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DIREITO PROCESSUAL PENAL

1º semestre – 3º ano

2018/2019
ANA CLÁUDIA PEREIRA
FDUP
Nota Prévia: este documento foi elaborado com base nos apontamentos das aulas da
professora Sandra Silva e nos livros Direito Processual Penal de Maria João Antunes e
Direito Processual Penal de Figueiredo Dias.

INTRODUÇÃO AO DIREITO PROCESSUAL PENAL


I. Conceito e função do direito processual penal.
1. O direito processual penal no contexto da «ciência total do direito penal»:
a) o direito processual penal e o direito penal.

O Direito Processual Penal faz parte do Direito Penal geral, tem relações
próximas de grande intimidade com o Direito Penal substantivo, são faces da mesma
moeda. Diz-se que existe uma relação de instrumentalidade entre um e outro, pois o
Direito Processual Penal serve as finalidades do Direito Penal substantivo e este serve-
se do primeiro para se realizar.
Ao Direito Processual Penal cabe a regulamentação jurídica do modo de
realização prática do poder punitivo estadual, nomeadamente através da investigação
e da valoração judicial do comportamento do acusado do cometimento de um crime e
da eventual aplicação de uma pena ou medida de segurança.
O Direito Penal substantivo tipifica as condutas humanas lesivas como crimes e
quais as penas para essas mesmas condutas. A mera existência da norma cumpre uma
função de prevenção geral. Se a norma não for uma norma de determinação, a aplicação
da mesma depende do processo, porque não há pena sem juízo, não há pena sem
processo, e é justamente aqui que se vê a relação de instrumentalidade entre os dois
Direitos.
Esta relação não prejudica a autonomia axiológica e teleológica de cada um dos
ramos do Direito. O Direito Processual Penal serve para realizar o Direito Penal, mas
também tem finalidades próprias, pois se assim não fosse, o Código do Processo Penal
teria poucos artigos. Há outras finalidades deste Direito, como salvaguardar os direitos
fundamentais das pessoas.
Figueiredo Dias diz que o que existe é uma relação de complementaridade
funcional que se materializa em influxos do Direito Penal substantivo para o Processo
Penal e influxos em sentido inverso, do Processo Penal para o Direito Penal. Quanto aos
primeiros, importa saber em que medida o Direito substantivo influencia o Processo
Penal? O Direito Penal só intervém quando estejam em causa lesões graves de bens
jurídicos essenciais e quando os outros ramos do Direito sejam insuficientes para
salvaguardar os bens jurídicos. Estes princípios também se refletem no Processo através
de concessões em função de uma ideia de oportunidade processual. O princípio em
matéria de promoção é o da legalidade, isto é, quando determinados requisitos da lei
se mostrem cumpridos, é promovido o processo penal, mas às vezes a lei concede ao
Ministério Público uma margem de oportunidade processual que se percebe como
reflexo das ideias do Direito Penal substantivo: se este não intervém sempre, também
o Processo Penal não o faz.
O Direito Penal substantivo é da culpa, só é punido quem tiver culpa e, para isso,
tem de saber se é capaz de culpa, esse juízo de imputabilidade penal é duplamente
concreto: referido ao concreto facto e ao concreto agente. A discussão da
imputabilidade no Código de 1929 fazia-se num incidente à parte, num incidente de

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imputabilidade mental e agora faz-se no próprio processo em que se discute a
factualidade imputável ao agente.
Um dos fins principais das penas é a ressocialização do agente, a reintegração
social do agente, o Direito Penal substantivo tem, ao longo das épocas, insistido nesta
finalidade, ou pelo menos evitar a dessocialização dos agentes e isto também se reflete
no Direito Processual Penal: para que a pena não seja dessocializadora, é preciso que a
pena seja adequada ao passado criminal do agente, à sua personalidade, entre outros
aspetos, e é preciso que se faça o apuramento dessa mesma personalidade, do passado
criminal, e é preciso que se faça uma ponderação. O desejável seria uma bipartição da
audiência: primeiro ver se o facto deve ser punido e depois ver qual a pena mais
adequada ao facto e ao agente. Isto não existe, mas há um modelo de césure mitigada
(cisão tendencial do julgamento), em que, depois de concluída a produção de prova,
pode pedir-se relatório social para saber a pena mais ajustada para o concreto agente.
Também há influências em sentido inverso – do Direito Processual Penal para o
Direito Penal. Estas ideias da fragmentariedade têm na base considerações práticas que
se ligam a uma funcionalidade da máquina judiciária, é preciso que os tribunais
funcionem bem e isto reforça as ideias de fragmentariedade e subsidiariedade que são
apoiadas por considerações processuais. Às vezes descriminaliza-se para cumprir
mandamentos do Processo Penal, mas há incriminações que surgem para dar resposta
a problemas do Processo, questões probatórias sobretudo. São os casos dos artigos 151º
(rixa), 176º (pornografia de menores) e 372º (recebimento indevido de vantagem,
corrupção) do Código Penal.
Há institutos de natureza mista: queixa, acusação particular e prescrição do
procedimento criminal – interessam tanto ao Direito Penal como ao Direito Processual
Penal. Por exemplo, o artigo 170º do Código Penal (crime de importunação sexual). Aqui
a queixa é condição de punibilidade, influencia o juízo sobre a dignidade penal da
conduta.

b) o direito processual penal e a criminologia;

Direito Processual Penal e Direito Penal fazem parte do Direito Penal em sentido
amplo que, por sua vez, faz parte da Ciência Total do Direito Penal, que inclui também
a Criminologia.
A Criminologia estuda os fenómenos de seleção da deliquência. Importa para o
Direito Processual Penal conhecer o fenómeno e tentar minorá-lo. Há muitos anos,
criou-se uma teoria nos EUA (labelling approach) segundo a qual as instâncias de
controlo estigmatizam o criminoso como delinquente e que essa pessoa é conduzida a
novos fenómenos de delinquência secundária. Isto também tem importância no
Processo Penal, que procura minimizar estes fenómenos de estigmatizar, prescindindo-
se do julgamento em situações de bagatelas penais – caso do processo sumaríssimo,
não envolve julgamento, há uma proposta de sanção pelo Ministério Público fiscalizada
pelo juiz que, aprovando-a e havendo acordo com o arguido, será a sanção efetivamente
aplicada. Há outras situações em que o Ministério Público não acusa e arquiva ou
suspende provisoriamente.
Em suma, ao denunciar o processo de seleção da delinquência e, em geral, a
discrepância entre os crimes cometidos e os denunciados, entre estes e os crimes que
são processados e entre estes e os crimes aos quais vem a corresponder uma decisão

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final, a Criminologia reflete sobre instâncias formais de controlo que participam no
decurso do processo penal, denunciando que o criminoso é muitas vezes não
propriamente aquele que comete crimes, mas antes aquele a quem o estigma é aplicado
com sucesso.
São também de grande relevo para o Processo Penal os estudos criminológicos
que traçam a distinção entre a pequena criminalidade e a criminalidade grave.
A Vitimologia é um ramo importante na Criminologia e atenta à forma como a
vítima é tratada no Processo Penal, pois pode conduzir a fenómenos de vitimização
secundária e o Processo está atento a isso, excluindo a publicidade de audiência ou a
vítima é ouvida uma só vez ou havendo lugar a suspensões do processo (não levar a
julgamento) de modo a proteger a vítima.

c) o direito processual penal e a política criminal.

A Política Criminal também tem reflexos importantes, importa-se com a


eficiência e celeridade da máquina judiciária, procura que o processo decorra sem
entraves: o processo sumário é muito rápido, não há sequer fase de inquérito, após a
detenção em flagrante delito há julgamento sumário. Outro exemplo são os acordos
sobre a sentença, no Processo Penal não se dá tanta relevância ao interesse das partes.
Figueiredo Dias, por influência alemã, escreveu um livro sobre acordos sobre a sentença,
mas a solução não foi introduzida e tinha em vista assegurar a celeridade.
Com a determinação das consequências jurídicas do crime realiza-se a decisão
político-criminal no caso concreto: o cumprimento das intenções e do programa
político-criminais do sistema dependem, pois, na mais alta medida, de uma justa
aplicação das consequências do crime.
Atualmente, existe a Lei Quadro da Política Criminal e a cada 2 anos há uma nova
lei que diz quais os crimes que devem ser investigados com prioridade, são
recomendações dirigidas ao Ministério Público e às polícias e são traduzidas em
orientações aos magistrados. Orienta os fenómenos de descriminalização e
neocriminalização, são fenómenos flutuantes e que reagem à Política Criminal.
Em suma, um programa político-criminal fundado no mandamento da
necessidade de tutela de bens jurídicos e da reintegração do agente na sociedade
projeta-se necessariamente no Processo Penal. Reclama, nomeadamente, que o
processo penal se desenrole de forma célere, que seja dado relevo adequado à
determinação da sanção, que a resolução do conflito jurídico-penal tenha lugar também
por via de mecanismos de diversão e que o arguido e a vítima participem na
administração da justiça penal, criando para o efeito espaço para soluções processuais
de consenso.

2. O conteúdo do direito processual penal.

II. Localização do direito processual penal no sistema jurídico.


1. O direito processual penal como parte do direito público.

O Direito Processual Penal constitui uma parte do Direito Público, não só porque,
como em todo o Direito Processual, nela intervém sempre o Estado no exercício de uma

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das suas funções, a função jurisdicional, mas sobretudo porque a perseguição e
condenação dos criminosos é matéria de uma comunidade constituída em Estado.

2. O direito processual penal como parte do direito processual geral.

PARTE I A ESTÁTICA PROCESSUAL


Capítulo 1 TEORIA DA LEI PROCESSUAL PENAL
I. As fontes do direito processual penal português:
1. O Código de Processo Penal de 1987 (aprovado pelo Dec.-Lei n.º 78/87, de 11 de
Fevereiro): sua génese e estrutura.

Desde o positivismo legalista do século XIX, que a fonte principal é a lei (nos
ordenamentos da civil law), em particular o Código do Processo Penal de 1987,
antecedido do Código de 1929, mas já sofreu muitas alterações.
Ao lado desta fonte principal existe legislação extravagante, que regula os mais
diversos âmbitos particulares do Direito Processual Penal.

2. Referência às principais alterações legislativas posteriores.

Houve uma alteração legislativa ao CPP importante em 2007 influenciada pelo


processo Casa Pia e atualmente um outro poderá influenciar – o processo Marquês.

3. Outros instrumentos normativos com incidência processual penal:


a) a Constituição da República Portuguesa: breve referência aos artigos 27.º, 28.º,
29.º, 31.º. Leitura comentada do artigo 32.º da Constituição.

Para além do Código do Processo Penal há outros diplomas importantes, tanto


no plano interno, como no plano internacional. No plano interno, temos a Constituição
da República Portuguesa, porque o Direito Processual Penal é Direito Constitucional
aplicado, já que o Direito Processual Penal contende com os direitos das pessoas (buscas
domiciliárias, escutas telefónicas, agentes infiltrados, prisão preventiva).
O Direito Constitucional exerce uma influência importante no Direito Processual
Penal e há muitas normas que nos importam: artigos 1º, 13º, 18º, 20º, 27º, 28º, 29º,
31º, 206º da CRP. Mas há uma entre outras que é como a magna carta das garantias da
defesa do arguido – o artigo 32º da Constituição:

- número 1: princípio da plenitude das garantias da defesa, é o princípio geral de


abertura, é um mandado de otimização, não é uma norma de regra;
- número 2: princípio da presunção da inocência;
- número 3: o arguido tem o direito de escolher o defensor;
- número 4: toda a instrução é da competência do juiz, temos a fase da instrução que se
segue ao inquérito e que é facultativa, só que a Constituição foi aprovada em 1976 e o
Código de Processo Penal era de 1929 e a instrução não era o que é hoje, correspondia
ao inquérito e havia duas instruções: a do Ministério Público (instrução preparatória) e
a do juiz (instrução contraditória). Quando a Constituição diz que passa a ser da
competência do juiz era para ser tudo do juiz (as duas), mas foi criado o inquérito para
o Ministério Público (tarefas de investigação) e a instrução para o juiz (tarefas que

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contendem mais com os direitos dos indivíduos, todos os atos compressivos dos direitos
fundamentais), o que aparentemente parece ser uma inconstitucionalidade;
- número 5: o processo criminal tem estrutura acusatória;
- número 6: pode ser feito o julgamento à revelia, sem a presença do arguido;
- número 7: ofendido e o seu papel importante no Processo Penal;
- número 8: produções de prova;
- número 9: princípio do juiz natural;
- número 10: garantias da contraordenação.

b) o Código Penal.

No plano interno, é importante o Código Penal, pois há complementaridade


funcional entre os dois ramos do Direito e porque há matérias disciplinadas nos dois
ramos, como é o caso da questão de saber se o crime é público, semipúblico ou privado.

c) a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Há diplomas avulsos e diplomas de Direito Internacional, no plano externo, que


relevam, como é o caso da Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 1950, cujo
artigo 6º é o correspondente ao artigo 32º da nossa Constituição. A sua importância
advém do facto de ser fiscalizada pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e de os
cidadãos terem direito de acesso a esse tribunal, o que não acontece com os outros
tribunais da União Europeia. As suas decisões exercem influência direta nos Estados.

d) o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.

É importante também o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos,


aprovado sob a égide da ONU, sobretudo o artigo 14º que também é similar ao artigo
6º da CEDH.

e) o Direito da União Europeia: linhas de convergência e de rutura na construção de


um «processo penal europeu».

É também importante o Direito da União Europeia, porque com a abolição das


fronteiras também aumentaram os crimes internacionais que envolvem vários Estados
e porque surgiram crimes contra a própria UE (corrupção, branqueamento). Existem
instrumentos importantes a este nível: Europol, Eurojust, mandado de detenção
europeu, procuradoria europeia, decisão europeia de investigação, são passos
importantes que terão relevo no Processo Penal e que terão influxos no Direito interno.
Ligam-se à eficácia da perseguição penal – função espada, mas mais recentemente foi-
se desenvolvendo a função escudo, que surgiu a partir de 2009 com um roteiro de
Estocolmo para o reforço das garantias processuais do arguido e fizeram-se várias
diretivas para o efeito.

II. Interpretação e integração da lei processual penal


1. Interpretação.

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Quanto à interpretação e integração de lacunas, não há especificidades de maior
no Processo Penal. Valem os cânones de interpretação estabelecidos no artigo 9º do
Código Civil. Apenas de salientar dois pontos: a consideração das finalidades do
processo e a necessidade de se tomar na devida conta o princípio da interpretação
conforme à Constituição.
Por força destas ligações com a Constituição, há, então, um mandamento
reforçado de interpretação da Constituição.

2. Integração: análise do artigo 4.º do Código de Processo Penal.

Mas mais difícil é a integração de lacunas. O primeiro passo será procurar a


lacuna por analogia, mas e se não houver caso análogo? Aplicam-se as normas do
Processo Civil, que é subsidiário do Direito Processual Penal. Quando não haja sequer
estas normas, recorre-se aos princípios gerais do Processo Penal que têm, por isso, uma
dupla função: negativa ou de controlo do recurso ao Processo Civil pois só se recorre a
este na medida em que seja compatível com os princípios; e função positiva ou
integradora pois em último caso o intérprete deve recorrer aos princípios gerais.
Em suma, o artigo 4º do CPP prescreve um tríplice caminho no processo
integrativo: 1- analogia; 2- regras do Processo Civil que se harmonizem com o Processo
Penal; 3- princípios gerais do Processo Penal.

Quanto à analogia, é preciso que haja caso análogo, uma determinada matéria
seja semelhante a outra que o Processo Penal legislou. Discute-se o seguinte: um
arguido entre vários requer a abertura da instrução, a decisão instrutória aproveita aos
que não requereram? Não está nada na lei. Mas há na lei algo semelhante em relação
aos recursos – o recurso aproveita aos restantes. Por analogia, podemos aplicar o
mesmo à instrução. Não obstante o legislador permitir o recurso à analogia, a doutrina
diz que não pode implicar um desfavorecimento à situação processual do arguido.
Significa que o princípio da legalidade do artigo 29º da Constituição também se aplica
ao Processo Penal. Se a analogia levar à restrição dos direitos do arguido é proibida
(analogia in malam partem).
Se o caso interpretado não tem outro análogo diretamente regulado na lei
processual penal, manda o artigo 4º recorrer às regras do Processo Civil que se
harmonizem com o Processo Penal. Confere-se assim às normas legais do Processo Civil
o estatuto de Direito subsidiário, todavia sob condição de se demonstrar a sua
harmonia, no caso, com os princípios do Processo Penal.
Aos princípios gerais do Processo Penal não pertence, porém, só a assinalada
função negativa ou de controlo do recurso ao Direito subsidiário, mas também uma
função positiva e diretamente integradora, quando a lacuna não tenha podido ser
colmatada com o recurso às duas fontes anteriormente referidas.

III. Âmbito de aplicação do direito processual penal português

Do âmbito de aplicação da lei processual penal levantam-se quatro problemas:


o âmbito material, o âmbito pessoal, o âmbito espacial e o âmbito temporal (aplicação
da lei processual penal do tempo).

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1. material.

No que diz respeito ao âmbito material, vale o princípio da coincidência entre o


âmbito material do Direito Processual Penal e o âmbito material do Direito Penal
substantivo, isto é, o Direito Processual Penal aplica-se a todas as matérias a que se
aplica o Direito Penal substantivo, ou seja, todos os comportamentos definidos como
crime são tramitados de acordo com a lei processual penal.
Mas este princípio encontra exceções: há certas hipóteses em que a conduta de
uma pessoa convoca várias formas diferentes de responsabilidade, a prática de um
crime pode dar lugar a danos indemnizáveis no Direito Civil. Essa questão é também
tramitada no âmbito do Processo Penal, em vez de haver um processo separado, é
deduzido no próprio processo penal – artigo 71º do CPP que consagra o princípio da
adesão obrigatória. Por vezes, a conduta de uma pessoa subsumível a moldura penal
também é contraordenação, isto é, pode haver conflito entre normas
contraordenacionais e Direito Penal, é no Processo Penal que se discute a
responsabilidade contraordenacional – artigo 38º do Regime Geral das
Contraordenações. Finalmente, o domínio das questões prejudiciais – são questões que
têm um objeto diferente da questão principal que no processo se discute e pode ter
natureza não penal e têm de ser resolvidas antes, pois delas depende o desfecho a dar
à questão principal. As questões prejudiciais devem ser, em princípio, resolvidas no
Processo Penal – artigo 7º do CPP que consagra o princípio da suficiência. Mais uma vez,
existe aqui uma incoincidência, pois aplicam-se no Processo Penal matérias que não são
de Direito Penal.

2. pessoal.

Quanto ao âmbito pessoal, também existe coincidência com o Direito Penal


substantivo, sendo que estão sujeitas ao Direito Processual Penal e à jurisdição penal
todas as pessoas a quem se aplique o Direito Penal substantivo português.
Mas também existem desvios a este princípio porque há imunidades, limitações
autónomas que são apenas imunidades de jurisdição. Há algumas no plano interno no
que respeita a soberania: Presidente da República – artigo 130º número 4 da CRP;
deputados – artigo 157º número 2 da CRP; membros do Governo – artigo 196º número
1 da CRP. Têm em vista proteger a dignidade e prestígio das funções de soberania, são
imunidades processuais apenas. No Direito Internacional, a Convenção de Viena sobre
Relações Diplomáticas prevê uma imunidade diplomática processual que os dispensa de
se sujeitaram a uma jurisdição do Estado acreditador, sendo que o Estado acreditante
pode levantar a imunidade – artigos 22º, 26º e seguintes e 29º a 37º da Convenção.

3. espacial

Já quanto ao âmbito espacial, o artigo 6º do CPP diz que o Direito Processual


Penal se aplica dentro dos limites estritos do território do Estado – princípio de
territorialidade. Volve-se numa coincidência de princípio entre o âmbito espacial de
aplicação do Direito Penal substantivo e o âmbito espacial de aplicação do Direito
Processual Penal. Isto porque os tribunais portugueses, quando são competentes para
decidir, aplicam o Direito Processual Penal e só aplicam Direito Penal substantivo

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português, ao contrário do que acontece no Direito Civil, em que podem aplicar Direito
estrangeiro consoante o caso. Daí no Direito Penal só haver regras de um tipo. Há uma
exceção no artigo 6º número 2 do Código Penal, em que se aplica Direito de outro
Estado. Há ainda um outro problema: a possibilidade de executar em Portugal decisões
proferidas por outros Estados – matéria regulada no livro V do Código do Processo
Penal. Existe também a Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal.
Mas também há tratados internacionais que precedem. A referida lei regula matérias
como extradição, transferência de pessoas, entre outras.
O princípio do auxílio jurídico interestadual em matéria penal tem, assim,
concretização nos diplomas e normas supracitados.

4. temporal. O problema da sucessão temporal da lei processual penal ― as «normas


processuais materiais».

Quanto ao âmbito temporal, importa distinguir dois planos: o âmbito de vigência


da lei e o seu âmbito de eficácia. A lei vigora entre a sua entrada em vigor e a sua
cessação de vigência (âmbito de vigência). O âmbito de eficácia é quando a lei se vai
aplicar. Em princípio, os dois âmbitos coincidem, à partida a lei aplica-se às situações da
vida que aconteçam durante a sua entrada em vigor e a sua cessação de vigência por
caducidade. O princípio geral está contido no artigo 12º do Código Civil – o princípio da
não retroatividade, que diz que a lei se aplica apenas aos factos que ocorram após a sua
entrada em vigor. A lei deixa de se aplicar aos factos que aconteçam depois da cessação
da sua vigência. É deste artigo que decorre esta coincidência entre os dois âmbitos.
O princípio da aplicação imediata da lei processual penal está regulado no artigo
5º do CPP – tempus regit actum. Significa que a lei processual penal se aplica a todos os
atos processuais que ocorram a partir da sua entada em vigor, ainda que digam respeito
a processos de crimes que tenham ocorrido antes, ou seja, o que releva é o momento
da prática do ato processual. O legislador adota um conceito atomístico de ato
processual, pois é o ato com a parte mais pequena, qualquer ato processualmente
relevante. Por exemplo, o julgamento compõe-se em vários atos, dentro da audiência
também há vários atos processuais, por exemplo a inquirição de testemunhas é um ato
processual. Assim, de acordo com o artigo 5º do CPP, a circunstância de a lei nova se
aplicar àquele ato processual e não aos anteriores, não leva à invalidação dos já
praticados, não há invalidação superveniente dos atos processuais praticados ao abrigo
da lei anterior.
Há um conjunto de problemas adicionais:
 Circunstância de o Processo Penal ser um conjunto de articulados, não são atos
avulsos e dispersos, são atos articulados numa lógica, é a circunstância de no
mesmo processo se aplicarem diferentes leis, o que pode prejudicar a harmonia
do processo. O legislador procurou resolver esta questão no artigo 5º número 2
alínea b) do CPP – quando a lei nova possa conduzir à quebra de harmonia, a lei
nova não se aplica aos processos iniciados antes da vigência, só se aplica aos
processos que se iniciem após a sua entrada em vigor. Que lei se aplica aos
processos anteriores? A lei antiga – sobrevigência ou ultratividade da lei antiga,
a lei antiga sobrevive porque se continua a aplicar para além da sua cessação de
vigência. Já não há aquela coincidência dos dois âmbitos. A lei nova não se vai
aplicar a processos pendentes – eficácia diferida da lei nova, terá que aguardar

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que novo processo comece para aplicar-se, também temos uma incoincidência
dos dois âmbitos.
 O Direito Processual Penal também contende com matérias em relação às quais
pode haver compressão das liberdades individuais e, por isso, a doutrina
maioritária tem procurado aproximar os critérios de aplicação do tempo do
Direito Processual Penal aos do Direito Penal substantivo. Para este, valem o
princípio do tratamento mais favorável (proibição de aplicação de lei retroativa
com efeitos mais desfavoráveis). A doutrina tem procurado uma aproximação
entre estes consagrados na Constituição e na lei e os do Direito Processual
Penal. A doutrina distingue dois grupos de normas processuais:

- Normas materiais: aquelas que contendem com a efetivação da responsabilidade


criminal do agente, as que dizem respeito a atos processuais compressores dos direitos
fundamentais do arguido e as que contendem com o estatuto do recluso. Existem três
espécies:
- as que contendem com a efetivação da responsabilidade criminal do agente
(queixa, prescrição ou acusação particular): estando em causa um crime semipúblico ou
particular, se não houver queixa, não há processo nem há responsabilidade criminal do
agente;
- as que contendem com os direitos fundamentais do arguido (que dizem
respeito aos recursos admissíveis);
- as que contendem com o estatuto do recluso (organização do sistema
penitenciário, liberdade condicional).
- Normas formais: definem-se pela negativa, são todas as que não se incluam neste
universo.

Às normas materiais deve aplicar-se um regime diferente e mais perto do Direito


Penal, às normas formais aplica-se o artigo 5º do CPP. No referido artigo 5º número 2
alínea a) do CPP, o legislador resolve parte da questão, a lei nova tem eficácia diferida
nestes casos, continua a aplicar-se a lei antiga (sobrevigência). Há um autor que não
concorda – Taipa de Carvalho diz que o regime legal é insuficiente e diz que esta norma,
quando referida às normas materiais, é inconstitucional, pois da Constituição resulta
que se devem aplicar os critérios gerais do Direito Penal substantivo. No Direito Penal,
o critério é o momento da prática do crime (artigo 3º do Código Penal, critério unilateral
da conduta) e no Direito Processual Penal é o critério do início do processo. Taipa de
Carvalho diz que nas normas materiais o critério deve ser o mesmo.
Taipa de Carvalho entende, então, que o princípio do tratamento mais favorável
– in malam partem e in mitius (artigos 3º do CP e 29º da CRP) aplica-se às normas
materiais. Isto é, aplicar-se às normas materiais o regime constitucional e legal pensado
para o Direito substantivo. Mas porque entende assim? Entende que se trata de evitar
o arbítrio dos poderes do Estado que pode exercer-se da incriminação de uma conduta
que não era crime, como a agravação de penas, como a previsão de uma medida de
coação para um crime que antes não a admitia. Este arbítrio pode fazer-se através
destas normas processuais materiais ou através do Direito substantivo. Este é o
fundamento político. Encontra fundamento normativo constitucional para a sua teoria
no artigo 18º número 3 da CRP. Estas normas processuais materiais são leis restritivas
de direitos fundamentais e não pode haver retroatividade dessas leis. Um outro

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argumento é retirado do artigo 29º número 4 da CRP: o facto de a Constituição
introduzir a palavra “arguido” leva a que sejam aplicadas as mesmas regras/regime para
as normas materiais. Este argumento é mais fraco, pois, quando o juiz decide a aplicar a
pena, decide em relação ao arguido e não ao condenado.
Esta solução de Taipa de Carvalho pode ter inconvenientes: um deles é a própria
funcionalidade da máquina judiciária, o processo penal é uma marcha complexa e
demorada e a circunstância de considerar-se a lei em vigor na prática do facto (crime)
pode conduzir à ingovernabilidade do processo, pensemos nas normas relativas ao
recurso. Dizer-se que quanto aos requisitos, legitimidade e condições rege o Direito em
vigor no momento da conduta, é provocar a ingovernabilidade do processo. O juiz tem
de ter em conta muitas leis, logo torna-se mais difícil.
A este propósito um autor italiano, Mario Chiavario, propôs a teoria das
expectativas. Entende que estes critérios de aplicação no tempo tendem a tutelar uma
expectativa, só que essa expectativa não se define sempre do mesmo momento
temporal, depende da matéria que a lei está a disciplinar. Quanto aos pressupostos
positivos e negativos de procedibilidade (queixa e prescrição, positivo e negativo
respetivamente) faz sentido que a expectativa se fixe no momento da conduta.
Normativamente, a expectativa cristaliza-se no momento da tomada da decisão, não se
podem alterar os prazos. A partir de que momento deve estar cristalizada a questão do
recurso? A partir da decisão da primeira instância. Quanto a esta última matéria, há um
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (processo nº 4/2009). Se se tratar de normas
processuais materiais que digam respeito à efetivação da responsabilidade criminal,
Taipa de Carvalho tem razão, tendem a aplicar o Direito das normas do CP e da CRP.
Quanto às outras normas processuais materiais, depende, vai aplicar-se a proibição da
retroatividade, o princípio da aplicação da norma mais favorável. Há ainda um problema
novo quanto às condições de responsabilidade criminal: no Processo Penal, não está em
debate apenas o interesse do Estado e do arguido, no Processo Penal, define-se uma
relação triangular entre o Estado, o arguido e a vítima do crime – artigo 32º número 7
da CRP.
Como tal, não se pode esquecer o interesse da vítima, algo que pode ser posto
em causa na qualificação jurídica processual de um crime, ou seja, qualificar um crime
como público, semipúblico ou particular em sentido estrito. Outro fator é a alteração
dos prazos em que se pode fazer a queixa, pois muitas vezes procura-se o resultado mais
favorável ao arguido, mas isso conflitua com os interesses da vítima.
Distinguem-se, então:
- crimes públicos: o Ministério Público tem competência para promover o processo, sem
ser relevante a posição do particular ofendido;
- crimes semipúblicos: o ofendido tem de se queixar;
- crimes particulares em sentido estrito: o ofendido tem de se queixar, constituir-se
assistente e formar acusação particular.
Do ponto de vista do arguido, é mais favorável o crime particular. Se a lei nova
converte um crime semipúblico num crime público, qual se aplica? É a lei antiga, estava
em vigor no momento da prática do facto, pois a lei nova não é mais favorável. Mas se
for ao contrário? Aí aplica-se a lei nova, porque é mais favorável ao arguido, acrescenta
o requisito de procedibilidade que, ao abrigo da lei antiga, não existia. Mas não se
podem descurar os interesses da vítima. Será correto do ponto de vista constitucional?
Não, mas como se compatibilizam os dois interesses? Aplica-se a lei nova, mas o prazo

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para a queixa só conta a partir da data da entrada em vigor da lei nova, para não deixar
desprotegida a vítima.
Se o crime público for convertido em crime semipúblico aplica-se a lei nova, mas
alarga-se o prazo para queixa. O aspeto do prazo para a queixa pode ser alterado. O
prazo era de 6 meses e passa a ser de 9 meses através da lei nova: aplica-se a lei antiga,
pois é mais favorável ao arguido. E se a lei nova encurtar o prazo para 3 meses? Aplica-
se a lei nova, porque é mais favorável ao arguido, mas pode acontecer que, sendo o
prazo encurtado, a vítima, que contava com prazo de 6 meses, decorridos 4 meses, se
vê impossibilitada de se queixar, pois já decorreram os 3 meses da lei nova. Aplica-se a
lei nova, mas o prazo novo de 3 meses só se conta a partir do momento da entrada em
vigor da lei nova. Mas esta solução pode introduzir uma perversão: na prática, pode-se
alongar o prazo, aplica-se a lei nova contando-se o prazo da sua entrada em vigor a
menos que, ao abrigo da lei antiga, faltasse menos tempo para o prazo se completar,
neste caso continua a aplicar-se a lei antiga. Esta fórmula está contida no artigo 297º do
Código Civil, e esse artigo aplica-se aqui também.

Capítulo 2 A ESTRUTURA DO PROCESSO PENAL PORTUGUÊS


I. AS FINALIDADES DO PROCESSO PENAL
1. O sentido do problema. Fins e funções.

Os modelos processuais definem-se em função do equilíbrio diferente entre as


várias finalidades reconhecidas ao Direito Processual Penal.
As finalidades do Direito Processual Penal podem ser vistas numa dupla aceção:
- no sentido mais sociológico: como funções que o Processo Penal desempenha, realiza
na sociedade;
- no sentido mais normativo/axiológico: como os fins, os valores, os princípios
transversais, que o Processo Penal se propõe prosseguir.
Vamos adotar o segundo conceito, pois o primeiro é o presente na tese do
sociólogo Luhman, do século XX, que dizia que a função do Processo Penal era a
legitimação da decisão. Diz que o Processo Penal, como todos os procedimentos,
configura um sistema dentro do sistema social e desempenha a função concreta de
legitimar a decisão contra os protestos que se poderiam levantar: a forma mais óbvia é
a decisão ser justa, mas podemos aceitar uma decisão menos justa materialmente se
um conjunto de formalidades tiver sido concretizado, se os trâmites forem observados.
A solução seria absorver os protestos. Não é este conceito que nos interessa.

As finalidades do Processo Penal são os fins que o Processo Penal visa prosseguir.
Figueiredo Dias diz que são três:
1. realização da justiça e descoberta da verdade: o Processo Penal não pode existir
validamente se não for presidido por uma direta intenção ou aspiração de justiça
e de verdade. Isto não obsta a que institutos como o do caso julgado ou
princípios como o in dubio pro reu, possam conduzir, em concreto, a
condenações e absolvições materialmente injustas. Não obstante a descoberta
da verdade material ser uma finalidade do Processo Penal, não pode ela ser
admitida a todo o custo, antes havendo que exigir da decisão que ela tenha sido
lograda de modo processual válido e admissível e, portanto, com o integral

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respeito dos direitos fundamentais das pessoas que no processo se veem
envolvidas;
2. salvaguarda dos direitos fundamentais das pessoas, particularmente do arguido:
afirmá-lo é também proteger o interesse da comunidade de que o processo
penal decorra segundo as regras do Estado de Direito. São estas regras que vão
impedir, em certas situações, a obtenção da verdade material. Em certas
circunstâncias, para que os interesses assinalados se concretizem, necessário se
torna pôr em causa direitos fundamentais das pessoas;
3. restabelecimento da paz jurídica: é também finalidade do Processo Penal o
restabelecimento da paz jurídica comunitária posta em causa pelo crime e a
consequente reafirmação da validade da norma violada.

2. Apresentação crítica de algumas das principais teses sobre o tema: a realização do


direito substantivo; a descoberta da verdade e a realização da justiça; o
restabelecimento da paz jurídica comunitária; a tutela dos direitos fundamentais; a
legitimação das decisões e a absorção do conflito.

A principal finalidade é a realização da justiça, que significa a absolvição dos


inocentes e a condenação dos culpados. Uma decisão justa assenta na verdade, em
pressupostos fácticos verdadeiros que se procura reconstruir no processo.
A verdade que se pretende atingir no Processo Penal é uma verdade diferente
da que se procura atingir no Processo Civil, onde se aceita uma verdade formal que
resulta do jogo do funcionamento das preclusões processuais. Aceita-se a desistência e
a confissão. No Processo Penal, pretende-se que a verdade se aproxime o mais possível
da verdade dos factos históricos, não se admitindo os acordos sobre sentenças, por
exemplo. É de evitar a expressão “verdade material”, pois é uma ingenuidade
epistemológica e uma perigosa ilusão acreditar que se vai atingir a verdade material. É
perigosa ilusão, porque houve momentos históricos em que essa aspiração serviu para
legitimar, por exemplo, a tortura e outros instrumentos repressivos. Isto foi visível na
Baixa Idade Média com a Inquisição. Perigosa, porque conduz à repressão inadmissível
dos direitos das pessoas. Há sempre limites epistemológicos à descoberta da verdade,
desde logo a capacidade das pessoas (o juiz não assistiu ao crime, reconstitui-o através
das provas que podem não existir), é uma ingenuidade achar que podemos chegar à
verdade. Há também limitações normativas, não podemos esperar indefinidamente, o
processo tem que começar e acabar num tempo adequado. Por outro lado, é preciso
que a descoberta da verdade obedeça a regras, que não desproteja as pessoas.
Isto conduz-nos à segunda função do Direito Processual Penal: a salvaguarda dos
direitos fundamentais das pessoas não é propriamente uma finalidade autónoma, mas
um limite à descoberta da verdade do Direito Processual Penal, que existe para que os
direitos das pessoas não sejam ofendidos/atingidos. Isto é visível no domínio da prova
e dos meios de coação (a prisão preventiva, por exemplo).
Por fim, a última finalidade: importa uma descoberta da verdade que se produz
num tempo adequado, não podemos esperar indefinidamente devido à paz jurídica, não
só da comunidade, mas também do arguido e, como tal, o Processo Penal deve ser
célere – artigo 32º número 2 da CRP, que consagra a presunção da inocência. A CRP
associa a presunção da inocência com a celeridade do processo. A decisão será tão mais
pacificadora, quanto mais próxima do cometimento do crime for.

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3. As antinomias entre finalidades. O princípio da «concordância prática» como
critério iluminador da interpretação.

Reconhecer estas finalidades do Processo Penal implica aceitar a impossibilidade


da sua integral harmonização em todos ou na generalidade dos concretos problemas do
Processo Penal, levando a concluir pelo caráter irremediavelmente antinómico e
antitético daquelas finalidades.
Deve procurar-se assegurar, na medida possível, todas as finalidades que o
Processo Penal visa, sem se comprimir o núcleo essencial de cada uma delas –
mandamento de otimização das finalidades em conflito. Por outras palavras, a solução
está em operar a concordância prática das finalidades em conflito. Tal tarefa implica,
relativamente a cada problema concreto uma mútua compressão das finalidades em
conflito, por forma a atribuir a cada uma a máxima eficácia possível: de cada finalidade
há-de salvar-se, em cada situação, o máximo conteúdo possível, otimizando-se os
ganhos e minimizando-se as perdas axiológicas e funcionais. Situações há, no entanto,
em que se torna necessário eleger uma só das finalidades, por nelas estar em causa a
intocável dignidade da pessoa humana.
O caso julgado e o recurso refletem a tensão das finalidades da realização da
justiça e do restabelecimento da paz jurídica. A finalidade do restabelecimento da paz
jurídica pode conflituar, de igual modo, com a finalidade da proteção dos direitos
fundamentais das pessoas, quando se sujeita o arguido a prisão preventiva, por
exemplo. São várias as concretizações destes conflitos.

II OS MODELOS PROCESSUAIS
1. Estrutura processual e os «modelos processuais».

As formas como as finalidades se associam repercutem-se no modelo processual.


Os modelos processuais fazem-se ressonância neste equilíbrio das finalidades. Os
modelos processuais podem assumir duas perspetivas:
- perspetiva teorética
- perspetiva histórica

Dentro da primeira perspetiva, temos uma dupla tipologia:


- modelo acusatório e modelo inquisitório
- modelo hierárquico/vertical e modelo paritário/horizontal

O nosso modelo é acusatório (por força do artigo 32º número 5 da CRP), mas
tem uma matriz inquisitória. O modelo americano resulta da implantação do modelo
inglês, que é acusatório. O autor Mirjan Damaska defendeu a contraposição, olhando
para os sistemas acusatório puro e acusatório continental, distinguiu-os e elegeu esta
dicotomia: o sistema continental é vertical e o sistema anglo-americano será horizontal.

2. «Tipologias» de modelos processuais:


2.1. O modelo processual acusatório e o modelo processual inquisitório.

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Na estrutura processual penal inquisitória domina o interesse estadual e
consequentemente a finalidade de realização da justiça e de descoberta da verdade
material. As funções de investigação, de acusação e de julgamento cabem a uma mesma
entidade (ao juiz), em uma estrutura processual em que o arguido tem o estatuto de
objeto do processo com desconsideração dos seus direitos. No sistema inquisitório, a
fase predominante é a da investigação. Como a fase instrutória é secreta, escrita e não
contraditória, todo o processo também o será.
Na estrutura processual penal acusatória, o processo penal é visto como uma
disputa entre o Estado e o indivíduo indiciado. A verdade que se obtém é uma verdade
meramente formal, emergente de regras de repartição do ónus da prova, com respeito
dos princípios da igualdade de armas e do dispositivo. Há uma cisão entre a entidade
que investiga e acusa e a que julga, tendo o arguido o estatuto de sujeito processual,
por se tratar de estrutura processual que tem como finalidade a proteção dos direitos
das pessoas. Esta separação material entre entidades tem vantagens do ponto de vista
da imparcialidade. No sistema acusatório, a fase essencial dominante é o julgamento –
oral, contraditório e público. Pode ser visto como uma sinédoque, todo o processo está
dominado por estas 3 características.

Ilustração 1 - Retirado do PowerPoint fornecido pela docente

Na História do Direito continental, houve um processo exasperadamente


inquisitório. No nosso Processo Penal, há algumas características que nos aproximam
do sistema inquisitório, apesar de sermos um sistema acusatório: o nosso juiz tem o
dever-poder de investigar as bases do julgamento, não é totalmente passivo, não há um
ónus de autorresponsabilidade probatória, o juiz pode e deve reunir as provas
necessárias, ainda que não sejam requeridas pelo Ministério Público, arguido e
assistente. Outro aspeto: o nosso sistema tem como predominância o julgamento, mas
permite-se com alguma latitude maior o aproveitamento de provas que estão contidas
nos autos e obtidas nas fases anteriores de tramitação. No nosso sistema, o inquérito é
uma fase, todas as diligências da investigação pelo Ministério Público transitam para o
juiz quando vai fazer o julgamento, embora exista uma proibição do princípio da
valoração das provas pessoais produzidas em fase de inquérito, as coisas continuam lá,
o juiz está impedido de valorar, mas não está impedido de ler, há uma influência
subterrânea na convicção do julgador.

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2.2. O modelo processual hierárquico ou vertical e o modelo processual paritário,
coordenado ou horizontal (M. Damaška).

Esta caracterização por Damaska, que procura associar as funções do Estado à


estrutura e finalidade do Direito Processual Penal, levou à seguinte conclusão:
- num Estado ativo ou interventivo, o Processo Penal dirige-se à realização de políticas
públicas e é um Processo Penal estruturado em moldes hierárquicos;
- num Estado reativo ou abstencionista, o Processo Penal é um instrumento de resolução
de conflitos entre pessoas e o Processo Penal tem uma estrutura paritária.

O modelo hierárquico é seguido por Portugal. Caracteriza-se pela fragmentação


em fases e compreensão como sucessão ordenada e escalonada de fases.
Já no modelo paritário, tudo se concentra no julgamento, a investigação é pré-
processual. O processo é o julgamento. A atividade a jusante é o recurso, a atividade a
montante é a investigação. Há muitos poucos casos com recurso, principalmente em
desfavor da defesa, ocorrem em casos muito contados. É consagrada uma cláusula da
double jeopardy – diz a 5ª Emenda da Constituição dos EUA que ninguém pode ser
julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime. Os recursos nos EUA têm eficácia
cassatória. Quando se pode recorrer em desfavor da defesa? Quando há anulação do
julgamento ou nos casos em que o juiz tenha absolvido e o júri tenha dado o veredicto
de culpado. O recurso conduz à restauração do veredicto inicial, ao invés da repetição
do julgamento.

O nosso Processo Penal, em 1987, quis restaurar as marcas da acusatoriedade


e refrear-se o recurso, sendo que o legislador introduziu um grau único de recurso, de
modo a apostar na justiça da 1ª instância. Atualmente, já temos um sistema com duplo
grau de recurso muitas vezes admitido – o recurso é visto como garantia da defesa.
Existe um único nível decisório no modelo paritário. No modelo hierárquico, há
um estrito dever de fundamentação, para tornar compreensível a decisão à
comunidade. É uma garantia. É uma exigência instrumental relativamente ao recurso,
não se pode recorrer sem conhecer a fundamentação. No modelo paritário, não existe
necessidade de fundamentação das decisões em matéria de facto. No modelo
hierárquico, a necessidade de documentação é uma característica que se liga à
fragmentação do processo, pois um processo pode durar muitos anos. No modelo
paritário, há um relevo da oralidade, a documentação da investigação não é acessível
ao juiz. No sistema italiano, temos a solução do duplo processo: na fase do julgamento
extraem-se dos autos só aquilo que o juiz pode valorar, para garantir a imparcialidade.
No modelo paritário, por exemplo, quando é produzida prova pericial, o perito vai
sempre ao julgamento (princípio da imediação).

3.Perspetiva sumária da evolução dos sistemas processuais na Europa ocidental.

A evolução do Processo Penal na Europa Continental deu-se, em suma, da


seguinte forma: desde o século VI d. C., primeiro houve o modelo acusatório, a que
sucedeu, no século XIII, o modelo inquisitório, sendo que, no século XVI, foi restaurado
o modelo acusatório.

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a) A implantação do processo inquisitório na Europa continental da Baixa Idade Média.

A evolução do Processo Penal na História tem início no século VI d.C., com a


queda do império romano do ocidente e com as invasões bárbaras. Vigorava o modelo
processual de estrutura acusatória, começava com um particular que acusava e o
acusado tinha de purgar os indícios através dos meios de prova disponíveis. Não eram
meios de prova racionais (como as testemunhas, perícias), eram meios decisórios, eram
meios de decisões com componente punitiva, no sentido de superar o obstáculo. Quais
eram?
- ordálios (Gottsurteil): destinavam-se a pessoas de baixa condição social ou que não
podiam lutar. Um exemplo prende-se com a queimadura na mão do arguido que, se
apresentasse, sinais de cura, levaria à sua absolvição;
- juramento purgatório: aplicado a membros do clero e da nobreza, em que o acusado
deveria reunir vários compurgatoris, isto é, pessoas que juravam a inocência do arguido
face à confiança que tinham no mesmo;
- duelos: destinavam-se a cavaleiros.

A seleção do meio dependia, assim, da classe social. Não havia distinção entre
pretensões civis e penais. Eram meios decisórios com carga punitiva. São meios
decisórios, porque a decisão não competia ao juiz, este era passivo, apenas verificava.
Quem decidia verdadeiramente era deus, acreditava-se que deus não deixava um
inocente perecer. Eram provas irracionais e primitivas. A partir do século IX/X, começou
a desacreditar-se do valor epistemológico destas provas. Por outro lado, também
haviam objeções religiosas e morais. Essas objeções conduziram à crise do modelo, para
a qual também contribuíram o crescimento económico, o bem-estar social sentido a
partir do século XII, o que aumentou a criminalidade. Foi este proliferar da criminalidade
que fez surgir, primeiro no mundo religioso, e depois no mundo laico, uma questão: será
este o melhor método para punir todos os criminosos? O medo era que se deixassem
por punir pessoas pelos crimes.
Com o IV Concílio de Latrão (1215), proibiram-se alguns ordálios e noutros
proibiu-se a intervenção do clero. Surge um novo processo – per inquisitione. Nas
infrações mais graves, não devia o julgador ficar à espera da acusatio, portanto,
transitou-se de um modelo acusatório para um modelo inquisitório – princípio da
oficialidade: era uma autoridade pública que promovia o Processo Penal, bastava que
surgissem rumores ou clamor social para que o juiz pudesse promover o processo penal
– princípio da inquisitoriedade. É a mesma entidade pública que faz o julgamento. Isto
aconteceu primeiro no mundo religioso. Tinham fundamentos teóricos fortes
apresentados pelos canonistas, que encontravam na Bíblia. Mas havia quem visse no
Novo Testamento fundamentos do modelo acusatório. Seguiu-se a proibição do
juramento purgatório e dos duelos. Esta transição ocorreu primeiro no mundo
eclesiástico, mas rapidamente passou para o mundo laico.
Na Baixa Idade Média, no século XIII, começaram a verificar-se os primeiros
esforços do reforço do poder. Começou a divulgar-se a forma inquisitória. Foram
introduzidas as provas racionais: testemunhas, documentos. Havia uma pré-
determinação legal (regras doutrinais sedimentadas pelo tempo) do valor de cada meio
probatório e a sua hierarquização num esquema a que o julgador estava adstrito –
sistema da prova legal que tinha uma função garantística. Era preciso vincular o juiz aos

16
valores da prova. No topo da hierarquia, estava o notório. Depois estava a prova plena.
Depois a prova semiplena e, por fim, os indícios. Estes eram insuficientes para condenar,
mas justificavam o recurso à tortura. A tortura visava obter a confissão e esta constituía
notório e, assim, já se podia condenar. A tortura não era imoral, porque entendia-se que
o acusado sabia sempre alguma coisa e revelaria a verdade e esta era o valor absoluto.
A valorização da descoberta da verdade eliminava os escrúpulos morais, legitimava a
tortura. O modelo era circular: o sistema legal visava limitar o arbítrio, mas depois
permite a tortura. O notório era, então, uma confissão judicial e espontânea, mas a
tortura não punha em causa a espontaneidade, porque tinha de repetir a confissão em
juízo, caso não o fizesse voltava a ser torturado. Também constituía notório o flagrante
delito. A prova plena era o testemunho concordante de 2 testemunhas não suspeitas e
o documento autenticado. Na prova semiplena, temos o depoimento de 1 pessoa ou de
2 pessoas incapazes (categoria onde se inseriam as mulheres) e o documento particular.
Indícios eram a fuga do arguido ou a inimizade com a vítima.

Notório

Prova plena

Prova semiplena

Indícios

b) O processo penal nos Estados Absolutos.

A partir do século XVI, temos o nascimento do Estado moderno, autoritário, que


conduziu ao endurecimento deste modelo, pois este ainda tinha uma componente
mínima de garantia – também se acreditava que deus salvava o inocente, quem
resistisse à tortura era ilibado. Surgem alguns expedientes:
- absolvição da instância: mesmo que resistisse à tortura, esperava-se que surgissem
novas provas;
- penas privilegiadas e extraordinárias: quando o crime fosse muito grave, mas havia
provas semiplenas, essa prova era considerada extraordinária;
- aritmética da prova: permitia-se a soma de valores probatórios, por exemplo, uma
prova semiplena vale meio, com duas provas já se pode condenar.
O Processo Penal é então dominado, exclusivamente, pelo interesse do Estado,
que não concede ao interesse das pessoas qualquer consideração autónoma e ligado a
uma liberdade inteiramente discricionária do julgador. O arguido é visto como mero
objeto de inquisição. Assim, minimizam-se e ignoram-se os mais elementares direitos
do suspeito à sua proteção perante abusos e parcialidade dos órgãos estaduais.
Daqui uma estrutura processual penal em que ao juiz compete simultaneamente
inquirir, acusar e julgar, em que a ele pertence o domínio discricionário do processo, sob
o pretexto de se procurar a verdade real dos factos – processo inquisitório.

c) A crítica iluminista ao processo inquisitório.

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No século XVIII, começou a surgir uma nova visão do mundo e das coisas, o
iluminismo penal, a crença nos direitos fundamentais inalienáveis do Homem, o repúdio
da tortura, a censura do erro judiciário, eram temas estudados por grandes iluministas
como Voltaire. Este era ativista e promovia reformas penais, retratava em panfletos
casos de erro judiciário. Um deles deu origem ao Tratado sobre a Tolerância. Havia,
portanto, uma denúncia sistemática do erro judiciário: acreditavam que o sistema
necessariamente conduzia ao erro. Quando o erro passa a ser a regra, o sistema entra
em crise. Censurava-se a aritmética da prova.
O Direito Processual Penal torna-se numa ordenação limitadora do poder do
Estado em favor do indivíduo acusado. Surge aqui a necessidade de separar a entidade
investigadora da julgadora, bem como a concretização dos princípios do dispositivo, do
juiz passivo, da verdade formal, da autorresponsabilidade probatória das partes e da
presunção de total inocência até à condenação. Outros aspetos relevantes seriam o
princípio do contraditório, a criação de um sistema estrito de legalidade da prova e a
garantia de uma posição processual e pré-processual equiparada entre arguido e
acusador.

d) A Revolução Francesa e a reforma do processo penal.

A Revolução Francesa veio concretizar todas estas exigências e,


consequentemente, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) veio
consolidá-las.
O sistema, quer na sua componente de inquisitoriedade, quer na componente
da prova, entrou em crise e começou a ruir, caindo o sistema após a Revolução Francesa.
Como não se pode construir um sistema ab inicio, vai-se buscar ao que se conhece –
sistema dos jurados inglês, copiou-se apenas a sua face visível – o princípio da livre
apreciação da prova e dos jurados, mas não se copiaram as regras probatórias que se
foram intensificando no Direito inglês, no século XIV. Reintroduziu-se o modelo
acusatório – havia um júri de acusação que acusava o réu e havia outro júri competente
para julgar (composto por cidadãos do meio de onde vinha o acusado e decidiam pela
sua livre compreensão, decidiam de acordo com a sua consciência, não importavam as
provas que havia).

d) A transição para o processo misto e para modelos de inquisitório mitigado.

Este sistema de livre apreciação da prova foi introduzido em França na Revolução


Francesa. Mas quando Napoleão aprovou o Código em 1808, já era um processo misto
aquele que foi introduzido e foi esse processo misto, por força do império francês, que
se comunicou aos restantes Estados. Era misto, porque havia uma fase de investigação
separada da fase de julgamento, mas as provas da primeira fase secreta e inquisitória
repercutiam-se no julgador. Em França, o julgador eram os jurados, mas em Itália eram
juízes de carreira, mas só fazia sentido ter os jurados.
Este modelo misto converteu-se, nos séculos XIX e XX, num modelo inquisitório
mitigado.

e) Referência breve ao processo anglo-americano (adversarial system).

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No Direito inglês, com a conquista do território pelos reis normandos, houve
esforços de centralização do poder, que aconteceram pela via fiscal: alguns emissários
do rei eram enviados às terras e faziam recolha de informações para efeitos fiscais, mas
depois começaram a ser recolhidas as notícias sobre crimes e assim nasceu o júri, era
necessário que as pessoas apresentassem o acusado aos emissários, com o indictment.
Até ao século XIII, eram os ordálios, juramentos e duelos os meios probatórios. Mas
depois foram abolidos e introduziu-se outro conjunto de jurados para julgar. Só que a
sujeição ao julgamento pelos jurados era facultativa, fazia-o quem não se queria sujeitar
aos meios tradicionais de prova. Mas havia um problema – o que se fazia para coagir?
Não era bem tortura, mas era quase, o acusado era preso numa masmorra, até que
aceitasse apresentar-se a julgamento. Aquilo a que se forçava não era a confissão, era
apresentar-se como inocente ou como culpado. Se fosse inocente, era apresentado aos
jurados, se fosse culpado era condenado. Começou a surgir o modelo de law of evidence
e foi assim que se chegou ao século XVIII, com o resto da Europa a copiar este modelo.

4. Aspetos fundamentais no atual panorama do direito comparado: linhas de rutura e


aproximação dos «modelos».

5. Caraterização preliminar e vetores essenciais da estrutura processual portuguesa: a


«estrutura acusatória integrada por um princípio de investigação judicial».

Em 1929, surge o Código de Processo Penal que antecedeu o agora vigente e


surge, precisamente, numa época jurídico-política de ditadura. No entanto, o Código
consagrava um sistema de “forma acusatória”. Esta estrutura processual era
materialmente inquisitória, já que o mesmo juiz procedia à instrução e ao julgamento,
cabendo ao MP deduzir a acusação.

Tendo em vista o Processo Penal de um Estado de Direito democrático, o CPP de


1987 foi estruturado sem perder de vista a concordância prática das finalidades,
necessariamente conflituantes, que são apontadas ao processo penal, segundo um
modelo acusatório, integrado por um princípio de investigação.
O nosso modelo é acusatório integrado por um princípio de investigação judicial.
Significa que vigora o princípio da acusação, existe uma separação material entre quem
investiga e acusa e entre quem julga. Mas também que aos sujeitos processuais, maxime
ao arguido, são atribuídos poderes de conformação da marcha processual e
codeterminação da decisão final, na medida em que pode apresentar provas, recorrer,
pedir abertura de instrução. Acaba por condicionar de modo indireto a decisão final.
Mas o nosso modelo não é como o modelo acusatório da Alta Idade Média, nem o
modelo puro norte-americano. O nosso juiz não é passivo, tem um poder-dever de
investigação – artigo 340º número 1 do CPP. Significa que pode ordenar, mesmo
oficiosamente, todas as provas que se afigurem necessárias para a descoberta da
verdade.
O Processo Penal português é, então, um modelo acusatório mitigado pelo
princípio de investigação judiciária.

III. PRINCÍPIOS GERAIS DO PROCESSO PENAL PORTUGUÊS

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A. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS
1. O sentido axiológico-político e jurídico-dogmático dos princípios gerais do processo
penal.

Os princípios encontram consagração a nível constitucional e legislativo. Mas há


princípios que não têm sequer base normativa, como o princípio do in dubio pro reo,
extrai-se do artigo 32º número 2 da CRP, do princípio da presunção da inocência. Cada
um destes conhece um princípio de sinal oposto que o legislador quis afastar.
Há dois princípios gerais, dois supraprincípios que escapam à sistematização e
que modelam o sistema em geral.

2. Os princípios regulativos do Processo Equitativo (Fair Trial) e da Presunção da


Inocência
2.1. Fair trial:
a) o referente do modelo adversarial anglo-americano e a densificação normativa na
CEDH (art. 6.º) e no PIDCP (art. 14.º).

O princípio do fair trial ou processo equitativo está previsto no artigo 20º número
4 da CRP, no artigo 6º número 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no
artigo 14º número 1 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. A formulação
em inglês acentua a dimensão procedimental da justiça, não basta que a decisão seja
justa materialmente, é preciso que tenha seguido um caminho leal, que assegure a
garantia do arguido e de outros envolvidos no processo. Funciona como cláusula geral
englobadora de garantias de defesa, mesmo que não tenha concreta consagração
normativa. Para além dos direitos tipificados na lei, o arguido tem direito a todos os
outros direitos que lhe permitam defender-se eficazmente da imputação. Esta cláusula
permite que se extraiam outros direitos não tipificados.

b) A garantia constitucional do «processo equitativo» (art. 20.º, n.º 4, CRP): conteúdo


essencial. O princípio da igualdade de armas: crítica.

Este princípio liga-se a um outro: princípio da plenitude das garantias de defesa,


previsto no artigo 32º número 1 da CRP, que surge na linha da jurisprudência do Tribunal
Europeu dos Direitos Humanos. Este liga-se, por sua vez, ao princípio da igualdade de
armas – pois a defesa não tem os mesmos meios de prova. Não se pretende uma
igualdade aritmética, não são os mesmos meios, mas são meios igualmente eficazes de
sustentar a acusação e de defesa contra essa imputação. Ao reconhecer-se a natureza
assimétrica, este princípio impõe um conjunto de mecanismos de compensação dessa
desigualdade, como por exemplo, o direito ao silêncio, a presunção da inocência e a
prerrogativa de poder falar em último lugar na audiência em julgamento.

2.2. Presunção da inocência (art. 32.º, n.º 2, CRP)

Consagrado no artigo 6º número 2 da Convenção Europeia dos Direitos do


Homem e no artigo 14º número 2 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.
Surge numa dupla perspetiva:
- como regra de tratamento

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- como regra de juízo ou decisória

a) a presunção da inocência como regra de juízo probatório

Este princípio vale como regra de juízo, é mais clara essa dimensão na Convenção
Europeia dos Direitos Humanos. Subentende-se que a culpa de que é acusado tem de
ser provada por outrem – repartição do encargo probatório (burden of proof). Também
resulta um determinado standard probatório (standard of proof) – a culpabilidade tem
de ser provada para além de toda a dúvida razoável. Se não se atingir essa razoabilidade,
o arguido tem de ser absolvido, o estado de dúvida do juiz tem de ser decidido a favor
do arguido. Quando se diz que o encargo probatório não impende sobre o arguido,
também se exige que o Ministério Público não prove a culpabilidade recorrendo ao
arguido como fonte epistémica das informações relevantes, o arguido também tem
direito ao silêncio – proibição relativa de meios de prova.

b) a presunção da inocência como regra de tratamento do arguido – principais


concretizações, sobretudo em matéria de medidas restritivas da liberdade pessoal
antes da condenação.

A primeira vez que este princípio foi consagrado foi na Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão no artigo 9º, em 1789. A presunção de inocência adquiria esta
dimensão de regra de tratamento, queria-se evitar que sobre o arguido fossem
aplicados meios coativos ou de investigação incompatíveis com a ideia de estarem a ser
aplicados a um inocente. Esta dimensão também é aquilo que é pretendido no artigo
32º número 2 da CRP e dela resulta uma limitação dos meios de investigação e dos meios
cautelares. Nos artigos 27º e 28º da CRP admite-se a prisão preventiva, convém
compatibilizar, impõe limites quanto aos fins (quando se vise satisfazer finalidades
endoprocessuais, têm a ver com a salvaguarda da prova, não podem estas medidas de
privação de liberdade constituir uma pena ou antecipação de pena, não podem cumprir
finalidades exoprocessuais) e quanto aos requisitos das medidas de coação (são
requisitos muito apertados e exigentes, para que se aplique a prisão preventiva têm de
existir “fortes indícios”). Também impõe limites à forma como se apresenta o arguido
na audiência de julgamento. Entre nós, o arguido aparece com roupas normais suas,
livre na sua pessoa, sem prejuízo de segurança na sala e salvo em casos de arguidos mais
perigosos. A celeridade também se liga à presunção de inocência, as restrições à
publicidade também.

B. PRINCÍPIOS GERAIS DO PROCESSO PENAL.


1. Sistematização adotada

São os princípios do Processo Penal que condensam as opções axiológicas e


criminais que o legislador quis eleger. Inspiram as normas e servem razões de ordem
pragmática – quando há uma lacuna, os princípios são chamados a integrar essa mesma
lacuna. Figueiredo Dias faz a sistematização que vamos seguir:

a) princípios da promoção processual (oficialidade, legalidade e acusação)

21
- princípio da oficialidade: quem tem competência;
- princípio da legalidade: de que forma se exerce essa competência;
- princípio da acusação: estruturante do modelo, consagrado na CRP “sistema tem
estrutura acusatória”.

b) princípios da prossecução processual (investigação, contraditoriedade, suficiência,


concentração.

- princípio da investigação: acompanha toda a marcha processual, também é princípio


da prova, cabe nos dois segmentos;
- princípio da suficiência: artigo 7º do CPP, liga-se às questões prejudiciais;
- princípio do contraditório: artigo 32º número 5 da CRP;
- princípio da concentração: espacial mas sobretudo temporal, princípio programático.

c) princípios da prova (investigação, livre apreciação, in dubio pro reo)

- princípio da investigação: artigo 340º número 1 do CPP;


- princípio da livre apreciação da prova: origem no iluminismo penal, artigo 127º do CPP;
- princípio do in dubio pro reo.

d) princípios da forma (publicidade, oralidade, imediação).

- princípio da publicidade: problema do segredo de justiça;


- princípio da oralidade;
- princípio da imediação: as provas devem ser repetidas nas duas fases de investigação
e julgamento, obstáculos práticos, não normativos à imediação.

2. Princípios relativos à promoção processual.


2.1. Princípio da oficialidade.
a) noção, fundamento e conteúdo.

Responde à questão de saber quem tem competência para promover o Processo


Penal abrindo inquérito e decidindo dos factos e do agente no julgamento. Dos séculos
VI a XIII a resposta era de que a competência seria do particular ou ofendido da prática
do crime através da acusatio privada. Antes disto, no Direito romano, vigorava uma ideia
de acusação particular – quem acusava era qualquer pessoa da comunidade que,
solidária com a vítima, promovia a marcha do processo. Passou a propender-se no
sentido do princípio da oficialidade – é uma entidade pública, entre nós o Ministério
Público.
Este princípio conhece dois momentos de atuação:
1- na abertura de inquérito, cabe ao MP da promoção do processo abrindo
inquérito, por isso é ele quem tem competência para receber queixas e decidir do
destino a dar-lhes – artigos 48º e 53º número 2 alínea a) do CPP. As queixas, denúncias
ou participações podem ser apresentadas à polícia, mas esta tem que as transmitir ao
MP no prazo de 10 dias – artigo 248º do CPP;
2- este princípio dita que é o MP quem tem competência para decidir da sujeição
do agente e dos factos a julgamento, manda acusar ou arquivar no fim do inquérito,

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acusa se tiver indícios suficientes, arquiva se não os tiver – artigos 53º número 2 alínea
c), 277º e 283º número 1 do CPP.

b) desvios: os «crimes semipúblicos» e os «crimes particulares em sentido estrito».

Os desvios e exceções remetem para o problema de os crimes serem de natureza


pública ou particulares em sentido amplo, que integram os crimes semipúblicos e
particulares em sentido estrito.
Nos crimes públicos, em razão da natureza dos interesses discutidos que tocam
a comunidade como um todo, cabe ao MP a competência em ambos os momentos –
abre o inquérito independentemente da vontade dos particulares e decide da sujeição
ou não do agente e dos factos a julgamento. Há crimes públicos que atingem apenas
bens jurídicos supraindividuais (condução sob efeito de álcool, falso testemunho), mas
há outros que têm um referente individual (furto qualificado, violência doméstica), mas
são-no pela sua gravidade e é, portanto, o MP que abre inquérito e deduz acusação. Em
suma, são crimes públicos aqueles em que o MP promove oficiosamente e por sua
própria iniciativa o processo penal e decide com plena autonomia – embora ligado por
um princípio de legalidade – da submissão ou não submissão da infração a julgamento.
Relativamente a estes crimes vale inteiramente o princípio da oficialidade com o
conteúdo atrás assinalado.
Nos crimes semipúblicos, há um desvio a este princípio, porque só é afastado no
primeiro momento, na decisão da abertura do inquérito – a competência cabe ao MP,
mas tem quer ser integrada por um ato de vontade do ofendido: a queixa. O particular
tem que se queixar e só aí o MP tem competência para abrir inquérito. A tramitação é
igual à dos crimes públicos, o MP investiga e acusa ou não acusa.
Nos crimes particulares em sentido estrito, há uma exceção ao princípio, porque
é afastado nos dois momentos: no primeiro, é preciso que o particular se queixe para
que o MP possa abrir inquérito, mas é preciso que o particular se constitua, ainda,
assistente no prazo de 10 dias a contar da queixa (ou se for oral, no prazo a contar da
data de quem a recebe informe o queixoso de que se deve constituir assistente) – artigos
68º número 2 e 246º número 4 do CPP. Finda a fase de inquérito, conduzida pelo MP
nos termos gerais, é o particular, enquanto assistente, quem deduz acusação. Faltando
estes pressupostos processuais (queixa, assistente ou acusação particular), o processo
deve ser arquivado, não dispondo de condições para prosseguir.

Porque nem todos os crimes são crimes públicos? Se todos os crimes têm que
atingir bens jurídicos essenciais e têm de traduzir uma ofensa ou perigo grave, porque
nem todos são públicos? É a ponderação de interesses que está na base dessa distinção
do legislador. Há crimes que são de menor gravidade, que não se relacionam de forma
tão premente com bens jurídicos da comunidade e inscrevem-se numa esfera de
interesses individuais – furto simples, injúria, difamação. Mas há outras razões, há
crimes muito graves, mas por tocarem uma esfera de intimidade que o Estado se
incumbe de proteger, não sujeitando a vítima ao desvelar da sua intimidade, poderia
fazer acrescentar ao mal do crime o mal do processo – vitimação secundária. São, por
exemplo, os crimes sexuais contra maiores, que são crimes semipúblicos, dependentes
de queixa. Por outro lado, há crimes que são, em regra, semipúblicos, mas quando
cometidos num determinado contexto familiar são crimes particulares – abuso de

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confiança ou furto entre parentes. Pretende-se evitar que o Estado, pela sua
intervenção, contribua para a agudização do conflito. Exige-se que o particular se queixe
e queira o processo, de modo que deduza acusação particular. Também há outras razões
de natureza probatória: nos termos do artigo 134º do CPP, em determinados casos a
testemunha pode recusar-se a prestar depoimento quando tenha determinadas
ligações com o arguido, quis-se proteger a instituição familiar e evitar os dilemas morais
destas pessoas (fidelidade familiar e fidelidade à verdade). Pode acontecer que a pessoa
que até se queixou decida não prestar declarações e não se faz prova e o agente não é
punido, há uma coerência entre o artigo 207º do CP e a disciplina do artigo 134º do CPP.
Se a pessoa se queixou e deduziu acusação, já não há tanta probabilidade de depois não
testemunhar. A estas razões acrescem outras de aliviar o sistema penal, porque se sabe
que um grande número de crimes semipúblicos ou particulares não chega sequer ao
conhecimento da máquina judiciária. Estima-se que, no caso do furto, só 10% sejam
objeto de queixa. Por outro lado, os crimes semipúblicos anteciparam aquilo que agora
é resolvido através da mediação penal, nos crimes semipúblicos acontece que a vítima
também sofreu danos e formula um pedido de indemnização, formula um acordo de
indemnização e depois desiste da queixa e esta distinção também favorece soluções que
passam pela reparação do mal do crime e consequente desistência de queixa.
Como sabemos que o crime é público, semipúblico ou particular? Essa
informação consta da norma que tipifica o crime ou numa outra de sentido remissivo
(exemplo: artigo 207º do CP). Se se disser “depende de queixa” é crime semipúblico, se
se disser “depende de acusação particular” é crime particular em sentido estrito e se
nada disser é crime público.

c) os pressupostos processuais da queixa e da acusação particular (breve análise dos


artigos 113.º e ss. C.P., e 48.º ss. C.P.P.).

Se o crime for semipúblico ou particular em sentido estrito, é preciso que se


cumpram certos pressupostos processuais: a queixa, a constituição de assistente e a
acusação particular – são pressupostos de procedibilidade. Mas são matérias que
relevam do ponto de vista substantivo, porque, sem elas, não há efetivação da
responsabilidade penal do agente. Por isso se diz que são institutos de natureza mista –
substantiva e processual.
1- Queixa: distingue-se da denúncia, pois esta é apresentada por qualquer pessoa
que não o ofendido, que apresenta a queixa. Sem prejuízo de algumas pessoas
estarem obrigadas a denunciar. Diferença quanto aos prazos: a queixa tem um
prazo de caducidade de 6 meses a partir do conhecimento do crime e do autor.
A denúncia não tem prazo. Mas pode apresentar-se queixa contra
desconhecidos e não é preciso saber a identidade completa. A denúncia é uma
mera declaração de ciência, a queixa também é uma declaração de vontade,
manifesta-se a vontade de que quanto a esses factos e pessoa(s) haja
procedimento criminal.
2- Acusação particular: aquela que é deduzida pelo assistente nos crimes
particulares em sentido estrito – artigo 285º do CPP. Nestes crimes, o MP
também pode acusar, desde que o assistente acuse primeiro. Desta distingue-se
outra – acusação pelo assistente, nos crimes públicos e semipúblicos, embora a
competência caiba ao MP, o ofendido, se se constituir assistente, também pode

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acusar no prazo de 10 dias a partir da data em que tenha sido notificado – artigo
284º do CPP.

Os artigos 113º e seguintes do CP resolvem a questão de saber quem tem


legitimidade para a queixa – artigo 113º número 1. Para saber quem é o titular dos
interesses, temos de saber qual o bem jurídico, nuns casos é fácil, noutros é mais difícil.
No crime de furto, é titular quem seja proprietário da coisa furtada. Mas há matérias em
que se exige um esforço de interpretação maior – crime de violação de domicílio.
Alguém entra numa casa que pertence a A, mas que é arrendatário B. Quem tem
legitimidade para a queixa? É a pessoa que vive na casa, porque tem em vista a tutela
da reserva da vida privada. Burla da obtenção de alimentos indevidos (artigo 220º do
CP) – conduta da pessoa que pede a ementa, escolhe e depois sai sem pagar, há burla
porque a conduta é de induzir a crer que pretendia adquirir e pagar o serviço, há uma
burla por atos congruentes. Quem é o titular? É o proprietário e não o funcionário a
quem foi feito o pedido, visa-se proteger o património, não é a pessoa enganada que
tem legitimidade para queixa. Em certos casos, a lei reconhece a associações de
determinados interesses legitimidade para queixa, por exemplo, a Sociedade
Portuguesa de Autores.
Pode acontecer que o ofendido morra sem ter exercido o direito da queixa, convém
saber se o direito de queixa se transmite aos sucessores. Sim, o direito de queixa tem
natureza pessoal, mas não se extingue com a morte do titular originário, transmite-se
aos sucessores nos termos do artigo 113º número 2 do CP, que distingue duas classes
de sucessíveis:
- na primeira classe, cabem o cônjuge e pessoa em união de facto, os
descendentes e adotados, os ascendentes e adotantes – alínea a);
- na segunda classe, cabem os irmãos e seus descendentes – alínea b).
Só se passa para as pessoas de segunda classe se não houver ninguém da primeira.
Qualquer das pessoas legitimadas pode apresentar queixa independentemente da
vontade das demais – artigo 113º número 3. Se algum dos legitimados tiver
comparticipado no crime a qualquer título, não se transmite para ele o direito de queixa
– artigo 113º número 2 parte final. Pode suceder que, por causa desta norma, não exista
ninguém que se possa queixar – artigo 113º número 5 alínea b) – pode o MP promover
o processo penal mesmo sem queixa, isto nos crimes semipúblicos e particulares em
sentido estrito.
Também há que estudar as questões relacionadas com a capacidade para o exercício
da queixa. No Direito Penal e no Direito Processual Penal, a capacidade para o exercício
do direito de queixa adquire-se aos 16 anos – artigo 113º número 4 do CP. Para além de
incapacidade por menoridade, também existem incapacidades por outros motivos. Não
releva a interdição ou a inabilitação, releva apenas a capacidade natural ou a falta dela
para requerer o direito de queixa. Nestes casos, o exercício incumbe ao representante
legal do incapaz, se for menor incumbe aos pais ou ao tutor. Na falta destes, cabe às
pessoas referidas como sendo a quem se transmite o direito de queixa, por remissão do
artigo 113º número 4. Nestes casos, é só a capacidade que cabe a estas pessoas, porque
a titularidade do direito de queixa continua a pertencer ao ofendido – artigo 116º
número 4. Tratando-se de menor, também pode acontecer que nenhuma das pessoas a
quem cabia queixar-se se tenha queixado, assim o MP pode promover mesmo sem
queixa – artigo 114º número 5 alínea a). Para além destes casos de representação,

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também há os de representação orgânica (empresas), quando a pessoa coletiva é
representada pelos seus órgãos. Existem situações de representação voluntária, através
de mandatário forense para que o advogado apresente queixa em seu nome ou através
de alguém com poderes especiais, por exemplo um amigo – artigo 49º do CPP. Também
pode acontecer que o mandatário não tenha poderes – artigo 268º do Código Civil.

Quanto ao prazo, dispõe de 6 meses para apresentação da queixa – artigo 115º


número 1 do CP, a contar do conhecimento pelo ofendido dos factos e do seu autor, não
é preciso que se saiba o nome completo do autor dos factos, sem prejuízo da
possibilidade de queixa contra desconhecidos. Se o ofendido tiver morrido, o prazo
conta-se da data da sua morte, se antes disso não tiver já precludido o direito de queixa.
Nos casos de menoridade, há um prazo mais longo, previsto no artigo 113º número 6 –
o menor pode apresentar queixa depois de perfazer 16 anos, pode não apenas pôr
termo a processo iniciado por outrem, como também promover o processo quando
ninguém o tenha feito em sua vez. Se o crime não estiver prescrito, pode o menor
apresentar queixa após perfazer 16 anos. Mas o legislador introduziu outra norma
especial – artigo 115º número 2, nestes casos, o prazo não se esgota no fim dos 6 meses
seguintes aos 16 anos, mas nos seguintes aos 18.
Trata-se de um prazo substantivo e não processual, conta-se nos termos dos prazos
do Código Civil – artigo 279º do CC. É um prazo de caducidade e não de prescrição, não
valem em relação a ele os motivos de interrupção de prescrição.
Há um princípio de indivisibilidade passiva da queixa, significa que não pode o
ofendido, quando o crime tenha praticado por várias pessoas, escolher queixar-se de
um e não de outro(s) – artigos 114º, 115º número 3 e 116º número 3 do CP. Já nos
termos dos artigos 113º número 3 e 115º número 4, não existe indivisibilidade no lado
ativo, só no lado passivo.
É um direito disponível, pode-se renunciar ou desistir da queixa. Quanto à renúncia,
esta pode ser expressa ou tácita (artigo 116º número 1 do CP) e corresponde a um caso
de renúncia tácita a situação em que o ofendido tenha, antes de se queixar, promovido
uma ação cível pelo pedido de indemnização dos danos emergentes da prática do crime
– artigo 72º do CPP. Se se tratar de um crime semipúblico, o ofendido está mais
interessado nos danos patrimoniais e morais do que a punição, se assim for e entrar
uma ação cível antes de se queixar, o legislador tem esta conduta como renúncia tácita,
não se pode queixar mais – artigo 72º número 2 do CPP. O queixoso também pode
desistir da queixa a qualquer momento até publicação da sentença em primeira
instância (leitura em audiência). Não se pode desistir depois, porque se se permitisse
isso, implicaria pressões ilegítimas sobre o arguido. Nos termos do artigo 51º do CPP, o
arguido é notificado da desistência. Se nada disser, não se opõe. Porque se notifica o
arguido? Porque este pode estar interessado em provar a sua inocência. Depois uma
autoridade judiciária tem de homologar a desistência – artigo 51º número 2 do CPP – o
MP (se ocorrer na fase de inquérito) ou o juiz (se ocorrer na fase de instrução ou
julgamento). A desistência é irrevogável e irretratável – artigo 116º número 2 segunda
parte do CP. Valem, com as necessárias adaptações, as mesmas disposições para a
acusação particular – artigo 117º do CP. Quanto aos crimes particulares em sentido
estrito, é preciso que o ofendido se constitua assistente e que este acuse, é também
necessário que esteja presente na audiência de julgamento – artigo 330º número 2 do

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CPP, se faltar injustificadamente ou faltar mais do que uma vez (ainda que de forma
justificada), isso equivale à desistência da acusação.

2.2. Princípio da legalidade da promoção processual


a) noção, fundamento e conteúdo.

O princípio da legalidade pode ser visto sob múltiplas perspetivas:


- sentido amplo (artigo 2º do CPP)
- legalidade da prova (125º do CPP)
- legalidade da promoção processual

Esta última responde à questão de saber de que forma a entidade competente


para promover o processo exerce a sua competência, sob forma de dever ou uma
faculdade que pode ser exercida de forma discricionária? A resposta da legalidade é sob
a forma de um dever estritamente vinculado à lei, ou seja, logo que estejam preenchidas
as condições, o MP abre inquérito, logo que estejam preenchidos os requisitos objetivos
o MP acusa. O MP abre inquérito quando adquira a notícia de crime (nos crimes
semipúblicos e particulares em sentido estrito é através da queixa). O MP não pode
escolher entre promover ou não promover o processo, preenchidos os requisitos
enunciados na lei – artigo 262º número 2 do CPP. Num segundo momento, decidir sobre
a sujeição dos factos e do agente ao julgamento, o MP está obrigado a acusar no caso
de recolha de indícios suficientes da prática do crime e do seu autor, o MP não pode
deixar de acusar. Está, em princípio, vinculado a acusar; se não recolher indícios
suficientes arquiva – artigos 283º números 1 e 2 (acusação) e 277º números 1 e 2 do
CPP (arquivamento). Liga-se a um princípio da imutabilidade da acusação, o MP está
sujeito à lei e, uma vez deduzida a acusação, não pode modificá-la, nem retirá-la, não
pode haver transação quanto à acusação penal. Ao contrário dos ordenamentos
jurídicos onde domina o princípio da oportunidade (como nos EUA – plea of bargain),
no nosso ordenamento não existe negociação da imputação. Também já se quis
introduzir o mecanismo dos acordos sobre a sentença, passou a ser lei na Alemanha a
partir de 2009 e, em 2011, Figueiredo Dias manifestava uma posição favorável sobre
este instrumento. Este mecanismo permitiria uma certa agilização e funcionalidade da
justiça nos processos de grande criminalidade. O Supremo Tribunal de Justiça entendeu
que a introdução destes acordos seria contrária a várias disposições de lei, seria preciso
mudar a lei. O MP age em estrita vinculação à lei – a sua atividade não deve pautar-se
por considerações políticas, nem eleitoralistas, nem económico-financeiras, nem
burocráticas, nem tão pouco político-criminais. Se o MP não acusar ou não abrir
inquérito nos casos em que os requisitos da lei estejam preenchidos, para além dos
instrumentos de controlo do MP, há mecanismos de reação – os sujeitos processuais
podem pedir intervenção hierárquica ou requerer abertura de instrução. Pode haver
responsabilidade disciplinar e criminal por violação do artigo 369º do CP (denegação de
justiça e prevaricação).
Quais os argumentos para o princípio da legalidade da promoção processual?
Compreendia-se à luz dos fins das penas, das teorias absolutistas: se o fim da pena era
a retribuição do mal do crime, era preciso que todos os crimes fossem perseguidos.
Considerações utilitárias das penas não deixaram de se refletir nesta questão do
princípio da legalidade. Visando a pena satisfazer interesses de tutela de bens jurídicos,

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visando a convicção da vigência da norma, num sistema quando a pena só é aplicada
quando é necessária à luz da prevenção geral, o princípio perderia força, pois o processo
nem sempre seria necessário, a promoção do Processo Penal só se justificaria perante
exigências de prevenção geral para reforço comunitário da validade das normas. Em
modelos de inspiração romano-germânica, continua a vigorar o princípio da legalidade,
com os seguintes fundamentos: liga-se ao princípio da igualdade, enquanto decorrência
do princípio do Estado de Direito – artigo 13º da CRP, proibindo-se o tratamento
diferenciado do crime e dos criminosos e considerações de oportunidade. Este princípio
liga-se à própria exigência de imparcialidade e de independência da administração da
justiça. Tudo isto reforça a ação da comunidade no exercício da ação penal e isso
contribui para o efeito contributivo-geral da aplicação das penas.

b) «espaços de oportunidade»:

Este princípio da legalidade contrapõe-se ao princípio da oportunidade que


vigora nos ordenamentos jurídicos de matriz anglo-americana, em que o MP goza de
uma certa discricionariedade e liberdade de escolha, mas também tem que
fundamentar as suas opções. O nosso ordenamento jurídico mantém-se fiel ao princípio
da legalidade, mas têm-se verificado algumas concessões em favor da oportunidade
processual. Dir-se-á que se está perante legalidade aberta a considerações político-
criminais – ainda é a lei que define os requisitos de não acusar, apesar de ter indícios
suficientes da prática do crime. Os institutos que são manifestações dessa oportunidade
são de legalidade aberta a considerações político-criminais. Antes destas, fala-se de
desvios fácticos à legalidade, não são desvios jurídicos. Nem todos os crimes chegam às
autoridades e nestes dominós as cifras negras são elevadas. Por outro lado, nos crimes
que são de conhecimento das autoridades de perseguição criminal verifica-se um funil:
nem todas as infrações são acusadas, nem todas as infrações acusadas levam a uma
condenação penal. São dados resultantes de estudos criminológicos. O que importa
tratar são os desvios jurídicos:
1- Arquivamento em caso de dispensa de pena
2- Suspensão provisória do processo
3- Processo sumaríssimo
4- Mediação penal
Cada um destes institutos opera na pequena e média criminalidade – onde há
menor intervenção do Direito Penal, apenas quando a sua intervenção se mostre
necessária. Atrás estão considerações criminológicas. A teoria do labeling aproach ou
interacionismo simbólico representou o efeito de estigmatizar um delinquente primário
de pequena gravidade, que conduz, por vezes, a que no futuro continue a comportar-se
como um criminoso. A cerimónia degradante do julgamento é a mais estigmatizante,
portanto importaria decidir antes do julgamento, daí serem mecanismos de diversão
(no sentido de desvio da rota do processo), o processo penal é decidido à margem do
julgamento. Estas preocupações têm como destinatário o delinquente primário de
pequena criminalidade, tem em vista promover a reconciliação com o Direito. Somaram-
se preocupações dirigidas à vítima – vitimação secundária. Naqueles casos que tocam a
esfera da intimidade, o processo pode representar um mal para vítima, principalmente
a exposição em audiência de julgamento. Muitas vezes, a vítima faz parte de um
processo que não deseja, há uma espécie de roubo de conflito à vítima. Muitas vezes, a

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vítima constante no processo quer a reparação pelo dano (moral ou económica) e não
propriamente a condenação do agente. Estas preocupações introduziram um novo
paradigma da justiça penal – justiça reparativa: assenta, por um lado, na valorização do
consenso em que se dá à vítima uma voz ativa e revalorização da reparação dos danos
do crime, caminhando-se até para uma terceira via do procedimento criminal (temos as
penas e as medidas de segurança e acrescenta-se a reparação criminal).

aa) o arquivamento em caso de dispensa de pena (art. 280.º C.P.P. e art. 74.º C.P.)

Previsto no artigo 280º do CPP, é uma alternativa à acusação, o MP pode, não


obstante, por razões que o legislador enuncia e cumpridos os requisitos, arquivar. É
diferente do arquivamento do artigo 277º que é uma manifestação do princípio da
legalidade e este é uma concessão de oportunidade. Designa-se por mecanismo de
diversão simples, porque o processo é arquivado sem mais, não há injunções, nem
regras de conduta atribuídas ao arguido. Está pensado para casos de pequena
criminalidade, de pequena gravidade, são os casos em que o legislador permite a
dispensa de pena no final da audiência de julgamento (artigo 74º do CP).
Requisitos que a lei estabelece:
- de natureza formal: prende-se com a identidade abstrata dos crimes imputados, são
crimes de pequena gravidade, remetendo para o artigo 74º número 1 do CP (pena até 6
meses e multa não superior a 120 dias). Há situações, porém, em que apesar de não
estar nestes limites a moldura penal, o legislador torna possível a dispensa de pena. Por
vezes, é por razões de ordem pragmática (artigo 374º-B do CP). O legislador também
manda atender à gravidade do ilícito e à culpa do agente – artigo 74º número 1 alínea
a) do CP;
- de prevenção geral – artigo 74º número 1 c) do CP. É preciso, também, que não haja
necessidade de pena.
A competência para decidir cabe ao MP, mas essa decisão não é tomada
isoladamente, carece da concordância de um juiz de instrução criminal – artigo 280º
número 1 do CPP. Nos casos em que seja decidido após a fase de instrução, a
competência para decidir cabe ao juiz com a concordância do MP – artigo 280º número
2. Este mesmo preceito regula os casos em que o arquivamento é decidido após a fase
de instrução, com a concordância também do arguido. Existem dois entendimentos
sobre o sentido desta norma:
- casos em que já tenha sido deduzida acusação, tenha havido requerimento de abertura
de instrução, depois a instrução e depois o juiz decide. Mas sabemos que pode haver
instrução depois de despacho de arquivamento, quando o assistente requer, será que o
juiz pode decidir? É limitar a possibilidade de arquivamento na fase da instrução aos
casos em que tenha sido aberta após despacho de acusação;
- outra interpretação é que o legislador não quis limitar essa possibilidade, só quis
estabelecer um requisito adicional que só vale para os casos em que tenha havido
acusação no fim do inquérito. Se o MP acusou, só pode haver arquivamento se o arguido
consentir, porque, tendo sido acusado, pode querer ver proclamada a sua inocência em
julgamento público. Parece que esta é a visão que faz mais sentido.

bb) a suspensão provisória do processo (arts. 281.º e 307.º, n.º 2, C.P.P.);

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É um mecanismo de diversão com intervenção, o processo sofre um desvio em
vez de seguir os trâmites normais, termina antes do julgamento, o processo fica
suspenso durante um período e o arguido é sujeito a injunções e regras de conduta e
não pode cometer um crime da mesma natureza. Se as cumprir, o processo é arquivado;
se não cumprir, o processo segue a sua tramitação normal. Em casos de violência
doméstica ou abuso sexual de menores, o período de suspensão é de 5 anos, mas a regra
é de 2 anos.
Quanto aos requisitos, uma vez que há uma maior vigilância sobre a conduta do
arguido, é de admitir que se abrange uma criminalidade maior – crimes de pequena e
média gravidade (pena de prisão não superior a 5 anos) – requisito formal que respeita
à gravidade abstrata. Mas o legislador também manda atender à gravidade concreta da
infração – basta que não seja um grau de culpa elevado. Do ponto de vista das exigências
preventivas, exige-se que sejam satisfeitas (exigências de prevenção geral e especial)
com o cumprimento das injunções e regras de conduta que ao caso sejam aplicadas.
Aqui exige-se que a necessidade de pena que exista seja satisfeita com as injunções e
regras de conduta aplicadas.
Quanto à decisão (a quem compete), à semelhança do arquivamento em caso de
dispensa de pena, a suspensão pode ter lugar no fim do inquérito e aí cabe ao MP. Mas
não dispensa nunca a concordância do arguido, ao contrário do arquivamento que, se
acontecer nesta fase, prescinde da concordância do arguido. Porquê esta diferença? As
injunções e regras de conduta são equivalentes funcionais de pena – artigo 281º número
2 do CPP. Os deveres que se incluem na pena suspensa (artigo 51º e 52º do CP) são os
mesmos que os previstos no artigo 281º número 2 do CPP, daí se dizer que são
equivalentes funcionais de pena, desta pena de suspensão de execução da pena de
prisão (= pena suspensa). Se temos equivalentes funcionais, seria preciso que o
julgamento fosse substituído por um facto de legitimação equivalente – que será o
acordo, em primeiro lugar do titular da ação penal e do arguido. Podia parecer que este
acordo seria bastante, no Acórdão nº 7/87 do Tribunal Constitucional (contemporâneo
à aprovação do Código do Processo Penal), entendia-se que a norma, por não admitir a
concordância do juiz de instrução criminal, era inconstitucional e o juiz no processo
penal é o expoente máximo (artigo 202º da CRP). Entendeu o TC que também violava o
artigo 32º número 2 da CRP. Entendia-se que havia os condenados pelo juiz e os
condenados por acordo, por vontade própria. E, por isso, o legislador introduziu esta
exigência da concordância do juiz de instrução criminal – artigo 281º número 1 do CPP.
Para além da concordância do juiz e do arguido, é necessária a concordância do
assistente – artigo 281º número 1 alínea a). Isto distingue-se do Código Processual Penal
alemão, onde não é exigida a concordância do assistente, este instituto dá voz à vítima
formal, a que se constituiu assistente.
Aqui levanta-se uma dúvida de interpretação: há quem acredite que também
seja qualquer vítima não constituída assistente. Por um lado, a letra da lei diz que só
exige a concordância do assistente – elemento literal. Por outro lado, seguindo o
argumento teleológico, a vítima que não se constitua assistente mostra um desinteresse
pelo processo, se não quis assumir a qualidade de sujeito processual, leva a crer que
haja desinteresse da vítima no desfecho do processo. Mas há quem entenda que seja
preciso ouvir a vítima por causa dos crimes públicos e semipúblicos, em que uma vítima
se pode constituir assistente no fim do inquérito e não no início. Assim, não significa que
esteja desinteressado, mas que se tenha deixado para o fim a constituição de assistente,

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pois é quando se exercem os maiores poderes processuais (esta interpretação extensiva
é defendida por Pombo Correia – concordância do assistente e da vítima).
Importa saber a natureza jurídica da concordância do juiz de instrução criminal
– será uma mera formalidade ou é um verdadeiro ato decisório do qual se pode
recorrer? Havendo suspensão provisória, o processo fica suspenso até 2 anos nos casos
normais (artigo 282º número 1 do CPP), mas se houver cumprimento não podem
repetir-se as prestações nem se descontar à pena. Está pensada para a tutela dos
interesses do arguido, mas há dois casos especiais introduzidos em 2007: artigo 281º
números 7 e 8, está em causa o interesse da vítima – crimes de violência doméstica e de
abuso sexual contra menores. Porquê esta introdução? Para compensar a circunstância
da sua conversão em crimes públicos, em que o legislador retirou à vítima o domínio e
controlo sobre o processo. Estes números introduzem o controlo do processo à vítima,
são mais próximos das finalidades da mediação penal, faz tudo ressonância no
paradigma da justiça restaurativa com os dois vetores (a vítima tem voz ativa e pode ter
ressarcimento dos danos criados pelo crime).
Por que não são estes dois casos iguais aos processos de suspensão provisória da
pena? Primeiro, os crimes, podem ter moldura penal mais grave, com limite máximo
superior a 5 anos de pena de prisão. Segundo, por serem crimes mais graves, o período
de suspensão pode ir até 5 anos (artigo 282º número 5). Terceiro, a vontade da vítima
tem um peso superior, na suspensão ordinária exigia-se a concordância do assistente,
nestes crimes de violência doméstica é preciso um requerimento livre e esclarecimento
da vítima (número 7 do artigo 281º); se se tratar de abuso sexual de menor deve o MP,
se o interesse do menor o aconselhar, suspender provisoriamente o processo (número
8 do artigo 281º). Em quarto lugar, o facto de não se exigir necessariamente a imposição
de injunções ou regras de conduta (pode haver mas não forma necessariamente o
conteúdo), nem se exige que o grau de culpa seja elevado, as alíneas e) e f) do número
1 do artigo 281º não são importantes para esta matéria, pode tratar-se simplesmente
da tutela da vítima que já não quer o processo.

cc) a mediação penal (Lei n.º 21/2007, de 12 de Junho).

Foi introduzida no nosso ordenamento jurídico em 2007, estabelecida pela Lei


nº 21/2007, de 12 de junho. A diferença entre os institutos já vistos prende-se com o
facto de a remessa dos autos para mediação penal poder acontecer em qualquer
momento do inquérito e não no final, preferencialmente até no início dele, quando o
MP tenha verificado que a queixa não é infundada, que há indícios da prática do crime
e que o arguido foi o seu agente e, por isso, deverá promover o processo – artigo 3º da
Lei.
Os crimes que admitem mediação penal encontram-se previstos no artigo 2º da
Lei: crimes particulares em sentido estrito e crimes semipúblicos que sejam contra as
pessoas e contra o património. É preciso que se tratem de crimes puníveis com pena de
prisão não superior a 5 anos e a Lei estabelece um elenco de exclusões, que, mesmo
incluídos nestes termos, não admitem nunca a mediação penal, como por exemplo,
crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, porque a mediação penal supõe
um acordo entre o arguido e a vítima do crime, o ofendido. Colocar frente a frente o
arguido e a vítima de um crime sexual não seria justo, e o legislador afasta todos os casos
que não admitam uma igualdade entre ambas as partes.

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O acordo que se visa é entre o arguido e o ofendido, esse acordo é procurado
ativamente por um mediador escolhido através de uma lista de mediadores
independentes, não faz parte das instâncias judiciais de controlo (artigo 11º da Lei por
remissão do artigo 3º número 1). O acordo deve ter em vista a restauração da paz social
e a reparação dos danos. A preocupação vitimológica faz-se sentir de forma particular,
é a justiça restaurativa com dois vetores: o acordo em que a vítima tem voz ativa e o
acordo à reparação dos danos causados com o crime. Se se conseguir o acordo, é
reduzido a escrito e levado ao MP que verifica se as condições respeitam a lei, não se
pode acordar tudo, a lei impõe limites – os deveres impostos não podem prolongar-se
por mais de 6 meses e não podem prejudicar a dignidade do arguido nem a liberdade
(artigo 6º da Lei).
A homologação do acordo vale como desistência de queixa por parte do
ofendido. Se o acordo não for cumprido, o ofendido pode renovar a queixa – exceção à
ideia da irretratabilidade da queixa – artigo 5º número 4 da Lei. Renovada a queixa, o
MP verifica se há incumprimento e se houver retoma o processo penal. Aquilo que
resulta das atas de mediação aproveita para o processo retomado? Pode valer como
prova? Não pode, nos termos do artigo 4º número 5, o teor das sessões é confidencial.
Na mediação, não intervém o juiz, há um acordo com limitações do arguido que se
estabelece entre este e vítima, mediado por um mediador e fiscalizado pelo MP e não
por um juiz. Infelizmente, não tem surtido efeito em Portugal. Há muitas razões, entre
elas uma razão operacional: o acordo de vontades entre arguido e ofendido raramente
acontece, é muito difícil que ambos no prazo da queixa (6 meses), tendo estado em
conflito, é improvável que cheguem a acordo. O próprio MP muito poucas vezes remete
os autos para mediação penal, talvez por desconfiança ou por relutância de perder um
certo poder de decisão.

2.3. Princípio da acusação.


a) noção e fundamento.

Princípio estruturante do Processo Penal português, que segue uma estrutura


acusatória – artigo 32º número 5 da CRP. Nenhum modelo pode ter esta estrutura sem
consagrar o princípio, mas não basta que exista o princípio. Impõe uma separação entre
entidade competente para investigar e acusar e entidade competente para julgar. E tem
de ser separação material, não basta ser formal como a que existia até 1945 em
Portugal, o MP tinha a tarefa de deduzir acusação e era o juiz que julgava, só que este
juiz com competência para julgar era o mesmo que reunia as provas na base das quais
o MP acusava. É necessária, portanto, uma separação material – têm que ser pessoas
diferentes, não só entidades (separação funcional). Mas porquê esta exigência?
Pretende-se a imparcialidade do julgador, porque quem esteve empenhado a recolher
prova para deduzir acusação será mais permeável a juízos desfavoráveis ao arguido. Essa
separação é garantida através do regime dos impedimentos, nem todos têm em vista a
salvaguarda do princípio da acusação, mas todos têm em vista assegurar a
imparcialidade. Nos termos do artigo 39º número 1 alínea c) do CPP, nenhum juiz pode
exercer a sua função no Processo Penal quando tiver intervindo como representante do
MP, destina-se a assegurar a imparcialidade do julgador e o princípio da acusação.
Em suma, a imparcialidade e objetividade que, conjuntamente com a
independência, são condições indispensáveis de uma autêntica decisão judicial só

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estarão asseguradas quando a entidade julgadora não tenha também funções de
investigação preliminar e acusação das infrações, mas antes possa apenas investigar e
acusar dentro dos limites que lhe são postos por uma acusação fundamentada e
deduzida por um órgão diferenciado, em regra, o MP ou um juiz de instrução.

b) corolários.

Daqui decorrem três corolários importantes:


1- a ideia de que o juiz não tem iniciativa de investigação (iudex ne proccedat ex officio),
impõe que seja um outro;
2- essa iniciativa incumbe a uma entidade independente, uma entidade distinta do juiz
e o juiz só pode julgar, a sua atividade cognitiva está dependente dessa prévia dedução
de acusação de uma entidade distinta dele (nihil judicio pine accusatione).
3- a acusação fixa e define o objeto do processo, sobre o qual vai incidir a atividade do
julgador. A acusação não é o facto desencadeante do juízo, traça o objeto e os limites,
dá a vinculação temática a que o tribunal está adstrito. Porquê? Ainda se liga à proteção
da imparcialidade.

3. Princípios relativos à prossecução processual


3.1 Princípio da investigação (remissão).

Transversal a todo o Processo Penal português, a toda a tramitação do processo.


O nosso modelo é de estrutura acusatória integrado por um princípio de investigação
judicial. Releva, sobretudo, em matéria de prova, traduz-se no poder-dever que ao
tribunal incumbe de esclarecer e instruir autonomamente, mesmo para além das
contribuições da acusação e da defesa, o facto sujeito a julgamento, criando aquele
mesmo as bases necessárias à sua decisão.

3.2. Princípio da suficiência.


a) O problema das questões prejudiciais em processo penal.

O processo penal é, em princípio, lugar adequado ao conhecimento de todas as


questões cuja solução se revele necessária à decisão a tomar. No processo que conduz
a esta decisão podem, na verdade, surgir questões de diversa natureza, cuja resolução
condiciona o ulterior desenvolvimento do processo; dando a lei competência ao juiz
penal para delas conhecer, revela a sua intenção primacial de considerar que o processo
penal a si mesmo se basta, que é autossuficiente.
Este princípio liga-se, portanto, ao problema das questões prejudiciais,
consagrado no artigo 7º do CPP. Implica a apreciação de matérias que não são jurídico-
penais. São questões que têm um objeto ou natureza diferente da questão principal e
que têm que ser resolvidas antes dessa mesma questão principal, porque de cujo
sentido depende o sentido da decisão a dar à questão principal, a questão penal. Por
outras palavras, dizem-se questões prejudiciais aquelas que, possuindo objeto (ou até
natureza) diferente do da questão principal do processo em que surgem, e sendo
suscetíveis de constituírem objeto de um processo autónomo, são de resolução prévia
indispensável para se conhecer em definitivo da questão principal, dependendo o
sentido deste conhecimento da solução que lhes for dada.

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Existem três requisitos:
1- objeto ou natureza autónomo;
2- antecedente jurídico concreto;
3- resolução mostrar-se necessária para a questão principal.

O pedido cível é uma questão prejudicial? Tem objeto autónomo. Mas podemos
decidir as questões separadamente, o pedido cível é decido à luz do Direito Civil. A
resposta dada a uma questão não condiciona a resposta dada à outra. O pedido cível
não é uma questão prejudicial. Mas o legislador determina que, em princípio, o pedido
cível é deduzido na ação penal, mas é por questões de economia processual – princípio
da adesão, também é para proteger o lesado.

As questões prejudiciais podem ser de três tipos:


- penais em processo penal: exemplo da denúncia caluniosa (artigo 365º do CP), é
preciso verificar se a suspeita que se lança é de um crime (questão prejudicial) para
depois se saber se o agente vai ser punido por denúncia caluniosa;
- penais em processo não penal: saber se o cheque tem uma assinatura falsificada, saber
se há crime de falsificação de documento, que servirá de título executivo;
- não penais em processo penal: saber de quem é a coisa para saber se houve furto,
saber se o título de condução é válido para saber se há crime de condução sem
habilitação legal.

b) Possíveis vias de solução.

Onde é que se resolvem estas questões? Há três vias de resposta, duas


extremadas e a resposta que a lei encontrou que é a via intermédia:
- tese do conhecimento obrigatório: todas as questões que surjam são resolvidas em
processo penal – princípio da suficiência em termos absolutos, com apenas duas
exceções (litispendência e caso julgado). É uma via de resposta que tem vantagens, do
ponto de vista da celeridade e continuidade do processo penal, se suspendêssemos o
andamento do processo penal e esperássemos pela ação cível até à decisão em caso
julgado, isto punha em causa a celeridade do processo penal. Aqui pretende-se atingir
a verdade material, uma verdade tão próxima quanto possível do acontecimento
histórico, no Processo Civil pode haver confissão, desistência, transação, admitimos que
a verdade seja estritamente formal, não seria adequado, por atender à decisão cível,
admitirmos no Processo Penal uma verdade formal. Mas não interessa só saber da
questão prejudicial, interessa também atender às questões sobre uma perspetiva
jurídica relevante, pois pode haver uma situação de erro por exemplo (artigo 16º do CP),
sendo que o erro exclui o dolo, levando a que o crime não fosse punido;
- tese da devolução obrigatória (o outro extremo): se a questão prejudicial que surge
tiver natureza não penal, deve ser apreciada pelo tribunal competente para a apreciar.
Tem como vantagens a maior adequação do processo para o tratamento da questão e
a especialização material dos tribunais;

c) Análise do artigo 7.º do C.P.P.

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- a nossa lei – princípio da suficiência: segue-se um caminho intermédio, previsto no
artigo 7º do CPP. Consagra-se o princípio da suficiência no número 1 (quando a questão
for de natureza penal, é conhecida naquele processo penal), mas este é afastado no
número 2, onde se consagra um desvio sob a forma de suficiência discricionária. Quando
se tratem de questões prejudiciais não penais, vale o princípio da suficiência
discricionária, quando a questão tiver natureza penal vale o princípio da suficiência em
absoluto. Quanto às questões não penais, o tribunal pode conhecer ou não, o legislador
recorre a um conceito indeterminado, sendo, portanto, um princípio da suficiência
discricionária em sentido impróprio. Há devolução para o tribunal competente quando
a questão seja necessária para conhecer da existência de um crime. O número 2 só se
aplica quando a circunstância seja elemento do tipo legal ou uma causa de exclusão da
ilicitude (a doutrina entende o requisito como impondo que a questão prejudicial
implique o conhecimento de um elemento constitutivo do crime e, portanto, de um
elemento que decida da condenação ou absolvição do arguido). Por outro lado, é
preciso que a questão não possa ser convenientemente resolvida no Processo Penal, é
preciso ver a complexidade da questão no caso concreto. No Código anterior,
estabelecia-se uma presunção da complexidade em função da matéria. O legislador
estabelece, ainda, limites formais/temporais à devolução. Esta não pode ter lugar a todo
o tempo, quando o tribunal entenda que não possa conhecer convenientemente da
questão, remete para o tribunal competente – artigo 7º número 3, só o pode depois da
acusação ou do requerimento para abertura de instrução. Porque não se permite na
fase de inquérito? Tem a ver com a necessidade de se proteger a recolha de prova, sob
pena de se perderem elementos relevantes. A lei diz quem tem legitimidade para
requerer no artigo 7º número 3. Há prazos que se estabelecem, não pode o Processo
Penal ficar parado ab eterno – o artigo 7º número 4 estabelece metas de celeridade, fixa
o prazo de suspensão que pode ser prorrogado até um ano. Esta é uma perspetiva
desfasada da realidade. Outra meta tem a ver com a propositura da ação, no prazo
máximo de um mês.

3.3. Princípio da concentração.


a) noção e fundamento.

O princípio da concentração do processo penal exige uma prossecução tanto


quanto possível unitária e continuada de todos os termos e atos processuais, devendo
o complexo destes, em todas as fases do processo, desenvolver-se na medida do
possível concentradamente, seja no espaço seja no tempo. O princípio enforma todo o
decurso ou prossecução do processo penal e é, em geral, fundado pela necessidade de
que se não suscitem obstáculos ou impedimentos ao exercício do processo. Porém, o
princípio ganha o seu maior e autónomo relevo no que toca à audiência de discussão e
julgamento.
O que se procurou é que a audiência de julgamento decorra sempre no mesmo
local, tornando mais fácil que todas as pessoas intervenientes no processo consigam
aceder ao mesmo. Também deveria ser o mesmo juiz a iniciar e a terminar o processo,
mas isto é meramente programático porque, na realidade, isto não acontece.
Este princípio exige o contacto direto entre quem conhece a prova e a fonte das
informações probatórias. Para que fique na memória de quem a aprecia, é preciso que

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a produção da prova seja feita de forma continuada no tempo, sem grandes hiatos
temporais.

b) conteúdo: em especial, a continuidade da audiência (art. 328.º C.P.P.).

Podemos avaliá-lo em:


- sentido espacial: é preciso que a audiência de julgamento ocorra no mesmo local, onde
sejam chamadas todas as pessoas que devem intervir na audiência de julgamento. Há
uma exceção prevista no artigo 318º número 5 do CPP. Outras exceções são as
prerrogativas de cargos especiais (artigo 139º número 1 do CPP), a Lei de Proteção de
Testemunhas e o Estatuto da Vítima;
- sentido temporal: este princípio impõe uma certa continuidade (artigo 328º do CPP),
impõe que a audiência de julgamento decorra de forma unitária, sem interrupções ou
adiamentos. A audiência iniciar-se-ia num dia e terminaria no mesmo dia, os juízes
tinham que se reunir para deliberar e no próprio dia regressariam à sala para ler a
sentença ou o acórdão. E só em casos especiais se poderia prolongar por mais dias
(artigos 365º número 1, 370º números 1 e 3 e 373º número 1 do CPP). O legislador
permitiu dois intervalos:
- as interrupções: são intervalos mais pequenos na audiência de julgamento –
artigo 328º número 2 – e caracterizam-se pelo facto da audiência retomar no próprio
dia ou no dia útil imediatamente seguinte;
- os adiamentos: são intervalos de duração maior e que têm por objetivo dar
resposta a exigências processuais mais significativas (artigo 328º número 3). Os
adiamentos não podem durar mais de 30 dias (artigo 328º número 6). Existem certas
situações de adiamentos que não se imputam ao serviços dos tribunais,
nomeadamente, quando falta uma testemunha ou perícias complexas que se teriam de
fazer, a professora acha que estes motivos não devem contar para efeitos de prazo de
adiamento (artigo 328º número 7 segunda parte);
- sentido pessoal: é preciso que seja o mesmo juiz desde o início até ao fim do processo,
respeitando o princípio da imutabilidade do juiz, com as exceções previstas no artigo
328º-A do CPP.

Nota: Apesar do limite dos 30 dias para o adiamento, o legislador não estabeleceu um
prazo limite para a audiência de julgamento. Até 2015, caso o julgamento ultrapassasse
estes 30 dias, existia a sanção de que todas as provas pessoais produzidas até então
perdiam a sua eficácia, exceto se o adiamento fosse entre o fim da audiência e a leitura
da sentença. Para evitar isto, existiam as chamadas “sessões de fachada”, nas quais o
juiz, passados 29 dias por exemplo, chamava alguém para dar testemunho mesmo que
repetido, de modo a não sofrer essa sanção. Ainda assim, achava-se que esta solução
drástica da perda da eficácia probatória era muito severa e conduzia a que se
manipulasse a ação processual para se evitar a sanção. Daí que tenha sido alterada. Do
ponto de vista da professora, o legislador deveria ter procedido de outra forma. Os
adiamentos que são fundamentais para a audiência e decisão e que estão totalmente
fora do controlo do tribunal ou da organização do sistema estão previstos no artigo 328º
número 7 do CPP. Para a professora, caso estes motivos se verificassem, não se deveria
prever os tais 30 dias, pois é algo sobre o qual o tribunal não tem nada a fazer, por muito
bem que se organizasse, não alteraria o tempo que demora a obter esse facto ou prova.

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Por outro lado, razões de natureza não fundamental ou que estão sob o total controlo
do tribunal deveria não só aplicar-se esse prazo, como também a dita sanção de 2015,
pois legislar uma proibição sem qualquer sanção que a assegure, não garantirá a sua
devida aplicação e, consequentemente, as audiências certamente não serão contínuas.

3.4. Princípio do contraditório.


a) noção e conteúdo: o direito de audiência e o direito à prova.

O princípio do contraditório é particularmente importante no Processo Penal


português, sendo que é a própria Constituição que o impõe no artigo 32º número 5.
Pode ser visto em duas dimensões:
- simples: o julgador tem que ver as razões apresentadas quer pela acusação quer pela
defesa e, portanto, não pode condenar o arguido sem dar a oportunidade de ser ouvido.
O juiz deve dar oportunidade de ser ouvido a todo o participante processual antes que
alguma decisão o prejudique. O princípio do contraditório associa-se, nesta dimensão,
a um direito de audiência;
- atual: o contraditório entendido como direito à prova, direito de se defender provando
(artigo 32º número 1 da CRP – a Constituição assegura todos os meios de garantia da
defesa). O tribunal, antes de proferir uma decisão relativamente à imputação do
arguido, deve consentir-lhe a produção das provas que considere necessárias à prova
da sua inocência, garantindo as mesmas faculdades de defesa. Quando deva decidir
sobre a admissão ou não de um meio de prova, o juiz deve, em relação a esse concreto
meio de prova, tomar em consideração a posição do arguido – artigos 6º da CEDH e 14º
número 3 alínea c) do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. O arguido
deve ter o direito de sindicar a prova produzida pela acusação e de contrariar o valor
dessa mesma prova.
O princípio do contraditório vale em todo o processo penal e, sobretudo, no
julgamento (artigos 327º e 360º números 1 e 2 do CPP), no debate instrutório e, com
uma importância menor, nos atos instrutórios antes do debate instrutório e na fase de
inquérito.

b) âmbito de incidência na tramitação do processo.

Como foi dito, o princípio está constitucionalmente consagrado no artigo 32º


número 5 parte final, segundo o qual a audiência de julgamento e os atos instrutórios
que a lei determinar estão subordinados ao princípio do contraditório. Quanto à
audiência de julgamento, dispõe o artigo 327º do CPP.
O princípio do contraditório vale também para o debate instrutório, onde tem
lugar uma discussão perante o juiz, por forma oral e contraditória, sobre se do decurso
do inquérito e da instrução resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes
para justificar a submissão do arguido a julgamento – artigos 298º, 289º número 1, 301º
número 2 e 302º do CPP. Relativamente aos atos de instrução, vale o disposto no artigo
289º número 2, nos termos do qual o MP, o arguido, o defensor, o assistente e o seu
advogado podem assistir aos atos de instrução por qualquer deles requeridos e suscitar
pedidos de esclarecimento ou requerer que sejam formuladas as perguntas que
entenderem relevantes para a descoberta da verdade.

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Não obstante a Constituição subordinar apenas a audiência de julgamento ao
princípio do contraditório, não tendo por isso de valer da mesma forma em todas as
fases do processo, o que é facto é que encontra expressão logo na fase de inquérito,
nomeadamente por via do estatuto processual do arguido (artigo 61º número 1 alíneas
a), b) e g) do CPP) e do assistente (artigo 69º número 2 alínea a) do CPP), ainda que esta
fase possa estar sujeita a segredo de justiça, nos termos do artigo 86º números 2 e 3 do
CPP.

4. Princípios relativos à prova.


4.1. Princípio da investigação.
a) noção e conteúdo.

Este princípio é transversal a todo o Processo Penal português, contudo, tem uma
incidência particular na prova. A adução e o esclarecimento do material de facto não
pertencem aqui exclusivamente às partes, mas em último termo ao juiz: é sobre ele que
recai o ónus de investigar e esclarecer oficiosamente – independentemente das
contribuições das partes – o facto submetido a julgamento. Este princípio tem
consagração legal no artigo 340º número 1 do CPP. Todavia, tem também limites
decorrentes:
- da concorrência com o princípio da acusação: o juiz só pode investigar oficiosamente
os factos que se contenham dentro do objeto que as partes propuseram ser analisado
(acusação);
- da concorrência com o princípio do contraditório: se o juiz encontrar oficiosamente
novos meios de prova, tem de dar a opção aos sujeitos processuais de sobre estes se
pronunciarem (artigo 340º número 2);
- da disciplina dos próprios atos processuais: nem todas as provas são produzidas,
havendo limites. Há um em particular que tem de ser relevado – a acusação tem um
momento preciso para invocar provas (no momento da acusação), bem como a defesa
(no momento da contestação). Ficou assim estipulado por um elemento de coerência e
organização. Tal está vertido no artigo 340º número 4 alínea a) do CPP, sendo que não
se podem admitir provas dilatórias. Se depois as partes quiserem incluir mais provas,
têm de o requerer ao juiz;
- da concorrência com o princípio da legalidade dos meios de prova: pode parecer
contraditório que a lei preveja uma limitação à investigação do juiz com base no artigo
125º do CPP, contudo essa contradição é meramente aparente, o limite ocorre porque
este elemento é já intrínseco à própria verdade material.

Este princípio também encontra reflexos no artigo 348º do CPP: fala da cross
examination (interrogatório cruzado). No sistema norte-americano, este é um método
usado na inquirição de testemunhas pelo qual, depois da inquirição da acusação, essa
testemunha será contrainterrogada pela defesa. Muitas vezes, as questões são sobre a
personalidade da testemunha, de modo a que esta perca a sua credibilidade. No nosso
ordenamento jurídico, este método é uma ressonância do princípio do contraditório,
não sendo, contudo, idêntico ao que é utilizado nos EUA. No caso nacional, o juiz pode
interromper o contraditório e fazer as perguntas que considere relevantes – artigo 348º
número 5.

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Este princípio da investigação é subsidiário e expressão disso é o facto de a
testemunha ser inquirida pela parte que a indicou, sendo depois sujeita a
contrainterrogatório. Porém, também o juiz e os jurados podem apresentar às
testemunhas perguntas que acharem importantes para esclarecerem o seu
depoimento.
Relacionado com este surge o princípio da oralidade e da imediação – o juiz só
pode decidir sobre o caso se não estiver ligado ao conteúdo dos autos e protocolos
escritos e se puder adquirir uma impressão pessoal do arguido e dos meios de prova.

b) sentido e alcance num modelo de estrutura acusatória.

Diz respeito à iniciativa probatória, sendo que a resposta à pergunta em abstrato


dependerá do sistema processual (inquisitório ou acusatório). No sistema inquisitório, a
iniciativa cabe ao próprio juiz; no sistema acusatório, cabe tanto à acusação e acusado
como ao juiz, sendo que entre nós o juiz tem o poder-dever de investigar
autonomamente para além das contribuições da acusação e da defesa ao facto sujeito
a julgamento, podendo construir ele próprio as bases da decisão mesmo que esteja
contra a vontade das partes.

4.2. Princípio da livre valoração da prova.


a) breve contraposição com o sistema das provas legais.

Com a produção da prova em julgamento, visa-se oferecer ao tribunal as


condições necessárias para que este forme a sua convicção sobre a existência ou
inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença. Surge, porém, aqui a
questão de saber se a apreciação da prova deve ter lugar na base de regras legais
predeterminantes do valor a atribuir-lhe (sistema da prova legal), ou antes na base da
livre valoração do juiz e da sua convicção pessoal (sistema da prova livre).
É um princípio que não se aplica apenas no julgamento, mas também no fim do
inquérito, em que o MP tem que valorar as provas, e no fim da instrução, em que o juiz
de instrução deve também valorar as provas.
Este princípio trata o valor que deve ser atribuído a cada tipo de prova. Na
História, tivemos dois sistemas que embatem entre si sobre como entender este
princípio.
No sistema da prova legal, que vigorou na Europa ocidental durante o processo
inquisitório (séculos XIII a XVIII), o juiz não era livre na apreciação da prova, o valor dos
meios de prova estava predeterminado pela doutrina, o juiz limitava-se a um exercício
subsuntivo. As provas legais podiam ter um valor positivo ou negativo. Ainda hoje
existem regras de valoração das provas que se sobrepõem à consciência do juiz, de que
é exemplo o silêncio do arguido que não pode ser valorado. As provas negativas são as
regras de valoração que se limitam a reduzir ou excluir o valor de certos meios
probatórios, proibindo o juiz de assentar neles ou apenas neles a sua decisão, ainda que
esteja convencido da sua veracidade (unus testis, nullus testis = uma testemunha é igual
a nenhuma, é um exemplo de regra legal negativa). As regras/provas legais positivas,
por outro lado, predeterminam o valor e eficácia dos meios de prova, levando o juiz a
considerar a prova como previsto na lei, ainda que contra a sua convicção.

39
Hoje este sistema é considerado negativo devido à sua associação ao período
inquisitório, embora no seu início era um sistema garantístico. As críticas que lhe são
apontadas já foram referidas no contexto da História do Processo Penal. O sistema da
prova legal1 incentivava à tortura, as regras probatórias positivas deste sistema
pegavam no senso comum, numa regra de experiência, numa regra universal. É óbvio
que isto não faz sentido, duas testemunhas que prestem um testemunho concordante
era sempre considerado como verdade, pois segundo as regras da experiência, era o
que normalmente acontecia, contudo não pode ser considerado universal. A terceira
fragilidade refletia razões de ordem prática com a substituição dos juízes de carreira por
jurados, tornando difícil aplicar-se-lhes as tais regras legais.

Foi, por isso, substituído pelo sistema da livre convicção introduzido no Direito
francês. Neste sistema, a prova é avaliada pelos jurados pela sua convicção íntima
subjetiva, a única coisa que interessava era se os jurados ficavam convencidos da
inocência ou da culpa do arguido. Contudo, também este é sujeito a críticas. O princípio
da livre apreciação era utilizado para introduzir no processo provas que o legislador não
admitia. Este sistema adquiriu contornos autoritários e foi transferido e aplicado aos
juízes de carreira que também decidiam de acordo com a sua convicção pessoal.
Temos, por isso, modelos opostos, entre uma extrema discricionariedade e uma
extrema determinação do valor da prova.

b) o conteúdo e os limites da livre apreciação da prova.

Hoje o nosso sistema é diferente de ambos, tem uma dupla dimensão, uma
negativa – a desvinculação do julgador de regras que predeterminam o valor da prova –
e uma dimensão positiva – o juiz não está livre de critérios lógicos e racionais e é sujeito
a fundamentação e controlo de tribunais superiores, não se desonerando o legislador
da tarefa de prever critérios novos de valoração (critérios máximos de experiência –
artigo 127º) segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade
competente.
Podemos decompor as máximas ou regras das experiências em 4 métodos
lógicos:
- regras lógicas: por exemplo, a lei da não ubiquidade, em que assenta a força probatória
dos alibis;
- leis científicas não probabilísticas ou universais: estas leis universais são produto da
época histórica. Enquanto se determinar certo paradigma científico, este vincula o juiz.
Por exemplo, a Terra gira em torno do Sol;
- leis científicas probabilísticas: procuram determinar a probabilidade de certos eventos.
O juiz também está vinculado a estas, mas com limites e razoabilidade. Por exemplo, a
probabilidade de 2 pessoas terem o mesmo tipo sanguíneo;
- máximas da experiência comum (em sentido estrito): por exemplo, se duas pessoas
eram inimigas, a probabilidade de uma ser suspeita é grande, mas a decisão não se pode
basear apenas nisto. São estereótipos no sentido não pejorativo que devem ser
atendidos pelo julgador.

1O sistema de provas legais positivas dificulta a obtenção da prova. Uma crítica mais epistemológica
prende-se com o facto de as regras probatórias legais positivas assentarem numa falácia da generalização
abusiva, ou seja, convertiam a regra da experiência numa regra universal vinculativa.
40
Se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente esta
discricionariedade os seus limites que não podem ser licitamente ultrapassados: a
liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever
– o dever de perseguir a chamada verdade material –, de tal sorte que a apreciação há-
de ser, em concreto, reconduzível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível
de motivação e controlo. Sempre que tais limites se mostrem violados, será a matéria
suscetível de recurso ainda que o tribunal ad quem conheça, em princípio, apenas
matéria de Direito – artigo 410º número 2 do CPP.
Assim sendo, o juiz está vinculado a fundamentar2 as suas convicções em matéria
probatória, sendo que este dever resulta, em primeira linha, dos artigos 205º número 1
da CRP e 97º número 5 do CPP. Nos termos do artigo 374º número 2, a sentença contém
um relatório com fundamentação que consta dos factos provados e não provados. Tem,
ainda, de indicar os meios de prova e junto disso que conteúdo dos vários meios auxiliou
a formar a sua convicção, fazendo, também, um exame crítico da prova (por exemplo, a
testemunha está severamente dependente do arguido, podem existir razões para
duvidar do seu testemunho).

As regras em sentido negativo3 impedem o juiz de fundar nelas a decisão, mesmo


estando convencido de que é verdade o que nelas está referido:
- proibição de valoração desfavorável do silêncio total ou parcial do arguido (artigos
343º número 1 e 345º número 1 do CPP): se esta regra não existisse, o direito ao silêncio
seria uma quimera, ficção pura. É uma regra probatória legal negativa. O arguido não
pode ser obrigado a falar;
- proibição do depoimento indireto (artigo 129º número 1 do CPP): quando uma
testemunha em juízo narre factos de que não teve perceção pessoal, mas lhe foram
transmitidos por outra pessoa, temos um testemunho de “ouvir dizer”. A lei impõe que
o tribunal chame a testemunha presencial a depor; se não o fizer, não pode valorar o
depoimento indireto, salvas as exceções da parte final do mesmo preceito. A ratio desta
norma prende-se com razões epistemológicas atinentes ao princípio da imediação
material (postula que o juiz atenda às provas mais próximas dos factos a provar) e que
se relacionam com a credibilidade do depoimento. Situação semelhante é a da proibição
de vozes públicas ou rumores públicos, em que a testemunha não sabe identificar a
fonte das provas (artigo 130º). Atinentes também ao princípio da imediação formal, em
que o juiz tem um contacto direto com as fontes imediatas a valorar;
- testemunho desfavorável contra outro coarguido, quando o declarante se eximir ao
contraditório (artigo 345º número 4 do CPP): um dos arguidos procura absolver-se do
caso mas causa com isso ofensas ao interesse dos outros arguidos, mas não responde a
questões feitas contra si. Acaba por ser uma prova de pouca credibilidade, pois há um
grande incentivo a mentir e uma facilidade enorme de formular uma mentira

2 O dever de fundamentação também resulta da possibilidade de interpor recurso. Mesmo nos casos em
que o tribunal de recurso conheça apenas matéria de Direito, pode em certos casos apreciar vícios sérios
como:
- erro notório na apreciação da prova;
- erro insanável na apreciação da prova.
Mas é preciso que isso resulte do próprio texto da decisão recorrida.
3 No nosso ordenamento jurídico, a maioria das regras probatórias legais tem sentido negativo.

41
congruente, algo que é agravado quando ele se exime do contraditório que iria procurar
confirmar a congruência do testemunho;
- exigência de corroboração das declarações prestadas por testemunhas anónimas
(artigo 19º número 2 da Lei de Proteção de Testemunhas): esta Lei distingue entre
testemunhas vulneráveis e testemunhas em processo de criminalidade grave e
organizada, sendo que a existência destas últimas pode levar a programas especiais de
segurança e medidas processuais de proteção, como a videoconferência, a tomada de
declarações sem identificação da imagem e da voz ou o anonimato. A testemunha é
conhecida num processo complementar e sigiloso e não é revelada aos outros sujeitos
processuais, prejudicando os direitos de defesa do arguido, sendo que as limitações ao
contraditório são atenuadas pela corroboração imposta pelo legislador. Se a prova
assentar apenas no depoimento de uma ou várias testemunhas anónimas, o juiz não
pode valorar a prova – tem de haver outras provas que corroborem as declarações da
testemunha anónima.

Temos, ainda, hipóteses de regras em sentido positivo (valor de prova plena):


- valor probatório reforçado da confissão4 (artigo 344º número 2 do CPP): pode ter valor
de prova plena, ou seja, o juiz não precisa de produzir outras provas, podendo condenar
com base nesta prova. A confissão dá fim imediato à audiência de julgamento e passa-
se logo às alegações orais. Quais os requisitos para ter valor de prova plena?
- tem de ser livre, integral e sem reservas: livre, pois a confissão não pode ser
induzida ou viciada, poderia ser obtida com coação. Integral, pois a confissão
deve referir-se a todos os factos da imputação, não impedindo o arguido de
confessar alguns factos e recusar outros, caso em que não é admitida como
prova plena. Sem reservas, pois o crime não pode opor à confissão quaisquer
circunstâncias que imponham um comportamento diferente dos factos (por
exemplo, a legítima defesa) e tem de ser um crime com pena de prisão máxima
não superior a 5 anos. Há 2 razões: a mais importante indica uma ideia de
consenso, que vale em geral para a média e pequena criminalidade, onde o
legislador aceita com maior latitude limites à descoberta da verdade material,
sendo uma solução consensual que só é admitida neste tipo de criminalidade. Há
outra razão, pois diz-se que, nos crimes menos graves, são menos prováveis
declarações falsas; em casos de grande magnitude e com pressão social, muitas
vezes as pessoas podem vir a confessar crimes que não cometeram;
- não podem existir coarguidos e, se existirem, todos têm de confessar de forma
idêntica: se um confessa, não se pode alastrar isso a todos e, por razões lógicas,
não se pode condenar aquele que confessou e continuar a julgar os restantes,
logo um pode confessar mas não possui valor de prova plena. Embora este
conceito de prova plena esteja ligado ao sistema inquisitório, é muito distante
daquilo que se fazia na altura. O juiz ainda tem um reduto de livre apreciação,
nos termos do artigo 344º número 3 alínea b) do CPP, a lei não se sobrepõe
totalmente à vontade do julgador, a prova pode não ter, então, valor pleno, terá
o valor que o tribunal considerar, pode ficar valorada pelo meio;
- valor reforçado da prova pericial (artigo 163º número 1 do CPP): a prova pericial só é
ordenada quando a apreciação de determinados factos exija determinados

4Se a confissão não preencher certo requisito terá valor que o tribunal entender atribuir, por via do
princípio da livre apreciação da prova.
42
conhecimentos científicos, técnicos ou artísticos. Nestas matérias, é obrigatória a prova
pericial (o juiz considera não ter domínio sobre esses conhecimentos) e não pode ser
substituída por outra. Neste caso, como o juiz entende não conhecer bem a matéria,
não pode existir livre apreciação da prova, o juiz fica vinculado a qualquer conceito que
não seja jurídico (por exemplo, não fica vinculado a um médico dizer que certa pessoa
é inimputável, pois isso já é um conceito jurídico) e o juiz não está afastado de ter de
controlar se a prova foi bem realizada (por exemplo, se a autópsia foi feita ao corpo
correto). O juiz pode afastar-se quando tenha especiais conhecimentos daquela área
(por exemplo, o juiz já foi psiquiatra) ou quando se mune de outro relatório pericial que
tenha apontado em sentido diferente – artigo 163º número 2.

4.3. Princípio in dubio pro reo.


a) noção, fundamento e conteúdo.

Para que o tribunal possa condenar, tem de ter uma certeza maior do que a
dúvida razoável para decidir. Se não a tiver, não pode decidir contra o réu. Apesar de
toda a prova, pode subsistir uma dúvida insanável sobre os factos. Aqui, o que fará o
tribunal? Não pode abster-se de decidir ou adiar o momento da decisão (non liquet –
artigo 8º do CC).
No Processo Civil, onde existe uma certa disponibilidade das partes sobre o
objeto, vigora o princípio de que o autor tem de fazer prova do que alega e o réu terá o
ónus de contra-alegar os factos invocados pelo autor. Se o réu não desenvolver o ónus
e o tribunal entender que a prova do autor é suficiente, vai considerar os factos do autor
como verdadeiros – princípio da autorresponsabilidade dos factos alegados.
No Processo Penal, diferentemente, os interesses em questão não são
disponíveis. Vigora entre nós, aliás, o princípio da investigação judicial – o juiz irá
investigar quando a prova apresentada não bastar. Não se pode falar aqui de um ónus
da prova formal, segundo o qual a acusação e a defesa teriam o dever de produzir as
provas necessárias para basear as suas alegações de facto. Mas e o ónus da prova
material? Sendo este um ónus da prova unilateral em desfavor da acusação – em caso
de dúvida, decide-se sempre a favor da defesa – não podemos ir por este caminho. Tal
acontece porque o MP não é uma parte interessada na condenação. Pretende sim a
descoberta da verdade, ainda que essa verdade absolva o arguido ou o condene. Ele
quererá investigar as provas apresentadas pelas duas partes. A absolvição por falta de
prova, em todos os casos de persistência de dúvida no espírito do tribunal, não é
consequência de qualquer ónus de prova, mas sim da intervenção do princípio in dubio
pro reu – em caso de dúvida, a decisão deve favorecer o arguido.

É uma decorrência do princípio da presunção da inocência como regra de


tratamento – artigos 32º número 2 da CRP, 14º do PIDCP e 6º número 2 da CEDH. Como
consequência desta presunção, a decisão deve favorecer o arguido.

Há quem diga que a presunção da inocência é o correlato/corolário adjetivo do


princípio da culpa (nula poene sine culpa) – não se pode condenar alguém sem prova de
culpa. Este princípio levanta dúvidas quanto às medidas de segurança e quanto aos
pressupostos processuais (que não contendem com matéria de culpa). Cristina Líbano
Monteiro entende que, reconhecendo-se como base do princípio a presunção da

43
inocência e entendendo esta como sinónimo de ausência de culpa, não seria possível
aplicar aos pressupostos processuais. Assim, propõe outra base de fundamento: o
princípio do Estado de Direito democrático (artigo 2º da CRP), de forma a compaginar
todos estes elementos. Este entendimento, porém, levanta dúvidas da extensão do
princípio in dubio pro reu nos casos em que não há culpa, como acontece com as
medidas de segurança, bem como sobre se este princípio se aplica aos pressupostos
processuais. Porque se entende que o princípio in dubio pro reu se deve aplicar nestas
matérias, os autores vieram criar outro fundamento com base no princípio do Estado de
Direito, consagrado no artigo 2º da CRP. Quer-se limitar a atividade punitiva do Estado
nos casos em que haja dúvidas.
Isto tem um inconveniente: se o princípio in dubio pro reu for violado, podemos
invocar a inconstitucionalidade, já que aquele princípio se fundamenta no artigo 2º da
CRP. Como nem sempre parece correto, temos, entre nós, a ideia de que temos de
fundamentar as decisões para ver se a condenação devia ou não ser feita – artigo 205º
da CRP. A professora Sandra Silva5 não concorda com esta visão de Cristina Líbano
Monteiro, porque é desnecessária (porque a presunção de inocência do artigo 32º
número 2 da CRP não significa ausência de culpa, mas sim um pressuposto de que
depende a intervenção do Estado num Processo Penal). Por outro lado, a visão da autora
indicada desliga o princípio da sua dimensão histórica e elimina a sua relação com a
Constituição, retirando a sua efetividade. Quando se obriga o juiz a fundamentar a
decisão, não referimos quais os critérios que o juiz deve seguir para fundamentar. Se
vigorasse o princípio in dubio pro societate, o juiz não tinha de fundamentar a
condenação do arguido, porque mesmo em caso de dúvida, o juiz, aqui, poderia
condenar. Os princípios não são completamente incompatíveis.

O princípio in dubio pro reo, constitucionalmente fundado no princípio da


presunção da inocência até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (artigo
32º número 2 da CRP), vale só em relação à prova da questão de facto e já não a
qualquer dúvida suscitada dentro da questão de direito: aqui a única solução correta
residirá em escolher não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que
juridicamente se reputar mais exato. Se, por exemplo, o juiz tiver dúvidas na
interpretação da norma, tem de se socorrer das regras de interpretação gerais,
estabelecidas no artigo 9º do Código Civil. Sempre com o limite da interpretação
extensiva não ser exagerada. Isto não obsta, contudo, a que o tribunal de recurso
conheça da violação do princípio quando o recurso interposto seja apenas de revista
(que não conhece matéria de facto). A violação do princípio in dubio pro reo integra a
matéria de direito, como qualquer outra violação de um princípio jurídico, pelo que está
no âmbito dos poderes de cognição do STJ, tal como previstos no artigo 434º do CPP.
Relativamente, porém, ao facto sujeito a julgamento, o princípio aplica-se sem
qualquer limitação e, portanto, não apenas aos elementos fundamentadores e
agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude e da culpa,

5 O entendimento da professora é o seguinte: a tentativa de encontrar outro fundamento para o princípio


é desnecessária, porque a inocência a que se refere o artigo 32º da CRP não é a ausência de culpa. A
inocência é entendida como todo e qualquer pressuposto de que dependa a intervenção condenatória do
Estado – quando se protege a inocência, protegem-se todos os pressupostos de intervenção penal do
Estado, pelo que abrange quer a culpa, quer as circunstâncias modificativas, agravantes e atenuantes, as
medidas de segurança, as causas de exclusão de ilicitude.
44
às condições objetivas de punibilidade, bem como às circunstâncias modificativas
atenuantes e, em geral, a todas as circunstâncias relevantes em matéria de
determinação da medida da pena que tenham por efeito a não aplicação da pena ao
arguido ou a diminuição da pena concreta. Em todos estes casos, a prova tem de atuar
em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta
no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido. Qual
a consequência de se darem como não provados esses factos? Absolvição, se estivermos
a tratar de um tipo incriminador (por exemplo, furto, se não se provar a subtração da
coisa) e se for uma agravante? Num caso de homicídio, que não se prova a
premeditação, é condenado apenas pelo crime fundamental. O in dubio pro reo também
vale para os pressupostos fácticos de causas de exclusão de ilicitude e de modificativos
de atenuação da culpa, como deve o juiz decidir? Dá como provado o facto favorável,
absolvendo o arguido ou atenuando a pena. O princípio também vale para as condições
objetivas de punibilidade, como por exemplo no abuso de confiança fiscal. Havendo
dúvidas, dá-se a condição como não verificada. O in dubio pro reo conduz sempre, caso
exista dúvida, a não provar os factos desfavoráveis como provados, contudo, não leva
sempre à absolvição.

Uma questão que também se coloca é se o princípio vale quanto aos elementos
fácticos dos pressupostos processuais (queixa, acusação particular e prescrição), ou seja,
se pode influenciar a promoção do processo, o que implica saber, portanto, se ele vale
quando exista a dúvida sobre um facto que seja, por exemplo, causa de suspensão do
prazo de prescrição criminal – dá-se o facto como não provado. O princípio in dubio pro
reo auxilia o juiz a decidir sobre essa matéria, terá de decidir da forma mais favorável ao
arguido.
No sentido de uma resposta negativa, aponta-se o facto de o princípio se
apresentar como correspetivo processual do princípio da culpa (não há pena sem culpa),
relativamente ao qual os pressupostos processuais se mostram matéria absolutamente
estranha. Nestes não está em jogo o interesse do arguido, mas a admissibilidade de um
processo que até pode ser do interesse do arguido, logo não fará sentido falar numa
decisão mais ou menos favorável.
No sentido de uma resposta positiva, perante uma dúvida persistente sobre
factos relevantes para a admissibilidade do processo, não deve, em regra, preferir-se o
seu arquivamento, podendo este ser justificado à luz do in dubio pro reo se a dúvida
incidir sobre factos relevantes para a admissibilidade do processo que contendam com
a culpabilidade processual do arguido.

Se entendêssemos que o in dubio pro reo está relacionado com a culpa, não iria
valer no sentido enunciado, mas entende-se que este princípio não é corolário adjetivo
da culpa, tem um objeto mais vasto, liga-se a todos os pressupostos da intervenção
penal do Estado. Daí que se aplique aos pressupostos processuais referenciados (pena,
agravantes, tipo incriminador), logo também vale nestes pressupostos processuais de
queixa, acusação particular, entre outros. É a presunção da inocência num sentido lato.
Não se poderia defender este sentido se fôssemos restringir o princípio in dubio pro reo
quanto à culpa do arguido.

45
b) limites: nos crimes contra a honra e na criminalidade económico-financeira (a
«perda alargada de bens» e o «enriquecimento ilícito»).

Há, contudo, exceções ao princípio e, portanto, in dubio contra reum. Neste


âmbito, costumam apontar-se certos tipos de crime nos quais o não conseguimento da
prova de certos factos ou circunstâncias atua em desfavor do arguido. Em tais tipos de
crime é posto a cargo do agente um certo risco pela sua conduta.
Há, então, crimes para os quais este princípio não vale completamente, sendo
um deles os crimes contra a honra previstos nos artigos 180º e seguintes do CP. Há uma
causa de justificação específica na alínea b) do número 2 do artigo 180º (difamação). O
agente não é punido, quando provar que os factos imputáveis à outra pessoa são
verdadeiros, impõe-se um ónus da prova sobre o arguido, afastando-se o in dubio pro
reo. A dúvida é desfeita em desfavor do arguido.
A pergunta que se coloca é se este artigo não será inconstitucional como violação
do princípio da presunção da inocência (artigo 32º número 2 da CRP). Não, não há uma
verdadeira presunção de culpa, esta imposição do ónus tem um âmbito limitado, não
vale para os crimes contra a honra por inteiro, mas apenas neste número 2, nesta
situação específica, num âmbito limitado, há singelamente um pequeno afastamento.
Num segundo aspeto, há uma restrição e essa é justificada, porque se destina a
compensar uma área de risco permitido de que o agente beneficia nesta matéria. O
legislador tinha 2 possibilidades: ou punia sempre que alguém era acusado do crime de
honra ou abria uma área de risco permitido, desde que a quem se faz a imputação do
crime contra a honra o prove; se tivesse escolhido a primeira situação seria muito pior
para o arguido.
Outro exemplo é a criminalidade económico-financeira, crimes que produzem
réditos avultados (peculato, branqueamento de capitais). Muitas vezes é difícil perseguir
os criminosos, pois estes são crimes de prática sofisticada, com mecanismos complexos
e adequados para ocultar provas e evitar a descoberta da verdade. Como é que o
ordenamento jurídico lida com isto? Uma das possibilidades encontra-se consagrada na
Lei nº 5/2002, que prevê o instituto da perda alargada de bens. É um instituto diferente
da perda de bens prevista no CP (artigos 109º e seguintes), que determina o confisco
dos concretos rendimentos/proventos que certa atividade criminosa criou.
No instituto da perda alargada de bens, não se está apenas a retirar os rendimentos da
atividade, mas também aqueles que se presumem que possam ter vindo de atividade
criminosa, há algumas atividades criminosas que se escondem por uma aparência de
oficialidade. Não são só os produtos daquela concreta atividade criminosa que vai ser
julgada, mas também de prévios atos criminosos.
Como é que há afastamento do princípio? Há uma presunção no artigo 7º
número 1 da Lei que cria esse afastamento, essa presunção faz impender sobre o
arguido o ónus da prova de assegurar que esses bens provêm de atividades lícitas de
modo a não ter esses bens confiscados. Será isto inconstitucional?
A doutrina maioritária considera que não, pois o afastamento diz respeito a uma medida
de natureza administrativa e não penal, o confisco de bens não é uma pena, mas sim
uma medida administrativa. Estaríamos perante uma situação diferente se tivesse sido
estabelecida uma presunção que fosse base de uma aplicação de pena e imputasse o
ónus ao indivíduo de provar a inocência (como existe o crime de enriquecimento ilícito
injustificado, que ainda não foi introduzido em Portugal mas já houve tentativas, seria

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para confiscar bens que não condizem com os ganhos declarados pelo arguido, que teria
de provar a licitude dos seus ganhos, isto já seria inconstitucional pois é uma presunção
que leva à pena).

5. Princípios relativos à forma.

Figueiredo Dias diz que são princípios relativos à forma pois estão relacionados à
forma de atingir a decisão penal, são princípios que valem sobretudo na audiência do
julgamento (daí que possamos chamar-lhes princípios da audiência do julgamento),
ligam-se à livre apreciação da prova e ao princípio da concentração (de relembrar que
estas divisões que fazemos dos princípios são convencionais, podíamos organizá-los de
forma diferente).

5.1. Princípio da oralidade.


a) noção e conteúdo.

O princípio da oralidade tem que ver com a forma de atingir a decisão – os atos
processuais devem processar-se sob forma oral, devendo a decisão ser proferida tendo
por base uma audiência oral.
O juiz decide com base na prova apresentada na audiência perante ele, mas este
princípio já não vale, por exemplo, na fase de inquérito, pois as testemunhas não são
necessariamente ouvidas perante o MP, nem o arguido ou peritos são ouvidos pelo MP,
normalmente quem ouve o arguido são órgãos de polícia criminal que depois
transmitem o depoimento ao MP, que posteriormente irá avaliar se deduz ou não
acusação.

b) a documentação dos atos processuais.

Isto não significa que não se possam fazer atas na audiência de julgamento, pelo
contrário, é muito conveniente que sejam feitas. Contudo, resumem-se à preservação
da prova oral, têm valor preparatório e documental: favorecem o controlo da produção
de prova pelo juiz e pela instância superior em caso de recurso. O juiz pode não
memorizar tudo ao longo de todo o processo, que se pode alongar, daí ser valor
preparatório. Desempenham, igualmente, funções de controlo, pois, no recurso,
convém que as provas sejam preservadas para o tribunal superior saber as provas que
tem para valorar.
Sendo assim, a lei disciplina as formalidades das atas, estas estão previstas em
geral no artigo 99º do CPP. Prevê-se que os atos processuais sejam reduzidos a auto e
se disser respeito a debate instrutório a ata tem o nome de auto instrutório – artigo 99º.
Pode ainda resumir-se o auto a súmula ou pode fazer-se, caso a lei permita, registo
áudio, audiovisual, meios estenográficos ou estenotípicos (em Portugal ninguém utiliza
estes 2 últimos, por falta de especialistas) – artigos 100º e 101º do CPP, estas são as
regras gerais, mas há leis específicas para cada fase.
Na fase de inquérito, prevê o artigo 275º número 1 que o MP tem liberdade na
escolha do que é documentado, mas tem-se entendido que o MP deve fazer constar nos
autos todas as diligências conduzidas, tirando as que não produziram frutos – em geral
feitas por súmula. Na fase da instrução, prevê o artigo 296º que as diligências são

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documentadas por gravação ou redução a áudio. Quanto aos atos instrutórios vale o
artigo 305º. Sobre a fase de julgamento, prescrevem os artigos 363º e 364º. A prova
produzida em audiência é sempre documentada sob pena de nulidade, isto é importante
devido à possibilidade de recurso. Como se faz a documentação? Regra de gravação
áudio ou audiovisual (em Portugal, por norma utiliza-se gravação áudio e não vídeo).
Para concretizar, reitera-se que o princípio da oralidade não vai contra a
realização de atas, elas devem existir.

5.2. Princípio da imediação.


a) noção e conteúdo: imediação subjetiva ou formal e imediação objetiva ou material.

O princípio da imediação tem que ver com a relação de proximidade


comunicante que deve ser estabelecida entre o tribunal e os sujeitos e participantes
processuais, por não ser apenas relevante o que se diz, mas também a forma como se
diz, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do julgador.
Pode ser entendido num duplo sentido:
- formal/subjetivo: é de facto um princípio da forma. Traduz-se na exigência do contacto
direto e pessoal entre o juiz e os meios de prova e pessoas cujas declarações deverá
valorar. Define-se como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os
participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma perceção própria
do material que haverá de ter como base da sua decisão. Também aqui o ponto de vista
decisivo é o da forma de obter a decisão;
- material/objetivo: é um princípio da prova. Diz respeito à relação entre os meios de
prova e os factos a provar, impondo que o juiz utilize os meios de prova mais próximos
dos factos, preferindo as fontes imediatas às fontes secundárias (chamadas sucedâneos
probatórios), pois as fontes primárias importam uma maior garantia epistemológica.

O primeiro sentido aponta como o juiz deve usar os meios de prova (contacto
direto) e o segundo que meio de prova deve usar (primários em detrimento dos
secundários, pois são mais próximos dos factos). O sentido material traduz-se, então,
numa proibição de sucedâneos de prova e numa regra de preferência dos meios de
prova mais próximos dos factos a provar (nos sistemas anglo-saxónicos fala-se na best
evidence rule). Entre nós este sentido decorre no artigo 355º do CPP e, no sentido
inverso, os artigos 356º e 357º que estabelecem exceções de valoração proibida dos
autos. Também decorre deste sentido o artigo 129º na proibição do depoimento
indireto.

b) A proibição de testemunhos de ouvir dizer (art. 129.º C.P.P.) e a proibição da leitura


de declarações constantes dos autos (arts. 355.º e ss. C.P.P.).

A prova mais próxima é o testemunho presencial e a mais distante é o


depoimento indireto (o testemunho do “ouvir dizer”). Daí que o juiz deve chamar a
depor essa testemunha que prestou o depoimento indireto, se não a convocar poderá
apenas utilizar como elemento de sindicância crítica da testemunha presencial.
Há exceções quanto ao depoimento indireto, quando a testemunha presencial falecer,
estiver desaparecida e entre outras razões, pode valorar-se esse depoimento (artigo

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129º número 1 parte final) e porquê? Pois sem existir prova melhor, pode a descoberta
da verdade impor a necessidade de ouvir o depoimento indireto.
Há doutrina que defende que deve fazer-se uma interpretação extensiva das
condições excecionais da parte final do número 1. Quando a testemunha não morreu,
mas está em coma, não tem anomalia psíquica mas tem amnésia, ou em casos que possa
ser encontrada mas se recuse a prestar declarações.
A proibição da valoração de autos resulta de razões epistemológicas, embora os
autos cumpram regras muito precisas e hodiernamente os meios de gravação das provas
orais tenham sido melhorados, a verdade é que nunca estes meios de documentação
produzem uma experiência pessoal dos meios de prova por parte do juiz.

As diferenças entre a experiência pessoal e a valoração do registo são duas:


- plano da qualidade dos registos: existe sempre uma não coincidência integral entre
aquilo que é dito e aquilo que é registado, especialmente na súmula, perde-se sempre
alguma informação e muitas vezes deturpa-se informação. Não coincidência do
depoimento oral e o seu registo (especialmente quando é feito por escrito e não
gravado);
- falta de qualidade da narração: falta de correspondência entre o que é dito pela
testemunha e o que realmente aconteceu, nestes casos é mais difícil o juiz detetar as
incoerências se não tiver um contacto de proximidade com a testemunha, mesmo os
meios mais perfeitos de registo possuem lacunas de imediação.

Não só o legislador proíbe a valoração dos autos, como toda e qualquer atividade
probatória que tenha como objeto essas declarações (como por exemplo, interrogar
polícia que fez o depoimento) – artigo 356º número 7 do CPP.
Existem casos excecionais onde o legislador consente a valoração:
Podemos dividir o artigo 356º em duas partes: há casos de leitura aquisitiva de
declarações anteriores e depois temos casos de leitura não aquisitiva de declarações
anteriores. O que importa é saber se se pode valorar.
O Acórdão nº 8/2017, fixador de jurisprudência, veio estabelecer um princípio
doutrinal/jurisprudencial, que de modo a ser possível valorar as declarações produzidas
anteriormente, elas deveriam ser lidas em audiência pública e só consequentemente
poderiam ser valoradas.
O STJ resolveu este conflito no sentido de que, pelo menos quanto às declarações
produzidas anteriormente ao abrigo do regime de declarações para memória futura
(artigo 271º), não é condição para a sua valoração a leitura pública em audiência de
julgamento.
A professora defende a tese de que deve ler-se em audiência de julgamento para
que se possa valorar de modo a proteger o contraditório no processo, contudo não
seguiram essa doutrina.
Os casos de leitura aquisitiva são aqueles em que se considera ler declarações
anteriores para que sejam aproveitadas para a decisão do juiz.
A leitura não aquisitiva serve para reavivar a memória da testemunha quando
em audiência de julgamento não se recorde bem dos acontecimentos. Outra ocasião é
quando o depoimento da testemunha em audiência entra em contradição com o
depoimento anterior. É leitura não aquisitiva pois não se pretende que a prova sirva
para formar a decisão, ela serve para auxiliar o testemunho, esse sim vai formar a

49
opinião do julgador (artigo 356º número 3, outra possibilidade está vertida no artigo 96º
do CPP).

Os casos de leitura aquisitiva subdividem-se em 3 grupos:


1º grupo:

- Artigo 356º número 1 alínea a) do CPP – relativos a atos processuais levados a cabo
nos termos dos artigos 318º, 319º e 320º (residentes fora do município, tomada de
declarações no domicílio e realização de atos urgentes, respetivamente);
- Artigo 356 número 2 alínea a) do CPP (por remissão para os artigos 271º e 294º) – casos
em que se verifiquem as situações previstas no número 1 do artigo 271º, que justificam
que se proceda à inquirição de uma testemunha no decurso do inquérito, a fim de que
o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento;
- Artigo 356º número 2 alínea c) do CPP – tratando-se de declarações obtidas mediante
rogatórias ou cartas precatórias legalmente permitidas.

Em qualquer um desde casos, as prestações de declarações são obtidas


mediante interrogatório ou são observadas garantias mínimas de julgamento, perante
juiz e, portanto, compreende-se que se possa valorar. Mesmo fora destes casos, a Lei
de Proteção de Testemunhas, quando a testemunha é mais vulnerável, também são
permitidas as declarações para memória futura. É de salientar, ainda, o artigo 24º do
Estatuto da Vítima. Esta pulverização legislativa sobre um mesmo tema prejudica as
pessoas que beneficiam desta norma, porque é mais difícil de aplicar.

2º grupo: casos onde o MP, o assistente e o arguido estão de acordo quanto à leitura
das declarações – artigo 356º número 2 alínea b) e número 5 – independentemente da
autoridade a quem foram feitas as declarações. Aqui o fator de legitimação é o acordo
de vontades.

3º grupo: casos previstos no artigo 356º número 4, quando a pessoa que tenha prestado
declarações entretanto faleça, sofra de anomalia psíquica superveniente ou
incapacidade duradoura, podem valorar-se as suas declarações. Há aqui um equilíbrio
que o legislador pretende assegurar entre a procura da verdade e as exigências da
validade epistemológica da prova produzida e valorada, desde que tenham sido
declarações perante uma autoridade judiciária.

É preciso que a permissão da leitura fique a constar de ata (artigo 356º número
9). Não é preciso leitura pública, segundo o STJ.
Quanto às declarações do arguido, constam do artigo 357º, a lei prevê a
possibilidade de valoração dessas declarações anteriores em 2 casos:
Quando o próprio arguido o requeira, nos termos do artigo 357º número 1 alínea
a) do CPP. É uma manifestação de liberdade positiva de declaração do arguido. No
sentido negativo dessa liberdade, temos a máxima de que o arguido não pode ser
pressionado a produzir provas contra si próprio (tendo o direito de se remeter ao
silêncio). Neste sentido positivo, quando quiser e na forma que entender, pode prestar
declarações para provar a sua inocência.

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Em suma, as exceções da proibição de leitura de declarações anteriores
constantes dos autos (artigo 357º) remetem para caso de contradição ou a pedido do
arguido.
Isto levantava problemas à descoberta da verdade – acontecia que na fase de
inquérito ou instrução o arguido tinha prestado declarações e depois no julgamento
remetia-se ao silêncio ou não comparecia. Isto conduziu a soluções que
consubstanciavam a fraude à lei, encenavam-se declarações e depois aquilo era
aproveitado. Em 2013, houve alteração da lei e permitiu-se a valoração de declarações
anteriores observados determinados requisitos, nos termos do artigo 357º número 1
alínea b) do CPP. A lei foi, então, alterada: é permitida a valoração sempre que o
interrogatório seja feito por MP ou juiz, com a presença obrigatória do defensor e o
arguido tem de ser informado dos seus direitos (nomeadamente o direito ao silêncio).
O artigo 141º número 4 alínea b) prevê que se o interrogatório for feito por órgão da
polícia criminal não é obrigatório, resulta a contrario do artigo 141º número 2. Daí que
alguns interrogatórios devam ser gravados em vídeo, de forma a permitir uma valoração
mais fácil e hábil, consequentemente produzindo uma maior garantia epistemológica.
O legislador só impõe este dever quando se podem aproveitar as declarações.
Não se dizendo ao arguido que as declarações podem ser aproveitadas, ele pode ficar
convencido de que não valem como prova, mas podem ser aproveitadas para aplicação
de medidas de coação, mas esse valor como prova esgota-se na fase de inquérito. A
professora entende que se deve informar o arguido quando inquirido pela polícia.
Para além destes 3 requisitos obrigatórios, há uma cautela adicional – artigo 141º
número 7 do CPP. Diz-se que o interrogatório perante autoridade judiciária é feito
através de registo áudio ou audiovisual, em casos mediáticos são gravadas as
declarações, porque passou a prever-se esta norma desde 2013, liga-se ao artigo 357º.
O legislador, para assegurar o mínimo indispensável de imediação, exigiu ou preferiu
que essas declarações fossem documentadas em registo áudio ou vídeo. É mais fácil
saber para o juiz se mentiu quando houve gravação áudio ou vídeo. É esta solução boa?
Há quem diga que é violadora do direito ao silêncio. Há quem diga que a modificação
legal comprime o direito ao silêncio e a prerrogativa contra a autoincriminação. A
circunstância de até 2013 se proibir a leitura de declarações anteriores do arguido, salvo
os casos previstos, destinava-se a servir como profilaxia de declarações coagidas, uma
atitude herdada do Estado Novo. Havia um estigma de desconfiança relativamente às
declarações pré-judiciais. Duvidava-se da autêntica liberdade do arguido no momento
em que proferia essas declarações. Parece não haver obstáculo desde que se
estabeleçam garantias sucedâneas que permitam acautelar que as declarações são
livres, que o arguido declarou de forma livre e esclarecida. O regime do artigo 357º
introduz essas garantias sucedâneas, só se aproveitam as garantias anteriores do MP e
do juiz se o arguido for acompanhado do defensor, informado dos seus direitos e que
haja registo áudio ou vídeo. Este argumento não convence os críticos que entendem
que, podendo valorar-se as declarações anteriores, o silêncio torna-se menos vantajoso
na audiência de julgamento, daí que acreditem que há compressão do direito ao
silêncio. Muitas vezes interessa que o arguido declare logo inicialmente, pois pode
decidir sobre as medidas de coação. Mas também tem que ter cuidado, porque se disser
coisas comprometedoras podem ser aproveitadas na audiência de julgamento e o
arguido e o defensor têm de ter cuidado. É violadora do direito ao silêncio ou não? Não
é, claro que o legislador não está obrigado a que o silêncio seja a melhor estratégia de

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defesa. Também violaria o silêncio o facto de se aproveitarem escutas ou declarações
de testemunhas feitas. Quanto mais densificada esteja a suspeita, menos interesse tem
o arguido em remeter-se ao silêncio. O legislador não está obrigado a tutelar isso.

5.3. Princípio da publicidade.


a) sentido, conteúdo e âmbito.

Pode ser visto por um:


- prisma subjetivo: é uma garantia da defesa do arguido, é consagrada no artigo 6º
número 1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, o direito ao fair trial;
- prisma objetivo: é a forma ótima de dissipar quaisquer desconfianças que a
comunidade pudesse ter sobre a forma como é exercida a justiça penal, os tribunais
decidem em nome do povo, é o ideal autor das decisões judiciais, permite-se à
comunidade o controlo da forma como a justiça é exercida.
Está regulado no CPP e o artigo 86º número 6 diz qual é seu o conteúdo, quais
as consequências de um processo ser público. Este conteúdo não vale de igual forma
para todas as fases do processo. Na audiência de julgamento, o princípio vale com toda
a intensidade, sendo que as audiências de julgamento são públicas – artigo 206º da CRP.
Este mandamento constitucional é concretizado no CPP no artigo 321º número 1 que
impõe publicidade sob pena de nulidade insanável.

b) restrições à publicidade e segredo de justiça. Segredo externo e segredo interno.

Todavia nem a CRP, nem o legislador ordinário foram ingénuos e estabelecem


situações em que se pode afastar a publicidade – artigos 87º e 88º do CPP. Em relação
ao artigo 87º, estabelecem-se situações em que pode ser excluída a assistência pelo
público da audiência de julgamento, concretiza a norma constitucional. Um dos casos é
aquele em que se preveja que haja atos de indisciplina e perturbação da audiência de
julgamento, quando o processo cause comoção. O mesmo quando haja dano para a
moral pública ou dignidade de pessoas. Nos termos do artigo 87º número 3, nestes casos
a publicidade deixa de ser a regra e passa a ser a exceção, estende-se a crimes onde há
questões de moral. Quando se exclua a publicidade da audiência, há pelo menos um
reduto de publicidade – a leitura da sentença é sempre pública (artigo 87º número 5).
Quanto à relação entre a justiça e os meios de comunicação social, a justiça penal
é objeto privilegiado pela comunicação social. O legislador quis conjugar a publicidade
e transparência com a dignidade da administração da justiça que pode ser posta em
causa pelo aparato e com outros interesses da tutela penal (proteção do arguido ou da
vítima). Esta disciplina específica para os meios da comunicação social consta do artigo
88º do CPP. Prevê-se que tenham a faculdade de narração dos atos processuais que não
estejam em segredo de justiça. Mas a lei proíbe 3 coisas fundamentais: a reprodução de
peças processuais ou documentos incorporados até sentença de 1ª instância; a
transmissão ou registo de imagens ou sons a menos que haja despacho de autorização;
não podem publicar-se a identidade de vítimas de crimes sexuais – artigo 88º número
2. Quanto às fases anteriores à audiência de julgamento, vale o princípio da publicidade
nos termos do artigo 86º número 1, vale para todas as fases processuais.
Esta disciplina sofreu alterações em 2007. Até lá adotava-se uma perspetiva
diacrónica nos espaços de segredo e publicidade. Até 2007, no inquérito, havia sempre

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segredo interno e externo. Na fase de instrução, havia apenas segredo externo, já não
havia segredo para os sujeitos processuais. A fase de julgamento era inteiramente
pública. Diz-se diacrónica porque ao longo do tempo ia sofrendo alterações entre
segredo e publicidade.
Segredo interno é aquele que limita o acesso aos autos e o conhecimento dos
elementos deles constantes pelas próprias pessoas envolvidas na lide processual
(arguido, assistente, partes civis, ofendido). Destina-se a assegurar os interesses da
funcionalidade da máquina judiciária e impedir que o arguido oculte documentos,
condicione testemunhas.
O segredo externo, por outro lado, afasta a comunidade em geral do acesso ao
processo, impede a comunicação social e comunidade do conhecimento dos autos e dos
elementos de prova, ainda que possam ser do conhecimento dos sujeitos processuais.
Está em causa a funcionalidade da máquina judiciária, mas também estão em causa
interesses de proteção da honra, intimidade, bom nome ou outros direitos
fundamentais do sujeito.
Até 2007, havia, então, uma perspetiva diacrónica sobre os espaços de segredo
e publicidade dos atos processuais. Esta disciplina resultava da lei, era fixada de forma
geral e abstrata e não atendia à gravidade do crime. Havia críticas ao segredo externo
do inquérito, continuavam a haver violações do segredo de justiça que ficavam impunes,
depois importa saber se os jornalistas estão vinculados ou não pelo segredo de justiça.
Havia quem entendesse que só vinculava os sujeitos processuais. A dúvida estava no
que corresponde hoje ao artigo 86º número 8. O legislador em 2007 substitui “e” por
“ou” de forma a tornar claro que os jornalistas estão vinculados pelo segredo de justiça.
Do ponto de vista do segredo interno, as críticas eram mais severas, havia quem
entendesse que não se justificava a sua existência. “Segredo de justiça para a cadeia”
por José Miguel Júdice era uma posição mais emocional.
O ponto mais controverso era saber se, sendo aplicada uma medida de coação,
designadamente a prisão preventiva, quando quisesse recorrer, devia permitir-se ou
não o acesso às informações constantes dos autos em segredo de justiça. No Acórdão
nº 121/97 do TC, entendeu-se que era inconstitucional, na medida em que impede
sempre o acesso na fase de inquérito, mesmo quando queira impugnar uma medida de
coação como a prisão preventiva, por violação do artigo 32º número 1 da CRP. No
processo Casa Pia, o problema foi retomado – a questão de saber, no interrogatório do
arguido prévio à aplicação das medidas de coação (artigo 141º) ou na audiência prévia
a que se refere o artigo 192º, se devia ser informado dos factos imputados e as provas
que os sustentam para evitar o cometimento de um erro judiciário. Nos Acórdãos nº
416/2003 e 607/2003 do TC (relativos ao caso Casa Pia), entendeu-se que aqui também
haveria inconstitucionalidade. O TC estendeu o juízo de inconstitucionalidade também
a esta proibição de consulta no interrogatório prévio de aplicação de medidas de
coação. Esta jurisprudência foi absorvida pelo legislador em 2007, nos artigos 141º e
194º do CPP, ficou refletida na lei. A audição do arguido está disciplinada no artigo 194º
número 4, que remete para o artigo 141º número 4. No artigo 194º número 6, diz-se
que o despacho que aplica uma medida de coação deve ser fundamentado. No artigo
194º número 8, está prescrito um direito de acesso ao arguido e defensor para consulta
do processo que se exerce durante o interrogatório judicial e durante o prazo de
recurso, se tiver sido aplicada medida de coação.

53
Temos um triplo plano: direito de informação sobre os factos e elementos do
processo, dever de fundamentação do despacho e um direito de acesso para consulta
que se exerce durante o interrogatório judicial e durante o prazo de recurso se tiver sido
aplicada medida de coação.
Há 3 limites a este acesso de consulta dos autos:
- temporal: o arguido só pode consultar durante um determinado período, durante o
interrogatório judicial e no prazo de recurso da medida de coação (30 dias);
- material: o arguido não pode consultar tudo, só os autos determinantes da medida de
coação, se o MP quiser salvaguardar alguns elementos de prova como estratégia pode
fazê-lo mas não pode usá-los para sustentar a sua promoção (artigo 194º número 6
alínea b) do CPP);
- remissão para o número 6 alínea b) do artigo 194º: não constitui apenas um limite à
consulta dos autos, como também um limite à fundamentação.
No artigo 141º número 4 há um limite parecido, a redação não é a mesma. A
possibilidade de consulta pode causar um perigo maior para a vítima do que a não
consulta pelo arguido. O critério devia ser o mesmo e não o é. No artigo 141º número
4, diz-se que “se puser em causa”, já no artigo 194º número 6 alínea b) diz-se que “se
puser gravemente em causa”. A existência de critérios diferentes pode conduzir a
resultados paradoxais. É mais fácil impedir o dever de informar o arguido do processo
do que impedir a consulta pessoal do processo pelo arguido. Pode dar-se o caso de o
arguido não ser informado e depois poder consultar, é algo que o legislador deve rever.

O legislador não se ficou por aqui na mudança de paradigma. Foi mais longe
ainda, estabelecendo um princípio geral de publicidade de todo o processo penal. É, em
regra público, em cada uma das fases, pode determinar-se a sujeição do inquérito a
segredo de justiça, mas isso depende de uma decisão de uma autoridade judiciária que
pondere em concreto os interesses contrapostos (arguido e administração da justiça).
Essa decisão da autoridade judiciária conhece 2 modalidades (artigo 86º do CPP): pode
decidir o juiz de instrução criminal (artigo 86º número 2) quando a sujeição a segredo
interesse aos próprios sujeitos processuais, decide por despacho irrecorrível; artigo 86º
número 3 – a competência cabe ao MP, tem em vista a proteção do interesse da própria
descoberta da verdade, quando entenda que para ser eficaz essa investigação e recolha
de prova seja segredo, tem de ser validado pelo juiz no prazo de 72h. Quando é
determinada a sujeição do inquérito a segredo, esse segredo é tanto interno como
externo, já não há aquela cisão. Há uma tendencial incindibilidade das duas esferas de
segredo.
Nos termos do artigo 89º número 6, permite-se levantar o segredo interno,
mantendo-se o segredo externo. Acontece quando se ultrapassam os prazos normais de
duração de inquérito. Os prazos são meramente ordenadores, não são perentórios, não
há como consequência o fim do inquérito – há o fim do segredo interno, passam os
sujeitos processuais, em princípio, a poder consultar o processo. Faz-se isto para não
onerar os sujeitos processuais por uma falha que não lhes é imputável. Mas o legislador
teve de calcular os interesses contrapostos, permitir-se sempre ao arguido a consulta
do processo pode prejudicar o interesse da descoberta da verdade, o legislador
estabeleceu uma cautela, o acesso aos autos pode ser adiado por 3 meses no máximo,
desde que haja requerimento pelo MP e o juiz tem de o deferir. Este prazo pode ser
prorrogado para certos crimes mais graves (artigo 89º número 6) no período

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objetivamente necessário à conclusão das investigações. Colocava-se a questão de se
este segundo período de prorrogação tinha algum limite absoluto. Se se permitisse a
prorrogação por tempo indeterminado ou superior aos 3 meses, permitia-se que a todo
o tempo se fosse prorrogando e o juiz ia fiscalizando. O entendimento que prevaleceu
foi o do Acórdão de fixação de jurisprudência nº 5/2010. Decorridos estes períodos
todos, pode o arguido sem mais aceder aos autos antes de terminada a fase de
inquérito? Pode, o MP já não pode fazer mais nada.
Nos crimes de corrupção, nos termos do artigo 68º número 1 do CPP, qualquer
pessoa pode-se constituir assistente e os meios de comunicação social podiam consultar
os autos processuais. Esta questão foi resolvida no Acórdão nº 428/2008.
Quanto à valoração crítica do regime, temos agora um princípio da publicidade
para todas as fases processuais. Se houver segredo é interno e externo, é incindível, mas
cede o segredo interno se o inquérito não terminar quando se esgotarem os seus prazos
normais. Mesmo nos casos em que o processo seja secreto, há certas coisas que podem
ser consultadas – artigos 141º número 4 e 194º números 6 e 8. Há quem entenda que o
legislador foi longe de mais. Ao abrigo do artigo 20º número 3 da CRP, o legislador obriga
a proteger o segredo de justiça e nas fases de inquérito e instrução, o que estava em
linha com a conceção do sentido das fases processuais. A fase de inquérito não é uma
fase de julgamento antecipado, tem de se perceber se se pode sujeitar a julgamento
determinada pessoa. É conveniente que o inquérito decorra de forma célere e em
segredo, para ser mais funcional, exercendo-se os direitos processuais do arguido logo
que seja terminado o inquérito. As nulidades na fase de inquérito são arguidas 5 dias
após o final do inquérito. As provas produzidas no inquérito não se destinavam a ser
valoradas no julgamento. Tudo isto está a mudar o nosso processo.

IV. OS SUJEITOS E PARTICIPANTES PROCESSUAIS


A. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS
1. A distinção entre sujeitos e participantes processuais.

O processo é uma realidade dinâmica, porque depende do impulso das pessoas


que nele participam. O processo penal inicia-se, prossegue e chega ao seu termo a partir
da participação de um número considerável de intervenientes. Designam-se por
participantes processuais, dentro dos quais se destacam os sujeitos processuais.

Beling considerou que, sem estes sujeitos processuais, não poderia existir
processo, tem que existir uma relação triangular: arguido, juiz (tribunal) e Ministério
Público, são estas as partes que integram desse triângulo da relação processual.
Figueiredo Dias utiliza um critério mais normativo e teleológico, dizendo que
sujeitos processuais são aquelas pessoas que têm direitos e deveres sobre a
conformação da marcha processual e de codeterminação da decisão final. Seriam então
sujeitos processuais o juiz, o MP, o arguido, o assistente, o defensor e, em sentido
meramente formal, os participantes civis (em sentido formal pois encabeçam uma
relação jurídica do ponto de vista substantivo, mas não de natureza processual).
Não são sujeitos processuais as testemunhas, que até podem ser decisivas com
o seu depoimento, mas a sua participação cessa aí, não têm poderes para conformar a
marcha ou a decisão, não podendo recorrer por exemplo. Também não são sujeitos
processuais o advogado do assistente (ao contrário do defensor), os peritos, os órgãos

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de polícia criminal, entre outros. Desde 2015, há uma nova figura – a da vítima (artigo
67º-A do CPP). À vítima são garantidos alguns direitos e poderes processuais, que são
em grande parte direitos de informação e de proteção, mas esses direitos não justificam
que a vítima seja considerada sujeito processual, mas mero participante processual.

Em suma, sujeitos processuais para Beling são, então, o tribunal na figura do juiz,
o arguido e o MP – depende deles o funcionamento do processo. Mas para Figueiredo
Dias depende de ainda outros sujeitos: assistente, partes civis (que são apenas sujeitos
em sentido formal porque encabeçam natureza jurídico-civil) e o defensor, sendo que o
advogado, os peritos, os órgãos de polícia criminal, as testemunhas e o ofendido não se
enquadram nesta categoria.
Há uma figura híbrida – a vítima, mas para a professora não é sujeito processual.

2. A estrutura do processo penal português: um "processo de partes"?

Uma questão que se coloca é definir aquilo que caracteriza as relações entre os
diversos sujeitos processuais. Em Portugal, não temos um sistema de partes, desde logo
porque falta um antagonismo entre os representantes da acusação e da defesa, que
caracteriza o sistema anglo-americano. O nosso MP é uma entidade judiciária sujeita a
deveres de imparcialidade e ao princípio da legalidade e, por isso, não age no sentido
de conseguir a condenação do arguido, investigando tanto no interesse do arguido como
do Estado, investigando pelo interesse da verdade independentemente de quem poderá
ser prejudicado ou beneficiado por isso. Daí que o MP possa recorrer nos termos do
artigo 401º número 1 alínea a) do CPP. Outro aspeto demonstrativo de que não temos
um processo de partes é o facto de não existir a disponibilidade do objeto como há
noutros sistemas, temos a indivisibilidade passiva da queixa, nem nos crimes públicos
pode haver desistência. Por último, também não existe autorresponsabilidade
probatória das partes. Há sempre o poder-dever de investigar do lado do juiz (princípio
de investigação judicial). São estas as 3 características que destacam esse
distanciamento de um processo de partes.

B. OS SUJEITOS PROCESSUAIS EM ESPECIAL.


1. O tribunal penal.
a) Caraterização geral da jurisdição penal.

O estatuto de sujeito processual do tribunal (do juiz) funda-se nos princípios


jurídico-constitucionais da reserva da judicialidade, da independência e do juiz
natural/legal.
Em face do princípio da reserva da judicialidade, cabe ao juiz a aplicação e a
declaração do direito do caso através de decisões com força de caso julgado. Os
tribunais judiciais são os órgãos competentes para decidir as causas penais e aplicar
penas e medidas de segurança (artigo 8º do CPP), para administrar a justiça em nome
do povo, reprimindo a violação da legalidade democrática (artigo 202º números 1 e 2
da CRP).
O princípio da reserva da judicialidade é um dos princípios mais sensíveis nas
fases que antecedem o julgamento, designadamente na fase de inquérito, cuja direção
cabe ao MP, precisamente por ser da competência reservada do juiz o exercício de todas

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as funções jurisdicionais. Tal justifica que estas funções sejam da competência do juiz
de instrução (artigos 17º, 268º e 269º do CPP), a quem a CRP reserva a prática de atos
instrutórios que se prendam diretamente com os direitos fundamentais, de acordo com
o artigo 32º número 4.
O juiz de instrução desempenha, portanto, um papel duplo: por um lado, cabe-
lhe exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento;
por outro, compete-lhe proceder à instrução e decidir quanto à pronúncia (artigo 17º
do CPP).

aa) a independência dos tribunais.

Quais as características fundamentais da atuação dos tribunais? A independência


primeiro e a imparcialidade depois (artigo 203º da CRP). São independentes dos outros
poderes do Estado (ou interdependentes), sendo, por isso, livres de quaisquer
intromissões, influências ou solicitações de outros poderes do Estado, seja do poder
legislativo ou poder administrativo, que não podem dar instruções que interfiram em
casos concretos ou, no caso do poder administrativo, não se pode mudar um juiz de
certo caso arbitrariamente. Os juízes são também independentes do poder judicial, não
estando sujeitos a decisões de outros juízes (exceto no recurso, o tribunal para onde vai
o recurso está vinculado a avaliar a decisão da primeira instância). Daí que seja relevante
o Acórdão de fixação de jurisprudência nº 2/2013 do STJ, que foi elaborado para saber
que crime comete a pessoa que foi apanhada a conduzir sob o efeito de álcool, cuja pena
leva também à proibição de conduzir. Contudo, a pessoa em concreto não entregou a
carta. Há quem diga que era crime de desobediência e outros diziam que era o crime do
artigo 353º do CP (violação de imposições, proibições ou interdições): o STJ veio a
entender que era um crime de desobediência. Parece, no acórdão, que o STJ dá
instruções aos juízes quando se deparem com casos idênticos. Isto é atípico, se virmos
que os juízes são independentes. Ora para além desta vertente normativa, há uma
vertente prática e fáctica, importa assegurar a independência do concreto juiz de
pressões da comunicação social ou do poder público. É preciso, para evitar isto, garantir
que ele tenha independência económica. Outros aspetos prendem-se com o facto de ao
juiz também ser imposto um dever de reserva, evitando exprimir publicamente
preferências políticas, clubísticas, entre outras.

bb) a imparcialidade. Garantias processuais da imparcialidade: impedimentos, recusas


e escusas (arts. 38.º e ss. CPP).

Para além dessas características, o juiz deve ser imparcial, imparcialidade esta
que se afere na relação entre o juiz e o processo ou entre ele e as partes. O juiz deve
parecer desinteressado, neutro, isento, face aos intervenientes.
Isto é assegurado na lei através de certos mecanismos como os impedimentos, previstos
na lei de forma taxativa. Contudo, essa ideia tem sido posta em causa por vários autores
(a professora considera que há alguns fundamentos razoáveis), afirmando que há
lacunas nos artigos 39º e 40º do CPP (face ao artigo 115º do Código do Processo Civil,
que define impedimentos mais exigentes, algo que não faria sentido, pois no Processo
Penal tratam-se matérias mais sensíveis, logo os autores defendem que deveria ser

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subsidiariamente aplicado esse artigo do CPC, isto não contraria nenhum princípio do
Processo Penal). Figueiredo Dias tem também defendido que há lacunas.
Estes impedimentos são de funcionamento automático, não há margem de
apreciação, mas que impedimentos é que a lei estabelece? Por força da relação do juiz
com os participantes processuais, estão consagrados no artigo 39º número 1 alíneas a)
e b) e número 3. E os impedimentos ditados por participação anterior ou futura naquele
processo encontram-se previstos nos artigos 39º número 1 alíneas c) e d), número 2 e
40º. No CPP, não se define o impedimento do juiz no caso de ser arguido ou ofendido
desse caso e alguns argumentam que é uma lacuna, devendo ser aplicado o mencionado
artigo 115º do CPC. A professora discorda, embora não esteja previsto impedimento,
prevê-se algo ainda mais exigente: o caso terá de decorrer noutra comarca que não
aquela onde o juiz exerce a profissão, é algo ainda mais garantista.
Quanto às relações conjugais do juiz, embora o CPP tenha previsto o caso de o ofendido,
arguido ou assistente ser cônjuge ou antigo cônjuge do juiz, não prevê, no entanto, o
caso de o juiz ter uma relação conjugal com algum advogado que intervenha no
processo. Nesse caso sim, há uma lacuna e deverá ser aplicado subsidiariamente o artigo
115º do CPC. Pode acontecer que o juiz seja indicado como testemunha, o que fazer
nesse caso? Para evitar a instrumentalização deste meio pelas partes, de modo a evitar
um certo juiz, a lei estabelece uma determinada disciplina, é perguntado ao juiz sob
compromisso de honra se ele sabe algo sobre os factos, se disser que sim é impedido,
se disser que não continua como juiz do caso – artigo 39º alínea b), conjugado com o
número 2.
O Código Civil explicita ainda que não pode ser juiz quem interveio como
jurisconsulto nesse caso, mais uma vez deverá ser aplicado o referido artigo 115º para
colmatar a lacuna do CPP.
O número de impedimentos tem vindo a aumentar muito no artigo 40º e alguns
autores apresentam-se bastante críticos, pois nos impedimentos há conflito de
interesses, o interesse de imparcialidade que choca com o da celeridade do processo,
como também com o princípio do juiz natural. Por isso, o impedimento só pode ser
criado quando se acha que o juiz não é imparcial.
A imparcialidade afere-se no pacto instrutório (composto por ato instrutório e
debate instrutório). Fica impedido de intervir no julgamento o juiz de instrução criminal
que tenha desenvolvido o pacto instrutório – não fica impedido o juiz que tenha
intervindo na fase de inquérito.
Fica impedido com base no princípio da acusação, na medida em que é o
despacho de pronúncia (por ele desenvolvido) e o despacho de acusação que vão
determinar o objeto do processo – artigo 40º alínea b). Este fundamento de
impedimento já existia, mas os restantes foram sendo adicionados. Nos termos da
alínea a) do artigo em análise, por que é que o juiz que indicar estas medidas de coação
fica impedido, mas apenas nestas? Porque é requisito de cada uma destas que existam
fortes indícios sobre a prática do crime, isto impõe um grau de convicção elevado por
parte do juiz, logo ele será menos imparcial, se julgasse o arguido ainda teria essa forte
convicção da prática de crime. A lei apenas impede quando o juiz tenha aplicado essas
medidas de coação, já não se impede o juiz que meramente mantenha a medida de
coação (poderá, todavia, haver suspeição). Um aspeto relevante é o facto de as medidas
de coação poderem ser aplicadas na audiência de julgamento (o pedido de culpa pode

58
surgir nesse momento), ficará o juiz impedido já estando a julgar o arguido? Sim, algo
que parece um pouco paradoxal.

As suspeições encontram consagração legal no artigo 43º do CPP através de uma


cláusula geral, porque a capacidade de previsão do legislador não é inesgotável e pode
haver outras situações que não caibam nas alíneas do artigo 39º ou 40º, daí a cláusula
geral do artigo 43º número 1. Para que haja motivo de suspeição, não é preciso que a
imparcialidade esteja efetivamente prejudicada, basta que hajam razões objetivas para
que a comunidade desconfie, para que se suscite a desconfiança comunitária sobre a
imparcialidade do juiz.
Para se verificar o preenchimento da cláusula geral deve-se verificar um critério
objetivo e subjetivo. Primeiro, verificar se o juiz revela na sua atuação algum preconceito
favorável ou desfavorável ao arguido. Depois perguntar se, dadas as circunstâncias
concretas do caso, é razoável acreditar que essa atitude de desfavor se reproduza, se há
algum motivo plausível que essa atitude se verifique. Normalmente os tribunais adotam
um critério apertado. Porquê? Porque a mera circunstância da mera possibilidade já
desprestigia o funcionamento dos tribunais. Quais as situações que tipicamente se têm
admitido como causas de suspeição? Há situações em que, por exemplo, o juiz é amigo
de um sujeito processual qualquer, não é uma causa de impedimento, mas pode ser de
causa suspeição, o mesmo em caso de uma inimizade. Ou uma situação que não está
em causa a relação do juiz com os sujeitos, mas a intervenção do juiz num processo –
artigo 42º número 2. Se o juiz tiver aplicado prisão preventiva no processo fica impedido,
mas se tiver aplicado caução ou uma busca domiciliária ou escutas telefónicas não fica
impedido, mas pode haver causa de suspeição. Têm de ser intervenções que, pela sua
natureza e frequência, sejam reveladoras do comprometimento da imparcialidade do
juiz. Também as intervenções do juiz à margem do processo são relevantes: um juiz que
manifesta opiniões sobre um processo que depois lhe é atribuído. Também a sua
intervenção em processos conexos. Quando haja fundamento de suspeição, o juiz pede
escusa ao tribunal superior ou a sua intervenção pode mover um incidente de recusa
pelos sujeitos processuais ao tribunal superior – artigo 43º números 3 e 4. Ao contrário
dos impedimentos em que é o juiz que se declara ou as partes que o fazem.

b) A competência dos tribunais penais.


aa) o princípio do "juiz natural" (cfr. art. 32.º, n.º 9, da CRP): matriz histórica,
fundamento e conteúdo.

Outro aspeto importante é a questão da competência do tribunal. Há um princípio


estruturante em matéria de competência: princípio do juiz natural ou legal – artigo 32º
número 9 da CRP. Este princípio nem sempre encontrou acolhimento nos ordenamentos
jurídicos, não vigorava nos Estados absolutos que era uma prerrogativa do rei que
delegava nos juízes, o poder de julgar pertencia-lhe. O rei podia avocar as causas
criminais e decidi-las ele próprio e podia retirar a causa de um tribunal e atribuir a outro
ou criar tribunais ad hoc, excecionais. No século XVIII, começou a manifestar-se uma
consciência crítica e a repudiar a ideia de o monarca manipular as competências,
começou a afirmar-se esta ideia do juiz natural após a Revolução Francesa. No seu
núcleo essencial, significa o direito fundamental dos cidadãos serem julgados pelo

59
tribunal normalmente competente, proibindo a criação de jurisdições excecionais. O
princípio encontra consagração constitucional. Decorrem 3 corolários deste princípio:
- a competência dos tribunais penais é fixada por lei, ao abrigo do princípio de reserva
legal;
- anterioridade de fixação de competências, por lei anterior: surge a dúvida de saber se
tem de ser anterior ao momento da prática do facto ou anterior ao nascimento do
processo;
- as competências fixadas por lei devem ser previstas através de uma ordem taxativa,
fixada de forma geral e abstrata e que, portanto, não pode ser modificada.

Está contido na Constituição no artigo 32º número 9. Pressupõe que a competência


seja fixada por lei anterior. Mas não diz anterior a quê, é essa a dificuldade que se
levanta. Para Taipa de Carvalho, releva o momento da prática do facto, o princípio é
uma decorrência do princípio da irretroatividade da lei penal (artigo 29º da CRP) e deve
ser fixada em lei anterior ao momento da prática do facto do crime que importa julgar,
pois só assim se evitam manipulações arbitrárias. Já para Figueiredo Dias, isto podia
gerar a ingovernabilidade do processo. Por vezes é necessário alterar de forma global a
ordem das competências dos tribunais, são as reformas judiciárias. Se prevalecer o
entendimento de Taipa de Carvalho, os crimes cometidos antes da reforma seriam
julgados pelos tribunais competentes anteriores. Mas como a reforma de 2013 foi
global, algum dos tribunais extinguiram-se e para Taipa de Carvalho teriam que se
manter as anteriores para crimes cometidos antes da reforma e isso seria impraticável.
Figueiredo Dias diz que o princípio impede que haja modificação individual das
competências, quer-se preservar o núcleo essencial do juiz natural, proibir o
desaforamento com criação de tribunais excecionais. Se forem modificações globais não
dirigidas ao concreto caso, nenhum obstáculo há a que essas modificações se
reproduzam.

bb) métodos para a determinação da competência: determinação abstrata e concreta


da competência (cfr. art. 16.º, n.º 3).

Como se determina a competência dos tribunais penais? Numa formulação


clássica, a competência é a parcela de jurisdição que cabe a cada tribunal. Na fixação da
competência, atende-se a vários critérios, como a comodidade do levantamento do
material probatório em termos de território. Outro critério é o da presunção e maior
competência de determinados juízes, para causas mais complexas são competentes
tribunais mais elevados. A nossa lei prevê 4 espécies de competências:
- material;
- funcional;
- territorial;
- de conexão: é um conjunto de derrogações às regras normais de repartição de
competências e não propriamente um critério.

cc) espécies de competência:


i) a competência funcional (por graus e por fases),

60
Refere-se à repartição da jurisdição dos tribunais penais em função dos
segmentos em que se divide o processo: falamos quer de graus, quer de fases.
Quanto aos graus, temos tribunais de primeira, segunda e terceira instância. Os
de primeira instância são os tribunais de comarca, de segunda instância são os tribunais
da Relação e o da terceira instância é o Supremo Tribunal de Justiça.
Quanto à repartição da competência funcional por fases, atende-se às fases do
processo – só interessa a fase da instrução, julgamento e recurso (como o inquérito é
dirigido pelo MP não releva neste contexto). Depois da condenação, pode haver, ainda,
a fase de execução de penas.

ii) a competência material (os tribunais singular, coletivo e do júri).

Refere-se à distribuição da jurisdição dos tribunais penais em função do tipo de


processos ou da natureza da pessoa a quem é imputada a prática do crime. Há 2 grandes
critérios:
- subjetivo: atende ao agente, saber quem é pessoa a quem é o crime imputado, releva
para ser o tribunal competente porque há pessoas que, pela dignidade, devem ser
julgadas por tribunais superiores, por exemplo o Presidente da República, o Primeiro-
Ministro e o Presidente da Assembleia da República, são julgados em primeira instância
no Supremo Tribunal de Justiça – artigo 11 número 3 alínea a) do CPP (no pleno). Nas
secções do STJ são julgados os juízes conselheiros, desembargadores ou magistrados do
MP que exerçam funções nos tribunais de Relação ou no STJ – artigos 11º número 4
alínea a) e 12º número 3 alínea a). Destinam-se a proteger a dignidade e prestígio destas
funções;
- objetivo: atende ao concreto crime numa de duas dimensões – ou à gravidade aferida
pela moldura penal ou à natureza aferida pelo tipo legal, pelos bens jurídicos violados
pelo crime. O funcionamento do critério objetivo permite dividir a competência dos
tribunais penais em várias espécies ao nível das comarcas: tribunal de júri, coletivo e
singular.

O tribunal de júri é um tribunal colegial heterogéneo, é composto por várias


pessoas e é heterógeno porque há juízes de carreira e jurados (artigo 8º do Decreto-Lei
nº 387-A/87 de 9 de dezembro). Todos os jurados têm de assistir a todas as sessões de
audiência de julgamento, ou seja, quer os jurados suplentes, quer os efetivos têm de
assistir a todas as audiências. Os jurados decidem por maioria, ao contrário do Direito
norte-americano em que a decisão tem de ser unânime. Decide sobre todas as questões:
da culpabilidade e da determinação da sanção. A decisão tem de ser motivada, há dever
de fundamentação. Quanto à competência do tribunal de júri, podemos delimitá-la pela
negativa, isto é, pelos casos que não pode julgar. Nesta matéria intervém a Constituição,
no artigo 207º, diz-se que não pode julgar certos processos – processos por crimes de
terrorismo e criminalidade altamente organizada. Porquê? Por possível coação dos
jurados. Há outros crimes em relação aos quais não pode intervir este tipo de tribunal
(artigo 40º da Lei nº 34/87) – crimes imputados a titulares de cargos políticos. Havia
perigo de perda de imparcialidade e transformação do julgamento num plebiscito. Que
casos é que tem, então, competência para julgar? Intervém o critério objetivo quer
qualitativo, quer quantitativo. Qualitativo porque atende-se à natureza dos crimes do
tipo legal. Quantitativo porque atende-se à moldura penal prevista. O artigo 13º número

61
1 do CPP dispõe o critério objetivo qualitativo (corresponde aos artigos 240º a 246º do
CP e 308º a 346º). No número 2, encontra-se o critério quantitativo – pena máxima
superior a 8 anos. Noutros casos, intervém se houver requerimento cuja competência
pertence ao MP, ao assistente ou ao arguido. Basta que requeira um destes para que a
intervenção tenha lugar.
A competência do tribunal coletivo e singular também se reparte por estes
critérios qualitativo e quantitativo.
Quanto à competência do tribunal coletivo, no artigo 14º números 1 e 2 alínea
a) do CPP está o critério objetivo qualitativo. O tribunal é competente para julgar os
mesmos crimes que cabem no tribunal do júri por força do artigo 13º número 1
(remissão para os artigos 240º a 246º e 308º a 346º). Se ninguém tiver requerido a
intervenção de tribunal de júri, o tribunal competente será o coletivo. Também o artigo
14º número 2 alínea a) dispõe sobre esta matéria – mesmo que a pena prevista seja
inferior a 5 anos de prisão, por serem crimes dolosos ou de resultado agravado em que
é elemento do tipo a morte de pessoa é competente o tribunal coletivo. Quanto ao
critério quantitativo, consagra o artigo 14º número 2 alínea b) que o tribunal coletivo é
competente para processos com crimes puníveis com limite máximo superior a 5 anos,
não é igual. Quando estes 2 critérios são incompatíveis entre si, prevalece o critério
qualitativo sobre o quantitativo. Em homicídio privilegiado cuja pena de prisão não seja
superior a 5 anos, é competente o tribunal coletivo – prevalece a alínea a) sobre a alínea
b) do artigo em análise.
Quanto ao tribunal singular, tem competência residual, é competente para os
processos que não caibam nos outros, mas tem também uma competência definida
quanto ao critério objetivo qualitativo e quantitativo. Quanto ao critério qualitativo
dispõe o artigo 16º número 2 alínea b), que remete para os artigos 347º a 358º do CP,
são crimes contra a autoridade pública, ainda que a pena aplicada seja superior a 5 anos.
Porquê? Estes crimes, como o crime de desobediência, têm uma particularidade,
tratando-se de um crime cometido sobre agente de autoridade pública, acredita-se na
maior fiabilidade da prova, e por ser mais fiável legitima o aligeiramento das garantias.
Para além destes casos, também funciona o critério quantitativo (artigo 16º número 2
alínea b) do CPP) para crimes cuja pena máxima seja igual ou inferior a 5 anos. A alínea
c) foi revogada, previa que também competissem o julgamento dos processos que
seguissem forma sumária, independentemente da natureza do crime ou da moldura
penal aplicada. Podia acontecer que um homicídio qualificado fosse julgado em tribunal
singular por processo sumário, se fossem apanhados em flagrante delito. No Acórdão
nº 174/2014, o TC declarou inconstitucional esta norma e o artigo 281º que alargou o
processo sumário e em 2015 o legislador revogou-as. O artigo 16º número 3 consagra o
que designa por método de determinação concreta da competência. Diz que nos casos
em que o crime seja punível com pena superior a 5 anos, que caberiam na competência
do tribunal coletivo, são julgados pelo tribunal singular se o MP, em requerimento
fundamentado, entender em concreto que não deve ser aplicada a pena superior a 5
anos. O número 4 diz que nessas hipóteses o tribunal singular não pode aplicar pena de
prisão superior a 5 anos. Traduz o método de determinação concreta da competência e
levanta problemas de constitucionalidade à luz do princípio do juiz natural. O TC
entendeu não haver inconstitucionalidade, porquê? Quanto à norma do artigo 16º
número 3, o TC entendeu que, por um lado, ainda é a lei que determina a competência
do tribunal singular, é a lei que fixa de forma geral e abstrata os pressupostos de que

62
depende a decisão do MP que se limita a concretizar uma competência previamente
definida na lei e fá-lo através de um requerimento fundamentado, não é no exercício de
um poder discricionário. O segundo argumento é de que a norma do artigo 16º número
3 preserva o núcleo essencial do princípio do juiz natural que se traduz na proibição do
desaforamento e criação de tribunais de exceção e nesta norma não há isso porque se
limita a alterar a competência material e o que acontece no desaforamento é a
competência territorial ser alterada. Também se considera relevante a imposição de um
limite máximo de pena, esta garantia foi tida como relevante. O artigo 16º número 4 diz
que o tribunal singular fica vinculado por este limite de pena, é um aspeto garantístico.
Mas houve quem discutisse que se estaria a limitar o poder do juiz, estaria vinculado por
um ato do MP, o que violaria o princípio da reserva dos juízes. Mas foi tida como
superada pelo TC, que entendeu que não há inconstitucionalidade. O juiz ainda é livre
de julgar dentro dos limites abstratos fixados na lei e a intervenção do MP não é
diferente da intervenção noutras situações que a lei também contempla. O juiz também
fica vinculado pelo MP, na medida em que é a acusação deduzida pelo MP que define o
objeto do processo e o juiz está vinculado pelos factos constantes da acusação do MP.
Quando se interpõe recurso, o tribunal de recurso está vinculado também à atuação do
MP, se for interposto apenas pelo arguido não pode o tribunal superior aplicar pena
mais grave: o juiz está limitado também pela atuação do MP que, se não recorrer, vale
essa proibição, mas se o MP recorrer já o juiz pode agravar a pena. A proibição da
reformatio in pejus encontra consagração no artigo 409º do CPP. O tribunal não pode
agravar a pena nem na sua espécie, nem na medida, só quando o recurso tenha sido
interposto pelo arguido ou pelo MP no interesse exclusivo do arguido. Mas se o MP não
recorrer, entender que a sua pretensão do Estado está satisfeita pela decisão do tribunal
de primeira instância, essa sua omissão conduz à limitação dos poderes do tribunal de
recurso. O limite que se impõe ao juiz do tribunal superior resulta da pena da primeira
instância e da circunstância do MP entender que essa pena é suficiente para acautelar
a pretensão punitiva do Estado. Portanto, o artigo 14º número 4 está em conformidade
com as outras normas.

iii) a competência territorial.

Neste âmbito, interessa saber qual o tribunal segundo a sua localização no


território nacional que é o competente para julgar determinado crime. Atende às
necessidades de prova, sendo que o critério primeiro será o do lugar da prática do facto
– o artigo 19º número 1 do CPP atende como relevante o lugar da consumação. Nos
crimes materiais ou de resultado, é o lugar onde o resultado típico se produziu. O
número 2 desta norma, em 2007, introduziu uma norma especial para os casos de
homicídio – é o tribunal da área onde o agente atuou ou devia ter atuado. Se a pessoa
desfere uma facada no Porto e a pessoa falece em Coimbra, o lugar é onde a ação típica
teve lugar, será no Porto, para se evitar a concentração nos tribunais das comarcas onde
estão os grandes hospitais. A lei também introduz regras especiais para os casos de
crimes continuados, permanentes ou de execução fracionada – nos termos do artigo
19º número 3, o tribunal competente é o lugar onde se praticou o último ato de
execução. No número 4, estão previstas regras especiais para casos de crimes de forma
tentada – também releva o último ato de execução.

63
dd) desvios às regras gerais de competência: a competência por conexão.

Estas são as regras normais de competência. Para cada agente e crime organiza-
se um só processo. Mas pode, por diversos motivos (facilidade de recolha da prova,
evitar contradição do julgado), quando há relação material entre os crimes ou agentes,
se organize num só processo para se conhecer de vários crimes ou crimes cometidos por
várias pessoas – competência por conexão. Por isso, há derrogação das regras normais,
pois é competente um só tribunal para conhecer dos crimes todos ou dos arguidos
todos. É um desvio às regras normais. A conexão pode ser originária – quando o
elemento de conexão é determinado logo e é só um processo, ou superveniente –
quando os vários processos são apensados.

Na competência dos tribunais, o princípio estruturante é o do juiz natural. Divide-


se em vários critérios. O princípio geral seria para cada arguido e cada crime um
processo, mas sabemos que no mesmo processo pode haver várias pessoas e vários
crimes e isso ocorre por força da conexão. Há várias razões que justificam a formação
de um só processo, prendem-se com a necessidade de salvaguarda da economia
processual, permitir o aproveitamento material probatório e de modo a evitar a
contradição dos julgados.
A conexão será, então, originária quando se organiza ab inicio um só processo.
Será superveniente quando vários processos que nascem separados são apensados.
A conexão está regulada nos artigos 24º e seguintes do CPP e fala-se de conexão
objetiva e subjetiva.
- conexão objetiva: é aquela que atende à unidade do crime, é o mesmo crime ou então
vários crimes materialmente relacionados;
- conexão subjetiva: é a que atende à mesmidade do agente, é o mesmo agente nas
várias infrações, independentemente de uma relação entre elas.
O nosso Código não conhece caso nenhum de conexão puramente subjetiva.
Atende-se em certos casos à mesmidade do agente, mas isso não basta para que haja
conexão processual, é preciso que haja uma qualquer conexão mínima entre as
infrações, uma mínima relação material. O caso mais próximo é o do artigo 25º, em que
se exige a conexão espacial. Mas a estas pessoas não é atribuída uma só pena pelas
regras do cúmulo jurídico, por força do artigo 77º do CP. Mas essa pena única é aplicada
por processos que correm separadamente. Quando transitada em julgado a condenação
em cada um dos processos, há um tribunal chamado a conhecer a pena única. Por força
dos artigos 471º e 472º, o tribunal onde tenha ocorrido a última condenação, vai
conhecer e aplicar a pena única a este agente, que se determina nos termos do artigo
77º do CP. O limite mínimo é a condenação mais alta e o limite máximo é a soma das
penas concretas e depois o tribunal condena dentro desta moldura. Há outras situações
em que a lei dá relevo à circunstância de ser o mesmo agente – artigo 24º número 1
alíneas a) e b) do CPP. Na alínea a), temos concurso ideal, existe conexão de processos.
Se alguém com o mesmo tiro mata duas pessoas existe fundamento de conexão. No
caso da alínea b), também aqui se exige uma relação material de proximidade, por
exemplo alguém que falsifica documentos para cometer uma burla, existe esta conexão
material, um dos crimes é causa e o outro é efeito do primeiro. Mas o artigo continua:
alguém comete um crime de roubo, tinha uma máscara e a vítima puxou e viu quem era

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e mata a pessoa para ocultar a sua identidade. Estes são os casos de conexão subjetiva,
mas que não é pura, porque exige-se sempre uma relação material.
Depois temos casos de conexão objetiva – artigo 24º número 1 alíneas c), d) e e).
É objetiva porque releva a circunstância de ser o mesmo crime ou crimes materialmente
relacionados ainda que cometidos por várias pessoas. Por exemplo, um crime de furto
a um estabelecimento comercial, um indivíduo fica no carro, o outro rouba – alínea c).
Na alínea d), temos os agentes em comparticipação. Podemos dividir esta alínea em 3
partes: crimes praticados em comparticipação, crimes que sejam causa-efeito, crimes
destinados a continuar ou ocultar outros crimes. Na alínea e), serve de exemplo A e B
injuriam-se e agridem-se reciprocamente.
A lei diz em que casos deve haver conexão de processos, mas também diz quando
não pode haver – são os limites à conexão. Há um limite quanto à conveniência – só
depois do processo se ter iniciado e de se diagnosticar a conexão, pode acontecer que
estejam em momentos diferentes os diferentes processos – artigo 24º número 2 do CPP.
Mas há outros limites, como resulta do artigo 26º do CPP – processos que caibam em
tribunal de menores e outros que não caibam. Neste caso não pode haver conexão, os
processos são separados. Existem outros limites no Código de Justiça Militar, no artigo
113º – se se tratarem de crimes militares pela qualidade do agente, mas havendo
conexão material com crimes que não sejam militares. Também não pode haver quando
haja crimes tributários e crimes não tributários – artigo 46º do RGIT (Regime Geral das
Infrações Tributárias). E, por fim, o artigo 42º da Lei de Responsabilidade dos Cargos
Políticos, quando se trate de crimes previstos nesta lei e outros que não o sejam.
Se houver fundamento de conexão e não houver limites, vai formar-se um só
processo e para esse processo único é competente um só tribunal – qual deles vai
conhecer o processo? Regem os artigos 27º e 28º. Quanto à competência material e
funcional, rege o artigo 27º - se forem competentes tribunais de hierarquia ou espécie
mais elevada do que os tribunais convocados, é competente o tribunal de hierarquia ou
espécie mais elevada. Quanto à competência territorial, rege o artigo 28º alíneas a), b)
e c).
A conexão tem vantagens: se os crimes estão materialmente relacionados, a
tarefa de recolha probatória é aproveitada, há celeridade do processo. Mas também há
desvantagens, porque se criam os chamados megaprocessos. Estes comportam
desvantagens porque torna-se quase impraticável julgá-los e a defesa do arguido nesse
processo. É relevante o texto de um advogado Paulo Saragoça da Mata que utiliza o
termo salamização processual para se referir à divisão do processo em várias partes,
tendo também este desvantagens, nomeadamente o facto de o arguido ter de se
defender em múltiplas audiências.
O legislador procurou equilíbrios no artigo 30º, nos termos do qual pode haver
fundamentos de conexão e esta operar, mas a lei diz que quando deixa de ser
conveniente, há separação de processos. Pode ser conveniente em ordem à maior
eficácia da administração da justiça ou em ordem à celeridade processual com
vantagens para o arguido. Se houver um processo em que esteja quase a terminar o
prazo de prescrição, importa separá-lo para que não se perca a pretensão punitiva do
Estado. Se algum arguido num processo em que se apura responsabilidade de vários
arguidos requerer júri e os outros não, a lei permite a separação, para evitar que os
outros arguidos que não quiseram o júri sejam julgados por este tribunal. Regra geral de
perpetuação de jurisdição – o tribunal cuja competência foi determinada pelas regras

65
de conexão mantem-se competente para os processos separados, para evitar que se
peça separação por manipulação. Esta regra é afastada quando haja requerimento de
intervenção de júri. A prorrogação da competência não faria sentido aqui. Isto resulta
do artigo 31º alínea b) a contrario.

2. O Ministério Público.
a) Caraterização geral.

É o titular da ação penal – artigo 219º da CRP. Exerce essas funções colaborando
com o tribunal na descoberta da verdade e pautado por critérios de objetividade e
legalidade – artigo 53º número 1 do CPP. O nosso processo não é de partes, não existe
o antagonismo entre a acusação e defesa típicos dos modelos acusatório puro. No nosso
Processo Penal, nos termos do artigo 401º número 1 alínea a), o MP pode recorrer no
interesse do arguido.

b) Estatuto e funções processuais: a constitucionalidade da direção do inquérito pelo


MP.

Na circunstância de ser o titular da ação penal, decorrem, nos termos do artigo


53º, diversas competências. O número 2 remete para o artigo 263º do CPP. Discutiu-se,
em tempos, a constitucionalidade da norma que atribuía a direção do inquérito porque
podia ser incompatível com o artigo 32º número 4 da CRP. Em 1976, aquilo a que hoje
se chama instrução era o que se chamava hoje por inquérito, havia instrução
preparatória e contraditória, a primeira era da competência do MP. Na aparência, o
Código de 1977 contraria a CRP. Não existe inconstitucionalidade, porque se preserva o
núcleo fundamental da garantia e porque é preciso compatibilizar com outra norma do
artigo 219º da CRP que atribui ao MP a titularidade da ação penal – supõe acusar e
sustentar a acusação numa investigação que o MP tenha dirigido. Sendo o MP a quem
cabe a direção do inquérito, deve receber a notícia do crime e a queixa. Também cabe
sustentar a pretensão punitiva do Estado que está refletida na acusação. Também cabe
interpor recurso.

c) relações com os órgãos de polícia criminal.

Na fase de inquérito, nem todos os atos de investigação são praticados pelo


magistrado do MP, cabe-lhe definir as linhas de investigação, mas a maior parte das
operações materiais é levada a cabo pelos órgãos de polícia criminal – não são sujeitos
processuais porque agem na dependência funcional das autoridades judiciárias que são
o MP e o juiz (artigo 1º do CPP). Não têm poderes de conformação autónoma da marcha
processual, sem prejuízo de terem competências próprias: compete-lhes receber
denúncias, embora tenham o dever de as transmitir em 10 dias, dispõem do poder de
praticar atos cautelares da prova – artigos 248º e seguintes do CPP. E mesmo quando
praticam atos cuja prática esteja incumbida pelas autoridades judiciárias, gozam de
autonomia tática e técnica.
Coloca-se a questão de saber quem são os órgãos de polícia criminal e a relação que
estabelecem com o MP na fase de inquérito. O conceito está definido no artigo 1º alínea
c) do CPP e é conceito funcional. São a PSP, a GNR, a PJ, mas também são no âmbito das

66
funções próprias a ASAE, o SEF. A densificação do conceito está no artigo 3º da Lei da
Organização da Investigação Criminal. Em abstrato, poderia responder-se à segunda
questão com 3 modelos:
- modelo de total autonomia ou independência: em que seria concedida total liberdade
de atuação às polícias, deixando-as investigar de acordo com critérios específicos e, no
fim, o MP tomaria os autos como titular da ação penal. É este o modelo do Direito
brasileiro;
- modelo de absoluta dependência das polícias em face do MP: estende-se ao plano
funcional, organizativo e disciplinar. Este modelo tem a desvantagem de limitar a
autonomia técnica e exercer a ação disciplinar do MP sobre a polícia, o que distancia a
objetividade;
- modelo de dependência funcional ou interdependência: via intermédia, consagrada
entre nós. Os órgãos estão em dependência funcional do MP, mas no âmbito disciplinar
respondem na sua hierarquia própria.

3. O arguido.
a) A constituição como arguido na lei portuguesa: momentos e formalidades.

O nosso Código tem muitas definições no artigo 1º, mas não define arguido,
apesar de definir suspeito. Isto é colmatado pelo facto de se definir, de forma clara, quer
os momentos, quer os modos de constituição do arguido.
No modelo inquisitório, o arguido era mero objeto do processo. No modelo
acusatório como o nosso, o arguido é um sujeito processual a quem são reconhecidos
direitos.
A lei disciplina os momentos e modos de constituição do arguido nos artigos 57º
a 59º do CPP. A norma nuclear é o artigo 58º. O seu número 1 indica em que casos uma
pessoa deve ser constituída arguida. O que é desejável? Que se constitua o mais
brevemente possível, logo que surja uma suspeita ou só quando a suspeita tenha um
fundamento razoável? No Código anterior de 1929, a constituição de arguido confinava
uma garantia para a pessoa sobre quem recaía a suspeita, não tem direitos processuais
– oferecer provas, recorrer, constituir mandatário, correspondia a uma garantia, logo
que a suspeita surgisse. Todavia, ao longo do tempo e com a mediatização dos
processos, passou a entender-se que o estatuto do arguido era não uma garantia, mas
uma fonte de estigma e cabia ao legislador ser mais parcimonioso. É esse equilíbrio
entre essas duas ideias, que o legislador constrói essa disciplina que foi sofrendo
alterações.
Podemos agrupar em 2 grupos estas 4 situações fundamento. Há situações em
que a atribuição do estatuto é reclamada porque são praticados sobre a pessoa atos que
comprimem de forma imediata a sua esfera de direitos e contra os quais deve poder
reagir: quando é detido, aplicação de medida de coação, são atos que comprimem a
esfera de direitos da pessoa sobre qual incida, deve ser dada a possibilidade de reagir
contra eles – artigo 58º número 1 alíneas b) e c). Por outro lado, deve ser atribuída a
qualidade de arguido quando exista sobre a pessoa uma suspeita com o mínimo de
fundamento – alíneas a) e d). N alínea a), diz-se “suspeita fundada”; até 2007, só
aparecia “suspeita”. Na alínea d) acrescentou-se o “salvo”, traduzindo a tal
preocupação.

67
Para além destas situações fundamento, também pode adquirir a qualidade de
arguido, nos termos do artigo 59º, qualquer pessoa que seja ouvida noutra qualidade
como testemunha, mas que recaia sobre ela qualquer suspeita – artigo 59º número 1.
Pode a própria pessoa do suspeito, quando sobre ela estejam a ser efetuadas diligências,
a sua constituição como arguido – artigo 59º. Para ter a garantia, por exemplo de se
remeter ao silêncio. A simples testemunha tem essa garantia (artigo 132º número 2),
mas é um direito mais limitado. Também adquire a qualidade de arguido pelo menos
com o despacho de acusação, se o inquérito terminar com despacho de arquivamento
pode acontecer que nunca ninguém seja constituído arguido, mas se for requerida a
abertura de instrução, a pessoa contra quem foi requerida é constituída arguida – artigo
57º número 1. Mas isto não basta para que o suspeito seja constituído arguido, essa
constituição supõe que se cumpra uma formalidade adicional, disciplinada no artigo 58º
número 2 – regula o modo da constituição como arguido. Faz-se por meio de
comunicação formal feita pela autoridade judiciária ou órgãos de polícia criminal. É
similar aos Miranda Warnings nos EUA. Esta comunicação é obrigatória seja qual for o
caso de constituição do arguido, aplica-se nos casos dos artigos 57º, 58º e 59º, porque
há remissão feita pela lei no artigo 57º número 3 que remete para os números 2 a 6 do
artigo seguinte. No artigo 59º número 1 também se faz essa remissão. Quando a pessoa
requer, não é necessário comunicar porque a pessoa já sabe. Pode constituir um arguido
um órgão de polícia criminal, mas desde 2007 passou a ser necessária a validação pela
autoridade judiciária – artigo 58º número 3.
Coloca-se a questão de saber como proceder se houver desfasamento entre
fundamento e a falta de comunicação de que é arguido. As declarações que a pessoa
preste não valem como prova contra ela, nem contra eventuais coarguidos – artigo 58º
número 5. Agora não valem tout court, até 2007 dizia-se só contra ela. Isto para evitar
que os órgãos de polícia criminal ou autoridade judiciária continuassem a prevalecer-se
da ignorância para obter informações úteis sobre outros responsáveis pela infração.
Este artigo também se aplica nos casos do artigo 57º e também existe remissão no artigo
59º número 3, mas está mal feita. Remete-se para o 3 e 4, mas quer-se remeter para o
4 a 6 do artigo anterior.

b) O estatuto do arguido: direitos e deveres.

O arguido recebe o estatuto garantístico com direitos e deveres – definido no


artigo 60º e densificado no artigo 61º. Tem o direito de estar presente, de ser ouvido
(de audiência), de constituir advogado e ser assistido por ele (artigo 32º número 3 da
CRP, densificado nas alíneas e) e f) do artigo 61º número 1), de intervir no inquérito e
produzir provas, direito de ser informado, recorrer, não responder a perguntas sobre a
matéria de imputação. Por outro lado, tem o dever de comparecer, de responder com
verdade às perguntas sobre a sua identidade. Ser constituído como arguido deve ser
visto como uma garantia, daí a lei começar pelos direitos e não pelos deveres.
O direito a constituir advogado e ser assistido por ele em todos os atos
processuais pressupõe o direito a ter defensor e escolhê-lo.

4. O defensor.
a) Função processual.

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Coloca-se a questão de saber qual a posição processual do defensor. Para
algumas conceções, seria um mero representante judiciário do arguido, competir-lhe-ia
exercer em nome do arguido os direitos que a lei lhe reconhece, a sua função esgotar-
se-ia nos direitos e faculdades que a lei atribui ao arguido, seria o representante técnico
do arguido. Esta conceção foi ultrapassada. O defensor pode ser nomeado mesmo
contra a vontade do arguido, o arguido não pode ficar sem defensor (artigo 61º número
1 alínea e) do CPP), a lei nomeia um se ele não quiser escolher, em casos em que é
obrigatório – artigo 64º. Por isso é que é um sujeito processual, impõe a sua existência
em certos atos processuais mesmo contra a vontade do arguido e que imponha a sua
defesa mesmo que o arguido se desinteresse. Será um órgão autónomo de
administração da justiça, mas não é um órgão de administração de justiça nos mesmos
termos do MP e do tribunal. Em tempos houve quem entendesse que a ele competia
atuar no sentido da descoberta da verdade e foi essa conceção que justificou que, na
Alemanha autoritária, se tivesse ponderado extinguir a figura do defensor. Hoje tem-se
por certo que exerce uma função constitucionalmente assegurada (artigo 208º), mas
não se confunde com a função do tribunal, nem do MP. Ao defensor compete servir a
descoberta da verdade e realização da justiça, mas atuando sempre e apenas no
exclusivo interesse do arguido e, por isso, o defensor não tem que carrear para os autos
elementos desfavoráveis para a defesa, mesmo que os conheça. Porquê esta situação
de desigualdade? Porque o arguido está numa posição de fragilidade e tem de haver um
técnico que aja no seu interesse.

b) Estatuto processual.

É um sujeito processual porque tem uma esfera de atuação autónoma. É


nomeado obrigatoriamente mesmo que o arguido não queira (artigo 64º) e mesmo que
se desinteresse o arguido.

5. O assistente.
a) A posição da vítima no processo penal.

A vítima não é sujeito processual, é uma figura nova de natureza híbrida situada
entre as partes civis e o assistente e, por outro lado, o lesado e o ofendido. São-lhe
atribuídos alguns direitos, uma figura que surge a partir de 2015, mas são direitos de
informação e proteção, designadamente contra a vitimização secundária. Temos, então,
direitos de informação, respeito e proteção contra a vitimização secundária,
consagrados no Estatuto da Vítima.
Nos termos do artigo 11º número 9, é informada sobre as principais decisões,
em particular da medida de coação, são os direitos de informação. E depois tem direitos
à proteção – evitar contacto entre vítimas e suspeitos ou arguidos. Nos casos
especialmente vulneráveis, adotam-se medidas especiais de inquirição. Estas normas
não são novidade. O estatuto de vítima (artigo 67º-A do CPP) e a Lei de Estatuto são de
2015, mas já constavam da Lei de Proteção de Testemunhas, a Lei nº 93/99, e já nessa
lei se distinguiam testemunhas intimidadas (criminalidade violenta e organizada) e
vulneráveis (carecidas de maior proteção).
Para além disto, o CPP tem algumas normas relevantes que já traduzem alguma
proteção material – artigo 281º número 7, a vítima de violência doméstica pode

69
requerer a suspensão provisória do processo. Prevê-se que a vítima possa ser ouvida na
instrução mesmo que não seja assistente – artigo 292º número 2. Ao abrigo do artigo
212º número 4, prevê-se que a vítima seja ouvida quando há revogação ou substituição
de medidas de coação. Destaque, ainda, para o artigo 82º-A. A professora censura a
pulverização destes normativos, melhor seria que houvesse um só diploma.

b) A constituição de assistente: legitimidade.

No nosso CPP também é sujeito processual o assistente. O legislador ordinário


concretiza uma imposição constitucional – artigo 32º número 7. Assegura ao ofendido
algum poder de intervenção do Processo Penal nos termos da lei que decida definir. É
uma particularidade do nosso Direito. Esta figura do assistente é uma originalidade do
ordenamento português e é uma preocupação com a vítima que antecipa as
preocupações ressaltadas pela vitimologia, na vertente dos estudos criminológicos. É
uma preocupação formal – reconhecem-se direitos de conformação da marcha
processual: oferecer prova, constituir mandatário. Não se trata ainda da preocupação
com a pessoa da vítima, com a sua segurança e proteção.
Quem se pode constituir assistente? Nos termos do artigo 68º número 1 alínea
a) do CPP, os ofendidos. A lei adota um conceito restrito de ofendido, mas a
jurisprudência foi alargando este conceito procedendo a alguma extensão. Em certas
incriminações que tutelam bens jurídicos supraindividuais, mas que de algum modo
tocam de forma mediata interesses individuais, os tribunais foram estendendo a
legitimidade. No crime de falsificação de documento, tem legitimidade a pessoa a quem
se visava prejudicar com a falsificação, é um interesse supraindividual na confiança dos
documentos e na segurança do tráfico. Na denúncia caluniosa, atribui legitimidade à
pessoa que foi caluniosamente denunciada. No crime de desobediência qualificada,
quando se desrespeite uma providência cautelar, atribui ao requerente da providência
cautelar. Mas não é só a jurisprudência que estende, também o legislador, no artigo 68º
número 1 alínea e), atribui legitimidade a qualquer pessoa relativamente a certos crimes
– crimes particularmente graves que têm como vítima qualquer pessoa (contra a paz e
a humanidade) ou crimes particularmente difíceis de investigar (corrupção, peculato,
económico-financeiros).
O assistente é o colaborador do MP. A lei também disciplina os casos de sucessão
e representação na posição processual de assistente. Pode a pessoa do ofendido ter
falecido – artigo 68º número 1 alínea c). Pode ser incapaz em razão da idade ou outra
razão, nesse caso o exercício dos poderes correspondentes incumbe às pessoas do
artigo 68º número 1 alínea b). Vale o mesmo para a queixa.
Qual o prazo para constituição de assistente? Se for crime particular, o prazo é
de 10 dias a contar da queixa oral em que o queixoso é informado de que deve
constituir-se assistente, nos termos do artigo 68º número 2, que remete para o artigo
246º número 4. Nos crimes públicos e semipúblicos em que haja lugar, pode ocorrer a
todo o tempo durante a tramitação do processo. Se a constituição for feita mais tarde,
inviabiliza certos direitos processuais que poderiam ter sido utilizados antes. Ainda pode
requerer a constituição no caso para interposição de recurso, se não o fizer 5 dias antes
da audiência de julgamento, da instrução ou nos termos do artigo 284º.

c) Estatuto processual.

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O assistente é um sujeito processual e tem uma posição de colaborador do MP
na descoberta da verdade, subordinando a sua atividade à do MP – artigo 69º número
1 do CPP. Mas tem poderes processuais próprios, previstos no número 2. Nos crimes
particulares, tem uma função mais vasta. Mas nos crimes públicos e semipúblicos é
colaborador do MP. Mas constitui fraude à lei, na opinião da professora, a constituição
de assistente de jornalistas nos crimes do artigo 68º número 1 alínea e) e não devia ser
admitida.
O assistente tem um advogado obrigatoriamente por força do artigo 70º. Esse
advogado não é sujeito processual, é um mero representante judiciário do assistente,
cujos poderes se esgotam nos poderes que ao assistente são atribuídos. Havia a dúvida:
e quando o ofendido é advogado? Será que tem de constituir mandatário? Quanto ao
arguido não havia essa dúvida, tem de ter defensor nos casos em que é obrigatório. Mas
há quanto ao assistente. Só foi resolvida no Acórdão de fixação de jurisprudência do STJ
nº 15/2016 em que se impõe que seja constituído outro advogado. Nos EUA, o arguido
pode defender-se a si próprio.

6. As partes civis.
a) A indemnização cível emergente de crime: o «processo de adesão».

Também são sujeitos processuais só do ponto de vista formal, porque do ponto


de vista material são de natureza jurídico-civil. A prática de crime pode gerar vários tipos
de responsabilidade: contraordenacional, penal, civil. Quando gera simultaneamente
responsabilidade penal e civil, a pretensão punitiva do Estado e a ressarcitória do lesado,
deve exercer-se no Processo Penal.
O nosso sistema é de adesão ou interdependência. Podia adotar-se o sistema de
absoluta independência, em que atendendo à diferente natureza e pretensões, se
fizesse em separado. O nosso legislador aderiu ao outro sistema por razões de economia
processual: se é o mesmo facto que gera as duas responsabilidades, a prova é a mesma,
há ganhos do aproveitamento do material probatório e da economia processual e de
prestígio das decisões judiciais. Por outro lado, a proteção da vítima entendida como
lesado. Porque a formulação do pedido cível em Processo Penal é mais desburocratizada
e não implica custos adicionais. Se o pedido não exceder 20 unidades de conta, que
correspondem a 2040€, nem sequer paga taxa de justiça, não existem encargos com
custas.
O princípio é o da adesão – artigo 71º do CPP. No artigo 72º número 1, o
legislador consagra um elenco grande de exceções. Em suma, se não tiver havido
acusação, o pedido pode ser formulado em separado. Se o responsável civil for não o
arguido, mas outras pessoas como a seguradora, o pedido pode ser separado. Se for
mais de 8 meses o inquérito, o pedido pode ser separado. Se se tratar de crime
semipúblico ou particular, a dedução em separado equivale à renúncia ao direito de
queixa – artigo 72º número 2. O pedido cível é deduzido na ação penal. Quanto à
natureza substantiva do pedido, conserva a sua natureza substantiva jurídico-civil por
força do artigo 129º do CP, valem os grandes princípios que orientam o Processo Civil:
- os critérios de decisão do tribunal são os previstos no Código Civil (artigos 483º e
seguintes) e a absolvição penal pode ser compatível com condenação cível. Exemplo:
crime de dano, não há dolo, mas a coisa foi destruída;

71
- do ponto de vista processual, na própria tramitação do pedido valem alguns princípios
de Processo Civil – princípio do pedido e de limitação do objeto;
- valem as faculdades de confissão, desistência e transação quanto ao pedido cível.
Todavia formalismos processuais mais complexos estão limitados ou mesmo vedados:
não se pode fazer pedido reconvencional, não há despacho saneador, não pode haver
intervenção de terceiros.

b) A reparação do artigo 82.º-A.

O artigo 82º-A foi uma norma introduzida em 1998 e introduz a ideia de proteção
material da pessoa da vítima. É dissonante com o que vimos até aqui a respeito do
pedido cível. Fala de uma reparação da vítima em casos especiais. Em que medida esta
norma se afasta? Quando não tenha sido deduzido pedido cível, o tribunal pode arbitrar
uma quantia oficiosamente, afasta-se do princípio do pedido. É arbitrado apenas em
caso de condenação na parte penal e vimos que pode haver condenação no pedido cível,
ainda que haja absolvição penal. Esta reparação é arbitrada à vítima e não ao simples
lesado, o conceito de vítima deve ser densificado pelo artigo 67º-A. Por outro lado, o
legislador adiciona que só particulares exigências o imponham, não são critérios estritos
de natureza civil. É uma reparação que cumpre as funções públicas típicas da pena
criminal: reparação do mal do crime e reprovação do facto e de prevenção. Faz ressaltar
a eficácia penal da reparação. Não é norma única, há outros aspetos em que se atribui
à reparação alguma eficácia penal. Os artigos 71º, 72º e 74º do CP e 280º e 281º do CPP
e a suspensão de execução da pena de prisão (artigos 51º, 52º ou 53º do CP) são
institutos em que se dá valor penal à reparação civil, dos danos do crime.

c) A reparação punitiva como «terceira via» do sancionamento penal?

Nos termos do artigo 206º do CP, há crimes que são públicos, o crime de furto
qualificado, o crime de abuso de confiança qualificada, em que não pode haver
desistência de queixa, mas se o dano for irreparável e houver concordância do arguido
e ofendido, extingue-se a responsabilidade penal, é o efeito penal da reparação. Lembra
a mediação penal que não pode haver nos crimes públicos, é uma forma de o legislador
introduzir soluções paralelas.
Existe um fundo do Estado para a reparação de vítimas de crimes violentos e de
violência doméstica – previsto pela Lei nº 104/2009, de 12 de setembro, para a qual
remete o artigo 130º número 1 do CP. Quando não possa o arguido ou o demandado
civil pagar a indemnização, existe um fundo estadual de arbitramento. Nos termos do
artigo 130º número 2, quando haja decisão de perda, possa essa perda reverter a favor
do lesado, o produto perdido pode ser usado para pagar indemnização ao lesado. No
número 3, prevê-se que a própria multa, nos casos em que o fundo não possa ser
acionado e o condenado não tenha meios de prover à reparação, se a vítima ficar
privada de meios de subsistência, pode reparar os danos causados à mesma.

V. O OBJETO DO PROCESSO.
A. CONSIDERAÇÕES GERAIS.
1. Aproximação ao problema. O objeto do processo no contexto da estrutura
acusatória.

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O objeto do processo liga-se a um outro problema que é o princípio da acusação
que impõe que haja uma separação material entre quem investiga e acusa e quem julga.
Decorrem 3 corolários:
1- o tribunal não tem a iniciativa da investigação;
2- a atividade cognitiva do tribunal está dependente da prévia dedução de acusação por
uma entidade distinta, a acusação é o pressuposto desencadeante da atividade
adjudicativa do tribunal;
3 – a acusação não é apenas o fator desencadeante, também delimita, fixa e define o
objeto do processo, dá a vinculação temática do tribunal.
No nosso modelo processual acusatório integrado por princípio de investigação,
o tribunal tem o dever-poder de investigar de forma completa os factos dentro dos
limites traçados pelo objeto do processo, por razões de imparcialidade e garantia da
defesa – para proteger o arguido contra surpresas incriminatórias. A acusação não
condiciona um se, mas também o como e o quanto da investigação judicial. O tribunal
tem o dever de investigar de forma esgotante o objeto do processo, de construir ele
próprio as bases factuais da sua decisão, mas esses poderes-deveres não podem
estender-se para além do objeto traçado no despacho de acusação.
O problema do objeto interessa para 3 questões diferentes:
1- delimitar os poderes de cognição do tribunal, saber do que o tribunal pode conhecer;
2- saber da questão da litispendência;
3- decidir dos limites do caso julgado (ne bis in idem).

2. O conceito unitário e diferenciado de objeto.

Para alguns autores, deve valer um conceito diferenciado de objeto consoante o


momento em que a questão se põe. Há uma posição minoritária na Alemanha – Karl
Peters defendia um conceito diferenciado de objeto, teria uma natureza dinâmica,
sofreria estreitamentos sucessivos ao longo da marcha e seria mais amplo ao saber os
poderes de cognição do tribunal e mais estreito ao saber o que fica consumido no caso
julgado. Para este autor, concretamente aquilo que fica consumido pelo caso julgado é
apenas aquilo que o tribunal teve a possibilidade fáctica de conhecer, considerando as
provas disponíveis e outras limitações de ordem normativa, por exemplo as regras de
competência do tribunal, os pressupostos processuais. Por exemplo, é imputada a
prática de crime de homicídio simples. O tribunal podia conhecer da circunstância, para
efeitos de delimitação dos poderes de cognição, dos factos que integram o homicídio
agravado. Para efeitos de caso julgado, não havia elementos para conhecer desta
agravante, só fica precludido aquilo que o tribunal podia efetivamente conhecer. O que
não é efetivamente conhecido pode ser alvo de novo processo.
Esta compreensão é, todavia, uma compreensão minoritária porque a maioria
da doutrina em Portugal e Alemanha sustenta um conceito unitário de objeto: tem a
mesma extensão, seja a delimitação dos poderes de cognição, sejam os efeitos
produzidos pelo caso julgado, tudo aquilo que o tribunal devia e podia conhecer fica
precludido pelo caso julgado. Este conceito unitário é mais garantista do arguido.

3. Os princípios definitórios do objeto: identidade, unidade ou indivisibilidade e


consunção.

73
Para quem defende isto, a matéria pode determinar-se por referência a 3
princípios conformadores:
- principio da identidade: segundo o qual o objeto do processo deve manter-se o mesmo
desde a acusação até ao trânsito em julgado da decisão;
- princípio da unidade ou indivisibilidade: o objeto do processo deve ser conhecido e
julgado na sua totalidade, de forma unitária e indivisível, não podendo a acusação
pretender uma apreciação parcial do objeto e definido o objeto da acusação a posição
do tribunal deve ser esgotante em relação a todos os elementos do processo;
- princípio da consunção: como correlato do anterior, diz que a questão subvertida ao
tribunal deve ter-se por irrepetivelmente decidida e o efeito do caso julgado deve
estender-se a todas as questões que o tribunal devia ter conhecido, ainda que não tenha
efetivamente apreciado.
Castanheira Neves diz que os princípios da unidade e consunção são a face e
reverso da mesma moeda e que se vê do ponto de vista normativo. O primeiro é no
plano do conhecimento a realizar e prescreve que esse conhecimento seja indivisível e
total. O segundo é no plano do conhecimento realizado, deve ser considerado como se
tivesse sido indiviso e total, é esgotante, ainda que efetivamente não o tenha sido.
Estão, portanto, ligados os dois princípios. Desta forma, procura-se dar satisfação quer
aos interesses da investigação criminal, quer aos interesses do arguido.

4. Os critérios de identidade do objeto. Referência a algumas das principais teses


doutrinais:

A grande dificuldade é definir quais são os critérios de identidade do objeto,


quando se pode dizer que é o mesmo objeto. Na acusação não está tudo, esse quadro é
preenchido com o depoimento vivo das pessoas: que informações novas cabem no
objeto traçado na acusação?
Há um critério muito simples – critério subjetivo: a identidade do objeto supõe
a identidade do agente, se na acusação os factos são imputados a A, não pode o tribunal
na fase de julgamento, se descobrir que houve coautoria ou cúmplice, apreciar a
responsabilidade criminal de B. Existem tantos objetos processuais quanto os arguidos.
A imputação a outras pessoas transcende o objeto do processo.
Depois há o critério objetivo: é preciso que seja o mesmo crime, para além do
mesmo agente. Não releva a mera qualificação jurídica, porque pode o título legal ser
diferente e afinal termos o mesmo crime. Por exemplo, escrever-se na acusação que A
foi subtraído da carteira com violência por B. O MP diz que houve furto, mas na verdade
houve roubo. Também pode dar-se o caso de ser o mesmo tipo legal e afinal serem
crimes diferentes. Um outro exemplo, A subtraiu uma carteira em cima de uma mesa de
um turista em Portimão. Na audiência, descobre-se que subtraiu uma carteira noutro
dia de uma outra pessoa no shopping. O que importa é a realidade material que se
encerra sobre a qualificação jurídica. Vários autores ao longo de várias décadas
procuraram dizer o que é a identidade do crime para se aferir a identidade do objeto.

a) A teoria "naturalista" (Beling, Cavaleiro de Ferreira);

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A tese naturalista é dominante na Alemanha, defendida por Beling e, em
Portugal, acolhida por Cavaleiro Ferreira. Ligada às correntes positivistas dos séculos XIX
e XX.
O critério da identidade do objeto é o mesmo que vale a propósito da unidade e
pluralidade de crimes – critério da identidade da ação, unidade naturalística da ação.
Quando alguém com um tiro mata 2 pessoas, é só um crime. Faz-se no mesmo processo.
Seria o acontecimento histórico total delimitado por um critério fáctico. Seria o facto na
sua existência histórica que importa averiguar no processo. O objeto seria dado por um
conjunto de factos históricos em conexão naturalística. A identidade de facto tem de se
apreciar naturalisticamente, como facto concreto e real.
Esta construção apresenta muitas dificuldades de aplicação, principalmente nos
casos de fronteira. Se for uma diferença pequena, será que esse critério vale? Os vários
autores e jurisprudência tentaram encontrar um critério aglutinador, de natureza
fáctica, do acontecimento histórico, para uns era o resultado, para outros a culpa –
casuísmo irreprimível que não resolve de forma cabal as questões que se colocam.
Surgiram autores que vieram propor critérios diferentes de natureza normativa.

b) a teoria normativista (Eduardo Correia);

O que dá unidade a um certo conjunto de factos é o ponto de vista do sujeito, é


o critério que escolhemos para perspetivar a realidade. Fora desse critério de relevância,
os factos em si mesmos não contêm em si nada que lhes possa dar unidade. Para
Eduardo Correia, a afirmação da unidade de certos fenómenos é já o resultado da sua
referência do ponto de vista valorativo normativo que interessa ao sujeito. Há tantos
critérios quantos se queira, caindo-se no irreprimível casuísmo.
Propõe, por isso, uma teoria normativista. Diz que um crime como qualquer
fenómeno humano não se esgota na sua dimensão fáctica. Interessa sobretudo como
negação de valores, como unidade de sentido socialmente danoso que nega valores
jurídico-criminais. Esses valores estão condensados em tipos legais, são os repositórios
dos valores negados. Para Eduardo Correia, o critério deve aferir-se em função do
número de tipos legais violados. Há tantos crimes quantos tipos legais violados ou pelo
número de vezes que foi violado. Se isto é assim do ponto de vista substantivo, também
é do ponto de vista processual – o tipo legal daria o objeto do processo. Não é a
coincidência entre os factos naturalísticos da acusação e a decisão, mas a coincidência
dos concretos juízos de valor, ou melhor dos tipos legais. Se o MP acusar por furto e
descrever uma determinada conduta do agente, o juiz tem de investigar aquela concreta
conduta descrita, mas todas as possíveis atividades que sejam portadoras do mesmo
sentido jurídico-criminal.
Mas Eduardo Correia foi mais longe na equiparação entre os critérios da
pluralidade e o da identidade do objeto. A propósito do concurso de crimes, há certas
situações em que uma pluralidade de tipos legais é convocada, mas o agente é só punido
por um crime – concurso aparente. Quando a conduta de uma pessoa se subsume
simultaneamente a homicídio simples e qualificado, o agente só é punido pelo homicídio
qualificado. Não conduz necessariamente à condenação do agente por vários crimes.
Também assim no problema do agente: quando os tipos legais estejam numa relação de
especialidade ou consunção, hierarquia típica do concurso aparente, ainda estamos
dentro do mesmo objeto processual. Significa que se A é acusado de homicídio simples

75
e se se descobre que agiu com premeditação, essa circunstância pode ser investigada e
pode ser condenado por homicídio qualificado. Outro aspeto em que se vê esta
equiparação do plano substantivo e processual: certas pluralidades de crimes como a
figura do crime continuado é concurso efetivo ou verdadeiro de crimes que o legislador
trata numa só figura. Do ponto de vista substantivo, o agente comete vários crimes em
concurso e é condenado num só crime continuado (concurso efetivo). Também é assim
no plano processual – se há continuação criminosa ainda estamos dentro do mesmo
objeto processual, o juiz pode conhecer das condutas não acusadas. Para Eduardo
Correia, a acusação por um crime implica para o juiz o dever de lançar os olhos sobre
todos os tipos legais de crime potencialmente aplicáveis, investigando e conhecendo os
factos que se encontrem numa relação de unidade normativa, abrangendo quer os
factos que estejam acusados numa relação hierarquia típica de concurso aparente de
norma, quer os que estejam com os acusados num crime continuado.
Eduardo Correia vai mais longe: se no julgamento se provarem condutas que não
estavam acusadas e não se provarem condutas que estavam acusadas, ainda assim o
juiz pode conhecer e condenar por essas condutas.
O caso dos crimes complexos é um caso especial: exemplo do roubo, é complexo
porque é de furto a que acresce a ameaça ou ofensa à integridade física. Os crimes de
roubo e furto estão numa relação de especialidade e os crimes de roubo e ameaça estão
numa relação de consunção. Todas as figuras que integram o roubo podem ser
conhecidas pelo tribunal, ainda que não tenham sido acusadas (se o juiz vem a descobrir
que afinal é roubo). Não é uma solução aceitável – não houve furto, mas ameaça e é
julgado apenas por ela.
Ainda vai mais longe: podem os poderes de cognição estenderem-se para além
dos limites dados pelo objeto do processo. Por razões de economia processual e
aproveitamento do material probatório, sempre que os factos novos descobertos na
audiência estejam numa unidade naturalística com os da acusação, o tribunal pode
conhecer mesmo que os novos factos estejam fora do objeto – caso de concurso ideal,
pois a nova incriminação apoia-se em parte nos mesmos factos naturalísticos do objeto.
Castanheira Neves fez várias críticas severas, algumas situadas no plano
metodológico e outras no plano material. Críticas metodológicas: Eduardo Correia
desvaloriza a realidade material, introduz uma rutura entre o plano da realidade dos
factos e o plano normativo das normas. A realidade passa a importar apenas como facto
apto à subsunção de categorias/tipos legais e depois tudo se passa no jogo das
categorias. A realidade transmuta-se em categorias. O elemento material mais não seria
que um fator fungível. Do ponto de vista material, diz que as soluções de Eduardo
Correia conduzem, no caso de crimes complexos, a uma grosseira violação do princípio
da acusação porque se permite que o juiz condene por condutas com contornos factuais
distintos da acusação. Também critica o alargamento dos poderes de cognição do
tribunal para além do objeto, nos casos de concurso ideal, vários crimes cometidos pela
mesma ação. Parecem alargamentos insuficientemente infundados. O objeto do
processo visa a imparcialidade e a proteção do arguido. Contra estes está a economia
processual que não sobreleva os outros.

c) o critério da unidade fáctico-normativa (Figueiredo Dias).

76
Teoria do pedaço de vida foi desenvolvida por Figueiredo Dias. Diz que a
acusação não dá uma resposta definitiva ao problema jurídico-penal, traça um quadro,
recorta um pedaço de vida e o que importa é que esse se mantenha no momento da
decisão. Mas não significa que sejam exatamente os mesmos contornos fácticos da
acusação e decisão, consentem-se pequenas flutuações, desde que se possa dizer o
mesmo. Não significa uma identidade total.
Figueiredo Dias procura ultrapassar as críticas que se faziam à tese anterior. Não
desligou o momento normativo do factual. No plano factual, Figueiredo Dias diz que o
objeto é composto pelo conjunto de factos de conexão natural. Esses factos relevam na
medida em que sejam integrados pelas respetivas valorações jurídico-sociais.
Valorações jurídicas feitas por apelo já não aos tipos legais, mas aos bens jurídicos
violados. Valorações sociais por apelo à compreensão comunitária da conduta.
Figueiredo Dias diz que o que dá a unidade ao pedaço de vida é o conjunto de factos de
conexão natural integrados pelas respetivas valorações jurídico-sociais.

B. ANÁLISE DA LEI VIGENTE.


1. Os conceitos de alteração substancial e não substancial dos factos (art. 1.º, al. f)) e
o seu relevo nas diversas fases do processo (cf. arts. 284.º, 285.º, 303.º, 309.º, 358.º,
359.º, 379.º, n.º 1, al. b) e 424.º, n.º 3).

O problema não se resolve com as construções teóricas. A nossa lei procura


resolver em parte o prolema, não resolve o problema do objeto, apenas os poderes de
cognição do tribunal. A lei introduz o critério relacional, da alteração substancial dos
factos. É relacional porque tem que se comparar o que está na acusação (antes) e no
julgamento (depois). A lei define no artigo 1º alínea f) do CPP o conceito de alteração
substancial. Se na acusação é imputada a uma determinada pessoa a prática de crime
de homicídio simples, não pode o tribunal, se descobrir que houve premeditação,
conhecer dessas novas circunstâncias, porque se o fizesse isso conduziria a que a
conduta se subsumisse não ao artigo 131º (pena de prisão de 8 a 16 anos) mas ao artigo
132º que é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos. Diz a lei que existe alteração
substancial sempre que conduza a aumento de limite máximo de pena, tem que haver
mudança de factos. Segundo aspeto: haver imputação de crime diverso, não é um tipo
legal diferente porque pode ser o mesmo e o crime ser diferente como o contrário, não
é a qualificação jurídica que releva, são as teorias, sendo que a mais acolhida entre nós
é a de Figueiredo Dias.
A lei define alteração substancial e aparece várias vezes: artigos 284º e 285º,
303º e 309º, 358º e 359º e 424º do CPP. A primeira vez que surge é a propósito da
acusação. Nos crimes públicos e semipúblicos, é o MP quem acusa e o assistente pode
acompanhar a acusação do MP ou acusar por outros factos que não alterem
substancialmente. Nos crimes particulares, é o assistente (artigo 285º) e o MP pode
acusar pelos mesmos factos ou outros que não alterem substancialmente a acusação
particular. Não está em causa o problema do objeto do processo, só se põe em
confronto da acusação e o julgamento. Está em causa salvaguardar as regras de
distribuição de competência para acusar, consoante se trate de crimes públicos e
semipúblicos, por um lado, ou crimes particulares, por outro. Se estes artigos forem
violados, a consequência é que a acusação que exceda os tais limites não pode ser
recebida – artigo 311º número 2 alínea b).

77
O segundo momento em que esta expressão aparece é nos artigos 303º e 309º.
Também não está em causa o problema do objeto do processo, o que se está a comparar
são os factos descritos na acusação e no requerimento para abertura de instrução e os
factos do despacho de pronúncia. Diz a lei que o juiz não pode pronunciar por factos
para além dos descritos no requerimento e no despacho. Quando há instrução, o objeto
é integrado simultaneamente pelo despacho de acusação e de pronúncia. Mas a lei não
quer que o juiz se pronuncie por mais factos dos que constam. Quer sublinhar o facto
de a fase de instrução não ser uma fase de investigação suplementar, não é destinada a
suprir as lacunas de inquérito, é uma fase de sindicância da decisão do MP, uma espécie
de recurso. O arguido ou o assistente pretendem pôr em crise a decisão do MP e por
isso os poderes do juiz de instrução, quando profere o despacho, estão limitados pelo
despacho do MP e pelo requerimento de abertura de instrução.
Nos artigos 358º e 359º, a lei distingue as alterações substanciais das alterações
não substanciais dos factos. Se no decurso da audiência decorrer uma alteração não
substancial dos factos e pode resultar de surgirem factos novos ou surgirem factos
diferentes substituindo-se os da acusação – artigo 358º número 1. Não será assim se
resultar de factos alegados pela própria defesa. Este formalismo destina-se a assegurar
o contraditório. Se a alteração for substancial, rege o artigo 359º.
Havendo uma alteração substancial, o princípio geral é de que o tribunal não
pode conhecer dos factos novos, a menos que o MP, o arguido e o assistente estiverem
de acordo com a continuação do julgamento para conhecerem dos novos factos – fala-
se de um caso julgado de consenso (número 3). Os poderes de cognição do tribunal
podem alargar-se a matérias que estão fora dos limites do objeto do processo. Há uma
cautela que Teresa Pizarro impõe aqui: diz que esta norma só pode aplicar-se quando
os factos novos ainda tenham alguma relação com a história narrada pela acusação, sob
pena de se inverter em absoluto o princípio de acusação. Seria permitir que se julgasse
uma pessoa que não tivesse sido acusada por aquela infração. Se não houver este
acordo, o tribunal não poderá conhecer.
E depois o que acontece? Fica precludido pelo caso julgado? A lei não dá essa
resposta. O legislador diz que, se os novos factos forem autonomizáveis, o
conhecimento deles vale como denúncia ao MP para que proceda a nova investigação,
abre inquérito quanto a eles. Isto só é possível se os factos novos forem, eles mesmos,
crime. Por exemplo, alguém é acusado da prática do crime de furto, porque subtraiu
objetos num determinado estabelecimento durante a noite. Descobre-se que afinal
estava uma empregada de limpeza que terá sido ameaçada ou a sua integridade física
posta em causa. Esses factos novos têm substância em si para serem objeto de um
processo autónomo. Outro exemplo: alguém é acusado de homicídio simples e
descobre-se depois que a vítima era pai do agressor. Não se pode conhecer porque se
converte em homicídio qualificado. Será que este facto novo pode conduzir a processo
autónomo? Não, porque não é crime ser pai de alguém. Se os factos não forem
autonomizáveis, o tribunal não pode conhecer deles.
Até 2007, entendia-se que, nesta situação em que não há acordo nem os factos
são autonomizáveis, o tribunal proferia um despacho de suspensão de instância ou de
interrupção/extinção da instância. Os factos todos (novos e da acusação) regressavam
à fase anterior do inquérito e o MP investigava os factos e depois seguia o processo para
julgamento já com todos os factos. Havia críticos nesta solução: Paulo Sousa Mendes
dizia que a circunstância de se descobrirem factos novos na audiência não pode

78
redundar em desfavor ao arguido, na medida em que não lhe é imputável a deficiência
na investigação. Por força desta compreensão, em 2007 a lei foi modificada –
concretamente o artigo 359º número 1. Parece que o legislador terá querido evitar esta
suspensão ou extinção da instância e aderido à compreensão doutrinal de Paulo Sousa
Mendes. O tribunal não poderá conhecer dos novos factos – os autores dizem que
podem conhecê-los para determinar a medida da pena dentro da moldura. Na opinião
da professora, a solução razoável era a anterior acolhida pela jurisprudência. Mas
continua a poder acolher-se esta solução anteriormente acolhida pela doutrina e
jurisprudência, à luz da letra da lei.
Estas normas 358º e 359º têm redação idêntica no artigo 303º, porque este
artigo também aborda as alterações substantivas, mas não tem em vista o objeto do
processo.

3. O problema da alteração da qualificação jurídica dos factos. Análise dos artigos


339.º, n.º 4, 303.º, n.º 5 e 358.º, n.º 3.

O problema da alteração da qualificação jurídica não se confunde com o


problema do objeto. A identidade do objeto que supõe a identidade do crime não se
confunde com a identidade do tipo legal, isto é, da qualificação jurídica dos factos. O
que se tem entendido na doutrina e jurisprudência é que o tribunal é livre de alterar a
qualificação jurídica feita na acusação, corrigindo os erros de consunção do MP – o
tribunal é livre de dizer o direito. O tribunal não vai ficar agarrado aos erros do MP.
Figueiredo Dias diz que uma modificação da qualificação jurídica pode prejudicar
a defesa do arguido. No despacho de acusação, o artigo 283º número 3 alínea c) obriga
o MP a indicar as disposições legais aplicáveis e é natural que o arguido e defensor
confiem na qualificação. O arguido pode ter estruturado a sua defesa de uma maneira
que não seria a mesma caso a qualificação fosse outra. Em alteração da qualificação,
deve prevenir-se o arguido dessa nova qualificação. Era isto que defendia Eduardo
Correia e Figueiredo Dias já à luz do Código de 1929. No artigo 447º desse Código dizia-
se “convolar” (modificar a qualificação jurídica). Estes autores diziam que a alteração
pode ter reflexos na defesa, era preciso interpretar este artigo em conformidade com a
Constituição, compatibilizando-se a liberdade do tribunal de dizer o direito com os
direitos do arguido e o princípio do contraditório. Estes autores diziam que, quando o
tribunal se apercebesse do erro e quisesse convolar, devia avisar o arguido e dar-lhe um
prazo para preparar a sua defesa.
No Código novo nada se dizia sobre o poder do juiz de convolar e suscitou-se a
dúvida de saber se corresponde a uma alteração substancial dos factos a imputação ao
arguido de um crime mais grave quando resulta da mera alteração da qualificação
jurídica feita na acusação. A dúvida foi colocada ao STJ, no Assento nº 2/93, que
interpretou as normas dos artigos 1º alínea f), 284º, 285º, 303º, 309º e 358º e 359º no
sentido de que não constituía alteração substancial dos factos a simples modificação da
qualificação jurídica. Colocou-se a questão de saber se estas normas na interpretação
dada pelo STJ são conformes à Constituição? Figueiredo Dias e Eduardo Correia diziam
que tinha de ser feita uma interpretação conforme à Constituição. O TC no Acórdão nº
445/97 entendeu que não, pronunciando-se com força obrigatória geral pela
inconstitucionalidade. Diz o TC que estas normas são inconstitucionais na medida em
que, conduzindo a diversa qualificação jurídica à condenação do arguido em pena mais

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grave, não se previa que lhe fosse dada quanto a essa nova qualificação oportunidade
de defesa. Dizia que era inconstitucional quando conduzisse a uma pena mais grave. O
tribunal não vem dizer que é a mesma coisa que a alteração substancial dos factos. O
legislador, em 1998, mudou a lei, passou a prever-se no número 3 que a disciplina
prevista para a alteração não substancial dos factos se aplica quando em causa estiver
a alteração da qualificação jurídica. A lei não distingue se conduz a uma pena mais grave
ou não. Não são a mesma coisa, mas aplica-se o mesmo regime: se houver necessidade
de corrigir, o juiz dá conhecimento disso à defesa e concede um prazo para alteração da
sua estratégia apresentando, se quiser, novos meios de prova. Compatibiliza a liberdade
de dizer o direito do tribunal e a contrariedade por parte do arguido. Em 2007, a lacuna
foi colmatada, nos termos do artigo 303º número 5, o juiz de instrução comunica à
defesa a alteração e dá um prazo para se preparar. No artigo 303º, fala-se de prazo de
10 dias, mas no julgamento não se dá prazo, é fixado pelo tribunal.

PARTE II A DINÂMICA PROCESSUAL


Capítulo 1 AS MEDIDAS DE COAÇÃO E GARANTIA PATRIMONIAL
I. MEDIDAS DE COAÇÃO
1. Caraterização geral.
a) Finalidades e requisitos gerais.

As medidas de coação e de garantia patrimonial são meios de constrangimento


qua comportam restrições da liberdade pessoal do arguido ditadas por razões de ordem
cautelar. Visam a realização das finalidades do processo, designadamente preservar a
prova e evitar que o arguido fuja e, por isso, a decisão final mantenha a sua eficácia. Em
suma, que o processo e a decisão conservem a sua utilidade.
As medidas de coação asseguram que o processo se desenrole sem entraves e
que a decisão final tenha utilidade. São aplicadas antes do trânsito em julgado, e por
isso aplicadas a pessoas que se presumem inocentes – conflito da presunção da
inocência com estas medidas. O princípio da presunção da inocência tem 2 vertentes:
vale como regra de juízo/decisória, ligando-se ao princípio in dubio pro reo; mas vale
também como regra de tratamento – o arguido deve ser tratado de forma compatível
como se fosse inocente, devendo-se evitar as medidas antes do trânsito em julgado e se
não for possível aplicar como se fosse inocente. Como regra de tratamento, levaria a
que se proibissem medidas coativas antes do trânsito em julgado, mas o sistema não
pode prescindir delas. É a própria Constituição que, no artigo 28º, admite medidas de
coação sobre o arguido, torna legítima inclusive a prisão preventiva. Como se articulam
estas exigências? Prevê-se um elenco de gravidade crescente, sujeitando a requisitos e
princípios apertados.

As finalidades das medidas de coação prendem-se com o assegurar que o


processo corra sem entraves e que a decisão mantenha a sua utilidade. Não se trata de
antecipar a punição do arguido. E também não pode tratar-se de mecanismo a coagir o
arguido a colaborar com as autoridades de investigação. Embora as medidas de coação
não sejam antecipação de pena, nos termos do artigo 80º do CP, o tempo da prisão
preventiva é descontado. São finalidades cautelares enunciadas no artigo 204º do CPP.
A primeira exigência é de que se o arguido fugiu, é fundamento. Se não fugiu,
mas há elementos que contribuem para o perigo de fuga, aplica-se. Não se pode

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presumir nem haver só um elemento, mas vários elementos conjugados. O facto de ser
estrangeiro não chega. A segunda exigência é a sua aplicação quando haja perigo de o
arguido destruir ou manipular provas. Não se pode aplicar medida de coação para obter
provas que de outra forma o arguido não estaria disposto a apresentar. Estas finalidades
são endoprocessuais, ligam-se à preservação de utilidade do próprio processo. Mas a lei
na alínea c) prevê que sirvam finalidades extraprocessuais – estes perigos fazem com
que as medidas de coação se aproximem aos típicos fins das penas. O legislador, apesar
disto, quis evitar que a aplicação fosse resposta a uma expectativa social comunitária e
acrescentou adjetivos e advérbios em 2007: quanto ao perigo da continuação da
atividade criminosa acrescentou que o arguido tem de continuar, palavra “este”; quanto
à perturbação da ordem e tranquilidade, tem de ser uma perturbação grave, palavra
“gravemente”. Coloca-se a questão de saber se podem servir para proteger o próprio
arguido: Pinto de Albuquerque diz que não e a professora concorda com este autor.
Quanto ao procedimento de aplicação das medidas de coação, antes da
aplicação, a pessoa tem de ser obrigatoriamente constituída arguido – artigo 192º
número 1. São aplicadas por um juiz num âmbito de um procedimento contraditório, o
arguido é obrigatoriamente ouvido – artigo 194º número 4. Até 2007 dizia-se “se for
possível e conveniente”. O arguido é informado dos factos imputados, os elementos do
processo de onde são retirados, salvo se puser em causa a investigação (artigo 194º
número 4 que remete para o artigo 141º número 4 alínea b) do CPP).
Esse contraditório é exercido, em regra, durante o interrogatório do arguido, o
arguido é detido (não pode prolongar-se a detenção por mais de 48h – artigo 254º
número 1 alínea a), concretizando o artigo 28º número 1 da CRP) ou voluntariamente
apresenta-se. Tem-se entendido que essas 48h são o prazo para apresentação do detido
a juiz. Mas pode prolongar-se o interrogatório. O interrogatório, após este prazo, tem
de ser célere e pode acontecer fora das horas de expediente – artigo 103º números 1 e
2 alínea a). Nunca pode ultrapassar os limites do artigo 103º número 4 – tem de ter
intervalo mínimo de 60min. Outra possibilidade é ser exercido por escrito – artigo 194º
número 5, o juiz decide no prazo de 5 dias.

b) Princípios fundamentais: legalidade ou tipicidade, proporcionalidade ou proibição


do excesso (necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito),
subsidiariedade, judicialidade e precariedade.

Quanto aos princípios que regem esta matéria:


- princípio da legalidade: as medidas de coação têm de estar previstas em lei formal e
não pode o juiz aplicar de medidas de coação atípicas, nem cumular medidas de coação
fora dos requisitos e condicionalismos previstos na lei. Há outras leis como o Regime
Jurídico da Violência Doméstica cujo artigo 31º prevê medidas de coação urgentes;
- princípio da proporcionalidade ou proibição do excesso: decompõe-se em 3
subprincípios: princípio da necessidade, da adequação e da proporcionalidade em
sentido estrito ou da justa medida:
- princípio da necessidade: diz a lei, no artigo 193º número 1, que as medidas de
coação devem ser necessárias às exigências cautelares que o processo requer. É
preciso que existam exigências cautelares relevantes consagradas no artigo 204º
e que a medida de coação seja necessária a salvaguardar essa exigência cautelar.
Só são aplicadas medidas de coação se forem necessárias para evitar fuga ou

81
perigo de fuga, evitar perigo de perturbação de inquérito ou perigo de
continuidade da atividade criminosa;
- princípio da adequação: diz o artigo 193º nº 1 que devem ser adequadas à
concreta exigência cautelar do caso;
- princípio da proporcionalidade em sentido estrito: artigo 193º número 1 –
devem ser proporcionais à gravidade do crime e às sanções previsivelmente
aplicadas. Afere-se em função da moldura do crime, mas também da gravidade
concreta. A lei diz ainda mais: nos termos do artigo 192º número 6, ainda é uma
questão de proporcionalidade. Se há indícios de que o arguido cometeu o crime,
mas há razões para crer que agiu em legítima defesa, ou falta a queixa e esgotou-
se o prazo, nesse caso não se poderá aplicar medida de coação. A
proporcionalidade também intervém no momento da execução da medida de
coação – artigo 193º número 4. Por exemplo, obrigação de permanência na
habitação, mas é-lhe permitido votar;
- princípio da subsidiariedade: complementa o princípio anterior e vale em todas as
medidas de coação – deve o juiz dar preferência às medidas menos graves em relação
às outras que se seguem no catálogo. Mas vale, sobretudo, em relação às medidas
privativas da liberdade de movimento – obrigação de permanência na habitação e prisão
preventiva (artigo 193º número 3). Entre estas duas deve o juiz dar preferência à
primeira, subsidiariedade da prisão preventiva. Isto resulta do artigo 28º número 2 da
CRP. Em relação à subsidiariedade da prisão preventiva, não foi sempre assim. Entre
1982 e 1987 havia uma lei que fazia uma lista de crimes incaucionáveis: as medidas de
coação eram só a caução e a prisão preventiva. Para esses crimes não podia haver
caução, só prisão preventiva. O legislador eliminou esta lista, mas, no artigo 209º de
1988, estabelecia-se uma lista de crimes em relação aos quais podia não ser aplicada
prisão preventiva, mas a não aplicação podia ser objeto de fundamentação – presunção
iuris tantum de adequação e necessidade da prisão preventiva. Só quando o juiz
entendesse que no caso não era necessário, tinha de fundamentar. Foi eliminado em
1998, pois entendia-se que o dever de fundamentação era inútil (artigo 97º número 5)
ou então seria inconstitucional porque parecia uma presunção iuris tantum
contrariando a ideia do artigo 28º número 2 da CRP que diz que a prisão preventiva não
é obrigatória e é excecional. O regime atual foi estabelecendo requisitos mais apertados;
- princípio da precariedade: as medidas de coação são aplicadas quando há exigências
cautelares, mas quando estas desaparecerem ou forem atenuadas, são revogadas ou
substituídas por outras menos graves. Se aumentarem as exigências, pode ser
substituída por outra mais grave – artigos 212º, 213º e 215º;
- princípio da judicialidade: salvo o termo de identidade e residência, as medidas são
aplicadas por um juiz (artigo 194º número 1). Que juiz? Na fase de inquérito, será o juiz
de instrução criminal. Se for na fase de instrução, é o juiz de instrução. Na fase de
julgamento, é o juiz do julgamento; se for tribunal coletivo ou de júri é o juiz presidente.
Resulta do artigo 268º do CPP (número 1 alínea b) em concreto) e assegura a
compatibilidade do artigo 32º número 4 da CRP. Se a aplicação da medida de coação
acontecer na fase de inquérito, vale o princípio do pedido – o juiz aplica medida de
coação se tiver sido requerida pelo MP, senão não pode aplicá-la. Coloca-se a questão
na doutrina de saber se o assistente também pode requerer – o artigo 194º número 1
diz que é a requerimento do MP, mas o artigo 268º números 1 alínea b) e 2 parecem
apontar no sentido contrário. Há quem entenda que o assistente pode requerer (Paulo

82
Pinto Albuquerque), mas Maria João Antunes é oposta, a professora parece concordar.
Entende que só o MP pode requerer, porque o artigo 194º número 1 é uma norma
especial relativamente ao artigo 191º número 2. Coloca-se a questão de saber se o juiz
está limitado pelo pedido – o requerimento é mero fator desencadeante ou está
vinculado pelo pedido do MP não podendo aplicar medida de coação diferente? Numa
primeira ideia, diríamos que a aplicação deve ser decidida pelo MP e o juiz deve limitar-
se por aplicar ou não aplicar, porque a aplicação de uma medida diferente pode pôr em
causa todo um plano de investigação. O juiz intervém como juiz das liberdades, no
interesse do arguido, não faz sentido que possa plicar medida de coação mais grave,
extravasaria as competências como juiz das liberdades. Este entendimento não foi o
tradicionalmente defendido pelos juízes. Em 2007, proibia-se o juiz de aplicar medida
mais grave. Desde 2010, a solução consagrada na lei é uma solução intermédia – no
artigo 194º números 2 e 3 diz-se que pode aplicar medida mais grave em certos casos e
não pode aplicar em determinados casos, respetivamente. O legislador distingue
consoante o fundamento da medida de coação. Mas porquê? O dominus do inquérito é
o MP, que sabe o que é mais vantajoso, é o domínio do MP, logo o juiz não pode aplicar
medida mais grave. Mas nos outros casos, já não estamos no domínio do MP e o juiz já
pode discordar e aplicar medida diferente. O que significa medida de coação mais grave?
A caução cumulada com obrigação de apresentações periódicas é mais grave ou menos
grave do que obrigação na permanência na habitação? Não releva o número das
medidas, mas a medida da compressão da liberdade. É mais grave a permanência na
habitação. O artigo 200º é uma medida de coação parece. Mas, na verdade, dentro
deste artigo temos medidas de gravidade muito diversa.

2. Análise das medidas de coação previstas no atual CPP.

O legislador fixa um elenco de gravidade crescente de 7 medidas. A menos grave


é o termo de identidade e residência, a seguir a caução, obrigação de apresentação
periódica, suspensão de exercício de profissão, função, de atividade e de direitos,
proibição e imposição de condutas, obrigação de permanência na habitação e prisão
preventiva.

a) o Termo de Identidade e Residência (art. 196.º).

O TIR é uma medida de coação obrigatória e o seu regime afasta-se em muito


das outras medidas, de tal modo que se discute se é medida coativa. Desde logo, por ser
medida obrigatória a todo aquele que é constituído arguido. Pode ser aplicado mesmo
por quem não seja juiz, por órgão de polícia criminal ou MP – não vale o princípio da
judicialidade. Não são exigíveis as finalidades cautelares do artigo 204º. Ao contrário das
outras medidas que se extinguem com o trânsito em julgado da decisão condenatória
na pior das hipóteses, o TIR só se extingue com a extinção da pena – artigos 196º número
3 alínea e) e 214º número 1 alínea e).
Duvida-se que seja medida de coação porque não tem eficácia restritiva de
direitos. O seu conteúdo material é pedir ao arguido que indique o seu nome e morada
para notificação e o arguido é advertido que tem o dever de comparecer, não pode
mudar de residência ou ir ao estrangeiro por mais de 5 dias sem avisar, se faltar será
representado por defensor.

83
Qual a relevância? Liga-se ao problema crónico da justiça da falta do arguido à
audiência. Até 1987, previa-se o julgamento à revelia. Mas o legislador quis reduzir isto,
pois era muito censurado pela doutrina. Eduardo Correia dizia que contrariava as
defesas do arguido e a possibilidade do contraditório dado pela Constituição. Figueiredo
Dias dizia que o problema era minimizado pela existência do defensor que exercia o
contraditório na vez dele. Mas se o arguido quiser falar é preferível considerar e valorar
as declarações orais em audiência do que em fases anteriores, do ponto de vista da
imediação. Castanheira Neves dizia que o arguido devia ser pessoalmente convencido
da sua responsabilidade.
O legislador, em 1987, restringe as possibilidades de julgamento à revelia, só
permitida em casos pontuais: artigo 334º - quando o processo tivesse de seguir forma
sumaríssima e o arguido não concordasse com a pena proposta e seguisse forma
comum; doença grave ou encontrar-se no estrangeiro desde que o arguido consinta.
Nos demais casos, previam-se mecanismos muito estritos – se o arguido faltasse era
condenado em multa processual, no mínimo 2 unidades de conta ou até ordenada a sua
detenção e pode mesmo ser determinada a prisão preventiva.
E há a contumácia – instituto disciplinado nos artigos 335º e seguintes do CPP,
destina-se a obter a comparência do arguido. Ao arguido declarado contumaz são
emitidos mandados de detenção e implica necessariamente a anulabilidade dos
negócios jurídicos de natureza patrimonial que o arguido celebre. Por outro lado, pode
prever-se a proibição de obter determinados documentos e o arresto dos bens – artigo
337º números 1 e 3. Mas para funcionar era preciso haver sistema de troca de
informações eficaz. Em 1998, a Constituição foi alterada no sentido de permitir o
julgamento de ausentes (artigo 32º número 6) e reforçou-se o sistema de troca de
informações, mudando-se a disciplina do CPP. No momento atual, quando o juiz recebe
os autos para julgamento, tem de fazer o saneamento do processo, e depois marca duas
datas de audiência de julgamento, uma segunda para continuar ou para o arguido falar
se faltar à primeira. A notificação faz-se por contacto pessoal, via postal registada ou via
postal simples se tiver TIR – artigo 113º número 1 alínea c) do CPP. Na via postal simples
não se frustra a notificação, desde que haja o número de porta e caixa de correio, a carta
é deixada e a notificação fica feita. O juiz verifica se o arguido foi notificado e se a sua
presença é indispensável e pode ordenar as diligências necessárias à comparência do
mesmo. Senão altera-se a ordem, pois inicia-se com as declarações do arguido e pode
na segunda data prestar declarações se não comparecer na primeira. Depois é proferida
a decisão se não comparecer e tem de ser por contacto pessoal e é a partir daí que se
conta o prazo de recurso. Se o arguido não prestar TIR é notificado por contacto pessoal,
via postal registada ou por editais. Mas se não aparecer, é declarado contumaz. Isto
resulta dos artigos 333º e 334º, articulados com os artigos 303º número 3 e 113º
número 1 alínea c). A epígrafe do artigo 334º está errada “a notificação edital” não faz
sentido.

b) a Caução Carcerária (art. 197.º).

Medida que importa algum constrangimento patrimonial do arguido e só é


aplicável quando o crime imputável tenha alguma gravidade, quando seja punido com
pena de prisão. Não é um requisito muito exigente, são raros os casos de crimes puníveis
apenas com pena de multa. A lei diz de que forma se presta a caução no artigo 206º. Na

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fixação do montante, o juiz toma em consideração a proporcionalidade, dizendo-se, no
número 3, que são tidos em consideração o dano material e a condição socioeconómica
do arguido. Se mesmo assim o arguido tiver dificuldades, o juiz substitui a caução por
medida diferente, sem ser prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação.
A lei também prevê que a caução se revele insuficiente, pode reforçar-se o seu
valor – artigo 207º. Serve para assegurar o cumprimento das exigências cautelares do
artigo 204º mas também para assegurar o cumprimento de outras medidas de coação
aplicadas porque pode cumular-se com outras medidas, salvo prisão preventiva e
obrigação de permanência na habitação – artigo 205º. Se o arguido não violar os deveres
a que está sujeito, designadamente das outras medidas de coação, o valor é devolvido;
caso não cumpra, não é devolvido – artigo 208º.

c) a Obrigação de apresentação periódica (art. 198.º).

Supõe que ao arguido seja imputável um crime punido com limite máximo
superior a 6 meses e implica obrigação de apresentação com periodicidade que o juiz
fixará em função das circunstâncias do caso e pode privar ou não o arguido dos seus
direitos e deveres (por exemplo profissionais) perante um órgão de polícia criminal.
Pode ser cumulada com qualquer outra medida, com exceção da prisão preventiva e
obrigação de permanência na habitação.

d) a Suspensão do exercício de funções, de profissões ou de direitos (art. 199.º).

O elenco aqui é de gravidade crescente – crimes de maior gravidade. Exige-se


que possa a proibição ser determinada como pena na eventualidade de o agente ser
condenado. Pode tratar-se de pena de substituição (artigo 43º número 3 do CP) ou pode
tratar-se de uma pena acessória (artigo 66º do CP). Também pode tratar-se de medida
de segurança, ainda que o agente seja imputável – artigo 100º do CP. Em certos crimes,
como abuso sexual de menores, direitos como responsabilidades parentais podem ser
pena acessória específica – artigo 179º do CP. Questionava-se se podia aplicar-se a
titulares de cargos políticos – não pode haver suspensão de exercício de cargo como
medida de coação.

e) a Proibição e Imposição de condutas (art. 200.º).

É um elenco vasto de medidas de coação. Cada uma destas só está acessível se


o juiz concluir que há fortes indícios, ao contrário das antecedentes em que era só
exigível a existência de indícios; tem de ser crime doloso; e crime com pena máxima
superior a 3 anos. As medidas podem ter conteúdo negativo – não contactar, não se
ausentar; ou conteúdo positivo – artigo 200º número 1 alínea f), pode impor-se que o
arguido se sujeite a um tratamento, desde que com o seu consentimento.

f) a Obrigação de Permanência na Habitação (art. 201.º).

Esta medida é uma manifestação mais restritiva de uma proibição de condutas –


não se ausentar de casa. Vale o princípio da subsidiariedade – só pode o juiz aplicar se
considerar as outras medidas insuficientes ou inadequadas no caso concreto. Para além

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disto, é necessário que seja crime doloso, haja fortes indícios e seja crime punível com
pena de prisão superior a 3 anos.
Desde há alguns anos, a obrigação passou a ser mais vezes aplicada, por
permissão das tecnologias. Permite-se o controlo eletrónico através da pulseira
eletrónica. A disciplina destes mecanismos consta da Lei nº 33/2010. Não é só para
tutelar esta medida, também nos casos de violência doméstica, quando haja suspensão
provisória do processo e um dos deveres seja não contactar a vítima, pode ser
controlado com estes mecanismos; também na suspensão da pena de prisão podem as
injunções ser controladas por estes mecanismos. Pode ser cumulada com a proibição de
contactar por qualquer meio ou com determinadas pessoas – artigo 201º número 2.

g) a prisão preventiva (art. 202.º).

Medida de coação mais gravosa e restritiva de direitos que a Constituição quis


que fosse excecional – artigo 28º número 2. Para dar cumprimento a esse mandamento
constitucional, só se aplica se o juiz considerar insuficientes e inadequadas no caso
concreto as medidas anteriores, é preciso haver fortes indícios, ser crime doloso e ser
crime punível com limite máximo superior a 5 anos de pena de prisão (a partir de 2007).
O legislador estabeleceu alguns desvios: se for criminalidade violenta, apesar de
a pena de prisão não ser superior a 5 anos, por exemplo a violência doméstica cabe
neste âmbito – artigo 202º número 1 alínea b). Salvo se se tratar de terrorismo ou de
criminalidade altamente organizada. No artigo 203º, foi incluída outra cautela: se o
arguido violar os deveres das outras medidas de coação ou cometer, durante o processo,
crime da mesma natureza, o legislador permite que seja sujeito a prisão preventiva se o
crime imputado for superior a 3 anos de pena de prisão. Apesar destas cautelas do
legislador, houve uma grande pressão social no sentido de se alargar o catálogo dos
crimes que admitem prisão preventiva, nomeadamente as armas, os crimes de furto em
que o arguido é detido em flagrante delito e foge. Foi-se alargando o catálogo ao sabor
das notícias sensacionalistas, da pressão social, traduzindo uma política criminal à flor
da pele e por isso temos um catálogo no artigo 202º desconexo.

3. Meios de impugnação das medidas de coação.


a) o recurso (art. 219.º).

As medidas de coação estão sujeitas a um princípio de precaridade, o que


significa que podem ser revogadas ou substituídas se desaparecem ou diminuírem as
necessidades cautelares – artigo 212º. No número 4 desde artigo, o legislador introduz
uma cautela para proteger a vítima. Nas medidas de coação mais gravosas (prisão
preventiva e obrigação de permanência na habitação), o legislador prevê ainda um
mecanismo de reexame trimestral – artigo 213º. Para além desse, a lei impõe reexames
quando seja proferido despacho de acusação, em diferentes momentos do processo –
artigo 213º número 1 alínea b).
O arguido pode impugnar o despacho da prisão preventiva. A lei diz que o juiz
oficiosamente examina de 3 em 3 meses a existência dos pressupostos. O prazo para
recorrer é de 30 dias. É notificado o recurso aos sujeitos processuais que podem
responder em 30 dias. Nos termos do artigo 219º número 1, há mais 30 dias para decidir
do recurso. O normal é que passem mais de 3 meses até que o tribunal da Relação

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conheça do recurso e o tribunal já teve de examinar os pressupostos da prisão
preventiva. Entendia-se que havia inutilidade superveniente do recurso interposto
quando o juiz, nos termos do artigo 213º, tivesse proferido novo despacho. Agora a lei
diz, no artigo 213º número 5, que não determina a inutilidade superveniente. O artigo
214º diz quando se extinguem as medidas de coação – com o despacho de não
pronúncia, sentença absolutória, cada uma destas decisões enfraquece os indícios da
prática do crime. Mas pode acontecer que o processo deve prosseguir, podendo ser
aplicada novamente medida de coação.
O artigo 215º estabelece prazos para a duração máxima da prisão preventiva e
no artigo 218º das outras medidas de coação. Quanto à prisão preventiva, estabelecem-
se prazos quanto às fases processuais e depois há causas de extensão dos prazos
normais: crimes mais difíceis de investigar (número 2), especial complexidade do
processo, recurso para o Tribunal Constitucional ou suspensão de processo por questão
prejudicial. Pode alguém estar em prisão preventiva por prazo máximo de 3 anos e 10
meses sem que transite condenação. No artigo 215º número 3, diz-se que os prazos do
número 1 são elevados a 3 anos e 4 meses e somam-se 6 meses se houver recurso. Mas
este prazo ainda pode aumentar mais se o arguido tiver sido condenado em primeira
instância e a decisão for confirmada pelo tribunal de recurso (número 6), pode elevar-
se até metade da pena que for confirmada. Se o tribunal de primeira instância condenar
em 14 anos e o tribunal da Relação condenar em 16 anos, pode o arguido ficar 7 anos
em prisão preventiva.
A obrigação de permanência na habitação tem como prazos de duração máxima
os mesmos da prisão preventiva e somam-se os prazos. Se o arguido está 1 ano em
prisão preventiva e mais 2 anos em obrigação de permanência na habitação, estes dois
prazos somam-se e não pode ser aplicada a este arguido, de novo, uma destas duas
medidas se ultrapassar o prazo máximo. A proibição e imposição de condutas também
está sujeita a estes prazos e as restantes medidas de coação também, mas elevados ao
dobro – artigo 218º. O STJ diz que são apenas os prazos regulares sem aquelas elevações
– Acórdão nº 4/2015.

Quanto à impugnação das medidas de coação, o recurso é a impugnação. A


possibilidade de recurso existe nos termos gerais com a particularidade de se se tratar
de decisão que aplique, substitua ou mantenha medida de coação, o tribunal de recurso
está obrigado a decidir e apreciar o recurso no prazo de 30 dias. De resto valem as regras
gerais do recurso. Se a decisão for que não aplica, revoga a medida de coação, substitui-
a por uma mais benevolente essa regra especial já não vale. Mas pode haver recurso? O
MP pode recorrer do despacho de não pronúncia. O MP só pode recorrer no interesse
do arguido, só in bona partem, mas em 2010 foi eliminado. Agora pode recorrer mesmo
que não seja no interesse do arguido e a esse recurso aplicam-se as regras gerais.

b) o «habeas corpus» (art. 222.º).

Pode sindicar-se a falta de pressupostos formais, a violação de princípios da


necessidade, da adequação, pode ter qualquer fundamento de direito. Mas se se tratar
de qualquer medida privativa da liberdade, a lei só fala em prisão preventiva, mas tem-
se entendido que também vale para a obrigação de permanência na habitação – há a
possibilidade de habeas corpus. É um mecanismo destinado a reagir a privações da

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liberdade ostensivamente ilegais. Fundado em prisão ilegal, nos termos dos artigos 222º
do CPP e 31º da CRP, é decidido no STJ por prazo de 8 dias, é um mecanismo expedito e
os pressupostos são apenas formais, os mais fáceis de verificar, pois não há tempo para
uma apreciação material – são só os pressupostos do artigo 222º número 2: ter sido
ordenada por entidade incompetente, motivada por facto que a lei não permite e
manter-se para além dos prazos fixados. O próprio preso pode pedir o habeas corpus,
mas qualquer cidadão pode fazê-lo no gozo dos seus direitos políticos.
Também pode haver em caso de detenção ilegal (artigo 220º) – pode ser prisão
como pena. Quem aprecia aqui é o juiz de instrução – artigo 220º número 1. Coloca-se
a questão de poder acontecer que o arguido recorra do despacho que aplicou prisão
preventiva e ao mesmo tempo mova petição de habeas corpus com os mesmos
fundamentos em todo ou em parte. Coloca-se a questão de saber se há litispendência –
a lei resolve dizendo, no artigo 219º número 2, que não há litispendência, nem caso
julgado quando o arguido se sirva simultaneamente de ambos, o que reforça a natureza
excecional do habeas corpus. É um mecanismo de reação contra abusos de poder.

II MEDIDAS DE GARANTIA PATRIMONIAL


1. Caraterização geral: finalidades e pressupostos de aplicação.

2. Análise das medidas de garantia patrimonial previstas no CPP.


a) a Caução Económica (art. 227.º).

À caução enquanto medida de coação costuma chamar-se caução carcerária


para distinguir da caução económica – artigo 227º. Esta é uma medida de garantia
patrimonial que se destina a assegurar que, transitada em julgado a decisão, o arguido
tenha capacidade económica e rendimentos suficientes para assegurar o pagamento
das multas das sanções processuais e indemnizações em que seja condenado. Prevendo
ser condenado, pode o arguido dissipar ou ocultar os bens. Pode acontecer que esteja
sujeito a duas cauções.

b) o Arresto Preventivo (art. 228.º).

Temos ainda o arresto preventivo. À semelhança do que acontece no Processo


Civil, para que seja decretada medida de garantia patrimonial, é preciso que haja
periculum in mora e fumus boni iuris. Podem ser requeridos pelo MP quando se trata de
pagamentos ao Estado (multa, custas) ou quando se trate da sua indemnização.
Aproveita ao lesado. O arresto preventivo é subsidiário da caução, primeiro pondera-se
a caução, só depois se determina o arresto e só aí não há necessidade de demonstrar
periculum in mora – artigos 227º e 228º.

Capítulo 2 A TRAMITAÇÃO DO PROCESSO COMUM


1. A fase de inquérito.
a) a aquisição da notitia criminis e as medidas cautelares e de polícia (em particular a
detenção).

Fase do inquérito: dirigida pelo Ministério Público, fase destinada à recolha da


prova em ordem a sustentar a decisão de sujeição ou não do agente aos factos de

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julgamento – artigo 262º nº 1 do CPP. “Em ordem à decisão sobre a acusação”: é uma
fase de recolha de provas em ordem a sustentar esta decisão. Não é em regra esta fase
destinada a recolher provas para usarem em julgamento, destinam-se apenas a
sustentar a decisão de acusar ou não acusar. Em princípio, o que o arguido diz na fase
de inquérito não aproveita para o julgamento. Mas o reconhecimento é um exemplo de
prova que fica a valer para o julgamento. Podem ler-se as declarações e aproveitá-las
(artigo 356º), no caso de ter falecido, por exemplo. O arguido pode remeter-se ao
silêncio no julgamento, mas desde 2013, pode fazê-lo desde que estejam preenchidos
certos requisitos, caso contrário aproveitam-se as declarações no inquérito.

Como é que se inicia o processo? Com a notícia do crime, porque pode haver
crime sem notícia (crime oculto e não há julgamento) e notícia sem crime (notícia
infundada que dá lugar a inquérito, só não dá uma denúncia anónima manifestamente
infundada). A notícia de crime pode ser obtida através de queixa (denúncia feita pelo
próprio ofendido), através de conhecimento próprio, notícias televisivas, nos jornais,
biografias, através de transmissão pelos órgãos de polícia criminal (no prazo máximo de
10 dias). A denúncia é facultativa para qualquer pessoa e é obrigatória para funcionários
públicos dentro das suas funções e pela polícia. A queixa é forma particular de denúncia,
é feita pelo ofendido. A queixa tem um prazo de 6 meses e a denúncia pode ser feita a
todo o tempo enquanto não prescrever o procedimento criminal. A denúncia é uma
declaração de ciência, a queixa é uma declaração de ciência mais uma declaração de
vontade.

b) finalidades do inquérito.
c) direção do inquérito. O problema da inconstitucionalidade do art. 262.º, n.º 2, do
CPP.
d) conteúdo do inquérito: os atos de inquérito (art. 267.º e ss.).
e) encerramento do inquérito. Arquivamento. Reabertura. Acusação.
f) modos de fiscalização: intervenção hierárquica e requerimento para abertura da
instrução.

2. A Fase da instrução.
a) finalidades da instrução. A proibição de alteração substancial (arts. 303.º e 309.º).

Fase da instrução: dirigida pelo juiz de instrução criminal. Fase facultativa ou


eventual. É preciso que haja requerimento de quem não tenha concordado com a
decisão do MP – fase de sindicância da decisão do MP. Mas esta decisão é de tal forma
sensível que pode ser sindicada. O juiz vai apreciar da bondade da decisão – artigo 286º
nº 1.

b) direção da instrução.
c) conteúdo da instrução: atos de instrução e debate instrutório.
d) recurso da decisão instrutória (art. 310.º).

3. A Fase de julgamento.
a) atos preliminares: saneamento do processo, marcação da audiência, contestação.

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Fase do julgamento: fase decisiva do processo. Compete a um tribunal singular,
coletivo ou de júri. O singular é composto por um só juiz. O coletivo por três juízes. O
tribunal de júri é composto por cidadãos. O nosso júri é particular, é composto pelos 3
juízes (de carreira) do tribunal coletivo, mais 4 jurados (4 efetivos e 4 suplentes). Um
dos juízes é o relator, faz o acórdão. O tribunal de júri decide de todas as questões: da
culpabilidade e da medida da pena e da sua natureza (suspensa ou não, penas de
substituição). Decidem sobre todas as matérias, têm de fundamentar e decide por
maioria. Os crimes mais graves são decididos pelo tribunal coletivo e, se tiver havido
requerimento, pelo tribunal de júri. Os menos graves serão decididos pelo juiz singular.
Tendencialmente são punidos os crimes com pena de prisão até 5 anos (limite máximo
da moldura). Os de tribunal coletivo superiores a 5 anos e do tribunal de júri superior a
8 anos.

b) audiência de julgamento. Os princípios gerais da audiência em processo penal:


publicidade, oralidade, contraditório, imediação. A produção de prova (arts. 341.º e
ss.) e a documentação da prova. O problema da falta do arguido à audiência de
julgamento. O modelo da «césure» mitigada.
c) a decisão. A obrigação de fundamentação.

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