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TEORIA DA LEI PENAL

Conceito de Direito Penal


O conceito de “Direito Penal” pode referir-se 1) ao ramo de direito, enquanto conjunto de
normas que regulam o comportamento humano de certa forma – o chamado direito penal, com
minúsculas –; ou 2) à ciência ou à dogmática que estuda este ramo de direito – o chamado Direito
Penal, com maiúsculas.

Enquanto Ramo do Direito


Características da Norma Penal:
O Código Penal está dividido em duas partes: a parte geral (livro I), onde estão as normas
mais gerais relativamente a matérias sobre os princípios do direito penal, a imputabilidade, as
penas, as medidas de segurança, etc.; e a parte especial (livro II), que contêm os tipos de crime mais
relevantes para o direito penal – embora não todos os tipos de crime, sendo que alguns estão
consagrados noutros documentos.
 De notar que existem alguns doutrinários que chamam a este ramo de direito, “direito penal e
das medidas de segurança”. Além das penas de prisão, existem medidas de segurança, que se
aplicam apenas às pessoas que não são capazes de culpa – ou seja, que são inimputáveis, por
não conseguirem ter consciência do que estão a fazer (razão de idade) ou por, ainda que tenham
essa consciência de estarem a agir contra o direito, não têm capacidade de travar as suas ações
(razão de anomalia psíquica). Ora, não lhes podendo ser atribuído culpa, um elemento
constitutivo do crime, estes também não podem, consequentemente, sofrer a consequência
característica do crime, que é a pena de prisão: assim, a pessoa poderá ser internada num
hospital, com privação da liberdade; ou numa instituição que visa a posterior reintegração na
sociedade.

No conceito de direito penal, existe uma necessidade de determinar o que é uma norma
penal. Isto tem alguma relevância prática, dado que só sabendo se uma norma legal é considerada,
também, uma norma penal, é que conseguimos desvendar se podem ser aplicados princípios
característicos do direito penal (como o da intervenção mínima ou o da proibição da retroatividade).
Ora, assim, uma norma tipicamente penal é uma norma que, primeiramente, tem uma
previsão com a descrição de uma conduta que constitui crime, ou seja, um facto punível – não
apenas em sentido estrito, mas que também inclui as omissões, em situações em que existe o
especial dever de agir (artigo 200º do CP). Seguidamente, tem uma estatuição que descreve a
consequência dessa mesma conduta; ou seja, uma ação de punição em sentido estrito (não
abrangendo omissões). Um exemplo será o artigo 131º: “Quem matar outra pessoa [previsão] é
punido com pena de prisão de 8 a 16 anos [estatuição]”. Tendo em conta que existem estes dois
elementos são fundamentais, existe uma discussão doutrinária sobre como designar este ramo do
direito – se como “direito penal” (dando mais importância à estatuição) ou como “direito criminal”
(dando mais importância à previsão).
 De notar que todo o direito penal de Estados de Direito democráticos são direitos penais de
facto – ou seja, apenas se pune por factos (condutas) e não pela personalidade da pessoa
(punindo aqueles que não têm a personalidade que convém ao Estado). A Alemanha nazi, por
exemplo, não era um direito penal de facto.
Além disso, a norma penal tem ainda, obrigatoriamente, dois agentes: o agente próprio,
nomeadamente quem faz a ação punível; e o Estado, representado pelo juiz, que será aquele que
aplica a pena ou a medida de segurança. Cabe ao Estado e só ao Estado exercer o poder punitivo. A
existência de um ofendido não é obrigatória – por ex., numa tentativa de homicídio, este não existe.
Tendo a norma penal esta estrutura, podemos dizer que descreve uma das relações possíveis
entre o indivíduo e o Estado, relação essa provocada pela prática do crime. Esta relação, com esta
ação de punir, tem como função alcançar a prevenção da prática de futuros crimes, de forma a
proteger bens jurídicos. Assim, outra característica que uma norma tem que ter para ser considerada
norma penal é esta finalidade – que, para grande parte da doutrina, é a proteção de bens jurídicos
essenciais à vida em sociedade.
 Nem sempre o direito penal teve esta função de proteger o bem jurídico – em estados
autoritários, por ex., continua a não ter essa finalidade, atuando como um mecanismo de
repressão do Estado.

Vejamos outro caso: o artigo 10º. Este não tem a estrutura típica de uma norma estritamente
penal, tal como foi descrito: não tem uma previsão, com descrição de uma conduta punível, nem
estatuição. No entanto, tem como função complementar a compreensão das normas estritamente
penais – ora, nesse sentido, protege indiretamente bens jurídicos essenciais à vida em sociedade,
ajudando na sua proteção direta. Isto significa que, em última análise, irá ter a mesma função que as
normas estritamente penais, sendo isso suficiente para a classificar como norma penal – não pela
estrutura típica, mas pela função. Na parte geral, existem uma série de normas assim, em que não é
fácil decidir se estamos perante uma norma penal ou não (ex: normas sobre a aplicação das normas
penais no tempo e no espaço).
De notar que o artigo 10º não interessa para crimes formais: Crimes que exigem apenas a
verificação de um comportamento, quer seja por ação (ex: violação de domicílio alheio, pois não se
consegue separar o momento de ação “entrar em casa alheia” não pode ser separável do resultado
“entrar em casa alheia” – artigo 190º) ou por omissão (ex: omissão de auxílio). Este artigo apenas
interessa para construir tipos de crime de resultado: Crimes que exigem, para além do
comportamento, a verificação de um resultado, separado temporalmente do comportamento a nível
temporal (ex: crime de homicídio – se a pessoa não for morta, o agente apenas poderá ser punido
por tentativa de homicídio).
Ora, o artigo 10º diz que, quando se trata de um crime de resultado efetivo, este abrange não só a
ação em si, como a omissão à ação adequada para evitá-lo. Além disso, um crime formal por
omissão só é punível se for praticado por quem tem o dever jurídico de pessoalmente evitar que o
crime acontecesse – ora, isto vem permitir punir as pessoas que praticam crimes de resultado por
omissão, ao abrigo do princípio da legalidade (ex: crime de homicídio por omissão).
Relativamente ao crime de omissão de auxílio, não se pode separar a ação do resultado – ou seja,
não é preciso que um resultado de efetive para o agente ser punido (ex: não ligar ao 112 quando se
passa por um acidente – não é preciso que a pessoa do acidente morra ou esteja até ferida para ser
condenada). Para tal, apenas é necessário que a pessoa pratique a ação descrita no tipo de crime.
Por outro lado, o artigo 81º do Código da Estrada já cabe no direito contraordenacional,
direito que faz fronteira com o direito penal. Não existe consenso sobre como distinguir estes dois
ramos, mas podemos concluir que a estatuição é diferente: no direito contraordenacional, o
legislador fala de coima, e não de pena de prisão. No entanto, há quem defenda que existe um
critério quantitativo – é a gravidade do delito que vai distinguir (ter 0.5gl é menos grave do que
1.2gl, logo existe a distinção entre contraordenação e crime) – ou um critério qualitativo, com o
direito contraordenacional a proteger bens jurídicos menos importantes.
Outras Subdistinções:
Relativamente a outras subdistinções, podemos também falar do direito penal
nuclear/primário – todas as normas que protegem os considerados bens jurídicos essenciais à vida
em comunidade – e o direito penal secundário – todo o direito penal que não vem na parte especial
do CP, mas em legislação avulsa, e que visa proteger sobretudo a atividade ecónomo-social e
financeira que o Estado Social deve proteger.
A par deste conceito de direito penal em sentido estrito falado, existe também o direito penal
em sentido amplo, que inclui, para além do sentido estrito, o direito processual penal e o direito de
execução das penas e das medidas de segurança – o chamado direito penal executivo. O direito
processual penal regula o processo penal, um conjunto de regras a ser seguido para se poder aplicar
o direito penal – princípio da jurisdicionalidade: não existe outra forma de aplicar o direito penal,
apenas através do processo penal, tendo este assim um carácter instrumental. Por sua vez, o direito
penal executivo regula a forma de aplicar as penas e as medidas de segurança. Ora, às vezes é dificil
olhar para uma norma e perceber se é direito penal estrito, direito penal executivo ou outros.

Enquanto Ciência
O Direito Penal abarga, para além do direito penal substantivo anterior, outras ciências:
política criminal e criminologia. Política criminal começou por ter como função propor ao
legislador estratégias e meios de luta contra a criminalidade; atualmente, está também preocupada
com que esses meios utilizados respeitem os direitos humanos – é por isso que a política criminal
assume um papel importante, estabelecendo os princípios fundamentais do próprio direito penal. A
criminologia, por outro lado, estuda o fenómeno criminal do ponto de vista empírico: por exemplo,
quais os fatores sociais, biológicos, etc. que constitui o crime. Por outras palavras, permite o
conhecimento da realidade social que compõe o crime.

Conceito de Crime
Conceito Material e Formal
De acordo com o conceito formal de crime, é crime tudo aquilo que o legislador
legitimamente considere como tal – ou seja, sempre que o legislador estabeleça a estatuição, temos
um crime. Já o conceito material de crime visa saber quais as qualidades que o comportamento
humano deve revestir para que o legislador se encontre legitimado a considerá-lo como crime.
Nesse sentido, diz-se que o conceito material de crime está acima do conceito formal, dado ser
anterior a este – por exemplo, a norma “quem estacionar em cima da rua é punido” não pode ser
considerada crime a nível material, porque não vai contra um bem jurídico essencial à vida na
sociedade.
Este conceito de crime vai, assim, buscar à constituição os valores e os princípios com que se pode
fundamentar a classificação de algo como crime. Algo assim seria inconstitucional, violando o
princípio da intervenção mínima: o direito penal só deve atuar se for para salvaguardar bens
jurídicos essenciais e quando foi necessário (mais nenhum outro ramo de direito poderá ser
utilizado) – artigo 18º, nº2. Só posso restringir a liberdade se for para garantir bens essenciais que
mais nenhum ramo conseguiria. Ora, à luz dos valores constitucionais, somos obrigados, com a
evolução da sociedade, a perceber que há certos bens jurídicos que não devem ser protegidos pelo
direito penal, e que será mais eficaz protegê-los noutros ramos do direito – ex: aborto,
descriminalizado até à 10º semana.
Isto para dizer que o conceito material de crime é extremamente relevante, na medida em
que está acima do conceito formal de crime – mas não da lei em geral –, servindo de guia ao próprio
legislador e ajudando-o a perceber quais as características que um comportamento deve ter para ser
considerado crime. Só um conceito material de crime que cumpra essa função é que pode valer,
pelo que não podemos dar ao conceito material e ao conceito formal o mesmo sentido.

Diferentes Teorias
Positivismo Sociológico:
Inicialmente, a teoria predominante era (antes do positivismo legal – era crime tudo o que a
lei considerasse crime, não existindo um conceito material anterior de crime) a do positivismo
sociológico. Segundo esta, tudo o que existe na sociedade como crime – ou seja, tudo o que à luz
da realidade social, o que a sociedade pensa que deve ser considerado como crime –, é ou deve ser
crime. Nesta lógica, crime são todas as condutas que causam danosidade social (ex: à piedade, à
propriedade, ofensivo dos valores da sociedade, etc.). Isto significa, assim, que o conceito material
de crime está acima do direito penal legislado, existindo na sociedade, primeiramente, e sendo,
depois de observado, legislado. Esta é uma diferença que atualmente ainda é importante, tendo em
conta que uma parte da doutrina considera que o direito contraordenacional se encarrega das
condutas que não são consideradas crime à luz da sociedade – ora, não tendo assim uma base
sociológica, são apenas consideradas crime porque o legislador as considera formalmente como
qual.
Esta teoria é passível de críticas. Por um lado, este conceito material de crime é bastante
impreciso, não se podendo definir com um mínimo de precisão em que é que se traduz essa
“danosidade social” enquanto conceito universal. Por outro lado, este conceito é demasiado
abrangente: há uma série de condutas que causam danos sociais, mas que não devem ser
consideradas crime (ex: mentir). Isto porque a punição deve ser o último recurso do Estado – se este
consegue proteger o bem doutra forma, não deve recorrer ao direito penal (princípio da intervenção
mínima).

Conceção Moral-Social:
Surge, posteriormente, a conceção moral-social, que introduz no conceito material de crime
um ponto de vista ético-social: define crime como comportamento violador de deveres morais-
sociais elementares, sendo a função do direito penal assegurar a validade desses valores e regras
éticas básicas conhecidas por todos.
No entanto, ao falar-se em regras “ético-morais”, poder-se-á levar o direito penal a tutelar a
moral. Ora, a relação entre o direito penal e a moral não é simples: ao visar proteger os bens de uma
necessária ordem jurídica, o direito penal irá proteger intrinsecamente os bens morais da mesma,
que influenciaram toda a estrutura jurídica. Mas esta relação íntima não faz com que o direito penal
possa tomar a moral, pois vivemos numa sociedade democrática e pluralista – tem de se respeitar os
valores das várias culturas existentes (desde que conforme aos direitos humanos). Por isso, o direito
penal não pode tomar uma moral como a “correta” e penalizar as outras em virtude de proteger esta.
Assim, esta conceção será afastada, mas não sem existir uma evolução na sociedade para
essa ideia de tolerância e aceitação: por exemplo, até 1995, o adultério era considerado crime, assim
como a homossexualidade, descriminalizada em 1982. Em ambos os pontos, o direito penal, ao
regular, estava ligado a uma certa função moral relacionada com a nossa cultura judaico-cristã,
função essa que não poderia ser tomada como tal.
Conceção Funcional-Racional:
Chegamos, finalmente, à conceção funcional-racional, que continua a ter largo apoio na
doutrina. De acordo com esta, o conceito de crime deve ser encontrado na função última do próprio
direito penal – nomeadamente, proteger os bens jurídicos fundamentais na sociedade. Assim, ao
partir-se desta função para chegar ao conceito correto material de crime, só deverá haver crime 1)
quando existir uma conduta lesiva dos ou que coloque em perigo determinados bens jurídicos
fundamentais; e quando 2) a intervenção penal seja necessária e eficaz para tutelar esses bens, não
podendo esta tutela ser feita por outro ramo de direito menos evasivo. Isto porque a função do
direito penal é a proteção subsidiária dos bens jurídicos fundamentais, ao abrigo do princípio da
intervenção mínima do direito penal – artigo 18º, nº2 da CRP: o Estado só pode restringir a
liberdade através do Direito Penal quando tal se relevar essencial para assegurar um determinado
direito jurídico.
Concluindo, crime é todo o comportamento que lese bens jurídicos 1) fundamentais e 2)
dignos de tutela penal, sendo que só são dignos de tal se a intervenção do direito penal se revele
necessária e eficaz para a respetiva tutela do bem jurídico.

“Sociedade de risco”
Existe uma parte da doutrina que defende que, atualmente, se vive numa sociedade de risco,
o que faz com que seja inadequado atribuir ao direito penal apenas esta função de proteção de bens
jurídicos. Ao existirem novos perigos – nomeadamente associados à globalização, à tecnologia, à
inteligência artificial, ao ambiente –, o direito penal, para ser mais eficaz, terá de ser também ele um
meio de realização das políticas do Estado associados a estes riscos da sociedade. Por outras
palavras, o direito penal deve estar ao serviço da política do estado, de forma a evitar esses riscos,
sendo um “direito penal do risco”: deixa-se de ter um direito penal que protege bens jurídicos, para
se ter direito penal virado para os riscos.
No entanto, esta ideia tem vários problemas. Primeiramente, a própria ideia de “direito penal
do risco” é inconstitucional, ao abrigo do artigo 18º, nº2: não se pode restringir direitos, garantias e
liberdades a não ser para proteger outros bens.
Além disso, a ideia de que apenas atualmente se vive numa sociedade de risco é falsa; riscos sempre
existiram na vida em sociedade, fazem parte da mesma. O que existe, apenas, são novos riscos –
cujos bens jurídicos podem, no entanto, ser protegidos pelo direito penal sem que se lhe seja dado
esta função de realizar políticas do Estado: nomeadamente, através dos crimes de perigo abstrato,
como defende o professor Figueiredo Dias. Estes são crimes que, para estarem “preenchidos”, basta
uma conduta por parte do agente, não sendo exigível a verificação de um resultado derivado dessa
conduta. Ora, esta ideia de antecipação da tutela do bem jurídico (embora de forma cautelosa) pode
ser usada para responder a estes riscos – continuando, assim, o direito penal na esfera da
necessidade de proteção do bem jurídico (sendo ainda necessário a existência de uma conduta
abstratamente perigosa, que ponha em causa um bem jurídico); em vez de se dar ao mesmo a tal
função de realizar políticas do Estado.
 Ex: Conduzir com álcool no sangue superior a 1.2gl – o legislador atua porque acha tal conduta
tão abstratamente perigosa, que decide antecipar a tutela dos direitos jurídicos, pelo que só é
necessário a pessoa ser apanhada a conduzir com álcool, mesmo que não tenha nenhum
acidente.

Esta doutrina do direito penal de risco significa, ainda, que eventualmente passe a existir
uma “acturial justice”, em que se regula um certo núcleo de atividades que se consideram perigosas
e, consequentemente, que leva a um “direito penal do agente”, e não do facto. Isto é extremamente
perigoso, na medida em que se passará a punir personalidades ou “grupos de risco”, em vez de
condutas específicas censuráveis – leva-se, assim, à criação de um direito penal puramente objetivo,
que está apenas interessado no autor do possível facto de risco.
Denota-se, aqui, que Stratenwerth defende que, face aos riscos globais, é necessário apostar, em
detrimento de um direito penal do resultado, num direito penal do comportamento, através do qual
se penalizem puras relações da vida como tais: isto é, normas que assegurem o controlo do
comportamento nos casos em que já existem riscos longínquos. Apesar de ainda focar no
comportamento, já se inclina mais para esta doutrina de “direito penal do agente”.

Já Jacobs entende que o direito penal dos bens jurídicos deve ser substituído, sendo a função
primordial do direito penal a estabilização contrafáctica das expectativas geradas pela existência de
uma norma incriminadora. Por outras palavras, a função última do direito penal é manter padrões de
ação que organizam as expectativas sociais sobre comportamento alheio. O ambiente, para ele, faz
parte do núcleo das condições essenciais da existência, pelo que merece proteção em face das
expectativas sociais quanto à relação pessoa. Define, assim, crime como “dano social objetivo”, e já
não como “conduta”. Esta é, no entanto, uma visão perigosa e demasiado normativa, já que estes
padrões a cumprir irão estar nas normas.

Conceito de Bem Jurídico


Falar deste conceito de crime implica, necessariamente, falar também mais
aprofundadamente do conceito de bem jurídico. Apesar de este se encontrar ainda em construção, já
existe um certo consenso da doutrina quanto ao seu núcleo essencial – mas, para o perceber,
teremos de estudar a sua evolução dogmática.
O primeiro autor que tentou definir “bens jurídicos” foi Johann Michael Franz Birnbaum
(1834), enquanto interesses primordiais do indivíduo na sociedade. No entanto, este foi também
criticado por ser um conceito impreciso e indefinido. Surge então, posteriormente, a escola jurídica
subocidental alemã (1930), que define “bem jurídico” como forma abreviada de exprimir o sentido
e finalidade de um preceito legal – por outras palavras, a expressão de bem jurídico coincide com a
expressão sintética do espírito da lei. Ora, esta noção peca, então, por não permitir que o conceito
material cumpra a sua função, anteriormente falada. Além disso, esta noção também não é sempre
verificada: por exemplo, o crime da burla protege o bem jurídico da propriedade, mas a finalidade é
impedir que alguém enriqueça ilegitimamente – logo, os dois não coincidem.
Atualmente, têm sido defendidas, fundamentalmente, duas respostas: por um lado, que a
função de bem jurídico deve-se ir buscar ao sistema social de uma comunidade – sendo isto também
extremamente impreciso e difícil de universalizar enquanto conceito. Por outro lado, e apesar de se
concordar com esta procura dos bens jurídicos no sistema social, estes, para se transformarem em
bens jurídicos dignos de tutela penal, deverão ter assento constitucional, de forma direta ou indireta.
Assim, por exemplo, o professor Figueiredo Dias define bem jurídico como uma “expressão de um
interesse da pessoa ou da comunidade na manutenção ou integridade de um certo Estado objeto ou
bem, em si mesmo socialmente relevante e, por isso, reconhecido como valioso pela ordem
jurídico-constitucional”. Já o professor Silva Dias defende que a procura e encontro dos bens
jurídicos nos espaços sociais deve ser fundamentado – isto é, o legislador tem de interpretar as
razões pelas quais é possível retirar este consenso sobre a determinação de certo bem jurídico,
avaliando essas razões à luz do quadro de princípios estabelecidos pela ordem jurídico-
constitucional. O artigo 18º, nº2 CRP faz referência a esta ideia, assim como o artigo 3º, nº2: existe
um conceito de bem jurídico “constitucional” prévio ao direito penal, estando a CRP acima do CP.
Denota-se, ainda, que para Claus Roxin, bem jurídico é definido como “ente individualizável no
plano ôntico e/ou no plano axiológico [dos valores], ou objetivos que são úteis à livre expansão da
personalidade dos indivíduos no âmbito do sistema social-global [ou seja, que orientam para essa
livre expansão] ou para o funcionamento do próprio sistema social [reconhecidos como tal pela
ordem jurídico-constitucional]”.
No entanto, apesar de o bem jurídico, para ser penalmente relevante, tem de ter expressão
direta ou indireta na CRP, a relação entre a ordem jurídico-constitucional e a ordem jurídico-penal é
de mútua referência. Isto significa que nem todo o bem jurídico constitucionalmente reconhecido é
protegido pelo direito penal, devido ao princípio da intervenção mínima.

Caracterização dos Bens Jurídicos:


Para além dos bens jurídicos individuais, existem também os bens jurídicos sociais ou
universais: bens jurídicos relacionados com direitos sociais, de carácter económico, cultural, social.
Por isso se defende uma visão dualista dos bens jurídicos, dividindo-se os bens jurídicos individuais
dos supra-individuais.
Dentro desta visão, existe a chamada visão pessoal dualista (com a qual a professora concorda),
onde se encontra o Professor Silva Dias. Segundo esta, existe, por um lado, o “direito penal
primário”, que visa proteger todos os bens jurídicos constitucionais relacionados com os direitos,
liberdades e garantias pessoais; mas, ao lado deste, existe também o “direito penal secundário”, que
visa proteger a esfera de atuação da pessoa como ser social – isto é, visa proteger as necessidades
das pessoas decorrentes da vida em sociedade, que é constituída pelos direitos sociais de carácter
económico, social e cultural (ex: fraude fiscal – ao visar proteger a possibilidade de o Estado
sustentar o Estado Social, indiretamente protege a pessoa que beneficia do mesmo).
Existem, ainda, as teorias monistas, que se dividem em teoria monista partidárias e teoria
social monista. Segundo a primeira, as pessoas são encaradas sempre como membro de uma
coletividade, sendo que se justifica a proteção de bens individuais com o facto de ser essa a função
do Estado. Já a segunda vê o problema do bem jurídico na ótica da pessoa, a proteção de bens
sociais só deve ser feita na medida em que servirem para a realização do indivíduo.
 O professor Silva Dias tem uma visão monista pessoal: mesmo quando se está a proteger bens
jurídicos coletivos, é necessário ter em conta que estes terão um reflexo na esfera individual. Já
o professor Figueiredo Dias entende que deve haver uma divisão entre os bens jurídicos
individuais e coletivos, não sendo necessário este reflexo para a proteção dada.

Em Suma:
À luz do conceito material de crime/conceção funcional-racional, para que o legislador
esteja legitimado a considerar certa conduta como crime, esta terá de ser lesiva de um 1) bem
jurídico individual essencial de terceiros, constitucionalmente protegido, à luz do artigo 18º da CRP
(algo que, causa problemas a nível dos direitos dos animais – que, embora não expressos, são de
facto constitucionalmente protegidos).
Além disso, esse bem jurídico terá de ser 2) merecedor da tutela penal, em conformidade com o
princípio da intervenção mínima: ou seja, a intervenção do direito penal só deve ocorrer se for
necessária (não podendo esse bem ser protegido por outro ramo de direito – análise por exclusão de
partes) e eficaz (terá de ser adequada, nomeadamente na prevenção da prática de futuros crimes).
De notar que a necessidade deixa de existir quando a proibição não é eficaz na prevenção de prática
de futuros crimes; ou quando tiver mais efeitos negativos do que positivos.
 O conceito material de crime, em última análise, irá buscar às ciências sociais (sociologia,
psicologia e estatística) a necessidade ou não de haver uma intervenção do direito penal.

Alguns exemplos práticos


Um exemplo disto é a descriminalização do consumo de drogas, que passou de ser crime
para ser uma contraordenação, saindo do âmbito de proteção do direito penal. Com isto, conseguiu-
se diminuir o consumo de droga, começando-se a tratar o mesmo como um problema de saúde
pública e não como uma conduta punível – isto porque, aqui, o direito penal provou-se não eficaz,
logo não poderia ser utilizado. Além disso, não se conseguia identificar, propriamente, qual o bem
jurídico lesado: não poderia, por exemplo, ser a saúde do próprio, dado que o direito penal não
protege bens jurídicos individuais próprios – apenas bens jurídicos individuais de terceiros.
Uma figura a ser discutida agora na sociedade portuguesa é a eutanásia, que abarca um
conjunto de figuras do direito penal que não estão reunidas num só tipo penal de crime. Assim,
discute-se se deve continuar a punir o médico que acede a um pedido de uma pessoa que sofre de
uma doença incurável física que, para além disso, também é grave ao ponto de provocar dor
psicológica atroz – ou seja, discute-se a ajuda à morte direta, e não o homicídio por pedido ou o
suicídio ajudado (artigos 134º e 135º).
 Note-se que a diferença nestes artigos prende-se com quem tem o domínio do ato de quem
provoca a morte: se quem tiver o domínio for o próprio, fala-se em suicídio; se quem tiver o
domínio for terceiro, fala-se em homicídio a pedido (ex: carregar no gatilho vs. fornecer a
arma).
Já não são punidas, em Portugal, a 1) ajuda à morte indireta – quando a pessoa, que sofre de uma
doença incurável e de uma dor física insuportável, pede ao médico que lhe dê um medicamento
atenuante da dor, mas que apressa a morte – e a 2) ajuda à morte passiva – quando alguém sofre de
uma doença incurável, mas recusa-se a tomar medicamentos ou fazer determinados atos médicos
para sobreviver (sendo que, em casos de menores, ter-se-á de recorrer ao tribunal de família, dado
que os pais têm o dever de cuidar pela criança). Por outro lado, o testamento vital veio permitir que
as pessoas, antes de terem acidentes, possam dizer que não querem, por exemplo, ser ressuscitadas.
Outro crime a ser discutido é o da bigamia (artigo 247º CP). Aqui, o princípio da
intervenção mínima não se encontra verificado, na medida em que o artigo é demasiado danoso,
dando pena de prisão a este “crime” – ora, o direito da família, nestas situações, parece muito mais
eficaz. Além disso, o bem jurídico aqui em causa é relativamente dúbio: associa-se, no fundo, o
direito penal a uma função moral de proteger a cultura judaico-cristã portuguesa – nomeadamente,
da “família” portuguesa. O direito penal só tem uma função moral quando esses valores morais são
constitucionalmente protegidos como sendo fundamentais; assim, anteriormente, o bem jurídico
apontado como protegido por esta norma penal era o da “fé pública do registo”.

Teorias das Finalidades das Penas


As teorias doutrinárias dos fins das penas visam perceber o que justifica/legitima a aplicação
de uma pena, por parte do Estado, a determinado indivíduo – ou seja, visam explicar o que dá
legitimidade ao Estado para restringir a liberdade das pessoas.

Teorias Preventivas
Para as teorias preventivas, o objetivo das penas é a prevenção da prática de futuros crimes.
Estas teorias são também chamadas de “teorias relativas”, dado serem relativas a um fim; ao
contrário das “teorias absolutas”, que não justificam a pena face a um fim, mas apenas pela prática
de um crime. As teorias preventivas dividem-se em teorias da prevenção geral e teorias da
prevenção especial.

Teorias de Prevenção Geral:


As teorias de prevenção geral entendem que o fim da pena é evitar a criminalidade por parte
de todos – ou seja, a pena serve para motivar a generalidade das pessoas a comportarem-se de
acordo com a lei. Segundo esta teoria, a pena só será racional se for para realizar um bem, que se
traduz em dissuadir as pessoas da prática de crimes, contribuindo, dessa forma, para a paz e ordem
social.
Ora, esse fim poderá ser alcançado 1) através da intimidação, isto é, o intimidando as pessoas com a
aplicação das penas para que estas não pratiquem crimes (prevenção geral negativa); ou 2) através
da reafirmação da eficácia do direito – isto é, ao aplicar uma pena, demonstra-se à sociedade a
eficácia do direito, e consequentemente motiva-se as pessoas a não praticar crimes (prevenção geral
positiva).
Estas teorias foram sujeitas a várias críticas, sendo que as principais só fazem sentido
quando se defender, como fundamento exclusivo da pena, a prevenção geral – o que, atualmente, já
não existe, havendo mais teorias “mistas”, para evitar estas críticas. Assim, estas são:
 Segundo Kant, esta teoria reduz o homem, que é um fim em si mesmo, à condição de simples
meio, na medida em que se aplica a pena a uma pessoa como meio para motivar outras pessoas
a não cometer crimes – instrumentalizando-se, assim, o criminoso em questão. Por isso, não se
pode justificar o poder político do Estado tendo em conta apenas as consequências da pena.
o Esta teoria, isoladamente, levará a um direito penal objetivista, baseado apenas no resultado
e não na culpa do agente. Ora, se a pena visar apenas evitar que outros cometam crimes, o
direito penal será condicionado pela sua função, e não terá em conta a culpa do agente – por
outras palavras, o princípio fundamental da culpa não será verificado: a culpa não
interessará para determinar a pena.

 O professor Silva Dias acrescenta que não é possível calcular o efeito intimidatório de uma
pena, a nível empírico. Logo, a adoção exclusiva desta teoria poderia levar a penas
indeterminadas, algo que é inconstitucional, na medida em que é incompatível com o princípio
da dignidade humana.

Teorias de Prevenção Especial:


As teorias de prevenção especial defendem que a pena visa evitar a prática de futuros
crimes, não por parte de todos, mas sim apenas por parte do próprio agente do crime. Existem três
formas de alcançar esse fim: 1) corrigindo o agente do crime, ressocializando-o; ou, se isso não
resultar, 2) intimidando o agente do crime com a pena. Sem outra alternativa, será necessário, então,
3) privar o agente da sua liberdade, durante um determinado período de tempo.
Algumas críticas a estas teorias são:
 Segundo a professora Fernanda Palma, não existem estudos empíricos suficientes, até agora,
que permita apoiar em dados seguros a previsão sobre a delinquência futura – assim, esta teoria
implica, mais uma vez, defender penas indeterminadas.
o Além disso, e tendo em conta a definição de crime formal como ação típica, ilícita, culposa
e punível, se apenas se a basear a pena na perigosidade da pessoa, deixa-se de distinguir
penas de medidas de segurança. Ora, uma pessoa inimputável, apesar de perigosa, não será
culposa, pelo que sofrerá uma medida de segurança; mas, se o fundamento da pena passar
para a perigosidade do agente, esse inimputável passa a ser elegível para sofrer uma pena de
prisão.

 Esta lógica não encaixa com a existência de crimes ocasionais, provocados por uma emoção
forte: por exemplo, uma mulher, vítima de violência doméstica à 20 anos, que mata o marido
(artigo 133º CP – crime de homicídio privilegiado, no qual não entra o infanticídio), não voltará
a cometer o mesmo crime, pelo que não será necessário puni-la com pena de prisão para obter
esse fim.

Em Suma:
As teorias preventivas defendem que a finalidade da aplicação da pena é prevenir a prática
de futuros crimes, sendo que essa prevenção pode ser geral ou especial. Geral, quando se trata de
prevenir a prática de futuros crimes por parte da sociedade, através ou da intimidação, ou da
reafirmação da eficácia do direito. Especial, quando se trata de prevenir a prática de futuros crimes
por parte do indivíduo já reincidente, através da afirmação da aplicação do direito pela positiva.

Teorias Retributivas
Teorias Retributivas Superficiais:
De acordo com as teorias retributivas superficiais, a pena é um mal que se aplica devido a
um mal praticado – princípio do talião: “olho por olho, dente por dente”. Nesse sentido, estas
teorias são absolutas: a pena é um mal necessário, não tendo qualquer fim na sua aplicação.
Existem duas críticas feitas a estas teorias, nomeadamente:
1) O mal da pena, em si, não é um fim possível e legítimo do Estado: Só é racional pensar o fim da
pena como um bem; ora, o Estado não pode ter como finalidade aplicar um mal sem razão
aparente – ele tem de ter uma finalidade ao aplicar o mal, nem que seja por razões ético-morais.

2) O princípio do talião não tem em conta a culpa do agente: A culpa é um juízo de censura que se
faz ao agente do crime pelo facto de, tendo capacidade e possibilidade para se motivar pelo
direito, escolheu não o fazer. Esta teoria não tem em conta a culpa do agente porque aplica a
mesma pena a, por exemplo, todo o tipo de furto, independentemente de ser um furto por
necessidade (onde se exclui a ilicitude) ou um furto por profissão – ora, esta maneira de encarar
a punição é impensável.

Teorias Retributivas da Reparação:


De acordo com esta teoria da reparação, a pena deve-se ao Estado pela culpa que o agente
teve ao praticar o crime, pelo que a medida da pena irá variar consoante a maior ou menor
gravidade da culpa do agente – assim, o fim da pena será reparar o dano da culpa, através da
recuperação do agente do crime para a sociedade (ressocialização).
O crime causa danos – no sentido de lesões ou de pôr em perigo certos bens jurídicos – a
terceiros, à sociedade (procurando uma destabilização da paz jurídica), e ao Estado; mas, também,
causa danos ao próprio agente do crime: há claramente uma diminuição do seu valor enquanto ser
humano, da sua dignidade, enquanto culpado de um crime (se este, da facto, atuar com culpa). Ora,
esta teoria vem especificamente trazer à luz este dano.
 Exemplo disto é o exemplo da Tábua de Carnéades: Se estiverem duas pessoas em alto mar em
cima de uma tábua, mas a tábua só aguentar com uma, devem morrer os dois, ou morrer só um?
Ou seja, ir-se-á punir o mais forte por empurrar o mais fraco para sobreviver? Ora, existe uma
figura em direito penal chamada Estado de Necessidade Desculpante (artigo 35º CP), que prevê
que se deve excluir a culpa quando alguém corre perigo de vida e, para se salvar, agir de forma
que, em circunstâncias normais seria ilícito – ou seja, quando não será razoável exigir a adoção
de outro comportamento.
o De notar que certas profissões incluem um dever especial, na medida em que se exige mais
a quem tem mais capacidades (ex: bombeiro); no entanto, isto não é absoluto, podendo este
dever especial mais exigente ser extinto em situações extremas.

O que distingue estas das teorias superficiais é que, aqui, a pena, apesar de ser devido a um
mal, tem um fim. Isto significa que colmata uma das críticas que é dada às teorias superficiais: a
lógica retributiva consegue fazer a distinção entre casos em que as pessoas atuam com culpa, e por
isso é-lhes aplicada uma pena; e casos em que as pessoas atuam sem culpa, em que lhes será
aplicada, por exemplo, uma medida de segurança.
Consequentemente, ao recear-se uma pena baseada na culpa e a reprovação social que ela implica,
essa relação da pena com a culpa vai ter mais eficácia na prevenção de prática de futuros crimes da
sociedade do que o receio de uma pena que não esteja ligada à ideia de culpa – porque, mais uma
vez, o agente sabe que a reprovação social será maior quanto maior for a sua culpa. Assim, esta
teoria de reparação atua melhor para a concretização da prevenção geral. Além disso, essa
responsabilização também terá um efeito formativo do próprio, pelo que também consegue atingir a
prevenção especial.

Teorias Unificadoras
Conclui-se que estas teorias, isoladas, não conseguem justificar completamente os fins das
penas. Por isso, a doutrina tem vindo a aderir a teorias “unificadoras”, que agregam várias teorias
dos fins das penas, dividindo-se entre: teorias que que atribuem uma maior relevância à reparação –
teorias unificadoras retributivas –; e teorias (maioritárias) que atribuem uma maior relevância à
prevenção – teorias unificadoras preventivas.

Teoria Unificadora Dialética:


Um exemplo destas últimas é a teoria unificadora dialética, defendida por Roxin. Este
defende que o direito penal enfrenta o indivíduo em três momentos: 1) no momento da ameaça,
nomeadamente ameaçando-o com penas; 2) no momento em que impõe a pena ao indivíduo, através
de sentenças; e 3) no momento em que executa as penas. Estas três formas de atuação estadual
terão de ser justificadas em separado; sem, no entanto, esquecer que se encontram estruturadas
umas sobre as outras – e, por isso, o que se disser em relação ao primeiro momento, aplica-se ao
segundo, e assim sucessivamente.

1. Momento da ameaça
O que justifica o Estado ameaçar com penas é a necessidade que este tem de assegurar a
proteção dos bens jurídicos, de forma a conseguir existir uma vida em comum ordenada, livre e sem
perigos. Ora, isto remete para a conceção funcional-racional de crime já estudada, relativa à função
do direito penal – aliás, estas ideias coincidem de tal forma que, para a professora Teresa Beleza, é
possível falar de fins mediatos de pena, e não de fins do direito penal.
Roxin diz, ainda, que a necessidade de proteção de bens jurídicos justificativa da ameaça
penal existe não só quando estão em causa bens jurídicos individuais, mas também bens jurídicos
sociais (ex: ambiente, Estado Social). Acrescenta também que esta ameaça deve ter natureza
subsidiária, sendo a última rácio do Estado – tendo de se demonstrar, por isso, que a intervenção do
direito penal é essencial. Além disso, o direito penal não pode punir condutas apenas por serem
imorais, de acordo com um certo grupo social: só poderá interferir se essas condutas morais lesarem
bens jurídicos.
Por último, Roxin defende que esta proteção dada aos bens jurídicos só pode ser preventiva,
na medida em que as normas jurídicas precedem temporalmente a conduta do sujeito. Conclui-se,
assim, que o fim da ameaça penal é proteger bens jurídicos essenciais à vida em comunidade,
através da prevenção de futuros crimes usando a intimidação.

2. Momento da imposição da pena


Para Roxin, a da imposição pena serve, em primeiro lugar, para demonstrar que a ameaça
penal se concretiza. No entanto, não basta apenas visar os fins das penas; é preciso, nesta fase da
aplicação da pena, respeitar também a dignidade humana e a autonomia do agente – ou seja, Roxin
procura harmonizar o fim da aplicação da pena com o respeito pela dignidade da pessoa humana.
Ora, só se pode, verdadeiramente, respeitar a dignidade do agente se se aplicar a pena de acordo
com a culpa que ele teve na prática do crime, não podendo ir além da mesma. Além disso, é
necessário que não se aplique nenhum maltrato ao agente durante a produção de prova – não pode
ser, por exemplo, torturado –, dado que todo o processo penal tem de respeitar os direitos humanos,
não podendo o agente ser privado do cerne de nenhum dos seus direitos fundamentais.
Por último, para justificar a aplicação da pena pela sentença, é ainda necessário ter em conta
o fim de prevenção especial: ou seja, quando se aplica a pena, tem de se pensar qual é a melhor
forma de evitar a prática de futuros crimes por parte do agente. Concluindo, o fim da aplicação da
pena é a proteção subsidiária e preventiva de bens jurídicos, harmonizável com a dignidade da
pessoa humana através 1) da limitação da medida da pena do agente pela sua medida da culpa no
crime; e 2) de um processo penal que salvaguarde a autonomia da personalidade do agente.
 Roxin diz, também, que o agente deve ser julgado não segundo a sua culpa pessoal (ou seja, de
acordo com a sua capacidade individual de se motivar pelo direito), mas segundo a culpa social
– ou seja, segundo a culpa que os outros pensam que o agente tem. Ora, a professora não
concorda com esta ideia, dado ser uma contradição a toda a teoria: isto porque o conceito de
culpa social vai contra o princípio da dignidade humana.

3. Momento da execução da pena


A execução da pena só estará justificada se visar a proteção dos bens jurídicos e, ao mesmo
tempo, visar a ressocialização do agente. Como diz Roxin, a única execução que interessa é a
execução ressocializadora – que, por sua vez, terá também de respeitar os direitos fundamentais de
autonomia do agente do crime e a dignidade humana do mesmo.

Ideia de Ressarcimento da Vítima:


Apesar de defender esta teoria – de que a pena tem como finalidade central a proteção de
bens jurídicos, através da proteção geral e especial, centrada na proteção individual do indivíduo –,
Roxin aclama, também, a ideia de ressarcimento da vítima: isto é, a ideia de reparação do dano
(quer material, quer moral) que o crime causa ao próprio ofendido. Esta ideia seria particularmente
interessante aplicada em crimes de pequena e média criminalidade, em que é possível haver uma
suspensão da pena se o agente tentar a reconciliação/diálogo com a vítima (se esta o quiser) – algo
que pode ter efeitos preventivos mais eficazes que a própria pena.
Na ordem jurídica portuguesa, também há esta ideia de ressarcimento da vítima,
nomeadamente no artigo 51º, nº1 CP: podem ser aplicadas penas de substituição à pena de prisão,
caso se consiga, com essa, esta reparação do dano que o crime causou ao ofendido. Também existe,
no artigo 74º, o regime de dispensa de pena, com a mesma condição e objetivo.

Teorias no nosso Ordenamento Jurídico


Normas Penais Legais:
O artigo 40º CP fala sobre as finalidades das penas e das medidas de segurança. O conteúdo
do seu nº1 relaciona-se com a teoria da prevenção especial, nomeadamente quando fala da
“reintegração do agente na sociedade”. Esta teoria entende que a finalidade primordial da pena é
recuperar o delinquente para a sociedade, tendo de, para isso, ser ressocializado. Além disso, o nº1
remete, também, para a teoria de prevenção geral, nomeadamente quando fala de “proteção de bens
jurídicos”: na medida em que esta proteção só poderá ser preventiva, antes do agente atuar.
Já o nº2 relaciona-se com a teoria da reparação, que defende que a pena deve-se ao Estado por via
da culpa e, por isso, varia consoante a mesma, além do facto objetivo. A pena, ao reparar mediante
a culpa e sendo determinada por ela, também vai permitir reparar o dano da culpa, tendo assim uma
finalidade programática que é reparar, além do dano à sociedade e ao ofendido, o próprio dano da
culpa causado ao agente (que diz respeito à diminuição da dignidade enquanto ser humano). Assim,
sem culpa não há pena, e a pena nunca pode ultrapassar a medida da culpa.
Por sua vez, o artigo 71º, nº1 CP refere que a determinação da medida da pena, dentro dos
limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Ou
seja, o legislador defende, mais uma vez, que a finalidade da pena tanto se relacionado com a
medida da culpa (teoria da reparação) como com a ressocialização do agente (teoria da prevenção
especial). Concluindo, é necessário haver sempre uma mistura destas teorias.

Opiniões da Doutrina Portuguesa:


1. Professor Figueiredo Dias
O professor Figueiredo Dias defende que a finalidade primordial da pena é a prevenção geral
positiva – prevenir a prática de futuros crimes, reafirmando os valores fundamentais que a norma
consagra e, ao aplicar a pena, confirmando a eficácia do direito. O professor acrescenta que se
previne mais a prática de futuros crimes não tanto pela intimidação (prevenção negativa) – embora
esta tenha, ainda, a sua importância –, mas através da tutela da confiança e da expectativa dos
cidadãos na vigência da norma violada.
A segunda finalidade primordial é a prevenção especial, sendo necessário o estabelecimento
de critérios na determinação da medida concreta da pena [ver acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça, de 12 de Setembro de 2007 (07P2270)]:
1) A prevenção geral positiva vai estabelecer um quadro de medida da pena, em que o limite
máximo é a medida ótima da tutela dos bens jurídicos e das expectativas, e o limite mínimo
corresponderá ao estritamente necessário para a defesa dos bens jurídicos.
o A professora defende, pelo contrário, que a prevenção geral não deve estabelecer uma
escala de pena entre o máximo e o mínimo, mas apenas a o limite mínimo. Isto porque, por
mais que o juiz saiba que tem de ser imparcial, a sociedade consome todos os julgamentos
mediáticos existentes e, consequentemente, cria uma expectativa sobre como o caso será ou
deve ser julgado – e o juiz acabará por ser influenciado por isso.

o Ora, o legislador, no momento de estabelecimento da moldura legal, saberá quais as penas


necessárias para zelar as expectativas sociais na prevenção de valores fundamentais da vida
em sociedade de forma imparcial, tendo em conta, por exemplo, os estudos acerca daquele
fenómeno; ao passo que o juiz será influenciado pelas expectativas sociais do momento.

2) Dentro desta medida, a pena vai, depois, determinar-se pela prevenção especial, quer positiva –
qual a pena necessária para ressocialização do agente e para prevenir a sua reincidência –, quer
negativa – qual a pena necessária para intimidar o agente.

3) Esta medida da pena, quer determinada pela prevenção geral positiva, quer pela prevenção
especial, está limitada pela culpa – ou seja, a culpa vai estabelecer o limite inultrapassável da
pena, sob pena de violar o princípio da dignidade da pessoa humana.
o O professora acha que, ao referir que a culpa determina uma medida exata da pena, o
professor Figueiredo Dias vai contra o legislador, dado que este faz variar as penas, segundo
a culpa, entre o máximo e mínimo.

2. Professor Silva Dias


O professor Silva Dias, tal como Roxin, entende que não se deve menosprezar os aspetos
positivos de cada uma das teorias dos fins das penas – sendo necessário articular cada uma delas
com as diversas fases em que o Estado, no exercício do seu poder punitivo, se confronte com o
cidadão.
No entanto, o professor Silva Dias enfatiza um aspeto relevante, não abordado por Roxin: na
problemática dos fins das penas, encontram-se, tradicionalmente, questões 1) acerca das razões
(pressupostos) da punição; e 2) dos fins das penas que já assentam num prognóstico. Ora, é preciso
perceber não só a finalidade, como a razão de ser do momento da pena – assim, estas duas questões
terão de ser analisadas quanto aos três momentos decisivos.
No momento da ameaça (através de uma norma geral e abstrata), a razão da ameaça penal é
a valoração de um comportamento como um comportamento que atenta contra um bem jurídico
fundamental, da ordem jurídica constitucional, e que exige uma intervenção do direito penal –
conceito material de crime.
No entanto, uma coisa é a razão de ser; outra é a finalidade que se visa com a ameaça,
nomeadamente de prevenção geral positiva: prevenir a prática de futuros crimes, reforçando os
valores fundamentais que a norma visa tutelar. Assim, é tanto maior o efeito preventivo da pena,
quanto mais respeitada for a proporção entre a medida legal da pena legalmente fixada e a
gravidade do facto punível (ex: o legislador, ao dizer que pune quem maltratar animais, está a
reforçar os direitos dos animais). O legislador tem, por isso, de ter cuidado quando determina a
medida legal da pena, não podendo ser exagerado ou pôr uma pena demasiado restritiva: é sempre
uma moldura legal, que deve variar consoante a gravidade da lesão do bem jurídico.
Existe, ainda, outra função, nomeadamente a função de intimidar – prevenção geral negativa. Para o
professor Silva Dias, além da prevenção geral positiva, a ameaça penal, nomeadamente através da
sanção, deve servir para a intimidação.
 Concluindo: A previsão tem como maior efeito a prevenção geral positiva, através do reforço
dos valores que visa tutelar; já a estatuição exerce primordialmente a prevenção geral negativa,
porque intimida com a sanção.
No momento de imposição da pena, a razão de ser da aplicação da pena é a existência de um
crime, ou seja, a prática de um ilícito criminal. Está, aqui, uma clara ideia retributiva: a pessoa lesa
bens jurídicos e sofre uma pena; mas essa pena será segundo a sua culpa pessoal, e não apenas
segundo o facto objetivo (teoria da reparação). A culpa fornece o limite da retribuição, mas também
o limite dentro do qual as finalidades preventivas podem ser prosseguidas; isto é, a culpa do agente
pelo facto vai fornecer o limite/medida dentro da qual as finalidades preventivas podem ser
prosseguidas. Isto porque, no momento da aplicação da pena, ir-se-á, também, concretizar as
finalidades da própria ameaça penal, nomeadamente a prevenção geral positiva e negativa; essa
prevenção tem de ser feita dentro da medida determinada pela culpa do agente.
Também a prevenção especial, isto é, o juiz, atendendo às condições do meio social e económico e
do meio prisional existente, deve escolher as medidas mais adequadas para evitar, no agente do
crime, o desenvolvimento de uma sensibilidade antissocial. Ou seja, na fase da aplicação da pena é
também extremamente relevante a prevenção especial, que visa prevenir a prática dos crimes pelo
próprio agente do crime: assim, a pena vai ser calculada segundo as causas pessoais, económicas,
sociais, da prática do crime. Pode até acontecer que, por razões de prevenção especial, se defenda
uma pena que fica aquém do limite mínimo da culpa; mas o contrário – estabelecer uma pena,
mesmo por razões de prevenção especial, que ultrapasse limite máximo da culpa – será sempre
inconstitucional.
Por fim, no momento da execução da pena, a razão de ser da execução da pena e a finalidade
confundem-se: sendo, principalmente, a prevenção especial.

3. Professor José Sousa Brito


Segundo o professor José Sousa Brito, o fim da pena é não só a reparação do dano da culpa,
mas também a prevenção geral da prática de futuros crimes – o que significa que tanto a culpa como
a necessidade de existir prevenção geral são pressupostos/fundamentos da pena. Tal conclusão
chega-se pelo artigo 40º CP e pelo artigo 1º CRP, que consagra ao princípio da dignidade humana:
só se pode punir alguém se esse alguém atuar no âmbito da sua autonomia e liberdade, o que, em
última análise, significa atuar com culpa. Por outras palavras, alguém que não atue no âmbito da sua
liberdade não pode ser punido (ex: sonâmbulo que bate em alguém durante o seu sonambulismo). Já
do artigo 18º, nº2 da CRP retira-se o pressuposto da necessidade de prevenção geral: a finalidade e
pressuposto da pena é a prevenção geral, ou seja, prevenir a prática de determinados crimes – pelo
que só se pode restringir direitos, liberdades e garantias dos indivíduos para salvaguardar outros
direitos constitucionalmente protegidos.
No entanto, uma teoria dos fins das penas, para ser completa, além de estabelecer os
pressupostos das penas, tem também de estabelecer os critérios que influem na determinação da
medida concreta da pena, a aplicar pelo juiz. Ora, segundo o professor José Sousa Brito, na
determinação da medida judicial (e assumindo que não existe a possibilidade de estabelecer uma
pena alternativa à pena de prisão), parte-se da moldura legal abstrata, que já tem em conta os
atenuantes gerais. A seguir, aplicam-se os seguintes critérios à moldura legal, para encontrar a
medida da pena:
1) A culpa não só é pressuposto da pena (artigo 1º CRP), como também é critério na determinação
da medida da pena, resultante do artigo 40, nº2 CRP: esta determinará a pena entre um máximo
e um mínimo, e não uma medida exata (ex: para homicídio privilegiado, a moldura legal é “de 1
a 5 anos”, podendo o juiz concluir que, num caso concreto, a pena deve variar entre 2 e 5 anos).
A culpa é um juízo de censura que se dirige ao agente pelo facto de, tendo essa possibilidade,
não ter atuado de acordo com o direito. Ora, o legislador, ao estabelecer diferentes molduras
legais dependentes da culpa – por exemplo, o homicídio classificado que, pela sua “especial
censurabilidade”, tem uma moldura legal de 12 a 25 anos VS. O homicídio privilegiado, para
casos de menor culpa, que tem uma moldura legal de 1 a 5 anos –, está claramente a dizer que a
culpa faz variar a pena entre um máximo e um mínimo. Consequentemente, o juiz, ao
determinar a pena, terá não só em conta a moldura legal, como também não pode deixar de
determinar um mínimo e um máximo (dentro dessa moldura legal) com recurso à culpa.

2) De seguida, determina-se, através da prevenção especial, a medida exata da pena, que terá de ser
determinada dentro da medida da culpa OU abaixo do limite mínimo estabelecido pela culpa
(mas nunca dos limites legais, a não ser que haja atenuantes). Isto acontece, por exemplo, em
casos em que a pessoa não irá voltar a praticar o mesmo crime e que, por isso, uma pena mais
pequena visaria a sua reintegração melhor, dado ser esse o fim da pena – artigo 40º, nº1 CRP.

3) Por fim, a prevenção geral vai condicionar a medida da pena determinando o limite mínimo
necessário para a defesa dos bens jurídicos, algo que resulta não só do artigo 18º CRP – sobre a
restrição dos direitos –, mas também do artigo 71º, nº1 CP, que poderá fazer com que não se
possa ir abaixo do limite estabelecido pela culpa.

Medidas de Segurança
Como já foi falado, aos inimputáveis não se pode aplicar uma pena de prisão, mas apenas
medidas de segurança, pois não há culpa – princípio da culpa. Assim, os pressupostos para a
aplicação de uma medida de segurança são a 1) inexistência de culpa, 2) a prática de um ato ilícito
típico, e, além disso, 3) existência de perigosidade por parte do agente. Por outras palavras, a
medida de segurança, ao contrário da pena, tem como pressuposto não só a prática de um facto
criminalmente ilícito, mas também que se deve basear na perigosidade do agente – apoiada no
receio fundado da prática, por parte desse agente, de outros factos típicos graves. Assim, a medida
de segurança irá alcançar a defesa social, prevenindo a prática de futuros ilícitos por parte do
agente.
Para a maior parte da doutrina, a finalidade primordial das medidas de segurança é a
prevenção especial, no sentido de prevenir o perigo do cometimento de futuros crimes, através do
tratamento do inimputável. A tal recuperação do agente far-se-á, essencialmente, quer através do
internamento hospital, no caso de anomalia psíquica; quer através da reclusão em locais de
reeducação. No entanto, há, também, na medida de segurança, uma certa finalidade de prevenção
geral, no sentido de reafirmar a confiança comunitária nas normas – mas, para grande parte da
doutrina, esta prevenção geral apenas existe como efeito reflexo e dependente da prevenção
especial.
As normas relativas às medidas de segurança estão no capítulo VI, título III da parte geral do
CP; mas estas apenas regulam as medidas de segurança aplicáveis a imputáveis por anomalia
psíquica. As medidas de segurança aplicáveis a imputáveis em relação de idade, por sua vez,, estão
reguladas na Lei Tutelar Educativa.

Medidas de segurança a inimputáveis por anomalia psíquica (artigos 91º a 99 CP)


A medida de segurança é determinada, na sua gravidade e na sua duração, por dois fatores:
1) a perigosidade do agente, e 2) a gravidade do ilícito típico praticado pelo agente – sendo que
nunca pode exceder o limite máximo da pena correspondente ao tipo de crime cometido pelo
imputável (artigo 92, nº2 CP; e legitimado pelo artigo 30º, nº2 CRP). Isto, no entanto, não é uma
regra geral absoluta, dado que, em casos cujo o facto corresponder a um crime punível com pena
superior a 8 anos, se existir perigo da prática de novos factos com certa gravidade, à luz do artigo
92º, nº3 CP, a medida de segurança de internamento pode ser prorrogado por períodos sucessivos de
2 anos, até o tribunal verificar que o estado de perigosidade criminal do agente cessou. Esta norma,
em última análise, vem permitir medidas de segurança perpétuas – sendo que isso viola um
princípio constitucional, dado que o internamento hospitalar restringe a liberdade do inimputável.
Ora, tanto o professor Taipa de Carvalho, como a professora, consideram que o artigo 92º, nº3 CP
não tem fundamento para permitir, expressamente, medidas de segurança privativas da liberdade
perpétuas. Por isso, a única forma de não violar a CRP mas, ao mesmo tempo, conseguir lidar com a
perigosidade do inimputável, será utilizar a lei da Saúde Mental (Lei n.º 36/98, de 24 de Julho), que
estabelece a possibilidade de internar compulsivamente as pessoas que são um perigo para si
próprias e para os outros (depois de uma avaliação clínica por dois peritos) – medida de segurança
ad eternum. Isto porque se reconhece que, de facto, existem pessoas que são um perigo para a
sociedade; sendo, também, consagrado na CRP a “paz social”, pelo que a sociedade tem de se poder
salvaguardar de pessoas potencialmente perigosas.

Sistema de vicariato na execução de sanções:


O sistema português atual pode ser considerado “dualista”, no sentido de que tem como
sanções criminais as penas para imputáveis, e as medidas de segurança para inimputáveis. Mas será
que o sistema permite a aplicação cumulativa, ao mesmo agente, pelo mesmo fato, de uma pena e
de uma medida de segurança? Ora, o nosso sistema consagra um sistema monista-prático ou um
sistema de dupla vista; ou ainda um sistema de vicariato na execução das sanções.
O professor Figueiredo Dias diz que este problema só deve ser levantado nos casos dos
denominados “delinquentes imputável especialmente perigosos” – ou seja, quando um facto ilícito
típico é praticado por um imputável que, no entanto, é também especialmente perigoso (linguagem
usada para os inimputáveis) devido a qualquer anomalia. Segundo o artigo 83º, nº2, nestes casos, o
legislador permite, que estas pessoas tendencialmente perigosas (que tenham cometido mais do que
um facto ilícito com pena maior de 2 anos) possam ter “penas indeterminadas”. Estas penas,
formalmente, são de prisão; mas, substancialmente/materialmente, o que existe é uma espécie de
medida de segurança, dado o seu fundamento ser a perigosidade do agente. Isto é, o limite da pena
deixa de ser a culpa pelo facto, para passar a ter o fundamento a perigosidade – não podendo, no
entanto, ir a mais de 25 anos: há, então, a possibilidade de aplicar uma pena de prisão (ex: 2 anos,
pela culpa) + uma medida de segurança (ex: até +6 anos, pela perigosidade do agente). A isto se
chama um sistema monista-prático ou um sistema de dupla vista; ou ainda um sistema de vicariato
na execução das sanções.
Segundo o professor, a maneira correta de aplicar este artigo é, primeiro, executar a medida de
segurança; depois, descontar o tempo que foi cumprida a medida de segurança (dado ser mais
favorável ao agente); e, por fim, ao passar para a pena de prisão, ter-se-á em conta os efeitos úteis
da medida de segurança, nomeadamente, se teve ou não melhor efeitos (por exemplo, se fizer
reabilitação) – ora, se tiver um efeitos extremamente positivos, o tribunal poderá, então, substituir a
pena de prisão a aplicar por medidas substitutivas.
 Esta possibilidade não vai contra o princípio da culpa, dado que a pena é, formalmente, apenas 2
anos; o momento em que esta for revista, o fundamento para essa revisão não será a culpa, mas
sim a perigosidade do agente – dito de outra forma, no momento que a pena ultrapassa a medida
da culpa, a pena “transforma-se” em medida de segurança.

Já o artigo 99º estipula uma figura que não se encaixa neste sistema de vicariato: se uma
pessoa pratica um facto como imputável, e depois como inimputável, é possível ser-lhe dada uma
pena pelo primeiro facto, e uma medida de segurança pelo segundo.
De notar, ainda, que nem todas as medidas de segurança são privativas da liberdade (artigos
100º a 103º): podem ser, por exemplo, interdição de certas atividades, entre outras. De qualquer
forma, para além de se provar que a pessoa sofre de anomalia psíquica; os peritos têm ainda de
provar que, no momento do facto, devido à anomalia, a pessoa não tinha capacidade de
compreender o que estava a fazer ou de se motivar pelo Direito.
 É importante ter em atenção que os delinquentes por tendência não são inimputáveis, caso
contrário não lhes poderia ser aplicada uma pena, mas apenas uma medida de segurança.

Critério da escolha de penas


O juiz escolhe, dentro das penas que tem à sua disposição, no caso concreto, a espécie de
pena que deve ser cumprida, nomeadamente através dos chamados mecanismos das penas
alternativas ou penas de substituição. Segundo o artigo 70º CP, este deverá optar por uma pena não
privativa, se tal for adequado e suficiente para a verificação das finalidades das penas faladas. No
entanto, sendo isto uma expressão demasiado ampla, tem de se concluir que o legislador estará mais
preocupado com a finalidade de prevenção especial: assim, o juiz deve optar pela pena de multa, se
esta for mais benéfica para a prevenção especial, permitindo a ressocialização do agente e evitando
a sua reincidência (ex: artigo 143º). No entanto, se esta multa não for paga, a prevenção especial
exige que esta seja convertida em pena de prisão (artigo 45º CP); ao passo que as coimas, por
exemplo, não podem ser transformadas em penas de prisão devido ao seu incumprimento.
 As penas de curta duração devem ser evitadas, tendo em conta os efeitos nefastos que a privação
de liberdade tem no desenvolvimento social e pessoal da pessoa. Por isso, em penas mais
diminutas (ex: de 1 ano), deverá ser privilegiada a pena de multa.
Já o artigo 46º descreve “finalidades” no plural – ora, fazendo uma interpretação da norma,
conclui-se que o legislador está preocupado simultaneamente com a prevenção especial e a geral.
Existe, ainda neste âmbito, a figura da suspensão da pena (artigos 50º a 57º): O legislador
fala, aqui, na finalidade relativa à prevenção especial e geral – dado que, ao explicitar “as condições
da vida e circunstâncias (…)”, este estará preocupado com as consequências a nível da sociedade.
Por exemplo, se o agente já é reincidente, não será provável que a sua pena seja suspensa, na
medida em que existe um padrão para que o seu comportamento futuro volte a ser um ato ilícito.
Outra figura existente é a prestação de trabalho a favor da comunidade (artigo 58º), aplicada a
pequenos crimes: isto porque é muito mais fácil, através desta prestação – ou, eventualmente da
prestação de trabalho específico à reabilitação do crime que se cometeu –, ressocializar o agente.
Finalmente, existe, também, a admoestação (artigo 60º), e a liberdade condicional (artigos 61º-64º).

Princípios Fundamentais do Direito Penal


Princípio da humanidade das penas
O princípio da humanidade das penas desdobra-se em dois subprincípios: 1) princípio da
dignidade da pessoa humana – são proibidas penas que a ofendam –, e 2) princípio da necessidade
da pena, sendo que uma pena desumana não é necessária. Aliás, uma pena desumana poderá até ser
prejudicial do ponto de vista da prevenção geral: em última análise, uma pena desumana
demonstrará desprezo pelos bens jurídicos que, ao mesmo tempo, é suposto proteger – ou seja,
primeiro, afirma-se a existência de valores invioláveis, protegidos pelo Estado através de penas;
mas, depois, o Estado, com a aplicação dessas penas, acaba por violar esses ditos valores
invioláveis.
Este princípio está, acima de tudo, regulado no artigo 24º, nº2 CRP: a vida é inviolável, pelo
que, por exemplo, a pena de morte é inconstitucional – não só porque põe em causa o valor da vida,
como também porque instrumentaliza a vida, de forma a satisfazer a prevenção geral.

Princípio da intervenção mínima


O princípio da intervenção mínima está expresso no artigo 18º, nº2 CRP: o legislador só
pode restringir direitos fundamentais quando tal for indispensável para a tutela de outros direitos
fundamentais (“devendo as restrições limitar-se ao necessário”). Outras formas de denominar este
princípio são princípio da necessidade do direito penal; e princípio da subsidariedade do direito
penal, em sentido amplo.
Há alguns autores que sentem a necessidade de distinguir estes dois. A professora Maria João
Antunes, por exemplo, liga o princípio da necessidade à ideia de que o Direito Penal só deve atuar
quando existir um comportamento que tenha uma elevada gravidade ética – ou seja, quando existir
um comportamento que lese gravemente bens jurídicos essenciais à vida em comunidade. Já o
princípio da subsidariedade, em sentido estrito, significa, para Maria João, que o Direito Penal pode
atuar apenas se qualquer outro meio se relevar ineficaz para proteção de bens jurídicos. Esta análise
da eficácia não se vê só por exclusão de partes, mas também pelas consequências que tem a
punição: se estas forem mais negativas que positivas, conclui-se que aquela sanção não previne a
prática de outros crimes; logo, não deve haver atuação do Direito Penal.
 Alguns exemplos relativamente a esta eficácia são o aborto – conclui-se que a criminalização
estava a ter efeitos mais negativos do que positivos –, o tráfico de droga – a criminalização não
só não impede os carteis de continuarem a traficar (e todos os crimes associados com isso); mas,
ainda mais grave, poderá fazer com que comecem a controlar os políticos no governo.

Direito Contraordenacional:
Neste princípio refere-se, ainda, um ramo do direito muito próximo do Direito Penal,
nomeadamente o Direito Contraordenacional – ramo que inclui pequenas infrações rodoviárias, mas
também inclui infrações fiscais, económicas, ecológicas. O Regime Geral das Contraordenações
(DL nº433/82) estabelece o regime geral deste ramo, havendo, depois, leis como a Lei-Quadro das
Contraordenações Ambientais (Lei nº50/2006, de 29 de agosto) ou o Regime Sancionatório do
Setor Energético (Lei nº9/2013, de 28 de janeiro), que muitas vezes derrogam o regime geral. É de
tal forma a diversidade de contraordenações, que existe uma parte da doutrina que defende a
diferenciação entre as contraordenações tradicionais (menos graves) e as contraordenações
modernas (mais graves).
Formalmente, estes ramos são distinguidos pela constituição das respetivas normas: enquanto as
normas penais têm, na sua previsão, um crime, e na sua estatuição uma pena; as normas
contraordenacionais têm, na sua previsão, , na sua previsão, uma contraordenação, e na sua
estatuição uma coima (e não uma multa, que só se aplica a crimes). No entanto, em termos
materiais, percebe-se que o fundamento da sanção é diferente – assim, o que poderá levar o
legislador a considerar determinado comportamento como ou crime, ou contraordenação?
 A maior parte da doutrina defende que o critério de distinção é qualitativo:
o Segundo o professor Figueiredo Dias, não devem ser abrangidas pelo Direito Penal aquelas
condutas cuja relevância ético-social é consequência das normas que as proíbem, e que, por
isso, não atingem bens que já existam anteriormente a essas normas. Interessa, assim, saber
se a conduta já era considerada relevante ético-socialmente antes: se sim, existe uma base
social para o crime; se não, será contraordenação. Por exemplo, a conduta de conduzir com
1.2gl é ético-socialmente relevante, e devido a este salto qualitativo, a conduta deve passar
a ser considerada crime – não é o facto de conduzir com qualquer quantidade de álcool no
sangue que é passiva de ferir bens jurídicos precedentes.
 Crítica: Existem certas regras que não são eticamente neutras mas que, mesmo assim,
só devem ser consideradas contraordenações, devido ao princípio da intervenção
mínima.

o Já o professor Américo Taipa de Carvalho considera que os bens jurídicos protegidos pelo
Direito Penal pertencem à estrutura axiológica (valorativa) fundamental da vida
comunitária; enquanto o “direito de mera ordenação social” protege bens jurídicos que não
pertencem a essa estrutura. Ou seja, interessa a consequência da conduta, da qual resulta se
a conduta em si é socialmente perigosa ou não: se tiver consequências que põem em causa
bens jurídicos fundamentais à vida em comunidade, deve atuar o Direito Penal; se não, deve
atuar o direito contraordenacional. Por exemplo, a conduta de conduzir com menos de 1.2gl
continua a ser uma conduta ético-socialmente negativa, mas só a partir de 1.2gl é que a
conduta será de tal forma perigosa que o Direito Penal tem de atuar.
 Crítica: Mais uma vez, este é um critério puramente formal, tal como o de Figueiredo.

o Segundo o professor Frederico da Costa Pinto – ao contrário de Taipa de Carvalho, que


considera que o ilícito da mera ordenação social não é socialmente reconhecível –, o ilícito
de mera ordenação social deve ser visto na perspetiva do dever a que o agente está adstrito
e que violou. Ou seja, para este, o ilícito contraordenacional é construído a partir da noção
de dever jurídico e da sua violação; enquanto o ilícito penal é construído a partir da noção
de bem jurídico e da sua lesão. Assim, só vão para o Direito Contraordenacional as
condutas que são ilícitas porque resultam da violação de um dever a que o individuo está
adstrito; já as condutas que lesam bens jurídicos vão para o Direito Penal. Por exemplo, se
se violar o dever da lealdade e honestidade nos usos comerciais, encontra-se uma
contraordenação.
 Crítica: Existem certas condutas contraordenacionais que lesam bens jurídicos
fundamentais, mesmo vindo essa lesão de uma violação de um dever jurídico.

o Segundo a professora Fernanda Palma, para a conduta ser do âmbito do Direito


Contraordenacional, tem de revestir, pelo menos, quatro características: 1) menos desvalor
ético prévio; 2) menos desvalor da ação que fundamenta o ilícito; 3) menor importância na
ordem axiológico-constitucional do objeto direto da ação (ex: no homicídio, o objeto é a
pessoa morta); e 4) não existência de carência (não é preciso) de proteção penal.
 Outra parte da doutrina entende que a distinção deve ser feita através do critério quantitativo:
o Segundo a professora Conceição Valdágua, a distinção deve ser feita com base no princípio
da subsidariedade do Direito Penal, e não tanto com base na ideia de que as
contraordenações não ofendem qualquer bem juridico fundamental. Assim, o Direito Penal
será aplicado em função da maior gravidade do ilícito – por exemplo, conduzir alcoolizado
coloca, sempre, em causa bens jurídicos fundamentais, mas apenas a partir de 1.2gl é que
esse grau de gravidade fundamenta a necessidade da intervenção do Direito Penal.

 Outra parte da doutrina entende que o critério deve ser misto – ou seja, consoante o termo de
comparação, varia o critério que se deve adotar.
o Segundo Roxin e Jacobs, em determinados casos, importa se bem jurídico protegido é ou
não considerado fundamental (critério qualitativo); mas, em outros casos, já só interessa a
gravidade do ilícito (critério quantitativo).

o O professor Silva Dias defende que não há uma resposta uniforme sobre o critério utilizado.
Isto porque, se se confrontar o crime de homicídio com a contraordenação de
estacionamento proibido, não há dúvida que a diferença entre as duas é apoiada num
critério qualitativo: o bem jurídico do primeiro é fundamental, mas o do segundo não o é.
No entanto, confrontando o crime de conduzir com 1.2gl ou mais, com a contraordenação
de conduzir com até 1.1gl, a diferença é apoiada num critério quantitativo.

o A própria professora pensa que este é o critério mais acertado: se se comparar o Direito
Penal Nuclear (relativo aos bens jurídicos fundamentais), este distingue-se do Direito
Contraordenacional segundo um critério qualitativo, assente na proteção de bens jurídicos
fundamentais; mas se se comparar o Direito Penal Secundário (relativo aos bens jurídicos
coletivo) com o Direito Contraordenacional, o critério de diferença será quantitativo, sendo
o princípio da subsidariedade que irá ajudar a colocar certa conduta no âmbito do Direito
Contraordenacional (menos grave) ou do Direito Penal (mais grave).
 Além disso, a existência de uma maior gravidade baseia-se automaticamente a uma
lesão de bens jurídicos fundamentais; logo, uma relação entre os dois critérios é
necessário.

Outras especificidades do Direito Contraordenacional


As finalidades das coimas não coincidem totalmente com as finalidades da pena, existindo
duas espécies de finalidades: 1) necessidade de prevenção – ou seja, há a necessidade de, com a
coima, prevenir outras contraordenações por parte da sociedade e do próprio (prevenção geral e
especial positiva, com o restabelecimento da expectativa de que quem praticar aquele ilícito é
sancionado com uma coima) –, e 2) necessidade de difundir a mensagem de que o infrator não
beneficiou das vantagens que visava com a contraordenação – visto que as coimas são, por norma,
pecuniárias, e de valor extremamente altos (neutralizar os ganhos obtidos com a infração).
Relativamente ao regime jurídico do Direito Contraordenacional, a aplicação de coimas
compete às autoridades administrativas públicas (até para libertar os tribunais) – mas, e dado que as
sanções aplicadas às contraordenações podem ser muito gravosas, e não apenas de natureza
pecuniária (ex: proibição de exercer uma profissão), o arguido poderá, nesses casos, recorrer para o
tribunal judicial de primeira instância.

NOTA: Existe, ainda, o Direito Disciplinar Público ou Direito Disciplinar da Função Pública, que
tem como objetivo imediato os interesses específicos da boa organização e do eficaz funcionamento
dos serviços da administração pública – que não se confunde nem com o direito contraordenacional,
nem com o direito penal. Assim, quando um funcionário público viola tais deveres, pode ser punido
a nível disciplinar; mas, e dado à autonomia deste ramo de direito, nada obsta a que esta sanção
disciplinar se aplique, cumulativamente, uma sanção criminal ou contraordenacional.

Princípio da Culpa
Segundo o princípio da culpa, não há pena sem culpa; e a medida da pena não pode
ultrapassar a medida da culpa. Aqui, a culpa pode ser vista em dois sentidos:
 Culpa em sentido estrito: Ou seja, a culpa enquanto elemento constitutivo do crime, analisado a
seguir à ilicitude do crime (“ação típica, ilícita, culposa e danosa). De notar que na ilicitude,
apenas se analisa a relação entre o comportamento e a ordem jurídica – ora, se um
comportamento viola normas jurídicas, e é desvalioso à luz da OJ, é ilícito. No entanto, nem
todos os atos ilícitos são culposos (nomeadamente, as ações de inimputáveis): isto porque a
culpa não se preocupa com o carácter desvalioso, mas sim com o agente –é um juízo de censura
que se faz ao agente, pelo facto dele possibilidade de se motivar pelo direito, mas não o ter feito.

 Culpa enquanto ligação subjetiva do sujeito com o facto: Só se pode aplicar uma pena a quem
tenha atuado no âmbito da sua liberdade e autonomia. Aqui, interessa a capacidade de ação
alternativa por parte do sujeito; pelo que, se ele não tem capacidade de ação alternativa, não atua
no âmbito da sua autonomia (ex: sonâmbulo). Ora, quando se demonstra que uma pessoa não
tem capacidade de ação alternativa, não há sequer ação (voluntária), logo não haverá pena.

Este princípio não tem consagração constitucional expressa, sendo retirado do princípio da
dignidade humana: só se respeita a dignidade de uma pessoa se apenas a responsabilizar pelos atos
que praticou no âmbito da sua autonomia – ou seja, por atos que ela poderia ter evitado. Além disso,
também só se respeita a dignidade da pessoa se se a julgar segundo a sua culpa, e não segundo a sua
utilidade para a comunidade, nomeadamente a nível de prevenção: não se pode aplicar uma pena
apenas com base na ideia de prevenção de outras práticas de crime.
Existe, ainda, o artigo 27º, que consagra o direito à liberdade: ora, a culpa indica a liberdade de ter
uma ação alternativa e de poder motivar-se pelo direito – pelo que, ao julgar-se a pessoa pela sua
culpa, reconhece-se que ela é livre. Em última análise, a liberdade da pessoa resulta da sua
dignidade.

Princípio da Igualdade
Segundo o princípio da igualdade (artigo 13º CRP), não poderá haver discriminação no
Direito Penal consoante qualquer tipo de características (pessoais, físicas, sociais, etc.). Além disso,
existe uma necessidade de haver igualdade na aplicação da pena: ou seja, na determinação da pena
tem de se fundamentar o porquê da mesma, de forma a essa determinação ser igual para todos.
Princípio da Jurisdicionalidade
Segundo o princípio da jurisdicionalidade, o Direito Penal só se pode aplicar em processo
penal, ou seja, através do processo penal – ao contrário do direito civil, que pode ser aplicado, por
exemplo, num escritório de advogados) –, incluindo todos os princípios que estão no ramo de
processo penal. O direito processual penal é, por isso, um direito instrumental (autónomo) face ao
Direito Penal: a sua função é permitir a aplicação correta do Direito Penal.

Princípio da Legalidade
O princípio da legalidade tem especial relevância em toda a teoria da lei pena, que dita que
não há crime nem pena sem lei prévia, escrita, certa, estrita. Este está consagrado
constitucionalmente, nos artigos 29, nº1, 3 e 4 CRP; mas também está na lei ordinária, nos artigos
1º e 2º, nº1 CP. A nível internacional, pode ser encontrado na Declaração Universal dos Direitos
Humanos; na Convenção Europeia dos Direitos Humanos; e no Pacto Internacional sobre os
Direitos Civis e Políticos.
O fim deste princípio é proteger os direitos individuais dos cidadãos, face ao poder punitivo
do Estado: nomeadamente, ao não permitir que se surpreenda o cidadão com a criminalização de
condutas com as quais não podia contar – criando, dessa forma, segurança e certeza jurídicas. Dito
de outra forma, o seu fim primordial é impedir uma intervenção estadual arbitrária ou excessiva e,
dessa forma, defender os direitos, liberdades e garantias das pessoas. Desta ideia, conclui-se que o
princípio da legalidade não se dirige apenas ao legislador; dirige-se, também, ao aplicador do
direito.
Este princípio está ligado à ideia de Estado de Direito, sendo que este conceito pode ter dois
sentidos:
 O Estado de Direito em sentido formal refere-se à subordinação do Estado ao direito que ele
próprio cria. Esta subordinação implica que a lei seja uma expressão da vontade democrática e,
por isso, soberana; e que toda a atividade do Estado é regulada pela lei – ideia que, por sua vez,
está relacionada com a ideia de divisão de poderes. Ora, o princípio da legalidade será uma
aplicação desse princípio da divisão de poderes, dado reservar a formulação do Direito Penal ao
poder legislativo, não sendo possível ao poder judicial criar (mas apenas aplicar) Direito Penal.

 O Estado de Direito em sentido material exprime a subordinação do Estado ao direito entendido


como ideia de justiça, como conjunto de direitos fundamentais do Homem. Isto, de forma a
proteger os direitos dos cidadãos face ao Estado – há que diminuir o poder do mesmo perante o
cidadão, de forma a proteger os direitos individuais. É com base nesta ideia de proteção que se
cria o princípio da legalidade em direito penal, e é, também, de onde vem a sua função de
proteger os direitos individuais, criando certeza e segurança jurídica.

No entanto, o professor Figueiredo Dias vem relembrar que o princípio da legalidade está também
ligado à ideia de prevenção e de culpa. Para este, é possível retirar a necessidade de existência do
princípio da legalidade quer da ideia de prevenção geral, quer do princípio da culpa: por um lado,
para que uma norma cumpra a sua função de prevenção geral, é necessário dar a conhecer aos
cidadãos os comportamentos que podem ser considerados crime; por outro lado, uma pessoa só se
poderá motivar pelo Direito – e agir sem culpa – se conhecer esse mesmo Direito antes de atuar.
Âmbito de aplicação
Sabendo a função do princípio da legalidade, é possível, agora determinar o âmbito de
aplicação do princípio da legalidade. O artigo 165º, nº1, alínea c) CRP refere apenas “crimes, penas,
medidas de segurança e pressupostos” – mas o que significa, em concreto, este âmbito?
Para grande parte da doutrina, este só se irá aplicar a normas penais positivas, ou seja,
normas que fundamentam ou agravam a responsabilidade criminal – isto porque está-se perante
circunstâncias que, enquanto agravam, também definem o crime; e, por isso, são abrangidas pelo
artigo 165º (“definição dos crimes e penas”). Já às normas penais negativas, que são aquelas que
excluem ou diminuem a responsabilidade criminal, não se aplica este princípio, dado que tanto a
norma pela negativa como o princípio da legalidade têm o mesmo objetivo: afastar o poder punitivo
do Estado, protegendo os direitos individuais face ao mesmo – ora, tendo a mesma função, não é
preciso aplicar os dois.
No entanto, é necessário discutir a aplicação, dentro das normais penais negativas, às normas que
preveem causas de exclusão completa de responsabilidade criminal. Parte da doutrina defende o
princípio da legalidade não se aplica, visto que as causas têm o mesmo objetivo; no entanto, existe
outra parte da doutrina (como a professora Fernanda Palma) que resolve distinguir consoante a
circunstância ezimente. Assim:
 Em circunstâncias ezimentes que permitem certas condutas que, em geral, são proibidas,
abrindo uma exceção, não aplicar o princípio da legalidade iria afetar as expectativas gerais e
diminuir a segurança dos cidadãos (ex: se, ao não se aplicar o princípio da legalidade, se
permitir escutas telefónicas noutras situações que não as explicitamente previstas pelo
legislador, põem-se em causa a segurança do cidadão, nomeadamente quanto à sua privacidade).

 Se a causa que exclui essa conduta decorrer de um princípio geral de direito, esta é supralegal –
assim, a insuportabilidade da lesão do bem jurídico em questão justifica essa causa de exclusão,
à luz do princípio da dignidade humana, consagrado constitucionalmente; pelo que não se aplica
o princípio da legalidade (ex: legítima defesa preventiva, de modo a evitar que seja magoada).
o Já em circunstâncias ezimentes que visam alargar o âmbito da aplicação sem existir um
princípio geral de direito por detrás, enquanto norma penal negativa, este princípio também
não seria aplicado. No entanto, a professora Fernanda Palma defende a sua aplicação, dado
que, apesar da conduta do agente ser ilícita e provocar danos, esta não se enquadra no
esquema jurídico previsto – pelo que achando em contrário será afetar a expectativa dos
cidadãos (ex: aceitar que uma pessoa se possa defender legitimamente de um sonâmbulo que
lhe aponta uma arma, mesmo que este não tem possibilidade de controlar as suas ações –
para a professora Fernanda Palma, ampliar desta forma o âmbito de direito de necessidade
será contra o princípio da legalidade).
Relativamente à aplicação deste subprincípio a medidas de segurança, não existe consenso
doutrinário. No fundo, as medidas de segurança visam a prevenção especial, de tratamento do
próprio; ora, se face à lei atual, conclui-se que o tratamento deverá ser outro que não aquele previsto
quando a ação foi feita (em função da sua adequação), deverá optar-se por esse tratamento – logo,
supostamente, o princípio da legalidade não deve ser aplicado às mesmas. De qualquer das formas,
no artigo 165º, nº1, alínea c) CRP, incluem-se medidas de segurança, logo tal é admitido
constitucionalmente (independentemente das opiniões da doutrina).
Subprincípio relativo às fontes:
Segundo este subprincípio, não há crime nem pena sem lei formal/escrita. Esta “lei formal”
encontra-se no artigo 165º, nº1, alínea c) CRP, que estabelece uma reserva relativa da competência
legislativa da AR. Isto significa, então, que só pode ser fonte de Direito Penal uma lei da AR ou um
Decreto-Lei autorizado do Governo – pelo que a AR é sempre a fonte última do Direito Penal. Só
assim haverá segurança democrática, com todas as leis penais a decorrem da maioria democrática.
 De notar que não basta demonstrar que o legislador, através de uma lei formal, prevê um crime
e uma pena/medida de segurança – este terá, também, de relacionar o crime à pena; ou/e a
medida de segurança aos seus pressupostos.
No entanto, e também à luz da CRP, parece ser possível ter como fonte de Direito Penal
algo que não lei formal, nomeadamente no caso do costume internacional. De acordo com o artigo
29º, nº2, este costume (convicção generalizada na sociedade internacional sob o carácter criminoso
de dada conduta) poderá ser fonte; mas este é limitado, pelo legislador, pela lei interna – isto porque
o costume internacional, enquanto fonte, apresenta algumas dificuldades. A lei penal terá de ser
certa e estrita, e a pena terá de estar determinada; ora, isso é algo que não é comum no costume
internacional. Assim, é necessário olhar para a lei interna, e ver quais as penas aplicadas para os
crimes próximos ao crime do costume internacional.
 De notar que o Direito Internacional Penal não compreende apenas o costume internacional;
também abrange disposições constantes dos contratos e convenções internacionais a que o
Estado Português tenha aderido, como parte outorgante ou como posterior aderente (ex:
Tribunal Penal Internacional). Cada vez mais o Direito Português é “condicionado” por Direito
Penal Internacional, nomeadamente ao nível de Direito Penal Europeu (enquanto atos
legislativos adotados a nível da EU): existem instâncias comunitárias que têm o poder de impor
normas, por exemplo, através de diretivas, que se projetam depois no Direito Penal nacional.
De qualquer forma, o Direito Penal continua a ser um direito intraestadual por excelência, pelo que
a fonte formal e orgânica do mesmo são os órgãos estaduais. Por isso, o costume nacional é
proibido como fonte de Direito Penal, no sentido de fonte de normas penais positivas; mas pode ser
fonte de normais penais negativas, segundo a professora Conceição Valdágua (ex: o direito de
correção de uma mãe perante um filho, socialmente dado, é admissível como causa de exclusão de
ilicitude, se esta lhe der uma palmada para o prevenir de estar constantemente a tentar passar a
estrada sozinho).

Subprincípio da Tipicidade:
Outro subprincípio é o princípio da tipicidade, que tem a ver com o grau de definição do
crime: “não há crime nem pena/medida de segurança sem lei certa”. Segundo este, a ação criminosa
e os pressupostos da medida de segurança têm de estar determinados com suficiente precisão na
norma legal, dado que só uma ação objetivamente determinável se torna orientadora do
comportamento humano. Ou seja, o cidadão, para dirigir as suas condutas, tem de ter acesso a
normas de orientação de comportamento, que definem com precisão o comportamento que não
querem. Esta necessidade de determinação não é só quanto à conduta; mas também quanto às penas
aplicáveis: é necessário estarem determinadas as penas ou as medidas de segurança aplicáveis a
determinado comportamento, e a conexão que deve existir entre a conduta proibida e a pena
aplicada.
 É por isso que existe uma parte da doutrina (professora Fernanda Palma) que, em vez de falar de
princípio da tipicidade, fala em princípio da determinação das normas penais.
Isto significa, consequentemente, que nenhum comportamento pode ser considerado
criminoso se não corresponder a um tipo legal de crime, descrito com precisão por um preceito
legal. O crime é uma ação típica: ou seja, é uma ação que tem de se subsumir, integrar,
corresponder, às palavras descritas no tipo legal de crime.
O facto de o tipo legal de crime ter de definir, com precisão, as circunstâncias, para que
determinada conduta possa ser considerada crime, não implica uma total determinação dos
conceitos pelas normas penais. O legislador pode, na mesma, recorrer a conceitos indeterminados
na redação das normas; desde que a conduta criminosa em si seja determinada com suficientemente
precisão (ex: artigo 132º sobre o homicídio qualificado – o essencial da conduta proibida, ou seja, a
ideia de existir uma especial censurabilidade no homicídio, está determinado; pelo que é possível
haver conceitos indeterminados como “motivo fútil”). Assim, desde que o essencial da conduta
criminosa esteja previsto, desde que há compreensão do que é que é ilícito, não há violação do
princípio da tipicidade.
Relativamente a este subprincípio, temos, em específico, o caso das leis penais em branco.
Uma lei penal em branco é, segundo a doutrina, uma norma cujo pressuposto de facto se configura
por remissão a normas de carácter não penal (ex: artigo 278º CP sobre danos contra a natureza – o
legislador, no início, remete para outras disposições de valor hierárquico inferior; sendo que o
mesmo se verificaria se fossem disposições de valor hierárquico superior).
Estas normas justificam-se porque estão relacionadas com outros ramos de direito, que não podem
estar a ser incluídas no direito penal pelo legislador; por isso, quando entra em normas relacionadas
com outros ramos de direito, este remete para esses mesmos ramos. Assim, desde que a norma
penal em branco continue a definir com suficiente precisão o que é necessário a conduta revestir
para ser considerada crime – normas relativamente em branco – não viola o princípio da tipicidade.
No entanto, normas que sejam totalmente remissíveis – normais penais absolutamente em branco –
já violam claramente o princípio da legalidade. Por outras palavras, uma norma penal em branco só
é admissível quando o conteúdo essencial da conduta que constitui crime está contido na norma.
 As normas relativamente em branco são necessárias, dado serem uma forma de se poder
considerar como crime certas condutas relacionadas com outros ramos de direito: a explicação
técnica de certos conceitos estará nesses ramos (a nível, por ex., de conceitos indeterminados);
mas o conteúdo essencial relativamente à penalidade da conduta está na norma penal.

Caso prático:
Imagine que o Governo aprovou, ao abrigo da alínea a) do nº1 do artigo 198º da CRP, um
decreto-lei com o seguinte teor: “1) Quem infringir disposições regulamentares reguladoras da
venda de objetos na via pública, é punido com pena de prisão. 2) Se o facto for praticado sem
culpa, a pena será de multa até 120 dias”. Comente o texto apresentado.
Em primeiro lugar, este decreto-lei viola o princípio relativo às fontes, relacionado com o
princípio da legalidade, segundo o qual não há crime nem pena se não existir lei formal – entenda-
se, sem lei da Assembleia da República ou decreto-lei do Governo, mas autorizado pela Assembleia
da República. Este está constitucionalmente consagrado no artigo 165º, nº1, alínea c) CRP;
admitindo-se, também, o costume internacional como fonte de direito penal. No entanto, aqui, o que
está em causa é um decreto-lei do Governo ao abrigo da alínea a) do nº1 do artigo 198º da CRP,
relativo à competência legislativa do Governo em matérias não reservadas à Assembleia da
República – sendo a matéria penal, como já se pode verificar, uma matéria especificamente
reservada à Assembleia.
Em segundo lugar, este decreto-lei é uma lei penal absolutamente em branco, na medida em
que remete todo o seu conteúdo para outras normas (nomeadamente, as “disposições
regulamentares reguladoras da venda de objetos na via pública”). Estas são proibidas no Direito
Penal, por violarem o princípio da tipicidade: não está minimamente determinado, nesta lei penal,
qual é o conteúdo necessário para que o agente possa ser punido com pena de prisão. Denote-se que
o Direito Penal permite as leis penais relativamente em branco, visto que o conteúdo essencial sobre
a conduta proibida está na lei penal; só a concretização de outros conceitos é que está noutros
diplomas.
Além disso, existe outra violação do princípio da tipicidade, na medida em que a lei não é clara: o
decreto-lei apenas prevê a possibilidade de pena de prisão, mas não estipula os limites mínimos e
máximos dessa pena de prisão, estipulada na estatuição.
Depois, este decreto-lei viola, ainda, o princípio da culpa, que estipula que não há crime nem
pena sem culpa do agente. Este princípio não tem consagração constitucional expressa, sendo
retirado do princípio da dignidade humana: só se respeita a dignidade de uma pessoa se apenas a
responsabilizar pelos atos que praticou no âmbito da sua autonomia. Ora, aqui, no nº2, está-se a
aplicar uma “pena” de multa sem que o agente, no entanto, tenha culpa da sua conduta, algo que
não é permitido em âmbito de Direito Penal.
Por fim, existe ainda uma violação do princípio da subsidariedade ou princípio da
intervenção mínima do Direito Penal. Segundo este, o Direito Penal apenas deverá atuar em
situações em que essa atuação seja necessária e eficaz, não podendo existir outro ramo de direito
que consiga proteger tais bens jurídicos fundamentais da mesma forma. Ora, neste caso, a conduta
que está a ser criminalizada, nomeadamente a violação de disposições regulamentares reguladoras
da venda de objetos na via pública, não abarca a violação de interesses fundamentais suficiente para
que se justifique a intervenção do Direito Penal, podendo os mesmos serem adequadamente
protegidos e garantidos por outros ramos de direito menos lesivos – por exemplo, o Direito
Contraordenacional.

Subprincípio da Interpretação e Aplicação Analógica:


Segundo este, “não há crime nem pena sem lei estrita”. Este subprincípio divide-se em duas
matérias de discussão: aplicação analógica e problemas de interpretação.

Aplicação analógica
Importa discutir se é ou não possível, em Direito Penal, recorrer à analogia para a integração
de lacunas. Na analogia, existe um caso em concreto que não está previsto nem na lei, nem pelo
pensamento legislativo; mas é, no entanto, um caso semelhante àqueles que estão, de facto,
tipificados na lei. Assim, recorre-se à analogia quando se pode, por meio da mesma, integrar esse
caso não tipificado na lei, por partilhar semelhanças a outros que estão tipificados.
Ora, a nível penal, o artigo 1º, nº3 CP proibe expressamente o recurso à analogia; mas esta é
apenas proibida quando essa integração implique a fundamentação, a extensão ou a agravação da
responsabilidade do agente – analogia mala partem ou “contra réu” ou “desfavorável ao agente”
(artigo 1º, nº3 – “para qualificar um ato como um crime”). Assim, a analogia apenas pode ser
utilizada para afastar ou diminuir a responsabilidade criminal – analogia bonam parte. O artigo 29º,
nº1 e nº3 CRP também apoia esta idea.
Sendo o fim do princípio da legalidade proteger os direitos dos cidadãos face ao poder do Estado,
ao não permitir que ele seja surpreendido com a criminalização de condutas com o qual ele não
poderia contar, a analogia male partem não é admitida pois iria, precisamente, surpreender os
cidadãos nesse sentido. Só esta será, então, proibida, porque violaria as expectativas razoáveis do
cidadão – e o princípio da legalidade existe para que essas mesmas expectativas não sejam
contrariadas. A analogia bonam parte, por sua vez, não viola as expectativas razoáveis do cidadão,
apanhando-os desprevenidos quando a uma conduta, de repente, ser considerada ilícita, pelo que
será admitida no nosso ordenamento jurídico (ex: aplicar uma causa de exclusão de ilicitude a casos
análogo, dado que beneficia o dito responsável).
 No caso do genocídio, poder-se-á concluir que, entre a segurança das expectativas e o respeito
pelos direitos humanos, o respeito pelos direitos humanos ganhou – e, consequentemente,
criminalizou-se o genocídio. No entanto, acaba por não se poder dizer propriamente que as
pessoas fossem surpreendidas com a criminalização do genocídio, na medida em que o ato de
matar já era considerado censurável pelo Direito.
Esta proibição de analogia male partem resulta dos fundamentos internos do princípio da
legalidade que o professor Figueiredo Dias falou. Segundo este, o Direito Penal apenas pode
cumprir a sua função preventiva, na medida em que as pessoas conheçam quais as condutas
consideradas crime. Ora, se se fosse recorrer à analogia, não se poderia cumprir essa função, dado
que as pessoas não sabiam que estavam a cometer um crime, visto que este não estaria previsto
como tal.
Outros professores acrescentam que a proibição desta analogia resulta, também, da competência
exclusiva da AR sobre matéria de lei criminal .O Direito Penal pode apenas ter como fonte lei da
AR ou Decreto-Lei autorizado do Governo (artigo 165º, nº1, alínea c) CRP), pelo que não se pode
deixar que os juízes, através da aplicação da analogia, criem, na prática, novas leis penais.
No entanto, a analogia mala partem é apenas proibida enquanto meio de integração de
lacunas – ou seja, para dizer que certo comportamento é crime, porque outro semelhante também o
é, mesmo não sendo formalmente previsto como tal pela lei. No entanto, esta proibição não implica
à analogia como meio de interpretar conceitos contidos na norma penal.
A norma penal contém conceitos indeterminados, pelo que, muitas vezes, para se conseguir decidir
se o caso concreto cabe naquele conceito, é necessário comparar o caso nuclear – isto é, o caso que
cabe perfeitamente naquele conceito – com os casos duvidosos. Ora, dessa comparação, dessa
analogia, é que se decide se o caso em concreto cabe, ou não, no conceito (ex: a utilização de
veneno para matar alguém pode ser considerado um meio insidioso, pois faz com que não se dê à
vítima qualquer possibilidade para se defender; mas matar alguém pelas costas pode ser discutível,
dado que a vítima pode ouvir o agressor e defender-se, dependendo das circunstâncias do caso
concreto).
 Nota-se que uma parte da doutrina defende que este método de subsunção de interpretação e
aplicação da lei penal já não consegue explicar, de forma correta, a aplicação de lei penal, dado
que pressupoe a separação entre a lei e o caso – sendo o caso pena, sempre, um caso em
construção, não havendo essa separação. A professora não concorda, defendendo que, segundo
o método de subsunção, está-se sucessivamente a interpretar o caso e a interpretar a norma,
sendo dessa interpretação que se pode concluir se o caso se integra (ou não) na norma.
Problema da interpretação
De acordo com o critério tradicional, a interpretação extensiva ocorre quando o sentido a
atribuir à lei não está na letra da lei, mas é expressão dos desígnios do legislador – por isso se
costuma dizer que, na interpretação extensiva, existe um sentido com o mínimo de correspondência
verbal na lei. Já na interpretação declarativa lata, uma palavra ou conjunto de palavras são vistas no
seu sentido amplo. Pelo contrário, na interpretação declarativa restritiva, dos vários sentidos que a
palavra pode ter, conclui-se que o pensamento legislativo coincide com o sentido mais restrito da
mesma (ex: a palavra “homem”, se for interpretada em sentido lato, inclui pessoas de sexo
masculino e feminino; mas, se se interpretar pelo sentido restritivo, já só abarca pessoas do sexo
masculino).
Roxin e, entre nós, o professor José de Sousa Pinto, entendem, partindo destes conceitos
tradicionais de interpretação, que em Direito Penal não é possível interpretação extensiva. Isto
resulta do artigo 29º, nº3 CRP (“expressamente”): não é possível dar um sentido à lei que não esteja
expresso na mesma; ora, a interpretação extensiva não está expressa, apenas corresponde no seu
mínimo. No entanto, apesar não ser possível a interpretação extensiva, é possível a interpretação
declarativa lata, que atribui à lei um sentido que ainda cabe no sentido amplo das suas palavras.
Já o professor Figueiredo Dias defende que a distinção que importa fazer já não é entre
interpretação extensiva ou interpretação declarativa lata; mas sim entre interpretação permitida e
analogia proibida. Assim, se a interpretação permitida é considerada extensiva ou restritiva ou
declarativa lata não é importante. Concluindo, acaba por dizer que, em Direito Penal, só é possível
fazer uma interpretação se esta couber no quadro das significações possíveis das palavras da lei,
pelo que o mais importante será que não se saia do sentido possível das palavras; de outra forma,
estaria em causa a função do princípio da legalidade. Por outras palavras, não pode ser uma
interpretação que não esteja funcionalmente determinada.
Para as professoras Conceição Valdágua e Teresa Beleza, não há um espaço a percorrer
entre o sentido possível das palavras e ter o mínimo de correspondência verbal – ou seja, a
interpretação que tem o mínimo de correspondência verbal no texto da lei ainda cabe no sentido
possível das palavras. Assim, ambos tipos de interpretações são possíveis; sendo que a interpretação
a dar às palavras não é apenas das palavras em si, mas sim das palavras no contexto da lei – isso,
sim, será o sentido possível (ex: artigo 208º CP – aplica-se esta norma se alguém furtar um triciclo
com a intenção de devolver passados 3 dias depois de a usar? Ou poderá uma seringa infetada com
uma doença infeciosa ser considerada como uma arma?).
Para o professor Castanheira Neves, deve-se eliminar a distinção entre interpretação
extensiva e analogia e, em vez, disso, estabelecer a fronteira entre a interpretação permitida e a
interpretação proibida. Sempre que a interpretação não preveja uma imprevisibilidade e, por isso,
exista segurança e certeza jurídica, esta é permitida – sendo que tal ocorre sempre que a
interpretação ainda caiba no âmbito da proteção da norma. Assim, para uma interpretação ser
permitida, é preciso: 1) que o sentido a atribuir à norma caiba no sentido logicamente possível das
palavras da lei; e 2) que aquela interpretação revele os valores jurídicos que a lei pretende atingir,
desde que compatível com outros valores do sistema e com a unidade do direito definida pelas
instâncias que a devem assegurar (ou seja, os tribunais). Este pensamento parece retirar qualquer
relevância ao momento da interpretação relacionado com o significado do texto, sendo o critério
central o da imprevisibilidade – ora, isso não só enfraquece o processo de fundamentação da
decisão jurídica, como vai contra o artigo 1º CP, na medida em que se recorre à analogia
(comparando uma conduta com outra) para perceber se algo é imprevisível ou não.
Para a professora Fernanda Palma, a divisão entre interpretação permitida e interpretação
proibida – feita por Castanheiro Neves – será fundamentada apenas na racionalidade da proibição
da analogia, desligando-se das categorias tradicionais. Assim, a interpretação permitida será aquela
que não ofenda as expectativas do cidadão, e que não ponha em causa a segurança jurídica e o
controlo democrático da aplicação da lei penal; mas (e ao contrário de Castanheiro Neves), tal
interpretação também não poderá prescindir nunca da relevância do texto jurídico, ou seja, do
sentido possível das palavras do texto. Ora, este sentido possível é dado pelo sentido
comunicacional percetível do texto – e não por qualquer sentido lógico não sustentável pela
linguagem social –, e delimita-se pela adequação do texto à essência do proibido, de acordo com as
valorações do sistema que a norma revela (ex: Ao furta uma rulote de atrelado para utilizar e,
depois, devolver, pode ser aplicar a norma do furto de uso? As rulotes são puxadas, não são um
veículo – logo, não seria aplicado, pois não cabe no sentido comunicacional das palavras).
Por fim, a professora defende que, para se determinar qual o sentido a dar à lei, é de toda a
utilidade saber a distinção entre interpretação e aplicação analógica (mesmo sendo estes conceitos,
em si, sempre discutidos pela doutrina): isto porque a aplicação analógica pressupõe a aplicação da
norma a um caso não previsto na lei – algo que está expressamente proibido, pela CRP e pelo CP.
 O aspeto mais relevante nesta matéria é a proibição da analogia para fundamentar ou agravar a
responsabilidade criminal; se for para diminuir ou excluir a mesma, a doutrina deixa.

Caso prático:
Imagine que, certa noite, António se colocou num viaduto de uma autoestrada, e daí,
utilizando um potente foco de luz, o apontou a vários veículos em movimento, provocando um
encadeamento de alguns condutores e, consequentemente, o despiste de um deles. A pergunta é:
será possível, sem ultrapassar os limites da interpretação permitida em Direito Penal, punir
António pela prática do crime previsto no artigo 293º CP?
Aqui, a palavra “arremessar” indicia que o legislador está a pensar num objeto, em algo que
se possa mandar; por isso, há uma dificuldade em falar em “arremessar” uma luz enquanto projétil,
não sendo esta um objeto. Assim, para se aplicar tal norma à conduta de António, ter-se-ia de fazer
uma aplicação analógica – aplicação essa que é proibida, enquanto analogia male partem para
criminalizar certa conduta não prevista no Direito Penal, dado violar o princípio da legalidade
enquanto princípio basilar do Direito Penal: “não há crime nem pena sem lei prévia”. Não é
possível dar à lei um sentido extensivo àquele que o legislador queria. Aqui, era necessário
apresentar e discutir as diferentes posições da doutrina e decidir pela não aplicação analógica:
mesmo no sentido comunicacional, menos restritivo a nível doutrinário, da professora Fernanda
Palma, não cabe na letra da lei o sentido de “projetar luz”.
Assim, tal conduta não caberia neste artigo, podendo, no entanto, caber noutros como o crime do
homicídio (se no despiste a pessoa morresse) ou o crime de ofensa à integridade física
(nomeadamente, à visão da pessoa). O mais adequado será o artigo 290º, nº1, alínea d) CP, relativo
ao crime de atentado à segurança de transporte rodoviário. No entanto, se a conduta de facto
resultasse na morte de uma pessoa, iria existir um concurso entre este artigo e o artigo do
homicídio, concurso que poderá ser aparente (se uma das normas conseguir esgotar a análise do
caso, aplica-se apenas essa) ou real (quando se aplica mais do que uma norma, porque apenas uma
dela não esgota o comportamento completo criminal do agente).
Subprincípio da Aplicação da Lei Penal no Tempo:
Segundo este subprincípio, “não há crime nem pena sem lei prévia”, sendo esta lei prévia
uma referência a lei da AR ou Decreto-Lei autorizado do Governo, tendo em conta a função e o fim
do princípio da legalidade. No entanto, se a lei, não sendo prévia, for favorável, este princípio deixa
de vigorar, pelo que a expressão mais correta será: “não há crime nem pena sem lei que fundamente
ou agrave a responsabilidade criminal do agente”.
Este princípio resulta do artigo 29º, nº1, nº3 e nº4, primeira parte CRP, que fala na
necessidade de existência de “lei anterior” expressa. Este princípio também está na lei ordinária,
nomeadamente no artigo 1º, nº 1 e nº2 CP, assim como no seu artigo 2º, nº1.
Tal como os outros, este estende-se às medidas de segurança e aos seus pressupostos. No
entanto, há quem defenda que, a estas, não se deve aplicar este princípio: isto, porque se a lei atual
considera que as medidas de segurança devem ter certa eficácia, mas, de acordo com novos estudos
empíricos, existe outra eficácia a considerar, então devem estas medidas novas devem sobrepor-se
às já anteriormente previstas (mesmo sendo mais desfavorável) – mas é apenas uma discussão
teórica.

Proibição da aplicação retroativa da lei penal mais desfavorável ao agente


Assim, o princípio geral que vigora quanto à aplicação da lei penal no tempo é o princípio da
proibição da retroatividade da lei penal desfavorável ao agente: não se pode aplicar uma lei penal
desfavorável ao agente, se ela não estivesse em vigor no momento da prática do crime. Isto, devido
às expectativas legítimas dos cidadãos e à própria finalidade do princípio da legalidade, visto que o
cidadão terá de saber quais as condutas consideradas crime previamente a agir, para o poder fazer
motivado pelo Direito – não poderá ser surpreendido com a criminalização ou com o agravamento
da criminalização, com o qual ele não poderia contar.
O elemento, com base no qual se decide se uma lei é anterior ou posterior, é o momento da
conduta; e não o momento em que a consequência do ato se concretiza, segundo o artigo 3º CP (ex:
no crime de homicídio, o momento de conduta é o ato de disparar, e não o momento em que a
vítima morre). No entanto, para ações que se prolongam no tempo (ex: sequestro) – os chamados
crimes duradouros, dentro dos crimes permanentes –, considera-se que a conduta ainda não acabou
até cessar, pelo que, mesmo que uma lei desfavorável seja emitida durante este, esta poderá ser
aplicada.
Já os crimes continuados também se prolongam no tempo, não porque a ação em si se prolonga no
tempo, mas porque o sujeito pratica o mesmo crime durante um determinado período (ex: um
funcionário de um banco todos os dias furta 5 euros, durante 10 anos) – sendo que, em
determinadas circunstâncias, esses crimes são vistos como um único crime a ser punido (artigo 30º,
nº2 CP; com o nº3 a ter a exceção de crimes pessoais – por exemplo, se um pai abusar da filha
durante 5 anos, será punido por todas as vezes que cometeu esse crime de forma provada). Neste
âmbito, também não existe uma lei posterior até esta conduta acabar; logo, se uma lei for emitida
enquanto esta conduta ainda está a ser feita, poderá ser aplicada quando o agente for, depois,
julgado.
Concluindo, o momento decisivo para a aplicação do princípio da proibição da
retroatividade da lei penal mais desfavorável, quer nos crimes continuados quer nos crimes
duradouros, é o momento em que cessa a conduta. Enquanto a conduta persista, a lei modificada ou
nova lei male partem aplicar-se-á, sem haver violação deste princípio – desde que, no entanto, esta
lei contenha todos os pressupostos que a lei anterior continua para existir um comportamento
criminoso. Assim, nestes casos, se existir mais um pressuposto não preenchido por esta conduta
específica, aplicar-se-á a lei anterior ao momento de cessação da conduta.
Aplicação retroativa da lei penal mais favorável ao agente
Este subprincípio desdobra-se, assim, também no princípio da aplicação retroativa da lei
penal mais favorável ao agente. Esta vertente já está mais relacionada, não com o princípio da
legalidade, mas com o princípio da necessidade da pena: isto porque, se o Estado alterou a sua
avaliação daquela conduta, e deixou de considerá-la como crime ou passou a criminalizá-la mais
levemente, deve-se aplicar esta nova valoração do legislador (artigo 18º, nº2; e artigo 29º, nº4,
segunda parte CRP). Ou seja, se o legislador atual considerou que é possível garantir a proteção do
bem jurídico através de uma pena menor, então essa pena menor é que deverá ser aplicada –
princípio da intervenção mínima do Direito Penal.
Além disso, também resulta do princípio da igualdade: é desejável que pessoas que praticaram o
mesmo ato, sejam punidos da mesma forma, no sentido do possível.
De notar que este princípio se irá aplicar às medidas de segurança, de acordo com o artigo
29º, nº3 CRP. No entanto, discute-se, a nível doutrinário, se tal lógica é a melhor. Se o legislador,
dado aos estudos científicos, chegar à conclusão de que a medida de segurança mais correta é, em
termos de restrição de direitos, mais restritiva, existe um conflito de interesses. Ora, sendo o
objetivo central da medida não só recuperar a pessoa, mas também fazer face à sua perigosidade, se
se concluir que, uma medida de segurança mais assegurada será uma que é mais restritiva, mesmo
sendo isso desfavorável ao agente, existe uma parte da doutrina que defende que essa nova medida
mais restritiva deve ser aplicada de forma retroativa. Por outras palavras, defende que devem ser
aplicadas as leis em vigor no momento da análise do facto – ou seja, no momento do julgamento –,
que têm em conta os conhecimentos científicos da altura.
 A prof. Maria João Antunes não concorda nem com a proibição da retroatividade das medidas de
segurança mais desfavoráveis ao agente, nem com a ideia acima mencionada. Esta defende que,
quando a avaliação dos pressupostos de facto da medida de segurança, relativamente à inexistência
de culpa e à prática de facto ilícito, deve ser feita à luz da lei vigente no momento da prática do
facto; mas a avaliação do pressuposto da perigosidade do agente já deve ser feita à luz da lei vigente
no momento do julgamento, mesmo que seja mais culposa.
Ora, uma lei é mais favorável em duas situações: ou 1) quando a pena é reduzida (artigo 2º,
nº4 CP); ou 2) quando a conduta é descriminalizada (artigo 2º, nº2 e 4 CP ou artigo 29º, nº4,
segunda parte CRP). A conduta pode ser descriminalizada, por sua vez, ou 2.1) porque a norma
incriminadora desaparece (ex: consumo de drogas); ou 2.2) porque o facto que antes era
considerado a ser crime passou a ser permitido, sendo que o crime ainda continua a ser previsto
noutras circunstâncias – existe, assim, uma despenalização (ex: apenas passou a ser permitido o
aborto até às 10 semanas, mas o aborto, depois dessas 10 semanas, é ainda considerado crime).
Assim, as leis que vão entrar em confronto serão as que existem entre o momento da prática
do facto – o momento em que o agente atuou ou devia ter atuado, quanto aos crimes omissivos do
artigo 10º – até ao termo da execução da pena – ou seja, mesmo que a decisão já tenha sido
transitada em julgado: isto porque, se o legislador deixou de considerar que a punição é necessário,
ou que a conduta constitui crime, não faz sentido manter os efeitos de uma conceção ultrapassada
ao agente, mesmo que este já tenha sido sentenciado e julgado.
Se houver descriminalização, a pessoa é livre; e se houver uma redução da moldura legal, o caso
será apreciado de novo. Já quando a lei posterior estabelecer uma nova moldura legal e, à luz dessa,
o limite máximo a aplicar ao crime for menor que a pena aplicada em concreto ao agente,
imediatamente a pena é reduzida para esse limite máximo; sendo, depois, o caso reavaliado outra
vez – visto que lhe está a ser aplicada a pena máxima, podendo não ser necessária no caso concreto
(artigo 371º-A do Código Processo Penal). Se, no entanto, o agente já tiver passado tempo efetivo
preso mais do que esse limite máximo, será libertado – artigo 2º, nº4, segunda parte, CP.
Em todas as outras situações, quando o novo limite máximo não é menor, o caso apenas poderá ser
reavaliado face à nova lei, sendo esta aplicada se, de facto, for mais favorável ao agente (com base
no artigo 371ºA). Se o caso já tiver sido transitado em julgado, isto irá ser feito por um “recurso
extraordinário de revisão”; mas se o caso ainda estiver a ser julgado, o juiz terá em conta esta nova
lei se, mais uma vez, for favorável.
Neste princípio, não interessa tanto a natureza da lei, como interessa para a aplicação do
princípio da legalidade. Existindo uma nova lei penal negativa (que exclui ou diminui a
responsabilidade penal), se sair uma nova lei que restringe o seu âmbito de aplicação, esta nova lei
não poderá ser aplicada retroativamente, porque teria como efeito prejudicar o agente – esta
aplicação retroativa seria desfavorável e, portanto, não deverá ser permitida.
Outra figura importante a ter em conta é a das leis de emergência ou leis temporárias. Estas são leis
que têm um período de vigência determinado face a situações excecionais, nomeadamente situações
de emergência ou de anormalidade social. Tal prazo consta na própria lei, ou expressamente, ou
através da verificação das circunstâncias excecionais; sendo que o termo de vigência tem de ser
equívoco. Aplica-se, a estas, o artigo 2º, nº3 CP: tal lei será aplicada a factos julgados depois de a
lei já não estar em vigor, mas que foram praticados no âmbito da mesma – existe, na mesma, uma
“retroatividade”. Tal valoração ultra ativa não viola o princípio da lei penal mais favorável, por um
lado, porque dizer tal coisa seria frustrar a razão de ser das leis de emergência; e, por outro lado,
porque não há, verdadeiramente, uma alteração das valorações do legislador. A situação de facto
passou a ser outra, pelo que o legislador achou necessário, para essa situação em específico, acionar
novas medidas; mas o legislador não mudou a sua opinião quanto às medidas a serem aplicadas à
situação de facto “normal”. Sendo assim, não há verdadeiramente uma sucessão de leis no tempo.
 No entanto, segundo Silva Dias, nas situações de emergência existe uma alteração das
valorações do legislador, por via das alterações da conjuntura: acha que esta alteração não é
suficiente para considerar que não há uma sucessão de leis no tempo – por isso, para aplicar a
lei de emergência, é necessário julgar a pessoa durante o periodo da sua vigência.
Existe, ainda, outra figura, a lei penal intermédia: lei cujo início de vigência é posterior ao
momento da prática do facto, mas o termo de vigência ocorre antes do julgamento. Ou seja, é uma
lei que não está em vigor nem no momento da prática, nem no momento do transito em julgado.
Sendo esta mais favorável do que as outras duas leis em vigor nesses momentos, a professora acha
ela deve ser tida em consideração: isto, porque o princípio da aplicação da lei penal mais favorável
só exige que exista uma lei posterior mais favorável, não exigindo que esta tenha de estar em vigor
durante o momento do julgamento. O princípio da intervenção mínima deve prevalecer face a
qualquer outro.

Casos práticos sobre aplicação da lei no tempo:


1) Imagina que a lei X previa, para certo facto, pena de prisão de 1 a 3 anos e, como pena
acessória, a suspensão do exercício de certa profissão até 1 ano. Imagine que esta lei era
substituída pela lei Y, que passava a punir o mesmo facto apenas com a pena de prisão até 5
anos.
a) Qual a lei que devia ser aplicada a António, que praticou o facto na vigência da lei X, mas
vai ser julgado na vigência da lei Y?
Aqui, é necessário ver qual das leis é a lei mais favorável. No entanto, em casos em que
existem penas principais e penas acessórias, a ponderação pode ser feita de forma unitária ou
diferenciada. Na ponderação unitária, seria necessário avaliar o facto à luz das duas leis e das
respetivas penas que poderiam resultar da mesma – ou seja, vê-se o máximo de cada pena e opta-se
pela lei cujo máximo é menor. No entanto, esta ponderação tem algumas dificuldades: as teologias
das penas acessórias não são exatamente idênticas às das penas principais – as penas principais
variam em função da gravidade do crime e das finalidades das penas, enquanto as penas acessórias
variam, além disso, em função da personalidade do agente em causa. Ora, se têm este fundamento
diferente, devem ser avaliadas diferentemente.
Entra, aqui, a ponderação diferenciada, defendida pelo professor Américo Taipa de
Carvalho. Segundo esta, deve-se olhar para a pena de prisão, especificamente, e avaliar, à luz de
cada uma das leis, qual a medida concreta mais favorável; depois, fazer o mesmo raciocínio, mas
para a avaliação da pena acessória. Ao fazer esta ponderação diferenciada, conclui-se que, a nível
de pena acessória, a lei Y seria mais favorável, não prevendo qualquer pena acessória; mas, já a
nível da pena principal, a lei X seria mais favorável. Assim, aplicar-se-iam diferentes partes da lei,
criando o cenário mais favorável para o agente, de acordo com o princípio da restrição mínima dos
direitos.

b) Imaginem que a nova lei passa a considerar o facto praticado por António como
contraordenação.
O Direito Contraordenacional não é de natureza penal, pelo que se conclui que houve uma
descriminalização a ter em conta: a nova lei deixou de considerar o facto como crime. Ora, isso
significa que a nova lei será mais favorável, eliminando o facto em questão enquanto ilícito
criminal, pelo que deve ser aplicada no caso de António (artigo 2º, nº2 CP; e artigo 29º, nº4 segunda
parte da CRP).
No entanto, o facto continua a ser sancionado. O Direito Contraordenacional faz fronteira
com o Direito Penal, pelo que o seu regime geral tem de ser tido em conta. Ora, quanto à aplicação
da lei no tempo, vigoram exatamente os mesmos princípios: ou seja, o princípio da proibição da
aplicação retroativa da lei contraordenacional mais desfavorável e o princípio da aplicação
retroativa da lei contraordenacional da lei mais favorável ao agente.
Ora, neste caso, a lei nova elimina um crime; mas introduz uma nova contraordenação, que não
existia antes, no momento em que António praticou a ação – pelo que, em abstrato, aplicar uma
coina a António seria mais desfavorável, sendo que antes não lhe seria aplicada tal coima. No
entanto, por outro lado, não faz sentido não aplicar essa coima quando o seu “paralelo” anterior era,
na realidade, uma pena de prisão – ora, uma coima é mais favorável ao agente do que a restrição da
sua liberdade., pelo que não se pode, propriamente, dizer que existe um tratamento menos
favorável.
 O professor Figueiredo Dias conclui que o artigo 2º do Decreto-Lei que regula as regras
contraordenacionais só deve valer para os casos em que o facto ou 1) não era sancionado, ou 2)
era sancionado mais levemente – sancionado, aqui, no sentido geral, e não apenas restrito ao
Direito Contraordenacional.

 Já o professor Taipa de Carvalho considera que a única hipótese para punir os agentes com uma
coima é incluir na nova lei, que passa a qualificar o facto como contraordenação, uma norma
transitória que estabeleça a punição como contraordenação dos factos praticados na vigência da
lei penal antiga. Ou, em alternativa, estabelecer no próprio regime das contraordenações, uma
lei que diga que, em situações de leis assim, os factos podem ser punidos com contraordenação.
Concluindo, para o professor, é necessário que exista, sempre, uma lei formal a permitir esta
ideia – ideia que é também partilhada pelo STJ.
2) Imagine que, devido à previsão de inúmeros atentados contra exemplares de fauna para o ano
de 2021, a 14 de dezembro de 2021, entrou em vigor a lei K, que agravava a moldura penal do
artigo 278º, nº1 do CP, para 10 a 15 anos de prisão. A lei K fixa o seu periodo de vigência até
31 de dezembro de 2022. Criticada a moldura excessiva dessa lei, a lei K é revogada por uma
nova lei, chamada lei W, que inicia a sua vigência a 27 de fevereiro de 2022, e que tal como a
lei K revogada, fixa o período de vigência até 31 de dezembro de 2022 – com a diferença na
moldura, isto é, a lei W reduz a pena de prisão para 2 a 8 anos. António, a 11 de janeiro de
2022, matou vários lobos no Parque Florestal do Gerês, contribuindo precisamente para fazer
desaparecer aquela espécie animal naquela região.
a) Sendo julgado hoje, a 2 de novembro de 2022, deve sê-lo à luz da lei K ou da lei W?
Havendo uma sucessão de leis temporárias, é necessário ver à luz de que lei a pena será mais
favorável ao agente – isto, por se debruçam sobre o mesmo facto, sendo que o legislador apenas
alterou a sua valoração relativamente a esse facto. Neste caso, será a lei W, pelo que será aplicada
esta, mesmo que o facto tenha sido praticado durante a vigência da lei K.

b) Se for julgado em janeiro de 2023, deve sê-lo à luz de que lei? Da lei K, da lei W, ou do
artigo 278º, nº1 CP?
Não apoiando a posição de Silva Dias, descrita anteriormente, será aplicada, na mesma, a lei
K, na medida em que é uma lei de emergência que será sempre mais favorável, dado as molduras
legais nunca se tocarem: tanto o limite máximo (8) como o limite mínimo (2) são mais favoráveis
(do que os limites de 10 e 15 anos).

3) O António decidiu matar o pai, utilizando um veneno que o mataria ao fim de 4 doses, que
foram por si administradas sucessivamente em agosto, setembro, outubro e novembro de 2007.
Imagine que, com a entrada em vigor, em 15 de setembro de 2007, da lei 59/2007, era alterado
o artigo 132º do CP, passando a punir-se o homicídio qualificado com uma pena entre 15 a 30
anos.
a) À luz de que versão do CP, a anterior ou a posterior à entrega em vigor da lei nº59/2007,
lhe parece que devia ser julgado o crime cometido por António?
Ao pressupor especial censurabilidade, o homicídio qualificado pressupõe especial culpa,
podendo esta ser evidenciada pelas alíneas do artigo 132º – sendo que uma delas pode ser matar um
familiar. No entanto, é necessário, além de se verificar estas alíneas, que essa situação específica
revele a tal especial censurabilidade do agente (ex: algo que não se irá revelar se, por exemplo, o pai
tivesse uma doença terminal e estava a sofrer).
Uma parte da doutrina (professor Silva Dias) defende que estas alíneas são apenas “exemplos
padrão”, sendo que o legislador exige que se verifique, não especificamente uma situação igual às
mesmas, mas uma situação que é valorativamente similar a uma dessas alíneas. No entanto, para a
professora, tal lógica implica a violação do princípio da proibição da analogia male partem como
fundamento. Assim, outra lógica a adotar será aquela que considera que o nº1, em si, já concretiza o
fundamento necessário para o homicídio qualificado – nomeadamente a “especial censurabilidade e
ou perversidade” –, sendo que o nº2 apenas consagra alguns exemplos, “entre outros”. O nº1, se
existisse sozinho, não violaria o princípio da legalidade, porque já é suficientemente concretizador
das circunstâncias necessárias para haver homicídio qualificado.
Para além da tentativa de homicídio, pode-se falar aqui do crime de ofensa à integridade
física ou, até, de violência doméstica. Se os elementos destes três crimes estiverem preenchidos,
existe um concurso aparente de crimes: isto porque um dos tipos de crime consegue esgotar a
avaliação da conduta praticada pelo agente. Assim, ir-se-á aplicar o crime que esgota a avaliação
dos outros – a tentativa de homicídio –, sob pena de se violar o princípio non bis in idem: ninguém
pode ser julgado duas vezes (neste caso, três) pelo mesmo facto.
O crime de homicídio só ocorre num momento: ou seja, aqui, o pai de António morre com a
ação de António de administrar, em novembro, a quarta dose – não o tendo feito, a vítima não teria
morrido, mesmo que as outras três doses tenham sido administradas. Por isso é que não existe, aqui,
um crime duradouro, mesmo que a execução deste crime se prolongue no tempo: António não está
todos os dias a matar o pai, mas apenas uma vez ao mês. Para falar de crime duradouro, tem de se
ter em conta o crime em si: ora, no caso de homicídio, em abstrato, ele verifica-se apenas com a
morte da pessoa, que só se dá num momento e, por isso, não é um crime duradouro, mesmo que o
autor tenha passado por várias etapas para o realizar. É, assim, um crime instantâneo, que ocorre
quando ocorre a morte; assim, as outras doses administradas são consumidas pelo crime de
homicídio qualificado – não se irá punir António pelas três doses administradas + a última que o
matou.
Isto significa que, em relação à aplicação de lei penal no tempo, neste caso específico, a
ação que provoca a morte (novembro) dá-se depois da lei (setembro) – pelo que, não existindo uma
sucessão de leis, aplicar-se-á a lei de setembro.

b) E se a nova lei passasse a punir o homicídio qualificado com pena de 10 a 20 anos, mas
estabelecesse que só teria efeitos a 1 de janeiro de 2008, não podendo ter efeitos retroativos
(quando o caso fosse julgado)?
Em princípio, a lei a aplicar será a lei mais favorável; mas, no caso concreto, é necessário
ver se, à luz da primeira lei, a medida concreta da pena seria, mesmo, favorável. No entanto, o facto
de o legislador dizer que esta lei, que sai em setembro, só terá efeitos em janeiro, sem efeitos
retroativos, é algo inconstitucional, dado que vai contra o princípio constitucional da retroatividade
da lei penal mais favorável. Assim, continuava-se a aplicar esta lei de forma retroativa, ignorando-
se apenas a parte inconstitucional – A seria julgado de acordo com esta lei, dado ser mais favorável
tendo em conta a lei anterior.

4) A lei antiga previa como crime conduzir com grau de alcoolémia de 1.2 gl A lei nova passa a
considerar como crime o conduzir com 1.2 gl e, desse modo, criar perigo para a vida.
a) À luz de que lei vai ser julgado António, que foi apanhado a conduzir com 1.4gl e criou,
desse modo, perigo para a vida de Bernardo, durante a vigência da lei antiga?
Um crime de dano ou de lesão é um crime que pressupoe, para estar preenchido enquanto
tipo, a lesão de um bem jurídico (ex: crime de homicídio lesa o bem jurídico vida). Os crimes de
perigo já não pressupõem essa lesão clara para estar preenchidos, sendo que se distinguem entre os
crimes de perigo abstrato – basta existir uma ação abstratamente perigosa para estar preenchido o
tipo – e os crimes de perigo concreto – é necessário, para além da ação perigosa, que se prove que
foi criado um perigo para o bem jurídico (possibilidade ou probabilidade de lesão do bem jurídico).
Ora, neste caso, a lei antiga previa um crime de perigo abstrato, enquanto a nova passou a
considerar este crime um crime de perigo concreto. No entanto, como António foi apanhado a
conduzir com grau de alcoolemia E criou, também com a sua conduta, um perigo para a vida, tal
conduta preenche as duas leis. Assim, preenchendo as duas, interessa é saber à luz de que lei a pena
é mais favorável ao A, sendo que depois seria essa a aplicada.
b) Imaginem que a criação do perigo concreto não ocorreu. Quid Iuris?
A conduta do António de conduzir com álcool, mas sem criar perigo concreto, foi
descriminalizada. A figura dos crimes de perigo abstrato é uma figura que o legislador deve utilizar
com muito cuidado porque, em última análise, ele está com esta a antecipar a tutela dos bens
jurídicos – na medida em que, nestes casos, não existe nenhum comportamento concreto (apenas
abstrato) a pôr em perigo bens jurídicos, tal como o conceito material de crime exige. De qualquer
das formas, não existindo a criação de perigo concreto contra a vida, e havendo, por isso, uma
discriminização da conduta do António com a lei nova, então António não será punido.
No entanto, se se considerar que, abstratamente, António preencheu a lei antiga,
consequentemente, existiria um preenchimento de tentativa do crime ditado pela lei nova – na
medida em que António teve uma intenção, no caso, de criar esse perigo (seria necessário ele ter
dolo). Ora, estando isso provado, e se a tentativa for punida, António será punido. No entanto, não
existindo provas, nesse sentido, do dolo do António, este não será punido, porque se aplica a pena
nova.
 Segundo o professor Silva Dias, no caso concreto ter-se-á de, na mesma, considerar ambas as
leis, porque a ação abstratamente perigosa foi preenchida em ambas – pelo que, apesar de não
ter havido o preenchimento do perigo concreto, deve-se considerar na mesma a medida da pena
de ambas as leis; mas a professora não concorda com esta lógica.

5) Tendo descoberto que estava grávida, Antónia decidiu deslocar-se a Londres para abortar, o
que realmente fez a 10 de janeiro de 2006, quando decorria a 10º semana de gravidez. Com a
lei nº16 de 2007, a interrupção da gravidez a pedido da mulher durante as primeiras 10º
semanas foi despenalizada. Vamos supor que ainda em 2007 o Tribunal Constitucional viria a
declarar inconstitucional, com força obrigatória geral, a referida norma. Em 7 de janeiro de
2008, Antónia é submetida a julgamento. Qual a lei penal aplicável a Antónia?
O professor Rui Pereira considera que uma lei inconstitucional não pode ser aplicada,
porque nem sequer produz efeitos – ou seja, existe uma repristinação da lei anterior. Logo, aqui, não
existe a violação do princípio da retroatividade da lei mais favorável, porque esse princípio implica
uma sucessão de leis no tempo, que não é o que acontece aqui, dado que a lei inconstitucional nunca
chegou a fazer efeito (artigo 232º). Para os casos em que o ato é feito durante a constitucionalidade
da lei, o professor acaba por dizer que a pessoa será julgada, mas sem culpa.
No entanto, há outra parte da doutrina que considera que, embora o efeito normal da decisão do TC
é fazer cessar a vigência da lei inconstitucional desde a data da sua criação e, consequentemente, o
repristinar da lei anterior, esse efeito entra em conflito com o princípio da retroatividade da lei penal
mais favorável. Ora, face ao choque entre os dois princípios em conflito, deve prevalecer o regime
da aplicação retroativa da lei penal mais favorável, desde logo tendo em conta a tutela da confiança
dos destinatários da lei penal e o princípio da necessidade da pena inerente ao princípio da
retroatividade – nos casos em que o agente atuou durante a vigência da norma que, mais tarde, vem
ser declarada inconstitucional, foi essa a norma que orientou o seu comportamento. Assim, para
perceber qual a norma a ser aplicada, é necessário perceber se o ato foi cometido durante a
constitucionalidade da lei.
Neste caso, Antónia seria julgada de acordo com a lei inicial, dado que, por um lado, não foi
orientada pela lei nova, tendo esta saído depois da sua conduta e, por outro lado, porque existe uma
retroatividade dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, pelo que esta não poderá ser vista
como alguma vez ter existido para efeitos de aplicação retroativa.

6) Na Alemanha, alterou-se o entendimento jurisprudencial quanto ao grau de alcoolémia exigido


para punir pelo crime de condução sob o efeito de álcool. A jurisprudência passou a exigir
1.1gl em vez dos que costumava exigir, que era 1.3gl. O Hans foi apanhado a conduzir com
1.1gl, antes da mudança jurisprudencial. Como se irá punir o Hans?
Em Itália, há um jogo chamado “Vermelhinha”, que passou de jogo de habilidade a jogo de
azar, e, portanto, passou a ser considerado como crime pela jurisprudência. O Fabrízio foi
apanhado a jogar a Vermelhinha antes da alteração por parte da jurisprudência. Será punido?
Nota-se, primeiramente, que a jurisprudência não pode ser fonte de Direito Penal. No
entanto, o princípio da legalidade tem o seu fundamento na proteção do poder punitivo do Estado,
nomeadamente ao não permitir que o cidadão seja surpreendido com a criminalização de condutas
com as quais não podia contar. No primeiro caso, em que passa de 1.3gl para 1.1gl; e no segundo
caso, em que se passa de jogo de habilidade para jogo de azar, em certo sentido, o cidadão está a ser
surpreendido, porque a corrente jurisprudencial era num sentido diferente.
Em relação a isto, o professor Nuno Brandão será contra a aplicação retroativa desta
corrente jurisprudencial, por frustrar as expectativas quanto à irrelevância das suas condutas. No
entanto, à luz do nosso ordenamento jurídico, não é possível esta solução, dado só serem fontes
formais do Direito Penal lei da AR que valha democraticamente ou Decreto-Lei autorizado pela AR
– logo, não se pode dizer que haja uma aplicação retroativa da lei.
Sendo assim, Brandão, apesar de ter argumentos válidos sobre a aplicação retroativa da corrente
jurisprudência desfavorável, propõe que, no direito a constituir (ou seja, numa norma nova do CP),
se estabeleça que a nova corrente jurisprudencial só se deve aplicar a factos cometidos quando a
nova corrente já existia. Em certo sentido, a razão de ser do princípio da legalidade está em causa,
na medida em que este serve para proteger os direitos individuais e não permitir que a pessoa seja
surpreendida com a tal criminalização de algo que não poderia esperar – por isso mesmo se pede
uma norma que estabeleça que a nova corrente desfavorável só se aplicará a factos a partir do
momento em que ela foi emanada. Ora, nos casos das hipóteses, não foi isso que aconteceu, pelo
que será aplicada a corrente antiga mais favorável.
 O professor Figueiredo Dias concorda com o professor Nuno Brandão, mas alerta que os
tribunais devem ser muito cuidadosos ao modificar a corrente jurisprudencial desfavorável ao
agente.
Aplicação da Lei no Espaço
Todas as normas que regulam a aplicação no espaço da lei penal portuguesa, bem como a
eventual aplicabilidade pelos tribunais portugueses da lei penal estrangeira, fazem parte do
chamado “Direito Penal Internacional Português”. Este determina o âmbito de validade espacial do
Direito Penal Português, permitindo a aplicação do mesmo a factos ocorridos fora do território
nacional.
 Não se confunde com o Direito Internacional Penal, utilizado para designar as disposições
penais (materiais e processuais) constantes em tratados/convenções OU no costume
internacional.

Princípio da Territorialidade (artigo 4º CP):


O princípio fundamental da aplicação da lei no espaço é o princípio da territorialidade: a lei
penal portuguesa é aplicável a factos praticados em território português, seja qual for a
nacionalidade do infrator, salvo tratado ou convenção internacional em contrário. Apesar de ser o
princípio central, a sua aplicação será supletiva, sendo derrogada perante tratado específico sobre
aquele tipo de crime.
Este princípio está estabelecido no artigo 4º, alínea a) CP, e é importante, por um lado, para a
existência de uma certa harmonia estadual – ou seja, que o Estado seja soberano no seu espaço
territorial, não existindo uma ingerência de outras ordens jurídicas no nosso direito. Por outro lado,
o direito penal português pretende prevenir a prática de crimes no território português, pelo que faz
sentido que as mesmas sejam aplicadas no território português. Além disso, existe uma razão de
ordem prática, que se relaciona com a investigação: é muito mais fácil investigar o crime de acordo
com as leis do país em que este foi praticado, já que é aí que tem de ser feita a investigação.
No entanto, este princípio pressupõe duas coisas:
1. Em que lugar e como é que se considera o facto praticado? (artigo 7º)
Para determinar o local da prática do facto, é fundamental ter em conta o artigo 7º CP que,
de acordo com a doutrina, consagra o princípio da ubiquidade: Basta que ou a ação ou o resultado
da ação ser verifique em território português, para que o facto se considere praticado aí.
O legislador, no artigo 7º, começa por dizer “o facto praticado, total ou parcialmente (…) o
agente atuou ou devia ter atuado”. Ora, primeiramente, conclui-se que, para a aplicação da lei no
espaço, não é relevante que o agente tinha cometido um crime por ação ou omissão: se a omissão
ocorrer em território português, ir-se-á aplicar a lei penal portuguesa.
Além disso, ao dizer “quer total ou parcialmente”, o legislador explicita que, em termos de crimes
que se prolonguem no tempo, basta que uma parte desse crime se passe em Portugal para se
considerar que foi praticado em Portugal (ex: sequestrador passa 2 dias em Portugal com a vítima).
Já a expressão “sob qualquer forma de comparticipação” refere ao facto de o crime ser uma
realidade extremamente complexa, havendo outras formas de se participar num crime sem se ser
autor direto singular – formas de comparticipação criminosa (ex: A paga uma quantia ao B para este
matar o C), que também não tem relevância para esta matéria.
O legislador acrescenta que o facto de o “resultado típico” – ou seja, o resultado que está previsto
no tipo legal de crime – se dar em Portugal é o suficiente para aplicar a lei penal portuguesa. O
mesmo se aplica aos “resultados não compreendidos no tipo”, ou seja, aos crimes de perigo
concreto (ex: crime de exposição ao abandono, onde o legislador considera, como resultado típico, a
criação de um perigo ao bem jurídico vida – tendo que esta criação de perigo ser provada para o
crime ser julgado).
 NOTA: Para grande parte da doutrina, a expressão “resultado não compreendido no tipo”
também abarca as situações em que a condição objetiva da punibilidade ocorre em território
nacional, em situações de crimes materiais (exigem o resultado para estarem preenchidos),
podendo-se considerar que a mesma é um resultado típico.
O nº2 deste artigo, por sua vez, abarca a tentativa: basta, para aplicar a lei penal portuguesa,
numa tentativa, que a pessoa tenha representado que o resultado se fosse verificar em Portugal,
independentemente de nem a ação nem o resultado concreto tenham ocorrido em território nacional.
Denota-se que, muitas vezes, existe mais do que uma ordem jurídica que se considera
competente para julgar o caso; no entanto, o artigo 7º existe apenas para evitar quando nenhuma se
julgue competente – conflitos negativos de competência –, não existindo qualquer problema em
situações em que há mais do que uma competente. Aliás, nas situações de conflito positivo (várias
ordens jurídicas com competência para julgar), o princípio será o do bom senso: se um dos países
abrir um processo, o outro não o irá fazer. Decorrendo os dois ou mais processos ao mesmo tempo,
o primeiro que julgar é o que irá prevalecer, pois uma mesma pessoa não pode ser julgada pelo
mesmo crime duas vezes.
2. O que é o território português? (artigo 5º)
O conceito jurídico de “território português” é definido no artigo 5º, nº1 e 2º CRP: o
território português compreende o espaço terrestre sujeito à jurisdição do Estado (que inclui as
embaixadas); assim como o correspondente subsolo, o espaço aéreo e as águas territoriais face ao
Direito Internacional Público. Também se considera território nacional os navios e as aeronaves
português, de acordo com o lugar onde estas estão registadas – princípio do pavilhão e da bandeira,
consagrado no artigo 4º, alínea b) CP: é considerado território português todos os navios e
aeronaves portuguesas comerciais e militares.
Em relação aos navios e aeronaves, o professor Taipa de Carvalho defende que, como a lei
não distingue se esses aviões ou aeronaves se encontram em águas ou espaços aéreos (ou em portos
ou aeroportos) estrangeiros ou internacionais, a solução será considerar que a lei penal portuguesa
se aplica a crimes praticados a bordo de navios e aeronaves comerciais portuguesas,
independentemente de se encontrarem em espaço marítimo ou aéreo estrangeiro ou internacional
(mesmo na lua, por ex.).
Já a professora Anabela Miranda Rodrigues, o professor Pinto de Albuquerque e a professora
Fernanda Palma consideram que o princípio do pavilhão só se aplica a factos cometidos a bordo de
navios ou aeronaves portuguesas comerciais, que circulem em águas ou espaço aéreo internacional;
mas, se circularem em espaço aéreo estrangeiro, o facto já terá sido praticado fora do território
português. De acordo com o Direito Internacional Público, os navios e aeronaves militares são
sempre considerados território nacional, independentemente do espaço físico onde estejam.
Face ao Decreto-Lei nº 254/2003, de 18 de Outubro, considera-se que a lei penal portuguesa é
aplicável a crimes contra a vida, integridade física, liberdade pessoal, autodeterminação sexual,
honra ou propriedade, e os demais crimes previstos no artigo 4º, nº3 e nº4 do mesmo diploma,
cometidos abordo de aeronave alugada a um operador que tenha sede em território português; ou a
bordo de uma aeronave civil, registada noutro Estado, em voo comercial fora do espaço aéreo
nacional – se o local de aterragem seguinte for em território nacional.
Princípios Complementares (artigo 5º CP):
Já o artigo 5º CP prevê os princípios complementares para a aplicação da lei penal no
espaço. Estes são princípios complementares, por um lado, porque só se aplicam se não se
conseguir aplicar o princípio da territorialidade – sendo que, se for possível aplicar os dois artigos,
ganha o princípio da territorialidade). Por outro lado, porque só podem ser aplicados se não houver
tratado ou convenção em contrário (artigo 5º, nº1, primeira parte, CP). Assim, estas alíneas
consagram todas as situações em que a lei penal portuguesa pode ser aplicada, mesmo sendo fora do
território português.

Alínea a): Princípio realista ou da proteção de interesses nacionais


Prevê-se a aplicação da lei penal portuguesa aos crimes enumerados taxativamente na alínea
a), apesar de serem cometidos fora do território nacional, por portugueses ou estrangeiros,
independentemente de serem encontrados (ou não) em Portugal. Só desta forma se irá conseguir
salvaguardar interesses fundamentais do Estado português, relacionados com a segurança e com a
realização do Estado de Direito.
As situações enumeradas dividem-se em quatro categorias de bem jurídicos, podendo estar
em causa: 1) bens jurídicos relacionados com os alicerces e funcionamento do Estado de Direito
Democrático, previstos nos artigos 325º a 334º (ex: crime de coação a órgãos constitucionais); 2)
bens jurídicos relacionados com interesses do Estado na confiança da circulação fiduciária,
previstos nos artigos 262º a 271º (ex: crime de contrafação de moeda); 3) bens jurídicos
relacionados com a independência e a integridade nacional, previstos nos artigos 308º a 321º (ex:
crime de traição à pátria); e 4) bens jurídicos relacionados com a segurança das comunicações,
previstos no artigo 221º (que prevê a burla informática nas comunicações).
Uma das críticas feitas a esta alínea é que apenas consagra a burla informática, sendo que
existem outros crimes informáticos que atingem bens jurídicos coletivos tão ou mais graves que a
burla informática, e que não são contemplados nesta alínea – assim, o legislador devia ter,
eventualmente, previsto outros crimes informáticos na mesma.
Por outro lado, outra matéria que também devia estar aqui consagrada é a matéria ambiental. Muitas
vezes, a ação de resultado de crimes contra o ambiente são extraterritoriais, mas põem em causa
bens jurídicos coletivos nacionais – ora, por isso, justificava-se que o legislador contemplasse, nesta
alínea, esses crimes ambientais.
De notar que a alínea a) deixou de fazer referência aos crimes relacionados com o combate
ao terrorismo; estes estão na Lei nº52/2003, de 22 de agosto (Lei de Combate ao Terrorismo), que
descreve e pune crimes relacionados com o terrorismo. Ora, face ao seu artigo 8º, alínea a), e
sempre que for um crime relacionado com os artigos 2º e 4º, aplica-se a lei penal portuguesa, salvo
tratado ou convenção em contrário, mesmo que o crime tenha sido praticado fora do território
nacional, por português ou por estrangeiro. No entanto, relativamente aos crimes previstos nos seus
artigos 3º e 5º, a lei penal portuguesa só é aplicável se o agente for encontrado em Portugal e não
possa ser extraditado ou entregue em execução de mandado de detenção europeu (artigo 8º, alínea
b) desta Lei).
 A todos estes tipos de crime, nunca se poderá aplicar a lei estrangeira no nosso ordenamento
jurídico, independentemente de a lei estrangeira ser mais favorável ao agente (artigo 6º, nº3 CP).
Alínea b): Princípio da nacionalidade ativa e passiva
Segundo este, a lei penal portuguesa será aplicada a factos cometidos fora do território
nacional, por portugueses que vivam habitualmente em Portugal ao tempo da prática do crime (ou
seja, que tenham residência habitual em Portugal), contra portugueses – e desde que os portugueses
agentes do crime sejam encontrados em Portugal.
Esta alínea vem abarcar os casos de fraude à lei: visa impedir que um cidadão português se
desloque ao estrangeiro para aí praticar, contra outro português, um facto que, sendo crime à luz da
lei portuguesa, não o é à luz da lei estrangeira – para que, desta forma, não possa ser punido. Era o
que acontecia com o crime de aborto, ou com o crime da bigamia. Existe, ainda, um grupo de
situações que esta alínea abarca, que não deixam de ser situações de fraude à lei; mas em que o
facto é considerado crime na lei estrangeira, apenas com pena inferior à estabelecida na lei penal
portuguesa.
Segundo o professor Taipa de Carvalho, para se aplicar esta alínea, é necessário demonstrar
que o agente teve, ao ir ao estrangeiro, a intenção de fugir à aplicação da lei penal nacional. Já o
professor Figueiredo Dias defende que esta ideia de fraude à lei não está no texto legal: ora, se se
exigir esta intenção de fraude à lei, escapa a esta alínea casos extremamente relevantes, em que a
aplicação da lei penal portuguesa aparece mais justificada (ex: homem que vai com a mulher de
férias, e agride-a durante essas férias, num país em que é permitido bater na mulher). Ou seja, o
critério de Taipa de Carvalho exclui casos em que há uma flagrante violação de valores da lei penal
portuguesa, mas que não tenha havido intenção de fugir à aplicação dessa lei penal nacional – pelo
que este critério não deve ser exigido.
Alínea c): Princípio da aplicação universal ou da universalidade
De acordo com este, a lei penal portuguesa aplica-se aos crimes, enumerados taxativamente,
que se caracterizam por serem ofensivos de interesses que ultrapassam as fronteiras de qualquer
país; isto é, são crimes que ofendem a humanidade em geral e, por isso, carecem de proteção
internacional (ex: escravidão, mutilação genital feminina, tráfico de pessoas).
Assim, a lei penal portuguesa será aplicada desde que o agente (português ou estrangeiro),
que tenha praticado este crime fora do território português, seja encontrado em Portugal – isto,
porque o crime foi praticado fora do território nacional; pelo que seria inútil começar um
procedimento nacional sem que o infrator se encontrasse em território português. No entanto, não
pode haver possibilidade de o agente ser extraditado: ou 1) porque as condições necessárias à
extradição não se encontram cumpridas; 2) ou porque não houve sequer requerimento de
extradição; ou ainda 3) porque o agente não pode ser entregue a outro título que não a extradição
(nomeadamente, não existindo um mandado de detenção europeu ou outro instrumento qualquer de
cooperação internacional).
De notar que, anteriormente, estavam referidos nesta alínea crimes contra a paz e a
humanidade como o genocídio; mas esses crimes passaram a estar regulados na Lei nº31/2004,
relativa às violações do direito penal humanitário. De acordo com o artigo 5º desta lei, se os crimes
aí previstos forem praticados fora do território nacional, e desde que o agente seja encontrado em
Portugal e não possa ser extraditado ou seja decidida a sua não entrega ao Tribunal Penal
Internacional, aplica-se a lei penal portuguesa.
Esta nova condição do Tribunal Penal Internacional é acrescentada porque o Tribunal Penal
Internacional tem uma jurisdição subsidiária, que só pode ser exercida se as jurisdições nacionais
não quiserem exercer a sua jurisdição relativamente aos seus cidadãos. Assim, para aqueles casos
em que Tribunal Penal Internacional pedir a extradição de uma pessoa que cometeu crimes em
países estrangeiros, Portugal pode recusar esse pedido 1) se for cidadão português; ou 2) sendo um
cidadão estrangeiro, se tiver cometido um crime para o qual o estatuto de Roma permita a aplicação
de prisão perpétua, dado isso ir contra o artigo 33º, nº4 da CRP: só se admite a extradição de
estrangeiros com base em crimes a que corresponda a prisão perpétua, desde que o estado
requisitante ofereça garantias, em forma de convenção, de que tal pena não será aplicada ou
executada. Ora, como o Tribunal Penal Internacional não oferece essas garantias, Portugal poderá
recusar a extradição.

Alínea d): Princípio da universalidade da proteção de menores


Até 2020, aplicava-se esta alínea sempre que fossem praticados crimes de ofensa à
integridade física grave, coação sexual e violação, sendo a vítima menor. No entanto, a partir de
2020, houve um alargamento a outros crimes, presentes nos artigos 171º, 172º 174º, relacionados
com o abuso de menores e contra a autodeterminação sexual de menores. É, então, necessário, para
a aplicação da lei penal portuguesa, que a vítima seja menor, que o agente seja encontrado em
Portugal, e que não possa ser extraditado ou entregue à luz de mandado de detenção europeu ou de
outro instrumento.
Denota-se que esta alínea não se aplica à mutilação genital feminina, visto que esta está
expressamente prevista na alínea c). Além de que o professor Silva Dias diz que, nas situações em
que tanto o agente como a vítima são portugueses, poder-se-á aplicar a alínea b). Isto é importante
porque, sempre que funciona a alínea a) ou a alínea b), nunca se poderá ter em conta a lei penal
estrangeira, mesmo sendo esta mais favorável (como resulta do artigo 6º, nº3 CP).

Alínea e), primeira parte: Princípio da universalidade ativa


Segundo este, a lei penal portuguesa é aplicada a qualquer crime cometido fora do território
nacional, por um português, desde que se verifiquem as seguintes condições: 1) o agente seja
encontrado em Portugal; 2) o facto esteja previsto na legislação penal do país onde foi cometido,
salvo quando nesse lugar não se exerça o poder punitivo (ex: Lua e Alto Mar); e 3) o crime admita
extradição, mas que esta não possa ser concedida, não tenha sido sequer requerida, ou que seja
decidida a não entrega em resultado de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de
cooperação internacional. Como contrapartida para poder aplicar a lei penal portuguesa, o Estado
português terá de assegurar o julgamento desses factos.
 Daí que se defenda que este princípio dá expressão a um outro princípio constitucional muito
importante, nomeadamente o princípio da não extradição de nacionais.
Outro pressuposto do princípio da nacionalidade ativa é que o facto seja punível pela
legislação do país onde este foi praticado. Discute-se, na doutrina portuguesa, se esta exigência é no
sentido de punibilidade em abstrato ou em concreto. Para uma parte da doutrina, basta que haja a
tipicidade ou a ilicitude do facto em abstrato (nos dois sítios), porque só a existência dessas
categorias fundamenta a expectativa quanto à relevância ou não do facto. No entanto, a professora
Fernanda Palma considera que este pressuposto exige a punibilidade em concreto (ou seja, naquele
caso concreto), com o fundamento de que o agente não deve ser submetido à aplicação da lei penal
portuguesa nos casos em que não pudesse ter sido julgado ou condenado no estrangeiro.
Alínea e), segunda parte: Princípio da universalidade passiva
Para se aplicar a lei penal portuguesa, é necessário que exista um crime praticado fora do
território nacional, cometido por um estrangeiro contra um português, desde que 1) o estrangeiro
seja encontrado em Portugal, 2) o facto seja previsto pela legislação do país onde foi cometido, e
que 3) o crime admita extradição, mas o infrator não possa ser extraditado porque não se verificam
os requisitos para que esta seja concretize, ou porque a extradição nem sequer tenha sido requerida.

Alínea f): Princípio da aplicação supletiva da lei penal portuguesa


Esta alínea explicita o princípio da aplicação supletiva da lei penal portuguesa a crimes
cometidos por estrangeiros contra estrangeiros, encontrados em Portugal, e cuja extradição haja sido
requerida, mas que não possa ser concedida.
O professor Taipa de Carvalho também acha que não é razoável não se poder aplicar a lei se o
Estado estrangeiro não fizer o pedido de extradição. Para o professor Figueiredo Dias, esta norma
visa evitar que Portugal se torne no paraíso de criminosos estrangeiros – ou seja, evitar que pessoas
que cometem crimes no estrangeiro, onde não se admite extradição, venham para Portugal para
evitar punição.
Além disso, ainda existem duas situações em que se pode aplicar a lei penal portuguesa a
crimes cometidos fora do território nacional, nomeadamente:
1) Crimes cometidos por pessoas coletivas que tenham sede em território português (alínea g): O
professor Figueiredo Dias considera que esta norma é uma extensão do princípio da
nacionalidade e, por isso, não deve ser dispensada a verificação dos requisitos previstos na
alínea e).

2) Factos cometidos no estrangeiro que não estejam abrangidos pelas alíneas anteriores, quando o
Estado português se tenha obrigado, internacionalmente, a aplicar a lei penal portuguesa –
situações de tráfico de droga ou pirataria aérea (nº2): Considera-se que este nº2 é um
prolongamento do princípio da aplicação universal (alínea c).

Restrições a estes princípios (artigo 6º)


Existem, no entanto, restrições à aplicação da lei penal portuguesa a factos praticados fora
do território nacional, mesmo quando funcionam os princípios complementares do artigo 5º. Essas
restrições, previstas no artigo 6º, são:
1) Se o agente já tiver sido julgado no país em que cometeu o crime, e não se tenha subtraído ao
cumprimento total da pena – artigo 6º, nº1 (princípio do artigo 29º, nº5 CRP).
o Caso não seja na totalidade, desconta-se os anos que ele já cumpriu – princípio do desconto.

2) Se a lei estrangeira for concretamente mais favorável ao agente, aplicando, nesses casos, a pena
concreta que resultaria da aplicação da lei estrangeiro (artigo 6º, nº3). Em termos práticos, vai
dar ao mesmo se aplicarmos a lei estrangeira ou a lei portuguesa com a moldura penal
estrangeira: ir-se-á aplicar a pena concreta mais favorável.
o Esta possibilidade não se aplica nos casos previstos nas alíneas a) e b); o mesmo vai
acontecer nos crimes de terrorismo e de crimes de violação do direito internacional
humanitário.

Regimes de Extradição e do Mandado de Detenção Europeu:


1. Regime de Extradição
Relativamente à extradição de portugueses, nunca se pode extraditar cidadãos portugueses;
exceto, no entanto, se se verificarem os pressupostos estabelecidos no artigo 33º, nº3 da CRP. Este
artigo surgiu da revisão constitucional de 1987, para dar cumprimento ao artigo 7º, nº1 da
Convenção Relativa à Extradição entre os Estados Membros da EU. Conclui-se, assim, que o
fundamento deste princípio é a ideia de que um Estado não extradita os seus cidadãos, devido à
ligação que existe entre os cidadãos e a sua própria ordem jurídica e os seus valores.
Ora, os pressupostos do artigo 33º, nº 3 são: 1) existência de crimes de terrorismo; 2) reciprocidade
de tratamento por parte do Estado requerente (podendo Portugal pedir, também, a extradição), ou a
consagração dessa reciprocidade em convenção internacional; e 3) consagração de garantias de um
processo justo e equitativo, por parte da ordem jurídica do Estado requerente.
No caso de criminalidade organizada, tendo em conta a Convenção Internacional, a extradição só
pode ser efetuada para efeitos de procedimento criminal. Além disso, se o cidadão português já tiver
sido condenado em tribunal estrangeiro, não será possível extraditá-lo; a extradição tem de ser
pedida e efetuada no início do processo penal.
Relativamente à extradição de estrangeiros, por norma, todos os crimes praticados por
estrangeiros, em território português, ou em território estrangeiro com as condições referidas na
alínea c) e na alínea e) do artigo 5º, são suscetíveis de fundamentar a extradição – desde que se trate
de crimes com pena de prisão não inferior a um ano, quer pela lei portuguesa, quer pela lei do
estado requisitante. No entanto, a extradição não será possível se tal crime for de natureza política
ou militar; ou quando a mesma é pedida com motivação política – sendo que pode haver motivação
política sem haver crime de natureza política. Visa-se que não haja perseguição política pelo Estado
requerente.
Tal extradição também não pode ser concedida se, segundo o direito do Estado requisitante, ao
crime em causa corresponder uma pena de morte ou outra da qual resulte lesão irreversível da
integridade física (artigo 33º, nº6). Esta possibilidade não admite qualquer flexibilidade, mesmo que
o país garanta politicamente a não execução de pena de morte – acórdão do TC nº1/2001.
Também não poderá ser extraditado no caso de o país estrangeiro prever prisão perpétua ou de
duração indefinida (artigo 33º, nº4 da CRP; e artigo 6º, nº1, alínea f) da Lei nº 144/99). No entanto,
existe, aqui, alguma flexibilidade: será possível a extradição se o Estado requisitante for parte de
convenção a que o Estado português esteja vinculado, e oferecer garantias de que tal pena não será
aplicada ou executada – não bastando, no entanto, uma mera garantia diplomática.

2. Mandado de detenção europeu


Existem algumas diferenças entre a entrega de arguidos em cumprimento de mandado de
detenção, e a entrega de arguidos em cumprimento da extradição. Assim, num mandado de
detenção:
1) Dispensa-se o princípio da dupla incriminação quanto a um vasto elenco de infrações criminais
graves, que estão tipificadas na lei nº65/2003.

2) Afasta-se o princípio da não extradição de nacionais, embora este afastamento não seja
obrigatório; existe, portanto, uma possibilidade de recusar a extradição de nacionais a título de
mandado de detenção europeu. Isto resulta do artigo 12º, nº1, alínea g) da lei nº65/2003.

3) Afasta-se o princípio da territorialidade como causa impeditiva da entrega, como acontece na


extradição; mas, mais uma vez, o afastar deste princípio é facultativo, de acordo com o artigo
12º, nº1, alínea h) e i) da lei nº65/2003.

4) Afasta-se as garantias constitucionais que constam do artigo 33º, nº4: Para entregar uma pessoa
com base no mandado, se o país prever prisão perpétua ou de duração indefinida, pode-se, à
mesma, entregar a pessoa – com a garantia de estar previsto, na ordem jurídica nesse Estado, 1)
a possibilidade de revisão da pena a pedido ou ao fim de 20 anos; ou 2) penas de clemência.
o Esta interpretação não oferece garantias suficientes em matéria de dignidade humana,
ultrapassando os seus limites; ao ponto de o Tribunal Constitucional alemão já ter declarado
algumas normas assinadas em convenção como inconstitucionais.

Hipóteses:
NOTA: Nos casos práticos, a sequência de alíneas a ser analisadas tem de ser seguida.
1) Madalena, que se encontra grávida de 13 semanas, decide interromper a gravidez. Sabendo
que, salvo situações especiais, previstas na lei penal, o aborto em Portugal só pode ser
praticado nas primeiras 10 semanas de gravidez (artigo 142º, nº1, alínea e), decide ir a um
país onde o aborto só é punível se for praticado depois das 16 semanas, a fim de aí interromper
a gravidez. Regressada a Portugal, pode Madalena ser julgada e condenada pelo crime de
aborto, previsto e punido no artigo 140º CP.
Primeiro, é necessário perceber em que lugar foi praticado o facto – conclui-se que foi mo
outro país (sendo aqui claro que é fora do território nacional). Isto faz com que se exclua a
aplicação do artigo 7º, pelo que se vai para as alíneas do artigo 5º.
A grande dúvida nesta hipótese é se é possível interpretar a expressão “contra português” no
sentido de abarcar, também, quando estão em causa bens jurídicos tutelados pela ordem jurídica
portuguesa – isto, porque o feto não é um português, dado que em Direito Penal, o crime de
homicídio apenas se confere a partir do trabalho de parto (segundo a professora). Ora, isto tem a ver
com a matéria da interpretação: nomeadamente, não é possível fazer analogia se for desfavorável, o
que neste caso é – logo, em princípio, é proibido interpretar dessa forma, porque seria para
incriminar.
No entanto, por outro lado, existe uma parte da doutrina portuguesa que considera que, quando se
está a falar de normas de aplicação da lei no espaço e no tempo, não devem ser aplicadas as mesmas
regras de interpretação que seriam aplicadas relativamente a todas as outras normas. Isto porque,
como são normas jurídicas que regulam, em termos gerais, a aplicação no tempo e no espaço, o
legislador tem necessariamente de recorrer a conceitos mais abrangentes do que nos tipos criminais.
A professora Fernanda Palma não concorda com esta posição, na medida em que se vai surpreender
o cidadão com a criminalização de uma conduta com que ele não poderia estar à espera –
nomeadamente, com a aplicação de lei portuguesa a condutas feitas no estrangeiro.
Se não se seguisse a doutrina da professora Fernanda Palma, além disso, poder-se-ia de
discutir se, relativamente à alínea b), se havia ou não intenção de fraude à lei; mas, partindo do
pressuposto que se segue a primeira corrente doutrinária, este não será um pressuposto a preencher.
De qualquer das formas, ainda será necessário outro requisito: ter habitação habitual em Portugal e
ter sido apanhada em Portugal – sendo ambas afirmações verdade, neste caso.
Concluindo, não existirá qualquer entrave à aplicação da lei portuguesa a Madalena: apesar
de o nº2 dizer que se aplica a lei mais favorável ao agente, sendo aqui a estrangeira (que não pune a
conduta); o nº3 afasta esta regra nos casos das alíneas a) e b).

2) Nuno envia de Marrocos, para a residência do banqueiro José, situada na cidade de Lisboa, e
a este dirigida, uma carta armadilhada, com o objetivo de, ao ser aberta, explodir e, assim,
provocar-lhe a morte, ou pelo menos lesões corporais graves. Sucedeu, porém, que numa
estação de correios espanhola, a carta foi desativada pela polícia espanhola. Tendo Nuno
regressado a Portugal 2 anos após o envio desta carta:
a) Têm os tribunais portugueses competência para julgar este caso?
Determina-se, primeiro, o lugar da prática do facto, de forma a ver se se aplica o artigo 7º
(princípio da ubiquidade): ora, aqui, a tentativa de homicídio foi, em teoria, praticada fora do
território nacional. No entanto, o legislador vai ao ponto de dizer que o sítio será o sítio em que a
pessoa queria que o resultado ocorresse, de acordo com a sua representação – ou seja, o sítio será
em Lisboa. Assim, os tribunais terão competência, com base apenas no princípio da territorialidade
(artigo 4º).
E se, na lei marroquina, a tentativa do crime de homicídio tivesse uma pena mais leve? Ou
seja, o artigo 6º funciona quando funciona o artigo 5º – mas a doutrina discute se o artigo 6º, nº2 se
pode aplicar, também, quanto ao princípio da territorialidade; e não apenas à aplicação da lei penal
portuguesa a factos praticados no estrangeiro. Uma parte da doutrina (professor Silva Dias) defende
que não, porque o princípio da territorialidade também salvaguarda a soberania do Estado e,
portanto, não se deve ter em consideração nunca a lei penal estrangeira. Já outra parte da doutrina
diz que sim, desde que essa analogia se justifique – ou seja, sempre que existam pontos de contacto
com a lei estrangeira, suficientemente fortes que justifiquem ter em consideração a medida concreta
da lei estrangeira (sendo um dos pontos de referência o conhecimento da lei estrangeira por parte do
agente que viveu durante muito tempo lá, por exemplo).
b) A solução seria diferente se o agente fosse um cidadão estrangeiro?
O princípio da territorialidade aplica-se na mesma, independentemente da nacionalidade do
infrator. Logo, temos a mesma resposta da alínea a) – só seria necessário explicar melhor esta
vertente do princípio da territorialidade.

c) A solução seria diferente se a carta tivesse explodido na estação dos correios em Espanha e
tivesse causado a morte de um funcionário que a manejava?
O princípio da territorialidade aplica-se na mesma, visto que continua a contar o sítio que
Nuno queria que essa explosão se desse, ou seja, Lisboa. Denota-se que este será punido em
concurso efetivo de crimes pela tentativa de homicídio José e pelo homicídio negligente do
funcionário.
 Matéria nova: Quando há execução defeituosa – erro da execução –, a pessoa atinge um objeto
distinto do que visava ou do que representou atingir. Para grande parte da doutrina, ele deve ser
punido em concurso efetivo pela tentativa do crime de homicídio que queria, de facto, cometer;
e pelo crime de homicídio que realizou, na forma negligente.
Assim, aplicando o mesmo princípio, ir-se-ia ter a mesma resposta: a lei penal portuguesa
poderá ser aplicada; se bem que Espanha também se poderia julgar legitimada a julgar. No entanto,
o que interessa é evitar que ninguém se julgue competente; não é problema existirem várias ordens
jurídicas que tenham legitimidade e capacidade para julgar.

3) Jean, francês, planeia montar na Tunísia um negócio de prostituição, empregando prostitutas


estrangeiras à Tunísia. Em 1 de julho de 2012, Jean desloca-se a Portugal, e com ajuda de
Bento, português, contrata 5 mulheres portuguesas que viviam desafogadamente (não na
pobreza), e viam naquela proposta um modo rápido de enriquecer. Determine se e como podem
os tribunais portugueses punir Jean e Bento, segundo o artigo 169º, nº1 CP, tendo em conta o
seguinte:
i. O lenocínio, com texto idêntico ao do atual artigo 169º, nº1, é punível na Tunísia com uma
pena de 6 meses a 5 anos de prisão.
ii. Jean foi punido na Tunísia por aquele facto em 2 de janeiro de 2014, com pena de prisão de
5 anos, tendo-se evadido e fugido para Portugal, quando havia cumprido apenas 2 anos.
iii. Em fevereiro de 2014, o artigo 169º passa a apresentar a seguinte redação: “quem,
profissionalmente, ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer, ou facilitar o exercício,
por outra pessoa, de prostituição, explorando situações de abandono ou de necessidade
económica, é punido com pena de prisão de 6 meses a 4 anos”.
iv. Entre Portugal e a Tunísia não existe tratado de extradição.
Jean fomentou a prostituição, instigando as senhoras a prostituírem-se; ora, basta uma parte
da ação descrita no tipo decorrer em Portugal para que, à luz do artigo 7º, o facto se tenha praticado
em Portugal (“total ou parcialmente”). Já Bento será um auxiliar, sendo necessário perceber se este
foi fundamental para conhecer este tipo de mulheres, ou não: se só ajudou, só será cúmplice; mas se
ele próprio também fomentou, já será coautor.
No entanto, quer Jean, quer Bento praticaram o facto em Portugal – princípio da ubiquidade.
A professora defende, até, que sendo o ato de fomentar um tipo de crime em si (artigo 169º, nº1
CP), este cumprimento poderá até ser considerado total, mesmo que a exploração, em si, seja feita
na Tunísia. De qualquer das formas, aplica-se o artigo 4º, alínea a), relativo ao princípio da
territorialidade, que se aplica independentemente da nacionalidade do estrangeiro.
Ora, depois disto, passa-se a analisar o problema da aplicação da lei penal no tempo. Neste
caso concreto, poderemos concluir que não acontecia a exploração anteriormente prevista, dado que
as mulheres eram desafogadas. Assim, houve uma descriminalização do crime: só o fomentar, com
a circunstância de explorar uma situação de abandono ou necessidade económico, é que passou a
ser crime com a lei nova; ao passo que a lei antiga abrangia todos os tipos de exploração. Sendo
uma descriminalização, ir-se-ia aplicar o nº2 do artigo 2º CP, que fala nas situações em que a lei
posterior descriminaliza (o lenocínio continua no código, mas o lenocínio simples deixa de ser
penalizado – não existe uma descriminalização total). Portanto, nem Jean nem Bento teria pena por
esta fomentação, devido a ser a lei portuguesa que será aplicada, por ser a mais favorável.
4) Alex e Beatriz são casados e residem em Paris. Beatriz pretende votar nas eleições autárquicas
da freguesia onde nasceu, e para esse efeito, comprou um bilhete de avião numa companhia
lowcost. Porém, Alex, que é muito violento e tem medo que Beatriz não regresse a casa após as
eleições, resolve impedi-la de embarcar, ameaçando-a de morte com revólver que guarda em
casa, dizendo “se saíres por aquela porta para ires votar, levas um tiro!”. Alex cometeu o
crime de coação de eleitor (artigo 340º). No verão desse ano, Beatriz convence Alex a vir
passar férias ao Algarve, e aproveita a situação para o denunciar à polícia.
a) Têm os tribunais portugueses competência para julgar este caso?
Em sede de aplicação da lei penal portuguesa no espaço, é necessário, primeiro de tudo,
determinar o local do facto prático – nomeadamente, do crime de coação de eleitor –, de acordo
com o princípio da ubiquidade (artigo 7º CP). Ora, neste caso, o facto foi praticado em Paris,
França, dado ter sido esse o local não só onde o agente atua, mas também onde o resultado típico se
deu (sendo, no entanto, exigível apenas um dos momentos em solo nacional).
Ora, afasta-se, assim, o princípio da territorialidade do artigo 4º, na medida em que o facto
foi praticado fora do território nacional. É, então, necessário ir para o artigo 5º, que estipula os
princípios complementares relativos a situações em que a lei penal portuguesa é aplicada a factos
verificados fora do território português. Neste caso concreto, pode-se concluir que estamos perante
o princípio complementar da alínea a), denominado de princípio realista ou da proteção de
interesses nacionais, na medida em que o crime de coação de eleitor se insere num dos crimes
enumerados nessa alínea (“336º a 345º). Assim, os tribunais portugueses teriam competência para
julgar este caso.

b) Relativamente à lei aplicável, podem ter em consideração a lei francesa, que consagra o
mesmo crime de coação de eleitor, mas com uma moldura penal mais favorável do que a da
lei portuguesa?
Estando em sede do artigo 5º, não se aplica a restrição à aplicação da lei portuguesa a factos
verificados no estrangeiro estipulada no artigo 6º, nº2 – assim, e em termos do nº3, estando em
causa interesses nacionais, não se poderá ter em conta a lei estrangeira, mesmo que esta seja mais
favorável.

5)
Alberto, português emigrante em França envolve-se numa acesa discussão com Benevides,
cabo-verdiano, num bar de Paris. Em determinado momento, Alberto completamente fora de si,
pega num bastão e acerta um violento golpe na cabeça de Benevides, provocando-lhe um
traumatismo craniano. De seguida, e perante o olhar atónito de todos que no bar se encontravam,
foge do local.
Sabendo que a polícia estava no seu encalço e descobrindo que Benevides era amigo de
Charles, francês e seu patrão, Alberto mediante a perspetiva de despedimento, sentiu-se na miséria
dado que ainda não tinha conseguido amealhar dinheiro algum. Decide então raptar Nicole,
francesa e filha de Charles, com objetivo de a este pedir um avultado resgate. Ocupando o iate de
Charle de matrícula francesa e mantendo Nicole em cativeiro, Alberto foge pela costa norte de
França e Espanha, atracando na sua cidade-natal: Viana do Castelo.
Ainda mal tinha pisado solo português, Nicole conseguiu libertar-se e escapar. Alberto
pede então ajuda ao seu amigo Duarte, português, residente em Matosinhos, e após longa
perseguição, alcançam Nicole, já em terras espanholas. Todavia, Nicole já se encontrava na
companhia de Igor, ucraniano e Gani, egípcio, capangas de Charles, que após tortura matam
Duarte.
Alberto mais uma vez consegue fugir e já em Portugal, numa entrevista ocasional de uma
estação de rádio portuguesa, difama gravemente o Presidente R por não assegurar o emprego para
todos no país. Um dia depois é detido pelas autoridades nacionais. Algumas semanas volvidas,
também Igor e Gani são detidos pelas autoridades nacionais num luxuoso hotel no Algarve. Após
leitura atenta do caso, responda às seguintes questões:
a) Para o crime de ofensa à integridade física grave (art 144º CP), suponha que a lei mais
favorável é a cabo-verdiana seguida da francesa e só depois da portuguesa. Qual a lei
aplicável a Alberto por este crime?
Em sede de aplicação da lei penal portuguesa no espaço, é necessário, primeiro de tudo,
determinar o local do facto prático – nomeadamente, do crime de ofensa à integridade física de A
por B –, de acordo com o princípio da ubiquidade (artigo 7º CP). Ora, neste caso, tanto a ação de
agressão como o resultado típico relativo a B foram verificados em Paris, França – apesar de se
notar que o artigo 7º CP apenas exige que um destes se tenha passado em solo nacional.
Não tendo o facto sido verificado em Portugal, afasta-se o princípio da territorialidade do
artigo 4º. É, então, necessário ir para o artigo 5º, que estipula os princípios complementares
relativos a situações em que a lei penal portuguesa é aplicada a factos verificados fora do território
português. Este caso poderá ser integrado no princípio da universalidade ativa, descrito no nº1,
alínea e), primeira parte, estando todos os requisitos exigidos pelo legislador cumpridos: por um
lado, A, de nacionalidade portuguesa, foi encontrado em Portugal; por outro, a extradição era,
relativamente ao crime praticado, admissível para extradição por ser punido com pena superior a 1
ano (Decreto-Lei que regula a extradição), mas não pode ser concedida de acordo com o artigo 33º,
nº3.
No entanto, estando em sede do artigo 5º, é necessário verificar se existe alguma restrição à
aplicação da lei portuguesa a factos verificados no estrangeiro, que se encontram no artigo 6º. De
facto, e não estando no âmbito das alíneas a) e b) do artigo 5º, segundo o nº2 do artigo 6º, o caso
será julgado pela lei “do país em que o facto foi praticado” se esta for mais favorável do que
portuguesa. Ora, sendo a lei francesa mais favorável do que a portuguesa, a lei francesa é que será
aplicada., segundo o nº2 do artigo 6º, o caso será julgado pela lei “do país em que o facto foi
praticado” se esta for mais favorável do que portuguesa. Ora, sendo a lei francesa mais favorável do
que a portuguesa, a lei francesa é que será aplicada.

b) Para o crime de rapto (artigo 161º CP), admita que a lei mais favorável é a francesa
seguida da portuguesa e só depois da espanhola, qual a lei aplicável a Alberto para esse
crime?
Em sede de aplicação da lei penal portuguesa no espaço, é necessário, primeiro de tudo,
determinar o local do facto prático – nomeadamente, do crime rapto de N por A –, de acordo com o
princípio da ubiquidade (artigo 7º CP). Ora, o crime de rapto é um crime duradouro, o que significa
que a ação do crime é continuada, apenas se dando como concluída quando N conseguiu fugir; no
entanto, para este artigo, não é necessário que o local de ação tenha sido todo em Portugal, apenas
uma parte dela (“parcialmente”). A e N entrou em águas portugueses num iate civil com matrícula
francesa. Aqui, importa discutir se o princípio de pavilhão se aplica, consagrado no artigo 4º, alínea
b) CP: é considerado território português os navios e aeronaves portuguesas comerciais e militares.
Segundo a professora Fernanda Palma, este princípio não se aplica quando tal navio se
encontra em águas nacionais ou estrangeiras – o território do facto será a nacionalidade das águas,
independentemente de onde o navio civil se encontra registado. Isto terá fundamento, também, na
Convenção do Montego Bay, que avança que, logicamente, não faria sentido não considerar o
espaço aéreo e náutico pertencente a um país como extensão do território nacional do mesmo. Este
só será aplicado, então, em águas ou espaços aéreos internacionais (nos casos de transportes civis).
Adotando esta posição, o local da prática do facto será, neste caso, Portugal, pelo que se poderá
aplicar o princípio da territorialidade (artigo 4º). No entanto, importa analisar, ainda, se o artigo 6º,
nº2, relativamente às restrições à aplicação da lei penal portuguesa, se pode aplicar, também, quanto
ao princípio da territorialidade; e não apenas à aplicação da lei penal portuguesa a factos praticados
no estrangeiro. Discute-se que sim, na medida em que tal analogia bona partem se encontra
justificada: existem pontos de contacto suficientemente fortes com a lei francesa, que justifiquem
ter em consideração a medida concreta da lei estrangeira – nomeadamente, o facto de A ser
emigrante em França e, por isso, poder ter um conhecimento da lei francesa, para criar a expectativa
que esta seria aplicada. Assim, a lei aplicável seria a lei francesa, mais favorável.
Segundo Taipa de Carvalho, pelo contrário, este princípio aplica-se quer as águas/o espaço
aéreo seja estrangeiro/nacional, quer seja internacional, mesmo em caso de veículos civis. Isto,
porque o legislador português não faz a distinção anterior explicada, pelo que os aplicadores do
direito também não a devem fazer.
Adotando esta posição, o local da prática do facto será, neste caso, França, pelo que se afasta
o princípio da territorialidade do artigo 4º. É, então, necessário ir para o artigo 5º, especificamente
para o princípio da universalidade ativa, descrito no nº1, alínea e), primeira parte, estando todos os
requisitos exigidos pelo legislador cumpridos: por um lado, A, de nacionalidade portuguesa, foi
encontrado em Portugal; por outro, a extradição era, relativamente ao crime praticado, admissível
para extradição por ser punido com pena superior a 1 ano (Decreto-Lei que regula a extradição),
mas não pode ser concedida de acordo com o artigo 33º, nº3.
No entanto, e não estando no âmbito das alíneas a) e b) do artigo 5º, segundo o nº2 do artigo 6º, o
caso será julgado pela lei “do país em que o facto foi praticado” se esta for mais favorável do que
portuguesa – o que significa que, neste caso, seria a lei francesa a ser praticada.
NOTA: De notar que navios ou barcos militares são sempre considerados como território de onde
estão registados (salvo tratado ou convenção em contrário).

c) Para o crime de homicídio qualificado, a lei mais favorável é a portuguesa, seguida da


espanhola, da ucraniana, que pune o crime com pena de prisão perpétua, e só depois da
egípcia, que pune com pena de morte. Qual a lei aplicável?
É necessário determinar o local do facto prático – nomeadamente, do crime homicídio
qualificado –, de acordo com o princípio da ubiquidade (artigo 7º CP). Ora, neste caso, o local do
facto terá sido em Espanha, dado ter sido aí que Igor e Gani mataram Duarte. Não tendo o facto
sido verificado em Portugal, afasta-se o princípio da territorialidade do artigo 4º. É, então,
necessário ir para o artigo 5º, nomeadamente para o âmbito do princípio da nacionalidade passiva,
descrito na alínea e), segunda parte, estando todos os requisitos exigidos pelo legislador cumpridos:
1) a vítima é portuguesa; 2) Igor e Gani foram encontrados em Portugal; 3) o crime é punido em
Espanha; e 4) admite extradição (por ser punido com pena superior a 1 ano) que não pode ser
concedida dado nas ordens jurídicas dos agentes se prever pena de morte (exigindo-se uma
alteração legislativa), e pena de prisão perpétua (exigindo-se uma convenção com garantias).
No entanto, estando em sede do artigo 5º, é necessário verificar se existe alguma restrição à
aplicação da lei portuguesa a factos verificados no estrangeiro, que se encontram no artigo 6º. De
facto, e não estando no âmbito das alíneas a) e b) do artigo 5º, segundo o nº2 do artigo 6º, o caso
seria julgado pela lei “do país em que o facto foi praticado” – se esta for mais favorável do que
portuguesa. Não sendo, como já se viu, mais favorável, será, então, a lei portuguesa a ser aplicada.

d) Pressuponha, agora, que no dia em que Alberto difamou o PR decorria o terceiro dia de um
periodo de campanha eleitoral, justamente para a presidência da república. Para vigorar
durante esse periodo eleitoral, a saber 15 dias –, a lei X agravara em um terço os limites
mínimo e máximo da moldura penal sufragada pelo artigo 328º, em razão de um clima de
“crispação política”. Alberto é julgado um mês depois das eleições. Qual a lei aplicável?
Temos, aqui, uma lei de emergência ou lei temporária: leis que têm um período de vigência
determinado face a situações excecionais. Aplica-se, a estas, o artigo 2º, nº3 CP: tal lei será aplicada
a factos julgados depois de a lei já não estar em vigor, mas que foram praticados no âmbito da
mesma – existe, na mesma, uma “retroatividade”. Tal valoração ultra ativa não viola o princípio da
lei penal mais favorável, por um lado, porque dizer tal coisa seria frustrar a razão de ser das leis de
emergência; e, por outro lado, porque não há, verdadeiramente, uma alteração das valorações do
legislador. No entanto, tal tese não é partilhada por toda a doutrina: segundo Silva Dias, nas
situações de emergência existe uma alteração das valorações do legislador, por via das alterações da
conjuntura.
De qualquer das formas, seguindo a primeira tese, esta lei temporária é aplicável mesmo
sendo mais desfavorável ao agente para não desvirtuar (art. 2º, nº3 CP). Neste caso, a lei posterior à
lei de emergência não se debruça sobre o mesmo facto e, por isso, não há uma verdadeira sucessão
de leis – logo, não se viola o princípio da proibição da retroatividade da lei mais desfavorável ao
agente.

6) António, português, pratica um facto em território espanhol, cujo resultado deu-se em território
português, no mesmo momento em que passou a vigorar uma lei que o vem considerar crime.
É necessário determinar o local do facto prático – nomeadamente, do crime –, de acordo
com o princípio da ubiquidade (artigo 7º CP). Ora, neste caso, o local do facto terá sido em
Portugal, dado ter sido em território nacional que o resultado típico se projetou. Assim, aplica-se o
princípio da territorialidade: abstratamente, será aplicada a lei penal portuguesa a A.
No entanto, é necessário, ainda, avaliar a aplicação da lei penal portuguesa no tempo. Ora,
aqui, a lei mais desfavorável ao agente terá saído depois do momento da prática do mesmo – que é o
momento da atuação do agente, mas não da verificação do resultado típico (artigo 3º). Isto significa
que, de acordo com o princípio da proibição da aplicação retroativa da lei penal mais desfavorável
ao agente, tal lei não poderá ser aplicada a A, de forma a respeitar a expectativa do mesmo quanto
às suas ações – “não há crime nem pena sem lei prévia”.
Análise do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora (595/11.3GTABF.E1):
No dia 24 de Junho de 2011, cerca das 11:00 horas, o arguido conduzia o veículo
automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ----LB, pela A2, km 235,300, área desta comarca,
sem que para tal se encontrasse legalmente habilitado, com a respetiva licença de condução, que
bem sabia se necessária para o efeito.
O arguido não era, à data, detentor de qualquer licença que o habilitasse a conduzir. O
arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e
punida por lei. Apurou-se, ainda, que o arguido exerce a profissão de motorista; e que não tem
antecedentes criminais.
O arguido vem acusado da prática de determinados factos que o terão feito incorrer num
crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3°, nº.1 e 2 do
Decreto-Lei n° 2/98, de 03 de Janeiro, que dizem os seguintes: 1) Quem conduzir veículo a motor
sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com pena de prisão até 1
ano ou com pena de multa até 120 dias. 2) Se o agente conduzir, nos termos do número anterior,
motociclo ou automóvel, a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.
Este trata-se de um tipo de crime de perigo abstrato, não se exigindo a produção de um
concreto resultado, um dano concreto, apresentando-se o perigo, tão-só, como a motivação do
legislador para punir tal conduta – está preenchido uma conduta abstratamente perigosa, não sendo
necessário pôr, em concreto, qualquer bem jurídico em perigo ou existir algum resultado típico.
No entanto, como bem nota o Ministério Público na motivação do recurso, o arguido
habilitou-se a conduzir em 29/12/1976, tendo a sua carta de condução caducado a 18/07/2008 – ou
seja, ele tinha a carta, mas estava caducada.

No entanto…
Tendo-se, o arguido, habilitado a conduzir automóveis em 29/12/1976, tendo a sua carta de
condução caducado no dia 18/07/2008 por ter então completado os 50 anos de idade, e tendo os
factos provados ocorrido no dia 24/06/2011, haveria que ter procedido à ponderação de regimes
penais que se sucederam no tempo.
Aliás, como pertinentemente assinala o Ministério Público, em 05/12/2012 entrou em vigor
o Decreto-Lei n.º 138/12012, que alterou o artigo 130.º, n.º 3, alínea d), n.º 5 e nº 7 do Código da
Estrada, os quais passaram a ter a seguinte redacção: nº 3, alínea d) — “O título de condução é
cancelado quando tenha caducado há mais de cinco anos sem que tenha sido revalidado e o titular
não seja portador de idêntico documento de condução válido”; nº 5 — “Os titulares de título de
condução cancelados consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os
veículos para os quais o título fora emitido”; e nº 7 — “Quem conduzir veículo com título
caducado é sancionado com coima de €120 a €600”.
Assim, à data dos factos, a carta de condução do arguido encontrava-se caducada, mas ainda não
cancelada. Sendo que a condução com título caducado (e ainda não cancelado) passou a ser
punida com coima (a partir de 05/12/2012), ou seja, passou a integrar infracção contra-
ordenacional.

Ou seja…
Aqui, houve una descriminalização da conduta de conduzir com a carta caducada em 2012;
sendo que o autor foi apanhado em 2011, e está a ser julgado em 2013. Isto significa que o facto que
era antes punido por pena de prisão deixou de o se – e esse facto deixou de ser considerado crime,
mas apenas uma contraordenação. Assim, aqui, aplica-se o artigo 2º, nº2 CP: o agente não pode ser
punido a título de responsabilidade criminal – princípio da aplicação retroativa da lei penal mais
favorável ao agente (artigo 4º).
No entanto, existe uma discussão na doutrina relativamente a saber se este poderia ser
punido com uma coima, dado que, quando o agente praticou o facto, este não era uma
contraordenação – isto, porque no direito contraordenacional também se aplica a proibição da
aplicação retroativa de contraordenações desfavoráveis ao agente. Ora, como vimos, Figueiredo
Dias defende que tal aplicação é possível, pois não existe uma frustração, a nível prático/negativo,
das expectativas do agente, dado que este pensava que o ato ia ser criminalizado. No entanto, a
doutrina maioritária (assim como Tribunal, neste acórdão), defende que a única forma de não violar
este princípio proibição da aplicação retroativa é incluir uma norma transitória que explicite a
possibilidade dessa aplicação, ou na lei nova ou mesmo no CP – não existindo essa norma, não
existe nem uma despenalização, nem uma contraordenação, pelo que se absolve o arguido.
Não havendo então norma transitória (como sucede no caso), as ações despenalizadas não
podem vir a ser então julgadas como contraordenações, pois assim resulta da proibição da
retroatividade da lei contraordenacional (que tem eficácia pós-ativa, como se disse – artigo 3º, nº
1 do Decreto-Lei 433/82). A criação de norma (transitória) é atividade reservada ao legislador. Na
ausência dela, resta ao tribunal declarar a despenalização.
Por tudo, concluímos que a conduta do arguido já não constitui crime, não era ainda
contraordenação à data da prática e, inexistindo norma transitória que trate a sucessão, impõe-se
fazer operar a lei descriminalizadora (artigo 2º, nº 2 do Código Penal e artigo 29º, nº 4 da CRP),
de acordo com o pedido formulado em recurso pelo Ministério Público.

Funcionamento da lei penal quanto a certas pessoas


Em relação a certas pessoas, existem regras especiais relativamente à aplicação da lei penal
– regras que resultam da CRP e traduzem-se, fundamentalmente, em imunidades.
O artigo 130º CRP consagra especialidades quanto à aplicação da lei penal ao PR, no
sentido de o excluir totalmente da prossecução penal relativa a crimes estranhos ao exercício de
funções durante o mandato. Ou seja, durante esse período, está suspensa toda a efetivação da
responsabilidade penal (ex: Trump e fraude fiscal). No entanto, o mesmo não acontece no que se
refere a crimes praticados no exercício de funções – relativamente a esses, não existe qualquer
espécie de imunidade. Nesses casos, o julgamento estará a cargo do Supremo Tribunal de Justiça
(STJ), e pode implicar, caso haja condenação, a destituição do cargo e o impedimento da reeleição.
A razão de ser desta regra será proteger a representatividade democrática, ou seja, impedir que o
poder judicial possa condicionar o poder político – por isso é que, quando se trata de crimes
praticados no exercício das funções, já não há qualquer imunidade. Para a maior parte da doutrina,
os crimes praticados no exercício das funções abarcam, para além dos crimes de responsabilidade
política referidos na lei nº34/87, de 16 de julho, todos os crimes que constituam abuso ou desvio de
poderes por parte do PR – ou seja, abarcam, também, crimes contra o Estado (artigos 308º e
seguintes do CP) e crimes contra a humanidade.
 De notar que a professora Fernanda Palma defende que a não existência de imunidade não
abarca só as ações no exercício de funções, mas, também, as ações que tenham o exercício das
funções como causa (ex: PR mata uma pessoa para ocultar um erro político – considera-se que
praticou o facto no exercício das suas funções, na medida em que teve como finalidade não
comprometer o exercício das suas funções, logo poderá ser julgado por esse crime).
Também existem especialidades para a aplicação da lei penal em relação a membros do
Governo, ao Primeiro-Ministro (artigo 196º CRP) e aos deputados da AR (artigo 157º CRP) – sendo
que se aplica o mesmo regime aos dois. Assim, nenhum deputado poderá ser detido ou preso sem
autorização da AR, salvo tratando-se de crime doloso a que corresponda pena de prisão superior a 3
anos, e em flagrante delito (apanhado no ato).
Além disso, os deputados não podem ser ouvidos como arguidos sem a autorização da AR, sendo
obrigatória a decisão de autorização pela positiva quando houver fortes indícios da prática de um
crime doloso, a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 3 anos. Esta
norma visa impedir que o poder judicial possa exercer supremacia absoluta contra o poder
legislativo e, por isso, exige um controlo parlamentar da verificação dos pressupostos do
levantamento das imunidades. Mais, face ao nº4 do artigo 157º, se o deputado for acusado, a AR é
que decide se o deputado deve ser suspenso para efeitos de seguimento do processo – no entanto,
esta decisão é, mais uma vez, condicionada: é obrigatória a decisão de suspensão pela positiva
quando se trate de um crime referido nos números anteriores (nomeadamente, a que corresponda
pena superior a três anos).
Quanto aos deputados no Parlamento Europeu, reconhecem-se, no artigo 10º da Convenção
Europeia dos Direitos Humanos, imunidades parlamentares com o objetivo de proteção de
representação democrática. Só poderá haver levamento desta imunidade nos casos que não tenham
nada a ver com liberdade de expressão e de opinião e que estejam relacionados funcionalmente com
a atividade de membro do parlamento – ou seja, só há imunidade em relação a crimes no âmbito da
liberdade de expressão E relacionados com a sua função parlamentar (se for qualquer opinião que já
não tenha nada a ver com essa função, a imunidade poderá ser levantada).
Em relação às imunidades diplomáticas, visa-se, fundamentalmente, garantir a proteção da
soberania do Estado: isto é, um Estado não pode exercer jurisdição sobre outro, nem pôr em causa o
exercício das funções desse outro Estado. Estas estão reguladas na Convenção de Viena, de 18 de
abril de 1961, que foi aprovada pelo Estado Português em 1968. Nesta convenção, estabelece-se a
imunidade do agente diplomático, do(s) membro(s) de família que com ele vivam, e do pessoal
técnico e administrativo da missão diplomática, quer relativamente à detenção ou à prisão (artigo
37º). A imunidade relativamente à jurisdição penal, civil e administrativa resulta dos arts. 31º e 37º.
Esta imunidade diplomática não é absoluta: o Estado acreditante (de onde pertence o diplomata)
pode renunciar a imunidade de jurisdição dos seus representantes. Se não renunciar, a única solução
para o Estado acreditador (onde está a embaixada), perante a responsabilidade criminal da pessoa
imune, é expulsar os agentes, declarando-os “pessoas não gratas”.
Críticas: Este regime parece incompatível com o mundo atual, nomeadamente tendo em conta os
crimes de terrorismo e os crimes contra a humanidade – ex: Nos tribunais de Nuremberga e os de
Tóquio, assim como no Tribunal Internacional Penal, afasta-se expressamente as imunidades como
obstáculo à jurisdição dos mesmos.
Teoria do Crime
Introdução
Em certos casos, um agente consegue, com a sua conduta, preencher mais do que um tipo de
crime; pelo que é necessário decidir se se o vai punir por ambos os tipos ou apenas por um deles.
Mas como é que se determina que alguém pode ser responsável criminalmente? Aqui, será
necessário recorrer à teoria do crime: construção dogmática, feita ao longo dos anos, que partiu do
estudo de tipos de crime particulares, para determinar quais são os elementos comuns a todos os
crimes – ou seja, quais os elementos gerais do crime que têm de estar preenchidos para se poder
aplicar a lei penal respetiva a esse crime. No fundo, a teoria do crime vai fornecer, ao aplicador do
direito, critérios que ele deve seguir para aplicar a lei penal; pelo que a teoria do crime não é só uma
teoria de definição, mas também é uma teoria de decisão penal, facilitando a tarefa do juiz ao dizer
os passos a dar para aplicar corretamente um determinado tipo de crime.
Ora, a doutrina defende que o método a adotar na aplicação das normas penais é o método
subsuntivo: para se concluir que àquele caso concreto se pode aplicar um certo tipo de crime, é
necessário verificar se os elementos que esse tipo legal abstrato do crime prevê estão presentes no
caso concreto – ou seja, se as circunstâncias que a norma penal prevê ocorrem naquele caso em
concreto. Se a resposta for positiva, conclui-se que aquele caso se subsume àquele tipo de crime,
“cabendo” na norma em questão. No fundo, isto implica estar sempre a interpretar a previsão da
norma e o caso concreto, sucessivamente, até chegar a essa conclusão – assim, a teoria do crime
facilita este trabalho de subsunção, dizendo a ordem a seguir na análise do caso concreto.
No entanto, há quem acredite que não se deve falar em método subsuntivo, dado que esta conclusão
(de que o caso cabe na norma) implica mais do que a mera subsunção; implica, ainda, valorações
que podem incluir juízos de valor. No entanto, esta crítica não é correta, na medida em que o
método subsuntivo, de facto, pressupõe ditas valorações. Já outra parte da doutrina diz que não é
possível separar o facto objetivo da norma, e que o caso penal é sempre um caso em construção –
mas, mais uma vez, isto parece uma má interpretação da teoria da subsunção: quem a defende,
defende também esta ideia de estar sempre a passar do caso concreto para a norma e vice-versa;
logo, o caso está sempre em construção.

Elementos da Teoria do Crime


Os elementos gerais que devem ser tidos em conta quando se aplica a lei penal, são:
1) Ação
É necessário existir, no caso concreto, uma ação. Em Direito Penal, a ação só existe quando
existir um comportamento humano controlado ou controlável pelo sujeito. Por exemplo, numa
situação em que A dispara sobre B e B morre: se A, quando disparou sobre B, estava sob um ataque
de sonambulismo, não estava a exercer uma conduta no âmbito da sua autonomia e da sua
liberdade, na medida de não ter possibilidade de uma ação em alternativa. Denota-se, no entanto,
que no Direito Penal, cabem também as omissões: por exemplo, o pai que vê o filho a afogar-se e
nada faz tem um dever especial de agir; ora, não o fazendo, incorre numa omissão que o Direito
Penal condena.
NOTA: O professor Figueiredo Dias considera que se deve começar logo pela “ação típica” e não
apenas pela “ação”, dado não achar possível chegar a um conceito de ação, suficientemente
abrangente, prévio ao conceito de “ação típica”; além de que, ao Direito Penal, só interessa ação
típica. No entanto, a professora não concorda, achando que é possível existir um conceito de “ação”
prévio ao conceito de “ação típica”, ao qual se chega através de outras ciências, nomeadamente a
neurociência (carácter interdisciplinar do Direito Penal).

2) Típica
É necessário que esta ação seja é típica: isto, em termos simples, significa averiguar se
aquela ação é conforme a previsão de um determinado tipo legal – ou, por outras palavras, se aquela
ação cabe na previsão de uma norma que prevê um tipo de crime, se subsume à previsão daquela
norma. Por exemplo, se A dispara sobre B, e B morre, é necessário averiguar se os elementos
previstos na previsão do artigo 131º estão presentes no caso concreto, nomeadamente 1) agente (A);
2) ação típica (matar); 3) objeto da ação (B); 4) resultado (morte); e 5) bem jurídico (vida).
De notar que a existência de causalidade é necessária, mas não suficiente, para que exista
uma ação típica; é necessário existir, ainda, uma imputação objetiva – ou seja, que o resultado
possa, de facto, ser atribuído à ação do agente: isto porque pode existir um nexo de causalidade,
mas o resultado não ser, na mesma, imputado ao agente, por não ser justo.
 Por exemplo, se A dispara sobre B e B vai numa ambulância que tem um acidente, existe nexo
de causalidade na medida em que B estava na ambulância por causa do B – isto, porque a
causalidade basta-se com o juízo hipotético de que, eliminando a ação, o resultado não se
verifica. No entanto, este resultado não poderá ser imputado objetivamente ao agente.
Além disso, em Direito Penal, não basta a existência de elementos objetivos,
nomeadamente: ação, agente, objeto, resultado (se for um crime de resultado), e o dano do bem
jurídico. É também necessária a existência de elementos subjetivos, nomeadamente: dolo ou
negligência. Isto, porque em Direito Penal, ao contrário do Direito Civil, não há responsabilidade
pelo risco: não se pode responsabilizar alguém que violou apenas o dever de cuidar – é necessário
demonstrar sempre uma relação subjetiva entre o sujeito e o facto, nem que seja mínima
(negligência inconsciente: pune-se alguém que não previu a realização do facto, mas devia tê-lo
feito).
 Relativamente ao exemplo anterior, existe dolo direto, porque A disparou sobre B.

3) Ilícita
Esta ação típica terá, ainda, de ser ilícita. Ora, em termos teóricos, para perceber se um facto
é ou não ilícito, aplica-se a técnica negativa da exclusão: ou seja, tem de se averiguar se, naquele
caso concreto, ocorre (ou não) alguma causa de exclusão da ilicitude. Se ocorrer, afasta-se a
ilicitude; se não ocorrer, não se afasta a ilicitude. As causas mais importantes de exclusão de
ilicitude são: legítima defesa, ação direta, estado de necessidade, consentimento, conflito de deveres
(artigos 31º e ss.).

4) Culposa
A ação terá, ainda, de ser culposa. Na culpa, analisa-se a capacidade do agente de se motivar
pelo Direito: ou seja, faz-se um juízo de censura ao agente pelo facto de este, tendo a capacidade e a
possibilidade de se motivar pelo Direito, não o ter feito. A técnica utilizada é a mesma da ilicitude,
nomeadamente a técnica negativa de exclusão: se se verificar uma causa de exclusão da culpa –
inimputabilidade, erro sobre a ilicitude não censurável (invocar desconhecimento da lei) –, então
esta será excluída (artigos 31º e ss.).
5) Punível
Por fim, a ação terá de ser punível: aqui, a punibilidade avalia-se de acordo com as que o
legislador acrescenta ao facto, para que ele possa ser digno de pena. Por exemplo, se A pratica uma
tentativa de um crime que não é punido por pena superior a 3 anos, esta não deverá ser punida.

Concurso de Normas
Introdução ao concurso de crimes
Não existe, na matéria dos concursos de crime, um consenso por parte da doutrina
relativamente a quando é que deve ser dada: se em teoria da lei penal, se em teoria do crime. A
professora defende que ambas as posições têm razões de ser: por um lado, deve ser dada em teoria
da lei penal, pois grande parte da matéria do concurso tem a ver com a aplicação e interpretação da
lei penal; mas, por outro lado, deve também ser dada na teoria do crime, pois existe um tipo de
concurso – concurso verdadeiro –, em que se tem de decidir pela aplicação de mais de um tipo de
crime.
O professor Figueiredo Dias, por exemplo, defende que o problema de concursos existe sempre que
um comportamento global, imputado a um determinado agente e levado à cognição do tribunal,
preencha mais que um tipo legal de crime. Ora, aí, é necessário saber se se vai punir apenas por um
tipo legal de crime, ou por todos os comportamentos por ele cometidos.

Concurso de normas efetivo e concurso de normas aparente


É indispensável, por isso, determinar se se está perante a existência do chamado concurso
aparente de crimes (ou normas); ou se se está perante um concurso verdadeiro (ou concurso de
crimes). Esta é, então, a primeira grande distinção fundamental na matéria do concurso de crimes.
No concurso verdadeiro, o agente preenche vários tipos de crimes, devendo ser punido por esses
vários tipos (artigo 30º, nº1 do CP); enquanto no concurso aparente, a aplicação de um tipo exclui a
aplicação dos demais tipos de crime.
 Denota-se que, no artigo 30º, nº1, o legislador só se refere ao concurso efetivo de crimes, e não
ao concurso aparente. Grande parte da doutrina diz que tal não é necessário, dado que o
concurso aparente é resolvido pela matéria da interpretação da lei penal. No entanto, a
professora Cristina Líbano Monteiro considera que se aplicam as mesmas regras do concurso
aparente ao concurso verdadeiro; pelo que, sendo as regras aplicáveis as mesmas, não será
preciso individualizar.
Será, aqui, interessante perceber a importância desta distinção entre concurso verdadeiro e
aparente. Ora, se se tratar um concurso aparente – casos em que deve apenas aplicar só uma norma
– como um concurso verdadeiro, aplicando ao caso mais do que uma norma, estar-se-á a violar um
princípio fundamental do Direito Penal, nomeadamente: o princípio ne bis in idem (ninguém pode
ser punido duas vezes pelo mesmo facto), consagrado no artigo 29º, nº5 CRP. Isto porque estar-se-
ia a valorar o mesmo facto duas vezes.
Não há, no entanto, unanimidade na doutrina quanto ao critério a adotar para fazer esta
distinção. Por exemplo, A subtrai um quadro a B e, passado uma semana, resolve queimar o
mesmo. Os crimes aqui em causa seriam o furto e o dano. Da leitura do artigo 203º e artigo 212º,
respetivamente, retira-se que ambos preveem a pena de prisão até três anos. Como serão aplicados
estes artigos?
Critério da unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica do comportamento:
Ora, a maior parte da doutrina (professor Figueiredo Dias e professora Teresa Beleza)
defende a existência do critério da unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica do
comportamento, também denominado critério da unidade de sentido do acontecimento ilícito,
global final. De acordo com este critério, o comportamento do agente pode preencher mais do que
um tipo legal de crime; mas se esse comportamento é dominado por um único sentido autónomo de
ilicitude, basta aplicar um dos tipos – nomeadamente, o que consegue dominar o sentido de
ilicitude.
Isto é, há uma norma/um tipo legal que consegue incorporar todo o desvalor jurídico penal
que ocorreu com a prática daquele comportamento humano – o sentido dominante do ilícito em
causa –, pelo que a aplicação dessa norma esgota a avaliação do comportamento praticado pelo
agente. No fundo, há uma conexão subjetiva e objetiva entre os tipos, em que um deles aparece
como preponderante ou principal, ao ponto dos outros tipos aparecerem como subsidiários,
dependentes.
 Figueiredo Dias entende que, no exemplo dado, existe um concurso aparente de normas: basta
punir o agente pelo crime de furto, já que este consegue abarcar todo o comportamento e todo
ilícito criminal praticado pelo agente, de forma correta. A destruição do quadro roubado não
acrescenta nada ao comportamento inicial, pois com o comportamento inicial, o proprietário
perdeu a propriedade; sendo que essa perda de propriedade já existia antes do crime de dano.
o Assim sendo, o furto coloca em causa o bem jurídico propriedade e, no caso do dano, o bem
em causa é o mesmo. Considera-se, então, que o dano é um facto que ocorre que não
acrescenta nada – existe, aqui, a figura do facto posterior não punível (facto que ocorre mas
que não acrescenta nada).

 Já Teresa Beleza diz que não concorda que o comportamento fique bem avaliado só aplicando a
norma do furto – é preciso aplicar, aqui, um concurso efetivo de crimes, devendo A ser punido
pelo crime de furto e pelo crime de dano. Com o crime de dano, existe uma destruição definitiva
da coisa alheia e, portanto, há uma lesão mais forte do que apenas com o crime de furto. Isto
porque, caso só houvesse o crime de furto, se o agente fosse apanhado, podia sempre haver a
restituição da coisa; mas se se queimar o quadro, essa restituição já não é possível.
o Além disso, é também possível argumentar que existe concurso aparente ao ver o furto
como um meio para atingir um fim: o fim era estragar o quadro, mas, para isso, foi preciso
haver um furto. Assim, o furto é visto como instrumento para praticar o crime de dano.

o Em ambas as argumentações, o crime mais importante será o crime de dano; sendo que, na
segunda versão, o crime de dano acaba por “engolir” o crime de furto, pelo que acaba por
se ter, na mesma, um crime aparente – diferente do de Figueiredo Dias, pois aqui aplicar-se-
ia não o crime de furto, mas sim o crime de dano.

Mas como é que se sabe se uma norma esgota o ilícito criminal praticado? Esta questão gera
diversas dúvidas tanto na doutrina como na jurisprudência; contudo há já algumas certezas:
nomeadamente, quando se trata de tipos que protegem bens de carácter iminentemente pessoal, a
pluralidade de vítimas deve considerar-se sinal seguro da pluralidade de sentidos de ilícito – e, por
isso, deve conduzir à existência de um concurso efetivo. Por exemplo, se A colocar uma bomba que
mata três pessoas, terá de ser punido por três crimes de homicídio, em concurso efetivo. De notar
que tal raciocínio se aplica, segundo a maior parte da doutrina, quer estejam em causa crimes
dolosos, quer crimes negligentes; assim como quer estejam em causa crimes por ação, quer por
omissão. 
Isto faz com que, no caso de A mandar uma carta-bomba para um embaixador, mas que mata o
segurança, já existe concurso efetivo entre a tentativa de homicídio e o crime de homicídio
realizado, visto que estão aqui em causa bens eminentemente pessoais. A isto chama-se a aberratio
ictus, que pressupõe duas vítimas ou dois objetos.
 Há uma parte da doutrina (professor Rui Pereira) que trata a aberratio ictus de forma diferente:
quando os tipos e objetos são idênticos, não se deve punir em concurso efetivo, mas sim por um
só crime doloso consumado. Isto porque, ao punir em concurso verdadeiro, não se consegue
provar os elementos dos dois tipos legais de crime – logo, é melhor dar o tratamento de um só
crime doloso, mesmo que haja mais que um. Assim, A seria punido pelo crime de homicídio
doloso, mesmo que não houvesse dolo quanto à morte do segurança.

Concluindo, o critério da unidade de sentido é o critério dominante (mas não unânime) para
distinguir o concurso aparente e o concurso verdadeiro, dizendo-nos que, apesar da conduta
preencher um conjunto de normas, se uma delas for dominante – no sentido de esgotar a avaliação
do ilícito típico praticado pelo agente –, aplica-se apenas uma das normas.

Critério da unidade ou pluralidade de ações:


Este critério, adotado pela doutrina alemão (incluindo Roxin), defende que, no concurso
aparente, o autor cumpre distintos ilícitos penais com uma só ação – ação, no entanto, não apenas
entendida no sentido naturalístico. No fundo, importa perceber quando é que, à luz da doutrina
alemã, se pode falar da tal unidade de ação; ou seja, quando é que o agente preenche vários tipos
com uma só ação, dando origem ao concurso aparente. Assim, sempre que houver uma unidade de
ação, há um concurso aparente; enquanto se houver uma pluralidade de ação, existe um concurso
verdadeiro.
Existem, assim, três formas de manifestação da unidade de ação: 
1. Ação em sentido natural: O ato esgota-se na realização do tipo, sendo que, nesse caso, a ação
em sentido natural corresponde à ação típica (ex: A dispara sobre B e mata B).

2. Unidade de ação típica: Existem várias ações em sentido natural, mas essas ações agrupam-se
num só tipo, ou seja, numa só ação típica. Isso pode acontecer quando:
o O próprio tipo exige para a sua realização uma pluralidade de atos (ex: crime de roubo);

o O próprio tipo legal abarca, numa unidade de valoração, uma série de atos, sendo que pode
haver uma situação em que 2.1) todos os atos são atos parciais, não autónomos, de um
mesmo delito (ex: tráfico de estupefacientes – abarca desde a aquisição com fim de venda
até à posse transitória); mas também uma situação em que 2.2) o tipo de crime descreve só
uma ação, mas essa ação abarca uma pluralidade de atividade individuais (ex: homicídio em
que o agente crava várias vezes uma arma branca no corpo da vítima – é punido apenas
pelo crime de homicídio qualificado).

3. Unidade natural da ação: Quando distintos atos particulares, em virtude da sua similitude e
proximidade espácio-temporal, são reunidos numa unidade de ação pelo juiz. Para isso ocorrer,
é necessário que haja 1) uma vontade unitária dirigida à prossecução de um resultado, através de
uma 2) pluralidade de atos uniformes e similares – sendo que esses atos, devido à sua conexão
espaço temporal estreita, 3) formem uma só ação segundo o modo de ver natural: ou seja, vistos
de fora, por um terceiro, aqueles atos pertencem de modo adequado ao mesmo grupo (ex: crime
de sequestro, que implica vários atos que não são punidos autonomamente).
Apesar da doutrina alemã ter estes critérios todos, na prática isto é muito complicado. A
doutrina portuguesa, por sua vez, aplica o critério de unidade de sentido de ilícito, que é equiparado
à unidade natural de ação dos alemães.

Critério da unidade ou pluralidade de tipos legais violados pela conduta do mesmo agente:
Este critério, defendido pelo professor Eduardo Correia, diz que o número de crimes se
determina pelo número de juízos de valor que, no mundo jurídico-criminal, correspondam a uma
certa atividade. Dessa forma, se diversos valores ou bens jurídicos são negados ou violados pela
conduta do agente, outras tantas ações existem na esfera jurídico-criminal, ou seja, no direito
criminal – já que tantos outros tantos juízos de valor são possíveis, por conseguinte, outros tantos
crimes existirão.
O professor defende, ainda, que se houver uma única decisão (do agente), isso será suficiente para
se falar em concurso aparente; ao passo de que, se houver uma pluralidade de decisões, existirá um
concurso verdadeiro. No entanto, acrescenta-se, a este primeiro momento, um segundo critério: isto
porque, pode acontece que o juízo concreto de reprovação tenha de ser formulado várias vezes (ex:
se A puser uma bomba e matar 5 pessoas, estará a violar várias vezes o mesmo bem jurídico, pelo
que deve ser punido tantas vezes quantos bens jurídicos violou). 
O professor Figueiredo Dias considera que este critério, ao ter apenas em conta os tipos
legais de crime, deixa de lado os sentidos de vida jurídico penalmente relevantes, que radicam do
comportamento global do agente, ou seja, estão presentes no comportamento global do agente. Já a
professora critica este critério na medida em que, por vezes, apesar de haver uma só decisão, essa
pode ofender vários bens jurídicos pessoais – por exemplo, se o A, na mesma decisão, resolver
ofender o C e o B, é necessário defender os dois bens jurídicos, punindo as duas ofensas
(independentemente da unidade de decisão). Portanto, este critério não pode ser aplicado por si só. 

Critério da norma que previna a ofensa de bens jurídicos atingidos:


De acordo com a professora Cristina Líbano Monteiro, o critério válido para se decidir por
uma situação de concurso aparente é quando a norma de determinação que prepondere no caso
previna ainda suficientemente novas ofensas a qualquer dos bens jurídicos atingidos – critério que
é, no entanto, muito amplo. Dito de outra forma, para esta, há um só tipo de crime preenchido
quando se chega à conclusão de que a norma que o determina consegue por si prevenir (relacionado
com os fins das penas) ofensas a quaisquer dos bens jurídicos protegidos.    
Como devem ser os agentes punidos? 
No concurso aparente:
Em regra, se se estiver perante um concurso aparente, a punição prevista pela norma
principal exclui a aplicação da outra. Claro que, na determinação da medida concreta, poderá ter-se
em conta o facto de a coisa ter sido destruída além de furtada, retomando aqui o exemplo do quadro
inicialmente abordado. Contudo, segundo uma regra fundamental do concurso aparente, a pena
concreta não pode ser inferior ao limite mínimo da moldura penal correspondente ao ilícito
dominado. 
Há, no entanto, outros fatores a ter em consideração: isto é, na determinação da medida
concreta, alguns fatores singulares podem agravar a medida da pena – assim, o crime dominado
pode ser ponderado na determinação da medida da pena, desde que não vá ao ponto de violar o
princípio nu bis in idem. Por fim, o juiz deve, nestes casos, aplicar as penas e as medidas de
segurança previstas por qualquer das normas aplicáveis, se tal for requerido: a punição pela norma
principal só será afastada se o crime dominado for punível com uma moldura penal mais grave:
consunção impura. 

No concurso verdadeiro:
Havendo concurso efetivo, há que ter em conta os artigos 77º e 78º, onde se faz uma
ponderação entre os vários crimes, falando-se do sistema da pena conjunta: em primeiro lugar, fixa-
se uma pena concreta para cada um dos tipos de crime preenchidos; depois, encontra-se o limite
máximo e o limite mínimo, segundo o artigo 77º nº2: 
 Se a pena a aplicar tem dois limites máximos, não pode 1) exceder a soma das penas
concretamente aplicadas aos vários crimes; e 2) não pode ultrapassar o limite legal de 25
anos. A esta impossibilidade de ultrapassar os 25 anos chama-se cúmulo jurídico mitigado.

 Quanto ao limite mínimo da pena final, este será o correspondente à pena (concreta) mais alta a
que corresponda concretamente um dos crimes cometidos. 
Assim, enquanto o sistema da pena unitária calcula uma pena para o conjunto de crimes
praticados pelo agente, o sistema da pena conjunta (adotado pela nossa ordem jurídica) determina
uma pena para cada crime, soma essas penas e determina essa soma como o limite máximo da pena
aplicável o agente (nunca ultrapassando os 25 anos); correspondendo o limite mínimo à pena
concreta mais grave determinada. Por sua vez, a medida concreta da pena dentro desta moldura vai
ser determinada tendo em conta a personalidade do agente e a apreciação conjunta dos factos.  

Crimes continuados (terceiro género de concurso) 


Os crimes continuados, que são um crime verdadeiro ou efetivo, são um caso em especial:
não vão estar sujeitos ao sistema da pena conjunta – não se aplicando nem o artigo 77º, nem o artigo
78º, mas sim os artigos 30º, nº2 e 79º. Nestes crimes, o juiz vai comparar as medidas de pena
aplicáveis a cada uma das condutas que integram a continuação, e aplicar a mais alta – aplicação da
pena concreta mais elevada dos vários crimes que ele praticou.
A razão de ser desta distinção é que, para ser crime continuado, tem de haver uma diminuição da
culpa do agente – o que não acontece no caso do concurso efetivo. Isto, porque devido à facilidade
da prática do facto, considera-se que há um menor desvalor e, consequentemente, um menor juízo
de censura. Por outras palavras, a sua conduta contrária à ordem jurídica é menos desvaliosa. 
 No entanto, se, por exemplo, numa situação de crime continuado de roubo da caixa de um café,
se o café entrar em bancarrota, tal crime deixa o agente numa frágil situação e, por isso, deixa-se
de considerar que há diminuição da culpa – logo, já não se insere na figura do crime continuado,
pois o que é necessário para se verificar esta figura já não é preenchido. 

Pressupostos do crime continuado (artigo 30º, nº2):


1) Realização, pelo mesmo autor, de um conjunto de atos individuais que se traduzam na prática
do mesmo tipo de crime, ou de vários tipos de crimes, mas que, fundamentalmente, protegem o
mesmo bem jurídico. Isto quer dizer que os bens jurídicos têm de ter uma afinidade e não
podem ter um carácter eminentemente pessoal; ou seja, tem de haver uma violação pluríma do
mesmo bem jurídico ou de bem jurídico que tenha uma estreita afinidade com aquele ou aqueles
anteriormente violados. 

2) O bem jurídico em causa não pode ser eminentemente pessoal (ex: das ofensas corporais,
homicídio, liberdade sexual). Será que faz sentido que assim seja?  
o O professor Figueiredo Dias discorda deste requisito porque nos casos de abuso sexual,
muitas vezes, um mesmo agente comete esse crime várias vezes; mas, por ser um crime
eminentemente pessoal, não existe um crime continuado, mesmo que se verifiquem todos
os restantes requisitos. Ora, a figura do crime continuado tem razões político-criminais: o
legislador criou esta figura porque quis evitar dificuldades práticas e, por vezes,
insuperáveis, de comprovar judicialmente cada uma das realizações que integram a
realização. Além disso, o crime continuado tem consequências desproporcionadas e
injustas: pune-se mais gravemente quem tenta matar uma pessoa 4 vezes, do que quem
efetivamente mata uma pessoa. Assim, não há razão para retirar da figura do crime
continuado os crimes que põe em causa os bens eminentemente pessoais.  
 No entanto, a sua posição acaba por ser intermédia: por um lado, critica a retirada da
possibilidade da aplicação da figura do crime continuados aos crimes que têm bens
jurídicos iminentemente pessoais; mas, por outro, acrescenta que se os bens em causa
são os que estão previstos no Título I da parte especial do CP, não se pode aplicar a
figura do crime continuado, dado que este “caráter iminentemente pessoal” dos bens
protegidos deve ser entendido em sentido estrito.

3) Os atos têm de ser realizados continuamente. Isto não implica, necessariamente, uma


proximidade espácio-temporal entre as várias execuções; o que importa é que os vários factos se
relacionem causalmente. Ou seja, a execução tem de ser homogénea no sentido de existir uma
similitude do modus operandi do agente na realização do ato. 

4) Todos os atos têm de ser praticados no quadro de uma mesma solicitação exterior, que facilita a
repetição da atividade criminosa, ao ponto de diminuir consideravelmente a culpa. Ou seja, é
necessário existir uma situação que facilite a repetição da atividade criminosa, que implique que
se torne cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente – sendo que,
no entanto, não se exige que haja dolo conjunto ou dolo inicial; apenas se exige uma situação
em que “nunca ninguém impediu o agente”, existindo uma facilitação da atividade criminosa e,
por isso, uma diminuição considerável da culpa do agente. 
o Numa situação de conduta lesiva de bens jurídicos eminentemente pessoais
constantemente/de forma continuada, a jurisprudência recorre à figura do trato sucessiva: ou
seja, os juízes ficcionam que há dolo, por parte do agente, que abarca todas as condutas
praticadas até ao momento, de forma a combater a dificuldade de não haver crime
continuado nestes casos. Ora, como o dolo abarca todas as condutas que levaram àquele
resultado, o agente vai ser punido por uma única ação – muitas vezes, por uma questão de
prova ou para não haver penas excessivas. No entanto, isto é uma clara violação do princípio
da legalidade, dado que o poder judicial está a criar lei.  
 Uma parte da doutrina critica esta figura, por poder levar a um injustificado
privilegiamento do autor; pelo que não deve existir. 

Subtipos dentro do concurso aparente e o concurso efetivo


Distinções dentro do concurso efetivo:
Dentro do concurso efetivo, podemos distinguir o concurso real do concurso ideal: o
concurso efetivo é real quando à pluralidade de crimes cometidos corresponde uma pluralidade de
ações; e é ideal quando à pluralidade de crimes cometidos corresponde uma unidade de ação.
 No concurso efetivo ideal, existe ainda a figura abarratio ictus (erro na execução ou execução
defeituosa): quando uma ação preenche dois tipos de crimes, e é preciso punir por esses dois
tipos para abarcar o facto ilícito. Por exemplo, A tenta atingir B, mas depois atinge C: uma ação
dá lugar a outra e, por isso, fala-se em concurso efetivo ideal – A deve ser punido em concurso
de crime por tentativa do crime que tentou realizar, e pelo crime de homicídio que cometeu de
forma negligente, dado que só assim se consegue abarcar o facto ilícito.
Outra distinção feita é entre o concurso heterogéneo ou concurso homogéneo. O concurso
é heterogéneo quando o sujeito preenche diversos tipos de crime diferentes (ex: A furta B e pratica
violência doméstica contra C – concurso efetivo real e heterogéneo); e é homogéneo quando há uma
pluralidade de violações de um mesmo tipo (ex: A põe uma bomba na casa do B, mas estavam lá
mais três pessoas – vai ser punido por quatro crimes de homicídio). 
No entanto, estas distinções não estão na lei; são, sim, um conjunto de linguagens que
permitem perceber textos jurídicos, mas em termos práticos não têm grande importância. Já as
relações das normas, dentro do concurso aparente, serão mais importantes, mesmo a nível prático.  

Distinções dentro do concurso aparente:


Dentro do concurso aparente, a aplicação de uma norma é suficiente para esgotar avaliação
criminosa do comportamento do agente; no entanto, há mais normas que cabem no concurso
aparente. Assim, existem quatro tipos de relações possíveis entre essas normas:  
1. Relação de especialidade
Nesta, uma das normas contém, na sua previsão, todos os elementos essenciais do tipo
fundamental e, além disso, outros elementos especiais relativos à ilicitude ou à culpa, que
particularizam o facto e podem agravar ou diminuir a pena. Nesses casos, havendo uma relação de
especialidade, ou seja, se o agente preencher ambas as previsões, este vai ser punido apenas pela
norma especial, em detrimento da lei “geral”; sendo isto justificado porque tal aplicação esgota o
ilícito criminal praticado pelo agente.
Por exemplo, o agente que pratica o crime de homicídio qualificado, preenche também o crime de
homicídio simples; mas vai ser punido pelo primeiro, visto que o artigo 132º é uma norma especial
face ao tipo fundamental (artigo 131º), dado acrescentar um conjunto de elementos ao mesmo. O
mesmo acontece com o crime de homicídio privilegiado, previsto no artigo 133º: também é uma
norma especial, mas em que há uma culpa diminuída.
No entanto, também poderá haver uma relação de especialidade quando existe um tipo
complexo que integra o tipo simples – por exemplo, o tipo de crime roubo integra o tipo de crime
furto e o tipo de crime ofensa à integridade física. No entanto, há quem diga que esta não é uma
relação de especialidade, mas sim uma relação de consunção (instrumental). 
Denota-se que o professor Figueiredo Dias vem dizer que, na relação de especialidade, não
se pode falar de concurso aparente de normas, visto que, na realidade, só uma das normas é
aplicável (ex: quando se preenche o artigo 132º, só se preenche o artigo 132º, e não o artigo 131º) –
assim, o que há é unidade de lei. Consequentemente, a expressão “concurso aparente” só deve ser
aplicada quando o comportamento preenche um conjunto de normas, e uma delas prevalece/domina
porque esgota a avaliação do ilícito criminal (devido a uma argumentação substantiva) – ou seja,
uma delas revela a unidade de sentido de ilicitude autónomo do facto punível.
Por outras palavras, se não se tiver de ir buscar o critério material, e apenas se resolver o “concurso”
por uma relação lógico-conceptual entre as normas, escusa-se de falar de concurso aparente. Isto
porque nestes casos, em que é óbvio/certo que a norma especial prevalece sobre a geral, não se pode
dizer que são duas aplicáveis – por isso, o caso resolve-se através de observações lógico-formais.
Para o professor, então, só será necessário recorrer ao critério material (e, consequentemente,
verificar um concurso aparente) nas relações de consunção. 
 No entanto, esta posição é criticada porque a própria aplicação da “única norma aplicável”
esgota a avaliação do ilícito criminal praticado pelos sujeitos; por isso, o critério utilizador para
concluir que só há uma norma aplicável é, em última análise, o mesmo critério material. 

2. Relação de subsidiariedade 
Nestas, o legislador, expressamente ou implicitamente, pretende que uma norma só se
aplique quando o agente não puder ser responsabilizado por outra norma mais grave. Na
subsidiariedade expressa, o legislador expressamente diz que o preceito se aplica se não se aplicar
outro – ou seja, é a própria lei que condiciona a aplicação de uma norma à não aplicação de outra
norma mais grave (ex: artigo 152º, nº1: “se pena mais grave não lhe couber”). Já na subsidiariedade
implícita ou tácita, apesar do silêncio do legislador e da lei, é possível retirar, através de
uma interpretação, que a aplicação daquela norma só deve ser feita se não se conseguir aplicar outra
norma que represente um estado evolutivo ou uma forma mais intensiva de agressão do mesmo bem
jurídico – ou seja, o legislador só quer a aplicação daquele tipo se não houver um tipo que puna
mais gravemente.
Independentemente do tipo de subsidiariedade, estes são casos em que o legislador entendeu
criar, para alargamento ou reforço da tutela, tipos legais abrangentes de factos que se representam
como estados evolutivos antecipados ou intermédios de um crime consumado; ou como formas
menos intensivas de agressão ao mesmo bem jurídico.  
 Por exemplo, quando A pede ao B que mate C, está a funcionar como instigador; no entanto, ao
mesmo tempo, A executa o facto com o B, pelo que é coautor. Portanto, em relação ao mesmo
facto, este poderá ser punido como instigador ou como coautor – no entanto, da interpretação da
lei, retira-se que a instigação só deve ser usada quando não se conseguir punir a pessoa como
autor, dado que ser autor é a forma de autoria mais grave e prevalece sobre a instigação. Assim,
A só será punido pela forma mais gravosa, coautor. A forma de autoria é a forma mais perfeita
de participação num crime; pelo que só se pune por outra forma de participação, caso não se
possa aplicar essa forma mais perfeita de participação. 
o Já quando alguém provoca um acidente, colocando a pessoa numa situação de perigo, e
nada faz, será punido na posição de garante, já que criou o perigo – mas será punido por
omissão de auxílio juntamente com o crime de homicídio por omissão? Uma parte da
doutrina diz que o crime de homicídio por omissão abarca o ilícito; mas a professora Teresa
Quintela diz que a omissão de auxílio protege bens jurídicos que vão para lá da tutela do
crime de homicídio por omissão e, por isso, este último não abarca o ilícito – por exemplo,
o dever de solidariedade, sendo lesado, não é protegido pelo crime de homicídio por
omissão.

 Por exemplo, A tenta matar B e não consegue, então abandona-o e ele acaba por morrer – aqui,
o crime de homicídio abarca tudo, na medida em que só se deve aplicar a figura da tentativa de
homicídio, se não se puder aplicar a figura do homicídio.

3. Relação de consunção
A professora Teresa Beleza, assim como Roxin, defende que há relação de consunção em
sentido estrito nos casos em que o conteúdo de um facto típico e ilícito inclui um de outro facto, de
tal forma que a condenação pelo ilícito típico mais grave consegue esgotar a avaliação do desvalor
de todo o comportamento. Dito de outra forma, a realização de um tipo de crime inclui, por norma,
a realização de um outro tipo de crime; um crime contém em si outro crime, não por necessidade
conceptual, mas de um modo típico (crime meio e crime fim).
 Por exemplo, há quem diga que, no caso de furto com ofensas corporais, não existe uma relação
de especialidade, mas sim de consunção: isto, porque o crime de ofensas é um crime-meio para
alcançar o fim de furtar.  
Ora, a consunção é pura quando a realização do tipo de crime punido mais gravemente inclui
a realização de um outro tipo de crime punido mais levemente – nestes casos, a norma que prevê o
crime menos grave é excluída. Pelo contrário, a consunção é impura quando o crime mais grave
acompanha um crime menos grave, sendo que a realização de um tipo de crime punido mais
levemente inclui a realização de outro tipo de crime punido mais gravemente.
Para uma parte da doutrina, na consunção impura, aplica-se a norma-meio porque pune-se mais
gravemente (ex: crime de roubo, mas a violência utilizada foi de tal maneira significativa que
constitui um crime de ofensa à integridade física grave – apesar de a ofensa ser o meio para o roubo,
essa norma-meio prevê uma pena superior, pelo que será a norma aplicável). No entanto, para o
professor Figueiredo Dias, aplica-se a previsão da norma-fim e a estatuição da norma meio: ou seja,
como o ilícito criminal está mais corretamente descrito através da norma fim, deve-se aplicar essa
previsão; mas como a pena que consegue abarcar todo o ilícito criminal é a que está na norma meio,
será essa que deve ser aplicada. De qualquer das formas, em termos práticos, aplica-se sempre a
pena mais grave, independentemente da tese defendida.
 Na teoria do Figueiredo Dias, não existe uma violação do princípio da legalidade (recorrendo o
juiz à analogia para criar uma norma), porque ambas as normas são concretamente aplicáveis ao
caso, não se estando a violar as expectativas do agente baseadas nas leis aplicáveis. Ou seja,
está-se a aplicar a um facto previsto na lei e praticado pelo agente, uma pena atribuída a uma
previsão também por ele preenchida. Além disso, Figueiredo Dias também exclui esta crítica
defendendo que o princípio da legalidade não exige uma conexão formal entre o facto e a pena.

Denota-se, ainda, que não há concurso efetivo na consunção impura, dado que esta não
deixa de ser um meio. Falando, outra vez, do exemplo do crime de roubo com violência excessiva,
as ofensas têm uma gravidade tal que a pena que resulta das ofensas à integridade física grave é
superior à pena que resulta do roubo. Ora, neste caso, ter-se-ia de aplicar a pena das ofensas
corporais graves. No entanto, existe aqui uma unidade típica de lei, na medida em que o crime de
roubo já abarca as ofensas à integridade física grave – assim, se o professor Figueiredo Dias fosse
coerente, não existia um concurso efetivo nem aparente, mas sim uma relação de subsidiariedade.  
No entanto, o professor Figueiredo Dias defende um conceito de consunção mais abrangente que
esta relação de meio-fim, indo buscar um conjunto de critérios para decidir quando existe uma
relação de consunção. Considera, ainda que a relação de facto posterior não punível está abrangida
pelo conceito amplo de relação de consunção. Em última análise, haver uma relação de consunção
para ele é a mesma coisa que dizer que há concurso aparente, existindo uma pluralidade de normas
típicas aplicáveis, mas não uma pluralidade de crimes efetivamente cometidos – ora, mais uma vez,
aplica-se o critério da unidade do ilícito. Isto, porque os sentidos singulares de ilicitude típica,
presentes no comportamento global, se conexionam de tal forma que, em definitivo, se deve
concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social –
ou seja, há uma norma que domina, abarca, esgota todo o ilícito típico praticado pelo agente.
Assim, há a dominância da norma e, por isso, opta-se pelo concurso aparente quando temos:  
 Critério de crime meio ou instrumental: O ilícito surge apenas como meio de realizar o ilícito
principal. Por exemplo, se alguém, para efetuar uma burla, falsifica um documento, será apenas
punido pela burla, visto que a falsificação foi um meio para a burla – sendo que, se o crime de
falsificação for punido mais gravemente, aplica-se, dessa norma, apenas a pena (Figueiredo
Dias).
o Há, no entanto, quem defenda um concurso efetivo, devendo o agente ser punido pelos
dois.  

 Critério da unidade do desígnio criminoso: Existe uma vontade unitária dirigida à prossecução
de um determinado resultado no mundo exterior – ora, se existe esta vontade unitária, tudo o
que o agente praticar por esse desígnio será abarcado por um só crime. 

 Critério da conexão espaço temporal das realizações típicas: Uma proximidade espácio-
temporal entre as condutas do agente pode levar a uma leitura unitária do sentido do ilícito do
comportamento total. Por exemplo, se alguém praticar atos sexuais de relevo sobre a mesma
vítima, numa unidade espácio-temporal igual, será tratado como um crime (mas não
continuado), porque há esta proximidade – para combater a dificuldade de provar quando este e
acaba. 

 Critério dos diferentes estados de evolução ou de intensidade da realização global, que não
possam ser considerados unidade de lei: Existe a prática de mais do que um crime, mas a
aplicação de apenas um dos tipos esgota a apreciação do ilícito criminal realizado pelo agente. 

 Critério de unidade de sentido ilícito : Este será o critério que prevalece, dado que todos os
outros acabam por apenas ajudar a perceber se a relação, em si, existe. Assim, o que se tem de
perceber é se a aplicação de uma norma consegue avaliar todo o sentido unitário do
acontecimento ilícito global – e, para facilitar a aplicação deste critério, o professor Figueiredo
Dias cria uma série de subcritérios que podem evidenciar que a relação de consunção existe. 

4.  Facto posterior não punível


Este verifica-se quando a infração subsequente apenas se apropria ou aproveita das
utilidades de uma infração penal passada, sem que haja um novo dano que se dirija a um novo bem
jurídico. Para o professor Figueiredo Dias, ao contrário da maior parte da doutrina, tal figura não
deve ser autónoma face à relação de consunção, sendo mais um tipo da mesma (ex: alguém comete
o crime de homicídio, e depois de o cometer, oculta o cadáver – para grande parte da doutrina, não
se irá punir por homicídio e pela ocultação de cadáver, pois assume-se que o homicídio abarca
também esse facto posterior; enquanto outra parte defende esse concurso efetivo de normas). Por
fim, também existe, aqui, a possibilidade de aplicar aqui uma figura do tom generalis: o tom que o
agente tem na prática da primeira ação abarca todos os ilícitos. 

OUTRAS NOTAS:

 Existe uma grande discrepância entre os autores na distinção entre as várias relações de normas,
mas que não tem muita importância: na prática, é apenas necessário ter critérios para ver se
aquela norma, por si só, abarca a situação toda do facto ilícito. 

 Independentemente de se usar a terminologia do professor Figueiredo Dias, ou da doutrina


maioritária, importa apenas perceber quando é que a aplicação de uma norma esgota o conteúdo
ilícito do comportamento – critério do sentido ilícito. É esse o critério relevante para distinguir o
concurso aparente do concurso verdadeiro, sendo indiferente o caminho a percorrer para chegar
a tal conclusão. 

Hipóteses
1. Júlio decidiu utilizar, sem autorização do dono, o trator de um vizinho. O juiz hesita entre
punir Júlio apenas por um crime de furto (artigo 208º – furto de uso); ou em concurso efetivo
por um concurso de furto do gasóleo (artigo 203º – furto simples) – uma vez que este, por
definição, foi definitivamente consumido, sem possibilidade de devolução. Quid Iuris? 
O crime fim, que é o furto de automóvel, implica o crime meio, que é o furto do gasóleo –
ou seja, na moldura penal do crime fim, o legislador já prevê esse crime meio. Ora, punir J pelas
duas normas seria punir o mesmo crime duas vezes – pelo que está, aqui, em causa um concurso
aparente, por relação de consunção pura: o furto de uso é punido até dois anos, enquanto o furto
simples é punido até três anos. No entanto, denota-se que o que interessa será a medida concreta:
por exemplo, se fosse um camião tire, com muito gasóleo, se calhar a resposta seria diferente – na
medida em que o furto de uso teria, provavelmente, a pena máxima, ficando maior do que a pena
pelo furto simples.
 Por norma, a pena acessória está associada à pena principal. O legislador, ao estabelecer que um
determinado crime pode ver aplicada uma pena acessória; mas isso não quer dizer que o
aplicador do direito a tenha de aplicar – o juiz, face ao caso concreto, pode julgar que a sua
aplicação não é necessária. Em última análise, querer o mais favorável quer ao nível da pena
principal, quer ao nível da pena acessória, é uma consequência do princípio da necessidade da
pena. 

2. Pedro está desconfiado que Paulo lhe furtou um relógio e que o tem escondido em sua casa.
Certo dia, toca à porta da casa de Paulo e intimida-o a deixá-lo entrar, para verificar se lá se
encontra o dito relógio. Como este se recusa a deixá-lo entrar em sua casa, Pedro agride-o,
arromba a porta, e entra. O relógio não estava lá. O juiz de julgamento hesita em punir pedro
apenas pelo crime de violação de domicílio (artigo 190º) ou em concurso efetivo, pelos crimes
de ofensa à integridade física (artigo 143º) e de dano (artigo 212º). 
Aqui, existiu um crime de dano, crime de violação de domicílio e crime de ofensa à
integridade física. Ora, a priori, com uma análise superficial do caso concreto, se se quer proteger
todos os bens jurídicos violados (direito à propriedade e integridade física), ter-se-ia de punir Pedro
pelos três crimes.  
No entanto, no artigo 190º, nº3, o próprio legislador prevê um tipo de crime que abarca os
outros tipos de crime que o Paulo preencheu (crime de ofensa e crime de dano). Assim, conclui-se
que os outros tipos de crime são crimes meio para atingir o crime fim, que é a violação de
domicílio. Ora, a relação entre as normas é, por isso, de consunção – na medida em que existe,
obviamente, uma relação instrumental face ao crime fim. Consequentemente, existe um concurso
aparente com relação de consunção: a aplicação do artigo 190º, nº3 abarca todo o ilícito praticado
pelo agente, estando aqui presente o critério da unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica
do comportamento.
 Poderia, também, estar aqui presente o critério da unidade da ação típica, na medida em que o
próprio tipo reúne em si múltiplas ações.

3. Ana disparou sobre o marido com o objetivo de receber uma boa herança, só que o marido não
chegou a morrer. No entanto, ficou cego devido aos estragos provocados no cérebro pela bala.
Quid juris? 
Existe, aqui, uma tentativa de crime homicídio qualificado (artigo 132º na forma de tentativa
+ artigo 22º sobre tentativa), na medida em que se demonstra a “especial censurabilidade e
perversidade”, existindo um motivo fútil para a morte do marido. Além disso, existe, ainda, o crime
de ofensas à integridade física grave (artigo 144º). 
Ora, para o professor Figueiredo Dias, a solução correta só poderá ser concurso aparente com uma
relação de consunção. Isto porque, por um lado, ao negar o concurso de crimes, viola-se o critério
de esgotante apreciação do ilícito – porque, para além da tentativa de homicídio, existe um
resultado típico doloso não intencionado (nem todo o dolo implica intenção – ex: dolo eventual).
Mas, por outro lado, se se punir a Ana em concurso efetivo, não negando tal concurso de crimes,
estar-se-á a violar a proibição da dupla valoração: isto, porque ao nível do ilícito global, quando se
pune por tentativa de homicídio, já se está a avaliar as ofensas corporais graves. Assim, entre violar
um princípio fundamental constitucional e deixar de fora um resultado típico doloso não
intencionado, escolhe-se a segunda opção – teoria unitária. 
 O professor Luís Duarte d’Almeida defende que o problema da doutrina do Figueiredo Dias, de
deixar de parte o resultado adicional, pode ser resolvido se, na medida da pena, se tiver em
conta esse resultado típico adicional.
Há, no entanto, quem defenda a teoria da incompatibilidade: neste caso, há um concurso
efetivo, devendo o agente deve ser punido por tentativa de homicídio qualificado e ofensas
corporais graves consumadas, porque o dolo de homicídio não contém em si o dolo de ofensa – ou
seja, o conteúdo do desvalor das ofensas permanece mesmo punindo a tentativa. Assim, o crime de
homicídio não consegue esgotar o desvalor do crime de ofensa à integridade física; pelo que não
existe unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica do comportamento. 
 Esta teoria é criticável por claramente valorar duas vezes o mesmo facto, indo contra o princípio
nu bis in idem. A existência física de uma pessoa pressupõe o seu corpo, pelo que é impensável
destruir uma vida sem ser através da ofensa do seu corpo.  
Já o professor Silva Dias defende uma teoria intermédia: se o resultado das ofensas ao
marido fosse uma ofensa corporal simples, existiria um concurso aparente, dado que o dolo de
homicídio consome o dolo das ofensas, sendo estas, por isso, secundárias – assim, A seria apenas
punida por tentativa de homicídio. No entanto, sendo essas ofensas corporais graves, já existe um
concurso efetivo, dado que essas não podem ser consideradas um “estado intermédio”: o desvalor
do ilícito dessas ofensas ultrapassa o desvalor do ilícito contido na tentativa de homicídio.  
Além disso, o professor defende que punir por tentativa por homicídio qualificado e ofensas
integridade grave não põe em causa o princípio ne bis in idem, visto que os crimes desvaloram
diferentes coisas: nas ofensas, pune-se o resultado, enquanto o homicídio apenas desvalora a ação.
Por fim, o professor afasta o argumento de que a punição por concurso efetivo vai ter como
resultado uma moldura penal que ultrapassa em 4 anos e nove meses (20 anos) o limite máximo do
homicídio consumado (16 anos), defendendo que a pena aplicável, nestes casos, não dispensa o
cúmulo jurídico – na determinação da medida das penas, terá de ser averiguada a gravidade dos
factos. Ou seja, dadas as regras aplicáveis ao cúmulo jurídico, o limite máximo não seriam os 16
anos, mas sim os 20 anos.  
 A professora Paula Ribeira Faria também concorda, dizendo que existe, aqui, uma relação de
consunção: na ilicitude contida na tentativa de homicídio, está contida a ilicitude das ofensas
corporais, que é de tal forma forte que retira a autonomia às ofensas. 
Conclui-se, portanto, pela posição do professor Figueiredo Dias, defendendo-se que, ao
punir A por ambos os crimes, estar-se-ia a punir duas vezes o desvalor da ação. Assim, deve-se
apenas punir pelo crime de tentativa de homicídio qualificado, podendo assim abranger o desvalor
das ofensas à integridade física. Isto porque, ao punir por ofensa à integridade física grave, estar-se-
ia a punir tanto o desvalor da ação, como o do resultado – algo que vai contra o princípio ne bis in
idem. 

NOTA: Se, por exemplo, alguém viola outra, mas, para além de utilizar violência, fura-lhe um
olho. Tal conduta não tem carácter de conduta típica instrumental, pelo que o agente tem de ser
punido por ofensas à integridade física grave. Ou seja, o que é instrumental vê-se, principalmente,
em termos objetivos – avaliando se tal crime, em termos do habitual, é utilizado para a realização de
outro crime. Ora, se esse crime foge do que é típico, será muito difícil provarmos que tal é um meio;
saindo, assim, fora do crime fim. 

4. C deu veneno ao D com intenção de o matar. O D acabou por morrer, ao final de 2 anos, de um
sofrimento profundo, provocado pelas dores extraordinariamente intensas, provocadas pela
ingestão do veneno. Deve Carlos ser punido apenas por um homicídio qualificado consumado
ou deve ser punido em concurso efetivo pelo crime de ofensa à integridade física grave e
homicídio qualificado consumado? 
Segundo Roxin, se a punição por homicídio qualificado incluir a ofensa corporal grave,
através de uma circunstância qualificante do homicídio qualificado, C só é punido por crime de
homicídio qualificado. Este está, assim, previsto no artigo 132º como uma forma de especial
censurabilidade – sendo que a ofensa corporal pode ser abarcada por uma circunstância qualificante
do homicídio qualificado. Ou seja, se o resultado morte foi alcançado com uma ofensa corporal
grave, e essa ofensa puder ser abarcada pelas circunstâncias qualificantes do homicídio, o agente
deve ser punido por um só crime – o homicídio qualificado. Se, pelo contrário, o resultado não
puder ser abarcado numa circunstância qualificante, aí a ofensa corporal grave assume um desvalor
autónomo e, consequentemente, já existirá um concurso efetivo. 
 O nº1 do artigo 132º abarca todas as circunstâncias qualificantes do homicídio qualificado. 
Há quem diga que existe, aqui, uma relação de subsidiariedade, dado que as ofensas são um
estado prévio em relação ao crime de homicídio qualificado; mas a professora acha que seria mais
de consunção. No entanto, em última análise, o que interessa é dizer que existe um concurso
aparente, porque a avaliação enquanto homicídio qualificado abarca todo o ilícito criminal praticado
pelo agente. Se se punir o agente por ambos os crimes, estar-se-ia a punir o agente duas vezes pelo
mesmo facto – violação do princípio ne bis in idem. 

Acórdãos
Acórdão n.º 303/05 do TC:
Ver documento.

Acórdão n.º 566/04 do TC:


Ver documento.

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