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O sistema de apoio judiciário é justo?

Neste trabalho, irei apresentar brevemente o sistema de apoio judiciário português e as


suas principais falhas, de forma a tentar perceber se o mesmo pode ser, ou não,
considerado justo.

1. O que é o sistema de apoio judiciário?

1.1. Breve enquadramento do conceito:


O sistema de apoio judiciário, regulado na Lei nº34/2004, enquadra-se no
Direito de Acesso ao Direito e aos Tribunais, segundo o qual ninguém pode ser
impedido, devido à sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios
económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos. Este, por sua
vez, constitui no Estado um dever de promover a sua efetivação – nomeadamente,
através do sistema de proteção jurídica.

1.2. Princípio da proibição de denegação da justiça por entraves económicos:


Apesar de ser um direito fundamental, a nossa Constituição não impõe a
gratuitidade da justiça, como impõe, por exemplo, no direito à saúde ou à educação. Isto
significa que o legislador pode exigir que o cidadão pague para aceder aos tribunais,
através das chamadas custas da justiça. Estas podem ser de três tipos: taxas de justiça,
encargos, e custas de parte – realçando-se, nestas últimas, os honorários dos
representantes jurídicos (ou seja, os advogados).
No entanto, a quantia desse pagamento tem limites, impostos pelo princípio da
proibição de denegação da justiça por entraves económicos. Tal garantia exige, por um
lado, que as despesas com a justiça não sejam incomportáveis para o “cidadão médio”,
ao ponto de que apenas os mais ricos possam aceder à mesma; e, por outro, que seja
previsto um regime de apoio aos cidadãos em situação abaixo desse “cidadão médio” –
nomeadamente, o regime de apoio judiciário.

2. Falhas do regime atual

2.1. Falhas a nível do procedimento:


O apoio judiciário pode ser concedido a todas as pessoas singulares e coletivas
descritas no artigo 7º da Lei nº34/2004 que demonstrem estar em situação de
insuficiência económica – caracterizada, nos termos do artigo 8º, como não tendo
“condições objetivas para suportar pontualmente os custos de um processo”. Tal
demonstração será feita mediante a apresentação de documentos, referidos nos artigos
mencionados da Portaria n.º 1085-A/2004.
Na prática, o critério de avaliação da “insuficiência económica” é aferido pela
aplicação objetiva de fórmulas matemáticas aos rendimentos, patrimónios e despesas do
agregado familiar do requerente, de forma a descobrir qual o seu rendimento médio
mensal. Será, assim, sobre este rendimento médio que se avaliará se o requerente tem as
condições objetivas mencionadas – condições, essas, determinadas segundo o indexante
de apoios sociais.
Tal método, apesar de trazer segurança e confiança jurídicas ao processo, peca
por ser demasiado rígido, não levando em conta a realidade social que envolve o
requerente. Um exemplo disto é o facto de as despesas tomadas em conta são apenas as
relacionadas com alimentação, vestuário, higiene e habitação, deixando de parte
despesas importantes como a saúde e a educação. Tal rigidez negativa é ainda mais
acentuada pelo facto de a decisão sobre a concessão do apoio judiciário ser da
competência do dirigente máximo dos serviços de segurança social da área de residência
do requerente, e não do poder judicial, como era anteriormente – o que faz com que a
decisão de concessão seja feita, ainda mais, quase de forma automática, sem ter em
conta todo o caso em questão.
Tudo isto faz com que este regime acabe por funcionar apenas “para os mais
pobres dos mais pobres da sociedade”, impondo limites demasiado baixos para
classificar uma situação de insuficiência económica. Sendo Portugal um dos países do
Conselho da Europa com as taxas de justiça mais altas, tais limites rígidos deixam de
lado pessoas que, não tendo rendimentos suficientes para aceder a este apoio, também
não conseguem custear por si mesmo o acesso à justiça, restringindo o seu direito de
acesso a tribunal precisamente na base de insuficiência de meios económicos.
Um exemplo desta falha é o caso na base do acórdão do TC nº 278/2022, onde a
requerente foi considerada como não tendo rendimentos baixos o suficiente para obter a
dispensa de pagamento das custas judiciais – tendo-lhe sido dado o “benefício” de as
pagar na forma de prestação mensal, que reduzia o seu rendimento mensal para um
valor inferior ao do salário mínimo nacional.

2.2. Falhas a nível do patrocínio jurídico:


Dentro do apoio judiciário, na modalidade de patrocínio judiciário, a maneira
como os profissionais jurídicos são tratados também influencia, de forma indireta, os
beneficiários. Estes são, atualmente, fracamente remunerados – recebendo cerca de 389
euros por cada apoio –, quando comparados com os seus colegas não inscritos no
sistema, cujo salário médio, em 2021, rondava os 2.110 euros.
Tais discrepâncias, assim como os atrasos nos pagamentos desses honorários,
levam a que muitos profissionais não queiram fazer parte do sistema. Isto não só
prejudica a sua sustentabilidade, como também afeta a própria qualidade do mesmo:
desgastando os profissionais ativos, que deixam de ter motivação para desempenhar as
suas funções ao mais alto nível.

2.3. Falhas a nível da efetividade do benefício:


Denota-se que mesmo ganhando o requerente o “benefício”, este pode, em certas
situações, acabar por ser-lhe prejudicial. Por exemplo, na modalidade de apoio
judiciário de pagamento faseado, o requerente poderá ficar obrigado a uma prestação
mensal de 160 euros até que 1) o valor pago no total for superior a quatro vezes o valor
da taxa de justiça inicial; ou, caso ainda forem devidas custas, 2) passem 4 anos desde a
decisão final da causa em que o requerente participou. Ora, o primeiro limite implica
que o beneficiário acabe por pagar mais de taxa de justiça – uma das partes mais
expressivas das custas judiciais – do que a sua contraparte não beneficiante; enquanto
que o segundo implica uma despesa ainda pesada e recorrente no rendimento já fraco do
mesmo.
Esta situação será ainda mais instável se percebermos que tal “benefício” poderá,
durante esses 4 anos, ser-lhe retirado assim que se note qualquer incremento no seu
rendimento mensal que ultrapasse o limite pelas fórmulas matemáticas anteriormente
falado. Tal aconteceu no caso-base do Acórdão do TC nº 582/2014, em que um casal
perdeu o seu benefício por ter ganho a ação a que se propôs e, consequentemente, ter
recebido uma indemnização por danos não patrimoniais recorrentes da morte do filho.

3. Conclusão
Dado todas estas falhas descritas, conclui-se que o atual sistema de apoio
judiciário não é, de todo, justo: este apenas abrange um pequeno grupo de pessoas,
podendo ser retirado por ligeiros incrementos de rendimento não proporcionais com as
custas que se pedem; e oferece uma fraca qualidade de serviço judicial, com advogados
cansados e mal pagos.
Será necessário, então, fazer uma reforma total a este sistema, de forma a
assegurar a eficácia o direito fundamental de acesso aos tribunais. Notam-se os
primeiros passos para isso, com a desburocratização do requerimento de concessão já
em Março; mas mais precisará de ser feito, nomeadamente estabelecer padrões mínimos
de preço e qualidade para os advogados inscritos, atualizar os limites classificadores de
uma situação de “insuficiência económica” e flexibilizar os critérios para a apreciação
da mesma.

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