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TEORIA DO PROCESSO PENAL

INTRODUÇÃO
O que é o Direito Processual Penal?
O Direito Processual Penal e Direito Penal:
O Direito Processo Penal é um conjunto de normas que regulam a aplicação do direito penal
aos casos concretos – ou seja, que regulam o processo que conduz à aplicação de sanções criminais
aos agentes de infrações criminais. É, assim, um direito que serve o Direito Penal, esse substantivo,
ou seja, que detém os crimes pelos quais as pessoas serão julgadas.
Tal é necessário, devido à existência do princípio da judicialidade do processo: ninguém,
pode ser condenado pela prática de um crime, sem ser no âmbito de um processo penal, com
intervenção de um juiz (artigos 27º, nº2 e 32º, nº4 CRP). Assim, embora existam situações que serão
resolvidas independentemente de julgamento – nomeadamente, que o Ministério Público ache serem
possíveis resolver numa fase preliminar –, estas continuam, na mesma, a depender da intervenção do
juiz, nem que seja apenas para fins de homologação: isto, porque esta fase preliminar não é um
arquivamento do caso, mas representa sim uma afirmação da responsabilidade do agente, pelo que há
sempre a exigência de que essa responsabilidade conte com a intervenção de um juiz.
Concluindo, a relação entre o Processo Penal e o Direito Penal é, de acordo com a doutrina,
caracterizada por:
➔ Instrumentalidade: O Processo Penal é o instrumento através do qual se aplica o Direito Penal
– sem Processo Penal, o Direito Penal não se aplica (diferentemente do que acontece com o
processo civil).

➔ Complementaridade: Não obstante a instrumentalidade do Processo Penal, a verdade é que, por


vezes, existem questões de Processo Penal que condicionam a construção de algumas normas de
direito substantivo – por exemplo, o facto de se verificar dificuldades em fazer prova de certas
circunstâncias pode fazer com que a norma penal que prevê a conduta típica não preveja, para
esta, que tal requisito se tenha de preencher para existir um crime (ex: “interesse patrimonial”).
A situação vice-versa, do Direito Penal influenciar o Processo Penal, também pode acontecer –
por exemplo, devido à existência do princípio da culpa, não se poderá fazer com que, em âmbito
de processo, o juiz possa condenar o arguido em caso de dúvida (razoável).

➔ Autonomia: O próprio processo penal tem determinadas garantias; assim, e apesar de em última
análise se desembocar sempre no princípio da culpa, temos outras regras que são específicas do
processo penal (ex: direitos de defesa, questões de celeridade).

O Direito Processual Penal e o Direito Processual Civil:


Primeiramente, a relação que o Processo Penal tem com o seu direito substantivo é diferente
daquilo que o Processo Civil tem: enquanto o direito civil vive independentemente dos tribunais,
sendo que as relações de natureza civil estabelecidas produzem os seus efeitos jurídicos, na maior
parte dos casos, independentemente do recurso a tribunal; o direito processual penal é essencial para
a concretização do direito penal.
Ou seja, e embora existam litígios de direito civil, que também terão de ser resolvidos em tribunais
segundo o processo civil, a verdade é que essa dimensão é menor, existindo até situações em que
certos efeitos que se produzem na esfera jurídica de uma pessoa, independentemente da sua vontade,
sem recurso aos tribunais – ex: direitos potestativos.
Os litígios judiciais existentes são, assim, na sua maioria, de direito penal. Isto, porque a própria
aplicação de uma pena pela prática de um crime, depois deste ser julgado, implica uma relação de
litígio entre o Estado e o arguido, que está a ser sujeito a tribunal (podendo também existir, contudo,
mediação penal). Ora, como uma parte substancial do direito penal envolve aplicar sanções, acaba
por haver essa dominância – realçando-se, aqui, os casos dos crimes semipúblicos e particulares, que
só avançam se as pessoas com competência para tal apresentarem queixa: não o fazendo, o processo
não segue, e não é aplicada nenhuma sanção, dado que esta terá de ser aplicada pelos tribunais.
No entanto, apesar de estes ramos terem uma função diferente, e de se relacionarem com
direito substantivos distintos, são ambos conjuntos de normas de natureza processuais, que regulam
a intervenção dos tribunais – tendo o CPC tem um acervo de normas muito superior ao CPP. Assim,
existindo situações processuais que não estão reguladas no CPP, tal lacuna será integrada através do
artigo 4º CPP, nomeadamente: 1) aplicação das normas do CPP por analogia; 2) aplicação das normas
do CPC por analogia, apenas na medida em que estas se harmonizam com o processo penal e os seus
princípios (tendo este, assim, uma função subsidiária); e, caso nada resulte, 3) aplicação dos
princípios gerais do processo penal.
➔ Uma lacuna é um aspeto que, apesar de não estar previsto, o deveria estar, na medida em que é
necessário saber como aquela questão se resolve juridicamente – isto, porque há circunstâncias
processuais que não estão reguladas; mas que também não é necessário o estarem.

Os Vetores de Modelação do Processo Penal


Existe, também, uma dimensão do Processo Penal que é própria e específica do mesmo,
nomeadamente a influência que a política tem neste ramo de direito – e que é mais proeminente do
que nos outros ramos. Ou seja, a maneira como o Direito Processual Penal é estruturado resulta
daquilo que são as conceções do país sobre o que é um “Estado de Direito”: este é um “sismógrafo”
do sistema político, refletindo as opções políticas, de organização do Estado e as conceções sobre os
direitos humanos que têm expressão na Constituição.
Daí que, em Portugal, exista a proibição de penas de prisão perpétuas, de morte ou de castração
química, dado estas irem contra alguns direitos fundamentais atribuídos constitucionalmente aos
cidadãos portugueses, de forma desproporcional ao interesse do Estado de fazer cumprir a lei –
nomeadamente, o direito à liberdade (artigo 27º CRP), o direito ao bom nome, reputação e capacidade
civil (artigo 26º CRP), e o direito à vida (artigo 24º CRP).
Assim, a aplicação de sanções criminais implica uma compressão (em alguns casos, até, uma
eliminação) dos direitos fundamentais das pessoas. Tal compressão só será legitimada pelo
desempenho de uma função essencial do Estado, que é a de garantir a segurança das pessoas – mas
só será legitimada se for prosseguida na medida do necessário, existindo um equilíbrio dos direitos
fundamentais tanto do ofendido, como do próprio arguido.
Esse equilíbrio será, então, feito pelo Processo Penal, através da aplicação de um teste de
proporcionalidade no seu sentido amplo (artigo 18º CRP), a que também se chama princípio da
proibição do excesso. Portanto, por um lado, quer-se assegurar a segurança das pessoas, através da
criminalização de algumas condutas dos sujeitos; mas, por outro, tal criminalização não poderá ser
feita em termos diferentes dos determinados no artigo 18º, nº2 CRP – ou seja, a concretização desse
objetivo de segurança não poderá ser feita à custa da restrição desnecessária dos direitos fundamentais
das outras pessoas. Reflexos disto são o facto de, por exemplo, os suspeitos de terrorismo estão
limitados às comunicações que podem fazer, devido à gravidade do crime de que são acusados; mas
também será a existência do princípio in dúbio pro reo – em caso de dúvida razoável, o juiz deverá
absolver o arguido –, visto que a sociedade prefere acomodar o risco de absolver um culpado, para
reduzir, ao mínimo, o risco de condenar um inocente.
Concluindo, o respeito pelos direitos fundamentais, de um lado, e a necessidade de garantir a
segurança, por outro, são os dois vetores da definição das regras do processo penal.
➔ Denotar, no entanto, que este equilíbrio entre a eficácia da repressão sancionatória e o respeito
pelos direitos dos cidadãos terá de ser bem feita, não podendo pender excessivamente para um
lado, nem para o outro. Isto porque a ineficácia do processo penal pode, também, conduzir a
situações de risco para a segurança da vida em sociedade – como é o caso da justiça pelas próprias
mãos (se se absolver demasiadas pessoas por qualquer dúvida inexistente).

Visionamento do excerto do filme “Doze homens em Fúria”:


No excerto visionado, expõe-se o ordenamento jurídico americano quanto ao tribunal de júri:
os jurados tinham de chegar a um resultado unânime – no sentido de se tiverem alguma dúvida, estes
teriam de absolver o arguido; caso contrário, teriam de votar pela condenação. No fundo, os jurados
decidem acerca da verificação dos factos: fazem uma apreciação sobre se o crime foi cometido, com
todas as suas dimensões. No entanto, é o juiz que aplica a pena; mas, naquele caso, se fosse votada a
condenação e, implicitamente, a pena de morte (existindo uma pena obrigatória, que viola o nosso
princípio de culpa), o juiz não poderia fugir de aplicar a mesma.
Ora, aqui, existe claramente a manifestação do princípio de presunção de inocência. Este exprime
a ideia de que a função do Estado de garantir a segurança das pessoas não pode ser prosseguida de
uma forma que desvirtue o seu próprio fim, que é o de condenar as pessoas (e apenas as pessoas) que
praticam crimes. O respeito pelo princípio da presunção de inocência garante (maioritariamente) que
todos os condenados são culpados; mas não garante que todos os culpados são condenados – assim,
para se garantir que nenhum inocente é condenado, há que admitir que alguns culpados serão
absolvidos. Essa é a opção política escolhida tanto nos USA, como em Portugal.
Além disso, também em Portugal é possível existir um tribunal de júri, nos termos dos
artigos 13º CPP e 207º CRP. Segundo tal artigo, a este compete “julgar os processos”: significa isto,
então, que o tribunal não só toma a decisão inocente/culpado, como determina a sentença, julgando,
efetivamente, o caso concreto (ao contrário do que se viu no filme). O júri chega a tal deliberação por
maioria simples dos votos, e não por maioria unânime (ao contrário do que se viu no filme), nos
termos do artigo 365º, nº5 CPP.
O resto do regime está regulado no Decreto-Lei 387º-A/87: o júri será composto por 4 não juristas
(“pessoais normais”) e 3 juízes, implicando uma composição mista do mesmo – isto, porque os não
juristas poderão trazer uma perspetiva mais social da prática dos factos; mas, existindo questões
técnicas, os juízes poderão ajudar. Entre nós o tribunal de júri é recrutado nas freguesias: ou seja, as
pessoas são recrutadas nas freguesias que pertencem ao tribunal em que o arguido é julgado. O facto
de as pessoas serem da mesma zona faz com que tenham familiaridade com o caso, o que tem
vantagens e desvantagens.
O DIREITO A UM PROCESSO JUSTO E EQUITATIVO
Garantias do Processo Penal: Instrumentos Internacionais e de Direito Comunitário
Além do artigo 8º CRP, existem vários instrumentos internacionais de onde resulta esta ideia
de um direito a um processo justo e equitativo, tais como: a Declaração Universal do Direitos
Humanos (artigos 9º, 10º e 11º); o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigos 9º e
14º); e a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades
Fundamentais (artigos 3º, 5º e 6º).
Este direito – também chamado de direito a um fair trial – implica várias garantias, especialmente
para o arguido, nomeadamente:
➔ O acesso, por parte do arguido, a informação acerca dos motivos da Acusação: visto que, a partir
do momento em que é feita a acusação, o arguido não pode ser surpreendido com factos
posteriores, para os quais não preparou a sua defesa – estabilidade do objeto do processo.
o Isto é a base essencial do exercício do direito de defesa: o arguido só se pode defender se,
antes de tudo, souber 1) que está a ser acusado; e 2) daquilo que está a ser acusado – direito
de informação.

o Os factos na acusação são os únicos factos com que se pode contar; no entanto, é possível
que seja requerida a abertura de instrução, com o objetivo de enquadrar novos factos na
acusação feita ao arguido. Além disso, na fase do julgamento, há algumas alterações que
podem ser tomadas em conta, desde que não alterem substancialmente a acusação feita, e
sempre de acordo com o princípio do contraditório.
➔ Um procedimento legal e com um juiz imparcial, sem influências externas na formação do juízo;
➔ A existência de um direito a recurso;
➔ A existência de um direito a ser assistido por advogado;
➔ A existência de um direito a intérprete;
➔ A aplicação do princípio da presunção de inocência.

Existem, ainda, várias diretivas da UE sobre as garantias do processo criminal,


nomeadamente: 2016/343, de 9 de março, relativa à presunção de inocência e direito de comparecer
em julgamento; 2013/48/EU, de 22 de outubro, relativa ao direito de acesso a um advogado e direito
de comunicar com terceiros, numa situação de privação de liberdade; 2012/13/EU, de 22 de maio,
relativa ao direito à informação; 2010/64/EU, de 20 de Outubro, relativa ao direito à interpretação e
tradução; 2016/1919, de 26 de outubro, relativa ao apoio judiciário; e 2016/800, de 11 de maio,
relativa às garantias processuais para os menores suspeitos ou arguidos.

As caixas de vidro nos tribunais franceses:


Por alturas de 2017, em França, decidiu-se equipar os tribunais com caixas de vidro, a ser
utilizadas em todos os processos penais, como o sítio dos arguidos no tribunal. Ora, o provedor
francês decidiu (caso nº 2018-128), que tal instalação sistemática, sem fundamento em especiais
razões de segurança, violava a CEDH, afetando os direitos do arguido de forma desproporcionada –
nomeadamente, o artigo 6º, relativo ao direito de defesa – por dificultar a comunicação dos arguidos
com os advogados (que apenas poderiam comunicar com o mesmo por meio de microfone) – e ao
princípio da presunção de inocência – por fazer com que existisse, antes da decisão de condenação,
uma possível perceção de culpabilidade da pessoa assim apresentada ao tribunal (na medida em que,
socialmente, parece que se está a “condenar” o arguido a estar “preso”, antes do mesmo ser condenado
a isso). O artigo 3º, relativo ao tratamento degradante, também foi considerado como violado.
Estas caixas de vidro, no entanto, poderão ser consideradas benéficas nos casos em que os
arguidos são mais perigosos: assim, o que se censura no caso francês, não é a sua existência; mas sim
a maneira como eram utilizadas sem critérios, para todos os casos – e não porque se estava a tentar
proteger todas as outras pessoas que assistiam ao julgamento, ou para impedir que o arguido fugisse.

A este propósito, Diretiva (UE) 2016/343:

Considerando 20: «As autoridades competentes deverão abster-se de apresentar o suspeito ou o arguido como
culpado, em tribunal ou em público, através da utilização de medidas de coação física - como algemas, caixas de
vidro, gaiolas e imobilizadores da perna -, a menos que a utilização de tais medidas seja necessária por razões
específicas - quer relacionadas com a segurança (…), quer para impedir os suspeitos ou os arguidos de fugir ou de
ter contacto com terceiros, como testemunhas ou vítimas.»

Artigo 5.º, n.º 1: «Os Estados-Membros tomam as medidas adequadas para assegurar que o suspeito ou o arguido
não são apresentados como culpados, em tribunal ou em público, através da utilização de medidas de coerção
física.»

Em Portugal, a regra é a de os arguidos assistirem ao julgamento livres na sua pessoa, sendo


até as algemas retiradas no momento do mesmo (Artigo 325º CPP). No entanto, a questão da
comunicação com a defesa não é tão assegurada, na medida em que o arguido (de frente ao juiz) está
relativamente longe da defesa (de lado ao juiz) – o que faz com que a crítica da comunicação por
microfone, sem privacidade, seja discutível.

Casos Yarolav Belousov v. Russia (2016) e Kavkazskiy v. Russia (2017):


Nestes casos, os requerentes foram julgados por perturbação da ordem pública, na sequência
da sua participação numa manifestação política na Praça Bolotnaya em Moscovo, em maio de 2012,
onde houve confrontos com a polícia. Durante os dois primeiros meses de audiências, os requerentes
e oito outros arguidos foram confinados numa cabine de vidro muito apertada. As audiências
subsequentes foram realizadas numa sala de tribunal diferente, equipada com duas cabines de vidro,
com mais espaço. Em ambas as salas, o confinamento na cabine dificultava a comunicação
confidencial com o advogado, porque era feita através de microfone.
Aqui, a primeira abordagem que o TDHE faz é que o artigo 3º CEDH, relativo ao tratamento
degradante, se encontra violado quanto à primeira cabine de vidro (“muito apertada”), mas não quanto
à segunda cabine (“com mais espaço”). Depois, e já numa posição final, este conclui também pela
violação do artigo 6º, nº1 e 3, alíneas b) e c) CEDH: atendendo à importância dos direitos de defesa,
quaisquer medidas que restrinjam a participação na audiência dos arguidos ou imponham limitações
à sua comunicação com os advogados só deve ser imposta na medida do necessário, devendo ser
proporcionado aos riscos específicos do caso – proporcionalidade essa que não estava a ser respeitada.
Processo Penal e Constituição
A Constituição é fonte de direito processual penal, existindo várias normas constitucionais
que constituem limites não só à aplicação da lei processual penal – dado estar tem de ter em
consideração os direitos fundamentais (ex: no caso das cabines de vidro, o princípio da
proporcionalidade ditará quando é que estas podem ser utilizadas, no âmbito do artigo 325º CPP) –;
mas também à liberdade de conformação legislativa – não podendo o legislador definir como crime
ou pena algo contrário à constituição (ex: no caso das cabines de vidro, o princípio da
proporcionalidade dita que estas não podem ser feitas obrigatórias).
Assim, no âmbito da CRP, alguns dos artigos que constituem tais limites para o processo penal são:
➔ Artigo 25º, relativo à integridade física e moral das pessoas:
o Por um lado, tal artigo proíbe ações como a utilização de tortura e humilhações (nº2). Por
outro lado, tem reflexos nos métodos interrogatórios mais ténues: limita, por exemplo, a
duração dos interrogatórios, visto que um prolongamento de um interrogatório é cansativo
para o arguido, podendo este enganar-se no seu depoimento por causa disso.

➔ Artigo 27º, relativo ao direito à liberdade e segurança:


o Este artigo prevê os casos em que as pessoas podem ser limitadas. Assim, ninguém pode ser
privado da sua liberdade, a não ser em razão de sentenças judiciais condenatórias – exceto na
possibilidade de prisão preventiva (que é utilizada só em caso de necessidade, levando em
conta não só a gravidade do crime como a existência de perigo de fuga – artigos 202º e 204º
CPP). Mesmo em relação às medidas de caução, o juiz deve proferir sempre a medida menos
gravosa que permita realizar os objetivos, mediante um juízo de proporcionalidade.
▪ Nº3, alíneas a), b), c), f) e g): Detenção, em flagrante delito e fora dele.
▪ Nº4: Dever de informação das razões de privação da liberdade.
▪ Nº5: Dever de indemnizar o lesado por privações da liberdade contra o disposto na CRP
e na lei.

➔ Artigo 28º, relativo à prisão preventiva:


o Para que esta seja ordenada, a apresentação do detido ao juiz terá de ser feita no prazo máximo
de 48 horas (nº1), tendo a prisão preventiva natureza excecional, que deverá estar sujeita aos
prazos estabelecidos na lei (nº 2 e 4). Deve, ao arguido, ser comunicada a decisão judicial
que ordene ou mantenha uma medida de privação da liberdade (nº3).

➔ Artigo 29º, relativo à aplicação da lei criminal:


o Este artigo aplica-se, em primeira linha, ao próprio direito penal substantivo: ninguém pode
ser punido sem lei anterior. Portanto, não é um artigo que normalmente é chamado para o
processo penal – sendo, geralmente, o artigo 219º CRP que é aplicado.

o No entanto, este artigo já foi, de facto, aplicado no Processo Penal, nomeadamente no acórdão
324/2013: segundo o TC, o 29º deve ser aplicado quanto à proibição de analogia, no caso de
aplicação de normas processuais desfavoráveis ao arguido (ex: quando uma norma é aplicada
analogicamente para negar recurso a um arguido para o STJ) – contudo, tal interpretação foi
feita uma ou duas vezes, não existindo muito esse reflexo a nível geral na jurisprudência.
▪ De notar, no entanto, que as restantes normas processuais são de aplicação imediata, ao
contrário do direito penal substantivo: se se cometer um crime hoje, e o CPP for alterado
passado uma semana, será esse novo CPP que será aplicado, e não aquele em vigência
no momento do crime. Por isso, será uma posição que se justifica no caso acima; mas
que não se aplicará a todos os casos do artigo 29º CRP.

➔ Artigo 30º, relativo aos limites às penas e às medidas de segurança:


o São proibidas penas perpétuas ou de duração indefinida (ex: condenado a uma certa moldura
penal – EUA): os arguidos terão de ser condenados com uma pena concreta e definida.

➔ Artigo 31º, relativo ao habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal.

➔ Artigo 32º, relativo às garantias do processo criminal:


o Verifica-se, com estas, um aumento dos princípios constitucionais do processo penal, que se
traduz num alargamento do direito constitucional processual penal – o que implica um maior
número de “questões de inconstitucionalidade” referentes a normas criminais.
o Nº1: Direito ao recurso enquanto garantia de defesa; enquanto o nº10 deste artigo fala dos
processos de contraordenação – existindo uma discussão sobre se nestes processos se aplicam
as mesmas garantias aplicadas no processo criminal.
o Nº2: Presunção de inocência, devendo ser o arguido julgado no mais curto prazo compatível
com as garantias de defesa.
o Nº3: Direito de escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os atos do processo, sem
prejuízo de a lei dever prever casos e fases em que a assistência é obrigatória.

o Nº4: Competência reservada do juiz para a instrução e para a prática dos atos instrutórios que
se prendam diretamente com os direitos fundamentais.
o Nº5: Submissão da audiência de julgamento e dos atos instrutórios que a lei determinar ao
princípio do contraditório.
o Nº7: Direito de intervenção no processo por parte do ofendido.
o Nº8: Cominação da nulidade das provas obtidas mediante tortura.
o Nº9: Princípio do juiz natural

➔ Artigo 34º, relativo à inviolabilidade do domicílio, da correspondência e das telecomunicações:


o Segundo este, a entrada no domicílio e a obtenção de correspondência ou escutas com provas
só poderá ser ordenada pelos tribunais, de forma prevista da lei. Assim, quando está em causa
a obtenção de prova que envolve a compressão dos direitos fundamentais, normalmente faz-
se a exigência de que essa prova tenha uma intervenção judicial – ou seja, do juiz (e não
judiciária, que se refere quer a juiz quer a Ministério Público) –; assim como se exige que a
lei preveja as condições em que a prova pode ser recolhida.

➔ Artigo 165º, nº1, alínea c), relativo à reserva de competência legislativa:


o Existe uma reserva relativa de competência legislativa para a AR na definição dos crimes e
da matéria penal – podendo o Governo, apenas mediante autorização da mesma, legislar sobre
a matéria. Já não se inclui, nesta reserva, a matéria das contraordenações, sendo esta de
matéria concorrente: as alterações podem ser feitas livremente pelo Governo sem
autorização, desde que se mantenha dentro do regime geral (ex: o Governo não pode prever
mais coimas do que aquelas já previstas).
▪ Isto, porque há uma diferença entre as consequências das contraordenações e as
consequências dos crimes, na medida em que as últimas são mais lesivas para os direitos
fundamentais, restringindo-os.

➔ Artigo 203º, relativo à independência dos tribunais:


o Na CRP, consagra-se, além disso, o estatuto e as funções do juiz, juntamente com os artigos
202º, nº1 e 2, 215º e 216º. Relativamente à independência, tal ideia tem expressão no CPP,
através de regras de impedimento, que impedem o juiz de julgar em certas situações (ex:
quando este tem uma relação prévia com um dos sujeitos; ou quando tem interesses
patrimoniais na causa do litígio).
▪ Houve uma alteração recente no CPP, relativamente ao artigo 40º, que inverte a alteração
feita em 2021: não pode participar em julgamento o juiz que tenha tido uma intervenção
no processo, em que tenha presidido a debate instrutório (alínea b).

➔ Artigo 205º, relativo à fundamentação das decisões:


o A fundamentação das decisões é essencial para que o arguido consiga exercer o seu direito
de recurso – ou seja, para saber do que poderá recorrer. Não basta, então, que este direito
exista em abstrato; é preciso existirem outras regras instrumentais, que lhe deem substância.

➔ Artigo 206º, relativo à publicidade das audiências (por regra, embora ajam algumas exceções)

➔ Artigo 207º, relativo ao júri.

➔ Artigos 219º e seguintes, relativos ao estatuto do Ministério Público e exercício da ação penal:
o O estatuto do Ministério Público é uma norma bastante importante do processo penal, onde
se atribui a este a titularidade da ação penal, orientada pelo princípio da legalidade: é este que
dirige o inquérito, e não o juiz de instrução. No entanto, denota-se que, caso o Ministério
Público precise de recolher prova intensa, terá de pedir autorização ao juiz – este tem de
intervir para garantir os direitos fundamentais do arguido, mas não se afigura como um
investigador: há separação de poderes.
▪ Pode-se discutir, aqui, se esta “orientação pelo princípio da legalidade” implica que não
possa haver nenhuma margem de discricionariedade ou oportunidade no processo penal.

Concluindo, o direito processual penal é dos direitos mais influenciados pela CRP, porque é um
direito que tem a ver com a perspetiva que cada Estado tem dos direitos fundamentais – ou
seja, com as opções políticas ditadas na sua Constituição.

O MODELO PROCESSUAL PENAL PORTUGUÊS


Modelos de referência
O modelo tradicionalmente referido é o modelo inquisitório, que é caracterizado pela
concentração, numa só entidade, o poder de investigar, acusar e julgar – sendo isto criticado na
medida em que ameaça a garantia de imparcialidade do julgador (constitucionalmente consagrada em
Portugal). Além disso, neste, o processo penal é secreto e não contraditório: ou seja, o arguido, não
tendo acesso aos elementos do processo, não se pode defender – sendo considerado um mero objeto
do processo, e não um sujeito do mesmo. É, ainda, um modelo que visa a descoberta da verdade
material (assim como qualquer outro modelo de estrutura do processo penal), devendo esta ser obtida
a qualquer custo e sem respeito pelos direitos fundamentais.
Já o modelo acusatório é o contraponto do modelo inquisitório. Neste, existe um princípio
de separação dos poderes de quem acusa e de quem julga, tendo estes de ser atribuídos a duas
entidades diferentes. Além disso, este modelo, na sua forma pura, é um processo de partes, em que
há uma paridade entre a acusação e a defesa: ou seja, tanto o arguido como o assistente estão em
igualdade. O juiz intervém, aqui, como um juiz-árbitro: apenas controla a legalidade da atuação das
partes, mas não toma, por exemplo, a iniciativa de impedir que certas perguntas sejam feitas – quem
se objeta às mesmas é a outra parte.
➔ Entre nós, não existe um modelo acusatório puro, como existe nos EUA: em Portugal, o juiz dirige
a audiência e inclusive faz perguntas, não se remetendo exclusivamente ao papel de juiz-árbitro.
Diferente do que acontece no processo civil, o princípio do contraditório, no processo penal, não se
afigura como um ónus de impugnar: aqui, o princípio apenas confere um direito de contradizer, e não
um ónus de contradizer, na medida em que, caso a parte não o faça, o juiz dará os factos não
impugnados como provados – consequência negativa desse ónus. Claro está, no entanto, que se a
parte não disser nada contra provas fortes, apresentadas pelo Ministério Público, o juiz irá concluir
pela sua veracidade e, consequentemente, condenar o arguido – mas tal condenação não se deve a
qualquer ónus desta natureza; deve-se, sim, à análise autónoma das provas existentes, baseando a sua
decisão nas mesmas e na sua solidez.
➔ O facto do arguido se cingir ao silêncio não pode contribuir sozinho para a sua condenação, na
medida em que o juiz não o pode condenar apenas porque este não se defende.
Significa isto que, no modelo acusatório puro, a verdade a que se chega é de natureza processual: ou
seja, o juiz não faz investigações autónomas, chegando à verdade que as partes lhe trazem e que
produziram – não podendo este tomar a iniciativa de requerer mais prova ou fazer mais perguntas (ou
seja, o juiz não tem poder inquisitório). O arguido é, assim, um sujeito processual, e não objeto.

O Código de Processo Penal de 1987


Antecedentes – CPP de 1929 e Decreto de 1945:
O Código de Processo Penal (CPP) de 1987 teve como antecedentes o Código de 1929. Neste,
a instrução compreendia o conjunto de diligências destinadas a investigar o crime. Esta era da
competência do juiz, não havendo um impedimento de que este fosse o mesmo do julgamento – assim,
o Ministério Público previa as diligências da acusação, mas não as da instrução, que já seriam feitas
pelo juiz. Não havia, assim, uma separação entre quem acusa e quem investiga: a acumulação das
duas atividades (investigação e julgamento) na competência do juiz, com a subalternização ou
redução a puro formalismo da atuação do Ministério Público, representava então um regresso a um
tipo de processo inquisitório.
Na sequência desta crítica, em 1945, começou-se a falar da necessidade de se mudar tal
previsão – desembocando isto no Decreto nº 35/007, de 1945. Este, no seu preâmbulo, descreve que
no processo penal, há que distinguir duas fases cuja confusão é perniciosa e às quais correspondem
duas atividades diversas na sua natureza: a acusação e o julgamento.
“O juiz, presentemente, é ao mesmo tempo, além de julgador, acusador público, substituindo-se nessa
função ao Ministério Público, e órgão da polícia judiciária, enquanto dirige a recolha das provas da
infração destinadas a fundamentar a acusação. Prescindindo do faco de ser difícil desempenhar
satisfatoriamente funções, pelo menos, parcialmente, antagónicas, é ainda de considerar que desta
sorte se desvirtua a função judicial”.
Consequentemente, com este Decreto, a instrução preparatória passou a estar a cargo do Ministério
Pública; enquanto a instrução contraditória – obrigatória nos processos mais graves e facultativa nos
restantes casos, podendo ser requerida pelo arguido – seria da competência do juiz de instrução (que
poderia, no entanto, ser o mesmo do julgamento). Apesar de uma menor concentração de poderes,
continuava, ainda, a haver preocupações quanto ao equilíbrio e respeito pelos direitos fundamentais.

Código de Processo Penal de 1987:


Consequentemente, surge o Código de Processo Penal de 1987, que se encontra dividido em
duas partes: na primeira parte, ir-se-á falar do Livro I, relativo aos sujeitos do Processo; e na segunda
parte, ir-se-á falar dos Livros VI, VII e VIII, relativos às fases preliminares, do julgamento e dos
processos especiais, respetivamente.
Neste, o processo penal é de base de estrutura acusatória (artigo 32º, nº5 CRP), e não
inquisitória, na medida em que existe uma separação de competências. Assim, o juiz que presidiu ao
debate instrutório – juiz de instrução – não pode ser o mesmo que julgará o caso (artigo 40º, nº1,
alínea b) CPP).
O órgão acusador é o Ministério Público (artigos 53º, 263º e 283º CPP), e não o juiz do
julgamento. Consequentemente, tanto o juiz de instrução (artigo 303º CPP) como o juiz do julgamento
estão limitados pelo objeto do processo, que é definido pelo Ministério Público na acusação –
existindo, no entanto, algumas possibilidades de alterações substanciais (artigo 359º CPP) e não
substanciais (artigo 358º CPP).
Contudo, o juiz não se afigura como um mero juiz-árbitro. Este tem poderes de direção da audiência
que se sobrepõem à dinâmica acusação/defesa – ou seja, é o juiz que dirige a audiência, que tem a
possibilidade de fazer perguntas, etc. (artigos 322º e seguintes, sobretudo 323º CPP). Além disso, este
tem poderes de investigação (ex: artigo 340º CPP), podendo o arguido pronunciar-se quanto à prova
produzida pelo mesmo – princípio do contraditório, que também resulta do artigo 32º, nº5 CRP.
No entanto, este último poder não pode suprir a falta total de atividade do Ministério Público quanto
às suas obrigações: ou seja, não cabe ao tribunal fazer toda a tarefa de investigação que cabe ao
Ministério Público – se, por exemplo, este não produziu prova nenhuma, não cabe ao tribunal fazer
toda a prova que o órgão acusador não fez. Assim, este poder apenas está pensado para matérias que
o juiz pense que requerem mais clarificação, por exemplo – mas não para que o tribunal faça, sozinho,
a investigação.
Assim, o processo penal português é de estrutura essencialmente acusatória, integrada por um
princípio de investigação: o juiz tem a possibilidade de apurar a verdade material, dentro dos
limites impostos pelas regras processuais e pela obtenção de prova.
Acórdão do TC nº 7/87, de 9 de janeiro
Este acórdão surge no âmbito de uma fiscalização preventiva da constitucionalidade do novo
CPP de 1987, e discute, essencialmente, dois temas relacionados com a nova estrutura do processo
penal: a 1) direção do inquérito pelo Ministério Público e instrução facultativa; e a 2) suspensão
provisória do processo (artigo 281º CPP).
Relativamente ao primeiro tema, discute-se se a atribuição da direção do inquérito ao
Ministério Público colide com o artigo 32º, nº4 CRP, segundo o qual a fase de instrução é dirigida
pelo juiz. Ora, isto prende-se, especificamente, com o conceito de instrução adotado: se se
interpretasse materialmente a instrução como sendo a realização das diligências de prova, então, como
é no inquérito que se desenvolvem as mesmas, a atribuição ao Ministério Público do mesmo colidiria
com este artigo da CRP.
No entanto, se se pensar neste conceito da posição da estrutura acusatória, o facto de se atribuir a
direção de um inquérito a uma entidade diferente ao juiz permite separar a avaliação do Ministério
Público, que fará a acusação, da avaliação que o juiz da instrução fará na instrução – o que irá
concretizar ainda mais o princípio da separação dos poderes da estrutura penal. No entanto, para
garantir que tal não colide com o artigo 32º, nº4 CRP, ter-se-á de assegurar que os atos, feitos durante
o inquérito, que colidem com direitos fundamentais têm a intervenção do juiz de instrução.
Concluindo, existindo esta garantia, o tribunal decidiu que tal atribuição não é inconstitucional. A
direção do inquérito cabe nas funções do Ministério Público (artigo 219º CPP), dado que só assim se
concretiza uma verdadeira estrutura acusatória, com separação entre quem investiga e quem julga. O
artigo 32º, nº4 CRP é então ressalvado, por um lado, pelo facto de os atos que se prendem com a
esfera dos direitos fundamentais terem de ter a autorização do Juiz; e, por outro lado, pela
possibilidade dado ao arguido de requerer a abertura de instrução, caso sinta que a acusação feita
tenha de ser “verificada” pelo juiz.
Relativamente ao segundo tema, importa referir que havia, na versão inicial do CPP 87, uma
atribuição da competência de suspender provisoriamente o processo ao Ministério Público, em
questões de pequena criminalidade. Concretamente, o artigo 281º CP estabelece o princípio da
oportunidade do exercício da ação penal pelo Ministério Público relativamente à pequena
criminalidade, atribuindo-lhe o poder de suspender o processo, quando se verifiquem conjuntamente
certas condições (as constantes do proémio do nº1 e das alíneas a) a e) do mesmo número), mediante
a imposição – pelo próprio Ministério Público – de injunções e regras de conduta (as definidas nas
alíneas a) e i) do nº2).
Ora, enquanto a suspensão em si foi considerada admissível, a atribuição ao Ministério Público de tal
competência, sem qualquer intervenção do juiz, já foi vista como problemático. Isto porque, ao
suspender provisoriamente o processo, é feito um apuramento de responsabilidade do arguido por
parte do Ministério Público – sendo que, de acordo com a CRP, quem faz esse apuramento é o juiz.
É isto ditado pelo princípio da jurisdicionalidade: a decisão das causas penais e aplicação de penas e
medidas de segurança é da exclusiva competência dos tribunais judiciais (artigos 27º, nº2 e 202º CRP;
e artigo 8º CPP).
Concluindo, tal atribuição foi considerada inconstitucional, por violação dos artigos 32º, nº4 e 202º
CRP. Em consequência, passou a prever-se, então, a necessidade de obter a concordância do juiz de
instrução para tal suspensão ser feita (artigo 281º, nº 1 CPP).
Algumas alterações ao CPP
Com a Lei nº 59/98, foi introduzida uma nova forma de processo: nomeadamente, o processo
abreviado (artigo 391º-A CPP).
Já com a Lei nº 48/2007, acrescentaram-se alguns aspetos quanto aos direitos do arguido,
descritos nos artigos 61º, nº1, alínea c) e 89º, nº1 e 3. Além disso, passou a prever-se a prisão
preventiva só para crimes com pena de prisão superior a 5 anos (alteração que foi parcialmente
revertida em 2010). Alteraram-se as medidas de eficácia do próprio processo, passando a haver uma
supressão da instrução nas formas especiais de processo (artigo 286º, nº3 CPP); assim como um
alargamento do âmbito do processo sumário (detenção por qualquer pessoa – artigo 255º, nº1, alínea
b) CPP). Por fim, alterou-se o regime do segredo de justiça (artigo 86º CPP), passando a regra geral
a ser a da publicidade do caso – tendo o segredo de justiça de ser decretado (inverteu-se a lógica).
Com a Lei nº20/2013, introduziu-se a possibilidade de ler ou reproduzir em audiência as
declarações prestadas pelo arguido no decurso do inquérito perante autoridade judiciária (artigo 357º
CPP), desde que cumprido o disposto no artigo 141º, nº 4, alínea b) CPP. Significa isto que podem
ser lidas na audiência de julgamento declarações prestadas perante o Ministério Público ou o juiz –
mesmo que o arguido se remeta ao silêncio. Alargou-se, também, o âmbito do processo sumário a
infrações puníveis com pena de prisão superior a cinco anos – tendo esta alteração, no entanto, sido
revertida pelo Acórdão TC nº174/2014, dado violar o artigo 32º, nº1 e 2 CRP.
Por fim, com a Lei nº94/2021, alterou-se o regime dos impedimentos dos juízes – sendo isso
esta depois revertida pela Lei nº13/2022. Além disso, adaptou-se as normas do CPP à
responsabilidade criminal de pessoas coletivas (apesar de já existir a sua responsabilidade desde
2007) – especificamente, introduzindo-se a possibilidade de, no caso das injunções, se obrigar as
empresas a implementar programas de cumprimento normativo, na sequência da Estratégia Nacional
de Combate à Corrupção. Estes programas, se cumpridos de forma devida, poderiam ter contribuído
para a não verificação dos factos a que vêm ser acusados – assim, e apesar de não retirarem
responsabilidade às pessoas coletivas, poderão fazer com que a sua pena seja atenuada.

O PROCESSO PENAL PORTUGUÊS


Natureza dos Crimes
O CPP prevê 3 tipos de crime: 1) crimes públicos (artigo 48º CPP), 2) crimes semipúblicos
(artigo 49º CPP) e 3) crimes particulares (artigos 49º e 50º CPP). A distinção é feita de acordo com
quem tem a legitimidade para promover o processo: nomeadamente, se este é da competência
exclusiva do Ministério Público, ou se este necessita de algum ato – queixa ou acusação – feito por
particular legitimado (previstos no artigo 113º CP).
➔ A natureza de cada crime é determinada pelo Código Penal, na parte especial – sendo necessário
ver todos os artigos presentes em cada título, e não apenas o artigo que inicialmente refere o
crime. Isto porque, por exemplo, no caso do furto, certas circunstâncias descritas no artigo 207º
CPP podem alterar a natureza inicial/geral do crime.
Os crimes públicos são promovidos exclusivamente pelo Ministério Público, podendo este,
sozinho, investigar livremente e submeter acusação. Já os crimes semipúblicos estão dependentes de
queixa por parte de particular: mas, a partir desse momento, o Ministério Público torna-se competente
para promover o processo, dirigindo o inquérito e decidindo se apresenta, ou não, acusação. O
queixoso poderá constituir-se como assistente, assim como também pode apresentar acusação, mas
apenas de factos que já não tenham sido abrangidos pela acusação do Ministério Público.
Os crimes particulares dependem não só de queixa, mas também de acusação particular. Ou
seja, num primeiro momento, a promoção do processo depende da apresentação da queixa por parte
do seu titular que, por sua vez, se terá de constituir como assistente no processo. Feita a queixa, e
acabada a fase do inquérito que esta desencadeia (essa, sim, sempre dirigida pelo Ministério Público),
será necessário que esse assistente ou o ofendido apresente acusação, não podendo o Ministério
Público fazer isso (artigo 285º, nº1 CPP). Poderá acompanhar a acusação do assistente (artigo 285º).
➔ Isto verifica-se na medida em que os crimes particulares são crimes em que se reconhece ao
ofendido uma “espécie de direito” quanto ao processo avançar: ou porque o ofendido pode não
ter necessidade ou não querer que o suspeito seja acusado (ex: crimes de furto entre família); ou
pela natureza delicada do próprio crime.

Tramitação do Processo Comum


1. NOTÍCIA DO CRIME:
Para se abrir um processo penal, e consequentemente fazer alguém ser “suspeito” de um
processo-crime, é necessária existir uma notícia do crime – sendo esta pressuposto para a abertura
do processo, com o início da fase de inquérito (artigo 262º, nº2 CPP). Esta é, essencialmente, uma
informação sobre a eventual existência de um crime que foi praticado, que terá de chegar ao
Ministério Público, o responsável por abrir inquérito (independentemente da natureza do crime).
Consequentemente, este pode conhecer da notícia por conhecimento próprio, por via dos agentes de
justiça ou órgãos de polícia criminal (artigos 241º e 248º CPP – obrigatoriedade de transmissão de
notícia do crime), ou, ainda, por via de denúncia de terceiros – sendo esta última diferente de queixa
apresentada pelo ofendido, que representa uma declaração de vontade deste de abrir
inquérito/promover a abertura do processo.
➔ No caso dos crimes semipúblicos e particulares, é também necessária a apresentação de queixa:
ou seja, não basta que o Ministério Público tenha conhecido da informação por qualquer outra via
– é necessário que esta seja complementada com uma queixa apresentada pelo ofendido ou
qualquer outro titular desse direito. Já no caso dos crimes públicos, perante a notícia de infração,
o Ministério Público deverá sempre promover o processo, o que normalmente se traduzirá na
abertura de inquérito.
Na sequência desta informação, o Ministério Público terá, obrigatoriamente, de abrir o
processo (artigo 262º, nº2 CP) – princípio da legalidade na modalidade de obrigatoriedade de
promoção do processo. Só não o fará no caso de o processo seguir uma forma especial, em que não
há lugar a inquérito (ex: processo sumário). Contudo, embora neste caso não haja abertura de
inquérito, há sempre processo (na forma especial), atendendo à vigência do princípio da legalidade,
na vertente de obrigatoriedade de promoção. Assim, de qualquer das formas, o Ministério Público
não tem a faculdade de decidir não promover processos por factos que sejam insignificantes, se estes
forem suscetíveis de constituir crime – poderá é recorrer a alternativas processuais simplificadas.
Para tal, existe uma lista dos elementos necessários, para que o auto de notícia esteja completo (artigo
243º CP). Em primeiro lugar, esta terá de conter factos relevantes o suficiente para preencherem um
tipo de crime: ou seja, factos que se enquadram em qualquer previsão legal (nº1). Se estes não se
subsumem a nenhum crime, o Ministério Público não vai abrir processo, porque não constitui uma
notícia de crime – sendo que o conceito de crime sobre o qual terá de existir notícia consta do artigo
1º, alínea a).
➔ Pode existir uma notícia de crime desde que os factos sejam enquadráveis numa previsão criminal,
mesmo que quem denuncia os tenha enquadrado mal. Assim, não deixa de ser uma notícia de
crime se os factos estão mal preenchidos numa norma.
No entanto, isto não implica que quem apresenta a queixa tem de levar provas concretas e sólidas
desses factos: essa competência é do Ministério Público, na fase do inquérito – recolher provas é
precisamente o objetivo da investigação realizada já no âmbito do processo.
Contudo, esta queixa terá de apresentar alguns indícios de que a mesma é verdadeira e plausível.
Retira-se isto do artigo 246º, nº6 CPP, relativo às denúncias anónimas: estas apenas determinam
notícia de crime se “dela se retirarem indícios da prática de crime”. O objetivo desta exigência é o de
prevenir denúncias caluniosas, cujo autor não possa ser identificado – visto que a probabilidade de
alguém inventar a prática de um crime, só para sujeitar o outro a um processo-crime, é maior em
denúncias anónimas.
2. INQUÉRITO:
Como já foi dito, com a existência de uma notícia do crime, o Ministério Público está obrigado
a abrir inquérito. No entanto, tal obrigatoriedade não existirá, por um lado, em alguns processos
especiais; e, por outro lado, se o crime em questão depender de queixa (ou seja, se for semipúblico
ou particular) – não conseguindo a notícia do crime preencher tal requisito se tiver sido adquirida por
conhecimento próprio, através dos órgãos de polícia criminal ou por denúncia (artigo 241º CPP).
As finalidades do inquérito estão definidas no artigo 262º, nº1: investigar a existência de
crime e determinar os seus agentes, descobrir e recolher as provas em ordem à decisão sobre a
Acusação. Significa isto, mais uma vez, que poderão existir notícias do crime sem que haja provas
concretas, e sem que se saiba o suspeito da mesma – este será o trabalho do Ministério, nesta fase.
O Ministério Público é, então, o titular e dirigente do inquérito do processo, sendo auxiliado
pelos órgãos de polícia criminal (artigo 263º CPP). No entanto, e como já se viu, os atos
materialmente jurisdicionais e que colidam com direitos fundamentais são praticados pelo Juiz de
Instrução: artigos 194º, 267º e 269º CPP. O inquérito é, ainda, uma fase não contraditória, na medida
em que o suspeito não irá pronunciar-se sobre todas as provas produzidas no seu âmbito.
Denota-se, ainda, que os casos de averiguações preliminares previstos em alguma legislação
setorial (ex: artigo 385º Código dos Valores Mobiliários) não são investigações criminais, mas
averiguações destinadas a apurar a existência de notícia de infração. Em relação a certo tipo de
criminalidade mais complexa, atendendo ao facto de a própria obtenção de notícia de infração carecer
de uma análise técnica especializada, é atribuída às entidades reguladoras do setor a que esses crimes
respeitam a competência para realizar essas averiguações preliminares.

Segredo de Justiça
Regra geral, o inquérito não está sujeito a segredo de justiça, dado o processo ser público –
princípio da publicidade. No entanto, é possível determinar o mesmo, ainda na fase de inquérito. Tal
poderá ser feito com as seguintes finalidades (artigo 86º CPP):
➔ Proteger os direitos dos participantes processuais: Proteger a vítima é das finalidades mais
fortes; no entanto, também se pretende proteger os direitos dos arguidos e também do assistente,
que poderiam ser prejudicados se o processo pudesse ser acedido por terceiros e difundido – por
exemplo, o seu direito à reputação e dignidade (caso as suspeitas não se confirmem, depois).
o Isto aplica-se, especialmente, quando estes sujeitos são pessoas conhecidas.

➔ Proteger os interesses da investigação: A falta de segredo de justiça pode comprometer o


seguimento do processo, na medida em que o suspeito poderá tentar esconder provas,
atrapalhando o decorrer da justiça. Isto justifica o facto de o segredo de justiça poder apenas ser
decretado durante o inquérito, já que é lá que se faz a investigação.
o Também existirá um interesse do Estado na realização de uma justiça isenta e independente,
poupada a intromissões de terceiros, a especulações sensacionalistas ou a influências que
perturbem a serenidade dos investigadores e dos julgadores.

O segredo de justiça só pode ser decretado durante o inquérito (artigo 86º, nº 2 e 3 CPP),
apenas pelos prazos determinados. Quando decretado, a sua eficácia vale tanto externa (para
terceiros), como internamente (para os sujeitos processuais). Assim, se tais prazos forem esgotados,
acaba-se o segredo de justiça interno: a fase de inquérito continua, mas os sujeitos passam a poder
aceder ao processo (artigos 89º, nº6 e 276º CPP).
Além disso, este pode ser decretado pelo Juiz de Instrução, a requerimento do arguido, do assistente
ou do ofendido (artigo 86º, nº2 CPP), no caso da proteção dos direitos dos participantes processuais.
Também pode ser decretado pelo Ministério Público, nos casos do nº3, tendo este de ser validado
pelo Juiz de Instrução no prazo de 72 horas.
O segredo de justiça proíbe as pessoas de assistir, tomar conhecimento ou divulgar a
ocorrência ou o conteúdo de ato processual. O segredo de justiça não incide sobre a existência de
factos históricos; mas, sim, sobre o facto de estes estarem a ser investigados no âmbito de um processo
criminal, e sobre os atos processuais que sobre eles incidem (ex: é legítima a investigação jornalística
autónoma de uma história).
➔ É possível, no entanto, que se acedam a certos elementos que estejam sobre o segredo de justiça,
ou fazer esclarecimento públicos (artigo 86º, nº13 CPP).
Sendo a regra a publicidade do processo (artigo 86º, nº6 CPP), mesmo não estando o processo
em segredo de justiça, existem regras para os meios de comunicação social (artigo 88º CPP). Por
exemplo, a publicidade não implica que se possa passar as imagens ou reproduzir peças processuais
na comunicação social – é proibida a publicidade de imagens e som, a menos que seja autorizado pelo
juiz e os próprios consintam. Também a publicidade não implica que o juiz não possa proibir a entrada
de menores no julgamento.

Acórdão TC nº 360/2016
A CMVM faz parte da administração do Estado, fazendo averiguações preliminares de forma
autonóma, para apurar a possível existência da notícia de um crime contra o mercado de valores
mobiliários ou outros instrumentos financeiros. Tal é justificado devido à complexidade da
criminalidade financeira e económica: o Ministério Público não tem um contacto direto com este tipo
de criminalidade, que não é evidente e requer uma série de analises técnicas – o que faz com que a
CMVM tenha uma posição privilegiada na fase de conhecimento e seleção dos factos relevantes.
➔ Para além disso, esta competência permite assegurar a viabilidade do mercado financeiro,
permitindo suprir falhas de mercado próprias do setor – prevenção de riscos sistémicos, que
podem até colocar em causa a solvabilidade dos próprios Estados.
As averiguações preliminares, sendo efetuadas por entidades administrativas especialmente
preparadas em termos técnicos, permitem que a investigação criminal posterior se concentre no
essencial e aproveite o trabalho realizado ainda em sede administrativa, e evita que sejam
remetidos para investigação criminal elementos sem viabilidade técnica no âmbito dos crimes
contra o mercado, o que potencia a eficiência e economia de meios da atuação das instâncias de
investigação criminal (evitando, por exemplo, a duplicação inútil de provas – o que poderia até
conduzir a investigação a resultados contraditórios entre si); e obsta a que os cidadãos sejam
desnecessariamente constituídos arguidos num processo criminal à partida votado ao insucesso
por razões técnicas.
Concluído o processo de averiguações preliminares, a CMVM remete os elementos relevantes à
autoridade judiciária competente para declarar a notícia de um crime – nomeadamente, o Ministério
Público (artigo 219º CRP). Implica isto que haja situações criminais, em relação aos quais a própria
obtenção da notícia pressupõe alguma análise técnica para se chegar à conclusão de que os factos
preenchem a previsão legal.
Ora, no caso do acórdão descrito, o arguido alega uma violação do princípio da
proporcionalidade. No que toca ao seu subprincípio da adequação, não há dúvidas de que a medida
restritiva de direitos — a possibilidade de a CMVM proceder a um processo de averiguações
preliminares — é um meio apto para a obtenção de factos que possam consubstanciar a notícia
de um eventual crime. De facto, a complexidade destas matérias requer conhecimentos técnicos
especializados que as permitam compreender cabalmente, pelo que a medida em causa parece, aliás,
afigurar-se como o meio mais apto para a prossecução do respetivo fim.
Em relação ao subprincípio da exigibilidade, também aqui é possível afirmar que o procedimento de
averiguações preliminares é necessário para a obtenção de factos que possam consubstanciar a
notícia de um eventual crime, não se vislumbrando que o legislador disponha de outros meios menos
restritivos para alcançar o mesmo desiderato.
Por fim, no que concerne ao princípio da proporcionalidade em sentido estrito, em face dos fins
pretendidos, não se afigura excessivo o recurso a averiguações preliminares prosseguidas por
uma entidade administrativa não judiciária, como a CMVM. De facto, é o regular funcionamento
dos mercados e do sistema financeiro que justifica a intervenção de entidades administrativas
especializadas nos termos previstos. Assim, pode haver restrição do processo equitativo,
nomeadamente do princípio nemo tenetur em determinadas situações no processo penal e na
regulação económica e social do Estado.
Concluindo, contrariamente ao afirmado pelo recorrente, a atribuição de competência à
CMVM para o processo de averiguações preliminares (e não ao Ministério Público) não viola o
princípio da proporcionalidade, nem, em consequência, a implica a violação de qualquer norma
constitucional. Não há inconstitucionalidade, na medida em que estas sejam feitas numa fase
preliminar à notícia de infração – depois disso, quem tem de dirigir obrigatoriamente o inquérito é o
Ministério Público.

Fim do inquérito
Chegando ao fim do inquérito, o Ministério Público pode chegar a uma de quatro conclusões:
1) há indícios suficientes da prática de um crime e de quem foi o seu agente; 2) não há indícios
suficientes; 3) a pessoa não praticou o crime; ou 4) o procedimento é legalmente inadmissível.
No caso de concluir que não há indícios suficientes ou que a pessoa em questão não praticou esse
crime, o Ministério Público apenas pode arquivar o processo (artigo 277º CPP) – podendo essa
decisão ser recorrível para o juiz de instrução. Se, contudo, concluir que existem indícios suficientes,
este tem várias alternativas: poderá, por um lado, partir para a acusação (artigo 283º CPP); por outro
lado, poderá selecionar as figuras do arquivamento em caso de dispensa de pena, ou a suspensão
provisória do processo. Tais serão aplicadas, sobretudo, nos casos de pequena criminalidade.
Será de notar que estas possibilidades ou alternativas processuais (ou de diversão) só poderão ser
acionadas depois do inquérito, e não logo quando se toma conhecimento da notícia do crime. Isto
porque, no inquérito, já há averiguação de factos e de prova que permite determinar a
responsabilidade (abstrata) do suspeito – havendo, ainda, um controlo feito pelo juiz de instrução.
Ora, só depois do inquérito é que, com tais provas, se poderá fundamentar a escolha destas alternativas
processuais, existindo menos riscos de haver abusos ou de corrupção do que se se desse tal
possibilidade logo no início.
Há, também o risco de violação do princípio da igualdade, na medida em o Ministério Público, para
situações idênticas, escolha vias diferentes. Ora, as preocupações com a atribuição destes poderes
discricionários podem ser acauteladas se se previr um ato mais formal e transparente – no entanto, a
opção do CPP é de, num momento inicial (notícia do crime), o Ministério Público não ter qualquer
possibilidade de não promover crimes de pequena criminalidade. Já no decurso do processo é possível
recorrer-se a estas duas alternativas que não a acusação, o que acaba por conseguir limitar este risco.

Arquivamento em caso de dispensa de pena:


No arquivamento em caso de dispensa de pena (artigo 280º CPP), o que acontece é que o
processo é arquivado, não sendo o suspeito sequer condenado. Não se aplica uma verdadeira
dispensa de pena – tal só seria feito se a pessoa fosse a julgamento, e o juiz decidisse aplicar tal figura.
Para tal arquivamento ser possível, o mesmo terá de estar previsto para o crime em concreto
(averiguado ma parte especial do CP); assim como terão de estar preenchidos os pressupostos gerais
para aplicação deste regime (artigo 74º CP).
Nestes casos, estando tudo em ordem, o Ministério Público pode propor o arquivamento – existindo,
aqui, uma certa discricionariedade, que depois é contrabalançada pelo facto de que tal proposta tem
de ter a concordância do juiz de instrução. Consequentemente, esta decisão de arquivamento não é
suscetível de impugnação.
➔ Nos casos de crimes particulares, se o Ministério Público decidir pelo arquivamento em dispensa
de pena, retira a legitimidade ao assistente de acusação particular para o fazer.

Suspensão provisória do processo:


A suspensão provisória do processo (artigo 281º CPP) é uma alternativa de consenso: ou
seja, além de o Ministério Público precisar da concordância do juiz de instrução, também será
necessário que o arguido e o assistente concordem com a mesma. No entanto, poderá haver dispensa
da concordância do assistente nos casos do nº10, que remete para o artigo 203º CP (crime de furto
simples – criminalidade menos grave). De qualquer das formas, existindo esta concordância, a
decisão sobre a suspensão provisória não é recorrível.
Esta pressupõe, além disso, que o crime seja punível com pena de prisão não superior a 5 anos, e
impõe, como consequência ao crime investigado, não a condenação, mas uma série de injunções e
regras de conduta ao arguido, a ser cumpridas durante o período da suspensão. Sendo estas cumpridas,
o processo é arquivado e não pode ser reaberto.
A redação do nº1 deste artigo não dá muito margem para se falar de poder discricionário do
Ministério Público: “sempre que se verificarem os seguintes pressupostos”. No entanto, e apesar de
os pressupostos serem um elenco fechado, a alínea f) abre, de facto, espaço a essa discricionariedade:
“ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responsa suficientemente às
exigências de prevenção que no caso se façam sentir”.
Denota-se que, ao nível da previsão da norma, existe um conjunto de pressupostos; e, ao nível da
estatuição, existe um dever. Normalmente, quando existe um poder discricionário, existirá uma
escolha do lado da estatuição – logo, aqui, não existe um poder discricionário formalmente. No
entanto, o conjunto de pressupostos e o seu preenchimento pode dar aso a alguma margem de atuação
– assim, não é um verdadeiro poder discricionário; mas uma margem de avaliação, especialmente no
caso da alínea f).
NOTA: Existe, ainda, outra alternativa de consenso – ir para o processo sumaríssimo, não existindo,
assim, um arquivamento, mas sim um julgamento, onde quem intervém será o juiz de julgamento.

Acusação do Ministério Público:


Quando nenhuma destas alternativas se coloca, o Ministério Público irá acusar (nos casos em
que poderá fazê-lo – crimes semipúblicos e públicos), nos termos do artigo 283º, nº1 CPP. Aqui,
existe uma discussão quanto ao que significa a “existência ou não de indícios suficientes”:
nomeadamente, quando em comparação com aqueles indícios exigidos para as denúncias anónimas
(“retirar indícios da prática de um crime”); ou para aplicar prisão preventiva (“fortes indícios”).
➔ No caso dos crimes particulares, o Ministério Público mostra os indícios recolhidos ao assistente,
que depois irá decidir ou não acusar. Se os indícios forem considerados suficientes, e o assistente
decidir acusar, o Ministério Público poderá acompanhar a mesma. No entanto, se os indícios não
forem considerados suficientes, o assistente pode, na mesma, decidir acusar – mas por seu risco,
não indo o Ministério Público acusar.
Aqui, quando se faz referência a terem sido “recolhidos indícios suficientes”, fala-se sempre
resultar uma “possibilidade razoável de, ao arguido, vir ser aplicada uma pena”. Isto poderá ser visto
a nível da tendência jurisprudencial, na medida em que existe uma tendência jurisprudencial no
sentido de decidir os casos de uma determinada maneira. No entanto, tal interpretação não será muito
feliz: enquanto entidade pública, o Ministério Público não tem margem para fazer nada que não
resulte diretamente da lei, assim como tem uma obrigatoriedade de promover ação penal – ora, no
caso da tendência jurisprudencial, o Ministério Público já teria de fazer um juízo de previsibilidade
mais subjetivo, que poderia fugir a essa obrigatoriedade.
Assim, esta expressão deve ser interpretada a nível objetivo: ou seja, que existe tal possibilidade
relativamente ao crime em concreto que foi praticado. Especificamente, o conceito de “indícios
suficientes” será visto em função das provas recolhidas, que devem ser avaliadas objetivamente,
independentemente da previsão do Ministério Público quanto ao desfecho do processo.
Nesta fase de acusação, existem vários sujeitos processuais que estão presentes,
nomeadamente: o juiz de instrução, o Ministério Público e, ainda, o arguido e o assistente. A partir
do momento em que há uma acusação, esses sujeitos têm meios de reação caso não concordem.
Um deles é o requerimento de abertura da fase de instrução, por parte do arguido –
nomeadamente, para o juiz de instrução analisar e confirmar que tal acusação deve seguir para
julgamento. Significa isto que um caso só vai a julgamento se uma autoridade judicial tiver concluído
que existem indícios suficientes – podendo esta ser o Ministério ou, depois, o juiz de instrução.
Este requerimento também pode ser feito por parte do assistente (artigo 287º, nº1, alínea b) CPP) na
medida em que este discorde da acusação do Ministério Público – porque, por exemplo, este não ter
acusado quanto a determinados factos que o assistente considera fundamentais, e que representam
uma alteração substancial de facto em relação a essa acusação.
➔ Denota-se que, estando perante um crime particular, o assistente não vai requerer a abertura da
instrução, dado ter sido ele que fez a acusação. No entanto, se o Ministério Público não fizer
acusação e tiver arquivado o processo, o assistente poderá, na mesma, fazer acusação particular
(artigo 285º CPP).
3. INSTRUÇÃO:
Chegando-se à fase da instrução, importa dizer que, neste momento, o suspeito é
automaticamente constituído arguido, nos termos do artigo 57º, nº1 CPP. A fase de instrução é
presidida por um juiz de instrução, e tem o objetivo de confirmar a existência dos tais indícios
suficientes que deram lugar à acusação – o que significa que a pronúncia feita pelo juiz de instrução,
no final desta fase, não é nem uma pronúncia de absolvição, nem de condenação. No fundo, vai fazer
a mesma avaliação que o Ministério Público tem de fazer na acusação, vendo se esta foi “bem feita”.
Por outras palavras, a fase de instrução não é uma antecipação do julgamento porque apenas decida
da existência de indícios suficientes da prática do facto criminoso, e não o da convicção da prática do
facto criminoso. Não se trata, neste momento, de decidir se está provado que o arguido praticou o
crime: a decisão sobre a responsabilidade do arguido é o objeto do julgamento e não da instrução.
Para fazer tal avaliação, o juiz da instrução tem o poder de investigar autonomamente o
caso (artigo 288º, nº4 CPP), determinado e realizando diligências de prova por sua própria iniciativa
ou a pedido do arguido. Estas incidiram sobre os cuja apreciação é suscitada e que são, consoante os
casos, os constantes da acusação do Ministério Público, do assistente ou do requerimento de abertura
de instrução. Não pode haver alteração substancial destes factos (artigo 303º, nº3 CPP): a pronúncia
sobre factos que constituam alteração substancial dá origem à nulidade da decisão instrutória (artigo
309º CPP).
Depois disto, existirá, no final, um debate instrutório, onde já se aplicará o princípio do
contraditório: ou seja, o arguido tem o direito de assistir aos atos de instrução, de pedir
esclarecimentos, de requerer que sejam formuladas perguntas, etc. (artigos 289º e 298º CPP). O
público poderá estar presente nesta, dado já não existir segredo de justiça – mas apenas este debate é
público, e não todas as diligências feitas pelo juiz.
Neste, o juiz de instrução toma uma de duas decisões fundamentadas (artigo 308º, nº1 CPP): ou emite
um despacho de pronúncia – quando entenda que existem indícios suficientes que o crime foi
cometido por aquela pessoa –, ou despacho de não pronúncia – quando entenda que não existem
indícios suficientes que o crime foi cometido por aquela pessoa.
No caso de despacho de pronúncia, incidindo este sobre uma acusação do Ministério Público – seja
esta uma acusação de acompanhamento do particular (crimes particulares) ou uma acusação própria
–, esta não é recorrível: aqui, existem duas decisões no mesmo sentido, por parte de duas autoridades
judiciais distintas, pelo que só será possível prosseguir com o apuramento da responsabilidade do
arguido, na fase de julgamento.
➔ Esta só é recorrível (artigo 310º CPP), assim, nos termos do artigo 399º CPP: ou seja, quando
incida sobre factos que constam exclusivamente da acusação do assistente (no caso dos crimes
particulares, em que o Ministério Público não acompanhou a acusação particular); ou sobre factos
que constam do requerimento de abertura de instrução do assistente.
o No caso em que o despacho se pronuncie sobre factos diferentes daqueles que constam da
acusação do Ministério Público, e que consistam numa alteração substantiva dos factos, a
decisão será nula, não sendo recorrível diretamente (ex: se acusar o arguido por crimes
diferentes daquele que vinha acusado).
No caso de despacho de não pronúncia, caso exista constituição de assistente, este poderá recorrer do
mesmo, nos termos dos artigos 399º; 69º, alínea d); e 401º, nº1, alínea b) CPP. Também o Ministério
Público poderá recorrer, nos termos dos artigos 399º e 401º, nº1, alínea a) CPP. Isto justifica-se pelo
facto de, se ninguém poder recorrer, o processo fica por aí, não existindo julgamento.
4. JULGAMENTO:
Havendo despacho de pronúncia, e assumindo que não se recorreu o mesmo, o arguido vai a
julgamento pelos factos dos quais está acusado. Ora, no julgamento, existe uma aplicação plena do
princípio do contraditório: o arguido pode pronunciar-se sobre todas as provas e tudo o que se
disser, em qualquer momento que entenda (desde que não perturbe o andamento do processo – artigo
343º CPP). Resulta isto dos artigos 321º, nº3; 322º, nº2; 327º; e 360º, nº1 e 2 CPP.
➔ É no julgamento que os direitos de defesa do arguido têm, então, a sua máxima manifestação.
Outro princípio essencial, aplicado no momento do julgamento, será o princípio da acusação:
não há julgamento sem acusação. No entanto, existem situações em que o legislador aceita a
existência de um ato equivalente à acusação, sendo essas as únicas circunstâncias em que alguém
poderá ser julgado sem acusação formalmente dita (ex: processo sumário).
Por outro lado, um julgamento pressupõe uma acusação prévia, dado que esta delimita o objeto do
processo – estando o juiz limitado a decidir sobre e dentro deste. Assim, o julgamento incide sobre
os factos de que o arguido vem acusado, com a exceção dos regimes de alteração de factos previstos
nos artigos 358º e 359º CPP.
Além disso, verifica-se, também aqui, o princípio da investigação: o juiz de julgamento
também tem o poder de ordenar as diligências de prova necessárias à descoberta da verdade material
(artigo 340º, nº1 e 2 CPP).
Por fim, chegando o momento de decisão, verifica-se, também, o princípio in dubio pro reo.
Na verdade, para que o juiz condene (proferindo uma sentença condenatória), ele tem de ter certeza
de que o arguido cometeu tal crime, fora de dúvida razoável: ou seja, ele pode ter alguma dúvida –
mas não pode ter nenhuma dúvida razoável, que possa ser fundamentada, etc. Caso contrário, ou seja,
caso exista essa dúvida razoável, o juiz terá de decidir a favor do arguido (proferindo uma sentença
absolutória) – daí o princípio in dubio pro reo.
No entanto, denota-se que não existem critérios legais para decidir se uma dúvida é ou não razoável:
o que há, no entanto, são critérios que se relacionam com valores probatórios das diferentes provas,
e que que visam resolver isso atribuindo um valor reforçado a certas provas (ex: prova documental
vs. prova testemunhal).

5. RECURSOS:
Regra geral, as sentenças proferidas no fim de um julgamento são recorríveis, a não ser
que o contrário seja expressamente previsto legalmente (artigo 399º CPP). Os recursos das decisões
de 1ª instância são, regra geral, da competência dos Tribunais da Relação (artigo 427º CPP) – exceto
nos casos em que a competência é especificamente atribuída ao Supremo Tribunal de Justiça.
Assim, a sentença condenatória é recorrível tanto pelo condenado, como pelo Ministério Público: este
último defende a legalidade e a procura da verdade, pelo que tem um dever de colaboração com o
tribunal – consequentemente, este pode recorrer não só no seu próprio interesse (para aumentar a
pena), como também pode recorrer no interesse do condenado, se achar que a pena atribuída não é
justa (artigo 401º, nº1, alínea a) CPP). Já no caso da sentença absolutória, esta poderá ser recorrível
tanto pelo Ministério Público, como pelo assistente.
Existe, nos recursos feitos no interesse do arguido (tanto pelo arguido, como pelo Ministério
Público), uma proibição de reformatio in pejus (artigo 409º CPP): ou seja, tal recurso não poderá
agravar a pena decidida em 1ª instância – esta apenas pode ser confirmada ou diminuída. Isto foi
estabelecido visto que, caso contrário, estar-se-ia a esvaziar, materialmente, o direito de recurso dado
ao arguido, visto que este iria ter medo de recorrer e acabar com uma pena maior.
Tal proibição já não se verifica nos restantes recursos, dado que o objetivo do recurso do Ministério
Público (a maior parte das vezes) ou do assistente será o aumento da pena. Assim, nestes casos, o
tribunal de recurso poderá agravar a pena – mas não poderá condenar o arguido por outro crime que
não aquele que tenha sido discutido no julgamento, ao abrigo do princípio do contraditório: o arguido
tem de ter tido a possibilidade de se defender destas novas acusações e consequentes condenações.

Os Sujeitos Processuais
Os sujeitos processuais são os intervenientes no processo que têm um poder de
conformação no processo: ou seja, aqueles que têm o poder de, com os atos que praticam, conduzir
o processo para um ou para outro lado. Assim, conclui-se que as testemunhas não são sujeitos
processuais, visto que os seus testamentos não resultam num determinado andamento do processo
(resultam, sim, numa possível decisão final) – não tendo, assim, possibilidade de praticar atos para
determinar o processo, no sentido, por exemplo, da sua continuidade.
Dito de outra forma, enquanto os participantes processuais “praticam atos singulares cujo conteúdo
processual se esgota na própria atividade”, os sujeitos processuais são titulares de “direito (que
surgem muitas vezes sob a forma de poderes-deveres ou de ofícios de direito público) autónomos de
conformação da concreta tramitação do processo como um todo, em vista da sua decisão final”
(Figueiredo Dias). Ou seja, têm uma “participação constitutiva na declaração do direito do caso”.
Os sujeitos processuais são, então: 1) o juiz (de julgamento ou de instrução); 2) o Ministério
Público; 3) o arguido; 4) o assistente; e 5) o defensor.

1. Juiz:
Este sujeito é regulamentado pelos artigos 8º a 47º CPP, tendo estas regras o objetivo de
garantir o essencial do processo.
Especialmente, pretende-se garantir a independência de quem julga a responsabilidade do
arguido (artigos 203º e 204º CRP). Significa, isto, por um lado, que os tribunal são independentes
face aos restantes poderes do Estado: os juízes não estão sujeitos nem ao Ministro da Justiça, nem ao
Governo em geral – existindo um estatuto de independência em relação ao poder político e em relação
às suas próprias condições.
Por outro lado, os juízes também terão de ser independentes quanto às suas relações e interesses
pessoais – exigindo-se, assim, que estes sejam imparciais. Relativamente a isto, prevê-se, nos artigos
39º e 40º CPP, causas de suspeição do juiz – impedimentos – fundadas, por exemplo, em relações
pessoais (parentesco, de afinidade ou análogas às dos cônjuges, etc.), interesses pessoais ou pelo facto
de o juiz do julgamento ter sido o juiz da instrução. Existe, igualmente, uma cláusula geral de
suspeição: casos em que a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada, podendo também o
próprio juiz pedir escusa, quando ocorrer risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério
e grave, adequado a gerar confiança sobre a sua imparcialidade (artigo 43º, nº1 CPP).
A exigência de se ser julgado por alguém, cujas circunstâncias lhe permitam avaliar o caso com
independência – seja porque não está sujeito a instruções externas, seja porque não tem qualquer outra
relação com o caso fora da tarefa de o decidir em julgamento – é um dos principais corolários do
direito a um processo justo e equitativo.
Aplica-se, aqui, o princípio da judicialidade/jurisdicionalidade: a decisão das causas penais
e aplicação de penas e medidas de segurança é da exclusiva competência dos tribunais judiciais
(artigos 27º, nº2 e 202º CRP; e artigo 8º CPP). Isto também se aplica ao juiz de instrução, já que ele
intervém no inquérito quando há diligências que tenham que ver com direitos fundamentais (artigo
32º, nº4 CRP) – por exemplo, quando se fala de medidas de coação; ou do facto de ser o juiz de
instrução que fazer o primeiro interrogatório ao arguido preso.

2. Ministério Público:
O Ministério Público, regulada nos artigos 48º a 54º CPP, é também uma autoridade judiciária
(artigo 1º, alínea b) CPP) – no entanto, apesar de ser um sujeito processual, não se configura como
parte do processo. É, contudo, uma magistratura autónoma (artigo 219º, nº2 CRP) em relação aos
juízes e ao poder político, ainda que possa haver uma certa gestão do Ministério da Justiça (mas com
hierarquia – artigo 219º, nº4 CRP).
Isto, porque esta magistratura participa na execução de uma política criminal que não é por si definida,
mas antes pelos órgãos de soberania (Governo e Parlamento) – nomeadamente, através da definição
de objetivos, prioridades e orientações em matéria de prevenção da criminalidade, investigação da
criminalidade, ação penal e execução de penas e medidas de segurança (artigo 219º, nº1 CRP). No
entanto, esta continua a ser autónoma e independente face ao poder político, uma vez que não está
sujeita a quaisquer instruções do poder executivo relativamente à investigação, à promoção, à
condução ou à conclusão de qualquer processos penal concreto (artigo 2º, nº 1 do Estatuto do
Ministério Público).

➔ A discricionariedade que tem é vinculada pela sua obediência à lei, aos juízos de valor legais e,
sobretudo, aos programas político criminais democraticamente definidos – aos quais o Ministério
Público deve obediência e pelos quais tem de prestar contas.

Este está, também, vinculado ao dever de independência e imparcialidade: as regras


relativas a impedimentos previstas para o juiz também se aplicam ao Ministério Público (artigo 54º
CPP), por forma a garantir a sua independência.
Além disso, o Ministério Público tem um dever de colaboração com o tribunal na
descoberta da verdade: é uma magistratura que tem como finalidade descobrir a verdade a propósito
da prática do crime, não servindo apenas para acusar sem mais nem menos. Por isso, a sua intervenção
processual obedece a critérios de estrita objetividade (artigo 53º, nº1 CPP), deduzindo ou não
acusação em função do que tiver investigado. Este não tem um interesso direto em condenar: se a
realização do direito impuser a absolvição do arguido, isso é o que o Ministério Público deve fazer
(nomeadamente, interpondo recurso no exclusivo interesse da defesa – artigo 53º, nº2, alínea d) CPP).

3. Arguido:
O arguido é um dos sujeitos principais do processo, regulado nos artigos 57º a 61º CPP. A
constituição do arguido é obrigatória quando se verifiquem os pressupostos do artigo 58º, nº1 CPP;
ou quando resulte automaticamente da prática de um ato processual (ex: abertura da instrução, caso
da Mariana Mortágua).
Desde o momento em que uma pessoa adquire a qualidade de arguido, é-lhe assegurado o exercício
de direitos e de deveres processuais, sem prejuízo da aplicação de medidas de coação e de garantia
patrimonial e da efetivação de diligências probatórias, nos termos especificados na lei. O conteúdo
do artigo 60º CPP vai, assim, ao encontro de um processo penal de estrutura acusatória, onde o
arguido assume o papel de sujeito processual.
Assim, a constituição pode ser requerida pelo próprio arguido, o qual pode ter interesse nesta
para poder exercer os direitos previstos para tal figura (artigo 61º CPP) – em especial, o direito ao
silêncio (nº1, alínea d) CPP), nomeadamente na fase do inquérito (onde não existe princípio do
contraditório). Isto, porque as meras testemunhas, sendo chamadas a depor, têm de responder às
perguntas feitas – a não ser, claro, que estas extravasem o seu direito à intimidade privada (artigo
132º, nº2 CPP) –; mas o arguido já pode não responder a nada, não podendo o seu silêncio valorado
em seu prejuízo. No entanto, se o arguido não usar o direito ao silêncio, as declarações que prestar
poderão ser usadas no processo (artigos 141º, nº4, alínea b); e 357º CPP).
NOTA: Se o arguido depuser sem que lhe tenham sido comunicados os seus direitos, as suas
declarações não podem ser usadas como prova (artigo 58º, nº5 CPP).

4. Assistente:
O assistente tem o direito de recorrer dos atos que o afetem, passando a ser um ator do processo
a partir do momento em que se constitua como tal. Normalmente, é o ofendido quem pode constituir-
se assistente (ou quem o represente, em caso de morte ou menor de 16 anos); no entanto, co caso dos
crimes enunciados no artigo 68º, nº1, alínea e) CPP, qualquer pessoa pode constituir-se assistente.
A vítima que não se constitui assistente tem uma participação mais limitada. Esta figura
é uma novidade, prevista no artigo 67º-A CPP, sendo uma interveniente processual; no entanto,
enquanto não se constitua assistente, não é um sujeito processual. Assim, esta tem alguns direitos,
como os de informação, mas não tem poderes de conformação do processo.

5. Defensor:
Os direitos do defensor estão consagrados nos artigos 62º-67º CPP.

NOTA: Os órgãos de polícia criminal intervêm no processo subordinados pelo Ministério Público,
podendo este delegar atos a estes órgãos – ou seja, estes atos são praticados por delegação, sendo que
o Ministério Público continua a conduzir o processo, pelo que estes não são considerados sujeitos
processuais. Há, no entanto, um período anterior ao início do processo, em que os órgãos de polícia
criminal têm uma intervenção autónoma, nomeadamente quando haja suspeita por parte dos mesmos
de que existe a prática de crimes.

Formas Especiais do Processo


A tramitação analisada anteriormente é chamada de “tramitação comum”. No entanto, existe
a possibilidade de o processo ser mais rápido, aplicável nas situações de criminalidade menos grave
– daí que estas só poderão ser aplicadas a crimes cuja pena máxima não seja superior a 5 anos –,
onde o objetivo geral é a celeridade no restabelecimento da paz jurídica (suprimindo-se a fase de
instrução, nos termos do artigo 286º, nº3 CPP).
Os tipos de processo especial previstos são, então: 1) processo sumário, para casos de
flagrante delito; 2) processo abreviado, para casos de provas simples e evidentes; e 3) processo
sumaríssimo, para situações de acordo de aplicação de uma pena não privativa da liberdade.

PROCESSO SUMÁRIO:
O processo sumário segue-se no caso de detenção em flagrante delito: ou seja, tem de se
estar perante uma situação que possa ser qualificada como tal, nos termos do artigo 256º CPP (diz o
que é o flagrante delito); e que o arguido tenha sido detido em tal situação, nos termos do artigo 255º
CPP. Isto, desde que o crime tenha, no CP, previsto uma pena abstrata superior a 5 anos (podendo ser
igual ou inferior); ou se, no caso concreto, o Ministério Público achar que se deva aplicar uma pena
inferior a 5 anos (artigo 381º, nº2 CP).
Denotar que, nos crimes particulares, a pessoa não pode ser detida em flagrante (artigo 255º, nº4
CPP). Já nos crimes semipúblicos (havendo queixa – artigo 255º, nº3 CPP) e públicos, tanto as
autoridades policiais, como qualquer outra pessoa, pode deter o agente a cometer o flagrante delito –
sendo que, neste caso, as autoridades policiais terão de comparecer no lugar, num prazo de duas horas.
Este processo é obrigatório: verificados os pressupostos, o Ministério Público não pode
escolher a forma comum. Além disso, neste, não há inquérito com a finalidade de investigar os factos
e imputá-los posteriormente a alguém numa peça específica que é a acusação, visto que o arguido já
foi preso enquanto estava a cometer o crime. Assim, o agente detido é rapidamente apresentado ao
juiz de julgamento. Poderá, no entanto, haver uma recolha de alguns elementos que o Ministério
Público necessite.
Havendo julgamento, e sendo a pessoa condenada, aplica-se as regras de recurso já faladas da mesma
forma: não há nenhuma questão diferente quanto à recorribilidade da sentença que condena a pessoa
em processo sumário (artigos 391º e 399º CPP).
➔ É desaconselhável a realização de um julgamento em processo sumário, quando a causa apresenta
índices de complexidade inadequado. Isto, porque a ideia por detrás de haver uma forma especial
de processo para quando há existência de um caso de flagrante delito é permitir diminuir os
problemas de prova sobre a prática do crime.
PROCESSO ABREVIADO:
O processo abreviado (artigo 391º-A CPP) é aplicado no caso de provas simples e evidentes,
a crimes, independentemente da natureza, com moldura não superior a 5 anos (ou se, no caso concreto,
se achar que deve ser aplicada uma pena não superior a 5 anos). Este entra, no entanto, de forma
subsidiariamente relativamente ao processo sumário – ou seja, quando, por alguma razão, não for
possível segui-lo, nos termos do artigo 391º-A, nº3, alínea a) CPP.
Nestes processo, existe um inquérito sumário, visto que é preciso recolher prova (artigo
391º-A, nº3, alínea b) CPP). Existe, contudo, um encurtamento dos prazos, nos termos do artigo 391º-
B CPP. Continua a não haver instrução; e existe, ainda, um julgamento mais simplificado, sendo a
sentença final recorrível (artigo 391º-G CPP; se for particular, nº3).
Denota-se que não é considerado uma “prova simples e evidente” o facto de o arguido
confessar. Em processo penal, a confissão é um ato que se pratica em julgamento, em frente de um
juiz. No entanto, a confissão não é uma prova simples e evidente, porque se não existirem outras
provas, o arguido poderá desmentir a confissão e, consequentemente, vir a ser absolvido. Assim,
apenas a confissão não dá um nível de segurança suficiente – isto, apesar de agora já não existir a
proibição de possibilidade de reproduzir as declarações do arguido, que já colmata esta dificuldade
até certo ponto. De qualquer forma, o Ministério Público terá de apresentar provas simples e
completamente evidentes – dado ser isso que faz possível o encurtamento dos prazos.

PROCESSO SUMARÍSSIMO:
O processo sumaríssimo poderá ser aplicado em casos de crimes com uma moldura penal não
superior a 5 anos, quando o Ministério Público entender que, no caso concreto, não deve ser
aplicada pena de prisão (artigo 392º, nº1 CPP) – estando isso previsto tanto no crime em concreto,
assim como nos termos do artigo 74º CPP (dispensa de pena). Este processo caracteriza-se pela
existência de uma decisão consensualizada, proposto pelo Ministério Público (assim como a pena que
acha que deve ser aplicada), nos termos do artigo 394º CPP. O juiz, tendo este requerimento, notifica
o arguido para saber se este se opõe (artigos 395º e 396º CPP): se este não se opuser – assim como o
assistente, nos casos dos crimes particulares –, o juiz decide, analisando o caso (artigo 397º CPP).
➔ O processo sumaríssimo pode ou não ter inquérito; no entanto, pode o Ministério Público ter
decidido pelo processo sumaríssimo a meio do inquérito – assim, não existe, no âmbito do
processo sumaríssimo, inquérito; mas este pode surgir a meio do inquérito.
Assim, embora não exista julgamento, o processo sumaríssimo dá lugar a uma decisão
condenatória (artigo 397º CPP) – ao contrário do que acontece na suspensão provisória da pena
(outra modalidade de decisão consensualizada prevista no CPP). Tendo sido tomada em consenso, tal
decisão não é recorrível: não faz sentido, depois, o arguido recorrer de uma decisão com a qual
concordou livremente.
➔ Assemelha-se, de certa forma, à negociação quanto à pena, ao plea bargain – mas, neste último,
a pessoa, com medo de lhe acontecer pior, pode concordar que lhe seja aplicada uma pena de
forma não tão livre. Ora, aqui também há esse risco: no entanto, o que o arguido concorda é uma
pena não privativa da liberdade, pelo que este risco acaba por ser mitigado.

No processo sumaríssimo, existe uma componente importante de “oportunidade”, visto que é


facultada ao Ministério Público a possibilidade de optar por outra solução processual, com base numa
valoração própria sobre a diminuta gravidade concreta do facto. No entanto, há uma filtragem da
proposta do Ministério Público pelo Tribunal: ou seja, o acordo entre os sujeitos processuais não se
impõe por si só – a sua razoabilidade é controlada pelo Tribunal, sendo que a sua intervenção funciona
como critério legitimador da solução.

Suspensão provisória do processo vs. Processo sumaríssimo

DIFERENÇAS SEMELHANÇAS

A suspensão provisória não é uma forma


especial de processo: é uma decisão que o
Ministério Público pode tomar no inquérito (e Em ambos os casos, prevê-se o acordo do
também o juiz de instrução, na instrução). arguido.

No processo sumaríssimo, há aplicação de uma Ambas as alternativas precisam do acordo do


pena ou medida de segurança; já na suspensão juiz – de julgamento, no processo sumaríssimo;
provisória, há lugar à imposição de injunções e de instrução, na suspensão provisória.
regras de conduta.

A decisão em processo sumaríssimo é uma São ambas aplicáveis a crimes cuja moldura não
condenação; já no caso da suspensão provisória, seja superior a 5 anos.
uma vez cumpridas as injunções, o processo é
arquivado.

Resolução de hipóteses – caso prático:


A travou-se de razões com o seu irmão C à saída de um centro comercial, depois de este ter
comprado um jogo de copos para oferecer a outro familiar. A insultou C e deu um pontapé no
embrulho com os copos que se encontrava pousado no chão. Partiram-se todos os copos, num valor
total de 220 Euros. O guarda da PSP de serviço presenciou todos os factos e C apresentou de
imediato queixa pela prática do crime de injúrias (181.º) e do crime de dano (212.º).
1. A pode ser julgado em processo sumário?
O processo sumário segue-se, obrigatoriamente, no caso de detenção em flagrante delito: ou
seja, Alberto terá de estar perante uma situação que possa ser qualificada como “flagrante delito”,
nos termos do artigo 256º CPP; tendo o mesmo de ter sido detido nessa situação, nos termos do artigo
255º CPP. Consequentemente, tendo de haver detenção, isto significa que o processo sumário não
pode ser aplicado a crimes particulares, dado que, nestes, o agente não pode ser detido – terá de haver,
primeiro, uma queixa contra este. Além disso, o crime pelo qual o arguido está a ser julgado terá de
ser punido, abstratamente, com uma pena não superior a 5 anos de prisão.
Ora, neste caso, A é acusado da prática do crime de injúrias (artigo 181º CP) e do crime de
dano (artigo 212º CP). O crime de injúria é, segundo o artigo 188º CP, um crime particular (“depende
de acusação particular”), pelo que, nos termos do artigo 255º, nº4 CPP, A não pode ter sido detido
em flagrante delito – por isso, não pode ser julgado por este crime em processo sumário,
independentemente de o crime ter uma pena abstrata não superior a 5 anos. O mesmo acontece com
o crime de dano: o artigo 212º, nº4 CP remete para os artigos 206º e 207º – ora, segundo o artigo 207º
CP, este crime será particular se for feito entre familiares. Assim, sendo A e C irmãos, tal norma
aplica-se: pelo que o processo sumário também não poderá ser aplicado, quanto a este crime.

2. Alberto pode ser julgado em processo abreviado?


Segundo o artigo 391º-A CPP, o processo abreviado poderá ser aplicado em situações onde
existam provas simples e evidentes, nos termos do nº4 do mesmo artigo – isto, sendo o crime
abstratamente punível com pena igual ou inferior a 5 anos; ou se o Ministério Público acredite que,
concretamente, uma pena inferior ou igual a 5 anos será a adequada.
Ora, não existindo aqui a possibilidade de saber a opinião do Ministério Público, e prevendo ambos
os crimes molduras penais não superiores a 5 anos, A poderá ser julgado por um processo abreviado
se existirem provas simples e evidentes. Isto, dado também existir uma queixa por parte de C, tal
como exigido nos termos do artigo 391º-B, nº3.
Estes casos existem quando: 1) o agente tenha sido detido em flagrante delito, mas o julgamento não
se puder efetuar sob a forma de processo sumário; 2) a prova for essencialmente documental e possa
ser recolhida no prazo previsto para a dedução da acusação; ou 3) a prova assentar em testemunhas
presenciais, com versão uniforme dos factos.
Neste caso, A encontrava-se em situação de delito, mas não foi detido pelo guarda da PSP ou por
outra pessoa no contexto dessa situação. Além disso, não existem provas documentais do sucedido;
assim como a única testemunha que existe será o guarda do PSP, não sendo C uma testemunha, mais
sim o assistente/ofendido. Concluindo, A não poderá ser julgado em processo abreviado (se
existissem duas testemunhas, já podia ser, como se especulou na aula).

3. Alberto pode ser julgado em processo sumaríssimo?


O processo sumaríssimo, nos termos do artigo 392º CPP, poderá ser aqui aplicado na medida
em que os crimes dos quais A é acusado entram no âmbito do mesmo – ou seja, são puníveis com
penas abstratamente inferiores ou iguais a 5 anos de prisão, não importando a sua natureza. No
entanto, esta possibilidade dependerá do Ministério Público: nomeadamente, se este achar que a pena
adequada, em concreto, será uma pena não privativa da liberdade do A, irá fazer um requerimento
para o juiz, para que se julgue em processo sumaríssimo, nos termos do artigo 394º CPP.
Este, por sua vez, notificará A, sendo necessário tanto o seu consentimento como o
consentimento de C, dado os crimes a ser julgados serem particulares. Se nenhum se opuser, existindo
assim uma decisão consensualizada, o juiz de julgamento analisará o caso, e toma uma decisão
condenatória. Concluindo, A poderá ser julgado em processo sumaríssimo, se existir então esta
decisão consensualizada.

PRINCÍPIOS DO PROCESSO PENAL


Os princípios de processo penal têm uma função de orientação, assim como estabelecem
limites à própria intervenção legislativa. Para além disso, os princípios estão na base da integração de
lacunas no direito processual penal, como resulta do artigo 4º CPP.
Princípio Nemo Tenetur Se Ipsum Accusare
O princípio do nemo tenetur se ipsum accusare, ou garantia contra a autoincriminação,
segundo o qual ninguém deve ser obrigado – mas não impedido – a contribuir para a sua própria
incriminação. Este princípio não tem consagração constitucional expressa, mas decorre,
eventualmente, de um direito ao processo equitativo (artigo 32º, nº1 e 2 CRP), das garantias de defesa
(artigo 32º, nº1 CRP) e da dignidade da pessoa humana (artigo 1º CRP).

Direito ao silêncio:
Uma das principais manifestações deste princípio é o direito ao silêncio (artigo 61º, alínea d)
CPP): ou seja, o tribunal não pode retirar, autonomamente e sem qualquer outros fundamentos,
consequências ou juízos do silêncio do arguido – ou seja, o silêncio não pode, por si só, desfavorecer
o arguido (artigos 343º, nº1 e 345º CPP). Tal direito não é expresso, mas pode ser enquadrado nas
garantias de defesa (nº1 do artigo 32º) e na presunção de inocência (nº2).
Tal não significa, no entanto, que o juiz não possa valorar o silêncio quando este se conjuga com
outras circunstâncias – por exemplo, na situação de existirem várias provas concretas contra o
arguido. Aqui, não dizendo o arguido nada, o juiz poderá considerar as mesmas como verdadeiras,
caso sejam sólidas; mas nunca se poderá afirmar que o arguido não falar = ele é culpado.
Ou seja, do ponto de vista jurídico, não pode haver um desfavorecimento do arguido; mas, do
ponto de vista dos factos, o silêncio do arguido faz com que a acusação acabe por ser mais forte, dado
o arguido não estar propriamente a afastar a mesma – no entanto, esta fortificação só irá acontecer
nos casos em que as provas já sejam por si fortes. No fundo, o que se diz é que o silêncio não pode
levar, automaticamente, a que o juiz considere o arguido culpado, mesmo que as provas da acusação
não sejam suficientemente fortes e sólidas para o condenar.
➔ Relaciona-se, isto, com o princípio da livre apreciação da prova: ou seja, o juiz tem uma
margem de discricionariedade (balizada por algumas regras processuais) para avaliar cada prova
apresentada, decidindo com base nessa avaliação individual. Assim, o juiz decide em função
daquilo de que se convence, ou seja, com base naquilo que considera estar ou não provado.
o Ora, se a meio do julgamento, o arguido diz que afinal estava a almoçar com a mãe no
momento do crime, sem nunca ter mencionado isso anteriormente, e sem haver outras provas
que corroborem a sua afirmação. Aqui, o facto de o juiz o condenar na mesma não implica
uma violação deste direito à não incriminação: o juiz não está a retirar esta apreciação do seu
anterior silêncio, mas, pelo contrário, condena-o com base em regras de experiência comum
(a maior parte das pessoas, tendo um álibi, revelam-no logo que são interrogadas); conjugadas
com a existência de outras provas em contrário, por parte da Acusação.
O arguido deve ser sempre informado daquilo que é o seu direito ao silêncio, e as
consequências que podem ou não ser verificadas com a utilização do mesmo. As declarações do
arguido prestadas sem que este tenha sido informado do seu direito ao silêncio não podem ser
utilizadas como prova (artigo 59º, nº5 CPP).
Especificamente, aponta-se, aqui, para os artigos 58º e 141º CPP – remetendo este último (nº4, alínea
b)) para o 357º CPP: se 1) as declarações tiverem sido prestadas perante autoridade judiciária –
tribunal (autoridade judicial) ou Ministério Público, e não as autoridades criminais/policiais – e com
assistência de um defensor; ou 2) se o arguido assim o requerer, as declarações podem ser valoradas
em audiência de julgamento. Este direito pode, ainda, ser total ou parcial (artigo 345º CPP).
Direito a não facultar meios de prova:
Outra manifestação deste princípio será o direito de não colaborar na incriminação contra
si, sendo que existe uma violação deste apenas quando a pessoa é expressamente obrigada a colaborar.
No entanto, não se exclui, enquanto legítima, a possibilidade de recolha de prova forçada – por
exemplo, nos casos de buscas domiciliares para a recolha de documentos, sem que o arguido consinta;
ou os casos de recolha de ADN à força. Em ambos os casos, o que existe será uma violação do
domicílio ou uma violação à integridade física, respetivamente; mas não será uma violação do direito
à não autoincriminação, dado que tais provas existem independentemente da colaboração do arguido.
➔ Uma coisa é pedir à empresa para elaborar um documento especificamente para aquele caso
(abrangido pela garantia contra a autoincriminação); outra é ir buscar coercivamente os
documentos à empresa, por via de mandato judicial.
Faz-se, assim, uma distinção entre o que significa “colaborar” e “sujeitar”: colaborar
implica que o arguido faça alguma coisa para passar a prova às autoridades (ex: regurgitar uma bola
de droga); sujeitar implica o arguido deixar que as autoridades façam algo para recolher a prova, que
existe independentemente da sua vontade (ex: recolher documentos). Portanto, há a violação deste
princípio quando a pessoa é obrigada a colaborar, e, além disso, se obtém prova contra ela.
No entanto, importa referir a existência da figura do crime de desobediência: o arguido, não
colaborando de forma livre, será punido por tal, dado ter também o dever de sujeição a diligências de
prova. O caso mais conhecido será o exemplo de aos condutores ser pedido para soprar no balão –
caso não o faça, o condutor poderá ser punido por crime de desobediência, mesmo que tal conduta
implique abstratamente uma contribuição do próprio para a obtenção de prova possivelmente
desfavorável a si mesmo. Tal consequência negativa poderá ser justificada pelo facto de estar em
causa a recolha de um meio de prova perecível, no âmbito da prevenção e punição de comportamentos
que põem em perigo a segurança rodoviária e os valores pessoais e patrimoniais inerentes.
Concluindo, o direito à não autoincriminação refere-se ao respeito pela vontade do arguido em não
prestar declarações, não abrangendo o uso, em processo penal, de elementos que se tenham obtido do
arguido por meio de poderes coercivos, mas que existam independentemente da vontade do sujeito –
como é o caso, por exemplo, da recolha de material biológico no ar expirado e no sangue para efeitos
de análise do grau de alcoolemia.

TEDH: Saunders versus Reino Unido


Neste caso, a diligência de prova consistiu na utilização de uma técnica para forçar o arguido
a regurgitar uma bola de droga – tendo o Reino Unido sido acusado de violar o direito à não
autoincriminação. Ora, o TEDH ponderou o nível do sacrifício dos direitos do arguido e a importância
da infração que estava em causa e, consequentemente, concluiu pela violação do artigo 3º CEDH
(tratamento desumano) e pela violação do direito à não autoincriminação, que deduz do artigo 6º, nº
1 CEDH (direito a um processo justo e equitativo).
Além disso, conclui-se que a utilização em processo criminal de declarações obrigatórias (no
caso, tomadas pelos Inspetores do Departamento do Comércio e Indústria) violava o princípio da não
autoincriminação. Assim, o princípio não abrange a utilização em processo criminal de elementos
que podem ser obtidos coercivamente, mas que existem independentemente da sua vontade – como
é o caso dos documentos obtidos em buscas, amostras de sangue e tecidos para exames de ADN, etc.
Princípio da Presunção de Inocência
O princípio da presunção de inocência está consagrado no artigo 32º, nº2 CRP, tendo os seus
fundamentos nos direitos à liberdade e à dignidade da pessoa humana. Ou seja, o princípio da
presunção de inocência prossegue um objetivo essencial na caracterização da função do processo
penal que é o de garantir que, no desempenho da sua atividade repressiva, o Estado não submeta a
consequências penais quem, na verdade, não cometeu qualquer crime.
Este surge, por um lado, associado ao princípio da celeridade – visto que quanto mais tempo
o processo se arrasta, mais tempo a pessoa é vista, socialmente, como culpada do crime que está a ser
acusada –; e, por outro lado, ao princípio do in dubio pro reo, a ser discutido mais à frente.
Além disso, o princípio da presunção da inocência tem reflexo na estrutura do próprio
processo penal. Assim, por um lado, o arguido não pode ser tratado como culpado ao longo do
processo (ex: gaiolas de vidro), sob pena de ficar com uma marca indelével, mesmo no caso de o
resultado final ser a absolvição. Por outro lado, existe também a impossibilidade de definição
legislativa de presunções de culpa – uma vez que esta desencadearia, em caso de dúvida, uma decisão
contrária ao arguido.
O princípio da verdade material é, também, aqui chamado: só interessa, ao Estado, condenar as
pessoas que são culpadas da prática de crime, logo é preciso que a verdade processual seja a mais
próxima daquilo que aconteceu, e não apenas uma verdade formal (ou seja, o que é possível
comprovar em tribunal pelos meios admissíveis).
➔ No processo civil, a verdade que surge resulta dos contributos de ambas as partes e, até, de uma
consequência negativa de uma das partes não impugnar os facto – dando-se provados factos só
porque o réu não contestou. Significa isto que a verdade do final do processo pode não ser a
verdade material.
Assim, em processo penal, a verdade material atinge-se melhor pelo princípio da acusação,
integrado num princípio de investigação e com a presunção de inocência.

Princípio In Dubio Pro Reo


O princípio in dubio pro reo decorre diretamente do princípio da presunção de inocência
consagrado no artigo 32º, nº 2 CRP. A dúvida razoável é, assim, uma dúvida que não permite concluir
pela prática dos factos pelo arguido. Consequentemente, este princípio dita que, no âmbito da decisão
final do julgamento, caso o juiz tenha dúvida razoável de que o arguido tenha cometido o crime
– dúvida quanto aos factos apresentados e à sua verificação –, deve julgar em favor deste.
Este princípio manifesta-se nas seguinte regras: o depoimento só vale se for direto (artigo 128º CPP);
o depoimento indireto não pode ser considerado se não for ouvida a fonte originária (artigo 129º
CPP); e não é admissível a reprodução de rumores ou vozes públicas (artigo 130º CPP).
No entanto, este só tem aplicação em caso de surgimento de dúvida razoável, não abrangendo
dúvidas quanto ao enquadramento jurídico: por exemplo, se o juiz tiver dúvidas sobre se os factos
(provados) se conseguem enquadram num tipo legal de crime, tal dúvida já terá a ver com um
raciocínio em função do princípio da legalidade, mas não será uma “dúvida razoável” quanto à
verificação dos factos e as provas.
➔ Assim, o princípio da presunção de inocência acaba por ser mais amplo do que o princípio in
dúbio pro reo: este último só intervém caso exista dúvida razoável; enquanto a presunção de
inocência intervém na própria racionalidade dessa dúvida razoável (ex: depoimento indireto).
Além disso, denota-se que este princípio não é equivalente a um verdadeiro ónus de prova
a cargo da Acusação. Dado que o Ministério Público tem o dever de colaborar na busca da verdade
material, não poderá haver uma consequência desvantajosa para o mesmo enquanto sujeito, se tais
factos não conseguirem ser provados. Ou seja, a acusação tem efetivamente um ónus (material) de
produzir meios de prova – mas a decisão a favor do arguido, em caso de dúvida, não representa uma
decisão contra o interesse da acusação, uma vez que o Ministério Público representa o interesse
público e tem obrigação de investigar o que for necessário para esclarecer a suspeita do crime
(incluindo factos que possam ser favoráveis ao arguido). O que este princípio poderá fazer, sim, é
motivar o Ministério Público a fazer um trabalho suficientemente bom, para que não se chegue sequer
a esta dúvida razoável – incentiva, assim, a uma recolha de prova forte.
➔ Quanto ao assistente, a absolvição do arguido já poderá ser considerada uma desvantagem; no
entanto, também será difícil dizer que a condenação do mesmo consista uma vantagem: não
existe, como existe em processo civil, uma indemnização, por exemplo.

Princípio da Separação de Funções entre Acusador e Julgador


O princípio da separação de funções entre acusador e julgador exige que a investigação esteja
a cargo de uma entidade diferente daquela que faz a apreciação da responsabilidade do arguido.
Assim, por um lado, é o Ministério Público que investiga e acusa, nos termos dos artigos 53º, nº2,
alíneas b) e c); 262º e seguintes; e 283º e seguintes CPP. Já o julgamento (artigos 311º e seguintes
CPP) é realizado por um tribunal que não investigou os factos, dentro dos limites factuais da acusação
(ou do requerimento para abertura da instrução) – artigos 309º, 379º, 286º, 287º e 359º CPP.

Princípio da Acusação
O princípio da acusação exige a existência de uma acusação formal prévia deduzida por
uma entidade diferente do julgador, para a existência de uma decisão sobre a responsabilidade penal
do arguido. No entanto, em alguns casos, a lei faz equivaler um outro ato à acusação – nomeadamente,
a leitura do auto de notícia nos processo sumários (artigo 389º, nº2 CPP). A falta de acusação implica
nulidade insanável por falta de promoção, nos termos do artigo 119º, alínea b) CPP.
Existem, de facto, alguns mecanismos processuais que pressupõem uma atribuição de
responsabilidade, mas onde não há lugar à dedução de acusação. São os casos do arquivamento do
processo, em caso de dispensa de pena (artigo 280º CPP); e a suspensão provisória do processo (artigo
281º CPP). Ambos pressupõem, no entanto, intervenção judicial.
Deste princípio da acusação decorrem, ainda, outros dois subprincípios:
➔ Princípio da identidade do objeto do processo: o objeto do processo (conjunto dos factos de
que depende a imputação ao arguido de um determinado crime) deve manter-se o mesmo desde
que é fixado até ao trânsito em julgado da decisão. Esta fixação pode ser feita ou na acusação, ou
no despacho de pronúncia – isto, visto que a instrução pode ser aberta para que o juiz se pronuncie
por factos que não estão na acusação feita.
o Após a acusação, não pode haver uma alteração do objeto do processo – exceto 1) no caso de
requerimento de abertura de instrução pelo assistente; ou 2) no caso de alteração substancial
de factos (artigo 1º, alínea f) CPP). Esta segunda não é possível na instrução, mas apenas na
fase de julgamento, e terá de ter o acordo do assistente e arguido (artigo 359º, nº3 e 4 CPP).
▪ Caso contrário, os factos não podem ser conhecidos naquele processo – poderão é ser
investigados em processo autónomo. A alteração não substancial já pode ser tida em
consideração, desde que seja dado um prazo ao arguido para se defender da mesma.

➔ Princípio da vinculação temática: Quer no julgamento, quer na instrução, o juiz só pode


conhecer os factos que constam da acusação. Consequentemente, existe nulidade da sentença
(artigo 379º, nº 1, alínea b) CPP) e da decisão instrutória (artigo 309º, nº 1 CPP) que conheçam
de outros factos.
o Isto liga-se ao exercício efetivo do direito de defesa por parte do arguido: este tem a garantia
de não ser surpreendido com novos factos na audiência de julgamento, podendo aí exercer de
forma cabal o direito de contraditar os factos que lhe são imputados na acusação.

Princípio do Contraditório
O princípio do contraditório pode ser encontrado no artigo 32º, nº5 CRP, segundo o qual as
decisões do tribunal devem partir de uma ponderação dos contributos dos vários sujeitos
processuais – pelo que estes terão de ter a oportunidade de se pronunciar sobre os factos e provas.
O arguido é o destinatário privilegiado do princípio, mas este também abrange os demais sujeitos
processuais. De qualquer das formas, existem os seguintes direitos do arguido:
➔ Consulta do processo e obtenção de autos (artigos 89º, nº1 e 90º CPP).
➔ Estar presente em atos processuais (artigo 61º, nº1 CPP).
➔ Ser ouvido e pronunciar-se: junção de documentos (artigo 165º, nº2 e 3 CPP); e direito a falar em
qualquer momento na audiência de julgamento (artigo 343º CPP).
Este princípio tem um reflexo diferente consoante as fases do processo: por um lado, este tem
um alcance limitado no inquérito, apenas sendo verificado, por exemplo, nas declarações para
memória futura (artigo 271º CPP), na constituição como assistente (artigo 68º, nº4 CPP), e na
aplicação de uma medida de coação (artigo 194º, nº4 CPP). Por outro lado, tanto na instrução (artigos
289º e 298º CPP) como no julgamento, tal princípio já vigora mais largamente, em geral (artigos 321º,
nº3; 322º, nº2; 327º; e 360º, nº1 e 2 CPP).

Princípio da Independência do Juiz


O princípio da independência do juiz (artigo 203º CRP) provém da ideia de que não interessa
apenas que haja uma separação entre quem acusa e julga – é preciso, também, que quem julga tenha
um estatuto de independência. Assim, serão necessárias regras que visam evitar que o juiz tenha
uma relação com o caso que o impeça de decidir com objetividade.
Por um lado, disto resulta que os magistrados judiciais são inamovíveis (artigo 216º, nº1 CPP),
nunca estando sujeitos a supervisão administrativa (artigo 216º, nº2 CRP) – existe, assim, uma
independência perante outros poderes do Estado. Por outro lado, os magistrados judiciais têm
garantias de independência concreta, nomeadamente com os impedimentos (artigos 39º e 40º CPP) e
as suspeições (artigo 43º, nº1 CPP) – que, no entanto, têm de ser encarados objetivamente, visto que
os juízes, apesar da sua profissão, também fazem parte da sociedade.

Princípio da Jurisdicionalidade
Segundo o princípio da jurisdicionalidade, as decisões acerca da responsabilidade penal, de
aplicação de penas e medidas de segurança, têm de ser sempre tomadas por um juiz – algo que
resulta dos artigos 27º, nº2 e 202º CRP (assim como do artigo 8º CPP). Este visa, sobretudo, garantir
a imparcialidade dos magistrados – daí que, quando o Ministério Público suscita alternativas
processuais que divergem daquilo que é o caminho normal do processo (ex: suspensão provisória do
processo), tem de existir sempre a intervenção de um juiz.
A CRP também atribui, no nº4 do seu artigo 32º, ao juiz a competência para a instrução.
Resgatando a discussão feita no acórdão 7/87 sobre a direção do inquérito pelo Ministério Público,
atualmente é este que conduz o inquérito (artigo 263º CPP) – no entanto, todos os atos que colidam
com direito fundamentais ou que sejam materialmente jurisdicionais têm de ter a intervenção de um
juiz (artigos 280º, 281º e 392º CPP).

Princípio do Juiz Natural


O princípio do juiz natural (artigo 32º, nº9 CRP) significa que nenhuma causa pode ser
subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior (nos termos do artigo 165º,
nº1, alínea p) CRP) – ou seja, não se pode escolher o juiz e o tribunal que se quer para aquele caso
(daí a polémica com a escolha dos juízes na instrução, no caso Sócrates). Proíbe-se, assim,
Significa isto que não se pode criar regras específicas para um determinado caso ou para uma
determinada categoria de crimes (artigo 209º, nº4 CRP) – precisamente para que o juiz mantenha
sempre a sua independência. Esta regra vale tanto para o tribunal de julgamento, como para o juiz de
instrução, como para o recurso: proíbe-se a criação de tribunais especiais ou de exceção (ad hoc),
para garantir que não há interferências políticas, religiosas ou outras por via da manipulação de regras.
Refere-se, aqui, o acórdão TC 614/2003, onde houve uma alteração de regras sobre a
competência de cada tribunal, a dado momento. Aqui, conclui-se que tal alteração não seria
inconstitucional, na medida em que as regras adicionadas sejam suficientemente determinadas, que
permitam a definição do tribunal competente segundo características gerais e abstratas.
Consequentemente, não viola o princípio do juiz natural a alteração de regras relativas ao tempo ou
momento da distribuição de um incidente processual, das quais indiretamente resultaria uma alteração
da composição do tribunal.
➔ Isto, porque este princípio não obsta a que haja lugar a alteração das regras de competência – o
que se proíbe é que se conceda, legalmente, uma margem de discricionariedade na determinação
da competência. As regras têm, assim, de ser gerais e objetivas.

Princípio da Legalidade na Promoção do Processo


O princípio da legalidade na promoção do processo pode implicar dois sentidos: por um lado,
no sentido de que as autoridades públicas só podem intervir e atuar no processo, na medida em que a
lei as habilite a fazê-lo (artigo 2º CPP); e por outro lado, no sentido em que constitui o Ministério
Público num dever de promover o processo perante todas as notícias de infração (a não ser, claro,
que dependa de queixa).
Esta obrigatoriedade na promoção do processo tem o fundamento no princípio da igualdade
(artigo 13º CRP), na medida em que todos os casos em que há infração deverão sujeitos a processo.
Além disso, realça-se o princípio da judicialidade, na medida em que não pode ser o Ministério
Público a decidir a responsabilidade penal dos suspeitos/arguidos – isto, dado que existe uma reserva
judicial da decisão sobre o caso concreto. Pretende-se, também, assegurar o princípio da
imparcialidade, evitando manipulações e “processos na gaveta”. Por fim, existe também uma
vinculação do Ministério Público ao princípio da legalidade, nos termos do artigo 219º, nº1 CRP.
Denota-se que, mesmo sendo “óbvio” que não há crime, mas apenas factos que se podem subsumir a
um tipo de crime, o Ministério Público continua a ter um dever de promoção obrigatório – este terá,
na mesma, de abrir inquérito e recolher provas, sendo que a decisão de inexistência de crime deverá
caber ao juiz, e não meramente ao Ministério Público. Contudo, esta obrigatoriedade de promoção
pelo Ministério Público depende da existência de notícia de crime: assim, se a informação
comunicada ao mesmo não corresponder, sequer, a um crime, não existe notícia de crime – e,
portanto, não há obrigatoriedade de abertura de processo.

Manifestação do princípio da oportunidade


Nos sistemas de legalidade (de dever de promoção), como o português, também há soluções
que se afastam do percurso normal do processo, conferindo ao Ministério Público uma certa margem
de manobra na sequência a dar os casos. Estas, no entanto, não são alternativas processuais que se
coloquem no momento inicial do processo, e que permitam excluir a promoção inicial – apenas
permitem que o Ministério Público desencadeie alternativas processuais à dedução de acusação, não
obstante a verificação de indícios suficientes, os quais não conduzem a uma condenação.
São estes os casos do arquivamento em caso de dispensa de pena, e da suspensão provisória.
Assim, durante o processo, existem alternativas processuais que permitem pôr fim ao processo com
um arquivamento – ora, apesar de não se condenar ninguém, existiu uma apreciação da
responsabilidade da pessoa envolvida (artigos 280º e 281º CPP).
Correspondem estas as soluções de oportunidade? O princípio da oportunidade pressupõe a existência
de uma certa margem de discricionariedade na decisão (“deve” vs. “pode”). Ora, no caso da suspensão
provisória, o legislador não parece deixar esta margem ao Ministério Público, dado que se utiliza a
expressão “determina” e não “pode determinar” – como é feito no caso do arquivamento em caso de
dispensa (“pode decidir-se”). Estas soluções, assim, fundamentam-se não com este princípio da
oportunidade; mas, sim, com o princípio da intervenção mínima do direito penal.
Outro aspeto tem a ver com as prioridades da política criminal: a Lei 55/2020 estabelece as
prioridades que o Ministério Público deve seguir na instauração dos processos. Ou seja, o critério na
instauração de processos não é fazê-lo por ordem de chegada da notícia do crime – existem critério
específicos, relativamente aos tipos de crime e aos crimes de investigação prioritária (por exemplo,
crimes em que as provas desaparecem mais rapidamente).
No entanto, o artigo 6º, nº4 dessa lei refere, também, que tais critérios não se aplicam se houver riscos
de prescrição do processo – isto, precisamente porque os crimes são todos para decidir.
Artigo 5º: Crimes de investigação prioritária
São considerados crimes de investigação prioritária:
a) Os crimes contra a vida e contra a integridade física praticados contra ou por agentes de autoridade;
b) O terrorismo e os crimes previstos na Lei n.º 52/2003, de 22 de agosto;
c) A violência doméstica e o homicídio conjugal;
d) Os crimes praticados contra vítimas especialmente vulneráveis, incluindo as crianças, os jovens, as mulheres
grávidas e as pessoas idosas, doentes, pessoas com deficiência e imigrantes;
e) A cibercriminalidade, incluindo os crimes cometidos por meio de um sistema informático ou de comunicação;
f) Os crimes violentos, bem como os praticados de forma organizada ou em grupo;
g) O tráfico de pessoas;
h) Os crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual;
i) A extorsão;
j) O furto e o roubo em residências;
k) A corrupção e a criminalidade conexa;
l) A criminalidade económico-financeira, em especial o crime de branqueamento de capitais;
m) Os crimes fiscais e contra a segurança social;
n) Os crimes contra o sistema de saúde;
o) A criminalidade em ambiente escolar e em ambiente de saúde;
p) O crime de incêndio florestal e os crimes contra o ambiente e o tráfico de espécies protegidas;
q) Os crimes em contexto rodoviário de que resulte a morte, a condução perigosa de veículo rodoviário e a condução
de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas;
r) Os crimes contra a autoridade pública cometidos em contexto de emergência sanitária ou de proteção civil;
s) A propagação de doença.

Artigo 6º: Efetivação das prioridades e orientações


3 - A atribuição de prioridade a um processo confere-lhe precedência na investigação criminal e na promoção
processual sobre processos que não sejam considerados prioritários.
4 - O disposto no número anterior não se aplica quando implicar o risco de prescrição relativamente a processos que
não sejam considerados prioritários, nem prejudica o reconhecimento do caráter urgente a outros processos, nos termos
legalmente previstos.

Princípio da Legalidade da Prova


Segundo o princípio da legalidade da prova, só são admissíveis as provas que não forem
proibidas por lei, obtidas por meios legais e de acordo com as regras processuais previstas (artigo
32º, nº8 CRP; e artigos 125 e 126º CPP). As provas (artigos 128º a 170º CPP) são, em si, aquilo que
permite provar os factos. Já os meios de obtenção de prova (artigos 171º a 190º CPP) são os meios
utilizados para conseguir recolher essas provas.
Fala-se, aqui, do acórdão do TC nº 155/2007, relativo à recolha de ADN (artigos 154º e 172º
CPP). A recolha do DNA à força não constitui uma violação do direito à não autoincriminação, visto
que tal recolha não pressupõe a vontade do arguido – lesando, no entanto, outros direitos como a
integridade física e a liberdade; mas não a presunção de inocência. Assim, existe, sim, violação apenas
quando o agente é obrigado a contribuir; sendo que a lesão de outros direitos está, por outro lado,
justificada nos termos do artigo 18º, nº2 CRP.
➔ O fundamento do direito ao silêncio será a presunção de inocência e dignidade pessoal – o arguido
é sujeito e não objeto do processo. O direito à não autoincriminação refere-se ao respeito pela
vontade do arguido em não prestar declarações – não abrangendo o uso, em processo penal, de
elementos que se tenham obtido do arguido por meio de poderes coercivos, mas que existam
independentemente da vontade do sujeito, como é o caso da colheita de saliva para efeitos de
realização de análises de ADN.
➔ O exame constitui, assim, uma restrição dos direitos fundamentais à integridade física e à
liberdade geral de atuação; sendo depois preciso analisar se essa restrição, feita para a prossecução
das finalidades específicas do processo penal, respeita as condições que a Constituição prevê.
Nomeadamente, a diligência tem de ser decretada por juiz, uma vez que se trata de ato que
contende, de forma relevante, com direitos, liberdades e garantias fundamentais.
Consequentemente, o TC determinou que não era uma violação do princípio da legalidade da prova:
isto, desde que tal exame esteja justificado com ordem do juiz (artigo 154º, nº3 CPP) – tendo, ainda,
de se avaliar o mesmo à base do princípio da proporcionalidade.
Relativamente ao acórdão do TC nº 628/2006, o TC defendeu que o ato de soprar no balão
não obriga o arguido a produzir prova contra si próprio. Ou seja, a realização dos testes para deteção
de álcool no sangue do condutor não constitui, em si mesma, uma declaração ou incriminação, já que
não se obriga o detetado a emitir uma declaração que exteriorize um conteúdo, admitindo a sua culpa
– mas, sim, apenas a tolerar que sobre ele recaia uma especial modalidade de perícia.

PROCESSO DE CONTRAORDENAÇÃO
Introdução
O processo de contraordenação aplica-se não só às pequenas contraordenações rodoviárias,
mas também a outros tipos de contraordenações – existindo bastantes especialmente nas atividades
“reservadas”: atividades para as quais as pessoas precisam de ter uma determinada habilitação, como
bancos ou seguradoras. Assim, nestas áreas, estabelecem-se deveres que, quando violados, não dão
origem a um crime, mas sim a uma contraordenação.
A decisão de estabelecer se uma conduta é um crime ou uma contraordenação acaba por
ser política. Normalmente, uma conduta que não viola um bem jurídico de “dignidade constitucional”
não pode ser crime – daí a discussão dos crimes contra animais de companhia. No entanto, pode-se
prever como contraordenações condutas que tutelem bens com dignidade constitucional, ao abrigo
do princípio da intervenção mínima do direito penal, caso a contraordenação chegar para tutelar tal
bem – por exemplo, as normas do Código da Estrada.
Autoridades Competentes
A primeira grande característica do processo de contraordenação é que a fase que conduz à
apreciação da responsabilidade do visado – fase administrativa (obrigatória) – é, regra geral, da
titularidade de uma autoridade administrativa (artigos 33º e 34º RGIMOS) – ou seja, é esta que,
normalmente, investiga e aprecia a responsabilidade e decide se aplica uma coima, se arquiva o
processo, etc.
Não existe, aqui, intervenção judicial, a não ser em certos casos pontuais de recursos judiciais na
pendência da fase administrativa (artigos 55º RGIMOS): nomeadamente, sobre questões relacionadas
com medidas cautelares, nos casos em que os regimes especiais as prevejam. Estas decisões do
tribunal não são recorríveis, tendo um efeito meramente devolutivo.
Outra das exceções a esta características será nas situações de concurso entre crime e contraordenação
(artigos 38º e 39º RGIMOS). Nestes casos, existe uma concentração da competência nas autoridades
responsáveis pelo processo criminal: a decisão cabe ao juiz competente para julgar o crime. No
entanto, tal exceção da concentração de competências não vigora nos processos de contraordenação
do setor financeiro.
Além disso, as autoridades administrativas têm os mesmos deveres e direitos das
autoridades competentes para o processo criminal, nos termos do artigo 41º, nº2 RGIMOS. O regime
geral das contraordenações é relativamente curto e, por vezes, existem situações que têm de ser
resolvidas com recurso ao CPP – daí que exista esta norma, que remete para a aplicação subsidiária.

Fase Administrativa: Tramitação do Processo

Início do procedimento – Nota de infração:


O processo começa com a existência de uma notícia de infração, que, tal como no regime
de processo penal, dá origem, obrigatoriamente, à abertura de processo e ao dever de promoção (artigo
54º, nº1 RGIMOS). Tal dever pode ser mais caótico do que no processo penal: existe um número
enorme de contraordenações, muito maior do que o número de crimes – pelo que, não conseguindo
as autoridades administrativas fazer uma seleção, um grande número delas acaba por prescrever.
Segundo os artigos 48º, nº1 e 1º RGIMOS, a definição de contraordenação é identificada pelo
tipo de sanção, não existindo nenhuma justificação material. Assim, fala-se, aqui, de todos os eventos
ou circunstâncias suscetíveis de implicar responsabilidade por contraordenação como sendo a
notícia de infração. Consequentemente, a notícia de infração pode ser adquirida pelas autoridades
policiais ou fiscalizadoras, que terão o dever de as comunicar (artigo 48º, nº3 RGIMOS). A notícia
de infração poderá vir, também, de denúncia particular.
Já segundo o artigo 41º RGIMOS, não se aplica ao processo contraordenação o direito
administrativo, nem o CPA, nem o CPTA. Assim, as contraordenações são reguladas 1) pelas normas
processuais da área em específico; 2) pelo regime geral das contraordenações; e 3) pelo CPP. A fase
administrativa do processo de contraordenação chama-se assim em função das entidades que são
competentes para decidir do processo; e não em função do direito aplicado.

Imputação e defesa (artigo 54º, nº2):


Segue-se o momento central da imputação e defesa – sendo que, aqui, não há
obrigatoriedade de inquérito, nem de instrução. No processo de contraordenação, a fase da
instrução, se necessária, é diferente, estando mais relacionada com a atividade material de prova: ou
seja, é onde se recolhe todas as provas necessárias e suplementares, para comprovar que o arguido
cometeu a contraordenação que lhe foi imputada.
➔ No entanto, mais uma vez, a instrução é eventual: se a polícia, ao fazer a notícia, já recolheu as
provas suficientes, a administração apenas tem de se limitar a cumprir o artigo 50º RGIMOS.
Denota-se, aqui, que o artigo 50º RGIMOS diz que nos processos contraordenacionais são
asseguradas todas as garantias criminais; em contradição com o artigo 32º, nº10 CRP, que prevê que
apenas sejam assegurados os direitos de audiência e defesa. Assim, e de acordo com os acórdãos do
TC nº344/93 e 405/2009, não será constitucionalmente imposta a total equiparação às garantias do
processo penal.
Os direitos de audiência e defesa do arguido que são, então, constitucionalmente previstos no
processo contraordenacional serão: 1) o direito a ser ouvido; 2) o direito a ser assistido por defensor;
3) o direito a apresentar defesa e requerer diligências de prova (sedo que a administração não
está obrigada a fazê-las, se estas forem completamente inúteis, ou inconcebíveis, ou apenas destinadas
a atrasar o processo); 4) o direito a participar nas diligências de prova ocorridas entre a apresentação
da defesa e a decisão; e 5) o direito a impugnar a decisão.
Significa, isto, que existe um princípio do contraditório, dado ser ao arguido a possibilidade de se
defender: este tem acesso ao processo a partir do momento em que é notificado, podendo trazer provas
ao mesmo – uma característica da estrutura acusatória.

Instrução: Prova
O princípio da presunção de inocência também se aplica neste momento. A aplicação deste
a todas as intervenções de natureza sancionatória pública tem sido avaliada como necessário pelo
TEDH, pelo que também se aplicaria no processo contraordenacional: assim, a autoridade
administrativa não pode aplicar coima perante indícios que não comprovam solidamente que o
arguido tenha cometido a contraordenação – ou seja, terão de passar o critério da “dúvida razoável”.
Isto, porque o princípio da presunção de inocência surge como uma forma de reagir contra os abusos
das autoridades estaduais – sendo evidente, no entanto, de que o risco de não se aplicar a coima a
uma pessoa inocente (presunção de inocência enquanto escolha política) é diferente.
Será, então, que isto significa que se viola o princípio da presunção de inocência o arguido ter de
pagar logo a coima antes de recorrer? Seria o mesmo que ser logo preso no final do julgamento da 1ª
instância? Perante estas perguntas, conclui-se que o TC (acórdãos nº674/2016 e 123/2018) aplica,
sem dúvida, o princípio da presunção de inocência ao processo contraordenacional – mas, depois, faz
um juízo de proporcionalidade que chega a conclusões diferentes do que se fosse num processo penal.
Outro tópico importante a falar será o direito à não autoincriminação. Ora, no caso das
ordenações, a possibilidade de produzir prova é mais restrito do que no processo penal – isto, porque
os bens jurídicos tutelados e o modo de lesão dos mesmos que estão previstos nas contraordenações
são bastante diferentes em relação aos crimes, estando o legislador a antecipar a tutela dos mesmos.
Portanto, os tipos de comportamentos são menos graves, menos próximos da lesão do bem jurídico
ou nem são de dignidade constitucional – consequentemente, a importância da sua perseguição
também será inferior, logo haverá menos margem para o Estado se “intrometer” e produzir prova.
➔ A maior ou menor importância e, consequentemente, a maior margem para produzir prova, será
avaliada em função da conduta ser mais grave (ex: concorrência ou setor financeiro); e não do
agente, na medida se este já tiver tido várias acusações no passado.
Assim, não são permitidas provas que impliquem uma intromissão na correspondência
ou nos meios de telecomunicação (artigo 34º, nº4 CRP), nem que violem o segredo profissional
(artigo 42º RGIMOS). Existem, no entanto, soluções específicas do setor financeiro: especialmente,
quanto ao segredo profissional.
Além disso, será necessário o consentimento para exames corporais, prova de sangue e provas que
colidam com a reserva da vida privada (quanto à questão do balão, é diferente). O princípio da livre
apreciação da prova também se verifica, nos termos do artigo 127º CPP. Por fim, as testemunhas não
são ajuramentadas (mas 360º CP).

Decisão:
A decisão, tomada depois da instrução (quando esta se verifique) poderá ser: 1) uma
admoestação, que tem de ser proferida ou escrita (artigo 51º RGIMOS); 2) um arquivamento, caso
se considere não existir provas (artigo 54º, nº2 RGIMOS); ou 3) uma condenação, caso se considere
existirem provas (artigo 58º RGIMOS). Relativamente a esta última, a sanção poderá ser uma coima
(artigos 17º e 20º RGIMOS e regimes substantivos) e/ou sanções acessórias (artigos 21º a 26º
RGIMOS e regimes substantivos).
Esta decisão é tomada pela mesma autoridade administrativa que investiga e acusa – ou seja,
não existe aqui a separação de quem acusa e de quem julga, típica de uma estrutura acusatória. O
processo de contraordenação tem princípios da estrutura acusatória e da estrutura inquisitória.
No entanto, em todos os casos, a decisão administrativa é recorrível para os Tribunais, passando esta
a valer com acusação: assim, a recuperação da estrutura acusatória dá-se nesse momento, dado ser aí
que existirá a intervenção de um tribunal imparcial e independente, que decide o caso como se fosse
a primeira vez a ser acusado.

Fase Judicial
1ª instância:
A 1ª instância é aberta a todas as decisões das autoridades administrativas, dado garantir,
como já foi visto, o equilíbrio do processo de contraordenação (artigo 59º RGIMOS). Questionava-
se, anteriormente, se a admoestação também poderia ser impugnada, dado ser apenas um “ralhete”:
no entendimento do TC, no seu acórdão nº299/2013, a admoestação também poderia ser impugnada,
dado também ser uma sanção. Ora, significa isto que, sendo uma sanção, poderá contar como um
antecedente no cadastro do agente – o que acaba por retirar uma certa flexibilidade ao sistema, dado
que estaria prevista para ser aplicada a coisas pequenas e, por isso, não seria considerada como um
antecedente criminal (ficando registados para o futuro).
Normalmente, são os tribunais comuns que julgam estas decisões; mas há certos casos em que
o recurso terá de ir para os tribunais administrativos (ex: contraordenações do setor da economia, em
que os recursos vão para o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão).

Regime
A impugnação entrega-se na autoridade administrativa, sendo esta que envia a mesma ao
Ministério Público. Este, por sua vez, apresenta a decisão ao tribunal, passando esta valer como
acusação. O juiz tem, perante a impugnação de uma decisão, a hipótese de marcar uma audiência
de julgamento (artigo 65º RGIMOS), ou de decidir por despacho (artigo 64º RGIMOS).
Esta última possibilidade será verificada quando o juiz – que decidirá em função das provas que se
encontram no processo, não as dispensando – achar que as provas já existentes são suficientes. Tal
via depende, no entanto, da não oposição do arguido e do Ministério Público – assim como, em certas
ocasiões, da autoridade administrativa que decidiu em primeiro lugar.
Decidindo-se marcar uma audiência de julgamento, por entender que são necessárias mais
provas para avaliar o caso, compete ao juiz determinar o âmbito da prova que é necessária produzir
no mesmo (ex: este decide apenas ouvir testemunhas novas, e não ouvir de novos testemunhas cujos
testemunhos estão escritos no processo – algo que não pode ser feito em processo penal). Nesta irão
participar o juiz, o arguido, o defensor e o Ministério Público.
As autoridades administrativas poderão participar, nos termos do artigo 70º RGIMOS. No entanto,
este papel das autoridades, no regime geral, não será tão proeminente quanto aos do outros sujeitos
processuais: estas podem trazer elementos ao processo, mas não têm qualquer poder de conformação
do mesmo. Noutros regimes setoriais, tal poder conformação poderá, no entanto, existir, tendo em
conta a complexidade das matérias tratadas.

Reformatio in pejus e efeitos da impugnação


No regime geral vigora, também, a proibição da reformatio in pejus (artigo 72º-A RGIMOS).
Significa isto que quem impugna uma decisão da autoridade administrativa não pode ver a sua
situação agravada – isto, visto que a impugnação só pode ser suscitada, regra geral, pelo arguido.
No entanto, o facto de o “recurso” ser, na verdade, visto como uma acusação, tal já será criticável:
com esta alteração, a impugnação acaba por ficar menos definida – ora, quanto à natureza da
impugnação judicial, esta afigura-se como um verdadeiro recurso? Tal será importante, dado ter
reflexos, depois, quanto às normas do CPP que poderão ser aplicadas. Aqui, parece existir uma
natureza “híbrida”, existindo normas que aproximam a 1ª instância dos recursos penais – como a
proibição da reformatio in pejus, o facto de o arguido fazer alegações, o facto do juiz ter de ter em
consideração as coisas feitas na fase administrativa.
Dentro deste assunto, importa discutir o efeito da impugnação – nomeadamente, saber se o
facto de um arguido impugnar tal decisão suspende a execução dessa decisão da autoridade
administrativa; ou se, ainda assim, a autoridade administrativa pode executar e ficar pendente do
resultado da 1ª instância (ex: ter de pagar a coima). O RGIMOS não tem uma norma que regule este
assunto, pelo que, segundo a doutrina maioritária, esta é uma situação em que provavelmente se teria
de aplicar o CPP – onde o recurso teria efeito suspensivo.
No entanto, para a professora, não existe aqui uma lacuna que justifique aplicar o CPP, dado que
aquilo que está em julgamento é uma acusação. Ora, se o RGIMOS diz que o recurso transforma a
decisão administrativa em uma acusação, então não existe uma decisão que se possa executar.
Assim, por uma via ou por outra, conclui-se que o regime é o de quem impugna uma decisão de
autoridade administrativa não terá de pagar a coima (no regime especial, já existem outras regras).

2ª instância:
A segunda instância já não é aberta a todas as decisões: apenas os casos do artigo 73º
RGIMOS podem ser recorridos para o Tribunal da Relação. Este recurso é exclusivo quanto à matéria
de direito: ou seja, o tribunal da Relação não vai avaliar a matéria de facto, dado esta já ter sido
avaliada por uma autoridade administrativa e, ainda, pelo juiz da 1ª instância.
No regime geral, se o arguido for absolvido, só o Ministério Público é que pode recorrer; depois, nos
regimes setoriais, existe a possibilidade de algumas autoridades administrativas recorrerem.
➔ Para a professora, não deve haver processos a andar para trás e para a frente, para a autoridade
administrativa ir corrigindo – não tem cabimento na lei. A autoridade administrativa tem a sua
função: se não a fizer, o processo é arquivado e o arguido é absolvido pelo tribunal. Assim, não
deve poder haver remissão para as autoridades administrativas para corrigirem e sanear os seus
erros – até porque isto tem sempre o limite da prescrição.

Especialidades do Regime Financeiro


A atividade sancionatória no setor financeiro rege-se por: 1) Disposições processuais do
CódVM, do RGIC e do Regime Processual do Setor Segurador; 2) RGIMOS; e 3) CPP (ex vi artigo
41º RGIMOS). As normas relativamente ao setor financeiro consistem, assim, em afastamentos
significativos das soluções legais do RGIMOS; assim como em soluções que visam apenas explicitar
o regime geral; e novos mecanismos processuais, no âmbito do direito de mera ordenação social.
Consequentemente, as principais especialidades deste regime são:
➔ Estatuto processual das autoridades na fase de impugnação judicial: A complexidade técnica
das matérias implica um nível de especialização que só as entidades reguladoras detêm – por isso,
há um reforço do papel processual, sendo assim verdadeiros sujeitos processuais, na medida que
têm poder de conformação do processo (ex: participam na audiência de julgamento; podem
recorrer autonomamente; e têm de dar o seu acordo/não oposição à decisão por despacho e à
desistência da acusação).
o Artigo 416º CodVM, 231º RGIC e 30º-31º Setor Segurador.

➔ Dever de colaboração das entidades supervisionadas.

➔ Alargamento dos prazos de prescrição – existindo prazos a começar no momento do


conhecimento dos factos, se estes tiverem sido deliberadamente encobertos pelo arguido.

➔ Maior formalização da fase administrativa: No regime financeiro, prevê-se acusações formais,


inquérito, etc. dado estarem em causa coimas de valor mais elevados (artigos 414º-A CVM e 14º
Setor Segurador; assim como 219º-A, nº2 RGIC).
o Necessidade de dedução de uma acusação completa que permita o pleno exercício do direito
de defesa: distinção mais nítida entre o momento prévio ao cumprimento do artigo 50º e o
momento posterior que conduz à decisão.

➔ Mecanismos processuais simplificados: O intenso nível de regulamentação abrange grande


número de incumprimentos, alguns de gravidade concreta reduzida. Assim, poderão ser aplicados,
aqui, a advertência (Setor Segurador); o procedimento de advertência (CVM); e o processo
sumaríssimo (artigos 414º CVM, 227º-A RGIC, e 15º Setor Segurador).
o Relativamente ao processo sumaríssimo, pressupõe-se, no caso concreto, uma reduzida
gravidade da infracção, assim como uma reduzida culpa do agente. A verificação dos
pressupostos apenas abre a possibilidade de escolha desta forma processual, não a impondo.

o Dispensa-se a fase de acusação e defesa, sendo que a eficácia da decisão depende do


assentimento do arguido – de qualquer das formas, esta é irrecorrível. A possibilidade de
aplicação de uma injunção assemelha-se aos artigos 281º e 282º CPP; no entanto, este acaba
por estar mais próximo dos artigos 392º e seguintes CPP, na medida em que conduz sempre
à prolação de uma decisão condenatória.

➔ Possibilidade da reformatio in pejus: A possibilidade da reformatio in pejus (artigo 416º, nº 9


CVM) não é inconstitucional em si, visto que o arguido não pede a possibilidade de acesso aos
tribunais, que vão julgar conforme o que acham justo. Para além disso, em termos práticos, é
muito raro que os tribunais aumentem as coimas.
o Retira-se isto do Acórdão do TC nº373/2015, que discutia se o artigo 416º, nº8 do CVM, que
prevê a possibilidade de agravamento da coima em sede de impugnação judicial, violava os
artigos 20º e 32º CRP; e o artigo 409º CPP. Ora, ocorrendo impugnação judicial no início de
uma fase diferente, a judicial, não há bem uma violação do direito ao recurso – a separação
entre as duas fases faz com que não se trate bem do exercício de um direito ao recurso.

o A proibição da reformatio in pejus deve, efetivamente, operar no despacho, para Alexandra


Vilela; mas não quando a impugnação seja decidida em julgamento. Isto, porque no despacho,
o arguido não se consegue defender; já no julgamento, tal defesa pode acontecer. Além disso,
para a decisão em julgamento, a proibição poderá levar a recursos meramente dilatórios, nos
termos do artigo Frederico de Lacerda da Costa Pinto.
▪ Contudo, como se pode considerar, antecipadamente, um recurso como sendo dilatório,
se quem deve decidir se o agente tem ou não razão (interpondo o recurso apenas para
adiar a execução) é o juiz?

o Por sua vez, Nuno Brandão considera que há violação do artigo 20º, nº1 CRP – no entanto,
o direito de acesso aos tribunais implica o acesso e a decisão, mas não uma decisão favorável.

➔ Efeito da impugnação judicial: Os efeitos da decisão sancionatória administrativa não se


suspendem até ao recurso judicial ser decidido – por contraposição aos efeitos suspensivos da
impugnação. No entanto, no no caso da Autoridade de Concorrência (artigo 84º, nº4 e 5 da LdC)
o arguido terá de prestar caução pelo valor da coima.
o Segundo o acórdão do TC nº674/2016, tal norma não viola o princípio da presunção de
inocência, visto que o arguido beneficia, à mesma, do estatuto de inocente – ainda que pague
a caução. No entanto, esta norma já irá violar o direito de ao acesso aos tribunais, visto ser
um excessivo obstáculo ao acesso dos mesmo, já que não tem em conta as questões
económicas do arguido – não havendo, sequer, um momento ou espaço de ponderação
judicial sobre o valor a ser pago, na definição do efeito do recurso.
▪ Consequentemente, tal restrição ao direito de acesso aos tribunais e tutela jurisdicional
efetiva não é proporcional, por não ser necessária para assegurar o interesse público que
se visa acautelar – evitar impugnações sem fundamento.

▪ O objetivo de pedir a coima antes não é tanto para evitar a dissipação da mesma, já que
as entidades visadas são muito poucas e geram um valor de negócio enorme. Tal poderá
ser importante, no entanto, nos casos do exercício da atividade: ou seja, o facto de não
haver efeito da cessão do exercício de atividade até ao recurso estar decidido provoca
prejuízo – contudo, nestes casos, existe a possibilidade de aplicar uma medida cautelar.

o Se se conjugar o efeito devolutivo (pagar a coima) com a reformatio in pejus, já se estará a


aplicar dois modelos onerosos para o arguido. No entanto, esta reflexão terá de ser vista
conforme o setor do regime das contraordenações: as várias áreas de atividade têm
especificidades, onde se aplica que se faça a generalização.

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