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Direito Penal I

Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

Direito Penal I

Aulas Teóricas

Prof. Dr. António Caeiro


Ano Letivo 2022/2023

Marisa Branco 1
Direito Penal I

Programa
Parte I – Questões fundamentais

Título I. O DP e a sua ciência no sistema jurídico

1.º Cap. O DP em sentido formal


2.º Cap. A localização do DP no sistema jurídico
3.º Cap. A ciência conjunta do DP

Título II. A função do DP

4.º Cap. Finalidades e legitimação da pena criminal


5.º Cap. Fundamento, sentido e finalidades da medida de segurança criminal
6.º Cap. O comportamento criminal e a sua definição
7.º Cap. Os limites do DP

Título III. A lei penal e a sua aplicação

8.º Cap. O princípio da legalidade da intervenção penal


9.º Cap. O âmbito de validade temporal da lei penal
10.º Cap. O âmbito de aplicabilidade real (eficácia) da lei penal

Parte II - A doutrina geral do crime

Título I. A construção da doutrina do crime

11.º Cap. Questões fundamentais

Título II. Os factos puníveis dolosos de acção

Subtítulo I. O tipo de ilícito

Secção I. Os tipos incriminadores

12.º Cap. O tipo objectivo de ilícito


13.º Cap. A imputação objectiva do resultado à acção
14.º Cap. O tipo subjectivo de ilícito

Bibliografia
DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal — Parte Geral, Tomo I. Questões Fundamentais. A
Doutrina Geral do Crime, 3.ª ed. revista e ampliada (com a colaboração de MJ Antunes, S Aires de
Sousa, N Brandão e S Fidalgo), Gestlegal, 2019.

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“ Em Portugal prende-se pouco.”

Conclusão: Em relação aos países do nosso âmbito cultural, Portugal utiliza mais intensamente a
pena de prisão e as penas são mais longas, apesar de não existir pena de prisão perpétua.

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Noções introdutórias

À primeira vista, parece que o Direito Penal é um ramo do Direito que serve para punir quem viola
as normas. Ora, esta visão de um direito essencialmente repressivo não será a melhor caracterização
do Direito Penal.

A história do Direito Penal é precisamente o contrário: é a limitação da força, ou seja, é o


estabelecimento de limites/regras para o exercício da força.

O Direito Penal é um direito de liberdade, ou seja, traduz-se numa visão liberal do Estado. Um dos
princípios fundamentais da Constituição é o princípio liberal.

Nota: É curioso pensar que, entre 2008 e 2018, há esta redução muito grande da criminalidade
violenta e, ao mesmo tempo, a população prisional aumenta 30%.

Título I. O DP e a sua ciência no sistema jurídico

1. O direito penal em sentido formal


Direito criminal ou direito penal?

Como o nome indica, o Direito Penal é o direito das penas. Porém, há quem diga Direito Criminal
em vez de Direito Penal. A disciplina, inclusive, ao longo da história, alternou entre as duas
designações. O Direito Criminal (direito dos crimes) põe mais acento tónico no facto do crime,
enquanto o Direito Penal (direito das penas) põe o acento na consequência jurídica.

Acontece que nenhuma destas expressões são totalmente corretas:

- Por um lado, há alguns factos com relevância criminal que não são verdadeiramente crimes (não
tendo o designativo formal de crimes): os factos cometidos por inimputáveis são factos com
relevância criminal – são tratados pelo DP, tendo um processamento próprio dentro do direito
criminal –, mas não são verdadeiramente crimes. Falta-lhes um elemento fundamental para
poderem ser um crime: a culpa. Por esta razão, não se poderá dizer que o DP só trata de crimes,
pois também trata de alguns factos que têm alguns elementos dos crimes, mas não todos. 


- Por outro lado, também não é inteiramente correta a designação de Direito Penal, uma vez que o
DP não trata apenas da aplicação de penas. O DP também trata da aplicação de medidas de
segurança, em princípio, a agentes inimputáveis – se forem privativas da liberdade
(internamento) – ou a imputáveis perigosos – se não forem de internamento. 


Como nenhuma delas é uma expressão totalmente correta e sendo que não há uma grande
diferenciação entre as mesmas, optar-se-á por utilizar “Direito Penal” (o Dr. prefere), pela simples
razão de que uma das linhas metodológicas fundamentais da disciplina é o pensamento a partir do
resultado/consequência. É o pensamento a partir de uma visão/intencionalidade teleológica.

Como todo o Direito Penal está construído com vista a um efeito preciso – que é decidir sobre a
aplicação de uma pena (ou de uma medida de segurança) –, um pensamento a partir do resultado/da
consequência jurídica privilegiará também as penas. Assim, dir-se-á Direito Penal (direito das
penas) em vez de Direito Criminal (direito dos crimes).
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De facto, as penas são um instrumento exclusivo do Direito Penal. Só o Direito Penal é que
aplica penas. O Direito Penal é o direito que trata das penas e, por essa razão, deve ser designado
dessa forma.

Mas: Jurisprudência do TEDH: os “critérios Engel” (1976) e os seus desenvolvimentos;


objectivo específico: extensão da protecção dos direitos humanos:

A frase “as penas são um exclusivo do DP” tem de ser entendida cum grano salis, devido à
abordagem do TEDH (Tribunal Europeu dos Direitos Humanos; Tribunal de Estrasburgo).

Algumas das normas da CEDH dizem respeito às garantias relativas ao DP – portanto, são normas
que trazem os conceitos de matéria penal, seja em relação ao processo seja em relação às próprias
sanções. P.e., são proibidas a tortura e as penas degradantes ou desumanas. Portanto, quando se trata
de um processo criminal, o arguido tem direito a certas garantias, de acordo com a Convenção.

O TEDH tem de saber se certo processo, que ocorreu num determinado país, tem (ou não) a
natureza criminal para efeitos da aplicação das garantias. Ora, desde 1976, com o caso Engel, o
TEDH afirma que, para se saber se um procedimento tem (ou não) caráter penal – e, portanto, se
está sujeito às garantias que a Convenção dá aos procedimentos de caráter criminal –, tem de se
olhar primeiro à forma como o Estado em causa qualifica esse procedimento:

- Se o Estado em causa qualificar esse procedimento como penal, a questão está resolvida: é um
procedimento penal e, portanto, tem de respeitar as garantias previstas pela CEDH (v.g., direito a
advogado, direito ao silêncio, etc.).

Porém, pode acontecer que os Estados façam uma espécie de burla de etiquetas, não chamando
penal a certos procedimentos, precisamente para se escusarem a garantir esses direitos. Então, o
TEDH tem de verificar, num juízo autónomo, usando certos critérios, se, mesmo quando os Estados
dizem que x procedimento não é penal, mas administrativo ou disciplinar, se se trata (ou não) de um
procedimento penal para efeitos da Convenção.

Para tal, o TEDH desenvolveu três critérios para decidir se certo procedimento tem (ou não) uma
natureza penal, que têm a ver, sobretudo, com as finalidades das sanções, com a forma como os
outros Estados dentro do Conselho da Europa encaram essas violações e com a gravidade das
sanções.

O caso Engel de 1976 foi o caso de um soldado holandês e uns colegas que tinham sido
condenados num procedimento disciplinar de penas variadas, sendo uma delas o encerramento,
durante um certo número de dias, numa prisão disciplinar. O tribunal entendeu que a sanção atingia
os direitos de forma suficientemente grave para se aplicarem as garantias da Convenção.

Os Estados não têm de mudar o seu direito interno graças a isto (p.e., a Holanda pode continuar
calmamente a chamar aqueles procedimentos de disciplinares). Têm é de aplicar, nesses
procedimentos, as garantias da CEDH que estão previstas para o processo penal. Estas definições
do TEDH só importam para estabelecer o âmbito da proteção dos direitos humanos, não mexendo
com a qualificação interna/nacional das sanções.

Em suma, isto é só uma reserva para quando se afirma que só o Direito Penal é que aplica penas:
pode haver sanções que o direito nacional não qualifica como penas, mas que devem beneficiar das
mesmas garantias que as penas.

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O conteúdo do direito penal:

Considerando o conceito amplo do Direito Penal, encontram-se três ramos fundamentais:


• Direito Penal substantivo/material (alvo de estudo);


• Direito Penal adjetivo/processual (processo penal);
• Direito Penal executivo (direito da execução das penas).

A particular ligação entre o direito penal e direito processual penal (≠ Direito civil)

Ao contrário do que acontece em outros ramos do Direito, no Direito Penal, existe uma ligação
muito próxima entre o próprio Direito Penal e o Direito Processual Penal, porque o DP só vive
dentro do processo penal. O DP carece absolutamente de um processo penal. Só se pode dizer que
se está perante um crime em sentido jurídico quando se tem uma sentença de um tribunal
transitado em julgado a condenar alguém por esse facto.

Se se comparar isto, p.e., com o Direito Civil, vê-se que é completamente diferente. Todos os atos
sociais do quotidiano humano são regulados pelo Direito Civil e, com certeza, muitos nunca
entraram num tribunal para uma ação de natureza cível. O tribunal, num Direito Civil, atende
apenas a patologias. O processo penal é o contrário: não é uma intervenção patológica, mas
fisiológica. Só dentro do processo penal é que o DP pode verdadeiramente funcionar.

O problema da classificação de certos institutos como substantivos ou processuais; Falso


problema? O papel do Direito Constitucional:

Há uma outra questão que se liga a esta relação entre o direito substantivo (direito penal
propriamente dito) e o processo penal: por vezes, não é fácil qualificar determinados institutos
como sendo de direito material ou de direito processual.

Talvez a questão mais discutida a este respeito (tendo sido muito recentemente discutida pelo TC
devido às leis que suspenderam os prazos de prescrição em virtude da pandemia) é precisamente a
prescrição do procedimento – i.e., saber se a prescrição do procedimento criminal tem um caráter
material/substantivo, estando sujeita a certas regras, ou se tem um caráter processual. Há opiniões
em vários sentidos, embora hoje se crer ser dominante a posição da prescrição como pertencente
ao direito substantivo (pelo menos, enquanto garantia).

Porém, na realidade, não se sabe se existe aqui verdadeiramente um problema, porque o regime da
prescrição ou de qualquer outro instituto não deve deduzir-se da sua classificação como material ou
processual – isso é uma falsa questão. No tempo do positivismo conceitualista é que se
diferenciavam os regimes consoante se tratasse de direito material ou processual. Hoje, as coisas já
não funcionam desta forma.

O que importa é ver se, perante aquele particular instituto, se devem (ou não) aplicar as garantias
que estão previstas pela lei ou pela Constituição. Portanto, não é um problema que se prende com a
natureza (substantiva ou processual), mas de saber se se pode aplicar (ou não), de acordo com a
Constituição, certo regime àquele instituto. Nesta medida, não parece que esta discussão sobre a
classificação de certos institutos como substantivos ou processuais deva sequer ser decisiva para se
alcançar a resposta sobre a aplicação de um certo regime.

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Direito Penal I

A parte geral do direito penal e as suas componentes

• Significado da Parte Geral: abstração e racionalização; função da PE

• PG I (arts. 1º a 39º): princípios gerais, fundamentos, limites, âmbito de vigência + construção do


facto punível (doutrina geral do crime)

• PG II (arts. 41o a 130o): reações criminais (DP III)

Dentro do Direito Penal material/substantivo, existem duas partes: a Parte Geral e a Parte
Especial (este ano, estudar-se-á apenas a Parte Geral, recorrendo sempre a exemplos descritos na
Parte Especial).

A Parte Geral tem duas “sub-partes”: a parte relativa aos princípios gerais e à construção do crime
(arts. 1º a 39º) e a parte relativa às reações criminais (arts. 41º a 130º).

Na Parte Geral:

• Enunciam-se vários princípios fundamentais do Direito Penal (p.e., o princípio da legalidade); 


• Estabelece-se o âmbito de vigência das leis penais – tanto o âmbito temporal (como são os
conflitos de leis no tempo) como o âmbito espacial (a que factos se aplica a lei portuguesa); 


• Surgem uma série de princípios fundamentais para a aplicação das penas, como o princípio da
responsabilidade pessoal e o princípio da responsabilidade das pessoas jurídicas ou das pessoas
coletivas; 


• Encontram-se várias normas sobre a construção do facto punível. O conceito jurídico de crime
tem vários elementos/patamares. Nestes artigos do Código Penal, encontram-se os materiais
necessários para estabelecer esses vários elementos que estão presentes em qualquer crime – todo
o crime é um facto típico, ilícito, culposo e punível. 


No fundo, o significado da Parte Geral é um enorme e admirável esforço de abstração e de


racionalização a partir de casos concretos. A Parte Geral, que é, sobretudo, de raiz continental –
por contraposição ao direito anglo-americano, que repousa sobre o precedente –, representa um
esforço de abstração. Perante todos os crimes que foram existindo, o que se descobriu foi que todos
eles tinham certas caraterísticas comuns: todos eles eram típicos, ilícitos, culposos e puníveis. Só
assim eram considerados crimes. 


Toda a construção consiste, portanto, em abstrações/racionalizações a partir de casos concretos,


o que mostra que a Parte Geral não é assim tão diferente do sistema de precedentes anglo-americano
– é apenas uma maneira diferente de ordenar as coisas. Também ela é naturalmente construída a
partir de casos (da experiência real), mas, à boa maneira alemã, sempre com um esforço de
abstração, racionalização e simplificação, para se poder chegar a conceitos cada vez mais
depurados que permitam agilizar rapidamente o tratamento dos casos. 


A Parte Especial, prevista no Código Penal a partir do art. 131º, consiste na descrição dos vários
crimes em concreto, como o nome indica. Está organizada de uma certa forma, como é percetível a
partir do índice, sendo essa ordem/organização baseada na importância dos bens jurídicos. Todos os
crimes estão estruturados na Parte Especial numa arquitetura assente nos bens jurídicos – estão
descritos e enucleados à volta dos vários bens jurídicos. 


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Direito Penal I

O artigo 40º como pivô/conexão

Entre o art. 41º e o art. 130º encontram-se as reações criminais (as penas, as medidas de segurança,
etc). O artigo 40o serve de pivô, na ótica do Dr. Figueiredo Dias. Na verdade, é um artigo que serve
de conexão entre a 1a parte da Parte Geral e a 2a parte da Parte Geral, uma vez que é o artigo
que disciplina os fins das penas. Isso reflete-se também necessariamente na 1a parte da Parte Geral,
porque não se pode pensar nos pressupostos da aplicação das penas sem saber qual a função das
penas. Só perante a função das penas é que se pode entender, de facto, os pressupostos da sua
respetiva aplicação. 


Aquando da Parte Geral e da Parte Especial, fala-se sobretudo do Código Penal. Não obstante,
existem outros diplomas fora do Código Penal: a chamada legislação penal avulsa, que contém
crimes e normas que, por vezes, se inserem na Parte Geral e, naturalmente, outras que fazem parte
da Parte Especial.

Por exemplo, no Decreto-Lei 28/84 (crimes contra a economia) existem algumas normas
particulares em relação a aspetos da Parte Geral – p.e., estabelece-se aí a responsabilidade das
pessoas jurídicas que, em princípio, é uma responsabilidade excecional (na Parte Geral do Código
Penal, ela é vista como excecional; no Decreto-Lei 28/84, sobretudo quando ele surgiu – na altura,
ainda não havia responsabilidade das pessoas coletivas no Código Penal –, era uma norma de Parte
Geral incluída num diploma avulso).

Nota: vamos tratar essencialmente do Código Penal e não das normas que se encontram em
diplomas avulsos.

2. A localização do DP no sistema jurídico


A natureza tradicionalmente estatal do direito penal e os novos perfis “transnacionais”

O Direito Penal é, essencialmente, um ramo de direito interno, ou seja, é produzido por instâncias
nacionais para ser aplicado por tribunais nacionais. Porém, a verdade é que, nos últimos 70/80 anos,
despontaram novos perfis transnacionais do Direito Penal:

• deveres de punir impostos pelo DIP (crimes de guerra, genocídio, etc.); deveres de não punir;
• normas de DIP imediatamente aplicáveis (arts. 8º e 29º/2 CRP);
• tribunais internacionais penais;
• integração europeia: incidência negativa; incidência positiva (jurisdição sui generis);
• intensificação da cooperação (judiciária e policial) internacional.

Uma destas novas realidades que transnacionalizam o Direito Penal e o projetam para fora da figura
do Estado são os deveres de punir alguns crimes impostos pelo próprio Direito Internacional
Público, o que dá corpo ao Direito Internacional Penal (um ramo de Direito Internacional Público
sobre matéria penal que prevê normas de aplicação imediata, direta e sem necessidade de
consagração nos ordenamentos internos em relação aos chamados crimina iuris gentium – crimes
contra o direito das gentes/Direito Internacional).

Não existe um catálogo certo e fechado quanto a estes crimes. Os autores identificam entre 4/5
categorias e 32 categorias de crimes – é um leque variável. Não obstante, os crimes que são
seguramente crimes de Direito Internacional são o genocídio, os crimes de guerra, os crimes

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contra a humanidade e o crime de agressão – também chamados de core crimes (crimes de núcleo
duro), seguramente punidos pelo Direito Internacional Penal.

Contudo, há outros crimes que, provavelmente, também são considerados contra o Direito
Internacional. Por exemplo, o crime de tortura, o crime de apartheid e talvez o crime de pirataria.
Existem várias formas criminais que são puníveis pelo Direito Internacional.

Grande parte destes crimes internacionais (senão todos) estão codificados em convenções. Porém, o
ponto essencial destes crimes é que são crimes gerados pelo costume internacional. Estes
crimes são puníveis pelo costume internacional, sendo crimes de natureza consuetudinária. A
consequência disto é que estes factos são considerados crimes onde quer que sejam praticados, seja
qual for a nacionalidade do agente e seja qual for a nacionalidade das vítimas. São crimes
produzidos através do costume internacional e o costume vincula internacionalmente os Estados,
sendo que, para um Estado ter o dever de punir esses crimes, não precisa de ter ratificado qualquer
convenção onde se obrigue a isso.

Estes muito poucos crimes devem ser puníveis e, para efeitos dessa punição, há duas formas:

• Um modelo descentralizado, em que cada Estado toma em mãos a defesa do Direito


Internacional e, portanto, cada Estado tem o dever de, encontrando suspeitos destes crimes, puni-
los;

• Através de tribunais internacionais.

Os tribunais internacionais traduzem-se numa realidade que começou, verdadeiramente, no fim


da 2a Guerra Mundial, tendo já havido umas tentativas anteriores no fim da 1a Guerra. A primeira
verdadeira constituição de um tribunal internacional como se entende hoje deu-se com o Tribunal de
Nuremberga, no fim da 2a Guerra Mundial. O Tribunal de Nuremberga foi um tribunal de
vencedores contra vencidos, mas o que é essencial na experiência desse tribunal é que, pela
primeira vez, ele afirmou a responsabilidade individual daquelas concretas pessoas
diretamente perante o direito nacional.

Não é preciso que a lei interna considere esses factos como crimes, bastando que eles sejam
praticados para constituírem crimes em face do Direito Internacional. O Direito Internacional pune
direta e imediatamente esses crimes. Isto significa que cada um dos nós é também um possível
sujeito autor de um crime internacional. Todos têm deveres pessoais de respeito pelo Direito
Internacional, podendo ser-se processado se se violar esses deveres.

Seguidamente aos tribunais do fim da 2a Guerra, ocorreu a Guerra Fria, marcada pela divisão do
mundo em dois grandes blocos. Isso impossibilitou o estabelecimento de novos tribunais
internacionais, uma vez que eles são sempre uma criação política. Durante quase 50 anos, não
houve tribunais internacionais e, como é óbvio, houve muitos crimes contra o Direito Internacional
depois da 2a Guerra Mundial (p.e., as guerras, invasões e crimes de guerra que se praticaram na
Invasão Soviética). Há, portanto, várias instâncias de crimes contra a humanidade e crimes de
guerra que não foram objeto de sanções por parte de tribunais internacionais, precisamente por não
ser possível encontrar um consenso que permitisse a criação desses tribunais.

Só depois da Queda do Muro, no fim da Guerra Fria (1989), é que volta a aparecer um tribunal
internacional penal. O primeiro tribunal internacional a ser constituído a seguir a isso foi criado pelo
Conselho de Segurança das Nações Unidas, com a aprovação (pelo menos, abstenção não veto)
da União Soviética (já Rússia) e da China. Seguiu-se, em 1994, o tribunal internacional para o

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Ruanda. Outros tribunais ad hoc seguiram-se (para Timor-Leste, para Serra Leoa, etc) – todos eles
com formatos ligeiramente diferentes, mas criados sobretudo sobre os auspícios das Nações Unidas.

Até que, no fim dos anos 90, se criou o Tribunal Penal Internacional – Estatuto de Roma do
Tribunal Penal Internacional –, que está em funções há 20 anos e que tem tido vários casos. É já
um tribunal permanente, criado por um conjunto de Estados (e não pelas Nações Unidas) através de
um tratado (o Estatuto de Roma não é mais do que uma convenção). A competência deste Tribunal
Penal Internacional, sediado em Haia, na Holanda, é precisamente julgar os responsáveis pelos
crimes mais graves contra o Direito Internacional (genocídio, crimes contra a humanidade, crimes
de guerra e crimes de agressão).

Em suma, esta é a experiência do Direito Internacional Penal e da sua aplicação centralizada em


tribunais internacionais ou descentralizada através dos Estados.

As normas de Direito Internacional são imediatamente aplicáveis, não sendo preciso norma
interna. Essa foi também a solução adotada pelo legislador português (conjugação dos arts. 8º e 29º/
2 da CRP). Permite-se a aplicação de normas internacionais que proíbam e que punam certos factos
como crimes contra o Direito Internacional.

Há outros perfis transnacionais que implicam com o direito de punir, designadamente, os deveres
de não punir. Antigamente, os Estados tinham a maior liberdade em decidir aquilo que puniam e
aquilo que não puniam – era uma escolha totalmente discricionária por parte dos Estados.
Atualmente, os Estados (não só na Europa) são parte em vários tratados e convenções internacionais
onde se consagram direitos e em que os Estados se comprometem a respeitá-los, o que significa que
estão impedidos de criminalizar condutas que sejam a expressão ou desenvolvimento desses
direitos.

Um bom exemplo disso é o do TEDH entender que o Estado português viola o seu compromisso de
respeitar a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa ao punir como crime de difamação
certas notícias. De acordo com o TEDH, os tribunais portugueses estão a ir para lá daquilo que lhes
é permitido ao punirem esses factos como crime. Outro exemplo é de que não se pode proibir
criminalmente a pertença a uma determinada religião porque isso é uma violação da liberdade de
religião.

Um outro perfil que interessa muito, enquanto comunidade portuguesa, do direito penal não estatal/
transnacional é o Direito Penal que vem da integração na União Europeia. Aqui, trata-se de uma
experiência totalmente diferente do abordado até agora, uma vez que o fenómeno da integração
europeia traz consequências variadas para o ordenamento jurídico dos vários países. Não só para o
Direito Penal, naturalmente, mas também para ele. Um dos princípios fundamentais do DUE é o
princípio do primado do direito europeu, que se traduz na primazia da aplicação do direito
europeu em relação aos ordenamentos nacionais, não se tratando de uma superioridade, mas de uma
preferência aplicativa (como dizem os alemães).

Logo em 1972/73 pôs-se o primeiro caso ao Tribunal de Justiça, na altura das Comunidades
Europeias, onde Itália estava a ser acusada de não respeitar o direito europeu e defendia-se dizendo
que aquele regulamento estava a afastar uma norma penal italiana e que o Direito Penal era um
direito que está na soberania dos Estados, não podendo as Comunidades invadir a soberania penal
dos Estados (caso SAIL Late).

Neste caso, o Tribunal de Justiça afirmou, pela primeira vez, que não interessa a natureza do ramo
do direito interno afetada pelo direito europeu. Se houver uma disposição de direito interno que
conflitua com uma disposição de direito europeu, essa disposição de direito interno deve ser
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desaplicada e deve aplicar-se o direito europeu. O TJUE mostrou, então, pela primeira vez, a
incidência negativa do direito europeu sobre os ordenamentos penais dos Estados membros. O
direito europeu tem, portanto, esta virtualidade de afastar normas penais internas. Esta incidência é
negativa não no sentido valorativo, mas sim por afastar a norma penal interna.

Por outro lado, existem certos casos de incidência positiva do direito europeu sobre o direito
penal. P.e., se uma norma penal interna disser “quem pescar sardinhas abaixo da dimensão
legalmente definida é punido com pena de x” e se a competência para a definição dessa dimensão é
da UE, existirá, provavelmente, um regulamento que define a dimensão relevante e essa norma
europeia como que compõe e integra a norma penal portuguesa, dando- lhe corpo.

Para além destes casos, que são de dimensões mais tradicionais, existe, hoje (essencialmente desde
o Tratado de Amesterdão), todo um outro universo de intervenção da UE em matéria penal,
tendo-se produzido várias decisões-quadro e várias diretivas (depois do Tratado de Lisboa) sobre
criminalização de certos comportamentos, onde a UE impõe aos Estados que criminalizem certas
condutas através de diretivas. A União passou a ter, a partir de certo momento, um verdadeiro
poder penal. Não tem o poder de emanar normas num código diretamente aplicáveis, mas tem o
poder de vincular os Estados através de diretivas a criminalizar certas condutas.

Um outro perfil transnacional do DP é a cada vez maior intensificação da cooperação entre os


órgãos de aplicação do Direito Penal, sobretudo a cooperação judiciária – através da extradição,
da entrega de pessoas, da decisão europeia de investigação, do regulamento sobre o confisco, entre
outros instrumentos de nível mundial e de nível regional na UE que permitem a cooperação das
várias entidades.

No âmbito europeu, tem-se um instrumento muito importante: o mandado de detenção europeu,


que veio substituir a extradição entre os países da UE.

Direito Penal como ramo de direito público ius imperii; sujeição e restrição de direitos

Para além de ser um ramo de direito interno, o Direito Penal é também um ramo de direito
público, ou seja, é um ramo onde o Estado e o particular estão numa relação de sujeição/
supra-infra-ordenação. O Estado tem o po der de imperium sobre o particular e, nessa medida,
trata-se de uma relação de direito público que consiste, essencialmente, numa restrição de direitos.
O Direito Penal é sempre uma restrição de direitos.

Contudo, em tempos mais recentes e, particularmente, nas duas últimas décadas, tem despontado
um novo perfil da justiça penal: a vítima. O Direito Penal deixou de ser, como era na tradição
napoleónica, um assunto exclusivamente entre o Estado e o presuntivo/alegado criminoso, sendo
que os problemas das vítimas seriam problemas do direito civil e deveriam ser tratados no âmbito
civil através de indemnizações, reparações, etc.

Hoje, a vítima aparece como sujeito de direito próprio no próprio Direito Penal e no processo
penal – como alguém que tem de ter um locus standi (uma posição no âmbito penal e no âmbito
processual penal). Isto levou a incluir a figura do assistente (além de já a termos há muitos anos) no
processo penal. Hoje, além do assistente, tem-se a figura da vítima, por imposição de diretivas da
UE. Há uma espécie de duplicação de estatutos entre o assistente e a vítima. Isto é, de facto, algo
que modifica aquela relação exclusivamente bilateral entre o Estado e o agressor. Há um terceiro
polo que vem, de alguma maneira, alterar os dados do jogo, o que se reflete em muitos institutos,
sobretudo em institutos de natureza processual.

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Autonomia e dependência do Direito Penal perante outros ramos do direito

A relação privilegiada com o Direito Constitucional:As restrições de Direitos fundamentais:

A relação mais próxima e talvez mais importante do Direito Penal é com o Direito Constitucional.
As normas penais implicam sempre uma restrição de direitos. Isto pode acontecer por duas
razões diferentes:

• Desde logo, a razão mais evidente e comum a todos os crimes é a de que há uma restrição de
direitos cada vez que se aplica uma pena. Uma norma penal é restritiva de direitos porque
culmina em penas e as penas não são mais do que restrições de direitos. Todas as penas são
restrições de direitos fundamentais e, portanto, são sempre matéria de interesse para o direito
constitucional.
• Para além desses casos, existem outros onde a restrição de direitos pode surgir logo na própria
proibição. A própria proibição pode implicar uma restrição de um direito que existia até certo
momento e que, depois, deixa de existir (p.e., a generalidade dos fenómenos de
neocriminalização), passando a considerar-se um crime. Isto não se aplica a todos os crimes. A
partir do momento em que se criminalizaram os maus-tratos a animais, essa conduta passou a
constituir crime, havendo uma restrição do direito de propriedade.

Destes dois exemplos decorre logo a particular relação do Direito Penal com o Direito
Constitucional. Em cada momento, tem de se saber se existe aqui uma restrição de direitos e se
essa restrição de direitos cumpre os requisitos gerais que a Constituição impõe para a restrição de
direitos. Cada norma penal está sobre a vigilância da Constituição.

Isto explica o porquê de grande parte das decisões do TC serem sobre matéria penal e processual
penal. De facto, o DP é o ramo do direito que prevê restrições de direitos fundamentais mais graves
em tempo de paz – daí que o TC seja frequentemente chamado a pronunciar-se sobre a validade
constitucional de certa norma penal, sendo que o faz, muitas vezes, declarando a norma como
inconstitucional.

Um exemplo disto são as tentativas de criminalização do enriquecimento ilícito. O TC, por duas
vezes, afirmou que as normas apresentadas não passavam o crivo da CRP, tratando-se de normas
que não têm um bem jurídico, normas que violam a presunção de inocência ou normas que violam o
princípio da necessidade de restrição de direitos (este princípio está incluído no princípio da
proporcionalidade, no art. 18o CRP).

A pretensa unidade da ilicitude (binding e beling): O Direito penal como mera cominação de
sanções; crítica:

Em relação ao Direito Civil, de acordo com uma doutrina mais antiga (do séc. XIX), destacando-
se os autores alemães Binding e Beling (positivismo), o ordenamento jurídico seria constituído por
um único corpo normativo. Cada comportamento seria lícito ou ilícito para o ordenamento
jurídico em geral, o que significa que o Direito Penal e o Direito Civil seriam participantes desse
mesmo ordenamento geral. O Direito Penal e o Direito Civil teriam os mesmos conceitos de
ilicitude, mas o Direito Penal autonomizava-se por prever sanções específicas (as penas).

A consequência deste entendimento é que o Direito Penal, na verdade, não teria uma conceção
autónoma e específica da ilicitude, limitando-se a culminar e aplicar sanções penais para
comportamentos que seriam geralmente ilícitos.

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Direito Penal I

Esta visão mudou bastante durante o século XX porque se começou a entender (e com razão)
que, na realidade, o Direito Penal tem métodos e instrumentos específicos de criação da sua
ilicitude e é por isso que nem todas as condutas são crime. Só apenas algumas condutas são
selecionadas como crime, o que corresponde a critérios/juízos próprios do Direito Penal. Não é
apenas um mero reflexo de uma valoração geral, comum a todo o ordenamento jurídico.

A doutrina claramente dominante vê o Direito Penal como um ramo autónomo em relação ao


Direito Civil, sendo que o primeiro cria a sua própria ilicitude. Isto constata-se, p.e., na punição da
tentativa de um crime – esta só é sancionável no Direito Penal; no Direito Civil, não tem qualquer
importância. Se alguém tentar matar outra pessoa, não tem qualquer sanção ao nível do Direito
Civil porque não tem de pagar nenhuma indemnização, mas comete um crime. Este exemplo
demonstra a relevância autónoma das valorações do Direito Penal.

Por isto mesmo, esta autonomia do Direito Penal leva a que, por vezes, seja necessário
reconfigurar, dentro do mesmo, certos conceitos que vêm de outros ramos do Direito. Por vezes, é
necessário que o Direito Penal construa, de uma determinada forma, conceitos que, originariamente,
vêm de outro ramo de Direito:

• Por exemplo, o conceito de pessoa parece um conceito unívoco e universal, mas, no Direito
Penal, pode ser ligeiramente diferente do conceito no Direito Civil. A pessoa, no Direito Civil,
é considerada pessoa quando nasce com vida e, no Direito Penal, logo no momento em que se
inicia o trabalho de parto, já existe uma pessoa para efeitos do crime de homicídio. Se se
matar o nascituro quando a mãe já está em trabalho de parto, tal não é considerado aborto,
mas sim um crime de homicídio. 


• O mesmo se diga do conceito de insolvência, que tem um certo significado no Direito


Privado e que, no Direito Penal, pode ter de sofrer alguns afeiçoamentos/adaptações quando
se trate, p.e., de devedores que não são comerciantes/empresários (que estão sujeitos ao
mesmo regime de empresários no Direito Civil, mas que, por razões específicas do Direito
Penal, talvez não seja justo sujeitar ao mesmo regime). 


Em suma, por vezes, existem razões específicas para que o Direito Penal interprete ou reconstrua de
outra maneira certos conceitos que existem em outros ramos do Direito. 


3. A Ciência conjunta do Direito Penal


Até ao séc. XIX: tratamento puramente jurídico (normativo, dogmático) do fenómeno
criminal

Até ao século XIX, o tratamento oficial pelas instâncias formais dos crimes era um tratamento
puramente normativo. Existiam crimes, leis e, na altura, ordenações (em Portugal e no Brasil). Os
profissionais de justiça tratavam os crimes como violações daquelas normas que eram processadas
de acordo com o rito processual vigente. Pode dizer-se, portanto, que todos os que se ocupavam dos
crimes eram profissionais de justiça.

Às vezes com o auxílio da filosofia, da história e/ou da metodologia, mas, essencialmente, era um
tratamento normativo de aplicação das normas a factos da vida real. O fenómeno criminal era visto
como um fenómeno puramente jurídico. Havia algumas exceções quando certos crimes implicavam
também com a esfera política (p.e., crimes de traição), mas, fora esses casos excecionais, que
tinham a ver com o estatuto dos agentes e das vítimas, o tratamento do fenómeno criminal era
puramente normativo/dogmático.

Marisa Branco 13
Direito Penal I

Séc. XIX: dois fatores de mudança: a) ciências positivas e “cientismo”; b) massificação do


crime urbano, a exigir resposta política

No século XIX, há dois fatores que vêm mudar este panorama.

• O primeiro é o grande desenvolvimento das ciências positivas que, tendo-se iniciado a partir de
meados do séc. XVIII, atinge um patamar muito superior no séc. XIX. Surge todo um universo
positivo: a medicina, a psiquiatria, a física, a química, a antropologia, a criminologia, as várias
tecnologias de aplicação desses conhecimentos, etc. 


Ora, o “cientismo” levava a menosprezar o Direito ou qualquer outro saber que não fosse
positivo. Os positivistas, enquanto membros das profissões positivas, referiam-se ao Direito no
sentido pejorativo, achando que o Direito não era ciência nem tinha estatuto. O desenvolvimento
destas ciências positivas traz, portanto, modificações muito importantes para a forma como se
aborda o fenómeno criminal.

• O segundo é a massificação do crime urbano. É a altura da Revolução Industrial, do grande


crescimento das cidades e das grandes deslocações de pessoas do mundo rural para o mundo
urbano. Tem-se o crescimento desmesurado de uma grande mancha de população de condição
económica muito débil à volta das grandes cidades, trazendo um aumento muito significativo do
crime urbano (por crime urbano consideram-se o roubo de esticão, o roubo na rua, o homicídio, as
zaragatas e, sobretudo, crimes contra a propriedade). Criam um sentimento de grande insegurança
que exige uma resposta política à qual, segundo grandes faixas deste movimento positivo, o
Direito não estava em condições de dar resposta.

Von Liszt e a “gesamte Strafrechtswissenschaft”: a criminologia e a política criminal como


ciências auxiliares do DP, de cariz positivista

Surge Von Liszt e a sua “gesamte Strafrechtswissenschaft” . Von Liszt propõe esta ciência conjunta
do Direto Penal que, de alguma forma, substituísse a enciclopédia das ciências criminais, que se
traduzia nas várias ciências que estudavam o crime de perspetivas diferentes (a antropologia
criminal, a criminologia, a sociologia, etc), mas que não tinham, verdadeiramente, uma ligação
entre elas. Von Liszt, jurista e positivista jurídico, vem dizer que há três domínios que têm de
colaborar para a resolução do problema criminal.

• Em primeiro lugar, a criminologia como o estudo das causas do crime. Se se quer resolver o
problema criminal, tem de se compreender, primeiramente, o “porquê” de ele acontecer (i.e., o
que leva ao crime; quais são as suas causas). 


• Em segundo lugar, a política criminal vista como um saber (e não propriamente uma ciência)
que tem por finalidade propor reformas do Direito Penal, não devendo contribuir para a
interpretação do Direito que está (essa é uma tarefa exclusiva do jurista), mas sim, com base nos
dados que recolhe da criminologia, propor certas reformas em matéria penal. Funciona, portanto,
como propulsor da ação do Estado em matéria penal. 


Von Liszt, embora positivista, era um jurista e, portanto, via a criminologia e a política criminal
como ciências puramente auxiliares do Direito Penal. Este dizia que a dogmática continua a ser a
barreira última da política criminal, ou seja, a dogmática – a gramática do jurista penal,
consistindo no conjunto de conceitos/dogmas/princípios que os juristas utilizam para trabalhar o
Direito Penal – é o filtro máximo da política criminal. No fundo, é dizer que não vale tudo, apenas

Marisa Branco 14
Direito Penal I

valendo propostas que sejam compatíveis com os ensinamentos dogmáticos. 


Era assim que Van Liszt via a ciência conjunta do Direito Penal: a criminologia e a política criminal
eram ciências auxiliares do Direito Penal, mas, na realidade, o Direito Penal continuava a ser o “rei”
e a dogmática continuava a ser o principal instrumento de trabalho com os crimes. Claro que, ao
aplicar o Direito, o jurista deveria aplicar apenas o Direito, não tendo quaisquer considerações de
política criminal. O jurista devia estar assético e isento, como era próprio do positivismo: subsumir
os factos às normas e ficar-se por aí – uma pura aplicação subsuntiva das normas aos factos. 


A superação do Estado de direito formal pelo Estado social: a subalternizarão do direito e da


dogmática por uma política criminal assente em bases positivas (criminologia). O estudo da
deviance (em vez do crime legislado) e as suas consequências:

Este Estado de coisas acabou por ser superado também com o Estado Social porque, a partir do fim
do séc. XIX e princípios do séc. XX, cresce a ideia de intervenção do Estado na sociedade. Ora, o
Estado Social não é necessariamente um Estado de Direito – pode ser ou não ser.

Esta tendência ou pulsão de intervenção social por parte do Estado, no fim do séc. XIX e inícios do
séc. XX, leva a uma inversão da situação. O importante passou a ser resolver o problema
criminal (fenómeno criminal), ganhando expressão a corrente – que começou por ser a positivista –
de ser preciso substituir o Direito por algo melhor. O Direito Penal não servia, sendo a tal
metafísica. Resolver o problema criminal é que era importante e o Direito não era resposta.

Por isso, os representantes do movimento positivista em Portugal (e não só) viam o problema
criminal como um problema essencialmente médico/psiquiátrico. Entendiam que o que era
preciso era intervir em moldes médicos/terapêuticos em relação aos criminosos e não através das
fantasias do direito das penas.

Para resolver desta forma científica/positiva o problema criminal, naturalmente que é preciso dados
empíricos e, portanto, a criminologia também se desenvolveu muito, procurando sempre um
conhecimento empírico, comprovável e assente em bases positivas.

Nesta altura, começa também a surgir um outro perfil da criminologia. A criminologia muda um
pouco a agulha da sua investigação durante o século XX porque, durante todo o séc. XIX, a
criminologia era centrada no indivíduo: o homem criminoso/delinquente. Esta é uma abordagem
etiológica, por se tratar de uma abordagem comportamental. A criminologia durante o séc. XIX era,
portanto, a exploração das causas psíquicas/fisiológicas dos crimes.
Esta visão etiológica da criminologia mudou durante o séc. XX, até de forma consistente com a
mudança para o Estado Social, porque se começou a perceber, sobretudo através dos estudos
sociológicos, que, além do crime, havia a chamada deviance. A deviance foi um conceito
fundamental trazido pela criminologia americana que estendeu o objeto da criminologia a muito
mais, dizendo que o problema criminal não é só o crime legislado (o que a lei considera crime).

Tem de se ver todos os atos que se desviam das normas – não necessariamente normas legais,
podendo ser normas socialmente aceites como padrões de comportamento (normas sociais) – e
perceber por que se seleciona alguns desses desvios à norma como crime e outros não – isto é,
perceber como é o discurso da criminalização.

Isto levou a, sobretudo a partir de meados do séc. XX, movimentos como a criminologia radical e o
interacionismo simbólico, que passaram a estudar não a pessoa delinquente, mas a sociedade
criminis, isto é, a sociedade que produz o homem delinquente. Isto mudou muito o foco da

Marisa Branco 15
Direito Penal I

criminologia. É uma criminologia totalmente diferente, de raiz marxista, chamada de criminologia


radical.

A situação atual: o Estado de direito material (rule of law)


O quadro de validade jurídico-constitucional onde se move a política criminal; um exemplo: “o


Direito penal do inimigo”(Gunther Jakobs);

Hoje tem-se um quadro de referência bastante diferente porque, atualmente, tem-se um Estado de
Direito material a que preside uma Constituição. Toda a ação do Estado (e isso inclui,
naturalmente, a política criminal) sofre essa validação por parte da CRP. Toda a política criminal é
filtrada/enquadrada por esse quadro axiológico presente na CRP. Não há política criminal que
possa ir para além dos quadros de referência constitucionais, o DP deixa de ser virado puramente
para a correção do crime e passa a ser limitado pelos princípios constitucionais, a CRP regula não
só o DP enquanto dogmática de interpretação das normas, mas também a própria criação das
mesmas.

Isto terá implicações práticas práticas importantes, pois mesmo que, do ponto de vista de política
criminal, fosse interessante punir um comportamento que não afeta verdadeiramente um bem
jurídico, essa opção seria proibida pela CRP, por exemplo.

Um exemplo disto é o “Direito Penal do inimigo”, que foi uma categoria criada por um grande
professor alemão, Günther Jakobs, conhecido, sobretudo, pelas suas investigações em matéria de
normas e de imputação objetiva. Em 1985, Jakobs veio propor a seguinte visão:

Há dois tipos de indivíduos que praticam crimes:

1. Temos, primeiramente, os cidadãos e para todos os crimes cometidos por eles existem
regras materiais (pp. legalidade, da culpa, proporcionalidade), regras processuais — direito
penal do cidadão — estamos todos unidos pelo Pacto social, pela constituição, e o DP serve
para nos proteger nesse sentido.

2. Depois há certas categorias de indivíduos que se autocolocam fora da Constituição/do Pacto


por vontade própria, pensando, sobretudo, na altura, nos crimes de terrorismo e atentado
contra o Estado de Direito; essas pessoas que não querem pertencer à comunidade legal não
devem beneficiar das garantias e dos instrumentos de defesa de direitos próprios da CRP,
dado que elas próprias se querem autocolocar fora dela.

Jakobs estabelece esta dualidade:

- Por um lado, Direito Penal do cidadão;


- Por outro lado, Direito Penal do inimigo.

Esta doutrina foi bastante criticada e até rejeitada por grande parte da literatura.

Críticas:

Sujeição constitucional da politica criminal

1. O ponto de partida é falso de Jacobs é falso, deste ponto de vista está-se a aceitar tratar a pessoa
de forma incompatível com a CRP, o que é uma violação da mesma. A isto Jacobs responde que

Marisa Branco 16
Direito Penal I

estes indivíduos não são pessoas, o direito pode selecionar quem é pessoa, quem tem esse estatuto e
quem não possui esse atributo normativo.

Isto tem falácias subjacentes: todos sabemos ao que conduziu no passado a distinção entre aqueles
considerados pessoas e não pessoas — vício lógico terrível — a pessoa é criadora do Direito, não o
contrário.

2. Não cabe a nenhum indivíduo a competência de se por fora do pacto, isso é algo que se nos
impõe, em relação a essas pessoas é que é necessário a estabilização das normas, a pessoa está
sujeita ao Pacto.

3. Hoje, o inimigo tem direitos, ao contrário da conceção de que Jacobs parte.

Assim, não pode haver uma política criminal fora da Constituição. É com argumentos de índole
constitucional que devemos criticar esta política

A assunção das proposições e intencionalidade político-criminais pela dogmática na procura


da solução justa do caso; a contínua reconstrução do sistema (dogmático); a "unidade
axiológico-funcional”; a transparência da política criminal relativamente ao direito penal/
imanência ao direito constitucional

Hoje, ao procurar a solução justa do caso, o juiz deve incorporar os mandamentos politico
criminais, há princípios que acabam por ganhar um estatuto jurídico e a dogmática incorpora-os.

Ex.: preferência pelas penas não privativas da liberdade.

O sistema jurídico penal vai se reconstruindo em cada caso, existe uma unidade axiológico-
funcional.

Em suma, política criminal não é, hoje, o mesmo perigo que Von Liszt acreditava ser, porque
também estas propostas de política criminal estão sujeitas aos princípios constitucionais. Nesta
medida, dentro desse quadro, não há que temer os avanços da política criminal nem há que dizer
que a dogmática é uma barreira. Pelo contrário, a dogmática deve incorporar a intencionalidade
político-criminal e reconvertê-la dentro das suas próprias categorias — evolução dos conceitos,
categorias e métodos utilizados no Direito Penal.

O papel da criminologia

Quanto à criminologia (ou até criminologias — trata-se de uma ciência que se dividiu e expandiu
em várias direções), ainda existe uma dimensão que estuda as causas do crime, mas, hoje, uma
dimensão importante são as neuro ciências — existe um acervo de investigação sobre estas — e,
para além disso, continua a ser importante o estudo das correntes interacionistas — estas têm uma
feição mais neutra, que estuda os processos pelos quais qualificamos certa pessoa como criminoso e
não outra - aqui entram os processos de seleção da criminalidade.

Marisa Branco 17
Direito Penal I

Título II. A função do Direito Penal

1. Finalidades e legitimação da pena criminal


1. Relação entre os “fins das penas” e a legitimação do DP (enquanto restrição de direitos
fundamentais: não é só o direito dos crimes, mas também o direito das penas

Vamos começar um outro tópico da nossa matéria que diz respeito aos fins das penas e a própria
legitimação do direito penal, isto é, qual é o fundamento, o sentido, as finalidades da pena criminal.

Na perspetiva do curso de pensar o DP a partir do resultado, e sendo a sua finalidade a aplicação das
penas, e sendo as penas restrições de direitos, temos de partir daí para percebermos a finalidade
dessas restrições.

A questão das restrições de direitos fundamentais faz-se a dois níveis:

- Pode ocorrer logo na proibição do comportamento, pode haver casos onde existia uma liberdade
de fazer algo e o DP vem proibir esse comportamento.

- Ex: em matéria de ambiente, havia condutas poluidoras anteriormente livres, um espaço de não
direito e, com a criminalização dos comportamentos contra o ambiente, um comportamento
livre passou a ser proibido.

- Para além disto, as penas são sempre restrições de direitos, seja o direito à propriedade, à
liberdade, direitos profissionais, seja os direitos parentais. Em todas as penas existe sempre uma
restrição.

Temos de encontrar a resposta para a legitimação do DP a partir desta ideia de que o DP é uma
restrição de direitos.

A resposta a esta questão sempre foi dada em torno de duas grandes ideias. A primeira é a resposta
dada pelas chamadas teorias absolutas ou teorias da retribuição às quais se opõem as teorias
relativas ou teorias da prevenção. Além disso, temos ainda várias correntes que constituem
combinações destes dois grupos que procuram, de alguma forma, juntar ou complementar estes dois
tipos de teorias numa construção autónoma.

2. Teorias absolutas: a pena como instrumento de retribuição

Começando pelas doutrinas absolutas ou doutrinas da retribuição. O que estas doutrinas dizem é
que a pena existe porque é a justa paga, é o preço a pagar pelo infrator por ter cometido o crime
sendo.

Neste sentido, a pena esgota-se em si mesma, em certo sentido a pena não tem uma finalidade para
além desta. Ela tem um sentido retrospetivo – é uma pena que olha para o passado — pune-se
porque se pecou (punitur quia peccatum est).

Estas doutrinas inspiram-se em vários textos antigos, desde logo, na chamada Lei de Talião – “olho
por olho, dente por dente” – que se traduz numa recriação do mal até em espécie, quem cortar a
Marisa Branco 18
Direito Penal I

mão de outra pessoa ser-lhe-á cortada a mão. Mas sobretudo as doutrinas absolutas que têm na
base as construções religiosas da reprodução da justiça divina na fé. Durante algum tempo o rei era
o representante de Deus na esfera espiritual e, portanto, a justiça do rei reproduzia a justiça divina,
portanto, cabia ao rei castigar pelos crimes cometidos. Foi a mistura entre crime e pecado que
originou as doutrinas de retribuição.

Estas doutrinas receberam um novo impulso com a filosofia idealista alemã, desde logo, com
Emmanuel Kant:

— Ele considerava a pena um imperativo categórico. Uma sociedade que deixa um crime por punir
está a violar o imperativo categórico, a pena impõem-se por si mesma, qualquer outra justificação
para a pena é desconsiderar a autonomia e dignidade da pessoa, estaria a instrumentalizar a mesma.

— A pena impõe-se como um imperativo, é obrigatório punir aqueles que já foram condenados,
o criminoso tem o direito à pena.

Também Hegel sustentou uma doutrina absoluta dos fins das penas:

— Já não como um imperativo categórico: Hegel aplicou a todo o crime e à pena a sua dialética
dizendo que existe a norma jurídica e o crime é a negação da ordem jurídica. Sendo ele uma
contradição da norma jurídica, a pena será a negação da negação, é uma necessidade dialética, não
um imperativo categórico. Para Hegel não é propriamente um imperativo, mas era uma
necessidade dialética – a pena existe por si e é coagida pela própria negação do direito.

Herança destas teorias:

Relação de proporcionalidade entre a pena e a culpa:

O que há de comum a todas estas doutrinas é que, em primeiro lugar, todas assentam numa qualquer
ideia de justiça – isto é, a pena é imposta por uma qualquer ideia de justiça – e, por isso, tem
naturalmente que respeitar uma equivalência – a medida justa – e por isso é que se procurou, desde
cedo, a equivalência da pena na culpa do agente – para ser justa a pena não pode ir além da culpa do
agente.

Quer dizer, se a pena significa uma reprovação do agente pelo ato cometido, então o fundamento da
pena há-de ser igual à culpa. A pena há-de ser exatamente na medida da culpa, não há pena sem
culpa, sendo a culpa o fundamento da punição penal. Além disso, a culpa é também a medida da
culpa.

É claro que esta relação biunívoca entre culpa e pena não nos vai servir inteiramente, porque vamos
fazer uma crítica das doutrinas de retribuição.

Críticas às doutrinas retributivas:

Pode dizer-se que estas doutrinas de retribuição, na realidade, não são verdadeiramente
teorias dos fins das penas, porque a pena aparece, aqui, em todas elas, desligada de fins.

A pena não tem um fim para além de si própria, não tem qualquer fim a cumprir na realidade social.
Existe porque existe, porque é uma necessidade ética, porque é um imperativo categórico, existe por
si mesma. Todas estas teorias têm isso em comum.

Marisa Branco 19
Direito Penal I

Esta visão traz um grande problema: O Estado, quando pune, toda a pena constitui uma privação de
direitos - seja do direito à liberdade, seja do património, seja uma pena que provoca a proibição de
uma profissão, etc. – e, de acordo com a Constituição, o Estado está limitado na restrição de
direitos.

Surgem-nos dois princípios fundamentais de toda a construção do Estado que também têm reflexos
importantes no direito penal:

• Em primeiro lugar, o princípio liberal do Estado – o Estado não pode/deve intervir sobre os
direitos das pessoas devendo preservar, promover e proteger as liberdades e garantias do
cidadão. 


• Em segundo lugar o princípio da necessidade. Todos nós estamos sujeitos a limitações de


direitos, mas essas limitações só são legitimas quando são necessárias para proteger outros
interesses com dignidade constitucional. 


A conjugação destes dois princípios leva-nos a concluir que as doutrinas de retribuição não
constituem uma explicação/fundamentação legitima para as penas criminais, porque qualquer
que seja a visão subjacente a essas doutrinas nenhuma delas cumpre a função do Estado de
proteger ou de proporcionar condições mínimas da existência comunitária. 


A pena tem que, de alguma forma, servir a função do Estado, servir a proteção de bens jurídicos.
Portanto, logo por aqui as teorias de retribuição não merecem acolhimento. 


Para além disso, existe ainda um outro problema mais diretamente ligado ao princípio liberal:

Nenhum de nós deu autoridade ao Estado para punir em nome de uma ideia de justiça. Antes,
demos autoridade ao Estado, quando celebramos a Constituição, para restringir os nossos direitos
quando seja necessário para proteger outros bens jurídicos. No entanto, todos nós temos de acordo
com o princípio liberal e com direitos constitucionalmente consagrado o direito à liberdade de
consciência, o direito à diferença. Pode-se acreditar em tudo, o Estado tem é autoridade para punir
se em ação se causar uma ofensa relevante a bens jurídicos dignos de proteção penal. 


Ainda se pode mencionar um último argumento: as doutrinas de retribuição têm uma feição
puramente negativa, é infligir um mal a quem cometeu um crime, é uma função do Estado que
seria puramente negativa. 


É por isso que o Dr. Eduardo Correia punha uma grande tónica na ressocialização do delinquente.
Ele afirmava que a “pena é um mal que é um bem” porque ao ser executada deve permitir
ressocializar um delinquente. 


3. Teorias Relativas: a pena como instrumento de prevenção

Artigo 18º CRP — fundamentação jurídico-constitucional

Nas doutrinas relativas, pena tem uma finalidade que a transcende, isto é, tem de ter uma
referência social que transcende a própria pena. Assim, a pena não se esgota em si própria, a
pena tem de desempenhar uma função social porque é um mal que tem de servir um propósito. Esse
propósito não pode deixar de ser a prevenção criminal, isto é, evitar a prática futura de crimes.

Marisa Branco 20
Direito Penal I

Críticas:

Esta teoria foi criticada pelo facto de que instrumentalizam o homem, porque o Estado aplica uma
pena a uma pessoa (inflige um mal a uma pessoa) para ela servir de exemplo para os outros
cidadãos, portanto, para servir os fins do Estado. O Estado, ao utilizar a pena como meio de
prevenção, estaria a instrumentalizar a pessoa, portanto, a violar a dignidade da pessoa.

Mas esta não é uma crítica razoável, porque, apesar de limitar os direitos das pessoas, produz
outros efeitos que satisfazem os seus próprios interesses. Assim, não se pode dizer que isso é uma
limitação à dignidade da pessoa humana.

A verdade é que se isto fosse assim o Estado nunca poderia restringir direitos individuais para
alcançar os seus fins, para proteger outros bens jurídicos.

Coisa diferente são as penas que atingem a dignidade da pessoa, penas que, pelo seu conteúdo ou
pela forma da sua execução, atingem a dignidade da pessoa humana – essas são proibidas enquanto
tal -, mas isso não tem a ver com a fundamentação do direito penal, tem que ver com os limites dos
próprios deveres.

Prevenção geral: ameaça e aplicação das penas visa afastar a generalidade dos membros da
comunidade da prática de crime

Dentro das doutrinas da prevenção, podemos distinguir dois núcleos distintos que depois se vão
articular.

Em primeiro lugar temos as doutrinas da prevenção geral: Que afirmam que a ameaça de punição
que consta da norma penal, visam atuar psicologicamente sobre a generalidade das pessoas de
maneira que não venham a ser cometidos crimes. Portanto, há aqui primeiro uma ameaça no
momento da feitura da norma, e depois com o momento da aplicação e execução da pena de quem
cometeu esse facto isto continuaria a reforçar esse aviso à generalidade dos membros da
comunidade.

Neste sentido ainda podemos distinguir dentro da prevenção geral duas vertentes distintas:

I. A chamada prevenção geral negativa ou de intimidação/doutrina da coação psicológica. 




De acordo com esta doutrina o homem age comovido por instintos de procurar a satisfação
e evitar o sofrimento. A ideia da pena é a de que temos que conseguir, através das penas, que o
homem seja demovido da prática de factos porque as penas vão trazer um sofrimento maior do
que o sofrimento causado por não cometer o crime. Os destinatários da comunicação destes
termos são essencialmente os potenciais criminosos. Nestes casos, a coação psicológica
destina-se àqueles que podem vir a cometer crimes. 


Mas há uma crítica que se faz: não é possível determinar qual é a quantidade de pena
necessária para intimidar as pessoas. Normalmente, como um crime é uma realidade
fisiológica, a teoria da coação psicológica leva a um aumento exponencial das penas. Portanto, a
teoria da coação psicológica tem este inconveniente. Isto reflete-se na própria legitimação das
penas e do direito penal.

II. Por outro lado, temos a prevenção geral positiva / prevenção geral de integração. Nesta
vertente a prevenção geral é muito mais moderna. Procura-se afirmar que as penas não visam
intimidar. Quando existe norma jurídica ela impõe-nos uma série de comportamentos e de
Marisa Branco 21
Direito Penal I

abstenções e quando alguém viola essa norma, as expectativas da comunidade ficam abaladas e
fica insegura relativamente à vigência da norma. Portanto, a aplicação e execução dessa pena
visa restaurar a confiança da comunidade que foi abalada pelo crime. 


Nesta visão das coisas os destinatários não são tanto os potenciais infratores, mas a sociedade
conformista. Esta teoria visa realçar o efeito de coesão social que o direito penal deve ter. 


Nesta visão, o direito penal serve para assegurar a coesão social em torno das normas, evitar
que aqueles que são conformistas sejam destabilizados por aqueles que violam as normas. 


A doutrina que vamos adotar no curso é prevenção geral positiva como principal forma de
fundamentação da pena. Ela é uma doutrina que facilmente se compatibiliza com a função de
proteção de bens jurídico, dado que previne os crimes. 


Esta também responde a algumas das questões que não são satisfatoriamente resolvidas pela
prevenção geral negativa, porque podemos encontrar um conjunto de penas que são adequadas
para estabilizar a confiança da comunidade em relação a determinados factos. 


Todas essas penas podem, de uma forma mais ou menos eficaz, cumprir a exigência de
restauração da confiança da comunidade nas normas. Dentro desse espaço de prevenção, o
juiz tem que depois encontrar qual é o limite máximo permitido pela culpa do agente, quer
dizer, se todas essas penas são aptas a cumprir as exigências de prevenção. 


Portanto, a culpa continua a ter um papel fundamental, é pressuposto e limite da pena. A culpa
é, em qualquer caso, limite da pena – é uma equivalência normativa. 


Se a culpa nos dá o limite máximo da pena, continuamos a ter um espaço de manobra para o
juiz no momento de aplicação da pena concreta.

Prevenção especial: aplicação das penas visa atuar sobre o delinquente para que no futuro não
cometa crimes:

Enquanto as doutrinas da prevenção geral sustentam que a pena é aplicada com um intuito, mas a
sua mensagem transcende o delinquente e deve transmitir-se a todos membros da comunidade, seja
na vertente negativa, seja na vertente positiva.

A prevenção especial, pelo contrário, afirma que a pena deve ter um efeito preventivo, portanto,
serve para evitar a prática de crimes futuros, mas ela deve fazer isso atuando sobre o próprio
delinquente no sentido de que ele não venha a cometer mais crimes no futuro.

Portanto, aqui o efeito preventivo não é procurado na generalidade dos membros da comunidade,
mas sim especialmente naquele a quem a pena é aplicada. Neste sentido podemos falar de uma
prevenção da reincidência.

Sobre a forma como se consegue essa prevenção da reincidência importa falar em três modelos
diferentes.

Notas: No manual iremos encontrar a matéria organizada de maneira diferente, dado que o Dr.
Figueiredo Dias distingue só distingue entre prevenção especial negativa e positiva. O Dr. Pedro
Caeiro junta a estas duas vertentes um terceiro modelo que é o chamado modelo médico, sendo três
correntes diferentes.

Marisa Branco 22
Direito Penal I

A prevenção especial negativa:

Em primeiro lugar, de acordo com a corrente da prevenção especial negativa a pena deve servir
para intimidar o próprio condenado. Portanto, deve ser orientada no sentido de que ele sofra
perante a execução da pena para que, com receio de sofrimento, não venha a cometer mais crimes
no futuro. Ou então se for um preso perigosos da sua neutralização sendo a pena é vista como um
instrumento para neutralizar o delinquente do resto da comunidade, neutralizando a sua
perigosidade criminal.

A visão das coisas por que se optar relativamente à prevenção especial tem consequências no tipo
de penas que se escolhem, na sua duração e no modo como elas são executadas.

De acordo com o modelo médico:

Em segundo lugar, temos o modelo médico. Este começa a afirmar-se, na Europa em geral, em
particular em Portugal, no último quartel do século XIX, que nos é trazido pelo positivismo
essencialmente por psiquiatras e médicos.

Este dizem que o problema criminal não pode ser resolvido com o direito, o crime não é um
problema jurídico, é um problema de saúde pública, sendo o criminoso um doente que tem de ser
tratado. A abordagem certa não é uma abordagem metafísica.

Quer dizer, o direito seria substituído na realidade por uma abordagem médica, própria da medicina,
e a pena seria substituída por processos terapêuticos.

Mais tarde, durante o século XX, houve outras tentativas de instaurar modelos médicos em prol do
crime em alguns países, já não fundados nas premissas da Escola Positivista, mas com a ideia de
que grande parte dos crimes se resolve com abordagens de tipo médico.

Esta é uma abordagem não jurídica de prevenção especial.

Prevenção especial positiva:

Por último, temos a prevenção especial positiva — procurando a ressocialização do agente.

Dentro desta podemos distinguir duas


abordagens diferentes.

Num primeiro momento, que foi muito importante na primeira metade do século XIX um pouco
por toda a Europa, procurava-se a emenda moral do delinquente, uma transformação do
delinquente de uma pessoa má para uma pessoa boa.

Sucedeu-se a esta corrente uma outra c que foi fundamental na forma como hoje entendemos a
prevenção especial que foi a corrente correcionalista – correcionalismo jurídico. De acordo com
as ideias correcionalistas a pena tinha ou devia ter o efeito de corrigir o delinquente. Para isso
foi fundamental a importação das experiências penitenciárias de outros países.

Esta foi a altura em que se começaram a construir em Portugal prisões adaptadas à ideia da correção
do delinquente. Aqui já se estava para lá da ideia de emenda moral, já se tratava de incidir mais
sobre a parte cívica do delinquente, sobre as suas capacidades de trabalho, de instrução.

Marisa Branco 23
Direito Penal I

Essa tendência deu muita importância à execução das penas no sentido de ressocialização do
delinquente.

Esta é uma das tendências principais do direito português. Não que a prevenção especial tenha
sido considerada como o principal fundamento das penas, isso nunca aconteceu, sendo o principal
fundamento da pena o restabelecimento do Estado de Direito.

Depois do correcionalismo e à medida que foram evoluindo as perspetivas sobre o Estado e sobre os
direitos das pessoas a prevenção especial positiva transformou-se numa prevenção especial de
socialização ou de ressocialização. Mantemos a ideia da prevenção da reincidência, portanto, a
ideia é que o condenado consiga conduzir a sua vida sem praticar crimes no futuro.

O princípio do Estado de Direito que subjaz a esta visão das coisas é o princípio do Estado Social,
isto é, um Estado que promove direitos e essas garantias. Todo o condenado é alguém que está a
sofrer um mal para servir interesses do Estado, uma vez que é conveniente para a prevenção. Por
isso mesmo, ao mesmo tempo que essa pena é cumprida com essas finalidades, deve também
aproveitar-se da execução da pena para procurar fornecer ao condenado os instrumentos
necessários para puder conduzir uma vida sem crimes.

Isto não permite nenhum tratamento coativo, tem de se respeitar a autonomia do condenado que
pode ou não aproveitar as oportunidades que lhe vão sendo oferecidas. Pode haver casos em que a
pena de prisão não tem uma finalidade de ressocialização porque a pessoa não precisa de ser
ressocializado.

Nesses casos a prevenção especial terá uma função puramente negativa, de aviso segundo a
qual o Estado espera que essa pessoa não volte a reincidir.

Por último, há ainda quem pretenda isolar mais uma finalidade da pena que seria uma finalidade
autónoma: a reparação do dano.

O Dr. Figueiredo Dias, a esse propósito, afirma que a reparação do dano é um instituto muito
importante, havendo vários momentos em que o nosso Código Penal se refere à reparação do dano
como, p. ex., a possibilidade de aplicação de penas de substituição, a dispensa de pena, etc.

A reparação do dano é um sinal de certa recomposição social. Todavia, a reparação do dano não
deve ser considerada, em si mesma, como uma finalidade autónoma da pena. Muitas vezes o dano
nem sequer é reparável, outras vezes o dano é recomposto seja por acordo, seja através de ação civil
por indemnização que decorre junto com o processo penal.

O que podemos dizer é que a reparação é um instrumento importante ao serviço da prevenção


geral de integração. As necessidades de prevenção geral de integração são menores quando existe
reparação do dano, a comunidade compreende melhor uma pena mais baixa quando o arguido
reparou o dano junto da vítima.

Em suma, todas as penas têm uma natureza exclusivamente preventiva, portanto, não há penas
que tenham outra finalidade.

A culpa como limite inultrapassável da pena:

Estas finalidades preventivas têm sempre um limite inultrapassável que é a culpa. O que
herdamos da doutrina da retribuição é esse pensamento de culpa: a culpa como pressuposto
imprescindível da pena (não há pena sem culpa).
Marisa Branco 24
Direito Penal I

A culpa é também o limite máximo da pena, não podendo haver pena para além da culpa. Mas ao
contrário do que dizem as doutrinas da retribuição, pode haver culpa e não haver pena – são os
casos da dispensa de pena em que existe um facto típico, ilícito, culposo e, todavia, não havendo
razões de prevenção suficientes, não existe pena. Sobretudo em casos ainda mais frequentes a pena
pode ser inferior à medida da culpa.

Com isto conseguimos compreender o modelo de determinação da pena completa que o juiz vai
mobilizar. Nesse modelo, onde todas as penas serão em princípio capazes de satisfazer as exigências
de prevenção geral positiva, a pena da culpa é respeitada porque não pode ser superior à culpa e
depois, dentro desse espaço, funcionam as exigências de prevenção especial. Quanto mais intensas
forem as exigências de prevenção especial mais elevada será a pena e mais se aproximará do
limite da culpa, e vice-versa.

Esta compreensão das finalidades das penas e da função do direito penal é compatível com a nossa
Constituição – veja-se o art. 18º-2 CRP.

Por outro lado, veja-se o art. 40º-1-2 CP. Este último funciona como ligação entre a construção do
crime que está nos primeiros 39 artigos e a matéria das penas que está nos artigos 41.o a 130.o. A
ideia que devemos levar relativamente às finalidades das penas, à função e à legitimação do direito
penal é-nos dada pelo art. 18.o-2 CRP e pelo art. 40.o CP – são resumos legislativos da doutrina e
da matéria estudadas nesta aula.

4. Sinopse histórica do direito português

a) Ordenações (1852) - projeto de Mello Freire (1786)

As ordenações filipinas foram o grande monumento legislativo do regime, condensaram o Direito


Penal do Antigo Regime. Podemos dizer que Portugal foi dos países que demorou mais, pelo
menos do ponto de vista formal, a demolir o Antigo Regime em matéria penal.

O primeiro código penal foi de 1852, antes houve alguns desenvolvimentos importantes mas em
grande parte dos países da Europa os Códigos Penais foram mais rápidos que o nosso. O nosso
código penal foi um código tardio, e segundo Dr. Eduardo Correia “Monstruosamente as
Ordenações foram lei até 1852(..)”.

Houve um documento muito importante no final do séc.XIX, encomendado ao Pascoal Mello


Freire, um projeto de Código Penal e ele fez o projeto, apresentou em 1786. Foi um projeto de
transição, não foi totalmente liberal e não o podia ser, a Revolução Francesa ainda não tinha
acontecido, mesmo que os ideias liberais já estivessem espalhados pela Europa. Este projeto já
continha desenvolvimentos importantes, como acabar com a diferença das penas de acordo com a
classe social da pessoa, um princípio de igualdade. Como também, tutelava o fim das penas
barbaras, acabando com uma série de instituições próprias de tempos mais recuados e que
repugnavam ao iluminismo, mas mantinha a pena de morte.

Este projeto nunca foi aprovado como tal, nunca foi código, teve influência em leis posteriores já no
séc.XIX.

Marisa Branco 25
Direito Penal I

b) A Constituição de 1822 (art. 10º, pp. necessidade e 11º, pp. proporcionalidade; abolição da
tortura e penas cruéis): a influência inglesa (Bentham); a tentativa da CP de 1833-37 (José
Manuel da Veiga)

A constituição de 1822, constituição vintista e liberal, que tem dois artigos fundamentais para o
Direito Penal o art 10º “Nenhuma lei, e muito menos a penal, será estabelecida sem absoluta
necessidade.”, afirma que o Estado só poderia intervir em absoluta necessidade, instaurando-se
um princípio de necessidade da lei penal.

E o art. 11º “Toda a pena deve ser proporcionada ao delito; e nenhuma passará da pessoa do
delinquente. Fica abolida a tortura, a confiscação de bens, a infâmia, os açoites, o baraço e pregão, a
marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis ou infamantes.”. Este artigo definia a
intransmissibilidade das penas, incorporando princípios e valores do iluminismo abolindo penas
que eram contrárias à dignidade da pessoa humana, notando-se a influência de Immanuel Kant.

A constituição vintista teve uma grande influência inglesa, e sobretudo pela mão de Jeremy
Bentham, um filosofo utilitarista inglês que também fez um código penal a pedido do Parlamento
português, das Cortes, que nunca entrou em vigor.

Apesar de estar em vigor a constituição vintista as Ordenações continuavam a ser aplicadas em


matéria penal.

Houve uma nova tentativa com o código de José Manuel da Veiga, 1833, que acabou por não ser
aprovado em 1837. Este tinha sido aprovado durante a Ditadura e não beneficiou de uma lei que
ratificou uma série de diplomas aprovados durante a Ditadura de Passos Manuel, e este código
acabou por não ser aprovado.

c) O Código Penal de 1852 e a influência do Código Penal francês de 1810 (Code Napoléon): A
prevenção geral (negativa) limitada pela culpa

O primeiro código penal português surge em Portugal em 1852, bastante influenciado pelo código
francês de 1810, Códe Napoleon.

Em Portugal, o código de 1852 recupera muito direito português antigo, nomeadamente das leis
portuguesas, mas dos Comentadores. A influência do código francês nota-se na parte das penas,
embora já beneficiando da crítica que os próprios juristas franceses faziam ao código

No ponto de vista das penas, e das finalidades das penas, podemos dizer que o Código de 1852 não
era totalmente fiel ao código francês, que era geral preventivo, enquanto código português possuía
alguns elementos de prevenção geral, mas uma prevenção geral limitada pela ideia de culpa, um
princípio ético de reprovação do agente pelo facto cometido.

d) O projeto de Levy Maria Jordão 1861-64: O Programa correcionalista (Prevenção


especial); A influência sobre a lei de 1 de julho de 1867 (abolição da pena de morte; execução
da pena de prisão)

O código de 1852, segundo os seus comentadores, em particular Levy Maria Jordão e Francisco
Ferrão é “um código que já nasceu velho”. Este já nasceu velho, porque quando foi aprovado já
tinham surgidos códigos mais modernos que não influenciaram como deviam. Levy Maria Jordão,
um ano após ser aprovado o código começa a criticá-lo fortemente.

Marisa Branco 26
Direito Penal I

Em 1853 foi constituída uma Comissão para rever o código penal. Nomeou-se essa Comissão,
esta foi trabalhando, mas não apresentou grandes resultados até que foi nomeado para essa
comissão Levy Maria Jordão como relator desta que redigiu a versão final do projeto de 1861, e a
sua versão de 1864.

Levy Maria Jordão apresenta uma visão das penas como um fundamento do direito penal ético,
coerente com a sua visão do Direito penal que era uma visão de acordo com a qual que servia para
reconstituir o Estado de Direito permitindo que o Homem seguisse o seu fim racional.

O mais importante da intervenção de Levy Maria Jordão foi o programa correcionalista que este
incluí nos projetos de 1861 e de 1864. Este já estava muito influenciado pelas ideias correcionalistas
de Karl Krause, e incluiu no seu projeto várias normas sobre aplicação e execução das penas que
não pertenciam aos códigos penais. Pela primeira vez, lançaram-se as bases de um programa
correcionalista oficial.

Estes projetos não foram aprovados formalmente, mas tiveram uma grande influencia sobre a lei de
1 de Julho de 1867, uma lei avulsa posterior. Esta lei foi muito importante porque adotou para
implementação em Portugal o sistema penitenciário de Filadélfia, como também a abolição da pena
da morte, para além de regular a pena de prisão.

e) A nova reforma penal (1884) e o código penal de 1886: A perspetiva eclética.


Em 1884 dá-se uma grande reforma do código penal, esta foi tão profunda que código veio a ser
republicado em 1886 (nota: o Dr. considera mais adequado falar-se de um novo Código penal, o
Código de 1886).

Este código no ponto de vista do fim das penas adotou uma perspetiva eclética, associava fins de
retribuição, e tinha atenção à culpa que já estava presente no código de 1852.

Ainda era um código da prevenção geral, mas uma prevenção limitada pela culpa e com
preocupações de prevenção especial.

f) Estado Novo e a tentativa de compatibilização do princípio ético-retributivo com a


prevenção especial (Criminalidade especialmente perigosa, incluindo criminalidade política)

No Estado Novo, não houve aprovação de nenhum código penal durante todo este período, havendo
apenas leis penais aprovadas.

Do ponto de vista da lei, se compararmos a lei do Estado corporativo autoritário com o Direito
penal alemão, ou italiano, da mesma altura não existe nada de parecido no Direito penal português.

Este não sofreu tanto como sofreu o Direito penal alemão e o Direito penal italiano, não houve
grandes modificações de fundo nas leis substantivas. Procurou-se uma compatibilização de uma
ideia de culpa, combinada com ideias de prevenção especial. Há duas reformas importantes a esse
respeito: houve uma cada vez maior preocupação com a chamada criminalidade especialmente
perigosa.

Houve várias leis de carácter exclusivamente especial preventivo, e nessa criminalidade incluía-se
também a criminalidade política.

Marisa Branco 27
Direito Penal I

O direito penal do Estado Novo traduziu-se mais numa dimensão policial, de repressão policial, e
depois, numa repressão através de medidas de segurança, do desterro, exílio, criminosos políticos
para possessões ultramarinas.

g) O projeto do Prof. Eduardo Correia (1963-1965) e o “descomprometimento” do Código


Penal de 1982

O Professor Eduardo Correia, em 1963, fez um projeto de Código Penal e, depois, em 1965, a
parte especial, que contou com a colaboração de uma comissão. Era uma obra inspirada
essencialmente nos projetos alemães, porque na mesma altura estava em cima da mesa o projeto
alemão do Governo de 1960 e, mais tarde, o projeto alternativo alemão.

O Professor Eduardo Correia tinha estudado na Alemanha durante a guerra, era profundamente
influenciado por vários autores alemães, deste modo, procurou fazer um código penal moderno
dentro de uma perspetiva ético-retributiva.

Este projeto nunca foi aprovado — há várias razões por isso ter acontecido, todas elas políticas, e
sendo uma das principais razões o facto do Professor Eduardo Correia procurar com a sua reforma
acabar com a aplicação de medidas de segurança privativas da liberdade a delinquentes imputáveis.

Este defendia que as medidas de segurança só poderiam ser aplicadas quando sejam privativas da
liberdade de delinquentes inimputáveis, e isso basicamente acabava com o regime de penas para os
criminosos políticos.

O código de 1982 aparece como uma segunda vida do projeto de 1863, num contexto político
completamente diferente. É um código penal “descomprometido”, no sentido de não optar
claramente por nenhuma visão das finalidades das penas.

É um código aberto, sendo que alguns autores viam neste código algumas ideias de retribuição, o
Dr. Eduardo Correia era um deles. Outros autores, como o Dr. Figueiredo Dias viam um código
virado para preocupações de prevenção criminal. Portanto, um código suficientemente aberto para
albergar várias leituras e interpretações.

h) A revisão do código penal de 1995

Esta revisão foi encabeçada pelo Dr. Figueiredo Dias, através de uma comissão feita por este em
1991, que acabou por ser aprovada em 1995.

Esta revisão não procurou introduzir mudanças qualitativas no projeto de 1982. Houve duas linhas
de força nesta revisão:

• Sendo a primeira modernizar alguns aspetos que já fossem anacrônicos em 1982, porque
vinham do projeto de 1963. 


Um exemplo disto são os crimes sexuais, que no código de 1982 eram considerados crimes contra
os valores da vida em sociedade, de um bem jurídico supraindividual. Em 1995, dá-se a grande
rutura e os crimes sexuais passam a ser crimes contra a liberdade sexual e contra a
autodeterminação sexual, contra bens jurídicos pessoais. 


• A segunda linha de força do código de 1995 foi o aperfeiçoamento de várias soluções que já
estavam no código de 1982, mas que não foram levadas até às últimas consequências, ou ficaram
defeituosas devido ao facto do código de 1982 ser completamente novo. O que leva a que as
Marisa Branco 28
Direito Penal I

normas não estejam em plena conjugação. 




Uma das linhas de força da revisão de 1995 foi limar essas arestas, levar até às últimas
consequências algumas proposições que já estavam embrionariamente no código de 1982, e
eliminar incongruências sistemáticas.

O que mudou foi o art.40º, que é um artigo sobre a função do Direito Penal.

Esta tomada de posição foi criticada no sentido de afirmar que não cabe ao legislador tomar
posição sobre estas matérias. No ponto de vista do Dr. Pedro Caeiro esta é uma discussão sem
objeto porque este artigo é redundante, porque já decorre da Constituição, e, portanto, não é por o
art. 40º o afirmar, que soluções diversas seriam possíveis e pensáveis.

5. Posição adotada: um modelo penal político-criminalmente adequado e constitucionalmente


conforme

As normas penais são sempre normas restritivas de direitos, seja porque proíbem uma conduta que
antes não era proibida, seja porque mandam aplicar penas a quem praticar essa conduta.

A doutrina que vamos adotar no curso é prevenção geral positiva como principal forma de
fundamentação da pena (acima referida). Ela é uma doutrina que facilmente se compatibiliza com
a função de proteção de bens jurídico dado que previne os crimes.

Ponto de partida: normas penais como normas restritivas de direitos e a sua sujeição à CRP,
especialmente ao art. 18º/2

Como restrições de direitos, as normais penais estão sujeitas aos mandamentos do art.o18 da
Constituição, e em particular ao art.o 18 no2 nos Princípios da necessidade da proporcionalidade e
da exclusiva teleologia das restrições de direitos relativamente à salvaguarda de outros interesses ou
direitos constitucionalmente protegidos.

Consequência: Legitimação do Direito penal e das penas funcionalizadas à proteção de bens


jurídicos

Daqui decorre, desde logo, a legitimação do Direito Penal, como qualquer norma restritiva de
direitos, só pode existir para a proteção de bens jurídicos com assento constitucional. Podemos
dizer, por isso, que tanto as penas como o Direito Penal são funcionalizadas à proteção de bens
jurídicos.

Como? Através dos comportamentos que os ofendem – Penas têm finalidades exclusivamente
preventivas

Os bens jurídicos são preservados prevenindo aqueles comportamentos que os ofendem. Proteger
um bem jurídico através do Direito, estabelece-se através do dever de não praticar condutas que
criem danos ou perigos que ofendam os bens jurídicos.

As penas devem ter finalidades exclusivamente preventivas, estas servem para isso, para prevenir a
ofensa a bens jurídicos.

Marisa Branco 29
Direito Penal I

Restabelecimento da paz jurídica e estabilização da norma através da pena (prevenção geral


positiva, ou de integração), com absoluto respeito pelo princípio da culpa (nulla poena sine
culpa, nulla poena praeter culpa) e tendo em atenção as necessidades de prevenção especial de
socialização

O Direito Penal serve, por um lado, para restabelecer a paz jurídica, voltar a ter a norma
restabelecida, isto corresponde a uma finalidade de prevenção geral positiva ou de integração.

Nesse propósito de restabelecer o Direito, de garantir a confiança nas normas, de promover o


respeito pela norma jurídica é necessário atuar com absoluto respeito pelo Princípio da Culpa.
— Não pode haver nenhuma pena sem culpa, se o agente atuar sem culpa não pode ser punido, nem
pode haver uma pena para lá da culpa, uma pena não pode ser superior à culpa da pessoa.

Toda a ideia de prevenção geral positiva, de estabilização das normas, de preservação da coesão
comunitária, exercitação do amor ao Direito isto faz-se através da aplicação das penas, tudo isso
tem um limite – a culpa do agente.

— A culpa não é o fundamento da pena, não é a medida da pena, mas é o pressuposto e o limite de
qualquer pena

Por último, a pena tem de ter atenção a utilidade social para aquela concreta pessoa.
Naturalmente, pode haver casos onde exigências de ressocialização, de prevenção especial, sejam
mais intensas e obriguem a penas mais elevadas do que outras onde essas exigências sejam
menores.

Assim, temos a prevenção geral positiva, a culpa como limite inultrapassável e a prevenção
especial. Como se articulam estas as três linhas de atuação, que podem não ter um sentido
convergente, no momento concreto da pena?

— Ilustração:


(a) As molduras penais abstratas estabelecidas pelo legislador e os fundamentos dos seus limites;


Exemplo: O homicídio simples, punido com prisão de 8 a 16 anos. Isto é uma opção do
legislador, este é que escolhe estes limites.

O legislador escolhe estes limites por uma razão. O Dr. Figueiredo Dias fala de uma
proporcionalidade cardinal ou absoluta, isto é, uma proporcionalidade entre o tempo de privação
da liberdade e o facto punível ou a culpa,.

E depois, com uma proporcionalidade ordinal ou relativa, que se consegue através de uma
equação, uma relação entre as várias molduras penais existentes para vários crimes. Os vários
crimes têm penas diferentes, o legislador compara a gravidade desses vários crimes, o valor dos
bens jurídicos atingidos com esses vários crimes e estabelecer uma proporcionalidade das penas
entre eles.

E é isto que nos permite compreender que a moldura penal do furto seja muito inferior à moldura
penal do homicídio, temos aqui, no fundo, dois exercícios: saber que moldura penal corresponde ao
facto em causa, e por outro lado, temos de relacionar essa moldura penal com as molduras previstas
para os outros casos – tudo isto tem de estar numa relação de proporção.

Marisa Branco 30
Direito Penal I

Assim, por um lado, temos uma proibição de excesso, estamos sempre a fazer a proporção com
facto, mas também estamos a fazer uma restrição de direitos, essa proporção também de entrar na
linha de conta. E no caso do limite mínimo, aquilo que é minimamente necessário é os fins da lei da
penal.

(b) O limite inultrapassável da culpa


Quando alguém comete um homicídio, incorre numa pena que vai de 8 a 16 anos — o que o
juiz irá fazer, em primeiro lugar, será determinar o limite de culpa dentro dessa moldura — o
tribunal tem de encontrar uma medida na culpa.

Uma culpa grave atirará o limite da culpa para muito próximo do limite máximo permitido pelo
legislador. Uma culpa muito pouco grave atirará a culpa para níveis próximos do limite da culpa,
dos limites mínimos da moldura da culpa abstrata.

O juiz pode, por exemplo, encontrar na moldura um limite de 14 anos, uma pena superior a 14 anos
de prisão seria excessivamente grave para o grau de culpa comparado com outros casos que o
agente exibe.

(c) A criação, dentro desses limites, da moldura judicial da prevenção geral positiva

Dentro destes limites, entre 8 a 16 anos, em princípio, todas as penas são suscetíveis de cumprir
as finalidades da prevenção geral positiva. Isto é, todas elas serão, em princípio, aptas a criar a
confiança da comunidade das normas e a prevenir crime de homicídio.

Por isso, fala-se aqui de uma moldura judicial da prevenção geral positiva.

Pode acontecer que a comunidade esteja sobressaltada com a prática massiva de um certo crime e,
nesses casos, o tribunal pode determinar que o limite mínimo para defender o ordenamento jurídico
seja de 10 anos e não 8, por exemplo.

(d) A variação da pena, dentro da moldura penal concreta, comandada pelas exigências de
ressocialização (prevenção da reincidência)

Nota: Esta prevenção especial de ressocialização hoje em dia não existe apenas para as pessoas de
classes sociais mais baixas.

O programa político-criminal que, na sua enorme extensão, se consubstancia nas proposições


conclusivas acabadas de enunciar decorre diretamente, repete-se ainda uma vez, do art.º18 n.2 da
CRP e foi coerentemente assumido pelo legislador penal português de 1995, que os precipitou nos
n.º1 e 2 do art 40º do CP.

(e) O art 40º n 1 e 2 do Código Penal:

O art 40º n1 e 2 propõe-se a conseguir, do ponto de visto jurídico constitucional, seja uma norma
redundante, talvez desnecessária, tem uma função expressiva, uma função linfática, repete-se e
sintetiza aquilo que já deveria decorrer de uma forma menos visível, menos facilmente apreensível
da leitura da Constituição.

Marisa Branco 31
Direito Penal I

5. Função, finalidade e legitimação das medida de segurança criminal


1. As medidas de segurança criminais no sistema sancionatório

O sistema das sanções jurídico-criminais do direito penal português assenta em dois polos: o das
penas e o das medidas de segurança. Enquanto as primeiras têm a culpa por pressuposto e por
limite, as segundas têm na base a perigosidade do delinquente.

O problema: A proteção de bens jurídicos contra a ação de indivíduos criminalmente


perigosos, que praticaram um facto ilícito:

As medidas de segurança comportam-se, de certa forma, como o parente pobre do Direito Penal,
está ao lado das penas, porque são aplicadas muito menos vezes do que as penas, têm um regime
diferente e nem sempre tiveram dentro do Direito Penal e são, por isso, um pouco esquecidas.

O problema que se coloca é que, por vezes, é preciso proteger os bens jurídicos cobertos pelo
direito penal contra factos de pessoas que são criminalmente perigosas, que praticam ou praticaram
um facto típico e ilícito (facto inscrito num tipo de crime e contrário ao Direito). E, apesar de terem
praticado um facto típico e ilícito e serem criminalmente perigosos, não podem ser punidos. Porque
é que não lhe podem ser aplicadas penas?

Por duas razões básicas:

(a) que não podem ser punidos por falta de imputabilidade:

Podem não ser imputáveis, o juiz pode ter que os absolver por falta de imputabilidade.

Um dos pressupostos dos juízos de culpa é a imputabilidade, pois só podemos imputar uma pena a
alguém com culpa. E não sendo imputável (ou seja, incapaz de culpa), não lhe pode ser aplicada
uma pena, porque a pena exige a culpa para ser aplicada. Isto abre uma lacuna de proteção em
relação aos bens jurídicos.

E quem é que é, então, inimputável?

— Os menores de 16 anos - Direito tutelar




Por um lado, uma pessoa com idade inferior a 16 anos, a chamada inimputabilidade em razão de
idade, prevista no artigo 19º do CP. Quando é assim deixa de ser um problema do Direito Penal,
este menor é tratado/processado pelo sistema do Direito Tutelar Educativo.

— Em razão de anomalia psíquica (artigo 20º/1 e 91º e ss, do CP). – aqui é muito importante o
problema de perigosidade.

A estes não lhe pode se aplicar uma pena porque podem não ser imputáveis, isto é o juiz pode
absolvê-lo pelo facto aplicado por não lhe ser imputado. Isto abre uma lacuna de proteção. Ora, os
inimputáveis são absolvidos, não lhes é aplicada nenhuma pena, não existe um crime, existe um
facto ilícito típico, mas não culposo e pode ser aplicada uma medida de segurança.

A Medida de segurança mais emblemática é a desposta nos artigo 91º CP e seguintes – medida de
segurança esta, privativa da liberdade. In casu, é muito importante o elemento da perigosidade.

Marisa Branco 32
Direito Penal I

(b) Pessoas cuja perigosidade não pode ser eficazmente contrariadas através das penas
“comuns”; os delinquentes por tendência e o problema do monismo/dualismo (remissão)

Porém, não são só os casos em que o agente é absolvido por falta de imputabilidade, há também
casos em que o agente tem uma especial perigosidade, e essa especial perigosidade não pode ser
contrariada de forma eficaz pelas penas comuns — porquê?

Porque o legislador quando calcula o quantum de pena abstrata (8 a 16 anos para o crime de
homicídio simples, etc.) está a pensar nos casos normais/regulares.

Só que, em certos casos, existem agentes cujo perigo de repetição daqueles factos é muito intenso,
existem agentes que têm uma perigosidade muito acima da média. Nestes casos, as penas comuns
não são adequadas para este tipo especial de perigosidade.

O pressuposto da perigosidade criminal: conteúdo e função:

- Prática do ilícito típico


- Perigosidade
Existe correlação entre esses pressupostos — O que justifica a aplicação de uma medida de
segurança é a necessidade de prevenção da prática futura de factos ilícitos-típicos e, nesta aceção,
uma função de segurança em sentido amplo. A partir daqui logo se torna indispensável a verificação
da perigosidade do agente, do perigo de cometimento por ele, no futuro, de outros factos ilícitos-
típicos. Mas isso não é bastante, a tentativa de operar uma socialização reputada necessária e
possível encontra-se, ainda, e sempre na dependência da prática, pelo agente, de um facto ilícito-
típico.

Exemplos:

• Artigo 69º do CP – Pena acessória – é referido prazo de 3 meses a 3 anos;

• Artigo 101º do CP – Medida de segurança – não tem prazo, não é limitada nem no tempo nem
pela culpa do agente, é uma medida que visa reagir a um estado de pura perigosidade do agente.

No 1º caso temos uma pena, que por definição só pode ser aplicada a um agente com culpa, no
segundo caso pode ser inimputável ou imputável, não interessa a culpa nem o prazo, o que
realmente interessa é a reação contra o estado de perigosidade do agente.

O mesmo acontece, embora com outras feições, no caso dos delinquentes por tendência:

O que está em causa é uma especial perigosidade que não pode ser suficientemente prevenida
através da aplicação de uma qualquer pena comum. Sendo para este tipo de situações que as
medidas de segurança existem.

Em suma, o que dá conteúdo e função às medidas de segurança é sempre a perigosidade do agente.

A relevância do facto-ilícito-típico como pressuposto constitutivo da aplicação de uma medida


de segurança: Rejeição das medidas de segurança pré-delituais (DP do facto vs DP do agente);
as exigências de proporcionalidade (artigo 92º/nº2)

Não existem medidas de segurança pré-delituais: esse era o “sonho” da Escola Positivista italiana,
ser possível identificar, através de métodos médicos, os criminosos como classe autónoma, antes de
Marisa Branco 33
Direito Penal I

eles cometerem qualquer crime, o que permitiria ao Estado exercer uma verdadeira prevenção
empírica.

Isto foi abandonado no século XX, não existem tipos de pessoas, os criminosos deixam de ser
considerados como uma classe à parte. Hoje não existem medidas de segurança pré-delituais.

Exceção: Prisão preventiva: existe um perigo de continuação da atividade criminosa de arguido por
determinado crime, ainda não condenado. Esta assemelha-se a uma medida de segurança pré-
delitual, o pressuposto será a pura perigosidade.

As medidas de segurança não estão sujeitas ao princípio da culpa, mas sofrem certas limitações:

E o que é a Perigosidade Criminal?

Não é um conceito naturalístico. É sim, um perigo fundado de repetição dos mesmos factos ou de
factos da mesma natureza.

Se o agente não for criminalmente perigoso, não tem lugar a aplicação de nenhuma medida de
segurança. O agente que pratica o crime pode até ser inimputável em razão de anomalia psíquica,
mas não é considerado perigoso, ou porque a anomalia foi passageira ou porque a anomalia tenha
cessado.

A medida de segurança só pode ser aplicada se a perigosidade persistir no momento da decisão


da sentença da medida de segurança. A culpa é referida ao momento da prática do facto, nada tem
a ver com o momento da sentença. Já a perigosidade tem que subsistir no momento da sentença.

Relativamente à dimensão da importância do facto típico e ilícito — encontra expressão em várias


normas, por exemplo, o Dr. Figueiredo Dias refere o art. 92º/2 e 3 do CP – sendo o art. 92º/3 do CP
uma exceção ao nº2.

• Nota: Facto típico e ilícito - facto descrito num tipo de crime e contrário ao Direito.

2. Finalidades e legitimação da medida de segurança

A primazia da prevenção especial relativamente à prevenção geral: de socialização e de


segurança: o caso especial do artigo 274º-A/2 CP

Art. 91º/2 CP.




Uma outra diferença relativa às medidas de segurança em relação às penas é a primazia da
prevenção especial em relação à prevenção geral. Nós vimos que a finalidade principal das penas é
a prevenção geral positiva, como estabilização das normas e, a partir daí, protege-se os bens
jurídicos. Aqui, as coisas invertem-se, é claro que se estamos a agir contra a perigosidade, o sentido
da medida de segurança irá ser de prevenção especial, prevenção da reincidência. 


Por um lado, uma prevenção especial de socialização — requer-se, aqui, uma intervenção do
Estado, seja uma intervenção terapêutica, seja outro tipo de intervenções.


Em certos casos, a prevenção especial também cumpre funções de segurança — o Art. 101º do CP
é uma medida que visa essencialmente a segurança das pessoas.

Marisa Branco 34
Direito Penal I

Assim…

! As medidas de segurança têm como principal finalidade atuar sobre o agente, seja uma
prevenção de ressocialização, de recuperação (prevenção positiva), seja através de uma finalidade
de segurança (neutralizar a perigosidade).
!Se estamos a reagir contra a perigosidade, as medidas de segurança serão naturalmente de
prevenção especial. Uma prevenção da reincidência.

As exigências de prevenção geral são mais brandas.

Art. 274º A/2 CP — “Quando qualquer dos crimes previstos no artigo anterior for cometido por
inimputável, a medida de segurança prevista no artigo 91.º pode ser aplicada sob a forma de
internamento coincidente com os meses de maior risco de ocorrência de fogos.”— Medida de
segurança especial aplicada ao agentes dos crimes de incêndio florestal — Esta medida não é
aplicada continuamente, mas apenas nos meses em que é mas fácil para o agente voltar a por fogos -
aqui, a finalidade de segurança prevalece sobre a de ressocialização.

É evidente que quem sabe que mesmo sendo absolvido daquele facto por não ter culpa pode ficar
sem a carta por um período indeterminado de tempo até nova autorização é capaz de pensar 2 vezes
para o fazer novamente.

Secundariamente, as medidas de segurança também estão sujeitas por exigências de prevenção


geral positiva e prevenção geral negativa:

A função secundária da prevenção geral (negativa a positiva): artigo 91º/2 CP:

Secundariamente, as medidas de segurança também são determinadas por exigências de prevenção


geral positiva e prevenção geral negativa.

Este artigo 91º/2 diz o seguinte: embora a medida de segurança deva cessar quando cessa a
perigosidade, quando o facto praticado pelo inimputável corresponder a crime contra as pessoas ou
a crime de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a cinco anos, o internamento tem a
duração mínima de três anos, salvo se a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem
jurídica e da paz social. O que esta em causa são problemas de prevenção geral, porque quando se
trata de crimes graves contras as pessoas, existe, por vezes, o receio de a comunidade ficar alarmada
— por isso é que a lei exige que o internamento tenha pelo menos 3 anos.

Isto introduz uma exceção na lógica das medidas de segurança. A pessoa comete um crime, é
inimputável, passado meio ano de tratamento a pessoa deixou de ser perigosa por alguma razão —
de acordo com o nº2, esta pessoa, se o crime cometido tiver sido grave, não é libertada, tem de ficar
pelo menos 3 anos internada. Isto parecia, à primeira vista, uma violação do pp. da
proporcionalidade.

Segundo o entendimento da Dr. Maria João Antunes: entende que isto será uma presunção de
perigosidade do agente e poderá, dessa forma, ser contrariado.

Dr. Figueiredo Dias: entende que se trata de uma exigência de prevenção geral da perigosidade.
Nestes casos graves, estamos, ainda, perante uma medida de prevenção geral, sobre a forma de
confirmação de vigência da norma —mesmo sendo inimputável existe uma exigência de segurança.

Por exemplo, se uma pessoa se embriagar até perder a consciência e, nesse estado, conduzir um
veículo será absolvida por este crime, por estar num estado de inimputabilidade. Todavia, a esta
Marisa Branco 35
Direito Penal I

pessoa pode ser aplicada a medida de segurança da cassação do titulo de condução. O que existe
aqui são efeitos da prevenção geral negativa.

Legitimação das medidas de segurança: defesa social, proporcionalidade (art. 18º/2 CRP),
administração da justiça e reserva de juiz (202º/1 CRP)

Não tendo o limite da culpa, as medidas de segurança devem obedecer a rigorosas medidas de
proporcionalidade:

Aqui, diria que o discurso é relativamente parecido, acentuando outro tipo de finalidade, a
finalidade de defesa social, de proteção contra pessoas perigosas e que previsivelmente irão
praticar outros é um fim legitimo do estado. Por outro lado, vigora aqui o Principio da
Proporcionalidade – art. 18º/2 CRP – (Necessidade, da adequação e da proporcionalidade em
sentido estrito).

Por último, a legitimação das medidas de segurança dá-se também com a reserva da aplicação
dessas medidas ao juiz, portanto, trata-se de uma matéria de reserva jurisdicional (art. 202º CRP)
e de uma tarefa de administração da justiça penal.

Houve uma certa ideia de purificação do Direito Penal e de movimentar as medidas de segurança
para o Direito Administrativo, e foi uma ideia bastante defendida, principalmente no que toca aos
delinquentes políticos, devido à nota autoritária do Estado Novo quanto a este tipo de criminosos
(políticos).

Hoje há, de facto, uma corrente que diz o seguinte: a administração do século XXI é subordinada à
lei, e tem por limites a CRP e direitos fundamentais, hoje, não há razões para desconfiar dessa
forma da administração e não lhe entregar esta administração das medidas de segurança,
principalmente relativamente aos inimputáveis.

Outros autores resistem, tais como o Dr. Figueiredo Dias e o Dr. Pedro Caeiro, o DP será mais
amigo dos direitos das pessoas do que o Direito Administrativo.

Marisa Branco 36
Direito Penal I

3. O relacionamento da pena com a medida de segurança: A questão do “Monismo” ou


“Dualismo” do sistema sancionatório

Trata-se de perceber como é que se relacionam as penas e as medidas de segurança, se têm um


sentido unívoco e se uma certa categoria se aplica a uma determinada classe de pessoas, ou se, pelo
contrário, elas se podem aplicar cumulativamente a várias classes de pessoas.

O Dr. Caeiro começa por caracterizar o sistema sancionatório português:

Marisa Branco 37
Direito Penal I

1. Temos as Penas que assentam em 2 pressupostos:

• Facto ilícito típico


• Culpa


E que se dividem em 2 tipos:

(a) Penas Principais: 


- Prisão
- Multa 

(b)  Penas Acessórias:

- Proibição do exercício de função


- Proibição de conduzir veículos c/motor
- Proibição de confiança de menores e inibição de responsabilidades parentais (iv) Etc. 

2. Temos as Medidas de segurança que dispõem, de igual modo, de 2 pressupostos:

• Facto ilícito-típico
• Perigosidade


E que se dividem em 2 tipos:



(a) Medidas de Segurança Detentivas

- Internamento de inimputáveis

(b) Medidas de segurança não detentivas

- Interdição de atividades
- Cassação/Interdição da concessão do título de condução de veículo com motor 


Em matéria de finalidades das reações criminais, não existem diferenças fundamentais entre penas e
medidas de segurança. Diferente é apenas a forma de relacionamento entre as finalidades de
prevenção geral e especial.

• Na pena, a finalidade de prevenção geral positiva assume o primeiro lugar, enquanto finalidades
de prevenção especial só atuam na moldura de prevenção construída dentro do limite da culpa;


• Na medida de segurança, as finalidades de prevenção especial (segurança e socialização)


assumem lugar dominante, mas considerações de prevenção geral de integração não ficam
excluídas, sob uma forma que se aproxima das exigências mínimas de tutela do ordenamento
jurídico.

Não é, pois, no quadro das finalidades, mas fora dele e exatamente na sua mútua delimitação que se
suscita a diferença essencial entre as penas e medidas de segurança: Na circunstância de ser
pressuposto irrenunciável da aplicação de qualquer pena o princípio da culpa, princípio esse que
não exerce qualquer papel no âmbito das medidas de segurança; e de, consequentemente, a medida
de segurança ser determinada na sua gravidade e duração pela existência da perigosidade e não da
culpa, sempre estritamente limitada pelo princípio da proporcionalidade.
Marisa Branco 38
Direito Penal I

3.1. Distinção entre monismo e dualismo:

Há, primeiramente, que esclarecer o que é um sistema sancionatório monista e um sistema dualista.

Pode um sistema ser considerado como um sistema dualista tão só porque conhece, no seu arsenal
sancionatório, pena e medidas de segurança. Nesse sentido a distinção não interessa nada, não é este
o entendimento que deve estar em causa quando se afronta a questão monismo vs dualismo do
sistema — Todos os sistemas conhecem penas e medidas de segurança, não nos estamos a referir à
existência ou não das duas espécies de reações.

Também não se trata de um sistema dualista aquele que conhece a existência de medidas de
segurança, mas as aplica apenas a inimputáveis, — por isto o sistema não perderia a a sua
característica monista - a pena e a medida de segurança teriam os seus campos de aplicação a priori
e diferentemente definidos, não existe sobreposição. E não existe, também, quando se permite a
aplicação de uma pena e de uma medida de segurança ao mesmo agente, mas por factos
diferentes — aqui o monismo não será afetado porque não existe uma acumulação da pena com a
medida de segurança como formas de reação contra a criminalidade, elas, antes, convivem numa
divisão horizontal.

Por exemplo, pode perfeitamente acontecer que determinado agente pratique um crime de
violação e, logo a seguir, um crime de furto. O tribunal chega à conclusão de que o agente é
imputável ao crime de violação, mas inimputável ao crime de furto. Isto é perfeitamente
possível, porque a imputabilidade ou inimputabilidade dizem respeito a um certo facto e não
a uma capacidade geral da pessoa – não posso dizer aquele “É inimputável ou não é
inimputável” – a inimputabilidade tem sempre por referência um facto.

! O que nos importa, quando falamos de monismo ou dualismo, é saber se é ou não possível, em
determinado sistema, aplicar cumulativamente ao mesmo agente, pelo mesmo facto, uma pena
e uma medida de segurança.

É aqui que surge o problematismo específico da alternativa monismo/dualismo: saber se —


relativamente às hipóteses em que, perante um facto ilícito-típico praticado por um agente
imputável, se verifica contradição entre as exigências acrescidas de prevenção da perigosidade e o
limite da culpa, insuficiente para dar resposta àquelas exigências — ainda é possível, legítimo e
conveniente estender o conceito de culpa e a medida da pena até um ponto em que a intervenção de
uma medida de segurança se torne dispensável.

Se a questão receber uma reposta afirmativa — monismo do sistema

Se a questão receber uma resposta negativa — dualismo do sistema

— Monismo

No sistema monista, isso não é possível, porque existe uma relação biunívoca entre penas e
imputáveis. Isto é, todas as penas são aplicadas a imputáveis, e por outro lado, os imputáveis só
podem ser objeto de penas.

Além disso, no sistema monista, as medidas de segurança só serão aplicadas a inimputáveis e, por
esse mesmo raciocínio, os inimputáveis só podem ser objeto de medidas de segurança.

Marisa Branco 39
Direito Penal I

— Dualismo

Em geral, todos respeitam a primeira relação, só se pode aplicar penas a imputáveis.

O que é específico do sistema dualista é que permite a aplicação de medidas de segurança, pelo
mesmo facto, a um imputável em acumulação com uma pena, desde que se trate de um agente
perigoso.

A pena pode acumular-se com uma medida de segurança aplicável ao mesmo agente pelo mesmo
facto.

— O nosso sistema

Esta maneira de construir os sistemas monistas e dualistas levava o Dr. Eduardo Correia a dizer:

• que o nossos sistema português era monista, dado que, para ser dualista, era preciso que a
acumulação de medidas de segurança e penas pelo mesmo facto fossem de natureza detentivas —
Só quando existe a aplicação de uma pena e de uma medida de segurança privativas da liberdade,
aplicadas à mesma pessoa, pelo mesmo facto, é que podemos falar de um sistema dualista.

• A natureza monista do sistema já não seria desmentida no caso de a pena ou a medida de


segurança não terem caráter detentivo/ de privação da liberdade. 


• O sistema não perderia a sua característica monista nem pelo facto de aplicar, ao lado das penas a
imputáveis, medidas de segurança inimputáveis, nem tão pouco pelo facto de aplicar medidas de
segurança a imputáveis, desde que tais medidas de segurança possuíssem caráter não detentivo.


• Pelo contrário, a aplicação de medidas de segurança de internamento a imputáveis faria sempre


perder o cunho monista, mesmo que não lhe fosse aplicada uma pena.

O Dr. Figueiredo Dias entende que

• quando estamos a caracterizar os sistemas das reações criminais, saber se a reação criminal é
detentiva ou não, é irrelevante. Basta que haja acumulação de uma pena ou de uma medida de
segurança ao mesmo agente, pelo mesmo facto, para que estejamos perante um sistema dualista.

3.2. O problema do dualismo: “ A burla de etiquetas e a violação do princípio da culpa

O problema que o dualismo traz em todos os sistemas que é aplicado é a chamada Burla de
etiquetas ou a possível violação do Princípio da culpa.

Não lhe chamamos pena, mas a verdade é que a culpa não é verdadeiramente uma defesa, porque
podemos continuar a restringir a liberdade de uma pessoa através de outra reação. A Burla de
etiquetas é o trocar a “etiqueta” da reação criminal e esta deixa de ser uma pena, passa a ser uma
medida de segurança, mas que pode ser executada numa prisão e, com isto, acaba por se violar o
Princípio da culpa.

Não tem sentido aplicar uma pena estritamente sujeita ao princípio da culpa, para depois a
complementar com uma medida de segurança que, por definição, não está limitada pela culpa e se
funda numa naturalística da personalidade do agente, como é a da perigosidade social.

Marisa Branco 40
Direito Penal I

3.3. Dr. Figueiredo Dias: o princípio da proporcionalidade e vicariato na execução (art. 99º
CP).

Há no argumento acima exposto muito de verdade, podendo ser um convite a limitar o sistema
dualista.

No entanto, o Dr. afirma que,

• por um lado as exigências de defesa social perante a criminalidade constituem, um postulado


fundamental do Estado de Direito e de uma política criminal eficiente e racional. 


• por outro lado, se é exato que a preservação da eminente dignidade da pessoa humana constitui o
fundamento da exigência incondicional de culpa como pressuposto da aplicação da pena, não
menos exato é que, sendo a culpa a forma ótima de limitação do poder sancionatório do Estado,
não é todavia a única — p.p. da proporcionalidade, p.p. da necessidade e da subsidiariedade — se
juntarmos estes princípios teremos de concluir ser um sistema dualista legítimo à luz dos
princípios do Estado de Direito e político-criminalmente adequado às exigências de uma defesa
social racional.

O problema do dualismo não está tanto aqui, nem em lograr uma correta articulação entre pena e
medida de segurança - nomeadamente quando uma e outra sejam privativas da liberdade, sempre
que cumulativamente aplicáveis ao mesmo delinquente.

Essa articulação é alcançável através de um equilibrado sistema de vicariato da execução:

Vicariato na execução: Isto quer dizer substituição/representação.

Trata-se de um sistema em que a execução de ambas as sanções possa ser concebida como unidade
de efeitos reciprocamente determinados. Se isto for possível, e na medida em que o seja, ficará
afastada uma outra objeção que sempre se opõe ao sistema do duplo binário:

• a de que a execução (em princípio sucessiva) das duas espécies de sanção sobre o mesmo
agente porá inevitavelmente em causa o propósito socializador que constitui a finalidade por
excelência da medida de segurança e uma das finalidades que, sempre que possível, deve
também ser almejada pela pena.

Também neste argumento existe muito de procedente. Se a primeira das sanções a executar tiver
cumprido a sua finalidade socializadora, surge o cumprimento da segunda sem sentido à luz desta
finalidade, quando não mesmo a prejudique e ponha em causa o cariz socialmente positivo que
coube à execução da primeira.

E, com isto, é o próprio princípio da estadualidade de direito da constituição político-criminal que


fica em causa. Mas à procedência deste argumento se tem procurado atalhar através da ideia do
vicariato na execução — Ideia que só à relativamente pouco tempo começou a fazer caminho, que
é entendida nas diversas doutrinas e legislações que a consagram com um sentido e uma extensão
muito diversos, mas que é redutível a um núcleo essencial:

- A medida de segurança deve ser executada antes da pena de prisão e nela descontada, por ser esta
a solução em princípio mais favorável à socialização do delinquente;
- Na segunda sanção a cumprir devem ser imputados todos os efeitos úteis que com a execução da
primeira tenham sido alcançados;

Marisa Branco 41
Direito Penal I

- À execução no seu todo deve ser aplicadas as medidas de substituição e os incidentes de


execução que possam favorecer a socialização, nomeadamente a suspensão da execução e/ou a
libertação condicional.

Se este programa — e é ele que hoje se contém de forma explícita no artigo 99º CP — for realizado
com êxito e na medida em que o seja, não parecerá justificado o pessimismo de quem pensa que o
princípio do vicariato só ajuda dentro de estreitos limites; antes devendo dizer-se que deste modo se
abrem vias de realização aos sistemas dualistas que, de outra forma, ficariam fechadas.

Ao mesmo tempo que se abre a possibilidade de consagração de um sistema monista prático, que
reage contra a criminalidade especialmente perigosa com instrumentos formalmente considerados
como penas mas que constituem, de um ponto de vista substancial, verdadeiras medidas de
segurança.

Portanto, o que se procura nestes casos do Artigo 99º é começar a executar a medida de segurança e
só depois desta é que se pode executar a pena. Mas o tempo que a pessoa teve condenada na medida
de segurança, é descontada na pena.

! Portanto, o vicariato na execução, segundo o Dr. Figueiredo Dias, permite eliminar, em sistema
dualistas, grande parte dos efeitos negativos destes sistema.

3.4. Um sistema “tendencialmente monista” ou “monista prático” das reações criminais

Pode, ainda, dizer-se que o sistema português é tendencialmente monista ou monista prático das
reações criminais. O que significa isto?

Exemplo de monismo prático: o regime legal dos delinquentes por tendência no Direito português:

A pena relativamente indeterminada como reação criminal: artigo 83º a 90º CP; Pressupostos,
construção de uma moldura de perigosidade e as suas implicações; a remissão da cessação da
pena para o regime do internamento de inimputáveis (art. 92º e ss)

Pena relativamente indeterminada: de acordo com o artigo 83º nº2 do CP, tem um mínimo
correspondente a 2/3 da pena de prisão que caberia ao crime cometido e um máximo
correspondente a esta pena, acrescida de 6 anos, de 4 anos ou de 2 anos e cuja duração concreta só
durante a execução será determinada.
— Então, numa pena relativamente determinada (concreta) de 6 anos corresponderia uma pena
relativamente indeterminada de 4 a 12 anos ( não pode ser inferior a 4 nem superior a 12).

O CP português pune a categoria dos delinquentes especialmente perigosos com uma pena
relativamente indeterminada. Diferentemente do que pensava o Dr. Eduardo Correia, não pode
conceber-se na sua inteireza como uma pena de culpa. É, antes, um misto de pena e de medida de
segurança:

- de pena, até ao limite da sanção que concretamente caberia ao facto, eventualmente agravada em
função da “culpa da personalidade”;
- De medida de segurança na parte restante, comandada pela persistência da perigosidade do
delinquente.

Mas a solução, em todo o caso, político-criminalmente preferível à da mera adição de uma pena e
de uma medida de segurança aplicadas ao agente pelo mesmo facto, na medida em que permite
alcançar por forma ótima as finalidades que se propõe o sistema de vicariato.
Marisa Branco 42
Direito Penal I

Solução que realiza, assim, aquele monismo prático que a doutrina de Beleza dos Santos propunha e
que justifica que o sistema português das sanções criminais possa ser considerado, com inteira
propriedade, um sistema tendencialmente monista.

Assim:

- Temos, aqui, um juízo de perigosidade, alguém que tem uma acentuada propensão para o crime,
faz-se temer que volte a pratica-los e é, ainda, preciso que essa inclinação para o crime persista
no momento em que é aplicada a medida de segurança.
- A lei diz que se vai construir uma moldura da pena relativamente indeterminada.
- A pena é relativamente indeterminada em relação à sua duração concreta, dado que ela vai cessar
durante a execução da pena, cessa quando se sabe a perigosidade do agente.
- Assim, de acordo com esta leitura, temos formalmente uma pena, não é uma medida de
segurança, mas tem elementos na sua aplicação, construção e execução que nos remetem para as
medidas de segurança.

— Perspetiva do Dr. Eduardo Correia e sua crítica:

Esta começou por ser uma criação do Dr. Eduardo Correia para responder aos delinquentes
especialmente perigosos, dado que Dr. Eduardo Correia era um normativista — as penas eram
limitadas em absoluto pela culpa. Mas essa conceção deixava lhe em mãos o problema dos
delinquentes especialmente comuns, que, como vimos, não estão no cálculo do legislador quando
este estabelece as penas comuns.

O Dr. Eduardo Correia dizia que, nestes casos, justificavam-se as penas mais graves, dizia o Dr. que
estes agentes têm uma culpa especial, dado têm uma inclinação acentuada para o crime e, mesmo
assim, não corrigem essa dimensão da personalidade — culpa pela não formação da
personalidade. Dizia o Dr. Eduardo Correia que a pena relativamente indeterminada ainda é uma
pena suportada pela culpa, mas estes agentes têm uma culpa ainda mais grave, logo, justifica-se que
seja mais longa — forma de legitimar a pena relativamente indeterminada ainda ao abrigo do
sistema monista.

Mas, segundo o Dr. Caeiro, isto traz um problema:

1. Ninguém tem o dever de construir a sua personalidade de acordo com um certo modelo, com os
valores jurídicos, desde que na sua ação não ofenda os bens jurídicos. A personalidade é aquilo
que cada um acredita, é livre, faz parte da liberdade de consciência e é constitucionalmente
garantida.

2. Quando um sistema jurídico como o português impõe certas balizas de pena, está a calcular o
limite máximo de pena da restrição da liberdade e função da proteção da vida, toda a censura
individual que se faz a quem mata uma pessoa tem de estar contida dentro dessa moldura, não
pode haver censuras pessoais para lá desta, não podemos legitimar a continuação de uma pena
para lá do momento em que expira a quantidade de pena prevista para o crime, seria uma culpa
não sustentada.


Assim, a culpa não será legitimação para esta pena, será a perigosidade.

Para a cessação da pena indeterminada vale o regime das medidas de segurança. Em certos
casos, na sua execução as penas relativamente indeterminadas são materialmente medidas de
segurança e não penas verdadeiras.
Marisa Branco 43
Direito Penal I

Parece inequívoco que depois do limite máximo previsto na lei, é uma lógica de prevenção especial
da perigosidade.

Nota: No exame não fazer ligação das penas relativamente indeterminadas a serem tipos de medidas
de segurança, não o são. A pena relativamente indeterminada é formalmente uma pena, está inserida
nas penas, agora numa consideração material das coisas, de facto, aproxima-se muito mais às
medidas de segurança.

Imputabilidade diminuída e a ficção de inimputabilidade quando o agente não possa ser


censurado por não dominar os efeitos da anomalia psíquica grave que reduz
significativamente a sua capacidade para avaliar o sentido da norma ou para se determinar de
acordo com ela

Estão previstos no art. 20º/2 e 3 do CP.

Nestes casos, o agente ainda é imputável, consegue avaliar a ilicitude do facto e consegue
determinar-se de acordo com essa determinação. Mas este agente sofre de uma anomalia psíquica
grave, ele não domina os efeitos dessa anomalia e não pode ser censurado.

Por isso, ela ainda é capaz de perceber, mas tem essa capacidade sensivelmente diminuída, e por ter
essa capacidade diminuída ela não consegue controlar-se ou perceber totalmente o que está a
praticar (90º/3).

Se esta capacidade é diminuída o que acontece em termos de penas?

Por ter a capacidade reduzida este agente tem, também, uma culpa muito reduzida, por inerência
esta culpa reduzida implica que não se pode punir gravemente essas pessoas.

O problema é que o sujeito pode continuar a praticá-las e a sofrer penas leves, a reação penal será
sucessivamente leve. Assim, o OJ permite ao juiz formular uma ficção de inimputabilidade.

A saber: As medidas de segurança no direito português são aplicáveis a imputáveis e inimputáveis,


mas se forem medidas privativas de liberdade só são aplicadas a inimputáveis.

Neste caso, não se pode aplicar a doutrina do Dr. Eduardo Correia, porque faz parte da
imputabilidade reduzida a pessoa não dominar os efeitos da anomalia psíquica e, portanto, a
formação da personalidade no sentido dos valores jurídicos que o Dr. Eduardo Correia formulou
não faz aqui sentido.

Nos delinquentes por tendência, trata-se de um caso grave. Nos casos de imputabilidade reduzida,
trata-se de casos originados por anomalias psíquicas que nós não podemos censurar. Em ambos
casos, o que temos é um sistema monista prático, dado que formalmente tudo está conforme os
ditames. No entanto, materialmente, estamos perante certos elementos que constam das medidas de
segurança a agentes que, na realidade das coisas, são imputáveis e daí falarmos de um monismo
tendencial.

E porque é que mesmo assim continuamos a falar de monismo? Porque não é, verdadeiramente, um
sistema dualista, trata-se de normas especiais. Isto é, na generalidade dos casos o sistema português
é um sistema monista, que aplica penas a imputáveis e aplica medidas de segurança a inimputáveis,
em geral esta separação é respeitada, agora nos 2 institutos supramencionados as coisas alteram-se
de certa forma.

Marisa Branco 44
Direito Penal I

Nota: Pergunta de oral: Os agentes do art. 20º/2 são imputáveis ou não? São imputáveis, só que
podem ser declarados inimputáveis, daí ser um mecanismo de ficção de inimputabilidade.

3.5. Antes da proporcionalidade: incidência da proibição de (idem) Bis in idem sombra a


acumulação de sanções? A recuperação da posição de Eduardo Correia (restrição do
problema às medidas privativas da liberdade)

Será que a aplicação de uma pena e de uma medida de segurança cumulativamente não colide com
o Princípio bis in idem?

Fará sentido uma recuperação da visão do Dr. Eduardo Correia nesta matéria, por alguma razão ele
de facto restringia isto.

O Dr. Caeiro vai, até, de encontro à visão do Dr. Eduardo Correia no sentido de não existir aqui
violação do Princípio da culpa. Para o Dr. Caeiro não parece violar o monismo nem o Principio da
culpa.

Por exemplo, proibição de conduzir a alguém que violou grosseiramente as regras da estrada,
porque existe aí um espaço suplementar de proibir a pessoa de conduzir que não está ocupado pela
pena de prisão, o legislador não está proibido de ter sistemas de punição múltipla, que abranjam
todas as vertentes do facto, uma pena de prisão pode não ser suficiente para responder a um crime
rodoviário.

Conclusão:

Penas —————— > imputáveis

Medidas de segurança ———— > não detentivas ————> imputáveis


——> detentivas e não detentivas ——> inimputáveis

• Em suma, o sistema português é formalmente monista, se entendermos que quando falamos em


monismo e dualismo só interessam as medidas detentivas, não afeta o sistema monista o facto de
algumas medidas de segurança não detentivas serem aplicáveis a imputáveis.

• Assim, por exemplo, é possível aplicar uma medida de segurança de cassação da carta de
condução a uma pessoa imputável.

• Pode aplicar uma pena e uma medida de segurança ao mesmo agente, mas apenas por factos
diferentes.

Casos especiais: Implicam alguns desvios à natureza monista do sistema

1. A Pena Relativamente Indeterminada: que pode tornar-se materialmente, na sua execução,


numa medida de segurança, nunca perdendo o caráter formal de pena;

2. A ficção da inimputabilidade dos agentes de imputabilidade diminuída.

Marisa Branco 45
Direito Penal I

6. O comportamento criminal e a sua definição: O conceito material de


crime
O que é o crime? Como se procede ao discurso de criminalização e descriminalização?

— As respostas a estas questões foram variando.

1. O conteúdo material do conceito de crime

Este ponto da matéria é importante pela introdução que nos faz à categoria do bem jurídico. Mas
antes disso temos que referir algumas outras noções.

O que é um crime? O que é que nos faz considerar que uma conduta é crime e a outra não?

1. Desde logo, podemos começar pela perspetiva positivista legalista:




Dizia-se que crime era tudo aquilo que o legislador definisse como tal. É uma remissão para
o legislador do poder de determinar as condutas que merecem o epítome de crime. O conceito
material de crime viria a corresponder ao que o legislador disser ser o conceito formal.


Esta perspetiva é inaceitável, ela não nos dá nenhum critério sobre o que deve ser crime, não
nos ajuda na matéria de criminalizar ou descriminalizar certa conduta.

2. A segunda perspetiva é a perspetiva positivista sociológica, que procurou dar um conteúdo


transjurídico/metajurídico de inspiração social ao conceito de crime, combatendo as deficiência
da perspetiva legalista:


O que importaria seria divisar atrás da multiplicidade das manifestações legais do crime, aquilo
que em termos de objetividade e universalidade pudesse, à luz da realidade social, ser como tal
considerado


Dizia Garofalo que crime é aquilo que a sociedade, universalmente, considera como tal,
independentemente do lugar e da época. O crime como que seria uma categoria segregada pela
sociedade, corresponderia à violação de sentimentos altruísticos fundamentais, a piedade e a
probidade — assim se constituiria a noção de delito natural, a qual seria sensivelmente igual
para todos os povos de idêntica raça e civilização e teria como denominador comum a
característica de possuir na sua base uma conduta socialmente danosa.


Já Durkheim fazia referência a sociedades concretas, começava por determinar os sentimentos
cuja violação constituiria o crime não em termos de comunidade civilizacional, mas nos
parâmetros mais circunscritos de uma formação social concreta, politicamente organizada —
serem comuns à consciência coletiva, fortes e precisos. 


— Tratam-se, no entanto, de critérios muito vagos, não existe um consenso absoluto
relativamente aos comportamentos considerados crimes pela sociedade. 


Esta perspetiva sociológica teve várias ramificações, e todas elas tiveram muita importância
para o Direito Penal. Na criminologia trouxe o conceito de deviance e este referia-se à infração
de qualquer norma e o desvio a um comportamento socialmente imposto — isto permite estudar
o porquê de alguns desvios da norma serem considerados crime e outros não serem
considerados crime. 

Marisa Branco 46
Direito Penal I


Uma outra corrente foi encontrada em Mill e o Princípio do Dano:


Crime seria tudo aquilo que cause danos a terceiros. Esta abordagem tem o mérito de
estabelecer de forma concertada e sistemática um conceito pré-legal de crime, que, como tal,
possui viabilidade para se arvorar naquele padrão crítico do direito vigente e do direito a
constituir sem o qual o conceito material de crime se torna imprestável.


Se bem que louváveis nos seus propósitos, estas conceções revelam uma menor capacidade de
rendimento na determinação do conceito material de crime do que aquelas que o traduzem na
tutela subsidiária de bens jurídicopenais (ver infra): deve-se-lhes censurar a imprecisão e o
facto de serem demasiado largas.

3. Perspetiva ético social: 




À passagem do estado de Direito formal ao Estado de Direito material correspondeu a
introdução no conceito material de crime de um ponto de vista moral (ético)-social que leva a
ver na essência daquele a violação de deveres ético-sociais elementares ou fundamentais.
Paradigmática, a este propósito, é a lição de Welzel, para quem a tarefa central do DP residiria
em assegurar a validade dos valores ético-sociais positivos de ação. 


Esta conceção corresponde a uma atitude enraizada na generalidade das pessoas, para quem o
direito penal constituiria a tradução, no mundo terreno, das noções de pecado e de castigo,
vigentes na ordem religiosa e moral.


No entanto, não deve tal conceção merecer, no plano da ordem jurídico-penal, aceitação. Não é
função do direito penal, nem primária, nem secundária, tutelar a virtude ou a moral.


O Dr. Caeiro refere que a crítica à perspetiva ético social é a que vai de encontro com o caráter
plural da sociedade — é ainda mais intensa do que na perspetiva sociológica — não existe uma
ética social que deva dominar as outras, isso é contrário à própria ética de certa forma. O que
caracteriza a nossa sociedade é a pluralidade ética, não existe uma tábua de valores imposta aos
cidadãos, um padrão ético comum.

4. A perspetiva racional, à qual o Prof. Figueiredo Dias chama de Perspetiva racional ou


Funcional-teleológica: 


Não podemos dissociar o crime da função do direito penal, temos de olhar para o crime de uma
perspetiva funcional teleológica e racional — A função do Direito Penal aqui assinalada é a de
que o Direito Penal serve para proteger subsidiariamente, isto é, em última ratio, bens
jurídicos que tenham dignidade penal (bens jurídico-penais). 


Teleológico-funcional: na medida em que se reconheceu definitivamente que o conceito
material de crime não podia ser deduzido das ideias vigentes a se em qualquer ordem
extrajurídica e extrapenal, mas tinha de ser encontrado no horizonte de compreensão imposto
ou permitido pela própria função que ao direito penal se adscrevesse no sistema jurídico-social. 


Racional: na medida em que o conceito material de crime vem assim a resultar da função
atribuída ao direito penal de tutela subsidiária (de última ratio) de bens jurídicos dotados de
dignidade penal (de bens jurídico-penais) - bens jurídicos cuja lesão se revela digna e
necessitada de pena.


Marisa Branco 47
Direito Penal I

Podemos definir que o crime é a conduta cuja danosidade social se traduz na ofensa a um bem
jurídico digno de pena e carecido de proteção penal. 


1.1 Bem jurídico penal

Bem jurídico: podemos defini-lo como a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade,


na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente
relevante e, por isso, juridicamente reconhecido como valioso.


Como é que foi evoluindo esta definição de bens jurídicos? 




1. Na época do liberalismo, século XIX:

A noção, primeiramente, assumiu um conteúdo individualista, identificador do bem jurídico com os


interesses primordiais do indivíduo, nomeadamente a sua vida, o seu corpo, a sua liberdade e o seu
património— direito à vida, à propriedade, …

Daqui até à identificação tendencial da noção de bem jurídico com os direitos subjetivos
fundamentais da pessoa individual foi só um passo.

2. Uma viragem na compreensão do conceito teve lugar na segunda década do século XX, com o
aparecimento do chamado conceito metodológico do bem jurídico de raiz exasperadamente
normativista, ligada a pressupostos neokantianos próprios da chamada Escola jurídica sul-ocidental
alemã. Esta conceção faz dos bens jurídicos fórmulas interpretativas dos tipos legais de crime,
capazes de resumir compreensivamente o seu conteúdo e de exprimir o sentido e o fim dos preceitos
penais singulares, meras abreviaturas do pensamento teleológico que os penetra, em suma,
expressões da ratio legis que lhes preside.

Uma tal compreensão do bem jurídico deve ser rejeitada. Com ela o conceito tornar-se-ia intra-
sistemático, perde todo o seu interesse para a determinação do conceito material do crime. A
atribuição ao bem jurídico de uma função hermenêutica significaria o seu esvaziamento de conteúdo
e a sua transformação num conceito legal-formal.

3. Uma conceção teleológico-funcional e racional do bem jurídico exige dele que obedeça a uma
série mínima, mas irrenunciável de condições. O conceito deve traduzir:

- um qualquer conteúdo material, uma certa corporização para que possa arvorar-se em indicador
útil do conceito material de crime - ele só pode surgir como noção transcendente e, nesse sentido,
trans-sistemática relativamente ao sistema normativo jurídico-penal;
- Deve ser político-criminalmente orientado e, nesta medida, intra-sistemático relativamente ao
sistema social e, mais concretamente, ao sistema jurídico-constitucional.

! O problema é determinar de que forma pode o conceito obedecer a todas estas exigências e, do
mesmo passo, lograr a materialidade e a concreção indispensáveis para que se torne utilizável na
tarefa prática de aplicação do direito penal.

Marisa Branco 48
Direito Penal I

Teorias sobre a abordagem à problemática:

a) A disfuncionalidade sistémica — Amelung; Jakobs

A primeira abordagem procura a resposta à problemática acima exposta na teoria da sociedade, seja
sob a forma da teoria crítica, seja sob a forma da teoria do sistema social.

Amelung: ensaia a tentativa de basear o conceito material de crime, e por aí o conceito de bem
jurídico, imediatamente na noção de dano social, cujo conteúdo vai agora encontrar na teoria do
sistema social. Essencial para a determinação da ordem dos bens jurídicos seria a
disfuncionalidade sistemática dos comportamentos a que deveria obstar-se pela utilização das
sanções criminais.

Jakobs: Não deixa de reconhecer que a noção de crime é determinada através da danosidade social
e esta aferida em função do sistema respetivo.

Crime seria tudo aquilo que não permite ao sistema social ter um desempenho suficiente

Esta aproximação não é suficiente, desde logo, por não ser possível ter uma aproximação
puramente social aos bens jurídicos, não há um critério de valoração que diga X bem jurídico
deve ser protegido pelo direito penal e Y já não é digno de proteção. Essas teorias, consideram
como campo de atuação, ou campo potencial de atuação todos os comportamentos que sejam
disfuncionais para o sistema e, por sistema, entenda-se como o sistema social. 


Esta doutrina não deve ter acolhimento por se limitar a encarar um crime como uma disfunção do
próprio sistema e, por conseguinte, tudo o que seja uma disfunção do sistema pode ser apto a
constituir um crime.

b) O recurso direto por parte do Direito Penal a categorias da teoria social

Outra teoria, algo semelhante, propõe que se recorra diretamente a certas categorias da teoria
social para distinguir ou identificar os comportamentos que devem ser crime.

Dr. Augusto Silva Dias: levou a cabo uma tentativa de traduzir diretamente categoria da teoria
social em termos de validade/legitimação jurídico-penal, fazendo assentar esta nos seguintes
pressupostos fundamentais:

- O “mundo da vida”, por contraposição à “função”, de um lado, a “interação comunicativa” ligada


ao “reconhecimento pessoal recíproco”, do outro.
- O que conduziria a definir o bem jurídico como objeto de valor que exprime o reconhecimento
intersubjetivo e cuja proteção a comunidade considera essencial para a realização individual
cidadãos participante.
- Fora da validade jurídico-material ficaram todos os delicta mere prohibita (delitos contra a ordem
económica e financeira), que não pertenceriam ao mundo da vida e da experiência prática
consensualmente assumida pela comunidade, mas relevam unicamente de uma razão de ser
sistémica e contemplam lesões de meros interesses funcionais.

Uma construção deste teor revela os perigos de recurso direto a uma qualquer teoria da sociedade
para definição imediata dos termos da validade/ legitimação jurídico-penal.

Marisa Branco 49
Direito Penal I

c) O sistema social como “ambiente” e dimensão do modo-de-ser da pessoa: Os bens jurídicos


instrumentais — bens-meio — almeida Costa — ordenados à realização da pessoa e que
tomam emprestado valor dos bens-fim

Um tal discurso só poderia servir o processo legitimador de todo o Direito, não especificamente do
direito penal.

Em primeiro lugar, um tal discurso só poderia servir o processo legitimador de todo o Direito, não
especificamente do direito penal ou mesmo só de uma parte do DP positivo.

Em segundo lugar, ela esquece que o sistema é simultaneamente ambiente e constitui nesta medida
um dimensão do próprio modo de ser pessoa: não existe um mundo da vida cindido do sistema, pelo
que a proteção do sistema participa da própria proteção da dignidade da pessoa.

Em terceiro lugar: por esta via se retira à CRP o papel diretor que materialmente lhe cabe da ordem
legal dos bens jurídico-penais. A ordem económica ou financeira, como a ordem política, a
fiscalidade, o mercado, (…), conformam valores jurídico-constitucionalmente reconhecidos, mesmo
que sistémico-funcionalmente condicionados ou mesmo determinados.

Como bem reconheceu António Manuel Almeida Costa, ao advogar de há muito a categoria que
chama dos “bens jurídicos instrumentais”, “bens jurídicos-meio” ou “bens jurídicos de perigo”
como autênticos bens jurídico-penais. Bens de clara orientação sistémico-funcional, na medida em
que se caracterizam por consubstanciarem, em si mesmos, objetivos organizatórios e funcionais,
mas relativamente aos quais se verifica uma fusão íntima com os bens jurídicos fundamentais a que
servem de suportes, como consequência de se mostrarem indispensáveis à respetiva conservação.

Exemplos de Bens-meio: funcionamento dos sistema de subvenções públicas, saúde pública, etc.

Assim:

- os chamados bens meio, formam-se para se proteger antecipadamente, de uma forma mais eficaz,
os chamados bens fim (aqueles em relação aos quais o direito está concebido para a pessoa
humana e as suas necessidades).

- Estes bens-meio, precisamente por se encontrarem ordenados à proteção dos bens fim como que,
por um efeito de irradiação, adquirem um certo valor desses bens fim, como que se coloram de
uma certa etnicidade. 


Por exemplo, o sistema das subvenções é um bem meio que se propõe a estar axiologicamente
conformado à proteção dos bens fim.

d) Posição adotada: A Constituição como lugar de consagração jurídica dos bens de uma
comunidade. Relação de mútua referência ou congruência substancial entre CRP e DP

O primeiro lugar no qual se há de encontrar os bens jurídico-penais é na Constituição de uma


certa comunidade. A constituição é por excelência o “lugar” no qual se encontra os valores mais
importantes de uma comunidade, é o “lugar” do consenso máximo e, por conseguinte, um interesse
que não tenha relevo constitucional não há de ser um interesse importante para determinada
comunidade.

Marisa Branco 50
Direito Penal I

A constituição tem este papel de revelação. Quando se fala em constituição, para esta temática, é
de uma forma material (o que há para la do texto) e não formal (o texto constitucional propriamente
dito), ou seja, há matérias que têm dignidade constitucional mas não estão positivadas.

O segundo motivo, por excelência, de se considerar que seja na constituição que se encontra os
bens jurídicos importantes para a comunidade, pode ser encontrado na formulação do art 18º/2 da
CRP, que nos diz que só se pode restringir direitos fundamentais em homenagem a outros direitos
ou interesses constitucionalmente reconhecidos. O direito penal, como se sabe, acaba por ser uma
limitação de direitos e, essa limitação só pode existir quando tenha por objetivo proteger outros
interesses com a mesma dignidade.

! Assim, gera-se aquilo que o Dr. Figueiredo Dias chama de relação de mútua referência
substancial/material entre a ordem constitucional dos bens jurídicos e a ordem penal dos bens
jurídicos. Relação que não será de identidade ou só de recíproca cobertura, mas de analogia
material, fundada numa essencial correspondência de sentido e de fins (do ponto de vista da sua
tutela). Correspondência que deriva de a ordem jurídico-constitucional constituir o quadro de
referência e, ao mesmo tempo, o critério regulativo da atividade punitiva do Estado.

É nesta aceção que os bens jurídicos protegidos pelo direito penal devem considerar-se
concretizações dos valores constitucionais expressa ou implicitamente ligados aos direitos e deveres
fundamentais e à ordenação social, política e económica. É por esta via que os bens jurídicos se
transformam em bens jurídicos dignos de tutela penal ou com dignidade jurídico-penal — Bens
jurídico-penais.

No que designa a relação da pessoa em face dos bens jurídicos, podemos observar:

• Bens jurídicos imediatamente ligados à pessoa, como projeções imediatas da pessoa;

• Bens jurídicos mediados pelo sistema social, representam certas pretensões da pessoa, o modo de
ser social da pessoa, bens jurídicos da pessoa em sociedade/comunidade.

Há que atentar numa certa permeabilidade entre estas categorias, não são estáticas — o bem
jurídico, em si mesmo, também não é uma categoria estática.

O direito penal de justiça/primário será aquele está consubstanciado no código, diz inelutavelmente
respeito aos direitos, liberdades e garantias; o direto penal secundário, avulso, já está em linha com
a proteção de bens jurídicos homólogos dos direitos sociais.

Produção de um bem jurídico-penal: como se processa?

— Sistema social

Hierarquia de valor em relação aos bens

1. Bens carecidos de tutela penal (necessidade de pena) - é preciso que ele necessite de tutela
penal — fragmentaridade de 1º grau, o direito penal não protege todos os bens jurídicos.
2. Bens dignos de tutela penal (dignidade penal)
3. Bens jurídico-constitucionais
4. Bens, interesses, valores sociais

- Na base da pirâmide temos o mundo social, com um acervo de bens (qualquer entidade capaz
de satisfazer necessidades) ou seja, bens que neste sentido não têm ainda uma valoração (a droga
Marisa Branco 51
Direito Penal I

é um bem suscetível de satisfazer necessidades- não se está a valorar, temos uma perspetiva
puramente social). Aqui, ainda não temos um momento jurídico, as valorações por serem sociais
não se transformam numa valoração jurídica. 


- As primeiras valorações dão-se quando estes bens ou interesses ascendem à proteção


constitucional. Estes bens até podem assumir a forma de direitos, como pretensões subjetivas
mas, como o doutor Vieira de Andrade explicava, os diretos também têm uma dimensão objetiva. 


Os bens dignos de tutela penal não são quaisquer bens constitucionais, ou seja, não basta que
se trate de um bem com tutela constitucional para podermos estar perante um bem digno tutela
penal,

- Temos ainda os bens que carecem de tutela penal, ou seja, não basta que um bem seja digno da
tutela penal, há ainda que ver aqueles que precisam/carecem da lei penal para o proteger contra
determinada conduta (casos nos quais um bem jurídico-penal seja suficientemente protegido
através de outros meios: políticas sociais, direito disciplinar, direito administrativo, direito civil e
até meios não jurídicos de proteção).

- Uma das caraterísticas do direto penal é a sua fragmentaridade (de primeiro grau). O direito
penal, como uma ordem, não tutela todos os bens nem todos os interesses. Muitos bens e
interesses não são protegidos pelo direito penal, ou porque não têm dignidade penal ou porque
não existe essa necessidade.

- Ao falar-se da fragmentaridade (de segundo grau), esta já tem que ver com o tipo de condutas
em relação às quais esses bens jurídicos são protegidos. 


Por exemplo: O património é um bem jurídico protegido pelo direito penal mas não é protegido
contra todas as formas de ofensa. O código penal tipifica as formas de ofensa ao património que
são penalmente relevantes, assim, há milhares de ofensas ao património que não têm qualquer
relevância penal.

- Para além dos bens, temos interesses. Estes já são pretensões, expressões de uma certa
apetência de um sujeito ou de um grupo ou de uma comunidade, em relação a um objeto.

- E temos também os valores sociais: modos normativos ou prescritivos de viver em sociedade,


portanto, são as regras socialmente aceites, uma certa ordenação da sociedade com determinados
valores.

Institutos que não se confundem com bens jurídicos:

• As puras violações morais não são bens jurídicos. A moral e a ética são ordenamentos distintos
do direito penal, não obstante, é claro que tem pontos nos quais se cruzam, mas isto não significa
que se possa confundir a especificidade do direito penal com a ética ou com a moral.
Mandamentos que relvam da pura moralidade não são bens jurídicos dignos de tutela. 


Por exemplo: os atos homossexuais praticados por adolescentes eram incriminados penalmente,
sendo que os atos heterossexuais praticados por adolescentes já não tinham relevo penal - o TC
depois veio a considerar inconstitucional, pois, segundo este, isto só tinha como fundamento uma
conceção moralista.

• Também não são bens jurídicos as proposições meramente ideológicas. Há certos interesses,
valores que até podem ter acolhimento constitucional, mas que não têm suficiente concreção para
Marisa Branco 52
Direito Penal I

se considerar que são bens jurídico-penais.




Por exemplo: a transparência, esta é altamente polissémica, pode ter diversificados entendimentos
e significados e portanto, fazer assentar uma incriminação na tutela da transparência pode querer
dizer muitas coisas.

• A violação de valores de mera ordenação também não se consideram bens jurídicos, ainda
que haja certos valores do sistema social que estão funcionalmente adstritos à tutela da pessoa,
são importantes (a realização da justiça, a segurança do estado), mas no que concerne à violação
de valores de simples conformação, não se pode dizer que tenham a mesma importância que os
valores do sistema social que estão funcionalmente adstritos à tutela da pessoa. 


Por exemplo: Não constitui suficiente expressão do bem jurídico a entrega da declaração do IRS
fora do prazo (o prazo para se entregar o IRS é um certo valor de mera ordenação, não tem
expressão de bem jurídico ); diferente é se a declaração de IRS for fraudulenta, que não contenha
elementos que deveria conter.

Jurisprudência do TC:

Segundo o Dr. Caeiro, o Tribunal constitucional tem assumido uma posição ativa em relação ao
controlo destas posições, relativamente à existência de bens jurídicos, sua dignidade penal e cabal
necessidade de pena.

Grande parte do trabalho deste tribunal incide sobre decisões originadas em processo penal
(explica-se isto pelo facto de a constituição sustentar muitas garantias às pessoas; assim como pelo
facto de o recurso para o TC se tornar num “quarto grau de recurso”, os arguidos, algumas vezes,
recorrem para o TC como garantia última, mas sem razão, e até por vezes com argumentos que
estão desprovidos de qualquer lógica).

O Tribunal Constitucional já muitas vezes se pronunciou sobre a falta de dignidade penal de um


certo interesse, ou também já se pronunciou sobre a inexistência de determinado bem jurídico
(acórdão sobre decretos legislativos que incriminavam o enriquecimento ilícito e, tanto em 2012
como em 2015, a pronúncia foi no sentido de que as normas não visavam proteger bens jurídicos
nenhum, sendo declaradas inconstitucionais pela ausência de um bem jurídico digno de tutela.

Um outro acórdão do TC que serve de exemplo: sobre a inconstitucionalidade da norma que pune o
lenocínio (previsto no artigo 169.º do CP). O TC considerou esta norma inconstitucional, na medida
em que esta conduta não exige a exploração de uma necessidade económica e de vulnerabilidade
perante a vítima. Este acórdão acabou por ser convertido e o plenário foi chamado a pronunciar-se
sobre esta questão e a acabou por vencer a tesa da não inconstitucionalidade.

Para que se possa criminalizar uma conduta é necessário que essa conduta lese um bem jurídico
digno de proteção penal.

Contudo, já houve também pronúncias sobre a desnecessidade de o direito penal ser


empregue, não obstante, pronúncias essas que foram feitas com cuidados e reservas.

Quando o tema é a necessidade de tutela, o Tribunal tem mais cuidado pois reconhece-se ao
legislador, nesta matéria, uma grande margem de manobra uma vez que saber se há a
necessidade de se intervir ou não com o direito penal em determinada matéria ou incumbência é da
competência do legislador ordinário. Só em casos muito extremos é que o tribunal diria que o
legislador poderia empregar outros meios que não o direito penal.
Marisa Branco 53
Direito Penal I

A necessidade (carência) de pena; proporcionalidade em sentido amplo (proibição de excesso);


relevo crescente da necessidade de fundamentação empírica (criminológica) da decisão de
criminalização:

Não basta que exista um bem jurídico digno de proteção penal. É necessário ainda uma outra coisa:
a conduta que se quer criminalizar também ela deve ser digna de proteção penal. Daqui decorre uma
segunda característica do direito penal: fragmentaridade de segundo grau – mesmo os bens jurídicos
dignos de tutela penal não são todos protegidos pelo direito penal. Só algumas condutas é que são
condicionadas como ofensas criminalmente relevantes.

Exemplo: o património e a propriedade são bem jurídicos protegidos pelo CP. Há vários crimes
contra a propriedade e o património. Isto não significa que todas as condutas que atinjam a
propriedade e o património sejam crimes. Quem não paga a renda seguramente que está a afetar a
contraparte, isso não significa que esta conduta possa ser, em si mesma, criminalizada, embora
atinja um bem jurídico.

Assim, é evidente que não basta que os bens sejam juridicamente muito relevantes, (dignidade
penal), é preciso que haja necessidade de intervenção. A necessidade de pena decorre, desde logo,
do princípio da proibição do excesso (ou da proporcionalidade):

A violação de um bem jurídico-penal não basta por si para desencadear a intervenção, antes se
requerendo que esta seja absolutamente indispensável à livre realização da personalidade de cada
um na comunidade. 


A limitação da intervenção penal acabada de referir derivaria sempre do princípio da


proporcionalidade em sentido amplo:

Uma vez que o DP utiliza, no seu arsenal sancionatório, os meios mais onerosos para os direitos e
as liberdades das pessoas, ele só pode intervir nos casos em que todos os outros meios da política
social, em particular da política jurídica não penal, se revelem insuficientes ou não adequados.

Quando assim não aconteça, aquela intervenção pode e dever ser acusada de contrariedade ao
principio da proporcionalidade, sob a concreta forma de violação da subsidiariedade e da
proibição do excesso.

Assim…


O direito penal tem de ser eficaz e adequado à proteção do bem jurídico contra aquela conduta.

• Por um lado, é preciso que a norma seja adequada ao fim que pretende, isto é, à proteção do bem
jurídico, ou seja, uma relação de adequação entre a incriminação e a proteção do bem jurídico. 


Por exemplo: sobre a interrupção voluntária da gravidez e a criminalização do aborto- a
norma penal sobre a criminalização do comportamento. Independentemente da dignidade do bem
jurídico protegido, a norma não era adequada por várias razões pois, visando proteger o feto e a
mulher grávida, o recurso ao aborto clandestino causava danos sociais mais graves do que a
despenalização do aborto; assim como, as estatísticas mostravam que as condenações por crime
de aborto eram praticamente inexistentes, ou seja, havia um largo incumprimento da norma
Marisa Branco 54
Direito Penal I

proibitiva do ilícito do aborto. Assim, a proibição, nos termos em que estava, não correspondia
minimamente às valorações da sociedade e, um dos argumentos para a descriminalização do
aborto era precisamente a inadequação da lei penal, havia outros meios para diminuir essa
situação, não sendo o direito penal um meio eficaz e adequado para evitar a prática do aborto. 


Outro exemplo: Prende-se com o consumo de estupefacientes, está a ser estudado por peritos o
facto de que a despenalização associada à harmonização de medidas terapêuticas levou a uma
redução do consumo. Em jeito de conclusão, a norma penal tem de ser adequada aos efeitos a que
se propõe, tem de ser prospectivamente eficaz para a proteção desse bem jurídico. 


Um último exemplo: Relativo à ocultação intencional de riqueza. Os agentes públicos, titulares
de cargos políticos e soberanos, são obrigados a declarar acréscimos patrimoniais superiores a um
certo valor enquanto estão no exercício de certa profissão. Se não o fizerem, incorrem em crime,
tanto a falta de declaração como a declaração que não corresponde á totalidade dos acréscimos
obtidos nos elementos das declarações. O que agora se propõe é criar um dever para essas pessoas
de, não só declararem os acréscimos patrimoniais mas, também de indicarem a fonte desses
acréscimos sob pena de, na falta desses cumprimento, incorrerem em crime. A fundamentação
desta nova regulação tem que ver com o fato de que muitas vezes, os agentes públicos, beneficiam
de certos bens mas não os declaram por não estarem na sua titularidade formal. Este é um
excelente exemplo de inadequação penal, se as pessoas não os declaram, é evidente que não é por
se obrigar a dizer qual a proveniência dos bens que se resolve o problema pois, se não os
declaram também não vão dizer de onde esses bens provêem. Não são normas adequadas ao fim a
que se propõe.

Subsidiariedade no Direito Penal:

Para além da adequação, temos também uma nota de subsidiariedade no direito penal.

O direito penal é um instrumento de último recurso, a norma penal ou intervenção penal tem de ser
necessária (princípio da necessidade), no sentido de ser uma última ratio da política social. Há aqui
uma ideia de subsidiariedade do direito penal em relação a outras formas de intervenção.

— Só quando se mostre que o direito penal é necessário, quando não há outras formas de intervir é
que está legitimada a intervenção do direito penal.

O direto penal é o último instrumento da vida social.

O estado deve utilizar, antes de se aplicar o direito penal, outros meios menos gravosos para os
direitos das pessoas, para se proteger os bens jurídicos. Só se esses outros meios forem
insuficientes, não conseguirem lograr esse fim, só nesse caso é que o estado está legitimado, por
força do princípio da subsidiariedade, a utilizar o direito penal.

Quando se fala do princípio da subsidiariedade e dizemos que o estado tem de empregar outros
meios em vez/ou antes de aplicar o direito penal, para tentar proteger o bem jurídico, estamos a
falar de um mandamento dirigido ao legislador:

- É o legislador que tem de ponderar, quando tem um certo problema social, se deve aplicar o
direito administrativo, o civil, um certo programa social ou, o direito penal. É uma decisão que
cabe ao legislador, nunca jamais é o juiz.

Cada vez mais, sobretudo as instituições europeias, antes de tomar decisões que contendem com os
instrumentos potencialmente limitadores de direitos, fazem estudos empíricos sobre os problemas,
Marisa Branco 55
Direito Penal I

fazem avaliações de impacto: primeiro percebem se existe de facto um problema. Em Portugal, os


deputados que aprovam as leis muitas vezes não sabem nem se apercebem de qual é o problema real
que se esta a tratar, não sabem qual é a dimensão e, por vezes, se efetivamente existe esse problema.

CONCLUSÃO

A conjugação destas duas características (dignidade de tutela e necessidade ou carência de tutela)


vai-nos definir as possibilidades de criminalização, as possibilidades do legislador ordinário para
efetuar uma operação de criminalização ou de descriminalização. Pode acontecer que, em certo
momento histórico - o que é normal porque as sociedades são dinâmicas e o direito é um produto
cultural -, o legislador entenda que certo bem jurídico não é digno de tutela penal ou esta conduta
não é digna de tutela penal.

A questão das imposições constitucionais de criminalização: imposições explicitas (artigo 117.º


CRP) e implícitas (em princípio: o império do legislador ordinário):

Será que a CRP impõe certos deveres ao legislador ordinário no sentido de criminalizar certos
bens?

A constituição faz uma delimitação negativa. A questão que se põe é a de saber se a constituição
tem imposições de criminalização – se a constituição obriga o legislador ordinário a criminalizar
certos comportamentos.

A resposta é simples no que diz respeito às imposições explicitas: o legislador ordinário tem o
dever constitucional de proceder a essa regulamentação — artigo 117.º da CRP.

É mais complicada a questão das imposições constitucionais implícitas, ou seja, saber se a


constituição implicitamente impõe ao legislador ordinário a criminalização de certos crimes.

O princípio, aqui, é o facto de a decisão caber ao legislador ordinário. A questão pôs-se, em


particular, quando se tratou da descriminalização da interrupção voluntária da gravidez. Cabe à
discricionariedade do legislador ordinário descriminalizar ou não a ofensa a este bem jurídico. A
constituição não pode prever todos os conflitos que a vida em geral traz entre bens jurídicos.

Sobre este assunto, a doutrina não é unânime:

- O Dr. Luciano Felmens defende que há uma obrigação constitucional que põe o legislador a
proteger certos bens (criminalização do homicídio). 


- O Dr. Figueiredo dias segue uma via mais moderada, assim como o Dr. Caeiro, que só em casos
gritantes é que poderíamos entender que a Constituição é violada por não se criminalizar certa
conduta. 


Por exemplo: se o legislador viesse descriminalizar totalmente o homicídio ou viesse
descriminalizar totalmente os crimes contra a liberdade quando praticados por agentes de
autoridade. 


Assim, só em casos verdadeiramente excecionais poderíamos entender que estaria em causa um


mandamento constitucional de criminalização. Fora isso, casos excecionais cabe na margem do
legislador ordinário este processo de seleção dos bens jurídicos e das condutas que devem ser
criminalizadas.

Marisa Branco 56
Direito Penal I

Repare-se que esta visão das coisas também é consistente com o que falamos do direito como
produto cultural. O legislador ordinário está muito mais apto a captar o sentimento da sociedade no
momento do que o legislador constitucional, que fez a Constituição há várias décadas. Assim, não é
na Constituição que vamos encontrar essa dinâmica cultural que o legislador ordinário tem de ter
em conta quando criminaliza ou descriminaliza determinada conduta.

- Segundo o Dr. Caeiro, fazer derivar da constituição imposições implícitas é, para além de
perigoso, disfuncional porque, em princípio, compete ao legislador ordinário saber se deve ou
não criminalizar uma certa conduta.

O princípio da não intervenção moderada: restrição do conceito material de crimes às


condutas que lesem ou ponham em perigo bens jurídicos dignos e carecidos de tutela penal
contra aquelas especificas condutas.

Para um eficaz domínio do fenómeno da criminalidade dentro das cotas socialmente suportáveis, o
Estado e o seu aparelho formalizado de controlo do crime devem:

- intervir o menos possível;


- Intervir só na precisa medida requerida pelo asseguramento das condições essenciais de
funcionamento da sociedade. A esta proposição se dá o nome de princípio da não-intervenção
moderada — corrigindo em parte o princípio da não intervenção radical avançado por Schur —
que assim se arvora em trave-mestra de todo um programa político-criminal.

Marisa Branco 57
Direito Penal I

2. Definição social do crime e os mecanismos de seleção:

Conceito de crime enquanto produto do fabrico do direito, só que para dizermos que existiu um
crime, num sentido social, é preciso uma análise diferente. A existência de um crime enquanto
realidade social (aquilo que sai nos jornais) não existe somente uma definição jurídica de crime,
mas também uma definição social de crime.

De novo, recorrermos à pirâmide para darmos a ideia de progressão para estratos menores.

Podemos partir da categoria da criminalidade real – crimes que acontecem todos os dias um pouco
por todo o país. Esta criminalidade real é muito difícil saber em termos numéricos.

Esta pirâmide só peca por uma coisa é que o estrato seguinte da criminalidade conhecida devia ser
menor. Há muitos crimes que não chegam às instâncias criminais de controlo. A criminalidade
conhecida se em alguns crimes é muito próxima da criminalidade real, em muitos outros crimes
existe uma grande cifra branca que não se conhecem, portanto, existe um desfasamento por grande
entre criminalidade real e criminalidade conhecida.

Dentro da criminalidade conhecida começam a funcionar os processos de seleção. Nem toda a


criminalidade conhecida é investigada. Passamos para uma categoria da criminalidade investigada.
Porquê?

- Os recursos ao dispor são recursos limitados. O estado não tem recursos infinitos para investigar
o crime. Portanto, é necessário dar prioridade a alguns comportamentos e não a outros. 


- Mesmo num âmbito que se rege por este princípio da obrigatoriedade de investigação, a
criminalidade investigada é menor do que a criminalidade conhecida.

Em seguida, existe um outro filtro, porque nem todos os crimes investigados levam a acusações.
Em muitos casos não se reúne prova suficiente ou porque pode haver uma desistência de queixa.

Por fim, temos as condenações.

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Direito Penal I

O número de casos que podemos chamar de crime que resulta de uma condenação transitada em
julgada é menor. Só aí podemos dizer que certa pessoa é criminosa e autora de um crime. Se
chamarmos alguém de criminoso antes de haver esta sentença transitada em julgada estamos nós a
praticar um crime de difamação.

3. Crise atual do direito penal do bem jurídico (noções gerais):

Causas: a sociedade de risco, os riscos globais, incluindo a proteção de gerações futuras


(ambiente, património genético, funcionamento do sistema financeiro, a vida animal, a
segurança global)

Porque é que este direito penal do bem jurídico está em crise. O direito penal do bem jurídico
aparece associado a uma certa forma de compreensão do direito penal depois do iluminismo
(esclarecimento – a ideia de que para se punir alguém tem de haver ideias de proporcionalidade e
racionalidade). A ideia de bem jurídico vem muito associada à proporcionalidade das penas.

Bens jurídicos que veem do iluminismo – vida, integridade física, propriedade, honra, etc. – são
bens jurídicos individuais, correspondem aos direitos subjetivos das pessoas, depois, havia aqueles
bens jurídicos do estado – independência do estado, integridade do estado, etc. – que deviam ser
protegidos

Surge no fim do século XX a sociedade do risco que vem alterar, de certa maneira, os juízes que o
legislador faz relativamente as legitimidades de proteção de certos interesses, porque há hoje vários
riscos que são diferentes. São riscos difusos, que não podemos apreender imediatamente, que se
podem projetar no tempo (casos do ambiente, investigação biológica, investigação sobre o
património genético humano). São riscos que afetam toda a humanidade e que se concretizam e
prolongam no tempo (para o futuro).

Isto traz problemas que podem ser incompatíveis com um direito penal de bem jurídico, porque não
podemos dizer que certa conduta arriscada afeta, seja em termos de dano e de perigo, um bem
jurídico que é quase palpável (característica do bem jurídica). todos estes casos parece que o direito
penal do bem jurídico seria insuficiente.

Projeção no plano do bem jurídico e em algumas categorias da construção do crime


(imputação objetiva, culpa, autoria):

Além disso a sociedade do risco projeta-se em alguns dos elementos que vamos analisar –
imputação objetiva. Em grande parte das condutas que falamos de risco essa imputação é
impossível. A responsabilidade penal é por causa de uma conduta individual.

No plano da culpa também aqui há quem advogue que para uma eficaz atuação do direito era
preciso prescindir do conceito de bem jurídico.

Também no momento da autoria (visa delimitar quem pode ser agente de um crime): as condutas
enunciadas - ambiente, património genético, funcionamento do sistema financeiro, a vida animal, a
segurança global – são praticadas no âmbito de empresas, logo, não têm um autor.

Tudo isto são dificuldades trazidas pela sociedade de risco.

Marisa Branco 59
Direito Penal I

Soluções que se apontam:

1. “Escola de Frankfurt” (visa reduzir o direito penal ao seu mínimo e indispensável) –


manutenção do DP clássico (antropocêntrico), a que se acopla um outro ramo de direito
punitivo (“direito de intervenção” – Hassemer); 


2. “Governamentalização” do DP; Direito penal do risco: uma gestão eficiente da regulação de


grupos de indivíduos perigosos através do sistema penal (em particular prisional) – invasão
mais grave do estado nos direitos fundamentais.


Justiça atuarial – desliga-se completamente da noção de bem jurídico e do facto que é um
pretexto de encontrar alguém perigoso. O que interessa é termos critérios fiáveis que encontrem
as pessoas perigosas. De acordo com esta conceção, o direito penal transforma-se num direito
que gere num universo de pessoas perigosas que ninguém conseguiu gerir.

Entre estas soluções extremistas, temos algumas visões moderadas:

1. Professor Stratenwerth: a tutela das gerações futuras, o princípio da precaução e o DP do


comportamento. Relativamente às gerações futuras que não são reconduzíveis a um bem
jurídico, o direito penal deve, de acordo com o princípio da precaução, intervir na proteção das
gerações futuras. Designadamente no que diz respeito ao ambiente e à integridade do
património genético. Não sabemos se certo tipo de investigação que são feitas hoje se vão
repercutir no património genético do futuro de alguém. Há aqui um direito penal do
comportamento – saber o que se deve ou não fazer, mesmo que isso não incida sobre um bem
jurídico declarado. 


2. O DP a 2 (ou 3) velocidades e diferenciação de regimes: expansão do direito penal – o autor


veio dizer que há certos casos em que a expansão é ditada por pulsões irracionais do legislador,
mas há outros casos em que se justifica a expansão do direito penal que passa a criminalizar
condutas que antes não criminalizava.


Velocidade correspondente ao direito penal clássico;


Velocidade onde se flexibilizam as categorias de análise (imputação, culpa, autoria, garantias
processuais).


3. Limitação do DP à proteção de bens jurídicos dotados de “referente pessoal”, vg. o


ambiente, a segurança no tráfego rodoviário – o direito penal deve-se limitar aos bens
jurídicos individuais e aqueles bens jurídicos que não são individuais, mas que devem ser
protegidos (a saúde pública e o ambiente)


4. A proteção penal de bens-meios (coletivos, supra-individuais) como porteção antecipada de


bens-fim (pessoais, de raiz antropológica) – Professor Almeida Costa

Tudo isto visa responder à questão: é ou não necessário que o direito penal mude de
paradigma e deixe o paradigma de bem jurídico?

Posição adotada:

A manutenção do DP do bem jurídico, aberto à evolução dos bens jurídicos (como realidades
históricas e dinâmicas) e da própria categoria “bem jurídico”, eventualmente, mais flexível
(exs. problemáticos: a integridade do património genético e os animais de companhia)
Marisa Branco 60
Direito Penal I

A primeira ideia: em caso algum deve o direito penal ser um instrumento de governo da sociedade.
O direito penal não serve para promover intenções. Portanto, não deve o direito penal obedecer a
programas de oportunidade (conjuntura).

Se isto é verdade, também é verdade que o direito penal não pode fingir que existem alguns dos
problemas que falamos - a integridade do património genético e os animais de companhia.

Por um lado, como é que podemos não abandonar a ideia de direito penal de bem jurídico e ao
mesmo tempo permitir que o direito penal incorpore estas intencionalidades novas de proteção?

- A primeira via de solução é: os bens jurídicos não são realidades estáticas, ou seja, tem uma
dinâmica própria e é possível compreender estes bens jurídicos, como o ambiente, com uma
dimensão de futuro que não tem de estar necessariamente previstas em bens jurídicos. 


- Podemos discutir a própria categoria de bem jurídico: este, para além de ser dinâmico, está
sujeito a mudar a sua forma – mais flexível.


Exemplo das dificuldades da categoria de bem jurídico: punição dos crimes contra os
animais de companhia. O TC declarou inconstitucional as normas que prevêm estes crimes
contra os animais de companhia, dizendo que não corresponde a um bem jurídico. Limites
do direito penal do bem jurídico em relação ao direito penal de comportamento – podermos
criminalizar condutas que não atentam contra um bem jurídico.

Vale a ideia de manter o direito penal do bem jurídico, sem prejuízo de por um lado, estar atento às
mudanças de conteúdo e, por outro lado, a própria suscetibilidade de remodelação da categoria de
bem jurídico.

Distinção entre o problema do bem jurídico e outras questões da construção da infração

Por último, não devemos misturar aqui neste problema de paradigma as dificuldades que podem
suscitar estas novas realidades na construção da infração.

Capítulo VII — Os limites do direito penal

1. Direito penal e direito de mera ordenação social (direito das contra-


ordenações): penas criminais e coimas

Vamos começar por ver as fronteiras entre direito penal em relação ao direito de mera ordenação
social (também chamado de direito das contra-ordenações). Como é que este problema nasce?

Durante todo o estado polícia, a administração não estava sujeita ao direito, portanto, a
administração cuidava intensamente de todos os problemas sociais, dizia às pessoas o que é que
podiam fazer. A administração era uma máquina política, uma extensão do braço do príncipe e do
rei e, portanto, não estava sujeita a quaisquer regras jurídicas.

Com as revoluções liberais e com o advento do estado liberal, dão-se 2 mudanças importantes:

Marisa Branco 61
Direito Penal I

• Em primeiro, a administração deixa de intervir massivamente na vida das pessoas (passa- se


do estado polícia ao estado guarda noturno), sendo a intervenção muito menor sobre a vida das
pessoas, o estado reduz a sua atividade à prevenção dos perigos para os direitos subjetivos, assim,
competia à administração evitar perigos para as pessoas e para os seus direitos – basicamente para
a vida e para a propriedade (life and property); 


• Em segundo, a administração passa a estar sujeita à lei, continua a prescrever certos


comportamentos para prevenção de perigos, mas tem que o fazer sujeita à lei – é aqui que surge o
chamado direito penal administrativo (é direito penal, porque tem sanções, tem medidas, mas o
seu conteúdo é essencialmente ditado pela administração e por programas de prevenção de
perigos tipicamente administrativos). 


Esta intencionalidade ganha expressão logo com o código de Napoleão, no início do século XIX,
onde se isolam 3 tipos de categorias de infrações: 


• Os crimes: são a forma mais grave 


• Os delitos: são crimes um pouco menos graves; 


• Contravenções (construção tripartida da infração): Nas contravenções agrupa-se as violações das


regras de polícia e das regras administrativas- compunham o direito penal administrativo. Este
esquema durou todo o século XIX e, até ainda durante o século 20. 


No caso português, a evolução é relativamente parecida: O nosso primeiro código penal, em 1852,
não adotou a construção tripartida da infração, mas sim uma construção bipartida (crimes e
contravenções – estas últimas, eram vistas como essa forma de direito penal administrativo,
portanto, infrações pouco graves, tratadas em tribunais próprios, com penas muito pouco graves,
normalmente penas de multa, excecionalmente penas de prisão muito curtas, procedimentos muito
rápidos e simples, com poucas garantias porque as penas não eram muito elevadas). 


No fim da 2ª guerra, surge de novo uma pretensão de intervenção do estado na sociedade – o


Estado social a partir de 1945, sobretudo na Alemanha, por causa do esforço de reconstrução pós-
guerra. Com a 2a guerra e o esforço de reconstrução, necessariamente a administração tem que
intervir de forma vigorosa na sociedade, impondo regras à economia, à produção, ao consumo –
tudo isso é administrativamente controlado para se conseguir atingir os objetivos. 


Na altura do plano Marshall e, portanto, da reconstrução económica alemã, esta maior intervenção
da administração levou a um aumento exponencial das contravenções, visto que era a maneira
mais simples de garantir o cumprimento das prescrições administrativas. Assistiu-se, assim, a
uma hipertrofia das contravenções. 


No plano legal, elas eram tantas e eram tão aplicadas que os tribunais começaram a ficar atulhados
de contravenções – de matéria criminal, ou seja, procedimentos penais.

Do ponto de vista simbólico, isto não era bom para o direito penal, já que “onde tudo é proibido,
nada é proibido” – quando uma população vê que tudo pode levar a um processo penal (desde não
cumprir certos prazos até matar uma pessoa, faz parte do ilícito penal no sentido amplo) a ideia
simbólica do direito criminal dilui-se um pouco. Mesmo do ponto de vista da prevenção criminal,
não é uma grande ideia ter uma extensiva regulamentação penal com milhares de proibições.

Tudo isso levou, na Alemanha, à instituição de um ramo de direito diferente. Sobretudo por obra
de um professor alemão, que lançou este desafio: vamos tirar do direito penal e das contravenções
Marisa Branco 62
Direito Penal I

tudo aquilo que não deve lá estar – se isto são interesses administrativos, de oportunidade, se muitas
vezes nem correspondem à proteção de um bem jurídico concreto, isso não deve estar no direito
penal. A ideia era depurar o direito penal e criar um ramo de direito completamente diferente que
não é direito penal, mas sim que é direito administrativo para sancionar essas violações.

Nessa altura (1949, na Alemanha e 30 anos depois em Portugal, 1979), isto provocou uma divisão
dentro do direito penal administrativo (Itália e Suíça seguiram o mesmo modelo) – os países
seguiram este esquema de dividir o direito penal administrativo fizeram da seguinte maneira:

Aquilo que verdadeiramente tem dignidade penal criminal, deve ser crime porque se cumprem
todos os requisitos, porque atenta contra um bem jurídico, não pode ser contrariado de outra forma; 


Outros tipos de tutela não são suficientes – isso deve continuar a ser direito penal; vai sair do
direito penal administrativo, e eventualmente deixa de ser uma contravenção e passa a ser um crime
de direito penal secundário, como é o exemplo da fraude na obtenção de subsídios (crime que esta
previsto na lei 28/84, não podia ser uma mera infração administrativa). Se fosse necessário haveria
que levar certas contravenções a crimes e dar corpo ao direito penal secundário. 


Em relação às restantes infrações, passá-las para esse direito de mera ordenação social. O direito
penal administrativo desapareceu enquanto tal e dividiu-se em dois: 


• uma parte de direito penal secundário 


• outra de direito de mera ordenação social. 


A ideia do Doutor Eduardo Correia, que foi quem trouxe o direito de mera ordenação para
Portugal, era que as contraordenações deviam substituir imediatamente as contravenções,
acabando com estas. É por isso que na versão original do código de 82, o código ainda em vigor,
não havia contravenções, mas ainda subsistiam contravenções em vigor anteriores, que não foram
imediatamente revogadas. Apesar de no código penal não haver contravenções, tivemos no nosso
ordenamento jurídico contravenções até 2006, só ai, finalmente, se pode dizer que se cumpriu o
programa de substituição das contravenções por crimes ou contraordenações. 


Hoje, o panorama em Portugal é este: temos direito penal, onde se inclui o direito penal clássico
e o direito penal secundário e depois temos o direito de mera ordenação social como ramo de direito
extinto. 


1.1. Características essenciais do Direito de mera ordenação social

Trata-se de um direito sancionatório, público, externo da administração:

• Direito sancionatório, porque o seu fim é aplicar sanções;

• Externo para não o confundirmos com o direito disciplinar, é extroverso, virado para a
generalidade das pessoas;

• Da administração, porque protege interesses administrativos, porque, no essencial, é aplicado em


primeira instância pelas autoridades administrativas.

Marisa Branco 63
Direito Penal I

As sanções não são em caso algum privativas da liberdade – o direito de mera ordenação não
impõe sanções privativas da liberdade mas impõe coimas (são montantes em dinheiro) e certas
interdições/proibições de direitos que também podem ser aplicadas como sanções acessórias.

Quanto ao procedimento, normalmente, quem aplica a coima em primeira instância é a autoridade


administrativa competente. Posteriormente, se o visado quiser pode impugnar a decisão junto de um
tribunal judicial, e daí pode ainda recorrer para a relação da decisão desse tribunal. A aplicação da
coima pela entidade administrativa respeita garantias de defesa mínimas – há um
procedimento com características mínimas, a pessoa é ouvida se quiser pronunciar-se, mas o
processo judicial propriamente dito só existe se a pessoa desejar impugnar a decisão. Concluindo, o
direito de mera ordenação social é um direito distinto do direito penal, não é uma subespécie.

Uma evolução recente do direito de mera ordenação:

Houve algumas aproximações em relação ao direito penal, que até põem em questão esta distinção a
prazo. A partir da década de 90, o direito de mera ordenação social começou a prever sanções
extraordinariamente graves como coimas de vários milhões de euros. O direito de mera ordenação
social era visto como uma advertência social.

Na cabeça do Dr. Eduardo Correia, estava previsto e organizado para as “multas de trânsito” (que
não são multas), para aquelas empresas que deviam por o mapa dos trabalhadores na parede e não
punham, para a empresa que produz certo produto e que não usou o filtro XPTO – era uma
advertência social.

Com a dinâmica social, o poder político começou a ver aqui uma excelente maneira de
contornar certas garantias do direito penal e, começou a investir fortemente no direito de mera
ordenação social, impondo sanções de altíssima gravidade.

Por exemplo: Recentemente, certas empresas foram sancionadas em matéria de concorrência com
coimas de 100 milhões de euros, em Portugal. Quanto às sanções acessórias, proibições de direito,
inibições de ser, por exemplo, gerente de uma empresa durante 2 anos.

Como as sanções se tornaram muito graves, o legislador sentiu a necessidade de aumentar as


garantias das pessoas, buscando-as ao direito penal. Começou a replicar aquilo que se queria, um
direito mais flexível, rápido e com menos pruridos garantísticos – tornou-se na verdade, um
subproduto do direito penal em matéria processual, com mais garantias (algumas de índole
constitucional que se aplicam por analogia e diretamente ao direito de mera ordenação social).

Esta gravidade das sanções pode por o direito de mera ordenação social sobre a mira do tribunal
europeu dos direitos humanos no que diz respeito à aplicação das garantias do direito penal –
estudamos que este tribunal qualifica como matéria penal para certos efeitos as condutas que são
puníveis com sanções de certa gravidade (uma sanção de vários milhões de euros é comparável às
sanções penais e, portanto, o tribunal europeu dos direitos humanos provavelmente mandará aplicar
ao procedimento as várias dimensões da questão, as garantias da convenção europeia dos direitos
humanos previstas para o direito penal).

Para distinguir o direito penal do direito de mera ordenação social, há quem entenda que temos
uma distinção material – tratar-se-ia de no direito de mera ordenação social de não haver bens
jurídicos propriamente, condutas tendencialmente neutras do ponto de vista ético; por outro lado, há
quem entenda que a distinção é meramente formal – como é o caso do Dr. Costa Andrade, que
diz que onde disser que é punido com uma coima é direito de mera ordenação social, onde disser
que é punido com uma pena é direito penal.
Marisa Branco 64
Direito Penal I

O Doutor Costa Andrade tem razão quando diz que a distinção entre as condutas que estão no
direito penal e no direito de mera ordenação social é uma distinção de pura quantidade, não há uma
distinção de diferença.

Por exemplo: Em matéria de condução sobre o efeito do álcool, se a pessoa for a guiar com
1,19999999g/l de álcool no sangue é uma contraordenação, mas se for com 1,2g/l é crime – é uma
diferença de pura quantidade. Claro que há diferenças de quantidade que se transformam em
diferenças de qualidade, mas ainda assim é o mesmo bem jurídico protegido de duas maneiras
diferentes. Quando passamos para o plano da aplicação, aí sim, a distinção só pode ser uma
distinção formal – aquilo que é punido com uma coima é direito de mera ordenação social, se for
punido com pena é direito penal.

1.2. Distinção material ou formal entre o direito de mera ordenação e o Direito penal

Quando o legislador quer punir/sancionar uma conduta, é necessário saber quais os critérios para
distinguir direito penal e direito de mera ordenação social, sendo esta uma distinção mais difícil.

Aqui, podemos ter critérios mais qualitativos ou critérios mais quantitativos.

Autores como o Dr. Figueiredo Dias acreditam que a distinção é a nível de qualidade, portanto, são
dois ramos de direito qualitativamente distintos. Já outros autores acreditam que a distinção é
quantitativa, distinguindo-se pela gravidade das sanções.

1. Distinção do ponto de vista do aplicador: 




Para se distinguir, no plano de aplicação, para o aplicador do direito, vale um critério formal
que parte de sanção. São crimes os comportamentos sancionados com penas. As condutas
sancionadas com coimas são contraordenações. 


2. Distinção do ponto de vista do legislador: 




Que critérios deve o legislador usar para distinguir crimes de contraordenações? 


Há varias perspetivas relativamente a este ponto, a doutrina não é unanime:


Para o Dr. Figueiredo Dias: A distinção é mais qualitativa. 


Dr. Costa Andrade: distinção é mais quantitativa, não existir distinção clara.


É uma opção que o legislador toma, não esta pré-decidida, não há vinculação do legislador
ordinário pela CRP para criminalizar ou contra-ordenacionar certa conduta.

Quais os critérios que podem ajudar a fazer esta distinção?

1º Critério do bem jurídico

Um dos critérios da distinção qualitativa seria dado pela presença ou ausência de um bem
jurídico.

Marisa Branco 65
Direito Penal I

Durante algum tempo, dizia-se que o que caracterizava o Direito da mera ordenação social era não
visar a proteção de bens jurídicos, ao passo que o Direito penal está obrigado a entrar em ação
apenas para a proteção de bens jurídicos.

No entanto, em rigor, as coisas não são assim. Muitas vezes, o direito de mera ordenação social
protege bens jurídico e até bens jurídico-penais. O mesmo bem jurídico pode ser protegido
simultaneamente por crimes e contra ordenações.

Exemplo: condução sob o efeito de álcool (artigo 292º CP), uns valores de álcool no sangue são
considerados mera ordenação, e outros valores já são considerados crime.

Exemplo: fraude fiscal, para ser crime, tem de ser superior a um certo valor. Abaixo desse valor
estamos perante contraordenações.

Assim, o bem jurídico não ajuda completamente a perceber a diferença, ajuda apenas no facto de
algumas contra ordenações não visarem proteger um bem jurídico concreto, e nesse caso, quando se
quer proteger um interesse de mera ordenação, então aí, à partida, o legislador está proibido de
utilizar o Direito penal.

2º Critério da relevância axiológica/ética da conduta proibida

A diferença, para o legislador, estaria na relevância axiológica da conduta, ou seja, se é uma


conduta relevante ou não no plano dos valores. O Dr. Figueiredo Dias tende para a ideia de que,
para o direito de mera ordenação social, as condutas proibidas, em si mesmas, são condutas
valorativamente neutras, ou seja, não têm relevância axiológica. Já para o direito penal, as
condutas proibidas têm sempre uma relevância axiológica.

Assim, este critério vai no sentido de dizer que ao direito penal pertencem somente condutas que
mexem com valores que reprovamos, ao passo que ao direito de mera ordenação social pertencem
as condutas que não têm qualquer carga ética.

Aqui, a questão põe-se em relação à conduta proibida, a proibição tem sempre conteúdo ético, quem
violar a proibição merece um juízo de reprovação. Por isso, a questão põe-se antes da proibição da
conduta — será que a conduta tem peso ético? Se sim, está no domínio do Direito penal, se não, no
Direito de mera ordenação social.

No entanto, este critério é muito tendencial:

As condutas que têm densidade ética, que atingem valores da comunidade normalmente pertencem
ao Direito penal. No entanto, encontramos também no Direito penal condutas que não têm essa
carga ética, desde logo, porque muitas vezes a criminalização dessas é confusa e debatida, não há
uma plataforma comum. Outras vezes porque são fenómenos de neocriminalização, ainda não se
enraizou na sociedade.

O Direito penal, por vezes, protege condutas com pouca relevância ética (por exemplo, o tráfico de
influências) e o Direito de mera ordenação social, muitas vezes, proíbe ele próprio condutas com
forte relevância ética (por exemplo, o Direito da concorrência que proíbe os chamados cartéis e,
todavia, não é o Direito penal que disciplina essa conduta).

No lado do direito de mera ordenação social temos condutas que não têm qualquer relevo se
afastarmos a proibição. Por exemplo, apenas estacionar o carro não tem relevo nenhum. É algo

Marisa Branco 66
Direito Penal I

normal. O problema está em estacionar nos lugares proibidos. A conduta em si, independentemente
da proibição, não tem relevo axiológico

Assim, este critério ajuda-nos em certa parte, mas não é a solução, é um critério que não é seguro
para o legislador — Tendencialmente, estão certas, mas não apresenta uma verdadeira distinção
entre os dois direitos.

Então, por onde passa a solução?

POSIÇÃO ADOTADA: O papel decisivo do princípio da necessidade (última ratio) da lei


penal

Devemos rejeitar proposições gerais, procurar a distinção nos 2 critérios anteriores estará
condenado ao fracasso, devemos rejeitar ideias com pretensão de universalidade —

A distinção deve passar por:

O Dr. Caeiro entende que o Dr. Figueiredo Dias tem razão quando diz que a distinção, em certo
sentido, é qualitativa, há diferenças de quantidade que se transformam em diferenças de qualidade -
condutas que pela quantidade de vezes que são praticadas já merecem ser crime (p.e., conduzir
alcoolizado — existe um grande perigo para o bem jurídico).

No entanto, não lhe parece que o legislador consiga encontrar na CRP um critério que lhe diga
imediatamente que a conduta deve ser crime ou contraordenação, não decorre de nenhum juízo a
priori que possamos encontrar lá.

O Dr. acredita que não há um critério que diga logo ao legislador se a conduta remete para o direito
penal ou para o direito de mera ordenação social. O que é decisivo, aqui, é avaliar tendo em conta o
princípio da dignidade penal e o princípio da necessidade da lei penal:

O legislador tem de avaliar se, perante o dano social que ocorre de forma sancionatória, tem de
seguir a metódica do princípio da necessidade, ou seja, avaliar se é necessário ou não aplicar a lei
penal. Se o legislador chegar à conclusão que não há bem jurídico bem identificado a proteger ou
que não seja necessário a aplicação da lei penal para o proteger, aplica meios que não sejam de
direito penal (porque se aplicasse seria desproporcional).

Exemplo: até certo ponto, os efeitos do álcool no sangue não fazem presumir um efeito tão intenso
que justifique a aplicação da lei penal, por isso aplicamos sanções de contraordenação social.

Nota: Dr. Caeiro diz que a forma como o Dr. Figueiredo Dias retrata esta matéria no livro
corresponde a uma visão do direito de mera contraordenação social que já não corresponde à
realidade.

Marisa Branco 67
Direito Penal I

A questão está em saber se conduta deve ser ou não criminalizada.

Se o legislador quer proteger um certo interesse através de norma sancionatória, deve fazer o
percurso de criminalização que estudamos - dignidade penal e necessidade penal — Não havendo
aplicação do princípio da necessidade, a conduta entra no domínio da mera ordenação social.

A distinção resulta de um processo — procedimento legislativo — é o resultado deste e dos


juízos que o legislador for fazendo a esse propósito - o problema da necessidade e
subsidiariedade tem muita relevância.

Podemos concluir que não existe uma distinção a priorística, resulta da operação dos vários

Estes juízos que o legislador vai fazendo são controláveis pelo TC?

- Não é pensável (ou quase) um caso em que o TC possa dizer que a norma de mera ordenação
social é inconstitucional porque aí era necessário uma tutela penal — aqui não intervém o TC.


- No entanto, na situação inversa é possível que o TC se pronuncie pela inconstitucionalidade de


norma dizendo que o é porque não é necessário empregar aqui o Direito penal e, como tal, viola
o princípio da necessidade.

1.3. Sanções: coimas e interdições de direitos

As sanções do Direito de mera ordenação social são:

- Coimas: pagamento de quantias em dinheiro, normalmente determinadas com um quantitativo


mínimo e um máximo (de 100€ a 1000€). Os limites estão previstos no DL 433/82 (aplicação
muito residual)


Nota: art. 15º/2 lei 30/2000: a aquisição, detenção de estupefacientes para uso próprio não é
crime, é contra-ordenação, a lei prevê coimas para estas situações; o nº2 diz que ao consumidor
que precise de tratamento, são aplicadas sanções alternativas à coima, essa conduta praticada
pelo toxicodependente não é sancionada nunca com uma coima — Isto poderia por em causa o
conceito de contra ordenação que temos vindo a estudar, teríamos de remodelar o conceito de
coima para passar a abranger contra ordenações que impliquem outra sanção que não um
pagamento em dinheiro.


Em alguns sistemas sectoriais, como em matérias de concorrência, o valor máximo das coimas
não é fixo, é calculado numa percentagem do volume de negócios do agente (quando são
empresas) — Enquadram-se nas grandes contraordenações — Isto levanta problemas sérios de
inconstitucionalidade, porque têm máximos indeterminados. 


As coimas distinguem-se das multas, já que estas são determinadas tendo em conta os dias de
multa (entre 100 a 150 dias), pois cada dia tem um determinado montante tendo em conta a
capacidade do multado. As coimas não têm em conta a capacidade financeira de quem tem
de pagar. 


- Além das coimas, a lei pode prever certas interdições de direitos, que são cada vez mais
variadas e mais pesadas, assim como importantes.
Marisa Branco 68
Direito Penal I

As coimas são aplicadas pela Administração, por decisão, e podem ser impugnadas junto de um
tribunal judicial. A legitimidade legislativa (competência legislativa) para o direito de mera
ordenação social é diferente da legitimidade do direito penal, porque no direito de mera
ordenação social só se exige reserva de lei formal em relação ao regime geral das
contraordenações. Isto significa que o Governo pode criar, através de decreto-lei (sem
necessidade de autorização), as concretas contraordenações - o que não pode acontecer no
direito penal.

Execução das sanções: (pergunta de oral)

O que acontece quando alguém é condenado num processo crime numa multa e não a paga?

- A multa pode ser convertida em prisão subsidiária, a multa tem este potencial.

No caso as coimas não é isso que acontece:

- Não há conversação da coima numa pena de prisão, o Estado executa a dívida.

1.4. O futuro: um regime (um direito?) próprio para as grandes contraordenações?

Estas “Grandes contraordenações” estão entre o direito penal e os quadros tradicionais de


contraordenações. São comportamentos muito graves (em matéria de concorrência, ambiente, etc),
em que não se sentem de forma individual e imediata as consequências dessas condutas, mas a
realidade é que esses efeitos existem.

Assim, têm sanções muito pesadas, (como por exemplo 100 milhões de euros) aproximando-se do
direito penal. No fundo, está a ser contrariado aquilo para o qual se criou o direito de mera
ordenação social. Desta forma, há quem proponha um regime autónomo para este tipo de
contraordenações grandes.

A marca de água/matriz do direito de mera ordenação social é a não existência de privação da


liberdade nas sanções (penas de prisão). A aproximação dos dois regimes leva alguns autores a dizer
que caminhamos para não ser uma coisa nem outra.

O que hoje parece ganhar forma é a criação de um regime geral próprio para as grandes contra
ordenações.

Há comportamentos que tem características em comum e a sua repressão também e se juntarmos


isso, poderia fazer sentido criar, dentro do Direito de mera ordenação social, um regime próprio
para as Grandes contra-ordenações:

- são condutas graves;


- são contra-ordenações praticadas por pessoas jurídicas;
- os processos de decisão para praticar essas contra-ordenações são parecidos nos vários setores;
- as sanções que lhes são aplicadas são enormes

A ideia seria isolar essa regime num âmbito restrito e evitar que as soluções para as Grandes
contraordenações transvazem para contraordenações menos graves que não precisam das mesmas
garantias.

Marisa Branco 69
Direito Penal I

2. Direito penal e o direito disciplinar: penas criminais e sanções (medidas)


disciplinares

Pensamos no direito disciplinar como o direito disciplinar da função pública — é um direito da


administração contido na lei geral do trabalho e funções públicas - falaremos em relação aos
funcionários, e não no direito disciplinar laboral das empresas (porque aí são relações privadas e
não de direito público).

A grande diferença é que o Direito disciplinar se trata de direito interno da administração. É


um universo fechado, já as normas de Direito penal, em princípio, são de aplicação geral.

2.1. As questões da relevância axiológica e da presença do bem jurídico e a sua


imprestabilidade como critério distintivo:

Repete-se aqui aquilo que vimos na distinção anterior, quanto ao bem jurídico e à relevância da
conduta.

Antigamente, dizia-se que ao direito disciplinar não interessa a proteção de bens jurídicos, porque
diz respeito aos deveres do funcionário (que não seriam bens jurídicos). Contudo, mais uma vez,
existem vários deveres do funcionário que significam proteger bens jurídicos. Assim, existem
bens jurídicos que são protegidos no direito disciplinar (mas não são o principal).

Existem condutas que constituem infrações disciplinares que têm importância axiológica, como
insultar um colega de trabalho (é uma infração com importância axiológica). De novo, não é pela
relevância axiológica ou pela presença do bem jurídico que vamos distinguir o direito disciplinar do
direito penal.

Nõ é através destes critérios que vamos encontrar a distinção entre o DP e o DD.

2.2. A diferença: direito sancionatório interno da administração; proteção da integridade e da


confiança no serviço através da relação de dever

Esta diferença também está presente na distinção entre o direito penal e o direito de mera ordenação
social.

Proteção da integridade: Toda a norma disciplinar visa proteger a integridade do serviço através
da imposição de deveres.

Proteção da confiança: É discutido, no âmbito do Direito penal, se existe um bem jurídico da


confiança. O Dr. Caeiro entende que não, esta não tem suficiente densidade para ser bem jurídico
penal. Já no domínio do Direito disciplinar, parece-lhe que a confiança dos cidadãos no desempenho
da administração é fundamental numa sociedade democrática, é preciso que as pessoas confiem que
os seus interesses estão a ser adequadamente tratados. Este objectivo cumpre-se através da relação
de dever que precede o próprio direito disciplinar.

O direito disciplinar é um direito interno da Administração, ou seja, tem um círculo limitado de


agentes. Pelo contrário, o direito penal e o direito de mera ordenação social são direitos por natureza
extroversos, ou seja, são direito abertos a qualquer agente (em princípio, a não ser que sejam crimes
específicos).

Marisa Branco 70
Direito Penal I

Por ser um direito interno da Administração, o fulcro principal do direito disciplinar é a relação de
dever, independentemente de estar em causa um bem jurídico.

“O direito disciplinar visa proteger a integridade e a confiança dos cidadãos no serviço público”
segundo o Dr. Figueiredo Dias.

2.3. Distinção em relação ao Direito penal: a inexistência de critérios a priori; de novo: o papel
do princípio da necessidade da lei penal

A distinção entre o direito penal e o direito disciplinar, tal como acontece no direito de mera
ordenação social, não pode repousar em critérios à priori. Se é necessário que a conduta seja
criminalizada, é um crime (como a corrupção passiva – está integrado no direito disciplinar, mas
como é gravoso, é também um crime, para ter sanções mais pesadas). Assim, nos casos mais graves,
o direito penal revela-se necessário.

Não existe um critério que, à partida, o legislador possa utilizar para distinguir estes dois ramos do
direito. É o mesmo problema visto na anterior distinção, ou é necessário intervenção penal ou não é.

Há comportamentos que constituem infrações disciplinares e crimes (ex.: funcionário falsifica um


documento), mas depois há vários ilícitos disciplinares que não constituem crimes (atrasos ao
trabalho, por exemplo).

A distinção passa por um procedimento decisório do legislador e avaliação dos critérios de


criminalização.

2.4. O processo e as penas (finalidades preventivas)

Os processos são diferentes, as sanções disciplinares são menos graves: o processo disciplinar não
tem a mesma formalidade e garantias do processo penal.

- Desde logo, o processo disciplinar é administrativo, pode ser impugnado judicialmente.


- As penas têm de respeitar o princípio da culpa (em ambos). As sanções são disciplinares,
podendo ser multas, suspensão ou demissão. 


- As finalidades são essencialmente de prevenção especial, de intervenção sobre aquele


funcionário, mas também podem ser de prevenção geral (restauração da confiança no
desempenho do funcionário).

O Direito disciplinar sofreu alguma evolução, porque durante algum tempo entendia-se que era
virado para o agente, onde quer que o agente estivesse, ele era funcionário, estava sujeito aos
deveres que tem em geral — era um direito do agente; hoje, essa conceção esta ultrapassada, o
Direito disciplinar não é um direito do agente, centrado na pessoa do agente, mas sim em factos, em
violação de deveres — é um direito do facto.

2.5. Cumulação de responsabilidade disciplinar e criminal: intervenção do non bis in idem em


certos casos, p.e., na prisão disciplinar (remissão: a jurisprudência do TEDH)

Pode-se cumular a responsabilidade penal e disciplinar?

Ao contrário do que acontece no direito de mera ordenação social, no Direito disciplinar pode
haver 2 processos paralelos — pode haver uma intervenção do processo penal nos tribunais
Marisa Branco 71
Direito Penal I

comuns por causa do crime e, depois, paralelamente, desenvolver-se um procedimento disciplinar


conduzido pela Administração.

Fundamento da responsabilidade paralela:

É possível que os critérios a aplicar no Procedimento disciplinar e Processo penal não sejam os
mesmos, não está excluído que se chegue à conclusão de que não houve crime, mas houve violação
de dever em termos administrativos.

Esta comutação pode levar à cumulação de sanções:

— Isto não é, em geral, proibido pelo non bis in idem.

No caso de corrupção passiva, em que um empregado recebe dinheiro para fazer algo que não faz
parte das suas funções, está a ser cometido um crime e uma infração disciplinar ao mesmo tempo.
Surge, assim, a questão de se poder ser duplamente punido:

A doutrina que prevalece diz que sim, porque são infrações de natureza diferente (pois só é
proibido a dupla pena pelo mesmo facto – non bis in idem). O próprio Tribunal Europeu dos
Direitos Humanos tem dito que é possível a dupla punição pela natureza disciplinar e penal.

No entanto, existem casos que podem constituir uma exceção a este princípio, sendo um deles o
caso Engle (1976), com a prisão disciplinar, porque no nosso direito prevê-se a prisão disciplinar
para militares, que não é prejudicada pelas sanções criminais que possam caber ao caso. Este é um
dos casos em que o TEDH entende que sejam qualificadas estas ações como criminais, embora
sejam disciplinares, se for uma sanção muito severa.

Assim, parece que com a aplicação destes critérios do TEDH, em Portugal, para o Dr. Figueiredo
Dias, o direito penal consome o direito disciplinar, mesmo que se trate uma pena disciplinar — a
punição do crime deve consumir a punição disciplinar – vigora, nestes casos, o non bis in idem.

Então, em princípio, não há problema na cumulação das duas responsabilidades, exceto quando, por
alguma razão, como a severidade da sanção disciplinar, a infração seja qualificada como direito
penal, e aí é aplicado o non bis in idem.

Em suma:

O Direito disciplinar pode concorrer com o Direito penal, as sanções são paralelas e, em princípio,
podem ser cumulativas;

No entanto, em certos casos, quando se verifiquem os critérios impostos pelo TEDH, pode
acontecer que essa dupla intervenção fiquei proibidade pelo non bis in idem.

3. Direito penal e direito processual: penas criminais e sanções (medidas) de


ordenação ou conformação processual:

As medidas de coação processual são medidas adotadas durante o processo penal, para
conseguir que o arguido ou acusado não fuja, não perturbe as provas, etc., sendo a mais conhecida a
prisão preventiva. Estas não são medidas sancionatórias, são apenas para evitar certos prejuízos
para o processo.

Marisa Branco 72
Direito Penal I

3.1. O abuso de meios processuais:

As penas e sanções de conformação processual são medidas sancionatórias - verdadeiras sanções


-, aplicadas quando o arguido abusa dos meios processuais ao seu dispor, como apresentar pedidos
infundados, suscitar acontecimentos não razoáveis com intuitos dilatórios.

3.2. As sanções: pagamento de quantias medidas em unidades de conta processual (102€)

O tribunal aplica então estas sanções, que são o pagamento de certas quantias em dinheiro, em
unidades de conta processual (102€ é o valor de unidade de conta processual).

4. Direito penal e Direito privado: penas criminais e outras sanções

4.1. Multas por violação do direito financeiro (responsabilidade financeira sancionatória)

O direito financeiro regula a gestão dos dinheiros públicos, as regras que estão sujeitos os contáveis
e quem tem o dever de administrar os dinheiros públicos. Dá corpo a um ordenamento jurídico sui
generis, o direito da responsabilidade financeira sancionatória.

Pode dar lugar as infrações financeiras, quando, por exemplo, um ministro pratica infrações
financeiras. Por um lado, temos a responsabilidade financeira reintegratória (agente público tem o
dever de repor as quantias usadas ilicitamente) e responsabilidade financeira sancionatória
(aplicação de sanções pelo Tribunal de Contas).

4.2. Penas privadas (cláusula penal):

As partes celebram um contrato e estabelecem cláusula penal aplicável quando se verificar o seu
incumprimento. São penas consentidas e acordadas pelas partes (direito privado), por isso não têm
confusão com o direito penal, não são penas públicas.

4.3. Disgorgement e Punitive/exemplary damages (damages = indemnização):

Não temos este instituto em Portugal. São sanções aplicadas em processos civis ou processos por
wrongs (parecido com responsabilidade extracontratual – não é direito penal), onde o queixoso
reclama o pagamento de quantias para indemnizar os danos/perdas, podendo ainda pedir que o
tribunal aplica estas punitive damages.

Punitive damages são quantias muito grandes de dinheiro, entregues ao queixoso ou classe de
queixoso, como em ações contra uma empresa que vendeu medicamentos defeituosos sem avisar
que era nocivos para a saúde. Esta já não têm só a função de reparar os danos, mas uma finalidade
punitiva, exemplar, para afastar as outras empresas destas práticas.

Disgorgement: Quem recebeu dinheiro de forma ilícita terá de o devolver aos titulares dos
montantes que levaram ao enriquecimento. É uma figura muito utilizada no âmbito dos trusts nos
EUA.

Marisa Branco 73
Direito Penal I

Título III. A lei penal e a sua aplicação


Capítulo VIII - Princípio da legalidade da intervenção legal


1. O sentido do princípio nullum crimen, nulla poena sine lege

O princípio da legalidade é estruturante no Direito Penal, na sua formulação latina nullum crimen,
nulla poena sine lege, significa que não há crime nem pena sem lei.

O Princípio da legalidade como:

• “escudo” (shield): a função de defesa contra o poder punitivo e o arbitrário do Estado;


• a exigência de lei prévia (lex praevia), escrita (lex scripta, parlamentaria), estrita (lex stricta) e
certa (lex carta)

Por um lado, este princípio tem a função de “espada”, porque restringe os direitos individuais e, por
outro, a função de “escudo”, porque protege as pessoas contra o aparelho do Estado.

O princípio da legalidade serve como uma barreira/defesa contra o poder punitivo do Estado,
porque os povos perceberam que não podiam ser punidos por motivos arbitrários por parte do rei –
reivindicação dos povos contra o poder instituído.

Para ser punido por uma conduta, é necessário que haja uma lei prévia (lei anterior ao facto que
esteja em vigor no momento da prática do facto), escrita, estrita e certa (determinada em relação ao
seu conteúdo). Estas são as 4 dimensões principais do princípio da legalidade.

1.1. Antecedentes históricos e fontes internacionais:

- Terá aparecido pela primeira vez na Magna Charta (1215) para limitar o poder dos senhores e do
rei na aplicação das penas e impostos.

- Bill of Rights (1689), 



- DDHC (1787); 

- CEDH (1950); 

- PIDCP (1966),

- CDFUE (2007)
Podemos falar aqui de uma proteção multinível.

Na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão já vemos uma vertente iluminista do direito
penal. O mais recente documento que consagra este princípio é a Carta dos Direitos Fundamentais
da União Europeia. Esse documento tem o princípio com um sentido diferente de todos os outros
casos, porque o direito europeu tem um âmbito de aplicação limitado, o que significa que a CDFUE
não está a consagrar o princípio como a CEDH (é mais abrangente).

Marisa Branco 74
Direito Penal I

Em Portugal não apareceu de forma tão explicita, mas os reis portugueses compilaram o direito e
reduziram a escrito os costumes, por isso, já mostravam preocupação com os direitos das pessoas.

Esta evolução não foi linear, houve, ao longo da história, alguns retrocessos, nomeadamente com o
código Nazi, os códigos da União soviética — estes entorses ao princípio da legalidade surgem em
regimes autoritários, precisamente porque este princípio é uma cristalização do Estado
democrático, do princípio democrático.

1.2 Artigo 29º/1 e 2 CRP: a aplicabilidade direta das normas de direito internacional penal
costumeiro pelos tribunais portugueses (artigo 8º/1 CRP); os limites da lei interna (penas e
processo); o princípio da legalidade no direito internacional penal:

O princípio da legalidade criminal está consagrado no artigo 29º/1 da CRP, no artigo 1º do CP e


art. 7º CEDH.

O artigo 29º/2 CRP (remissão para art. 8º CRP) estabelece um regime particular, uma exceção ao
princípio da legalidade nacional, no qual os tribunais podem aplicar diretamente normas de
direito internacional penal, mesmo que a lei interna não puna esse facto.

Ainda neste número é estabelecido que não se impede a punição “nos limites da lei interna”,
sendo que isto não significa uma remissão para toda a lei interna (crime tipificado pela lei interna,
caía no número 1). Este “limites da lei interna” significa apenas nos limites da Constituição, ou
seja, na aplicação das penas pelos tribunais portugueses, estas devem ser as estabelecidas na ordem
jurídica portuguesa.

Significa isto que um crime de genocídio, em Portugal, não pode ter como condenação a prisão
perpétua, mesmo que essa seja a condenação consuetudinária nestes casos. O que pode acontecer é
os tribunais portugueses interpretarem as normas previstas na lei nacional de acordo com as normas
internacionais em vigor para a punição desses crimes.

Isto é uma exceção ao princípio da legalidade interna, porque, hoje em dia, é dominante a
interpretação de que também no direito internacional penal vigora um princípio da legalidade.

No Direito Internacional não existe um princípio da legalidade?

Houve um grande trabalho de sedimentação do costume internacional, por isso, agora é seguro dizer
que no direito internacional também vigora o princípio da legalidade, mas não é o princípio da
legalidade português — é o princípio da legalidade do Direito internacional.

O que está no artigo 29º/2 não significa que não exista um princípio da legalidade no direito
internacional, só quer dizer que não se aplica o princípio da legalidade português aos crimes do
direito internacional.

O tribunal constitucional aplica efetivamente a norma do artigo 29º no sentido de declarar


inconstitucionais normas penais que não cumprem o princípio da legalidade.

1.3 Fundamentos do princípio da legalidade interna:

• Externos: são exteriores ao direito penal propriamente dito; Vêm da própria organização do
Estado. 


1. Avultam, desde logo, do princípio liberal, que defende que o Estado só deve intervir no
Marisa Branco 75
Direito Penal I

mínimo necessário nas liberdades individuais, apenas quando for necessário. De acordo com este
princípio, a limitação só se pode dar quando emana da vontade geral. É através da lei que se
reconhece a vontade geral, ou seja, o princípio da legalidade tem por base o princípio liberal. 


2. O princípio democrático surge aqui porque o princípio da legalidade impõe que a vontade
geral seja obtida da forma mais extensa possível (maior representatividade possível), isto é,
através de uma lei do parlamento – deve ser o parlamento a legislar a matéria penal (ou governo,
com autorização da Assembleia da República). 


3. O princípio da separação dos poderes está relacionado com o princípio da legalidade, porque
quem cria as leis penais (parlamento) não pode ser quem aplica as leis penais (tribunal). 


• Internos: há certas razões próprias do direito penal - prevenção e culpa. 




1. A função preventiva do direito penal só se exerce através de normas cognoscíveis pela maior
parte dos cidadãos (seja prevenção geral ou especial). As condutas ilícitas têm de ser de
conhecimento geral, só assim pode ser exercida esta função preventiva do direito penal.


2. O princípio da culpa define que não se pode censurar alguém por um facto se esse facto não
estiver proibido através da vontade geral de forma prévia (o que não é proibido é, em princípio,
permitido). Não há pena sem culpa, mas só podemos censura alguém por ter culpa se essa pessoas
pudesse, na altura, conhecer desse facto.


1.4. Nullum crimen sine lege (Art. 29º/1, 2 CPR): Significado e consequências

Este princípio da legalidade divide-se em 2 partes, tendo como primeira parte nullum crimen sine
lege.

A norma penal tem que descrever o comportamento criminoso na lei, de uma certa maneira -
descrição da própria conduta.

Isto significa que se o legislador deixar lacunas ou erros, isso será imputável ao Estado,
beneficiando o cidadão, porque não deve ser ele a suportar os erros do Estado. 


Exemplo: uma norma diz que quem obtiver para si certo proveito económico através da conduta x é
punido com pena de y. Prova-se que alguém obtém proveito económico, não para si, mas para um
terceiro. Perante esta norma, a conduta praticada deve ser impune (não punida), porque não se
conforma com o princípio da legalidade (não estava prevista na lei). 


1.5. Nulla poena sine lege (Art. 29º/3 CRP): Extensão, significado e consequências

Esta é a segunda parte do princípio, que mostra que não abrange apenas a descrição dos 

crimes, mas também a previsão das penas. 


O artigo 29º/3 CRP indica claramente que o princípio diz respeito tanto a penas como a
medidas de segurança. Todas as reações criminais estão sujeitas ao princípio da legalidade (artigo
29º/1). 


Em relação às penas, foi, mais ou menos, sempre consensual que a pessoa não pode ser
condenada com uma pena mais grave que aquela que vigorava quando praticou o ato. Já as
medidas de segurança, pela sua natureza, eram vistas como medidas benéficas para o seu

Marisa Branco 76
Direito Penal I

destinatário (medidas para o bem da pessoa), por isso não havia problema em aplicar
retroativamente medidas de segurança a agentes, sobretudo, inimputáveis.

Contudo, o pensamento sobre as medidas de segurança mudou, porque mesmo quando visam
fins terapêuticos, não têm como finalidade as necessidades da pessoa em concreto, mas a proteção
da sociedade, para além de serem privativas de liberdades. Assim, devem estar sujeitas também às
regras do princípio da legalidade — O princípio da legalidade não protege só os autores das
condutas, mas todos os cidadãos.

Não pode ser o juiz a construir uma pena para aquele caso. Se, por exemplo, o juiz pensar por
razões materiais e funcionais que o mais indicado para aquele caso é a combinação de duas penas, e
essa possibilidade não estiver consagrada na lei, o juiz não o pode fazer (só pode determinar a
penal aplicável ao caso dentro do intervalo estabelecido na lei).

2. Plano do âmbito de aplicação (contra reum)


A teleologia do princípio: abrange apenas a matéria que fundamenta ou agrava a


responsabilidade do agente (disposições contra reum) e as consequências.

Muitas vezes confunde-se o respeito pela lei com o princípio da legalidade. Os princípios da
legalidade, por força dos seus antecedentes, têm um âmbito de aplicação muito concreto e limitado.
Só está sujeito ao princípio da legalidade a matéria penal que fundamenta ou agrava a
responsabilidade do agente (normas que funcionam contra o agente) – são as normas que
descrevem os crimes, descrevem as penas, descrevem as circunstâncias agravantes, etc.

Já não estão sujeitas ao princípio da legalidade todas as normas que diminuem ou excluem a
responsabilidade do agente, como as que prevêem as causas de exclusão de ilicitude (legitima
defesa).

— o princípio da legalidade tem uma aplicação assimétrica, só se aplica a normas que põem em
causa a liberdade das pessoas.

3. Plano da fonte (lex scripta)


3.1. Reserva relativa da lei formal (Art. 165º/1/C) CRP); A questão da competência
concorrente do governo e da assembleia da república para a descriminalização ou atenuação
das penas: jurisprudência do TC; crítica

No nosso sistema temos uma reserva relativa de lei formal (artigo 165º/1 CRP), sendo a AR
quem legisla em matéria penal, ou o Governo, com a autorização da AR. A AR é o órgão com maior
base de legitimação democrática, daí ser quem legisla em matéria penal.

Surge a questão: se a descriminalização é matéria concorrente do Governo e AR (como a


descriminalização das drogas), temos que ter em atenção que estamos num âmbito fora da
aplicação do princípio da legalidade.

O
Então, o governo pode legislar, nestes casos, sem necessidade de autorização do Parlamento? Não,
de acordo com a opinião do TC (o Dr. Caeiro concorda).

Marisa Branco 77
Direito Penal I

Assim, toda a matéria penal é de reserva de lei da AR. É desta forma, não pelo princípio da
legalidade, mas pelo princípio organizativo da política do Estado (artigo 165º/1 CRP). Não seria
funcional termos a AR a criminalizar um comportamento e o Governo, por não precisar de
autorização, descriminalizar.

3.2 As chamadas “NORMAS PENAIS EM BRANCO”; Em particular: o relevo das normas de


direito europeu:

Certas normas penais remetem parte do seu preenchimento para outros instrumentos
normativos, ou seja, exigem mobilização de outras normas do ordenamento para que a primeira
norma se complete.
— Por exemplo, uma norma que proíbe a caça de espécies protegidas e remete para outra norma
que elenca as espécies protegidas.

Isto, em princípio, é compatível com o princípio da legalidade, desde que a norma penal continue
suficientemente determinada — é preciso que o cidadão, lendo a norma, consiga captar o
essencial da proibição.

A questão que surge é a de se saber se a reserva de lei abrange essas normas que
complementam a norma penal. A resposta é negativa:

- A reserva de lei prevista na Constituição diz respeito apenas à norma penal. Quando a norma
penal é aprovada pela AR dessa forma (com remissão, que até pode ser para normas europeias), é
a própria AR que reconhece a sua insuficiência para completar a norma penal.

Hoje, não existem regulamentos da UE em matéria penal, a UE não tem competência para aprovar
normas penais diretamente aplicáveis, pode é aprovar diretivas que obrigam os Estados à adoção de
certas normas de natureza penal.

Assim, os regulamentos da UE podem apenas entrar por esta via das normas penais em branco.

4. Plano da determinabilidade da conduta proibida

A norma penal tem de estar redigida de forma a tornar a conduta proibida facilmente determinável
de forma rápida apreensível pelo cidadão. Não basta para o cidadão, no direito penal, um princípio
geral de não prejudicar o outro.

4.1. A insuficiência de um geral neminem laedere. Primeira aproximação à categoria do tipo


legal: entre o conceito abstrato (p.e., prejudicar outro) e o conceito concreto (p.e., destruir o
relógio da Ana)

Dada essa insuficiência geral, temos de recorrer aos tipos legais de crime. São uma categoria que
está a meio caminho entre as entidades abstratas e as entidades concretas.

O tipo é uma noção que tem um estatuto intermédio entre o conceito abstrato e concreto, procura
desenhar manifestações concretas da vida sem as particularizar em demasia, não são totalmente
genéricas, mas suficientemente determinadas para compreender o comportamento em causa

Exemplo: se tivermos animais como uma categoria abstrata e o Pluto como categoria concreta
(concreto animal), teríamos uma categoria intermédia, que seria cão, porque nos dá um tipo de
animais (cães).
Marisa Branco 78
Direito Penal I

Os tipos de crime referem-se a formas típicas de ofender determinado bem jurídico, sendo
identificados na vida social. Não identificam situações com características de lugar ou tempo, não
identificam agentes ou forma específica.

Exemplo: quem, com intenção de obter enriquecimento ilegítimo, induz outra pessoa em erro que
lhe provoca um dano patrimonial.

Os tipos legais têm que determinar a conduta suficientemente determinada. Em Portugal, o TC já


determinou algumas normas como insuficientemente determinadas, sendo assim inconstitucionais
por violarem o artigo 29º (exemplo: acórdãos sobre o enriquecimento ilegítimo), pois o legislador
tenta utilizar cláusulas gerais para conseguir apanhar o máximo de comportamentos possíveis, mas
que tornam as normas muito vagas.

A determinabilidade da conduta pode ser duvidosa em certos casos de fronteira, onde se utilizam
conceitos indeterminados. Por vezes, é necessário empregar estes conceitos normativos, mas é
necessário ter particular cuidado, para conseguir determinar a conduta o mais determinada possível.

5. A proibição de analogia (artigo 1º/3 CP)

A exigência de determinabilidade de conduta proibida tem, como consequência, a proibição da


analogia. Não faria sentido exigir que a conduta seja determinada, se, depois, o juiz pode
determinar a conduta através de analogia. O procedimento analógico é normalmente permitido na
ordem jurídica, mas no direito penal, dentro do âmbito do princípio da legalidade, a analogia é
proibida.

Assim, mesmo que o caso seja semelhante a outro expressamente proibido, o juiz não pode
condenar esse comportamento.

5.1. Interpretação e integração de lacunas: a doutrina clássica e a sua superação pela


metodologia contemporânea (“o Motivo fútil”, mas também… pessoa)

De acordo com a doutrina clássica, o juiz limitar-se ia a interpretar (silogismo judiciário –


limitar-se a pronunciar o direito que já estava constituído) e aplicar as leis. A integração da lei já
significava tanto a interpretação como a utilização da analogia e, assim, colmatar essa lacuna,
aplicando uma norma prevista para um caso análogo.

Hoje, esta divisão entre interpretação e integração de lacunas foi superada pela metodologia
contemporânea. Por um lado, é claro que o juiz não é uma mera boca da lei, pois este exerce uma
atividade constitutiva na criação da norma do caso (“é no caso que o direito se realiza”). Por outro
lado, temos assimilação da interpretação e da integração/analogia.

Atualmente temos uma corrente que diz que a interpretação e integração não são 2 momentos
essencialmente diferentes. Existe uma gradação, mas não uma cisão entre os dois, porque todo o
processo interpretativo recorre sempre a analogia. Esta visão pode trazer problemas ao direito penal,
uma vez que a analogia é proibida no direito penal (no âmbito do princípio da legalidade).

Mesmo com conceitos que parecem simples e descritivos, podem ser alvo de interpretação, como
pessoa. No direito penal, não é preciso haver nascimento e vida (há pessoa a partir do parto), sendo
que no direito civil há interpretação diferente.

Marisa Branco 79
Direito Penal I

5.2. A expressão literal como quadro máximo de significados possíveis; nesse quadro:
interpretação teleológica

As palavras não têm significados infinitos, são “apenas” polissémicas. Assim, o Dr. Figueiredo Dias
propõe um quadro limitado de significado possíveis. Enquanto estivermos dentro desse quadro
limitado, estaremos dentro de matéria de interpretação (como interpretação teleológica, etc.).
Quando passamos para lá desse quadro de interpretação, estaremos num quadro de analogia de
lacunas que o direito penal proíbe (apenas o que o princípio da legalidade abrange).

Exemplo: em Coimbra temos um eclipse do sol e alguém furta uma carteira nesse período. Pode ser
aplicada a este caso a norma que agrava a pena do crime de furto quando for praticado de noite? A
pretensão é mesma, mas estaríamos perante um procedimento analógico, porque o eclipse deu-se de
tarde, e não de noite. Já se fosse uma norma que afasta a responsabilidade do agente, podemos
aplicar analogia, porque já está fora do âmbito do princípio da legalidade.

5.3. O âmbito da proibição: analogia in malam partem ou contra reum (não favor do réu)

Se não está no âmbito do princípio da legalidade, é necessário que sejam mesmo situações análogas
para que o juiz aplique a norma ao caso análogo. Tudo o que seja uma analogia que agrava a
responsabilidade do agente é proibida; se atenuar ou afastar a responsabilidade (favor reum),
a analogia é permitida.

A analogia in favor reum não é uma exceção ao princípio da legalidade, pois não está no mesmo
domínio do principio da legalidade, porque ele não abrange normas que, por exemplo, excluem a
responsabilidade.

Capítulo IX- O âmbito da validade temporal da lei penal (a “aplicação


da lei no tempo”)
As consequências trazidas pelo princípio da legalidade são apenas um aspeto do problema mais
geral da validade temporal da lei penal. A aplicação no tempo e a aplicação do espaço são
intimamente ligadas, que condicionam a lei, porque são duas coordenadas fundamentais e
transcendentais humanas (qualquer ação humana tem lugar e hora).

1. A Doutrina tradicional: o princípio da irretroatividade”, “aplicação da lei


mais favorável”. Crítica: regime particular de certas normas (as normas
desfavoráveis)

A específica proibição de retroactividade in malam partem 


O Princípio da irretroatividade ou aplicação da lei mais favorável. 


O doutor considera a primeira designação incorreta, pois dizer que a lei se aplica não
retroativamente não diz muito. Já a segunda designação diz que estamos a tentar determinar o que é
aplicável, remetendo para o regime particular de certas normas, que se podem aplicar
retroativamente porque são normas mais favoráveis ao agente. Contudo, o doutor acredita que o não
pode ser o conteúdo de certas normas que nos diz qual o modo de determinação da lei aplicável.
Precisamos, assim, de requisitos formais e abstratos (para não estarem logo a considerar qual o
conteúdo da lei mais favorável).

Marisa Branco 80
Direito Penal I

2. Dupla função das normas jurídicas enquanto regras de comportamento/


regras de valoração

2.1 Natureza precetiva das normas jurídicas enquanto regras de comportamento — princípio
geral: princípio da não-transconexão ou da não transitividade

Para perceber o problema desde o princípio, temos de compreender qual a natureza das normas
jurídicas em geral. O princípio basilar aqui é a natureza percetiva das normas jurídicas, porque as
normas servem para prescrever comportamentos (deves ou não fazer isto – natureza percetiva).
Nesta função de determinação de comportamentos, torna-se evidente que as normas não podem
determinar comportamentos que não estejam em contacto com elas, ou seja, não podem ser
comportamentos passados (se não existia, não podia orientar os cidadãos).

A este respeito, o Doutor Batista Machado dizia que para isto existe o princípio da não
transconexão ou da não transactividade, que estabelece que a norma não tem a possibilidade de
orientar comportamentos que aconteceram antes de estar em vigor ou que ocorreram depois de ter
cessado vigência. Este princípio deve ser visto em todo o direito, não apenas no direito penal.

Temos assim de aceitar que as normas que vigoram para o direito penal são as normas que estão em
vigor quando o comportamento é praticado, porque é aí que o direito pode orientar os cidadãos, pela
sua natureza percetiva.

2.2 As normas jurídicas enquanto regras de valoração: proteção das expectativas: tempus regit
actum — factos devem ser valorados à luz das normas que vigoravam no momento da sua
prática

As normas jurídicas, além de regras de comportamento, também são normas de valoração, ou seja,
valoram comportamentos, não só no direito penal (mas especialmente). Dizem “não matarás”, mas
também dizem “quem matar será punido com pena”. Como o facto já ocorreu, a norma não tem
natureza percetiva, mas sim natureza de decisão de valoração dos comportamentos.

No momento da valoração dos comportamentos, estes devem ser valorados tendo em conta as
normas que estavam em vigor quando os atos foram praticados, para proteger as expetativas. Deve
haver coincidência entre a norma em vigor na prática do facto e a norma que vai valorar o facto.

2.3 Intensificação do problema do direito penal: particularidade das normas penais:


dissociação da norma de comportamento e da norma de valoração, no plano dos destinatários
e no plano cronológico da respetiva atuação

Contudo, no direito penal, este é um problema particularmente agudo, porque as normas penais têm
especificidades. Todas as normas podem ser distinguidas entre normas percetivas ou normas de
valoração, mas as normas penais dirigem-se a destinatários diferentes consoante estejam sobre
uma função percetiva ou uma função valorativa.

Exemplo: “não matarás” dirige-se a todos, mas, a norma que diga “quem matar é punido com pena
de x” dirige-se aos tribunais, os aplicadores do direito, pois é quem tem a função de valorar o
comportamento.

No plano cronológico também existe dissociação entre as funções das normas penais. A violação de
uma norma de valoração não traz medida imediatas (“não matar”), pois é valorado depois pelos
tribunais, aplicando a consequência prevista na norma. Tendo em conta esta dissociação no tempo
Marisa Branco 81
Direito Penal I

entre o momento do facto e o momento da valoração, o sistema jurídico pode mudar — Nesse
período entre o momento da violação da norma e o momento em que a norma de valoração é
aplicada, é provável que a lei tenha mudado.

3. Determinação do tempus delicti

3.1 Princípio geral: art. 3º CP: momento da ação ou da omissão; fundamento.


Comparticipantes; crimes duradouros (permanentes), crime continuado

Pela necessidade de se proteger as expetativas dos cidadãos, o fundamental ponto de partida para a
determinação da lei aplicável é saber qual o momento da prática do facto, porque aí estamos a
determinar simultaneamente qual a lei aplicável nesse momento – Art. 3º CP.

A lei, neste artigo, alude a duas dicotomias de crimes diferentes:

• Por um lado, os crimes da ação e os crimes de omissão; 


• Por outro lado, os crimes materiais — implicam um resultado típico - são compostos por uma
ação/omissão e um resultado (como o homicídio). A morte é um evento separado da ação de
matar. Outro tipo de crimes são os crimes formais, que não exigem um resultado para a
consumação do crime. A condução sobre o efeito do álcool consuma o tipo de crime. 


! No artigo 3º a lei quer dizer que, quando se trate de um crime material, ou seja, quando se
exige um resultado material para o crime se consuma, o momento decisivo não é o momento em
que o resultado ocorre, mas sim o momento em que o agente atuou.

É desta forma porque é precisamente no momento em que o agente age, ou deixa de agir, que o
comportamento pode ou não conformar-se com a norma, ou seja, esperar as consequências previstas
pela norma. Se a opção do legislador tivesse sido o momento do resultado, a lei que vigora no
momento do resultado podia ser diferente da lei que vigora no tempo da ação — É a proteção das
expetativas que justifica esta opção legal. 


Este critério também se aplica aos comparticipantes. O comparticipante é aquele que atua com o
autor, na prática de um facto em conjunto com o autor (como um cúmplice).

O comparticipante pode atuar em momentos diferentes do autor. O cúmplice pode fornecer os meios
para praticar o crime, e o crime ser praticado noutro momento. Então, o princípio do artigo 3º é aqui
aplicado também, a cada agente é lhe aplicado a lei em vigor no momento do seu facto. O
fundamento é sempre o mesmo, a proteção das expetativas individuais. 


Esta solução pode ter problemas nos crimes permanentes, duradouros ou de consumação
permanente:

- São crimes em que a ação ou a consumação perdura no tempo. O crime de sequestro tem 2
momentos: ação (privar alguém da sua liberdade) e execução (dura enquanto estiver privado da
liberdade continuamente). Continua a praticar-se o crime de sequestro enquanto a pessoa estiver
privada da liberdade.

O momento da prática destes factos é todo o período de tempo em que a pessoa está privada da
liberdade, que pode ser relevante para identificar a lei aplicável. Caso a lei mude durante esse
momento, a lei nova é aplicada pelo menos aos períodos em que a pessoa está encerrada durante a

Marisa Branco 82
Direito Penal I

vigência da lei nova —a nova lei vale apenas para o facto praticado a partir do momento em que ela
entra em vigor


Nota: não confundir com os crimes de efeitos permanentes, como o homicídio. 


Algo semelhante vale para o crime continuado:

- É um concurso de crimes (vários crimes), praticados em momentos diferentes, mas a lei obriga à
sua unificação num único crime, em virtude das circunstâncias exteriores, que diminuem
sensivelmente a culpa do autor. 


O princípio aqui é o mesmo, o momento da prática dos factos são todos os momentos que o agente
praticou a ação criminosa, aplicando-se assim a lei que estava em vigor no momento da prática
do último facto. 


3.2 Medidas de segurança: facto ilícito típico — lei vigente no momento da sua prática; estado
de perigosidade — duplo momento de referência: momento da prática do facto (“perigosidade
manifestada no facto”) e momento da decisão

Nas medidas de segurança isto funciona de maneira mais complicada, pois as medidas de
segurança assentam em pressupostos diferentes dos crimes.

Nos factos ilícitos típicos praticados pelo agente (homicídio, furto, etc) as coisas acontecem da
mesma forma que acontecem nas penas: a lei relevante é aquela que vigora na prática do facto
ilícito. 


A diferença encontra-se na avaliação da perigosidade. O doutor acredita que aqui existe uma dupla
referência, porque a lei, nas medidas de segurança, ao referir-se à perigosidade remete para o perigo
manifestado no facto, tendo de ser naturalmente definida pela lei aplicável no momento. Contudo, a
perigosidade tem de ser aferida no momento da decisão, porque se não houver, não se justifica a
aplicação da medida de segurança.

O doutor acredita que não se pode aplicar, nestes casos, uma lei que seja mais gravosa que a outra,
porque ambas incidem sobre um objeto presente, não lhe parecendo fácil seguir, nestes casos, a
regra simples de que a lei posterior revoga a lei anterior (e assim também que o que interessa é o
momento da decisão).

Ademais, não podem aplicar-se medidas de segurança que não existiam na lei no momento da
prática do facto.

4. Jurisprudência não é lei

Acima falamos de de mudanças de leis, e não de jurisprudência.

A jurisprudência não está sujeita aos mandamentos a que a lei está sujeita, não estão sujeitos às
garantias do princípio da legalidade os entendimentos dos tribunais relativamente a certas questões.

Isto levanta alguns problemas para as expectativas das pessoas, que podem ter uma certa confiança
em relação ao entendimento dos tribunais. Assim, os tribunais devem ter cuidado na aplicação de
novas correntes jurisprudenciais que fundamentem ou agravem a responsabilidade do agente que

Marisa Branco 83
Direito Penal I

pratica a conduta em causa, mas não existe uma proibição de alterar a jurisprudência à luz do
princípio da legalidade — podem aplicar a “nova jurisprudência” a um facto anterior a esta.

O instituo da falta de consciência do ilícito não é censurável, que permite excluir a culpa quando
alguém atua julgando que o que está a fazer é lícito, suaviza o que foi dito anteriormente. Isto
acontece porque se os tribunais mudam de opinião, a pessoa continua a ter atuado convicto que o
que estava a fazer era lícito, não havendo a sujeição da jurisprudência a estes princípios.

5. A atribuição de efeito retroativo à lei: cisão entre a norma de comportamento


e a norma de valoração. Interesse da estabilidade e interesse na adaptação.
Função da proibição de retroatividade desfavorável (princípio da legalidade):
impedir que o legislador promova o interesse na adaptação à custa das garantias
individuais

O legislador pode atribuir efeitos retroativos à lei. Desta forma, temos uma cisão da lei penal como
norma de comportamento e da lei penal como norma de valoração, porque, assim, o legislador
define que os factos não são avaliados de acordo com o quadro legal vigente da altura.

O legislador pode fazer isto porque existe um interesse na adaptação a novos problemas (além do
interesse da estabilidade). O legislador criminaliza os factos, e, tendo em conta o ponto de vista da
adaptação, é melhor que valha para o futuro, mas também para o passado. É aqui que entra a
proibição da retroatividade desfavorável em virtude do princípio da legalidade — A função do
princípio da legalidade é impedir que o legislador agrave retroativamente a responsabilidade do
agente e, assim sendo, percebemos a ligação íntima entre a proibição da retroatividade, o princípio
da ilegalidade e a proteção das expetativas individuais.

6. Imposição da retroatividade do tratamento mais favorável (lex mellior) na lei


penal

6.1 Art. 29º/1 (crimes) e 4 (penas) CRP; art. 2º/2 CP

A nossa lei penal estabelece, no artigo 2º/2 e 4 CP, a imposição da retroatividade do tratamento
mais favorável, assim como a Constituição (29º/1 e 4 CRP).

6.2 Fundamento: princípio da necessidade da lei penal; não é uma exceção ao princípio da
legalidade (que cobre apenas as normas mais desfavoráveis)

Isto não é uma exceção do princípio da legalidade, porque o princípio da legalidade só atenta a
normas desfavoráveis. Se a lei nova é mais favorável, a sua aplicação só melhora a posição do
agente, ou seja, não tem nada relacionado com o princípio da legalidade, apenas com o princípio
da necessidade da lei penal, é desnecessário aplicar a lei em vigor no momento da prática do facto.
Por exemplo, se no momento em que é julgado, o legislador entende que não há razoes de
prevenção geral ou especial que justifiquem a criminalização de certa conduta, torna-se
incompreensível restringir a liberdade da pessoa.

• Deixou de haver um juízo negativo sobre uma conduta, e já não faz sentido aplicar normas
que já não correspondem ao pensamento da comunidade, apenas porque eram a as normas
vigentes no momento da valoração das condutas.

Marisa Branco 84
Direito Penal I

Exemplos: B pratica um crime de aborto em 2000 e, em 2002, antes do julgamento entra em vigor
uma lei que descriminaliza aquele facto; A pratica um crime punível com prisão até 12 anos, mas no
momento do julgamento está uma vigor que estabelece uma pena até 10 anos para esse facto.

O interesse privilegiado aqui é a adaptação.

6.3 Descriminalização da conduta; definição; irrelevância da alteração do bem jurídico;


efeitos

O tratamento mais favorável diz respeito a duas situações distintas:

• Em primeiro lugar, as situações de descriminalização da conduta (2º/2 CP): A descriminalização


da conduta significa que algo que era crime, o deixou de ser. Quando isto acontece, mesmo que
tenha havido uma condenação, e que essa já transite em julgado, cessam a execução e os seus
efeitos penais. A lei nova, mais favorável, atinge até a execução da pena. São casos de
desnecessidade da lei penal, deixa de haver necessidade de criminalização.


E quando muda o bem jurídico protegido por certas normas? 


Exemplo dos crimes sexuais: em 1994, alguém cometia o crime de violação, que, na altura era
visto como violação de valores da vida em sociedade. Esta conceção mudou e este crime passou a
ser crime contra as pessoas, não a sociedade — Alterou-se o bem jurídico, mas não houve
descriminalização devido a esta mudança, o que interessa é a conduta, que continua a ser crime.

• Quando um facto que era crime passa a ser uma contraordenação — há aqui um fenómeno de
descriminalização - sucessão de crimes e contraordenações — surge a questão de saber se aqui
pode ser aplicada retroativamente a lei nova de mera ordenação social.

6.4 Sucessão crimes —> contra ordenações: aplicação retroativa da lei nova? Impossibilidade
de recondução do problema à sucessão de leis penais (art. 2º/4 CP)

A doutrina divergente bastante neste tema. A jurisprudência é mais uniforma, defendendo que deve
ser aplicada a lei nova.

Em alguns casos, a contraordenação descreve o comportamento de forma ampla, abrangendo


também comportamentos criminosos:

Exemplo: Conduzir com uma taxa de álcool acima de 1,2 é crime. O legislador elevou essa taxa
para 1,5 em 2021. Em 2020 alguém estava a conduzir com 1,3, ou seja, é crime, de acordo com a lei
em vigor. No momento em que é julgado, já não é visto como crime. Nestes casos, atendendo à
formulação da contraordenação (quem conduzir com taxa superior a 0,8), parece que estamos
perante uma contraordenação, mesmo que o valor seja 1,3. De acordo com o pensamento do doutor
e a proteção das expetativas, deve continuar a ser punido como contraordenação.

Quando existe uma sucessão em sentido mais estrito, que são os casos em que o comportamento
que anteriormente era crime, passando a ser contraordenação (e deixa de ser crime). Quanto aos
comportamentos praticados quando ainda era crime:

• Doutor Carvalho diz que não se deve aplicar a lei penal nem a lei contra-ordenacional (se não
estávamos a aplicar com retroatividade); 


Marisa Branco 85
Direito Penal I

• Doutor Figueiredo Dias diz que aqui não há lugar para a proteção de expetativas, porque estas
não existem — a pessoa, quando praticou o facto, não podia esperar não ser punida, por isso, o
regime mais favorável deve ser aplicado retroativamente; 


• Doutor Pedro Caeiro acredita que o problema não deriva do 2º/4, porque não estamos perante
um problema de sucessão de disposições penais, estamos sim perante uma disposição penal que
passou a ser uma mera disposição contraordenacional —O artigo 2º/4 só prevê sucessão de leis
penais, por isso não deve ser aplicado a uma sucessão de leis não penais.

Neste problema temos a certeza de que não podemos aplicar a lei penal (houve descriminalização).
A questão é saber se podemos aplicar a disposição contraordenacional retroativamente

O Doutor Caeiro não concorda muito com o que o Doutor Figueiredo Dias defende. As contra-
ordenações também estão sujeitas ao princípio da legalidade.

O Doutor Caeiro acredita que a solução passaria por:

1º Haver uma disposição expressa da lei nova no sentido da sua aplicação retroativa.

2º É preciso avaliar se essa aplicação retroativa é conforme com a Constituição, com o princípio
da legalidade, isto é, se a forma como a Constituição regula o princípio da legalidade em matéria
de direito de mera contraordenação. È um problema de mera ordenação social, não de direito penal.

3º Em último termo, cabe ao Tribunal de Constitucional fornecer a sua interpretação sobre a


conformidade com esse princípio.

6.5 Despenalização (art. 2º/4); método de avaliação; limite à execução da pena ( a modificação
do regime em 2007 e a questão da inconstitucionalidade do regime anterior)

Os casos de despenalização previstos no artigo 2º/4 do CP (continuam a ser puníveis, mas as


punições passam a ser mais favoráveis do que anteriormente) aplicam-se retroativamente, com os
mesmos elementos.

Para avaliar se uma lei posterior é ou não mais favorável ao agente, não podemos ver de forma
abstrata, mas sim de forma concreta, isto porque a lei nova pode ser mais favorável num aspeto e
mais desfavorável noutro, por isso o juiz tem de fazer uma aplicação simulada de ambas as leis ao
caso e ver qual a que dá o resultado mais favorável. Não pretendemos descobrir qual a lei mais
favorável, mas sim descobrir se a lei nova é mais favorável que a lei que vigorava no momento da
prática dos comportamentos.

Surgem questões relativamente à utilização do dépeçage, um método em que o juiz retira as partes
mais favoráveis de ambas as leis, de forma a construir o regime mais favorável.

O Doutor Figueiredo Dias defende que se deve aplicar em bloco a lei nova ou em bloco a lei velha
(bloco como um todo, e não apenas algumas partes), porque o juiz iria estar a criar uma lei que não
existe, através do dépeçage, que acaba por ser proibido.

Contudo, admite que, em alguns casos, apesar de tudo, se justifica uma solução um pouco diferente.

Exemplo: ocorre um furto de noite, de valor superior a 20.000€. A lei em vigor na altura tem a
agravante de ser praticado de noite. A lei nova tira essa agravante, tendo uma nova agravante de
serem furtos num valor superior a 10.000€.
Marisa Branco 86
Direito Penal I

Para o Doutor Figueiredo Dias a solução é: a agravante da lei anterior não pode ser aplicada; a nova
qualificação não pode ser aplicada porque era algo que o agente não estava a contar no momento da
prática do ato (viola as expetativas individuais);
Para o Doutor Caeiro este raciocínio parece-lhe correto, pois não está a ser construído um novo
regime. Estes elementos destacáveis (são possíveis de serem separados dos restantes), para o
Doutor, permitem que se cheguem a estas soluções. No entanto, isto não permite que o juiz possa
utilizar, dentro do mesmo fator, atenuantes da lei antiga e fatores de medida da pena da lei nova
(porque os fatores de medida da pena não são destacáveis).

Modificação do regime em 2007:

Até 2007, ainda quanto ao 2º/4 CP, fazia-se a ressalva do caso julgado (salvo se já tiver sido
condenado por uma sentença que transita em julgado), acreditando-se que era uma exigência de
praticabilidade.

Em 2007, o legislador decidiu modificar o regime e já permite algumas das consequências que
derivam da aplicação do princípio do tratamento mais favorável, mesmo nos casos em que tenha
havido condenação que transita em julgado, havendo, contudo, um limite quanto à execução.

6.6. As leis intermédias

O problema das leis intermédias pode invocar ambos os números do artigo 2º.

São leis que estão no meio de uma lei vigente no momento da prática do facto (L1), uma lei não
vigente no momento do julgamento nem no momento da prática do facto (L2) e uma lei vigente no
momento do julgamento (L3) — ela não esta em contacto com nenhum dos momentos relevantes.

Este problema é colocado de forma diferente, porque convoca sempre uma terceira lei, são 3 leis em
concurso. Coloca-se a questão se L2 pode ser aplicada retroativamente, se for mais favorável.

A opinião geral é de que L2 pode ser aplicada retroativamente, seja uma lei despenalizadora ou uma
lei descriminalizadora, com fundamento nos argumentos:

- Elemento literal: o 2º/4 prevê o concurso com leis intermédias, permitindo a sua aplicação;
- Elemento substancial: fundado pelo Princípio da igualdade — uma figuração abstrata do
mesmo. 


Se 2 agentes praticarem o mesmo facto, no mesmo dia, na vigência de L1, mas um deles é
julgado na vigência de L2 (pela aplicação do 2º/2 é absolvido, pois houve descriminalização pela
L2 – irresponsável penalmente) e o outro é julgado por L3 (é responsável penalmente). Isto não
seria certo, haveria aqui uma aleatoriedade, por isso, em todos estes casos é aplicada a lei
intermédia mais favorável.

6.7 A exceção à aplicação retroativa do tratamento mais favorável: as leis temporárias e as leis
de emergência; a exceção à exceção: a alteração da valoração do legislador

Todas as leis têm a perspetiva de durarem, tendencialmente, para sempre. Mas, certas leis valem só
para um certo período de tempo.

Marisa Branco 87
Direito Penal I

O legislador pode definir até quando vigoram — leis temporárias em sentido estrito — ou as leis
podem ser associadas a situações excecionais (calamidade – leis temporárias em sentido amplo).

As leis temporárias não devem ser confundidas com leis que têm apenas algumas disposições que
apenas vigoram num certo período de tempo. Exemplo: a lei da caça está em vigor todo o ano, mas
caçar, em certos meses, é considerado ilegal. A lei está em vigor durante todo o ano, mas algumas
disposições apenas punem factos praticados em certas alturas do ano.

As leis previstas no artigo 2º/3 CP (temporárias) são uma exceção à aplicação retroativa do
tratamento mais favorável, pois quem praticou o facto ilícito durante a vigência de uma lei
temporária continuará a ser punível, mesmo depois da lei ter terminado a sua vigência no
ordenamento jurídico (ou seja, são puníveis quando forem julgados depois do período de vigência).
No momento em que são julgados já não são crime, mas são puníveis — Isto acontece para garantir
a eficácia preventiva destas leis.

Leis de emergência:

Falamos de leis que o legislador cria para responder a determinada necessidade social e para
vigorarem durante um tempo determinado. Por exemplo, leis do tempo do covid, leis de tempos de
guerra, (…)

Lei 1 — facto de deserção — lei 2 menos favorável (entra-se numa guerra) — julgamento

Não se aplica a lei menos favorável.

Lei 1 — lei 2 menos favorável — facto — volta a lei 1 — julgamento

O agente é punido pela lei menos favorável - exceção ao principio da lei penal mais favorável

Se pratica um facto no momento em que está em vigor a lei temporária menos favorável, o agente é
punido por esta, mesmo que o julgamento se dê quando esta já não estiver em vigor novamente.

Todavia, podemos encontrar uma exceção à exceção:

São casos de difícil ocorrência, em que se volta a aplicar o princípio da aplicação retroativa do
tratamento mais favorável. Surgem nos casos de sucessão de leis temporárias (várias leis
temporárias em concurso), sendo que a posterior (lei nova) diminui a pena aplicável aso factos
praticados. Se o agente praticar o facto na vigência da primeira lei temporária, será que se pode
aplicar a segunda lei temporária por ser mais favorável? O artigo 2º/3 deixa essa possibilidade em
aberto.

Para sabermos se pode ser aplicada ou não, o critério utilizado é analisar qual o motivo da
modificação da lei: se uma melhoria da situação de facto ou se a situação se mantém igual, mas a
valoração mudou. Nem sempre se consegue analisar isto de modo rápido.

- Se a situação mudou, mas o legislador não mudou a sua perspetiva sobre a necessidade das
penas, continua a aplicar-se a lei que vigorava; 


- Se a situação objetiva é a mesma, mas a valoração do legislador sobre a mesma mudou, aplica-se
a lei posterior mais favorável.

Marisa Branco 88
Direito Penal I

! No caso da mudança da valoração estamos perante a exceção à exceção.

Capítulo X - O âmbito de eficácia (aplicabilidade) da lei penal (a


“aplicação da lei no espaço”)

A aplicação da lei no espaço

1. Crítica da designação tradicional: “Direito penal internacional”; “Aplicação


da lei no espaço”

Aplicação da lei no espaço:

O espaço, aqui, vale como um espaço dividido em territórios. A ideia de que o território é um
critério fundamental da aplicabilidade da lei é uma ideia recente. Existem ordenamentos penais que
não dizem respeito a um território, mas a outros elementos de coesão. Mesmo nos casos em que se
trata de uma situação puramente interna, tem de existir uma norma que diga que aquele facto é
punível (um português mata um português – Artigo 4º CP).

Direito penal internacional: seria o conjunto de normas de direito interno que regulamentam a
aplicabilidade da lei a certos factos praticados no estrangeiro, por exemplo, a factos com elemento
de estraneidade.

Direito internacional penal: ramo do direito internacional publico que regula os crimes mais graves
na comunidade internacional.

DPI não é uma boa definição:

- Não é sempre direito interno,


- O direito penal internacional não abrange todo o problema que vamos tratar aqui, só cobre uma
parte pequena do problema que propomos tratar

O problema a tratar é: qual a delimitação da aplicabilidade de um certo ordenamento jurídico-


penal?

Todos os sistemas jurídicos têm:

- as normas primárias: estabelecem o conteúdo das proibições;


- normas secundárias que têm por objeto outras normas, delimitam o campo de aplicação das
normas primárias (exemplo: art. 4º CP).

Precisamos destas normas porque, quando temos normas substantivas materiais (proíbem certos
factos), temos nessa norma o conteúdo, mas não o alcance/âmbito de eficácia dessa norma. Têm de
existir as regras de aplicabilidade ou normas sobre normas que dão “pernas” à norma
substantiva material. Existem numa unidade funcional com as normas materiais.

Vamos estudar as delimitações que estas normas impõem no sistema jurídico-penal português.

Marisa Branco 89
Direito Penal I

2. O conceito de jurisdição (jurisdiction) e a sua relação com o direito


internacional público; jurisdição prescritiva, judicativa e executiva

(vd, P Caeiro, fundamento…, p. 24-43)

Estão aqui sempre em causa problemas de jurisdição. Este problema só se põe porque existem
vários Estados — em que medida?

Uma coisa é ter o direito de punir, outra coisa é ter jurisdição no contexto de uma pluralidade de
titulares de direito punitivo. A jurisdição é a doutrina que delimita o poder punitivo de um
Estado em relação a outros Estados, é um exercício de delimitação mútua e de articulação de
vários titulares do poder punitivo. Um estado tem poder punitivo se tiver jurisdição, ou seja, a
jurisdição é um requisito prévio para que um estado possa punir, a jurisdição é um problema de
repartição de poderes.

Os Estados reconhecem jurisdição entre si através dos standards do Direito Internacional Público.

O conceito de jurisdição comporta três dimensões:


• Jurisdição prescritiva: poder de legislar, prescrever comportamentos; 


• Jurisdição judicativa: aplicar as normas a factos — tribunais, polícia, Ministério Público;


• Jurisdição executiva: poder de executar as reações criminais;

Aqui falamos de quem tem o poder legítimo de punir determinado facto e, para isso, temos estas 3
camadas da jurisdição.

3. A jurisdição prescritiva como poder legítimo de cada Estado de estabelecer o


âmbito de aplicabilidade da sua lei, dentro do elenco de conexões significativas

Cada Estado tem uma margem de apreciação para estabelecer o âmbito de aplicação da sua lei penal
e para isso vai escolher as chamadas conexões significativas, têm de ter sentido:

A jurisdição prescritiva é o poder de estabelecer as conexões significativas com o direito


nacional. Cada estado tem várias possibilidades, que pode escolher como conexões significativas,
como a territorialidade do facto, nacionalidade do agente, nacionalidade da vítima, residência, etc.

Um Estado estendendo excessivamente a sua competência a factos praticados noutro país, ou seja,
sem esta conexão significativa, incorre em violação do princípio da não ingerência,

4. A essencial coincidência entre o âmbito da jurisdição prescritiva e da


jurisdição judicativa (diferença com direito internacional privado

Ao contrário do que acontece no direito privado, temos uma coincidência entre os factos que
caem dentro do âmbito de aplicabilidade do direito penal e os factos que podem ser julgados
pelos tribunais judiciais.

Marisa Branco 90
Direito Penal I

No direito penal, qualquer crime que esteja no âmbito de aplicabilidade do direito penal pode ser
julgado pelos tribunais judiciais. Já no direito privado, a lei aplicável aos casos é escolhida através
das regras do direito internacional privado.

5. A atualização da jurisdição prescritiva através das regras de aplicabilidade

As regras de aplicabilidade: Factos territoriais, factos extraterritoriais e a determinação do


locus delicti

Vd. P. Caeiro, Fundamento…, p. 320-325

O crime é sempre o facto de uma pessoa e quando qualquer pessoa age tem sempre um
enquadramento no tempo e espaço, não há ação fora destas coordenadas.

Não há duvida de que os crimes praticados em território nacional põem exigências de prevenção
diferentes dos crimes praticados no estrangeiro.

Assim, a nossa lei, no artigo 4º chama a regra da territorialidade de princípio geral, em regra, a lei
portuguesa será aplicável aos factos praticados em território nacional. As extensões extraterritoriais
da lei são sempre complementos.

— Existe uma razão particular entre factos territoriais ou factos extraterritoriais. Entre o artigo 4º e
o artigo 5º existe uma diferença centrada na territorialidade do facto, porque quando se aplica a lei
de Portugal a factos praticados fora de Portugal, normalmente esses factos implicaram outros
Estados, tornando-se um problema de direito internacional.

6. A determinação da prática do facto (locus delicti) — Art. 7º CP) e a solução da


ubiquidade ou plurilocalização; a ampliação dos critérios na revisão de 1998: o
resultado não compreendido no tipo de crime e o lugar onde o resultado deveria
ocorrer segundo a representação do agente; os casos de comparticipação; os
delitos itinerantes ou de trânsito

Quando se trata de factos territoriais (praticados em território português), esses factos não têm
um contacto tão exigente com o direito internacional. Os crimes que causam mais alarme social
são os que acontecem em território nacional, por isso as exigências de prevenção são maiores
relativamente a factos territoriais. A territorialidade é importante para delimitar, de forma natural, o
poder punitivo de cada Estado.

Temos de determinar o lugar da prática do facto, de acordo com o artigo 7º do CP, que tem uma
solução diferente do artigo 3º:

No artigo 3º importa o momento em que o agente atuou ou devia ter atuado; 


No artigo 7º quer-se multiplicar os pontos de conexão territorial: é considerado em Portugal se o


agente tiver atuado em Portugal, se tiver omitido o dever de agir em Portugal ou se tiver ocorrido
em Portugal o resultado típico (mesmo que tenha atuado no estrangeiro). Esta solução é chamada de
ubiquidade ou plurilocalização, porque uma coisa ubíqua é uma coisa que está em todo o lado. 


Marisa Branco 91
Direito Penal I

Exemplos escola do artigo 7º:

Indivíduo dispara um tiro na fronteira de Badajoz, estando em Portugal quando dispara, mas atinge
uma pessoa que está do outro lado da fronteira. É praticado em Portugal. 


Se alguém disparar contra o autor do primeiro disparo, estando do outro lado da fronteira, a ação
também ocorre em Portugal, porque o resultado típico ocorreu em território português. 


O resultado não compreendido no tipo de crime:

O homicídio é um tipo de crime, e o resultado morte é um resultado típico.

O resultado não compreendido no tipo de crime são crimes que antecipam a tutela penal e punem
certos factos, mesmo que não ocorra o resultado que seja esperado desse tipo de facto. 


Por exemplo: Quem lançar um objeto contra um veículo em andamento é punido. Não é preciso
que acerte no veículo, que cause feridos, etc. Se acertar o veículo ou causar feridos são resultados
não compreendidos no tipo crime, não são necessários para a consumação. Estes resultados, se
ocorrerem em território português, são suficientes para soldar a competência da lei nacional. Caso
isto ocorra tudo no território espanhol (praticado e consumado), a realização do resultado não
compreendido no tipo de crime é necessário para a aplicação da lei portuguesa. 


Exemplo de caso previsto no artigo 7º/2:

Alguém envia uma carta armadilhada, de frança, para matar um português em Portugal. A carta é
intercetada em França. De acordo com o artigo 7º/2 este facto é praticado em Portugal, porque na
representação do agente, o lugar onde o crime se devia consumar era o território português, mesmo
tratando-se de uma tentativa que ocorreu em França.

Este artigo diz que o facto se considera “igualmente” praticado:

- Se um português planear um crime em Portugal, com resultado projectado para ocorrer na


Alemanha, mas o resultado acaba por não acontecer. De acordo com este artigo, a lei portuguesa
é competente para conhecer este caso? Sim, o artigo 7º/2 visa apenas estender a competência
normal da territorialidade do facto, mas o lugar onde o agente projeta o resultado não é o único
critério.

Quanto aos casos de comparticipação:

Pelo artigo 7º/1, basta que o agente seja um cúmplice ou co-autor a atuar em Portugal para que a lei
portuguesa seja aplicável a todos os cúmplices. Mas isto parece não ser assim, parece só se aplicar a
quem atuou em Portugal, ou preencha os restantes requisitos.

Os crimes itinerantes ou de trânsito:

Ocorrem quando o envio de objetos ilegais atravessa vários países. Nestes casos quer-se averiguar
se existe um contacto suficiente com o território dos países por onde passou para afirmar a
territorialidade.

Marisa Branco 92
Direito Penal I

Distinção de diferentes tipos de situações:

a)  António desembarca em Lisboa de um avião da Costa Rica, com 1kg de cocaína para vender a
Espanha. É um caso claro de crime itinerante, porque o objeto ilegal atravessa o território
português, tendo associado uma perigosidade intrínseca. 


b)  Espanhol envia carta a primo nos EUA a enganá-lo. A carta atravessa o espaço aéreo português,
mas o ordenamento português não tem competência para conhecer este facto. Aqui o objeto não tem
perigosidade inerente, porque não vai afetar Portugal por passar no nosso espaço aéreo. 


São dois casos parecidos, mas diferentes, no 2 caso o contacto com o território português é fortuito,
não causa nenhuma exigência particular de prevenção. O mesmo não se passa no caso dos
estupefacientes, estes podem ser desviados por exemplo, são materiais que pela sua natureza podem
causar perigos para a comunidade. Quando estes trazem exigências de prevenção, existe
competência do Estado português, mesmo que o seu destino fosse outro país.

7. As regras de aplicabilidade incondicionada

7.1 Artigo 4º/a): a regra base da territorialidade; conteúdo do conceito território;


fundamentos externos e internos; a irrelevância, para a aplicabilidade da lei em função da
territorialidade, da nacionalidade dos interesses atingidos pelo crime (atenção aos limites do
tipo legal em causa: diferenças entre artigos 131º e 325º CP). As normas espacialmente
autolimitadas (arts. 320º e 352º CP): aplicam-se apenas a factos praticados em território
nacional

Princípio da territorialidade:

O conceito de território importante para este conceito é o que está definido na Constituição
(incluindo as 12 milhas das águas territoriais e o espaço aéreo).

Fundamentos do princípio:

Fundamentos externos:

Jurídico-políticos: Se cada Estado se ocupar dos crimes praticados no seu território, evitam-se as
lacunas de punibilidade e conflitos de ingerência. Claro que uma competência baseada
exclusivamente no território não é suficiente, mas funciona como princípio base.

Fundamentos internos:

Necessidade de prevenção: Não há duvida de que são os factos praticados em Portugal que suscitam
maiores problemas de prevenção.

Aplicabilidade incondicionada:

A grande característica presente no artigo 4º/a) é que de não existem nenhumas condições para
aplicação da lei portuguesa quando se trata de factos territoriais, ou seja, não é preciso
nenhuma condição para ser aplicada.

Quando se trata de crimes praticados em território nacional, é irrelevante a nacionalidade do


que é atingido (pessoas, bens jurídicos, etc.). O fundamental é que a norma que pune o facto

Marisa Branco 93
Direito Penal I

proteja esses bens jurídicos estrangeiros, a regra da territorialidade não se confunde com a
nacionalidade dos interesses protegidos.

Limites do tipo legal em causa:

Qualquer pessoa é protegida pelo artigo 131º, trata-se de uma proteção indistinta. Depois é
preciso ver se a lei portuguesa é competente em função das várias conexões.
Portanto, quando se trata de crimes contra bens jurídicos pessoais, é irrelevante a nacionalidade da
vitima sempre que o facto se produza ou tenha um contacto relevante com o território nacional. O
artigo é aplicável em função do território.

Por exemplo, no artigo 250º prevê-se a violação da obrigação de alimentos. Aquele que não cumprir
a obrigação nos prazos estabelecidos no artigo, é punido com pena de multa. Quem não cumprir a
pensão de alimentos a que está obrigado, a partir de certo prazo, comete um crime.

Como diz o Dr. Figueiredo Dias, e bem, não importa se o beneficiário desta obrigação de alimentos
é estrangeiro e reside no estrangeiro, porque a violação da obrigação também acontece em Portugal,
na medida em que agente omite, em Portugal, a ação.
Também aqui, apesar de a vitima residir no estrangeiro, se os factos considerados forem praticados
em Portugal, aplica-se a lei portuguesa.

Há alguns crimes cujo conteúdo está limitado a certas realidades nacionais. Como é exemplo o
artigo 325º, que diz respeito ao atentado violento contra o Estado de Direito. Esta norma não
protege qualquer Estado, nem sequer qualquer Estado de Direito. O Estado de Direito protegido
nesta norma, naturalmente, é apenas o Estado português.

Se alguém tentar, em território português, a alteração violenta de um Estado de direito mas de


qualquer outro Estado, pode estar a cometer um crime, mas certamente não é o crime do artigo
325º.

Mesmo tratando-se de um facto ocorrido no território português, o conteúdo do artigo 325º não
compreende a proteção de Estados estrangeiros ou de interesses estrangeiros.

As normas espacialmente autolimitadas:

Por último, temos os casos onde a própria norma cuja aplicabilidade estamos a tentar determinar
limita o lugar da sua prática ao Estado português. No artigo 320º afirma-se “em território
português…” e, portanto, esta é uma norma especialmente auto-limitada, esta conduta só é punível
se ocorrer em território português, isto não tem a ver com a aplicabilidade da lei, mas sim com a
própria estrutura da conduta típica.

Portanto, o que temos sempre que distinguir é qual é o âmbito de proteção da norma material -
no artigo 131º, qualquer pessoa; no artigo 325º, o Estado de direito português; no artigo 320º e 352º,
já não tem a ver com o conteúdo da norma, mas com o lugar da prática do facto.

Quando se verifica o requisito da territorialidade, não é preciso olhar a mais nada, aplica-se a lei
portuguesa.

Marisa Branco 94
Direito Penal I

7.2. Artigo 4º/b): extensão do regime da territorialidade: a regra do pavilhão/registo (navios


ou aeronaves)

O artigo 4º contém, ainda, uma extensão deste regime da territorialidade, portanto, também um
caso de aplicabilidade incondicionada, que é a prática de factos criminosos a bordo de navios ou
aeronaves portugueses.

Isto corresponde a uma ideia antiga do Direito Internacional, segundo a qual estes transportes são
uma espécie de extensão do território do Estado. E, portanto, quando uma navio arvora uma
bandeira portuguesa, ou quando uma aeronave está registada em Portugal, é como se se tratasse de
factos praticados em território nacional. E, portanto, aplica-se a estes casos o mesmo regime da
territorialidade.

Aqui pode haver conflitos positivos de competência, quando, por exemplo, um barco esteja
ancorado num porto de um país estrangeiro - e, portanto, em águas territoriais de um país
estrangeiro -, os factos cometidos dentro desse barco podem estar sujeitos tanto à lei portuguesa,
como à lei do pais onde se encontra.

Neste caso concreto, existe um costume de Direito Internacional segundo o qual, quando os factos
são praticados dentro de um barco que pertence a uma outra nação, mesmo que este esteja em águas
territoriais de outro pais, e esses factos envolvem apenas pessoas da nacionalidade do barco, quem
deve exercer a jurisdição desse caso é, em princípio, o pais da bandeira do barco.

Artigo 7º: Basta que exista um ponto de conexão com a lei nacional para que se aplique o artigo 4º,
não importa se o facto também foi praticado noutros territórios.

O mesmo vale para as Embaixadas, embora não esteja especificamente tratado esse problema no
Código Penal. Há um princípio de Direito Internacional, segundo o qual, quando os factos
praticados nas embaixadas não atinjam interesses do Estado anfitrião, em princípio, a competência
para conhecer dos factos é apenas do Estado titular dessa embaixada.

Naturalmente, às vezes é preciso que o Estado anfitrião intervenha policialmente em crimes


praticados dentro do estabelecimento de uma embaixada. E, portanto, o Estado anfitrião nessas
situações tem toda a legitimidade para atuar e aplicar a sua lei penal.

Notas:

• O regime da territorialidade abrange também os barcos com bandeira portuguesa e as aeronaves


com registo em Portugal. 


• Pode ainda acontecer que numa Convenção internacional os Estados estabeleçam uma solução
diferente relativamente à competência.

7.3. Artigo 5º/1/a): a regra da defesa dos interesses nacionais (aplicação extraterritorial
incondicionada)

A terceira expressão da aplicabilidade incondicionada é a regra da defesa dos interesses nacionais e


que está prevista no artigo 5º/1/a).

Mudamos de disposição legal, já não estamos no âmbito do artigo 4º, porque já não se verifica
nenhuma conexão de facto com o território português. E, portanto, se não há conexão com o

Marisa Branco 95
Direito Penal I

território português, só pode ser um facto praticado fora do território nacional — artigo 5º do
CP.

Artigo 5º/1: "Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é
ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional”.

Interpretando o artigo, “salvo tratado ou convenção internacional em contrário” quer dizer que os
Estados podem acordar entre si casos de não aplicação da sua lei penal em favor ou de outro Estado,
ou de uma organização internacional.

Esta ressalva do número 1 nem seria necessária, por força do artigo 8º da CRP, o Direito
Internacional Comum e o Direito Internacional Particular prevalecem sobre a lei nacional.
Portanto, esta solução já decorria da Constituição e esta norma do CP vem tornar mais explícito que
a lei portuguesa só é aplicável a estes casos descritos no artigo 5º se não houver um Tratado ou uma
Convenção que afaste essa aplicabilidade.

Este pode ser o caso, por exemplo, da aplicação da lei portuguesa a casos que são da competência
de um Tribunal Penal Internacional.

Aqui, o que define a aplicabilidade da lei nacional é a própria natureza dos crimes, quando
constituirem os crimes previstos nos artigos 221º, 262º a 271º, 308º a 321º e 325º a 345º do Código
Penal.

O fundamento desta regra é que há certos crimes que são tão perigosos para os interesses mais
importantes de cada Estado que o Direito Internacional permite que cada Estado estenda a sua
jurisdição de uma forma incondicionada, independentemente do lugar em que esses factos forem
praticados — Fundamento, ex.: artigo 325º — alteração violenta do Estado de Direito.

Em geral, os Estados têm que respeitar o dever de não ingerência, os Estados não têm podem
estender ilimitadamente o seu poder punitivo aos factos praticados em qualquer lugar do mundo.
Neste caso concreto, porque se trata de interesses nacionais de grande importância, o direito
internacional permite que os Estados estendam a sua competência desta maneira.

Algo que não está na lei penal, mas está na lei contra o terrorismo, são precisamente os crimes de
terrorismo praticados contra o Estado português ou contra as populações residentes em Portugal.
Também aqui se trata de uma aplicação do princípio da defesa dos interesses nacionais - o Estado
português pode conhecer de qualquer crime terrorista praticado contra o Estado português, seja qual
for o lugar onde foi praticado e seja qual for a nacionalidade do agente.

O Dr. não tem a certeza se todos os crimes previstos nesta lei correspondem à ideia de interesses de
eminente relevância. Mas, de facto, alguns compreende-se que sejam, como é, desde logo, o caso da
alteração violenta do Estado de direito.

Esta solução não só é conforme com o Direito Internacional, como tem ainda uma outra explicação:
nem sempre as leis penais de um Estado protegem os outros Estados contra este género de
crimes.

Normalmente, as leis penais nacionais protegem o seu Estado contra este género de crimes. Mas
nem sempre dão a mesma proteção aos outros Estados. Portanto, se o Estado vitima não puder
aplicar a sua lei, o que acontecerá é que esses crimes passarão impunes, porque a lei do lugar onde
foram aplicados nem sempre os punirá.

Marisa Branco 96
Direito Penal I

Para além disto, há ainda aqueles Estados que não só não têm uma lei que proteja os outros Estados,
mas até são coniventes ou incentivam a prática desses factos contra outros Estados.

8. A regras de aplicabilidade condicionada

Vamos estudar agora algumas regras que elegem certas conexões com o Direito Português, mas que
não se aplicam imediatamente, exigem outros pressupostos - regras de aplicabilidade
condicionada.

8.1. Art. 5º/1/e): a regra da nacionalidade

Esta regra está prevista no artigo 5º/1/e) do Código Penal e prevê a aplicabilidade da lei portuguesa
a factos praticados fora do território nacional, por portugueses ou por estrangeiros contra
portugueses.

A regra da nacionalidade tem como âmbito a aplicação aos agentes que tenham nacionalidade
portuguesa no momento da prática do facto (nacionalidade ativa). Ou então, aplica-se também
a factos praticados contra vítimas que tenham nacionalidade portuguesa no momento da sua
prática.

Portanto, estas conexões têm que se verificar, até por força do princípio da legalidade, no momento
da prática do facto.

Estas duas dimensões - agentes portugueses e vítimas portuguesas - dão aso a duas novas dimensões
diferentes da nacionalidade: nacionalidade ativa (agente português) e nacionalidade passiva
(vítima portuguesa).

A exigência de que a nacionalidade se verifique no momento da prática do ato, significa que:

- Por um lado, o Estado português pode exercer o seu poder punitivo sobre pessoas que tinham
nacionalidade portuguesa no momento da prática do facto e depois a perderam (p.e. a
renunciaram).

- Por outro lado, o Estado português não pode exercer o seu poder punitivo sobre pessoas que
não tinham a nacionalidade portuguesa no momento da prática do facto e vieram a adquiri-la
posteriormente.

Nota: a pessoa ter dupla nacionalidade é irrelevante, basta que tenha nacionalidade portuguesa.

Há vários fundamentos para a regra da nacionalidade ativa:

-  Por um lado, existia a ideia de que cada cidadão, quando vai para o estrangeiro, leva consigo a
sua ordem jurídica e os seus valores. Há a ideia de que todos somos representantes diplomáticos
de Portugal no estrangeiro e devemos comportar-nos de acordo com a nossa lei e respeitar os
nossos valores. 


Essa doutrina, que foi bastante aproveitada no tempo da ditadura, hoje está manifestamente em
desuso, até por força do direito internacional. 


Portanto, quando uma pessoa reside ou viaja para outro país, em princípio, tem de respeitar a lei

Marisa Branco 97
Direito Penal I

do país para onde vai e não as suas próprias leis. 


- Por outro lado, também aparecia a explicação de que temos que punir os factos praticados por
cidadãos nacionais no estrangeiro, porque temos a proibição de extradição de nacionais. Durante
muito tempo, Portugal não extraditava nacionais. No entanto, hoje, já o faz, mas apenas situações
muito limitadas. 


Ou seja, isto seria uma espécie de compensação: se um português cometer um crime nos
estrangeiro, não podemos extraditá-lo para ele ser julgado no estrangeiro, então, temos de o
julgar em Portugal, por uma questão de respeito pelo outro Estado. 


Esta explicação, que é ainda um pouco seguida pelo Dr. Figueiredo Dias, também não acontece
muito, porque, se esse fosse o fundamento, não era preciso o Estado português ter sempre
competência para qualquer facto praticado por um nacional no estrangeiro. Bastava que tivesse
competência apenas quando houvesse um efetivo pedido de extradição por parte do Estado
Estrangeiro. 


A lei não exige que haja um pedido de extradição por parte do Estado estrangeiro, simplesmente
prevê que o Estado português, em abstrato, possa aplicar a sua lei a cidadãos portugueses que
cometam crimes no estrangeiro. 


Mas, então, qual pode ser o fundamento desta regra da nacionalidade ativa?

A ideia que o Dr. Caeiro mais favorece será: da mesma forma que o Estado português é responsável
pela segurança da comunidade que vive em Portugal, este também deverá ter um dever semelhante
de manter a comunidade portuguesa no exterior. Lembrando sempre que essa comunidade
portuguesa do exterior, organizada ou não, mantém laços com a comunidade residente.

Tudo isso, até pelas nossas condições culturais e políticas, leva a considerar que o Estado português
tem sim a responsabilidade de manter a segurança e, portanto, de exercer o direito de punir e manter
a confiança nas normas, também no seio de uma comunidade que não reside no seu território, mas
que existe no estrangeiro enquanto tal.

Para o Dr. isto será suficiente para fundamentar essa responsabilidade e a aplicabilidade da lei
portuguesa a factos praticados no estrangeiro por cidadãos portugueses.

Quanto à nacionalidade passiva:

A competência da nacionalidade passiva para conhecer de factos praticados por estrangeiros no


estrangeiro contra cidadãos portugueses.

Esta regra já é mais controversa e debatida. A generalidade dos países reconhecem a regra da
nacionalidade ativa como fundamento da competência. Mas a da nacionalidade passiva já não
reconhece esse consenso, há até Estados que são abertamente contra essa regra (p.e. EUA).

O fundamento desta regra é muito evidente: a proteção de cidadãos portugueses nos estrangeiro
relativamente a factos que sejam praticados contra si.

O problema é que isto levanta uma certa desconfiança em relação ao Estado onde o facto possa
ser praticado, porque parte do princípio que o Estado português considera que a situação não será
suficientemente tratada pelo Estado em questão. Para além disso, pode acontecer que o país em
causa não puna esses factos e, portanto, o Estado português poderia aplicar a sua lei.
Marisa Branco 98
Direito Penal I

Convém, desde já, mencionar que estas duas circunstâncias são evitadas pela lei portuguesa, pelas
seguintes razões:

• Porque todo o exercício da competência penal portuguesa relativamente a factos praticados no


estrangeiro sobre a regra da nacionalidade está sujeita à dupla incriminação- só se o facto for
punível em Portugal e no estrangeiro é que a lei portuguesa pode ser aplicada. 


• Porque uma das condições para que haja competência da lei portuguesa é, precisamente, a
impossibilidade de extraditar essa pessoa. Isto significa que, podendo, Portugal prefere
extraditar o agente para o estrangeiro (para o Estado que o peça). E, só se não poder fazê-lo é que
aplicará a sua lei.

Em suma, as objeções que se levantam contra esta regra não parecem ao Dr. assim tão decisivas,
nem tão relevantes. E trata-se precisamente de proteger os cidadãos contra factos praticados no
estrangeiro.

Condições cumulativas comuns às duas vertentes:

Esta regra da nacionalidade que está no artigo 5º/1/e) tem várias condições que são cumulativas e
são comuns nas duas dimensões (nacionalidade ativa e nacionalidade passiva):

A) “Forem também puníveis pela legislação do lugar em que tiverem sido praticados, salvo quando
nesse lugar não se exercer poder punitivo”: 


A isto nós chamamos de condição da dupla incriminação. Subordinamos a aplicação da lei
nacional a esta condição por duas razões: (1) desde logo, pelo respeito pelo Estado onde
foram praticados os factos - princípio da não ingerência; (2) proteção das expectativas
individuais. 


Esta exigência da dupla incriminação faz parte dos próprios requisitos da aplicabilidade da
norma, tem que ver com o facto. Os factos têm de ser típicos e ilícitos no lugar onde forem
praticados.


P.e., punha-se a questão de saber se uma mulher irlandesa que ia praticar a interrupção
voluntária da gravidez na Inglaterra, poderia ser punida na Irlanda. A lei irlandesa era muito
restritiva e não previa as mesma condições que a inglesa neste tema. 


Hoje, isto é particularmente importante, porque dentro do espaço da União Europeia vigora,
para além dos princípios de direito internacional, o princípio da liberdade de prestação e
receção de serviços. Isto significa que quem se desloca a um país para obter um serviço, em
princípio, está protegido pela liberdade comunitária de circulação dos serviços. 


Claro que os Estados podem limitar essa liberdades em casos muito específicos, e aí o Tribunal
de Justiça também é muito restritivo, mas dentro da UE existe um ingrediente suplementar que
leva a considerar que estes factos, quando são praticados na receção de um serviço por um
profissional, contam ainda com as liberdades protegidas pelo Tratado da União Europeia. 


A dupla incriminação continua a ser, e será cada vez mais, uma limitação importante do poder
punitivo do Estado. 


Exceção: Factos praticados num lugar onde não se exerçam poderes punitivos. No entanto, já
Marisa Branco 99
Direito Penal I

não há muitos sítios onde não se exerçam estes poderes. 




Se não houver poder punitivo num Estado em que, por força da Guerra ou calamidade, as suas
instituições colapsaram: isto não será suficiente, porque mesmo nestes casos, não se deve tirar
daí que esse Estado deixou de existir, aqui, o Estado não estende indevidamente o seu poder
punitivo, enquanto houver território sujeito à soberania de outro Estado, deve estar preenchido o
requisito da dupla incriminação.


B) “Os agentes forem encontrados em Portugal”:




Há várias interpretações possíveis deste ponto. Na interpretação do Dr., quando se diz “o agente
encontrado em Portugal”, significa que o aparelho judicativo só pode desenvolver a sua
atividade se encontrar o agente aqui. Se ele for literalmente encontrado em território
português. 


A consequência disto é que não se pode, por exemplo, pedir a extradição de uma pessoa que
está no estrangeiro, ao abrigo destas normas. Dado que essa pessoa não se encontra em
território português e, para que possamos pedir a sua extradição, já temos que estar a atuar
numa qualquer outra pretensão punitiva, o pedido de extradição não seria legítimo.


A doutrina aqui divide-se e há autores que consideram que o agente ser encontrado em Portugal
também pode ser ser encontrado após um pedido de extradição. E, portanto, ser encontrado já
nas mãos da polícia, de alguma forma. Mas o Dr. crê que não foi este o sentido que legislador
quis dar a estas normas. 


Esta questão prende-se com factos praticados no estrangeiro e, como é constante do artigo 5º, o
Estado português prefere sempre que seja o Estado estrangeiro a tratar do problema
(salvo em casos muito restritos).


C) “Constituírem crime que admita extradição e esta não possa ser concedida, ou seja decidida a
não entrega do agente em execução de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento
de cooperação internacional que vincule o Estado Português”.


Esta ideia de subsidiariedade da lei portuguesa à lei estrangeira, nestes casos, é tão vincada que
a lei subordina a jurisdição dos tribunais portugueses a uma outra condição: a impossibilidade
de extraditar o agente. 


Crimes que admitem extradição são todos menos os crimes que não admitem extradição (art. 7º/
1 Lei da cooperação judiciária internacional em matéria penal): crimes de natureza política,
crimes militares que não estejam simultaneamente previstos em legislação comum.


A “impossibilidade de extraditar” pode ter vários significados: 


1. Desde logo, há impossibilidade de extraditar quando nenhum país faz um pedido de
extradição. A extradição é sempre um processo a pedido. Aliás, é esta característica de
distingue a extradição de um outro instituto muito parecido: a expulsão. 


2. Outra situação possível é quando há um pedido de extradição, mas a extradição não pode
ser concedida. A extradição é um procedimento internacional que tem uma fase administrativa
e uma fase judicial, mas há obstáculos a este procedimento, nomeadamente, as causas de recusa
de extradição, por exemplo: 


Marisa Branco 100


Direito Penal I

• Portugal não extradita, em princípio, cidadãos nacionais. Na generalidade dos casos


em que se aplica a nacionalidade ativa, mesmo que haja um pedido de extradição, este não
pode ser cumprido. Esta questão é regida pelo artigo 33º/3 da CRP. 


Só se admite a extradição de cidadãos portugueses em relação aos crimes de terrorismo e
aos crimes que se possam englobar dentro do conceito (vago) de criminalidade internacional
organizada. E, dentro desses casos, só pode extraditar-se cidadãos portugueses por esses
crimes quando existam condições de reciprocidade estabelecidas em convenção
internacional. Isto é, quando se trate de um Estado que também aceite extraditar os seus
cidadãos em situações semelhantes e que isso esteja estabelecido numa convenção
internacional.

• Portugal não extradita cidadãos de casos em que é aplicável a pena de morte - artigo
33º/6 da CRP. Em relação a certas penas, ou tratando-se de crimes políticos, também não
pode haver extradição.

Em todos estes casos, mesmo havendo um pedido de extradição, se se verificar uma destas causas
de recusa, não é possível extraditar. E, portanto, a lei portuguesa é aplicável e os tribunais
portugueses são competentes.

Para além da extradição, hoje, o artigo diz “ou seja decidida a não entrega do agente em execução
de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de cooperação internacional que vincule
o Estado Português”:

Esta é uma forma de equiparar o Mandado de detenção europeu a estes casos. O mandado de
detenção europeu é um instrumento de cooperação que substitui a extradição dentro dos países da
UE e é imensuravelmente mais rápido. Embora se trate ainda de um instrumento de cooperação e,
por isso, envolva as autoridades de cada Estado, é um processo com muito menos requisitos e muito
menos demora.

Esta equiparação é uma solução expectável e normal. A lei não o previa e passou a prever. Na
opinião do Dr, o que não é normal é que se tenha redigido mal a parte onde se lê “seja decidida a
não entrega do agente em execução de mandado de detenção europeu”, porque resulta daqui que só
naqueles casos em que houve um mandado de detenção europeu e foi decidida a sua não entrega, é
que o tribunal português tem jurisdição nesses factos.

É necessário fazer uma interpretação corretiva desta norma: não é preciso que seja decidida a não
entrega, para que o tribunal português tenha jurisdição no caso.

É importante compreendermos a posição de subsaridade (recuo) da lei portuguesa e dos tribunais


portugueses em relação aos outros países. O legislador prefere que, sempre que possível, isso seja
tratado pelo tribunal estrangeiro.

Deve-se interpretar todo este último item como englobando aqueles casos onde não há extradição
nem entrega porque não foi pedida, e isso dá jurisdição ao tribunal português.

Marisa Branco 101


Direito Penal I

8.2. A “Nacionalidade dupla”

Nota: Não confundir com a dupla nacionalidade.

Ainda dentro da questão da nacionalidade, temos o caso de nacionalidade dupla que está previsto no
artigo 5º/1/b). Tanto o agente como a vítima são nacionais portugueses e, mais do que isso, o
agente reside habitualmente em Portugal no momento da sua prática.

Nestes casos, a única condição que limita a aplicação da lei portuguesa é ser encontrado em
Portugal. Aqui, a lei não exige que o facto seja crime no país onde foi praticado - Dispensa-se a
dupla incriminação.

O pensamento que está aqui em causa é o seguinte: tratando-se de um agente e uma vítima
portuguesa, é quase como se o facto tivesse acontecido em Portugal e, portanto, podemos
dispensar o facto da dupla incriminação. Não nos importa se o Estado onde foi praticado o facto
pune ou não o crime em causa, porque os interesses em presença são todos interesses nacionais.

Esta regra também procurava evitar aquilo que se chama de fraude à lei. Isto é, as pessoas que se
deslocam de um país para o outro para praticarem um facto que é proibido no seu pais, mas que é
permitido no outro país.

Por exemplo, como acontece com cidadãos dinamarqueses ou alemães que se deslocam à Holanda
para consumir estupefacientes, porque lá não é um crime perseguido pelas autoridades se acontecer
dentro das Coffee Shops.

Outro exemplo, bastante atual, é o de alguém que está terminalmente doente e, como em Portugal o
auxílio ao suicídio não é permitido, se desloca a um país onde o caso é permitido. Coloca-se a
questão de se é possível ou não responsabilizar o médico (português).

O Dr. Caeiro não compreende muito bem o instituto da fraude à lei no Direito Penal. Uma coisa é
no Direito Civil, onde se procura defraudar os interesses da outra parte ou de terceiros, através da
celebração de um contrato num outro país para escolher certas regras mais vantajosas. Outra coisa é
alguém viajar de um pais para o outro procurando exercer as liberdades que o outro país dá.

Portanto, o próprio conceito de fraude à lei no Direito Penal parece ao Professor um conceito de
muito difícil aplicação.

Além do mais, esta solução da lei portuguesa, ao dispensar a dupla incriminação, é


possivelmente ilegítima perante o Direito Internacional, pode constituir uma ingerência
ilegítima.

No caso do exemplo do auxilio médico ao suicídio, o Estado português estaria a punir um médico
português por um facto que é livre, permitido e justificado no Estado onde foi praticado. E,
portanto, o Estado português estaria a sobrepor as suas valorações a factos praticados nesses Estado.

Ora, do ponto de vista do Dr, o Estado estrangeiro tem a prerrogativa, não só de garantir certas
liberdades aos cidadãos, no sentido de não os perseguir por factos que não incrimina, como também
de garantir a liberdade desses cidadãos conta interferências externas.

Em suma, fora os casos excecionais, os Estados podem garantir que o agente não é punido pela
prática de um facto que não incrimina, como também protegem de interferências por parte de outros
Estados.
Marisa Branco 102
Direito Penal I

O Dr. tem muitas dúvidas que esta regra, que já existe há muito tempo, seja conforme o Direito
Internacional.

8.3. A sede das pessoas jurídicas como réplica da nacionalidade; a necessidade de dupla
incriminação

Artigo 5º/1/g): “Por pessoa colectiva ou contra pessoa colectiva que tenha sede em território
português”.

A sede das pessoas coletivas funciona como uma espécie de nacionalidade. E, portanto, tratando-
se de uma pessoa com sede em Portugal, isso é relevante tanto do ponto de vista ativo, como do
ponto de vista passivo.

No caso das pessoas jurídicas a lei parece estabelecer uma regra de aplicabilidade incondicionada.
Mas esta norma também tem que ser interpretada corretivamente, porque aplicam-se aqui,
necessariamente, as regras que se aplicam à nacionalidade.

Claro que a condição de que a pessoa tem que ser encontrada em Portugal e as regras da extradição
não são aplicáveis a pessoas coletivas. Mas, tem que se subordinar esta alínea g) à cláusula da
dupla incriminação, que está na alínea e) do número 1 do artigo 5º.

8.4. A regra da universalidade (aplicação ou jurisdição universal)

Ex.: escravidão (art. 161º CP)

Está prevista no artigo 5º/1/c).

Os crimes que compõem a jurisdição universal são e deveriam ser apenas os chamados crimes
contra o Direito Internacional. Ou seja, crimes que são objeto do Direito Internacional Penal -
um número reduzido de infrações que põem em causa toda comunidade internacional quando
ocorrem (p.e. genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade, agressão, tortura,
escravidão, apartheid).

São crimes que constituem violações de normas costumeiras de Direito Internacional. E,


portanto, de acordo com o DI, todos os Estados têm o dever de punir os agentes destes crimes
sempre que os encontrarem, independentemente de onde estes foram praticados e da nacionalidade
do agente.

Cada Estado, quando pune estes crimes, está a atuar enquanto representante da comunidade
internacional. Assim, há uma co-responsabilidade por parte dos Estados na proteção destes
bens jurídicos da comunidade internacional.

Esta regra tem várias características importantes:

1. Não está sujeito à dupla incriminação. Tratam-se de crimes contra o Direito Internacional, ou
seja, é completamente indiferente se o lugar onde os factos tenham sido praticados os puna ou
não. 


2. Esta regra foi parcialmente esvaziada de conteúdo pela Lei 31/2004 (lei relativa às
violações do Direito Internacional Humanitário). Os crimes contra o Direito Internacional estão,

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Direito Penal I

assim, condensados num único diploma. O artigo 5º desta lei prevê, precisamente, a regra da
aplicação universal.

Ainda quando se trata da regra da universalidade, o legislador prefere que o agente seja julgado
num outro Estado (“desde que o agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado
ou entregue em resultado de execução de mandado de detenção europeu...”).

De novo, a lei portuguesa assume uma posição de subsidiariedade em relação, por exemplo, ao
Estado onde os factos foram praticados. Sempre que possível, o Estado português limita-se a
extraditar o agente.

Aqui, a redação já é a correta, comparando com a que abordamos anteriormente. E, portanto, esta
condição verifica-se mesmo que não haja um pedido de extradição ou um pedido de entrega em
mandado de detenção europeu. Basta que não existam para que Portugal tenha competência
para julgar estes factos.

A dilatação ilegítima desta regra: ex.: os danos contra a natureza, a poluição (art. 278º-280º),
tráfico de influência e corrupção (336º, 372º-374º):

O que tem acontecido é que a lei tem estendido esta regra da universalidade a certos crimes que já
não têm muito que ver com o propósito original da jurisdição universal. Esses crimes são, muitas
vezes, internacionais pelo seu modo de execução, mas nem por isso se tornam crimes contra o
Direito Internacional.


Por exemplo, os crimes contra o ambiente estão dentro desta regra da universalidade, mas não são
crimes contra os bens jurídicos mais importantes da comunidade internacional. Ou seja, não são
crimes contra o Direito Internacional costumeiro.

Na opinião do Dr., como não se trata de bens jurídicos com a mesma dignidade e importância, nem
de regras costumeiras de DI, a sua proteção não deve ser feita à custa da regra da universalidade.

E, portanto, todos os países têm estendido estas normas a factos que já não correspondem ao projeto
original da regra da universalidade. Mas isso pode ter efeitos práticos de alguma gravidade,
porque nestes casos não se sujeita a competência da lei à dupla incriminação. Então, fazendo uma
interpretação literal do artigo, Portugal pode punir estrangeiros que praticam estes factos na
Amazonia, por exemplo. E isto não faz qualquer sentido.

Portanto, a dilatação ilegítima da regra da universalidade pode levar a problemas e litígios em


relação à conformidade com o Direito Internacional.

8.5 Art. 5º/1/d): a jurisdição extraterritorial sobre crimes contra menores, em alegado
cumprimento do art. 17º da Diretiva 2011/93/UE de 13-12

O cocktail de regras de aplicabilidade:

A alínea d) do artigo 5º/1 prevê que o Estado português tenha competência sobre crimes sexuais e
crimes de ofensa contra a integridade física de menores graves.

Trata-se de uma alínea que visa, essencialmente, proteger menores e tem alegado cumprimento do
artigo 17º da Diretiva da UE sobre esta matéria. E, aqui, misturam-se várias regras de
aplicabilidade.

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Direito Penal I

Desde logo, procura-se a regra da universalidade uma vez que o agente seja encontrado em
Portugal e não possa ser extraditado (item i)). Portanto, desde que se trate destes crimes que aqui
estão e o agente não possa ser extraditado, Portugal tem competência para julgar estes factos.

Estas condições que estão nos itens do artigo não são cumulativas, são alternativas. Há, ainda, a
nacionalidade ou a residência ativa ou passiva, que estão no item ii) e no item iii).

De novo, tratam-se de crimes graves, muitos deles sexuais, mas não existem aqui bens jurídicos da
comunidade internacional. Assim, não é sequer verdade que a Diretiva da UE, que foi pretexto para
esta norma, imponha estas regras de jurisdição.

Muito pelo contrário, esta diretiva diz que se os Estados querem estabelecer outras regras de
jurisdição, informam a Comissão Europeia. E não prevê nada deste género de regras de
competência.

Por isso mesmo, tal como acontece naqueles crimes contra o ambiente e etc, é muito duvidosa esta
pretensão aplicada à lei portuguesa a estes crimes, sejam eles praticados onde forem e seja qual for
a nacionalidade da vitima e a do agente, porque aqui também de dispensa a regra da dupla
incriminação.

O que isto implica é uma leitura desta norma como se fosse uma norma de eficácia relativa ou
eficácia limitada. Isto é, trata-se aqui de regras de competência universal extraterritorial que valem
em relação ao Estados com quem Portugal tenha uma convenção neste sentido.

Vale dentro de Estados da União Europeia que adotem a mesma solução, ou vale em relação a
Estados fora da UE com quem Portugal tenha convenções ou tratados, pelos quais se obriga a
perseguir estes crimes nestas condições. Mas este será o limite máximo de aplicabilidade desta
norma.

8.6. A Administração supletiva da Justiça penal; fundamento e diferente natureza

A última regra é a a administração supletiva da justiça penal que está prevista na alínea f).

Esta regra requer um pouco mais de atenção, porque permite julgar factos praticados no
estrangeiro, por estrangeiros, que forem encontrados em Portugal, e cuja extradição haja sido
requerida e não possa ser concedida ou seja decidida a não entrega do agente.

Esta regra tem uma natureza bastante diferente de todas as que vimos aqui. Todas as regras
evidenciam um contacto dos factos com o ordenamento jurídico português que vigora no momento
da prática do facto sobre esse facto. Há sempre uma conexão do facto com o ordenamento jurídico
português.

Nesta alínea f), a lei portuguesa não tem qualquer conexão com o facto. O que acontece é que a
pessoa estrangeira, que praticou o facto no estrangeiro, está em Portugal. E o Estado estrangeiro
onde o facto foi praticado quer a sua extradição e faz um pedido para esse efeito (ou emite um
mandado de detenção europeu, no caso dos Estados-membros). Só que, pelas razões que vimos
anteriormente, Portugal não pode extraditar ou não pode entregar a pessoa procurada.

Então, o que vai acontecer é que, para compensar essa não extradição (a falta de cooperação para
com o outro Estado), o Estado português vai assumir o julgamento e punição desse caso. O
estado português substitui-se, assim, ao Estado estrangeiro no julgamento e punição do facto
praticado pelo agente.
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Portanto, a administração supletiva da justiça penal tem uma natureza radicalmente diferente das
outras que vimos até agora. Aqui, assenta-se exclusivamente no fundamento da cooperação
internacional.

As normas portuguesas que são aplicadas a estes factos só servem regras de valoração. Não
servem regras de comportamento, porque a pessoa não estava em Portugal quando praticou o facto
e, por isso, não podia seguir a lei portuguesa.

Nesta veste de cooperante (do Estado português) existe um limite de ordem pública. A lei não o diz
expressamente, mas claro que, nestes casos, Portugal só pode julgar a pessoa se o facto em causa
for punível (considerado crime) à luz da nossa lei penal.

Isto decorre, ainda, da formulação: “quando constituirem crimes que admitam extradição e essa não
possa ser concedida”. O facto, para constituir crime que admite extradição, tem de ser um facto
punível pela lei portuguesa.

Por exemplo, um país pede a extradição de alguém que se encontra em Portugal porque fez um
artigo no jornal muito crítico contra o governo. E isso é considerado crime, punível com pena de
morte, no país onde foi praticado.

Portugal vai ter que recusar esse pedido de extradição. Primeiro, porque um dos requisitos da
extradição é a dupla incriminação. Segundo, porque Portugal não extradita o agente se a pena
aplicável ao seu crime for pena de morte no pais estrangeiro.

Depois, Portugal não julgará esse agente, porque estes factos não são puníveis à luz da lei
portuguesa.

Um dos requisitos para que haja esta administração supletiva da justiça penal é o de que o facto seja
punível por parte da lei nacional.

8.7 A aplicabilidade extraterritorial da lei portuguesa fundada em obrigações convencionais

Artigo 5º/2 - são aplicações de caracter limitado, só dizem respeito aos Estados que ratifiquem essa
convenção

9. Condições gerais de aplicação da lei a factos extraterritoriais (artigo 6º)

Falta-nos ainda explorar o artigo 6º do Código Penal, que contém restrições à aplicação da lei
portuguesa.

9.1. O respeito pelo ne bis idem internacional (material) e o instituto do desconto (artigo 82º);
restrição aos factos praticados no estrangeiro?; o ne bis idem processual no âmbito da UE

A primeira restrição à aplicação da lei portuguesa a factos extraterritoriais é a de que esta só tem
lugar quando o agente não tiver sido julgado na prática do facto, ou foi julgado mas não
cumpriu total ou parcialmente a pena (p.e. aproveitou uma licença precária e fugiu para
Portugal).

Neste artigo 6º/1 o que temos é o respeito pelo principio ne bis in idem internacional. Este principio
diz-nos que ninguém pode ser punido ou ninguém pode ser julgado duas vezes pelo mesmo facto.

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Direito Penal I

O artigo 6º/1 visa garantir que a lei portuguesa não se aplica a alguém que cometeu um crime no
estrangeiro, foi julgado e cumpriu a sua pena, ou foi julgado e foi absolvido.

Caso o agente tenha sido julgado (no estrangeiro) e não tenha cumprido a sua pena, o artigo 6º/1
permite que ele seja julgado novamente por esse facto e lhe seja aplicada a lei portuguesa. Mas, de
acordo com o artigo 82º, o que vai acontecer é que o tribunal, depois de julgar a pessoa, vai
descontar a pena que o agente já cumpriu efetivamente no estrangeiro.

Portanto, o artigo 82º prevê o desconto da pena que o agente já cumpriu na pena que lhe venha a ser
aplicada pelo tribunal português.

Por um lado, temos aqui o principio ne bis in idem internacional, que diz respeito a decisões do
tribunal estrangeiro. E, por outro lado, temos o principio ne bis in idem material, que impede uma
dupla punição, não impede o duplo julgamento.

Há duas questões importantes a propósito do artigo 6º/1.

O artigo 6º/1 diz respeito somente aos fatos praticados no estrangeiro? Olhando à letra, parece que
sim. Mas e se o facto tiver sido praticado em Portugal?

Vamos imaginar que um americano matou um português em Portugal. Voltou para os EUA e foi
condenado num tribunal americano por esses factos.

Não se trata de um facto praticado fora do território nacional e, portanto, aqui o artigo 6o/ 1 não tem
aplicação. Logo, parece que não existem restrições à aplicação da lei portuguesa. E, de acordo com
a expressão literal do artigo 6o, parece que este cidadão, que foi condenado e punido por um
tribunal americano, pode ser de novo julgado e punido em Portugal.

A omissa em relação a este caso, atendendo a que o principio ne bis in idem é uma garantia com
estatuto Constitucional (artigo 27o/5).

Do ponto de vista do Dr., esta garantia constitucional abrange este cidadão e, portanto, tendo ele
sido julgado e tendo cumprido a sua pena, a lei portuguesa não é aplicável de novo ao mesmo facto.

O regime obrigatório no âmbito da UE desde o acordão TJUE GÖZÜTOK/BRÜGGE (2003)


(ne bis idem processual)

A segunda questão importante que surge a propósito do artigo 6o/1 prende-se com o âmbito da
União Europeia.

O acórdão supramencionado veio dizer o seguinte: quando alguém já foi sentenciado ou objeto de
uma decisão final sobre certos factos, não pode haver perseguição penal pelos mesmo factos num
outro Estado Membro.

O senhor Gözütok tinha sido apanhado na Holanda por tráfico de estupefacientes e tinha sido objeto
de uma decisão do ministério público. O direito penal holandês permite ao MP aplicar certas
medidas, com o consentimento da pessoa, e o processo não segue para julgamento.

A pessoa tem que obedecer a umas certas regras de comportamento durante algum tempo e, se
cumprir essas injunções, o processo não prossegue para julgamento.

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Este cidadão foi depois interceptado na Alemanha, porque o os tribunais alemães queriam julgá-lo
outra vez pelos mesmo factos.

Foi posta ao TJUE, pelos tribunais alemães, a questão de saber se a convenção de aplicação de
Schengen - que prevê o principio ne bis in idem - era ou não aplicável naquele caso, uma vez que
não havia propriamente uma sentença judicial, mas que haviam medidas análogas.

E o caso de Brügge era semelhante, só não de tráfico de estupefacientes, mas ofensas corporais.
E o TJUE disse que sim, estes casos caem dentro da convenção de aplicação de Schengen e,
portanto, isto fica coberto pelo ne bis in idem processual. Sempre que haja uma decisão definitiva
num Estado membro sobre um certo facto, os outros Estados ficam impedidos de lançar uma nova
investigação sobre esses mesmos factos.

Em suma, isto significa que, dentro da UE, a regulamentação que está no artigo 6o/1 não se
aplica. Mesmo que o agente tenha sido condenado (por um Estrado da UE, evidentemente) e se
tenha escapado, Portugal não pode exercer a sua competência penal para julgar a pessoa de novo.

O que pode acontecer é haver uma mandado de detenção europeu, ou o agente cumprir a pena cá
em Portugal, por exemplo.

Dentro da UE, havendo um julgamento final ou uma decisão análoga, não se pode fazer um novo
processo penal sobre os mesmos factos.

9.2. A aplicação da lei estrangeira (lex loci) concretamente mais favorável e as suas exceções

O número 2 do artigo 6º prevê uma outra situação que é a aplicação da lei estrangeira mais
favorável.

“2 - Embora seja aplicável a lei portuguesa, nos termos do número anterior, o facto é julgado
segundo a lei do país em que tiver sido praticado sempre que esta seja concretamente mais
favorável ao agente. A pena aplicável é convertida naquela que lhe corresponder no sistema
português, ou, não havendo correspondência directa, naquela que a lei portuguesa previr para o
facto”.

Esta norma tem duas partes diferentes. A primeira parte trata-se de um caso de aplicação de lei
estrangeira.

Falamos que é aplicável a lei portuguesa mas depois vamos aplicar a lei estrangeira? Exatamente.
Se a lei estrangeira for mais favorável, é mesmo isso que acontece.

Aqui notamos uma grande diferença entre o direito penal e o direito privado. No direito privado,
quando existe um processo com aspetos internacionais que é presente aos tribunais portugueses,
recorre-se ao Código Civil para perceber qual é a lei que este escolhe para regular o caso.

No direito penal isso não funciona assim. Quando um tribunal português é competente para julgar
um caso, em princípio, aplica-se a lei portuguesa - principio da coincidência.

MAS, excepcionalmente, pode acontecer que a lei do lugar onde o facto foi praticado seja mais
favorável ao agente. E, nesse caso, em vez de o tribunal português aplicar a lei portuguesa, pode
aplicar a lei estrangeira mais favorável.

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Direito Penal I

Como sabemos se a lei estrangeira é mais favorável ao agente? O tribunal tem de simular a
aplicação da lei portuguesa e a aplicação da lei estrangeira, ver quais são os resultados e, se a lei
estrangeira for mais favorável (p.e. prevê certas atenuantes ou a pena é menor), deve aplicar essa
lei.

Concluindo, trata-se de um procedimento especial que derroga aquele que é o princípio geral
normal da atuação dos tribunais portugueses nestes casos: a aplicação de lei portuguesa.
Esta possibilidade de aplicar a lei estrangeira mais favorável tem, todavia, duas exceções previstas
no artigo 6º/3.

“3 - O regime do número anterior não se aplica aos crimes previstos nas alíneas a) e b) do nº 1 do
artigo anterior”.

O que está na alínea a) do artigo 5º/1 são os crimes contra a defesa dos interesses nacionais.

Se dizemos que a lei portuguesa se aplica, porque pode acontecer que a lei estrangeira não puna
esses factos ou não é suficiente, é congruente que não se vá entregar a proteção dos interesses
nacionais àquilo que a lei estrangeira disser.

Na alínea b) do artigo 5º/1 estão os crimes “contra portugueses, por portugueses que viverem
habitualmente em Portugal ao tempo da sua prática e aqui forem encontrados”.

O artigo 6º/3 é congruente com aquilo que está nas alíneas a) e b) do artigo 5º/1. E essa é, portanto,
a razão da exceção ao artigo 6º/2.

9.3. Os casos de adaptação das penas

Há casos onde não existe uma coincidência perfeita entre as penas previstas pela lei estrangeira e as
penas previstas pela lei nacional. Isso é, as penas da lei estrangeira podem não ser exatamente iguais
as penas que temos em Portugal.

Em Itália, por exemplo, ainda existem três penas de prisão: perpétua, de reclusão e uma prisão
maior. Pode acontecer que a pena lei italiana mais favorável que o tribunal português vai aplicar ao
caso preveja, por exemplo, pena de reclusão de 8 anos.

Em Portugal, não temos pena de reclusão de 8 anos, temos pena de prisão de 8 anos. E, portanto, a
correspondência far-se-á com a pena de prisão.

É mais difícil naqueles casos em que pura e suplemente não há correspondência entre as penas. E,
nesses casos, é preciso aplicar o tipo de pena que a lei portuguesa prevê para esse facto - artigo 6º/2.

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Parte II. A doutrina geral do crime


Título I. A construção da infração: O crime como conceito
jurídico (facto punível)
Capítulo XII - Questões fundamentais

1. Direito penal do Agente/Direito penal do Facto

Vamos procurar compreender quais são os vários elementos do conceito de crime. Já vimos que o
crime pode ter várias aceções, significados ao nível do senso comum, etc., mas o que nós vamos
estudar é o crime enquanto conceito jurídico, e como tal o crime tem vários elementos.

A primeira dicotomia que podemos encontrar é a questão de um direito penal do agente e um


direito penal do facto. Em certos períodos da história, a atenção da ciência jurídico-penal e da
própria lei centrava-se no agente do facto, no sentido de ser a função do Direito Penal encontrar e
definir o agente dos crimes. Não é por acaso que se formos ver as Ordenações, elas não estavam
estruturadas em volta dos crimes (facto criminoso), mas sim estruturadas à volta dos agentes dos
crimes (pessoa do agente) - ladrões, burlões, etc.

Já a escola positivista defendia isto, que o que interessava era detetar os indivíduos que podem
cometer crimes, e não os crimes em si. O objeto do direito penal não eram os factos, mas os agentes
que praticam esses factos.

O que interessava era detetar os indivíduos que podiam cometer crimes, isto é, tentavam definir
quem eram os criminosos e os não criminosos. Hoje esta visão das coisas está superada, sendo
considerado um pensamento ilegítimo, pois atentava vários princípios, como o princípio da
igualdade. É verdade que não há facto sem agente, mas no direito penal não se estuda o agente, mas
sim os factos, já que é este que atinge bens jurídicos, que lesa bens jurídicos.

E, portanto, é este o ponto central, o facto. Aquilo que nós vamos estudar, e só isso é que é
compatível com o Estado democrático, é o facto criminoso, não o agente que o pratica.

2. O método categorial-classificatório da construção da infração e o seu sentido:


o facto típico, ilícito, culposo e punível

A composição do facto punível/criminoso parte de uma construção da escola clássica que ficou até
aos dias de hoje que é o chamado método categorial-classificatório da construção da infração do
crime e o seu sentido.

Esta construção da Escola Clássica foi muito importante porque foi a primeira vez que se procurou
compreender e classificar aquilo que há de comum em todos os crimes. Isto quer dizer que, em
cada crime de condução com efeito de álcool, de terrorismo, hão de encontrar-se todos estes
elementos. Este é um esforço de formalização e de abstração, encontrar em cada facto criminoso
aquilo que é comum.

Esta pirâmide tem um sentido específico, cada estrato é mais amplo que o estrato posterior. Se
de facto o crime é um facto punível, culposo, típico e ilícito, tem que acumular todas estas
Marisa Branco 110
Direito Penal I

características, o que se compreende, pois cada uma destas características é progressivamente mais
restrita que a anterior.

1) A ação


Na base de qualquer construção tem de estar uma conduta humana, sem conduta humana não pode
haver crime.
Este é o ponto de ligação entre o direito e a realidade.

2) Tipicidade

A ação tem de ser típica

3) Ilicitude

Tal como nem todas as ações são típicas, nem todas as ações típicas (ações humanas que preenchem
os tipos de crime) são ações ilícitas.

Por exemplo, se alguém matar uma pessoa em legitima defesa é uma ação típica, preenche um tipo
de crime, mas não é uma ação ilícita.

4) Culposa

Nem todas as ações típicas e ilícitas são culposas.

Por exemplo, se alguém matar outra pessoa ilicitamente, para salvar a sua própria vida. Portanto
todos estes exemplos supramencionados caiem para fora da pirâmide.

5) Punibilidade

Pode acontecer que, apesar de haver uma ação típica, ilícita e culposa, a ação não seja punível,
porque falta uma condição objetiva de punibilidade. Pode tratar-se de uma tentativa, e o agente
desistiu da tentativa, e isso é uma causa de exclusão da punibilidade.
Marisa Branco 111
Direito Penal I

Em suma, todas estas camadas da pirâmide funcionam como filtros, pois atiram para fora do
conceito de crime ações que não são crime. Daqui já podemos concluir que o ponto de partida é
estudar cada um destes elementos da pirâmide. São camadas de verificação cumulativa e necessária.

O crime como um facto típico, ilícito, culposo e punível.

Assim:

Usa-se esta construção em forma de pirâmide para representar a ideia de que cada estrato é
sucessivamente mais estreito, mais diminuto que o anterior. Com a pirâmide conseguimos entender
que, de todas as ações humanas possíveis (as que estão na base) só uma pequena parte dessas é que
constituem crime.


Isto significa que:


- há várias ações humanas que não são típicas; 



- há várias ações típicas que não são ilícitas; 

- uma conduta pode ser típica e ilícita, mas não ser culposa; 

- uma ação pode ser típica, ilícita e culposa, mas não ser punível.

Esta representação significa que vamos filtrando as condutas que são relevantes para o conceito de
crime.

3. A evolução da doutrina da construção da infração, superação e não


substituição

Desde a escola naturalista até hoje (fim do séc. XVIII), vamos procurar compreender como cada
uma destas escolas, que deram conteúdos a estas categorias, não alteram de forma muito
significante cada uma destas categorias.

3.1. Conceção clássica (positivismo naturalista — Escola clássica)

Esta escola clássica teve o seu império durante o séc. XIX e parte do séc. XX. O contexto cultural
que nela reside é marcado por um momento em que há um enorme desenvolvimento das ciências
positivas (Física, Biologia, Química, etc.), e estas ciências monopolizaram o estatuto da ciência.
Assim, tudo o que não é suscetível de demonstração de acordo com o método científico, não podia
ser visto como uma ciência.

Tudo isto deu azo a dois grandes movimentos:

• O positivismo propriamente dito (advogava uma outra coisa para o crime, que não o direito
penal – direito como uma metafísica, tratamento do delinquente como uma doença) e a segunda
consequência é que mesmo dentro do campo da escola clássica, houve uma certa subordinação
aos ditames das ciências positivas. Estes juristas procuraram demonstrar que o direito também
podia ser uma ciência; podemos decompor o crime em elementos, tal como na Química”. 


Marisa Branco 112


Direito Penal I

• É dentro deste horizonte de procura de afirmação do Direito como ciência que começamos a ver a
Escola Clássica a operar, começando a classificar cada uma das camadas de acordo com o
pensamento descrito.

O conceito de ação (1º estrato) é um movimento corpóreo, ou seja, algo dimensionável e visível,
apreensível pelos sentidos, que causa uma modificação do mundo exterior.

Por exemplo: No homicídio a ação do crime de homicídio é o agente disparar a pistola (movimento
corpóreo) que faz sair o projétil e que, por sua vez. causa a morte da vítima que constitui uma
modificação do mundo exterior. O Dr. Figueiredo Dias dá este exemplo nas lições.

Por exemplo: Nos crimes de injúria (insultar uma pessoa) também haveria uma ação, a vocalização
das palavras que emite ondas sonoras (movimento corpóreo) que alcança o aparelho auditivo da
vítima.

O conceito de tipicidade (2º estrato) consistia numa simples subsunção dos factos
(correspondência de factos) à descrição legal, o que era congruente com a metodologia do
positivismo naturalista.

Por exemplo: A disparou um tiro e matou B, a norma diz que quem matar tem uma pena de X, A
matou B, preencheu o tipo de crime e deve ser punido com pena de X. Esta é uma compreensão
muito automática e muito pobre, refere o Dr. Caeiro.

O conceito de ilicitude (3º estrato) este conceito é visto como uma categoria puramente objetiva
(não teria nenhum elemento subjetivo), seria constituída apenas por elementos objetivos. Por outro
lado, era uma conceção muito pobre, porque o comportamento seria ilícito sempre que não
houvesse causas de justificação que exclua a ilicitude do facto (como legitima defesa). Era muito
simples: subsunção à norma (tipo indiciador da ilicitude) que se vem a confirmar se não houver
causa de justificação (se não houver, é um facto ilícito).

O conceito de culpa (4º estrato) era visto como uma simples ligação psicológica entre o agente e o
seu facto. A culpa podia ser dolosa ou negligente. Na culpa dolosa o agente representa (traz o facto
à sua consciência intencional, quer que o facto vá acontecer) e quer o facto criminoso - é a
representação e a vontade (pilares da consciência da vontade intencional).

Quando se trata de negligência a ligação entre o agente e o facto aconteceria porque, nos crimes de
negligência, o agente teria uma deficiente tensão de vontade, que não lhe permitisse prever a
possibilidade de ocorrência do facto criminoso (confiou que não se produziria - negligência
consciente - ou não representação essa possibilidade – negligência inconsciente). A culpa para a
Escola Clássica é sempre algo de psicológico entre o agente e o facto.

Para esta escola não se previa a punibilidade como uma categoria autónoma.

3.2. Conceção neoclássica — Escola normativista

Há que ter em atenção que o pensamento de cada escola que vamos estudar não tenta derrubar os
pensamentos da escola anterior, mas sim superá-lo, no sentido de absorver o que está antes e
superar para trazer ainda mais conhecimentos. Esta escola apresenta a conceção do tipo.

Surge num ambiente cultural e filosófico completamente diferente.

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Direito Penal I

No princípio do séc. XX dá se uma grande reação ao movimento positivista, e, sobretudo no


quadrante jurídico, reclama-se uma autonomia científica e metodológica para as ciências sociais,
sobretudo para o direito. Para ter um estatuto de conhecimento, o Direito não tem que se reconduzir
às ciências positivas. Há outros paradigmas científicos, que também permitem desenvolver um certo
saber, e esses não reclamam necessariamente o método experimental, o fisicalismo, etc, das ciências
positivas.

Em Portugal, foi dos primeiros e mais importantes o artigo do Prof. Paulo Merêa, em 1910, o
Idealismo em Direito. Reação poderosíssima de um jovem jurista (era estudante) contra o
positivismo enquanto atitude metodológica.

Esta corrente pugna por uma recuperação do idealismo alemão, da filosofia dos valores
(hermenêutica), essencialmente, uma recuperação dos ensinamentos de Kant e Hegel. Esta
substituição de paradigma conduz também a conteúdos muito diferentes dos que vimos na escola
clássica.

Curiosamente, o conceito de ação continuava preso ao movimento corpóreo do agente. A exceção


aqui advém do Prof. Eduardo Correia, que viu o problema das ações que estão na base do crime não
poderem ser vistas como um movimento do corpo do agente. É muito mais que isso, falando da
ação já como uma negação de valores por parte do Homem. Permitia construir um conceito
crime inteiramente normativo e estabelecer que nem toda a negação de valores por parte do Homem
integra um tipo de crime.

Na categoria do tipo dá-se a primeira grande modificação relativamente à escola clássica. Diz-se o
tipo enquanto entidade da construção do crime, que visa exprimir uma unidade de sentido. Não é
propriamente uma questão só de subsunção, e esse sentido tem que ser socialmente danoso, porque
atenta contra um bem jurídico (influência da filosofia dos valores).

O tipo começa aqui uma vida nova. O legislador não incrimina como atos separados o ato de ter
uma arma no bolso (a menos que seja posse de arma proibida) e ato o premir o gatilho, isso são atos
fragmentados.

Por exemplo: Se estivermos perante um caso de homicídio, o legislador não incrimina as coisas
fragmentadas, incrimina como um comportamento que nós cidadãos compreendemos como
unidades de sentido. Podemos pensar nesta unidade como uma unidade de sentido social que causa
danos sociais (e não uma simples subsunção).

Isto traz também uma carga critica para o direito penal, que permite a crítica do direito penal a
partir da categoria do bem jurídico, é preciso que haja um bem jurídico para podermos falar de uma
unidade de sentido socialmente danoso.

Na ilicitude também aqui temos modificações. Aqui, não se basta como uma simples contrariedade
à ordem jurídica, não se basta como uma simples ausência de causas de justificação. É vista como
um juízo autónomo de desvalor, de reprovação sobre aquele falto (algo que o direito proíbe).

Pela primeira vez admite-se, casualmente, que a ilicitude tenha elementos subjetivos, não só como
um agregado de elementos objetivos, mas também com a possibilidade de conter elementos
subjetivo.

Exemplo: no crime de furto - artigo 203º CP – não basta que o agente subtraia uma coisa alheia
para cometer um facto ilícito, é ainda preciso de ter a intenção de apropriação (que é, portanto, um
elemento subjetivo).
Marisa Branco 114
Direito Penal I

A culpa também sofre uma importante modificação. Já não se trata só de uma ligação psicológica,
existe aqui um juízo de censura - censurar pessoalmente o agente por ter cometido aquele facto.
Dentro desse juízo de censura existem vários elementos, este depende da presença de:

- Agente imputável; 

- Agido com dolo ou negligência: são formas de culpa, mas a culpa dolosa era mais censurável
(ainda é hoje em dia); 


- Exigibilidade: exigível ao agente um outro comportamento. 



3.3. Conceção finalista — Escola da ação final


A esta conceção devemos associar um nome de um professor alemão: Hanz Welzel. É uma escola
fruto da sua mente critica. Welzel já começara a escrever antes da Segunda Guerra. Grande parte do
que acontece hoje no direito penal pode ser reconduzido à escola da ação final. 


Esta escola veio mostrar que a escola normativista era insuficiente, apesar de já dizer que a escola
normativista teria melhorias em relação ao positivismo, pois o normativismo era formal, podendo
assim enquadrar-se tudo nele (o que teve efeitos nefastos – nazismo). 


Contudo, não rompeu totalmente com esse paradigma (ficou a meio caminho), e era preciso ir mais
longe. Uma das virtualidades da Escola Final seria impedir a apropriação dos sistema jurídico-
penal por pessoas que tivessem determinados fins políticos (influência dos efeitos do passado
nazi). 


Defendia que tínhamos que assentar o direito penal em algo que seja único e definitivo, porque isso
não é suscetível de manipulação. 


Ao contrário das correntes normativistas que são permeáveis aquilo que se lhe quiser lá pôr, nós
temos que partir de uma visão ontológica do homem e do Direito, e nem o legislador nem o jurista
têm capacidade ou autorização para mudar as estruturas da atuação humana. 


Para encontrar essa natureza das coisas, encontrar a ação humana tal como ela aparece, diz que nós
temos que distinguir entre o que é o mundo da natureza (onde os fenómenos acontecem por leis de
causalidade) e o mundo do Homem (o mundo do homem não é regido pela causalidade, são as
noções de sentido e finalidade) - o homem dá sempre um sentido à sua ação, isso é característico
de toda a ação humana (atua sempre guiado por fins). Se é característico de toda a ação humana,
então é aí que o direito penal também irá encontrar a ação relevante para a construção do
conceito de crime, porque todo o crime é uma atuação humana e é essa ação que devemos utilizar
como base para a construção do conceito de crime. 


Nota: para Welzel o protótipo do crime perfeito era a tentativa. 


Welzel dizia que para respeitarmos a ação como ela aparece, tínhamos que perceber que a ação não
era definível pelo Direito, e, na realidade ela constitui uma supradeterminação final de um
processo causal - ação determinada superiormente por uma certa finalidade (Homem põe em causa
uma certa ação causal porque lhe atribui uma certa finalidade). 


Se de facto não podemos decompor o crime nos seus vários elementos, temos que analisar o
crime tal como ele se apresenta na realidade. Então, o tipo que descreve a ação típica também já
Marisa Branco 115
Direito Penal I

tem que oferecer esta ação final. 


Por isso mesmo, toda a ação já é, ou dolosa ou negligente, ou seja, toda a ação já é, si mesma,
dolosa ou negligente. Isto porque a ação é dirigida a um certo fim (principalmente para o dolo), e,
portanto, o dolo já está na ação, e se está na ação, está no tipo de crime, porque o tipo de crime
reflete a ação típica. O dolo e a negligência passam a ser elementos constitutivos do tipo: 


• Tipos dolosos;

• Tipos negligentes. 


Welzel sofreu críticas fortíssimas, principalmente relativamente à negligência. Assim, começou a


“inventar”, dizendo que na negligência haveria uma finalidade potencial (não é real) que é
suficiente para servir de base à construção do crime. Isto levava à crítica, que usava como

Exemplo: Se uma mãe deixar morrer o filho à fome porque está a coser meias, a ação de homicídio
seria a ação de coser meias, o que não faz qualquer sentido do ponto de vista da construção do
crime.

Na categoria da ilicitude, Welzel traz um ponto muito importante, salienta o Dr. Caeiro. Se nós
admitirmos que só uma ação pessoal (ação da pessoa humana) pode preencher um tipo de crime, e
se toda a ação pessoal que preenche um tipo de crime ou é dolosa ou é negligente, só a ação
pessoal pode ser contrária ao direito.

Não existe contrariedade ao direito para fora de uma ação pessoal, logo, todo o ilícito é um ilícito
pessoalmente determinado – doutrina do ilícito pessoal. Esta ideia é a herança mais importante
desta escola.

Também defendia que todo o direito é dirigido a pessoas; o direito não serve para regular factos
naturais. Toda a norma jurídica tem destinatários, sendo um crime sempre uma desobediência
pessoal à lei, a uma injunção que tem como destinatários às pessoas humanas – só a pessoa pode
não cumprir o seu dever.

Por último, Welzel dizia que o normativismo tinha razão quando dizia que a culpa tem que ser um
juízo de censura ao agente. Mas, dizia também que isto não tinha nada a ver com o Dolo ou com a
negligência, isto são entidades que pertencem à ação típica.

Portanto, estão a mais na culpa, a culpa reside num puro juízo de censura ao agente que tem como
elementos:

• Imputabilidade;

• Consciência da ilicitude ou consciência potencial da ilicitude: consciência de que o que está a
fazer é ilícito ou potencialmente ilícito.

• Exigível um outro comportamento.

Marisa Branco 116


Direito Penal I

4. Concepção teleológica-funcional do conceito jurídico de crime- a influência de


ClausRoxin.

A última doutrina sobre a construção do crime, que é seguida pelo Dr. Figueiredo Dias e o Dr.
Caeiro, muito influenciada pela síntese do professor ClausRoxin.

Esta construção não visa substituir do zero tudo o que está para trás-. Ela é o produto modificado/
melhorar-se. Vamos encontrar aqui vestígios de ideais que já veem para trás.

4.1. O papel fundamental da política criminal na construção da infração

Esta é a primeira construção do crime que atribui um papel fundamental à política criminal na
construção da infração. Não é que não houvesse já algumas construções que se preocupavam em
desenhar os elementos do crime com uma certa preocupação da sua funcionalidade. Mas aqui é o
ponto de partida que é diferente.

Esta construção do crime não é deduzida de pressupostos metodológicos, ela procura exatamente
coadunar-se com o papel do próprio Direito penal. Existe aqui uma unidade de sentido entre o papel
do direito penal e a construção do conceito de crime. Não faria sentido que nós disséssemos que a
função do direito penal era evitar o crime em relação aos bens jurídicos e depois não
transpuséssemos essa função para aquilo que vamos definir como crime.

Portanto, as consequências desta abordagem é que todos os elementos do crime devem ser
funcionais em relação à função do Direito penal. Todos devem ser teologicamente pensados.

4.2. Conceito de ação e a sua impossibilidade

O conceito de ação entra em crise aqui porque pede-se a este conceito várias funções. Tais como:

(1) Função de substanciação (não tem esta terminologia nas lições) – Este pede que nos ofereça
um substantivo, um ente que depois possamos qualificar juridicamente. A primeira função que
se pede à ação é que nos oferece uma coisa qualquer, um substantivo, do qual nós possamos
qualificar. É Aquilo que permite radicar o crime na realidade. 


(2) Função de classificação – A ideia é, tem que ser um conceito que permita abranger todas as
formas possíveis de aparecimento dos crimes. Tem que permitir ser suficientemente geral para
abarcar todas as formas de aparecimento de crimes. 


(3) Função de ligação – tem que ser algo que não é pré-determinado pelas categorias que vem a
seguir, mas que permite ligá-las a todas. Temos de encontrar algum comum, mas que não seja
determinado por nenhuma das categorias. 


(4) Função de delimitação - É uma função negativa, que procura excluir do conceito de crime
aqueles factos que nem sequer devem ser considerados ações.

Por exemplo: Se alguém entra em hipnose/ataque de sonambulismo e nesse estado parte um objeto
alheio, esta função de delimitação permitir-nos-ia dizer que aqui nem existia uma ação humana, os
atos praticados nesses estados não são ações. E, portanto, a função de delimitação permitia excluir
esses factos.

Marisa Branco 117


Direito Penal I

Só que a verdade é que estas exigências se contradizem umas às outras. Não parece possível
cumprir todas estas funções ao mesmo tempo.

4.3. Críticas às doutrinas abordadas anteriormente:

a) Doutrina da ação final

Esta é Critica pelo Dr. Figueiredo Dias. Dado que mesmo que fosse verdade que a ação humana
tem aquela estrutura ontológica, isso não é vinculante para o jurista e que só se possa entender a
ação dessa maneira para o Direito penal. Porque o sistema jurídico tem as suas próprias finalidades,
função e desempenho. E, portanto, tem alguma liberdade em relação ao mundo do ser e para lhe
imprimir as características e dimensões que entende que sejam necessárias para o seu
desenvolvimento.

Para além disso, o conceito de Ação final não é capaz de cumprir a função de classificação, até
pode cumprir a função de substanciação, cumpre a função de delimitação e de ligação. Mas não
permite englobar todos os crimes, e isso é claro tanto nos crimes de negligencia nem os crimes de
omissão.

b) Doutrina dos valores do Dr. Eduardo Correia — Negação de valores

Por um lado parece que esta conceção não cumpre a função de substanciação, porque é demasiado
fluída.

O que é que é uma negação de valores? Podemos dizer que toda a ação humana relevante para o
Direito Penal é uma negação de valores? Em muitos casos, desde logo, condutas típicas não são
negações de valores, não existem valores aí subjacentes que estejam a ser violados.

E por outro lado, é problemático dizer que quem atua em legitima defesa de terceiro, é uma
negação de valores. O salvamento de uma vida, refere o Dr. Caeiro, é uma afirmação de valores.

Hoje em dia, numa sociedade plural, não há necessariamente uma ordem de valores à qual nos
possamos referir.

Esta conceção também parece não cumprir a função de delimitação, dado parece ser um critério
demasiado amplo e permitiria excluir da ordem jurídico-penal todos aqueles casos em que não
exista um valor que possa ser associado à ação.

c) O conceito social e pessoa de ação

Aqui o que parece é que não cumprem a função de ligação, ou seja, não são suficientemente
autónomos em relação a critérios já propriamente jurídicos.

Por exemplo: quando se diz que a omissão já tem certa relevância social, a verdade é que ela só
terá essa relevância se for imposta. A medida da relevância social de uma omissão é nos dada pelo
direito.

4.4. Renuncia à categoria de ação em favor à realização típica (perspetiva normativa)

O Dr. Figueiredo Dias renuncia uma categoria de ação como uma categoria de base da construção
crime, e substituir a categoria de ação pela categoria da realização típica.

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Direito Penal I

Claro que isto tem um custo, que passa por assumir que construção do crime é puramente
normativa/jurídica. Perde-se a função da substanciação, e tudo será definido pelo Direito, tudo é
função de uma definição jurídica, é com essa consciência que podemos começar a estudar os
elementos do conceito de crime.

Isto significa que o tipo deve ser visto como ponto de partida na análise do crime, e a ação passa
a integrar-se dentro do próprio tipo, com a tal função de delimitação. As condições de relevância da
ação são determinadas pelo próprio direito.

Exemplo de ação como função de delimitação: Um ato praticado em estado de sonambulismo não
pode ser considerado crime, porque não é um comportamento humano. Mas as coisas mudam de
figura se a pessoa entrou em estado de sonambulismo porque não tomou os medicamentos que tinha
de tomar para não estar em estado de sonambulismo, aí já não se afasta uma eventual
responsabilidade, se a pessoa sabia o risco da falta de toma dos medicamentos.

a) Formas típicas de aparecimento do crime

Crimes Dolosos Crimes Negligentes


Crimes de Ação Protótipo social de crime
Crimes de Omissão

Se a ação é substituída pela realização típica, então também podemos encontrar várias formas
típicas de aparecimento do crime.

Neste caso 4 formas típicas, temos uma dicotomia de crimes de ação e omissão, e por outro lado,
uma dicotomia de crimes dolosos e negligentes. Isto significa que há 4 combinações possíveis.

Na realidade os crimes dolosos de ação são o protótipo do crime que vamos estudar. Há
diferenças de valoração significativas relativamente às restantes combinações. Quando pensamos
num crime nas nossas conceções sociais pensamos sempre num crime doloso de ação – A matou B
ou C furtou D.

A omissão é restrita a certas condições. A negligencia só especialmente é punível, ao contrário do


dolo.

Agora vamos ver as restantes categorias dentro desta construção funcional teológica.

4.5. O “ilícito típico ou tipo de ilícito

Sobretudo na escola clássica havia uma distinção muito nítida entre tipicidade e ilicitude. E dizia-se
que a tipicidade era a descrição de um comportamental particularmente danoso. Matar outra pessoa
como descrição de um comportamento típico é uma conduta socialmente danosa. Ao passo que, a
ilicitude já versa sobre uma conduta concreta, uma conduta socialmente danosa em plano abstrato,
pode ser justificada em concreto – Grande argumento da Escola clássica.

Essa perspetiva da autonomia entre o tipo e a ilicitude persistiu até aos dias de hoje.

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Direito Penal I

E Temos a fusão entre tipo e ilicitude, que é aquela que o Dr. Figueiredo dias segue. Esta fusão do
tipo e da ilicitude, que dá origem ao ilícito típico, já existia no normativismo através da Doutrina
do tipo total.

De acordo com esta doutrina O Tipo era verdadeiramente a categoria principal, porque
englobava em si próprio os elementos necessários para resolver a questão da ilicitude da conduta. A
conduta era ilícita se preenchesse todos os elementos incriminadores. E se não preenchessem
nenhum dos elementos do tipo. Isto é, se não fosse em legítima defesa, se não fosse no
cumprimento de um dever, etc.. O tipo seria a categoria superior na qual se dissolviam quer
elementos incriminadores quer justificadores.

Esta Doutrina do tipo total perde a razão e o sentido do problema, pela mesma razão que vamos
procurar utilizar para justificar a construção de um ilícito típico.

A função do Direito Penal não é proibir comportamentos típicos. A função é em cada situação
concreta oferecer aos cidadãos um critério conforme ao Direito. Ora esta orientação que o Direito
penal oferece aos cidadãos não se faz através de condutas típicas, dado que este direito na realidade
não proíbe matar outra pessoa. O que ele proíbe são as a chamadas condutos ilícitas.

O direito penal não tem como função proibir condutas típicas, mas sim condutas ilícitas. E é essa a
principal função desta categoria.

Esta categoria da ilicitude incide sempre sobre uma situação concreta. Portanto, do ponto de vista
da finalidade do direito penal a ilicitude tem de ser a categoria prioritária.

Há uma outra dimensão muito importante, que o Dr. Figueiredo dias chama muito a atenção.
Ter um sistema orientado teleológico-funcional é pensar a partir do resultado. Não existe nenhuma
consequência jurídica relativamente à pratica de uma conduta típica. O simples praticar uma
conduta típica não tem qualquer consequência jurídica, mas se for uma conduta típica e ilícita, nem
é preciso que seja dolosa, aí sim já pode trazer uma consequência jurídica, por exemplo, as medidas
de segurança.

a) O modo particular da ilicitude penal

No Direito penal não podemos usar, como no Direito Civil, conceitos gerais. “Quem prejudicar
outra pessoa é punido com pena de X” – neste caso violávamos imediatamente o Princípio da
legalidade. A ilicitude penal tem que usar estes instrumentos que se chamam tipos. A ilicitude é um
juízo que no direito penal se vaza em tipos, é concretizada em tipos.

A categoria do tipo é um instrumento de expressão do juízo de ilicitude – função claramente


secundária em relação à categoria do ilícito.

Em suma, na perspetiva que aqui vamos adotar, não existe aquela separação entre ilicitude e
tipicidade. São sim categorias que se fundem numa única categoria que é o “ilícito típico”.

b) Tipos incriminadores e tipos justificadores

Há duas espécies de tipos diferentes. É do confronto dos dois que resultará a natureza lícita ou
ilícita de determinada conduta.

• Tipos Incriminadores - Descrevem a conduta proibida – estrutura diferente – estes agregam- se à


volta do bem jurídico – p.e Crimes contra a vida – artigo 131º e ss.- tipos que giram em volta da
Marisa Branco 120
Direito Penal I

categoria do bem jurídico e que se encontram na Parte Especial. 


• Tipos Justificadores - Causas de justificação – não são concretos a um bem jurídico, visam
proteger interesses mais gerais (legitima defesa, direito de necessidade, etc.) e por isso mesmo
não estão na Parte Especial, mas sim na Parte Geral.

Se este os dois têm uma diversidade estrutura são construídos de maneira diferente. Mas eles tem
uma complementaridade funcional, dado que são complementares na função de definir o caráter
ilícito da conduta.

Quando começamos a analisar uma conduta, para ver se preenche os elementos próprios do crime,
evidentemente que no procedimento de análise começamos sempre pelo tipo incriminador, sendo
este tipo a porta de acesso ao sistema da construção do crime.

Vindo de uma herança de Wezel, todo o ilícito é um ilícito pessoal, porque não existe ilícito penal
que não seja ou doloso ou negligente. Portanto, podemos dizer que, hoje, todo o ilícito penal é
também um ilícito pessoalmente conformado pelo dolo e pela negligencia.

4.6. Tipos de culpa

Também em relação à culpa existe um tipo. Não há culpa que seja dolosa ou negligente.
A culpa neste plano é uma censura pessoal dirigida ao agente por ter violado o dever ser jurídico-
penal.

Tem vários elementos, mas para já interessa destacar a função da culpa:

- Desde logo, limitar o poder punitivo do Estado, fundamentando-se na dignidade da pessoa


(Artigo 1º CRP). Não pode haver pena sem culpa, nem pode haver uma pena mais grave do que
culpa, e significa também inadmissibilidade de responsabilidade objetiva.

A culpa divide-se então entre dolo e negligencia, que são culpas diferentes e com consequências
diferentes, mas ambas dizem respeito à atitude pessoal que o agente tem perante o dever ser
jurídico.

4.7. Punibilidade

Nem todos os factos que são típicos, ilícitos e culposos são factos puníveis. Há circunstâncias que
levam a excluir a dignidade penal. Por razões muito diversas.

Por exemplo: nos crimes de insolvência, para que o agente seja punido é precisa que exista um
reconhecimento judicial da insolvência, este reconhecimento é uma condição objetiva de
punibilidade.

Marisa Branco 121


Direito Penal I

Título II. Os factos puníveis dolosos por acção


Subtítulo I. O tipo de ilícito Os tipos incriminadores
Capitulo XIII - O tipo objectivo de ilícito

1. Polissemia do “tipo”: Tipo de garantia, tipo de erro e tipo de ilícito

Dentro do tipo incriminador temos o tipo objetivo e o tipo subjetivo. Esta polissemia do tipo
objetivo tem vário sentidos, tendo essencialmente três que não têm o mesmo sentido:

1.1. Tipo de garantia/ tipo legal

Temos o tipo de garantia: Queremos englobar aqui todos os pressuposto que depende a
responsabilidade do agente. Todos os pressupostos que tem de estar legalmente fixados- estando
sujeitos ao principio da legalidade. Isto vai muito para lá do tipo ilícito, porque neste tipo de
garantia também entram o tipo de culpa, e certas condições do punibilidade. Ou seja, todas aquelas
condições que têm de estar fixadas na lei para que se cumpra o princípio do nullum cripe sinem
legem.

1.2. Tipo de erro/Tipo para efeitos do erro

Tipo de erro/ tipo para efeitos do erro: Este tipo tem um conformação diferente, porque entram
aqui vários elementos que não estão contidos no tipo de ilícito. Um dos elementos relevantes para o
efeito do erro são os erros para a proibições legais. Existe aqui algum desfasamento entre o tipo de
erro e o tipo de ilicitude.

1.3. O tipo do ilícito

Nós vamos nos focar agora no tipo ilícito.

Desvalor de ação e desvalor do resultado.

Existe aqui uma dicotomia entre o desvalor de ação e o desvalor do resultado. Ela é importante para
vários efeitos, mas desde já podemos dizer que desde a Ação da Escola Final que ficou- uma das
heranças desta escola- com a ideia que o tipo de crime não é só um puro desvalor objetivo, é
também a ação.

Por exemplo: No caso de A matar B a única coisa que importa não será só o facto de B ter morrido,
será também o facto de A o ter matado. Ao contrário do que era para o positivismo, dado que a
única coisa que iria interessar era B ter morrido.

Nos desvalor da ação nós incluímos todo um conjunto de elementos subjetivos: • As intenções do
agente;

• As finalidade;


• Tudo aquilo que se processa dentro do agente.

Marisa Branco 122


Direito Penal I

E depois teremos o desvalor do resultado, que é a tal situação que o agente cria com a ação, que é
juridicamente desaprovada.

Tanto um como o outro conformam o tipo o ilícito. Portanto, hoje a doutrina claramente
dominante admite que o tipo de ilícito é composto por estas duas espécies de valores, não sendo
possível reduzi-lo os desvalor do crime exclusivamente a uma delas.

Estas duas espécies de desvalor podem aparecer em combinações diferentes.

Por exemplo: num crime de tentativa- ou seja apenas a tentativa de um crime- evidentemente que o
desvalor da ação é muito mais notório que o desvalor do resultado, dado que aqui a situação
posterior não se modifica.

Por exemplo: Já nos crimes negligente o que avulta é o desvalor do resultado, dado que sobretudo
na negligencia inconsciente o agente nem sequer percebe que o facto pode vir a ocorrer, e não existe
praticamente o desvalor da ação.

Nota: Vamos regressar a esta ponto, só vamos conseguir compreender alguma matéria do segundo
semestre se tivermos bem assente estes dois desvalores.

a) Distinção entre “resultado” (afetação do bem jurídico( e o resultado-evento nos crimes


materiais

Não devemos confundir este desvalor de resultado/desvalor objetivo- a palavra resultado é como
uma afetação do mundo exterior/bem jurídico- com aquilo que podemos chamar resultado-evento
como elemento dos crimes materiais que diz respeito ao objeto da ação que é atingido por uma
certo crime.

— Elementos descritivos e normativos

Estes são os elementos que se incluem no tipo incriminador (tipo objetivo).

Eles podem dividir-se em duas grandes classes. Por um lado, os elementos descritivos. Por outro
lado, os elementos normativos.

— Elementos descritivos

Estes são elementos que representam/descrevem uma realidade que é apreensível pelos sentidos.

Por exemplo: Se alguém disser que quer matar outra pessoa. Esta é algo que é apreensível pelos
sentidos.

— Elementos normativos


Estes já requerem um juízo jurídico, ou seja, uma outra valoração das coisas.

Por exemplo: No crime de furto, quando se diz a subtração de coisa alheia, aqui alheio tem que ser
determinado pelo direito. Temos de recorrer a um juízo jurídico para dizer quando é que uma coisa
é alheia.

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Direito Penal I

Estas distinções são de algum modo tendenciais porque há certos elementos que são
aparentemente descritivos, mas que também são produto de uma certa compreensão cultural ou até
de uma certa compreensão jurídica.

Por exemplo, no elemento pessoa, além de ser um elemento de fácil compreensão no nosso dia,
existem certos critérios jurídicos para determinar o início do estatuto de pessoa e o fim.

Mas é uma distinção que ainda hoje usamos, dado que apesar de tudo há ainda hoje alguma
separação. Não é possível sabermos o que é alheio sem termos qualquer raciocínio jurídico sobre a
coisa, mesmo que não sejamos juristas. Não é possível apreender esse elemento alheio sem recorrer
a um critério normativo. Portanto, são de facto elementos distintos, mas não podemos cair na
ingenuidade de achar que os elementos são puramente descritivos, dado que em ultimo termo existe
sempre uma definição jurídica nesses termos.

1.4. Tipos abertos, elementos valorativos globais, o tipo incriminador e as menções


redundantes da ilicitude

Em geral, o tipo é uma unidade de sentido social negativamente valorada. Portanto, tanto como
se pode esperar um tipo deve ser relativamente fechado, até por força do principio da legalidade.
Isto é, deve ser autossuficiente na descrição da conduta proibida.

Acontece que por vezes é necessário recorrer a outros elementos que remetem para outros juízos/
valorações. Isto é o caso dos tipos abertos.

Por exemplo: quando um tipo de crime diz que quem praticar abusivamente esta conduta. Este
“abusivamente” já nos está a remeter para juízos que estão de alguma fora do tipo de crime. Já
temos que avaliar se a situação é legitima ou ilegítima e isso já não está integrado no tipo de crime.

O mesmo acontece com os elementos valorativos globais (“fim censurável”).

Por exemplo: Se repararmos crime de coação- exemplo dado nas lições do Dr. Figueiredo Dias-
este só é punível na realidade se a utilização do meio para atingir o fim visado for censurável. Esta
ideia de fim censurável acaba por dominar todo o tipo de crime, e por isso vale o elemento
valorativo global.

Por último, uma clausula- talvez a mais importante de todas dentro desta nota- da adequação
social. Esta trata-se daquelas condutas que formalmente integram um tipo incriminador, mas que na
realidade são condutas que fazem parte da nossa vida quotidiana. E portanto estas nem sequer
integram o tipo de crime.

Por exemplo: Suponhamos que um passageiro vai num avião, e do nada decide que não quer ir, e
quer sair do avião. Isto não é possível, e portanto neste caso quem entra num avião fica de alguma
forma com o direito de abandonar restrita, até ao momento em que o avião aterrar. Mesmo que
formalmente ela esteja presa no avião ao contrário da sua vontade, trata-se de uma adequação social
formalmente aceite na sociedade.

Isto só nos mostra que o tipo incriminador não é só, ao contrario do que pretendia o positivismo
naturalista, uma descrição puramente objetiva/neutra da conduta, já sendo uma entidade
portadora de um certo sentido material. E, portanto, esta tipicidade da conduta só pode exprimir
essa valorização social, quando há essa afetação mínima do bem jurídico.

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Direito Penal I

Em todos este casos que nós vimos pode acontecer que seja por força de se tratar de um tipo aberto,
que se remete, em ultimo termo, para uma outra instancia. E Aqui a conduta não chega a ser típica,
mesmo que do ponto de vista lógico, esta integra-se na descrição do tipo de crime.

Devemos distinguir destes certos advérbios que a lei usa, e usa erradamente, que são as chamadas
menções redundante da ilicitude. Isto é menções que, ao contrário das outras, não estão a remeter
para um juízo autónomo e que só criam insegurança, devendo ser eliminadas.

Por exemplo: No artigo 334º do CP, que incrimina o crime que se chama perturbações do
funcionamento do elemento constitucional. Isto é uma menção redundante da ilicitude porque
“perturbar ilegitimamente o órgão com tumultos de desordens ou vozarias”, o ilegitimamente não
está aqui a fazer nada, dado que o ato em si já é ilegítimo.

Temos de distinguir os casos em que temos de transcender o tipo de crime para aceder a um outro
juízo/uma outra valoração, para os outros casos em que estes advérbios/expressões não acrescentam
nada.

O tipo incriminador é compostos essencialmente: por o autor, pela conduta e pelo bem jurídico. E
vamos procurar agora pormenorizar alguns aspetos destes três elementos.

2. O autor


2.1. Pessoa humana e pessoas jurídicas e entidades equiparadas

No nossos direito, pode ser autor do crime as pessoas humanas e também as pessoas jurídicas e as
entidades equiparadas.

O artigo 11º do CP também incrimina, para certos crimes, a responsabilidade criminal das
pessoas jurídicas. E Aqui houve uma evolução gigante no direito português, porque esta
responsabilidade já era conhecida do Direito português, e era prevista no Decreto-lei 28/84 relativo
aos crimes da económica e da saúde publica. E o mesmo se diga para os crimes fiscais.

Mas no código Penal, no artigo 11º até 2007 tinha uma redação diferente, dizendo-se que só as
pessoas humanas era autores de crimes, salvo disposições em contrario. Não havendo nenhuma
norma jurídica em relação às pessoas jurídicas. A partir de 2007, o artigo 11º passou a prever uma
lista razoavelmente grande de crimes que também se aplicam no artigo 11º/no2.

Por isso mesmo, o legislador também teve e necessidade não só de explicar os critérios no caso de
se tratar de uma pessoa jurídica, mas também de prever as penas aplicáveis às pessoas jurídicas
contidas no artigo 90º-A ss.

Nem todos os ordenamentos conhecem a responsabilidade das pessoas jurídicas. Por exemplo, a
Alemanha ainda hoje não tem responsabilidade das pessoas jurídicas, com fundamento do facto de
estas ultimas não tem capacidade de ação e de culpa.

O Dr. Figueiredo Dias e a nossa Faculdade sempre foram favoráveis à responsabilidade das pessoas
jurídicas, sobretudo por razoes políticas.

Por outro lado, o Dr. Figueiredo Dias tem uma fundamentação muito solida, dado que as pessoas
jurídicas são admitidas pelo direito para a realização dos interesses das pessoas singulares/humanas.

Marisa Branco 125


Direito Penal I

Da mesma forma que o direito permite às pessoas singulares criarem as pessoas jurídicas como
centros ficcionados de libertação, isso também tem o reverso da medalha. É que sendo um
instrumento da liberdade a pessoa jurídica também deve ser um centro de responsabilidade.
Há vários modelos para a efetivação dessa responsabilidade, o caso português segue um modelo da
chamada heteroresponsabilidade ou da responsabilidade derivada. A pessoa jurídica responde
por o ato de uma pessoa humana praticado no seu interesse e no seu nome.

Nota: Este modelo opõem-se aos modelos de autorresponsabilidade, em que o facto ilícito da
pessoas jurídica não é só o crime que foi cometido, mas o facto de ela não se ter organizado de
maneira que esse crime não seja cometido.

No nosso modelo, tem de haver um certo nexo entre o crime cometido e a pessoa jurídica. sendo
esse os vários elementos que estão previstos no artigo 11º/no2,4º e 5º. É preciso:

• Essencialmente que o agente atue em representação/em nome da pessoa coletiva; 


• Que atue no interesse da pessoa coletiva, e não no seu próprio interesse; 


• É preciso que tenha uma posição de liderança dentro da pessoa coletiva ou então por pessoas que
estão subordinadas a quem tem uma posição de liderança.

Ainda a este propósito, põem-se a questão de saber se o legislador pode criar um crime onde faça
responder as pessoas humanas e depois criar uma contra-ordenarão exatamente igual para as
pessoas jurídicas? Podemos distinguir o ramo de direito aplicável em função do agente dar crime e
às pessoas humanas e contra-ordenações às pessoas jurídicas? Num sistema como o nosso a
resposta é negativa. Desde o momento em que se admite a responsabilidade jurídica das pessoas
coletivas não se pode distinguir consoante se trata de uma pessoa jurídica ou uma pessoa humana.

Portanto, quando se criminaliza uma certa conduta tem que o fazer de acordo com o direito
criminal.

Nota: ter em atenção à matéria dada nesta aula e na próxima, dado que são matérias muito
frequentemente perguntada em exames.

2.2. Crimes comuns e crimes específicos:

Tudo depende se o dever que é previsto pelo tipo de crime é um dever geral, de aplicação a todas as
pessoas, ou se trata de deveres específicos.

Nota: (não é para dizer assim em exame!!)Dito de uma forma grosseira são aqueles que dizem
respeito a todos os cidadãos, o crimes específicos tem como destinatários apenas algumas pessoas.

Uns exemplos de crimes comuns/gerais podem ser homicídio, furto, violação física a outro.
Mas por vezes a lei penal centra a sua atenção em deveres específicos. Os crimes específicos
aparecem através de 3 modalidades:

Em certos casos a lei expressa quem pode ser o autor desses agentes, é o caso de exemplo os
crimes de corrupção. Há um indicação de uma certa categoria de agentes, por exemplo,
enfermeiros ou médicos. 


Outra é descrever no tipo de crime uma relação interpessoal, de onde derivam especiais deveres. 


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Direito Penal I

Por exemplo: Abusos sexuais a menores, artigo 172º/1-a). Este é especifico porque a conduta só é
proibida relativamente às pessoas que tem os deveres gerados por estas situações enunciada na
alínea a). 


Outra modalidade de crime específico é a nomeação do próprio dever. 




Por exemplo: artigo 250º/1, como a obrigação de alimentos que se não cumprir esse dever será essa
pessoa específica autor do crime. 


Esta distinção entre crimes comuns e crimes específicos tem interesse para a distinção entre
autoria e participação. Só pode ser autor quem tiver as características descritas no tipo. 


Os crimes específicos dividem-se em: 


• Crimes específicos próprios: estes requerem mesmo um dever especial 


• Crimes específicos impróprios/impuros: aqueles em que o dever especial do agente é apenas um


fator de agravação da responsabilidade. Existe um crime base que é comum, mas passa a ser uma
crime mais punido se for praticado por uma pessoa que tem um dever especial de não praticar
esse crime. 


2.3. Crimes de mão própria: definição e remissão

Estes são crimes onde a lei exige a própria execução corporal do facto. Portanto, só 

pode ser autor do crime quem executar por si mesmo, com o seu próprio corpo. 


Exemplo: No passado o crime de violação entendia-se que era um crime de mão própria, portanto
só podia ser responsável de um crime de violação a quem, com o seu próprio corpo, praticasse a
ação proibida. Hoje a própria lei afasta essa ideia. 


Exemplo: O consumo de estupefacientes, este exige que a pessoa introduza a substancia no seu
próprio corpo. 


O que se diz hoje, e por isso é que esta categoria está em crise, é que as novas compreensões da
perigosidade individual levam a afastar um pouco esta ideia dos crimes de mão própria. Dado que
se pode de facto atingir/ofender de forma relevante determinado bem jurídico, mesmo não
executando corporalmente a conduta. E, portanto, a distancia em relação ao bem jurídico, no sentido
de não afetar através do seu próprio corpo, não é definitivamente relevante para excluir a
responsabilidade. 


Portanto, hoje de facto esta categoria tende a ser cada vez menos aceite.

Ele tem importância sobretudo para a matéria da comparticipação, por isso é que aludimos à
remissão. Porque quando se aceita que um certo crime é um crime de mão própria não pode haver
autoria mediata dessa categoria, apenas imediata.

Por exemplo: Não podia haver um autor mediato no consumo de estupefacientes- apesar de já não
ser um crime. Dado que não se pode consumir por outra pessoa.

Marisa Branco 127


Direito Penal I

3. A conduta


3.1. A ação voluntária

Esta trata-se da primeira exigência para que haja uma conduta típica.

Aqui ação voluntária trata-se de uma ação que possa ser vista como um comportamento do
agente/humano. Esta não tem nada a haver com uma ação intencional/dolosa. Com uma ação
voluntária queremos apenas dizer uma ação que ainda está ligada à vontade da pessoa.

Este requisito, na verdade tem uma função negativa dado que permite excluir à partida coisas que
não são domináveis pela pessoa, e , portanto não são objeto de sequer do ordenamento.

3.2. Crimes de resultado (materiais) e crimes de mera atividade/omissões puras (formais)

Os crimes materiais tratam-se daqueles crimes que tem sempre dois elementos:

• Por um lado, uma ação/omissão



• E por outro, um resultado.

Estes resultado surge como um evento/modificação do mundo exterior que é distinto, tanto no
plano cronológico, como no plano lógico, da ação do agente. Portanto, é algo que acontece
separadamente da ação.

Por exemplo: o homicídio é um crime material, dado que há uma ação, disparar a arma, e há o
resultado, que é a morte. Este resultado morte é sempre distinto da ação, porque, primeiro, estamos
no mundo exterior ao agente e o resultado é sempre posterior à ação.

Aqui trata-se de um omissão impura, como vemos no artigo 10º do CP.

Diferentemente, os crimes formais/crimes de mera atividade dizem respeito a condutas que não
têm como produto/evento um resultado exterior ao agente. Estes são crimes que não incluem/
precisam de um resultado exterior para se consumarem. Ao paço que no homicídio só há
consumação deste com o resultado (a morte). Nos crimes formais este não necessita do resultado.

Exemplo: Há vários crimes formais previstos no Código Penal, como por exemplo nos artigos 293º
do CP. O tipo de crime aqui é arremessar projétil contra veículo em movimento, o crime consuma-
se com a simples ação. Não é necessário que haja danos, ou resultados.

Além dos crimes de mera atividade, ainda temos as simples omissões puras, isto é, omissões que
também são crimes em si mesmas. Os crimes consumam-se com a simples omissão da coisa. E, por
isso mesmo, a lei tem de descrever os casos em que não fazer nada é crime.

Marisa Branco 128


Direito Penal I

Todas as omissões puras estão previstas na Parte Especial, como crimes autónomos.

Exemplo: Artigo 284º- recusa do médico. A conduta típica aqui é o medico recusar a conduta da
sua profissão e que seja um perigo de vida de outra pessoa. Aqui a omissão não tem que levar a
algum resultado, basta apenas que ele se recuse.

Nota: Não confundir isto com o desvalor da ação e com o desvalor do resultado!! Dado que o que
vimos agora é uma análise da conduta típica.

Relevância da distinção:

1. Esta distinção releva, desde logo, no que toca à imputação do resultado à ação/omissão, que só
acontece nos crimes materiais. 


2. E releva também para o efeito do facto de, dentro dos crimes materiais/de resultado, também se
poder fazer um a sub-distinção:

• Crimes de execução livre: Estes são aqueles em que a lei não exige um particular processo
causal. A lei admite qualquer processo causal que seja idóneo a produzir qualquer resultado. 


Por exemplo: O crime de homicídio: quem matar uma outra pessoa, seja com uma faca/pistola,
etc. 


• Crimes de execução vinculada: Aqui, na lei existe uma descrição, particularizando o processo
causal relevante para efeitos do crime. Há uma descrição do processo e do agente. 


Por exemplo: No crime de burla, este está previsto no 217º do CP, o resultado aqui também é
um crime material/resultado, sendo o resultado um prejuízo patrimonial. Mas não é de execução
livre, dado que existe uma descrição particular do processo causal relevante.

4. O efeito do crime sobre o bem jurídico



4.1. Crimes de dano e crimes de perigo; Bem jurídico e objeto da ação

Esta distinção reporta-se ao tipo de efeito que a conduta tem sobre o bem jurídico.

O crime de dano é aquele que lesa efetivamente o bem jurídico.


Por exemplo: o homicídio: alguém, aniquilando a vida, lesa efetivamente esse bem jurídico. 


Por exemplo: o crime de furto lesa efetivamente o direito de propriedade.

Já nos crimes de perigo, a conduta põem apenas os bens jurídicos em perigo.


Em certas situações, é melhor antecipar a tutela:

Por exemplo: crime de exposição ou abandono, art. 138º CP; artigo 172º CP.

A este propósito temos de fazer a distinção entre bem jurídico e o objeto da ação:


Marisa Branco 129


Direito Penal I

• Bem jurídico: é sempre uma entidade mais ou menos abstrata, idealizada. Por exemplo, quando
eu furto um anel a outra pessoa, o bem jurídico em causa é o património da pessoa lesado pela
conduta.

• Objeto da ação: objeto material da ação. Este apresenta uma representação corpórea da categoria
do bem jurídico, mas não se confunde com o bem jurídico. Por exemplo, reutilizando o exemplo
acima mencionado, no crime de furto de um anel, o objeto da ação é a coisa que foi furtada, o
anel, mas esse não é o bem jurídico.

E é por isso, também, que esta classificação — entre crimes de danos e crimes de perigo — não
tem nada a ver com a distinção entre crimes formais e crimes materiais, porque a esta última
diz respeito ao objeto da ação, ao passo que a primeira distinção diz respeito ao bem jurídico.

4.1.1. Crimes de perigo concreto e crimes de perigo abstrato. A questão da constitucionalidade


das normas que prevêem os últimos. Crimes de perigo abstrato-concreto. Crimes de aptidão:

Os crimes de perigo podem dividir-se em duas classes:

• Crimes de perigo concreto: É aquele em que a conduta do agente cria efetivamente um perigo
para o bem jurídico. O perigo faz parte do tipo de crime, dado que faz parte da própria conduta
típica. 


Ex.: Artigo 289º do CP: “e criar deste modo perigo para a vida”- é um elemento autónomo, dentro
do próprio tipo de crime.

• Crimes de perigo abstrato: Aqui não se exige a produção de um perigo efetivo, basta praticar
uma conduta em certas circunstâncias que a lei descreve para que o crime se consume, mesmo que o
agente não tenha causado um perigo concreto. Não é preciso que tenha havido efetivamente uma
situação de perigo para o bem jurídico, o perigo aqui é a motivação da perigosidade, o legislador
presume que aquela conduta é sempre perigosa. 


Ex.: artigo 292º do CP, neste crime, não há um crime de dano, e a lei não exige que o agente cause
uma situação de perigo, bastando que conduza o veiculo com uma taxa de álcool no sangue para
constituir crime.

E é por isto mesmo que há quem ponha em causa a constitucionalidade dos perigos abstratos,
dado que se a conduta não lesou o bem jurídico e não o pôs em perigo, então, estaremos a puni-lo
em nome de outra coisa qualquer. Mas isto já não é um direito penal do bem jurídico.

A doutrina maioritária sustenta o contrario: diz que temos de ser particularmente exigentes quando
avaliamos legitimidade dos crimes de perigo em abstrato, mas, em certas circunstâncias, as
normas que os prevêem são conformes com a constituição:

• Tem de haver um bem jurídico claramente identificado;


• É preciso que a conduta a incriminar seja efetivamente perigosa para o bem jurídico; 


• Essa perigosidade tem de ser num grau tão elevado que o legislador possa presumir que ela é
sempre perigosa.

Marisa Branco 130


Direito Penal I

Crimes de perigo abstrato-concreto:

• Os crimes de perigo abstrato-concreto são crimes formulados como crimes de perigo abstrato,
mas, depois, em tribunal, se se provar que, em concreto, a conduta não foi perigosa, não haveria
crime. A prova relevante seria a da ausência do perigo.

Diferente destes são os chamados Crimes de aptidão:

Aqui não se vai ao ponto de exigir um perigo concreto, mas também não é um crime de perigo
abstrato. Exige-se que a conduta tenha aptidão para afetar gravemente o bem jurídico.

Um bom exemplo: Nos artigos 2º e 4º da Lei 52/2003 do LCT. Na cláusula de aptidão não basta
praticar os crimes, é preciso que a natureza e contexto dos factos ocorridos, os crimes sejam aptos
de afetar gravemente o estado ou a população que se visa intimidar.

4.2. Representação gráfica de que os crimes de dano e crimes de perigo nada têm a ver com os
crimes materiais e crimes formais

Podemos ver que há crimes materiais que são crimes de dano — do ponto de visto estatístico esta
será a regra. Mas o crime material também pode ser um crime de perigo e podemos chamar
estes de crimes materiais de perigo.

Exemplo: artigo 138º do CP: não basta expor a pessoa ou abandoná-la sem defesa, é preciso que
dai resulte um perigo para a pessoa.

Os crimes formais, podem ser eles também crimes de dano.

Por exemplo: o crime de corrupção: temos aqui um crime formal, porque a conduta criminosa
consiste na mera solicitação/aceitação do dinheiro. É também um crime de dano, porque a simples
solicitação já causa um dano de um bem jurídico, viola a autonomia intencional do Estado.

E podem ainda os crimes formais serem crimes de perigo.


Por exemplo: o arremesso de um projétil contra um veiculo, é um crime formal mas é também de
perigo, dado que não se exige a lesão do bem jurídico.

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4.3. Crimes simples (203º) e crimes complexos (210º)


• Os crimes simples (artigo 203º do CP) são aqueles que atingem apenas um bem jurídico. É o
caso do furto, atingindo apenas o património/propriedade.

• Por outro lado, os crimes complexos (artigo 210º do CP), são crimes que ferem
simultaneamente vários bens jurídicos e a lei, ao descrever a conduta típica, tem isso em conta.
É o caso do crime de roubo.

4.4. Tipos fundamentais, qualificados e privilegiados

• Os tipos fundamentais são aqueles que descrevem a conduta básica, como o homicídio simples:
artigo 131º do CP.

• Os tipos qualificados são aqueles onde concorrem na conduta algumas circunstâncias que levam
a considerar esse crime mais grave do que o tipo base, ou por maior gravidade do ilícito, ou maior
intensidade da culpa. É o caso do artigo 131º do CP.

• Depois temos os tipos privilegiados: São casos menos graves do que a imagem normal de
determinado crime. Estes estão, por exemplo, no artigo 133º e 134º, sendo formas menos graves
de cumprimento do homicídio.

4.5. Crimes instantâneos, duradouros (permanentes) e habituais

• Os crimes instantâneos são aqueles em que a consumação se produz num momento apenas,
mesmo que os seus efeitos se possam perdurar no tempo. 


Exemplo: O homicídio, que embora tenha efeitos eternos, mas é um crimes instantâneo, dado que
a morte se produz num único momento. 


• Pelo contrário, os crimes duradouros são aqueles em que a própria consumação do crime (ataque
ao bem jurídico) perdura no tempo. 


Exemplo: O crime de sequestro, o crime consumasse quando a pessoa é privada de liberdade,
mas o crime perdura durante todo o tempo em que há a privação de liberdade. Durante esse tempo
todo o bem jurídico está a ser atacado. 


• Os crimes habituais são aqueles onde explicita ou implicitamente a lei exige uma certa repetição
do facto para que haja tipicidade do crime. Hoje em dia, é cada menos frequente que o legislador
recorra a estas formas de habitualidade como elemento de certos crime. 


O Dr. Figueiredos Dias aponta este exemplo nas suas lições que é o crime de lenocínio: trata-se de
fomentar a prática de prostituição. 


Exemplo: Vinha-se de um paradigma de repetição, e hoje talvez não seja assim — é o crime de
violência domestica. Aqui ,exigia-se uma repetição dos maus-tratos e violência para ser
considerado crime. Hoje, a lei quis expressamente afastar a habitualidade do crime.

4.6. Crimes de empreendimento


São crimes nos quais o legislador equipara a própria tentativa do crime à consumação. Quer
isto dizer, crimes onde a simples tentativa do crime já constitui a própria consumação.
Marisa Branco 132
Direito Penal I

Exemplo: Artigo 325º do CP; art. 327º CP - baste com que o agente atente contra a vida do PR para
o crime se consumar.


Exemplo: Em matéria de terrorismo, artigo 4º-A da LCT.

4.7. Crimes agravados pelo resultado (Artigo 18º DO CP)


Nota: Aqui o Dr. não pede que se saiba a matéria tão exaustivamente como está nas lições. O
que interessa é que saibamos o regime que está no artigo 18º CP.

Neste artigo, diz-se que há certos crimes que constituem crimes autónomos e, depois, a produção
de um certo resultado torna o crime mais grave.

Exemplos: Art. 147º; Agravação prevista no artigo 177º/5 para os crimes sexuais - temos aqui
vários resultados que agravam o crime base.

O artigo 18º diz que quando a lei agrava um certo crime em função do resultado, é preciso que esse
resultado seja imputável ao agente, pelo menos a título de negligência. Isto é, não pode haver
uma agravação quando a responsabilidade é objetiva.

Capítulo XIV - A imputação objetiva do resultado à


ação
Aqui estamos a falar apenas no âmbito dos crimes materiais/de resultado.

1. O problema: a causalidade (natural) e imputação/atribuição. O encontro do


Ser com o Dever-ser. Verdade e valoração:

O problema que temos aqui é um dos grandes problemas do direito, pois é a ligação entre um
evento do mundo do ser causal e um comportamento do agente, para podermos dizer que este
causou o resultado em causa, a modificação do mundo exterior.

Se nós temos um homicídio, teremos de dizer que A matou B, para preencher o tipo incriminador.
Para isso temos de fazer duas afirmações de natureza diferente:

• Primeiro temos o problema da causalidade natural: temos de provar, no plano da causalidade/


ciências positivas, que aquela pistola que A disparou e dela saiu uma bala que matou B. Aqui
temos um problema entre a ação e um resultado, de uma forma natural.


• Depois temos o problema normativo: Saber se essa morte deve ser imputável à ação do agente.
Aqui temos uma questão normativa.

Esta situação repete o problema de quando estudamos o princípio da construção da infração. Dado
que há sempre a questão do “dever ser” e do “ser”. temos aqui um encontro daquilo que é/ com a
realidade com aquilo que “devia ser”. Encontramos um problema de verdade, e aqui só podemos
atingir uma conclusão. E depois um problema de valoração, ou seja, de juízo.

Marisa Branco 133


Direito Penal I

2. Primeiro patamar da imputação (exigência mínima); a questão causal: A ação


A causou o resultado X? A teoria das condições equivalentes: a conditio sine qua
non; método de aplicação. Crítica: regressio ad infinitum; impossibilidade de
atribuição (equivalência de condições)

A TEORIA DAS CONDIÇÕES EQUIVALENTES: A CONDITIO SINE QUAO NON; O


MÉTODO DE APLICAÇÃO. A CRITICA E A IMPOSSIBILIDADE DE ATRIBUIÇÃO.

Aqui temos a exigência mínima, de que se é verdade ou não de que foi a bala que matou B. Este
é um patamar mínimo porque o direito não se pode “divorciar” completamente da verdade. Se
alguém não passar este patamar, não podemos passar para o próximo, dado que este é
necessariamente o primeiro patamar de avaliação empírica. São os médicos forenses, patologistas
que entram aqui.

Para esse efeito vale a teoria das condições equivalentes, quer isto dizer que são causa de um
resultado todas as condições sem as quais o resultado não se teria produzida. São causas todas as
condições sem as quais o resultado não se teria produzidas.

Para saber se uma conduta foi causa do resultado, o que o juiz vai fazer é abstrair aquela condição e
saber se o resultado se produziria ou não sem ela — conditio sine qua non.

Saberemos que são causas através do método de supressão mental, temos que pegar numa
particular condição que nos interessa- no nosso caso disparar a bala- suprimir essa condição, e
figurar/hipotizar se sem essa condição o resultado se teria produzido ou não. Por isso é que a
conditio sine quão non diz que sem o causa o resultado não tinha acontecido.

Este método foi durante muito tempo suficiente para imputar o resultado à ação.

Mas há uma críticas a esta construção:

- Dado que este paradigma não responde à questão que nós pusemos (se se deve atribuir a morte
daquele pessoa aquele agente), ela apenas responde se foi isso que causou a morte.

- Por outro lado, esta teoria conduz-nos a uma regressão ao infinito, quer isto dizer que todas as
causas são consequências também. Por exemplo, chegaria a um ponto em que poderíamos culpar
os pais, pois se o agente não tivesse nascido não teria praticado aquela conduta.


- Ela não nos permite explicar porque é que, se todas estas condições são equivalentes - todas
as condições sem as quais o resultado não se produziria são equivalentes - porque é que vamos
atribuir o resultado apenas a uma delas, e não a outra qualquer. 


Isto tudo significa, então, que o direito deve partir da realidade, sob pena de perder a sua função, e a
primeira questão que se põe é se no plano da realidade foi a ação do agente que causou o resultado.
Mas isto é só o ponto de partido, a exigência mínima. 


3. Segundo degrau da imputação: a questão jurídica: deve o resultado x ser


imputado/atribuído à ação A, que o causou?


Agora já numa questão jurídica, nãos trata de uma questão empírica, perguntamo-nos se deve
(implica um juízo) o resultado ser imputado/ atribuído à ação que o causou.
Marisa Branco 134
Direito Penal I

a) A Teoria da adequação (ou da causalidade adequada)

— A ideia central da previsibilidade como fator de orientação da ação humana (ilícito


pessoal!): só podem imputar-se os resultados que, em geral e em abstrato, sejam
consequências normais, típicas e, por isso, previsíveis daquela ação.

Pode ser que haja circunstâncias que não sejam antecipáveis pelas validades. Não é sempre que uma
ação causa um resultado que estão verificados os requisitos para que o resultado seja imputado à
ação. Isto porque nós, como pessoas, não sabemos tudo. Nós só podemos orientar os nossos
comportamentos se as consequências das nossas ações sejam razoavelmente previsíveis.

Exemplo: A deu uma pancada leve na cabeça de B e este acabou por morrer. Só que este morreu
porque tinha sido submetido a uma cirurgia ao crânio e foi em função desta que a pancada provocou
a morte.

! A ideia central é que não somos capaz de prever e dominar todas as consequências das nossas
ações, apenas somos capazes de uma parte. Temos uma capacidade limitada na previsibilidade das
nossas ações e, por isso mesmo, só se pode imputar a uma pessoa os resultados que sejam, em geral
e em abstrato, consequências normais/típicas e previsíveis daquela ação.

E a isto chamamos a teoria da adequação.

Para sabermos se aquele resultado era uma consequência normal daquela ação, o juiz vai fazer um
juízo de prognose póstuma ex ante: É um juízo de previsão póstuma, porque no momento em que
o juiz vai reproduzir essa visão, o resultado já aconteceu. É ex ante, quer dizer que o juiz, para
fazer esse juízo, embora depois resultado ter acontecido, vai reportar-se ao momento em que o facto
foi praticado e averiguar se, de acordo com as circunstâncias em geral conhecidas, aquele resultado
era previsível, típico e normal.

Para tal, o juiz recorre a certos instrumentos:

- Regras de experiência comum (a normalidade do acontecer): aquilo que não lemos ou


ouvimos em lado nenhum, mas sabemos da experiência comum, do normal acontecer. 


- Os conhecimentos científicos/técnicos que regem certas atividades: há certos casos em que


não basta recorrer à experiência comum, é preciso ainda recorrer a certos conhecimentos técnicos
que regem certos setores da vida social. 


Exemplo: Para sabermos se um certo resultado de uma cirurgia ao cérebro complexa deve ser
imputado à ação do agente, o juiz deve recorrer aos conhecimentos científicos daquela
especialidade. 


- Os conhecimentos específicos do agente sobre a situação concreta: porque é possível que,


perante situações onde o normal é negar a adequação, em que dizemos que, em geral e em
abstrato, não é normal que esta situação preveja este resultado, o agente saiba, tenha
conhecimentos específicos, que levem a que o resultado seja, para ele, previsível. Note-se que
não falamos dos conhecimentos que ele deveria ter, mas sim dos que tinha, efetivamente. 


Exemplo: Alguém que mete camarões na mesa, sabendo que a pessoa é alérgica a eles e esconde
na comida os camarões. A pessoa com e acaba por morrer. 


Marisa Branco 135


Direito Penal I

— A exigência de manutenção da adequação durante todo processo causal — interrupção do


nexo causal por intervenção imprevisível:

É preciso que a adequação seja perante todo o processo causal, isto é que a previsibilidade se
mantenha, que não haja uma intervenção de terceiro que seja imprevisível e que venha a
interromper o nexo causal. 


Exemplo 1: Suponhamos que A dá um tiro em B e este fica moribundo, e vem C que dá um tiro de
misericórdia na vítima. A deu um tiro em B, um tiro que seria previsível causar a morte de B, mas
intervém um terceiro que interrompe o nexo causal. Aqui, o que quebra logo é aquele primeiro
patamar, a causa natural da morte. Não se pode imputar a B o resultado que ele efetivamente não
causou.


Exemplo 2: O agente deixa uma arma carregada num sítio onde duas pessoas estão a discutir
violentamente e quase a chegar a vias de facto. E uma das pessoas mata o outro com essa mesma
pistola. O resultado de morte pode ser atribuído tanto a quem matou a pessoa como o que deixou a
arma em cima da mesa. 


Exemplo 3: A dá um tiro em B, que é em geral e em abstrato um tiro propenso a causar a morte,


dado que atinge o peito da vítima. O B vai para o hospital e, aqui, não é tratado com o cuidado
necessário e adequado, os médicos demoram demasiado tempo a prestar-lhe cuidados e B morre.
Mas prova-se em tribunal que, se houvesse os cuidados necessários, B poderia ter sobrevivido com
facilidade. É aqui que de facto, existe uma interrupção da adequação do processo causal. A
causalidade natural verifica-se na mesma, a pessoa morreu devido ao tiro. Mas, no plano normativo,
há uma interrupção do nexo causal, dado que não e previsível que aquela cirurgia, que era simples,
não tenha sido levado em tempo necessário. O agente não responde pelo resultado.


Quando dizemos que o resultado não pode ser imputado, não quer dizer que essa pessoa seja
totalmente irresponsável. Aqui não estamos a falar de responsabilidade, mas sim de haver um
nexo entre a ação e o resultado. 


Nota: Esta é uma matéria muito frequente em exames. 


4. O 3º patamar: A doutrina da conexão do risco: a criação ou potenciação de um risco


proibido que se materializa no resultado típico:

Esta doutrina da conexão do risco serve, por um lado, para corrigir certos resultados a que
chegaríamos só com a doutrina da adequação e não seriam adequados e, por outro lado, para
compreendermos globalmente o problema da imputação de resultado.

! Só se pode imputar um resultado criminoso a alguém se o agente tiver criado ou potenciado


um risco proibido que se concretiza num resultado típico.

Vivemos numa sociedade de risco, há riscos que têm de ser incorporados, aceites na sociedade,
comunitariamente, todos temos de suportar um certo nível de risco: por exemplo, não vamos proibir
conduzir um carro, pois conduzir pode ser perigoso.

Exclusão da imputação:

Pela negativa, a conexão do risco leva-nos a excluir a imputação em certas situações. Este exercício
que vamos fazer agora é o de analisar os casos em que se deve excluir a imputação do resultado,

Marisa Branco 136


Direito Penal I

porque o agente não criou nem potenciou um risco já existente de ocorrência do resultado, ou,
então, o risco que criou não é um risco que se tenha concretizado no resultado típico:

4.1. Riscos permitidos

A primeira tipologia de casos são os riscos permitidos (p.e., a atividade médica, o box, etc). Os
chamados riscos permitidos inserem-se naqueles contextos sociais onde nós temos que viver com
um determinado grau de risco. O riscos são permitidos, desde que se cumpram os standards
vigentes para cada área de atividade.

Os americanos chamam-lhe o “Complexo Disneylândia”, porque, de facto, quando visitamos a


Disneylândia, há uma série de medidas de segurança e a sociedade, hoje em dia, revela
obsessivamente a ideia de a vida ser totalmente segura e, efetivamente, não o é. Em certos setores
de atividade o risco faz mesmo parte desse contexto.

Exemplo: as vacinas Covid19 podem causar problemas graves/fatais. Como em qualquer


medicamento/vacina, estes não são totalmente seguros. Portanto, se alguém morrer ou ficar
gravemente ferido em virtude da toma desse medicamento/vacina, isso faz parte do risco permitido,
aqui nem se preenche o tipo de crime, não se trata de justificação, isto nem sequer chega a entrar no
âmbito do Direito Penal.

Exemplo: A área do desporto é também um domínio onde vigora a ideia do risco permitido, mesmo
em desportos onde o contacto físico não é permitido. No futebol, as lesões provocadas por o outro
jogador quando pratica faltas ainda funcionam no âmbito do risco permitido, porque são contrárias
à lei do jogo, mas é algo que de alguma maneira faz parte do jogo. Só não será assim quando houver
uma agressão grave tão forte do jogo que deva ser uma criação do risco proibido.

Exemplo: Ainda temos alguns desportos em que o contacto físico e a agressão fazem parte do jogo,
como é o caso do boxe. No boxe a agressão é um elemento do próprio desporto, e, portanto,
também aqui vale o âmbito do risco permitido, que serve para excluir, à partida, a imputação do
resultado à ação.

Mesmo no quotidiano corremos riscos, como a conduzir o carro. Se, no tráfego rodoviário, todos
cumprirmos as regras de segurança, continua a existir o risco de atropelarmos alguém que se
atravessou à frente do carro.

O princípio da autorresponsabilidade é gerador de riscos permitidos.

Exemplo: Alguém que seja portador de uma doença sexualmente transmissível tem relações
sexuais com outro parceiro, sabendo esse outro parceiro da condição de saúde do agente. Portanto,
existe aqui um princípio da autorresponsabilidade, que define que quem aceita ter relações sexuais
nessas condições sem proteção, está também ele próprio a assumir o risco da infeção.

Nas lições, o Dr. Figueiredo Dias apresenta alguns exemplos relativos ao risco proibido, como o
acidente rodoviário provocado por aparecimento inesperado de lençol de água. O agente cumpria
todos as regras rodoviárias impostas, mas com o lençol de água o carro acaba por deslizar
inesperadamente, embatendo violentamente noutro veículo e causa a morte do outro condutor.

Aqui o Dr. Caeiro não considera necessário a aplicação do risco permitido, pois entende que
estes se resolvem logo com a teoria da adequação, porque, desde logo não é previsível que exista
esse lençol de água e é sobre esse elemento que temos que tratar a previsibilidade, em relação ao
embate propriamente dito. Pela teoria da adequação, por não ser previsível esse lençol de água,
Marisa Branco 137
Direito Penal I

tratando-se de um acontecimento imprevisível, logo, não se afirmaria sequer a adequação da ação ao


resultado.

4.2. Diminuição do risco

A segunda tipologia de casos prende-se com a diminuição do risco para o bem jurídico ou para o
seu portador. Ou seja, a conduta do agente diminui o risco para o bem jurídico em casa ou para o
seu portador do bem jurídico.

Exemplo: dois amigos vão a passear, sendo que um deles decide atravessar a estrada. O amigo
repara que este outro não está a reparar que está a passar um camião, e agarra-o com violência para
trás e ele cai, para evitar o atropelamento, e causa-lhe, com isso, escoriações nos joelhos, nas mãos
e cara.

Estes resultados, que são lesões da integridade física, não devem ser imputados à ação do agente,
porque o agente diminuiu o risco para o bem jurídico do outro amigo. Ao diminuir o risco, que se
previa ter sido muito superior sem a ação do amigo, o agente até promove o bem jurídico, e não
seria razoável imputar-lhe aquelas lesões.

Devemos especificar para o seu portador, pois os bens jurídicos podem ser diferentes. Suponhamos
que é preciso sacrificar um bem jurídico patrimonial para poder salvar o portador desse bem.

Exemplo: há um incêndio, sendo que o vizinho repara e apercebe-se que não há movimento
exterior da casa. Lembra-se que o vizinho toma medicamentos para dormir e para parar o incêndio
do vizinho entra na casa, e com água da rede do vizinho acaba com o incêndio. In casu, o vizinho
utilizou água alheia, meios patrimoniais que não eram dele, para dar fim ao incêndio e salvar a vida
do titular da casa, seu vizinho – ou seja, aqui referimo-nos ao portador do bem jurídico que está a
ser ameaçado.

4.3. Comportamento lícito alternativo


A terceira tipologia de casos é o comportamento lícito alternativo. O resultado produzir-se-ia na


mesma e nas mesmas condições.

Trata-se, aqui, de situações em que existe uma violação de regras por parte do agente e, por isso,
cria o risco proibido de produção do resultado, mas se o agente tivesse cumprido com as regras
aplicadas, o resultado ter-se-ia produzido na mesma e da mesma forma e condições. Aqui
existe mesmo uma criação de um risco proibido para o bem jurídico.

Exemplo: uma fábrica produzia pincéis de barba e importava pêlos de cabra para o seu fabrico.
Como todos os produtos de origem animal, esses pêlos deviam ser sujeitos a uma desinfeção
própria. Essa fábrica não conduziu esses processos de desinfeção e os trabalhadores começaram a
ficar doentes com o manuseamento desses materiais. Ao não proceder à desinfeção dos materiais, o
dono da fábrica criou um risco proibido, a desinfeção existe, justamente, para prevenir estas
situações. No entanto, provou-se que mesmo que a fábrica tivesse procedido à desinfeção dos
materiais, o resultado ter-se-ia produzido na mesma, porque aqueles germes eram imunes aos
produtos utilizados para a desinfeção, ou seja, o resultado ter-se-ia produzido na mesma e nas
mesmas condições.

Não se devem imputar as lesões da integridade física (resultado), porque o resultado aconteceria na
mesma. Podemos é imputar a violação das regras de desinfeção.

Marisa Branco 138


Direito Penal I

Desvio às Lições (pág. 393 e ss) — Não basta uma mera probabilidade:

Para o Dr. Figueiredo Dias bastaria uma alta probabilidade do resultado se produzir na mesma. O
Dr. Caeiro considera que a regra é a exigência de uma prova positiva, não basta uma mera
probabilidade.

4.4. Âmbito de proteção da norma

A quarta tipologia de casos prende-se com o âmbito de proteção da norma. As normas têm um
certo escopo e, às vezes, a violação da norma pode conduzir a um determinado resultado que não é
verdadeiramente incluível naquilo que a norma quer proteger.

Trata-se de situações bastante específicas.

Exemplo 1: Alguém passa à frente de um hospital e avista um sinal de proibição de uso de sinais
sonoros, para proteger os utentes do hospital. Alguém viola essa norma, buzinando e, em virtude
disso, uma pessoa assusta-se e tropeça, caindo e ficando com escoriações. In casu, o raciocínio seria
que este resultado não se pode imputar à ação do agente, porque não se inclui no âmbito de proteção
da norma.

Exemplo 2: Vão 2 ciclistas na estrada, é de noite e o ciclista que vai na frente leva luz e o que vai
atrás não. Há uma ultrapassagem de um carro em relação a outro e acaba por atingir o que não leva
luz. Aqui, podemos imputar o resultado aquele que leva. luz ligada? Não, porque a obrigação de
levar a luz ligada é para que o próprio seja visível, não os outros. O âmbito de proteção da norma
não é proteger os outros, é proteger o próprio.

O Dr. Figueiredo Dias entende que isto não tem autonomia suficiente e relevância para ser uma
regra em si mesma, sendo que o Dr. Caeiro simpatiza com esta ideia também.

5. A irrelevância da causalidade virtual para efeitos de interrupção do nexo causal

A situação de facto é aqui a inversa da que subjaz ao comportamento lícito alternativo. É saber se
aqueles resultados que iam de qualquer forma acontecer, servem para interromper o nexo
causal.

Ao contrário do que acontece no Direito Civil, no Direito Penal a causalidade virtual não tem
uma influência negativa, não pode interromper o nexo causal.

Exemplo: Alguém dá um tiro num passageiro de um comboio, que morre. Sendo certo que,
passados 2 minutos, o comboio sofre um despiste e a carruagem onde esse passageiro ia é uma das
que é brutalmente destruída pelo despiste. Todos os passageiros dessa carruagem morrem. Coloca-
se a questão de saber se o resultado morte é imputado a quem premiu o gatilho e deu um tiro no
mencionado passageiro, já que o resultado morte ter-se-ia produzido na mesma, embora não da
mesma forma.

Ora bem, a resposta aqui é negativa, a causalidade virtual não afeta a imputação do resultado.

Reparemos na distinção com o comportamento lícito alternativo (situação totalmente contrária).


Neste último existe um processo causal em curso que o agente devia interromper, mas não o faz,
sendo irrelevante que ele não tenha tomado as ações apropriadas, porque estas acabariam por ser
inúteis (o resultado no caso dos pincéis da barba é o resultado do processo causal já em curso).

Marisa Branco 139


Direito Penal I

In casu, o resultado não se produz devido ao processo causal anterior, o resultado morte produz-
se, pelo processo causal posto em andamento pelo agente, pelo disparo do tiro.

O resultado é imputado pelo resultado provocado pelo seu disparo.

Marisa Branco 140


Direito Penal I

Capítulo XV - O tipo subjectivo doloso

1. Evolução; estrutura do tipo doloso + elementos subjetivo da ilicitude


1.1 A construção do tipo subjectivo de ilícito

Vimos em relação à evolução da construção do crime, onde se passou de uma consideração


puramente objetiva, para uma conceção onde o tipo de ilícito é também um ilícito subjetivo, através
da ideia do ilícito pessoal. Até agora vimos a dimensão objetiva do tipo ilícito, agora, focar-nos-
emos na dimensão subjetiva do tipo ilícito.

Todo o crime é, necessariamente, doloso ou negligente, que são categorias puramente subjetivas.
Então, isso significa que todo o ilícito ou é doloso ou é negligente. Esta é uma das heranças da
Escola de Ação Final, que nós, ainda hoje, mantemos.

Desde logo, é importante mencionar 2 aspetos do dolo no contexto jurídico-penal português:

• É o crime mais frequente;


• Constitui a maioria de tipo de crimes previstos no Código Penal.

Tudo indica a que se dê um papel especial aos crimes dolosos no estudo da cadeira.

1.2 O dolo como entidade complexa

Convém, desde já, fazer uma introdução muito breve ao dolo como entidade complexa.

O Dr. Figueiredo Dias tem essa ideia muito bem explicada nas Lições, e a ideia dele consiste no
facto do dolo relevar, tanto em sede do tipo de ilícito, como em sede da culpa. Isto quer dizer
que há uma dupla valoração da mesma categoria?

Não, porque os elementos do dolo que relevam ao nível do ilícito não são os mesmos que relevam
ao nível da culpa, daí o Dr. Caeiro referir ser esta uma entidade heterogénea, composta por vários
elementos diversos, uns relevam ao nível do ilícito doloso, outros caracterizam a culpa dolosa. 


2. O dolo do tipo (dolo do facto)


2.1. A estrutura do dolo tipo

Elementos característicos:

Consiste no conhecimento e vontade em praticar um tipo objetivo —Por isso se fala num
elemento intelectual, o conhecimento e num elemento volitivo, a vontade, de praticar este tipo
objetivo.

Exemplo: A sabe (elemento intelectual) que vai matar B com um tiro e quer fazê- lo (vontade à
elemento volitivo).

Marisa Branco 141


Direito Penal I

O nosso ordenamento prevê três modalidades de dolo (“tipificado”) no artigo 14º do Código
Penal:

• Dolo Direto;
• Dolo Necessário;
• Dolo Eventual. 


2.2. O momento intelectual do dolo — representação da factualidade típica

O elemento intelectual do dolo consiste em o agente representar-se (tornar presente no seu espírito),
corretamente, a factualidade típica, isto é, os elementos que compõem o tipo objetivo do ilícito.

Exemplo: no crime de homicídio temos como factualidade típica matar outra pessoa. O elemento
intelectual consiste, desde logo, em o agente trazer á sua consciência o conjunto dos elementos que
compõem a factualidade típica.

Note-se que fica fora deste âmbito, o agente não tem que abranger, elementos que ainda podem
concorrer para a constituição do crime, mas que não pertencem à factualidade típica.

Exemplo: os elementos relativos à aplicação da lei no espaço, o agente não tem que saber que está
a atuar em território nacional, nem tem que saber que a vítima é portuguesa, se for no caso da
nacionalidade passiva. Todos esses factos relativos à aplicação da lei no espaço, não têm de ser
representados pelo agente.

O mesmo vale para as condições objetivas de punibilidade, porque também não são elementos do
tipo de crime, mas sim elementos da punibilidade. Não têm que ser representados pelo agente. O
agente só tem que se representar os elementos que compõem o facto típico.

2.2.1. O Conhecimento dos elementos descritivos e normativos (apreensão do sentido na esfera


do leigo)

Em relação, aos elementos descritivos não há grande problema em exercer a sua determinação.
Toda a gente sabe o que é uma pessoa, um animal, um objeto, o que é noite, etc., são elementos que
são de acessível representação à generalidade das pessoas, e, portanto, a sua representação não
coloca problemas particulares (têm algum conteúdo jurídico).

Há outros elementos que não são tão facilmente representáveis pelo agente - os elementos
normativos. Estes Implicam o recurso a certos juízos, sejam normas jurídicas, sociais, culturais,
etc., mas já implica uma certa valoração.

Exemplo: Coisa alheia no crime de furto. O alheio já supõe a uma remissão para elementos
propriamente jurídicos, nomeadamente, ao Direito Civil. É claro que não se exige que ao agente que
represente o artigo do CC para saber o que é uma coisa alheia.

O que se exige é que o agente tenha aquilo a que chamamos a apreensão do sentido na esfera
paralela do leigo, se não, só os juristas poderiam cometer crimes, pois só eles teriam pleno
conhecimento dos elementos convocados pelo legislador. Se o agente não conhecer a esfera paralela
do leigo, temos um erro que exclui o dolo. Apenas é exigível, para que haja dolo.

Marisa Branco 142


Direito Penal I

2.2.2. A atualidade da consciência intencional da ação — significado

Para que haja dolo é, ainda, preciso que exista a chamada atualidade da consciência intencional da
ação, isto é, quando o agente atua, é necessário que a sua consciência intencional aceda aqueles
elementos do tipo de crime. Não basta que o agente saiba em geral.

Exemplo: Não basta que o médico saiba em geral que um medicamento cause efeitos secundários
com pessoas com determinada patologia, e, todavia, o médico tem uma consulta com um paciente
com essa condição clínica e receita-lhe o tal medicamento, sem se recordar que o particular
medicamento pode causar os efeitos secundários. Ora, in casu, podemos imputar o resultado da ação
de acordo com a imputação objetiva, porque, em gera é adequado e é previsível, já que o
medicamento pode provocar esse efeito aos pacientes com aquelas determinadas patologias (não é
raro que isso aconteça). Contudo, não podemos invocar o dolo, embora o médico saiba que há essa
possibilidade, ele no momento em que prescreve o medicamento não relaciona os elementos, no
momento do facto a sua consciência intencional não representa a possibilidade de causar as lesões
ao paciente – haverá apenas negligência.

Exemplo: Uma pessoa maior de idade (maioridade penal = 17 anos) namora com uma pessoa de 14
anos, e sabe perfeitamente a idade da pessoa de 15 anos. A certa altura tem relações sexuais com
essa pessoa. Claro que no momento em que tem relações sexuais não está a pensar na idade dela,
mas isso é um elemento que permanece constantemente na sua consciência intencional.
Provavelmente, in casu, poderá se invocar o dolo, mesmo que não se prove que naquele particular
momento da consumação da relação sexual o agente não tenha a consciência da menoridade e do
consequente crime de ter relações sexuais com menores. Aqui fala-se de uma co- consciência
imanente à ação (algo que está constantemente presente na consciência do agente).

Nota: A matéria seguinte é muito questionada, tanto nas avaliações escritas, como nas avaliações
orais.

2.3. O erro sobre a factualidade típica e a exclusão do dolo (16º/1)

Este erro sobre a factualidade típica exclui o dolo, afasta a punição por crime doloso. Quanto este
erro acontece o agente não pode ser punido. Notem que, o Art. 16º/1 CP, na verdade, prevê 2
espécies de erro diferentes:

• Erro sobre a factualidade típica: previsto na 1a parte do artigo 16o/1: “O erro sobre elementos
de facto ou de direito de um tipo de crime (...)”. 


• Erro sobre proibições legais: (apenas tratado no DPII) previsto na 2ª parte do artigo 16º/1: “(...),
ou sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa
tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo”.

2.3.1. Falta de representação e representação errónea

O erro sobre a factualidade típica refere-se aos casos em que o agente não representa os factos- há
falta de representação do facto. O agente não sabe o que está a realizar, ou seja, não sabe que está
a realizar um determinado tipo de crime.

Exemplo: O agente dá um determinado medicamento abortivo a uma mulher grávida,


desconhecendo dessa condição de gravidez, porque a senhora lhe ocultou essa mesma condição.

Marisa Branco 143


Direito Penal I

Ora bem, in casu, seriamos levados a afirmar a imputação objetiva, porque a administração
daquele medicamento tem como consequência, previsível, normal e típica o aborto. Mas não
podíamos afirmar aqui, o crime doloso, porque o agente desconhece um dos elementos essenciais do
tipo de crime de aborto, que é a condição da mulher grávida – falta de representação.

Exemplo: se alguém à saída de um café leva um guarda-chuva alheio julgando que é o seu próprio
guarda-chuva, há uma representação errónea daquele objeto como sendo seu. Portanto, o agente não
sabe que está a subtrair uma coisa móvel alheia, o elemento do tipo de crime que incide este caso é
a coisa móvel alheia, o agente não sabe que está a subtrair uma coisa móvel alheia, porque julga que
a coisa lhe pertence a ele.

Quando existe um caso de erro, a primeira coisa a fazer é ver qual o tipo de crime aplicável, e
depois encontrar qual o tipo de crime que o agente desconhece ou representa erradamente.

2.3.2. Âmbito — erro sobre circunstâncias agravantes e aceitação errónea de atenuantes

Inclui não só a factualidade típica, propriamente dita, mas inclui também as circunstâncias
agravantes e os casos de aceitação errónea de atenuantes.

Exemplo: o agente pode não saber que com a sua atuação está a realizar, além do tipo de crime,
está também a praticar uma circunstância agravante. O agente pensa que pratica uma ofensa à
integridade física simples, mas na verdade praticou uma ofensa à integridade física agravada.

Nestes casos, deve-se aplicar, apenas, a norma em relação à qual o agente atuou com dolo. In casu,
ofensa à integridade física simples. A falta de dolo em relação à circunstância agravante excluí o
dolo – erro sobre as circunstâncias agravantes.

Também pode acontecer, que o agente julgue erradamente que se verifica uma situação que é
atenuante do crime. Neste exemplo seguinte, não podemos ignorar a representação errada que o
agente faz da existência de uma atenuante que na realidade não existe.

Exemplo: num caso de homicídio privilegiado, um homicídio a pedido da vítima é punido muito
mais brandamente no nosso sistema jurídico que o homicídio normal. O agente pode julgar que está
a matar a vítima porque ela lhe pediu, quando, na realidade, a vítima não lhe pediu nada, ou estava a
brincar, etc., mas que leva o agente a acreditar que havia um pedido expresso, sério e estante da
vítima para que ele a mate. Esta aceitação errónea da atenuante deve também excluir o dolo
perante o homicídio simples e conduz à aplicação do crime efetivamente praticado, o homicídio por
negligência normal em eventual concurso com um homicídio doloso privilegiado.

2.3.3. Erro sobre processo causal

Dá-se um erro sobre o processo causal quando o agente projeta uma certa forma de cometer o
crime, isto é, através de um certo processo causal, mas depois o resultado vem acontecer através de
um processo causal diferente. Isto quer dizer: a forma como o agente projetou cometer o crime,
não é a mesma pela qual o crime veio a ocorrer.

Portanto, coloca-se a questão de saber se este erro é relevante para a exclusão do dolo nos termos do
artigo 16º/1 do CP.

A primeira condição que temos que ter em atenção aqui, é, a verificação da:

Marisa Branco 144


Direito Penal I

• Necessidade de imputação objetiva do resultado à ação: Muitas vezes a Doutrina, tende a


colocar no plano do erro sobre processo causal, casos que não pertençam ao erro sobre processo
causal, mas que relevam, antes, aos casos de imputação objetiva. 


Exemplo: A dá um tiro em B, onde B é operado para ser salvo, mas os médicos não esterilizam
convenientemente os instrumentos, e B acaba por morrer de infeção devido á não esterilização
dos instrumentos. Temos, in casu, um processo causal, com resultado na morte, mas o processo
causal que conduziu à morte não é o processo causal que o agente configurou. O que falha aqui,
desde logo, é a imputação objetiva do resultado, porquê? Porque há uma interrupção do nexo
causal através da não esterilização dos instrumentos, isto é, ao não esterilizarem os instrumentos
os médicos criaram um novo processo causal, um novo risco proibido, que esse sim foi
materializar-se no resultado “morte”, e, portanto, este género de casos não pertence no domínio
do erro, mas sim na imputação objetiva. 


Exemplo: A quer matar B, e para esse efeito atira B abaixo de uma ponte, para que pareça que
este morreu por afogamento. Só que, durante a queda B bate com a cabeça no pilar da ponte, e
morre por esse facto, e não por afogamento. Se nós começarmos por pôr isto no plano da
imputação objetiva, pensamos que aqui existe imputação do resultado “morte” à ação, porque é
provável e razoável pensar que atirar uma pessoa de uma ponte abaixo pode conduzir a que ela
embata com o corpo em algum lugar e morra desse facto. Não foi, efetivamente, o processo
causal que o agente projetou, mas ainda está perfeitamente dentro das regras da adequação.

• Divergência entre o processo causal projetado e o ocorrido: Irrelevância do erro e afirmação


do dolo (posição contra: lições Págs. 418º e ss.) nos crimes de execução livre, porque o processo
causal que integra o tipo é qualquer processo causal adequado. 


Tem alguma relevância em matéria de dolo esta divergência entre os processos causais projetados
e os processos causais ocorridos? Aqui a doutrina diverge. A doutrina mais tradicional, que parece
mais correta aos olhos do Dr. Caeiro é a que diz que depende. Temos que ver se se trata de um
crime de execução livre ou um crime de execução vinculada. 


Se for um crime de execução livre, como o homicídio, qualquer processo causal que caiba dentro
das regras de adequação preenche o tipo. O tipo do homicídio não particulariza/ especifica um
particular processo causal. Qualquer causação adequada da morte preenche o tipo, logo não há
relevância se o agente tenha projetado um certo processo causal e o resultado tenha sido
conseguido com outro processo causal (desde que esse outro processo causal ainda caiba dentro
das regras da adequação). Assim, no exemplo de atirar alguém da ponte, o erro é irrelevante e o
agente é punido por um crime de homicídio doloso consumado. 


O Dr. Figueiredo Dias, tem uma conceção diferente, e diz que mesmo aqui deverá haver um
concurso entre o crime projetado e o crime que ocorre por negligência. O Dr. Caeiro acredita que
isto não se justifica, porque aquele processo causal que ocorre ainda é adequado, por isso não é
relevante que o dolo do agente se tenha referido a um outro processo causal (é um elemento
geral). 


Nota: Nos exames os alunos costumam referir isto, e é errado - justificar esta sulução dizendo
que, nos crimes de execução livre o processo causal não faz parte do tipo, o tipo é irrelevante. O
processo causal faz parte do tipo, daí nós exigirmos a adequação deste, só que não é um elemento
do tipo específico. Qualquer processo causal adequado faz parte do tipo e tem que se conformar
adequadamente sob pena do tipo não se preencher. 


Marisa Branco 145


Direito Penal I

• Exclusão do dolo nos crimes de execução vinculada: Quando se trata de crimes de execução
vinculada a questão já é diferente. Como se recordarão, a lei já exige um determinado processo
causal para atingir o resultado. A conduta só é típica se o resultado for causado através de um
particular processo causal (crime de burla – artigo 217º CP – o resultado é o prejuízo patrimonial
da vítima, através de um particular processo causal). 


Para que haja dolo em relação ao crime de burla, é preciso que o agente saiba que está a
enganar a vítima, etc. Nos casos dos crimes de execução vinculada, o agente tem que representar
o particular processo causal descrito no tipo. 


Se não o fizer, ou seja, o agente quer causar prejuízo à vítima, mas sem saber que está a seguir
esse processo causal, temos de excluir o dolo (erro sobre o processo causal temos que excluir o
dolo). 


Em suma, nos crimes de execução livre, o erro sobre o processo causal é irrelevante (punição
pelo crime doloso consumado). Já nos crimes de execução vinculada, o erro sobre o processo
causal é relevante. É aplicado o artigo 16o/1 e consequente exclusão do dolo.

2.3.4. O dolus generalis e a pluralidade de ações: problema a resolver em sede de imputação


objetiva

Quando o agente procura cometer certo facto, mas ao contrário do exemplo que estávamos a ver há
pouco, ele precisa de várias ações, sendo que ele atua com dolo em relação a uma ação que não
produz o resultado, mas depois atua sem dolo em relação à ação que efetivamente produz o
resultado.

Exemplo: Alguém quer matar uma pessoa, e para isso dá-lhe uma pancada na cabeça, julgando que
ela já está morta. Para se livrar do corpo, atira o corpo para o mar. Na realidade a pessoa não está
morta e acaba por morrer, sim, mas de afogamento. Diferença entre este caso e o caso do
traumatismo fatal no pilar da ponte – in casu, temos várias ações: Pancada na cabeça, o autor julga
que a pessoa está morta. Há dolo, mas não há resultado; Atira o corpo para dele se livrar, e o
resultado ocorre. Não há dolo, porque ele não vai querer afogar uma pessoa que ele julga já estar
morta.

Como é que isto se resolve?

Em 1º lugar, temos que colocar as coisas em termos de imputação objetiva. Saber se em cada caso
o resultado é ou não imputável à ação do agente. In casu, parece claro que sim, atirar o corpo ao
mar, e disso resultar a morte, é um resultado previsível em relação a essa ação.

A questão surge se podemos afirmar o dolo nestes casos. Os Professores Stratenweth e Kuhlen
constroem um critério, que parece ao Dr. Caeiro razoável. Eles afirmam que haverá crime
consumado doloso se o agente tiver planeado previamente estes vários atos. Se o agente planeou
matar a vítima com um ferro, e depois atirar o corpo à água, desde que estes atos sejam em abstrato
prováveis de causar a morte, os autores referem que tendo havido planeamento, justifica-se a
punição pelo crime consumado doloso, mesmo que o agente no momento em que atira a vítima à
água não tenha dolo por homicídio, porque julga que a vítima já está morta.

Mas suponhamos um caso diferente, em que o agente não planeou estes atos previamente. O agente
mata ou quer matar a vítima com uma pancada, deixando a vítima inanimada, julgando que está
morta. Ele quer deixar a vítima onde ela se encontra, mas de repente aparece a polícia e ele atira o
corpo ao mar. De acordo com este critério, teríamos aqui uma tentativa de homicídio não
Marisa Branco 146
Direito Penal I

conseguida. No momento em que atira o corpo ao mar, a resolução é diferente, é para se livrar do
corpo (não estava planeada), e, portanto, a morte por afogamento deve ser imputada não a título de
dolo, mas a título de negligência.

O Dr. Caeiro concorda com este critério, mas refere que não sabe, até que ponto não está
subjacente a este critério uma certa conceção do crime tributária do velho conceito de ação. Esta
solução é bastante diferente da solução que vimos em relação ao caso do pilar da ponte, e a única
diferença que há entre estes casos é a pluralidade de ações. O Dr. Caeiro tem a duvida se a
diferença das situações não acontece ainda, no caso de não serem planeadas previamente, por
uma conceção do crime muito tributária de um conceito de ação física. 


2.3.5. A aberratio ictus vel impetus (erro na execução): Regime — tentativa do crime projetado
e exclusão do dolo em relação ao crime consumado (eventual imputação a título de
negligência, em concurso com a tentativa)

Outra forma de erro, é o erro na execução, aberratio ictus vel impetus. Suponha-se que alguém quer
matar outra pessoa e aponta a arma para matar um certo agente, mas falha o alvo e acaba por matar
uma outra pessoa. Pensemos naqueles casos típicos de ataques contra as figuras políticas
importantes, Presidentes da República, Monarcas, etc., isto é, o agente quer praticar o crime, mas
acaba por praticar um crime diferente, por ter falhado na execução do crime (acerta no segurança do
presidente, e não no presidente).

Aqui temos erro no golpe ou erro na execução, pois o agente quer praticar um crime, e acaba por
praticar um crime diferente, que não planeou.

Quanto ao regime, aqui, quase todos os autores concordam (apenas uma doutrina minoritária
diverge desta solução) - há uma tentativa do crime projetado (homicídio daquela pessoa que se
queria matar), com, eventualmente, em concurso com um crime consumado negligente. A pessoa
que acaba por ser morta, mas o resultado morte não é representado pelo agente, e, portanto, ele não
atuou com dolo e existem, no fundo, dois crimes.

Porque é se refere o “em eventual concurso”? O Dr. Figueiredo Dias chama a atenção a isso nas
lições, pode haver casos em que apesar de se verificar um resultado não querido pelo agente,
ainda assim não se possa afirmar a negligencia, ou a causalidade sequer.

Exemplo: A quer matar uma pessoa, dispara. Não há mais ninguém por perto, mas a bala faz um
ricochete estranhíssimo e mata uma pessoa no bosque longe dali, à qual o agente nem podia contar
com a sua presença no bosque. Somos levados a dizer que há uma tentativa de homicídio, mas não
podemos imputar o resultado aquela ação, porque era imprevisível que houvesse a tal pessoa no
bosque, ademais, que o projétil descrevesse aquela trajetória anormal, e que fosse ter aquele
resultado. In casu, não se pode afirmar a violação de um dever de cuidado. Podem acontecer que,
nestes casos, não se verifique o concurso por falta de imputação do resultado que efetivamente vai
acontecer, ou não se poder afirmar a violação de um dever de cuidado (que leva à negligência).

Isto explica o porquê de nestes casos, apesar de alguma doutrina divergir neste sentido, não se poder
dizer que o erro é irrelevante e que há simplesmente um crime doloso consumado.
Precisamente, por isso, porque a execução do crime está sujeita a várias vicissitudes. Por o
agente ter querido matar alguém, não significa que todos os resultados que venham a acontecer lhe
sejam imputáveis.

Por isto mesmo, temos de, em primeiro lugar, construir uma figura de concurso – tentativa do crime
que se quer cometer – e, depois, um crime consumado negligente, se tiver base para essa imputação.
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Direito Penal I

2.3.6. O error in persona vel objeto (erro sobre o objeto) — Regime

Trata-se de casos em que o agente não erra propriamente na execução do crime, mas há um erro na
formação da vontade.

O agente quer de facto praticar um certo facto criminoso, mas acaba por atingir uma pessoa/
objeto diferente do que tinha projetado previamente (é diferente do erro sobre a execução). É
erro sobre a direção que imprime à sua ação.

Exemplo 1: A quer matar o seu inimigo B, faz-lhe uma espera num certo ponto, porque sabe que B
passa sempre ali aquela hora, e quando vê um vulto de uma pessoa a aproximar-se, dispara um tiro e
mata a pessoa. Acontece que esse vulto não era B, era uma outra pessoa, C, que até tinha a mesma
estatura que B, como vemos aqui não há nenhum erro na execução, há um erro é sobre o objeto
atingido pelo facto que se quer consumar.

Exemplo 2: A quer matar o cão do vizinho, e chega-se à casota do cão e dispara 2 tiros, mas o vulto
que lhe parecia o cão do vizinho não o é, mas é sim o filho mais novo do vizinho que gatinhava
dentro da casota. De novo, aqui não há um erro na execução, o agente atinge de facto o vulto que
está ali, pensando que é o cão, quando na realidade é o filho do vizinho.

Temos de distinguir entre os objetos que são tipicamente idênticos, em que o há uma irrelevância
do erro e um crime doloso consumado.

Exemplo 1 (supramencionado): Há uma identidade típica, entre o B e o C, e, portanto, nestes


casos o erro é irrelevante, e o agente responde pelo crime doloso consumado. O Crime de homicídio
diz “quem matar outra pessoa” e não “quem matar C ou Y”.

Por outro lado os objetos tipicamente diferentes, se se tratar de um erro que conduz o agente a
praticar um tipo de crime, diferente daquele que projetou, a situação já é bastante diferente. Aqui
não exista entidade típica dos objetos.

O que está em causa aqui são dois tipos de crimes diferentes. Uma coisa é o crime de dano, previsto
no artigo 212º que pune a destruição de coisa alheia (in casu, o cão é uma coisa/ animal alheia).
Mas acaba por matar é uma criança, cometendo um homicídio.

O regime aqui pode ser o facto de haver um erro sobre o elemento típico de matar outra pessoa,
o agente não representa que quer o resultado da morte da criança, mas sim do cão. E, portanto,
exclui-se o dolo em relação ao homicídio, e pode-se, sim, incluir a negligência em relação ao
homicídio.

— Consequências do erro

As consequências do erro são a exclusão do dolo, como se afirma nos termos do artigo 16º do CP:
“O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo
conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da
ilicitude do facto, exclui o dolo”.

A exclusão do dolo significa que o agente não é punido? Não. A exclusão do dolo só significa que o
agente não pode ser punido pelo crime doloso, mas subsiste o crime por negligência, como
disposto no artigo 16º/3 do CP.

Marisa Branco 148


Direito Penal I

2.4. O Momento volitivo do dolo — As modalidades de dolo

Aqui iremos abordar a vontade de praticar um facto. Vamos abordar várias modalidade dos dolo,
que estão descritas no artigo 14o.

— DOLO DIRETO OU INTENCIONAL

Irrelevância dos motivos ou fins mediatos


São aqueles casos que não representam grandes dificuldades de entendimento, o agente
quer praticar e pratica o facto.


Exemplo: A quer vingar-se de B e incendeia-lhe o carro, temos aqui um caso de crime doloso
consumado, cometido com dolo direito, o agente representa e quer praticar o facto.

Nota: que é importante ter em atenção a distinção entre Dolo e Finalidade do agente.

Exemplo do Dr. Figueiredo Dias: O agente mata o segurança do Banco porque quer roubar o
Banco – a finalidade ultima deste homicídio é roubar o Banco, mas isso não afasta que exista Dolo
Direto perante o homicídio do segurança, mesmo que a finalidade da sua ação vão para além disso.

— DOLO NECESSÁRIO


Aqui temos uma representação do facto como consequência lateral e inevitável da ação.

No dolo necessário, o agente não dirige a sua ação à prática daquele facto, mas sabe que
necessariamente esse facto vai ocorrer. A sua ação não é orientada para o cumprimento de um
certo facto, contudo, ele sabe que isso vai acontecer em virtude do facto que efetivamente quer e vai
praticar.

Exemplo: Suponhamos que A quer matar o seu inimigo, que vai num avião, coloca uma bomba no
avião para causar a morte do seu inimigo, mas causa, também, a morte de todas as pessoas que vão
no avião. Aqui existe Dolo Direto, ele quer e representa a morte daquela pessoa especifica, e em
relação às outras pessoas, que também se encontravam no avião, atua com Dolo Necessário.

— DOLO EVENTUAL


A representação do facto como consequência possível da ação e conformação.

Esta é a forma mais difícil de dolo, dado que até aqui não temos grande problema na identificação
dos casos.

O problema do Dolo Eventual, começa, desde logo, porque não existe consenso em relação à
definição. É uma definição mais fluida, mais discutida, que já teve várias formulações. Em segundo
lugar, coloca-se o problema do dolo eventual ser uma categoria de fronteira, ele encontra-se
numa certa sobreposição da negligência inconsciente.

Isto, torna, extraordinariamente importante, do ponto de vista prático a distinção entre o dolo
eventual e negligência consciente.

No dolo eventual, o agente sabe que o facto pode ocorrer e, segundo a nossa lei, conforma-se com
essa realização.
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Direito Penal I

A distinção entre dolo eventual e negligência:

(a) O problema: a sobreposição parcial das duas figuras.


Atua com dolo eventual ou atuar com consciência consciente tem efeitos totalmente diferentes, no
que toca à praticabilidade de responsabilidade criminal.

Por exemplo, todos os crimes dolosos são puníveis mas raramente a lei pune os crimes negligentes.
Se houver negligencia há uma grande probabilidade que a pessoa nem seja punida.

Também as penas previstas para os crimes dolosos são incomparavelmente mais graves do que
para os crimes negligentes. O crime negligente é punível com uma prisão até 5 anos e o homicídio
simples e doloso tem no mínimo 8 anos.

Há um problema neste domínio, dado que o elemento intelectual de ambos é igual. Em ambos os
casos, o agente representa a possibilidade de o facto preencher um tipo de crime.

Mas no momento volitivo , de acordo com a lei, já temos uma distinção:


• No dolo eventual, o agente conforma-se com a realização do facto;


• Na negligencia consciente, o agente confia que o facto não se vai produzir.

Há varias teorias que procuram limitar as figuras, e para que possamos ter mais certeza na distinção
entre umas e outras.

(b) Teorias da Probabilidade — Críticas

Haverá dolo eventual se o agente representou aquele facto como provável ou muito provável. Se
pelo contrário o agente representou o facto como pouco provável então haverá negligência
consciente.

Críticas:

• Esta teoria utiliza um critério que não nos diz muito do posicionamento do agente perante o
facto, e da conformação ou não perante o resultado. Saber se o facto era provável ou não, é um
juízo de uma outra natureza. A probabilidade de que aqui se fala é a de que o agente representou,
essa é que importa ao juiz. 


• Os resultados a que conduz não são particularmente brilhantes, porque, na verdade, o Dolo
ou a negligência, aqui, vão depender de capacidades do agente de prever a probabilidade de
um facto. Aquele agente que não tem noção das coisas só pode ser punido a título de negligência,
mas, pelo contrário, aquele agente mais cuidadoso, será punível a titulo de dolo eventual.

“Esta teoria não capta suficientemente a distinção entre dolo eventual e negligencia consciente”,
refere o Dr. Caeiro.

(c) Teorias da Aceitação — Críticas

São as teorias que procuram retratar a distinção com a base da aceitação.

Marisa Branco 150


Direito Penal I

Haveria dolo eventual quando o agente representasse a possibilidade de o facto ocorrer o aceitasse.
Haveria negligência consciente, quando o agente recusasse, intimamente, a produção do facto.

Há aqui uma crítica a apontar. Quando o agente aceita a produção do facto, isto já não é dolo
eventual, é dolo direto, se o agente diz: “Eu posso atropelar alguém ao conduzir desta forma e
aceito esse facto”, na realidade, estamos perante dolo direto.

Isto não capta o cerne da distinção, e por isso mesmo as teorias da aceitação não devem ser
adotadas, porque acabam por nos remeter para uma situação que já é abrangida pelo dolo direto.

(d) Teorias da Conformação – A fórmula da Dupla negativa do Dr. Eduardo Correia

O Dr. Caeiro revela alguma simpatia por esta teoria.

Haverá dolo eventual se o agente representar o facto como possível e não confiar em que o facto
não se vai produzir, daí a dupla negativa. Ele sabe que pode atropelar alguém mas não confia em
que o facto não se vai produzir, atua sem confiar em que o facto não se vai produzir.

Ao contrário, na negligência consciente, o agente representa o facto como possível, mas como a
nossa lei diz, confia que não se vai produzir. O agente sabe que pode atropelar alguém, mas
precisamente porque é bom condutor e é de madrugada, ele confia que o facto não se vai produzir

A ideia de risco, aqui é muito importante, desde logo para delimitar os casos em que o agente nem
se quer toma o risco em conta, e são caso de clara negligência.

Aqui que fundamento a distinção entre o dolo e negligencia, acaba por se o posicionamento do
agente na ordem jurídica. A confiança é só um instrumento/elemento imediato que nos permite
aceder a essa atitude.

Todas estas doutrinas não são satisfatórias. O Dr. Caeiro mantém-se fiel àquilo que era a Lição do
Dr. Figueiredo Dias do passado, que é o seguinte: Talvez a grande distinção entre Dolo eventual e
Negligência inconsciente não se alcance ao nível do tipo de ilícito, mas apenas ao nível da culpa.

O que está verdadeiramente na base da criação desta figura do dolo eventual, como crime doloso, é
a atitude de indiferença perante a ocorrência do facto.

(e) De jure condendo - a criação de uma terceira modalidade da imputação subjetiva: a


temeridade

Esta é uma proposta que o Dr. Figueiredo Dias alude nas lições.

Esta pretende criar uma 3a modalidade de imputação subjetiva, que seria a temeridade. Isto levaria
no fundo a eliminar o dolo eventual e negligencia consciente.

Isto não existe no nosso ordenamento.

2.5. Conexão material e temporal entre o dolo do tipo e o facto

Esta conexão material significa, que o agente tem quer atuar com dolo em relação a determinado
facto, ele tem que representar e querer determinado facto concreto. O Dolo tem que referir-se a um
determinado facto retratado num tipo de crime. Isto serve para excluir o dolo geral (“eu quero matar
pessoas”).
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Direito Penal I

— O DOLUS ALTERNATIVUS

Isto significa, que o agente representa a prática de um facto, sabendo que só vai cometer um deles,
mas tendo noção que há outros tantos possíveis. E nesses casos devemos continuar a afirmar a
conexão material.

Exemplo: Suponha-se que, determinado agente tem um diferendo muito grave com a Família dos
vizinhos, a certa altura num acesso de fúria vê que existe uma reunião familiar dos vizinhos, pega
na espingarda e dá 2 tiros para dentro da casa dos vizinhos que pode matar um homem, ou crianças,
etc., na verdade, acerta um dos tiros num dos membros da família, deve-se afirmar o Dolo ou não?
O Agente sabe que pode acertar num deles, mas ele não representa intenção especifica em matar a
sogra ou o filho mais novo. Aqui devemos afirmar o Dolo alternativo, ele quer qualquer um dos
factos possíveis de ocorrência.

— IRRELEVÂNCIA DO DOLUS ANTECEDENS E DO DOLUS SUBSEQUENS


É preciso também que haja uma conexão temporal entre o dolo do tipo e o facto cometido. Isto
serve para excluir os casos de dolus antecedens e casos de dolus subsequens.

Há certos casos que o agente tem o projeto de cometer certo crime, mas, no momento em que o
facto ocorre, a ação que ele pratica não realiza esse dolo - os casos de dolus antecedens.

Exemplo: Alguém há muito tempo que quer matar o seu inimigo, e anda a projetar essa morte. E
um dia via na rua a conduzir e inadvertidamente porque vai distraído a mandar mensagens no
telemóvel, atropela o inimigo e mata-o. Este é um caso de Dolus antecedens e neste caso não há um
crime doloso porque não existe uma conexão temporal entre o dolo e o facto.

O mesmo acontece, com os casos de Dolus subsequens, quando alguém pratica um facto sem dolo
no momento em que o pratica e depois adere intimamente por ele ter acontecido.

Suponhamos o caso supramencionado: o agente não tinha previsto matar o inimigo daquela
maneira e naquele momento, mas quando acontece pensa “Finalmente, me vi livre dele”. Aqui, o
agente adere ao facto depois de ele estar praticado, e também aqui não existe crime doloso
porque falta a conexão temporal entre o dolo e o tipo de facto

3. Elementos subjetivos da ilicitude

Note-se que estes elementos não se confundem com o Dolo.

3.1. Distinção em relação ao dolo

Artigo 203º CP: “Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa,
subtrair coisa móvel ou animal alheios, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de
multa”.

Qual é o tipo objetivo aqui? Subtrair coisa móvel alheia. E qual é o tipo subjetivo? Tipo subjetivo
doloso, que para o agente atuar com dolo tem que querer e representar, que está a subtrair coisa
móvel alheia.

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Direito Penal I

3.2. Intenções

A intenção de apropriação para si ou para outra pessoa é um elemento subjetivo mas não pertence
ao dolo, porque não se confunde com a representação e vontade de praticar o facto típico. Só que o
legislador neste casos não se limite a punir quem de apropria de coisa alheia é preciso que a pessoa
atue com intenção de se apropriar.

Portanto, os elementos subjetivos da licitude estreitam/diminuem o campo de aplicação de um


determinado tipo de crime.

Exemplo: O aluno sai da sala, e deixa um CP na sala, o Professor pega no CP, porque até nem
trouxe o dele, e leva-o para o seu gabinete, mas com intenção de deixar o CP nos perdidos e
achados no dia seguinte para que o proprietário viesse recolher o seu CP, o Professor não tinha
intenção de se apropriar do CP, e, portanto, não comete, p.e., nenhum crime de furto.
Estes elementos subjetivos devem ter por função apenas, diminuir o campo de aplicação do tipo de
crime, e não fundamentar o desvalor do Crime.

Exemplo: Hoje em dia na Lei de combate ao terrorismo existe um crime que diz que quem viajar
ou tentar viajar para país distinto ao da sua residência com a intenção de nesse país vir a cometer
crimes de terrorismo ou a aderir a uma organização terrorista, é punido com pena de X.

Qual é o problema aqui? É o exato exemplo de como não se deve usar os elementos subjetivos do
ilícito, porque, do ponto de vista, do tipo objetivo a conduta é totalmente neutra/irrelevante.

Neste caso, no crime de terrorismo o desvalor do crime assenta, exclusivamente, no momento


subjetivo, na intenção do agente. Isto é típico não de um Direito Penal do facto, mas sim de um
Direito Penal do Agente e deve ser evitado.

3.3. Outros elementos subjetivos e a sua difícil distinção dos elementos da culpa

Há elementos que surgem nas normas e que nem sempre é fácil distingui-los de elementos
caracterizadores da culpa, p.e., quando se diz “Quem atuar este crime com motivo torpe ou fútil”,
isto não são verdadeiros elementos subjetivos, mas fatores que caracterizam uma culpa especial.

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