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Maria Paixão Direito Processual Penal

Capítulo I – Introdução
1. A “ciência total do direito penal” e o direito processual penal
Na denominada “ciência total do direito penal” integram-se:
 Direito Penal (em sentido amplo):
 Direito Penal em sentido estrito (substantivo);
 Direito Processual Penal (adjetivo);
 Direito da Execução das Penas e Medidas de Segurança (executivo)
 Criminologia;
 Política Criminal.
São três, portanto, as ramificações do grande ramo jurídico que é o direito penal lato sensu. Cada uma destas
ramificações trata de assuntos específicos relacionados com o crime e a pena, numa relação complementaridade:
Direito Penal Substantivo Direito Processual Penal Direito Penal Executivo
 Averiguar quando há crime –  Investigar a prática de um crime  Executar a pena ou medida de
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tipicidade, (2)ilicitude, (3)culpa e e determinar o seu agente, em segurança decretada na
(4)
punibilidade – e quais as ordem à aplicação de uma sentença condenatória proferida
consequências jurídicas – sanção penal ou à resolução de em processo penal por aplicação
(a)pena ou (b)medida de segurança
um conflito jurídico-penal das normas substantivas
1.1 O direito processual penal, o direito penal e o direito penal executivo
Como apontado, as três matérias jurídicas referidas, que em conjunto constituem o direito penal em sentido amplo,
complementam-se entre si; não são compartimentos estanques independentes e desligados. Ora veja-se:
a) Direito processual penal e direito penal
O direito processual penal não é direito meramente instrumental em relação ao direito penal. Entre um e outro
intercede uma “relação de mútua complementaridade funcional” (DIAS, Figueiredo). Em alguns aspetos regimentais
esta conexão é por demais nítida. Desde logo, esta relação denota-se em determinados institutos processuais cuja
configuração acabou por ser marcada pela influência do direito penal substantivo:
 Inimputabilidade do agente por anomalia psíquica » a declaração da anomalia psíquica é matéria substantiva,
que se reconduz ao campo da culpa do agente (um inimputável é um sujeito em relação ao qual não é possível
fazer um juízo de culpa), sendo esta um dos elementos imprescindíveis do crime enquanto tal; porém, é no
processo que a questão é julgada, a par de qualquer outra matéria de facto. Tempos houve em que a
inimputabilidade era declarada previamente, de tal modo que o processo penal tramitava de forma diferente
consoante houvesse ou não culpa do agente, pois só no primeiro caso há culpa e consequentemente será
aplicada pena. Nos nossos dias as coisas não se passam nestes termos – não há inimputáveis em abstrato. A
inimputabilidade é decretada em concreto e em relação ao facto específico em juízo (aliás, pode bem suceder
que, tendo sido praticados vários factos, o agente seja inimputável em relação a alguns e imputável em relação
a outros) – art. 20º CP. Assim sendo, o processo penal tramita de igual forma para imputáveis e para
inimputáveis – “a tramitação é perfeitamente unitária ao longo de todo o processo” (ANTUNES, Maria João).
A noção de “crime” que resulta do direito penal substantivo (facto típico, ilícito, culposo e punível) não é
decalcada em direito processual penal, no qual, de acordo com o art. 1º/a) CPP, o conceito de “crime” abrange
os factos que implicam a aplicação de pena mas também aqueloutros que acarretam a aplicação de medidas
de segurança. Significa isto, em suma, que é o processo penal (as regras de direito processual penal) que irá
permitir a verificação da inimputabilidade do agente e, portanto, da existência de um crime em sentido estrito
(matéria indiscutivelmente substantiva) – há uma interconexão íntima entre os dois ramos do direito, já que
a inimputabilidade, embora matéria disciplinada por normas substantivas, não pode ser declarada sem as
normas processuais. Daqui resultou a instituição de um processo penal único, que não distingue os casos de
aplicação de pena daqueles em que é aplicada medida de segurança, porque só já no seio do processo (um
processo unitário) se poderá concluir qual das duas vias será seguida.
 Princípio da socialização do agente » a instituição deste princípio no domínio substantivo-penal, bem como as
exigências, resultantes de normas de direito penal (arts, 40º/1 e 71º/3 CP), de referência expressa, na
sentença, aos fundamentos da medida da pena, vieram implicar que no processo penal se viesse a conceder
relevo específico à determinação da medida da pena. O processo penal do nosso tempo é um processo penal
preocupado com a medida concreta da pena – mais do que investigar a prática do crime e identificar o seu
agente, é também objetivo da tramitação penal obter da forma mais precisa possível os factos que permitam

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a fixação de uma pena cuja medida é adequada ao facto praticado. Em suma, o direito penal, com a evolução
interna que apresentou ao nível dos princípios e da doutrinal geral das consequências jurídicas do crime, veio
determinar uma mudança no processo penal. Este preocupa-se, hoje, não só em investigar para verificar a
prática do crime e para identificar o agente, de modo a aplicar-lhe uma pena, mas também em obter um
conhecimento o mais preciso e correto possível dos factos, para adequar a medida da pena. Assim se
compreendem figuras como a perícia sobre a personalidade do agente (art. 160º CPP), a solicitação de
relatório social (art. 370º CPP), a reabertura da audiência face ao conhecimento de novos factos (art. 371º
CPP), entre outras normas.
Concluindo, o direito processual penal não é mero instrumento de aplicação do direito penal substantivo, já que as
normas processuais são imprescindíveis para a aplicação de determinadas normas materiais – sem aquelas, a correta
aplicação destas não seria possível; sem o processo penal, tornar-se-ia impossível concretizar verdadeiramente alguns
institutos do direito penal. E assim é porque o direito penal, com a sua evolução, determinou uma alteração ao nível
dos institutos do próprio direito processual penal.
Mas, se o direito penal influenciou o direito processual penal, a verdade é que também o inverso se verificou:
 Doutrina da culpa » a reformulação contínua do conceito jurídico-penal de “culpa” deve-se, em larga medida,
às dificuldades encontradas em sede processual penal. A tradicional conceção da culpa enquanto “poder de
agir de outra maneira” (seria culpado o agente que pudesse ter atuado de maneira distinta e, ainda assim, não
o fez) viu-se afastada em virtude das dificuldades de prova que se vinham verificando ao nível do processo
penal. Atualmente, a noção de “culpa” abrange tanto o dolo (art. 14º CP), como a negligência (art. 15º CP), e
traduz-se na circunstância de o agente, em maior ou menor medida, ter capacidade para entender e
capacidade para se determinar de acordo com esse entendimento.
 Princípio da subsidiariedade da intervenção penal » foi no seio do processo penal que surgiu a ideia do direito
penal como ramo jurídico de ultima ratio. Em face da sobrecarga dos tribunais com disputas cuja gravidade
não era suficiente para o desencadeamento do processo penal (o que implica a criação de solução desviadas
do processamento normal), começou a ganhar vida o princípio da subsidiariedade da intervenção penal, o
qual acabou por se instituir definitivamente no domínio substantivo do direito penal. Uma das manifestações
desta influência é, por exemplo, o Regime da Mediação Penal, instituído pela Lei nº 21/2007. Noutro prisma,
foi também esta influência que veio determinar a criação de regimes substantivos especiais para certos
domínios da criminalidade, sobretudo ao nível do “direito penal secundário”.
 Antecipação da tutela penal e surgimento de novas incriminações » perante as dificuldades que se foram
verificando no contexto processual penal, de aplicação de concretas normas materiais, o legislador entendeu
ser necessária a alteração da disciplina substantiva de certos crimes e a criação de outros, de modo a agilizar
a tramitação processual. Assim se procedeu à tipificação de comportamentos cuja verificação implica a prática
de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual – deste modo, obvia-se às dificuldades de prova da
violação da liberdade sexual em si, bastando a prova da prática de certos atos específicos (ex.: detenção de
fotografias, filmes ou gravações pornográficos envolvendo menores). Noutro prisma, em matéria de
corrupção, vinha-se verificando na prática dos tribunal extrema dificuldade em fazer provas dos elementos do
tipo “corrupção” (sobretudo, a prática de ato ou omissão contrária aos deveres do cargo); assim, institui-se o
crime de “recebimento indevido de vantagem” (art. 372º CP), cujo elemento típico fundamental é apenas o
recebimento de vantagens patrimoniais, económicas ou financeiras que não tenham justificação (deixa de ser
preciso fazer prova da prática de atos contrários aos deveres do cargo).
Além destes aspetos em que é notável a influência de um ramo no outro, a relação de complementaridade funcional
é também patente em certos institutos cuja qualificação como institutos processuais ou substantivos é duvidosa.
Falamos, por exemplo, de: prescrição do procedimento criminal; queixa; acusação particular. A estes institutos é
atribuída quer natureza jurídico-substantiva, quer natureza jurídico-processual, quer ainda natureza dupla. E tal
atribuição é relevante (não é meramente teórica) em matéria de aplicação da lei no tempo (art. 2º CP e art. 5º CPP –
consagram solução diversas) e de integração de lacunas (art. 1º CP e art. 4º CPP – preveem soluções também díspares).
b) Direito processual penal e direito penal executivo
Poderia haver tendência para confundir os dois ramos do direito penal que ora nos ocupam, na medida em que em
ambos se encontram normas adjetivas.
Porém, uma e outra disciplina não se confundem:

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Direito Processual Penal Direito Penal Executivo
» conjunto de normas adjetivas que disciplinam o processo » conjunto de normas adjetivas e substantivas que regulam o
penal, isto é, os termos em que tramita a investigação do modo de execução das penas e medidas de segurança
crime, a identificação do autor e a aplicação de uma concreta aplicadas a agentes da prática de ilícitos penais, ou seja, que
pena ou medida de segurança regulam a realização da sanção aplicada em sentença
 Normas exclusivamente adjetivas;  Normas adjetivas e subjetivas;
 Disciplina da tramitação que precede a prolação da  Disciplina do procedimento subsequente à prolação
sentença (condenatória ou absolutória), que pode de sentença condenatória, para execução prática
ou não terminar com aplicação de sanção penal. da pena ou medida de segurança aplicada.
Em suma, o processo penal surge a montante da execução, de tal forma que:
 O direito processo penal só tem aplicação prática por intermédio do direito penal executivo;
 O direito penal executivo só tem razão de ser como expediente de aplicação do direito processual penal.
Como bem se compreende, por um lado, sem existir processo penal o direito de execução das penas e medidas de
segurança fica desprovido de sentido: para aplicar uma pena ou medida de segurança é necessário que tal sanção haja
sido aplicada no seio de um processo jurisdicional. Por outro lado, sem o direito de execução das penas e medidas de
segurança o direito processual penal seria inócuo: de nada valeria aplicar em sentença uma sanção penal se tal sanção
não viesse a efetivar-se na prática.
Uma questão que tem vindo a ser discutida no Tribunal Constitucional é a de saber se as normas constantes do art.
32º CRP (“Garantias do processo criminal”), sobretudo a que refere o direito ao recurso, valem também para a fase da
execução. Esta questão tem no seu âmago uma outra: a de saber se as normas de natureza adjetiva que integram o
direito penal executivo mantêm ou não natureza intrinsecamente processual penal. Figueiredo Dias e Anabela
Rodrigues posicionam-se, quanto a esta questão, a favor da aplicação daquelas garantias, por entenderem que só
razões meramente técnicas justificam que seja extraído do direito processual penal a matéria processual penal
atinente ao efeito executivo da sentença. Contudo, o TC tem entendido que não será aplicável diretamente o art. 32º
CRP, ainda que deva equacionar-se o direito ao recurso ao abrigo do art. 20º CRP.
c) Direito penal e direito de penal executivo
Importa, por fim notar, que também o direito penal substantivo e o direito da execução de penas e medidas de
segurança estão interconexionados entre si. Os princípios basilares do direito penal, para se efetivarem na praxis, têm
que ter expressão na execução das sanções aplicadas. Exemplificativamente, é indubitável que o princípio da
socialidade, impondo ao Estado um dever de ajuda e solidariedade para com o condenado, só terá alguma efetividade
verdadeira se o direito de execução das penas e medidas de segurança for conformado de modo a proporcionar ao
condenado condições necessárias para a sua reintegração na sociedade. E o que se diz quanto a este princípio dir-se-
á em relação a muitos outros, que constituem fundamento do direito penal substantivo. Noutro prisma, a própria
execução das penas e medidas de segurança acaba por exercer influência sobre o direito penal substantivo. Note-se,
por exemplo, o que sucedeu recentemente com a pena de substituição de prisão por dias livres e com o regime de
semidetenção: a sua eliminação do Código Penal deveu-se à constatação, pelos serviços prisionais, da falta de
condições logísticas e humanas dos estabelecimentos prisionais para alcançar um efeito ressocializador com a
execução daquelas penas. Na sequência desta dificuldade ao nível da execução das penas, procedeu-se a uma
revogação das normas substantivas que as consagravam.
1.2 O direito processual penal, a criminologia e a política criminal
É hoje manifesto que o direito processual penal é diretamente tributário dos ensinamentos da criminologia e dos
mandamentos político-criminais.
a) Direito processual penal e criminologia
A criminologia traz à colação importantes danos, tais como:
 Discrepância entre os crimes cometidos e os denunciados; Verifica-se um claro “efeito de
 Discrepância entre os crimes denunciados e os processados; funil” (em sentido descendente
 Discrepância entre os crimes processados e aos quais cabe sentença. quanto à ordem aqui indicada)
Com base nestas considerações, a criminologia reflete sobre as instâncias formais de controlo que participam no
decurso do processo penal (tribunal, Ministério Público e as polícias). Mais ainda, a observação da prática permite
ainda versar sobre o fenómeno da “seleção da delinquência”. Na observação de Becker: “o criminoso é muitas vezes
não propriamente aquele que comete crimes, mas antes aquele a quem o estigma é aplicado com sucesso” [este é um
dos autores que encabeça a “Labeling Approach Theory” – uma teoria criminológica marcada pela ideia de que as
noções de crime e criminoso são construídas socialmente].

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Isto sem prejuízo de as conclusões obtidas pela sociologia também indicarem, em determinados casos, ser vantajoso
que nem todos os crimes sejam descobertos e sancionados. A perseguição total de todo e qualquer crime poderia
mesmo questionar o valor da norma que o tipifica.
Todos estes ensinamentos são colhidos pelo direito processual penal, que com base neles haverá de continuamente
reponderar os seus institutos e a própria tramitação que institui.
Além destes, o direito processual penal colhe ainda ensinamentos nos estudos criminológicos centrados no efeito
estigmatizados ou vitimizador de determinados momentos ou de certas práticas no decurso do processo. Por exemplo:
tipologia da sala da audiência para julgamento; prestação de múltiplas declarações pelas vítimas de crimes sexuais;
etc. Uma projeção prática do que temos vindo a dizer é a figura das “declarações para memória futura” (arts. 271º e
294º CPP): mediante este expediente permite-se, em casos com contornos especiais que podem implica a vitimização
secundária, que o depoimento a ser tomado em conta na fase de julgamento seja tomado na fase de inquérito, sendo
desnecessário nova prestação de declarações na sala da audiência de julgamento (em face, não só de público, como
também do alegado agressor).
Por fim, são também de grande relevo para o processo penal os estudos criminológicos que traçam a distinção entre
pequena criminalidade e criminalidade grave. Foi com base em tais estudos que se institui, no CPP de 1987, a distinção
nos arts. 280º, 281º e 344º CPP e na delimitação dos processos especiais (sumário e sumaríssimo).
b) Direito processual penal e política criminal
Como é evidente, também o programa político-criminal terá manifesta projeção no processo penal. Um programa
político-criminal fundado no mandamento da necessidade de tutela de bens jurídicos (prevenção geral positiva) e da
reintegração do agente na sociedade (prevenção especial positiva) reclama, nomeadamente, que:
 O processo penal se desenrole de forma célere;
 Seja dado relevo adequado à determinação da sanção;
 A resolução do conflito jurídico-penal tenha lugar também por mecanismos de diversão;
 O arguido e a vítima participem na administração da justiça penal.
Não podendo o processo penal corrigir totalmente as deficiências da referida seleção da delinquência, haverá que
distinguir os casos segundo critérios razoáveis de justiça e viabilizar à antecipação dos fins reparadores das penas. É o
que sucede, nomeadamente, com os institutos dos arts. 280º e 281º CPP.
O programa político-criminal do presente aponta para a realização de distinções no âmbito da própria criminalidade
mais grave, entre a “criminalidade especialmente violenta”, “criminalidade violenta”, “terrorismo” e “criminalidade
organizada”. Estes são, aliás, conceitos já utilizados na lei, mormente nos art. 34º/3 CRP e art. 1º/i), j), l) e m) CPP.
Perante certas formas de criminalidade, de que a criminalidade organizada e o terrorismo são exemplos, pede-se hoje
ao Estado que satisfaça “paradoxalmente” duas ambições: por um lado, que se limite os poderes estatais em nome
dos direitos dos cidadãos; por outro lado, que se ampliem os poderes estatais também em nome dos direitos dos
cidadãos. A sociedade exige, por um lado, a limitação dos poderes do Estado, de modo a não serem violados deveres
fundamentais dos alegados agentes dos crimes; e por outro lado, a ampliação dos poderes do Estado, com o intuito
de conter a onda de terrorismo a que se assiste nos nossos dias e que coloca em risco os direitos e liberdades basilares
das sociedades contemporâneas.
Perante este cenário, Maria João Antunes questiona se o processo penal, tipicamente um processo que andava a duas
velocidades, não terá que ser um processo penal a “três velocidades”:
1. Pequena e média criminalidade; ! Tradicionalmente, só estas duas categorias eram reconhecidas;
2. Criminalidade grave » subdividida em: sem sub-divisão da segunda em duas categorias autónomas.
a) Criminalidade grave “tradicional”;
b) Criminalidade violenta, especialmente violenta e organizada e terrorismo.
Parece ser de propugnar, de facto, que a clássica contraposição pequena e média criminalidade vs. criminalidade grave
é hoje insuficiente para atender às exigências que se fazem sentir em face dos novos problemas sociais. O problema
da introdução desta “terceira velocidade” é, porém, a possibilidade de desencadeamento de um indesejável “efeito
de contaminação”: os problemas da sociedade contemporânea vêm exigir um tratamento diferenciado dentro da
criminalidade grave, distinguindo-se as (sub)categorias acima apontadas; mas haverá que vedar completamente a
possibilidade de as diferenças de tratamento se alastrarem à criminalidade grave restante. A exceção não pode, nem
deve, tornar-se a regra. A instituição de uma “terceira velocidade” é exigida pelas circunstâncias especiais que
envolvem determinadas atividades criminosas, constituindo, por isso, uma exceção ao regime geral da criminalidade
grave (por contraposição ao regime da criminalidade pequena e média). Daí que se deva assegurar a subsistência,

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enquanto distinção basilar e regra, as duas velocidades tradicionais. Este perigo parece, inclusivamente, ter já
assumido concretização prática, na letra das alíneas j), l) e m) do nº 1 do art. 1º CPP. De facto, do elemento literal
destes preceitos parece resultar que todos os factos subsumíveis às incriminações catalogadas em cada uma dessas
alíneas integram a respetiva categoria. Trata-se de interpretação que se deve arredar, pois se assim fosse acabar-se-
ia por subsumir nestas normas uma grande partes dos crimes mais graves, de tal forma que estes conceitos (criados
para efetuar uma diferenciação assenta na necessidade de um regime especial) acabariam por englobar quase
inteiramente a categoria da criminalidade grave. Significaria isto tornar a exceção – regime especialmente previsto
para tipos de atividade criminosa envolvida por um circunstancialismo especial – na regra – aplicação desse regime a
todos os crimes “graves”, independentemente de lhes estar, ou não, associado um circunstancialismo especial.
Entende-se que a interpretação de tais conceitos sempre terá de ser uma interpretação in concreto: o aplicador deverá
ajuizar, caso a caso, quanto à natureza violenta, especialmente violenta, altamente organizada ou terrorista do facto
em juízo. Estes são conceitos carecidos de concretização concreta, não sendo definíveis em abstrato.
2. As finalidades do processo penal
Ao processo penal são apontadas três finalidades:
 Realização da justiça e descoberta da verdade material: o processo penal visa, indubitavelmente, investigar
os factos que representem indícios da prática de um crime, de modo a concluir se houve ou não atividade
criminosa e identificar o agente da prática do crime, em caso de resposta afirmativa; com base no
conhecimento obtido, procura o processo penal viabilizar a aplicação da pena ou medida de segurança mais
adequada, quer na sua medida, quer na sua natureza. Desta perspetiva, o processo penal tem como escopo o
conhecimento mais correto e preciso possível dos factos que envolveram o facto alegadamente criminoso, de
modo a conseguir a aplicação ao agente da sanção penal mais adequada.
 Proteção dos direitos fundamentais das pessoas face ao Estado: o processo penal intenta, sobretudo quando
a sua estrutura seja uma estrutura acusatória (sobre isto se versará infra), proteger os cidadãos contra a
potestas do Estado, ou seja, preservar o núcleo fundamental dos direitos fundamentais, quer do arguido quer
de outras pessoas, que poderia ser, de outra forma, atacado pela intervenção das instâncias de controlo
dotadas de auctoritas. Assim, neste plano, o processo penal visa sobretudo garantir que, durante toda a
tramitação levada a cabo com a finalidade de aplicação de uma sanção penal (inquérito, investigação e
julgamento), estão garantidos e salvaguardados os direitos dos intervenientes e envolvidos. Pretende-se,
portanto, impedir abusos e práticas contrárias aos direitos do Homem, mesmo quando tais práticas parecem
ser o único expediente capaz de permitir a obtenção de certo resultado.
 Restabelecimento da paz jurídica: o processo penal assume como finalidade a reposição da harmonia da
ordem jurídica, seja qual for o tipo de Estado e a estrutura processual. As regras processuais penais assumem
o objetivo de restaurar a segurança e a liberdade dos cidadãos, de modo a readquirir a confiança dos cidadãos
nas normas legais e no poder instituído. O restabelecimento da paz jurídica exige uma justiça célebre, que
agilmente elimine os perigos e ofensas aos bens jurídicos. Em suma, o processo penal, deste ponto de vista,
procura aniquilar os efeitos nocivos que resultam, para a vida em sociedade, da prática de crimes.
Sucede, todavia, que estas finalidades são em certa medida antinómicas, não sendo totalmente, harmonizáveis:
Realização da justiça e descoberta Proteção dos direitos fundamentais Restabelecimento da paz jurídica
da verdade material das pessoas em face do Estado (posta em causa com o crime)
Vs. Vs. Vs.
Proteção dos direitos fundamentais Restabelecimento da paz jurídica Realização da justiça e descoberta
das pessoas em face do Estado (posta em causa com o crime) da verdade material
 Modos de obtenção de prova »  Revisão da sentença  Revisão da sentença e
as buscas domiciliárias, as escutas condenatória » quando ocorrida reabertura do inquérito » a
telefónicas, as medidas de coação, depois do falecimento do admissibilidade da revisão de
etc., embora necessárias à condenado, a revisão da sentenças e de reabertura da fase
descoberta da verdade, podem condenação, reparando uma de inquérito, procurando a efetiva
lesar direitos fundamentais (ex.: ofensa aos direitos fundamentais, realização da justiça e descoberta
direito à privacidade); destabiliza a paz jurídica (remexe da verdade, obsta ao verdadeiro
 Proibições de prova » a proibição numa decisão já definitiva); restabelecimento da paz jurídica
de certos métodos de prova, ou da  Prisão preventiva » esta medida (pois gera incerteza);
sua valoração, embora proteja os de coação, procurando o  Irrecorribilidade das decisões
direitos fundamentais, prejudica a restabelecimento mais rápido e transitadas em julgado » embora
buscar pela verdade; eficaz da paz jurídica (restaurando assegurando a paz jurídica

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 Direito ao silêncio » a proibição a tranquilidade da comunidade), (obstando a uma constante
da valoração do silêncio arguido, acarreta o encarceramento de incerteza), o caso julgado pode
apesar de tutelar os seus direitos, alguém que não foi ainda obstar à realização da justiça
pode obstar à realização da justiça. condenado, com lesão para o seu (quando a decisão irrecorrível não
direito à liberdade. corresponde à verdade).
Como fica, então, claro, e convocando aqui as palavras de Figueiredo Dias, as várias finalidades do processo penal têm:
“caráter irremediavelmente antinómico e antitético”.
A via de superação da impossibilidade de harmonização integral destas finalidades passa por procurar uma
“concordância prática” das finalidades em conflito. Haverá que procurar, em cada caso concreto, preservar o mais
possível cada uma delas, otimizando os ganhos e minimizando as perdas axiológicas. De todo o modo, o limite
inultrapassável sempre será a dignidade da pessoa humana. Em suma, pretende-se uma mútua compressão das
finalidades em conflito por forma a atribuir a cada uma a máxima eficácia possível. Esta pretensão surge bem patente,
designadamente, no regime da sujeição do arguido a medidas de coação e a medidas cautelares de polícia (arts. 191º
e ss. e 249º e ss. CPP) e no regime dos meios de obtenção de prova (arts. 171º e ss. CPP).
Neste contexto, é muito significativo o Ac. TC nº 607/2003, referende à concordância prática entre as finalidades de
realização da justiça e descoberta da verdade material e de proteção dos direitos fundamentais perante o Estado.
Neste acórdão decidiu o Tribunal Constitucional ser ilícita a utilização de diários do arguido como meio de prova, por
violação de direitos de personalidade fundamentais. Igual relevo tem ainda o Ac. TC 81/2007, em que foi julgada
norma relativa à manutenção nos autos de fotografia de terceiro, utilizada sem o seu consentimento durante a fase
de inquérito, para identificação pelas vítimas de suspeitos arguidos no processo. Colocou-se aqui um conflito entre
direitos fundamentais, especificamente o direito à imagem de terceiro (utilizada apenas como “despiste”) e o direito
de defesa dos arguidos.
3. A conformação jurídico-constitucional do processo penal português
Como expressivamente referiu Roxin, “o direito processual penal é o sismógrafo da Constituição de um Estado”. A
estrutura e caraterização do processo penal depende, em grande medida, das orientações políticas típicas
historicamente afirmadas, normalmente com expressão no texto constitucional. Carateriza-se, deste modo, o direito
processual penal como “direito constitucional aplicado”, numa dupla dimensão:
 Os fundamentos do direito processual penal são, simultaneamente, os alicerces constitucionais do Estado;
 A concreta regulamentação de singulares problemas processuais deve ser conformada constitucionalmente.
Há, todavia, quem critique esta expressão, por recear a eliminação da autonomia dos ramos jurídicos, com efeitos
intoleráveis (é o caso de Faria Costa).
Indiscutível é, porém, que a Constituição contém abundantemente normas com relevo processual penal direto e
indireto. São diversas as disposições constitucionais que versam sobre matérias processuais penais, de forma mais
específica ou mais genérica.
Noutro prisma, o direito processual penal é ainda direito constitucional aplicado sob um outro ponto de vista: o
processo penal implica, muitas vezes a restrição dos direitos fundamentais do arguido e de terceiros, o que acarreta a
consideração do regime constitucional respeitante à restrição dos direitos, liberdades e garantias (arts. 17º e 18º CRP).
Neste contexto, e dado o teor do art. 12º/2 CRP (as pessoas coletivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres
compatíveis com a sua natureza), é cada vez mais pertinente a questão de saber quais os direitos constitucionalmente
consagrados, com relevo em matéria processual penal, cujo gozo é compatível com a natureza das pessoas coletivas.
Sobre esta questão há alguma jurisprudência do TC, a qual tem reconhecido às pessoas coletivas os direitos como o
direito de acesso ao direito e aos tribunais ou o direito ao sigilo da correspondência. Em matéria de buscas
domiciliárias, o TC entendeu que extravasa o âmbito normativo de proteção do art. 34º/2 CRP a sede e o domicílio
profissional das pessoas coletivas – assim não é reserva do juiz a ordenação de buscas domiciliárias nesses locais. Deve
ainda notar-se, a este respeito, que a Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho indica que a
presunção de inocência se aplica exclusivamente às pessoas singulares (art. 2º). Outro ponto polémico desta questão
reporta-se ao direito à não autoincriminação: deve este direito ser concedido a pessoas coletivas? A questão coloca-
se porquanto as pessoas coletivas apenas atuam por intermédio de representantes (orgânicos), o que implica
perguntar se as declarações ou silêncio dos representantes devem considerar-se como imputados à pessoa coletiva
para estes efeitos.
Ainda quanto às pessoas coletivas, mas agora fora do cômputo dos direitos fundamentais, também é polémica a
questão de saber se há ou não direito a duplo grau de recurso das decisões proferidas sobre pessoas coletiva. O critério
segundo o qual se afere a existência de duplo grau de recurso é o de a pena aplicada ser igual ou superior a 8 anos de

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prisão – referindo-se a lei, aqui, à pena concretamente aplicada (e não à pena abstrata prevista no tipo legal de crime).
Sucede, porém, que às pessoas coletivas não é aplicada pena de prisão, mas antes, nos casos em que o tipo legal de
crime prevê essa pena, a pena de dissolução. Fica, portanto, a questão de saber se haverá que reconhecer esse duplo
grau de recurso ou não.
Em suma, todos os aspetos mencionados a propósito das pessoas coletivas, e da regulamentação processual penal,
demonstram existir entre nós uma lacuna regimental. Em países estrangeiros, como é o caso da vizinha Espanha, há
legislação processual penal especificamente aplicável às pessoas coletivas. No nosso ordenamento jurídico, mesmo
após a consagração expressa e direta, em sede de direito penal clássico, da responsabilidade penal das pessoas
coletivas (art. 11º CRP), continua a existir um vácuo jurídico em matéria processual, o que gera, como visto, diversas
situações de incerteza.
4. A estrutura do processo penal português
4.1 Estruturas do processo penal
Ao longo dos tempos são identificáveis duas estruturas do processo penal que se contrapõem diametralmente:
Estrutura Inquisitória Estrutura Acusatória
» estrutura processual em que domina o interesse » estrutura processual em que o processo é encarado
estadual e, por consequência, a finalidade de realização como uma disputa entre o Estado e o indivíduo
da justiça e de descoberta da verdade material indiciado (à semelhança do processo cível)
Notas caraterizadoras: Notas caraterizadoras:
 Processo penal dominado pelo interesse do Estado na  Centralidade do individuo, e da proteção dos seus
descoberta da verdade; direitos fundamentais;
 Arguido como objeto do processo, não participando  Qualificação da acusação e da defesa como partes de
ativamente (não é sujeito processual); uma lide (à semelhança do autor e réu do processo civil);
 Processo essencialmente escrito e secreto;  Consagração do princípio da igualdade de armas,
 Confissão como “rainha das provas” (não sendo excluída surgindo o arguido como sujeito processual;
a tortura como meio de obtenção da confissão);  Exclusão dos poderes de investigação do juiz (surge
 Dependência do juiz em face do poder político; como juiz passivo);
 Concentração das funções de investigação, acusação e  Princípio da auto-responsabilidade probatória das partes
julgamento na mesma entidade – o juiz. (princípio do dispositivo);
 Aceitação de uma verdade formal (aquela que resulta do
processo) e da presunção de inocência;
 Instituição do princípio da acusação, com a cisão entre a
entidade que investiga e acusa e a que julga.
Nestes termos, fica claro que cada uma destas estruturas (mais radicais) estão associadas a diferentes conceções do
poder estadual: a estrutura inquisitória é inerente a Estados de pendor autoritário, enquanto que a estrutura
acusatória está ligada a Estados de pendor liberal.
Além destes dois modelos, mais extremistas, têm vindo a afirmar-se outros de caráter misto. Podem aqui apontar-se:
Estrutura Inquisitória Mitigada Estrutura Acusatória Integrada por um Princípio de
Investigação
» estrutura processual marcada pelo interesse do » estrutura processual com base acusatória mas com
Estado mas com alguns traços acusatórios reconhecimento do interesse estatal verdade material
Notas caraterizadoras: Notas caraterizadoras:
 Finalidade primordial de descoberta da verdade, num  Instituição do princípio da investigação, segundo o qual o
processo dominado pelo interesse do Estado; tribunal tem o poder-dever de investigar os factos (não é
 Instituição do princípio da forma acusatória – absolutizado o princípio do dipositivo);
formalmente vigora o princípio da acusação, mas  Instituição do princípio da acusação, com cisão entre a
substancialmente é o juiz que domina quer a entidade que investiga e acusa e a que julga;
investigação, quer a acusação, quer o julgamento.  Procura da verdade material;
 Indisponibilidade do objeto do processo, determinado
pela entidade que investiga e acusa;
 Participação constitutiva da acusação e da defesa na
declaração de direito do caso (o arguido é sujeito
processual).
Estes dois modelos apresentam-se, portanto, claramente mais moderados que os anteriores; mas, ainda assim,
arreigados a determinadas ideologias. A estrutura inquisitória mitigada surge, as mais das vezes, em Estados favoráveis
a ideologias totalitárias mas que pretendem transparecer ter um processo penal mais democrático-liberal. Por seu

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lado, a estrutura acusatória integrada por um princípio de investigação surge em Estados de Direito democráticos, em
que, apesar da instituição do princípio da acusação, não se posterga por completo a procura pela verdade material.
As estruturas estritamente inquisitórias e acusatórias surgiram, respetivamente, em Estados abertamente ditatoriais
(sobretudo, fascistas) e nos Estados do liberalismo iluminista – portanto, em estados em que as ideologias estavam
ainda acerrimamente marcadas. Já a estrutura inquisitória mitigada tem surgido em Estados que, embora favoráveis
a ideologias totalitárias, se apresentam nas relações internacionais como Estados assentes nos princípios liberais e
democráticos; e a estrutura acusatória integrada por um princípio de integração é a instituída em Estados de Direito
democráticos, cuja ideologia pode ser mais ou menos liberal mas que se afasta sensivelmente do liberalismo
exacerbado do séc. XIX.
Dito isto, impõe-se questionar qual a estrutura do processo penal português.
4.2 O Código de Processo Penal de 1929
O Código de Processo Penal que antecedeu o vigente é um diploma com marcas do período político onde se inseriu e
foi inserindo, revelando a forma como se foram estabelecendo as relações entre o Estado e o indivíduo na perseguição
do crime e dos criminosos.
Surgido no seio de um ascendente regime fascista, o CPP de 1929 institui, claramente, uma estrutura inquisitória
mitigada. Ao tempo, o regime totalitarista que se instituída em Portugal não era “declarado”, antes se esforçando o
poder instituído por se apresentar, lá fora, como poder democrático. Assim, embora formalmente estivesse
consagrada uma estrutura de forma acusatória (o próprio Código previa, designadamente, a cisão entre a entidade
que investigava e acusa e a que julgava), em bom rigor o nosso processo penal assumia uma estrutura inquisitória.
Inicialmente ao juiz cabia a instrução e o julgamento, remetendo-se para o Ministério Público apenas a acusação. Com
os ventos de mudança política sentidos no aproximar da metade do século, é legalmente consagrada, em 1945, a
atribuição das funções de instrução preparatória ao Ministério Público, reservando-se a função de julgar ao juiz.
Porém, na verdade, era o próprio juiz quem dirigia a investigação e ordenava ao Ministério Público acusar ou não.
Materialmente, portanto, não existia efetiva separação de funções. Tratava-se, em todo o caso, de um Ministério
Público governamentalizado e não controlado judicialmente. Portanto, nem se garantia a imparcialidade do juiz (pois
ele acabava por controlar todas as fases do processo), nem se atribuía a investigação e instrução a uma entidade
independente do poder cuja atividade fosse controlável pelos tribunais. Quanto a este último aspeto, apenas em 1972
seria promovida a fiscalização da atividade instrutória do Ministério Público e das polícias, por via da criação da figura
do juiz de instrução. Estes diplomas, de 1945 e 1972, foram expressão das alterações políticas ocorridas na fase final
da ditadura, estando associadas ao período marcelista.
Com o 25 de Abril de 1974 e com a Constituição de 1976, abre-se o período conducente à reforma do processo penal,
tendo em vista a estruturação de um processo penal de um Estado de Direito Democrático.
4.3 O Código de Processo Penal de 1987
De acordo com o já mencionado, o Código de Processo Penal de 1987 foi estruturado segundo um modelo acusatório
integrado por um princípio subsidiário de investigação. Pretendeu-se alcançar uma concordância prática das
finalidades do processo penal, não sobrevalorizando nenhuma delas.
Nestes termos, são dois os princípio fundamentais do processo penal português dos nossos dias:
Estrutura acusatória integrada por um princípio de investigação
Princípio de Acusação Princípio Subsidiário de Investigação
» a entidade que investiga e acusa – o Ministério » o juiz tem um poder-dever de esclarecer e instruir
Público – é distinta daquela que julga – o juiz –, com autonomamente o facto sujeito a julgamento, criando
repartição de funções entre magistraturas distintas ele próprio as bases necessárias à sua decisão, sobretudo
(arts. 27º/2, 32º/4 e 5, 202º/1 e 2 e 219º CRP e arts. quando os sujeitos processuais não trazem ao processo
8º, 9º, 48º, 53º/2/b), 262º e 311º CPP) todos os factos relevantes (art. 340º/1 CPP)
Em aproximação aos modelos de estrutura acusatória, têm centralidade os direitos fundamentais das pessoas,
consagra-se uma cisão das entidades a que são atribuídas as funções de investigar, acusar e julgar e o arguido é
considerado sujeito processual, participando ativamente no processo. Todavia, ao invés desses modelos, o processo
penal não é encarado como uma lide entre partes, nem o Ministério Público, em exercício da função de acusar, surge
como contraparte do arguido. Ao Ministério Público compete descobrir a verdade material, e só isso. A acusação e a
defesa não são “partes” de uma controvérsia, de uma lide esgrimida em tribunal. São, na verdade, sujeitos processuais,
que atuam no processo, de forma ativa, como atores que permitem ao juiz descobrir a verdade e realizar a justiça.

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Não há, portanto, qualquer confronto direto. Daí, aliás, que seja reconhecido um leque alargado de sujeitos
processuais, os quais participam constitutivamente na declaração de direito do caso.
Noutro prisma, o princípio subsidiário de investigação acaba por aproximar este modelo daqueloutros de estrutura
inquisitória, já que se concedem ao juiz poderes de investigação. Note-se, porém, que este é um princípio subsidiário,
que apenas se justifica quando as contribuições dos sujeitos processuais se mostrem insuficientes. Está instituído, tal
como nos modelos acusatórios, o princípio do dispositivo; só que este não é absolutizado. Além disso, a atividade
investigadora do juiz sempre está limitada pelo objeto do processo, que é delimitado na fase de investigação pelo
Ministério Público. Por fim, esta faculdade é apenas concedida ao juiz para que ele assim consiga melhor tutelar os
direitos fundamentais das pessoas e realizar a justiça.
As regras de inquirição de testemunhas contidas no art. 348º CPP espelham de forma muito clara a estrutura do
processo penal português:
 Marca acusatória » a testemunha é inquirida por quem a indicou, sendo depois sujeita a contra-interrogatório
(não compete ao juiz fazer a inquirição e é consagrada, de certa forma, a “igualdade de armas”);
 Natureza subsidiária do princípio da investigação » os juízes e os jurados podem, a qualquer momento,
formular à testemunha as perguntas que entenderem necessárias para esclarecimento do depoimento
prestado e para boa decisão de casa (o juiz intervém, nesta sede, quando entender serem necessários
esclarecimentos adicionais, não obtidos com a atuação da acusação e da defesa).

Capítulo II – O direito processual penal e a sua aplicação


1. A interpretação e integração da lei processual penal
1.1 A interpretação das normas processuais penais
A interpretação da lei processual não põe ao intérprete problemas específicos. Deve apenas assinalar-se que no
processo interpretativo deverão sempre ser consideradas as finalidades do processo penal. Ademais, em virtude da
densidade da “constituição processual penal” [vide supra: Cap. I, 3.] assume especial importância nesta sede a
“interpretação conforme à Constituição”.
1.2 A integração de lacunas no processo penal
Sobre a integração de lacunas dispõe o art. 4º CPP serem de aplicar, por analogia, as disposições do Código aos casos
omissos. Na impossibilidade de aplicação das normas do CPP, aplicar-se-ão as normas do processo civil que se
harmonizem com o processo penal. Na falta destas, solucionar-se-ão os problemas através dos princípios gerais do
processo penal. Estes princípios assumem, nesta sede, uma dupla função:
 Função controladora do recurso ao direito subsidiário;
 Função integradora (subsidiária).
Não obstante a admissibilidade expressa do recurso à analogia, diversamente do que sucede quanto à lei penal
substantiva (vide: art. 1º/3 CP), é de entender que tem também aplicação em sede processual o princípio da legalidade
criminal (art. 29º/1 CRP). Uma vez que ao processo penal cabe assegurar ao arguido todas as garantias de defesa (art.
32º/1 CRP), o princípio da legalidade criminal estender-se-á a este domínio na medida imposta pelo seu conteúdo de
sentido. Daí que, entende-se, não seja constitucionalmente admissível a aplicação de normas por analogia sempre que
tal aplicação se traduza num enfraquecimento da posição do arguido, ou na diminuição dos seus direitos processuais.
Em suma, diferentemente do que sucede no direito penal, no direito processual penal a analogia é admitida. Porém,
esta admissibilidade não é ilimitada, devendo ser compatibilizada com as garantias constitucionais do arguido. Assim,
a analogia será proibida, em desvio à regra do art. 4º CPP, sempre que implique o enfraquecimento da posição
processual do arguido ou a diminuição dos seus direito processuais.
2. Aplicação da lei processual no espaço
O art. 6º CPP estatui que a lei processual é aplicável em todo o território português e em território estrangeiro nos
limites definidos pelos tratados, convenções e regras de direito internacional. Deste modo, o princípio basilar nesta
matéria é o princípio da territorialidade. A este acresce o princípio do auxílio jurídico inter-estadual em matéria penal,
o qual pode implicar a aplicação da lei processual fora do território nacional.
3. Aplicação da lei processual penal quanto às pessoas
A lei processual penal aplica-se a todas as pessoas, nacionais ou não, a quem seja aplicável o direito penal português.
Logicamente, esta regra não invalida que haja isenções fundadas em preceitos de direito internacional. Ademais, há
também limitações fundadas no direito constitucional português que, embora não impondo a desaplicação do direito
processual penal português, acarretam a sua aplicação com certas especialidades de regime.

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4. Aplicação da lei processual penal no tempo
Segundo o art. 5º CPP, a lei processual penal é de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos atos realizados na
vigência da lei anterior (nº 1). Também quanto a esta questão o direito processual penal consagra uma solução
diametralmente oposta à do direito penal, onde vigora o princípio da irretroatividade (vide: art. 2º CP). Assim, a lei
processual penal aplica-se mesmo aos processos pendentes; contudo, com duas limitações, que implicam o
afastamento dessa aplicação imediata da lei processual:
 Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido (art. 5º/2/a) CPP);
 Quebra da harmonia e unidade dos vários atos do processo (art. 5º/2/b) CPP).
A primeira limitação encontra justificação no mandamento constitucional de acordo com o qual o processo penal
assegura todas as garantias de defesa (art. 32º/1 CRP) – se da aplicação imediata da nova lei resultarem prejuízos para
a defesa do arguido, então essa aplicação deve ser afastada. Já a segunda limitação funda-se, evidentemente, na ideia
de que o processo penal, como qualquer processo, deverá apresentar-se como encadeamento lógico de atos. Foi,
aliás, com base nesta ideia que o legislador processual prescreveu ser o CPP de 1987 aplicável apenas aos processos
iniciados já na sua vigência (a partir de 1 de janeiro de 1988).

Capítulo III – Participantes e sujeitos processuais


O processo penal conta com a participação de um número considerável de intervenientes:
 Tribunal (juiz);
 Ministério Público;
 Assistente; Sujeitos Processuais
 Arguido;
 Defensor;
 Órgãos de polícia criminal;
 Ofendido;
 Suspeito;
Participantes Processuais
 Testemunhas;
 Peritos e consultores técnicos;
 (...)
A destrinça apontada tem relevo absolutamente fundamental no processo penal, sendo um dos seus alicerces:
Sujeitos Processuais Participantes Processuais
» sujeitos titulares de direitos autónomos de » sujeitos que praticam, ao longo do processo, atos
conformação da concreta tramitação do processo como singulares cujo conteúdo processual se esgota na
um todo, em vista da sua decisão final própria atividade
Têm participação constitutiva na declaração de direito Intervêm, de qualquer forma, no processo (com maior
do caso, influindo diretamente sobre a tramitação do ou menor relevo) mas não conformam ativamente a
processo concreto tramitação processual
1. Tribunal (juiz)
O estatuto de sujeito processual do tribunal, na pessoa do juiz, funda-se em princípios jurídico-constitucionais:
 Princípio do monopólio da função jurisdicional (reserva de juiz) – arts. 27º/2, 34º/2, 202º/1 e 2 CRP » cabe ao juiz
a aplicação e a declaração do direito do caso através de decisões com força de caso julgado.
Resulta deste princípio que são os tribunais os órgãos competentes para decidir as causas penais e aplicar
penas e medidas de segurança (art. 8º CPP), para administrar a justiça em nome do povo, reprimindo a
violação da legalidade democrática (arts. 202º/1 e 2 CRP). Logicamente, competirá ao juiz (de julgamento)
dirigir e controlar a fase de julgamento, pois é nesta que se decidirá o caso decidendo. O julgamento de causas
penais cabe, indubitavelmente, na reserva de juiz. Porém, também nas fases processuais precedentes há
reflexos da reserva da função jurisdicional. A fase de inquérito, em primeiro lugar, é dirigida pelo Ministério
Público, pois trata-se de fase tipicamente investigatória. Não obstante, há atos que são reservados ao juiz de
instrução, por envolverem matéria jurisdicional (arts. 268º e 269º CPP). Depois, a fase de instrução é dirigida
pelo juiz de instrução, ao qual compete, nos termos da lei, a prática de todos os atos instrutórios que se
prendam diretamente com direitos fundamentais (art. 17º CPP e art. 32º/4 CRP). O juiz de instrução
desempenha, portanto, um papel duplo: (1) cabe-lhe exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do

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processo para julgamento (fases de inquérito e de instrução); (2) proceder à instrução e decidir quanto à
pronúncia (fase de instrução).
 Princípio da independência – art. 203º CRP » os tribunais atuam com independência em relação aos demais
poderes do Estado, a quaisquer grupos da vida pública, à administração judicial e a quaisquer outros tribunais,
de modo a atuar com imparcialidade.
Esta exigência, de independência e imparcialidade, justifica que a promoção processual ocorra segundo os
ditames do princípio da acusação e que haja uma previsão suficientemente ampla de suspeições do juiz
(impedimentos, escusas e recusas). Assim, por um lado, a concretização da independência e da imparcialidade
impõe o reconhecimento da distinção entre as funções de investigação e acusação e a função de julgamento
– o juiz de julgamento só pode decidir a causa de forma imparcial se não houver influído, de forma alguma,
na investigação do caso nem tenha intervindo na dedução da acusação (caso contrário, o julgamento iniciar-
se-ia já com uma perspetiva tendencial sobre a matéria em juízo). Por outro lado, para que a independência
e imparcialidade não só se efetivem como sejam reconhecidas por todas as pessoas, dentro e fora do
processo, estão previstos na lei diversos impedimentos do juiz. Como afirma Maria João Antunes, “a justiça
não só deve ser feita; deve também ser vista como feita”. As suspeições legalmente previstas dividem-se nas
seguintes categorias:
 Impedimentos » situações cuja verificação impede o juiz de participar no processo, em todo o caso –
tais situações, elencadas taxativamente, reconduzem-se, fundamentalmente, às seguintes hipóteses:
 Relações pessoais com intervenientes no processo;
 Intervenções anteriores no processo;
 Relações de parentesco, de afinidade ou análogas às dos cônjuges com intervenientes.
 Recusa » situações em que, por existir motivo sério e grave, gerador de desconfiança, é possível que
a intervenção do juiz seja considerada suspeita, de tal modo que o Ministério Público, o arguido, o
assistente ou as partes civis podem requerer o seu afastamento do processo (art. 43º/1, 2 e 3 CPP).
 Escusa » situações em que o juiz entende existir motivo sério e grave, gerador de desconfiança,
suscetível de gerar suspeição sobre a sua intervenção no processo, requerendo, por isso, ao tribunal
competente que o escuse de intervir (art. 43º/4 CPP).
[NOTA: ao invés do que sucede em matéria de impedimentos, em que o catálogo legal é taxativo e as
suspeições previstas são automáticas (a suspeição é aferida em abstrato, sem considerar os dados
específicos do caso), no domínio da recusa e da escusa a lei apenas prevê uma cláusula geral (“motivo,
sério e grave, adequado a gerar de desconfiança”) que carece sempre de concretização em concreto.]
Ainda a propósito do princípio da independência, e quanto a fases anteriores do processo (que não a fase de
julgamento, a que se aplicam as suspeições indicadas), o CPP apenas especifica causas de impedimento nas
alíneas a), b) e e) do art. 40º CPP. Quanto a outros atos processuais isolados que o juiz de instrução tenha
praticado, ordenado ou autorizado, os sujeitos processuais interessados poderão apenas requerer a recusa de
um tal juiz (ou pode o próprio juiz requerer escusa) se a participação anterior no processo estiver rodeada de
circunstâncias suscetíveis de gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, nos termos do art. 43º CPP. Esta
distinção está suportada nas funções reservadas ao juiz em cada fase processual. Enquanto o juiz de
julgamento decide a causa e aplica (ou não) pena ou medida de segurança – justificando-se um regime mais
severo –, o juiz de instrução é um “juiz de liberdades”, só devendo estar impedido de participar no julgamento
quando a sua intervenção processual contenda com o objeto do processo (quanto aos demais atos processuais
avulsos, haverá que admitir um regime menos restrito).
 Princípio do juiz natural ou legal – art. 32º/9 CRP » nenhuma causa pode ser submetida ao tribunal (de
instrução, de julgamento ou de recurso) cuja competência já havia sido fixado por lei anterior.
Deste princípio decorre que cabe à lei definir a competência do tribunal ou juiz, de harmonia com o art.
165º/1/p) CRP. Ademais, daqui resulta também a proibição da criação de tribunais especiais ou de exceção
ou da atribuição de competência a um tribunal ou juiz distinto do que era competente segundo lei anterior.
Garante-se, assim, que a justiça penal não sofra interferências políticas, religiosas ou outras por via da
manipulação de regras da competência. Obsta, deste modo, à criação de juízos ad hoc, à definição arbitrária
da competência dos tribunais e ao desaforamento discricionário, que, tendo lugar, poriam em causa o direito
dos cidadãos a uma justiça penal independente e imparcial. É no CPP e na LOSJ que se encontram as normas

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disciplinadoras das dimensões fundamentais deste princípio: exigência de determinabilidade do tribunal
competente; fixação da competência; procedimentos internos de distribuição do processo.
Uma das normas que, a propósito deste último princípio, suscitou viva discussão doutrinal e jurisprudencial foi o art.
16º/3 CPP, que permite, excecionalmente, que o juiz singular tenha competência para julgar crimes cuja pena aplicável
é superior a 5 anos (pena abstrata), desde que o Ministério Público entenda que, no caso concreto, a medida da pena
de prisão a aplicar não deve ser superior a 5 anos (pena concreta), não podendo o tribunal, nestes casos, condenar
em pena superior (nº 4 do art. 16º CPP). Como bem se vê, nestas circunstâncias, a competência do tribunal não é
determinável em abstrato, sendo apenas suscetível de determinação em concreto, o que poderia entender-se como
uma violação ao princípio do juiz natural, que acarreta a determinabilidade abstrata do tribunal competente. Porém,
o TC pronunciou-se em diversas ocasiões pela conformidade constitucional da norma.
! Em jeito de conclusão, impõe-se referir que a qualificação do tribunal como sujeito processual é, como exposto,
decorrência dos princípio enunciados na medida em que tais princípios conferem e demonstrar caber ao tribunal um
papel absolutamente fundamental no processo, enquanto órgão de administração da justiça, com todas as
consequências que essa qualidade implica, nos termos expostos.
2. Ministério Público
A magistratura do MP goza de estatuto próprio e de autonomia, sendo os seus agentes magistrados hierarquicamente
subordinados (art. 219º/2, 4 e 5 CRP). A Procuradoria-Geral da República é o órgão superior do Ministério Público,
sendo presidida pelo Procurador-Geral da República, cuja legitimação resulta da convergência das vontades do
Presidente da República e do Governo (arts. 220º e 133º/m) CRP).
A ligação do MP ao Ministério da Justiça, e consequentemente ao Governo, tem que com a circunstância de esta
magistratura participar na execução de uma política criminal que não é por si definida, mas antes pelos órgãos de
soberania (Governo e Parlamento) (art. 219º/1 CRP). Não obstante, esta magistratura é autónoma e independente em
face do poder político, uma vez que não está sujeita a quaisquer instruções do poder executivo relativamente à
investigação, à promoção, à condução ou à conclusão de qualquer processo penal concreto (art. 2º/1 Estatuto do MP).
É certo que o Ministério Público executa a política criminal definida pelos órgãos de soberania, mas isto significa tão-
só que deverá seguir os objetivos, prioridades e orientações estipuladas em abstrato em matéria de prevenção da
criminalidade, de investigação e de execução de penas e medidas de segurança. O que não significa, de modo algum,
que quaisquer ordens ou diretivas lhe sejam impostas quanto aos casos concretos.
O Ministério Público é um órgão de administração da justiça, uma autoridade judiciária, a par do juiz de instrução e
do juiz de julgamento (art. 1º/b) e 54º CPP). De facto, impõe-se ter em mente a seguinte distinção:
Órgãos judiciais Órgãos judiciários
» órgãos que exercem a jurisdição (tribunais) » órgãos de administração da justiça em sentido amplo
Estão em causa os titulares da função judicial, que Estão em causa entidades que conformam a máquina
surge a par da função executiva e da função legislativa responsável pela realização da justiça, quer exerçam
enquanto função estadual funções jurisdicionais, quer não
Ao Ministério Público, enquanto autoridade judiciária, compete o exercício da ação penal, orientado pelo princípio da
legalidade (art. 219º/1 CRP). É-lhe atribuída a particular função de colaborar com o tribunal na descoberta da verdade
e na realização do direito (art. 53º/1 CPP). Esta função denota que a atitude do MP não será a de interesse na acusação,
ao invés do que sucede em outros ordenamentos jurídicos. De facto, o Ministério Público não tem como função única
nem sequer primordial acusar; tem, isso sim, a função de auxiliar a descoberta da verdade, quer isso implique dedução
de acusação, quer implique o arquivamento. Diferentemente sucede, por exemplo, no ordenamento estadunidense,
em que a Procuradoria Geral (Prosecution Office) tem uma função exclusivamente acusatória (daí a referência dos
casos criminais segundo a fórmula “The People vs. (..)” – o processo penal surge como um processo de partes, em que
cabe aos Procuradores acusar, em nome do povo). Entre nós, o Ministério Público atua segundo critérios de estrita
objetividade, deduzindo ou não acusação em função do que tiver investigado. Na fase de inquérito não se procura
encontrar fundamentos para a acusação; visa-se, isso sim, decidir se haverá ou não acusação. Deste modo, deverá
proceder-se a todas as diligências para o apuramento da verdade e, portanto, também àquelas que possam concorrer
para uma decisão de não-acusação, por serem favoráveis ao suspeito. Em suma, a autonomia de que goza o Ministério
Público carateriza-se pela sua vinculação a critérios de legalidade e de objetividade, e não ao reconhecimento de uma
função estritamente acusatória. O que ficou dito é, aliás, bem evidente na circunstância de a lei conferir ao MP a
competência para interpor recursos no exclusivo interesse da defesa (arts. 53º/2/d) e 401º/1/a) CPP). Nestes termos,

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pode o MP interpor recurso mesmo quando a decisão proferida em 1ª instância seja concordante com a posição
anteriormente assumida no processo (desfavorável ao arguido).
Fica, assim, prejudicada a caraterização do processo penal como um processo de partes, bem como fica arredado o
apelo a um princípio de igualdade de armas entre a acusação e a defesa. Este princípio, além de não ter cobertura no
texto da Constituição, perde nitidez em face do direito ordinário, que não consagra uma estrutura acusatória pura.
Compete ainda ao Ministério Público:
 Receber denúncias, queixas e participações e apreciar o seguimento a dar-lhes (arts. 53º/2/a), 241º, 245º e
247º CPP);
 Deduzir acusação e sustentá-la efetivamente na instrução e no julgamento (arts. 53º/1 e 2/c), 283º, 285º/3,
302º/4 e 360º/1 CPP);
 Promover a execução das penas e medidas de segurança (arts. 53º/2/e) e 469º CPP).
É este conjunto amplo de poderes (ativos) que a lei concede ao Ministério Público que permitem qualificá-lo como
sujeito processual.
3. Arguido e suspeito
3.1 Termos da distinção
A distinção entre as figuras do arguido e do suspeito assume suma importância na matéria que ora nos ocupa:
Arguido VS Suspeito
» pessoa contra quem é deduzida acusação ou » pessoa relativamente à qual existe indício de que
requerida instrução (havendo sido ultrapassada a mera cometeu um crime ou de que nele participou, ou de
existência de indícios da prática do crime) que se prepara para o fazer (art. 1º/e CPP)
Sujeito Processual Participante Processual
Ao distinguir o arguido do suspeito, a lei processual supõe que à constituição do arguido se liga o reconhecimento do
estatuto de sujeito processual (arts. 58º/2e 4, 60º e 61º CPP), por contraposição ao de mero participante processual,
o que corresponde, de um ponto de vista material, ao reconhecimento de que se ultrapassou a mera existência de
indícios da prática do crime pela pessoa, havendo agora factos palpáveis que indicam nesse sentido.
3.2 Momento e modo de constituição do arguido
Como ficou já exposto, assume a qualidade de arguido todo aquele contra quem for deduzida acusação ou requerida
instrução num processo penal (art. 57º CPP). Significa isto que a fase de inquérito pode decorrer contra um agente
indeterminado ou contra um mero suspeito. Só haverá necessariamente um arguido na fase instrutória e na fase de
julgamento (pois estas não terão lugar em que, previamente, haja sido deduzida acusação ou requerida instrução).
Para obviar a um encurtamento ilegítimo dos direitos processuais que devem ser dados materialmente a quem vê
dirigir-se contra si um processo penal, o art. 59º/2 CPP, confere ao suspeito o direito de ser constituído arguido, a seu
pedido, sempre que estiverem a ser efetuadas diligências que pessoalmente o afetem. Com efeito, enquanto sujeito
processual, o arguido é titular de direitos e deveres processuais (art. 60º CPP) que não são reconhecidos ao mero
suspeito (que é apenas participante processual). Daí que, contrariamente ao que poderia entender-se prima facie, o
suspeito possa ter interesse em ser constituído arguido – por ex., só enquanto arguido terá direito ao silêncio. Por esta
mesma razão, o CPP prevê casos de constituição obrigatória de arguido, mesmo antes de ser deduzida a acusação ou
de ser requerida a instrução:
 Obrigatoriedade de constituição de arguido quando é interrogada a pessoa contra a qual corre o inquérito, se
há fundada suspeita da prática do crime (art. 272º/1 CPP);
 Obrigatoriedade de constituição de arguido logo que, correndo o inquérito contra a pessoa em relação à qual
haja suspeita fundada da prática de crime, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou
órgão de polícia criminal (art. 58º/1/a) CPP);
 Obrigatoriedade de constituição de arguido logo que tenha de ser aplicada a qualquer pessoa uma medida de
coação ou de garantia patrimonial (arts. 58º/1/b) e 192º/1 e 2 CPP);
 Obrigatoriedade de constituição de arguido logo que um suspeito for detido, nos termos e para os efeitos dos
arts. 254º a 261º CPP (art. 58º/1/c) CPP);
 Obrigatoriedade de constituição de arguido logo que for levantado auto de notícia que dê uma pessoa como
agente de um crime e aquele lhe for comunicado (art. 58º/1/d) CPP);
 Obrigatoriedade de constituição de arguido se, durante a inquirição feita a pessoa que não é arguido, surgir
fundada suspeita de crime por ela cometido (art. 59º/1 CPP).

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Maria Paixão Direito Processual Penal
Em todos estes casos, como facilmente se compreende, pretende obstar-se a que a pessoa (suspeito) seja inquirida,
interrogada ou preste depoimentos sem lhe serem reconhecidos direitos como o direito à não autoincriminação, ou
que seja objeto de medidas processuais sem que lhe seja reconhecimento direito de defesa, ou ainda seja alvo de
escrutínio sem se lhe reconhecer o direito a ser informado, a prestar depoimento e a intervir ativamente no processo.
A constituição de arguido é, ela mesma, uma garantia dada àquele que vê dirigir-se contra si um processo penal. Assim
sendo, é devidamente formalizada no decurso da tramitação processual, quando seja caso de constituição obrigatória.
Opera-se através de uma comunicação, oral ou por escrito, feita ao visado por autoridade judiciária ou por um órgão
de polícia criminal. Sendo a comunicação efetuada por um órgão de polícia criminal, a constituição de arguido deve
ser comunicada à autoridade judiciária competente, para validação (art. 58º/3 CPP). Ao arguido devem ser indicados
e, se necessário, explicados os direitos e deveres processuais que passam a caber-lhe nos termos do art. 61º CPP (arts.
58º/2 e 4, 59º/2 e 3 CPP). A lei prevê que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como
prova, se houver omissão ou violação destas formalidades (art. 58º/5 CPP). Noutro prisma, a não constituição de
arguido nos casos em que é obrigatória constitui nulidade, dependente de arguição, por se tratar de ato legalmente
obrigatório (art. 120º/2/d) CPP).
3.3 Estatuto processual do arguido
! A assunção da qualidade de arguido é uma garantia, por dela decorrer para o arguido o estatuto de sujeito processual
durante todo o decurso do processo penal (art. 57º/2 CPP). De acordo com a definição de “sujeito processual” já
apontada, trata-se de uma posição processual que permite ao sujeito participar constitutivamente na declaração do
direito do caso concreto, através do exercício de direitos processuais autónomos, legalmente definidos, que deverão
ser respeitados por todos os intervenientes no processo penal (arts. 60º e 61º/1 CPP).
O estatuto processual do arguido está enformado por três vetores fundamentais:
a) Direito de defesa;
b) Princípio da presunção de inocência;
c) Princípio do respeito pela decisão de vontade.
Vejam-se, então, os específicos direitos que integram cada um destes vetores:
a) Direito de defesa
O direito de defesa constitui uma “categoria aberta” à qual devem ser imputados, desde logo, os direitos que são
reconhecidos ao arguido em cumprimento do princípio do contraditório. Falamos nos seguintes:
 Direito de estar presente em todos os atos processuais que digam respeito diretamente ao arguido (arts.
61º/1/a), 271º/1 e 332º/1 CPP);
 Direito de ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que tenha de ser tomada decisão que
pessoalmente afete o arguido (arts. 61º/1/b) e 194º/4 CPP);
 Direito de intervir oferecendo provas e requerendo diligências que se afigurem necessárias ao próprio arguido
(art. 61º/1/g) CPP);
 Direito às últimas declarações (art. 361º/1 CPP).
Imputam-se ainda nesta categoria os seguintes direitos conferidos ao arguido diretamente pela lei para defesa do
arguido (arts. 61º/1/c), e), f), h), i), 61º/2, 143º/4, 332º/1, 358º/1, 359º/1, 399º e 409º/1 CPP):
 Direito de ser informado dos factos que lhe são imputados antes de prestar declarações;
 Direito de constituir advogado ou solicitar a nomeação de defensor;
 Direito de ser assistido por defensor em todos os atos processuais em que participar e, mesmo detido,
comunicar com ele em privado;
 Direito de ser informado dos direitos que lhe assistem pela autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal
perante os quais seja obrigado a comparecer;
 Direito de não ser condenado por factos que alterem não substancialmente os descritos na acusação ou na
pronúncia sem previamente lhe ser dada possibilidade de deles se defender;
 Direito de não ser condenado por factos que alterem substancialmente os descritos na acusação ou na
pronúncia, ainda que tal alteração tenha como efeito apenas a agravação dos limites máximos das sanções;
 Direito de recorrer das decisões que lhe forem desfavoráveis.
Devem ainda destacar-se, por referência ao direito de defesa do arguido, direitos relacionados com a faculdade de
exercer algum controlo sobre a tramitação do processo:
 Direito de requerer a abertura da instrução (art. 287º/1/a) CPP);
 Direito de requerer a intervenção do tribunal de júri (art. 13º CPP);

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 Direito de oposição à desistência de queixa ou de acusação particular (art. 52º CPP).
É ainda por referência à categoria do direito de defesa que deve ser entendida a tramitação processual dos crimes que
levam à aplicação de uma medida de segurança, concretamente à de internamento de inimputável perigoso. Tal
tramitação não se distingue dos casos que levam à condenação em pena, estabelecendo a lei a obrigatoriedade da
assistência do defensor. Consegue-se, deste modo, assegurar a proteção efetiva dos direitos e garantias processuais
do arguido, uma vez que a medida de segurança é aplicada depois de se ter logrado uma certeza processualmente
válida quanto às questões do facto e da culpa.
De facto, o CPP não valora a anomalia psíquica do arguido do ponto de vista da capacidade processual penal. O
processo penal comum e os processos especiais são tramitados independentemente de o arguido ser portador de uma
anomalia psíquica que lhe diminua ou exclua a capacidade de exercer o direito de defesa ou, de forma mais ampla,
que lhe diminua ou exclua a capacidade de assumir de forma efetiva o estatuto de sujeito do processo penal. Em suma,
a anomalia psíquica não é valorada no sentido de se afirmar ou não, com base nela, a capacidade judiciária do arguido.
Isto sem prejuízo de diversos autores criticarem esta solução legal (entre eles: Germanos Marques da Sila, Pedro
Soares Albergaria, etc.). Entendem, alguns setores da doutrina, que o arguido afetado por uma anomalia psíquica não
consegue participar constitutivamente na decisão de direito do caso, de forma que haveria de instituir-se uma
adaptação da tramitação processual para estes casos.
Ao não prever a suspensão do processo em razão de falta de capacidade processual do arguido, o regime vigente visa
as finalidades de descoberta da verdade material, de realização da justiça e de restabelecimento da paz jurídica, bem
como a finalidade de reafirmação da validade da norma violada, apontada à aplicação das sanções criminais
(prevenção geral positiva). Note-se, aliás, que a circunstância de a existência de uma anomalia psíquica no decurso do
processo penal não implicar a suspensão do processo, não invalida a relevância processual penal de tal anomalia. Ora
vejam-se as decorrências da verificação de anomalia psíquica:
 Obrigatoriedade da representação por defensor em qualquer ato processual, quando se suscitar a questão da
inimputabilidade ou da imputabilidade diminuída (art. 64º/1/d) CPP);
 Nomeação de defensor, a pedido do tribunal ou do arguido, sempre que as circunstâncias do caso revelarem
a necessidade ou conveniência de o arguido ser assistido (art. 64º/2 CPP);
 Obrigatoriedade de assistência do defensor à audiência de julgamento se o arguido estiver ausente por se
encontrar praticamente impossibilitado de comparecer, nomeadamente por doença grave (arts. 64º/1/g) e
334º/4 CPP);
 Possibilidade de prova da anomalia psíquica com recurso a perícia psiquiátrica (art. 159º/6 e 7 CPP);
 Inadmissibilidade de confissão quando o tribunal duvidar do seu caráter livre em virtude de dúvidas sobre a
imputabilidade plena do arguido (art. 344º/2/b) CPP);
 Previsão do internamento preventivo em hospital psiquiátrico ou em estabelecimento análogo adequado,
para acautelar perigos de fuga e de cometimento de novos crimes (art. 202º/2 CPP).
A assistência obrigatória de defensor, nos casos referidos, é a forma de responder aos casos em que possa haver
incapacidade processual penal do arguido. Ademais, esta defesa será sempre técnica (tem de ser assumida por
advogado ou advogado estagiário – art. 330º/1 CPP), tendo o defensor também estatuto de sujeito processual, não
lhe cabendo mera representação dos interesses do arguido.
b) Princípio da presunção de inocência
O princípio da presunção da inocência mantém-se até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, tendo uma
incidência direta no estatuto processual do arguido. Um dos grandes corolários deste princípio é a exigência
constitucional de celeridade processual: nos termos do art. 32º/2 CRP o arguido deve ser julgado no mais curto prazo
compatível com as garantias de defesa; se ele se presume inocente, então o “mal” que o processo representa deve
manter-se durante o menor período de tempo possível. Esta é uma consequência absolutamente fulcral deste
princípio na medida em que decorre, inclusive, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e da Carta dos Direitos
Fundamentais da UE.
Ademais, este princípio tem ainda incidência direta no estatuto processual do arguido, por influir sobre:
 Possibilidade de sujeição à aplicação de medidas de coação e de garantia patrimonial » desta presunção
decorre que só poderão ser aplicadas as medidas de coação que se mostrem comunitariamente suportáveis
face à possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente (arts. 60º e 61º/3/c) CPP);
 Possibilidade de sujeição a diligência de prova » embora as declarações do arguido possam constituir meio de
prova e/ou meio de defesa, o princípio da presunção de inocência impõe que o tribunal deva dar como

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provados os factos que lhe sejam favoráveis, quando fica aquém da dúvida razoável, apesar da prova
produzida, inclusivamente por meio de declarações do próprio (arts. 60º, 61º/3/c) e 140º CPP);
Daqui decorre um dos princípio gerais mais marcantes do processo penal: o princípio in dubio pro reo.
 Respeito pela decisão de vontade do arguido » deste princípio resulta ainda que, em determinadas
circunstâncias, embora parecendo desfavorável para o arguido a prática (ou a sua falta) de determinados atos
processuais, tais atos deverão ser praticados (ou omitidos) se ele assim o pretender (ex.: oposição à
desistência de queixa ou de acusação particular – o arguido pode pretender que o processo siga para
julgamento para provar a sua inocência, devendo ser-lhe reconhecido o direito a exigir a acusação).
Na Diretiva UE 2016/343, do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa ao reforço de certos aspetos da presunção
de inocência, destaca-se:
 Direito a não ser apresentado como culpado, por autoridades públicas, antes da decisão definitiva;
 Atribuição do ónus da prova à acusação;
 Decisão favorável em caso de qualquer dúvida razoável quanto à culpabilidade da pessoa;
 Direito à não autoincriminação e ao silêncio.
Com esta instrumento pretendeu-se, ao nível da União Europeia, reforçar a presunção de inocência e uniformizar a
sua compreensão no espaço comunitário.
c) Princípio do respeito pela decisão de vontade
O princípio do respeito pela decisão de vontade funda-se, constitucionalmente (arts. 32º/2 e 8 e 20º/4 CRP), no/a:
 Princípio da presunção de inocência;
 Proibição da obtenção de provas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoal,
abusiva intromissão na vida privada, domicílio, correspondência ou telecomunicações da pessoa;
 Exigência de processo equitativo.
Este princípio tem especial incidência no estatuto processual indivíduo enquanto objeto de diligências probatórias.
Este princípio tem reflexos em matéria de prova pelas seguintes vias:
 Princípio da legalidade da prova » só são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei;
 Direito à não autoincriminação » o arguido tem direito ao silêncio quanto às declarações relativas a factos que
lhe são imputados e aos seus antecedentes criminais (arts. 59º/2, 61º/1/d), 125º, 126º, 132º/2, 141º/4/a) e
b), 141º/5, 143º/1 e 2, 144º/1, 343º/1, 344º e 345º/1 CPP);
 Direito a não facultar meios de prova » o arguido pode recusar-se a facultar meios de prova, designadamente
prova documental.
O direito do arguido à não autoincriminação lança hoje novas interrogações quanto ao seu âmbito de aplicação,
nomeadamente perante a realidade dos perfis de ADN e das técnicas neurológicas para fins de investigação criminal.
Questiona-se, desde logo, se a recolha de saliva para realização de testes de ADN pode, ou não, ser recusada. Os
autores divergem quanto a esta problemática:
a) Costa Andrade: a colheita de saliva não é coberta pelo direito à não autoincriminação e, portanto, não pode
ser recusada pelo arguido;
b) Silva Dias e Vânia Costa Ramos: a colheita de saliva constitui um modo de obtenção de prova que poderá gerar
prova desfavorável ao arguido, de tal modo que este tem direito a não a permitir, com o objetivo de não se
autoincriminar.
O TC já se pronunciou sobre esta questão, tendo entendido que o direito à não autoincriminação não abrange o uso,
em processo penal, de elementos que se tenham obtido do arguido por meio de poderes coercivos mas que existam
independentemente da vontade si sujeito, como é o caso da colheita de saliva para a realização de determinação do
perfil genético – pois esta colheita visa a realização de um exame que é legalmente devido por conjugação dos arts.
61º/3/ d) e 172º/ 1 CPP e 6º/1, da Lei nº 45/2004 (que estabelece o regime jurídico das perícias médico-legais e
forenses) (Ac. nº 155/2007). Aos autos do processo recorrido foi junto parecer de Gomes Canotilho, no qual o autor
refere que “a doutrina dominante e uma boa parte da jurisprudência nacional e internacional de direitos humanos têm entendido que a
presunção de inocência do arguido abrange apenas o direito a permanecer calado e a beneficiar da existência de uma dúvida razoável, não
impedindo a recolha de material biológico para efeitos de análise de DNA” (pág. 8); “a presunção de inocência do arguido abrange apenas o
direito a permanecer calado e a beneficiar da existência de uma dúvida razoável, não impedindo a recolha de material biológico para efeitos de
recolha de DNA”. Daqui conclui o Tribunal que “(...) na verdade, essa colheita não constitui nenhuma declaração, pelo que não
viola o direito a não declarar contra si mesmo e a não se confessar culpado. Constitui, ao invés, a base para uma mera perícia de
resultado incerto, que, independentemente de não requerer apenas um comportamento passivo, não se pode catalogar como
obrigação de auto-incriminação.”

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No entanto, no Ac. nº 14/2014, o TC já veio afirmar que os arguidos poderão recusar-se a prestar autógrafos para
posterior exame e perícia.
No fundo, o Tribunal Constitucional tem vindo a entender que a realização deste tipo de perícias, dependendo da
intervenção do arguido (mediante autorização da recolha de saliva ou da prestação de autógrafo, etc.), sempre
dependerá de (1)expressa previsão legal (o arguido só é “obrigado” a permitir a recolha de vestígios ou outros quando
a lei o imponha) e de (2)autorização de autoridade judiciária, quando o arguido não permitir de livre vontade a recolha
(art. 172º/1 CPP). Na falta de previsão legal e/ou de autorização de autoridade judiciária a perícia será nula (art. 32º/8
CRP), não porque constitui uma violação do direito à não autoincriminação (a doutrina e a jurisprudência maioritárias
entendem que este direito não tem incidência nesta sede), mas porque constitui violação de direitos, liberdades e
garantias (ex.: direito à integridade física), a qual só pode ter lugar se proporcional (art. 18º CRP) e se autorizada por
lei da AR ou por decreto-lei autorizado do Governo (art. 165º/1/b) CRP).
Além dos direitos mencionados, o arguido é também titular de deveres:
 Sujeição a diligências probatórias, medidas de coação e de garantia patrimonial (art. 61º/3/d) CPP);
 Sujeição a exames, nos termos dos arts. 171º e 172º CPP;
 Dever de comparecer perante o juiz, o MP ou os órgãos de polícia criminal sempre que a lei o exigir e para tal
tiver sido devidamente convocado (art. 61º/3/a) CPP);
 Dever de responder verdadeiramente às perguntas que lhe sejam colocadas sobre a sua identidade (arts.
63º/3/b), 141º/3 e 342º CPP);
 Dever de prestar termo de identidade e residência logo que assuma a qualidade de arguido (arts. 61º/3/c) e
196º CPP).
4. Defensor
4.1 Defensor como sujeito processual
O arguido tem, nos termos da Constituição, o direito de escolher defensor e de por ele ser assistido em todos os atos
do processo (art. 32º/3 CRP). Ademais, a lei especifica os casos em que a constituição e as fases em que a assistência
por advogado é obrigatória. É exatamente esta obrigatoriedade que aponta no sentido de o defensor ter uma posição
de sujeito do processo penal.
Um vez que a Constituição prevê que a justiça não possa ser denegada a ninguém por falta de meios económicos, a
Lei nº 34/2004, relativa ao acesso ao direito e aos tribunais, prevê a atribuição de apoio judiciário e nomeação de
defensor para os arguidos com insuficiência de meios económicos para constituir advogado (arts. 39º a 44º).
Uma vez que estamos perante um verdadeiro sujeito processual, ao defensor não deve caber a mera representação
dos interesses do arguido, mas antes o papel de órgão de administração da justiça que atua no exclusivo interesse da
defesa. Um processo penal que assegure ao arguido todas as garantias de defesa carateriza-se também pela
assistência obrigatória do defensor em determinados atos processuais.
Em jeito de conclusão, reconhece-se ao defensor a qualidade de sujeito processual uma vez que:
 A assistência do defensor é obrigatória em certos atos, o que denota o seu papel fulcral na declaração de
direito do caso;
 O defensor, embora atuando sempre em favor do arguido, pode atuar sem ou mesmo contra a vontade deste,
pois não lhe cabe somente a representação dos interesses do arguido, mas antes servir a justiça;
 O defensor exerce alguns dos direitos que a lei confere ao arguido, assim intervindo ativa e constitutivamente
na tramitação processual (ex.: direito de recurso).
4.2 Assistência obrigatória do defensor
O Código de Processo Penal conta com uma disposição geral sobre a obrigatoriedade de assistência do defensor a atos
processuais – art. 64º/1 CPP:
a) Interrogatórios de arguido detido ou preso (arts. 141º/2 e 144º/3 CPP);
b) Interrogatórios feitos por autoridade judiciária (art. 143º/2 CPP);
c) Debate instrutório e audiência (arts. 300º/3 e 4, 325º/5, 332º/5 e 384º/6 CPP);
d) Qualquer ato processual, à exceção da constituição de arguido, quando o arguido for cego, surdo, mudo,
analfabeto, desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos, ou quando se suscitar a questão da sua
inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída;
e) Recursos ordinários ou extraordinários;
f) Declarações para memória futura (arts. 271º e 294º CPP);
g) Audiência para julgamento realizada na ausência do arguido (arts. 196º/3/d), 333º/7 e 334º/4 CPP).

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Maria Paixão Direito Processual Penal
A não comparência do defensor nos casos em que a lei exigir a respetiva comparência constitui nulidade insanável
(art. 119º/c) CPP).
Poderá ainda ser nomeado defensor ao arguido sempre que as circunstâncias do caso revelarem a necessidade ou
conveniência deste ser assistido. Será ainda obrigatoriamente nomeada defensor, quando ainda não o tenha sido ou
o arguido tenha constituído advogado, quando for deduzida acusação contra o arguido ou requerida abertura de
instrução (arts. 64º/2 e 3 e 287º/4 CPP).
4.3 Atuação do defensor
Segundo o art. 63º CPP, o defensor exerce os direitos que a lei reconhece ao arguido, salvo os que ela reservar
pessoalmente a este último. Competem pessoalmente ao arguido, nomeadamente, os direitos previstos nos arts
333º/3, 361º/1, 333º/5 e 334º/6 CPP.
A constituição de advogado ou a nomeação de defensor constitui uma garantia de defesa do arguido. Assim, o arguido,
mesmo detido, pode sempre comunicar com o defensor em privado (art. 61º/1/f) CPP). Note-se que assim será mesmo
no caso de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, em desvio ao regime de incomunicabilidade
com o exterior (art. 143º/4 CPP). Ainda em virtude da natureza garantística da constituição de advogado, é proibida a
apreensão e/ou controlo da correspondência entre o arguido e o seu defensor, salvo se o juiz tiver fundadas razões
para crer que aquela constitui objeto ou elemento de um crime (art. 179º/2 CPP). Ademais, é também proibida, nos
mesmo termos, a interceção e a gravação das conversações ou comunicações entre o arguido e o seu defensor (art.
187º/5 CPP).
4.4 Quem pode ser defensor
O defensor poderá ser um advogado ou um defensor nomeado, podendo o arguido, neste caso, constituir advogado
em qualquer altura do processo (art. 62º/1 CP). Diferentemente do que já sucedeu entre nós, exige-se que a defesa
seja técnica – o art. 330º/1 CPP refere-se hoje à substituição do defensor por outro advogado ou advogado-estagiário
e já não à substituição por “pessoa idónea”. A alteração teve lugar em virtude do preconceito e descredibilização que
o anterior sistema gerou, na medida em que a sociedade olhava o defensor oficioso com descrença e ceticismo,
exatamente por não ser necessariamente um advogado (podendo mesmo ser um não jurista). Pretendeu-se, ao
instituir a obrigatoriedade de o defensor ser advogado, afastar o preconceito respeitante aos defensores oficiosos.
No caso de defensor oficioso, a nomeação é feita pela Ordem dos Advogados, sendo todavia custeada pelo Ministério
da Justiça. Portanto, são defensores oficiosos advogados inscritos na Ordem dos Advogados, designados
aleatoriamente par cada caso. Esta foi uma opção do legislador nacional, não sendo o único sistema possível. No Brasil,
por exemplo, está instituída a “defensoria pública”, uma instituição autónoma, que não integra a carreira da advocacia,
nem está depende do executivo. A defensoria pública é uma instituição pública cuja função é oferecer assistência e
orientação jurídica aos cidadãos que não possuem condições financeiras para pagar as despesas inerentes a tais
serviços. Os defensores públicos são juristas, mas não são advogados nem têm de estar inscritos na Ordem dos
Advogados. Este sistema tem a vantagem de colocar as funções de defensor oficioso nas mãos de pessoas que
assumem tais funções como carreira, a tempo inteiro. O nosso sistema, embora represente uma evolução face ao
anterior, tem a desvantagem de implicar a “imposição” do exercício destas funções a advogados, mediante o
pagamento de um valor fixado pelo Ministério da Justiça, o que poderá, em determinados casos, implicar a falta de
motivação destes profissionais para exercer as suas funções nos casos que lhes são atribuídos nestes termos.
5. Assistente e ofendido
5.1 Termos da distinção
Assistente Ofendido
» pessoa à qual é concedida pela lei a faculdade de » titular dos interesses que a lei especialmente quis
intervir constitutivamente na declaração de direito do proteger com a incriminação (art. 68º/1/a) CPP)
caso, contra pagamento de UC(*) (art. 68º CPP)
Participante Processual
Sujeito Processual
[NOTA: (*) UC = Unidade de Conta Processual » a constituição como assistente implica o pagamento de uma unidade de conta processual, nos
termos do art. 8º/1 do “Regulamento das Custas Processuais” (DL nº 34/2008, de 26 de Fevereiro) – art. 519º CPP]

O assistente é, em princípio, alguém que se considera ofendido (com a infração penal). Como facilmente se
compreende, quem terá interesse em intervir constitutivamente no processo, além do arguido, do defensor, do
tribunal e do ministério público, é a pessoa que se considera lesada/ofendida com o facto criminoso em juízo.
Contudo, os dois conceitos não são sinónimos e nem sempre se sobrepõem. É notório que a lei processual penal os
pretendeu distinguir:

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Maria Paixão Direito Processual Penal
Assistente VS Ofendido
 Pode ser uma pessoa que não é o ofendido (alíneas  Não tem necessariamente que se constituir
b), c), d) e e) do nº 1 do art. 68º CPP); assistente (só o fará se pretender intervir
 Assume a qualidade de sujeito processual, daí que constitutivamente na declaração de direito do caso);
lhe seja imposto o pagamento de taxa de justiça.  Não se constituindo assistente, é mero participante
processual (intervindo, por ex., como testemunha).
A constituição de assistente, estando ligada ao estatuto de sujeito processual, é uma forma de proteger os interesses
das “vítimas” da prática de crimes, já com muita tradição no direito penal português. Esta faculdade é, aliás, uma das
garantias do processo criminal previstas na Constituição (art. 32º/7 CRP).
Um outra nota que importa sublinhar nesta sede é a de que o recurso ao conceito de “vítima”, por alternativa ao de
ofendido, constitui um erro técnico. De facto, a expressão “vítima” constitui uma categoria criminológica, à qual se
reconduzem todas as pessoas que, de alguma forma, ficam prejudicadas pela prática do crime. Ora, facilmente se
compreenderá que este é um conceito bem mais amplo do que o conceito de “ofendido”. Como exposto, por
“ofendido” entende-se o titular dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação, o que significa que o sujeito
suposto será, em princípio, uma pessoa em específico. O que não obsta a que, de um só crime, resultem várias vítimas.
Chame-se à colação, exemplificativamente, o crime de homicídio simples (art. 131º CP): é evidente que o ofendido
com este tipo legal de crime será o falecido. Com a consagração legal deste tipo, o legislador pretendeu proteger o
bem jurídico vida, do qual era titular a pessoa que faleceu em virtude da conduta do agente. Dúvidas não se colocam
a este propósito: o ofendido é o falecido; pese embora o facto de, pela própria natureza das coisas, a lei conceder a
outras pessoas o direito de se constituírem como assistentes no processo penal, em virtude do falecimento do
ofendido (pois, relembre-se, nem sempre o assistente corresponde ao ofendido). Bem diferente será já a consideração
das vítimas, que, além do ofendido propriamente dito, serão todas as demais pessoas que de alguma forma se
consideram afetadas pela conduta criminosa. Incluir-se-ão aqui, por exemplo, eventuais partes civis – pessoas que,
nos termos da lei civil, adquirem um direito a indemnização em virtude da morte do ofendido (ex.: os ascendentes,
descendentes e cônjuge, nos termos do art. 496º/2 CC ou os terceiros referidos no art. 495º CC). Tratam-se aqui de
pessoas que são “vítimas” do crime de homicídio, mas que não são ofendidos. Algumas delas poderão constituir-se
como assistentes, ao abrigo do art. 68º CPP, mas, mais uma vez, tal não significa, de modo algum, que sejam
qualificáveis como ofendidos. Em suma: as noções de “ofendido” e “assistente” são conceitos jurídicos (não
coincidentes entre si, como ficou exposto), enquanto que o conceito de “vítima” se traduz numa categoria
criminológica. Daí que a utilização desta última expressa em sede processual pena seja um erro técnico-jurídico.
! Neste contexto, Maria João Antunes afirma: “o direito penal não protege vítimas, mas sim bens jurídicos”; e o
ofendido é o titular desses bens jurídico-penais. Neste contexto, a autora critica veementemente a recente introdução
da categoria da “vítima” no CPP, com o art. 67º-A, aditado ao Código em 2015. De facto, passou a consagrar-se
legalmente uma definição para um conceito que não é jurídico. Ademais, gera-se assim polémica em torno da
recondução que deste conceito se haverá de fazer às duas grandes categorias de intervenientes no processo penal:
tratar-se-á de um sujeito processual ou de um mero participante processual? Maria João Antunes entende que só fará
sentido a inserção desta categoria no cômputo dos participantes processuais (neste sentido vão os arts. 281º/7,
292º/2, 212º/4 CPP), ainda que reconhecendo que a lei lhe atribui um direito de participação ativa no processo,
designadamente nos nºs 4 e 5 do art. 67º-A CPP, o que acarreta uma desarmonia conceitual no Código. Desta forma,
a expressão “vítima” perde a categorização criminológica que lhe deveria ser imputada, com prejuízo para a distinção,
ao nível processual, dos diversos papéis que a vítima poderia assumir (ofendido, assistente ou lesado). A “vítima”
deveria relevar no processo penal se e apenas quando assumisse a posição de interveniente processual, na veste de
qualquer das categorias processuais penais reconhecidas; não deveria assumir uma relevância autónoma, que acaba
por distorcer a delimitação dos conceitos verdadeiramente jurídico-penais.
Estas alterações legislativas vêm na sequência do que Maria João Antunes denomina de discurso “politicamente
correto”. A Lei nº 130/2015, que aditou este preceito ao CPP, aprova o “Estatuto da Vítima”, o qual se consubstancia
num conjunto de medidas que visam assegurar a proteção e promoção dos direitos das vítimas da criminalidade. Aí se
consagra um conceito de vítima bem distinto do de ofendido, o que não obstou, todavia, à transposição daquele
conceito para o domínio processual. Cede, desta forma, o legislador à pressão social no sentido da perseguição de
certos tipos de “criminosos” e de proteção de determinadas “vítimas” – nas palavras do diploma mencionado, as
“vítimas especialmente vulneráveis”.
5.2 Quem pode constituir-se assistente
Segundo o art. 68º/1 CPP, podem constituir-se como assistentes:

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a) Os ofendidos maiores de 16 anos;
b) As pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento;
c) No caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas
e bens ou a pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, os
descendentes e adotados, ascendentes e adaptantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes, salvo se alguma
destas pessoas houver comparticipado no crime;
d) No caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, o representante legal e, na sua falta, as pessoas
indicadas na alínea anterior, segundo a ordem aí referida, ou, na ausência dos demais, a entidade ou instituição com
responsabilidades de proteção, tutelares ou educativas, quando o mesmo tenha sido judicialmente confiado à sua
responsabilidade ou guarda, salvo se alguma delas houver auxiliado ou comparticipado no crime;
e) Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento
pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em
negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.
Esta última alínea alarga exponencialmente o âmbito dos que podem constituir-se assistentes, em razão da natureza
e da relevância dos bens jurídicos protegidos por estas incriminações: permite-se que qualquer pessoa maior de 16
anos de idade possa, em exercício do seu direito de cidadania, contribuir de forma constitutiva para a declaração de
direito do caso, o que pretende dar cumprimento ao desejo de uma colaboração de todos os particulares na deteção
e processamento das infrações aí abrangidas. A constituição de assistente é até estimulada pelo legislador em outros
diplomas avulsos, como é o caso da Lei nº 19/2008 (que aprova medidas de combate à corrupção), que isenta certas
associações, que pretendam constituir-se como assistentes, do pagamento de taxa de justiça (art. 5º).
Importa ainda notar que a circunstância de não ser identificável um titular individual dos interesses que a lei quis
especialmente proteger com a incriminação, em qualquer tipo legal de crime, não obsta a que uma certa pessoa se
constitua assistente, se se puder dizer que a incriminação também protege os seus interesses (exs.: o crime de
denúncia caluniosa, previsto no art. 365º CPP, tutela a realização da justiça, e não um interesse pessoal; todavia, a
pessoa caluniada poderá certamente constituir-se como assistente. O mesmo se dirá quanto aos crimes de falsificação
de documento (art. 256º/1 CP), desobediência qualificada (art. 348º/2 CP), entre outros).
Refira-se ainda que, além do CPP, outras leis preveem a possibilidade de constituição de assistente.
5.3 Atuação do assistente
O assistente é admitido a intervir no processo como colaborador do Ministério Público, a cuja atividade subordina a
sua intervenção no processo (art. 69º/1 CPP). Nos termos do art. 70º CPP, o assistente deverá sempre ser representado
por advogado.
Compete ao assistente, em especial (arts. 69º/2, 284º, 285º e 401º/1/b) CPP):
 Intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se afigurarem
necessárias e conhecer os despachos que sobre tais iniciativas recaírem;
 Deduzir acusação independentemente da do Ministério Público e, no caso de procedimento dependente de
acusação particular, ainda que aquele não a deduza;
 Interpor recurso das decisões que o afetem, mesmo que o Ministério Público não o tenha feito.
A possibilidade que é dada ao assistente de participar de forma constitutiva na declaração de direito do caso, patente
nestas faculdades que lhe são reconhecidas, está ainda presente nas seguintes prerrogativas não especiais:
 Legitimidade para requerer a abertura de instrução (art. 287º/1/b) CPP);
 Exigência da sua concordância para haver suspensão provisória do processo (art. 281º/1/a) CPP);
 Possibilidade de requerer ao Ministério Público a aplicação da suspensão provisória do processo.
De acordo com o nº 3 do art. 68º CPP, o assistente pode intervir em qualquer altura do processo, aceitando-o no
estado em que se encontra, desde que o requeira ao juiz:
 Até 5 dias antes do início do debate instrutório ou da audiência de julgamento;
 No prazo estabelecido para deduzir acusação, nos termos do art. 284º CPP;
 No prazo estabelecido para requerer abertura de instrução, nos termos do art. 287º/1/b) CPP;
 No prazo para interposição de recurso da sentença.
[NOTA: a respeito deste último prazo, o STJ fixou entretanto jurisprudência (Ac. nº 12/2016) no sentido de
que, após a publicação da sentença proferida em 1ª instância, que absolveu o arguido da prática de um crime
semi-público, o ofendido não pode constituir-se assistente, para efeitos de interpor recurso da decisão.]
Quanto a este último prazo, a sua consagração legal resultou da alteração legislativa operada com a Lei nº 130/2015.
A posição processual do assistente e a circunstância de se tratar de sujeito processual implicam necessariamente que

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se questione a bondade desta solução. Não parece ser razoável estender o prazo para constituição como assistente
para além da ausência de julgamento – se estamos em face de um sujeito que pretende intervir constitutivamente na
declaração de direito do caso, então parece desprovido de sentido permitir-lhe intervir no processo só depois do
julgamento e com o único intuito de interpor recurso, já que é na audiência de julgamento que se declara o direito
aplicável ao caso.
6. Partes civis
6.1 Lesado
O processo penal pode conter, no seu seio, uma ação civil a decorrer em paralelo à ação penal, em decorrência do
“princípio da adesão” consagrado no art. 129º CP. Nos termos deste princípio, a indemnização por perdas e danos
emergentes de um crime é regulada pela lei civil mas o pedido correspondente é deduzido pelo lesado no processo
penal respetivo. A ação de indemnização conserva a sua especificidade de verdadeira ação civil, o que faz das partes
civis sujeitos da ação civil, e não da ação penal (arts. 72º, 73º, 73, 77º e 400º/3 CPP). As partes civis poderão, no
máximo, ser consideradas sujeitos do processo penal num sentido eminentemente formal. Esta configuração que o
processo penal pode assumir implica que se distingam, portanto, os intervenientes:
Processo penal
Ação penal Ação civil
São intervenientes: São partes civis:
 Arguido;  Responsável;
 Assistente;  Lesado.
 Ofendido.
Por “lesado” entende-se, para estes efeitos:
“a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, ainda que se não tenha constituído ou não possa
constituir-se assistente”.
Do mesmo modo que o lesado pode ser pessoa diferente do assistente, e inclusive do ofendido, o demandado na ação
civil, portanto o responsável, pode também não ser o arguido, sendo uma pessoa com responsabilidade meramente
civil (arts. 73º e 74º CPP).
6.2 Tramitação da ação civil
O princípio da adesão (art. 71º CPP), nos termos do qual a ação para indemnização por perdas e danos emergentes de
crime, embora regulada na lei civil, deve tramitar por apenso ao processo penal, só excecionalmente é quebrado,
podendo haver pedido em separado nos casos previstos no art. 72º CPP.
Uma vez que se está no âmbito de uma ação civil, tem aplicação, nos termos da lei processual civil, o princípio do
pedido, segundo o qual o tribunal não se auto-ativa, dependendo a atribuição de indemnização de pedido do autor
(neste caso, o lesado) e decorrendo desse pedido o objeto do processo, a respeitar na decisão final. Também apenas
por razões ponderosas poderá ser quebrado este princípio, sem que seja posta em causa, porém, a natureza civil da
quantia arbitrada oficiosamente. De facto, poderia questionar-se se a atribuição ex officio de indemnização por danos
decorrentes de crime não implicaria que esta indemnização devesse ser inqualificável como indemnização cível. É nota
fulcral das ações cíveis, com especial incidência nas ações indemnizatórias, o pedido do autor: é este pedido que
desencadeia o processo (sem exercício do direito de ação por parte do autor, não há processo civil) e será ele que
delimita o cômputo possível da sentença (no caso de ação de indemnização, a indemnização nunca poderá ser superior
ao valor requerido pelo autor na petição inicial), por dele decorrer o objeto do processo, que é absolutamente
imperativo para o tribunal. Ora, a Lei nº 59/98 veio introduzir no CPP o art. 82º-A, nos termos do qual o tribunal pode
atribuir, em caso de condenação, uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos, quando particulares
exigências de proteção da vítima o imponham, ainda que não tenha sido deduzido pedido de indemnização civil no
processo penal ou em separado. Ademais, com a Lei nº 48/2007 esta norma passou mesmo a ter aplicação eu processo
sumaríssimo, onde nem sequer é permitida a intervenção de partes civis (arts. 393º e 394º CPP). Apesar de todas estas
entorses ao regime processual regra nesta matéria – o regime civil, em que prepondera o princípio do pedido – a
verdade é que parece dever continuar-se a falar nestes casos numa ação civil inserida no processo penal. De facto, o
valor arbitrado pelo tribunal mantém a qualidade de “indemnização”, por constituir uma quantia pecuniária atribuída
a um lesado a título de compensação pelos danos sofridos em virtude da atuação ilícita de outrem. Pura e
simplesmente, em decorrência das especiais circunstâncias envolventes (o facto de a atuação ilícita lesiva constituir
crime, o que não sucederá na maioria das ações civis), prevêem-se casos excecionais em que o tribunal decide
oficiosamente a atribuição de indemnização, em desvio ao princípio geral do pedido.

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Como sujeitos que são de uma ação civil, a intervenção processual das partes civis (lesado e o responsável) restringe-
se à sustentação e prova da questão civil (art. 74º/2 e 3 CPP). Não lhes cabe dispor sobre os factos constitutivos do
crime em si, nem intervir na tramitação da ação penal; apenas lhes competindo dirimir a questão indemnizatória. Isto
sem prejuízo de o lesado poder requerer que o arguido ou o responsável civil prestem caução económica ou que seja
decretado contra eles arresto preventivo, se houver receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias
de pagamento da indemnização (arts. 227º/3 e 228º/3 CPP). Estes dois meios processuais são medidas de garantia
processual mas revestem natureza processual penal. Contudo, a lei permite a uma parte civil – o lesado – que deles
lance mão, novamente em virtude de estar em causa uma indemnização civil que advém de um facto “especial”, um
facto criminoso.
7. Órgãos de polícia criminal
7.1 Quem são os órgãos de polícia criminal
Para efeitos do disposto no CPP, são “órgãos de polícia criminal” (art. 1º/c) CPP):
“todas as entidades e agentes policiais a quem caiba levar a cabo quaisquer atos ordenados por uma
autoridade judiciária ou determinados pelo Código de Processo Penal”.
São já “autoridades de polícia criminal” (art. 1º/d) CPP):
“os diretores, oficiais inspetores e subinspetores de polícia e todos os funcionários policiais a quem a leis
respetivas reconhecerem essa qualidade”.
Para compreensão destes conceitos, utiliza-se uma “técnica de duplo reenvio”:
Reenvio interno Reenvio externo
Remissão para a definição formal constante das alíneas Remissão, das alíneas do c) e d) do art. 1º CPP, para as
c) e d) do art. 1º CPP leis orgânicas e estatutárias das polícias
Portanto, quando ao longo do Código se faz referência a órgãos de polícia criminal e a autoridades de polícia criminal,
pressupõe-se noções que decorrem da articulação do art. 1º/c) ou d) CPP com outros diplomas especiais – estes
conceitos são sempre utilizados tendo como pressuposto esta dupla caraterização. Das referidas alíneas do art. 1º CPP
resulta que o CPP não atribui competências processuais especificamente a uma qualquer polícia; o estatuto de órgão
ou autoridade policial e as suas competências sempre resultarão das leis orgânicas. Noutros termos: o CPP parte da
ideia de que o que define a atividade de um órgão de polícia criminal (ou de uma autoridade de polícia criminal) é,
não a sua qualificação orgânica (o CPP não associa a este conceito determinadas polícias em concreto – ex.: PJ ou GNR,
etc.), mas sim a qualidade dos atos que pratica (o CPP associa a este conceito as polícias que, nos termos das leis
respetivas, praticam determinados atos, independentemente da sua qualificação).
A este respeito, diplomas avulsos referem como órgãos de polícia criminal as seguintes polícias:
Órgãos de polícia criminal
De competência genérica De competência específica
 Polícia Judiciária;  Serviços de Estrangeiros e Fronteiras;
 Guarda Nacional Republicana;  Autoridade de Segurança Alimentar e Económica;
 Polícia de Segurança Pública.  Serviços da Administração Tributária;
[arts. 3º/1, 6º e 7º Lei nº 49/2008]  Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do
Ambiente e do Ordenamento do Território.
7.2 Atuação dos órgãos de polícia criminal
Os órgãos de polícia criminal atuam, no processo, sob a direção das autoridades judiciárias (Ministério Público, juiz de
julgamento e juiz de instrução) e na sua dependência funcional, competindo-lhes coadjuvá-las com vista à realização
das finalidades do processo (arts. 55º/1, 56º, 263º, 270º, 288º/1 e 290º/2 CPP).
Deste modo, o modelo consagrado carateriza-se pela conciliação de duas vertentes fundamentais:
Autonomia orgânica Dependência funcional
» persiste a dependência organizatória, administrativa e » consagra-se a subordinação destes órgãos às
disciplinar destes órgãos perante o poder executivo autoridades judiciárias, competindo-lhes auxiliá-las e
Podemos falar em: com elas colaborar no exercício das suas funções
 Autonomia técnica: as investigações e aos atos
realizados assentam na utilização de um conjunto de
conhecimento e métodos de agir próprios;
 Autonomia tácita: as investigações e atos a
realizar são efetuados em tempo, lugar e modo
escolhidos pelos órgãos de polícia.

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A dependência funcional apontada faz dos órgãos de polícia criminal meros participantes processuais: a sua atuação
no processo não é constitutiva, mas tão-só auxiliar, podendo as autoridades judiciárias, sempre que entenderem:
 Avocar o processo;
 Fiscalizar o andamento do processo e legalidade dos atos praticados;
 Dar instruções específicas sobre a realização de quaisquer atos.
Portanto, os órgãos de polícia criminal não participam constitutivamente na declaração de direito do caso, limitando-
se a prestar auxílio às autoridades judiciárias, para que estas o possam fazer.
Aos órgãos de polícia criminal está legalmente deferida a prática de certos atos, mesmo por iniciativa própria. Está-
lhes reservada uma área de competência própria, ainda que tais atos dependem depois de validação de autoridade
judiciária. Estão em causa, nomeadamente, as seguintes faculdades (arts. 55º/1, 58º/2, 171º/4, 173º, 174º/5, 177º/3,
178º/4, 196º/1, 241º, 243º, 248º a 253º e 257º/2 CPP):
 Colher notícias de crime;
 Impedir, tanto quanto possível, as consequências dos crimes;
 Descobrir os agentes do crime;
 Levar a cabo atos necessários e urgentes destinados a assegurar meios de prova;
 Proceder à constituição de arguido;
 Sujeitar o arguido a termo de identidade e residência;
 Detenção em flagrante delito.
Alguns dos atos que integram a área de competência própria dos órgãos de polícia criminal estão reservados às
autoridades de polícia criminal (ex.: detenção em flagrante delito – art. 257º/2 CPP). Bem como lhe estão reservados
atos que dependem de delegação de autoridade judiciária (ex.: ordenar efetivação de perícia – art. 270º/3 CPP).

Capítulo IV – A tramitação do processo penal comum – a fase de inquérito


A tramitação do processo penal comum é tendencialmente unitária.
» consoante a natureza, gravidade do crime ou maior » obrigatoriamente o processo penal é tramitado em
ou menor facilidade de apreciação e valoração da prova três fases (ainda que a configuração de cada uma possa
por parte do tribunal, poderão ser complentes tribunais alterar-se consoante a natureza do crime e o tribunal
diversos, do que depende certos aspetos da tramitação concretamente competente para decidir)
 Tribunal singular 1. Fase de inquérito
 Tribunal de júri 2. Fase de instrução
 Tribunal coletivo 3. Fase de julgamento

Bem, desta forma, importará, antes de mais, obter uma visão ampla da tramitação do processo penal:
Fase de Inquérito Fase de Instrução Fase de Julgamento
Fase de investigação por excelência, Fase facultativa que tem como Fase de efetiva decisão da causa,
cujo objetivo é investigar a finalidade comprovar judicialmente em que é proferida sentença, após
existência de um crime, determinar a decisão do MP de deduzir produção de prova, na qual se
o(s) seu(s) agente(s) e a acusação ou de arquivar o inquérito, decide se houve prática de crime e
responsabilidade dele(s) e descobrir em ordem a submeter a causa, ou se o arguido é culpado e na qual se
e recolher as necessárias provas não a julgamento determina a sanção a aplicar
Autoridade a que compete a direção Autoridade a que compete a direção Autoridade a que compete a direção
do inquérito » Ministério Público da instrução » Juiz de Instrução desta fase » Juiz de Julgamento
[arts. 262º e ss. CPP] [arts. 286º e ss. CPP] [arts. 311º e ss. CPP]
As diversas fases do processo comum, e o próprio processo como um todo, obedecem a um conjunto de princípios
gerais, os quais podem ser agrupados em quatro categorias:
 Princípios gerais da promoção processual:
 Princípio da oficialidade;
 Princípio da legalidade;
 Princípio da acusação.
 Princípio gerais da prossecução processual:
 Princípio do contraditório;

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 Princípio da suficiência.
 Princípios gerais da prova:
 Princípio da investigação;
 Princípio da legalidade da prova;
 Princípio da livre apreciação da prova;
 Princípio in dubio pro reo.
 Princípios gerais da forma:
 Princípio da publicidade;
 Princípio da oralidade e da imediação;
 Princípio da concentração.
Embora não se possa afirmar que cada categoria de princípios tem que ver especificamente com uma determinada
fase do processo, a verdade é que em cada uma alguns dos tipos são mais pertinentes do que outros. Assim, na fase
de inquérito relevam sobretudo os princípios gerais de promoção processual e de prossecução processual; e nas fases
de inquérito e (sobretudo) julgamento têm maior preponderância prática os princípios gerais da prova e da forma.
1. Princípios gerais da promoção processual
1.1 Princípio da oficialidade
O princípio da oficialidade pode definir-se nos seguintes termos:
“a iniciativa de investigar a prática de uma infração e a decisão de a submeter a julgamento cabe a uma
entidade pública estadual”.
O direito penal é um direito de tutela subsidiária de bens jurídicos, o que faz do processo penal um assunto da
comunidade jurídica, em consonância de que é tarefa estadual perseguir e punir o crime e o criminoso. Deste modo,
firma-se nesta matéria o princípio do monopólio estadual da função jurisdicional (arts. 9º/b), 27º/2 e 202º/1 e 2 CRP)
– noutros termos, cabe no monopólio estadual o exercício da função de desencadeamento do processo penal.
O princípio da oficialidade é acolhido no art. 219º/1 CRP quando defere ao Ministério Público – uma entidade estadual
– competência para exercer a ação penal. No CPP, é conferida ao Ministério Público, em especial, competência para:
 Legitimidade para promover o processo penal (art. 48º CPP);
 Adquirir a notícia do crime (art. 241º CPP);
 Receber denúncias, queixas e participações, bem como apreciar o seguimento a dar-lhes (art. 53º/2/a) CPP);
 Encerra o inquérito, arquivando-o ou deduzindo acusação (art. 276º/1 CPP).
Comina a lei, no art. 119º/b) CPP, a sanção de nulidade quando não haja promoção do processo pelo Ministério Público
nos termos do art. 48º CCP, constituindo esta falta uma nulidade insanável.
! A legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal conta com as restrições inerentes à natureza
semipública e particular de alguns crimes – os crimes semipúblicos implicam limitações a essa legitimidade e os crimes
particulares acarretam verdadeiras exceções:
 Crimes semipúblicos (= crimes cujo procedimento criminal depende de queixa) » constituem limitação ao
princípio da oficialidade, na medida em que é necessário que o ofendido ou outras pessoas (art. 113º CPP)
deem conhecimento do facto ao Ministério Público para que este promova o processo (art. 49º/1 e 2 CPP).
Estamos em face de mera limitação ao princípio da oficialidade na medida em que continua a caber ao
Ministério Público, com o encerramento do inquérito, arquivar o processo ou deduzir acusação (art. 276º/1
CPP); todavia, o desencadeamento do processo pelo MP depende de queixa prévia, sendo que o titular do
direito de queixa poderá dela desistir até à publicação da sentença da 1ª instância, desde que não haja
oposição o arguido (arts. 116º/2 CP e 51º CPP). Em suma, não se trata aqui de uma efetiva exceção ao princípio
porquanto o MP mantém as suas faculdades; mas está em causa uma limitação já que essas faculdades estão
condicionadas, quer pela exigência de queixa, quer pela possibilidade de desistência da queixa.
 Crimes particulares (= crimes cujo procedimento criminal depende de acusação particular) » constituem
exceção ao princípio da oficialidade porquanto é necessário que o ofendido ou outras pessoas se queixem,
constituam assistentes e deduzam acusação particular para que seja aberto inquérito (arts. 50º/1, 246º/4,
68º/1/b), 68º/2 e 285º/1 CPP). Trata-se aqui de uma verdadeira exceção, por um lado, porque a abertura do
inquérito depende imediatamente da atuação de particulares (os titulares do direito de queixa) e, por outro
lado, porque caberá ao assistente, no final do inquérito, decidir sobre a dedução de acusação. Além da
exigência de queixa, exige-se ainda a constituição do ofendido como assistente, para que o inquérito possa
ser iniciado; e, mais ainda, é o assistente quem decidirá se o inquérito termina, ou não, com acusação – a

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designada “acusação particular”. Havendo acusação particular, caberá ao Ministério Público somente acusar
pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem alteração substancial daqueles (arts.
50º/2 e 285º/4 CPP) – assim, cabe-lhe tão só acompanhar (ou não) a acusação particular. Ademais, também
aqui poderá haver desistência da acusação particular até à publicação da sentença de 1ª instância, desde que
não haja oposição do arguido (arts. 116º/2 e 117º CP e 51º CPP).
[NOTA: tanto na desistência de queixa como na desistência da acusação particular referiu-se que é concedido ao
arguido o direito de se opor à desistência, em termos de impedir o fim do processo. Este direito é-lhe reconhecido
com o intuito de conceder a possibilidade de afirmar a sua inocência perante um tribunal. Com efeito, um arguido
inocente que veja o processo arquivado a meio pode ter interesse em que aquele processo decorra até ao fim (até à
fase de julgamento, moralmente a prolação de sentença) para em julgamento provar a sua inocência e, desta forma,
erradicar quaisquer desconfianças que sobre si tenham recaído com a instauração do processo.]
Portanto, os limites e exceções ao princípio da oficialidade decorrem fundamentalmente da circunstância de se exigir,
para certos crimes, queixa ou acusação particular. Estas exigências conduzem-nos, como ficou já desvelado, à temática
da natureza dos crimes. Podem, então, identificar-se, três tipos de crimes quanto à sua natureza, os quais se
distinguem, em traços largos, da seguinte forma:
Crimes Públicos VS Crimes Semipúblicos VS Crimes Particulares
» crimes que são investigados e » crimes cuja investigação depende » crimes cuja investigação depende
submetidos a julgamento pelo de queixa, apresentada pelos de queixa e cujo prosseguimento para
Ministério Público, mesmo sem ou titulares do direito de queixa, julgamento depende de acusação
contra a vontade do ofendido mantendo o Ministério Público a particular, não cabendo ao MP nem
faculdade de decidir, ou não acusar abrir o inquérito nem acusar
Notas caraterizadoras:
 A abertura do inquérito Notas caraterizadoras: Notas caraterizadoras:
compete ao Ministério Público;  A abertura do inquérito  A abertura do inquérito depende
 A notícia do crime pode chegar depende de queixa; de queixa;
ao MP por uma de três vias:  A notícia do crime chega ao MP  A notícia do crime chega ao MP
 Tomada de conhecimento por via de queixa; por via de queixa;
pelo MP pessoalmente;  A decisão de acusar compete  A decisão de acusar compete ao
 Notificação pelos órgãos de exclusivamente do MP. assistente, através de acusação
polícia criminal. [Quem decide se há ou não processo é particular (limitando-se o MP a
 Denúncia.
o titular do direito de queixa] acompanhar, ou não, a acusação).
 A decisão de acusar depende
[Quem decide se há processo e se o caso
exclusivamente do MP. é submetido a julgamento é o titular do
direito de queixa e de acusação]

A natureza do tipo legal de crime decorrerá, em todo o caso, da própria lei, seja da norma incriminadora em si mesma
(que dispõe sobre a natureza daquele tipo), ou de uma norma geral de um capítulo (que dispõe sobre a natureza de
todos ou alguns dos tipos de crime incluídos no capítulo em causa), ou, a contrario, da omissão da lei:
 Ausência de qualquer disposição legal » o crime é público
A regra no processo penal português é a natureza pública dos crimes !
 Existência de disposição legal (específica ou geral):
 Prescreve a natureza semipública ou faz depender o processo de queixa » o crime é semipúblico
 Prescreve a natureza particular ou faz depender o processo de queixa e (+) o seguimento para
julgamento de acusação particular » o crime é particular
De tudo o que foi dito já se compreende a distinção fundamental entre a queixa e a acusação particular:
Queixa Acusação Particular
» meio pelo qual se dá ao Ministério Público notícia de » forma de término da fase de inquérito que se traduz
um crime semipúblico ou particular na vontade do assistente em deduzir acusação
 Inicia a fase de inquérito  Termina a fase de inquérito
 Utilizada em crimes semipúblicos e particulares  Utilizável apenas em crimes particulares
Daqui decorre, então, que os processos penais por crimes semipúblicos e particulares se iniciam na sequência de uma
“queixa”. Assim sendo, importa ainda distinguir este conceito da noção de “denúncia”, pelo qual pode ter início o
processo penal suscitado por um crime público:

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Maria Paixão Direito Processual Penal
Denúncia Queixa
» meio declarativo pelo qual se dá notícia da (alegada) » denúncia pela qual se dá notícia de um crime semi-
ocorrência de um crime público ou particular
Conceito amplo, que abrange a queixa, mas não só. Forma (específica) de denúncia
Caraterísticas: Caraterísticas:
 Pode ser feita por qualquer pessoa (ofendido, vítima  Só pode ser apresentada pelos titulares do direito
ou terceiros); de queixa, previstos no art. 113º CP
 O seu exercício não depende de prazo.  Deve ser apresentado prazo de 6 meses, a contar da
data em que o titular do direito tiver tido
conhecimento do facto e dos seus autores.

Deste exposição ficou já bem claro o porquê de acima termos considerados os crimes semipúblicos como limitação ao
princípio da oficialidade – os poderes do MP estão limitados, pois ele apenas mantém a competência para acusar, dependendo a abertura
do inquérito de queixa – e os crimes particulares como exceções ao princípio da oficialidade – os poderes do MP perdem ímpeto,
já que tanto a abertura de inquérito como a dedução de acusação deixam de lhe competir, pelo menos diretamente, passando a ser exercidos
Nestes casos, que só existem nos casos expressamente previstos na lei (a regra,
mediante queixa e acusação particular.
relembre-se, é a natureza pública dos crimes), a iniciativa de investigar um crime e de submeter a causa a julgamento
nem sempre cabe a uma autoridade judiciária (o Ministério Público).
Não obstante o procedimento criminal depender de queixa ou de acusação particular em caso de crimes semipúblicos
e particulares, casos há em que o Ministério Público poderá dar início ao procedimento no prazo de 6 meses a contar
da data em que tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores.
(1) Assim será, desde logo, nas hipóteses em que (arts. 113º/5/a) e 117º CP):
1. O interesse do ofendido o aconselhar;
2. O ofendido for menor ou não possua discernimento para entender o alcance e o significado do exercício do
direito de queixa ou de acusação particular.
(2) Naquele mesmo prazo, poderá ainda o MP dar início ao procedimento sempre que (arts. 113º/5/b) e 117º CPP):
1. O interesse do ofendido o aconselhar;
2. O direito de queixa ou acusação particular não possa ser exercido porque a sua titularidade caberia apenas ao
agente do crime.
(3) Por fim, ainda dentro do mesmo prazo, o MP pode dar início ao procedimento criminal respeitante a crimes de
coação sexual ou violação dependentes de queixa (por serem dirigidos contra maiores), sempre que o interesse da
vítima o aconselhe (arts. 163º, 164º, 178º/1 e 2 CP).
Como bem se vê, estão aqui em causa hipóteses em que o Ministério Público se substitui ao titular do direito de queixa
ou acusação particular, o que constitui uma entorse à natureza semipública ou particular dos crimes. De facto, em
regra são titulares do direito de queixa:
 Ofendido – art. 113º/1 CPP
 Familiares próximos do ofendido (em caso de morte deste) – art. 113º/2 CP;
 Representantes legais do ofendido (caso ele seja menor de 16 anos ou incapaz) – art. 113º/4 CPP.
Para acautelar que o direito de queixa ou acusação particular é sempre exercido no interesse da vítima, o ofendido
poderá exercer tal direito, se o mesmo não tiver sido exercido ou se o MP não tiver dado início ao procedimento ao
abrigo daquelas vias, a partir da data em que passa perfaz 16 anos (capacidade de exercício) (arts. 113º/6 e 117º CP).
Também aqui estamos em face de um desvio ao exercício normal do direito de queixa, já que o prazo dentro do qual
o ofendido o pode fazer é bem mais dilatado.
As razões que justificam as limitações e exceções ao princípio da oficialidade decorrentes da natureza semipública e
particular de alguns crimes são várias:
 Em relação a certas infrações não é comunitariamente exigível a existência de um processo penal se o ofendido
assim o entender – portanto, a falta de processo penal não impede a consecução das exigências de prevenção
geral positiva (ex.: crime de ofensa à integridade física simples – art. 143º CP);
 A promoção processual pode ser prejudicial para interesses da vítima dignos de consideração por se
relacionarem diretamente com a intimidade da vida privada ou familiar (exs.: crime contra a honra – arts.
180º, 181º e 188º CP; crime de furto entre parentes – arts. 203º/1 e 207º/1/a) CP);
 A promoção processual pode ser prejudicial para os interesses da vítima por ao “mal do crime” fazer acrescer
o “mal do processo”, gerando um fenómeno de vitimização secundária (ex.: crime contra a liberdade sexual –
arts. 164º e 178º CP);

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Maria Paixão Direito Processual Penal
 Alcança-se por esta via um desejável efeito de descriminalização real de certos comportamentos (ex.: crime
de atos sexuais com adolescentes – arts. 173º e 178º/3 CP);
 Dificuldade de produção de prova quanto entre o agente, o ofendido e as testemunhas intercedam relações
de proximidade (por ex. quando é possível a recusa de depoimento – art. 134º/1 CPP).
A opção pela natureza pública ou não do crime tem sofrido alterações em duas matérias muito particulares: os crimes
de violência doméstica e os crime contra a liberdade e a autodeterminação sexual de menores.
No que diz respeito ao crime de violência doméstica (art. 152º CP), a evolução legislativa no nosso ordenamento
jurídico tem sido a seguinte:
1. 1982: crime de “maus tratos conjugais” considerado crime público;
2. 1995: crime de maus tratos conjugais é estendido aos casais em união de facto e passa a assumir natureza
semipública;
3. 1998: crime de maus tratos conjugais continua a ser semipúblico mas o MP passa a poder dar inicio ao processo
se o interesse da vítima o exigir;
4. 2000: crime de maus tratos conjugais passa a ser crime público;
5. 2007: crime passa a designar-se crime de “violência doméstica” e manteve a natureza pública.
Podem apresentar-se, nesta sede, alguns argumentos a favor e contra a natureza pública atualmente reconhecida a
este tipo legal de crime:
Argumentos a favor Argumentos contra
 A natureza pública do crime de violência  A natureza pública do crime de violência doméstica
doméstica é um meio de luta contra a violência pode obstar à resolução, fora dos tribunais, dos
conjugal e equiparada, à qual estão ligadas problemas que estão na raiz da violência, mormente
estatísticas horríficas (sobretudo quanto ao o alcoolismo ou outro tipo de dependências;
número de homicídios decorrentes deste tipo de  A natureza pública do crime pode constituir uma
comportamento abusivo); ofensa ao direito à intimidade da vida privada e pode
 Ao reconhecer-se natureza pública ao crime de prejudicar a proteção da vida familiar;
violência doméstica obsta-se a que concretos  Mesmo através da via judicial, outros meios há que
crimes sejam encobertos por ameaça ou pressão podem por término à violência (por ex. divórcio) e
exercida sobre a vítima (que muitas vezes não que, do ponto de vista da vítima, sejam preferíveis,
apresenta queixa por medo de represálias); atendendo aos interesses em jogo (por ex. de filhos);
 Apesar do eventual efeito de vitimização  O processo penal pode gerar um fenómeno de
secundária ser uma realidade, a verdade é que a “vitimização secundária”, agravando o sofrimento da
nossa lei prevê mecanismos para lhe obviar. vítima, que, por isso, poderá legitimamente não
querer o processo (que para si constitui outro “mal”).
De todo o modo, o certo é que hoje o crime de violência doméstica é um crime público. Todavia, são várias as opções
legais que denotam uma incerteza do próprio legislador quanto à opção tomada – ex.: possibilidade de ter lugar a
suspensão provisória do processo mediante requerimento livre e esclarecido da vítima ou tendo em contra o seu
interesse (arts. 281º/7 e 8 CPP).
Em matéria de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores (arts. 163º e ss. CP), a evolução
verificada no ordenamento jurídico português foi a seguinte:
1. Até 1995: crimes sexuais contra menores considerados semipúblicos;
2. 1995: crimes continuam a ter natureza semipública, mas o MP passa a poder dar início ao processo se o
interesse da vítima o impuser;
3. 2007: crimes sexuais contra menores passam a assumir natureza pública;
4. 2015: crimes sexuais contra menores mantêm natureza pública, mas o crime de atos sexuais com adolescentes
passou a revestir natureza semipública (art. 178º nºs 1 a contrario e 3 CP).
Também aqui são invocáveis argumentos, quer a favor, quer contra, a natureza pública destes tipos de crimes:
Argumentos a favor Argumentos contra
 A natureza pública dos crimes sexuais contra  A natureza pública do crime implica, em todo o
menores é um meio de luta contra a exploração caso, a exposição pública da criança-vítima
sexual de crianças e jovens, um fenómeno mundial (exposição essa que anda necessariamente
que envolve questões como o tráfico internacional associada ao processo penal) o que pode revelar-se
e a escravatura sexual; contrário aos interesses da criança in casu;

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Maria Paixão Direito Processual Penal
 Estando em causa menores, o direito de queixa  A tutela do livre desenvolvimento da criança
cabe aos respetivos representantes legais, que são, implica que seja possível obstar à ocorrência de um
por norma, os pais (art. 113º/4 CP); e a criminologia efeito de vitimização secundária, que muito
e sociologia vieram demonstrar que, na maioria dos provavelmente decorrerá do processo penal;
casos, os abusadores são, exatamente, esses  Não é líquido que o desencadeamento do processo
familiares próximos (sobretudo ascendentes); penal prossiga o interesse da criança (ou mesmo de
 Em virtude das lesões psicológicas permanentes outras crianças que, não tendo sido vítimas, corram
resultantes deste tipo de abusos, impõe-se uma o risco de o vir a ser, se o prevaricador continuar
perseguição verdadeiramente eficaz dos agentes em liberdade), pois aquando do início do processo
deste tipo de crimes, de modo a obviar a futuros não há certeza de que este terminará com
casos similares; condenação; e não havendo condenação, a criança
 As vítimas deste tipo de crime são pessoas que acaba por ser exposta e ficar (mais) lesada na sua
ainda não gozam da necessária autodeterminação e integridade psíquica, sem que qualquer resultado
discernimento para entender a gravidade dos satisfatório do ponto de vista da prevenção de
factos, o que parece impor a intervenção de uma futuros crimes tenha sido obtido.
autoridade pública no seu interesse.
Como bem se vê, também este é um assunto delicado, que, por o ser, gerou e gera polémica acesa. De qualquer forma,
a lei prevê atualmente a natureza pública dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual dos menores, à
exceção do crime de atos sexuais contra adolescentes, que passou a revestir natureza semipública em 2015. Contudo,
também aqui, na sequência do acima exposto, as opções do legislador, designadamente a opção que deu lugar ao
atual nº 4 do art. 178º CPP, evidenciam a própria hesitação legislativa na qualificação destes crimes.
Importa tecer mais algumas considerações quanto ao efeito de vitimização secundária a que nos temos vindo a referir.
Esta temática implica que nela nos detenhamos mais calmamente porque é um problema transversal a todo o
processo penal, e, por o ser, é um fator que pesa sempre que o legislador decide afastar a natureza pública (regra) de
alguns crimes. Ora, é de salientar, neste contexto, que o processo penal tem evoluído no sentido de minimizar o “mal
do processo”, com o intuito de não dissuadir o ofendido da apresentação de queixa. Esta evolução verifica-se, por
exemplo, nos seguintes aspetos:
 Exclusão da publicidade dos atos processuais em caso de processo por crime de tráfico de pessoas ou contra
a liberdade e autodeterminação sexual (art. 87º/3 CPP);
 Declarações para memória futura (obstam a que o ofendido tenha de prestar novo depoimento em audiência
de julgamento, perante o agente do crime) (arts. 271º, 294º, 355º e 356º/2/a) CPP);
 Consagração de regras especiais quanto à inquirição de testemunhas menores de 16 anos, possibilitando-se o
afastamento do arguido durante a prestação das declarações (arts. 349º e 352º CPP);
 Previsão da possibilidade de as delegações e gabinetes médico-legais do Instituto Nacional de Medicina Legal
receberem denúncias de crimes, no âmbito da atividade pericial que desenvolvam (as quais devem ser
remetidas para o Ministério Público com urgência).
Ainda a este propósito, a Lei nº 130/2015 – “Estatuto da Vítima” – veio reconhecer à vítima um leque significativo de
direitos que visam evitar a vitimização secundária.
[NOTA: a partir de 2015, os crimes de violação ou coação sexual contra adultos, embora mantendo a sua natureza
semipública, passaram a ser objeto de um regime misto, em que o MP pode dar início ao processo mesmo sem queixa,
sempre que o interesse da vítima o justificar. Isto resultou da ratificação por Portugal da Convenção de Istambul –
“Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência
Doméstica” (art. 55º). Na sequência desta ratificação, alguns partidos políticos nacionais pretenderam instituir a
natureza pública destes crimes. Porém, essa solução não prevaleceu em virtude da ideia de autodeterminação da
mulher: não cabe ao Estado obrigar a mulher a passar pelo mal do processo penal; estando em causa uma pessoa
adulta, haverá que reconhecer a sua autonomia, tendo em conta toda a questão da vitimização secundária exposta.]
1.2 Princípio da legalidade
1.2.1 Noção
O princípio da legalidade da promoção processual traduz-se na seguinte asserção:
“o Ministério Público está obrigado a promover o processo sempre que adquirir a notícia do crime e a deduzir
acusação sempre que recolher indícios suficientes da prática do crime e de quem foi o seu agente, estando excluído
qualquer juízo de oportunidade sobre a decisão de iniciar o processo ou sobre a de submeter a causa a julgamento”.

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Note-se que este princípio da legalidade da promoção processual não se confunde com o princípio da legalidade do
processo, reportando-se um e outro a circunstâncias distintas:
Princípio da legalidade da promoção processual Princípio da legalidade do processo
» o Ministério Público, na sua função de promoção » a aplicação de penas e medidas de segurança criminais só
processual, deve abrir inquérito e deduzir acusação nos casos pode ter lugar em conformidade com as disposições da lei
em que a lei impõe esses atos processual penal (art. 2º CPP)
O princípio da legalidade da promoção processual, acolhido no nosso ordenamento jurídico, contrapõe-se ao princípio
da oportunidade, consagrado em outros ordenamentos jurídicos:
Princípio da legalidade VS Princípio da oportunidade
» a decisão de abrir o inquérito e/ou de deduzir » a decisão de abrir o inquérito e/ou de deduzir
acusação está estritamente vinculada à lei, existindo acusação depende, além de elementos jurídicos, de
um dever jurídico de atuar em certo sentido fatores políticos, financeiros ou sociais (entre outros)
O Ministério Público não decide discricionariamente abrir A autoridade judiciária competente decide, caso a caso, se é
inquérito e/deduzir acusação; verificando-se certos factos oportuna a abertura do inquérito e/ou a dedução de
(notícia do crime e recolhe de indícios suficientes), ele está acusação, independentemente de haver notícia de crime
instituído no dever de atuar nesse sentido e/ou indícios da sua prática e da identidade do agente

A exclusão da ponderação de razões de oportunidade de qualquer ordem põe a justiça penal a coberto de suspeitas e
tentações de parcialidade e de arbítrio. Daí que se encontre a génese deste princípio da legalidade no princípio da
igualdade, consagrado no art. 13º CRP – só havendo um dever de abrir inquérito e de deduzir acusação, verificados os
pressupostos legais objetivos, é que se garante que todos os casos e arguidos serão tratados de forma igualitária.
Ora, o princípio da legalidade, consagrado no art. 219º/1 CRP, compreende em si duas vertentes ou momentos:
Princípio da legalidade
Abertura do inquérito Dedução da acusação
» a notícia do crime dá sempre lugar à abertura do » a recolha de indícios suficientes de se ter verificado
inquérito (art. 262º/2 CPP) um crime e de quem foi o seu agente impõe a dedução
de acusação contra essa pessoa (art. 283º/1 CPP)
Como ficou evidente, o princípio da legalidade consubstancia-se, fundamentalmente, na imposição de deveres ao
Ministério Público, os quais norteiam a fase de inquérito por serem determinantes tanto no seu início como no seu
fim. Assim dúvidas não restam de que a atuação do Ministério Público, enquanto entidade competente para a
promoção processual, não é uma atuação livre – há uma vinculação translúcida: à verificação dos factos “notícia do
crime” e “recolha de indícios suficientes” terá de estar ligada, necessariamente, a abertura de inquérito e a dedução
da acusação (aqueles factos são pressupostos da prática destes atos; e estes atos são decorrências legalmente
impostas daqueles factos).
Neste contexto, uma questão que se suscita é a de saber quando estarão recolhidos “indícios suficientes” de se ter
verificado um crime e de quem foi o seu agente, para efeito de surgimento do dever de acusação. Entende-se que
haverá indícios suficientes sempre que a condenação se mostrar mais provável do que a absolvição – art. 283º/1 e 2
CPP. Portanto, em concreto caberá ao Ministério Público aferir se, face às provas recolhidas, será mais provável que a
sentença a ser proferida em julgamento seja condenatória ou absolutória. Note-se que o facto de se mostrar mais
“provável” a condenação não significa, necessariamente, que esta venha a ter lugar. Como é lógico, tudo dependerá
da prova que venha a ser feita na instrução e julgamento, a qual nem sempre coincide com a prova que foi feita ou
admitida no inquérito.
Uma vez que, como referido, o princípio da legalidade implica a constituição de deveres, haverá que atentar nas
formas de controlo do cumprimento de tais deveres. A este respeito, identificam-se os seguintes mecanismos:
 Abertura de instrução (arts. 286º e 287º CPP) » o controlo da decisão do Ministério Público de arquivar o
processo ou de, alternativamente, deduzir acusação pode ser efetuado mediante requerimento para abertura
da instrução. A fase de instrução tem, exatamente, o objetivo de controlar judicialmente a decisão tomada
pelo Ministério Público no fim da fase de inquérito.
 Intervenção hierárquica (art. 278º CPP) » o controlo da decisão do Ministério Público de arquivamento do
processo, no caso de não ser requerida abertura de instrução, pode ser realizado mediante intervenção do
imediato superior hierárquico do magistrado que tenha decidido pelo arquivamento.

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 Responsabilidade disciplinar (arts. 162º e 163º EMP) » o controlo da atuação do Ministério Público, em geral
(quer quanto à abertura do inquérito, quer quanto à dedução da acusação), pode dar-se por via disciplinar, já
que os magistrados são responsáveis pela violação dos deveres profissionais que os vinculam.
 Responsabilidade penal (art. art. 369º CP) » a atuação do Ministério Público, sobretudo em caso de
arquivamento quando deveria deduzir acusação, pode subsumir-se ao tipo legal de crime de “denegação de
justiça e prevaricação”.
 Controlo político (arts. 219º/4, 220º/3 e 133º/m) CRP) » remotamente, poderá configurar-se um controlo
político decorrente do facto de o Ministério Público ser uma magistratura hierarquicamente subordinada e de
o Procurador-Geral da República ser nomeado e exonerado pelo Presidente da República, sob proposta do
Governo; assim sendo, pode cogitar-se, embora muito seja muito improvável, uma exoneração, partindo do
topo da pirâmide, derivada de uma atuação reiteradamente contrária ao princípio da legalidade.
Como bem se vê, estes mecanismos servem sobretudo para controlar a (falta da) decisão de dedução da acusação.
Com efeito, os mecanismos de abertura da instrução, de intervenção hierárquica e de responsabilidade penal só
servem para controlar a decisão de arquivamento ou acusação.
[NOTA: em sede de controlo penal, é duvidoso que o tipo legal de crime de denegação de justiça e prevaricação
abranja os casos em que o Ministério Público não abre inquérito apesar de lhe ter chegado notícia do crime, pois
aquele tipo conta o elemento “no âmbito do inquérito processual” cuja verificação é no mínimo questionável.]
O controlo da falta de abertura de inquérito é, então, bem mais difícil. Poderá ter lugar, fundamentalmente, pela
responsabilidade disciplinar supramencionada. A este controlo poderá apenas acrescer o controlo político referido,
que é, porém, ténue e de difícil verificação prática. Se sistematicamente um determinado Procurador tiver recebido
notícias de crime e não tiver procedido à abertura de inquérito, as entidades no topo da hierarquia terão
conhecimento (designadamente, em virtude de fiscalizações periódicas). Tal conhecimento haverá de implicar, em
princípio, a exoneração.
1.2.2 Consequências
O princípio da legalidade, nos termos em que foi definido, acarreta algumas consequências ao nível da estrutura do
processo penal português. Vejam-se que consequências são essas:
 Princípio da imutabilidade da acusação pública » nos crimes públicos, sendo deduzida acusação pelo
Ministério Público, não pode haver desistência ou renúncia num momento ulterior do processo. Este princípio
não vigora no caso dos crimes semi-públicos e particulares, porquanto nesta sede é permitida a desistência
de queixa e da acusação particular até à publicação da sentença da 1ª instância, desde que o arguido não se
oponha (art. 116º CP e 51º CPP). Note-se que esta faculdade não constitui, de modo algum, uma exceção ao
princípio que ora nos ocupa: como resulta imediatamente da própria expressão, trata-se da imutabilidade da
acusação “pública”, estando o Ministério Público impossibilitado de voltar a atrás na dedução de acusação –
isto não implica, claro está, que aos particulares não seja possibilitada essa desistência ou renúncia.
 Hipóteses de denúncia obrigatória » a lei determina a obrigatoriedade da denúncia para as entidades policiais,
quanto a todos os crimes de que tomarem conhecimento, e para os funcionários (na aceção do art. 386º CP),
quanto aos crimes de que tomarem conhecimento no exercício das suas funções (arts. 242º, 245º, 246º/1, 2
e 3 e 248º/1 e 2 CPP). [NOTA: no conceito de “funcionário” incluem-se as entidades por lei equiparadas.]
De entre os sujeitos considerados pela lei como “funcionários” contam-se os médicos que exercem a sua
profissão em hospitais públicos. Ora, sucede, nestes casos, que o dever de denúncia pode colidir com o dever
de segredo profissional, cuja violação constitui crime nos termos do art. 195º CP. O critério de resolução do
conflito passará sempre por uma ponderação, caso a caso, entre o bem jurídico que a incriminação tutela (ex.:
vida, integridade física, autodeterminação sexual, etc.) e o bem jurídico protegido através do regime legal do
segredo profissional (reserva da intimidade da vida privada). No fundo, está aqui em causa a ponderação entre
o interesse na descoberta da verdade material e na realização da justiça e a proteção do direito fundamental
à reserva da intimidade da vida privada (art. 26º CRP). Como bem se compreende, esta é uma ponderação que
terá de ter lugar em concreto, atendendo ao(s) específico(s) bem ou bens jurídico(s) ameaçados.
Fora os casos de denúncia obrigatória, a denúncia é facultativa e pode assumir modalidades diversas consoante a
natureza do crime em causa:
 Denúncia » crimes públicos – a denúncia pode ser efetuada por qualquer pessoa que tiver notícia de um crime
(art. 244º CPP);

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 Queixa » crimes semipúblicos ou particulares – a queixa só pode ser realizada pelos titulares do direito de
queixa ou de acusação particular (arts. 244º, 246º/1, 2 e 3, 49º e 50º CPP e 113º e 117º CP).
1.2.3 Limitações
Como ficou exposto, a consagração, entre nós, do princípio da legalidade na promoção processual afasta o princípio
da oportunidade, segundo o qual a abertura do inquérito e a dedução de acusação dependeriam de considerações de
ordem social, económica, política, etc. Não obstante, encontram-se previstos na lei limites ao princípio da legalidade.
Tais limites não significam, note-se, a consagração do princípio da oportunidade, mas tão-só a atenuação da rigidez
da legalidade em domínios em que outros interesses político-criminais se fazem sentir. Falamos aqui de duas figuras:
 Arquivamento em caso de dispensa de pena (art. 280º CPP) » ainda que havendo “indícios suficientes” da
prática do crime, o que acarrateria, em princípio, a dedução de acusação (art. 283º CPP), pode o Ministério
Público arquivar o processo sempre que verificados os seguintes pressupostos:
1. Previsão legal da possibilidade de dispensa de pena para o tipo legal de crime em causa;
2. Verificação em concreto dos pressupostos da dispensa de pena;
3. Concordância do juiz de instrução.
 Regime da mediação (Lei nº 21/2007) » sendo recolhidos indícios de se ter verificado crime e da identidade
do agente, o Ministério Público pode remeter o processo para mediação, em qualquer momento da fase de
inquérito. Ao terceiro-mediador caberá promover a aproximação entre o arguido e o ofendido e apoiar na
tentativa de encontrar um acordo que permita a reparação dos danos e que contribua para a restauração da
paz social. Note-se que não se trata aqui de uma alternativa à acusação, uma vez que basta a existência de
“indícios”, não se exigindo “indícios suficientes” da prática do crime.
 Suspensão provisória do processo (art. 281º CPP) » ainda que reunindo “indícios suficientes” da prática do
crime, o Ministério Público pode determinar a suspensão do processo, com imposição de injunções e regras
de conduta ao arguido, sempre que verificados os seguintes pressupostos:
1. Crime punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão;
2. Concordância do juiz de instrução;
3. Concordância do arguido e do assistente;
4. Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza;
5. Ausência de aplicação anterior da suspensão do provisória do processo por crime da mesma natureza;
6. Inaplicabilidade de medida de segurança de internamento;
7. Grau reduzido de culpa;
8. Previsibilidade da realização das exigência de prevenção através das injunções e regras de conduta.
Os institutos previstos nos arts. 280º e 281º CPP são alternativas ao despacho de acusação. Nestes casos, o Ministério
Público recolheu indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente mas, em vez de acusar,
lança mão de um destes mecanismos. Sublinhe-se, então, que estes institutos não são uma terceira via de término da
fase de inquérito; tratam-se, isso sim, de alternativas ao despacho de acusação. A via seguida para terminar a fase de
inquérito é a acusação, mas o Ministério Público opta por uma alternativa, em virtude estarem causa circunstâncias
especiais. Consequentemente, na falta de verificação de todos os requisitos de que depende o recurso a estes
mecanismos, o Ministério Público terá necessariamente que proferir despacho de acusação. Nestes termos, a
averiguação da possibilidade de aplicação destes institutos depende da prévia conclusão pela acusação.
Estas alternativas à dedução de acusação, para os casos que a lei expressamente prevê e segundo pressupostos
legalmente fixados, têm como objetivo a não estigmatização do arguido e a menor intervenção do sistema formal de
controlo no âmbito da pequena e média criminalidade. Na medida em que este sistema se orienta por finalidades
preventivas de punição e depende de expressa previsão legal, bem como da verificação dos requisitos previstos na lei,
compreende-se que não está em causa a consagração do princípio da oportunidade: a aplicação destes institutos
traduz-se, afinal, em obediência à lei.
Importa ainda notar que as figuras sobre que versamos demonstram claramente a intenção do legislador penal
português em consagrar o princípio da unilateralidade da culpa: embora não haja pena sem culpa, poderá haver culpa
sem pena.
Por fim, é de apontar as notas comuns às duas figuras:
 Limitações ao princípio da legalidade.
 Institutos previstos apenas para os casos de pequena e média criminalidade.
 Soluções consensuais (dependem do acordo dos diversos sujeitos do processo penal).

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Maria Paixão Direito Processual Penal
 Mecanismos de “diversão”.
Quando no plano do direito substantivo se fala em descriminalização, no plano do direito adjetivo fala-se
em diversão – a expressão “diversão” significa que o conflito será resolvido fora do sistema formal de aplicação
da justiça penal. No fundo, é aplicável uma forma “divertida”/diferente de resolver conflito. Daí que:
 A sua aplicação seja insuscetível de impugnação (arts. 280º/3 e 281º/6 CPP);
 A sua aplicação seja insuscetível de controlo judicial e de intervenção hierárquica – a decisão de
aplicação destes mecanismos pressupõe concordância do juiz de instrução.
Estas caraterísticas e a finalidade político-criminal do instituto da suspensão provisória do processo têm vindo a ser
descaraterizadas pelas recentes alterações legislativas.
Desde logo, não obedecem propriamente à teleologia e ao enquadramento político-criminal do instituto da suspensão
provisória do processo os casos previstos nos nºs 7 e 8 do art. 281º CPP. Estes preceitos visam “atenuar” a natureza
pública dos crimes de violência doméstica e contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores. Nestes casos,
dá-se a suspensão provisória do processo, mesmo não se verificando todos os requisitos legais exigidos por regra
(exige-se tão-só a verificação dos pressupostos das alíneas b) e c) do nº 1 do art. 281º CPP), no interesse da vítima. O
que se pretende é, portanto, permitir, de forma enviesada, que o processo não prossiga contra a vontade da vítima,
apesar de o crime ser público e, por isso, ser dever do Ministério Público deduzir acusação quando recolhidos indícios
suficientes da prática do crime e do respetivo autor. Sendo-lhe comunicada notícia do crime, o Ministério Público tem
que abrir o inquérito e, se for caso disso, deve deduzir acusação no fim do inquérito. Porém, para estes tipos de crime,
que, como vimos, têm sido alvo de acesa polémica quanto à sua natureza, o legislador decidiu atenuar a rigidez do
dever que impende sobre o Ministério Público, permitindo com maior facilidade a suspensão provisória do processo,
no interesse da vítima (de certa forma, equiparando esta hipótese à desistência da queixa ou acusação particular).
A este respeito, nota Costa Andrade que o nº 8 do art. 281º CPP, respeitante aos crimes contra a liberdade e auto-
determinação sexual de menores, surge hoje como um “corpo estranho” na teleologia e intencionalidade político-
criminal do regime da suspensão provisória do processo.
Também o nº 9 do art. 281º CPP surge à margem das caraterísticas essenciais do instituto da suspensão. Dispensa-se
aqui a concordância do assistente quando o furto ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de
abertura ao público, desde que tenha havido recuperação imediata das coisas móveis subtraídas – trata-se aqui dos
típicos casos de “furto em supermercado. Esta hipótese surge também como alheia à natureza deste instituto na
medida em que lhe falta a caraterística essencial de ser uma solução consensual: não é exigida a concordância do
assistente, mesmo que já constituído.
Na legislação extravagante, o art. 9º Lei nº 36/94, sobre medidas de combate à corrupção e à criminalidade económica
e financeira, prevê outro caso de suspensão provisória do processo que não obedece à teleologia e enquadramento
político-criminal do instituto: um dos pressupostos da sua aplicação é ter o arguido denunciado o crime ou contribuído
decisivamente para a descoberta da verdade.
1.3 Princípio da acusação
Caraterística marcante dos sistemas de processo penal que, como o nosso, assumem estrutura acusatória, é o princípio
da acusação, segundo o qual:
“a entidade que investiga e acusa deve ser distinta da entidade que julga, de modo a garantir a objetividade e
a imparcialidade da decisão judicial”.
O acolhimento deste princípio decorre da Constituição (art. 32º/5 CRP) e encontra guarida legal em diversas
disposições do CPP.
Por força deste princípio, os poderes no âmbito do processo penal português encontra-se distribuídos entre o tribunal
e o Ministério Público, atribuindo-se ainda competência a dois juízes diferentes, de modo a assegurar em simultâneo
a separação entre a investigação e o julgamento e o controlo da legalidade naquele primeiro momento:
Fase de Inquérito Fase de Instrução Fase de Julgamento
 Cabe ao Ministério Público a  Compete ao Juiz de Instrução  Compete ao Juiz de Julgamento
tarefa de investigar e acusar controlar a decisão do MP dirigir o julgamento da causa
Resultado: Acusação ou Arquivamento Resultado: Pronúncia ou Não Pronúncia Resultado: Condenação ou Absolvição
Como se vê, o juiz que intervém na fase de instrução não é o juiz do julgamento. O juiz de instrução surge ainda
associado à tarefa de investigação, a cargo do Ministério Público, competindo-lhe ordenar determinados atos (que
dependem de autorização de autoridade judicial) e controlar a legalidade da decisão de acusação ou de arquivamento.

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Maria Paixão Direito Processual Penal
Porque assim é, em nome do princípio da acusação, o juiz de instrução fica impedido de intervir em julgamento relativo
a processo em que tiver presidido a debate instrutório (art. 40º/b) CPP).
A repartição de tarefas imposta pelo princípio da acusação traduz-se, no direito português, numa repartição entre
magistraturas distintas: a magistratura judicial e a magistratura do ministério público. As duas magistraturas são
constitucionalmente consideradas distintas e autónomas entre si. Do ponto de vista do cumprimento, em termos
gerais, do princípio da acusação, é indiferente que a fase de investigação e a acusação caiba ao Ministério Público ou
ao Juiz de Instrução, já que ambos não se confundem com o Juiz de Julgamento. Deste prisma, o que importa é encarar,
de um lado, o inquérito e a instrução, dirigidas pelo Ministério Público e/ou pelo Juiz de Instrução, e, de outro lado, o
julgamento, dirigido pelo Juiz de Julgamento. Porém, acaba por resultar da própria Constituição a repartição de
funções no processo penal entre Ministério Público e Tribunal: a Lei Fundamental reserva à magistratura do ministério
público a competência para exercer a ação penal (art. 219º/1 CRP), de tal modo que a repartição de funções exigida
pela estrutura acusatória do processo penal português sempre haveria de radicar na destrinça entre as funções do MP
e as funções do juiz de julgamento, nunca sendo bastante a distinção entre juiz de julgamento e juiz de instrução.
O princípio da acusação, nos termos em que é acolhido entre nós (destrinça entre duas magistraturas), tem as
seguintes implicações na estrutura do processo penal:
 Competência do Ministério Público para abrir o inquérito, dirigi-lo e proceder ao seu encerramento da forma
que considerar mais adequada (arts. 241º e 262º/2, 263º/1 e 276º/1 CPP) » significa isto que não pode o juiz
de julgamento, por sua iniciativa, começar um investigação, mesmo tendo notícia de um crime.
 Antecedência do julgamento pela acusação do Ministério Público ou pelo assistente (arts. 283º e 285º CPP) »
qualquer julgamento em matéria penal é precedido de acusação, sem a qual não pode ser iniciada a fase de
julgamento em todo o caso; poderá também o julgamento ser antecedido de despacho de pronúncia (tendo
ou não havido acusação), sendo que mesmo neste caso este despacho é proferido por entidade distinta do
juiz de julgamento (arts. 287º/1/b) e 308º CPP).
 Fixação do objeto do processo antes do julgamento, através da acusação ou da pronúncia » a acusação (do
Ministério Público ou do assistente) e/ou a pronúncia (do juiz de instrução) delimitam e fixam os poderes de
cognição do tribunal e a extensão do caso julgado.
“Efeito de vinculação temática do tribunal”
Tem como consequências:
 Princípio da identidade: o objeto do processo deve manter-se o mesmo desde que é fixado até ao
trânsito em julgado da decisão;
 Princípio da unidade: o objeto do processo deve ser conhecido e julgado na sua totalidade;
 Princípio da consunção: o objeto do processo, após a decisão do tribunal, deve considerar-se
irrepetivelmente decidido, mesmo não tendo sido conhecido e julgado na sua totalidade.
O princípio da acusação, com estas implicações que ficaram expostas, liga-se de forma direta e indireta ao exercício
efetivo do direito de defesa por parte do arguido. Com efeito, o arguido tem direito a não ser surpreendido com novos
factos na audiência de julgamento, podendo aí exercer de forma cabal o direito de contraditar os factos que lhe são
imputados na acusação ou pronúncia. É neste contexto que se compreende o regime da “alteração substancial dos
factos”, sobre que versaremos infra.
2. Princípios gerais da prossecução processual
[NOTA prévia: são princípios gerais da prossecução processual os princípios da investigação, do contraditório, da suficiência e da concentração.
No entanto, os princípios da investigação e da concentração serão considerados somente no capítulo referente à fase de julgamento, a par dos
princípios gerais em matéria de prova e forma.]
2.1 Princípio do contraditório
De acordo com o princípio do contraditório:
“toda a prossecução processual deve cumprir-se de forma a fazer ressaltar as razões da acusação e da defesa,
tendo qualquer sujeito ou participante processual o direito a ser ouvido quando deva tomar-se uma decisão que
pessoalmente o afete”.
O princípio do contraditório está, portanto, intimamente ligado a um direito de audiência, o qual corresponde, no caso
dos sujeitos processuais, a uma forma de participação constitutiva na declaração do direito do caso.
O princípio do contraditório tem consagração constitucional, no art. 32º/5 CRP. Como expressão deste princípio, ao
nível infraconstitucional, podem apontar-se os arts. 321º/3, 323º/g), 341º, 348º/4, 360º/1 e 2 CPP, bem como, em
específico, o art. 327º CPP, para a audiência de julgamento, e o art, 289º CPP, para os atos instrutórios. Embora a
Constituição se refira apenas à audiência de julgamento e atos instrutórios, entende-se que este princípio vale também

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Maria Paixão Direito Processual Penal
para o debate instrutório, já que este consiste numa discussão, perante o juiz, por forma oral e contraditória, sobre se
do decurso do inquérito e da instrução resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a
submissão do arguido a julgamento (art. 298º CPP).
Este princípio pode ser perspetivado de dois prismas, imputando-se-lhe significados distintos:
Princípio do contraditório
Elemento do estatuto processual do arguido Princípio geral da prossecução processual
Garantia de defesa assegurada ao arguido (em Meio de cumprimento da finalidade de proteção dos
decorrência da imposição do art. 32º/1 CRP) direitos fundamentais das pessoas
Enquanto integrante do estatuto processual do arguido, o princípio do contraditório estende-se a todas as fases do
processo: os direitos processuais de estar presente aos atos processuais que diretamente lhe disserem respeito, de
ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devem tomar qualquer decisão que pessoalmente
o afete e de intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo diligências cobrem todo o processo
penal. Este princípio integra ainda o estatuto processual do assistente, ao qual compete intervir no inquérito e na
instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se afigurarem necessárias (art. 69º/2/a) CPP).
Efetivamente, não obstante a Lei Fundamental se referir a este princípio apenas a propósito do julgamento, a verdade
é que ele encontra expressão logo no inquérito, enquanto elemento integrante do estatuto processual do arguido e
do assistente, e também na instrução.
Pode, contudo, suceder que a fase de inquérito esteja sujeita a segredo de justiça, nos termos do disposto no art.
86º/2 e 3 CPP. A compatibilização entre o segredo de justiça e o princípio do contraditório é uma das caraterísticas
que se pode apontar ao processo penal português desde a versão primitiva do CPP.
2.2 Princípio da suficiência
Segundo o princípio da suficiência (art. 7º/1 CPP):
“o processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele resolvem-se todas as questões
que interessarem à decisão da causa, inclusive de índole diversa (ex.: natureza administrativa ou civil)”.
Assim sendo, no processo penal devem ser resolvidas, desde logo, as “questões prejudiciais em processo penal”, isto
é, aquelas que constituem antecedente jurídico-concreto da questão principal, que são autónomas quanto ao objeto
e natureza do processo (podendo dar origem a um processo independente) mas que são necessárias à resolução da
questão principal de natureza penal.
Este princípio assenta em dois fundamentos essenciais:
 Exigência de concentração do processo penal no tempo » haverá que procurar a resolução da questão penal
de forma célere e de uma só vez;
 Não aproveitamento da resolução da questão não penal em sede própria » as mais das vezes, ao processo
penal não é proveitosa a resolução da questão prejudicial em sede própria, designadamente em virtude das
demoras processuais que isso representaria.
Importa notar, porém, que, tal como há boas razões para propugnar a não adoção da devolução obrigatória da questão
prejudicial para o tribunal competente, boas razões há também para perfilhar o afastamento de uma regra absoluta
de conhecimento obrigatório de todas as questões prejudiciais pelo tribunal que julga a questão penal principal. Com
efeito, em face da especialidade e complexidade da questão prejudicial, pode ser favorável a remissão da questão
para o tribunal competente (designadamente, competente em matéria cível ou administrativa). Daí que se disponha,
no nº 2 do art. 7º CPP, que o tribunal pode suspender o processo penal para que o tribunal competente decida a
questão não penal, necessária para se conhecer a existência de um crime, que não possa ser convenientemente
resolvida no processo penal. Em suma, a regra é a da suficiência do processo penal, mas esta é uma regra relativa, que
pode contar com exceções, quando a questão prejudicial apresentar especificidade ou complexidade bastantes. A
suspensão do processo penal nestes casos pode ser ordenada oficiosamente pelo tribunal ou requerida pelo Ministério
Público, pelo assistente ou pelo arguido após a acusação ou no requerimento para abertura de instrução (art. 7º/3
CPP). A suspensão tem prazo marcado e não pode prejudicar as diligências urgentes de prova (art. 7º/3 e 4 CPP). Se a
questão prejudicial não for resolvida no prazo definido ou se a ação não for proposta no prazo máximo de um mês, a
sua resolução voltará a caber, definitivamente, ao tribunal com competência para o processo penal (arts. 7º/3 e 4 e
328º CPP). A devolução de uma questão prejudicial a um juízo não penal é uma causa de suspensão da prescrição do
procedimento criminal (art. 120º/1/a) CPP).

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Maria Paixão Direito Processual Penal
Refira-se que diferente enquadramento já terá o surgimento, no seio do processo penal, de uma questão de
constitucionalidade normativa. Não se trata aqui propriamente de uma questão prejudicial – assim resulta dos arts.
221º, 204º e 280º CRP. Vigorarão, nesta sede, as regras gerais dos recursos para o Tribunal Constitucional.
3. A fase de inquérito
No âmbito do processo penal comum, a fase de inquérito é a fase de investigação por excelência. Esta é uma fase
obrigatória, cuja falta constitui nulidade insanável (arts. 118º/1 e 119º/d) CPP).
3.1 Abertura
O inquérito inicia-se com a aquisição da notícia do crime por parte do Ministério Público, a qual pode dar-se por uma
das seguintes vias (arts. 241º e 245º CPP):
 Conhecimento próprio do Ministério Público;
 Notificação pelos órgãos de polícia criminal;
 Denúncia efetuada por pessoas que não autoridades policiais ou judiciárias.
Por força do princípio da legalidade da promoção processual, a aquisição da notícia do crime dá sempre lugar à
abertura de inquérito, ressalvadas as exceções previstas no Código (art. 262º/2 CPP). Nestes exceções enquadram-se:
 Casos em que não serve para dar início ao inquérito uma qualquer forma de aquisição da notícia do crime:
 Crimes semipúblicos » o crime tem de ser denunciado através da apresentação de uma queixa (só
pode ser apresentada pelos titulares do direito de queixa) – art. 49º CPP;
 Crimes particulares » o crime tem de ser denunciado por via da apresentação de uma queixa (pelos
titulares do direito de queixa), a qual deve ser necessariamente seguida da constituição de assistente
do autor da queixa – arts. 50º, 68º/2 e 264º/4 CPP.
 Casos de denúncia anónima: nos termos do art. 246º/6 CPP, a denúncia anónima nem sempre determina a
abertura do inquérito.
A exigência de à notícia de um crime corresponder a abertura do inquérito (que é já fase do processo penal) é
significativa do propósito político-criminal de não haver margem para um pré-inquérito ou inquérito preliminar, no
âmbito do qual poderiam ocorrer atos de natureza processual sem a devida harmonização das finalidades apontadas
ao processo penal. Todavia, nos nossos dias começa a ser questionável se tal pré-inquérito ou inquérito preliminar
não existe na prática, em virtude de uma crescente confusão entre prevenção e repressão criminal. Esta confusão
denota-se, sobretudo, na legislação extravagante sobre a matéria.
Impende sobre os órgãos de polícia criminal o dever de transmitir ao Ministério Público a notícia do crime de que
tiverem conhecimento próprio ou que lhes tenha sido denunciado, ainda que se trate de denúncia manifestamente
infundada (art. 248º/1 e 2 CPP). Em geral, a denúncia do crime é obrigatória para:
 Entidades policiais » quanto a todos os crimes de que tomarem conhecimento;
 Funcionários » quanto aos crimes de que tomarem conhecimento no exercício das suas funções e por causa
delas (art. 242º/1 CPP).
Com a alteração do nº 3 do art. 242º CPP, entende-se que a denúncia é obrigatória mesmo quando o procedimento
depende de queixa ou de acusação particular. Feita a denúncia, o inquérito só será instaurado se o titular do direito
de queixa o exercer no prazo legalmente previsto.
No caso de denúncia anónima, a abertura do inquérito depende de daquela resultarem indícios da prática do crime
(arts. 246º/6 e 164º/2 CPP). Pretende-se, deste modo, precaver as denúncias manifestamente infundadas, que podem,
inclusivamente, constituir crime (art. 365º CP).
Quando não determina a abertura de inquérito, o Ministério Público promove a destruição da denúncia (art. 246º/7
CPP). Se o procedimento criminal depender de queixa ou de acusação particular, o Ministério Público ou o órgão de
polícia criminal competentes informa o titular do direito da existência de denúncia (art. 246º/6 CPP).
3.2 Finalidade, direção e atos do Ministério Público
Da qualificação da fase de inquérito como fase de investigação por excelência resultam já as principais finalidades
desta fase do processo penal, as quais encontram guarida no art. 262º/1 CPP:
 Investigar a existência de um crime » nesta fase do processo procura-se, antes de mais, averiguar a efetiva
prática de um facto ilícito-típico penal;
 Determinar os agentes da prática do crime e respetiva responsabilidade » verificando-se a existência de um
crime, será também nesta fase que se procurará identificar os responsáveis e determinar a que título
intervieram na atividade criminosa (autoria, cumplicidade, comparticipação, etc.);

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Maria Paixão Direito Processual Penal
 Recolher provas » este primeiro momento do processo penal deve orientar-se, não só para a conclusão acerca
da prática do crime denunciado e identificação dos autores, como também para a recolha de provas que
suportem essas conclusões.
Só mediante prossecução destes objetivos estar-se-á, finda a fase de inquérito, em posição de deduzir, ou não,
acusação. Não bastará, portanto, concluir acerca da prática do crime e da respetiva autoria se não há prova suficiente
desses factos. Igualmente, não será suficiente a conclusão acerca da prática do crime e a recolha de provas acerca
dessa atuação criminosa se não foi possível identificar o autor.
A direção da fase de inquérito cabe ao Ministério Público, cujas intervenções processuais devem obedecer a critérios
de estrita objetividade (arts. 263º/1 e 53º/1 CPP). O Ministério Público dirige o inquérito assistido pelos órgãos de
polícia criminal, que atuam sob sua orientação e na sua dependência funcional (art. 263º/2, 55º/1 e 56º CPP),
podendo, inclusive, conferir-lhes o encargo de procederem a quaisquer diligências e investigações (art. 270º/1 e 4
CPP). O Ministério Público é, portanto, o dominus do inquérito.
Não obstante, deve reconhecer-se restrições aos poderes de direção do inquérito que lhe são acometidos:
 Atos carecidos de prática, ordenação ou autorização do juiz de instrução » os atos que se prendem diretamente
com direitos fundamentais são da competência de juiz, por integrarem a “reserva de juiz”. Nesta fase do
processo, os atos que tenham de ser praticados, ordenados ou autorizados por juiz serão da competência do juiz
de instrução (e nunca do juiz de julgamento), sendo a este que cabe o exercício das funções jurisdicionais até à
remessa do processo para julgamento (arts. 32º/4 CRP e 17º CPP).
O juiz de instrução intervém na fase de inquérito enquanto “juiz das liberdades” (e não como juiz da
investigação), pelo que a sua intervenção sempre ocorrerá a requerimento !
Só assim se garante o respeito pelo modelo constitucional de repartição de funções entre magistraturas
distintas (arts. 32º/4 e 5 e 219º CRP) e a caraterização da fase de instrução como mecanismos de
comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito (art. 286º/1 CPP).
 Atos cuja delegação aos órgãos de polícia criminal é proibida » o nº 2 do art. 270º CPP elenca um conjunto de
atos que não podem ser delegados nos órgãos de polícia criminal e que, portanto, têm de ser obrigatoriamente
praticados pelo Ministério Público; o nº 3 desse mesmo preceito exceciona, porém, a possibilidade de delegação
de determinados atos apenas a autoridades de polícia criminal.
[NOTA: como decorre da contraposição das alíneas c) e d) do art. 1º CPP, os “órgãos de polícia criminal” não
se confundem com as “autoridades de polícia criminal”, daí a diferenciação efetuada pelo art. 270º/3 CPP.]
3.3 Encerramento
O encerramento do inquérito deve ter lugar dentro de prazos máximos legalmente fixados (art. 276º/1, 2 e 3 CPP). O
prazo de duração máxima do inquérito é determinado, sucessivamente, pelos seguintes critérios:
1. Regra: privação da liberdade do arguido:
a) Há arguidos presos ou sob obrigação de permanência na habitação » prazo de 6 meses;
b) Não há arguidos presos ou sob obrigação de permanência na habitação » prazo de 8 meses.
2. Exceções: tipo de crime e complexidade do procedimento:
a) Alargamento do prazo de 6 meses » hipóteses do nº 2 do art. 276º CPP:
i. Crimes referidos no art. 215º/2 CPP » prazo de 8 meses;
ii. Procedimento de excecional complexidade » prazo de 10 meses;
iii. Crimes referidos no art. 215º/2 CPP cujo procedimento é de excecional complexidade (art.
215º/3 CPP) » prazo de 12 meses.
b) Alargamento do prazo de 8 meses » hipóteses do nº 3 do art. 276º CPP:
i. Crimes referidos no art. 215º/2 CPP » prazo de 14 meses;
ii. Procedimento de excecional complexidade » prazo de 16 meses;
iii. Crimes referido no art. 215º/2 CPP cujo procedimento é de excecional complexidade (Art.
21º/3 CPP) » 18 meses.
O prazo conta-se a partir do momento em que o inquérito tiver passado a correr contra pessoa determinada ou em
que se tiver verificado a constituição de arguido (art. 276º/4 CPP).
O estabelecimento de prazos máximos para o inquérito coloca a questão de saber se estes são meros prazos
“ordenadores” ou se são antes “vinculativos”. A questão coloca-se porque o atual regime legal não nos permite
defender que, atingido o limite máximo de duração do inquérito, o Ministério Público tem obrigação de arquivar ou

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acusar. Isto não significa que não haja dever de justificar, perante o superior hierárquico imediato, o não cumprimento
dos prazos legais e de indicar o período de tempo que ainda é necessário para concluir o inquérito. A isto acresce que
a limitação temporal do inquérito sempre decorrerá da finalidade do processo penal de reestabelecimento da paz
jurídica do arguido – o art. 32º/2 CRP consagra, para o arguido, a garantia de ser julgado no prazo mais curto
compatível com as garantias de defesa.
Quanto aos modos de encerramento desta fase processual, são 2 as vias pelas quais o Ministério Público pode optar:
Encerramento do inquérito
Arquivamento Dedução de acusação
O inquérito é arquivado nos seguintes casos:
 Recolha de prova bastante de se não ter O Ministério Público deduz acusação sempre que
verificado qualquer crime; tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter
 Recolha de prova bastante de o arguido não ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, se de
cometido o crime a qualquer título; tais indícios resultar uma probabilidade razoável de, em
 Falta de indícios suficientes da verificação do julgamento, o arguido vir a ser condenado.
crime ou de quem foram os seus agentes;
 Inadmissibilidade do procedimento criminal (ex.:
prescrição; exercício extemporâneo do direito de
queixa; etc.).
Veja-se, detidamente, cada uma destas vias de encerramento da fase de inquérito:
a) Despacho de arquivamento
O arquivamento do inquérito ocorre, por inteleção inversa, sempre que o Ministério Público entender não haver ou
não ter recolhido indícios suficientes da prática do crime ou da identidade dos respetivos autores. Assim será nas
situações acima elencadas, em que ou o crime não se considera praticado ou o arguido não se considera autor (arts.
277º/1 e 2 e 283º/2 CPP). A estas hipóteses acrescem os casos de inadmissibilidade do procedimento criminal (art.
277º/1 CPP in fine). O despacho de arquivamento deverá ser devidamente fundamentado, nele se indicando os
motivos da decisão (art. 97º/3 e 5 CPP).
Note-se que o Ministério Público pode proferir despacho de arquivamento do inquérito mesmo nos crimes cujo
procedimento depende de acusação particular. Com efeito, a natureza particular dos crimes não obsta à intervenção
do Ministério Público, ainda que, em todo o caso, seja também necessária a acusação do titular do direito de queixa.
Esgotado o prazo em que já não pode ter lugar a intervenção hierárquica prevista no art. 278º CPP, o inquérito pode
ser reaberto se surgirem, entretanto, novos elementos de prova que invalidem os fundamentos invocados pelo
Ministério Público no despacho de arquivamento (art. 279º CPP). O princípio da legalidade da promoção processual
faz desta possibilidade de reabertura do inquérito um dever para o Ministério Público: havendo novos elementos de
prova, não pode ser deixada ao arbítrio do Ministério Público a reabertura do inquérito. No entanto, a harmonização
das finalidades de realização da justiça e descoberta da verdade material e de reestabelecimento da paz jurídica impõe
que só se admitam enquanto elementos “novos” aqueles que venham invalidar os fundamentos do arquivamento. A
eficácia processual definitiva do despacho de arquivamento mantém-se, portanto, sob reserva da cláusula rebuc sic
santibus (não alteração das circunstâncias tidas em consideração para a prática do ato).
b) Despacho de acusação
Nos termos do nº 1 do art. 283º CPP, o Ministério Público deve deduzir acusação quando durante o inquérito tiverem
sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado um crime e de quem foi o seu agente.
!! Entende-se existirem, em concreto, “indícios suficientes” da prática do crime sempre que, com base neles, for mais
provável a condenação do que a absolvição do agente (art. 283º/2 CPP).
O nº 3 do art. 283º CPP enuncia um conjunto de elementos que devem constar, obrigatoriamente, do despacho de
acusação, sob pena de nulidade. Estas exigências fundam-se em três ideias essenciais:
 A acusação define e fixa o objeto do processo » uma vez que o objeto do processo fica assim determinado e
delimitado, o despacho de acusação haverá de ser denso e especificado;
 A acusação depende da existência de indícios suficientes da prática do crime e da sua autoria » em virtude da
exigência de “indícios suficientes” é importante que o despacho de acusação seja pormenorizado, de modo a
ficarem claros os indícios considerados;
 A acusação deve permitir o exercício do contraditório » sendo o princípio do contraditório um princípio basilar
no processo penal, também o despacho de acusação está sujeito a ele, sendo que, para poder exercer

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Maria Paixão Direito Processual Penal
devidamente o direito direito de defesa, o arguido deve saber que factos lhe são imputados e conhecer todas
as circunstâncias que determinaram as conclusões do Ministério Público.
Deduzida acusação e notificada esta ao assistente, poderá, nos termos do art., 284º CPP, ter lugar a “acusação
subsidiária” por parte do assistente. Com efeito, a lei permite ao assistente que deduza acusação pelos factos acusados
pelo Ministério Público, por parte deles ou por outros que não importem alteração substancial daqueles. Poderá,
inclusivamente, requerer ou indicar provas que não constem da acusação pública. Este direito processual do assistente
é significativo do seu estatuto de sujeito processual (art. 69º/2/b) CPP).
Importa agora considerar as hipóteses de crimes particulares. Se o processo depender de acusação particular, cabe ao
assistente deduzir acusação. Para o efeito, o Ministério Público notifica-o para o fazer no prazo de 10 dias, indicando
na acusação particular se foram recolhidos indícios da verificação do crime e de quem foram os seus agentes (art.
285º/1 e 2 CPP). O assistente decidirá também por uma de duas vias:
 Dedução de acusação particular » a acusação particular deve conter os elementos exigidos para a acusação
pública, sob pena de nulidade (art. 285º/3 CPP);
 Não dedução de acusação particular » o Ministério Público procede ao arquivamento do inquérito, por
inadmissibilidade do procedimento criminal (art. 277º/1 CPP).
Sendo deduzida acusação particular, o Ministério Público, no prazo de 5 dias (art. 285º/4 CPP):
1. Deduzir acusação pública pelos mesmos factos;
2. Deduzir acusação pública por parte dos factos invocados pelo assistente;
3. Deduzir acusação pública com base noutros factos que não importem alteração substancial dos factos
invocados pelo assistente.
O acompanhamento da acusação particular pelo Ministério Público tem um significado indiscutível, evidenciando a
força dos indícios recolhidos. Nestes casos, a decisão instrutória torna-se irrecorrível se se traduzir na pronúncia do
arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público (art. 310º/1 CPP). Como bem se compreende, nesta
hipótese há já três decisões conformes a respeito da prática do crime e da sua autoria – a acusação do assistente, a
acusação do Ministério Público e a pronúncia do juiz de instrução. Consequentemente, parece não restar fundamento
para um eventual recurso desta última decisão.
3.4 Alternativas ao despacho de acusação
Em alternativa à dedução de acusação, o Ministério Público pode seguir uma de duas vias:
 Arquivamento em caso de dispensa de pena (art. 280º CPP);
 Suspensão provisória do processo (art. 281º CPP).
Normalmente, o inquérito termina com despacho de arquivamento (art. 277º CPP) ou com despacho de acusação (art.
283º CPP). Os institutos previstos nos arts. 280º e 281º CPP são alternativas ao despacho de acusação. Nestes casos,
o Ministério Público recolheu indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente mas, em vez
de acusar, vai lançar mão de um destes mecanismos. Sublinhe-se, então, que estes institutos não são uma terceira via
de término da fase de inquérito; tratam-se, isso sim, de alternativas ao despacho de acusação. A via seguida para
terminar a fase de inquérito é a acusação; contudo, o Ministério Público opta por uma das alternativas ao despacho
de acusação, em virtude das circunstâncias especiais verificadas em concreto. Consequentemente, na falta de
verificação de todos os requisitos de que depende o recurso a estes mecanismos, será necessariamente deduzida
acusação. A averiguação da possibilidade de recurso a estes institutos depende da prévia conclusão pela acusação.
Atente-se mais detalhadamente em cada um destes institutos:
a) Arquivamento em caso de dispensa de pena
O arquivamento em caso de dispensa de pena depende da verificação dos seguintes pressupostos (art. 280º/1 CPP):
1. Recolha de indícios suficientes da verificação do crime e de quem foi o seu agente;
2. Crime relativamente ao qual é expressamente prevista na lei a possibilidade de dispensa de pena;
3. Verificação dos pressupostos da dispensa de pena » são eles (art. 74º CP):
a) Crime punível com pena de prisão não superior a 6 meses ou só com multa não superior a 120 dias;
b) Ilicitude do facto e culpa do agente diminutas;
c) Reparação do dano;
d) Inoponibilidade de razões de prevenção.
4. Concordância do juiz de instrução.
Por ser exigível a concordância do juiz de instrução, a decisão de arquivamento nestes termos é irrecorrível (art. 280º/3
CPP) – o recurso traduzir-se-ia na abertura de instrução, pelo que esta possibilidade deixa de fazer sentido.

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Maria Paixão Direito Processual Penal
Refira-se ainda que o nº 2 do art. 280º CPP permite o arquivamento em caso de dispensa de pena, já depois de
deduzida a acusação, por decisão do juiz de instrução e até ao término desta fase. Porém, neste caso, exige-se, além
dos pressupostos enunciados, a concordância do Ministério Público e do arguido.
b) Suspensão provisória do processo
A suspensão provisória do processo pode ter lugar se reunidos os seguintes pressupostos (art. 281º/1 CPP):
1. Crime punível com pena de prisão não superior a 5 anos;
2. Existência de indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente;
3. Concordância do arguido e do assistente;
4. Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza;
5. Ausência de aplicação da suspensão provisória do processo por crime da mesma natureza;
6. Inaplicabilidade de medida de segurança de internamento;
7. Grau de culpa não elevado;
8. Previsibilidade de resposta suficiente às exigências de prevenção mediante a imposição de regras de conduta
e injunções;
9. Concordância do juiz de instrução.
Suscitou-se já ao Tribunal Constitucional a questão da inconstitucionalidade desta figura, não pelo seu conteúdo, mas
porque é determinada pelo Ministério Público. Invocou-se, a este respeito, a reserva de função jurisdicional (art. 202º
CRP) e a independência dos tribunais (art. 203º CRP), das quais resultaria que tal medida apenas poderia ser decretada
por um juiz. Não obstante, o TC não julgou inconstitucional o art. 281º CPP, na medida em que a decisão do Ministério
Público depende de concordância do juiz de instrução (Ac. nº 67/2006).
À semelhança do referido acerca do arquivamento em caso de dispensa de pena, também a decisão de suspensão
provisória do processo é insuscetível de impugnação. Assim é porque tal decisão conta com a concordância do juiz de
instrução, do arguido e do assistente. Há um consenso bastante alargado que retira sentido à admissibilidade do
recurso. Uma questão suscitada nesta sede é a de saber se será recorrível a decisão do juiz de instrução que não dá a
sua concordância. Há jurisprudência fixada no sentido de da conjugação dos nºs 1 e 6 do art. 281º CPP resultar a
irrecorribilidade da decisão de discordância do juiz. O TC pronunciou-se já pela não inconstitucionalidade deste
entendimento (Ac. 139/2017).
A suspensão provisória do processo implica a imposição de injunções e/ou regras de conduta ao arguido. O nº 2 do
art. 281º CPP consagra um elenco exemplificativo das medidas que podem ser, cumulativa ou separadamente,
aplicadas. Estas injunções ou regras de conduta não têm a natureza jurídica de sanção penal, antes assumindo como
escopo alertar o arguido para a validade da ordem jurídica e despertar nele o sentimento de fidelidade ao direito.
Significa isto que, mesmo após a aplicação das injunções e regras de conduta, o arguido continua coberto com a
presunção de inocência. Ademais, tal consideração implica ainda que tais injunções ou regras de conduta devam ser
orientadas para fins de prevenção.
A suspensão provisório do processo pode ir, em regra, até dois anos, podendo terminar pelas seguintes forma:
 Arquivamento do processo (art. 282º/1 CPP): verificando-se o cumprimento das injunções e regras de conduta
e tendo decorrido o prazo de 2 anos;
 Dedução de acusação (art. 281º/4 CPP): se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta, ou se
cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado no período de 2 anos.
Em caso de processo por crime de violência doméstica não agravado pelo resultado ou por crime contra a liberdade e
autodeterminação sexual de menor não agravado pelo resultado, impõem-se as especificidades previstas nos arts.
281º/7 e 8, 282º/5 CPP e 178º/4 e 5 CP. Nestes casos, o Ministério Público pode determinar a suspensão provisória
do processo, tendo em conta o interesse da vítima, exigindo-se apenas a verificação dos seguintes requisitos:
1. Concordância do juiz de instrução e do arguido;
2. Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza;
3. Ausência de aplicação anterior de suspensão provisória do processo por crime da mesma natureza.
No caso de crime de violência doméstica acresce a exigência de requerimento livre e esclarecido da vítima.
Estes desvio constitui a forma encontrada pelo legislador de atenuar a natureza pública conferida a tais tipos legais de
crime, no contexto supramencionado que envolveu a sua qualificação [vide supra: Cap. IV, 1.1].
Também quanto ao crime de furto simples ocorrido em estabelecimento comercial durante o período de abertura ao
público, estando em causa coisas móveis de valor diminuto que tenham sido imediatamente recuperadas, é
consagrada uma especificidade: dispensa-se a concordância do assistente (art. 281º/9 CPP).

39
Maria Paixão Direito Processual Penal
Os expedientes sobre que versámos – o arquivamento em caso de dispensa de pena e a suspensão provisória
do processo – são “mecanismos de diversão com intervenção”: formas de resolução do conflito fora do sistema formal
de aplicação da justiça (“mecanismo de diversão), aplicados mediante concordância de um leque alargado de sujeitos
processuais (“com intervenção”), entre os quais o juiz de instrução e o Ministério Público.
Nada obsta a que estes institutos sejam aplicados quando o procedimento criminal depender de queixa ou de acusação
particular. Relativamente aos crimes semi-públicos, esta conclusão é evidente: apesar da limitação ao princípio da
oficialidade, a acusação ou arquivamento continuam a ser decididos pelo Ministério Público; sendo lógico que lhe é
possível, em caso de acusação, optar por uma das alternativas previstas na lei. Quanto aos crimes particulares, a
questão só se coloca se houver acusação particular. Nesse caso, nada parece obstar à suspensão provisória do
processo, uma vez que é seu pressuposto a concordância do assistente (art. 281º/1/a) CPP). Também a aplicabilidade
do arquivamento em caso de dispensa de pena é de defender, apesar de não ser exigida por lei a concordância do
assistente, porque a justificação político-criminal da natureza particular dos crimes é alheia às considerações aqui
implicadas. A isto acresce que:
 À dedução de acusação particular poderá sempre corresponder um despacho de não pronúncia do juiz de
instrução, sendo a instrução requerida pelo arguido (arts. 287º/1/a) e 308º CPP);
 O tribunal poderá sempre pronunciar-se sobre nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem
à apreciação do mérito da causa (art. 311º/1 CPP);
 O tribunal poderá sempre, se a instrução não for requerida, proferir despacho no sentido de rejeitar a
acusação particular por a considerar manifestamente infundada (art. 311º/2/a) CPP).
Concluindo: o facto de nos crimes particulares o assistente ter direito a deduzir acusação não significa que lhe seja
reconhecido um direito de submeter a causa a julgamento; essa natureza particular não obsta, portanto, a que o
Ministério Público e o juiz de instrução exerçam as respetivas competências, apenas se excetuando a faculdade do
Ministério Público de deduzir acusação ou arquivar sozinho.
3.5 Controlo da decisão de arquivar ou de acusar
O nosso ordenamento jurídico prevê dois mecanismos de controlo da decisão do Ministério Público:
 Controlo judicial » abertura da fase (facultativa) de instrução – art. 286º/1 CPP;
 Intervenção hierárquica » intervenção do superior hierárquico do magistrado que decidiu – art. 278º CPP.
A intervenção hierárquica é um mecanismo típico de uma magistratura hierarquizada como é a do Ministério Público.
Este é um mecanismo marcado por duas notas fundamentais:
 Limitação: serve para controlar apenas a decisão de arquivar o inquérito;
 Subsidiariedade: só pode ser accionado a partir do momento em que já não pode ser requerida a abertura de
instrução, ou, no prazo em que esta pode ser requerida, se o assistente e o denunciante com a faculdade de
se constituir assistente optarem por não a requerer.
A estas notas pode acrescer a alternatividade, reportada a esta última situação enunciada: durante o prazo para
requerimento da abertura de instrução, o assistente e o denunciante com a faculdade de se constituir assistente
podem optar por requerer a intervenção hierárquica ou a abertura de instrução.
O superior hierárquico do magistrado do Ministério Público que tiver arquivado esta fase processual pode, por sua
iniciativa ou a requerimento do assistente ou do denunciante com faculdade de se constituir assistente:
1. Determinar que seja deduzida acusação;
2. Ordenar que as investigações prossigam (indicando as diligências a efetuar e o prazo para o seu cumprimento);
3. Confirmar o arquivamento.
A decisão do superior hierárquico que confirme o despacho de arquivamento não é suscetível de impugnação
hierárquica, havendo um único grau de reclamação hierárquica.

Capítulo V – A tramitação do processo penal comum – a fase de instrução


1. Abertura
A fase de instrução é uma fase facultativa do processo penal comum e que não tem lugar nas formas de processo
especiais – art. 286º/2 e 3 CPP.
A abertura da instrução pode, portanto, resultar de (art. 287º/1 CPP):
 Requerimento do arguido » o arguido pode requerer a abertura de instrução relativamente a factos pelos quais
o Ministério Público ou o assistente tiverem deduzido acusação, dentro do prazo de 20 dias a contar da
notificação da acusação;

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Maria Paixão Direito Processual Penal
 Requerimento do assistente » o assistente pode requerer a abertura de instrução relativamente a factos pelos
quais o Ministério Público não tenha deduzido acusação, dentro do prazo de 20 dias a contar do arquivamento.
Uma diferença fundamental pode já apontar-se a estes dois casos: enquanto que a abertura de instrução a
requerimento do arguido pode ter lugar em face de acusação particular (pelo assistente), a abertura de instrução a
requerimento do assistente não pode ter lugar em caso arquivamento (em virtude da não dedução de acusação
particular) nos crimes particulares. Como bem se compreende, nos procedimentos relativos a este tipo de crimes é o
próprio assistente que decide deduzir ou não acusação, pelo que não faria sentido ele vir subsequentemente requerer
abertura de instrução como meio de controlo da sua própria decisão de não deduzir acusação. Portanto, só quando o
arquivamento do inquérito não for da exclusiva responsabilidade do assistente (como o é nos procedimentos relativos
a crimes particulares) haverá possibilidade de o assistente requerer abertura da instrução. Na falta de dedução de
acusação particular o procedimento criminal torna-se legalmente inadmissível (arts. 48º, 50º/1, 285º e 277º/1 CPP),
pelo que não pode ser aberta a fase de instrução. Já fará sentido, porventura, admitir-se que o assistente requeria
abertura de instrução num processo relativo a crime particular quando o despacho de arquivamento foi proferido pelo
Ministério Público apesar da acusação particular (por ex. por erro) ou com falta de notificação do assistente. Entender
que nestes casos o assistente não poderia requerer abertura de instrução seria uma afronta injustificada ao princípio
da legalidade e promoção processual e à dualidade constitucional entre magistraturas. Pelas mesmas razões, o
assistente poderá requerer a abertura da fase de instrução quando o Ministério Público tiver proferido despacho de
acusação, acompanhando a acusação particular, do qual constem decisões parcelares de não acusação por
determinados factos.
Em suma, a ressalva feita na alínea b) do nº 2 do art. 287º CPP vale estritamente para os casos em que a decisão de
não acusação é da exclusiva responsabilidade do assistente – houve notificação regular e o assistente não deduziu a
acusação, sendo o inquérito arquivado por o processo ser legalmente inadmissível.
De uma forma esquemática, o que tem vindo a ser dito pode ser apresentado nos seguintes termos:
Requerimento de abertura da instrução
Pelo arguido Pelo assistente
 Crimes públicos e semi-públicos » perante dedução de  Crimes públicos e semi-públicos » perante arquivamento
acusação pelo Ministério Público; pelo Ministério Público;
 Crimes particulares » perante dedução de acusação pelo  Crimes particulares » perante arquivamento irregular
assistente (acompanhada, total ou parcialmente, de pelo Ministério Público, designadamente sem prévia
acusação pública, ou desacompanhada). notificação do assistente para deduzir acusação;
 Crimes particulares » perante não dedução de acusação
pelo Ministério Público a respeito de alguns dos factos
pelos quais houve acusação particular (o MP só
acompanhou a acusação particular parcialmente).
Embora não sujeito a formalidades especiais, o requerimento deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito
de discordância relativamente à acusação ou não acusação (art. 287º/2 CPP). Do requerimento podem ainda constar
os atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, os meios de prova que não foram considerados
no inquérito e os factos que se espera provar. Tratando-se de requerimento do assistente, devem ser ainda incluídos
na peça processual os elementos referidos nas alíneas b) e c) do art. 283º/3 CPP, por estar em causa a imputação ao
arguido de factos que justificarão a submissão da causa a julgamento e a fixação dos poderes de cognição do juiz de
instrução (arts. 288º/4 e 303º CPP). De facto, quando a instrução é requerida relativamente a factos não acusados, o
requerimento para abertura da instrução cumpre o papel da acusação quanto à fixação do objeto do processo.
O requerimento de instrução só pode ser rejeitado nos casos elencados no nº 3 do art. 287º CPP:
 Extemporaneidade: requerimento apresentado após o decurso do prazo de 20 dias;
 Incompetência do juiz;
 Inadmissibilidade legal da instrução.
Sendo requerida instrução e não vindo esta a ter lugar, o processo é nulo, por efeito do art. 119º/1/d) CPP.
[NOTA: o prazo de 20 dias dentro do qual deve ser apresentado o requerimento é contado a partir da notificação do
despacho de arquivamento ou de acusação. No caso de despacho de arquivamento em relação ao qual tenha havido
intervenção hierárquica, o prazo conta igualmente a partir da notificação do arquivamento proferido pelo magistrado
do Ministério Público responsável pelo inquérito, e nunca apenas a partir do despacho confirmativo proferido pelo
superior hierárquico na sequência da reclamação – neste sentido o Ac. nº 3/2015, fixador de jurisprudência.]
2. Finalidade

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Maria Paixão Direito Processual Penal
O art. 286º/1 CPP reserva à instrução a finalidade de comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de
arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. Esta conclusão não é, porém, pacífica e isenta
de controvérsia, quer doutrinal quer jurisprudencial.
A posição entre nós perfilhada, em linha com Figueiredo Dias e Anabela Rodrigues, aponta à fase de instrução a
finalidade de controlar a decisão tomada pelo Ministério Público no término do inquérito. Não parece ser de estender
este controlo à investigação em si mesma. A instrução não visa sindicar a atuação do Ministério Público ao longo do
inquérito, mas tão-só comprovar o acerto da acusação ou do arquivamento. No sentido desta conclusão militam os
seguintes argumentos:
 Caráter facultativo da instrução » a fase de instrução só tem lugar se requerida pelo arguido ou pelo assistente,
os quais são os sujeitos processuais que poderão estar interessados em contrariar o sentido da decisão tomada
pelo Ministério Público, ou pelo assistente, no final do inquérito;
 Nulidade da decisão instrutória que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial da
acusação do Ministério Público ou do assistente » a fase de instrução termina com despacho de pronúncia ou
de não pronúncia, sendo que tal peça processual haverá de ter como objeto a decisão de arquivamento ou
acusação (sendo com ela concordante ou discordante).
! Em suma, entende-se que a instrução não é suplemento autónomo de investigação, mas sim um mecanismo de
controlo da decisão tomada no final do inquérito (decisão de acusação ou de arquivamento) !
Não obstante, a verdade é que as alterações legislativas mais recentes têm vindo a pôr em causa este ponto de vista,
descaraterizando, do ponto de vista propugnado, a essência desta fase do processo:
 Publicidade da fase de instrução (art. 86º/1 CPP);
 Contraditoriedade dos atos de instrução (art. 289º/2 CPP);
 Consideração da comunicação ao Ministério Público da alteração substancial dos factos descritos na acusação
ou no requerimento para abertura da instrução como denúncia, exigindo a sua investigação sempre que tais
factos sejam autonomizáveis em relação ao objeto do processo (art. 303º/3 e 4 CPP);
 Equiparação do regime da alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou no
requerimento de abertura de instrução ao regime que vale para igual alteração na fase de julgamento (arts.
303º/5 e 358º/3 CPP).
Destes preceitos parece resultar a consideração da instrução como fase suplementar, que acrescenta algo ao processo,
quando, na verdade, esta deveria ser uma fase de mero controlo, não implicando qualquer inovação. Verifica-se, deste
modo, uma desfiguração daquela que foi, originariamente, a finalidade pretendida para esta fase processual.
Nas palavras de Figueiredo Dias, à instrução deve ser reconhecida a natureza “de direito das pessoas e de garantia do
processo penal”, competindo ao juiz “atos materialmente judiciais e não (...) atos materialmente policiais”.
A configuração constitucional do modelo acusatório do processo penal português demonstra que o ponto fulcral é a
distinção entre magistraturas (judicial e do ministério público), pelo que haverá de ser sempre bem demarcada a
distinção entre a função do Ministério Público e a função do juiz (de instrução ou de julgamento). Entre nós, a estrutura
acusatória do processo penal não se funda na distinção entre funções do juiz de instrução e do juiz de julgamento,
mas antes na distinção entre as funções da magistratura do ministério público e da magistratura judicial. Deste modo,
o essencial é a separação da investigação e acusação, da competência do Ministério Público, dos demais atos
intrinsecamente judiciais, da competência do juiz de instrução e do juiz de julgamento. Não pode, de modo algum,
caber a um juiz a realização da investigação, o que acarreta que ao juiz de instrução cumpra tão-só controlar.
3. Direção e conteúdo
A direção da instrução compete a um juiz de instrução que pratica todos os atos necessários à realização da finalidade
de comprovar a decisão de acusação ou de arquivamento em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento (art.
288º/1 e 290º/1 CPP). Para o efeito, é assistido pelos órgãos de polícia criminal, a quem pode conferir o encargo de
procederem a quaisquer diligências e investigações relativas à instrução, salvo as seguintes (arts. 288º/1, 290º/2,
292º/2, 55º/1 e 56º CPP):
 Interrogatório do arguido; Atos compreendidos na competência
 Inquirição de testemunhas; reservada das autoridades judiciárias.
 Atos atribuídos por lei exclusivamente ao juiz.
Segundo o nº 4 do art. 288º CPP, o juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, embora com as
limitações decorrentes dos:

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Maria Paixão Direito Processual Penal
 Requerimento para abertura desta fase (do qual constam, designadamente, as razões de facto e de direito de
discordância em relação à acusação ou arquivamento);
 Regime da alteração substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da
instrução (arts. 303º e 309º/1 CPP).
Com base no teor literal daquele preceito poderia arguir-se que a fase de instrução é um suplemento autónomo de
investigação. Porém, esta é uma interpretação errónea. O que decorre deste art. 288º/4 CPP é que a instrução
constitui um suplemento de investigação autónomo, o que significa que o juiz não está limitado pelos contributos da
acusação e da defesa, podendo oficiosamente proceder às diligências que considerar necessárias para decidir
justamente (é este o teor do princípio da investigação). Assim, a instrução mantém-se como fase de controlo, mas a
lei afirma expressamente que o juiz não está limitado, no exercício dessa função de controlo, às contribuições da
acusação e da defesa, podendo ir além do que já tenha sido realizado, com o intuito de se esclarecer melhor e, dessa
forma, formar opinião mais correta acerca do mérito da decisão do Ministério Público. Logicamente, isto não é o
mesmo que dizer estar em causa um suplemento autónomo de investigação, pois neste caso estar-se-ia a conferir ao
juiz a função de ir além do objeto do processo, realizando uma investigação nova. Mais do que realizar diligências para
se esclarecer acerca do mérito da decisão de acusação ou arquivamento, o juiz de instrução investigava para formar
uma decisão nova acerca dos factos em juízo, desrespeitando, sendo caso disso, o despacho de acusação ou o
requerimento de abertura da instrução.
A instrução é formada por:
 Atos instrutórios » podem ser realizados os atos instrutórios que o juiz de instrução entender serem
necessários, a efetuar pela ordem que ele repute mais conveniente para o apuramento da verdade. Os atos a
efetuar poderão ser requeridos ou praticados ou ordenados oficiosamente pelo juiz (em cumprimento do
princípio da investigação) (art. 288º/4 e 291º CPP).
 Debate instrutório » deve o juiz de instrução promover uma discussão, por forma oral e contraditória, sobre
se, no decurso do inquérito e da instrução, foram recolhidos indícios de facto e elementos de direitos
suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento, no qual podem participar o Ministério Público,
o arguido, o defensor, o assistente e o seu advogado (arts. 289º/1, 298º, 301º/2 e 302º CPP).
Os atos de instrução não são obrigatórios, podendo haver instrução sem a sua prática (art. 297º CPP). Ao invés, o
debate instrutório é obrigatório, sob pena de nulidade (art. 120º/2/d) CPP).
O nº 2 do art. 289º CPP vem atualmente reconhecer ao arguido, ao Ministério Público, ao defensor, ao assistente e ao
seu advogado o direito de assistir aos atos de instrução por qualquer deles requeridos, o que, apesar de ser de louvar
do ponto de vista do princípio do contraditório, desvirtua a finalidade desta fase processual, aproximando-a da fase
de julgamento.
Uma questão que se tem vindo a mostrar pertinente nesta matéria é a de saber qual o momento em que se fixa a
competência do juiz que dirige a fase de instrução. O Ac. STJ nº 2/2017 veio fixar jurisprudência a este propósito,
determinando que é considerada, para estes efeitos, o despacho de acusação ou o requerimento de abertura de
instrução, e não a notícia do crime.
4. Encerramento
A instrução encerra-se, depois de encerrado o debate instrutório, através da prolação de um despacho de pronúncia
ou de não pronúncia (arts. 307º/1 e 308º/1 CPP):
Encerramento da inquisição
Despacho de pronúncia Despacho de não pronúncia
» o juiz pronuncia o arguido quando tiverem sido » o juiz não pronuncia o arguido quando não tiverem
recolhidos indícios suficientes da verificação dos sido recolhidos indícios suficientes da verificação dos
pressupostos de que depende a aplicação de uma pena pressupostos de que depende a aplicação de uma pena
ou medida de segurança ou medida de segurança
Importa sublinhar, neste contexto, a proibição de pronúncia do arguido por factos que constituam alteração
substancial dos factos descritos na acusação (arts. 283º e 285º CPP) ou no requerimento para abertura da instrução
(art. 287º/1/b) e 2 CPP) – art. 303º/3 e 1º/f) CPP. Esta proibição funda-se:
 No princípio processual penal da máxima acusatoriedade possível (= implementação o mais rigorosa possível de
uma estrutura acusatória no processo penal);
 No efeito de vinculação temática do tribunal;
 Na tutela do direito de defesa do arguido.

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Maria Paixão Direito Processual Penal
À violação desta proibição corresponde a nulidade da decisão instrutória (arts. 118º/1, 309º/1 e 310º/3 CPP).
A efetiva alteração substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura de instrução não
deve ser tomada em consideração pelo tribunal para efeito de pronúncia (art. 303º/3 CPP). Tal alteração, quando
comunicada ao Ministério Público, vale como (nova) denúncia para que ele proceda pelos novos factos, desde que
estes sejam autonomizáveis em relação ao objeto do processo (art. 303º/4 CPP).
Caso a alteração verificada seja não substancial, o juiz, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao
defensor, interroga o arguido sobre ela e, sempre que possível, concede-lhe um prazo para preparação da defesa (art.
303º/1 CPP).
Este regime é estendido, pelo nº 5 do art. 303º CPP, aos casos em que o juiz altera a qualificação jurídica dos factos
descritos na acusação ou no requerimento. Ora, este é mais um ponto em que a instrução se aproximou, em virtude
das alterações legislativas, do julgamento (art. 358º/3 CPP), implicando mais uma vez a descaraterização da instrução.
À semelhança do que ficou exposto quanto à fase de inquérito, também na fase de instrução o juiz que concluir pela
existência de indícios suficientes da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação de pena ou medida de
segurança pode, em alternativa ao despacho de pronúncia:
 Arquivar o processo em caso de dispensa de pena – art. 280º CPP;
 Suspender provisoriamente o processo – art. 307º/2 CPP.
A utilização destes mecanismos de diversão na instrução apresenta, todavia, uma diferença fundamental em relação
aos casos em que a sua utilização ocorre na fase de inquérito: o arquivamento em caso de dispensa de pena depende
também da concordância do arguido (art. 280º/2 CPP). Esta diferenciação faria mais sentido se a fase de inquérito
fosse secreta, pois nessa hipótese o arguido não teria motivo para discordar do arquivamento do processo (pois
ninguém, além dos sujeitos do processo, teria conhecimento da sua constituição como arguido). Uma vez que o
processo penal é público desde o início (art. 86º/1 CPP), faria mais sentido exigir em todo o caso a concordância do
arguido: é legítimo que, mesmo no término do inquérito, o arguido se oponha ao arquivamento (ou suspensão
provisória) por pretender provar, perante a comunidade e em sede de julgamento, a sua inocência.
5. Irrecorribilidade
O princípio geral no processo penal português é o da recorribilidade das decisões judiciais, salvo os casos previstos na
lei (art. 399º CPP). Assim sendo, também as decisões judiciais proferidas na fase de instrução (despachos de pronúncia
ou de não pronúncia) são, em regra, recorríveis, sendo o recurso interposto para a Relação (art. 427º CPP).
Excecionam-se, todavia, as seguintes decisões:
 Despacho de indeferimento do requerimento de atos instrutórios considerados desnecessários » não é
recorrível o despacho do juiz de instrução pelo qual se recusa a prática de atos instrutórios por ele
considerados irrelevantes para a instrução ou que tenham sido requeridos apenas para protelar o andamento
do processo (art. 291º/1 e 2 CPP). Esta irrecorribilidade decorre da finalidade da instrução que é, exatamente,
o controlo da decisão do Ministério Público, e não a realização de uma investigação autónoma; daí que o juiz
apenas deva admitir ou ordenar as diligências que considere necessárias ao seu esclarecimento acerca do
mérito da acusação ou do arquivamento.
 Decisão de pronúncia formulado nos termos do art. 283º ou 285º/4 CPP » não é recorrível o despacho de
pronúncia que venha, pura e simplesmente, confirmar a decisão de acusação do Ministério Público e, nos
crimes particulares, do assistente (art. 310º/1 CPP). Nos crimes públicos e semipúblicos, a recorribilidade é
afastada em virtude da concordância entre o juiz de instrução e o Ministério Público; e nos crimes particulares,
o afastamento da recorribilidade decorre do consenso, não só entre Ministério Público e assistente, como
ainda do juiz de instrução. Estão em causa hipóteses em que ambas as magistraturas decidem no mesmo
sentido, inclusive quando a decisão do Ministério Público se limita a acompanhar a acusação particular do
assistente. Consequentemente, se a acusação particular não for acompanhada pelo Ministério Público já
vigorará a regra da recorribilidade das decisões.
[NOTA: apesar de também se verificar concordância entre as magistraturas, já será recorrível a decisão de não
pronúncia do juiz de instrução que siga a decisão de não acusação do Ministério Público. Esta recorribilidade
decorre da ausência de uma exclusão legal expressa mas não parece ser a solução legal mais acertada. Parece
valer também aqui a razão supramencionada para a irrecorribilidade das decisões de pronúncia que se seguem
a uma decisão de acusação: a concordância entre as duas magistraturas.]
 Decisão apreciadora de nulidades ou outras questões prévias ou incidentais » não é recorrível a decisão do juiz
de instrução respeitante à invalidade do processo ou de determinados atos e a outras questões que não a

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Maria Paixão Direito Processual Penal
questão principal em juízo (art. 310º/1 CPP). Esta irrecorribilidade justifica-se porque o juiz de julgamento
sempre poderá excluir provas proibidas e pronunciar-se sobre as nulidades e outras questões prévias e
incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, ficando assegurada uma segunda apreciação.

Capítulo VI – Meios processuais


1. Meios processuais
Pronúncia ou
Notícia do Acusação ou
Inquérito Instrução não Julgamento
crime arquivamento
pronúncia
Realização de um conjunto de Comprovação judicial da decisão do Decisão da causa,
diligências que visam investigar a Ministério Público, mediante realização com base nas provas
existência de um crime, determinar os de um debate instrutório e das produzidas ou
seus agentes e a responsabilidade deles diligências necessárias à avaliação do examinadas em
e descobrir e recolher provas mérito da acusação ou do arquivamento audiência
Neste enquadramento ganham relevo decisivo, como está já prenunciado, os denominados “meios processuais”:
 Meios de obtenção de prova;
 Meios de prova;
 Medidas cautelares e de polícia;
 Medidas de coação;
 Medidas de garantia patrimonial.
Esta é uma matéria particularmente sensível no que se refere à reserva de juiz e à reserva de competência de
autoridade judiciária, bem como no que diz respeito à harmonização das finalidades do processo penal. É também
nesta sede que jogam soluções processuais diferenciadas em função da gravidade e da natureza dos crimes envolvidos.
O que importa, antes de mais, evidenciar é a transversalidade desta temática: os meios processuais surgem nas
diversas fases do processo penal, assumindo, por isso, um papel fulcral no seu decurso.
2. Meios de obtenção de prova e meios de prova
A nossa lei distingue de forma intencionalmente clara estes dois conceitos:
Meios de prova Meios de obtenção de prova
» formas de comprovação de factos juridicamente » métodos ou modos de investigação através dos quais
relevantes para a existência ou inexistência do crime, se obtém os dados constitutivos da prova (portanto,
para a punibilidade ou não punibilidade do arguido e pelos quais se obtêm os meios de prova)
para a determinação da sanção penal (art. 124º CPP)
Esta distinção pode ser vista de uma dupla perspetiva:
 Perspetiva lógica: os meios de prova caraterizam-se pela sua aptidão para serem, por si mesmos, fonte de
convencionamento das autoridades judiciárias, ao contrário do que sucede com os meios de obtenção de
prova, que apenas possibilitam a obtenção daqueles primeiros;
 Perspetiva técnico-operativa: os meios de obtenção de prova caraterizam-se pelo modo e momento da sua
aquisição no processo (normalmente, nas fases preliminares, sobretudo no inquérito), enquanto que os meios
de prova se caraterizam pelo seu conteúdo intrínseco.
A distinção em apreço já foi, porém, mais clara. Um ponto onde esta fusão é clara consiste na qualificação das escutas
telefónicas. O nº 9 do art. 188º CPP dispõe que só podem valer como prova as conversações ou comunicações
transcritas nos termos aí previstos e o nº 12 desse mesmo preceito refere-se à transcrição como expediente através
do qual se transformam as conversações ou comunicações em meios de prova. Daqui resulta que a transcrição
transforma um meio de obtenção da prova – as comunicações ou conversações – em meio de prova – as comunicações
ou conversações transcritas. Como é evidente, não há uma aqui uma verdadeira distinção; há uma mesma realidade
representada de forma distinta (ex.: a mesma conversa entre o arguido e um terceiro quando apresentada em áudio
é meio de obtenção de prova mas quando reduzida a escrito já constitui meio de prova).
2.1 Meios de obtenção da prova
O CPP prevê como meios de obtenção da prova – arts. 171 a 190º CPP:
a) Exames; c) Buscas; e) Escutas telefónicas
b) Revistas; d) Apreensões;

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a) Exames
É por meio de exames das pessoas, dos lugares e das coisas que se inspecionam os vestígios que possa ter deixado o
crime e todos os indícios relativamente ao modo como e ao lugar onde foi praticado e às pessoas que o cometeram
ou sobre as quais foi cometido (art. 171º/1 CPP). Os exames podem ter lugar por iniciativa:
 Dos órgãos de polícia criminal » na falta de disposição especial, os órgãos de polícia criminal têm competência
para realizar e ordenar a realização de exames (arts. 55º/2, 171º/4, 173º e 249º/2/a) CPP);
 Das autoridades judiciárias » carecem de ordenação de autoridade judiciária (Ministério Público, juiz de
instrução ou juiz de julgamento) os:
 Exames suscetíveis de ofender o pudor das pessoas devem ser ordenados pela autoridade judiciária
competente (arts. 172º/3, 270º/2/c) e 290º/2 CPP);
 Exames cuja realização implica compelir alguém que pretende eximir-se à realização de exame, obstar
a qualquer exame devido ou não facultar coisa que deva ser examinada (arts. 172º/1, 60º e 61º/3/d)).
 Do juiz de instrução » cabe ao juiz a ordenação de exames que envolvam as caraterísticas físicas ou psíquicas
de pessoas que não tenham prestado consentimento (arts. 172º/2 e 269º/1/b) CPP).
Como se vê, a competência para a realização de exames é fundamentalmente atribuída aos órgãos de polícia criminal
e a todas as autoridades judiciárias. Nos casos especiais em que estão envolvidos aspetos físicos e/ou psíquicos do
examinado, a matéria já passa a integrar a reserva de juiz, o que é uma evidência da função do juiz de instrução como
juiz das liberdades.
b) Revistas
As revistas têm como objeto as pessoas e têm lugar quando houver indícios de que alguém oculta na sua pessoa
quaisquer objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova (art. 174º/1 CPP).
Quanto às entidades competentes para as realizar e/ou ordenar:
1. Autoridade judiciária » em princípio, as revistas são autorizadas ou ordenadas por despacho da
autoridade judiciária competente, devendo esta, sempre que possível, presidir à diligência (art.
174º/3 CPP);
2. Órgãos de polícia criminal » os órgãos de polícia criminal podem efetuar revistas, sem ordem ou
autorização de autoridade judiciária, nos seguintes casos (arts. 174º/5 e 251º/1 CPP):
 Terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada quando haja fundados indícios da prática
iminente de crime que ponha em perigo a vida ou integridade de qualquer pessoa;
 Prestação de consentimento pelos visados, devidamente documentado;
 Detenção em flagrante por crime a que corresponde pena de prisão;
 Iminência de fuga ou detenção, sempre que houver fundada razão para crer que os suspeitos ocultam
objetos relacionados com o crime suscetíveis de servir de prova e que poderão perder-se;
 Participação ou assistência a atos processuais ou condução, na qualidade de suspeito, a posto policial,
sempre que houver razões para crer que as pessoas em causa ocultam armas ou outros objetos com
os quais podem praticar atos de violência.
Excetuados os casos em que há consentimento e os em que tem lugar a detenção em flagrante delito, a
realização da revista deve ser imediatamente comunicada ao juiz de instrução e por este apreciada em ordem
à sua validação (arts. 118º/1, 174º/6 e 251º/2 CPP).
Fora destas hipóteses, os órgãos de polícia criminal realizam revistas mediante autorização ou ordem da
autoridade judiciária competente.
Embora a “regra” seja a necessidade de autorização ou ordenação de autoridade judiciária, fica assim evidente que
são inúmeras as exceções em que os órgãos de polícia criminal realizam revistas por iniciativa própria (ainda que estas
sejam depois sujeitas a validação judicial).
c) Buscas
As buscas têm como objeto os locais e são ordenadas quando houver indícios de que, em lugar reservado ou não
livremente acessível ao público, se encontram objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, ou
em que se encontre o arguido ou outra pessoa que deva ser detida (art. 174º/2 CPP).
No que diz respeito à competência para a sua realização:
 Autoridades judiciárias » em princípio, as buscas são autorizadas por despacho da autoridade judiciária
competente, devendo esta, sempre que possível, presidir à diligência (art. 174º/3 CPP);

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3. Órgãos de polícia criminal » os órgãos de polícia criminal podem efetuar revistas, sem ordem ou
autorização de autoridade judiciária, nos seguintes casos (arts. 174º/5 e 251º/1 CPP):
 Terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada quando haja fundados indícios da prática
iminente de crime que ponha em perigo a vida ou integridade de qualquer pessoa;
 Prestação de consentimento pelos visados, devidamente documentado;
 Detenção em flagrante por crime a que corresponde pena de prisão;
 Local onde se encontram suspeitos, sempre que houver fundada razão para crer que os suspeitos
ocultam objetos relacionados com o crime suscetíveis de servirem de prova e que poderão perder-se
(excepto tratando-se de buscas domiciliárias).
Excetuados os casos em que há consentimento e os em que tem lugar a detenção em flagrante delito, a
realização da revista deve ser imediatamente comunicada ao juiz de instrução e por este apreciada em ordem
à sua validação (arts. 118º/1, 174º/6 e 251º/2 CPP).
Excetuámos, quanto à possibilidade de realização das buscas pelos órgãos de polícia criminal sem autorização prévia
de autoridade judiciária, as buscas domiciliárias. Com efeito, a proteção constitucional da inviolabilidade do domicílio
e da reserva da intimidade da vida privada e familiar implica que a competência para ordenar a entrada no domicílio
dos cidadãos contra a sua vontade integre a reserva de competência das autoridades judiciárias (arts. 26º/1 e 34º/1,
2 e 3 CRP). Em virtude desta proteção acrescida, as buscas domiciliárias gozam de um regime específico – art. 117º
CPP. Em primeiro lugar, a distribuição das competências dá-se, nesta sede, entre as várias autoridades judiciárias:
 Competência exclusiva de juiz » a busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada só pode ser
ordenada ou autorizada por juiz (arts. 177º/1 e 269º/1/c) CPP);
 Competência de qualquer autoridade judiciária e dos órgãos de polícia criminal » poderá, além do juiz, o
Ministério Público autorizar ou efetuar buscas domiciliárias nos seguintes casos (art. 177º/3 CPP):
 Terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática
iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa;
 Consentimento do visado, desde que devidamente documentado;
 Detenção em flagrante pior crime a que corresponde pena de prisão.
Excetuados os casos em que há consentimento e os em que tem lugar a detenção em flagrante delito, a
realização da revista deve ser imediatamente comunicada ao juiz de instrução e por este apreciada em ordem
à sua validação (art. 177º/4 CPP).
Quanto às buscas domiciliárias, a Lei Fundamental proíbe ainda a sua realização durante a noite, na falta de
consentimento da pessoa (art. 34º/2 CRP). O legislador ordinário fixa o período aqui em causa como o que decorre
entre as 21 e as 7 horas (art. 177º/1 CPP). Neste período, as buscas domiciliárias só poderão ser realizadas nos casos
de (art. 177º/1 e 2 CPP):
 Terrorismo ou criminalidade violenta ou altamente organizada;
 Consentimento do visado, devidamente documentado;
 Flagrante delito pela prática de crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos.
Nos casos de terrorismo ou criminalidade violenta ou altamente organizada as buscas têm de ser autorizadas por juiz,
só nos demais casos podendo ser ordenadas ou realizadas, sem autorização, pelo Ministério Público ou pelos órgãos
de polícia criminal (art. 177º/3/b) CPP).
Ainda a propósito das buscas, importa referir que as buscas em escritório de advogado ou em consultório médico
devem ser presididas pessoalmente por juiz, podendo estar presente o presidente do conselho local da Ordem dos
Advogados ou da Ordem dos Médicos, ou um seu delegado (arts. 177º/5 e 6, 118º/1 e 268º/1/c) CPP). Visa-se, deste
modo, tutelar não só o domicílio profissional como também o segredo profissional.
Em suma, constitui exceção ao regime geral da realização de buscas o regime das buscas domiciliárias, as quais podem
assumir-se como: (1) buscas domiciliárias em sentido próprio; (2) buscas noturnas; (3) buscas em domicílio
profissional.
d) Apreensões
As apreensões incidem sobre os instrumentos, produtos ou vantagens relacionadas com a prática de um facto ilícito
típico, e bem assim todos os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros
suscetíveis de servir a prova (art. 178º/1 CPP).
No que diz respeito à competência para as ordenar, autorizar ou realizar:

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 Autoridade judiciária » em regra, as apreensões são autorizadas ou validades por despacho de autoridade
judiciária – pelo Ministério Público na fase de inquérito, pelo juiz de instrução na fase de instrução e pelo juiz
de julgamento na fase de julgamento (art. 178º/2 CPP).
 Órgãos de polícia criminal » os órgãos de polícia criminal podem realizar apreensões no decurso de buscas ou
revistas, quando reunidos os seguintes pressupostos:
1. Fundado receio de desaparecimento, destruição, danificação, inutilização, ocultação ou transferência
dos instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos;
2. Objeto da apreensão proveniente da prática de um facto ilícito típico;
3. Suscetibilidade de o objeto ser declarado perdido a favor do Estado;
4. Urgência (periculum in mora).
As apreensões assim realizadas deverão ser validades pela autoridade judiciária competente no prazo de 72
horas (art. 178º/4, 5 e 6 CPP).
Quanto, nos casos normais, as apreensões são ordenadas pelo Ministério Público (fase de inquérito), os titulares dos
instrumentos, produtos, vantagens ou outros objetos apreendidos podem requerer ao juiz de instrução a modificação
ou revogação da medida (art. 178º/7 CPP). Mais uma vez, aqui se vê a função do juiz de instrução enquanto juiz das
liberdades na fase de inquérito: a sua intervenção é solicitada quando o visado pelo apreensão julga ter sido
injustamente violado o seu direito de propriedade.
Considerando o teor dos nºs 1 a 5 do art. 178º CPP, é de concluir que a apreensão não é apenas um meio de obtenção
de prova. Tem também em vista a conservação de instrumentos, produtos, vantagens ou outros objetos provenientes
da prática de um facto ilícito típico, cujo destino final é a perda a favor do Estado (arts. 109º e 111º CP). É exatamente
isto que resulta do art. 186º CPP, no qual se autonomizam, de um lado, a apreensão para efeito de prova e, do outro,
a apreensão para declaração dos objetos como perdidos a favor do Estado. Portanto, conclui-se destas disposições,
entre outras, que a apreensão de bens tem natureza híbrida:
Apreensão
Finalidade processual probatória Finalidade processual substantiva
» meio de obtenção e conservação de provas » garantia da execução de decisão judicial que venha a
declarar a perda dos objetos a favor do Estado
Logo que deixar de ser necessária a conservação dos
objetos para efeito de prova, ou logo que transitada a Não são restituídos aos respetivos titulares porque o
sentença, eles são restituídos aos respetivos titulares tribunal declara, na sentença, o preenchimento dos
requisitos para se considerarem perdidos a favor do
Estado [vide: arts. 109º e ss. CP]
Em face desta dupla finalidade que pode ser prosseguida com a apreensão, Maria João Antunes questiona a bondade,
e porventura a inconstitucionalidade, do regime legal. Entende que o regime legal aplicável a um e outro caso deveria
ser distinto, no plano dos pressupostos e da competência. Um aspeto que particularmente denota a necessidade de
uma diferenciação é a competência do Ministério Público para autorizar a apreensão para garantia da perda dos
objetos a favor do Estado. Estamos aqui perante hipóteses em que a apreensão é realizada, não com o intuito de obter
prova, mas com o objetivo de garantir que o titular do instrumento, produto, vantagem ou outro objeto não o oculta,
garantindo-se assim que ulteriormente tal instrumento, produto, vantagem ou objeto é perdido a favor do Estado,
por constituir ou perigo para a segurança ou por ser uma provento do crime. Ora, no momento da apreensão há já o
intuito de não restituir os bens ao respetivo titular, em violação (embora lícita) do direito de propriedade. Parece ser
de defender que em tais casos apenas o juiz pudesse autorizar a apreensão, de modo a haver um controlo judicial
prévio da licitude da violação de um direito.
Ainda em matéria de apreensão, o regime legal exposto conta com especificidades decorrentes da inviolabilidade da
correspondência imposta pela Constituição (art. 34º/1 e 4 CRP). Em virtude desta proibição, só é permitia a ingerência
das autoridades públicas na correspondência nos casos expressamente previstos na lei. Assim, só poderá ter lugar a
apreensão de correspondência quando reunidos os seguintes requisitos (arts. 179º/1 e 118º/1 CPP):
1. Correspondência expedida ou dirigida ao suspeito;
2. Crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos;
3. Grande interesse da diligência para a descoberta da verdade ou para a prova.
Ademais, a apreensão de correspondência nestes termos só pode ser autorizada pelo juiz, integrando esta matéria a
reserva de juiz, por contender com direitos, liberdades e garantias – direito ao sigilo da correspondência e direito à
intimidade e reserva da vida privada e familiar.

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Também a apreensão em escritório de advogado, em consultório médico ou em estabelecimento bancário goza de
disciplina específica, por estar envolvido o segredo profissional, médico e bancário – arts. 180º, 181º/c) e 268º CPP).
Por fim, é proibida, sob pena de nulidade, a apreensão e qualquer outra forma de controlo da correspondência entre
o arguido e o seu defensor, salvo se o juiz tiver fundadas razões para crer que aquela constitui objeto ou elemento de
crime (arts. 179º/2 e 118º/1 CPP).
e) Escutas telefónicas
As escutas telefónicas consistem na interceção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas. A sua
realização tem lugar quando reunidos os seguintes pressupostos (arts. 34º/4 CRP e 187º/1 CPP):
1. Realização das escutas na fase de inquérito;
2. Existência de razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova
seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter;
3. Suspeita de prática de um dos crimes taxativamente previstos na lei;
4. Realização das escutas apenas contra suspeitos, arguidos, pessoas que servem de intermediário ou vítimas do
crime (neste caso, sendo dado consentimento).
As escutas telefónicas só podem ser autorizadas por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante
requerimento do Ministério Público, pois este é o dominus da fase de inquérito (em que têm lugar as escutas) e aquele
assume a função de assegurar o respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (estando aqui em causa
uma ofensa ao direito à intimidade da vida privada e à inviolabilidade dos meios de comunicação) – arts. 187º/1 e
269º/1/e) CPP. A natureza marcadamente subsidiária e excecional deste meio de obtenção de prova, subordinado aos
“crimes do catálogo”, a competência reservada do juiz de instrução e a cominação de nulidade em caso de
inobservância dos seus requisitos e condições (arts. 190º e 118º/1 CPP) revelam ter sido intenção do legislador
harmonizar as finalidades de realização da justiça e descoberta da verdade material e proteção dos direitos
fundamentais. Note-se, aliás, que os direitos fundamentais aqui afetados não são apenas direitos do arguido, mas
também de terceiros que com ele comuniquem, que acabam atingidos por uma “investigação oculta”. Em virtude
deste caráter encoberto das escutas telefónicas, este meio de prova pode implicar uma autoincriminação inconsciente
que, como é evidente, coloca graves problemas ao nível do direito à não incriminação que cabe ao arguido.
O regime legal das escutas telefónicas estende-se às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio
técnico diferente do telefone, designadamente correio eletrónico ou interceção entre presentes (arts. 189º/1 e 190º
CPP). Atualmente, aquele regime é ainda extensível à obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular
ou registos de realização de conversações e comunicações (arts. 189º/2, 190º e 252º-A CPP).
O STJ fixou jurisprudência recentemente sobre a matéria que ora nos ocupa. No Ac. nº 3/2017 ficou estabelecido que
o arguido, após o encerramento do inquérito, tem o direito de examinar todo o conteúdo dos suportes técnicos
referentes a conversações ou comunicações escutadas e de obter, à sua custa, cópia das partes que pretenda
transcrever para juntar ao processo.
2.2 Meios de prova
O CPP prevê como meios de prova (arts. 128º a 170º CPP):
a) Prova testemunhal; f) Prova por reconhecimento;
b) Declarações do arguido; g) Reconstituição do facto;
c) Declarações do assistente; h) Prova pericial;
d) Declarações das partes civis; i) Prova documental.
e) Prova por acareação;
Veja-se com maior detalhe cada um destes meios de prova:
a) Prova testemunhal
A prova testemunhal tem como objeto os factos de que a testemunha tenha conhecimento direto e que constituam
objeto de prova. Não vale como prova testemunhal (arts. 124º, 128º, 129º e 130º CPP):
 Depoimento resultante do que se ouviu dizer a pessoas determinadas;
 Depoimento traduzido na reprodução de rumores públicos e convicções pessoais.
Além da prestação de depoimento sobre factos de que tenha tido conhecimento direto, a testemunha pode ainda ser
inquirida sobre factos relativos à personalidade e caráter do arguido, às suas condições pessoais e à sua conduta
anterior, nos termos previstos no nº 2 do art. 128º CPP.

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Diplomas especiais consagram os meios de proteção de testemunhas contra ameaça, pressão ou intimidação,
sobretudo quando o depoimento surge no contexto de processos por crimes de terrorismo, criminalidade violenta ou
altamente organizada.
A testemunha tem o dever de testemunhar e de responder com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas (arts.
91º/1, 3 e 4, 131º/1 e 132º/1 e 2 CPP), sob pena de incorrer em responsabilidade penal (art. 360º CPP). Não obstante,
já não se imporá este dever quando a testemunha alegar, como justificação para o silêncio, a possibilidade de se
autoincriminar, podendo, neste caso, pedir a sua constituição como arguido (art. 59º/2 CPP). Estamos aqui em face
do “privilégio da não autoincriminação”, que se distingue do “direito ao silêncio” do arguido por não pressupor um
arguido questionado sobre factos que lhe são imputados no contexto de um processo penal.
Poderão recusar o depoimento como testemunhas os descendentes, ascendentes, irmãos, afins até ao 2º grau,
adotantes, adotados, cônjuges ou quem conviver com o arguido em condições análogas às dos cônjuges,
relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou coabitação (art. 134º CPP). As relações íntimas, no passado
ou no presente, entre estas pessoas e o arguido justifica a possibilidade de recusa do depoimento: uma vez que sobre
a testemunha impende um dever de verdade e que o depoimento pode responsabilizar criminalmente o arguido, é
compreensível que o legislador tenha entendido não dever colocar-se esse peso sobre pessoas dele tão próximas.
Podem também escusar-se a depor os ministros de religião ou confissão religiosa, os advogados, os médicos, os
jornalistas, os membros de instituições de crédito e demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem
segredo, quando o depoimento envolva factos abrangidos por esse dever de segredo (art. 135º CPP). Porém, o tribunal
pode decidir a prestação de testemunho com quebra do segredo profissional, ressalvando o segredo religioso que é
inquebrável, sempre que esta quebra se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse
preponderante (art. 135º/3, 4 e 5 CPP).
Os arts. 136º e 137º CPP preveem especificidades atinentes ao segredo de funcionários e ao segredo de Estado.
b) Declarações do arguido
Relativamente às declarações do arguido importa distinguir os dois tipos de declarações que podem ter lugar:
Declarações do arguido
Relativas à sua identidade Relativas aos factos imputados
Incluem-se aqui os seguintes dados: » respeitantes aos factos que lhe são imputados e ao
 Nome; conteúdo que acerca deles prestar
 Filiação;
 Freguesia e conselho de naturalidade; O arguido pode assumir, com total liberdade, um de
 Data de nascimento; três comportamento (art. 140º/1 CPP):
 Estado civil; 1. Negar os factos;
 Profissão; 2. Confessar os factos;
 Residência;
 Local de trabalho.
3. Remeter-se aos silêncio.

Impende sobre o arguido o dever de responder e de Não há, portanto, qualquer dever de responder nem
responder com verdade (arts. 61º/3/b), 141º/3 e 342º sequer de responder com verdade !
CPP) sob pena de responsabilidade penal (art. 359º/2 CP)
Na versão original do CPP, o regime das declarações relativas à identidade do arguido valia também para as
declarações do arguido quando aos seus antecedentes criminais. A evolução legislativa culminou no sentido de o
arguido não ter o dever de responder e de responder com verdade a perguntas sobre esses antecedentes. Não
obstante, os antecedentes criminais continuam a ser considerados, quer mediante perguntas que continuam a poder
ser dirigidas ao arguido (art. 140º/2 CPP, na parte em que remete para o art. 128º CPP), quer por intermédio do
conteúdo do certificado do registo criminal do arguido. A eliminação do dever de responder a estas questões tem
como fundamento a possibilidade de as respostas dadas poderem agravar a responsabilidade penal do arguido ou
auxiliarem a determinação da sanção, o que constitui uma espécie de auto-incriminação (ex.: reincidência).
No que diz respeito às declarações do arguido quanto aos factos que lhe tenham sido imputados e às suas declarações
sobre eles, ficou exposto que podem ser três as atitudes assumidas:
 Negação dos factos: o arguido pode negar em todo ou em parte os factos que lhe são imputados, quando
perguntado sobre eles. Sendo as declarações falsas, o arguido não é responsabilizado criminalmente (art.
140º/3 CPP). Não significa isto, note-se, o reconhecimento de um “direito à mentira”, mas tão-só da efetivação
da inexigibilidade do cumprimento do dever de verdade por parte do arguido. Não impende sobre o arguido
qualquer dever de colaboração com a justiça penal, não devendo ele ser visto como “testemunha em causa

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própria”. Portanto, a lei não concede um direito à mentira, mas também não impõe ao arguido um dever de
verdade, de tal modo que, prestando declarações falsas, ele não pode ser punido. Não haveria verdadeira
liberdade de negar, confessar ou manter o silêncio se a prestação de afirmações falsas fosse punida, já que
isso implicaria a existência de uma pressão sobre o arguido.
 Confissão dos factos: o arguido pode confessar os factos que lhe são imputados quando inquirido sobre eles.
O CPP admite expressamente a confissão do arguido, ao invés do direito anterior que não lhe conferia relevo
se desacompanhada de outros elementos de prova. Os efeitos da confissão, em geral, e a sua ligação específica
ao princípio da livre apreciação da prova dependem, sobretudo, do caráter livre da confissão, da circunstância
da ser ou não integral e sem reservas e da gravidade do crime confessado (art. 344º CPP). Dos nºs 2, 3 e 4 do
art. 344º CPP decorre a seguinte diferença regimental:
 Confissão livre, integral e sem reservas quanto a crime punível com pena de prisão não superior a 5
anos » implica:
 Renúncia à produção de prova relativa aos factos imputados e consequente consideração
destes como provados;
 Passagem imediata às alegações orais;
 Redução da taxa de justiça em metade.
 Confissão não livre ou parcial ou com reservas ou quanto a crime punível com pena de prisão superior
a 5 anos » cabe ao tribunal decidir, de sua convicção, se deve ter lugar a produção de prova quanto
aos factos confessados.
Esta solução denota um tratamento diferenciado da pequena e média criminalidade, cujo objetivo é criar
espaços processuais de consenso e obviar aos inconvenientes, para o arguido, da realização da audiência de
julgamento (“cerimónia degradante” para alguns).
A confissão é uma conduta posterior ao facto que relevará enquanto fator de medida a pena, tendo em conta
o critério das exigências de prevenção (art. 71º/1 e 2/e) CPP).
 Silêncio: ao arguido é reconhecido o direito ao silêncio relativamente às perguntas que lhe forem feitas quanto
aos factos que lhe são imputados e às declarações que acerca deles prestar, bem como em relação aos seus
antecedentes criminais. Esta é uma das garantias de defesa que o processo penal assegura ao arguido presumido
inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (art. 32º/1 e 2 CRP). O exercício deste direito
pode ser total ou parcial, não podendo, em caso algum, ser valorado (arts. 343º/1/c) e 345º/1 CP). Significa isto
que o silêncio do arguido não pode ser considerado como indício ou presunção de culpa, nem tão pouco valorado
para determinação da medida concreta da pena ou para escolha da pena a aplicar. O silêncio só poderá ter algum
relevo ao nível da determinação da pena quando fiquem por esclarecer factos que, sendo conhecidos, poderiam
favorecer o arguido. Em todos os demais casos, não é legítimo fundar o agravamento da pena ou a aplicação de
pena mais grave no silêncio do arguido.
No que diz respeito à confissão, o CPP de 1929 não admitia a sua força probatória plena quando desacompanhada de
quaisquer outros elementos de prova; nestes casos, a confissão estaria sempre sujeita à valoração do juiz, nunca
bastando só de per si. Esta solução fundava-se em dois fundamentos, hoje ultrapassados:
Argumentos contra a admissibilidade da confissão Argumentos a favor da admissibilidade da confissão
 A admissibilidade da confissão poderia incentivar a  A exigência de valoração da confissão não impediu
sua obtenção mediante métodos proibidos de que, no passado, fossem utilizados métodos
obtenção de prova (ex.: tortura); proibidos de prova para obter a confissão
 A admissibilidade da confissão implicaria a ulteriormente sujeita a valoração;
desconsideração da problemática das  Os órgãos de polícia criminal atuam sob
“autoincriminações falsas”, muitas vezes ligadas a dependência funcional das autoridades judiciárias,
perturbações psíquicas. que asseguram a observância do princípio da
legalidade na obtenção da prova;
 As dúvidas relativas ao caráter livre da confissão,
nomeadamente quanto à imputabilidade plena do
arguido, sempre poderão ser avaliadas pelo juiz
autonomamente (art. 344º/3/b) CPP).
Em suma, entende-se estar hoje superada a problemática em torno da confissão, sendo esta admitida como meio de
prova, dependente ou não de valoração do juiz, consoante as suas caraterísticas concretas.

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c) Declarações do assistente ou das partes civis
As declarações do assistente ou das partes civis podem ser tomadas (art. 145º CPP):
 A requerimento dos próprios;
 A requerimento do arguido;
 Quando a autoridade judiciária entender ser conveniente.
Este meio de prova não se confunde com a prova testemunhal, pois trata-se agora de declarações de pessoas
diretamente interessadas – o assistente, que é, em princípio, o ofendido e as partes civis, que são, por regra, lesados
com o crime. Diferentemente, as testemunhas são “terceiros” que presenciaram diretamente o facto em juízo ou
outros factos que sirvam de prova.
Prova testemunhal Declarações do assistente ou partes civis
 A prestação de depoimento pelas testemunhas é  A declaração do assistente ou das partes civis não
precedida de juramento; é precedida de juramento;
 Só é admitido o depoimento direto – relativo a  A declaração do assistente ou das partes civis
factos de que a testemunha tomou conhecimento pode reportar-se a quaisquer factos que
pessoalmente; considerem relevantes para o caso;
 O depoimento de testemunhas só pode ser  A declaração do assistente ou das partes civis
requerido pela defesa ou pela acusação, e não pode ser tomada a requerimento dos próprios, do
pelas próprias testemunhas ou por vontade das arguido ou quando a autoridade judiciária
autoridades judiciárias; entender ser conveniente;
 As testemunhas são, por norma, terceiros não  O assistente e as partes civis não podem depor
envolvidos no caso em juízo. como testemunhas (art. 133º/1/b) e c) CPP).
Em suma, as declarações do assistente ou das partes civis podem ter um conteúdo mais lato do que os depoimentos
de testemunhas, em virtude do envolvimento dos declarantes no processo.
d) Prova por acareação
A “acareação” consiste na reunião entre vários intervenientes no processo que fizeram declarações divergentes ou
em sentidos opostos, colocando-as “frente a frente” com o intuito de as confrontar e obter a verdade. A acareação
pode realizar-se entre:
 Coarguidos;
 Arguido e assistente;
 Testemunhas;
 Testemunha(s), arguido e assistente.
Esta técnica será utilizada sempre que houver contradição entre as suas declarações e a diligência se afigurar útil à
descoberta da verdade (art. 146º/1 CPP).
A acareação pode também ser realizada a propósito da questão civil, envolvendo as partes civis (art. 146º/2 CPP).
e) Prova por reconhecimento
A prova por reconhecimento de pessoas traduz-se na solicitação à pessoa que deva fazer a identificação que descreva,
com indicação de todos os pormenores de que se recorda, a pessoa cujo reconhecimento é visado. De seguida,
questiona-se-lhe se já tinha visto essa pessoa antes e em que condições. Por último, interroga-se sobre outras
circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação. Daqui podem resultar duas hipóteses:
 Identificação cabal » a identificação realizada considera-se como meio de prova;
 Identificação não cabal » chamam-se duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis com a
pessoa a identificar, as quais são colocadas ao lado do suspeito; sendo depois chamada a pessoa que procede
ao reconhecimento, a quem se pergunta se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual (art.
147º/1 e 2 CPP).
A prova por reconhecimento pode também dizer respeito a objetos, aos qual se aplicam os mesmo trâmites,
devidamente adaptados (art. 148º CPP).
A lei admite ainda a realização de pluralidade de reconhecimento, sendo o reconhecimento efetuado por mais de uma
pessoa (art. 149º CPP).
Nos termos do nº 7 do art. 147º CPP, o reconhecimento que não obedecer às regras apontadas não tem valor como
meio de prova, independentemente da fase do processo em que ocorrer.
f) Reconstituição do facto
A reconstituição do facto visa determinar se um facto poderia ter ocorrido de certa forma.

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Consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e
na repetição do modo de realização do mesmo (art. 150º/1 CPP), com o intuito de averiguar se, efetivamente, tais
condições e modo de realização poderiam ter-se verificado e dado origem ao facto.
g) Prova pericial
A prova pericial tem lugar qual a perceção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos,
científicos ou artísticos (art. 151º CPP).
No nosso ordenamento jurídico é adotado o sistema da perícia oficial, e não o da perícia contraditória:
Perícia oficial VS Perícia contraditória
» o perito é nomeado pelo tribunal (pertencerá, em » são indicados peritos pela acusação e pela defesa, os
princípio, a instituto público), sendo apresentado quais apresentarão os respetivos relatórios (que
apenas um relatório pericial podem, ou não, ser convergentes nas conclusões)
Embora o sistema seja o da perícia oficial, o CPP faz alguma concessão à contrariedade, possibilitando ao Ministério
Público, ao arguido, ao assistente e às partes civis a designação de “consultor técnico” para assistir à realização da
perícia, o qua poderá, inclusivamente, propor a efetivação de determinadas diligências e formular observações e
objeções que ficam a constar do auto (art. 155º/1, 2 e 3 CPP).
A perícia é, em regra, realizada em estabelecimento, laboratório ou serviço oficial apropriado, sendo ordenada,
oficiosamente ou a requerimento, por despacho da autoridade judiciária competente. Tratando-se, todavia, de perícia
relativa a caraterísticas físicas ou psíquicas de pessoa que não haja prestado consentimento, a autorização ou
ordenação da perícia tem que ser dada por juiz (arts. 152º, 154º/1 e 3, 160º-A e 269º/1/a) CPP).
h) Prova documental
Para estes efeitos, entende-se por “documento” (art. 169º CPP):
“declaração, sinal ou notação corporizada em escrito ou qualquer outro meio técnico”.
A junção da prova documental é feita oficiosamente ou a requerimento, não podendo juntar-se documento que
contenha declaração anónima, salvo se ele for objeto ou elemento do crime (arts. 164º/2, 165º/2 e 327º/2 CPP).
3. Medidas cautelares e de polícia
As medidas cautelares e de polícia são medidas para as quais são competentes os órgãos de polícia criminal ou as
autoridades polícia criminal (art. 55º/2 CPP).
Órgãos de polícia criminal VS Autoridades de polícia criminal
» todas as entidades e agentes policiais a quem caiba » diretores, oficiais, inspetores e subinspetores e todos
levar a cabo quaisquer atos ordenados por autoridade os funcionários policiais a quem a lei reconhece essa
judiciária ou determinados pela lei qualificação
(ex.: PJ, GNR, PSP, SEF, ASAE, etc.) (ex.: inspetores da Polícia Judiciária)
Compete aos órgãos de polícia criminal, genericamente, e, em casos específicos, às autoridades de polícia criminal;
 Comunicação ao Ministério Público da notícia do crime: tendo conhecimento próprio ou recebendo denúncia
de crime, os órgãos de polícia criminal ficam obrigados a proceder à sua denúncia junto do Ministério Público,
mesmo que a notícia seja manifestamente infundada (arts. 241º, 248º/1 e 2 e 242º/1/a) CPP).
 Providências cautelares quanto aos meios de prova: mesmo antes de receberem ordem de autoridade
judiciária competente, os órgãos de polícia criminal devem proceder a investigações, praticando os atos
cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova (art. 249º/1 e 2 CPP), obstando-se assim
à perda irremediável de meios de prova.
 Identificação de suspeito: sempre que recaiam sobre pessoa encontrada em lugar público, aberto ao público
ou sujeito a vigilância policial fundadas suspeitas da prática de um crime, da pendência de processo de
extradição ou expulsão, da penetração ou permanência irregular em território nacional ou da existência de
mandato detenção contra ela, os órgãos de polícia criminal devem exigir a respetiva identificação (art. 250º
CPP). Não sendo feita identificação por um dos meios elencados nos nºs 3, 4 e 5 do art. 250º CPP, o suspeito
deve ser conduzido ao posto policial mais próximo, onde permanecerá o tempo estritamente indispensável à
identificação (nunca superior a 6 horas) (art. 250º/6 CPP).
 Pedido de informações: os órgãos de polícia criminal podem pedir a um suspeito (nos termos definidos no
ponto anterior) ou a quaisquer pessoas suscetíveis de fornecerem informações úteis, informações relativas a
um crime e, nomeadamente, à descoberta e conservação de meios de prova (art. 250º/8 CPP).

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Maria Paixão Direito Processual Penal
 Revista de suspeitos em caso de fuga iminente ou de detenção: os órgãos de polícia criminal podem revistar o
suspeito ou detido quando tiverem razões para crer que são ocultados objetos relacionados com o crime,
suscetíveis de servirem de prova, ou que de outra forma poderiam perder-se (art. 251º/1/a) CPP).
 Busca no local em que se encontram suspeitos: a busca ao local onde se encontram suspeitos da prática de um
crime pode ser realizada, salvo tratando-se de busca domiciliária, quando houver razões para crer que aí são
ocultados objetos relacionados com o crime, suscetíveis de servirem de prova, ou que de outra forma
poderiam perder-se (art. 251º/1/a) CPP).
 Revista de pessoas: podem os órgãos de polícia criminal proceder à revista de pessoas que pretendam assistir
ou que participem em qualquer ato processual ou que sejam conduzidos a posto policial na qualidade de
suspeitos, sempre que houver razões para crer que ocultam armas ou outros objetos com os quais possam
praticar atos de violência (art. 251º/1/b) CPP).
 Apreensão de correspondência: os órgãos de polícia criminal podem apreender correspondência, quando para
tal autorizados pelo juiz, devendo remetê-la intacta para este (arts. 252º/1, 268º/1/d) e 269º/1/d) CPP.
Poderão os órgãos de polícia criminal abrir a correspondência quando tal seja autorizado pelo juiz, por haver
razões para crer que as encomendas ou valores fechados podem conter informações úteis à investigação que
poderiam perder-se em caso de demora; caso em que os órgãos de polícia criminal poderão, inclusive, ordenar
a suspensão da remessa de qualquer correspondência na estação de correios (art. 252º/2 e 3 CPP).
3. Detenção
A detenção é um meio processual privativo da liberdade constitucionalmente previsto (art. 27º/3/a), b) e f) CRP). Tem
como escopo uma das seguintes finalidades:
 Apresentação do detido a julgamento sob forma sumária – arts. 254º/1/a) e 381º e ss. CPP;
 Apresentação do detido ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial – arts. 254º/1/a) e 2 e 141º;
 Apresentação do detido ao juiz para aplicação ou execução de uma medida de coação – arts. 254º/1/a) e 194º;
 Assegurar a presença imediata ou no mais curto prazo possível do detido perante autoridade judiciária em ato
processual – arts. 254º/1/b) e 116º/2 CPP.
!! Neste último caso, na privação da liberdade não pode exceder 24 horas (art. 254º/1/b) CPP); nos demais casos, a
apresentação do detido terá de ocorrer no prazo máximo de 48 horas (arts. 254º/1/a) CPP e 28º/1 CRP).
Quanto a este último prazo colocam-se algumas questões na doutrina e jurisprudência, nomeadamente em virtude
da diferente redação do preceito do CPP e da norma constitucional. Ora veja-se:
Art. 254º/1/a) CPP: “A detenção a que se referem os artigos seguintes é efectuada: / a) Para, no prazo máximo de quarenta e oito horas, o
detido ser apresentado a julgamento sob forma sumária ou ser presente ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para
aplicação ou execução de uma medida de coacção;”
Art. 28º/1 CRP: “A detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou
imposição de medida de coacção adequada (...)”
Em face destes preceitos, questiona-se: o prazo de 48 horas refere-se à apresentação do detido ao juiz, ou ao início
do interrogatório, ou ao término do interrogatório? Por outras palavras: há obrigação, dentro do prazo de 48 horas,
de o detido ser apresentado ao juiz, de ser iniciado o interrogatório ou de ser concluído o interrogatório? Com base
no preceito do CPP poderia sustentar-se que o prazo de 48 horas se deve contar até à apresentação ao juiz; já a norma
constitucional parece indicar que nesse prazo deve ser terminado o interrogatório, de modo a decidir-se pela
restituição do detido à liberdade ou imposição de medida de coação.
Ora, o Tribunal Constitucional (Acs. nº 565/2003, 135/2005 e 589/2006), confrontado com a questão, veio esclarecer
que o prazo máximo de 48 horas se refere à “prisão administrativa”, portanto, à privação da liberdade até
apresentação ao juiz. Basta, portanto, que o detido seja apresentado ao juiz dentro de 48 horas para que o prazo se
tenha por cumprido, ainda que apenas depois disso se inicie o interrogatório ou se aprecie a detenção. Sucede, porém,
que, nestes casos, o suspeito ou arguido continuará detido, além das 48 horas, à espera da conclusão do interrogatório
e decisão do juiz. Os autores criticam este entendimento, observando que, assim sendo, não há limite temporal para
uma privação da liberdade em relação à qual não há ainda garantia de que respeita o regime constitucional da restrição
do direito à liberdade (art. 18º CRP). Aliás, porque a privação da liberdade além das 48 horas (ainda) não corresponde
à aplicação de uma medida de coação legalmente prevista, nem se enquadra nos casos em que é admitida a detenção
(a detenção aqui já não assume uma das finalidades supramencionadas, estando o detido apenas a aguardar decisão
judicial), coloca-se a questão de saber se esta é, ou não, uma prisão legal, assente numa norma jurídica.
Uma outra questão com relevo nesta matéria é a de saber quem pode realizar a detenção. A este propósito importa
distinguir o tipo de detenção em causa:

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Detenção
Em flagrante delito Fora de flagrante delito
A detenção pode ser realizada por: A detenção pode ser realizada por:
 Qualquer autoridade judiciária;  Regra: mandato do juiz (arts. 257º/1, 255º/1/b)
 Qualquer entidade policial; CPP e 27º/3/f) CRP);
 Qualquer pessoa (até à chegada de uma  Exceções:
autoridade) » quando nenhuma daquelas  Ministério Público » nos casos em que é
autoridades estiver presente ou puder ser admissível prisão preventiva (art. 257º/1);
chamada em tempo útil (art. 255º CPP).  Autoridades de polícia criminal » quando
[NOTA: a detenção em flagrante delito só pode ter lugar reunidos os pressupostos do art. 257º/2.
quando o crime em causa for punível com pena de prisão.] [NOTA: a detenção fora de flagrante delito só pode ter lugar,
em todo o caso, nas situações previstas no art. 257º/1 CPP.]
Entende-se por “flagrante delito” (art. 256º CPP):
“situação em que o crime está a ser cometido ou acabou de o ser, bem como o caso em que o agente for, logo
após o crime, perseguido por qualquer pessoa ou encontrado com objetos ou sinais que mostrem claramente que
acabou de cometer crime ou nele participar”.
Como ficou exposto, havendo flagrante delito a detenção pode ser efetuada por qualquer pessoa, autoridade ou não
(nos casos referidos). Esta amplitude conta, todavia, com uma limitação uma exceção:
 Limitação: nos crimes semi-públicos, a detenção só se mantém quando, em ato a ela seguido, o titular do
direito de queixa o exercer (art. 255º/3 CPP e art. 113º CP);
 Exceção: nos crimes particulares, a detenção não pode ter lugar, procedendo-se apenas à identificação do
infrator (arts. 255º/4 e 259º CPP), pois o processo criminal dependerá, nestes casos, de acusação particular.
Fora de flagrante delito a detenção integra, em regra, a reserva de juiz, só podendo ser determinada por despacho do
juiz competente e nos seguintes casos:
 Existência de fundadas razões para considerar que o visado se não apresentaria voluntariamente perante
autoridade judiciária no prazo que lhe fosse fixado;
 Verificação de alguma das situações previstas no artigo 204º CPP, que apenas a detenção permita acautelar;
 Imprescindibilidade da detenção para a proteção da vítima.
Em todo o caso, verificando-se uma destas situações, o juiz pode ordenar a detenção. Depois a lei consagra casos
excecionais em que a detenção pode ser realizada pelo Ministério Público ou por autoridades de polícia criminal, sem
prévio mandato de juiz. Em tais hipóteses a detenção depende, não só da verificação de uma das situações elencadas,
mas ainda do preenchimento dos requisitos legais especiais:
 Detenção fora de flagrante delito pelo Ministério Público » requisito adicional:
1. Admissibilidade de prisão preventiva na situação em causa.
 Detenção fora de flagrante delito por autoridades de polícia criminal » requisitos adicionais:
1. Admissibilidade de prisão preventiva na situação em causa;
2. Receio fundado de fuga ou de continuação da atividade criminosa;
3. Verificação de perigo na demora, que obsta à espera pela intervenção da autoridade judiciária.
Como se compreende, há aqui uma graduação de excecionalidade da intervenção das diversas autoridades:
i. Juiz » pode ordenar a detenção, sem mais, sempre que verificada uma das hipóteses legais;
[Note-se que já a exigência da verificação de um dos casos previstos na lei é uma exigência adensada em relação à
detenção em flagrante delito]
ii. Ministério Público » pode ordenar a detenção desde que, além de verificada um das hipóteses legais, a prisão
preventiva seja admissível;
iii. Autoridades de polícia criminal » podem ordenar detenção desde que, além de verificada uma das hipóteses
legais e de ser admissível a prisão preventiva, haja receio de fuga ou continuação e perigo na demora.
A circunstância de a detenção consistir num “ato material de captura” que priva o detido do direito à liberdade (o qual
constitui um direito fundamental – art. 27º/1 CRP) justifica o regime legal exigente, determinado pela ponderação
entre esse direito fundamental e a finalidade de realização da justiça e descoberta da verdade material. Porque esta
preocupação se adensa nos casos de detenção fora de flagrante delito (não há aqui uma evidência expressiva da
prática de crime que justifique a detenção), compreende-se que, em regra, esta esteja submetida à reserva de juiz.
Aliás, esta integração na competência exclusiva do juiz compreende-se também face à irrelevância da gravidade do

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crime para a detenção e à circunstância de qualquer pessoa, independentemente de qualidade de suspeito ou arguido,
poder ser detido.
É o facto de a detenção consistir numa privação da liberdade que ainda não corresponde a qualquer medida de coação
ou a qualquer sanção penal que se justificam os seguintes aspetos regimentais:
 Exigência de apreciação/validação judicial da detenção no prazo de 48 horas;
 Exigências de conteúdo dos mandatos de detenção (art. 259º CPP);
 Dever de comunicação imediata da detença ao juiz ou ao Ministério Público, quando realizada por entidades
policiais (art. 259º CPP);
 Poder-dever de libertação da pessoa detida logo que se tornar manifesto o erro sobre a pessoa ou a não
verificação das hipóteses legais em que a detenção é admitida ou a desnecessidade da medida (art. 261º CPP);
 Providência de habeas corpus, através da qual se impugna uma detenção ilegal (arts. 31º CRP e 220º CPP).
5. Medidas de coação
A partir do momento em que o arguido adquire essa qualidade passa a recair sobre ele o dever de se sujeitar a medidas
de coação especificadas na lei e ordenadas por entidade competente (art. 61º/3/d) CPP).
A posição processual do arguido no que se refere à aplicação deste tipo de medidas é conformado por dois vetores:
Aplicação de medidas de coação ao arguido
Direito de defesa Presunção de inocência
» o arguido tem direito a defender-se (designadamente » o arguido é presumido inocente até ao trânsito em
a ser informado e ouvido) de quaisquer atos julgado da sentença de condenação, pelo que todas as
processuais que contra si sejam praticados, medidas que lhe sejam aplicadas até lá devem ser
inclusivamente os que decretem a aplicação de suportáveis se considerando a possibilidade de estarem
medidas de coação (art. 31º/1 CRP) a ser aplicadas a um inocente (art. 31º/2 CRP)
A aplicação de uma medida de coação haverá, portanto, de traduzir-se sempre numa restrição do direito à liberdade
que é tida como necessária para salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (arts. 27º/2 e
18º/2 CRP). Verifica-se, por isso, nesta sede, com particular acuidade, a incompatibilidade entre as finalidades do
processo penal: de um lado, o direito fundamental à liberdade e, do outro, o interesse na realização da justiça e na
descoberta da verdade material e o objetivo de reestabelecimento da paz jurídica. Será com base no direito de defesa
e no princípio da presunção de inocência que, em concreto, haverá de operar-se a concordância prática entre estas
finalidades. Desta ponderação resulta o regime legal, particularmente exigente quanto aos princípios e às condições
de aplicação das medidas de coação. O desrespeito por uns ou outas implica a revogação imediata da medida que
houver sido aplicada (art. 212º/1/a) CPP).
5.2 Princípios de aplicação
A aplicação de medidas de coação está sujeita a um conjunto de princípios:
a) Princípio da legalidade;
b) Princípio da necessidade;
c) Princípio da adequação;
d) Princípio da proporcionalidade;
e) Princípio da subsidiariedade da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação;
f) Princípio da precariedade.
Veja-se, com maior detalhe, em que consiste cada um deles:
a) Princípio da legalidade
Segundo o princípio da legalidade na aplicação das medidas de coação (arts. 61º/3/d), 191º/1 CPP e 18º/2 e 3 CRP):
“só podem ser aplicadas as medidas de coação previstas por lei”.
 Termo de identidade e residência – art. 196º CPP;
 Caução – art. 197º CPP;
 Obrigação de apresentação periódica – art. 198º CPP;
 Suspensão do exercício de profissão, função, atividade ou direitos – art. 199º CPP;
 Proibição e imposição de condutas – art. 200º CPP;
 Obrigação de permanência na habitação – art. 201º CPP;
 Prisão preventiva – art. 202º CPP.

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Maria Paixão Direito Processual Penal
Uma questão que pode ser suscitada a este respeito é a de saber se o termo de identidade e residência é, em bom
rigor, uma medida de coação. Esta questão coloca-se em virtude de algumas diferenças regimentais que se verificam
quanto ao termo de identidade e residência, relativamente às (demais) medidas de coação:
Termo de identidade e residência Medidas de coação
 Constitui um dever especial do arguido o de prestar  Consistem em medidas especiais aplicadas aos
termo de identidade e residência (art. 61º/3/c)); arguidos com o objetivo de assegurar o pacífico
 A sua imposição pode ser efetuada quer pelo juiz, decurso do processo criminal;
quer pelo Ministério Público, quer por órgãos de  Só podem ser aplicadas por despacho de juiz, a
polícia criminal (arts. 194º/1, 196º/1 e 268º/1/b)); requerimento do Ministério Público ou
 A decisão que o aplique não carece de oficiosamente (art. 194º/1 CPP);
fundamentação (art. 194º/6 CPP);  O despacho que as aplicar deve ser fundamentado,
 A sua aplicação não depende da conformação com contendo os elementos exigidos no art. 194º/6
o princípio da necessidade, sendo um efeito CPP, sob pena de nulidade;
automático da constituição de arguido (arts. 196º/1  A sua aplicação depende da ponderação do
e 204º CPP); princípio da necessidade (art. 193º/1 CPP);
 A sua extinção apenas se dá com a extinção da pena  A sua extinção dá-se com o trânsito em julgado da
(art. 214º/1/e) CPP). sentença condenatória (art. 214º/1/e) CPP).
Nestes termos, sobretudo em face da sua obrigatoriedade e automaticidade, parece ser de concluir que o termo de
identidade e residência é apenas uma medida de coação “em sentido impróprio”.
b) Princípio da necessidade
De acordo com o princípio da necessidade (art. 191º/1 e 193º/1 CPP):
“as medidas de coação só podem ser aplicadas em função de exigências processuais de natureza cautelar, e
quando a sua aplicação for comunitariamente suportável face à possibilidade de estar a ser aplicada a um inocente”.
Exigências processuais de natureza cautelar atendíveis (art. 204º CPP):
 Fuga ou perigo de fuga;
 Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução;
 Perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova;
 Perigo de continuação da atividade criminosa ou de perturbação grave da ordem de
tranquilidade públicas.
Estes requisitos gerais devem ser interpretados estritamente à luz das finalidades processuais de realização da justiça
e descoberta da verdade material e de restabelecimento da paz jurídica comunitária. Só assim se assegura que tais
exigências são comunitárias suportáveis face à possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente. Portanto, não
valem aqui quaisquer considerações relativas às finalidades preventivas das sanções penais, à culpa do agente ou à
proteção do ofendido – considerar estes aspetos seria pressupor, indiretamente, a autoria e culpa do arguido (que
deverá, ao invés, ser presumido inocente).
Exigências da punição Exigências processuais de natureza cautelar
» fatores que legitimam a condenação de alguém » circunstâncias que legitimam a aplicação de uma medida
declarado culpado em pena restritiva da liberdade a alguém que se presume inocente

É a circunstância de estar em causa um sujeito presumido inocente que exige a ponderação da necessidade da medida
de coação, face às exigências processuais de natureza cautelar que se fazem sentir em concreto.
c) Princípio da adequação
O princípio da adequação traduz-se na (art. 193º/1 CPP):
“exigência de que as medidas de coação a aplicar em concreto sejam adequadas às exigências cautelares
verificadas em concreto”.
Este princípio constitui, portanto, critério de escolha de determinada medida entre as legalmente previstas (arts.
193º/2, 201º/1 e 202º/1 CPP).
É também este princípio que fundamenta o “internamento preventivo”, o qual pode substituir a prisão preventiva
quando o arguido sofrer de anomalia psíquica (art. 202º/2 CPP).
d) Princípio da proporcionalidade
O princípio da proporcionalidade (em sentido estrito) implica que (art. 193º/1 CPP):
“as medidas de coação aplicadas devam ser proporcionais à gravidade do crime e às sanções que
previsivelmente venham a ser aplicadas”.

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Maria Paixão Direito Processual Penal
A exigência de proporcionalidade surge, na lei, especialmente reforçada a propósito das medidas de coação mais
gravosas – a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação (arts. 200º, 201º, 202º e 195º CPP). Para
estas medidas de coação é exigível a verificação de “fortes indícios” da prática de crime doloso, pois estando em causa
medidas tão gravosas, haverá de existir forte probabilidade de o visado ter sido autor do crime. Para as demais
medidas de coação o legislador prevê critérios diversos para aferir da proporcionalidade, que vão desde a exigência
da punibilidade do crime com pena de prisão, até à exigência de determinada duração mínima ou máxima para a pena
prisão suscetível de aplicação, tendo em conta o facto alegadamente praticado.
A exigência de proporcionalidade justifica ainda a norma segundo a qual a execução das medidas de coação não deve
prejudicar o exercício de direitos fundamentais que não forem incompatíveis com as exigências cautelares que o caso
requer (art. 193º/4 CPP).
Importa esclarecer que, como é sabido, os últimos três princípios expostos – necessidade, adequação e
proporcionalidade em sentido estrito – integram o princípio da proporcionalidade em sentido amplo. A sua
individualização nesta sede pretende evidenciar as exigências específicas que advêm de cada um:
Princípio da necessidade Princípio da adequação Princípio da proporcionalidade s.e.
Só podem ser aplicadas as medidas De entre as medidas de coação A medida de coação aplicada deve
de coação que sejam necessárias previstas na lei, deve ser aplicada, ter um grau de onerosidade para o
face às exigências processuais de em concreto, aquele que melhor se visa equivalente à gravidade do
natureza cautelar do caso e que, por adequar às exigências cautelares do facto alegadamente praticado e à
isso, seja comunitariamente caso, por não haver outra que probabilidade de o arguido ter sido
suportáveis em face da presunção conforme melhor essas exigências o seu autor
de inocência do arguido [Ex.: para um crime de injúria será adequada [Ex.: para um crime de devassa da vida
[Ex.: para um crime de furto simples será a medida de proibição do exercício de privada (punível com pena de prisão até 1
necessária (comunitariamente aceitável) a profissão (ex.: profissão de engenheiro)? ano) será proporcional a aplicação da prisão
aplicação da prisão preventiva? Há Não haverá uma medida de coação mais preventiva? Não será esta medida
exigências cautelares que justifiquem esta adequada ao tipo de crime e que acomoda excessivamente gravosa para o visado,
medida, sendo presumida a inocência?] melhor as circunstâncias concretas?] quando comparada com o facto em juízo?]

Portanto, da conjugação destes três critérios conclui-se se uma medida de coação é, ou não, proporcional (em sentido
lato); mas cada um deles exige ponderações específicas.
e) Princípio da subsidiariedade
O princípio da subsidiariedade reporta-se às medidas de coação mais gravosas determinando que (arts. 193º/2,
201º/1 e 202º/2 CPP):
“a obrigação de permanência na habitação e a prisão preventiva só podem ser aplicadas quando as outras
medidas de coação se revelarem, no caso, inadequadas ou insuficientes, dando-se prevalência à primeira”.
Expressa-se aqui o princípio político-criminal da privação da liberdade como ultima ratio da política criminal. Ademais,
deste princípio resulta ainda a preferência pela privação da liberdade em ambiente não prisional – a obrigação de
permanência na habitação deve ser aplicada preferencialmente em relação à prisão preventiva. Deste modo, a
exigência de subsidiariedade é acrescida relativamente à prisão preventiva (art. 193º/3 CPP). É, aliás, a própria Lei
Fundamental que concede natureza excecional à prisão preventiva – art. 28º/2 CRP. Daqui resulta uma vinculação
constitucional que se traduz na obrigação de só se aplicar a prisão preventiva depois de percorrido o caminho que
afasta todas as outras medidas de coação, por insuficiência ou inadequação. Assim sendo, importa afastar, por
completo, a leitura do art. 193º/3 CPP segundo a qual a obrigação de permanência na habitação é uma “medida de
coação de substituição” da prisão preventiva. Não é correto decidir aplicar a prisão preventiva (primeiro) e depois
“substituí-la” pela obrigação de permanência na habitação. Ao invés, só deverá chegar-se a aplicar a prisão preventiva
depois de já afastada a aplicação da obrigação de permanência na habitação.
f) Princípio da precariedade
Nos termos do princípio da precariedade (arts. 212º/1/b) e 3 CPP e 28º/2 CRP):
“a medida de coação é imediatamente revogada sempre que se verificar terem deixado de subsistir as circunstâncias
que justificaram a sua aplicação e substituída por outra menos grave ou por outra forma menos gravosa da sua
execução se se verificar uma atenuação das exigências cautelares que a determinaram”.
Portanto, princípio da precariedade consiste numa implicação lógica dos princípio da necessidade e da adequação:
Medida de coação
Deixa de ser necessária Deixa de ser adequada
(insubsistência as circunstâncias que justificaram a sua aplicação) (atenuação das exigências cautelares que a determinaram)

Revogação Substituição

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Maria Paixão Direito Processual Penal
A revogação e substituição têm lugar oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do arguido (art.
212º/4 CPP). Em qualquer caso, estes últimos têm direito a ser ouvidos, bem como a vítima.
A respeito das medidas de coação mais gravosas – a obrigação de permanência na habitação e a prisão preventiva – a
lei prevê, inclusivamente, um “reexame periódico” dos seus pressupostos em duas hipóteses (art. 213º/1 CPP):
 Reexame a cada três meses, a contar da data da aplicação da medida ou do último reexame;
 Reexame aquando da proferição de despacho de acusação ou de pronúncia ou de decisão que conheça do
objeto do processo e que não determine a extinção da medida.
Nestes casos o reexame é obrigatório, devendo o juiz a ele proceder independentemente de requerimento ou de
convicção pessoal acerca da alteração das circunstâncias.
Esta obrigação não obsta, sublinhe-se, à aplicação normal do regime do art. 212º CPP, pelo que, a todo o tempo, pode
o juiz, oficiosamente ou a requerimento, proceder à reavaliação, mesmo não se verificando nenhuma daquelas
situações. Aqui a reavaliação terá lugar, não por imposição legal, mas porque algum dos intervenientes suscitou a
questão por entender ter havido uma alteração das circunstâncias.
[Ex.: Em 5 de janeiro de 2018, A é colocado em prisão preventiva. O juiz tem obrigatoriamente que reexaminar os pressupostos
de aplicação desta medida de coação a 5 de abril de 2018. Nada obsta, porém, que a 20 de fevereiro de 2018 o Ministério Público
(ou o arguido, ou até o juiz ex officio) requeira a reavaliação, por considerar que a prisão preventiva deixou, entretanto, de ser a
medida adequada. Havendo reavaliação nesta data e não sendo o pedido atendido pelo juiz, haverá um reexame obrigatório a 20
de junho de 2018. Novamente sem prejuízo da realização de reavaliação, a requerimento ou oficiosamente, antes dessa data.]
Sublinhe-se que a jurisprudência maioritária tem entendido que o reexame obrigatório dos pressupostos da prisão
preventiva e da obrigação de permanência na habitação não tem que conduzir necessariamente a uma alteração da
medida ou à revogação. Não havendo alteração das circunstâncias, a medida aplicada mantém-se. A decisão que aplica
a medida é intocável ou imodificável até que se verifique uma alteração das circunstâncias que a fundamentaram. O
reexame imposto pelo art. 213º CPP é apenas mais uma forma de garantir que a privação da liberdade em causa é
comunitariamente suportável face à possibilidade de estar a ser aplicada a um inocente.
Do princípio da precariedade, em articulação com o princípio da proporcionalidade, resulta ainda a exigência de
estabelecimento de prazos de duração máxima para as medidas de coação, findo o qual estas se extinguem. Tal prazo
é, em regra, estabelecido atendendo à fase processual em causa (arts. 215º/1 e 218º/1 CPP). Quanto à prisão
preventiva, à obrigação de permanência na habitação e à imposição e proibição de condutas vale ainda o critério da
natureza do crime e complexidade do procedimento (arts. 215º e 218º/2 e CPP e 28º/4 CRP). O nº 6 do art. 215º CPP
prevê ainda o aumento da duração máxima da prisão preventiva quando o arguido tenha sido condenado em 1ª
instância e a sentença tenha vindo a ser confirmada em sede de recurso. Maria João Antunes questiona, todavia, a
bondade desta solução, designadamente face ao princípio da presunção de inocência.
Por fim, importa referir que do princípio da precariedade resulta ainda a extinção imediata das medidas de coação
quando são prolatadas decisões processuais que infirmem a existência de exigências processuais de natureza cautelar.
São exemplos paradigmáticos deste tipo de decisões:
 Despacho de arquivamento do inquérito;
 Despacho de não pronúncia;
 Decisão de rejeição da acusação (art. 311º/2/a) CPP);
 Sentença de absolvição (mesmo sendo interposto recurso);
 Sentença condenatória transitada em julgado.
5.2 Condições de aplicação
A aplicação de medidas de coação está depende das seguintes condições:
a) Condição da constituição prévia da pessoa visada como arguido;
b) Condição da audição prévia do arguido;
c) Condição de aplicação da medida por um juiz;
d) Condição de aplicação da medida por despacho fundamentado.
Sobre estas condições impõe-se considerações particulares:
a) Condição da constituição prévia da pessoa visada como arguido
Só pode ser objeto de medidas de coação quem tenha sido previamente constituído arguido (arts. 58º/1/b) e 192º/1
CPP). Visa-se, assim, garantir que assistem ao visado pelo medida de coação os direitos e deveres processuais que a
assunção daquela qualidade implica e que são inerentes ao estatuto de sujeito processual (arts. 57º/3 e 58º/2 e 4).

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Maria Paixão Direito Processual Penal
b) Condição de audição prévia do arguido
De entre os direitos processuais que são reconhecidos ao arguido assume especial relevo o direito a ser ouvido pelo
tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afete (art.
61º/1/b) CPP). Deste modo, a aplicação de medida de coação haverá de ser necessariamente precedida de audição do
arguido, ressalvados os casos de impossibilidade (arts. 194º/4, 209º e 254º/1/a) CPP). A medida de coação aplicada
sem o respeito por esta exigência deverá ser imediatamente revogada (art. 212º/1/a) CPP).
A esta audição aplica-se o disposto no art. 141º/4 CPP, devendo o arguido ser informado dos factos que lhe são
imputados e demais circunstâncias relevantes. Garante-se, assim, que o arguido poderá contraditar efetivamente tais
factos e elementos, em exercício efetivo do seu direito de defesa (art. 194º/7 CPP). Refira-se que a remissão para este
art. 141º/4 CPP não implica que a audição que ora nos ocupa se confunda com aquela que tem lugar no primeiro
interrogatório judicial do arguido detido; significa, pura e simplesmente, que se aplicam as mesmas exigências.
c) Condição de aplicação da medida por um juiz
A aplicação de medidas de coação trata-se de um ato de competência reservada do juiz – do juiz de instrução, no
inquérito e na instrução, e do juiz de julgamento, no julgamento (arts. 194º/1 e 268º/1/b) CPP). Consoante a fase do
processo em causa, o juiz intervirá (art. 194º/1 CPP):
 Apenas a requerimento do Ministério Público » fase de inquérito;
[esta é a solução mais consentânea com a qualidade de dominus da fase de inquérito reconhecida ao MP]
 A requerimento do Ministério Público ou oficiosamente » fase de instrução e fase de julgamento.
O art. 268º/2 CPP dispõe que os atos da competência do juiz de instrução podem ainda ser praticados por
requerimento do assistente ou de autoridade de polícia criminal em caso de urgência ou de perigo na demora. Os
autores divergem quanto à aplicação desse preceito à competência para decretar medidas de coação:
a) Pinto Albuquerque: o nº 2 do art. 268º CPP reme integralmente para o nº 1 dessa norma, não fazendo qualquer
restrição, pelo que este regime também será aplicável à determinação de medidas de coação (art. 268º/1/b));
b) Maria João Antunes: o nº 2 do art. 268º CPP é uma norma especial, referente apenas à fase de inquérito, que,
por isso, não deve ser aplicada nesta sede, já que isso implicaria uma tratamento diferenciado da questão
consoante a fase do processo, a desconsideração da repartição de funções entre magistraturas imposta pelo
princípio da acusação e a violação do disposto no art. 194º/1 CPP.
Na medida em que cabe ao Ministério Público abrir, dirigir e encerrar o inquérito, intervindo o juiz de instrução como
guardião dos direitos fundamentais dos cidadãos (“juiz das liberdades”), foi controversa na doutrina a questão de
saber se este estaria, ou não, obrigado a respeitar o pedido feito pelo primeiro. Noutros termos: questionava-se se o
juiz de instrução, na fase de inquérito, só poderia aplicar a exata medida de coação requerida pelo Ministério Público,
ou se poderia, em alternativa, aplicar outra medida com base no requerimento submetido. Esta matéria foi objeto de
alterações legislativas recentes:
1. Versão original do CPP » a lei não dava resposta a esta questão.
2. Revisão do CPP de 2007 » o art. 194º CPP foi alterado, tendo passado a prever-se que durante o inquérito o
juiz de instrução podia aplicar medida de coação diferente da requerida do MP, desde que não fosse uma
medida de coação mais grave que a requerida.
3. Alteração introduzida pela Lei nº 20/2013 » o art. 194º CPP sofreu nova alteração, estabelecendo agora a
seguinte distinção:
 Medida de coação aplicada com fundamento nas alíneas a) e c) do art. 204º CPP » o juiz pode, durante
o inquérito, aplicar medida de coação diversa (menos grave ou mais grave) da requerida pelo MP.
[art. 204º CPP: “a) Fuga ou perigo de fuga; / c) Perigo (...) de que este continue a actividade criminosa ou perturbe
gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.”]
 Medida de coação aplicada com fundamento na alínea b) do art. 204º CPP » o juiz pode, durante o
inquérito, aplicar medida de coação diversa da requerida pelo MP, desde que menos grave que esta.
[art. 204º CPP: “b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo
para a aquisição, conservação ou veracidade da prova;”]
Maria João Antunes critica veemente esta solução legal, defendo já anteriormente à Revisão de 2007 que o juiz de
instrução estaria obrigado a respeitar o pedido do Ministério Público, apenas lhe cabendo decidir aplicar ou não aplicar
a medida requerida (não podendo aplicar uma outra). Esta conceção assenta nos seguintes fundamentos:
 O juiz de instrução intervém na fase de inquérito como “juiz das liberdades”, e não como “juiz de investigação”,
não lhe cabendo tomar decisões substantivas mas tão-só controlar a legalidade dos atos praticados pelo
Ministério Público;

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Maria Paixão Direito Processual Penal
 O Ministério Público é o dominus da fase de inquérito, sendo, por isso, a entidade competente para praticar
os atos processuais necessários nesta fase, cabendo ao juiz de instrução, pura e simplesmente, ou autorizar e
ordenar esses atos (art. 269º CPP), ou praticar atos a requerimento do Ministério Público (art. 268º/2 CPP);
 O Ministério Público, como dominus do inquérito, é a única entidade em condições de avaliar as exigências
processuais de natureza cautelar apresentadas no caso e de conhecer a gravidade do crime imputado e as
sanções que previsivelmente se venham a aplicar;
 A aplicação de uma medida de coação diferente da requerida pode pôr em causa o desenrolar do plano de
investigação, traçado, logicamente, por quem dirige a investigação (Ministério Público).
[Ex.: numa investigação relativa ao crime de tráfico de estupefacientes, o MP requerido a aplicação da medida de
obrigação de apresentação periódica, com o intuito de continuar a vigiar os suspeitos e, assim, identificar os demais
envolvidos numa eventual rede de tráfico, esta finalidade sairá por completo gorada se o juiz aplicar prisão preventiva.]
Da Exposição de motivos da Proposta de lei que veio a dar origem ao atual regime legal constam outros tantos motivos,
em sentido inverso, justificadores da faculdade concedida ao juiz de aplicar medida diferente da requerida:
 A discricionariedade do juiz de instrução não deve ficar afastada quando a medida de coação é aplicada em
virtude de fuga, perigo de fuga, perigo de continuação da atividade criminosa ou perturbação da ordem e
tranquilidade públicas (alíneas a) e c) do art. 204º CPP) porque ao Ministério Público não é concedida uma
posição de monopólio quanto à ponderação desses valores e necessidade da sua proteção;
 A possibilidade de o juiz aplicar medida de coação diferente da requerida, desde que menos grave, quando a
aplicação da medida de coação decorre do perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do
processo ou do perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova (alínea b) do art. 204º CPP),
respeita o facto de o Ministério Público ser a autoridade judiciária mais bem posicionada para avaliar a
repercussão das medidas de coação nessas situações e, simultaneamente, não coarcta o juiz na sua atuação
de defesa dos direitos fundamentais;
 O juiz de instrução só exerce efetivamente o seu papel de garante dos direitos liberdades e garantias se lhe
for concedida uma margem para decidir, não se limitando a sua atuação a autorizar ou não autorizar;
 A natureza pública das finalidades visadas pelas medidas de coação justifica que o juiz, como garante dos
direitos fundamentais dos cidadãos, não esteja limitado na sua atuação.
Maria João Antunes entende que estes fundamentos em nada contribuem para justificar a alteração legislativa,
apontando uma desconsideração pela natureza estritamente cautelar destas medidas, pelos princípios gerais vigentes
nesta matéria e pelo modelo de repartição de funções entre Ministério Público e juiz de instrução. Acrescenta ainda
dois pontos fundamentais:
 Não há justificação, legítima, para a distinção entre os casos das alíneas a) e c) e a alínea b) do art. 204º CPP –
a posição do Ministério Público enquanto dominus da fase de inquérito deveria ser reconhecida em qualquer
hipótese, e não apenas nas situações referidas na alínea d) do art. 204º CPP (sendo que mesmo quanto a estas,
essa posição não é completamente respeitada, já que o juiz pode aplicar medida diversa menos grave);
 Fica por resolver a questão de saber qual o regime aplicável quando o requerimento do Ministério Público se
funde na alínea b) do art. 204º CPP e em uma das outras alíneas-
Em suma, apesar da resolução da questão pelo legislador, esta é matéria que continua ainda a suscitar polémica.
d) Condição de aplicação da medida por despacho fundamentado
O despacho de aplicação de medida de coação é obrigatoriamente notificado ao arguido, dele devendo constar a
advertência das consequências do incumprimento das obrigações impostas, bem como a motivação da decisão (arts.
27º/4 e 205º CRP e 97º/6 e 164º/6 e 9 CPP).
A motivação da decisão é condição do exercício do direito de defesa daquele que é sujeito à medida de coação. Com
efeito, apenas tendo conhecimento de todos os factos que lhe são imputados bem como das demais circunstâncias
que concorreram para a decisão, poderá o arguido defender-se efetivamente.
Tratando-se das medidas de proibição e imposição de condutas, de obrigação de permanência na habitação e de prisão
preventiva, deve constar da motivação a enunciação dos elementos do processo que permitam concluir pela existência
de “fortes indícios da prática de crime doloso”.
Importa, a este respeito, salientar a diferença entre os “fortes indícios” exigidos para a aplicação destas medidas de
coação e os “indícios suficientes” determinantes para a acusação do Ministério Público, no término da fase de
inquérito, e para a pronúncia do juiz de instrução, no encerramento da fase de instrução:

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Maria Paixão Direito Processual Penal
“Fortes indícios” “Indícios suficientes”
» juízo positivo no sentido de que, em face dos indícios já » juízo positivo no sentido de que, em face dos indícios já
existentes, é mais provável a acusação do que o obtidos, é mais provável a condenação do arguido em sede
arquivamento, ou de que é mais provável a pronúncia de julgamento do que a sua absolvição
do que a não pronúncia
Pressuposto da dedução de acusação ou da proferição
Requisito para aplicação de medidas de coação de despacho de pronúncia (arts. 283º/1 e 308º/1 CPP)
Quando é decidida a aplicação de mediação de coação podem ainda não ser suscetíveis de mobilização os mesmos
elementos probatórios ou esclarecimento que já estarão disponíveis quando o Ministério Público e o juiz decidem, ou
não, pela acusação ou pela pronúncia. Assim, o que seria insuficiente para a acusação ou para a pronúncia poderá ser
bastante para a aplicação de medidas de coação.
Relativamente à prisão preventiva e à obrigação de permanência na habitação, deve ainda resultar da motivação da
decisão judicial que as demais medidas de coação se revelam insuficientes ou inadequadas do ponto de vista das
exigências processuais de natureza cautelar (arts. 193º/2 e 3, 201º/1 e 202º/1 CPP).
O dever de motivação estende-se ainda às decisões de manutenção, substituição ou revogação das medidas de coação
(arts. 97º/5, 212º e 213º CPP).
5.3 Modos de impugnação; o recurso e a providência de habeas corpus
Impugnação de decisão que aplica medida de coação
Recurso para a Relação Providência habeas corpus
Utilizável para impugnação da decisão que aplique Específica para impugnação da decisão que aplique a
qualquer medida de coação prisão preventiva
A decisão que aplicar, substituir ou mantiver medida de coação é sempre impugnável mediante recurso para o tribunal
da Relação, a julgar no prazo máximo de 30 dias a contar do momento em que os autos forem recebidos. Podem
proceder à impugnação o arguido e o Ministério Público (arts. 219º/1 e 427º CPP).
Entende-se que também a decisão que não aplicar, revogar ou declarar extinta medida de coação será suscetível de
impugnação nestes termos, em virtude da redação do art. 219º CPP, do princípio geral da recorribilidade das decisões
(art. 399º CPP) e jurisprudência fixada pelo STJ (Ac. nº 16/2014). No entanto, não vale para estes casos o prazo de 30
dias. No fundo, do art. 219º/1 CPP resulta apenas que nos casos aí previstos o recurso deve ser julgado dentro de 30
dias; o que não obsta à recorribilidade das demais decisões, nos termos gerais.
O recurso que seja interposto do despacho de reexame que mantenha a obrigação de permanência na habitação ou a
prisão preventiva não determina a inutilidade superveniente do que tenha sido interposto de decisão prévia que tenha
aplicado ou mantido a medida em causa (art. 213º/5 CPP). Portanto, poderá sempre recorrer-se de nova decisão de
reexame, mas sem prejuízo do recurso já decidido anteriormente acerca de um reexame prévio. O mesmo não se dirá
quanto às demais medidas de coação: o recurso da decisão que aplique ou mantenha medida de coação afeta o
recurso que anteriormente já tenha sido decidido sobre a mesma questão.
Além do recurso para a Relação, a lei prevê outro expediente para impugnação da decisão relativa à prisão preventiva:
a providência de habeas corpus. Esta é uma providência que vale, em geral, para casos de abuso de poder por virtude
de prisão ou detenção ilegal (arts. 31º/1 CRP e 220º e 222º CPP). Nos termos do nº 2 do art. 219º CPP, não existe
qualquer relação de litispendência ou de caso julgado entre o recurso que seja interposto e a providência de habeas
corpus. Em face desta disposição, autores há que defendem o caráter excecional da providência de habeas corpus,
não podendo recorrer-se a ela se houver outro meio de reação ou se a decisão for suscetível de recurso ordinário.
Importa, porém, sublinhar, que uma e outra figura não se confundem:
Habeas corpus Recurso da decisão
 Pode ser requerida por qualquer cidadão no gozo  Só pode ser interposto pelo arguido e pelo
dos seus direitos políticos – não se colocam aqui Ministério Público – impõe-se a observância dos
as exigências advenientes da legitimidade critérios da legitimidade processual e do interesse
processual e do interesse em agir; em agir estabelecidos na lei;
 É decidida no prazo de 8 dias (arts. 31º/2 e 3 CRP  É decidido no prazo de 30 dias nos casos do art.
e 222º/2 e 223º/2 CPP); 219º/1 CPP e dentro dos prazos gerais do
 Constitui um meio especial de reação contra a processo penal nos demais casos;
prisão ilegal, nos termos em que esta ilegalidade é  Pode reportar-se a decisão que aplique qualquer
definida no art. 222º/3 CPP. medida de coação;

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Maria Paixão Direito Processual Penal
6. Medidas de garantia patrimonial
6.1 Noção
Medidas de garantia patrimonial Medidas de coação
» medidas aplicadas ao arguido para acautelar o fundado » medidas aplicadas ao arguido para acautelar a fuga ou
receio de que faltem ou diminuam substancialmente as perigo de fuga, o perigo de perturbação do decurso do
garantias do pagamento da pena pecuniária, das custas do inquérito ou da instrução, nomeadamente o perigo para a
processo, de qualquer outra dívida para com o Estado aquisição, conservação ou veracidade da prova, e o perigo de
relacionada com o crime, de indemnização ou outras continuação da atividade criminosa ou de perturbação grave
obrigações civis derivadas do crime (art. 277º/1 e 3 CPP) da ordem e tranquilidade públicas (art. 204º/1 CPP)
Justificam-se com base em exigências processuais Justificam-se com base em exigências processuais
cautelares com natureza económica cautelares com natureza material
São duas as medidas de garantia patrimonial previstas no nosso ordenamento jurídico:
Medidas de garantia patrimonial
Caução económica Arresto preventivo
Autónomo Subsidiário
A caução económica traduz-se na medida pela qual se dá a (art. 227º CPP):
“imposição do pagamento de uma quantia pecuniária com o objetivo de acautelar exigências processuais de
natureza cautelar verificadas em concreto quanto ao pagamento de determinados valores pecuniários”.
Importa sublinhar que a caução económica, enquanto medida de garantia patrimonial, não se confunde com a caução,
como medida de coação:
Caução económica Caução
» medida de garantia patrimonial que visa garantir o » medida de coação que procura assegurar o decurso normal
pagamento de quantias pecuniárias a que o arguido está e pacífico do processo, desincentivando o arguido a praticar
obrigado em virtude do processo penal atos que poderiam dificultar a descoberta da verdade

Já o arresto preventivo consiste na (art. 228º CPP):


“apreensão judicial de bens determinados com o objetivo de acautelar exigências processuais de natureza
cautelar que se verifiquem em concreto quanto ao pagamento de determinados valores pecuniários”.
O arresto preventivo poderá ser autónomo, quando decretado independentemente de qualquer outra medida, ou
subsidiário da caução económica, só tendo lugar, neste caso, quando não seja prestada caução.
Também aqui importa distinguir o arresto preventivo de uma outra figura homónima: o arresto repressivo.
Arresto preventivo Arresto repressivo
» medida de garantia patrimonial que visa garantir o » efeito da declaração de contumácia cujo objetivo é
pagamento de quantias pecuniárias a que o arguido está desmotivar o arguido a subtrair-se dolosamente à
obrigado em virtude do processo penal administração da justiça penal (art. 337º/3 e 4 CPP)
Tanto a caução económica como o arresto preventivo têm a sua aplicação depende da verificação de uma das
seguintes hipóteses (art. 227º/1 e 3 CPP).
 Fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias do pagamento da pena pecuniária,
das custas do processo ou de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime;
 Fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias da perda dos instrumentos,
produtos e vantagens de facto ilícito típico ou do pagamento do valor a estes correspondente;
 Fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento da indemnização
ou de outras obrigações civis derivadas do crime.
Como se compreende, estas medidas servem a finalidade processual penal de realização da justiça, a qual deverá
sempre ser harmonizada com a tutela da liberdade de disposição patrimonial de quem é afetado por tais medidas e
com a possibilidade de estas estarem a ser aplicadas a quem é inocente.
6.2 Regime
O regime das medidas de garantia patrimonial tem muito em comum com o das medidas de coação, não obstante as
exigências processuais de natureza cautelar que as justificam terem natureza distinta.
Desde logo, as medidas de garantia patrimonial também estão sujeitas aos seguintes princípios:
 Princípio da legalidade: a liberdade das pessoas só pode ser limitada pelas medidas de garantia patrimonial
previstas na lei – a caução económica e o arresto preventivo (arts. 191º/1, 227º e 228º CPP);
 Princípio da necessidade: as medidas de garantia patrimonial aplicam-se em função de exigências processuais
de natureza cautelar (arts. 191º/1, 193º/1 e 227º/1, 3 e 5 CPP);

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Maria Paixão Direito Processual Penal
 Princípio da adequação: a medida de garantia patrimonial aplicada em concreto deve ser adequada às
exigências cautelares que o caso requerer (art. 193º/1 CPP);
 Princípio da proporcionalidade: a medida de garantia patrimonial deve ser proporcional à gravidade do crime,
à sanção pecuniária que previsivelmente venha a ser aplicada, às custas do processo que previsivelmente
venham a ser impostas, ao montante da dívida para com o Estado, à perda dos instrumentos, produtos e
vantagens do facto ilícito típico ou ao valor a estes correspondente, bem como à indemnização que
previsivelmente venha a ser fixada e às outras obrigações civis derivadas do crime que previsivelmente
venham a ser reconhecidas (arts. 193º/1 e 227º/1 e 3 CPP);
 Princípio da subsidiariedade do arresto preventivo: o arresto preventivo, por ser a medida de garantia
patrimonial mais gravosa, só se aplica quando a caução económica não é prestada ou quando for inadequada
ou insuficiente; ademais, o arresto preventivo é revogado a todo o tempo em que o arguido ou o civilmente
responsável prestem caução económica (art. 228º/1 e 5 CPP).
Além desta similitude ao nível dos princípios, também quanto às condições de aplicação as medidas de garantia
patrimonial apresentam um regime idêntico ao das medidas de coação. São condições de aplicação das medidas de
garantia patrimonial:
 Constituição prévia de arguido » em princípio, a caução económica e o arresto preventivo só podem ser
aplicados a quem tenha sido previamente constituído arguido (arts. 58º/1/b) e 192º/2 CPP). A lei prevê,
todavia, três ressalvas a esta regra:
 Visado apenas civilmente responsável » se o visado pela medida é tão-só responsável pelo pagamento
de indemnização cível, então não pode, logicamente, ser exigida a sua constituição como arguido (arts.
71º, 73º/1 e 227º/3 CPP);
 Risco sério para o fim ou eficácia do arresto » havendo risco para a finalidade ou eficácia prática do
arresto, a constituição do visado como arguido pode ocorrer posteriormente à sua aplicação, por
despacho fundamentado do juiz, desde que no prazo máximo de 72 horas (art. 192º/2, 3 e 4 CPP);
 Impossibilidade de constituição prévia de arguido no caso de arresto preventivo » a constituição do
visado como arguido antes da aplicação do arresto pode também ser afastada, por despacho
fundamentado do juiz, quando reunidos os seguintes pressupostos (arts. 58º/1/b) e 192º/2 e 5 CPP):
1. Visado está ausente em parte incerta;
2. Existência de indícios objetivos de dissipação do respetivo património;
3. Fundada suspeita da prática do crime.
[NOTA: as duas últimas hipóteses referidas têm como campo de aplicação unicamente o arresto preventivo (e já não a
caução económica) e foram introduzidas no nosso ordenamento jurídico com as alterações legislativas introduzidas pela
Lei nº 30/2017. Com estas alterações deixou de ser condição de aplicação do arresto preventivo que o visado seja arguido
(ou responsável civil numa ação penal), o que põe em causa a natureza processual penal deste expediente.]
 Audição prévia do visado » em respeito pelo princípio do contraditório (art. 32º/5 CRP in fine) e pelo direito a
ser ouvido (art. 61º/1/b) CPP), o visado pela medida de garantia patrimonial tem sempre direito a ser ouvido
antes da sua sujeição a essa medida, sendo-lhe, deste modo, facultada a possibilidade de se defender. Ficam
apenas ressalvados os casos de impossibilidade devidamente fundamentada (art. 194º/4 CPP).
Refira-se que esta exigência tem também aplicação quanto ao arresto preventivo, apesar da remissão genérica
do art. 128º CPP para a lei de processo civil. De facto, a lei processual civil prevê a possibilidade de o arresto
ser realizado sem audição prévia do réu (art. 393º/1 CPC), mas deve entender-se que a natureza processual
penal do arresto preventivo implica a sua sujeição aos princípios gerais do processo penal, ainda que lhe seja
aplicável a regulamentação cível. A isto acresce, aliás, que aceitar a aplicação do arresto sem prévia audição
do arguido dificilmente seria compatível com a presunção de inocência e, consequentemente, com as
garantias de defesa constitucionalmente asseguradas. A única exceção que pode equacionar-se a este respeito
é a de o arresto preventivo ser requerido em relação a um responsável meramente civil (que não é arguido no
processo penal, mas cuja obrigação indemnizatória decorre de um crime em juízo – art. 129º CPP), caso em
que a aplicação integrar da lei cível já poderá ter razão de ser (assim: Ac. TC nº 724/2014).
 Aplicação da medida por um juiz » uma vez que a aplicação de medidas de garantia patrimonial influi sobre os
direitos fundamentais do visado (designadamente, o direito de propriedade), esta é matéria integrada na
reserva de juiz – juiz de instrução, nas fases de inquérito e de instrução, e juiz de julgamento, na fase de
julgamento (arts. 194º/1 e 268º/1/b) CPP). Isto sem prejuízo de, na fase de inquérito, a intervenção do juiz de

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instrução ter de ser requerida pelo Ministério Público, enquanto dominus desta fase processual (art. 227º/1 e
4 CPP). Admite-se ainda que a aplicação destas medidas pelo juiz seja efetuada a requerimento do lesado,
quando o receio se refere à perda da garantia patrimonial da indemnização civil (art. 227º/1 e 3 CPP). Nas
fases de instrução ou de julgamento as medidas de garantia patrimonial são aplicadas pelo juiz, oficiosamente
ou a requerimento do Ministério Público ou do lesado. Quanto à indemnização por perdas e danos (art. 129º
CPP), porque é aplicável a lei civil e especificamente o princípio do pedido, o juiz só pode aplicar medida de
garantia patrimonial se tal for requerido pelo lesado.
 Aplicação da medida por despacho fundamento do juiz » a aplicação das medidas de garantia patrimonial deve
ser devidamente fundamentada, sob pena de nulidade (art. 194º/6 CPP).

Capítulo VII – A tramitação do processo penal comum – a fase de julgamento


1. Tribunal competente para o julgamento
A fase de julgamento é da competência de tribunais de diferente espécie, por referência à sua composição:
Tribunal Singular Tribunal Coletivo Tribunal de Júri
» integrado por um só juiz » composto por três juízes » composto por três juízes e quatro
(art. 16º CPP) (art. 14º CPP) jurados (art. 13º CPP)
Competência para o julgamento de: Competência para o julgamento de: Competência para o julgamento de:
 Crimes cuja pena máxima  Crimes cuja pena máxima  Crimes cuja pena máxima
aplicável é igual ou inferior a 5 aplicável é superior a 5 anos; aplicável é superior a 8 anos,
anos de prisão;  Crimes contra a identidade desde que tenha havido
 Crimes contra a autoridade cultural e integridade pessoal, requerimento;
pública. contra a segurança do Estado  Crimes contra a identidade
ou violações do direito cultural e integridade pessoal,
internacional humanitário; contra a segurança do Estado
 Crimes doloso ou agravados ou violações do direito
pelos resultado, quando for internacional humanitário,
elemento do tipo a morte de desde que tenha havido
uma pessoa. requerimento.
! Portanto, quebra-se nesta fase a tramitação unitária do processo penal comum, que agora pode seguir vias diversas
consoante a gravidade do crime e a sua natureza.
O tribunal de júri, apesar de ter pouca tradição entre nós, é previsto na própria Constituição: o art. 207º/1 CRP prevê
a participação do povo no julgamento dos crimes graves nos casos em que a lei fixar, ressalvando-se os casos de
terrorismo e criminalidade altamente organizada. Quanto a estes últimos crimes entende-se que, atenta a sua
natureza, não deverá sujeitar-se cidadãos comuns ao grau de ameaça ou de intimidação a que ficariam sujeitos
julgando tais casos. O regime do tribunal de júri está estabelecido no Decreto-Lei nº 387ºA/87, o qual regula,
nomeadamente, a capacidade para ser jurado, a seleção dos jurados e o estatuto dos mesmos. Entre nós regime do
tribunal de júri tem uma particularidade, em face dos modelos “típicos” deste tipo de tribunais no estrangeiro: os
jurados intervêm na decisão das questões da culpabilidade e da determinação da sanção, tanto no que toca a matéria
de facto, como no que toca a matéria de direito. Uma vez que as deliberações são tomadas por maioria simples, isto
pode significar a aplicação de uma pena por decisão exclusiva de não-juízes (os 4 jurados já constituem maioria, pois
no tribunal de júri só há 3 juízes profissionais) (arts. 348º/5, 365º/2, 3 e 4, 368º e 369º CPP).
Refira-se que o conceito de “criminalidade altamente organizada” referido no art. 207º/1 CRP não corresponde
necessariamente ao homónimo utilizado no CPP (vide: art. 1º/m) CPP). A delimitação negativa da competência do
tribunal de júri feita com base neste conceito haverá de ser considerada de forma autónoma em relação à definição
deste conceito vigente na lei processual penal.
No que diz respeito à competência específica de cada uma destas categorias de tribunais, como esquematicamente
ficou já exposto, a lei faz relevar a gravidade e natureza do crime, bem como a maior ou menor facilidade de apreciação
e valoração da prova.
Ao tribunal singular compete julgar os processos respeitantes a (art. 16º/2 e 3 CPP):
a) Crimes cuja pena máxima, abstratamente aplicável, seja igual ou inferior a 5 anos de prisão;
b) Crimes contra a autoridade pública (arts. 347º a 358º CP);

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c) Crimes cuja pena máxima, abstratamente aplicável, é superior a 5 anos de prisão se o Ministério Público, na
acusação ou em requerimento, entender não dever ser aplicada, em concreto, pena superior a 5 anos, não
podendo o tribunal, neste caso, aplicar pena superior.
Reconhece-se ainda a este tribunal uma competência residual, para julgar os processos por lei não atribuídos a
nenhuma das demais espécies de tribunais. Tal sucederá, por exemplo, nos processos respeitantes a crimes puníveis
com pena de multa autónoma – os critérios de atribuição da competência aos demais tribunais depende sempre do
limita máximo da pena de prisão. Ademais, o tribunal singular será também competente para julgar processos por
Quanto aos crimes praticados contra autoridade pública, o facto de a sua prática se dirigir a autoridades públicas
justifica o julgamento por apenas um juiz na medida em que a apreciação e valoração da prova estão especialmente
facilitadas. Assim, mesmo quanto os crimes forem puníveis com pena de prisão superior a 5 anos é competente o
tribunal singular.
A propósito da possibilidade aberta pela lei no nº 3 do art. 16º CPP, a que nos referimos na alínea c) acima exposta,
colocam-se várias questões práticas. Desde logo, poderá entender-se que, com base no requerimento ou acusação do
Ministério Público, o juiz de instrução poderá suspender provisoriamente o processo, porque a pena a aplicar nunca
será superior a 5 anos? E, noutro prisma, quais são as consequências da confissão livre, integral e sem reservas do
arguido? Terá este os efeitos que lhe são reconhecidos no âmbito da pequena criminalidade?
Ao tribunal coletivo compete julgar os processos que, não devendo ser julgados por tribunal singular, respeitarem a
(art. 14º CPP):
a) Crimes cuja pena máxima, abstratamente aplicável, é superior a 5 anos de prisão (mesmo que este valor
máximo resulte da aplicação das regras do concurso);
b) Crimes previstos no Título III e no Capítulo I do Título V do Livro II do Código Penal e na Lei Penal Relativa às
Violações do Direito Internacional Humanitário;
c) Crimes dolosos ou agravados pelo resultado quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa.
Por fim, ao tribunal de júri compete julgar os processos que, não devendo ser julgados por tribunal singular,
respeitarem a (art.13º CPP):
a) Crimes cuja pena máxima, abstratamente aplicável, é superior a 8 anos de prisão, se houver requerimento
irretratável do Ministério Público, do assistente ou do arguido;
b) Crimes previstos no Título III e no Capítulo I do Título V do Livro II do Código Penal e na Lei Penal Relativa às
Violações do Direito Internacional Humanitário, se houver requerimento irretratável do Ministério Público, do
assistente ou do arguido.
2. Atos preliminares
Recebidos os autos no tribunal, têm lugar os atos preliminares da fase de julgamento:
 Saneamento do processo » tem lugar em dois planos distintos:
 Nulidades processuais e outras questões prévias ou incidentais (art. 311º/1 CPP);
 Acusação deduzida: se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução (uma
comprovação judicial da decisão de acusar – art. 286º/1 CPP) o presidente pode:
a) Rejeitar a acusação do Ministério Público ou do assistente se a considerar manifestamente
infundada (art. 311º/1/a) CPP) – deverá ser assim considerada a acusação que (art. 311º/3):
 Não contiver a identificação do arguido;
 Não contiver a narração dos factos;
 Não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam ou se os
factos não constituírem crime.
b) Não aceitar a acusação do Ministério Público ou do assistente, na parte em que represente
uma alteração substancial dos factos (arts. 311º/1/b), 284º/4 e 285º CC).
 Designação do dia, hora e local para a audiência (art. 312º e 313º CPP).
3. Princípios gerais
Na fase de julgamento relevam de forma particular certos princípios gerais, agrupáveis em três categorias:
 Princípios relativos à prossecução processual:
 Princípio da investigação;
 Princípio da concentração.
 Princípios quanto à prova:
 Princípio da legalidade;

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 Princípio da livre apreciação da prova;
 Princípio in dubio pro reo.
 Princípios quanto à forma:
 Princípio da publicidade;
 Princípio da oralidade;
 Princípio da imediação.
Em relação a todos estes princípios está presente a regra segundo a qual não valem em julgamento quaisquer provas
que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência (art. 355º/1 CPP).
3.1 Princípio da investigação
Este princípio, que vale também na fase de instrução (arts. 289º/1 e 290º/1 CPP), tem consagração expressa no
contexto do regime da audiência de julgamento (art. 340º/1 CPP), tendo o seguinte conteúdo:
“princípio segundo o qual o tribunal pode ordenar oficiosamente a produção de todos os meios de prova cujo
conhecimento se lhe afigurar necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa”.
Este é, portanto, simultaneamente um princípio geral da prossecução processual e um princípio geral da prova,
significando, de forma sintética, que o juiz pode investigar o facto sujeito a julgamento livremente, sem depender dos
contributos da acusação e da defesa. Ao juiz cabe, portanto, construir autonomamente as bases da sua decisão. Este
princípio contrapõe-se ao designado “princípio do dispositivo”:
Princípio da investigação VS Princípio do dispositivo
» o juiz não está limitado aos contributos da acusação e » o juiz só pode atender aos factos e provas trazidos ao
da defesa, podendo livremente investigar o facto processo pela acusação e pela defesa, devendo formar
sujeito a juízo para formar a sua vontade a sua vontade apenas com base nestes factos e provas
A acusação e a defesa são “sujeitos processuais” (a par A acusação e a defesa são “partes” do processo (sendo
do tribunal, do ministério público, do assistente, etc.) este encarado como um litígio entre elas)
Processo pena de estrutura acusatória integrada por Processo penal de estrutura acusatória
um princípio de investigação
O princípio da investigação vale indistintamente para o juiz de julgamento e para o juiz de instrução. No entanto, tanto
na fase de instrução como na fase de julgamento, este é um princípio que vale apenas subsidariamente. Daí que se
diga que o nosso processo penal tem estrutura acusatória “integrada” por um princípio de investigação: só quando o
juiz considerar que os factos e provas apresentados pelos sujeitos processuais são insuficientes para a formação da
vontade poderá ele ordenar outras diligências.
3.2 Princípio da legalidade da prova
Nos termos do art. 125º CPP, o “princípio da legalidade da prova” tem o seguinte significado:
“princípio que determina serem admissíveis [todas] as provas que não forem proibidas por lei”.
Portanto, só não são admitidas as provas proibidas nos termos da lei, nomeadamente (arts. 32º/8 CRP e 126º CPP):
 Provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa;
 Provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas
telecomunicações da pessoa sem o consentimento do respetivo titular.
O desrespeito pelo princípio da legalidade da prova tem como consequência a nulidade das provas obtidas através de
métodos proibidos, não podendo as mesmas ser utilizadas (arts. 32º/8 CRP e 126º/1 e 3 e 118º/1 CPP). As provas
nulas, por terem sido obtidas mediante métodos proibidos, não podem valoradas (art. 118º/3 CPP).
Neste contexto, importa distinguiras proibições de prova das meras regras de produção de prova:
Proibições de prova Regras de produção de prova
» constituem limites à descoberta da verdade, os quais » visam disciplinar o procedimento exterior de
não podem ser ultrapassados, mesmo em nome da realização da prova, na diversidade dos seus meios e
justiça material métodos (ex.: art. 341º CPP)
Destacam-se quatro categorias:
 Proibições de temas de prova (art. 137º CPP);
 Proibições de métodos de prova (art. 126º CPP);
 Proibições de meios de prova (art. 134º/2 CPP);
 Proibições de leitura de protocolos (art. 356º CPP).

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O dever de informação e advertência sobre o direito ao silêncio que assiste ao arguido quanto aos factos que lhe são
imputados deve, porém, ser considerado como uma proibição de prova, e não como mera regra de produção de prova.
É certo que este dever é uma regra a ser observada por quem dirige a investigação e realiza a inquirição; todavia, a
sua inobservância põe abertamente em causa o estatuto do arguido como sujeito do processo. Estamos aqui perante
uma falha de suma gravidade, que compromete os alicerces do nosso processo penal. Neste sentido vai, aliás, o nº 5
do art. 58º CPP, nos termos do qual a violação de formalidades quanto à constituição de arguido implica que as
declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova. Todavia, refira-se, à proibição de
valoração da prova assim obtida não acresce a nulidade da prova realizada, por não haver disposição legal que
consagre essa sanção.
3.3 Princípio da livre apreciação da prova
Apreciação da prova
Princípio da livre apreciação da prova Princípio da prova legal
» a prova é apreciada segundo as regras da » aprova é apreciada com base em regras legais que
experiência e a livre convicção do ente competente predeterminam o valor a atribuir-lhe em cada caso
Entre nós está expressamente consagrado, no art. 127º CPP, o princípio da livre apreciação da prova, o qual vale tanto
para o juiz de julgamento, como para o juiz de instrução e para o Ministério Público. É este um princípio geral de
processo penal com incidência no decurso de todo o processo.
O significado deste princípio pode ser avaliado em dois primas, ou pontos de vista:
Princípio da livre apreciação da prova
Dimensão negativa Dimensão positiva
 Ausência de critérios legais que predeterminem o  Dever de as entidades a quem cabe valorar a prova
valor da prova o fazerem de forma objetivável, motivável e
suscetível de controlo
Este significado resulta, designadamente, dos arts. 365º/3, 374º/2, 375º/1, 379º/1/a), 425º/4 e 410º/2 CPP.
No entanto, o princípio da livre apreciação da prova não vale sem quaisquer limitações. Com efeito, importa distinguir
o tipo de prova em causa:
 Prova testemunhal » em geral, não são identificáveis quaisquer limitações ao princípio da livre apreciação,
podendo mesmo dizer-se que este é o seu campo de eleição (art. 128º CPP).
No entanto, a lei não reconhece, em princípio, o depoimento indireto e o depoimento relativo a vozes públicas
e convicções pessoais:
 Depoimento indireto » o art. 129º CPP proíbe este meio de prova; o juiz poderá tão-só chamar a depor
as pessoas a quem se ouviu dizer, se quem depõe não se recursar e estiver em condições de indicar a
pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos;
 Vozes públicas e convicções pessoais » o art. 130º CPP estabelece não ser admissível como depoimento
a reprodução de vozes ou rumores públicos, bem como a manifestação de meras convicções pessoais
sobre factos ou a sua interpretação.
 Declarações do arguido » a aplicação plena, ou não, do princípio da livre apreciação da prova depende do
comportamento do arguido em concreto:
 Vale por inteiro o princípio da livre apreciação da prova nos seguintes casos (arts. 344º/3/a) e c) e 4):
 Arguido nega os factos;
 Arguido confessa parcialmente ou com reservas
 Co-aguido confessa integralmente e sem reservas mas já não os demais co-arguidos;
 Arguido confessa mas o tribunal suspeita do caráter livre da confissão;
 Arguido confessa crime punível com pena de prisão superior a 5 anos.
 Não vale o princípio da livre apreciação da prova nas seguintes hipóteses:
 Silencia do arguido (arts. 61º/1/d), 141º/4/a) e b), 343º/1 e 345º/1 CPP)
 Arguido confessa livre e integralmente e sem reservas crime punível com pena até 5 anos.
NOTA: embora parece resultar do art. 344º/2 CSC que, no caso de confissão integral, livre e
integral de crime punível com pena de prisão não superior a 5 anos, o princípio da livre
apreciação da prova não tem aplicação, a verdade é que, em bom rigor, os efeitos aí atribuídos
às declarações só abrangem os casos em que a confissão é livre; ora, a apreciação do caráter

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livre da confissão estará sempre sujeita ao princípio da livre apreciação. Portanto, só
aparentemente há aqui uma limitação a este princípio.
 Prova pericial » o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre
apreciação do julgador (art. 163º/1 CPP). O julgador só poderá divergir do juízo contido no parecer do perito,
fundamentando devidamente a divergência, se puder fazer uma apreciação também técnica, científica ou
artística, ou se se tratar de um caso inequívoco de erro (art. 163º/2 CPP). Isto sem prejuízo de o juiz manter a
sua liberdade de apreciação no que diz respeito à base de facto pressuposta pelo perito.
 Prova pericial » vale o princípio da livre apreciação da prova, ainda que se trate de um documento autêntico
ou autenticado (arts. 169º e 170º CPP).
3.4 Princípio in dubio pro reo
O “princípio in dubio pro reo” define-se nos seguintes termos:
“princípio de acordo com o qual o tribunal deve dar como provados os factos favoráveis ao arguido, quando
fica aquém da dúvida razoável, apesar de toda a prova produzida”.
Portanto, a dúvida que fique aquém do razoável deverá ser valorada de forma favorável ao arguido, em linha com o
princípio da presunção de inocência.
Após a produção da prova nos termos dos arts. 340º e 341º CPP, o tribunal apreciará a prova feita:
 Conclusão de que foi produzida prova dos factos imputados ao arguido » factos dados como provados;
 Conclusão de que não foi produzida prova dos factos imputados ao arguido » factos dados como não provados;
 Conclusão de que a prova produzida fica aquém da dúvida razoável » factos favoráveis ao arguido dados como
provados e factos desfavoráveis dados como não provados.
Como é natural, da presunção de inocência do arguido (art. 32º/2 CRP), só pode decorrer que se deem como provados
os factos que lhe são favoráveis mesmo quando o tribunal fica aquém da dúvida razoável. Por regra, só podem dar-se
como provados os factos imputados ao arguido quando o tribunal, com base nas regras da experiência e na sua livre
convicção, conclua, além da dúvida razoável (portanto, com elevado grau de certeza), pela verificação desses factos.
No entanto, a garantia da presunção da inocência implica que se tenham também como provados os factos favoráveis
mesmo no caso de o tribunal não chegar ao grau de certeza que seria geralmente exigido; logicamente, o mesmo já
não vale para os factos que são desfavoráveis ao arguido.
Este princípio vale para toda a matéria de facto, mas já não para a matéria de direito. O que não obsta, note-se, que
os tribunais de recurso não possam conhecer da violação deste princípio. Embora ele se reporta à matéria de facto, a
sua violação é, em si mesma, uma questão de direito (a violação de um princípio jurídico). Note-se, porém, que, apesar
de ser este o melhor entendimento da questão, a nossa jurisprudência mostra-se ainda bastante limitativa quando
aos poderes de cognição do STJ a este respeito.
3.5 Princípio da publicidade
Um dos princípios gerais do processo penal, em matéria de forma, é o “princípio da publicidade do processo”, cujo
conteúdo é o seguinte (arts. 206º CRP e 80º, 90º e 321º CPP):
“princípio segundo o qual a realização de certos atos processuais, indicados na lei, é pública, podendo contar
com assistência do público em geral”.
São públicos, nomeadamente:
 Audiência de julgamento (art. 86º/6/a), 87º e 321º CPP);
 Narração dos atos processuais (arts. 86º/6/b) e 88º CPP);
 Consulta do auto do processo (arts. 86º/6/c), 89º e 90º CPP);
 Obtenção de cópias, extratos e certidões (arts. 86º/6/c), 89º e 90º CPP).
A publicidade do processo justifica-se com base nos seguintes objetivos:
 Exercício objetivo, independente e imparcial da justiça penal;
 Efetividade das garantias de defesa do arguido;
 Aproximação dos cidadãos à administração da justiça penal;
 Controlo da realização da justiça penal e reafirmação da validade da norma violada.
Indo além do que é constitucionalmente imposto (art. 206º CRP), no regime legal vigente vale a regra da publicidade
do processo penal – art. 86º/1 CPP. Em face desta amplitude, alguns autores, como Figueiredo Dias, têm se mostrado
críticos da publicidade constituir a regra no processo penal, sobretudo em face da extensão dessa regra às fases
processuais anteriores ao julgamento.
De todo o modo, este princípio conta com limitações:

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Maria Paixão Direito Processual Penal
 O tribunal pode decidir pela não publicidade da audiência, mediante despacho fundamentado, para proteger
a dignidade das pessoas e a moral pública ou para garantir o normal funcionamento da audiência (art. 206º
CRP in fine);
 A publicidade não abrange os dados relativos à reserva da vida privada que não constituam meios de prova
(legalmente admissíveis) (art. 86º/7 CPP);
 O juiz pode decidir restringir a livre assistência do público ou que certo ato ou parte dele decorra com exclusão
da publicidade, sempre que tal decisão se funde em factos ou circunstâncias concretas que façam presumir
que a publicidade causaria grave dano à dignidade das pessoas, à moral pública ou ao normal decurso do ato
(arts. 206º CRP e 87º/1 e 2 e 321º CPP);
 Nos processos por crime de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, os atos
decorrem, em regra, com exclusão da publicidade (art. 87º/3 CPP);
 A produção de prova suplementar para a determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar corre, em
regra, com exclusão da publicidade (art. 371º/5 CPP);
 A atuação dos meios de comunicação social está limita pelas proibições constantes do nºs 2 e 3 do art. 88º
CPP, cuja violação faz a pessoa incorrer em responsabilidade criminal pelo crime de desobediência (arts. 88º/2
e 3 CPP e 348º/1/a) CPP);
 Na fase de inquérito pode ser proferido despacho de sujeição do processo a segredo de justiça, por:
 Decisão do juiz de instrução » quando entenda que a publicidade prejudica os direitos do arguido, do
assistente ou do ofendido (art. 86º/2 CPP);
 Decisão do Ministério Público (sujeita a validação do juiz) » quando entenda que os interesses da
investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justificam (art. 86º/3 CPP).
[NOTA: Mª João Antunes chama a atenção para o facto a sujeição da decisão a validação do juiz de
instrução, quando tal decisão diga respeito unicamente aos interesses da investigação, pôr em causa
o modelo constitucional de repartição de funções processuais entre as duas magistraturas. Não
obstante, o TC já julgou não inconstitucional este nº 3 do art. 86º CPP.]
O Ministério Público poderá, todavia, levantar o segredo de justiça a todo o momento; bem como pode o juiz
de instrução operar tal levantamento, quando tal lhe seja requerido pelo arguido, pelo assistente ou pelo
ofendido (art. 86º/4 e 5 CPP).
No que ao segredo de justiça diz respeito, importa referir que nas versões do CPP de 1987 e 1998 o regime era distinto.
O segredo de justiça vigorava impreterivelmente até à decisão instrutória ou até ao momento em que esta não
pudesse ser requerida. A favor desta opção mobilizavam-se dois argumentos:
 Acautelar o êxito da investigação, especialmente quanto à aquisição e conservação de prova;
 Tutelar de forma efetiva o direito à presunção de inocência do suspeito/arguido, garantindo-lhe, assim, o
direito ao bom nome e reputação.
Com o CPP de 1998 a única novidade nesta matéria foi permitir a publicidade da fase de instrução, quando requerida
apenas pelo arguido e ele não declarasse a sua oposição.
De acordo com o nº 8 do art. 86º e com o nº 1 do art. 89º CPP, o segredo de justiça implica:
 Proibição da assistência à prática ou tomada de conhecimento do conteúdo de ato processual;
 Proibição da divulgação da ocorrência de ato processual ou dos seus termos;
 Proibição de consultar o processo ou os elementos dele constantes, se o MP a isso se opuser;
 Proibição de obter extrato do processo, cópias ou certidões, se o MP a isso se opuser.
O segredo de justiça vincula todos os sujeitos e participantes processuais, bem como terceiros que, por qualquer título,
tiverem tomado contacto com o processo ou conhecimento de elementos a ele pertencentes. Quem infringir estas
obrigações fica sujeito a responsabilidade criminal, por crime de violação do segredo de justiça (arts. 86º/2 e 8 CPP e
371º/1 CP). Porém, importa referir que o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos do
processo que se encontrem em segredo de justiça findo os prazos do inquérito, salvo se o juiz de instrução determinar,
a requerimento do Ministério Público, que o acesso aos autos seja adiado, quando estiver em causa certo tipo de
criminalidade (art. 89º/6 CPP).
São corolários da regra da publicidade do processo as seguintes imposições legais:
 A decisão de exclusão ou de restrição da publicidade da audiência é, sempre que possível, precedida de
audição contraditória dos sujeitos processuais interessados, devendo constar da acta da audiência (arts. 321º
e 361º/1/e) CPP);

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Maria Paixão Direito Processual Penal
 O despacho em que o juiz decida a exclusão ou restrição da publicidade de um ato processual deve ser
fundamentado (arts. 87º/1 e 2 e 97º/5 CPP);
 O despacho que exclua ou restrinja a publicidade de um ato processo deve ser revogado logo que cessem os
motivos que lhe deram causa (art. 87º/2 CPP);
 A exclusão da publicidade não pode abranger, em caso algum, a leitura da sentença (art. 87º/5 CPP).
3.6 Princípios da oralidade e da imediação
Princípio da oralidade Princípio da imediação
» os atos processuais devem processar-se sob forma » entre o tribunal e os sujeitos e participantes
oral, devendo a decisão ser proferida tendo por base processuais deve ser estabelecida uma relação de
uma audiência oral (art. 96º/1 CPP) proximidade comunicante, devendo o juiz tomar
contato imediato e direto com os elementos de prova
Estes princípios estão, portanto, intrinsecamente ligados: por um lado, o princípio da imediação, quanto a
determinados elementos de prova (por ex. prova testemunhal), só se cumpre efetivamente se os atos processuais
forem realizados oralmente; por outro lado, o princípio da oralidade pressupõe a relação de imediação entre o juiz e
os sujeitos e participantes processuais (não devendo aquele limitar-se a “escutar”). Não obstante, importa sublinhar
que um e outro não se confundem, sendo o princípio da imediação mais amplo, por exigir o contato pessoal com
elementos de prova não produzidos oralmente.
Em 2015, o legislador aditou ao CPP o art. 328º-A CPP, segundo o qual só podem intervir na sentença os juízes que
tenham assistido a todos os atos de instrução e discussão praticados na audiência de julgamento. Portanto, consagra-
se assim um princípio instrumental da identidade do juiz, que visa assegurar a realização do princípio da imediação.
O princípio da oralidade em nada colide com a documentação das declarações prestadas oralmente na audiência (arts.
363º e 364º CPP). Estas são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade. Com as alterações introduzidas em
2015, são também objeto de registo áudio ou audiovisual as alegações orais (art. 364º/2 CPP). Esta exigência de
documentação tem relevo direto e imediato em matéria de fundamentação da decisão de de recurso em matéria de
facto (arts. 374º/2 e 412º/2 e 3 CPP).
A forma oral e imediata de atingir a decisão judicial promove a boa decisão da causa, permitindo um contato imediato
com o arguido, com relevo para a matéria dos factos que lhe são imputados e para o conhecimento da sua
personalidade. Não obstante, também estes princípios contam com limitações, mormente a possibilidade de
consideração de provas que, não tendo sido produzidas ou examinas e audiência, estejam contidas em atos
processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas – art. 355º/2, 356º e 357º CPP. De
sublinhar, a este respeito, que só nos casos das alíneas a) do nº 1 e a) do nº 2 do art. 356º CPP ocorreu verdadeiramente
uma produção antecipada de prova.
Em 2013 alterou-se a alínea b) do nº 1 do art. 357º CPP, no sentido de ser permitida a reprodução ou a leitura de
declarações anteriormente proferidas pelo arguido no processo, quando tenham sido feitas perante autoridade
judiciária com a assistência de defensor e o arguido tenha sido informado de que não exercendo o direito ao silêncio
tais declarações poderiam ser utilizadas no processo. Deu-se, com esta nova redação do preceito, maior amplitude à
possibilidade de leitura de declarações do arguido em audiência de julgamento, impondo-se, em contrapartida, alguns
requisitos não previstos anteriormente.
3.7 Princípio da concentração
O “princípio da concentração” traduz-se no:
“princípio segundo o qual a prossecução processual de todos os termos e atos do processo deve ser unitária e
continuada, quer de um ponto de vista espacial, quer de um ponto de vista temporal”.
Este princípio ganha especial autonomia na fase de julgamento, estando intrinsecamente ligado aos princípios da
oralidade e da imediação. O conjunto destes princípios aponta para uma concentração espacial (devendo ocorrer no
mesmo local) e temporal (devendo ocorrer sem interrupções e adiamentos) da audiência de julgamento (art. 328º/1
CPP). Não obstante, não deixa de se prever na lei as interrupções estritamente necessárias, em especial para repouso
e alimentação dos participantes (nº 2 do art. 328º CPP). A isto acresce a previsão legal de interrupções e adiamentos,
por um período máximo de 30 dias, para remover obstáculos processuais (art. 328º/3 CPP). Tanto a interrupção como
o adiamento da audiência, este último apenas quando a interrupção não seja suficiente, devem ser decididos em
despacho fundamentado, notificado a todos os sujeitos processuais (art. 328º/3, 5 e 6 CPP). Nestes casos, a audiência,
depois de interrompida ou adiada, é retomada exatamente a partir do último ato processual praticado (art. 328º/4
CPP). Assim, à concentração da audiência lega-se a sua continuidade.

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Maria Paixão Direito Processual Penal
O regime exposto, em face do anterior, peca por não acautelar efetivamente as vantagens do princípio da imediação
da prova. Com efeito, o regime anterior estabelecia uma ligação entre o período de interrupção ou adiamento e a
necessidade ou possibilidade de repetição de alguns atos processuais:
 Interrupções e adiamentos não superiores a 5 dias » continuação da audiência;
 Adiamentos entre 5 e 30 dias » decisão do tribunal sobre a repetição, ou não, de atos processuais;
 Adiamentos superiores a 30 dias » recomeço da audiência.
O regime atual, ao prever sempre a continuação da audiência, parece desconsiderar o entendimento de que só a
concentração temporal permite acautelar as vantagens decorrentes de uma relação de proximidade comunicante
entre o tribunal e os sujeitos processuais – se entre os atos praticados e a decisão do juiz medeia um período de tempo
amplo, a relação de proximidade torna-se ténue, caindo no esquecimento pormenores que, noutros termos, poderiam
relevar (“não é apenas relevante o que se diz, mas também a forma como se diz”). Na Proposta de Lei que veio
introduzir esta alteração justifica-se a eliminação da perda de eficácia da prova com a obrigatoriedade de
documentação das declarações prestadas oralmente (art. 263º CPP). Como bem se vê, é esta uma justificação
completamente desprovida de sentido.
4. Alteração dos factos e alteração da qualificação jurídica
Da estruturação do processo penal segundo o modelo acusatório, do princípio da acusação e da tutela do direito de
defesa do arguido, decorre para o tribunal de julgamento a sua vinculação temática: o julgamento deve conter-se
dentro do objeto do processo delimitado na acusação do Ministério Público ou do assistente (se não tiver havido lugar
a instrução) ou no despacho de pronúncia do juiz de instrução (se tiver havido fase de instrução).
Ora, esta vinculação temática implica que fique, de um modo genérico, afastada qualquer alteração relativa aos factos
a considerar. No entanto, a nossa lei distingue, nesta sede, figuras diversas:
Alteração dos factos Alteração da qualificação jurídica
» da prova produzida em audiência resultam factos » mantêm-se os factos resultantes da acusação ou da
distintos dos descritos na acusação ou na pronúncia pronúncia, alterando-se somente a qualificação jurídica
[Ex.: o juiz de julgamento não pode vir condenar um arguido, que deles é feita
que havia sido acusado por crime de homicídio simples, em [Ex.: os mesmos factos podem sustentar a acusação do
crime de homicídio qualificado porque, na fase de julgamento, Ministério Público relativa a crime de homicídio simples e vir
se descobriu que autor do crime fez uso de instrumentos de a servir de base a condenação, pelo juiz de julgamento, por
tortura – art. 132º/1/a) CPP] homicídio qualificado, em virtude de diferentes conclusões
acerca da “especial censurabilidade” dos factos. ]

A “alteração dos factos” propriamente dita estará sujeita a regimes distintos consoante o tipo de alteração em causa:
Alteração dos factos
Substancial Não substancial
» consideração de factos distintos dos descritos na » consideração de factos distintos dos descritos na
acusação ou na pronúncia, de que resulta a acusação ou na pronúncia, mas que não acarreta
(1)
imputação ao arguido de crime diverso ou a qualquer alteração ao tipo de crime ou aos limites das
(2)
agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis sanções aplicáveis
[Ex.: descoberta, na audiência de julgamento, de que o [Ex.: descoberta, na audiência de julgamento, de que a marca
quadro furtado é, afinal, um original e, por isso, tem um valor do telemóvel furtado é distinta da que se pensava estar em
manifestamente superior ao que se pensava – este facto causa – este facto tem relevo em matéria probatória, ainda
implica que o crime passe a ser um furto qualificado] que não influa sobre o tipo de crime ou sobre a sanção. ]
Os novos factos não podem ser tomados em conta pelo Os novos factos podem ser considerados pelos juiz,
tribunal para o efeito de condenação no processo em desde que verificados os requisitos do art. 358º CPP:
curso, sob pena de nulidade da sentença (art. 359º/1 e 1. Comunicação dos novos factos ao arguido;
379º/1/b) CPP) 2. Concessão do tempo necessário para preparar
a defesa, se tal for requerido.
4.1 Alteração substancial dos factos
A definição de “alteração substancial dos factos”, acima enunciada, decorre expressamente da alínea f) do art. 1º CPP.
Como se vê, são duas as situações que integram esta categoria:
 Agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis;
 Imputação ao arguido de crime diverso.
Saber se a alteração dos factos tem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso é algo que nos conduz à
problemática do objeto do processo.

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Maria Paixão Direito Processual Penal
O objeto do processo fixa-se com a dedução da acusação ou da pronúncia e delimita a extensão do caso julgado, tendo
como consequências:
 O objeto do processo deve manter-se o mesmo desde que é fixado até ao trânsito em julgado da decisão;
 O objeto do processo deve ser conhecido e julgado na sua totalidade;
 O efeito de caso julgado estende-se a todo o objeto do processo, mesmo não tendo sido conhecido e julgado
na sua totalidade.
Neste contexto, entende-se que a imputação de crime diverso ao arguido significa que os novos factos conhecidos
pelo tribunal vão além do objeto do processo, o que não se verifica somente quando lhe é imputado diferente tipo
legal de crime. Assim sendo, impõe-se questionar: o que é o “objeto do processo”? A doutrina tem apresentado
respostas variadas a esta questão:
a) Eduardo Correia: o objeto do processo é uma concreta e hipotética violação jurídico-criminal acusada;
b) Cavaleiro de Ferreira: o objeto do processo é o facto na sua existência histórica, que importa averiguar no
decurso do processo;
c) Castanheira Neves: o objeto do processo é o caso jurídico concreto trazido pela acusação;
d) Figueiredo Dias: o objeto do processo é um conjunto de factos em conexão natural;
e) Germano Marques da Silva: o objeto do processo reconduz-se a um juízo base de ilicitude que não pode ser
alterado.
Consoante a posição acolhida se responderá a questões como a de saber se, no caso de crime continuado, a descoberta
de um novo crime da continuação implica, ou não, a alteração do objeto do processo. Esta é uma questão que continua
a fazer correr muita tinta na doutrina e jurisprudência nacionais, ficando, por isso, em aberto.
O regime a que fica sujeita a alteração substancial dos factos é distinto consoante a fase do processo em que tal
alteração tenha lugar:
 No final do inquérito » importa distinguir, nesta sede:
 Crime público ou semi-público » quem deduz acusação é o Ministério Público, podendo o assistente
acompanhar essa acusação, acusando pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não
importem uma “alteração substancial” daqueles (art. 284º/1 CPP). Se o assistente pretender que o
arguido seja julgado por factos que importam uma alteração substancial dos factos acusados pelo
Ministério Público, a única via possível será requerer a abertura de instrução (na esperança que o juiz
de instrução profira despacho de pronúncia pelos (novos) factos em causa; caso contrário, nada mais
poderá ser feito, a propósito desses factos).
 Crime particular » quem deduz acusação é o assistente, podendo o Ministério Público acompanhar
essa acusação, acusando pelos mesmos factos, por parte deles ou por outros que não importem uma
“alteração substancial” daqueles. O Ministério Público não pode, então, acusar por factos que
importem uma alteração substancial dos factos da acusação particular (art. 285º/4 CPP).
Nos termos do art. 311º/2/b) CPP, o juiz de julgamento não aceita a acusação do assistente ou do Ministério
Público na parte em que ela representar uma alteração substancial dos factos, nos termos do art. 284º/1 e do
285º CPP. Este preceito deve considerar-se aplicável (analogicamente) ao juiz de instrução, que deverá
também recursar a acusação do Ministério Público ou do assistente que, acompanhando a acusação,
respetivamente, do assistente ou do Ministério Público, implique, todavia, uma alteração substancial dos
factos que servem de base a esta última. Logicamente, o mesmo já não se aplica ao requerimento de abertura
de instrução, do qual (só) podem constar factos pelos quais o Ministério Público não tenha deduzido acusação
(art. 287º/1/b) CPP).
 Na fase de instrução » tendo a alteração lugar durante a instrução, importa questionar quais são as peças
processuais que fixam os poderes de cognição do juiz de instrução. Ora, a este respeito, importa distinguir:
 Acusação do Ministério Público e/ou do assistente » os poderes de cognição do juiz de instrução são
delimitados pela acusação e pelo requerimento de abertura de instrução.
 Arquivamento » os poderes de cognição do juiz de instrução são fixados apenas pelo requerimento de
abertura de instrução.
Nesta fase, o regime aplicável é previsto nos nºs 3 e 4 do art. 303º CPP. Daqui resulta que o juiz de instrução
não pode pronunciar-se por factos novos (não constantes nem da acusação, nem do requerimento para
abertura de instrução), surgidos apenas já no decurso da instrução. Não obstante, caso os novos factos sejam
autonomizáveis em relação ao objeto do processo, o juiz deve proceder à sua comunicação ao Ministério

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Maria Paixão Direito Processual Penal
Público; comunicação essa que vale como denúncia. Neste caso, deverá o Ministério Público abrir novo
inquérito, de acordo com o princípio da legalidade. A violação destas regras implicará a nulidade da decisão
instrutória (art. 309º/1 CPP).
 Na fase de julgamento » também nesta sede importa determinar o(s) instrumento(s) de delimita(m) os
poderes de cognição do juiz de julgamento:
 Se não tiver sido requerida abertura de instrução » a peça processual que delimita e fixa os poderes
de cognição do juiz de julgamento é:
 Crimes públicos e semi-públicos » a acusação do Ministério Público, acompanhada ou não pela
acusação do assistente;
 Crimes particulares » a acusação do assistente, acompanhada ou não pelo Ministério Público;
 Se tiver sido requerida abertura de instrução » a peça processual que delimita e fixa os poderes de
cognição do juiz de julgamento é o despacho de pronúncia, proferido pelo juiz de instrução.
Verificando-se uma alteração substancial dos factos, os novos factos (não constantes da acusação ou da
pronúncia) não podem ser considerados pelo juiz para efeito de condenação no processo em curso (art. 357º/1
CPP). Em face de tal alteração, deverá o juiz comunicar os novos factos que forem autonomizáveis do objeto
do processo ao Ministério Público, comunicação essa que vale como denúncia (art. 357º/2 CPP). Nesta fase
processual, a lei ressalva a hipótese de o Ministério Público, o assistente e o arguido concordarem no
prosseguimento do julgamento quanto a esses factos, caso em que os novos factos podem ser considerados
pelo juiz naquele mesmo processo (art. 357º/3 CPP). O desrespeito por estas normas implica a nulidade da
sentença (art. 379º/1/b) CPP).
Em suma, podemos sistematizar o regime da alteração substancial dos factos que ficou exposto da seguinte forma:
Final da fase de inquérito Fase de instrução Fase de julgamento
 O Ministério Público não pode  O juiz de instrução não pode tomar  O juiz de julgamento não pode
acusar por factos distintos dos que em conta novos factos que não tomar em conta novos factos que
constem da acusação particular e constem da acusação (particular ou não constem da acusação
o assistente não pode acusar por do MP) ou do requerimento de (particular ou do MP) ou da
factos distintos dos que contem abertura de instrução; pronúncia;
da acusação do Ministério Público.  Os factos autonomizáveis do objeto  Os factos autonomizáveis do objeto
do processo são comunicados ao do processo são comunicados ao
MP, valendo esta comunicação MP, valendo esta comunicação
domo denúncia. como denúncia;
 O juiz poderá considerar novos
factos em caso de acordo entre
todos os sujeitos processuais.
A possibilidade de o juiz de julgamento considerar factos novos em caso de acordo entre o arguido, o assistente e o
Ministério Público (art. 357º/3 CPP) constitui uma entorse ao princípio da acusação, já que permite à mesma entidade
(o juiz de julgamento) “investigar”, “acusar” e julgar. Este desvio está consagrado em nome da celeridade e da
economia processuais e da abertura a soluções processuais consensuais (depende do consenso entre todos os sujeitos
do processo).
O regime atual, tal como foi exposto, resulta das alterações introduzidas ao CPP em 2007. Em comparação com o
regime anterior, o regime atual parece-nos altamente criticável. Ora veja-se:
 A instância não se considera extinta com a descoberta de novos factos (art. 359º/1 CPP in fine) e só os factos
autonomizáveis do objeto do processo são comunicados ao Ministério Público para abertura de novo inquérito
(art. 359º/2 CPP) » daqui resulta que o processo prosseguirá, nos termos “normais”, com sacrifício dos novos
factos não autonomizáveis do objeto do processo, com prejuízo evidente das finalidades de descoberta da
verdade material e realização da justiça e de restabelecimento da paz social.
 O processo prossegue com desconsideração dos novos factos não autonomizáveis do objeto do processo (e
na falta de acordo quanto a eles entre os sujeitos processuais) » o efeito de caso julgado estender-se-á a todo
o objeto do processo, ainda que não se tenha esgotado a apreciação de toda a matéria tipicamente ilícita
submetida à cognição do tribunal. Assim sendo, e porque ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo
mesmo crime, o arguido não pode ser julgado novamente, o que implicará que determinados factos (mesmo
que absolutamente essenciais) nunca venham a ser objeto de apreciação judicial, muito embora sejam
conhecidos pelo tribunal e pelo público.

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Maria Paixão Direito Processual Penal
 A alteração substancial dos factos que diga respeito a factos autonomizáveis do objeto do processo implica a
submissão de nova denúncia o Ministério Público, sem que, todavia, o processo em curso seja interrompido
ou suspenso » deste modo sai evidentemente prejudicada a conformidade de julgados;
 A possibilidade de consideração dos novos factos em sede de julgamento mediante acordo entre os assistente,
Ministério Público, arguido e tribunal surge como “ilusória”, não afastando as críticas apontadas ao novo
regime legal » na praxis dos tribunais não é conhecido, até hoje, um processo em que tal acordo se tenha
verificado, não sendo de crer que um arguido vá concordar na consideração de novos factos que impliquem a
imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
O regime anterior harmonizava, portanto, de forma bem mais efetiva a finalidade de descoberta da verdade material
e realização da justiça com o princípio da acusação: a alteração substancial dos factos implicava a suspensão do
processo, havendo remessa para o Ministério Público, que realizaria nova investigação e decidiria acusar ou não pelos
novos factos; só finda esta “absorção” dos novos factos pelo processo é que prosseguiria o julgamento. Não se
desvelam, de facto, razões para a alteração deste regime. Parece ter estado na base das alterações legislativas uma
mais intensa realização do princípio da acusação, todavia com evidente sacrifício para a justiça material. O TC já foi
chamado a pronunciar-se sobre as normas constantes do art. 359º CPP após a alteração de 2007, sempre “desviando”
de certa forma a questão que fundamentalmente se coloca. No Ac. nº 226/2008 julgou não inconstitucional a norma
constante dos nºs 1 e 2 do art. 359º CPP, mas com referência específica ao caso concreto, não ponderando a questão
em termos abstratos; e no Ac. nº 253/2010 decidiu não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto.
4.2 Alteração não substancial dos factos
Independentemente da fase do processo em que ocorra a alteração não substancial dos factos, o juiz pode considerar
os “novos” factos, desde que tal alteração seja comunicada ao arguido e lhe seja concedido, em caso de este o
requerer, prazo para preparar defesa – arts. 303º/1 e 358º/1 CPP. A sentença que condenar fora destas condições
será nula, nos termos do art. 379º/1/b) CPP.
4.3 Alteração da qualificação jurídica
Dispõem os nº 3 do art. 358º (fase de julgamento) e o nº 5 do art. 303º (fase de instrução) CPP que, quando tribunal
alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, é aplicável o regime de alteração não
substancial dos factos. Assim sendo, o presidente do tribunal deve comunicar a alteração da qualificação jurídica ao
arguido e conceder-lhe o tempo estritamente necessário para preparação da defesa.
Questiona-se, neste contexto, qual a consequência para a inobservância deste regime:
a) Maria João Antunes: apesar da equiparação efetuada pelo nº 3 do art. 358º CPP, a inobservância deste regime,
em caso de alteração da qualificação jurídica, não implica a nulidade da sentença, já que o art. 379º/1/b) CPP
é restrito às alterações de factos;
b) Ac. STJ nº 7/2008: a inobservância do disposto nos nºs 1 e 3 do art. 358º CPP gera a nulidade da sentença, nos
termos do art. 379º/1/b) CPP, o qual deve ser interpretado extensivamente, para conformar a equiparação
feita naquele primeiro preceito.
O atual regime da alteração da qualificação jurídica é tributário do entendimento de que o arguido tem direito a se
defender não só dos factos mas também da qualificação jurídica daqueles operada pelo tribunal, falando-se aqui numa
“defesa técnica”. Este entendimento teve como marco decisivo o Ac. TC nº 445/97, que veio declarar inconstitucional
a interpretação que havia sido fixada pelo Assento nº 2/93 no sentido de não ter o arguido direito de ser prevenido
da nova qualificação dos factos e de preparar, quanto a esta, defesa.
5. A presença do arguido na audiência de julgamento
As finalidades do processo penal de descoberta da verdade e realização da justiça e de proteção dos direitos
fundamentais do arguido ditam a regra da presença do arguido na audiência de julgamento, fazendo desta presença
não só um direito mas também um dever do arguido – arts. 61º/1/a) e 332º/1 CPP. Concorrem, portanto, para esta
regra tanto interesses particulares como interesses públicos:

Direito de defesa e Princípios da imediação


princípio do e da procura da verdade
contraditório material

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Maria Paixão Direito Processual Penal
Na versão original do CPP de 1987, a regra da obrigatoriedade da presença do arguido na audiência de julgamento
comportava pequeníssimos desvios. Estava estabelecido um regime rigoroso de consequências para a falta do arguido,
ao qual acrescia a “declaração de contumácia”. O tempo veio mostrar que este regime não era o melhor, tendo, em
1997, sido introduzia alteração à Lei Fundamental mediante a qual passou a estar constitucionalmente prevista a
possibilidade de julgamento na ausência do arguido – art. 32º/6 CRP.
Verificou-se, ao longo dos tempos, que a regra da presença do arguido na audiência de julgamento em muito
prejudicava a celeridade processual. Sucedia que, muitas vezes, os arguidos, citados por via postal sobre a data e lugar
da audiência, ignoravam o aviso, sabendo que, enquanto não fossem considerados notificados, a audiência não
poderia ter lugar. Isto levou a um protelamento excessivo dos julgamentos, com claro prejuízo para o bom
funcionamento da justiça penal. Em face deste panorama, seguiram-se diversas alterações legislativas que passaram,
sobretudo, por permitir a citação do arguido por via postal simples (portanto, a partir do momento em que a carta é
expedida, o arguido considera-se citado) e por atenuar as exigências relativas à presença do arguido na audiência
Não obstante, mantém-se, atualmente, a regra da obrigatoriedade da presença do arguido na audiência de julgamento
(art. 332º/1 CPP), ainda que incluída numa disciplina francamente distinta da original.
Vejam-se, então, os casos em que o arguido pode ser julgado na ausência:
 Quando o arguido é regularmente notificado e não estiver presente na hora designada para o início da
audiência, depois de o presidente tomar as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua
comparência, nomeadamente a sua detenção (arts. 333º/1 e 7, 116º/2 e 254º/1/b) CPP).
Considera-se “regularmente notificado” do despacho que designa dia para a audiência o arguido (art. 313º):
 Notificado mediante contacto pessoal ou via postal registada (art. 113º/1/a) e b) CPP);
 Notificado mediante via postal simples, quando tenha prestado previamente termo de identidade e
residência (arts. 113º/1/c), 63º/1/c) e 196º CPP).
[NOTA: uma vez que atualmente a constituição de arguido é necessariamente acompanhada pela
prestação de termo de identidade e residência (art. 196º/1 CPP), bastará, na maioria dos casos, a
notificação por meio de carta ou aviso.]
No regime atual, não releva para efeitos da realização da audiência se a falta do arguido é ou não justificada.
Este regime conta, porém, com algumas atenuações:
 A audiência poder ser adiada, se o tribunal considerar absolutamente indispensável para a descoberta
da verdade material a presença do arguido desde o início da audiência (art. 333º/1 CPP);
 A audiência pode iniciar-se sem a presença do arguido mas sendo-lhe conferida a possibilidade de
prestar declarações até ao seu encerramento, nos casos de falta justificada (art. 33º/2 e 3 CPP);
 O arguido pode prestar declarações num dia, local e hora determinados pelo tribunal, em caso de
absoluta impossibilidade de comparecimento (art. 117º/6 CPP).
 Quando o arguido se encontrar praticamente impossibilitado de comparecer à audiência, nomeadamente por
idade, doença ou residência no estrangeiro, e tenha prestado consentimento (arts. 333º/4 e 334º/2 e 3 CPP).
 Quando ao caso couber processo sumaríssimo mas o procedimento tiver sido reenviado para a forma comum
e o arguido não puder ser notificado (arts. 117º, 334º/1 e 3 e 398º CPP).
A tutela do direito de defesa do arguido impõe que, nos casos em que a audiência decorre sem a sua presença, se
imponha a assistência obrigatória de defensor (arts. 64º/1/h), 333º/7 e 334º/4 CPP). Ademais, o prazo de interposição
de recurso só começa a contar-se a partir da notificação da sentença ao arguido (arts. 333º/5, 6 e 7 e 334º/6, 7 e 8).
Fora dos casos de audiência na ausência especialmente previstos no art. 334º/1 CPP, o arguido é notificado por editais
para se apresentar em juízo num prazo até 30 dias, sob pena de ser declarado contumaz, se não for possível notificá-
lo mediante contacto pessoal ou via postal registada ou executar a detenção ou a prisão preventiva, referidas nos arts.
116º/2 e 254º CPP. Refira-se, a este respeito, que, embora o legislador condicione a aplicação da prisão preventiva à
sua admissibilidade legal, a norma aqui em causa (art. 116º/2 CPP) só tem sentido se entendermos que não valem
aqui os requisitos do art. 204º CPP. Estamos aqui em face de um caso especial, em que a medida de coação é necessária
em função da exigência processual de assegurar a presença do arguido na audiência de julgamento.
Em suma, haverá lugar à “declaração de contumácia” quando reunidos os seguintes requisitos:
1. O arguido não for notificado regularmente do despacho que designa o dia para a audiência;
2. A presença do arguido não puder ser assegurada através de detenção ou de prisão preventiva;
3. O arguido não se apresentar em juízo em prazo fixado nos editais.

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Maria Paixão Direito Processual Penal
O despacho que declarar a contumácia (e respetivos efeitos) é devidamente registado (art. 337º/6 CPP), para fácil
conhecimento por todas as autoridades.
A declaração de contumácia é um mecanismo de desmotivação da falta do arguido à audiência de julgamento.
Pretende-se que quem se subtrai dolosamente ao exercício da justiça penal se apresente a julgamento, em face da
cominação dos efeitos daquela declaração. São esses efeitos os seguintes (art. 337º/1, 2 e 3 CPP):
 Anulabilidade dos negócios jurídicos de natureza patrimonial celebrados pelo arguido;
 Proibição da obtenção de determinados documentos, certidões ou registos junto de autoridades públicas;
 Arresto, na totalidade ou em parte, dos bens do arguido.
A declaração de contumácia, além de implicar estes efeitos nefastos, não impede o prosseguimento do processo para
efeitos de declaração da perda dos instrumentos, produtos ou vantagens a favor do Estado (art. 337º/5 CPP). Além de
que acarreta a passagem imediata de mandato de detenção. O arguido contumaz fica, desta forma, restringido, de
forma expressiva, nos seus direitos. A declaração de contumácia caducará logo que o arguido se apresente a
julgamento ou seja detido, caso em que será logo sujeito a termo de identidade e residência. Após este momento, o
arguido passará a poder ser notificado por via postal simples, de tal modo que a sua falta à audiência deixa de impedir
o seu prosseguimento, podendo ele ser julgado na ausência.
Se o processo tiver prosseguido sem a acusação ter sido notificada ao arguido, procede-se à notificação em falta, logo
que o arguido se apresente ou seja detido, caso em que este poderá requerer abertura de instrução (arts. 283º/5,
287º/1/a) e 336º/3 CPP).
6. A sentença
A sentença é o último “ato” do julgamento, seguindo-se-lhe imediatamente o encerramento da discussão (arts. 361º/2
e 365º/1 CPP). Portanto, este é o ato decisório que conhece a final do objeto do processo.
Decisão final do tribunal
Sentença Acórdão
» decisão proferida por tribunal singular » decisão proferida por tribunal coletivo ou de júri
Uma vez que a sentença ou acórdão põem termo ao processo, aquelas decisões poderão ser condenatórias ou
absolutórias (arts. 374º/3/b), 375º/3, 376º/3 CPP).
Relativamente à sentença são autonomizáveis os seguintes momentos:
1. Deliberação e votação – arts. 365º a 369º CPP;
2. Elaboração e assinatura – arts. 372º/1 e 2, 374 e 375º/1 CPP);
3. Leitura – arts. 372º/3, 4 e 5, 373º e 375º/2 CPP.
Na sentença ou acórdão o tribunal tem que decidir duas questões essenciais, nos termos dos arts. 368º e 369º CPP:
Decisão do tribunal
Questão da culpabilidade Questão da determinação da sanção
» determinação da responsabilidade penal do arguido, » determinação da pena (agente imputável) ou da
verificando-se, consoante os casos: medida de segurança (agente inimputável) aplicável
 Culpa do agente» arguido imputável;
Pode haver reabertura da audiência para produção de
 Perigosidade criminal » arguido inimputável. prova suplementar (arts. 369º/2 e 371º CPP)
Esta distinção, operada pela lei, confere autonomiza ao problema da determinação da sanção aplicável, o que é
bastante impressivo em matéria de consequências jurídicas do crime. Havendo reabertura da audiência para produção
de prova suplementar, aquele realizar-se-á, em princípio, com exclusão da publicidade, exceto quando o presidente,
por despacho, entender que a publicidade não ofende a dignidade do arguido (art. 370º/5 CPP).
[NOTA: a reabertura da audiência para aplicação de lei penal mais favorável, prevista no art. 371º-A CPP, não se
confunde, de modo algum, com a reabertura de audiência que ora nos ocupa – aquela primeira terá lugar já depois
do trânsito em julgado de decisão condenatória e visa permitir a concretização do art. 2º/4 CP.]
A elaboração da sentença ou acórdão deve obedecer ao disposto no art. 374º CPP, do qual resulta que a decisão do
tribunal deve dividir-se em três partes:
 Relatório (nº 1) » a sentença deve começar por um relatório, do qual constam os elementos elencados no nº
1 do art. 374º CPP;
 Fundamentação (nº 2) » a sentença deve conter uma fundamentação, a qual deve tocar os seguintes pontos:
 Enumeração dos factos dados como provados e não provados;
 Exposição completa dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão;

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 Indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal;
 Especificação dos fundamentos que presidiram à escolha e à medida da pena.
 Dispositivo (nº 3) » a sentença deve terminar com a indicação das disposições legais aplicáveis, a decisão
condenatória ou absolutória, a indicação do destino a dar às coisas ou objetos relacionado com o crime, a
ordem de remessa dos boletins ao registo criminal e a data e assinatura dos membros do tribunal.
A sentença que não contiver as menções referidas será nula, de acordo com o art. 374º/2 e 3/b) CPP.
Importa referir que, nos termos da Lei nº 5/2008, na sentença deve ser ordenada a recolha de amostras destinadas à
análise de ADN para registo do respetivo perfil na base de dados, de arguido condenado por crime doloso em pena
concreta de prisão igual ou superior a 3 anos.

Capítulo VIII – Impugnação das decisões: reclamação e recurso


1. Reclamação e recurso
As “decisões judicias” têm a forma de despacho, sentença ou acórdão (art. 97º/1 e 2 CPP) e são passíveis de
impugnação por via de reclamação e de recurso. O recurso é, em processo penal, é uma das garantias de defesa do
arguido: do art. 32º/1 CRP resulta a imposição de se conceder ao arguido a possibilidade de recorrer. A atribuição de
igual faculdade ao Ministério Público e ao assistente decorrerá, ainda que apenas mediatamente, dos arts. 20º e 219º
CRP. Assim se compreende que a matéria dos recursos possa ser regulada de maneira diferente num e noutro caso.
Os recursos das decisões penais são divididos em duas categorias, às quais estão associadas regras distintas:
Recursos em matéria penal
Ordinários Extraordinários
» recursos interpostos de sentenças ainda não » recursos interpostos de sentenças já transitadas em
transitadas em julgado julgado
Incluem-se aqui: Incluem-se aqui:
 Recurso de apelação » relativo a matéria de direito  Recurso de fixação de jurisprudência » interposto
e de facto (interposto para a Relação); em caso de contradição de acórdãos (interposto
 Recurso de revista » relativo apenas a matéria de para o pleno das secções criminais do STJ);
direito (interposto para o STJ);  Recurso de revisão » interposto em situações
 Recurso de revista alargada » relativo a matéria de geradoras de graves dúvidas sobre a justiça da
direito alargada a determinados vícios atinentes à decisão (interposto para as secções criminais do
matéria de facto (interposto para o STJ). STJ).
2. Recurso ordinários
! Os recurso ordinários são da competência dos tribunais da Relação ou do STJ – arts. 11º/4/b), 12º/3/b), 427º e 432º
CPP. Deste preceitos retira-se ter sido propósito do legislador circunscrever a competência do STJ aos casos de maior
gravidade, que quando intervém como 1ª instância, quer quando intervém como 2ª instância.
2.1 Princípios
No regime dos recursos são identificáveis os seguintes princípios:
 Princípio geral da irrecorribilidade;
 Princípio da proibição da reformatio in pejus;
 Princípio da tramitação unitária dos recursos;
 Princípio do duplo grau de recurso.
Veja-se mais detalhadamente cada um deles:
a) Princípio geral da recorribilidade
Este princípio, consagrado expressamente no art. 399º CPP, traduz-se no seguinte:
“princípio segundo o qual é permitido recorrer dos acórdãos, sentenças e despachos cuja irrecorribilidade não
estiver prevista na lei.”
Sistematicamente, são irrecorríveis as:
 Decisões catalogadas no art. 400º CPP;
 Decisões sobre conflitos de competências (art. 36º/2 CPP);
 Decisões sobre oposição do Ministério Público à consulta do processo ou à obtenção de elementos (art. 89º/2)
 Despachos que indefiram a prática de atos instrutórios (art. 291º/2 CPP);
 Decisões instrutórias que pronunciem o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público
(art. 310º/1 e 2 CPP).

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b) Princípio da proibição da reformatio in pejus
O princípio da reformatio in pejus, consagrado no art. 409º/1 CPP, tem o seguinte conteúdo:
“princípio segundo o qual se o recurso for interposto pela defesa o tribunal superior não pode modificar, na
sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida em prejuízo do arguido”.
Este é um princípio geral em matéria de recursos em processo penal, cuja finalidade primordial é assegurar o direito
do arguido ao recurso (art. 32º/1 CRP). Ora veja-se: se à interposição do recurso pelo arguido, pelo Ministério Público
no interesse exclusivo do arguido ou por ambos no interesse exclusivo do primeiro pudesse seguir-se a modificação
da sanção para pior, o recorrente certamente não iria recorrer na maioria das vezes. O risco de ver a sanção agravada,
na sua espécie ou medida, poderia desincentivar o arguido a recorrer.
c) Princípio da tramitação unitários dos recursos
O princípio da tramitação (tendencialmente) unitários dos recursos reconduz-se ao seguinte:
“os recursos em processo penal devem ser tramitados segundo um regime comum, independentemente do
tribunal para onde se recorre e dos respetivos poderes de cognição”.
O regime “comum” referido encontra-se consagrado nos arts. 410º a 426º-A CPP.
d) Princípio do duplo grau de recurso
O princípio do duplo grau de recurso traduz-se em:
“princípio segundo o qual pode ser admissível o recurso, relativo apenas a matéria de direito, de decisão
proferida em recurso, reconhecendo-se um triplo grau de jurisdição”.
Este princípio foi reintroduzido no processo penal português em 1998, após o CPP de 1987 ter optado por consagrar
o princípio do grau único de recurso (duplo grau de jurisdição). Note-se que o TC tem entendido que não é
constitucionalmente imposto o duplo grau de recurso em processo penal, pelo que esta é uma opção legislativa.
Este princípio sofre, porém, extensas limitações no direito vigente, tendo-se acentuado a tendência do legislador para
o restringir sucessivamente. Assim, hoje pode mesmo duvidar-se que a regra seja a do duplo grau de recurso. Parece
ser mais acertado afirmar que a regra é a do grau único de recurso (duplo grau de jurisdição), com algumas exceções.
A exceções a que nos referimos são, fundamentalmente, as seguintes:
 Não há recurso dos acórdãos proferidos em sede de recurso pelas Relações que não conheçam a final do
objeto do processo (alínea c) do nº 1 do art. 400º CPP) » estão aqui em causa, portanto, todas as decisões
sobre recursos relativos a decisões instrumentais do processo (ex.: decisão do tribunal da Relação sobre a
aplicação de medida de coação em 1ª instância).
NOTA: o Ac. TC nº 684/2004 julgou inconstitucional a norma do art. 400º/1/c) CPP interpretada no sentido de
ser irrecorrível a decisão da Relação que se pronuncie pela primeira vez sobre um aspeto instrumental (ex.:
especial complexidade do processo). Estão aqui em causa decisões que, embora proferidas pelo tribunal da
Relação, valem como decisões de 1ª instância, já que a matéria em causa não havia ainda sido decidida; daí
que, ao abrigo do princípio da recorribilidade, tais decisões sejam suscetíveis de recurso.
 Não há recurso de acórdãos absolutórios proferidos em sede de recurso pelas Relações, excepto no caso de
decisão condenatória em 1ª instância em pena de prisão superior a 5 anos (alínea d) do nº 1 do art. 400º CPP)
» de acordo com este preceito, não são recorríveis os acórdãos absolutórios da Relação em dois casos:
 Decisão absolutória em 1ª instância » nesta hipótese, há duas decisões no mesmo sentido (absolvição)
o que determina a irrecorribilidade da decisão;
 Decisão condenatória em 1ª instância em pena de prisão não superior a 5 anos » nesta hipótese, está
em causa a pequena e média criminalidade, entendendo-se que este tipo de crimes não tem
“gravidade suficiente” para ser submetido a juízo do STJ.
Logicamente, a contrario, já gozarão de duplo grau de jurisdição as decisões da Relação absolutórias quando
em 1ª instância houve condenação em pena de prisão superior a 5 anos.
 Não há recurso dos acórdãos proferidos em sede de recurso pelas Relações que apliquem pena não privativa
da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos (alínea e) do nº 1 do art. 400º CPP) » o critério de
irrecorribilidade aqui em causa alicerça-se na espécie (pena não privativa da liberdade) e na gravidade (prisão
não superior a 5 anos) da pena aplicada pelo tribunal de recurso, independentemente da natureza absolutória
ou condenatória da decisão.
Esta norma suscita a questão da sua conformidade com o disposto no art. 32º/1 CRP. De facto, ao abrigo deste
art. 400º/1/e) CPP pode suceder que o arguido absolvido em 1ª instância e que vem depois a ser condenado
pelo tribunal de recurso (em pena não privativa da liberdade ou em pena de prisão não superior a 5 anos) não

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possa recorrer desta última decisão, apesar da desconformidade entre decisões. Esta é uma questão acerca
da qual se podem invocar argumentos a favor e contra:
Não inconstitucionalidade Inconstitucionalidade
[Acs. TC nºs 49/2003, 255/2005 e 353/2010] [Acs. TC nº 412/2015 e 429/2016]
 O acórdão condenatório é da competência de  A impossibilidade de recurso das decisões da
um tribunal superior, pelo que se presume esta Relação que decidam pela condenação em face
decisão mais acertada; da absolvição da 1ª instância viola o direito
 O arguido tem oportunidade de expor a sua constitucional ao recurso;
defesa perante um tribunal superior, não lhe  O arguido tem direito de se defender até à
ficando vedadas as garantia de defesa. última instância quando as decisões judiciais
proferidas não são consonantes entre si.
A inconstitucionalidade da norma parece ser a conclusão mais consentânea a retirar das garantias do processo
penal, esperando-se, assim, que o TC a declare com força obrigatória geral. Por enquanto, os mais recentes
acórdãos do TC vão nesse sentido, mas ainda só se pronunciaram em sede de fiscalização concreta.
Maria João Antunes entende, a este respeito, que a inconstitucionalidade da norma é clara mas, ao invés do
que o TC tem afirmado, defende que o regime a consagrar deveria ser, não a admissibilidade de recurso para
o TC, mas sim a baixa do processo à instância. Esta solução assenta na ideia de que não é da competência do
tribunal de recurso (Relação ou STJ) determinar a pena aplicável. Deste modo, logo que o tribunal da Relação
concluísse pela condenação do arguido, o processo haveria de baixar à 1ª instância para determinação da
sanção aplicável; só com base nesta decisão se averiguaria a (in)admissibilidade do recurso.
 Não há recurso dos acórdãos condenatórios proferidos em sede de recurso pelas Relações que confirmem
decisão da 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos (alínea f) do nº 1 do art. 400º CPP) »
aqui o critério da irrecorribilidade funda-se no sentido das duas decisões na gravidade da pena concretamente
aplicada. O que releva, nesta sede, é, não a pena aplicável (abstrata) mas a pena aplicada (concreta).
Também esta norma tem suscitado alguma perplexidade na doutrina, mormente em virtude da consagração
do critério da pena concreta. Com efeito, em virtude deste critério, o arguido condenado em 1ª instância não
sabe de antemão se lhe será ou não reconhecido direito a duplo grau de recurso; tudo dependerá da decisão
proferida em 2ª instância. Parece-nos inadmissível esta situação, sobretudo quando o arguido pode recorrer
diretamente para o STJ: é após a condenação da 1ª instância que o arguido deverá decidir se recorre para a
Relação, da matéria de facto e de direito, ou se recorre diretamente para o STJ, apenas quanto à matéria de
direito; mas nesse momento ele não tem conhecimento de todos os dados necessários para decidir, pois será
fundamental saber se, recorrendo para a Relação, poderá ainda recorrer posteriormente para o STJ. A isto
acresce que este regime envolve o risco de a Relação ser tentada a aplicar uma pena que inviabilize novo
recurso (pois este implica o reexame da sua decisão). Note-se que, por exemplo, chegando o tribunal da
Relação à conclusão de que a pena a aplicar deve ser de 9 anos de prisão, bastar-lhe-á reduzir 1 ano na pena
(sem qualquer motivo plausível, sublinhe-se), para evitar o recurso.
A jurisprudência tem vindo a entender que o recurso de acórdão condenatório da Relação que aplique pena única
superior a 8 anos (em caso de concurso de crimes) só se refere à pena única, não podendo o STJ versar sobre a matéria
decisória referente aos crimes e às penas parcelares. Uma vez que esta compreensão não resulta da alínea f) do nº 1
do art. 400º CPP, ela cria mais uma exceção à regra da recorribilidade das decisões, resvalando para o âmbito da
analogia constitucionalmente proibida. De facto, quando é possível o recurso deve sempre entender-se que a
recorribilidade diz respeito ao acórdão no seu todo, e não apenas a parte dele. Além de que não se compreende como
poderá o STJ decidir questão desta índole sem considerar os crimes que integram o concurso e respetivas penas, já
que este é critério de determinação da pena única conjunta.
Como ficou apontado, nenhuma das alíneas que excluiu o duplo grau de recurso faz referência à aplicação, pelo
tribunal da Relação, de medidas de segurança. Quanto a estas o que se entende é que, por força das disposições
conjugadas dos artigos 399º e 400º/1 CPP, só será irrecorrível o acórdão absolutório da Relação, isto é, o acórdão que
não aplique qualquer medida de segurança ao inimputável.
A omissão da lei quanto a este aspeto parece não ter sido deliberada, mas sim um verdadeiro esquecimento.
Esquecimento esse que acaba por ser fruto da substituição, operada em 2007, do critério da gravidade da pena
aplicável (abstrata) pelo critério da gravidade da pena aplicada (concreta). Aos inimputáveis não é aplicada pena em
concreto, mas a sentença que lhes aplique medida de segurança sempre se reportará ao tipo legal de crime em causa,
o qual sempre contará com uma específica pena abstrata. Portanto, mantendo-se a redação anterior destas normas,

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o problema estaria resolvido. Este novo critério legal é, aliás, fonte de outros problemas. Note-se, por exemplo, a
questão de saber quando pode haver recurso de decisão da Relação que aplique pena relativamente indeterminada:
se a pena não é determinada logo na condenação, como aferir se foi aplicada pena superior ou inferior a 8 anos? Neste
contexto, parece-nos que a melhor solução, no plano dos princípios e do direito constituído, é considerar não existir
qualquer obstáculo ao recurso das decisões da Relação que apliquem este tipo de pena. Acrescente-se ainda, a este
respeito, que o novo critério legal também suscita diversos problemas quanto à recorribilidade das decisões da
Relação em processos cujo arguido é pessoa coletiva, já que às pessoas coletiva nunca será aplicável pena concreta de
prisão. Em suma, o novo critério da gravidade da pena concreta surge como “poço” de problemas, não sendo, de todo,
compreensível a alteração legislativa que esteve na base da sua consagração legal.
2.2 Poderes de cognição
Os poderes de cognição variam consoante o recurso seja interposto junto do tribunal da Relação ou do STJ:
Recursos ordinários
Apelação Revista
» recurso interposto para o tribunal da Relação, relativo » recurso interposto para o STJ, relativo unicamente a
a matéria de direito e de facto matéria de direito
A regra é a de que compete aos tribunais da Relação o recurso das decisões da 1ª instância (art. 428º CPP),
excecionando-se os recursos que são atribuídos legalmente ao STJ, nos termos do art. 432º CPP.
Pese embora a repartição apontada constituir o núcleo desta matéria, deve notar-se que:
 O recurso para a Relação pode visar exclusivamente matéria de direito, nos casos previstos nos arts. 427º e
432º/1 CPP (processos relativos a pequena e média criminalidade);
 O recurso para o STJ pode ter como fundamentos (art. 410º/2 CPP):
 A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
 A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
 O erro notório na apreciação da prova.
Fala-se aqui em “revista ampliada”, já que, embora o STJ só decida matéria de direito, o recurso é alargado a
vícios atinentes à matéria de facto.
O princípio do duplo grau de recurso estende-se hoje também às decisões proferidas pelo tribunal de júri. Sucedia de
forma diferente até 2007: dos acórdãos do tribunal de júri havia recurso direto para o STJ, visando apenas matéria de
direito. Em face dos poderes de cognição da Relação em matéria de facto, o novo regime é altamente questionável.
De facto, será conforme com o art. 207º CRP a modificabilidade da matéria de facto decidida por um tribunal com
maioria de jurados por decisão de um tribunal de recurso cuja composição não é integrada por jurados? A garantia
constitucional do julgamento pelo júri implica que a última palavra em matéria de facto tenha de caber ao júri, sendo
desrespeitada quando se permite que o tribunal de recurso, composto exclusivamente por juízes de direito, modifique
a matéria de facto fixada.
3. Recursos extraordinários
Nos termos já desvelados, o CPP prevê dois recursos extraordinários: o de fixação de jurisprudência (arts. 437º e ss.
CPP) e o de revisão (arts. 449º e ss. CPP).
3.1 Recurso de uniformização de jurisprudência
O recurso de uniformização de jurisprudência tem lugar nas seguintes hipóteses:
 STJ profere dois acórdãos que, relativamente à mesma matéria de direito, assentam em soluções opostas;
 Tribunal da Relação profere acórdão que, relativamente à mesma matéria de direito, entra em contradição
com outro acórdão proferido pelo mesmo ou outro Tribunal da Relação ou pelo STJ, não sendo admitido
daquele recurso ordinário.
Este recurso justifica-se, portanto, com base na ideia de unidade do Direito, devendo ser interposto do acórdão
proferido em último lugar. O seu julgamento compete ao pleno das secções criminais do STJ (arts. 11º/3/c) e 437º/1
CPP). De acordo com a jurisprudência fixada no Ac. STJ nº 5/2006, o recorrente, ao pedir a resolução do conflito, não
tem que indicar o sentido em que deve fixar-se jurisprudência.
!! A decisão que resolver o conflito tem eficácia somente no processo em que o recurso foi interposto e nos processos
cuja tramitação tenha sido suspensa, nos termos do art. 441º/2 CPP. Não constitui, pois, jurisprudência obrigatória
para os tribunais judiciais (art. 445º/1, 2 e 3 CPP). Implica, isso sim, que os tribunais fundamentem devidamente as
divergências relativas à jurisprudência fixada, sendo diretamente recorrível para o STJ qualquer decisão proferida
contra esta jurisprudência, sendo mesmo caso de recurso obrigatório para o Ministério Público – arts. 445º/3 e 446º/1

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e 2 CPP. Foi em 1998 que se afastou a obrigatoriedade da jurisprudência fixada, com o objetivo de salvaguardar a
independência dos tribunais.
3.2 Recurso de revisão
O recurso de revisão é fruto do art. 29º/6 CRP, segundo o qual os cidadãos injustamente condenados têm direito à
revisão da sentença. Este é um recurso excecional, cujos fundamentos são apenas os indicados no art. 449º CPP. São
suscetíveis de revisão sentenças condenatórias nos seguintes casos:
 Factos que serviram de fundamento à condenação mostram-se inconciliáveis com os dados como provados
noutra sentença, resultando desta oposição dúvidas sobre a justiça da condenação;
 Descoberta de novos factos que suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;
 Descoberta de que serviram de fundamento à condenação provas proibidas;
 Declaração de inconstitucionalidade pelo TC de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que serviu de
fundamento à condenação;
 Sentença vinculativa do Estado português, proferida em instância internacional inconciliável com a
condenação ou suscitar graves dúvidas acerca da sua justiça.
Ademais, são suscetíveis de revisão sentenças, tanto condenatórias como absolutórias, nas seguintes hipóteses:
 Outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes
para a decisão;
 Outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e
relacionado com o exercício da sua função no processo.
Ao conhecimento do pedido de revisão corresponderá uma decisão de negação ou autorização da mesma. Havendo
autorização, o processo é reenviado ao tribunal de categoria e composição idênticas às do tribunal que proferir a
decisão (arts. 445º/2, 446º e 457º/1 CPP).

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