho prévio de índole político-criminal que lance luz sobre as
finalidades e os efeitos que se apontam à aplicação do direito penal. Política criminal, dogmática jurídico-penal e
criminologia são assim, do ponto de vista científico, três âmbitos autónomos, ligados porém, em vista do integral
processo da realização do direito penal, em uma unidade teleológico-funcional. É a esta unidade que continua
hoje a convir o antigo conceito de “ciência conjunta do direito penal”.
TÍTULO II – A função do Direito Penal
“A função do direito penal no sistema dos meios de controlo social e na ordem jurídica total haverá de apreender-
se não só através da natureza do seu objeto (o facto ou comportamento criminoso, hoc sensu, o “crime”), como
também da especificidade das consequências jurídicas que àquele se ligam, as penas e as medidas de segurança.
Já se referiram as razoes metodológicas e materiais por que, dentre estes dois elementos, é o segundo que assume
a primazia: nomeadamente porque é a sua especificidade – conferida pelo seu fundamento, o seu sentido e as
suas finalidades – que reage sobre o conteúdo material do crime e a definição dos seus elementos integrantes. Por
isso, dentro deste título dedicado à função do direito penal, começaremos por estudar a pena, depois a medida
de segurança, e só depois defrontaremos a questão do conteúdo material do conceito de crime. Importa
considerar ainda que da conjugação das sanções criminais com o conceito de crime resultam igualmente os
limites materiais do direito penal face a outras disciplinas que – sobretudo pela utilização de meios também
sancionatórios, mas não criminais – lhe estão próximas.
4º Capítulo – finalidades e legitimação da pena criminal
I. O problema dos “fins” da pena criminal
Qual é a finalidade do Direito Penal? Para que é que se aplicam penas? Estudar os fins das penas é estudar toda a
teoria penal, e todas as questões fulcrais como legitimação, fundamentação e função da intervenção penal estatal.
Levar as pessoas a cumprir uma norma – efeito simbólico. O direito penal cumpre as suas finalidades quando
aplica uma pena.

 Função
 Finalidade
 Legitimidade
Finalidades das penas: é comum a ideia antiga de que quem faz o mal, merece o mal. Esta ideia advém de
alguma ligação com a religião, não é à toa que o período de inquisição traduzia, simultaneamente, uma ideia de
crime e de pecado.
Será que temos direito de impor aos outros uma conduta? E que legitimidade tem o Estado?
É necessário um motivo para impor penas. O direito penal não serve para punir. Para ser um direito penal
legítimo democrático, não pode ter como finalidade punir as pessoas. Como vivemos em comunidade? A partir
da cedência de um bocado da nossa liberdade plena; o melhor mecanismo de controlo dessa cedência é feito a
partir do Estado. O Estado pune para transmitir à pessoa que fez mal (mas não para punir), e para passar
mensagens à comunidade.
Artigo 74º - dispensa de pena
II. Teorias absolutas: a pena como instrumento de retribuição
 Teorias absolutas/Teorias retribucionistas – ideia de culpa; aqui, a pena funciona como um castigo.
Estas teorias dizem que as pessoas devem ser punidas porque têm culpa, e a medida da pena é a medida
da culpa. “Pune-se porque se pecou”.
Retribuição, expiação, reparação, compensação do mal do crime. Essência e natureza exclusiva do
facto que no passado se cometeu, paga do mal que se realizou. A medida da pena só pode ser na medida
da correspondência entre pena e facto.
Estas teorias, hoje, não fazem muito sentido. No entanto, avançaram com um princípio que ainda hoje é aplicado
no Direito Penal, o princípio da culpa. Estas teorias não apontam para nenhuma finalidade que a pena vai
cumprir, não há uma razão explicativa para a aplicação da pena. O sentido de aplicação destas penas é um
sentido centrado num facto que já passou, o mal que a pessoa causou. Não se pode hoje aplicar estas teorias.
Esta doutrina deve ser recusada ainda pela sua inadequação à legitimação, à fundamentação e ao sentido da
intervenção penal. O Estado democrático e pluralista dos nossos dias não pode arvorar-se em entidade
sancionadora do pecado e do vício, mas tem de limitar-se a proteger bens jurídicos.
Este sentido negativo foi ultrapassado por um conjunto e teorias, as teorias relativas/preventivistas.
Ninguém pode ser punido, a não ser que haja culpa. Ninguém pode ser punido mais do que a medida da culpa.
III. Teorias relativas: a pena como instrumento de prevenção
 Teorias relativas/Teorias preventivistas – estão vinculadas ao vocábulo “pune-se para que se não
peque”. Aqui, a pena já não é aplicada como castigo, mas é um instrumento de prevenção.
São teorias dos fins, aplicam uma pena com vista a atingir um objetivo. Teorias das finalidades, as penas têm um
certo fim, sendo esse fim a prevenção. Aqui a pena ganha uma justificação, transcende a ideia de punir o
indivíduo. A pena é projetada para o futuro, e não apenas para o passado, como nas teorias absolutas. Existem
diferentes grupos destas teorias:
o Doutrinas de prevenção geral: é voltada para a generalidade das pessoas, para a comunidade.
Estas doutrinas partem da conceção de que a pena é um instrumento que visa atuar sobre a
generalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes. Atua sobre as
demais pessoas da comunidade, através da estatuição legal. Existe ainda aqui uma dupla
perspetiva:
 Negativa – intimidação que uma pena causa sobre a comunidade. Perspetiva negativa, ou
de intimidação; com a pena que se aplica a uma pessoa, pretende-se surtir um efeito de
intimidação geral.
 Positiva/de integração – garantia dos bens jurídicos e da sua proteção. Estabilização
contra fática da norma – forma de que o Estado se serve para manter/reforçar a confiança
da comunidade na vigência das normas, tutela dos bens jurídicos. Mensagem de que a
ordem jurídica permanece estável e os valores fundamentais estão protegidos. Efeito de
confiança e efeito de aprendizagem.
Pontos positivos das teorias de prevenção geral: centram as penas naquela que é a função do direito penal – tutela
subsidiária de bens jurídicos.
Pontos negativos das teorias de prevenção geral: na vertente negativa da prevenção geral, esta tem um efeito
nefasto; quanta pena é preciso para intimidar a população? Pode levar à ideia de que a intimidação é mais e mais
necessária, podendo levar a situações sem limites. Isto levar-nos-ia com muita facilidade a uma tendência de
penas crescentemente mais severas.
Para combater os problemas das teorias de prevenção geral, apareceram as seguintes:
o Doutrinas de prevenção especial: entendem que a pena é um instrumento de prevenção que
cumpre efeito sobre o individuo/agente/delinquente. Serve para evitar que o agente punido ponha
novamente em causa os bens jurídicos.
 Negativa/neutralização – aplicar uma pena de modo a que a pessoa fique intimidada, para
que não volte a praticar o crime. Como?
 Tentar a correção do delinquente, aplicando mais pena e mais pena,
possivelmente chegando à neutralização
 Reforma moral do individuo; este não adere aos valores da comunidade, e tem
que passar a interioriza-los. A reforma é feita através de:
o Tratamento – modelo terapêutico – a pessoa é tida como “doente”, o
crime é uma doença.
 Positiva – Através da pena consigamos influir sobre o delinquente para que este no futuro
este possa voltar à comunidade sem cometer crimes – prevenção de socialização.
Pontos positivos das teorias de prevenção especial: continuam a estar em sintonia com a ideia de que a função do
direito penal é a tutela de bens jurídicos. É por causa disso que se atua sobre o delinquente, não se quer que ele
cometa crimes para proteção desses mesmos bens.
Pontos negativos das teorias de prevenção especial: não é aceitável a ideia de correção. O Estado não tem
legitimidade para agir sobre o interior de cada um de nós, na forma como cada um pensa. Do mesmo modo, o
modelo clínico também não é aceitável, não se pode impor coativamente a alguém um tratamento, pois viola a
autodeterminação e a dignidade da pessoa humana.
A concertação agente-vítima e a reparação dos danos
Refere-se, cada vez mais, uma autónoma e nova finalidade da pena, sendo essa o propósito de se operar a
possível concertação entre o agente e a vítima, através da reparação dos danos, quer materiais, quer morais,
causados pelo crime. O Direito Penal português tem considerando a reparação do dano como condição de
legitimidade de aplicação de certas “penas de substituição” (artigo 51º, nº1 CP) ou como condição da “dispensa
de pena” (artigo 74º CP), para além de admitir o lesado a pedir a reparação dos danos civis no próprio processo
penal (artigos 71º e 82º CPP).
No entanto, torna-se questionável a necessidade de fazer da “reparação” um “tertium genus” (um terceiro
género) das sanções penais; como não será porventura adequado erigi-la em finalidade geral da pena. A
reparação, para além de não poder valer para as sanções aplicadas a certos crimes, poderia reconduzir a que o
sancionamento penal ficasse numa larga e inadmissível disponibilidade (de aceitação) de vítima e/ou do próprio
agente.
A concertação agente-vítima só pode ter o sentido de contributo para o restabelecimento da confiança e da paz
jurídicas abaladas pelo crime, o qual, como vimos, constitui o cerne mesmo da prevenção geral positiva.
Enquanto, por outro lado, aquela concertação conforma uma vertente decisiva para uma correta avaliação, no
caso, das exigências de prevenção especial positiva.
IV. Teorias mistas ou unificadoras
 Teorias mistas/unificadoras – mesclam características das teorias absolutas e das teorias relativas.
1. Teorias em que reentra ainda a ideia de retribuição
Para resumir a multiplicidade de pontos de vista que combina as duas perspetivas anteriores, podemos definir
como a perspetiva de uma pena retributiva no seio da qual procura dar-se realização a pontos de vista de
prevenção, geral e especial; ou ainda pena preventiva através de justa retribuição. Combina uma série de
ideias das teorias vistas anteriormente, tendo sempre presente a conceção de pena e, nesta aceção, como
retribuição da culpa e subsidiariamente como instrumento de intimidação da generalidade e, na medida do
possível, de ressocialização do agente.
Teoria diacrónica dos fins da pena: no momento da sua ameaça abstrata, a pena serie, antes de tudo,
instrumento de prevenção geral; no momento da sua aplicação, surgiria na sua veste retributiva; na execução
efetiva, visaria fins de prevenção especial.
Estas conceção são, enquanto teorias dos fins das penas, inaceitáveis. A ideia retributiva é um vetor que não deve
ser tomado em consideração neste contexto: a retribuição da culpa não pode constituir uma finalidade da
pena.
2. Teorias da prevenção integral
Aqui, a unificação das finalidades das penas só pode ocorrer a nível da prevenção geral e especial, com exclusão
de qualquer ressonância retributiva ou compensatória. É também uma conceção globalmente recusada.
As doutrinas que aqui se inserem negam a conceção retributiva, o que leva a que se concluam pela recusa do
pensamento da culpa e do seu princípio como limite do problema: ou porque procuram substituí-lo pela categoria
da perigosidade, ou pelo princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade, ou por uma manipulação da ideia
da culpa como mero derivado da prevenção.
Conceção de Roxin – concorda com o ponto de vista defendido pelas teorias de prevenção integral, na medida em
que a pena serve exclusivamente finalidades de prevenção geral e especial. No entanto, não é por isso que este
abandona o pensamento e o princípio da culpa na construção do facto punível; a culpa não pode deixar de ser
pressuposto da pena e limite ultrapassável da sua medida. Este diz ainda que a medida de culpa é dada através de
uma moldura da culpa. Contudo, com esta moldura, trazemos novamente a ideia da compensação da culpa,
ideia mestra da retribuição.
V. O problema dos fins das penas e a doutrina do Estado, nomeadamente à luz da sua evolução em
Portugal
A comissão revisora de 1991 – que trouxe a Reforma do CP de 1995 – trabalhou num quadro sociocultural e
político inteiramente diverso daquele em que havia decorrido a parte final da elaboração e aprovação do diploma
de 1982: num quadro típico já de uma democracia e de um Estado de Direito estabilizados e consolidados. Ela
pôde, por outro lado, servir-se da inestimável experiência do que foram as dificuldades, os êxitos e os fracassos
de aplicação do Código durante o primeiro decénio da sua vigência. Estava por isso em condições de apresentar
com clareza o seu programa político-criminal e dogmático, bem como a sua leitura do programa político-criminal
e dogmático subjacente à codificação de 1982, nomeadamente em tema de fundamentação, se sentido e de
finalidades da pena. Um tal programa consubstancia-se em quatro proposições político-criminais fundamentais,
em larga medida resultantes já das considerações anteriormente feitas neste capítulo, mas que valerá a pena agora
apresentar como sendo aquelas que, pelo melhor, resumem o pensamento que aqui se pretendeu desenvolver e
justificar
VI. Finalidades e limites das penas criminais
1. A natureza exclusivamente preventiva das finalidades das penas
A base da solução aqui defendida para o problema dos fins das penas reside em que estes só podem ter natureza
preventiva – seja prevenção geral, positiva ou negativa, seja prevenção especial, positiva ou negativa – não
natureza retributiva. Nenhuma pena pode ser aplicada apenas para cumprir fins intimidatórios. Para se aplicar
uma pena é preciso que haja uma necessidade de proteção do bem jurídico e, simultaneamente, uma necessidade
de integrar o agente na comunidade.
O direito penal e o seu exercício pelo estado fundamentam-se na necessidade estatal de subtrair à disponibilidade
de cada pessoa o mínimo dos seus direitos, liberdades e garantias indispensável ao funcionamento, tanto quanto
possível sem entraves, da sociedade, à preservação dos seus bens jurídicos essenciais; e permitir por aqui, em
último termo, a realização mais livre possível da personalidade de cada um enquanto indivíduo e enquanto
membro da comunidade. A pena criminal só poe perseguir a realização daquela finalidade, prevenindo a prática
de futuros crimes.
2. Ponto de partida: as exigências da prevenção geral positiva ou de integração
A finalidade visada pela pena há-de ser a de tutela necessária dos bens jurídicos no caso concreto, com um
significado prospetivo (não retrospetivo), pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas da
comunidade na manutenção da vigência da norma violada.
É, por isso, de ter como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo
crime – ideia de prevenção geral positiva ou prevenção de integração – artigo 18.º, n.º2 CRP. Sendo esta a
finalidade primordial da pena, temos uma convicção de que existe uma medida ótima de tutela dos bens
jurídicos, medida esta que não pode ser excedida (princípio da necessidade) por considerações de qualquer tipo,
nomeadamente por exigências de prevenção especial, derivadas de uma particular perigosidade do delinquente.
É a prevenção geral positiva que fornece uma moldura e prevenção dentro de cujos limites podem e devem atuar
considerações de prevenção especial. Não é, portanto, a culpa que fornece uma “moldura de culpa”.
A prevenção geral negativa, ou prevenção de intimidação da generalidade, dentro da moldura de prevenção geral
positiva, não constitui por si mesma uma finalidade autónoma da pena, somente podendo surgir como efeito
lateral da necessidade de tutela dos bens jurídicos.
3. Ponto de chegada: as exigências da prevenção especial, nomeadamente da prevenção
especial positiva ou de socialização
Dentro da moldura consentida pela prevenção geral positiva ou de integração, devem atuar pontos de vista de
prevenção especial, sendo assim eles que vão determinar, em última instância, a medida da pena. Isto significa
que releva neste contexto qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza, seja a
função positiva ou de socialização, seja as negativas subordinadas de advertência individual ou de segurança. A
medida da necessidade de socialização do agente é o critério decisivo das exigências de prevenção especial. Só
entra em jogo, porém, se o agente se revelar carente de socialização; se não houver carência, tudo se resumirá em
conferir à pena uma função de suficiente advertência, o que permitirá que a medida da pena desça até perto do
limite mínimo da moldura de prevenção, ou mesmo que com ele coincida (defesa do ordenamento jurídico).
4. A culpa como pressuposto e limite da pena
Se a retribuição não tem qualquer palavra a dizer em matéria de finalidades da pena, a ela pertence, segundo a
sua história e segundo o seu conteúdo, o mérito indeclinável de ter posto em evidência a essencialidade do
princípio da culpa.
“Não há pena sem culpa e a medida da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa”. A
verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside numa proibição do excesso; a culpa não é fundamento da
pena, mas constitui o seu pressuposto necessário e o seu limite inultrapassável. Deste modo, a função da culpa é a
de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de
garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade. A culpa é o princípio fundante de todo o Direito Penal.
Deste modo, toda a pena que responsa adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da
culpa é uma pena justa.
5. Conclusão
Podemos resumir esta teoria penal do modo seguinte:
1. Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial;
2. A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa;
3. Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de
integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite
inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico;
4. Dentro desta moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de
exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa, de
intimidação ou de segurança individuais.
5º Capítulo – Fundamento, sentido e finalidades da medida de segurança criminal
I. As medidas de segurança criminais no sistema sancionatório
Enquanto as penas têm a culpa por pressuposto e limite, as segundas têm na base a perigosidade (individual) do
delinquente.
A necessidade das medidas de segurança faz-se, desde logo, sentir a ao nível do tratamento jurídico a dispensar
aos chamados agentes inimputáveis – incapaz de culpa – não pode ser sancionado com pena. Um segundo nível,
ao qual se faz sentir a indispensabilidade da medida de segurança, é o seguinte: mesmo que o facto ilícito-típico
tenha sido praticado por um imputável (capaz de culpa), bem pode suceder que os princípios que presidem à
culpa (ao limite máximo de medida de pena) se revelem insuficientes para ocorrer a uma especial perigosidade
resultante das particulares circunstâncias do facto e/ou personalidade do agente.
Neste âmbito, fica a ideia de complementar a aplicação da pena, limitada pela culpa, com a aplicação de uma
medida de segurança dirigida à especial perigosidade do agente.
Finalidade prevalente da medida de segurança
As medidas de segurança visam a finalidade genérica de prevenção do perigo de cometimento, no futuro, de
factos ilícitos-típicos pelo agente. Elas são, por isso, orientadas por uma finalidade de prevenção especial ou
individual da repetição da prática de factos ilícitos-típicos. As medidas de segurança visam obstar à prática de
factos ilícitos-típicos futuros através de uma atuação especial-preventiva sobre o agente perigoso. A finalidade de
prevenção especial ganha assim uma dupla função: uma função de segurança e uma função de socialização.
O propósito socializador deve, sempre que possível, prevalecer sobre a finalidade de segurança, como é imposto
pelos princípios da socialidade e humanidade que dominam a constituição político-criminal do Estado de Direito
contemporâneo; a segurança só pode constituir finalidade autónoma da medida de segurança se e onde a
socialização não se afigure possível.
O que justifica a aplicação de uma medida de segurança é sempre e só a necessidade de prevenção da prática
futura de factos ilícitos-típicos. A partir daqui torna-se indispensável a verificação da perigosidade do agente, do
perigo de cometimento por ele, no futuro, de factos ilícitos-típicos. Mas tal não é suficiente: a tentativa de operar
uma socialização reputada necessária e possível encontra-se na dependência da prática, pelo agente, de um facto
qualificado pela lei como ilícito-típico. Deste modo, torna-se claro que o fundamento de aplicação de qualquer
medida de segurança criminal não é apenas a perigosidade do agente, mas sim aquela perigosidade se e quando
revelada através da prática pelo agente de um facto ilícito-típico.
Finalidade secundária da medida de segurança
A exigência da prática pelo agente de um facto ilícito-típico como pressuposto da aplicação de uma medida de
segurança vem suscitar uma outra questão importante: qual o papel da finalidade de prevenção geral. A resposta
dominante é a de que uma tal finalidade não tem qualquer autonomia no âmbito da medida de segurança: ela só
pode ser conseguida de uma forma reflexa e dependente, na medida em que a privação ou restrição de direitos em
que a aplicação e execução da medida de segurança se traduz, possa servir para afastar a generalidade das
pessoas da prática de factos ilícitos-típicos.
Nomeadamente, quando aplicada a inimputáveis, as exigências de prevenção geral não se fazem sentir porque a
comunidade compreende bem que a reação contra perigosidade individual é ali fruto exclusivo de condições
internas anómalas, as quais não poem em causa as expetativas comunitárias na validade da norma violada,
porque o homem normal não tende a tomar como exemplo o comportamento de um inimputável.
E parece incontestável que, relativamente a certas medidas de segurança, o legislador terá tido de forma
autónoma em vista, ao criá-las, também o seu efeito de prevenção geral, mesmo sob s forma de prevenção geral
negativa. Como é o caso da medida de segurança de cassação da licença de condução de veículo motorizado, que
atua sobre a generalidade de uma forma mais intimidante do que a pena correspondente ao delito de tráfego.
Se a aplicação da medida de segurança não se liga apenas à perigosidade, mas sempre também à prática de um
facto ilícito-típico, então isso só pode acontecer porque ela tem ainda uma função de proteção de bens jurídicos e
de consequente tutela das expetativas comunitárias. Importa ainda considerar que o pressuposto da aplicação de
uma medida de segurança não deve ser a prática de qualquer facto ilícito-típico, mas só de um facto ilícito grave
(artigo 91.º, n.º2 CP).
Legitimação da medida de segurança
A legitimação decorre da finalidade global da medida de segurança de defesa social: de prevenção de ilícitos-
típicos futuros pelo agente perigoso que cometeu o crime. Deste modo, são compreensíveis as exigências
jurídico-constitucionais de que a aplicação de medidas de segurança seja monopólio do poder judicial (artigo
205.º, n.º1 CRP); e que a sua aplicação fique na dependência dos princípios da necessidade, subsidiariedade e
proporcionalidade ou proibição do excesso (artigo 18.º, n.º2 CRP). Uma medida de segurança só pode ser
aplicada para defesa de um interesse comunitário preponderante e em medida que não se revele desproporcional
à gravidade do ilícito-típico cometido e à perigosidade do agente.
O princípio da defesa social assume a função legitimadora da medida de segurança quando conjugado com o
princípio da ponderação de bens conflituantes, segundo o qual a liberdade da pessoa só pode ser suprimida ou
limitada quando o seu uso conduza, com alta probabilidade, a prejuízo de outras pessoas que, na sua globalidade,
pesa mais do que as limitações que o causador do perigo deve sofrer com a medida de segurança.
Medida de segurança e pena
Em matéria de finalidades das reações criminais não existem diferenças fundamentais entre penas e medidas de
segurança. Diferente é apenas a forma de relacionamento entre as finalidades de prevenção geral e especial. Na
pena, a finalidade de prevenção geral positiva assume o primeiro lugar, enquanto finalidades de prevenção
especial de qualquer espécie atuam só no interior da moldura de prevenção construída dentro do limite da culpa.
Na medida de segurança, as finalidades de prevenção especial assumem lugar predominante, não ficando todavia
excluídas considerações de prevenção geral de integração sob uma forma que se aproxima das exigências
mínimas de tutela do ordenamento jurídico.
A diferença essencial entre penas e medidas de segurança encontra-se na circunstância de ser pressuposto
irrenunciável da aplicação de qualquer pena a observância do princípio da culpa, que não exerce qualquer papel
no âmbito das medidas de segurança; e a medida de segurança ser determinada, na sua gravidade e duração, não
pela medida de culpa, mas pela existência de perigosidade, todavia estritamente limitada por um princípio de
proporcionalidade.
Monismo e dualismo do sistema
Podemos dizer que o nosso sistema sancionatório criminal, ao ter medidas de segurança para a perigosidade e a
pena para a culpa, é claramente dualista. Mas não, porque para o mesmo facto só funciona uma das coisas, não
existe conjugação das duas, uma dirige-se à culpa e a outra à perigosidade. Por isso, o sistema é
tendencionalmente monista, na medida em que concebe um sistema de vicariato, onde são executadas ambas as
sanções, sendo a medida de segurança cumprida primeiro (ART 99º CC).
Artigo 40.º CP – Finalidades das penas e das medidas de segurança
1. A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do
agente na sociedade.
2. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionalmente à gravidade do facto e à
perigosidade do agente.
Medidas de segurança – a finalidade da sua aplicação é a proteção de bens jurídicos e integração do agente na
comunidade. O nº3 do artigo 40º vem dizer que a medida de segurança só pode ser aplicada a alguém
inimputável e que tenha praticado um facto descrito como crime; além disso, é preciso a perigosidade, o risco de
que aquela pessoa continue no futuro a colocar em causa os bens jurídicos da comunidade. Aqui, a doutrina
especial é a mais importante.
6º Capítulo – O comportamento criminal e a sua definição: o conceito material de crime
I. O conteúdo material do conceito de crime
Quando se pergunta pelo conceito material de crime procura-se uma resposta à questão da legitimação material
do direito penal, ou seja, qual a fonte de onde promana a legitimidade para considerar certos comportamentos
humanos como crimes e aplicar aos infratores sanções de espécie particular. É necessário também aferir a função
e os limites do direito penal.
O legislador português de 1995 veio dizer que pena e medida de segurança têm função de tutela de bens jurídicos
e não de proteção perante uma qualquer ofensividade ou danosidade social. Tutela subsidiária de bens jurídicos
dotados de dignidade penal, cuja lesão se revela digna e necessitada de pena.
Bem jurídico é a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de cum
certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como
valioso.
Puras violações morais, proposições meramente ideológicas, e violação de valores de mera ordenação não devem
ser objetos de criminalização, não se consideram autênticos bens jurídicos.
A limitação da intervenção penal deriva do princípio da proporcionalidade; o estado só pode intervir nos casos
em que todos os outros meios da política social se revelem insuficientes ou inadequados.
A ideia de Stratenwerth é a que acabamos por nos aproximar. A tutela dos grandes riscos e das gerações futuras
pode em certos casos passar pela assunção de um direito penal do comportamento em que são penalizadas e
punidas puras relações da vida como tais. Não se trata com isto, porém, de uma alternativa ao direito penal do
bem jurídico: ainda aqui a punição imediata de certas espécies de comportamentos é feita em nome da tutela de
bens jurídicos coletivos e só nesta medida se encontra legitimada. Desta maneira se manterá a fidelidade possível
ao paradigma jurídico-penal iluminista que nos acompanha e se espera possa continuar a ser fonte de
desenvolvimento e de progresso; e possa continuar assim a assumir o seu papel insubstituível na contenção dos
mega riscos da sociedade pós-industrial e na função tutelar dos interesses também das gerações futuras.
7º Capítulo – Limites do Direito Penal
Os limites por vezes deparam com graves dificuldades em zonas da distinção. O que deriva sobretudo da
circunstância de também em outros ramos do direito que não o penal – direito administrativo, direito disciplinar,
direito processual, e mesmo direito privado – o legislador se servir de “penas” que todavia assumem o carácter de
penas não criminais. Isto deixa perceber que, em último termo e uma vez mais, seja à natureza das
consequências jurídicas, derivada do seu fundamento e das suas finalidades, que terá de ir buscar-se a fronteira
da delimitação.
I. Direito penal e direito de mera ordenação social (direito das contraordenações): penas
criminais e coimas
1. Do direito penal administrativo ao direito de mera ordenação social
Em boa verdade, o direito penal enquadra-se num conceito mais amplo que é o conceito sancionatório. Os
direitos sancionatórios são vários, mas o direito penal é diferente de todos eles. Englobam um leque, como por
exemplo:

 Ilícito disciplinar – é mais distante do Direito Penal, embora o aplique como norma subsidiária.
 Direito de mera ordenação social (direito das contraordenações) – mais próximo do Direito Penal; ao
ilícito da contraordenação, corresponde a coima. É o direito público que está mais difundido.
O que é o direito de mera ordenação social? É necessário fazer uma abordagem do direito penal administrativo,
para chegar ao direito de mera ordenação social.
Ordem administrativa – foi no tempo do estado de polícia iluminista que surgiu uma ampla esfera da
administração e um profuso ordenamento policial, todavia sem subordinação a preceitos jurídicos. Com a
revolução francesa, a administração juridifica-se e submete-se à legalidade, ao mesmo tempo que a atividade
policial se concentra na proteção antecipada de perigos indeterminados para a consistência dos direitos subjetivos
do cidadão; direitos subjetivos estes por sobre cujo âmbito essencialmente se demarcava também a função
protetiva do direito penal. Quando foi necessário procurar enquadramento jurídico para as ofensas ao exercício
da referida atividade policial da administração, ele foi encontrado no conceito de contravenção e assim ainda
dentro do direito penal e das suas formas de infração.
A situação altera-se com base das duas grandes guerras – com a transformação da administração numa
administração conformadora, que assume funções pertencentes a círculos progressivamente mais amplos do
cuidado com a existência próprio do estado social. O interesse da administração reside em cumprir tarefas
crescentes e complexas daquele cuidado, a medida do possível. O legislador foi-se deixando seduzir pela ideia de
pôr o aparato das sanções criminais ao serviço dos mais diversos fins de política social; e assim deu ênfase ao
fenómeno da híper-criminalização e ao surgimento do direito penal administrativo. Mas esta ideia não podia
persistir. Foi então levada a cabo uma distinção fundamental, consoante as condutas fossem relevantes à luz do
direito penal, ou caso se considerassem ético-socialmente neutras, com a respetiva ilicitude só constituída
materialmente proibida, fora do direito penal, e consideradas um ilícito administrativo. Assim surgem as
contraordenações.
Fenómeno de descriminalização, redução do direito penal ao seu mínimo essencial – fez-se por dois caminhos
(sobretudo): o primeiro diz respeito a libertação do direito penal de um conjunto de bens que não eram
considerados bens essenciais para a sociedade; o segundo dizia respeito às contravenções – algumas delas eram
realidades que tinham importância suficiente para merecer a tutela do direito penal por estarem em causa bens
jurídico essenciais para a sociedade, mas outras não tinham interesse do ponto de vista jurídico, eram importantes
por serem regras, mas não podiam ser parte do direito penal – deram origem a um novo direito: Direito de mera
ordenação social.
Este foi consagrado pela primeira vez no DL 232/79, DE 14-7, que foi depois substituído pelo DL
433/82, de 27/10, que instituiu o novo regime geral do direito de mera ordenação social e do respetivo
processo.
Direito Penal primário – o típico, aquele que corresponde aos bens essenciais reconhecidos pela generalidade das
comunidades, a maioria individuais (como a vida), mas alguns também coletivos (como a segurança).
Direito Penal secundário – à medida que a economia foi avançando e os Estados começaram a ser completamente
independentes da economia (estados capitalistas), foi surgindo uma necessidade de o Direito intervir no campo
económico; espaço do estado vs espaço da economia; acabamos por cair numa necessidade de o Estado criar uma
regulação para a economia, e cada vez mais e mais. E quando as regras mais básicas forem desrespeitadas? A
maior parte era deixada à regulação, aos operadores, mas o interesse das pessoas, os bens públicos, normalmente
relacionados com a atividade económica, sendo bens coletivos, teriam que ser trazidos às contraordenações, aos
ilícitos.
O Direito de mera ordenação social nasceu para ser independente do Direito Penal, com a intenção de afastar
deste ultimo um conjunto de comportamentos que não tinham dignidade penal para serem bens jurídicos.
2. Fundamentos e sentido da autonomização do direito de mera ordenação social
Quais os argumentos que nos permitem distinguir o Direito Penal do Direito de mera ordenação social?

 Índice conceitual formal – artigo 1º do CP e artigo 1º DL 433/82. Num pune-se com penas, noutro pune-
se com coimas. No Direito de mera ordenação social, a sanção é sempre patrimonial, no Direito Penal, a
sanção pode ser prisão ou multa (se não paga a multa, esta sanção pode ser convertida em prisão,
enquanto a coima não).
 A coima não se liga à atitude interna do agente, estamos perante uma mera advertência
 Do ponto de vista da processualização, a pena é aplicada pelo tribunal e a coima é aplicada pela entidade
administrativa.
Estas distinções referidas não chegam para distinguir, é necessário entender o porquê de o legislador ter decidido
assim. É preciso uma autonomia material.
2.1.A autonomia material do ilícito
A perspetiva da indiferença ético-social deve ser dirigida, não aos ilícitos, mas às condutas que os integram.
Existem condutas às quais, antes e independentemente do desvalor da ilicitude, corresponde, e condutas às quais
não corresponde um mais amplo desvalor moral, cultural ou social. A conduta é, no primeiro caso, axiológico-
socialmente relevante e, no segundo caso, axiológico-socialmente neutra. O que no direito da mera ordenação
social é axiológico-socialmente neutro não é o ilícito, mas a conduta em si mesma, divorciada da proibição legal.
É este o critério material substancial que está na base da distinção entre ilícito penal e ilícito de mera ordenação
social. Se a conduta for axiológico-socialmente relevante, trata-se de um ilícito penal; se a conduta dor
axiológico-socialmente neutra, trata-se de um ilícito de mera ordenação social.
Na conduta axiológico-socialmente neutra não se verifica uma correspondência imediata da conduta a uma
valoração mais ampla daquela espécie: se se verifica que o direito valora algumas destas condutas como ilícitas,
tal só pode acontecer porque o substrato da valoração jurídica não é constituído apenas pela conduta, mas
também da proibição legal. É o substrato complexo formado pela conduta e pela decisão legislativa de a proibir
que suporta a valoração da ilicitude.
Pode afirmar-se que todo o ilícito ofende um bem juridicamente protegido, mas isto não obsta a que, enquanto
em certas infrações (os crimes) o bem jurídico protegido existe independentemente da proibição, noutras (as
contraordenações) só se desenha quando a conduta se liga com a regra legal que a proíbe. No direito da mera
ordenação social, o bem jurídico é só motivo e não conteúdo do tipo; a ilicitude só é consequência e não causa da
proibição legal.
2.2 Autonomia da sanção
A coima é uma sanção exclusivamente patrimonial (ART 17º DL 433/82) que se diferencia, na sua essência e
finalidades, da pena criminal. Tal como na pena criminal, também na coima o pensamento de retribuição não tem
qualquer papel, pelo que apenas podem estar em questão finalidades preventivas. A coima não se liga, ao
contrário da pena criminal, à personalidade do agente e à sua atitude interna, antes serve como mera advertência
ou reprimenda relacionada com a observância de certas proibições ou imposições legislativas. As finalidades da
coima são estranhas a sentidos positivos de prevenção, nomeadamente de prevenção especial de socialização.
O efeito da falta de pagamento da coima só pode ser a execução da soma devida (ART 89º DL 433/82) e nunca a
sua conversão em prisão subsidiária, como sucede com a pena de multa criminal. O ART 89º-A DL 433/82 veio
permitir que, a requerimento do condenado, possa o tribunal ordenar que a coima aplicada seja total ou
parcialmente substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade. Esta prestação é uma pena criminal de
substituição da pena criminal de prisão, com um sentido, natureza e finalidades específicas, e que não deve por
isso ser transformada numa sanção contraordenacional.
Penas criminais e sanções disciplinares
O direito disciplinar e as respetivas sanções conformam o domínio que mais se aproxima do direito penal e das
penas criminais. Os comportamentos integrantes do ilícito disciplinar não podem dizer-se axiologicamente
neutros, nem que o ilícito respetivo é constituído também pela proibição. A essência do ilícito disciplinar
encontra a sua justificação e função que o serviço público assume nos quadros do Estado de Direito democrático.
O serviço público é hoje perspetivado pelo cumprimento de uma função própria e insubstituível no processo de
integração das funções específicas do Estado, estritamente subordinado ao princípio da legalidade da
Administração. Daqui resulta para o agente administrativo o asseguramento de uma série de direitos
profissionais, mas também a imposição de especiais deveres. Se, através de um certo comportamento, o
funcionário viola a relação de dever comete um ilícito disciplinar e torna-se passível de medidas disciplinares.
O ilícito disciplinar é, ao contrário do ilícito penal, um ilícito interno, exclusivamente virado para o serviço, que
se pode constituir quando com ele não se tenha verificado um abalo da autoridade estadual ou da Administração;
diversamente do que sucede com o ilícito penal próprio dos “crimes cometidos no exercício de funções
públicas”, que se constitui apenas quando se verifica uma lesão ou perigo de lesão daquela autoridade. Muitas
das violações dos deveres de serviço não assumem a gravidade suficiente para serem ameaçadas com penas
criminais – princípio da subsidiariedade, ou seja, a sanção disciplinar é aplicada e só subsidiariamente se aplica o
direito penal.
A medida disciplinar esgota a sua função e finalidade no asseguramento da funcionalidade, integridade e
confiança do serviço público. Por isso mesmo, não pode apontar-se à medida disciplinar uma finalidade primária
de prevenção geral, seja ela positiva ou negativa, mas apenas de prevenção especial. A medida disciplinar é
cumulável com a pena criminal.
Penas criminais e sanções de ordenação ou conformação processual
Sanções de ordenação processual são medidas aplicadas a comportamentos que violem as formalidades de uma
tramitação sem entraves de um processo. Quando tal acontece são aplicadas estas sanções, sob a forma de
unidades de conta processual. Às sanções processuais são estranhas finalidades de prevenção positiva, geral e
especial. O que fica é simplesmente uma ameaça (intimação) que esgota a sua finalidade na observância das
formalidades legais do processo. Por outro lado, o princípio da subsidiariedade desempenha um grande papel:
trata-se nestas infrações de ilícitos para sancionamento dos quais as sanções penais não se revelam adequadas.
Coisa diferente das sanções processuais são as chamadas medidas de coação processual, que são destinadas à
consecução de finalidades processuais de natureza cautelar.
Penas criminais e penas privadas
Todas as sanções não criminais antes consideradas têm em comum com as sanções criminais a circunstância de
serem sanções jurídico-públicas, nas quais o sancionado se apresenta perante o poder sancionatório numa relação
de sujeição. Diferentemente, o direito privado conhece sanções baseadas numa relação paritária ou igualitária:
são as sanções privadas, fundadas na submissão voluntária dos interessados ao poder sancionatório (ART 810º
nº1 CC).

TÍTULO II – A LEI PENAL E A SUA APLICAÇÃO


8.º Capítulo – O princípio da legalidade da intervenção penal
I. O princípio nullum crimen, nulla poena sine lege
1. Função, sentido e fundamentos
O Direito Penal surge para limitar a intervenção do Estado, não para lhe conferir poderes. O princípio da
legalidade diz que ninguém pode ser punido sem que exista uma lei prévia, escrita, estrita e certa. “nullum
crimen, nulla poena, sine lege” – não pode haver crime , nem pena, sem lei.
Historicamente, o princípio da legalidade, já com esta veste, surge em 1215 – Magna Carta Libertatum; Bill of
Rights de 1689 é o que segue à magna carta. Posteriormente, surgem alguns textos constitucionais, na América,
que consagram o princípio. O texto em que se verte a expressão moderna é a “Declaração dos Direito do Homem
e do Cidadão”, de 1789.
Na nossa constituição, o artigo 29.º (aplicação da lei criminal) consagra este princípio da legalidade penal. No
código Penal, o artigo 1.º consagra-o também.
Crimes contra o direito internacional – artigo 29.º, n.º2; vem permitir que os princípios internacionais possam
servir de base para a resolução de certos conflitos, e também o reconhecimento de certos rimes contra o direito
internacional mesmo que não sejam puníveis à luz da lei positiva interna. A responsabilidade por crimes contra o
direito internacional não se encontra sujeita ao princípio da legalidade prevista no n.º1 do referido aritgo.
Este princípio tem um conjunto de fundamentos, divididos em externos e internos.

 Externos – ligados à conceção fundamental de Estado.


o Princípio liberal: toda a atividade intervencionista do Estado nos DLGs dos cidadãos tem de
ligar-se à existência de uma lei geral, abstrata e anterior – artigo 18.º CRP.
o Princípio democrático: a intervenção penal só é legítima se for feita pela instância que representa
o povo como titular último do “ius puniendi”. O poder é do povo, é em nosso nome que o Estado
aplica; quem tem direito de punir é o povo.
o Princípio da separação de poderes: exige-se uma lei, em sentido formal, emanada ou autorizada
pelo Parlamento.
Princípio do monopólio Estadual da função jurisdicional – artigo 202.º CRP.

 Internos – voltados para uma natureza explicitamente jurídico-penal.


o Prevenção geral: o direito penal só cumpre a sua função motivadora do comportamento da
comunidade. Esta só se efetiva com uma lei prévia escrita, estrita e certa que siga quais os
comportamentos que são puníveis.
o Princípio da culpa: não seria legítimo dirigir a alguém um juízo de censura se uma lei anterior não
considerasse a atitude como crime.
2. Nullum crimen sine lege
O que se pretende sustentar é que não podemos considerar uma conduta crime se não houver uma lei anterior que
o diga. O princípio da legalidade funciona sempre contra o legislador e a favor da comunidade. Qualquer
comportamento, por mais terrível que se considere, se não estiver previsto como crime, não se pode considerar
crime nem punir.
3. Nulla poena sine lege
Não há pena/sanção criminal, sem lei. Artigo 29.º, n.º3 da CRP.
Medidas se segurança – prevenção especial. Aqui, já se começa a pensar de maneira diferente, se a finalidade é a
prevenção especial, alguns autores dizem que se deve aplicar a medida de segurança do momento, mais
adequada, do que aquela que já estaria consagrada (ou não). Em Portugal, isto não se discute, a medida de
segurança tem que existir e já estar consagrada no momento da prática do facto; é também necessário que exista
uma lei prévia. Artigo 2.º, n.º1 CP.
Existem consequências deste princípio da legalidade, sendo que estas se encontram divididas em 5 planos:
II. O plano do âmbito de aplicação
A que matérias se aplica este princípio, dentro do Direito Penal? Não abrange toda a matéria penal, apenas aquela
que se traduza em fundamentar ou agravar a responsabilidade do agente. Se está criado para limitar o Estado e
proteger o cidadão do mesmo, só se vira contra esse. Cobre toda a matéria relativa ao tipo de ilícito ou ao tipo de
culpa, mas já não a que respeita às causas de justificação ou às causas de exclusão da culpa.
III. O plano da fonte
Exigência de uma lei formal (emanada pela AR ou por ela autorizada). Os crimes, penas, medidas de segurança e
os seus pressupostos, precisam de lei formal para serem criados. À luz do princípio da legalidade, não é preciso
lei formal para que sejam retirados do OJ crimes; a descriminalização é a “favor” da comunidade, e uma vez que
o princípio da legalidade atua “contra” o Estado, não é necessário que exista lei formal para remover crimes
(pode, no entanto, e através de outros princípios, dizer-se que será preciso a lei formal, como por exemplo, se
tivermos em conta o princípio da segurança e certeza jurídicas).
[Normas penais em branco – não estão fechadas por si próprias, têm parte do seu conteúdo explicado noutras
normas (atos administrativos, regulamentos, etc). São casos em que o legislador tem que legislar numa certa
matéria em que não é “especialista”, tendo por isso dificuldade na redação das normas. Ex.: área do ambiente,
áreas financeiras, etc.]
IV. A determinabilidade do tipo legal
A descrição, no tipo legal, da matéria proibida, e de todo os outros requisitos de que dependa em concreto uma
punição, permite que se tornem objetivamente determináveis os comportamentos proibidos ou sancionáveis. O
tipo legal tem que descrever cuidadosamente e especificamente os comportamentos proibidos e os seus
fundamentos. A lei responsabilizadora ou agravadora tem que ser específica e esclarecedora, renunciando a
utilização de elementos normativos, conceitos indeterminados, clausulas gerais, etc.
V. A proibição da analogia
Artigo 29.º, n.º1 CRP e artigo 1.º, n.º1 CP – analogia é proibida em direito penal sempre que funcione contra o
agente e vise servir a fundamentação ou agravação da sua responsabilidade.
Artigo 1.º, n.º3 CP – não é permitido o recurso à analogia para qualificar um facto como crime, definir um estado
de perigosidade ou determinar a pena ou a medida de segurança que lhes corresponde.
Deve entender-se, neste contexto, analogia como aplicação de uma regra jurídica a um caso concreto não
regulado pela lei, através de um argumento de semelhança substancial com os casos regulados: a chamada
analogia legis. O argumento da analogia tem de ser proibido em direito penal, por força do conteúdo de sentido
do princípio da legalidade, sempre que ele funcione contra o agente e vise servir a fundamentação ou a agravação
da sua responsabilidade (artigo 29.º, n.º1 CRP e artigo 1.º, n.º1/3 CP). Isto porque nestas situações não se pode
afirmar que a lei declara punível o ato ou a omissão.
Interpretação e analogia em direito penal
A proibição da analogia pressupõe a resolução do problema dos limites da interpretação admissível em direito
penal. Praticamente todos os conceitos utilizados na lei são suscetíveis e carentes de interpretação: não apenas os
conceitos normativos, mas mesmo aqueles que à primeira vista se diria caracterizadamente descritivos. O critério
de distinção teleológica e funcionalmente imposto pelo fundamento e pelo conteúdo de sentido do princípio da
legalidade é o seguinte: o legislador penal é obrigado a exprimir-se através de palavras, as quais todavia nem
sempre possuem um único sentido, mas pelo contrário apresentam-se quase sempre polissémicas. Por isso, o
texto legal torna-se carente de interpretação, oferecendo às palavras que o compõem um quadro de significados
dentro do qual o aplicador da lei se pode mover e pode optar sem ultrapassar os limites legítimos da
interpretação. Fora deste quadro, o aplicador encontra-se já no domínio da analogia proibida.
Fundar ou agravar a responsabilidade do agente em qualquer base que caia fora do quadro de significados
possíveis das palavras da lei não limita o poder do Estado e não defende os DLG das pessoas. Se o caso couber
num dos sentidos possíveis das palavras da lei nada há a acrescentar ou a retirar aos critérios gerais da
interpretação jurídica. Assim, será decisivo que a interpretação seja teleologicamente comandada, isto é,
determinada em definitivo à luz do fim almejado pela norma e que seja funcionalmente justificada, ou seja,
adequada à função que o conceito assume no sistema.
Âmbito de proibição de analogia
A proibição de analogia vale relativamente a todos os elementos, qualquer que seja a natureza, que sirvam para
fundamentar a responsabilidade ou para a agravar. Concretamente, a proibição da analogia abrange os elementos
constitutivos dos tipos legais de crime descritos na Parte Especial do CP. Assim como também vale
relativamente às leis penais em branco não só no que toca à parte sancionatória da norma, mas mesmo na parte
em que esta remete para regulamentação externa. Também relativamente à matéria das consequências jurídicas
do crime vale a proibição da analogia em tudo quanto possa revelar-se desfavorável ao agente, isto é, em tudo o
que signifique restrição da sua liberdade no sentido mais compreensivo.
A proibição da analogia vale ainda para algumas normas da Parte Geral do CP: aquelas que constituem
alargamentos da punibilidade de comportamentos previstos na Parte Especial, nomeadamente em matéria de
tentativa (ART 22º CP) e de comparticipação (ART 26º CP). Um problema especial é aqui constituído pelas
causas de justificação e pelas causas de exclusão da culpa e da punibilidade. Tratando-se nelas de situações que
não fundamentam ou agravam a responsabilidade do agente, mas pelo contrário a excluem ou atenuam, o recurso
à analogia é legítimo sempre que o resultado seja o alargamento do seu campo de incidência.
A analogia é um elemento de integração de lacunas em vários ramos do Direito, mas é proibida em Direito Penal.
No entanto, tudo o que seja favorável ao cidadão, é permitido. O que se proíbe de verdade, é a analogia “ in
mallem partem contra reum” – analogia que está relacionada com o crime, com os seus fundamentos,
agravamento, etc (vertente incriminadora).
Normas de extensão da punibilidade – artigo 23.º CP (para a tentativa de homicídio).
VI. A proibição da retroatividade. O âmbito de validade temporal da lei penal ou problema da
“aplicação da lei penal no tempo”
Proibição da retroatividade “in malem partem contra reum”. A favor, é permitido. Ninguém pode ser punido
sem que haja uma lei prévia.
Isto implica a importância do momento da prática do facto – “tempus delicti” - o que está longe de ser isento de
dúvidas, quer porque o facto pode ser uma ação ou omissão, quer porque nele se pode compreender não só a
conduta, mas também o resultado, quer porque tanto a conduta como o resultado se pode arrastar no tempo.
Artigo 3.º CP – o facto considera-se praticado no momento em que o agente atuou ou, no caso de omissão,
deveria ter atuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido. Portanto,
decisivo para a determinação do momento da prática do facto é a conduta, não o resultado. A regulamentação
vale para todos os comparticipantes no facto criminoso, venha a sua responsabilização a ter lugar a título de
autores ou apenas de cúmplices – artigos 26.º e 27.º.
Quanto aos crimes duradouros, a melhor doutrina parece ser a que qualquer agravação de lei, ocorrida antes do
término da consumação, só pode valer para aqueles elementos típicos do comportamento verificado após o
momento da modificação legislativa.
Âmbito de aplicação da proibição – a retroatividade é proibida quanto a tudo aquilo que prejudique o arguido.
A proibição da retroatividade funciona apenas a favor do agente, não contra ele. Por isso, a proibição vale
relativamente a todos os elementos da punibilidade, à limitação de causas de justificação, de exclusão ou de
diminuição da culpa e às consequências jurídicas do crime. Também relativamente às medidas de segurança se
fazem sentir exigências de proteção dos DLG das pessoas atingidas que substancialmente se identificam com as
que se fazem sentir ao nível das penas.
Princípio da aplicação da lei mais favorável – Aplicação retroativa de lei mais favorável “lex mellior”
(necessidade penal – não é uma consequência do princípio da legalidade, mas sim da necessidade; se a
comunidade vem “desvalorizar” um determinado bem jurídico, é normal que a necessidade de intervenção penal
seja menor). Artigo 2.º, n.º4 CP e artigo 29.º, n.º4, 2ª Parte CRP.
No entanto, surgem problemas quanto a isto:

 1.º Grupo de problemas – hipóteses de descriminalização


Lei posterior à prática do facto deixa de o considerar crime. Artigo 2.º n.º 2 CP. A aplicação da lei nova dá-se se
a decisão ainda não tiver sido proferida, ou mesmo se já tenha transitado em julgado, sendo o sujeito a cumprir
pena “imediatamente” libertado. Se a conceção do legislador se alterou até ao ponto de deixar de reputar jurídico-
penalmente relevante um comportamento, não tem qualquer sentido político-criminal manter os efeitos de uma
conceção ultrapassada.
Surgem grandes dúvidas no caso de uma conduta deixar de ser crime e passar a constituir uma contraordenação.
A conceção que me parece mais apropriada é a de que o facto deixa de ter relevância jurídica, não podendo ser
objeto de punição penal, nem contraordenacional. Isto porque, atendendo à autonomia material do direito
contraordenacional face ao direito penal, se argumenta que, dada a descriminalização, não poderá o facto ser
punido criminalmente, mas também não poderá ser sancionado a título contraordenacional uma vez que no
momento da sua prática não existia ainda uma norma legal que para ele cominasse numa coima. A questão
constitui relevância penal pois com a descriminalização, a conduta deixou de ter relevância penal.
Um segundo grupo que levanta questões é aquele em que a lei nova mantém a incriminação de uma conduta
concreta, embora sob um novo ponto de vista político-criminal, mesmo que ele se traduza numa modificação do
bem jurídico protegido. Ex.: o crime de violação era perspetivado, até 1995, como crime contra os fundamentos
ético-sociais da vida social, passando após reforma de 1995 a ser perspetivado como crime contra a liberdade e
autodeterminação sexual da vítima, e consequentemente um crime contra a pessoa. Esta evolução traz uma
modificação do próprio bem jurídico protegido, no entanto a punibilidade das condutas concretas de violação não
é minimamente afetada, pelo que seria inadmissível dizer que foram descriminalizados os crimes de violação
anteriormente praticados, mas só decididos no domínio da lei nova.

 2.º Grupo de problemas – hipóteses de atenuação da consequência jurídica


Casos em que a lei nova atenua as consequências jurídicas que ao facto se ligam, nomeadamente a pena, a
medida de segurança ou os efeitos penais do facto. Também neste caso a lex mellior deve ser retroativamente
aplicada, de acordo com o artigo 2.º, n.º4 CP (com ressalva dos casos julgados). Caso o sujeito já esteja a cumprir
pena e uma lei nova venha estabelecer uma pena menor, este cumpre os anos que estiverem estipulados pela lei
nova; se já tenha cumprido os anos previstos pela lei nova, o sujeito é posto em liberdade, mesmo que pela lei
antiga este tivesse que cumprir mais anos.
Nos casos em que uma lei antiga preveja 8 anos de pena máxima (por exemplo), e um sujeito é condenado a 4
anos, e depois aparece uma lei nova que estabelece uma pena máxima de 4 anos para a mesma situação – 371.º-A
Código Processo Penal – permite ao arguido requerer que haja uma reabertura de audiência, para que seja
aplicada uma nova pena; o juiz pega no raciocínio todo que foi feito, e aplica-o à luz do novo quadro penal,
estipulando uma pena nova.

 3.º Grupo de problemas – leis intermédias


Aplica-se também aqui a lei mais favorável. Leis que entraram em vigor posteriormente à prática do facto, mas já
não vigoram no momento da apreciação judicial. São leis que existiram entre uma coisa e outra. Esta solução é
completamente coberta pela letra tanto do artigo 29.º, n.º4, 2ª parte CRP, como ainda mais claramente, pela do
artigo 2.º, n.º4, 1ª parte do CP. E justifica-se teleológica e funcionalmente porque com a vigência da lei mais
favorável (intermédia) o agente ganhou uma posição jurídica que deve ficar coberto de proibição de
retroatividade da lei mais grave posterior; tem que haver segurança jurídica, e a situação do agente nunca pode
ficar pior, se sai uma lei mais favorável, mesmo que depois venha sair outra, é aquela que é aplicada.

Regime mais favorável ao agente


Depende de cada caso concreto. Não existe um padrão que é mais favorável, mas existem algumas linhas a ter
em consideração:
1- Deve atender-se à totalidade do regime, e não apenas a alguns dos seus elementos. Não é só a pena que
importa, é todo o regime da lei;
2- Não deve considerar-se a lei em abstrato, mas as circunstâncias concretas do caso;
3- Em princípio, deve aplicar-se um dos regimes em bloco, ou seja, não pode haver combinações de
regimes;
As chamadas leis temporárias
Não confundir com leis intermédias!! As leis temporárias são leis que determinam elas próprias o período pelo
qual vigoram, são editadas pelo legislador para um tempo determinado, seja porque esse período é desde logo
apontado pelo legislador em termos de calendário ou em função da verificação ou cessação de certo evento.
Quando passa o período, há caducidade, a vigência desta lei cessa imediatamente.
Temos aqui uma exceção ao princípio da aplicação da lei mais favorável – artigo 2.º, n.º3 CP. Muito embora haja
uma lei posterior mais favorável, as leis temporárias são uma exceção ao princípio da lei mais favorável, porque
a modificação legal operou-se em função não de uma alteração da conceção legislativa, mas unicamente de uma
alteração das circunstâncias fácticas que deram base à lei (ex.: Euro 2004, cria-se uma lei temporária que vem
reforçar uma pena, devido às circunstâncias de maior risco de acontecerem situações de perigo; não faz sentido
que esta lei temporária se aplique noutras situações posteriores ao Euro). Não existem aqui expectativas que
mereçam ser tuteladas, enquanto, por outro lado, razões de prevenção geral positiva persistem.
Entre leis temporárias, vigoram as regras de aplicação da lei mais favorável. No caso de um período de exceção,
se o legislador criar uma lei temporária, e a seguir criar outra mais favorável, sobre o mesmo período e facto,
aplica-se a lei temporária mais favorável.
Regra – lei vigente na prática do facto
Caso exista, aplica-se lei mais favorável
No caso de existir lei temporária, é esta que se aplica, e se existirem duas ou mais leis temporárias, aplica-se a
mais favorável.
9.º Capítulo – Âmbito de validade espacial da lei penal
I. o sistema de aplicação da lei penal no espaço e os seus princípios constitutivos
Todos os códigos penais na generalidade dos estados têm normas que estipulam a sua validade espacial. Isto é
necessário para a aplicação internacional da lei penal, para se saber em que espaço se aplica a lei.
A aplicação da lei no espaço pode ser estabelecida por um conjunto de princípios, um princípio base e princípios
acessórios.
O princípio regra/base do direito penal português é o princípio da territorialidade – diz que o estado aplica o
seu direito penal a todos os factos criminalmente relevantes que tenham ocorrido no seu território, com
indiferença por quem ou contra quem foram cometidos.
Ao lado deste, temos um conjunto de princípios acessórios:
1. Princípio da nacionalidade – diz que o estado exerce o seu poder punitivo quanto aos factos penalmente
relevantes praticados pelos seus nacionais, indiferentemente do lugar onde foram praticados e das
pessoas contra quem foram praticados.
2. Princípio da defesa dos interesses nacionais – diz que o estado exerce o seu poder punitivo
relativamente a factos dirigidos contra os seus interesses nacionais específicos, sem consideração do
autor que os cometeu ou do lugar em que foram cometidos.
3. Princípio da aplicação universal/da universalidade – diz que o estado pune todos os factos contra os
quais se deva lutar a nível mundial, ou que internacionalmente ele tenha assumido a obrigação de punir,
com indiferença pelo lugar da comissão, pela nacionalidade do agente ou pela pessoa da vítima.
4. Princípio da administração supletiva da justiça penal – artigo 5.º, n.º1, alínea e) CP: diz que a lei
portuguesa tem competência para conhecer os factos que, não se encontrando sujeitos às regras
anteriores, foram praticados no estrangeiro por estrangeiros que se encontram em Portugal e cuja
extradição, tendo sido requerida, não possa ser concedida.
Analisando cada um deles…
II. Conteúdo e sistema de combinação dos princípios aplicáveis
1. O princípio básico da territorialidade
Artigo 4.º, alínea a) CP
A generalidade dos sistemas legislativos assume como princípio base o princípio da territorialidade. Existem
razões de índole externa/jurídico-internacionais e de política estadual que justificam este facto.

 Razão de facilitação da harmonia internacional, evitando-se conflitos positivos ou negativos de


jurisdição, e respeitando o princípio da não ingerência (princípio fundamental no direito internacional).
Se cada um aplica o seu direito penal no seu território, dentro das suas fronteiras, não há grande
confusão, não existem grandes conflitos.
Existem igualmente razões de índole interna/jurídico-penais e de política criminal. Razões de ordem subjetiva –
É na sede do delito que mais se fazem sentir as necessidades de punição para cumprimento das finalidades,
nomeadamente a finalidade de prevenção geral positiva. É a comunidade onde o facto teve lugar que viu a sua
Paz jurídica perturbada, e, por isso, exige que a confiança no ordenamento jurídico e as expectativas na vigência
da norma, sejam reestabelecidas. Por outro lado, somam-se razões de ordem processual – é, em princípio, no
lugar onde o facto foi praticado que melhor se pode investiga-lo, e, portanto, onde existem mais fundadas
expectativas que se possa obter uma decisão judicial justa.
Para sabermos se aplicamos a lei penal portuguesa, temos que aferir dois pontos:
O que é território português – artigo 5.º CRP: continente e ilhas como estão determinadas no mapa, águas
territoriais, zona económica exclusiva, fundos marinhos correspondentes
Onde foi praticado o facto – artigo 7.º CP: critério misto ou plurilateral – juntam-se dois critérios: conduta e
resultado; onde o agente atuou e onde o resultado se produziu. O objetivo desta solução é o de evitar lacunas de
punibilidade.
Ex.: A é o ofendido, por B, corporalmente em Portugal mas vem em consequência a falecer em Espanha. Se
Portugal aceitasse o critério resultado e Espanha o da conduta, B não poderia ser punido por homicídio, por
nenhuma das leis concorrentes poder ser aplicada em nome da territorialidade.
Este critério levanta ainda um conjunto de problemas:

 Casos de comparticipação – várias pessoas a praticar o facto criminoso. Pessoas de um Portugal praticam
o facto aqui, e pessoas de Espanha praticam esse facto também em Espanha. Aplica-se a lei portuguesa?
Pelo menos aos que se praticaram em território português é aplicada a lei portuguesa (pelo princípio da
territorialidade).
 Crime continuado – artigo 30.º, n.º2 – artigo 79.º (é punido como um só crime, escolhendo-se o mais
grave). O problema surge quando alguns factos são praticados num território, e outros noutro.
 Delitos itinerantes ou de trânsito – crime praticado em vários países (ex.: tráfico de seres humanos).
Alargamento do princípio da territorialidade – alínea b) do artigo 4.º
“Critério do pavilhão ou da bandeira” – factos cometidos em território português os que tenham lugar a bordo
de navios ou aeronaves portugueses. O problema surge nos casos em que temos navios ou aeronaves comerciais
(ex.: TAP aluga aeronaves) – o DL 254/2003 vem estender o princípio da territorialidade a esses navios ou
aeronaves caso se cometam crimes dentro dos mesmos, logo aplica-se a lei portuguesa.

2. O princípio complementar da nacionalidade


Artigo 5.º, n.º1, alínea e)
Também tem acolhimento na lei portuguesa, mas não significa que se pretende agir sobre todos os crimes em que
o autor seja português. Quer-se apenas evitar, uma vez mais, lacunas de punibilidade. Como?
A aplicação deste princípio assenta na máxima internacional de não extradição de cidadãos nacionais. No
entanto, existem exceções: por conta das regras na união europeia, aplica-se o mandado de detenção. Se um
Estado não extradita, tem que punir. Se extradita, o Estado nacional é que irá punir.
Princípio da personalidade ativa – o agente do crime é um português. Vem tentar resolver o problema de não
extradição. Se não extradita, tem que julgar, e vai julgar à luz deste princípio da nacionalidade.
Princípio da personalidade passiva – aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos no estrangeiro, por
estrangeiros, contra portugueses. Trata-se de uma proteção da nacionalidade não ao agente, mas à vítima. Na
verdade, o que se está a proteger são os interesses nacionais. Não é uma questão de quem é a vítima em si, mas
sim dos interesses do Estado.
Artigo 5.º - vem dizer em que casos é que a lei penal portuguesa se pode aplicar a factos praticados fora do
território português. Não é um tem de ser, pode ser aplicada a lei portuguesa, no caso de as outras não o serem.
Artigo 5.º, n.º1, alínea e) – vem consagrar critérios (cumulativos). Está aqui em causa a personalidade ativa (por
portugueses) e personalidade passiva (por estrangeiros contra portugueses).

 É preciso que os agentes sejam encontrados em Portugal,


 É preciso que os factos sejam também puníveis pela legislação do lugar em que tiveram sido praticados,
 É preciso que constituam crime que admita a extradição e esta não possa ser concedida ou seja decidida a
não entrega do agente em execução de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de
cooperação internacional que vincule o Estado português.
Estando em causa o princípio da nacionalidade ativa, a extradição só é possível nos limites do artigo 33.º, n.º3
CRP.
Extensão do princípio da nacionalidade – artigo 5.º, alínea b) – cláusula de fraude à lei. Portugueses que
saem de Portugal para praticarem um facto que em Portugal é crime, e que no Estado para onde se deslocam não
é. Só se considera quando as pessoas saem de Portugal com o propósito de fraude à lei, e só nestes casos. É
discutível a circunstância de não se considerarem todos os casos que, pela interpretação da lei, levariam a tal.
Artigo 5.º, n.º1, alínea g) – no caso de pessoas coletivas.
3. Princípio complementar da proteção dos interesses nacionais
Proteção de bens jurídicos de interesse nacional; bens jurídicos de relevo para Portugal. Não é uma questão da
nacionalidade do agente, ou dos crimes terem sido cometidos no estrangeiro, o problema é o crime que atenta
contra um bem jurídico tipicamente português. A lei de um estado estrangeiro não protege o bem jurídico
português, sendo a solução a aplicação da nossa lei nos casos cometidos no estrangeiro que ponham em causa
esses bens.
Crimes contra o Estado (português) – os outros ordenamentos não vão ter normas que protejam esses bens
jurídicos. O estado estrangeiro não está em condições nem tem interesse em tutelar esse tipo de bens.
Ius puniendi nacional vai ser estendido, com o fundamento no facto de ter sido o próprio agente a estabelecer
uma relação com a ordem jurídica portuguesa, ao dirigir o seu facto contra interesses portugueses. É, por isso,
uma questão de materialidade, e não uma questão de titularidade – que interesses são colocados em causa, e não
quem ou onde.
Artigo 5.º, n.º1, alínea a)

 221.º - Burla informática;


 308.º a 321.º - Crimes contra a independência e a integridade nacionais e contra a capacidade e a defesa
nacionais;
 262.º a 271.º - Falsificação de moeda, de títulos de crédito e de valores selados;
 325.º a 345.º - Crimes contra a realização do Estado de direito e crimes eleitorais.

4. O princípio complementar da universalidade


A possibilidade de aplicar a lei portuguesa a factos cometidos no estrangeiro contra bens jurídicos de proteção
internacional. Trata-se do reconhecimento do caráter supranacional de certos bens jurídicos e, por conseguinte,
apelam à sua proteção a nível mundial.
Carácter transnacional/supranacional – há realidades que, pela sua configuração, devem ser protegidas sempre e
no maior número de Estados.
Artigo 5.º, n.º1, alínea c) – aplicação da lei penal portuguesa a crimes que tutelam bens jurídicos carecidos de
proteção internacional.

 144.º-A
 144.º-B
 154.º-B
 154.º-C
Existem requisitos que têm que ser verificados:

 O agente tem que ser encontrado em Portugal, e


 Não pode ser extraditado ou entregue em mandato.
Artigo 5.º, n.º, alínea d) – sendo a vítima menor – 144.º, 163.º, 164.º, com os mesmos requisitos da alínea c).
Artigo 5.º, n.º2
5. Princípio complementar da administração supletiva da justiça penal
Artigo 5.º, n.º1, alínea f) – veio colmatar uma lacuna. Um cidadão estrangeiro, tendo praticado um crime,
normalmente grave, no estrangeiro, viesse buscar refúgio em Portugal, onde, por um lado, não podia ser julgado,
dada a ausência de uma conexão relevante com a lei portuguesa, e de onde, por outro lado, não podia ser
extraditado, dadas as proibições de extraditar em função da gravidade da consequência jurídica impostas pelo
sistema nacional.
É um princípio verdadeiramente supletivo, faz com que um juiz português “substitua” um juiz estrangeiro.
Requisitos (estão na alínea).
III. Condições gerais de aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos no estrangeiro
Artigo 6.º
N.º1 – a lei penal portuguesa aplicada a factos extra territoriais é subsidiária. Primeiro sempre a lei do país da
prática do facto. Trata-se de respeitar o princípio jurídico-constitucional ne bis in idem, segundo o qual ninguém
pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.
Artigo 29.º, n.º5 CRP
N.º2 – mesmo que se aplique a lei penal portuguesa, o facto é julgado segundo a lei do país em que tiver sido
praticado sempre que esta seja mais favorável. Se for a estrangeira, é necessário convertê-la na lei portuguesa.
Trata-se, por isso, de uma verdadeira aplicação da lei penal estrangeiro pelo tribunal português.
Também aqui temos problemas:

 Existem crimes que podem ser afastados desta regra do número dois, ou aplica-se a todos? Para os crimes
que têm conexão com o nosso ordenamento jurídico – artigo 6.º, n.º3.
 Como se resolvem as dificuldades resultantes da aplicação da lei estrangeira no que diz respeito à
assimilação das sanções? Deve ser convertida naquela que corresponder no nosso sistema; se não tiver
correspondência direta, vai ter que se aplicar a pena que esteja prevista na lei portuguesa. Portugal é
internacionalmente um país brando; há mais problema nos Estados em que há pena de morte ou prisão
perpétua.
Ex.: A (português) sequestrou B (francês) em França, transportando-o no seu carro por Espanha, passou por
Portugal e libertou-o em Vigo. A acabou por ser detido em Braga. Suponha que o CP francês estabelece para este
crime a pena de prisão de 2 a 6 anos, o CP espanhol estabelece a pena de prisão de 1 a 5 anos e o CP português
estabelece a pena de prisão de 3 a 10 anos. Qual a lei aplicável ao caos?
ART 7º CP – o loca da prática do facto foi França;
Se o facto for praticado em PT é de aplicar o ART 4º CP, se o facto foi praticado fora de PT é de aplicar o ART
5º CP – estão preenchidos os pressupostos do ART 5º nº1 e) CP dado que não é possível extraditar um cidadão
nacional;
Analisar o ART 6º CP - questão das leis estrangeiras serem mais favoráveis;
Contudo, tratando-se de um crime de trânsito, o mesmo decorre em França, Espanha e Portugal. Logo, o crime
também é praticado em Portugal e é de aplicar o ART 4º CP;
Aplica-se a lei portuguesa.

Ex.: A (português) está em França e decide matar o Presidente da República português. Pega numa carta e no
interior coloca uma quantidade mortal de antrax, sendo o destino o Palácio de Belém. No entanto, antes da carta
chegar a Portugal, é detetada pela polícia espanhola e eliminada. A encontra-se agora em Portugal expectante
pela morte do PR. Qual a lei que se aplica?
ART 327º CP – atentado contra o PR. Fica consumado só pela tentativa;
ART 7º nº2 CP – o lugar onde se devia ter produzido o resultado é Portugal;
ART 4º a) CP – aplica-se a lei portuguesa.
Ex.: B, emigrante português em França, comete um crime de roubo contra outro português. Não foi julgado em
França e foi encontrado e detido em Portugal. Suponha que o CP francês estabelece a pena de prisão de 1 a 6
anos, ao passo que o CP português estabelece a pena que está atualmente em vigor. Qual a lei aplicável?
ART 210º CP – roubo com penal de prisão de 1 a 8 anos;
ART 7º nº1 CP – facto praticado em França;
ART 5º e) CP – princípio da nacionalidade;
ART 6º nº2 CP – aplica-se a lei francesa por ser a mais favorável.

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