Você está na página 1de 14

8

Fontes do Direito Internacional do


Comércio: a Nova Lex Mercatoria e o
Surgimento de um Direito Global
Thiago Fernando Cardoso Nalesso1

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Desenvolvimento. 3. Conclusões. 4. Referên-


cias Bibliográficas

Resumo: Uma das mais importantes manifestações do pluralismo ju-


rídico vigente no comércio internacional é a lex mercatoria, ou
“nova lex mercatoria”, como defendem alguns estudiosos, que
visa a estabelecer um regramento comum para as transações. O
texto discute a natureza de tais regras com o objetivo de propor
questionamentos sobre os riscos existentes na sua ampla utiliza-
ção, principalmente em relação aos direitos humanos.
Palavras-chave: lex mercatoria – direito global – direito transnacional
– direito internacional do comércio.
Abstract: One of the most important manifestations of actual juridical
pluralism within international trading is lex mercatoria – or as
some of researchers claim: “new lex mercatoria” – which aims
at establishing a standard regulation for trading transactions.
This article discusses the nature of those rules with the objective
of formulating questions about the risks of their outspreading
utilization, specially in their relation with human rights.
Keywords: lex mercatoria – global rights – international trading
rights.

1 Mestre em Direito pela UNIMEP. Membro do Núcleo de Estudos de Direito e


Relações Internacionais – NEDRI/UNIMEP. Professor Universitário: UNISAL
– Americana/SP e FII/FKB – Itapetininga/SP. E-mail: thiagonalesso@hotmail.
com.

08 UNI2 cap8.indd 145 3/1/2011 18:16:27


Cadernos Jurídicos Thiago Fernando Cardoso Nalesso

1. Introdução
O presente trabalho tem como objeto o estudo das novas fontes
do direito internacional do comércio, em especial a lex mercatoria
e suas repercussões no direito internacional e nos ordenamentos
jurídicos nacionais, principalmente no âmbito do surgimento de no-
vos atores globais e de novas formas de regulação das relações entre
esses sujeitos.
O trabalho visa analisar o conceito da “nova lex mercatoria”
para compreender o contexto mais amplo em está inserida, o de
uma nova forma de regulação global de relações existentes em diver-
sos campos da economia e da sociedade a fim de elaborar questiona-
mentos acerca das vantagens e desvantagens deste direito “global”.

2. Desenvolvimento
As relações comerciais e seus mecanismos próprios de regu-
lamentação, desde os mais remotos tempos, sempre desafiaram os
regramentos jurídicos regionais, e ainda foram fundamentais para
a derrocada de alguns, como no caso dos diversos ordenamentos
medievais, apoiados na forma de exploração feudal.
Por suas próprias características, a atividade mercantil sempre
procurou formas de regular sua atividade sem depender, necessaria-
mente, da intervenção estatal. Esta, muitas vezes, constituiu, inclusi-
ve, um óbice aos interesses do capital mercantil.
O ponto central nesse processo é a insatisfação mercantil com
a diversidade de formas com que os ordenamentos estatais sempre
trataram, nos variados sistemas jurídicos, a atividade comercial. É
antigo o esforço dos comerciantes em criar regras que superem as
barreiras nacionais, por um lado, e de uniformização de formas de
regramento, pelos ordenamentos jurídicos internos, por outro.
Ao trabalhar a questão da uniformização de regras do comércio
internacional, o Professor Oscar Tenório (1948, p. 380) diz que:
Tendo em vista esta tendência, que se fortalece cada vez mais,
alguns autores distinguem o Direito Comercial Internacional
do Direito Internacional Comercial. O primeiro trata dos con-
flitos de leis mercantis regendo o direito interno; o segundo
das leis uniformes tendentes a uma solução internacional dos
conflitos. A distinção embora apoiada na realidade das coisas,

146

08 UNI2 cap8.indd 146 3/1/2011 18:16:27


8 – Fontes do Direito Internacional do Comércio: a Nova Lex Mercatoria e o
Surgimento de um Direito Global

não é de molde a justificar estudos separados. A uniformização


do Direito é fruto da experiência e da observação das regras
dos conflitos de leis propriamente ditas dos vários países. Am-
bos os critérios – o da solução particular dos conflitos e o da
solução através de regras uniformes internacionais – se com-
pletam, não merecendo tratamento à parte o que constitui
uma tendência internacional peculiar ao direito mercantil.
Na atividade comercial, as práticas e costumes sempre exerce-
ram importante papel autorregrador e foram fundamentais para o
início do processo internacional de uniformização de regras.
No estudo do Direito os autores apresentam teorias diversas
acerca da conceituação e do sentido de fontes do Direito. Embora
existam divergências significativas, a divisão mais apresentada é a de
fontes materiais e fontes formais.
As fontes materiais seriam os motivos que orientaram a criação
de determinada norma jurídica, ou o próprio Estado, enquanto cen-
tro de onde emana a norma jurídica, na visão monista de Direito.
Para Miguel Reale (2007, p. 140) o que se costuma chamar de
fonte material, nada mais é do que “o estudo filosófico ou sociológi-
co dos motivos éticos ou dos fatos econômicos que condicionam o
aparecimento e as transformações das regras de direito”.Para o autor
o estudo destes condicionantes éticos não pertenceria ao campo da
ciência jurídica.
Por outro lado existe o conceito de fontes formais, que são os
mecanismos de exteriorização das normas jurídicas, os instrumentos
utilizados para apresentação das normas jurídicas. A conceituação
de fontes formais do Direito confunde-se com a de Direito positivo.
Discutem as correntes monistas e pluralistas sobre o monopólio ou
não do Estado na criação destes instrumentos normativos.
Miguel Reale (2007, p. 140) designa fontes do Direito como sen-
do:
os processos ou meios em virtude dos quais as regras jurídi-
cas se positivam com legítima força obrigatória, isto é, com
vigência e eficácia no contexto de uma estrutura normativa.
O direito resulta de um complexo de fatores que a Filosofia
e a Sociologia estudam, mas se manifesta, como ordenação
vigente e eficaz, através de certas formas, diríamos mesmo de
certas fôrmas, ou estruturas normativas, que são o processo

147

08 UNI2 cap8.indd 147 3/1/2011 18:16:28


Cadernos Jurídicos Thiago Fernando Cardoso Nalesso

legislativo, os usos e costumes jurídicos, a atividade jurisdicio-


nal e o ato negocial.
Reale (2007, p. 141) entende que a regra jurídica tem como
elemento caracterizador a capacidade de impor ao transgressor de
uma regra a aplicação de uma sanção. É necessária a existência de
um poder capaz de determinar o conteúdo normativo e de impor a
obediência ao dispositivo. Neste sentido “toda fonte de direito im-
plica uma estrutura normativa de poder”.
Verifica-se que o processo criador de uma norma jurídica de-
pende também de um processo efetivador da regra, ou seja, de es-
truturas capazes de exigir o cumprimento dos conteúdos normati-
vos presentes nas fontes de direito. Ocorre que tal capacidade não
é necessariamente decorrente do Estado. As teorias pluralistas têm
demonstrado a possibilidade dos grupos sociais de criarem e exigi-
rem o cumprimento de regras criadas autonomamente, sem a inter-
venção ou referendo do Estado, fato que pode ser verificado com
facilidade quando se trata do comércio internacional.
As fontes do direito do Direito comercial internacional são, em
muitos casos, produzidas por meio das próprias partes, por meio da
autonomia privada, ou ainda, por regras uniformizadoras de con-
dutas, principalmente as propostas pela ICC (Câmara de Comércio
Internacional) e pelo UNIDROIT (Instituto para a Unificação do
Direito Privado), por normas estabelecidas por meio de tratados e
convenções internacionais, pelos princípios gerais de direito e pelas
práticas e costumes internacionais, em especial a Lex Mercatoria.
Para Ana Paula Martins Amaral (2005) são fontes do direito do
comércio internacional, entre outros, os seguintes instrumentos ju-
rídicos:
1. Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra
e Venda Internacional de Mercadorias, de 11 de abril de
1980;
2. Convenção de Haia de 1º de julho de 1964, realizada por
iniciativa da Unidroit que estabeleceu uma “Lei unifor-
me sobre compra e venda de mercadorias” (denominada
LUVI) e uma “Lei uniforme sobre a formação dos contratos
de compra e venda internacional de mercadorias” (deno-
minada LUFCI);

148

08 UNI2 cap8.indd 148 3/1/2011 18:16:28


8 – Fontes do Direito Internacional do Comércio: a Nova Lex Mercatoria e o
Surgimento de um Direito Global

3. Convenção das Nações Unidas em matéria de prescrição


nos contratos de compra e venda internacional de merca-
dorias realizada em Nova York, em 14 de junho de 1974;
4 Convenção Interamericana de direito Internacional Priva-
do sobre o Direito Aplicável aos Contratos Internacionais
(denominada CIDIP – V);
5. Incoterms, publicados pela Câmara de Comércio Interna-
cional (CCI);
6 Regras e práticas uniformes em matéria de créditos docu-
mentados publicadas pela Câmara de Comércio Interna-
cional (CCI);
7. Regras uniformes para cobrança de efeitos comerciais pu-
blicada pela CCI;
8. Princípios sobre contratos comerciais internacionais ela-
borados pelo Unidroit e publicados em 1994;
9. Contratos-tipo ou standards;
10. Jurisprudência Estatal e Arbitral;
11. Usos e costumes internacionais ou a nova Lex Mercatoria.
Nota-se que, atualmente, em todas as relações de fontes do Di-
reito internacional do comércio encontra-se inserido o instituto da
lex mercatoria. A expressão é oriunda da Idade Média e, originaria-
mente, correspondia ao conjunto de regras costumeiras e de práti-
cas comerciais correntes no período.
A lex mercatoria é uma das mais antigas manifestações do plu-
ralismo de fontes jurídicas. Ao lado do Estado, como produtor de
normas, coexistem diversas outras fontes normativas, internas ou
externas aos Estados.
As diversas coletividades existentes no seio da sociedade, por
vezes, necessitam de regras próprias, específicas, que nem sempre
emanam dos Estados. Muitas vezes, os próprios grupos criam um
conjunto de regras e princípios para sua autorregulamentação.
Em vários domínios da vida internacional das pessoas, no
entanto, outras formas de produção normativa se desenvol-
vem de maneira independente e desvinculada da oficialidade
das autoridades estatais, como no caso específico do direito

149

08 UNI2 cap8.indd 149 3/1/2011 18:16:28


Cadernos Jurídicos Thiago Fernando Cardoso Nalesso

do comércio internacional – na nova lex mercatoria. (Basso,


2009, pp. 89-90).
Para Jete Jane Fiorati (2004, p. 19), são antecedentes históricos
da lex mercatoria a Lei do Mar de Rodes (300 a.C.) e o Jus Mercato-
rum (séc. XIV). A lex mercatoria teria nascido nas feiras medievais
como uma resposta aos direitos feudais, que, com inúmeros privilé-
gios, entravavam as práticas comerciais.
Fala-se atualmente em nova lex mercatoria como sendo a nova
ordem estabelecida no âmbito das relações de comércio internacio-
nal, ampliadas, principalmente, com o aumento das trocas, influen-
ciadas pelo fenômeno da globalização.
Maristela Basso (2009, p. 90) afirma que existe um movimento
da doutrina em torno de um “direito transnacional”, que visa a re-
gular as relações sociais criadas a partir do movimento de pessoas,
bens, capitais e tecnologias, aumentadas ainda antes do fim da Se-
gunda Guerra Mundial e que contribuíram para o surgimento de
organizações intergovernamentais. O ponto principal desta corrente
é a ideia de adoção de um direito comum destinado à regulação das
ordens públicas e privadas.
Para diversos autores o primeiro a tratar do tema e levantar
questões sobre uma “nova” lex mercatoria foi Berthold Goldman por
meio do artigo de 1964 “Frontière du droit et lex mercatoria”, pu-
blicado nos “Archives de Philosophie du Droit”. (Fiorati, 2004, p. 19;
Azevedo, 2005, p. 97).
A nova lex mercatoria sugere uma ordem normativa de regu-
lação dos problemas dos comerciantes internacionais (numa pers-
pectiva atual das empresas) contando com normas substantivas e
também mecanismos de adjudicação de litígios que se desenvolvem
paralelamente àqueles consolidados pelos órgãos judiciários estatais.
Na importante lição da doutrina, a nova lex mercatoria manifesta-se
por um conjunto de fontes específicas, como os usos e práticas do
comércio internacional, contratos-tipo, regulamentos autônomos de
associações de comerciantes e de câmaras de comércio, decisões em
arbitragens comerciais internacionais e outros expedientes técnico-
normativos capazes de disciplinar as relações jurídicas identificadas
na empresarialidade internacional. (Basso, 2009, pp. 90-91).
150

08 UNI2 cap8.indd 150 3/1/2011 18:16:28


8 – Fontes do Direito Internacional do Comércio: a Nova Lex Mercatoria e o
Surgimento de um Direito Global

O comércio internacional não tem, por hipótese, fronteiras


nem bandeira nacional. É regulado por um conjunto nor-
mativo, de certa forma difuso, que vem a chamar-se nova lex
mercatoria internacional, que a comunidade internacional de
empresários foi constituindo sobre quatro pilares fundamen-
tais: os usos profissionais, os contratos-tipo, as regulações
profissionais ditadas no marco de cada profissão, por suas as-
sociações representativas, e a jurisprudência arbitral. (Stren-
ger, 1998, p. 157).

Ao lado de normas e regras criadas pelos comerciantes interna-


cionais surge um conjunto de mecanismos de solução de controvér-
sias, como câmaras arbitrais ou de mediação, muitas vezes ligadas
às diversas organizações internacionais atuantes na área do comér-
cio. Tais estruturas tornam-se necessárias na medida em que as ins-
tituições nacionais responsáveis pela pacificação dos conflitos não
conseguem acompanhar o desenvolvimento das forças econômicas
e sociais, assim como as normas estatais também não são capazes
de acompanhar a velocidade das transformações. José Eduardo Faria,
(2010, p. 6) ao analisar o papel do Estado nesta conjuntura de trans-
formações no capitalismo global, afirma que:
Suas normas, editadas e aplicadas no âmbito de uma realidade
dominada por forças e dinâmicas globais que ultrapassam os
marcos institucionais e nacionais tradicionais, vêm perdendo
a capacidade de ordenar, moldar, conformar e regular a eco-
nomia e de reduzir incertezas, estabilizar expectativas e gerar
confiança no âmbito da sociedade. Suas leis e códigos, em
face dos novos paradigmas de produção das novas tecnolo-
gias de informação de dos novos canais de comunicação, vêm
enfrentando grandes dificuldades para promover o acopla-
mento entre um mundo virtual emergente e as instituições do
mundo real. Seus instrumentos jurídicos destinados a corrigir
desequilíbrios produzidos pelas operações de mercado, pre-
servar a livre concorrência contra a concentração de capitais,
promover orientações sociais e assegurar a legitimidade do
poder, entre outras funções com a reordenação da riqueza já
não se revelam mais eficazes. Seus mecanismos processuais
também já não conseguem exercer de modo satisfatório seu
papel de absorção das tensões, reduzir incertezas, propiciar
a gestão e a decisão de disputas e neutralizar a violência. Por
fim, as próprias instituições encarregadas de aplicar o direito
positivo, como é o caso do Poder Judiciário e do Ministério

151

08 UNI2 cap8.indd 151 3/1/2011 18:16:28


Cadernos Jurídicos Thiago Fernando Cardoso Nalesso

Público, cada vez mais se revelam incapazes de se ajustar or-


ganizacional e funcionalmente aos novos fatores, dinâmicas e
circunstâncias que determinam as transformações da econo-
mia e da sociedade.
Questão superada é a discussão sobre a natureza jurídica ou
não da lex mercatoria. Os positivistas mais extremados ignoram
qualquer regra que não emane diretamente do Estado. Porém, o que
determina a juridicidade de algo é a capacidade de produzir efeitos
na conduta humana, e não a sua origem.
Ao trabalhar esta questão, Irineu Strenger (1998, p. 147) de-
monstra que:
Nos mecanismos do Direito do Comércio Internacional, a
regra jurídica define-se por seu conteúdo e por seu caráter
obrigatório, o qual deriva seja de um comando externo ao
legislador, seja de uma simples crença interior.
Dentre os motivos que influenciam a utilização da nova lex
mercatoria, está o avanço das relações comerciais internacionais
decorrentes da globalização e o surgimento das empresas
“transnacionais”. Tais organizações, embora possuam uma direção
determinada pela sede, se compõem de um conjunto de diversas
empresas, cada uma regulada por um determinado ordenamento
jurídico estatal, fato que em diversas situações pode ser uma
dificuldade para tais organizações. Para Luis Olavo Baptista, “sob
o prisma estritamente jurídico-positivo, não existe a empresa
transnacional” (apud Fiorati, 2004, p. 18). Nesse sentido, como bem
observa Jete Jane Fiorati (2004, p. 18):
Apesar de seu vínculo aos sistemas jurídicos nacionais, é pos-
sível a ênfase de que o controle das empresas transnacionais é
predominantemente exercido de forma extralegal, pois a ma-
triz, melhor dizendo, a sede real da empresa, mantém forte in-
fluência na direção das subsidiárias, em sua maioria não inte-
grais, interferindo, na prática, em suas estratégias e decisões.
Justamente por tais questões que a lex mercatoria constitui um
instrumento facilitador das relações entre as diversas peças da en-
grenagem do atual comércio internacional. O que se discutirá mais à
frente é se tal instrumento representa algum risco aos atores sociais
não atuantes do cenário do comércio internacional.
152

08 UNI2 cap8.indd 152 3/1/2011 18:16:28


8 – Fontes do Direito Internacional do Comércio: a Nova Lex Mercatoria e o
Surgimento de um Direito Global

O atual estágio do capitalismo mundial globalizado tem suas


particularidades e complexidades, mas suas origens já podiam ser
observadas há muito tempo, como bem demonstraram Karl Marx e
Friedrich Engels, em 1848 (1987, p. 37):
A necessidade de um mercado em constante expansão para
os seus produtos persegue a burguesia por todo o globo ter-
restre. Tem de se fixar em toda a parte, estabelecer-se em toda
a parte, criar ligações em toda a parte. [...] As primitivas in-
dústrias nacionais foram aniquiladas, estão ainda dia a dia a
ser aniquiladas. São desalojadas por novas indústrias cuja in-
trodução se torna uma questão de vida e morte para todas as
nações civilizadas, por indústrias que já não trabalham maté-
rias primas nacionais, mas matérias primas oriundas das zonas
mais afastadas, e cujos produtos são consumidos não só no
próprio país mas em todos os continentes ao mesmo tempo.
A integração de mercados, que ocorre desde o início do desen-
volvimento do capitalismo, passou por diversas fases, mas é inegável
que com a globalização a integração atingiu níveis elevadíssimos. A
globalização é conceituada em diversos setores e por diversas óticas.
Opta-se, neste trabalho, pela análise do Professor José Eduardo Faria
(2010, p. 3):
Globalização é um conceito aberto e multiforme que denota
a sobreposição do mundial sobre o nacional e envolve pro-
blemas e processos relativos à abertura e liberalização comer-
ciais à integração funcional de atividades econômicas interna-
cionalmente dispersas, à competição interestatal por capitais
voláteis e ao advento de um sistema financeiro internacional
sobre o qual os governos têm uma decrescente capacidade
de coordenação, controle e regulação, como foi evidenciado
pela crise do mercado americano de crédito imobiliário de
segunda linha, pelas perdas bilionárias das bolsas de valores e
pela falência de grandes e tradicionais bancos de investimento
americanos, europeus e japoneses. Nessa perspectiva, globa-
lização é um conceito relacionado às ideias de “compressão”
do tempo e espaço, de comunicação em tempo real, on-line,
de dissolução de fronteiras geográficas, de multilateralismo
político-administrativo e de policentrismo decisório.
Neste cenário em que os Estados e governos perdem sistema-
ticamente a capacidade de controlar e coordenar diversas relações
que se estabelecem em âmbito mundial, a nova lex mercatoria se
153

08 UNI2 cap8.indd 153 3/1/2011 18:16:28


Cadernos Jurídicos Thiago Fernando Cardoso Nalesso

apresenta como um conjunto normativo criado à margem do Estado,


que pode ser capaz de regrar as relações comerciais internacionais.
Maristela Basso (2009, p. 91) analisa as fontes da nova lex mer-
catoria e apresenta três considerações importantes:
i) aumento dos sujeitos das relações privadas internacionais
(indivíduos, empresas, organizações e grupos);
ii) a existência de um direito especial cujo âmbito de aplica-
ção se refere a um universo social ou comunidade espe-
cífica, que é aquela dos comerciantes internacionais (ou,
valorativamente, as empresas transnacionais);
iii) a emergência de mecanismos especiais de solução de lití-
gios, notadamente aqui a arbitragem comercial internacio-
nal, em uma feição nitidamente instrumental.
Outro ponto polêmico acerca da lex mercatoria é a sua autono-
mia ou não frente aos ordenamentos jurídicos estatais, porém é ine-
gável a sua utilização cada vez mais em larga escala para a resolução
de conflitos de natureza comercial, contribuindo para uma efetiva
transformação do Direito internacional privado.
[...] a complexidade da nova lex mercatoria determina a re-
novação da parte mais dinâmica e economicista do direito in-
ternacional privado, sobretudo em sua interface com o direito
do comércio internacional. As soluções oferecidas pela nova
lex mercatoria normalmente são reconhecidas e endossadas
pelos ordenamentos estatais, o que ocorre justamente com a
recepção de textos e documentos produzidos em organiza-
ções internacionais e tantas instituições de vocação interna-
cional, consolidando a prática e as tendências de regulamen-
tação de determinado setor do comércio internacional. Esse
dado se constata tanto nas negociações de tratados e conven-
ções entre Estados como na elaboração de leis-modelos, reco-
mendações, diretrizes e guias de aplicação de princípios por
organizações internacionais em matéria de contratos interna-
cionais, pagamentos e transferências, operações de crédito,
garantias bancárias, franchising, e comércio eletrônico, etc.
(Basso, 2009, p. 93).
Para Gunther Teubner (2003, p. 11) a lex mercatoria é o mais
exitoso caso de um “Direito mundial” existente para além da política
internacional. Para o autor está ocorrendo um processo de formação
de um direito “global” que deverá surgir não no bojo da política in-
154

08 UNI2 cap8.indd 154 3/1/2011 18:16:28


8 – Fontes do Direito Internacional do Comércio: a Nova Lex Mercatoria e o
Surgimento de um Direito Global

ternacional, mas sim da sociedade civil internacional. Ao lado da lex


mercatoria existiriam outros direitos “globais”, em formação, como
os direitos humanos, a padronização técnica e o autocontrole profis-
sional, o direito ambiental e o direito desportivo.
O sociólogo do Direito alemão apresenta três teses referentes
ao surgimento desse direito “global”. A primeira é que o mesmo só
pode ser interpretado de forma adequada a partir de uma teoria
de fontes do Direito elaborada em consonância com as ideias do
pluralismo jurídico. Para Teubner a questão do pluralismo não passa
apenas pelo reconhecimento de ordens jurídicas criadas à margem
do Estado, mas leva em consideração os diversos discursos que se
apresentam na sociedade contemporânea.
Somente há pouco tempo a teoria do pluralismo jurídico pas-
sou por uma transformação bem sucedida, deslocando o seu
foco do direito das sociedades coloniais para as formas jurídi-
cas de diferentes comunidades étnicas, culturais e religiosas
no âmbito do Estado-nação da idade moderna. Hoje em dia
ela deveria novamente ajustar o seu foco – do direito dos gru-
pos para o direito dos discursos. Do mesmo modo, uma teoria
jurídica das fontes do direito deveria concentrar a sua atenção
em processos ‘espontâneos’ de formação do direito que com-
põem uma nova espécie e se desenvolveram – independente-
mente do direito instituído pelos Estados individuais ou no
plano interestatal – em diversas áreas da sociedade mundial.
(Teubner, 2003, p. 11).

A segunda tese é a de que o Direito global não é “inter-nacio-


nal”, na medida em que não representa necessariamente os interes-
ses dos Estados, e não é a avaliado por meio dos critérios de aferição
dos sistemas jurídicos nacionais. Os impulsos criadores de normas
deste Direito encontram-se acoplados a processos sociais e econô-
micos, muitas vezes desvinculados dos Estados.
A terceira tese afirma que este Direito global, embora seja cria-
do à margem do Estado, não é necessariamente apolítico, porém o
processo de legitimação não está ligado aos mecanismos tradicionais
do Estado, mas sim a um discurso altamente especializado e isolado
em cada uma das áreas em que surge.
155

08 UNI2 cap8.indd 155 3/1/2011 18:16:29


Cadernos Jurídicos Thiago Fernando Cardoso Nalesso

3. Conclusões
Após a análise dos textos citados percebe-se que o futuro do Di-
reito e de sua legitimação podem passar por transformações substan-
ciais e a lex mercatoria nada mais é do que a ponta de um grande
iceberg, uma vez que o Direito internacional, embora caminhe para
um direito de integração, ainda é um direito de coexistência. Neste
sentido, como afirma Teubner (2003, p. 13), se o Direito internacio-
nal não passa da “relação intersistêmica entre unidades nacionais
com elementos transnacionais relativamente fracos, outros subsis-
temas sociais já começaram a formar uma autêntica sociedade mun-
dial, ou melhor, uma quantidade fragmentada de sistemas mundiais
distintos”.
Os Estados nacionais nitidamente encontram cada vez maiores
dificuldades para manter a exclusividade na criação e na administra-
ção dos conflitos na sociedade. Para José Eduardo Faria (2010, p. 7),
os institutos jurídicos e as instituições estatais têm se revelado inca-
pazes de se ajustar às transformações da economia e da sociedade.
Diante do número cada vez maior de sistemas de interação
econômica, social e política fora do controle do Estado, cons-
tituindo uma ampla gama de centros de referência de inte-
resses diversificados, essas instituições tendem a perder sua
centralidade e principalmente sua exclusividade. (Faria, 2010,
p. 7).
Verifica-se que os novos mecanismos pluralistas de regramento
da sociedade mundial, dos quais a de maior destaque atualmente
é a lex mercatoria, possuem amplas condições de se legitimar en-
quanto regras jurídicas, dentre outros motivos, por emanarem da
vontade dos agentes sociais envolvidos nos mais variados setores da
sociedade, e sua obrigatoriedade decorrer da aceitação por parte de
tais grupos.
Entretanto, deve-se olhar com atenção para o fato dos novos
conjuntos normativos serem criados a partir de discursos isolados e
de possivelmente neles não existir uma preocupação com as reper-
cussões que possam ocorrer em outros sistemas. Algumas perguntas
ainda carecem de respostas: Em que medida a nova lex mercatoria
pode ser controlada a fim de não comprometer a efetivação e ga-
rantia dos direitos fundamentais? Ou ainda, quais seriam os meca-
156

08 UNI2 cap8.indd 156 3/1/2011 18:16:29


8 – Fontes do Direito Internacional do Comércio: a Nova Lex Mercatoria e o
Surgimento de um Direito Global

nismos mais adequados para a conciliação de tantos discursos es-


pecializados e isolados, os Estados ou os próprios grupos sociais?
Será possível responsabilizar os atores globais causadores de danos
a direito em âmbito global sem que se recorra aos Estados?

4. Referências Bibliográficas
AMARAL, A. P. M. Fontes do Direito do comércio internacional. Jus
Navigandi, Teresina, ano 9, nº 582, fev. 2005. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6261>. Acesso em:
16 set. 2009.
AZEVEDO, Pedro Pontes de. A lex mercatoria e sua aplicação no
ordenamento jurídico brasileiro. Revista prim@ facie. João Pessoa:
UFPB. nº 9, ano 5, pp. 93-105, jul.-dez., 2006.
BASSO, Maristela. Curso de Direito Internacional Privado. São Paulo:
Atlas, 2009.
FARIA, José Eduardo. Sociologia Jurídica: direito e conjuntura. 2ª ed.
São Paulo: Saraiva, 2010.
FIORATI, Jete Jane. A lex mercatoria como ordenamento jurídico
autônomo e os Estados em desenvolvimento. Revista de
Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de
Edições Técnicas. nº 164, ano 41, p. 17-30, out.-dez., 2004.
MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. Moscou:
Progresso, 1987.
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva,
2007.
STRENGER, Irineu. Contratos Internacionais do Comércio. São Paulo:
LTr, 1998.
TENÓRIO, Oscar. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Livraria
Freitas Bastos, 1948.
TEUBNER, Gunther. A Bukowina Global sobre a emergência de um
pluralismo jurídico transnacional. Impulso Revista de Ciências
Sociais e Humanas. Piracicaba: Editora UNIMEP. v. 14, nº 33, p.
9-31, jan.-abr., 2003.

Enviado em: 09/2010


Aprovado em: 09/2010
157

08 UNI2 cap8.indd 157 3/1/2011 18:16:29


08 UNI2 cap8.indd 158 3/1/2011 18:16:29

Você também pode gostar