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TEXTO N.

º 1

TÍTULO 1: O DIREITO PENAL E SUA CIÊNCIA NO SISTEMA JURÍDICO


ESTADUAL

1.º CAPÍTULO: O DIREITO PENAL EM SENTIDO FORMAL

I. O Conceito de Direito Penal

1. Definição (objecto do direito penal)

Não é fácil conhecer o fenómeno criminal em toda a sua amplitude; mas a história
dá-nos notícia de que ele sempre existiu; houve até quem tivesse defendido que o crime
seria um fenómeno normal na sociedade.
A definição do conceito de crime também conheceu uma longa trajectória e do
ponto de vista “natural” não se conseguiu chegar a nenhum entendimento. Assim, para
se evitar o arbítrio, ou seja, evitar que qualquer fenómeno fosse considerado crime,
optou-se por uma perspectiva normativa ou jurídica e, com ela a designação direito
penal já que foi a essa disciplina que coube fazer a consideração jurídico-normativa do
fenómeno criminal. O direito penal passou a ser entendido como o conjunto de normas
jurídicas que têm por objecto a definição dos crimes e a determinação das penas que
lhes corresponde1.
Simplesmente em finais do século XIX, ao lado das penas, surgiram as medidas de
segurança e, ao agente de um crime passou a poder ser aplicada ao mesmo tempo, uma
pena e uma medida de segurança, o que se denominou, sistema dualista, por
contraposição ao chamado sistema monista em que apenas se aplicava ao agente de um
crime uma única medida ou consequência jurídica, ou seja, uma pena ou uma medida


* As referências que ao longo do texto forem sendo feitas ao Direito Penal Português devem-se, por um
lado, ao facto do Direito Penal Angolano actualmente em vigor, ter ainda como fonte aquele sistema
jurídico e, por outro, o das lições seguidas serem de uma Universidade Portuguesa. Há ainda que
considerar a proximidade dos sistemas jurídicos, por serem da mesma família jurídica, a Família
Romano-Germânica, o que representa uma certa tradição que não pode sem mais ser afastada. Esta
consideração, não invalida o recurso que, sempre que se mostrar necessário e conveniente, se fará a
outras ordens jurídicas sobretudo da mesma família jurídica.
1
DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal, 1975, pp. 3 e 4.

1
de segurança sendo que, esta última, quando fosse privativa da liberdade era apenas
aplicável aos inimputáveis2.
Em virtude dessa dupla categoria de efeitos jurídicos, a designação direito penal,
tornou-se demasiado restritiva. Talvez tivesse sido melhor dar relevo ao conjunto dos
pressupostos de que a pena depende, que é o crime e denominar-se a cadeira de direito
criminal do que ficar-se confinado à pena que é, afinal, apenas uma das consequências
jurídica.
A verdade é que as medidas de segurança são aplicadas para comportamentos que
não são realizados com culpa, ou melhor, comportamentos tomados em consideração
independentemente de culpa. Mas se a culpa é elemento essencial do conceito de crime,
então o direito das medidas de segurança não pode ser criminal e assim as designações
direito penal e direito criminal poderiam até ser consideradas equivalentes.
Porém, de um ponto de vista formal, é preferível designar a nossa disciplina, a nossa
ciência, direito penal porque por um lado, o diploma que prevê os crimes e trata a sua
disciplina chama-se Código Penal e, por outro, oficialmente o nome escolar utilizado
sempre foi Direito Penal3.

2. Antecedentes da história do conceito

Foi a partir do movimento da codificação, século XIX, que em países como a


Alemanha, França e mesmo Portugal a designação de direito penal ganhou
preponderância. Anteriormente, mesmo com a utilização frequente de designativos
“poena” originário do latim e “poine” proveniente do grego, a designação preferida foi
sempre direito criminal. Essa situação, em Portugal e consequentemente em Angola
(por razões históricas ligadas à situação de colónia a que Angola esteve submetida) foi
reforçada pela entrada em vigor no sistema português da Reforma Prisional de 28 de
Maio de 1936, Decreto-Lei 26642 e das medidas de segurança introduzidas em 1892 e
1896 (que incluíram a deportação de delinquentes de difícil ou tardia corrigibilidade,
vadios, mendigos e equiparados).


2 DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal, 1975, p. 4
3
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal: questões fundamentais,
1996, p. 6

2
Provavelmente, por virtude da introdução de todos esses diplomas, bem como da
reforma da Faculdade de Direito em 1945 pelo Artigo 3.º do Decreto-Lei 38/450, a
nomenclatura voltou a ser alterada para Direito Criminal. Mas a reforma da Faculdade
de Direito de 28 de Setembro de 1972 pelo Decreto-Lei 364, voltou a designar Direito
Penal. Esta foi a última designação e assim a adoptamos.

5. Conclusão

No fundo, em última análise, e não apenas de uma perspectiva formal mas de um


ponto de vista teleológico e funcional, o designativo Direito Penal, merece preferência,
se bem que o melhor seria Direito das Penas e das Medidas de Segurança.
Todavia, o importante é verificar que neste ramo de direito tudo se resolve em
função de uma consequência jurídica que se aplica – pena ou medida de segurança; e,
ainda, que se façam os maiores esforços para se definir materialmente o crime, a
verdade é que um preceito legal só entrará a fazer parte do nosso ramo de direito se, e
quando, para se sancionar um comportamento antijurídico que ele preveja, for prescrita
uma pena ou uma medida de segurança criminais.
Estes são os instrumentos que determinam a pertinência da matéria do ramo do
direito que estamos a estudar. Tudo isto é importante quer do ponto de vista dogmático
quer científico. Todo o direito penal e sua ciência devem ser perspectivados a partir de
valorações político-criminais imanentes ao sistema. Essas valorações encontram a sua
expressão nas consequências jurídicas próprias deste ramo do direito. Todo o direito
penal e sua ciência, orientam-se para o resultado e, a partir do resultado, as
consequências jurídicas devem ser definitivamente fixadas.

6. Direito Penal e ius puniendi

Podemos assim definir o direito penal como o conjunto de normas jurídicas que
ligam certos comportamentos humanos – os crimes – a consequências jurídicas que são
privativas deste ramo de direito. Destas consequências jurídicas, quer do ponto de vista
quantitativo quer qualitativo (social), a mais importante é a pena que só pode ser
aplicada ao agente que agir com culpa.
Simplesmente, ao lado da pena há outras consequências jurídicas – as medidas de
segurança – que se impõe não pela culpa do agente, mas pela sua perigosidade.

3
Definido nestes termos, o direito penal deve ser entendido em sentido objectivo, ou
seja, ius poenale. Dele distingue-se o direito penal em sentido subjectivo, ius puniendi,
que significa poder punitivo do Estado, resultado da sua competência para considerar
crime, certos comportamentos humanos e ligar-lhes sanções específicas. Assim, o
direito penal objectivo ou ius poenale é emanação do ius puniendi.
Contudo, é importante salientar que o valor heurístico do conceito direito penal
subjectivo é diminuto, sobretudo por causa do apelo que faz ao poder soberano do
Estado. Isto pode levar a que se interprete que esse poder porque soberano é ilimitado.
Hoje, ultrapassada que ficou a concepção positivista de Estado Liberal para o qual o
legislador não tinha limites no seu poder, já não se pode fazer uma tal interpretação. Há
limites materiais e juridicamente impostos – veja-se a dignidade da pessoa humana
constitucionalmente consagrada – a esse poder do Estado de criminalizar condutas. Por
outro lado, também não há uma imposição de criminalização, ou seja, não há uma
obrigação imposta ao Estado para criminalizar condutas. Os limites da criminalização
são impostos por necessidades de política criminal4.

II. O âmbito do Direito Penal

1. Direito Penal substantivo, Direito Penal executivo e Direito Processual


Penal

Fala-se muitas vezes em direito penal em sentido amplo (direito penal total) ou em
direito penal em sentido estrito (também designado por direito penal geral).
O Direito penal em sentido amplo ou total, também chamado de ordenamento
jurídico-penal, abrange para além do direito penal geral (substantivo), o direito
processual penal (adjectivo ou formal) e o direito de execução das penas e das medidas
de segurança ou direito penal executivo5.
Quando nos referimos ao direito penal em sentido estrito, ou simplesmente direito
penal, queremos falar do também direito penal geral, substantivo, material.


4
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 7 a 9
5
DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Processual Penal, I, 1974, pp. 27 e ss.

4
1.1. Esta distinção, que Beling designou distinção de princípio entre os “três sectores
de um idêntico ordenamento jurídico”, não apresenta do ponto de vista teórico
dificuldades de maior. Assim, o direito penal geral, substantivo, tem como objecto
de estudo a definição dos pressupostos do crime e das suas concretas formas de
aparecimento; a determinação quer em geral como em espécie das consequências
jurídicas que se ligam a esses pressupostos (penas e medidas de segurança), bem como
das formas de conexão entre os referidos pressupostos e as consequências jurídicas.

Ao direito processual penal, adjectivo ou formal, cabe a regulamentação jurídica dos


modos de realização prática do poder punitivo estadual, mais concretamente a
investigação do crime e a apreciação (valoração) judicial do acusado da prática do
crime, o agente.

O direito penal executivo, ocupa-se da regulamentação jurídica da concreta execução


da pena ou da medida de segurança decretada pelo tribunal na condenação proferida no
processo.

1.2. Se de um ponto de vista teórico foi fácil distinguir entre estes ramos do direito
penal total, já de uma perspectiva prática jurídica não é tão fácil determinar as normas
que em concreto pertencem a cada um dos institutos jurídicos desses ramos do direito.
Com efeito, muitas dessas normas e institutos têm uma dupla natureza, ou seja, são de
natureza substantiva e também adjectiva ou processual e, por isso, exprimem uma
relação de “mútua complementaridade funcional”. No direito penal angolano, esses
institutos vêm previstos no Código Penal, veja o artigo 125.º que prevê a prescrição e
a amnistia; o indulto no artigo 126.º. Também aqui têm natureza substantiva e
processual. Por exemplo, a queixa e a acusação particular são institutos do direito
processual penal.
A distribuição das normas por diferentes diplomas deve-se ao facto de, por um
lado, a regulamentação directamente relativa à determinação do conteúdo da sentença
de condenação e, por isso, a concreta “execução” da sanção criminal contida na
sentença ter carácter substantivo e, por outro, as questões relativas à “exequibilidade”

5
ou efeito executivo da sentença, melhor dizendo, o controlo geral da execução ter
natureza processual, adjectiva6.
Com efeito, a extinção da responsabilidade criminal tem natureza substantiva e por
isso vem prevista no Código Penal; a prescrição do procedimento criminal e da pena, a
amnistia, o perdão vêm regulados no artigo 125.º. Já o indulto está previsto no artigo
126.º.
A queixa e a acusação particular têm ainda e apenas natureza processual, adjectiva,
o que significa que vêm reguladas no Código de Processo Penal. Contudo, em algumas
disposições da parte especial do Código Penal, veja-se § único do artigo 359.º e § único
do artigo 360.º há disposições de natureza processual, o que reafirma o que ficou dito
acerca da dupla natureza ou da relação de complementaridade funcional que se
estabelece entre os dois ramos do ordenamento jurídico-penal. A execução das penas e
das medidas de segurança, ou seja, o direito penal executivo tem também natureza
substantiva, veja-se os artigos 113.º a 124.º do Código Penal. Isto permite reafirmar a
relação de complementaridade funcional que se estabelece entre o direito penal, o
direito processual penal e o direito penal executivo.
Contudo e embora as dificuldades de determinação do carácter substantivo ou
processual destas normas é importante verificar que para determinados efeitos a
distinção é relevante. A atribuição das normas ou institutos a qualquer dos ramos do
ordenamento penal referidos (direito penal, direito processual penal e direito penal de
execução) não pode ser feita numa base apenas lógico-formal e conceptualista, deve,
ao invés, pautar-se por considerações teleológicas, axiológico-normativas e político-
criminais, decisivas, no quadro de um sistema funcional e racional.

2. Direito Penal parte geral e suas componentes

O direito penal em sentido estrito, ou direito penal geral ou somente direito penal,
é o que está contido no Código Penal e compõe-se de uma parte geral e uma parte
especial. Na parte geral, definem-se os pressupostos de aplicação da lei penal, os
elementos constitutivos do conceito de crime e as consequências que dos crimes


6
Veja-se DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito Penal II Português – As consequências jurídicas do crime”
§ 1056 e ss. Ainda do mesmo autor “Direito Processual Penal”, p. 28 e “Direito Processual Penal,
Lições”, 1988-89, pp. 5 e ss.

6
derivam, ou seja, as penas e as medidas de segurança7. A parte especial contém os
crimes singulares e as consequências jurídicas que em concreto se aplicam à prática de
cada um deles.

2.1. A parte geral, produto da abstracção das concretas espécies de crime, de formas a
determinar quais são aqueles elementos que são comuns a todos eles e assim se
encontrarem as consequências jurídicas a eles aplicáveis divide-se, por sua vez, em:
fundamentos gerais do direito penal e doutrinal geral do crime ou construção
dogmática do crime8.
Nos fundamentos gerais do direito penal estuda-se, numa primeira parte, a
determinação do lugar do direito penal no sistema jurídico, a função do direito penal no
sistema social e os seus limites, as fontes e o âmbito de vigência temporal e espacial do
direito penal. Na segunda parte, estuda-se a doutrina geral do crime, ou seja, os
elementos constitutivos do conceito de crime, as formas básicas gerais, particulares ou
especiais do aparecimento do crime. Veja-se artigos 1.º a 53.º e 54º a 129º,
respectivamente, do Código Penal Angolano de 1886; e artigos 1.º a 7.º e 8.º a 38.º,
respectivamente, do Anteprojecto do Código Penal.

2.2. A nossa atenção virar-se-á, nesta primeira fase, para a parte geral e, aqui, a relativa
aos fundamentos gerais e à doutrina geral do crime. Não se tratará dos direitos penais
especiais (direito penal militar, direito penal dos menores, direito penal internacional,
direito das medidas de segurança, direito de execução das reacções criminais, também
por alguns designado direito penitenciário, direito penal do tráfego comercial, direito
penal das sociedades, fiscal, financeiro, económico, marítimo, médico, da imprensa,
etc.) que fazem parte do direito penal em sentido amplo ou direito penal total.

Trataremos o chamado direito penal de justiça, clássico ou principal que é aquele


que se contém no Código Penal. Mas não deixaremos de fazer uma breve abordagem
sobre o direito penal acessório, secundário ou económico-social que, embora


7
A vigência em Angola do Código Penal de 1886 não invalida esta composição. Contudo, uma leitura
atenta das diferentes disposições e a sua comparação com o Código Penal Português em vigor permite
compreender as mudanças doutrinais na forma e no conteúdo de importantes institutos e normas. Para
melhor apreensão é de toda a utilidade consultar, também, o projecto da Parte Geral do Novo Código
Penal da República de Angola, cujo espírito já se afasta da filosofia do Código de 1886.
8
A designação doutrina geral do crime foi anteriormente conhecida por Teoria Geral da Infracção Penal.

7
específico, e contido em legislação extravagante, é parte integrante pelo menos no que
à doutrina geral do crime diz respeito, do direito penal geral. De resto, esse direito
penal, pela sua teleologia, apresenta-se com um alto valor pedagógico e de contraprova
das soluções previstas para o direito penal de justiça.

8
TEXTO N.º 2

2.º CAPÍTULO: A LOCALIZAÇÃO DO DIREITO PENAL NO SISTEMA


JURÍDICO

I. Direito Penal intra-estadual e direito internacional penal

Até hoje, o direito penal é, essencialmente, direito intra-estadual porque a legislação


que constitui a sua fonte é de produção nacional, estadual e são os órgãos nacionais que
o aplicam. Contudo, na última década do Sec. XX, o direito internacional conheceu um
grande desenvolvimento em matéria criminal (penal). E nele podemos encontrar muitas
normas de direito internacional de conteúdo jurídico-penal. Vejam-se: a Declaração
Universal dos Direitos do Homem; o Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos.
Para além destes há ainda a considerar: a Convenção para a Prevenção e Sanção
do Delito de Genocídio; a Convenção contra a Tortura e outras Penas ou
Tratamentos Cruéis e Degradantes; a Convenção contra o Tráfico Ilícito de
Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas; Convenções sobre Extradição,
etc., estes ao nível da ONU e a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos
ao nível da União Africana, para além de tratados e convenções bilaterais e multilaterais
provenientes da SADC. Todos eles portadores de normas cujo conteúdo jurídico é de
grande relevância para o direito penal.
É claro que estes instrumentos internacionais precisam de ser ratificados, pois só
mediante a realização desse procedimento, o Estado fica obrigado a editar normas
internas para dar corpo a essa ratificação. Ás normas de direito internacional penal
que existem na preocupação de muitas agências internacionais, não subjaz a “realidade”
necessária à sua vigência, porque não são suportadas por uma instância supranacional
dotada de ius puniendi.
Alguns princípios de direito internacional geral ou comum podem servir como lei penal
incriminadora 9 . Esta afirmação, põe em causa o princípio clássico do direito


9
O Artigo 13º da CRA estabelece, “1. O direito Internacional geral ou comum, recebido nos termos da
presente Constituição, faz parte integrante da ordem jurídica angolana. 2. Os tratados e acordos
internacionais regularmente aprovados ou ratificados vigoram na ordem jurídica angolana após a sua

9
internacional, segundo o qual o direito internacional, só podia impor deveres e conceder
direitos aos Estados e aos poderes públicos estaduais e nunca às pessoas singulares ou
cidadãos.10 Assim, tanto as normas como os princípios de direito internacional devem
vigorar na ordem jurídica angolana – ao lado ou mesmo acima das leis ordinárias.
A República de Angola participou nos trabalhos de criação de um Código Penal
Internacional e do Tribunal Penal Internacional. Este, por se pretender que seja dotado
de ius puniendi, terá que poder ser imposto às ordens jurídicas internas nacionais,
mesmo no caso de os não terem aceite ou reconhecido11.

II. O Direito Penal como parte do direito público

O direito penal é direito público por excelência; a relação que se estabelece entre o
Estado soberano, dotado do seu ius puniendi e o cidadão é de uma perfeita relação de
supra-infra ordenação. Em nenhum outro ramo de direito a relação entre a função de
preservação dos interesses e condições fundamentais à subsistência da comunidade e o
poder estadual, poder de aplicar consequências jurídicas tão pesadas tanto para a
liberdade como para o património, é tão nítida. Em alguns casos (alguns países) essas
consequências chegam a atingir a vida e o corpo dos cidadãos.


publicação oficial e entrada em vigor na ordem jurídica internacional e enquanto vincularem
internacionalmente o Estado angolano”.
10
O que ficou dito na nota anterior é expressão do princípio da legalidade nullum crimen nulla poena
sine lege.
11
Veja-se DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal, Questões
Fundamentais, 1996, p. 16, como diferentemente se passam as coisas em Portugal. Aqui, onde pela teoria
da adopção, Gomes Canotilho e Vital Moreira na anotação n.º 1 ao artigo 8.º da CRP, entendem que o
direito internacional não se “transforma em direito interno”. Essa doutrina não se modifica mesmo
quando em causa estão problemas relacionados com a integração europeia. Até ao momento, não existe
um direito penal comunitário ou supranacional que seja directamente aplicável aos Estados-membros.
Por outro lado, também não se pode reconhecer às instâncias ou órgãos comunitários um verdadeiro ius
puniendi positivo, quer dizer a legitimidade para, sem intermediação do legislador penal interno impor a
punibilidade de uma conduta. Qualquer sanção criminal que a Comunidade Europeia pretenda impor,
terá que fazê-lo pela via da assimilação e harmonização, ou seja, no contexto, dentro dos limites e no
quadro do direito penal nacional. Já no que se refere ao ius puniendi negativo, que é a legitimidade para
impor normas que reduzam ou façam recuar o direito penal estadual, o direito comunitário prevalece
sobre o nacional e, por força do princípio da unidade da ordem jurídica – “o legislador nacional não
poderá qualificar como penalmente ilícitas condutas exigidas ou autorizadas pelo direito comunitário.”
No dizer de Cuerda Riezu “a eficácia do ordenamento comunitário para “constituir-se em legislador
penal negativo dá lugar correlativamente a uma obrigação para os Estados-membros que se analisa no
dever de não punir”. É importante, contudo, salientar que esta doutrina modificar-se-á caso venha a
aprovar o Código Penal Internacional e a ser criado o Tribunal Penal Internacional.

10
Por estes factos, a doutrina do crime como a dos seus efeitos jurídicos estabelece uma
conexão muito estreita com o direito constitucional e a teoria do Estado. Essa conexão
encontra expressão por um lado na específica natureza das sanções deste ramo do
direito – as penas e as medidas de segurança – que negam ou limitam fortemente os
direitos fundamentais das pessoas e, por outro lado, na necessidade de uma relação de
mútua referência entre a ordem axiológica (dos valores) jurídico-constitucional e a
ordem legal dos bens jurídicos que ao direito penal cabe tutelar.12
É claro que a esfera de actuação pessoal do cidadão – a sua autonomia, auto-realização
ou autopoiese (capacidade para se satisfazer, realizar-se a si mesmo) constitui um limite
à intervenção penal do Estado (veja-se o caso de temas como o acordo e o
consentimento13).
Porém, desde que se verifiquem os respectivos pressupostos, o ius puniendi estadual
surge como algo que já não cabe nos parâmetros da vontade dos particulares para passar
a ser uma coisa pública. Nesse sentido e considerando a importância prática e a
especificidade da elaboração teórica, o direito penal autonomizou-se do chamado
“direito público” e passou a constituir uma disciplina própria.14

III. O direito penal e os outros ramos do direito. Autonomia e dependência


do direito penal

Não é muito fácil determinar a exacta posição que o direito penal ocupa no contexto do
sistema jurídico estadual. Relativamente ao direito constitucional ficou já referido que
a relação é de dependência tal como a de qualquer outro ramo de direito ordinário. Mas
no que respeita a outros ramos do direito ordinário, particularmente o direito civil,
administrativo processual, que muitas vezes preveem “penas” – embora não de natureza
criminal – para violações às suas normas, a questão torna-se muito mais complexa.
Alguns autores defendem que aqueles ramos de direito é que criam a ilicitude e ao
direito penal caberia apenas uma função sancionatória dessas ilicitudes, o que o


12
O Artigo 28º da CRA estabelece que os preceitos constitucionais relativos aos direitos, liberdades e
garantias fundamentais são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
13
ANDRADE, Manuel da Costa, Consentimento e Acordo em Direito Penal, 1990 ...
14
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – Questões fundamentais,
1996, pp. 17 e 18.

11
transformaria num ramo de direito “dependente”, “acessório”, “subordinado” ou
“secundário”, face aos demais.
Outros consideram que o direito penal deve intervir com os seus próprios meios, mas
apenas como ultima ratio, ou seja, quando as sanções impostas pelos outros ramos do
direito se mostrassem ineficazes ou insuficientes15. Assim concebido o direito penal
estaria numa situação de dependência relativamente aos outros ramos de direito
“criadores de ilicitude”.
Mas Binding partindo da tese da unidade da ilicitude defendeu não existir uma ilicitude
específica do direito penal, do direito civil ou do direito administrativo. Em obediência
ao princípio da unidade da ordem jurídica, desde que uma acção viole um imperativo
jurídico qualquer, por essa acção, torna-se ilícita para qualquer ramo do direito16.

III. 1. A tese da unidade da ordem jurídica e consequentemente da unidade de todo o


ilícito, não é segura e pode conduzir a equívocos ainda que se fale do carácter
fragmentário e acessório do direito penal. É que a função do direito penal é a “protecção
das condições indispensáveis da vida comunitária”, podendo neste sentido considerar-
se subsidiária, fragmentária e hoc sensu acessória. Para efeitos dessa protecção, o
direito penal escolhe dentre os diferentes comportamentos ilícitos “aqueles que de uma
perspectiva teleológica representam um ilícito geral digno de uma sanção de natureza
criminal.”17
A tarefa de selecção tem que tomar em consideração valorações ético-sociais do
comportamento; por isso não se pode diluir no “delito geral de desobediência” a que
Binding se referia. A criminalização e a descriminalização são fenómenos inseparáveis
da evolução sócio-cultural. Contudo, eles dependem sempre, em última instância, da
teleologia do próprio direito penal, e das intenções político-criminais a ela subjacente;
nunca da forma como os outros ramos do direito fazem as suas valorações.


15
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal I, pp. 15 e ss.
16
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 19-20.
17
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 20. A este propósito COSTA ANDRADE em “A Dignidade Penal e a Carência de Tutela Penal
como referencia de uma Doutrina Teleológica Racional do Crime” in Revista Portuguesa de Ciência
Criminal, Ano 2, Fascículo 2, Abril/ Junho, 1992, pp. 173 e ss.

12
III. 2. Deste ponto de vista, o direito penal é autónomo e criador da sua própria ilicitude
que está ligada às suas específicas consequências jurídicas: “à especificidade da
consequência tem de corresponder se não logicamente, ao menos teleologicamente à
especificidade dos pressupostos (do Tatbestand, no sentido da Teoria Geral do Direito)
de que aquela depende, e antes de tudo a [própria] especificidade do ilícito (mas não só
dele, como também da culpa e dos restantes pressupostos da punibilidade).”18

III. 3. Qual o específico significado da “dignidade” da matéria penal? Esta é uma


matéria que respeita à função do direito penal que mais adiante se tratará. Contudo, e
de momento, interessa dizer que a qualificação de um ilícito penal representa o grau
máximo da contrariedade à ordem jurídica. Para efeitos do direito penal a única
conclusão que se pode retirar do princípio da “unidade da ordem jurídica” é a de que,
não pode ser ilícito penal aquilo que for lícito para a ordem jurídica geral, ou seja,
o que for lícito e, em consequência permitido para os demais ramos de direito. Já não
será correcto dizer-se que aquilo que é ilícito para a ordem jurídica geral, também o é
para o direito penal19.

III. 4. Conclusão
A autonomização do direito penal face aos demais ramos do direito tem tido
importantes consequências, sobretudo técnicas conceituais e de conteúdo tanto para o
direito privado como para o direito público. A tipificação dos ilícitos jurídico-penais
reclama maiores exigências do que a dos demais ramos do direito, ainda que os
conceitos utilizados sejam idênticos os similares. “(...) Nenhum conceito extra-penal
pode ser transposto para o direito penal, na parte incriminatória, sem que antes se tenha
determinado através de cuidada hermenêutica, se ele corresponde por inteiro à
intencionalidade e à teleologia específicas do ilícito jurídico-penal...”20.


18
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 21.
19
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 21-22.
20
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 22. O aprofundamento desta questão terá lugar quando se tratar da doutrina das causas de
justificação.

13
TEXTO N.º 3

3.º CAPÍTULO: A CIÊNCIA DO DIREITO PENAL21

I. Da “enciclopédia das ciências criminais” à “ciência conjunta do direito


penal”

I. 1. É indiscutível que o crime é um fenómeno de patologia social muito diversificado


que resulta não apenas de condicionalismos exógenos (externos sociais) como de
substractos endógenos (internos, individuais) inerentes à mais complexa realidade que
é, a realidade humana.
O que fica dito permite compreender que, durante o séc. XIX, quando a ciência ganhou
o seu verdadeiro estatuto, o crime se tenha constituído objecto de uma multiplicidade
de ciências. Antes de mais da ciência normativa do direito penal e depois das suas
disciplinas auxiliares: a filosofia, a história, a metodologia jurídico-penal e também das
chamadas ciências sociais e humana: a sociologia, a antropologia, a biologia, a
psicologia, a psiquiatria, a caracteriologia e a genética criminal. A este vasto conjunto
de disciplinas científicas, chamou-lhe Jiminez de Asúa a enciclopédia das ciências
criminais.
Para que se realize a compreensão científica da tarefa de aplicação do direito penal é
importante que, para além do conhecimento das normas jurídico-penais, se conheça
também do contributo das demais ciências criminais. Alguns autores pretenderam
assim considerar a dogmática jurídico-penal uma ciência interdisciplinar.22
Contudo, esta visão prejudica a teleologia e a funcionalidade que são próprias da
dogmática jurídico-penal que deve ser uma ciência de aplicação do direito, dotada de
pressupostos metodológicos específicos comandados por finalidades prático-
normativas autónomas.


21
De leitura obrigatória SEBASTIÃO, Luzia, Sobre o Tipo de Ilícito – contributo para uma aproximação
à evolução da doutrina penal contemporânea”, Edição da Faculdade de Direito da Universidade
Agostinho Neto, Lipo-Tipo, Luanda, 2006, p. 31 a 62.
22
Ciência em que se reúnem campos especiais e métodos diversificados com vista a um trabalho comum
mas capaz de coordenar correctamente os resultados parcelares especializados dentro de uma
consideração unitária nova do seu objecto global. Veja-se para mais desenvolvimentos DIAS, Jorge de
Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa “Criminologia: O homem delinquente e a sociedade
criminógena”, 1984, pp. 114 e ss.

14
Assim entendida a dogmática, as demais ciências criminais não serão mais do que
enciclopédia e por isso não poderão ter um estatuto diferente do de ciência auxiliar da
ciência estrita que é a dogmática do direito penal.

2. Até finais do séc. XIX a hoje dogmática do direito penal era a única ciência que
servia a aplicação do direito penal. Todavia, nessa altura, verificou-se que o estudo do
crime não se bastava com aquela ciência. Havia que definir estratégias de controlo
social: encontramo-nos assim no domínio da política criminal. Por outro lado, o
conhecimento empírico sobre a criminalidade e as suas causas mostrou-se também um
dado fundamental: daqui o surgimento da criminologia23.
Coube a Franz Von Liszt o mérito de na base das especiais relações que se estabelecem
entre os vários pensamentos sobre o crime, de criar o modelo tripartido que designou
de ciência conjunta do direito penal cuja tarefa relevaria para a aplicação do direito
penal e assim para a tarefa sócio-política de controlo do fenómeno criminal24.
A perspectiva de Franz Von Liszt não conseguiu impor-se e foram-lhe dirigidas críticas.
Assim, por exemplo, Karl Binding acusou Von Liszt de, com a sua teoria conjunta ter
abandonado o domínio firme da lei, do conhecimento da lei e da respectiva aplicação,
para penetrar em terreno movediço como o da política e das ciências naturais, por sinal
impedido aos juristas. Mas a ciência conjunta do direito penal não se perdeu e ao longo
do séc. XX, constituiu-se um ponto de referência obrigatório para uma compreensão
exacta e abrangente da ciência do direito penal em sentido estrito: a dogmática jurídico-
penal25.

II. A dogmática jurídico-penal, a política criminal e a criminologia no


contexto da ciência conjunta do direito penal

Depois que Von Liszt acentuou a ideia da ciência conjunta do direito penal, levantou-
se a discussão em torno do estatuto de cada uma dessas ciências e da relação que entre


23
Para mais desenvolvimentos sobre o surgimento da criminologia, veja-se DIAS, Jorge de Figueiredo
e ANDRADE, Manuel da Costa “Criminologia: O homem delinquente e a sociedade criminógena”,
1984, pp. 93 e ss.
24 DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 25.
25
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 25.; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas Básicos, 2001, pp. 3 e ss.

15
elas se deveria estabelecer. A definição de qualquer dessas questões ficou dependente
por um lado, da evolução dos pressupostos metodológicos e da compreensão do sentido,
do objecto e da função de cada uma delas no sistema social e, por outro, da evolução
da própria compreensão do sistema social no contexto de um Estado de direito.26
Assim, no Estado de direito formal (liberal-individualista) subordinado a esquemas
rígidos de legalidade, alheio “à valoração das conexões de sentido, dos fundamentos
axiológicos e das intenções de justiça material ínsitos nos conteúdos definidos através
daqueles esquemas” 27 , à política criminal cabia apenas a função de, a partir dos
conhecimentos recebidos da criminologia, dirigir ao legislador recomendações e
propor-lhes directivas com vista à reforma do direito penal.
Por isso é que Von Liszt, embora defensor de uma dimensão social do direito penal não
deixou de defender que no âmbito do direito penal em sentido amplo, a dogmática
jurídico-penal na sua compreensão, sistematização e aplicação das normas e dos
ensinamentos científicos ocuparia o primeiro lugar na hierarquia das referidas ciências
que fazem parte da ciência conjunta e, assim, “a dogmática jurídico-penal (o direito
penal) constituiria a barreira intransponível da política criminal”.
Esta afirmação significou por um lado que, num “Estado de direito, o princípio da
legalidade (o princípio nullum crimen nulla poena sine lege) constituía a fronteira
inultrapassável da punibilidade” e também a fronteira de todo o fenómeno criminal28.
Por outro lado, seria a dogmática penal a assinalar tanto à política criminal como à
criminologia o seu principal objecto. À dogmática penal caberia fazer a explicitação
sistemática das normas jurídico-penais. Assim entendido, aquelas duas ciências
(política criminal e criminologia) não poderiam ocupar outra posição que não fosse a
de ciências auxiliares do direito penal29.

No Estado social, caracterizado por ter atenuado as exigências de legalidade formal em


favor “da promoção e da realização das condições de desenvolvimento harmónico e
equilíbrado do sistema social”30, o social ganha predominância enquanto o jurídico fica


26
Para mais desenvolvimentos da perspectiva da Política Criminal, veja-se DIAS, Jorge de Figueiredo,
Revista da Ordem dos Advogados, 1983, p. 9; da perspectiva da criminologia, DIAS, Jorge de Figueiredo
e ANDRADE, Manuel da Costa, Criminologia, 1984, pp. 93 e ss.
27
DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas Básicos, p. 10
28
DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas Básicos, p. 10
29
DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas Básicos, p. 10
30
DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas Básicos, p. 11

16
relegado. Dogmática jurídico-penal e política criminal deixam de se relacionar entre si
para se relacionarem directamente com o sistema social. Assim, a política criminal e a
criminologia autonomizam-se completamente do direito penal e da sua dogmática.O
objecto da política criminal, para além de ser constituído pela infracção penal passa
também a integrar os fenómenos da patologia social, tanto da marginalidade como da
deviance31.
No contexto do Estado social, o jurídico não está separado do social, mas é um seu
subsistema e, porque a política criminal passa a relacionar-se directamente com o
sistema social, como já ficou dito, deixa de ser uma simples ciência auxiliar do direito
penal e da sua dogmática. Contudo, em vez de se ver acontecer uma relação de
colaboração entre elas, assiste-se a um como que virar de costas.
O jurista não dá a sua contribuição para a reforma penal, nem para o funcionamento
eficaz e efectivo do sistema social. Por seu lado, a política criminal, não mais influencia
a resolução dos problemas práticos normativos de aplicação do direito penal com os
conhecimentos que traz da criminologia. E, sempre que as proposições de política
criminal se dirigirem em sentido diferente daquele que o jurista considera legalmente
imposto, a solução de qualquer caso jurídico-penal concreto, não pode senão ser a de
abandonar qualquer conclusão político criminal que se mostre correcta e obedecer
àquela que leve a sua redução e integração no sistema jurídico-penal.
Os comandos político-criminais cederão sempre e ainda, perante as exigências da
dogmática jurídico-penal e a política criminal continua a ser uma ciência auxiliar do
direito penal, apenas “competente para a reforma penal”32

No Estado de Direito Material, caracterizado por ser um Estado democrático e social


que “mantém intocada a sua ligação ao direito e mesmo a um esquema rígido de
legalidade e se preocupa (...) com a consistência efectiva dos direitos, das liberdades e
das garantias da pessoa; mas que, por essa razão (...) se deixa mover, dentro daquele
esquema, por considerações de justiça na promoção e na realização de todas as
condições – políticas, sociais, culturais, económicas – do desenvolvimento mais livre


31
A deviance, ou desvio social, foi uma palavra criada pela criminologia norte americana mas que
rapidamente foi aceite para expressar todos os fenómenos de patologia social ou substancialmente
aparentados com a infracção penal.
32
DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas Básicos, p. 14

17
da personalidade ética de cada um”33, a função e tarefa da dogmática jurídico-penal
transforma-se.
Aqui, sobre o jurista recai a responsabilidade de procurar e encontrar a solução mais
justa para cada problema jurídico concreto da vida. Assim, uma questão metodológica
se levanta. Até então, era o sistema (jurídico, sistema do direito penal e sua dogmática)
que comandava. Agora, levanta-se a questão de saber “até onde o “pensamento do
problema |concreto da vida|” se pode introduzir no (ou mesmo se sobrepor ao)
“pensamento do sistema”. Ou seja, donde se deve partir na resolução jurídica dos
concretos problemas da vida? Do próprio problema para o sistema (jurídico-sistema do
direito penal e sua dogmática)? Ou do sistema para o problema?

O pensamento jurídico metodológico, do Estado de direito democrático e social


considera que no processo de aplicação do direito penal deve-se, em certo sentido,
atender ao pensamento do problema face ao pensamento do sistema.
Primeiro deve encontrar-se uma solução justa (aqui o justo tem a ver com considerações
éticas e sociais) do caso concreto e só depois essa solução deve ser integrada no sistema.
Assim, o sistema – do direto penal e da sua dogmática que, como referimos, no Estado
de direito formal, não atendia senão a considerações de ordem jurídico-positiva (o que
significa que considerações sociais e éticas não eram chamadas) e por isso,
metodologicamente, era um sistema fechado e apriorístico – passa a ser um sistema
aposteriorístico e aberto, onde as valorações éticas e sociais intervêm na justa resolução
do problema concreto da vida34.
Assim entendida a questão metodológica, a política criminal ganha uma posição de
autonomia e até de transcendência perante as restantes ciências, da ciência conjunta do
direito penal. Claus Roxin foi o autor que trouxe para a discussão este entendimento da
posição da política criminal e da função que ela desempenha no sistema do direito
penal. Por outro lado, a função da política criminal alarga-se, ou seja, para além de
relevar para a reforma da lei penal, a política criminal passa a ser também competente
para definir os limites últimos da punibilidade.
Contudo, a política criminal atinge as suas finalidades através do direito penal e, por
isso, tem que respeitar os respectivos princípios estruturais desse ramo de direito; daí

33
DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas Básicos, p. 15
34
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 29.

18
que Roxin tenha utilizado a máxima “o direito penal é a forma através da qual as
proposições de fins político-criminais se vazam no modus da validade jurídica”.

Por aqui se pode dizer que a política criminal ganha uma posição de topo no conjunto
da ciência conjunta do direito penal; mas há de sempre condicionar-se aos fundamentos
jurídico-políticos da concepção de Estado. A política criminal é assim trans-sistemática
(está para além do sistema) relativamente ao direito penal mas é intra-sistemática (está
contida no sistema) relativamente à concepção do Estado, imanente (inerente) ao
sistema jurídico-constitucional. As proposições de política criminal podem também ser
procuradas no quadro dos valores que fazem parte do consenso comunitário, mediado
ou “positivado” pela Constituição.
A partir daqui, pode parecer que se pretende introduzir uma ciência na outra. Mas como
diz Zipf, o que se pretende com essa construção é optimizar a colaboração entre a
dogmática jurídico-penal e a política criminal. E melhor do que uma unidade
sistemática como defendeu Roxin, Figueiredo Dias e Costa Andrade, defendem que
entre os dois campos deve existir uma unidade cooperativa ou unidade funcional.35
O modo como ficou estabelecida a relação entre a dogmática jurídico-penal e a política
criminal, permite compreender a relação entre a dogmática jurídico-penal e a
criminologia. Assim, no contexto de uma ciência conjunta do direito penal, a política
criminal passa a desempenhar a função de intermediário entre a criminologia e a
dogmática jurídico-penal.
De facto, uma relação directa entre a dogmática jurídico-penal e criminologia, sempre
se mostrou problemática e pouco útil sobretudo até aos anos 60. A partir dessa altura a
criminologia passou de uma ciência puramente explicativa (que procurava encontrar e
explicar as causas do crime), para uma ciência crítica e assim deixou-se penetrar por
considerações jurídico-criminais. Isto levou por um lado ao alargamento do seu objecto,
que da explicação das causas do crime e da personalidade do criminoso passou a
abranger também a crítica aos sistemas de justiça penal.
Numa primeira fase da sua evolução, a criminologia era marcadamente empírica,
etiológico-explicativa do fenómeno criminal. Nesse contexto, a relação directa com a
dogmática jurídico-penal era praticamente inviável. Num segundo momento, a


35
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 30-31.

19
criminologia divorciou-se totalmente da dogmática jurídico-penal e isto aconteceu nos
Estados Unidos da América de tal modo que passou a ser estudada exclusivamente nas
faculdades de Letras ou Ciências Humanas. Esta situação não se mostrou estranha uma
vez que o seu objecto era constituído não só pelo crime, mas também pelo
comportamento desviante.
A mudança radical dá-se nos anos 60, com o interaccionismo ou (labeling approach),
a etnometodologia e a criminologia radical de inspiração marxista. O mérito de tudo
isso deveu-se ao labelling approach por ter trazido para a discussão e ter posto em
relevo que a criminologia não era apenas uma ciência encerrada num paradigma
estritamente etiológico-explicativo, mas também uma ciência compreensiva do
fenómeno criminal na sua totalidade. Assim, passa também a investigar a totalidade do
sistema de aplicação da justiça penal. Nomeadamente as instâncias formais (a polícia,
o Ministério Público, o juiz, a administração penitenciária, os órgãos de reinserção
social e a própria lei penal) e informais (a família, a escola, as associações privadas de
ajuda social) de controlo da delinquência e enfim todo o processo de produção de
delinquência.
Para além desses aspectos, a criminologia vai também ocupar-se do processo de
socialização do delinquente no seu todo, ou seja, a integração do indivíduo no sistema
social e no sistema normativo vigente. Daqui que a criminologia passa a relacionar-se
estreitamente com o processo penal e com o direito penal executivo.

Conclusão
Em conclusão pode dizer-se que hoje, a dogmática jurídico-penal não pode evoluir sem
tomar em atenção o trabalho prévio realizado pela criminologia, mas esta também não
pode desenvolver-se sem a mediação da política criminal que clarifica as finalidades e
os efeitos que se esperam e se apontam à aplicação do direito penal.
Por isso, dogmática jurídico-penal, política criminal e criminologia são, do ponto de
vista científico, âmbitos autónomos, mas ligados com vista ao integral processo de
realização do direito penal numa unidade teleológico-funcional. É a esta unidade que
se chama “ciência conjunta do direito penal”.36


36
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 32 e 33.

20
III. O pensamento do sistema e o pensamento do problema na dogmática
jurídico-penal

III. 1. Na dogmática jurídico-penal o peso do sistema no tratamento das questões é


muito acentuado. Esse facto é a expressão da vitalidade da disciplina e sobretudo da
sua internacionalização ou talvez mesmo mundialização se se atender ao facto da
arquitectura básica do sistema jurídico-penal ser mais ou menos estável e por isso a
mesma.
Essa mais ou menos uniformidade tem a ver com a importância que as questões
filosóficas assumem na construção dos conceitos da dogmática jurídico-penal que leva
até um certo conceitualismo na resolução das questões.
Como já referimos supra, a nova concepção da função da política criminal e da
criminologia permitiram também uma evolução da dogmática, de tal modo que ela foge
do “pensamento sistemático fechado” que, durante muito tempo a caracterizou para um
pensamento problemático concreto e consequentemente um “sistema aberto”37
Mas o pensamento sistemático não foi abandonado, nem podia ser, porque a parte mais
importante do direito penal, a doutrina do crime, “constituiu um dos mais ingentes
esforços de abstracção a que hoje o pensamento jurídico se abalançou”38.
A doutrina do crime não conseguiu até hoje que o seu objecto principal, o crime,
pudesse ser estudado ou apreciado de forma unitária e sincrética (reunida). O objecto
do crime teve sempre de ser analisado a partir de uma pluralidade de elementos,
parcelas, ou seja, no dizer de Gallas, “transformou-se a simultaneidade entitativa numa
sucessão lógica”. Por virtude dessa forma de análise, os pontos de vista filosóficos,
metodológicos e materiais têm grande influência na posterior justaposição desses
elementos e reflectem-se na arquitectura jurídica do crime.
A forma de pensar a construção da arquitectura jurídica do crime, levanta uma
importante questão de saber “até que ponto o pensamento do problema se pode sobrepor
ou mesmo substituir ao pensamento do sistema”, pensamento do sistema esse que
durante muito tempo dominou a dogmática jurídico-penal.


37
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 34.
38
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 34.

21
Já atrás referimos que nas questões que trata a dogmática jurídico-penal “a atenção
prioritária deve ser concedida a considerações de concreta justiça material, no seio do
39
sistema político-criminalmente dirigido” e neste sentido ao “pensamento do
problema”. Por isso em relação a estas questões, a função da dogmática jurídico-penal
consiste em estabelecer e formular os critérios de valor orientados de modo funcional
e teleológico, critérios esses que não são mais do que os tópicos, os princípios que
orientam o discurso do direito penal.

III. 2. Mas o facto de na dogmática jurídico-penal se conceder primazia ao


“pensamento do problema” não significa que o “pensamento do sistema” tenha ficado
negligenciado ou minimizado. Desde logo porque é importante que se tenha em conta
o papel que o “pensamento do sistema” desempenha na dogmática jurídico-penal.
Roxin diria “o sistema é um elemento irrenunciável do direito penal de um Estado de
Direito”, porque sem ele o trabalho com os ‘casos’ jurídico-penais seria de difícil
realização. Esta afirmação prende-se não só com necessidades de segurança na
aplicação do direito, de resto imposta tanto pela ordem de legitimação como pela
teleologia da intervenção penal, mas, sobretudo, porque fora do sistema ou
independentemente dele não haveria garantias de uma solução justa e adequada do caso
jurídico-penal.
No fundo, o que se pretende é encontrar um equilíbrio em que o “pensamento do
problema” coexistia com o “pensamento do sistema”.

III. 3. Como realizar esta integração ou interpretação?


Embora o sistema jurídico-penal constitua um subsistema do sistema jurídico total e,
este seja por sua vez um subsistema do sistema social, o sistema jurídico-penal possui
a sua própria teleologia, a sua especificidade, índole funcional e racionalidade
estratégica. Ele é um sistema verdadeiramente autopoiético (que se basta a si próprio).
A opção por um sistema teleológico funcional e teleológico racional da dogmática
jurídico-penal não significa que se recuse a intervenção de considerações axiológicas
de pontos de vista de valoração de critérios de validade e intencionalidade normativa;


39
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 37.

22
muito menos significa que se enveredou para um pronunciamento de pura “engenharia
social”.
Os mais recentes desenvolvimentos da dogmática jurídico-penal revelam que a solução
correcta é a que estabelece entre as duas concepções uma relação dialéctica que seja
capaz de conduzir a uma unidade axiológica funcional.40

III. 4. a) Assim, a legitimação da intervenção penal não pode mais ser vista como
proveniente de alguma ordem transcendente e absoluta de valores, mas apenas a partir
de critérios funcionais de necessidade social. Significa dizer que o Direito Penal
intervém porque é necessário.
b) A pena não pode mais ser fundamentada em exigências de expiação da culpa
ou de retribuição, mas apenas com propósitos de prevenção (nomeadamente positiva)
geral e especial.
c) Resulta destas observações que a função do direito penal passa a ser de tutela
da ordem legal dos bens jurídicos que está como já referimos axiologicamente ligada à
ordem constitucional.

III. 5. Para definição de um sistema teleológico e funcional da dogmática jurídico-penal


é necessário que se estabeleçam as finalidades político-criminais primárias do sistema.
Para tal, mostram-se fundamentais cinco princípios básicos:
1) O princípio da legalidade
2) O princípio da referência jurídico-constitucional da ordem legal dos
bens jurídicos
3) O princípio da culpa
4) O princípio da preferência pelas sanções criminais não detentivas face
às detentivas
5) O princípio da socialidade

Na base destes princípios estabelecesse um programa de política criminal. Todos os


conceitos da dogmática jurídico-penal devem ser integrados teleológico-


40
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 38 e 39.

23
funcionalmente a partir do referido programa. Por outro lado, esse programa radica em
claras ideias axiológicas, critérios de valor e intencionalidade normativas.
A reafirmação do que acima se referiu pode concretizar-se no conceito de culpa. Com
efeito, a legitimação da intervenção penal como tutela de bens jurídicos fez com que se
retirasse do âmbito das finalidades da pena, a ideia de culpa como compensação, como
retribuição. Hoje, à culpa assinala-se uma função de limite da intervenção penal que
encontra o seu fundamento na ideia de respeito pela dignidade da pessoa humana.
Esta é a ideia mais axiológica e normativa de todo o sistema de um Estado de Direito.

III. 6. Contudo, esta ideia pode mostrar-se disfuncional ao próprio sistema; mas o
importante é que no quadro de uma correcta metodologia de trabalho sobre a dogmática
jurídico-penal fique claro que do que se trata na dogmática é “encontrar soluções justas
e adequadas para concretos problemas da vida da relação comunitária”.
Isto só pode ser conseguido se o caso concreto for projectado no contexto do sistema
funcional teleológico e racional do direito penal e aí for resolvido e tratado, embora
algumas vezes a solução se mostre injusta e disfuncional a própria teleologia político-
criminal imanente ao sistema. Sempre que assim acontecer, a “justiça do caso deve
sobrepor-se a considerações puramente sistemáticas”. E, assim, deve-se proceder a um
reexame, a um reajustamento dos conceitos para uma boa aplicação do direito.
Se assim se proceder, o sistema jurídico-penal deixa de ser “cerrado” para passar a ser
“aberto” e a própria dogmática jurídico-penal desenvolve-se porque cada vez mais se
confronta com novos problemas a que tem de dar solução ou então encontrar novas
soluções para os velhos problemas.

Conclusão
Continua válida a ideia de que “na dogmática jurídico-penal é do problematismo
próprio de cada “caso” que há de partir-se para a determinação da totalidade normativa,
sistematicamente enquadrável.
Savigny defendeu que a tarefa da dogmática jurídica é “estabelecer os princípios que
informam o direito positivo e explicitá-los sistematicamente”.
Contudo, nesse exercício diz ainda o autor “cada caso deve ser tomado como se fosse
o ponto de partida de toda a ciência devendo por sua vez a ciência forjar-se a partir do
caso”.

24
Não há aqui nenhuma dissonância ou contradição, o que deve tornar válido para a
dogmática jurídico-penal é o estabelecimento de uma dialéctica entre “sistema” e
“problema”.41


41
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 41 e 42.

25
TEXTO N.º 4

TÍTULO II: FUNÇÃO E LIMITES DO DIREITO PENAL

Introdução
A compreensão da função que o direito penal desempenha no sistema social e na ordem
jurídica passa, em primeiro lugar, pela determinação do seu objecto material. O objecto
do direito penal é o comportamento criminal e as suas específicas consequências
jurídicas, as penas e as medidas de segurança. Em segundo lugar, é a conjugação desses
dois elementos (a determinação do objecto material e a função) que permite estabelecer
os limites do direito penal, face às disciplinas que, porque também utilizam meios
sancionatórios, lhe são próximas.
A análise de cada um destes aspectos (o objecto material e a função) permitir-nos-á
determinar a função do direito penal no sistema jurídico.

4.º CAPÍTULO: O COMPORTAMENTO CRIMINAL: SUA DEFINIÇÃO.


CONCEITO MATERIAL DE CRIME

I. A questão do conteúdo material do conceito de crime

I. 1. Considerações
O exercício do legislador ordinário do ius puniendi resulta do disposto na alínea e) do
Artigo 164º da CRA.
O que se pretende com o conceito material de crime é, em primeiro lugar, dar-se uma
resposta à questão da legitimação, ou seja, qual a origem da legitimidade para se
considerar determinados comportamentos humanos como crimes e aplicar-lhes a
respectiva sanção.
Em segundo lugar, é o conceito material de crime que nos permitirá determinar a função
e os limites do direito penal. Com efeito, só tem sentido falar-se num conceito material
de crime, se ele se situar acima e fora do direito penal legislado e puder determinar que
qualidades deve um comportamento assumir para que, sempre que seja realizado, o
legislador fique legitimado a submetê-lo a sanções criminais – o que significa
determinar os critérios materiais do comportamento.

26
Assim entendido – fora do direito penal legislado – o conceito material de crime é
previamente dado ao legislador e pode constituir-se em padrão crítico tanto do direito
penal em vigor como do que vier a vigorar, ou seja, indicando ao legislador o que é que
pode e deve criminalizar e o que é que não deve criminalizar.
Este conceito material, com o recorte que se desenhou, há de permitir avaliar a
correcção ou incorrecção político-criminal, das incriminações já existentes e daquelas
que se constituirão e, consequentemente, discutir a questão da criminalização e
descriminalização; e ainda ligar as três ciências, quais sejam, o direito penal e sua
dogmática, a política criminal e a criminologia, no quadro da ciência conjunta do direito
penal e respectiva ligação com as disciplinas auxiliares.42

I. 2. A perspectiva positivista-legalista
A resposta à pergunta sobre o que seja o conceito material de crime será diferente
dependendo da concepção que dominar a ciência do direito num dado momento
histórico.
Assim, para a concepção positivista-legalista de direito, crime era tudo aquilo que o
legislador legitimamente considerasse como tal. Bastava que o legislador ameaçasse
um comportamento com uma pena criminal e o comportamento transformava-se em
crime. Logo havia uma coincidência entre o conceito formal e o conceito material de
crime.
Um tal entendimento não permitia saber que qualidades deveria o comportamento
possuir para que o legislador o qualificasse como crime. Por outro lado, também a
questão da legitimação ficaria por resolver uma vez que a legitimação material ficava
identificada com a observância do princípio da legalidade.

I. 3. A perspectiva positivista-sociológica
A noção sociológica foi a primeira tentativa séria para se encontrar o conteúdo do
conceito material de crime. Dever-se-ia buscar nas múltiplas manifestações legais do
que fosse crime o que, à luz da realidade social, fosse como tal considerado. No dizer
de Garófalo (1885), algo que “existiria na sociedade humana (como crime)
independentemente das circunstâncias e das exigências de uma dada época ou particular


42
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 43 a 45; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas Básicos, pp. 34 e 35.

27
concepção” 43 . Já para Durkheim (1893) 44 , o que havia em comum nestas duas
concepções, seria o facto de a violação dos sentimentos constituir acto reprovado pelos
membros de cada sociedade.
A tentativa de definir materialmente o crime a partir da ideia de unidade de sentido
sociológico foi muito importante porque constituiu a primeira abordagem do conceito
como pré-legal, capaz, por conseguinte, de servir de padrão crítico do direito vigente e
a constituir, necessário ao conceito material de crime.
Contudo, essa tentativa não resultou porque se mostrou imprecisa e demasiado ampla
para poder permitir que se alcançasse os limites da criminalização.

I. 4. A perspectiva moral-social
À passagem do Estado de Direito Formal ao Estado de Direito material, correspondeu
à entrada no conceito material de crime de uma perspectiva moral, (ético) social que
considerou o crime como violação de deveres morais-sociais elementares. Welzel
definiu como “tarefa central” do direito penal o “assegurar a validade dos valores ético-
sociais positivos de acção”, ou seja, escreveu em 1947 que a tarefa do direito penal é
garantir os valores de acção de uma atitude de acordo com o direito”.
Esta concepção traduz uma atitude enraizada no espírito dos leigos que transportam
para o mundo terreno as noções de pecado e castigo que valem na ordem religiosa ou a
imoralidade que vigora na ordem moral. Todavia, essa concepção não deixa de se
arvorar em padrão de crítica de um direito penal constituído ou a constituir.
Mas, ainda que uma posição como a acabada de referir se encontre enraizada na opinião
pública, o certo é que ela não pode ser defendida, uma vez que não é função do direito
penal, nem a título primário, nem a título secundário, tutelar a virtude ou a moral. Isto
porque tanto a virtude como a moral são específicas de um grupo social e o direito penal
tem que respeitar a liberdade de consciência de cada um. Veja-se o que actualmente
estabelece o artigo 41.º da CRA.


43
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 46. Para Garófalo, o crime deveria corresponder à violação de sentimentos altruístas
fundamentais. A violação do sentimento de piedade originava o crime contra as pessoas. Já a violação
do sentimento de pobridade originava o crime contra o património. Na base destes dois sentimentos
construía-se a noção de delito natural que seria mais ou menos igual para todos os povos de idêntica raça
e civilização. Esse “tipo” de delito teria como denominador comum uma conduta socialmente danosa.
44
Ainda com Figueiredo Dias e Costa Andrade, parte não de uma organização civilizacional, mas de
uma formação social politicamente organizada. Seria aqui onde os sentimentos objeto de violação
deveriam ser comuns à consciência colectiva, fortes e precisos.

28
De notar que nem mesmo as penas e as medidas de segurança, instrumentos de que o
direito penal se serve para a sua actuação se mostram adequados para fazer valer na
sociedade as normas da virtude e da moralidade. De resto, nem os magistrados nem os
tribunais se mostram legitimados para castigar o pecado e a imoralidade. Estas são
questões que respeitam à justiça divina e à consciência individual.

4.1. A concepção apresentada mostra-se inadequada sobretudo do ponto de vista das


exigências éticas do tipo de sociedade democrática pluralista em que hoje vivemos.
Alguns autores como Georg Jellinek procuraram fundamentar esta inadequação pelo
facto de se criar uma confusão inextricável entre o direito (penal) e a moral. Outros,
ainda, procuraram defender que tal concepção conferiria ao direito penal uma função
de mera “conservação” das concepções morais-sociais vigentes, impedindo a sua
contribuição para a função de “promoção” de valores sociais, culturais e económicos
próprios do Estado de Direito Social.
Ora, essa função de promoção de valores sociais não cabe ao direito penal mas deve ser
reservada a meios não penais de política social. Por isso, neste domínio o que é
reservado ao direito penal deve ser ínfimo, mínimo.
A razão da inadequação está na natureza das sociedades pluralistas contemporâneas
onde em maior ou menor medida coexistem umas vezes de forma pacífica ou de forma
tensa “zonas de consenso com zonas de conflito”. Por outro lado, tal inadequação
também se refere às exigências morais próprias de sociedades secularizadas onde ainda
predominam os dizeres de S. Tomás de Aquino, segundo os quais “o legislador não
deve deixar-se seduzir pela tentação de tutelar com os meios do direito penal todas as
infracções à moral objectiva”45
A negação definitiva dessa concepção moral-social do conceito de crime pode ser
situada na Alemanha Federal, quando em 1966 e nos anos seguintes surgiu o Projecto
Alternativo de Código Penal. O Alternative – Entwurfeines Strafgestzbuch foi redigido
por catorze professores de direito penal, em resposta às objecções que na sociedade
alemã suscitou o projecto Governamental do Código Penal de 1962.
Inicialmente, a questão levanta-se em relação ao direito penal sexual. O projecto
Governamental continuou a considerar puníveis as condutas homossexuais entre


45
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 50 e 51.

29
adultos como a sodomia, a “desmoralização” (kuppelei), a pornografia e condutas
análogas. Ora, o Projecto Alternativo rejeitou esta política criminal e substituiu-a pela
ideia de uma política criminal rigorosa e incensurável no sentido de que as condutas
sexuais que tivessem lugar em privado, entre adultos que nela consentissem, não
deveriam ser punidas.
Simplesmente, esta questão que se suscitou por virtude dos crimes sexuais, muito
rapidamente se estendeu e transformou em questão central da “essência do conteúdo
material do conceito de crime e da função primária do direito penal”.46

5. A perspectiva racional: a função de tutela subsidiária de bens jurídicos

A discussão acabada de apresentar conduziu à introdução na questão da função do


direito penal e a sua ligação com o conceito material de crime de uma perspectiva
funcional e racional.
Funcional, por se concluir que o conceito material de crime não podia ser deduzido de
ideias extra-jurídicas ou extra-penais mas sim encontrado a partir da função que o
direito penal desempenha no sistema jurídico-social.
Racional, uma vez que o conceito material de crime resulta da função subsidiária ou de
ultima ratio de bens jurídicos desempenhada pelo direito penal. Nesta ideia, concretiza-
se juridicamente a noção sociológica de danosidade ou de ofensividade sociais.
Contudo, isto não explica o sem número de questões que se levantam e necessitam de
ser debatidas.

5. a) Aproximação à noção de bem jurídico

Embora a noção de bem jurídico seja fulcral no direito penal, ela não foi, contudo, até
hoje, determinada com a nitidez e segurança capazes de a converter num conceito
fechado e capaz de sem sombra de dúvida traçar a fronteira entre o que deve e não deve
ser criminalizado.
Não obstante o exposto, há hoje um certo consenso sobre o seu núcleo essencial. Pode
definir-se bem jurídico como a “expressão de um interesse da pessoa ou da


46
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 52.

30
comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si
mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso”47.

5. a. 1) O autor que pela primeira vez chamou à atenção para a noção de bem jurídico
foi Birnbaum. Com ela pretendeu abranger o conjunto de substractos de natureza liberal
que fossem susceptíveis de servir de base para os comportamentos que os ofendessem.
Assim, e numa primeira fase, o conceito de bem jurídico assumiu um conteúdo
individualista. Esteve identificado com interesses primários do indivíduo na sociedade
(ex.: a vida, o seu corpo, a sua liberdade, o seu património). A partir dessa aproximação
foi fácil identificar a noção de bem jurídico com a de direito subjectivo fundamental do
indivíduo, merecedor de tutela penal.
A referida aproximação, que já Feuerbach havia feito, foi aplaudida pela generalidade
da doutrina liberal. A este propósito, Rupp afirmava que “a concepção
exasperadamente liberal (e positivista) de bem jurídico fez dele um “monólito jurídico
corporizado”.
A viragem decisiva para a compreensão do conceito de bem jurídico aconteceu a partir
da segunda década do séc. XX. Com efeito, desenvolveu-se na época um conceito
metodológico de bem jurídico de cariz normativista ligado aos pressupostos
neokantianos da chamada Escola Sul-Ocidental Alemã ou Escola de Baden, onde se
destacaram as figuras de Windelband e Rickert48.
A compreensão do bem jurídico a partir do conceito metodológico é de rejeitar porque
com ela o conceito torna-se intra-sistemático e por isso perde a ligação com qualquer
teleologia político-criminal e deixa de poder ser visto enquanto “padrão crítico de
aferição da legitimidade da criminalização”49. Numa palavra, perde o interesse para
determinar o conceito material de crime.

5. a. 2) Para que a noção de bem jurídico se legitime impõe uma concepção funcional,
teleológica e racional. O conceito tem de obedecer a uma série mínima mas
irrenunciável de condições.


47
DIAS, Jorge de Figueiredo, “O problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal”.
48
Para mais pormenores sobre esta questão, veja-se CORREIA, Eduardo, Direito Criminal I, pp. 205 e
ss. Ainda do mesmo autor, Unidade e Pluralidade de Infracção, 1945.
49
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 54.

31
Em primeiro lugar, tem que traduzir um qualquer conteúdo material para que se possa
arvorar a indicador útil do conceito material de crime; não basta por isso que se
identifique com os preceitos penais cuja essência pretende traduzir ou com qualquer
outra técnica jurídica de interpretação ou aplicação do direito.
Em segundo lugar, o conceito deve servir de padrão crítico de normas constituídas ou
a constituir. Assim, ele pode arvorar-se a critério legitimador do processo de
criminalização e descriminalização. Não poderá, por conseguinte, aparecer como um
conceito imanente ao sistema normativo jurídico-penal e dele resultante. Antes deve
apresentar-se como uma noção trans -sistemática, ou seja, transcendente ao sistema.
Em terceiro lugar, há de ser político-criminalmente orientado; por isso intra-
sistemático relativamente ao sistema social e ao sistema jurídico-constitucional.
Feitas as anteriores considerações, levanta-se a seguinte questão: como é que o conceito
poderá obedecer a todas essas exigências e ao mesmo tempo ou do mesmo passo lograr
a materialidade e concreção tais que o tornam utilizável na tarefa de aplicação prática
do direito?50

5. b) Bem jurídico sistema social e sistema jurídico-constitucional

A resposta à pergunta acabada de formular tem dada pela teoria da sociedade como
teoria do sistema social. Amelung, por exemplo, baseou o conceito material de crime e
por isso o conceito de bem jurídico no conceito de dano social. O conteúdo desta noção
foi buscá-lo à teoria do sistema social de Parsons.
Segundo a teoria da sociedade, a determinação da ordem dos bens jurídicos seria
buscada na disfuncionalidade sistémica dos comportamentos, ou seja, o sistema social
tem regras que os membros da comunidade social devem respeitar. São regras do
sistema. Sempre que aqueles as desrespeitarem estarão a comportar-se de modo
disfuncional ao sistema, ou melhor, de modo contrário ao funcionamento do sistema.
Assim, para impedir essa disfuncionalidade, o sistema recorre a sanções criminais.
No fundo, o que determina a ordem dos bens jurídicos são os comportamentos
disfuncionais ao sistema que em sentido positivo são os bens jurídicos a tutelar.


50
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 55.

32
Stratenwerth de uma perspectiva mais cautelosa afirma que a determinação dos bens
jurídicos deve fazer-se a partir do sistema social de uma comunidade, fundamentado ou
legitimado pela lei fundamental.
Jakobs, por seu turno, embora acentuando que a protecção dos bens jurídicos não é uma
função suficiente para o direito penal porque “a sociedade não é nenhuma instância
para a conservação e a maximização de bens”51, acaba por aceitar que a noção de crime
se fundamenta na danosidade social e é aferida em função do respectivo sistema social.

5. b. 1) A crítica que Figueiredo Dias e Costa Andrade dirigem a essa concepção é a da


sua insuficiência para, na aplicação do direito, produzir os efeitos práticos que dela se
esperam. É certo que é no sistema social que se deve encontrar a fonte legitimadora e
produtora da ordem legal dos bens jurídicos. Mas é difícil encontrar-se a concretização
do conceito a partir de um apelo directo ao sistema social.
Assim, a via para se alcançar essa concretização só é encontrada quando se entende que
os bens do sistema social se transformam e se concretizam em bens jurídicos dignos de
tutela penal através da ordem axiológica jurídico-constitucional52.

5. b. 2) Em conclusão pode dizer-se que um bem jurídico político-criminalmente


vinculante só existe ali onde esteja reflectido um valor jurídico-constitucionalmente
reconhecido em nome do sistema social total e assim, seja “pré-existente” ao
ordenamento jurídico-penal. Isto significa, por sua vez, que entre a ordem axiológica
jurídico-constitucional e a ordem legal jurídico-penal dos bens jurídicos, há de
verificar-se uma qualquer “relação de mútua referência”. Não se trata de uma relação
de identidade ou mesmo de recíproca cobertura, mas de analogia material, fundada
numa essencial correspondência de sentido e de fins.53


51
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 56. Ainda DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas Básicos da Doutrina Penal, p. 46.
52
Embora, Figueiredo Dias e Costa Andrade em Direito Penal – questões fundamentais, 1996, p. 57, à
não discutam aqui a questão muito debatida entre os jusconstitucionalistas, sobre se os valores
constitucionais são ou não susceptíveis de constituir uma verdadeira ordem axiológica. Veja-se a
propósito também CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito Constitucional, I, 1980, pp. 41 e ss. e
92 e ss. Atente-se no que dispõe o n.º 2 do artigo 3.º da Constituição da República Portuguesa e n.º 2 do
artigo 18 da referida Constituição e o que, a propósito, a CRA estabelece, nos artigos 64.º, 67.º e 68º,
respectivamente.
53
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 57

33
A correspondência de sentido por sua vez, deriva do facto de a Ordem Constitucional
constituir um quadro obrigatório de referência e critério regulador da actividade
punitiva do Estado. Só no sentido acabado de expor os bens jurídicos protegidos pelo
direito penal se podem considerar concretizações dos valores constitucionais ou
implicitamente ligados a direitos e deveres fundamentais.54

5. b. 3) A forma como a ordem axiológica constitucional se relaciona com a ordem


legal dos bens jurídicos penalmente relevante permite clarificar a distinção que, do
ponto de vista jurídico-criminal e dogmático se estabelece entre o designado direito
penal de justiça, também chamado de clássico ou primário que corresponde àquele que
vem descrito nos códigos penais, por um lado e, por outro lado, o direito penal
secundário administrativo ou extravagante, porque contido em leis avulsas.
No fundo, a diferença entre estes dois mundos do direito penal radica de um ponto de
vista material no diferente relacionamento que o bem jurídico mantém com a ordem
axiológica constitucional.
Enquanto os crimes de direito penal de justiça se relacionam em última análise directa
ou indirectamente com a ordem jurídico-constitucional relativa aos direitos, liberdades
e garantias das pessoas, artigos 30º a 75º da CRA, o direito penal secundário de que
existem exemplos em matéria de direito penal económico (matérias penais relativas à
empresa, ao mercado do trabalho, segurança social) e ainda de direito financeiro, fiscal
e aduaneiro, relaciona-se, em primeira linha, com a ordem jurídico-constitucional
relativa ao direitos sociais e à organização económica, artigos 76º a 88º e 89º a 104º
todos da CRA.
A diferença é ainda decisiva, quando nos referimos à actividade tutelar do Estado. Duas
zonas relativamente autónomas que aqui se criam. Por um lado, a que procura proteger
a esfera de actuação pessoal, embora não necessariamente individual do homem e por


54
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 57 e 58. DIAS, Jorge de Figueiredo, “Os novos rumos da Política Criminal e o Direito Penal
Português do Futuro” in Revista da Ordem dos Advogados, 1983, p. 14; “Para uma dogmática do Direito
Penal Secundário” in Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 17, 1984, pp. 10 a 15; “Sobre os
fundamentos da Doutrina Penal. O comportamento Criminal e a sua definição” in Temas Básicos da
Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, pp. 47 e 48.

34
outro, a que visa a protecção da sua (do homem) esfera de actuação social, ou seja o
“homem enquanto membro da comunidade”55.

5. b. 4) A distinção que se fez entre direito penal de justiça e direito penal secundário,
não se confunde com a distinção entre direito penal e direito de mera ordenação social
ou das contravenções. Com efeito, essa confusão que muitas vezes acontece deve-se ao
facto de durante muito tempo o direito penal administrativo ter sido a fonte das
contravenções e ainda assim é no ordenamento jurídico angolano. No sistema jurídico-
penal português, por exemplo, esse direito administrativo deu origem à categoria não
penal, mas administrativa das contra-ordenações.
Contudo, hoje nos sistemas jurídicos (que não é o caso do angolano) mas do alemão,
português, espanhol, o direito penal administrativo está presente não no direito das
contraordenações, mas como direito penal, no direito penal secundário. O direito penal
administrativo é que merece ser chamado de direito penal secundário56.
De notar, por outro lado, que os âmbitos do direito penal de justiça e do direito penal
secundário, bem como do direito penal secundário e direito das contraordenações, não
se apresentam histórica e socialmente como compartimentos estanques; é só ver que os
bens jurídicos tutelados pelo direito penal secundário passam a bens jurídicos do direito
penal de justiça e reciprocamente. De resto, pode falar-se numa contiguidade material
entre os crimes de direito penal secundário e as contraordenações como resultado da
sua origem histórica comum, da sua relevância em zonas sociais de conflito e da sua
contingência e mutabilidade.
As considerações feitas neste ponto, devem ser entendidas a título de informação e
direito a constituir. Com efeito no actual direito penal em vigor em Angola, a distinção
faz-se entre crimes e contravenções; vejam-se os artigos 1.º e 3.º do Código Penal de
1886. O projecto de Novo Código Penal angolano, continua a fazer a distinção entre
crimes e contravenções e dedica o seu Título VII da Parte Geral, Artigos 128º a 132º às
Contravenções.57


55
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 58 e 59; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, p. 48 e 49.
56
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 59; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, p. 49
57
Matéria que será objecto de tratamento em Capítulo próprio.

35
5. c) Dificuldades subsistentes e evolução previsível
O conceito de bem jurídico não é um conceito fechado e por isso não pode dar-nos com
segurança o que deve e não deve ser criminalizado. O bem jurídico é “apenas” o padrão
crítico insubstituível e irrenunciável com o qual se vai aferir a legitimação da função
do direito penal no caso concreto. Daí que acusar-se o conceito de se mostrar incapaz
de revelar os exactos contornos do conceito material de crime seria uma afirmação
destituída de sentido.
Mas o grande perigo da permanência da doutrina do bem jurídico como instrumento
fundamental da determinação do conceito material de crime provém, segundo
Figueiredo Dias, do seguinte: por mais que se antecipe a tutela dos bens jurídicos, veja-
se o caso da tentativa e hoje, cada vez mais, com a criação no direito penal das figuras
do risco e do perigo com os crimes de perigo concreto, abstracto-concreto ou puramente
abstracto, tal não se mostra suficiente para, nas sociedades dos nossos dias, se cumprir
com eficácia a função do direito penal.58
Com efeito, alguns autores defendem que no tipo de sociedade em que hoje vivemos e
onde o desenvolvimento da técnica e da tecnologia representa para as pessoas na
realização de certas actividades, a assunção de um certo risco permitido (como a
condução automóvel, a utilização de determinadas máquinas, etc.), a verdadeira
“sociedade de perigo”, uma “sociedade de risco”, a chamada Risikogesellschaft no dizer
de Beck, o direito penal mostra-se profundamente inadequado para exercer a função de
protecção ou tutela de bens jurídicos mesmo de cariz individualista como o liberal.
Assim, haveria que se abandonar a função de protecção e abraçar, sem mais, numa
sociedade de risco, a ideia de que o direito penal é um instrumento de governo daquele
tipo de sociedade; é um meio propulsor para se alcançar finalidades de governo; por
isso ele ganha uma função promocional, enquanto meio de realização da política
estadual. Só assim entendida a função do direito penal, ele pode estar à altura de se
assumir com eficácia no tratamento de questões sócio-criminais tão ingentes como as
das agressões ao ambiente, a política económica, financeira e fiscal, da droga,
criminalidade organizada, etc.
Figueiredo Dias critica esta posição. Considera que não tem legitimidade histórica o
considerar-se a actual sociedade uma sociedade de risco. Com efeito, uma análise

58
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 58 e 59; DIAS, Jorge de Figueiredo, in Jornadas de Direito Criminal. A revisão do Código
Penal, I, 1996, pp. 17 e ss. e pp. 30 e ss.

36
histórica e livre de preconceitos, leva-nos à conclusão de que o risco é algo que sempre
existiu na sociedade. Por isso, advogar o risco para antecipar a protecção de bens
jurídicos através de crimes de perigo e fazer com que o bem jurídico se esfume e deixe
de exercer a sua função de padrão crítico do direito constituído e a constituir, não pode
colher.
Ainda que o “perigo” ou o “risco” constituam a noção chave da dialéctica da ilicitude
penal, enquanto síntese entre a tese do desvalor da acção e antítese do desvalor do
resultado, em nada pode contender com a negação dessa tentativa de tornar o direito
penal dos bens jurídicos num direito penal do risco ou dos perigos.59

5. c. 1) Por outro lado, ao direito penal não deve caber uma função promocional que o
transforme de direito penal de protecção de direitos fundamentais, individuais e
colectivos em instrumento de governo da sociedade.
Essa função promocional estaria em contradição com o fundamento da legitimação da
intervenção penal, com o sentido dessa intervenção enquanto ultima ratio de política
social e ainda com as exigências de salvaguarda do pluralismo e da tolerância próprios
das sociedades democráticas modernas.
A função promocional converteria o direito penal em instrumento de uma ideologia
político social, factor de um qualquer milagre social, conduzindo ao surgimento de um
velho direito penal supostamente renascido.60

5. c. 2) A conclusão deve ser no sentido de se reafirmar que o direito penal não é nem
deve tornar-se num direito de prevenção de riscos especiais e longínquos, nem de
promoção de finalidades específicas de política estadual. O direito penal é um direito
de tutela de bens jurídicos “de preservação das condições indispensáveis da mais livre
realização possível de personalidade de cada homem na comunidade”61.
A conclusão acabada de apresentar conduz:
a) A uma correcta solução da questão da legitimação do direito de punir
estadual, legitimação que provém da própria existência do contrato social em


59
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 62 e 63; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, p. 49 e 50.
60
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 63.
61
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 63.

37
que cada cidadão cede ao estado parte mínima dos seus direitos e liberdades
para garantir o funcionamento sem entraves da comunidade.
b) A regra do Estado de direito democrático, segundo a qual o Estado só
deve intervir nos direitos e liberdades fundamentais desde que isso se torne
imprescindível ao asseguramento dos direitos e liberdades fundamentais dos
outros.
c) Ao carácter laico e pluralista do Estado de direito contemporâneo que o
vincula a só recorrer aos meios punitivos quando esteja em jogo a tutela de
bens de relevante importância da pessoa e da comunidade e nunca para
reforçar qualquer ordem axiológica transcendente de carácter religioso, moral,
político, social ou cultural.

É o que a Constituição da República de Angola, a CRA consagra como já referido supra


em 5. b. 3). Por outro lado, o Projecto de Parte Geral do Novo Código Penal no seu
artigo 41.º, já prevê que a “aplicação de penas e de medidas de segurança visa a
protecção de bens jurídicos”.

5. c. 3) Consequências da orientação defendida


A concepção que considera que a função específica do direito penal é a tutela de bens
jurídicos, também defende que o bem jurídico é o elemento fundamental do conceito
material de crime.
Assim, importantes consequências podem daqui ser retiradas:
a) As puras violações morais não conformam a lesão de um autêntico bem
jurídico; por isso, não podem integrar o conceito material de crime.62
b) Também proposições meramente ideológicas ou imposições de fins
(como pôr em causa a pureza da raça, propagar doutrinas contrárias a uma certa
religião ou a uma determinada concepção do Estado, fazer apologia de uma


62
Com efeito, e de acordo com o Código Penal de 1886, ainda em vigor em Angola, o direito penal
sexual é entendido como um direito tutelar da “honestidade”, dos “costumes” ou dos “bons costumes”:
artigos 390 e ss. O Projecto de Novo Código Penal da República de Angola publicado, na Revista nº8 de
Dezembro de 2007, da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, deixou esse tipo de tutela
porque não conformava uma verdadeira lesão de bens jurídicos. Com a actual tutela protege-se um bem
jurídico mais definido que é a liberdade sexual e autodeterminação da pessoa na esfera sexual e afasta-
se a ideia da proteção de uma qualquer moralidade que visava punir praticas sexuais consideradas
desviadas como a homossexualidade e também a prostituição. Veja-se de Artigos 168º a 187º.

38
qualquer doutrina religiosa, moral, política, social ou cultural, ressalvando,
como é óbvio a eventual ilicitude dos meios utilizados, não pode constituir
objecto de criminalização.
c) Também não pode ser crime a violação de valores de mera ordenação
que respeitem a uma certa política estadual. Esta questão prende-se com um
problema mais amplo que é o da distinção entre direito penal e direito de mera
ordenação social ou das contraordenações.

As consequências acabadas de assinalar não são pura retórica. A concepção que


considera a função do direito penal como tutela de bens jurídicos tem já no direito
angolano, fundamento constitucional. Veja-se o artigos referidos supra em 5.b.3) e
artigo 41.º da Proposta Geral do Código Penal; de tal forma que uma norma
incriminatória em que não se visualize claramente um bem jurídico definido, deve ser
nula pois deve ser considerada materialmente inconstitucional e, por isso, como tal
declarada pelo Tribunal Constitucional artigo 16º Lei nº 2/08 de 17 de Junho63.

6. O Critério da “necessidade” de tutela penal

a) Necessidade de tutela penal e princípio jurídico-constitucional da


proporcionalidade em sentido amplo.

Na concepção teleológico-funcional que se expôs e dentro da perspectiva racional que


se defendeu, não pode haver criminalização se não houver um bem jurídico a tutelar;
contudo o contrário já não é verdadeiro. Com efeito, não se pode dizer que, sempre que
existir um bem jurídico digno de tutela aí deve intervir o direito penal. O que se acaba
de dizer, significa que o conceito material de crime é essencialmente construído pela
noção de bem jurídico. Todavia, essa noção tem que ser acrescida de um qualquer outro
critério para poder legitimar a criminalização.
O critério como já várias vezes se referiu é o da necessidade de tutela penal. A
violação de um bem jurídico não é suficiente para que se desencadeie a intervenção
penal. É importante ainda que tal intervenção se mostre absolutamente indispensável à
livre realização da personalidade de cada um na comunidade. Por isso é que o direito


63
Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, publicada no Diário da República da 1ª Série nº 110, 2008.

39
penal constitui a ultima ratio da política social, sendo a sua intervenção de natureza
definitivamente subsidiária. 64
Esta limitação da intervenção penal resulta da Constituição nº1 do artigo 57º e respeita
ao princípio da proporcionalidade em sentido amplo, já referido a propósito das
restrições aos direitos e liberdades fundamentais – que é um dos princípios inerentes ao
Estado de direito. O direito penal, com as suas sanções, utiliza meios muito gravosos
para os direitos liberdades e garantias das pessoas e, por isso, só deve intervir nos casos
em que todos os outros meios se mostrem insuficientes ou inadequados. Tal como
acontecerá nos casos em que a tutela pode ser feita por meios do direito civil ou
disciplinar, por exemplo.
O mesmo acontece quando se pretende prevenir determinados ilícitos, ou seja, sempre
que a criminalização de certos comportamentos se mostre como factor de criação de
mais violações do que aquelas que a criminalização pretende evitar; veja-se os casos
dos chamados crimes sem vítima, como o consumo de droga ou de álcool, a promoção
da prostituição e da pornografia.
A prevenção e controlo desses comportamentos mostra-se mais eficaz quando deixada
para meios não penais de controlo social. Assim, pode se afirmar com segurança que a
função principal do direito penal e também a essência do conceito material de crime é
a tutela subsidiária (de ultima ratio) de bens jurídicos.

b) A questão das imposições constitucionais implícitas de criminalização

O que se acaba de referir avança mais um passo na questão do relacionamento entre a


ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos. Referiu-se supra
em 5.b.2) que essa é uma relação de mútua referência, no sentido de que todo o bem
jurídico penalmente relevante tem que encontrar uma referência expressa ou implícita
na ordem constitucional dos direitos e deveres fundamentais.
Simplesmente, e em obediência ao critério da necessidade – e consequentemente da
subsidiariedade do direito penal dos bens jurídicos –, já não será verdadeiro dizer-se
que não existem imposições jurídico-constitucionais implícitas de criminalização. Com


64
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 66; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, pp. 57 a 59.

40
efeito, onde o legislador constitucional aponte expressamente a necessidade de
intervenção penal, tenha o legislador ordinário de seguir a injunção e criminalizar os
comportamentos respectivos sob pena de inconstitucionalidade (se bem que o
legislador constitucional não deixa de conceder uma margem de liberdade ao legislador
ordinário para na exacta medida determinar a concreta forma de criminalização, bem
como as respectivas sanções com que os comportamentos devem ser ameaçados e a
consequente medida da pena).65
Já no que se refere aos casos em que tais injunções constitucionais não existam de forma
expressa, a existência de um valor jurídico-constitucionalmente reconhecido como
integrante de um dever fundamental, não legitima sem mais a dedução de exigência de
criminalização dos comportamentos que violem, precisamente para que não seja
ultrapassado o critério da necessidade; critério que cabe ao legislador ordinário avaliar
e que só em casos extremos poderá ser jurídico-constitucionalmente verificado. A título
de exemplo, se o legislador ordinário entender sancionar o homicídio doloso apenas
com uma sanção jurídico-civil.
A questão das imposições jurídico-constitucionais implícitas de criminalização tem
sido objecto de muita discussão na doutrina e na jurisprudência de muitos países. De
facto, a propósito do aborto, por exemplo, nos países que o não criminalizam e sugerem
a aplicação de meios não penais de política social. Outro aspecto que também respeita
às injunções jurídico-constitucionais implícitas, respeitam ao direito dos cidadãos à
segurança. Haverá ou não na Constituição uma injunção que obrigue o legislador
ordinário a decidir da sua tutela?66

c) O princípio da não intervenção moderada e o movimento da descriminalização

A função do direito penal de tutela de bens jurídicos, o carácter subsidiário dessa tutela,
ligado ao princípio da necessidade, conduzem a uma proposição político-criminal
fundamental que se traduz no seguinte: para que haja um domínio eficaz do fenómeno
da criminalidade dentro de quotas sociais suportáveis é imperioso que o Estado, e o seu


65
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 68; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 59.
66
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 69; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 60.

41
aparelho formal de controlo do crime, intervenha o menos possível. O Estado só deve
intervir na medida exacta do requerido pelo asseguramento das condições essenciais ao
funcionamento da sociedade. Este é o princípio da intervenção moderada que passa
assim a desempenhar o papel de trave mestra de todo o novo programa político-
criminal.
Resulta daqui para o conceito material de crime que:
a) Devem ser expurgados do conceito material de crime todos os
comportamentos que não acarretem lesão (ou perigo de lesão) para bens
jurídicos claramente definidos; ou que, mesmo que acarretem possam ser
contidos ou controlados por meios não penais de política jurídica ou de política
social não jurídica.
Esta implicação está contida no movimento da descriminalização.
b) Por outro lado, novos processos de criminalização – a designada
neocriminalização – só devem ser aceites como legítimos, onde novos
fenómenos sociais, antes inexistentes, raros ou socialmente pouco
significativos revelem o surgimento de novos bens jurídicos para cuja
protecção é importante fazer intervir a tutela penal em substituição da anterior
estratégia não criminal de controlo social.67

II. A questão da definição social de crime

Expostas as notas que permitem encontrar um conceito material de crime é, contudo,


necessário salientar que a realidade criminal não resulta apenas do seu conceito ainda
que material, mas da construção social dessa realidade.
A realidade criminal é, em grande medida, resultado da sua definição social operada
em última análise pelas instâncias formais de controlo, quaisquer que sejam – a polícia,
o ministério público, o juiz, o legislador – e mesmo informais como a família, escola,
igreja, vizinhos, etc.
No fundo, a realidade do crime não deriva apenas da origem ontológica ou ôntica
(relativa ao ser) de certos comportamentos. Ela é resultado da “combinação de
determinadas qualidades materiais dos comportamentos com o processo de reacção


67
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 70 e 71; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, pp. 61 e 62.

42
social àquele, conducente à estigmatização dos agentes respectivos como criminosos
ou delinquentes”.68
Becker, fundador do labeling approach, em os Outsiders (1963, p. 9), diria “são os
grupos sociais que criam a deviance ao elaborar as normas cuja violação constitui a
deviance ao aplicar estas normas a pessoas particulares, estigmatizando-as como
marginais”.
A combinação referida assume o carácter de um verdadeiro processo de selecção do
crime e do criminoso. A perseguição criminal é selectiva. Beneficia aqueles que estão
em condições de influenciar e dirigir a redução da complexidade social de certas
expressões da vida, e desfavorece aqueles que não se encontrem nessa situação. Vejam-
se os casos de com regularidade se apresentarem ou de simplesmente não existirem nas
estatísticas oficiais da criminalidade, membros de certos extractos sociais e
profissionais e aqueles que constam das listas das instâncias formais de controlo quer
sobre representação – os designados marginais: drogados, homossexuais, prostitutas,
meninos de rua, lavadores de carros, vendedores ambulantes, etc. – e sub-representados
como acontece com os magistrados, políticos, grandes empresários, etc.
A ideia exposta permite, desde logo, afastar a tese que o crime é um fenómeno típico
da classe de pessoas marginais, consideradas do ponto de vista da moral social e
subscrevendo a ideia da normalidade e ubiquidade do fenómeno criminal. Essa ideia
não deve, contudo, ser exagerada. Com efeito, o comportamento criminal tem, de facto,
duas componentes irrenunciáveis – o comportamento em si e a sua definição como
crime – pelo que não pode qualquer outra doutrina que a ele se dirija esquecer essas
duas vertentes.
No fundo, e procurando um paradigma integrativo, o conceito material de crime deve
ser “completado pela referência aos processos sociais de selecção, determinantes em
último termo daquilo que é realmente tratado como crime”69


68
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 72 ; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 62. Os itálicos são
do autor.
69
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 72 e 73; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, pp. 62 a 64.

43
TEXTO N.º 5

5.º CAPÍTULO: AS SANÇÕES JURÍDICAS DO COMPORTAMENTO


CRIMINAL: AS PENAS CRIMINAIS

I. O problema dos “fins das penas” criminais

O problema dos fins das penas é na teoria do Direito Penal a discussão em torno das
questões fulcrais do Direito Penal: legitimação, fundamento, justificação e função de
intervenção penal estadual.70
A questão torna-se fundamental porque o sentido, o fundamento e as finalidades da
pena criminal constituem determinação indispensável para que se possa decidir como
é que a pena deve actuar para que se cumpra a função do direito penal.
O problema dos fins das penas reage sobre o próprio conceito material de crime,
particularmente através do princípio da necessidade e co-determina por aí a questão da
função do Direito Penal.
Esta questão, tão discutida ao longo dos anos pela filosofia, pela dogmática penal e pela
teoria do Estado, reconduz-se a três teorias fundamentais: teorias absolutas, teorias
relativas e teorias mistas ou unificadoras.

II. Teorias Absolutas


A pena como instrumento de retribuição

Para as teorias absolutas, a pena tem na sua essência e esgota-se na ideia de retribuição,
expiação (castigo), reparação ou compensação do mal do crime. Quaisquer outros
efeitos laterais, ainda que socialmente relevantes, como a intimidação da generalidade
das pessoas, a neutralização do delinquente ou a sua reintegração na sociedade –
ressocialização – em nada alteram a natureza da pena. Ela é apenas a justa paga do mal
que no passado se cometeu. É um justo equivalente do dano provocado pelo facto
criminoso ou pela culpa do agente. A medida concreta da pena que deve ser aplicada


70
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 75; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, pp. 65 e 66.

44
ao agente de um determinado facto criminoso só pode ser encontrada a partir da
correspondência entre a pena e o facto, ou entre a pena e a culpa do agente. Não
interferem aqui quaisquer considerações de natureza social
Assim, desde muito cedo a pena foi entendida tanto historicamente como no sentimento
cultural comunitário, como a forma de expiação do mal do crime.71
ainda que altamente relevantes.
A partir daqui qualquer teoria dos fins das penas deixa de se preocupar com o facto que
ocorreu, com a essência e a natureza desse facto. A pena é aplicada porque o agente
pecou – formulação encontrada por Protagoras (entre 485 a.C a 415 a.C). Esta
formulação foi recebida por Platão (entre 427 a.C a 347 a.C.) e transmitida por Seneca
(65 d. C): punitur, quia peccatum est.

II. 1. 1. A concepção da pena acabada de referir encontrou o seu fundamento no


pensamento filosófico do antigo princípio de Talião – “olho por olho, dente por dente”;
na Idade Antiga quando alimentado por representações mitológicas; na Idade Média
em representações que eram já, fundamentalmente, racionalizações religiosas segundo
as quais a realização da justiça constituía um mandamento de Deus sendo o Juiz
encarregado da sua aplicação, já que era visto como o representante da justiça divina
na Terra.
Com a Idade Moderna e Contemporânea, a teoria da retribuição foi buscar a sua
fundamentação à filosofia do idealismo alemão em que se destacaram as figuras de
Kant e Hegel.72
Kant trouxe para o direito penal o princípio da dignidade do Homem como fim em si
mesmo, como imperativo categórico. O delinquente deve ser punido porque cometeu o
crime, porque é culpado e não porque a sua punição é um bem para ele próprio ou para
a sociedade. O Homem não é um objecto porque a sua dignidade impede que o seja. A
partir destes postulados, Kant veio produzir um impacto pois defendia uma retribuição
assente nas ideias de restabelecimento da ordem violada, intimidação, segurança,
emenda.


71
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 77; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 68.
72
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 78; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, pp. 68 e 69.

45
Hegel, por seu lado considera o crime como a negação do direito e a pena como a
negação da negação (negação do crime). O crime nega o direito, a pena nega o crime
por isso é a negação da negação que vem reafirmar a validade do direito. Hegel não
aceita a ideia de prevenção, pois o Homem deve ser tratado como um ser humano que
tem honra e dignidade.
Para a retribuição o crime é pressuposto e medida da pena. O mal que a pena faz sofrer
ao criminoso deve ser equivalente, adequado ao mal que o delinquente fez sofrer à
sociedade.

II. 1. 2. Considerações
Durante muito tempo, a fundamentação das teorias absolutas da retribuição assentou
nos termos “compensação” do “mal do crime” e “igualação” do “mal da pena”.
Contudo, e passado o período do princípio de Talião, acabou-se por concluir que a
igualação ao mal da pena não podia ser fáctica, mas deveria ser normativa. Por outro
lado, haveria ainda que se saber se a retribuição assumia um carácter de reparação de
um dano real, de um dano ideal ou se intervinha aí alguma outra grandeza; finalmente
se a reparação ocorria em função do desvalor do facto ou se do desvalor da culpa do
agente.
A discussão acerca desta questão já terminou e conclui-se que a “compensação” em
que a retribuição assenta, só pode ser função da culpa. Pois, se a doutrina da retribuição
se fundamenta em exigências de “justiça”, então cada pessoa só pode ser tratada
segundo a sua culpa. Acresce, que se o homem actua e por isso deve ser tratado segundo
a sua honra e liberdade, também aqui o princípio da culpa deve presidir todo o direito
penal humano, democrático e civilizado: “não há pena sem culpa e a medida da pena
não pode ultrapassar a medida da culpa”.
O mérito das doutrinas retributivas absolutas residiu exactamente no se ter
erigido a culpa em princípio absoluto de toda a aplicação da pena e
consequentemente o negar-se determinantemente qualquer pena que violasse a
dignidade da pessoa humana73.


73
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 79 ; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 69: CORREIA,
Eduardo, Direito Criminal I, p. 45 e ss. e 63 e ss.; RODRIGUES, Anabela Miranda, A Determinação da
Medida da Pena Privativa da Liberdade, Coimbra Editora, 1995, pp. 152 e ss.; FERREIRA, António de
Cavaleiro, Direito Penal, 1982, p. 299.

46
II. 1. 3. Crítica à doutrina retributiva
Não obstante o seu mérito, a doutrina retributiva deve desde logo ser recusada.
Primeiro porque não quer ser uma teoria dos fins das penas uma vez que considera e
trata a pena como entendida independentemente dos seus fins, como majestade
dissociada de fins, no dizer de Maurach. Com efeito, quando se indaga sobre o fim de
uma pena, está-se a questionar sobre os efeitos que ela produz e que são relevantes na
vida da comunidade. Por isso, não pode a questão ser vista apenas como meramente
terminológica.
Em segundo lugar, a doutrina da retribuição choca com a legitimação, fundamentação
e sentido da intervenção penal. Estas só podem derivar da necessidade de se atribuir ao
Estado o direito de proporcionar as condições de existência da comunidade e a cada
cidadão o espaço indispensável para a livre realização da sua personalidade.
Ora, a realização dessa função não se compadece com ideias de expiação ou
compensação do mal do crime. É já do nosso conhecimento que o Estado Democrático,
laico e pluralista em que vivemos, não se pode colocar numa situação de defensor do
pecado ou do vício; não pode recorrer a uma pena totalmente dissociada de fins nem
pode ver-se como entidade terrena encarregada da realização da justiça. A sua função
é de defesa dos bens jurídicos.74
Importa, contudo, realçar que essa correspondência entre pena e culpa não é
biunívoca, ou seja, se toda a pena pressupõe culpa, nem toda a culpa pressupõe a
aplicação de uma pena criminal. De facto, só reclama pena, aquela culpa que
acarrete a necessidade ou careça dela.75 Só nessa perpsectiva se pode entender que
“a culpa é pressuposto e limite, mas não fundamento da pena.”


74
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 79 e 80; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 70; ROXIN,
Claus, “Concepção bilateral e concepção unilateral do princípio da culpabilidade” in Culpabilidad y
Prevención en Derecho Penal (tradução de Muñoz Conde, 1981) pp. 187 e ss.; RODRIGUES, Anabela
Miranda, A Determinação ..., pp. 123 e ss.
75
De facto, não está em vigor no ordenamento jurídico penal e processual penal angolano, o instituto da
“dispensa da pena”, que assenta exatamente no fundamento de não aplicação de uma pena a quem tem
culpa. No ordenamento jurídico português, esse instituto pode ser encontrado no artigo 74.º do Código
Penal. A não aplicação da pena deve-se ao facto de o crime não carecer dela porque não se apresenta
qualquer exigência de prevenção. Já em termos de direito a constituir, na República de Angola, o Projecto
de Novo Código Penal, prevê o referido instituto no artigo 72º.

47
III. Teorias Relativas

III. 1. As teorias relativas são teorias dos fins das penas. Essência: a pena é um mal
para quem a sofre. Mas é um instrumento mundial de política criminal. Por isso
não pode bastar-se com a característica de ser um mal destituído de qualquer
sentido social-positivo. Ela visa alcançar um fim de política criminal que é ou a
prevenção ou a profilaxia criminal.
Desta forma, a pena pode ser utilizada como instrumento de tutela subsidiária de bens
jurídicos, próprios da função do direito penal. Contudo, esse fim de política-criminal
que a pena persegue tem que ser historicamente enquadrado e olhado a partir da
distinção feita pelas doutrinas da prevenção geral e da prevenção especial ou individual.

III. 2. A Pena como instrumento de Prevenção Geral


As doutrinas da prevenção geral têm como denominador comum, a concepção que parte
da ideia de que a pena é um instrumento político-criminal que actua (psiquicamente)
sobre a generalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes.
A forma de actuação é pela ameaça que através da lei a pena constitui, a realidade que
representa a aplicação judicial da pena e a efectividade da sua execução.
A actuação estadual sobre a generalidade das pessoas, deve ser entendida de uma dupla
perspectiva: a) a pena pode ser concebida como meio de prevenção geral negativa ou
de intimidação. Desta perspectiva, a pena serve para intimidar as outras pessoas porque
provoca um mal que faz sofrer a pessoa do delinquente; por esse facto, essas pessoas
são conduzidas a não cometer factos criminosos.
Por outro lado, b) a pena pode também ser entendida como meio de prevenção geral
positiva ou de integração. Nesse sentido, o Estado serve-se da pena para manter e
reforçar a confiança da comunidade na validade e vigência das normas que tutelam bens
jurídicos e consequentemente no ordenamento jurídico-penal. A pena revela a
inquebrantabilidade da ordem jurídica, face à comunidade.

III. 2. 1. A primeira formulação acabada de uma doutrina da prevenção geral deveu-se


a um dos mais autênticos fundadores do direito penal moderno – Paul Johann Anselm
Von Feuerback (1801). Este autor sustentou a tese da coacção psicológica segundo a
qual a primeira finalidade da pena “seria a de criar no espírito dos potênciais criminosas

48
um contra-motivo, suficientemente forte para, em definitivo, os afastar da prática do
crime.”
Na alma do potencial criminoso digladiam-se motivações que conduzem ao crime e
contra-motivações que resultam do conhecimento do mal da pena. Contudo, é
importante que a pena seja suficientemente poderosa para vencer a motivação para o
crime, pois só assim pode contribuir eficazmente para a prevenção.
A doutrina da coacção psicológica encontrou apoio nas doutrinas psicológica da
profundidade e nas doutrinas psicanalíticas – particularmente em Freud (1856-1940).
Na linha dessas doutrinas, as pessoas dominam as suas tendências criminosas, quando
reconhecem que quem se decida pela via do crime sofre mais danos pessoais do que
vantagens; defendem assim, que a pena tem como função primordial a legitimação. Por
outro lado, essas doutrinas são ainda confirmadas quando se chega à conclusão de que
a pena tem como função principal a legitimação da ordem vigente e a manutenção da
estabilidade e paz jurídicas.76
Uma perspectiva mais recente das doutrinas da prevenção geral é dada pelas actuais
teorias sistémico-sociais. Essas teorias reafirmam a função do direito penal, de tutela
subsidiária de bens jurídicos, que encontram na pena a legitimação dos seus
instrumentos específicos. Por outro lado, reforçam a redução da função da pena no
sistema social à expressão simbólica de reafirmação contra-fáctica de fidelidade devida
às normas jurídicas de um dado ordenamento positivo.77

III. 3. Contribuição das Doutrinas de Prevenção Geral


Contrariamente às doutrinas da retribuição, as doutrinas da prevenção geral trouxeram
para a teoria dos fins das penas, um contributo muito positivo. Desde logo, porque a
elas se ligou directa e imediatamente a ideia da função do direito penal de tutela
subsidiária e de ultima ratio de bens jurídicos.
Entendida a função do direito penal, exige-se que a pena actue de forma preventiva
sobre a generalidade dos membros da comunidade tanto no momento da ameaça
abstracta como na aplicação concreta ou sua execução.


76
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 84 e 85; DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, O Homem delinquente e
a sociedade criminógena”, pp. 178 e ss.; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal,
2001, pp.75 e ss.
77
DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 85; RODRIGUES, Anabela
Miranda, A determinação, pp. 254 e ss.

49
Mas critica-se a prevenção geral argumentando- se que os índices de criminalidade
registada ou conhecida pela polícia e não naturalmente os de criminalidade real –
porque continuam a ser profundamente desconhecidos – mostram que a função de
prevenção geral é inefectiva; mas é indiscutível que uma tal finalidade se cumpre
relativamente à maioria esmagadora da população. De resto, o argumento só poderia
servir e provar alguma coisa contra a efectividade da pena e não contra a finalidade que
é assinalada.

III. 3. 1. Crítica às Doutrinas da Prevenção Geral


O grande argumento que se apresenta contra as doutrinas da prevenção geral é o que já
se apresentou a propósito de todas as doutrinas da prevenção: por serem comandadas
apenas por considerações de índole pragmática e funcional, fazem da pena um
instrumento que viola de forma inadmissível a eminente dignidade da pessoa humana.
Com efeito, o argumento teorético que se utiliza para criticar as doutrinas da prevenção
geral põe a claro o facto de elas serem apresentadas apenas no seu cariz negativo, ou
seja, como forma de intimidação da generalidade dos cidadãos; daqui resulta, não se
poder determinar o quantum ( a quantidade) de pena, necessário para intimidar a
generalidade das pessoas; por outro lado, porque não logra atingir a irradicação do
crime, acaba-se, muitas vezes por se usarem penas cada vez mais severas, mais longas
e consequentemente mais desumanas, de tal modo que o direito penal acaba por se
transformar num direito penal do terror como historicamente já aconteceu e, assim,
indiscutivelmente mais violador da dignidade humana.78

Diferentemente se passarão as coisas, se a prevenção se perspectivar numa vertente


positiva, como prevenção de integração, de tutela da confiança geral na validade e
vigência das normas do ordenamento jurídico, relacionada com a protecção dos bens
jurídicos. A seguir-se esse critério, encontrar-se-á uma pena não propriamente uma
pena exacta mas uma moldura que se apresentará como justa e adequada à culpa do
delinquente. Por outro lado, também aqui a medida concreta da pena a aplicar ao
delinquente não pode deixar de ter como limite inultrapassável a culpa, mesmo quando
seja o resultado de considerações de prevenção geral positiva. Assim sendo, esses


78
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 86 e 87; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, p.

50
limites inscrevem-se justamente em nome da inviolabilidade da dignidade pessoal. Esta
posição de Figueiredo Dias e Costa Andrade é contrária à defendida pela generalidade
da doutrina alemã.
Para esta, a medida da pena deve ser dada essencialmente através da medida da culpa;
mas a culpa não se oferece ao aplicador da pena como uma medida exacta mas como
uma moldura de culpa que oscila no quadro da moldura geral entre um máximo e um
mínimo. Relativamente às questões de prevenção, elas actuam dentro dessa moldura da
culpa e, dentre as diversas penas que correspondem à culpa, deve ser escolhida a que
se mostre mais adequada a operar a socialização do delinquente.79
Numa linha um tanto modificativa mas que não altera o núcleo essencial da doutrina
alemã, Roxin sustenta que em certos casos especiais “a força das considerações de
prevenção especial de socialização conduz a quebrar o próprio limite mínimo da
moldura da culpa, permitindo que a pena concreta venha a situar-se abaixo daquele
limite: em casos tais, a pena concreta deixaria já de ser adequada à culpa e encontrar-
se-ia justificada por razões imperiosas e de outro modo não realizáveis, de
socialização.80
Anabela Rodrigues, da doutrina portuguesa, critica esta posição de Roxin, considerando
que se trata de uma “versão disfarçada de retribuição”.81
Deste ponto de vista, a doutrina da prevenção geral passa a oferecer um entendimento
racional e político-criminalmente fundado ao problema dos fins das penas e de muitos
outros da Dogmática penal para os quais não se encontrou ainda alternativa viável.82

III. 3. 2. A pena como instrumento de prevenção especial ou individual


Para as doutrinas de prevenção especial ou individual, a pena é um instrumento de
actuação preventiva sobre o próprio delinquente, procurando evitar que ele no futuro
cometa novos crimes. Nesse sentido, a pena tem uma finalidade de prevenção da
reincidência, no dizer de Eser.


79
DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, editorial
Notícias, Lisboa, 1993, p. 224; na doutrina portuguesa, entre outros, CORREIA, Eduardo, Direito
Criminal II, pp. 62 e ss.; FERREIRA, Manuel de Cavaleiro, Direito Penal, 1989, pp. 103 e ss.;
GONÇALVES, Maia, Código Penal Anotado, anotação ao artigo 72.º.
80
ROXIN, Claus, “Culpabilidade e Prevenção em Direito Penal”, 1981, pp. 104 e ss.
81
RODRIGUES, Anabela Miranda, A determinação da Pena Privativa de Liberdade”, 1995, pp.
82
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 87 a 89 ; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, p.

51
Se o ponto de partida é unânime, já o momento da prática encontra divergências entre
os seus defensores pois coloca-se a seguinte questão: como é que a pena vai cumprir
aquela sua finalidade?
As doutrinas neste particular dividem-se entre aquelas que defendem uma prevenção
especial negativa ou de inocuização e as que sustentam uma prevenção especial positiva
ou de socialização.

a) A prevenção especial negativa ou de inocuização


• A prevenção deve dirigir-se apenas à intimidação individual do delinquente,
pois a sua “correcção” seria uma utopia. Assim, a pena deveria procurar
atemorizar o delinquente a tal ponto que o levasse a não repetir no futuro a
prática de crimes.
• A prevenção especial deveria lograr alcançar um efeito de pura defesa social
através da separação ou segregação do delinquente conseguindo-se assim a
necessária neutralização da sua perigosidade social.

b) A prevenção especial positiva ou de socialização


• A prevenção especial deve lograr a reforma interior (moral) do delinquente, um
autêntica metanoia, ou seja, a emenda do criminoso conseguida através da sua
adesão íntima aos valores que conformam a ordem jurídica.
• A prevenção especial não se deverá dirigir propriamente a uma emenda moral
do criminoso, mas a um verdadeiro tratamento das suas tendências individuais
que conduzem ao crime, da mesma forma como se de um doente se tratasse e,
segundo um modelo clínico.
• A prevenção especial deveria atender ao modo de ser do delinquente, as suas
concepções, sobre a vida e sobre o mundo, a sua posição face aos juízos de valor
do ordenamento jurídico e assim criarem-se as condições para que no futuro ele
possa continuar a sua vida sem cometer crimes.

As doutrinas da prevenção especial-individual, nesta última vertente exposta, visam a


reinserção social do delinquente.83


83
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 89. As doutrinas da prevenção especial afirmaram-se na segunda metade do séc. XIX por força
da escola positivista sociológica italiana (Ferri, 1856-1929) e alemã (Liszt, 1851-1919). Contudo, tanto

52
A grande contribuição da prevenção especial, sobretudo quando assume a forma de
prevenção especial positiva ou de socialização, revela uma particular sintonia com a
função de tutela subsidiária de bens jurídicos que, afinal se pretende, quando a
aplicação da pena ao delinquente visa evitar a reincidência.
Também se deve considerar que o Estado não tem legitimidade para infligir ao
delinquente uma pena apenas como um mal, senão quando esse mal incorpora um
carácter social positivo, mesmo na defesa social, nas situações em que a socialização
se revela inalcançável mas os interesses de segurança da generalidade dos cidadãos
prevaleçam notoriamente sobre o mal que a aplicação da pena ao delinquente
representa; finalmente é importante, ainda, considerar que o Estado tem a obrigação de
apoiar aqueles que se encontrem em situação social difícil e necessitem de reinserção.

Crítica às doutrinas da prevenção especial


Desde logo a primeira crítica às doutrinas da prevenção especial dirige-se à forma e
sentido diversificados que assumem:
• nega-se que a prevenção possa ser um meio de correcção ou emenda moral do
delinquente;
• o paradigma médico, sobretudo quando ele aparece como tratamento coactivo
das inclinações e tendências do delinquente para o crime. A crítica aqui vai no
sentido de que o Estado não tem legitimidade para, coactivamente, infligir
tratamentos ao delinquente, já que isso significaria uma violação da liberdade
de autodeterminação do delinquente e consequentemente, de princípios
constitucionais imperativos como o da preservação da eminente dignidade
pessoal. Vejam-se, artigos 1º e nº2 do artigo 31º da CRA.
• O pensamento da prevenção especial não pode assumir-se como finalidade
única da pena pois, a ser assim, estar-se-ia a concordar com a pena de duração
absolutamente indeterminada, aplicável enquanto persistisse a situação de


em Portugal como em Espanha, elas surgem em momento estão ligadas às teses que defenderam a escola
correccionalista. Teses que convergiam na ideia de que todo o homem é, por natureza, susceptível de ser
corrigido; assim, a pena seria antes destinada a operar a correcção do delinquente, a única e melhor forma
de evitar que ele volte e continue a cometer crimes no futuro. Estas teses tiveram a sua origem ideológica
em oposição à filosofia de Krause, e à filosofia jurídico-penal de Roeder, às teses de Kant sobre o
conceito de direito e, mais vivamente saudada em Portugal pela filosofia jurídica de Vicente Ferrer Neto
Paiva. Ainda no direito português, os penalistas Levy Maria Jordão (1831-1876) e Ayres de Gouvêa
(1828-1916) fizeram dessa concepção básica o seu estandarte que esteve na base de muitas inovações
pioneiras do direito penal português.

53
perigosidade do delinquente. Esta ideia, por sua vez, está ligada à de
“incorrigibilidade” de certos delinquentes, que levaria a aplicação a pequenos
delitos, de penas, por exemplo, de separação de inocuação, de prisão perpétua
ou mesmo à pena de morte, quando se verificasse a repetição por virtude de uma
certa tendência incontrolável do delinquente (ex.: o pequeno burlão, o pequeno
ratoneiro).
• Finalmente, nas situações em que a socialização se mostra desnecessária porque
o próprio agente dele não carece. Certo, embora, que não sejam muitos os casos
em que esta situação se coloca, mas não há dúvidas de que existirão. A afirmar
que o pensamento da prevenção geral positiva não pode ser visto como solução
integral do problema dos fins das penas.

IV. Teorias Mistas ou Unificadoras

Nas últimas décadas, a doutrina portuguesa, procurou encontrar uma teoria dos fins das
penas que fosse a combinação sob diversos pontos de vista das doutrinas da retribuição,
da prevenção geral e da prevenção especial.84 A ideia base dessas teorias mistas assenta
no seguinte: a pena é na sua essência, retribuição da culpa (no momento da sua ameaça
abstracta) dirigindo-se à ressocialização do agente no momento da execução efectiva.
No fundo, a pena visaria predominantemente fins de prevenção especial.
O que se pretende, com as teorias mistas é chamar à atenção para o facto de que o
problema dos fins das penas não se resolve, com recurso, a apenas uma das doutrinas
expostas. De resto, solucionar o problema dos fins das penas não é fechar a questão do
seu conteúdo e medida concretos a aplicar num certo processo penal.
Mas o que se acaba de dizer deve permitir concluir que, também as teorias mistas ou
unificadoras não resolvem de forma definitiva, legítima e correcta, o problema dos fins
das penas.
Com efeito, a ideia de retribuição, enquanto ideia absoluta, sobrepõe-se sobre doutrinas
preventivas, sendo que continuam válidas as objecções feitas a propósito das doutrinas
absolutas.


84
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 93; CORREIA, Eduardo, Direito Criminal I, pp. 52 e ss.

54
Quando se misturam doutrinas absolutas com doutrinas relativas, fica-se sem saber qual
o fundamento teórico e a razão da legitimação da intervenção da pena. Tanto o
fundamento como a legitimação assentam em concepções diferentes do direito de punir
e consequentemente da legitimação da intervenção penal estadual.85


85
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 94.

55
TEXTO N.º 6

FINALIDADES E LIMITES DAS PENAS CRIMINAIS

1. A natureza exclusivamente preventiva das finalidades das penas


Na opinião de Figueiredo Dias, a pena só pode prosseguir fins de prevenção. Seja de
prevenção geral positiva ou negativa, seja de prevenção especial positiva ou negativa.
Nunca de retribuição. O fundamento do direito penal assenta na necessidade de se
subtrair da autonomia e disponibilidade de cada pessoa o mínimo dos seus direitos,
liberdades e garantias. Aqueles que sejam os indispensáveis ao funcionamento sem
entraves da sociedade, a preservação dos bens jurídicos essenciais, permitindo assim a
realização o mais livre possível da personalidade de cada um, enquanto pessoa e
enquanto membro da comunidade. Entendida nesse sentido, a pena não pode ter outra
finalidade que não seja de prevenção contra a prática de crimes no futuro.
Simplesmente, não se pode assinalar à pena finalidades só de prevenção geral ou só de
prevenção especial. Há toda uma necessidade de se combinar as duas finalidades,
embora, por vezes, essa combinação se mostre conflituante. Por outro lado, há que saber
como é que se devem comportar as duas espécies de finalidades aquando da decisão
pelo juiz do quantum exacto da medida “concreta” da pena ou “judicial” ou ainda
rectior et simpliciter de medida da pena.
A doutrina mais recente entende, por isso, que o problema do “conflito dos fins das
penas” é no fundo o problema do “modelo de medida da pena” e inversamente.86

2. Ponto de partida: as exigências de prevenção geral positiva ou de


integração
A finalidade primeira visada pela pena há-de ser a tutela necessária de bens jurídicos
no caso concreto. Mas a determinação da medida da pena há de também assentar nessa
ideia de tutela. Trata-se de uma tutela não retrospectiva, mas prospectiva, ou seja,
relativamente a futuros crimes e sobretudo à confiança e a expectativa da comunidade
na validade da norma violada. Em síntese, a finalidade primária da pena é o
restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime. Esta finalidade cobre


86
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 114 e 115; RODRIGUES, Anabela Miranda, A determinação ..., 1995, pp. 44 e ss.

56
a ideia de prevenção, de integração e, por outro lado, dá conteúdo ao princípio da
necessidade da pena, constitucionalmente previsto, artigos 57º, 58º, 64º, nº3 e 4 do
artigo 65º, nº1 do artigo 66º, todos da CRA.
Com efeito, coube a Jakobs a formulação do princípio que já se devia ao pensamento
de Luhman, segundo o qual a finalidade primária da pena reside na estabilização contra
fáctica das expectativas na validade da norma violada. Simplesmente, para Jakobs, a
função estabilizadora da pena não assentava na defesa de bens jurídicos porque, para
este autor, a sociedade “não era nenhuma instância para conservação e muito menos
para maximização de bens”. A ideia da estabilização das expectativas da comunidade
traduz, na opinião de Figueiredo Dias e Costa Andrade uma exasperada normatização,
se entendida da perspectiva de Jakobs, implica um verdadeiro e perigoso resvalamento
da pena e do direito penal em direcção a uma função puramente simbólica. Entendem
aqueles autores que a função social primária do direito penal é, na verdade, a tutela de
bens jurídicos e que a ideia de estabilização das expectativas não é mais do que uma
forma de tradução daquela ideia essencial. Esta concepção da pena pode chamar-se um
“realismo” ou mesmo um “sociologismo” axiológico.
O afirmar-se que a prevenção geral positiva ou de integração constitui uma finalidade
primordial da pena e um ponto de partida para a resolução de eventuais conflitos que
se apresentem entre as diferentes finalidades preventivas significa ter-se a convicção
de que existe uma medida óptima de tutela de bens jurídicos e das expectativas
comunitárias que a pena se propõe alcançar; medida que, pelo principio da necessidade
não pode ser excedida por considerações de prevenção especial derivadas de qualquer
perigosidade do agente.
É verdade que essa medida óptima de prevenção geral positiva não oferece ao juiz o
quantum exacto da pena porque abaixo desse ponto óptimo, existirão outros em que a
tutela é ainda efectiva e a pena não perdeu ainda a sua função primordial de tutela de
bens jurídicos. Assim, para Figueiredo Dias e Costa Andrade é a prevenção geral
positiva e não a culpa que fornece a moldura de prevenção dentro de cujos limites
podem e devem actuar as considerações de prevenção especial.
Fica assim, no entender daqueles autores, deslindada uma das questões mais discutidas
a propósito do papel da prevenção geral na doutrina dos fins das penas. Com efeito,
pergunta-se se seria lícita uma elevação da pena em nome de exigências de prevenção
geral negativa ou de intimidação da generalidade das pessoas. Esta é, sem dúvida, um

57
efeito a considerar. Simplesmente, não o efeito primário, uma vez que este é, o de tutela
de bens jurídicos.

3. Ponto de chegada: as exigências da prevenção especial, nomeadamente da


prevenção especial positiva ou de socialização.

Para que, em última instância, se determine a medida da pena, os pontos de vista da


prevenção especial devem actuar, dentro dos limites da prevenção geral positiva ou de
integração e aqui, entre aquilo que se considera o óptimo e, o (aquilo) que a comunidade
admite como susceptível, para defesa da ordem jurídica. Neste sentido, qualquer das
funções da prevenção especial negativa de intimidação ou inocuização e ou positiva de
socialização é relevante.
Uma vez que a socialização constitui o vector mais importante do pensamento da
prevenção especial positiva, a medida de socialização constituirá, naturalmente o
critério decisivo das exigências de prevenção especial. Mas esse critério só é chamado
a actuar se o agente se mostrar carente de advertência. Assim, aquela medida poderá
baixar até ao limite mínimo da “moldura de prevenção” ou mesmo chegar a coincidir
com essa moldura.
O critério da carência de socialização tem levantado muita discussão na doutrina,
sobretudo em matéria de criminalidade económica do white-color crime (Sutherland,
1961). Considera-se que o “colarinho branco” não carece de socialização porque é um
indivíduo económico-socialmente estável, tem um modo de vida respeitável, uma
estabilidade comunitária. Simplesmente, essa argumentação falha porque a ela subjaz
um errado entendimento do que seja a socialização da perspectiva da prevenção
especial. Também o crime económico, como a fraude fiscal, o contrabando, etc.,
revelam um defeito de socialização do delinquente, por isso, o Estado está
relativamente a essas situações obrigado a tomar as medidas necessárias para evitar a
reincidência. Este posicionamento já não se verificará relativamente àqueles casos
situacionais ou ocasionais87.
Naqueles casos em que alguns autores chamam de incorrigibilidade, em que não há
esperanças de socialização do agente, fica em aberto a possibilidade de intimidação


87
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 118 e 119; DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito Penal Económico” in Centro de Estudos
Judiciários, Ciclo de Estudos, Coimbra, 1985, pp. 36 e ss.

58
individual ou de inocuização. Aqui, as medidas de segurança mostram-se, sem dúvida,
adequadas a servir essa prevenção especial.

4. A culpa como limite inultrapassável da pena

É um facto que a retribuição não trouxe para a doutrina dos fins das penas nenhuma
contribuição quer quanto ao seu conteúdo, como quanto à sua história. Porém, não se
lhe pode negar o grande mérito de ter posto em evidência a essencialidade do princípio
da culpa e do significado desse princípio para o problema dos fins das penas. Com
efeito, o princípio segundo o qual “não há pena sem culpa e a medida da pena não pode
ultrapassar a medida da culpa” definiu a verdadeira função da culpa no sistema
punitivo.
A culpa desempenha no sistema uma função de proibição do excesso. Não sendo,
embora, o fundamento da pena, ela é, contudo, o seu limite inultrapassável, quaisquer
que sejam as exigências de prevenção geral positiva de integração ou negativa de
intimidação, especial positiva de socialização ou negativa de inocuização.
Inscrita na vertente liberal do Estado de Direito, a função da culpa é estabelecer “o
máximo da pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da
pessoa humana e da garantia do desenvolvimento da sua personalidade”88.

Conclusão
Em conclusão, a teoria da pena que é defendida no presente texto pode resumir-se nos
seguintes pontos que são, também, definidos por Anabela Rodrigues89:
1. Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial.
2. A pena concreta é limitada e o seu máximo é inultrapassável pela medida da
culpa.
3. Dentro desse limite máximo, a pena é determinada no quadro de uma moldura
de prevenção geral de integração. O limite superior dessa moldura é dado pelo
ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos, enquanto que o limite mínimo é
constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.


88
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 120; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas Básicos, 2001, pp. 109 e 110.
89
RODRIGUES, Anabela Miranda, A determinação ..., 1995, pp. 152 e ss.

59
4. Ainda dentro dessa moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena
é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva
ou de socialização e só excepcionalmente negativa de intimidação ou segurança
individual.

O programa político-criminal que daqui se pode ser retirado embora não directamente,
mas dos artigos 56º a 67º da CRA. Por outro lado, e em termos de direito a constituir,
nos números 1 e 2 do artigo 40.º do Projecto de Novo Código Penal da República de
Angola, onde expressamente se declara no n.º 1 que “... a aplicação de penas (...) visa
a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e no nº 2 “em
caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

60
TEXTO N.º 790

CAPÍTULO VI

6.º CAPÍTULO: AS SANÇÕES JURÍDICAS DO COMPORTAMENTO


CRIMINAL: AS MEDIDAS DE SEGURANÇA

I. As medidas de segurança no sistema sancionatório

São dois polos em que o sistema das sanções do direito penal angolano assenta: o das
penas e o das medidas de segurança. As penas têm como pressuposto e limite
irrenunciável a culpa, enquanto as medidas de segurança têm na base a perigosidade
(individual) do delinquente. Assim entendido o sistema apresenta-se como dualista ou
de duplo binário.91
Foi o Projecto de Código Penal suíço de Carl Stoos (1893) e o “Contra-projecto” de
Liszt e Kahks (1911) que trouxeram para a dogmática a consciência da existência de
um tipo de sanções diferente das penas. Contudo, antes disso, já Despines e Lombroso
e mais tarde Ferri, vinham a defender a necessidade de um sistema de medidas de defesa
social que substituísse o anterior sistema. Mas isto não significa que antes não
existissem medidas que, na linguagem do sistema mais moderno pudessem ser
reconduzidas à categoria, medidas de segurança. Significa que, só a partir dos referidos
estudos, se ganhou maior consciência da necessidade de o sistema de penas ser
integrado por um outro, de medidas que, do ponto de vista político-criminal
apresentassem uma expressão diferente da das penas.
A aplicação de medidas de segurança mostrou-se, desde logo, indispensável para o
tratamento dos inimputáveis ou incapazes de culpa (menores de tenra idade, um
esquizofrénico, um oligofrénico pesado). Nestes casos, se o facto praticado e a
personalidade do agente mostrarem a existência de uma grave perigosidade, não pode
o sistema sancionatório penal deixar de intervir, sob pena de se deixar de cumprir uma
importante tarefa de defesa social que a política criminal impõe.


90
De importante consulta: RODRIGUES, Orlando Ferreira, Direito Penal I, Fasc. I.
91
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 123.

61
Outra razão que também está na base da indispensabilidade das medidas de segurança
relaciona-se com os imputáveis. Com efeito, estes são capazes de culpa; porém, pode
acontecer que os princípios que presidem à culpa e a medida da pena se revelem
insuficientes para atender à especial perigosidade, resultante das particulares
circunstâncias em que o facto ocorreu ou/e mesmo da personalidade do agente. Nestes
casos, pode ficar a ideia de, por um lado se atender à culpa pela aplicação de uma pena,
mas haver de se fazer recurso a uma medida de segurança por virtude da particular
perigosidade do agente.92

II. Finalidades e legitimação das medidas de segurança

O Problema das finalidades


A) Finalidade prevalente: a prevenção especial
As medidas de segurança visam uma finalidade genérica de prevenção. Pretende
-se evitar que o agente volte, no futuro, a cometer factos ilícitos típicos, garantindo-se,
assim, a segurança da comunidade. Trata-se de uma finalidade de prevenção especial
ou individual. A partir daqui a prevenção especial adquire uma dupla função:
a) uma função de segurança
b) uma função de socialização
Todavia é legítimo perguntar-se qual delas deve ser a primária. À primeira vista, a
função de segurança parece dever ter primazia já porque é a “protecção específica dos
interesses de segurança da vida comunitária que aqui está, de uma forma geral, em
questão.93 Contudo, a ideia é de socialização que deve presidir a aplicação das medidas
de segurança, não só porque princípios de humanidade e socialidade dominam a
constituição político-criminal 94 , como a segurança só deverá constituir finalidade
autónoma das medidas de segurança, lá onde efectivamente a socialização não se
mostre possível.
Importante é ressaltar que, embora se considere a função de socialização primária, não
deverá entender-se que essa função se justifica só por sim. É que as medidas de


92
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 124.
93
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 125.
94
Pelo menos em termos de direito a constituir. Vide artigos... 87º a 105º do Projecto de Novo Código
Penal da República de Angola.

62
segurança são aplicadas pela necessidade de prevenção da prática futura de factos
ilícitos típicos. Isto significa que para se aplicar a medida de segurança e
consequentemente operar-se a socialização é necessário que antes de tudo, o agente
cometa um facto qualificado pela lei como ilícito-típico que se mostre como sintoma
que reclame socialização. Por outro lado, é ainda indispensável que a perigosidade do
agente se verifique, ou seja, que haja perigo de no futuro ele voltar a cometer factos
ilícitos típicos.95

B) Finalidade secundária: a prevenção geral

Se a finalidade de prevenção especial é a que justifica a aplicação ao agente de medidas


de segurança, qual será então o papel da prevenção geral? Inicialmente houve quem
defendesse que a prevenção geral não teria qualquer autonomia no quadro das medidas
de segurança. Com efeito, defendem essas opiniões que a interdição de profissão,
actividades ou exercício de direitos, não serve para afastar a generalidade das pessoas
da prática de factos ilícitos típicos; de particular realce será a situação dos inimputáveis,
já que o Homem normal não pauta a sua conduta pelo comportamento de um
inimputável.
A consideração acabada de fazer não deixa de ser relevante. Contudo, em certas
situações há medidas de segurança que podem ser criadas pelo legislador, exactamente
tendo em vista o efeito de prevenção geral ainda que sob a forma de prevenção geral
negativa de intimidação.96 Por outro lado, é importante notar que a medida de segurança
é aplicada ao agente pela prática de um facto ilícito-típico; isso só pode acontecer
porque a medida de segurança tem também um função de protecção de bens jurídicos
e tutela das expectativas comunitárias na validade da norma violada, função que é
assacada à pena e que cobre a finalidade de prevenção geral positiva ou de integração
de forma autónoma e não apenas reflexa ou dependente da prevenção especial
assinalada.


95
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 125 e 126.
96
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 127, trazem o exemplo alemão: Roxin, refere a medida de segurança de inibição da faculdade
de conduzir (que) “actua sobre a generalidade de uma forma mais intimidante do que a pena que cabe ao
delito de tráfico”.

63
III. O problema da legitimação das medidas de segurança

As medidas de segurança encontram a sua legitimidade na finalidade global de defesa


social de prevenção contra a prática, pelo agente e, no futuro, de ilícitos-típicos. Assim
se justifica que elas sejam aplicadas apenas por decisão judicial e para elas encontram
também validade, os princípios da necessidade, da subsidiariedade e da
proporcionalidade. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcional à
gravidade do ilícito-típico cometido e à perigosidade do agente. Também e, não tendo
como limite a culpa, ela é contudo, uma reacção aceitável nos quadros do Estado de
Direito e concordante com o princípio absoluto do respeito pela dignidade da pessoa
humana.
Para fundamentar a legitimação, a finalidade de defesa social deve ser conjugada com
o princípio da ponderação de bens conflituantes. Na opinião de Roxin, esse princípio
defende que a liberdade da pessoa (de qualquer pessoa mesmo que inimputável) só pode
ser suprimida ou limitada “quando, com alta probabilidade, o seu uso conduza, a
prejuízo de outras pessoas que, na globalidade, pesa mais que as limitações que o
causador de perigo deve sofrer, com a medida de segurança.”97


97
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 130 e 131.

64
TEXTO N.º 8

CAPÍTULO 7: OS LIMITES DO DIREITO PENAL

1. Os limites materiais do direito penal derivam da função e da específica natureza


das sanções criminais.
Esses limites ganham um particular realce quando se atende a diferentes perspectivas:
• jurídico-constitucional, relativamente ao modo de produção das leis
• jurídico-processual
De todo o modo, essas perspectivas são o resultado das especiais exigências das
garantias dos direitos dos cidadãos, indispensáveis em matéria penal. Tais limites são
muitas vezes difíceis de traçar porque, noutros ramos do direito, o legislador também
utiliza “penas”, embora essas assumam natureza não criminal.

Resulta do exposto que, o que realmente delimita o direito penal relativamente aos
outros ramos do direito é a natureza, fundamento e as finalidades das consequências
jurídicas que aplica.

2. O Direito de Mera Ordenação Social (direito das contra-ordenações):


penas criminais e coimas

A) Do direito penal administrativo ao direito de mera ordenação social

A complexidade do tecido da ordem jurídica dos Estados contemporâneos ultrapassa o


âmbito das normas relativas aos fundamentos ético-sociais da vida em comunidade.
Contribui para essa situação, a ordem administrativa. No tempo do Estado de Polícia
iluminista desenvolveu-se uma grande esfera da administração e um abundante
ordenamento policial ainda que sem a subordinação a preceitos jurídicos.
A Revolução Francesa veio juridificar e sujeitar a administração à legalidade, ao
mesmo tempo que a actividade policial se dirigiu para a protecção antecipada de perigos
indeterminados para a consistência dos direitos subjectivos dos cidadãos.
Esses direitos subjectivos, por seu turno, estavam também sujeitos à tutela do Direito
Penal. Quando foi necessário fazer-se o enquadramento jurídico das ofensas ao

65
exercício policial da administração, esse foi encontrado no conceito de contravenção,
mas ainda dentro do direito penal e das suas formas de infracção98.
Por razões económicas, sociais, políticas e culturais que estiveram na base das duas
guerras mundiais, essa situação alterou-se. A administração tornou-se mais
conformadora e passou, a assumir funções pertencentes a círculos mais amplos, ligados
ao “cuidado com a existência” próprio do Estado social. Aqui a função mais importante
do Estado é cumprir as tarefas cada vez mais crescentes do “cuidado”, sem transtornos
e de forma dinâmica.
As penas criminais mais coactivas e mais efectivas mostraram-se aptas a intervir
sempre que fosse necessário fazer vincar o imperativo estadual, mesmo o de carácter
administrativo. Isto significou que o legislador se foi deixando embalar pela inevitável
ideia de colocar o aparato das sanções criminais ao serviço dos mais diversos fins de
política criminal. Assim aconteceu o fenómeno que se designou hipercriminalização e
o surgimento do direito penal administrativo.
Na actualidade, a política criminal é comandada pelo movimento da descriminalização
pelo que a situação descrita não pode persistir; assistiu-se assim a uma distinção
fundamental no domínio do chamado direito penal administrativo.
Nos casos em que as condutas proibidas devessem considerar-se relevantes à luz de
uma valoração prévia de carácter ético-social, elas mantinham-se no âmbito do direito
penal e passaram a fazer parte daquilo que se designou “direito penal secundário”.
Sempre que a valoração ético-social fosse considerada neutra, a ilicitude era constituída
materialmente apenas pela proibição e as condutas foram tidas como ilícitos
administrativos sendo, consequentemente, atiradas para fora do direito penal. Estas
últimas foram as que integraram o direito de mera ordenação social, as contra-
ordenações que afinal coincidem com a categoria (penal) das contravenções.
O surgimento das contra-ordenações teve uma dupla consequência:
a) crescimento do direito penal secundário quase sempre sob a forma de direito
penal extravagante;
b) o fim das contravenções jurídico-penais e a sua substituição pela categoria
jurídico-administrativa das contra-ordenações.


98
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 140.

66
A primeira consagração legislativa das contra-ordenações teve lugar na Alemanha
depois da Segunda Guerra Mundial, em 1949 com a Lei Penal da Economia e, mais
tarde, em 1952 com a Lei das Contra-Ordenações. Assim, Eberhard Schimdt via
expressos os seus estudos para satisfação de três ordens de razões:
a) A retirada dos quadros do direito penal de um vastíssimo número de infracções
de nula ou duvidosa relevância ético-social e sua remissão para o quadro do direito
administrativo;
b) Que essas infracções não fossem ameaçadas com penas criminais, mas com
meras “advertências” sociais, sanções ordenativas ou coimas. Aqui importava que
ganhasse relevância o carácter dissuasor próprio das sanções pecuniárias.
c) Revestir o processamento dessas infracções de especificidades que permitisse a
aplicação das sanções pelos agentes administrativos encarregados da fiscalização e
controlo dessas mesmas actividades.
O modelo alemão das contra-ordenações não conseguiu de imediato obter eco a nível
internacional, mas, em Portugal, Eduardo Correia adoptava-o e apresentava-o como
adequado para um direito penal português do futuro. Mais tarde, em 1974, (Março) a
Suíça aproximou-se dele em muitos aspectos, tendo sido seguida pela Áustria e em
Novembro de 1981 a Itália. Depois que em 1989 em Viena, no Congresso da
Association Internationale de Droit Pénal, o modelo foi recebido e passou a ser visto
como o caminho para se operar a descriminalização.99
Tem-se pensado, mesmo na Alemanha, em negar a possibilidade de se delimitar
materialmente o ilícito de mera-ordenação social do ilícito ético-socialmente
indiferente, mesmo que se trate de um ilícito de “mera” ordenação social.
Esse pensamento tem a sua razão de ser. Contudo, isso não pode servir de base para se
negar a possibilidade da delimitação.


99
Em Portugal, o ilícito de mera ordenação social foi pela primeira vez consagrado no Decreto-Lei n.º
232/79 de 14 de Julho, ainda na vigência do Código Penal de 1886. O diploma eliminou a categoria das
contravenções puníveis com pena de multa. Contudo, em seguida o Decreto-Lei n.º 232/79 substituído
pelo Decreto-Lei n.º 433/82 de 27 de Outubro que veio instituir o regime geral do direito de mera
ordenação social e respectivo processo. Este diploma sofreu, em Outubro de 1989 e Setembro de 1995,
alterações muito significativas. Em Angola, o Projecto de Novo Código Penal, manteve o instituto das
contravenções. Vejam-se Artigos 128º a 132º, matéria que será objeto, neste material de apoio, de
tratamento autonomizado.

67
Entende Figueiredo Dias que a “indiferença” ético-social deve ser vista não
directamente ao ilícito, mas às condutas que eles integram100. Com efeito, há condutas
que antes do desvalor da ilicitude corresponde um desvalor moral, cultural ou social e
outras em que essa correspondência não se verifica. No primeiro caso, a conduta é
axiológica-socialmente relevante, independentemente da sua proibição legal. No
segundo ela é axiológico-socialmente neutra. Ora, o que no direito de mera ordenação
social é axiologicamente neutro, não é o ilícito, mas a conduta em si mesma, separada
da proibição legal, sem prejuízo de que, uma vez ligada à proibição ela venha a
constituir substrato idóneo de um desvalor ético-social.
Assim, temos no primeiro caso, condutas cujos elementos constitutivos suportam uma
valoração social, moral, cultural em que se contém já a valoração da ilicitude, enquanto
que no segundo não há essa correspondência imediata entre a conduta e a valoração da
ilicitude.
As coisas assim se passam porque quando o direito valora algumas dessas condutas
como ilícitas, tal acontece porque o substrato de valoração jurídica é constituído não
pela conduta mas, também, pela proibição legal.
A conduta considerada sem a proibição legal não é substrato idóneo do juízo de
desvalor próprio da ilicitude101.
Assim, a discussão em torno da questão de saber se o critério de distinção é qualitativo
ou quantitativo perde a sua razão de ser. Eberhard Schmidt e Eduardo Correia
consideraram o critério qualitativo; mas, o que interessa aqui salientar é que a distinção
é sempre material e não meramente formal. É claro que, mesmo com esse critério
material, o legislador, em certos casos acrescenta certos critérios adicionais de distinção
e até critérios de “quantidade” quando essa é a condição da relevância axiológico-social
de uma conduta. Ou seja, ela é objectivamente grave102.
Exemplo: a alcoolemia103. Se um condutor circula com um grau de alcoolemia entre
0,5g/l e 0,8g/l isso é juridicamente uma contra-ordenação grave; se o grau de
alcoolemia se situar entre os 0,8g/l e 1,2g/l a contra-ordenação é considerada muito


100
DIAS, Jorge de Figueiredo “O problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal”, 3.ª Edição,
Coimbra Editora, 1987, pp. 397 e ss.
101
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 148.
102
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 130 e 131.
103
O exemplo refere-se à legislação portuguesa, mas é de todo o interesse ser aqui apresentado pela sua
importância.

68
grave; ao atingir o nível de 1,2g/l ou superior a conduta deixa de ser uma contra-
ordenação para passar a ser um crime.
Ora, esta distinção não é meramente quantitativa. O que se passa é que atingidos os
1,2g/l ou valor superior de álcool no sangue, a conduta torna-se ético-socialmente
relevante e passa a constituir substrato susceptível de criminalização, uma vez que ela
se torna socialmente perigosa e, por isso, ético-socialmente censurável,
independentemente de qualquer juízo jurídico de ilicitude.104

Importa ainda fazer referencia ao relacionamento entre o direito penal e o direito de


mera ordenação social com a ordem axiológica constitucional. É um facto que não é a
Constituição que, em cada caso, decide de forma imediata e decisiva se certa conduta
pode constituir crime ou antes uma contra-ordenação. Mas é a ela que, em última
análise, se tem de recorrer para se saber, nos casos duvidosos, se o critério material da
decisão dessa qualificação jurídica foi ou não respeitado. Com efeito, são diferentes os
princípios jurídico-constitucionais tanto materiais como orgânicos a que tanto a
legislação penal como a das contra-ordenações se devem submeter105.
Pode-se concluir que, da autonomia do ilícito de mera ordenação social, resulta a
autonomia do direito das contra-ordenações. Primeiro do que tudo, trata-se de uma
autonomia relativa uma vez que o Código Penal é direito subsidiário do direito
substantivo das contra-ordenações. De resto, é direito sancionatório de carácter
punitivo. Em segundo lugar, a autonomia propriamente dita revela-se em matéria como
a responsabilidade das pessoas colectivas, em matéria de culpa, do erro, da autoria e do
concurso.

a. Autonomia da sanção
A sanção a aplicar em caso de contra-ordenação é a coima. Trata-se de uma sanção
exclusivamente patrimonial que se diferencia tanto na essência como nas finalidades
da pena criminal. Aqui, como na pena criminal, não presidem ideias de retribuição.
Apenas a prevenção tem lugar. Por outro lado, a coima não se liga à personalidade do


104
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 149.
105
A Constituição da República de Angola contempla esta matéria como reserva relativa de competência
e vem prevista na alínea t) do artigo 165º.

69
agente nem à sua atitude interna, como resultado da diferente natureza e diferente
função que a culpa joga na responsabilidade por contra-ordenação.
A coima serve para advertir, repreender pelo desrespeito a determinadas proibições ou
imposições legislativas. Assim, nada aqui temos que nos leve a ideias de prevenção
especial positiva de ressocialização. Resultam por isso, importantes consequências para
o respectivo regime: o efeito da falta de pagamento da coima é a execução da soma
devida. Nunca a sua conversão em prisão subsidiária como acontece na multa
criminal.106

II. Direito penal e direito disciplinar: penas criminais e sanções (medidas)


disciplinares

1. O direito disciplinar e as suas sanções é a área que de um ponto de vista teorético


mais se aproxima do direito penal e das penas criminais. Por isso, o comportamento no
ilícito disciplinar, diferentemente do das contra-ordenações não pode ser considerado
neutro, nem tão pouco constituído pela proibição.
A essência do ilícito disciplinar e das medidas disciplinares, encontra-se no particular
significado e função que o serviço público, seus agentes, funcionários, empregados,
assumem nos quadros do Estado de direito democrático. Hoje, diferentdemente de há
alguns anos atrás, a relação que se estabelece no serviço público não é já de dever de
obediência, mas estreitamente vinculado ao princípio da legalidade da administração.
Tem, assim, o agente administrativo, direitos profissionais e correspectivamente
deveres no interesse da comunidade jurídica.
A relação do serviço jurídico-público constitui-se num ilícito disciplinar e, por isso,
passível de medidas (sanções) disciplinares.

2. Do exposto resultam os critérios da distinção entre o direito penal e o direito


disciplinar. Desde logo, porque:


106
Em Portugal, pode o condenado, a seu requerimento, solicitar ao tribunal a substituição da coima por
prestação de trabalho a favor da comunidade (artigo 89.º do Decreto Lei n.º 433/82, acrescentado pelo
Decreto Lei n.º 244/95). Simplesmente, a prestação de trabalho a favor da comunidade é uma pena
criminal de prisão que tem natureza e finalidades específicas das quais se destaca a prevenção especial
positiva ou de socialização. Por isso, não pode, sem mais, ser transformada numa sanção contra-
ordenativa.

70
a) o ilícito disciplinar é um ilícito interno, exclusivamente virado para o serviço público.
Constitui-se, independentemente de, com ele, se ver abalada a autoridade estadual ou
da Administração. Esta é uma situação diferente da que ocorre com os “crimes
cometidos no exercício de funções públicas” em que se verifica uma lesão ou perigo de
lesão daquela autoridade (nota, F.Dias, p. 154). Maurach e Zipf consideraram-no não
apenas como um minus (menos) mas como um verdadeiro aliud ( outro) relativamente
ao ilícito penal.
b) a distinção entre os dois ilícitos atinge um âmbito largamente dominado pelo
princípio da subsidiariedade. De facto, muitas das infracções disciplinares não têm
condições para serem ameaçadas com penas criminais. Mas, outras há em que essa
ameaça se mostra necessária. Razões de quantidade e qualidade podem aqui ser
invocadas para efeitos da distinção pois, dos dois critérios apresentados, resultam
importantes consequências:

1. Quanto às finalidades, a medida disciplinar esgota-se no asseguramento da


funcionalidade de integridade e da confiança do serviço público. Assim, são-lhe
estranhas quaisquer finalidades retributivas (que hoje defendemos que também já não
devem presidir às penas criminais).
2. A essência e o fundamento do ilícito disciplinar não nos conduzem a um direito
do agente, como defenderam Beleza dos Santos e Eduardo Correia107. Embora se deva
reconhecer que o direito disciplinar é em maior medida e diferentemente do direito
penal, um direito orientado para o agente, não se pode esquecer que se está aqui a tratar
de um direito sancionatório. Os direitos e garantias dos arguidos impõem o respeito
pelos princípios garantísticos do direito penal. Por isso, as infracções disciplinar devem
ser tipicizadas.

c) Os fundamentos avançados para distinguir a autonomia do ilícito disciplinar face ao


ilícito penal, permitem compreender que, ainda hoje, e relativamente ao mesmo facto,
se possa falar em cumular a responsabilidade disciplinar com a responsabilidade
criminal. Desde logo, não há qualquer choque constitucional porque o princípio ne bis


107
Com efeito, aqueles autores fundamentaram a sua posição argumentando que as exigências da
tipicidade das infracções e da culpa se encontram no direito disciplinar muito adormecidas por força do
princípio da legalidade no direito penal. De facto, no direito penal de um Estado de direito democrático,
o direito penal é um direito do facto e não do agente

71
in idem é restrito ao não se poder julgar duas vezes pelo mesmo crime.108 Mesmo assim,
Figueiredo Dias e Costa Andrade entendem, o que concordamos, que seria preferível
nos casos em que se desencadeasse o processo crime em primeiro lugar, esse
conhecesse seu termo e nele fosse aplicada a sanção demissão da função pública; assim,
a medida disciplinar do mesmo nome ficaria consumida por aquela e evitar-se-ia a
instauração do processo disciplinar.109
d) Situação ainda mais problemática é a que ocorre com a medida disciplinar de
detenção, resultante do poder disciplinar militar. Com feito, tem-se questionado da
inconstitucionalidade dessa medida. Contudo, parece incompreensível que o agente
possa pelo mesmo facto sofrer uma privação da liberdade disciplinar e uma privação
de liberdade criminal.

II. Direito penal e direito processual: penas criminais e sanções (medidas) de


ordenação ou conformação processual.
As sanções de ordenação processual são medidas que se aplicam a quem viole as
formalidades de uma tramitação sem entraves ou abuse de poderes em situações
processuais. Ex.: Advogado que insiste em tomar a palavra sem que o Juiz autorize,
pode, este, mandá-lo retirar da sala.
Tal como acontece com as medidas disciplinares, as sanções de ordenação processual
não prosseguem quaisquer finalidades de prevenção positiva geral e especial. O que
fica é apenas a ameaça, a intimidação que esgota a sua finalidade na observância das
formalidades legais do processo. Por outro lado, o princípio da subsidiariedade do
direito penal não é aqui aplicável uma vez que as sanções penais não são neste caso
adequadas, nem sequer necessárias.

IV. Direito penal e direito privado: penas criminais e penas privadas.


A distinção entre ilícito criminal e ilícito civil não é agora relevante se atendermos a
que a questão pertence à esfera de actuação dos princípios de subsidiariedade e da

108
Esta solução que hoje é perfeitamente aceitável ao nível da legislação disciplinar portuguesa já foi
questionada na vigência do Código Penal de 1886 e depois no de 1982. Com feito, o artigo 57.º do Código
Penal de 1886 (e esta é a situação que ainda vigora em Angola) prevê a pena de demissão com pena
especial aplicável aos funcionários públicos. Esta é cumulativamente aplicada a qualquer sanção
criminal. O direito disciplinar angolano também prevê (...) Ora, o Código Penal Português de 1995
revogou a sanção penal acessória de demissão da função pública que vinha prevista no Código Penal
Português de 1982 no artigo 66.º.
109 Princípio
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 157.


da 72

preclusão
necessidade e da tutela penal que foram já suficientemente tratados. Interessa sim,
distinguir entre pena criminal e pena civil.
a) todas as sanções não criminais têm em comum com as criminais o facto de
serem sanções jurídico-públicas. Neste tipo de sanção, o sancionado apresenta-se
perante o sancionador numa posição de sujeição ou supra-infra ordenação.
b) A diferença radica no facto de no direito privado as sanções se basearem numa
relação paritária ou igualitária. É o que acontece com o disposto no artigo 810.º, n.º 1
do Código Civil: a cláusula penal. Qualquer que seja a natureza desta medida
indemnizatória, punitiva ou mista, a sua diferença da sanção penal é clara pelo que ficou
exposto.110


110
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 159 e ss.

73
TEXTO N.º 9
AS CONTRAVENÇÕES

I. Considerações Gerais
A propósito dos limites do Direito Penal, falou-se no fim das contravenções
jurídico-penais e da sua substituição pela categoria das contra- ordenações na
generalidade dos países europeus da família romano germânica. Referiu-se111 que, em
Portugal, ainda na vigência do Código Penal de 1886, o Decreto –Lei nº 232/79 de 14
de Julho, eliminou a categoria das Contravenções.
Em Angola, ainda vigora o Código Penal Português de 1886 e, neste sentido, a
distinção entre crimes e contravenções como a forma que os actos ilícitos podem
revestir. A categoria contravenção, vem prevista no artigo 3º do Código Penal.
Contudo, está em vigor a Lei n.º 12/11, de 16 de Fevereiro, Lei das Transgressões
Administrativas (que regula matéria de contra-ordenação) e a CRA na alínea t) do artigo
165º prevê a criação do regime geral das contra-ordenações, embora, de momento, o
Legislador Ordinário não tenha ainda criado a legislação que regule a referida matéria.

I.1. Distinção entre contra–ordenações, contravenções e transgressões


A frequência com que se confunde as contra-ordenações com as contravenções e as
transgressões reclama alguma clarificação.
É importante notar que, para além dos crimes que são comportamentos violadores
de normas, há outro tipo ou tipos de comportamento que também violam a lei, mas que,
por serem menos graves, se consideram de menor relevância. Esses comportamentos
foram incluídos na categoria contra-ordenações, que, como referido infra pp. 67 a 69,
são puníveis com “coimas” 112 e processadas por entidades administrativas de cujas
decisões cabe recurso para os tribunais.


111
Veja-se nota 100 a pp. 69 do presente texto.
112
Embora, muitas vezes se faça uso inapropriado e indiferente, a coima e a multa distinguem-se, porque
a “multa” pune o crime que é um ilícito grave que viola a lei; a “coima”, pune também um ilícito, mas
de natureza menos grave, a contra-ordenação. A grande diferença entre uma e outra sanção, reside no
facto de a “coima” quando não cumprida, não puder ser convertida em prisão, enquanto que a “multa”
quando não paga, levar ao cumprimento de uma pena de prisão. Veja-se “a coima e a multa”, in
Teclajuridica.blogspot.uk.

74
Essas condutas, antes da criação da categoria contra-ordenações, eram tratadas na
categoria contravenção, ou transgressão.113

I.2. As Contravenções
Embora as considerações gerais feitas que podem fazer antever a criação, em
Angola, da categoria Contra-ordenações, o Projecto de Novo Código Penal, não
eliminou essa categoria; destinou-lhe o último Título da Parte Geral (Título VII). Na
Parte Especial, não se tipificam as contravenções que, assim continuam a fazer parte de
legislação extravagante (avulsa).
O artigo 128º define as contravenções como o facto ilícito penal punível
exclusivamente com multa. Porém, para que a categoria ganhe eficácia, determina que
“será considerado crime todo o facto ilícito a que a lei fizer corresponder pena privativa
de liberdade”.
Por outro lado, quando o mesmo facto, constituir, ao mesmo tempo, crime e
contravenção o agente é punido a título de crime (artigo 131º). Nas contravenções a
negligência é sempre punida (artigo 129º) e não se lhe aplicam as regras relativas à
reincidência, artigos 73º e 74º, e à prorrogação da pena, artigos 81º a 83º.
Sinal prático de distinção entre uma contravenção penal e uma infracção
administrativa, que aqui designados por contra-ordenação, é que, na primeira, sempre
que a multa não seja paga, nem substituída por trabalho, nos termos do artigo 47º, é
convertida em prisão subsidiária, tal como a pena de multa aplicável aos crimes, nº1 do
artigo 130º.
Nos casos em que a lei não estabelecer a multa em dias de multa – o que em regra
acontece nas multas por contravenções – o Tribunal deve fixar a prisão subsidiária a
cumprir pelo condenado entre um mínimo de 6 dias e um máximo de 1 ano, nº2 do
artigo 130º.


113
“o que são as contra-ordenações, contravenções e transgressões”, Texto do Ministério Público,
Procuradoria Geral Distrital do Porto, que pode ser encontrado em www.pgdoporto.pt

75
TEXTO N.º 10

A LEI PENAL E A SUA APLICAÇÃO

8.º CAPÍTULO: O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE DA INTERVENÇÃO


PENAL

I. O Princípio Nullum crimen nula poena sine lege

1. Função, sentido e fundamentos


No Estado de direito, a protecção dos direitos, liberdades e garantias é realizada não
apenas através do Direito Penal, mas também perante o Direito Penal. Tudo isto porque,
por um lado, a prevenção da prática de crimes que, afinal, é o objectivo último que o
Direito Penal visa atingir, não poderia ser levada a cabo sem que fossem impostos
limites estritos à intervenção estadual em nome da defesa dos direitos, liberdades e
garantias das pessoas, procurando-se assim evitar o arbítrio.
Para tal, a intervenção penal é submetida a um estrito princípio da legalidade cujo
conteúdo essencial se pode resumir na seguinte expressão: “não pode haver crime, nem
pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa”.114

1.1. Origem histórica do Princípio


O princípio da legalidade da intervenção penal encontrou primordialmente a sua
expressão na Magna Charta Libertatum de João Sem Terra (1215) e, mais tarde, já de
modo particular no Bill of Rights (1689). A sua consagração mais moderna encontrou-
se pela primeira vez na Constituição de Maryland e Virgínia, Estado Unidos da
América, em 1776. Foi, contudo, com a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, saída da Revolução Francesa de 1787 que o princípio ganhou expressão
definitiva.
A partir daqui um conjunto de instrumentos internacionais relativos à protecção dos
direitos humanos foram sendo adoptados: Declaração Universal dos Direitos do
Homem em 10 Dezembro de 1948, artigo 7.º, n.º 1; Convenção Europeia dos Direitos

114
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 159 e ss.

76
do Homem de 4 de Novembro de 1950, artigo 15.º, n.º 1; Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos de 19 de Dezembro de 1966 e na Carta Africana dos Direitos
do Homem e dos Povos.

1.2. Fundamentos
Viu-se, pelo exposto, que o princípio da legalidade da intervenção penal tem raízes
iluministas, mas a sua fundamentação é plural ou seja, podem ser considerados
fundamentos internos ou externos.
Os fundamentos externos estão ligados à concepção de Estado; importa, por isso, referir
os princípios liberal democrático e o da separação de poderes.
Para o princípio liberal a intervenção do Estado na esfera de actuação dos direitos
liberdades e garantias das pessoas tem de estar ligado à existência de uma lei, uma lei
geral, anterior e abstracta, vejam-se os nº 2 do artigo 57º e artigos 65º e 66º todos da
CRA.
Relativamente aos princípios democrático e da separação de poderes, em que essa
separação é entendida no sentido da interpenetração e co-responsabilização, a
intervenção penal pelo seu peso só fica legitimada pela actuação da instância
representativa do Povo no exercício do ius puniendi; resulta daqui que qualquer
intervenção penal só pode ser feita por lei, e lei em sentido formal, ou seja, Lei da
Assembleia Nacional no âmbito de uma reserva absoluta de competência, alínea e) do
artigo 164º 90.º da CRA.
Como fundamentos internos, apontam-se a ideia de prevenção geral e o princípio da
culpa. É certo, como diz Castanheira Neves115, que o verdadeiro fundamento interno é
a “axiológica normatividade do próprio direito”. Contudo, não se pode esquecer que
para que a norma cumpra a sua função de garante da tutela dos bens jurídicos na sua
vertente “negativa” como intimidação e ainda na sua vertente “positiva” de
estabilização das expectativas, os cidadãos têm de ter a oportunidade de, através de lei
anterior, certa, escrita, saber o que é permitido e o que é proibido. Por outro lado,
também não seria legítimo dirigir a alguém uma censura por ter actuado, se não
existisse uma lei anterior escrita, estrita e certa a considerar o comportamento como
objecto de censura, como crime.


115
NEVES, António de Castanheira, “Separata de Estudos Eduardo Correia”, 1988, pp. 65 e ss. e 75 e
ss.

77
Mesmo em relação à prevenção especial, embora sobre esta questão a maioria da
doutrina o não considere, o entendimento actual reclama a exigência do princípio da
legalidade. O comportamento que indicia a perigosidade não pode ser visto apenas
como um “sintoma ou índice da carência de socialização” mas tem de ser também
fundamento e limite da intervenção penal, ressurgindo assim a exigência da legalidade
da lei estrita.116

2. Sentido do Princípio “Nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege”

O princípio não há crime sem que uma lei anterior o preveja significa que, por mais
reprovável que o comportamento se apresente no seio da comunidade, para que ele
possa ser punido, é necessário que uma lei anterior o preveja e estabeleça a respectiva
consequência jurídica. Daqui que as lacunas ou os esquecimentos do legislador
funcionam contra o legislador e a favor da liberdade: ex. Artigo 451.º do Código Penal
de 1886. Por este artigo, a burla por defraudação só é punida a favor do próprio agente.
Se for entregue a um terceiro, fica claro que essa conduta não é punida. Houve aqui
uma lacuna gravíssima de punibilidade que só pode ser atribuída ao legislador, com a
consequência de que a burla a favor de 3.º fica impune.117
A expressão nulla poena sine lege significa que, “não há pena ou medida de segurança
que não venha prevista numa lei anterior”, veja-se nº3 do artigo 65º da CRA.
O princípio nulla poena sine lege significa também que ao juiz é completamente vedada
a possibilidade de criar instrumentos sancionatórios criminais que não se encontrem
estritamente previstos em lei anterior.

II. Consequências (efeitos) do Princípio da Legalidade da Intervenção Penal

II. 1. As consequências do princípio da legalidade estendem-se a cinco diferentes


planos:
• extensão


116
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 165.
117
Situação que já não ocorre no contexto do Projecto de Novo Código Penal da República de Angola.
Com efeito, naquele projecto o artigo 404º ínsito no Capítulo relativo aos crimes contra o património, a
Burla simples, é punida tanto quando é praticada a favor do próprio como de terceiro; solução que veio
preencher a lacuna deixada pelo legislador do Código de 1886.

78
• fonte
• determinabilidade
• proibição da analogia
• proibição da retroactividade

1.1. No plano da extensão


O Princípio da Legalidade não cobre toda a extensão do Direito Penal mas aquela em
que se fundamenta e agrava a responsabilidade criminal. Ex.: matérias relativas ao tipo
de ilícito, à culpa, às consequências jurídicas do crime (penas e medidas de segurança).
Estas limitações devem-se à função e ao sentido do princípio que funciona como
garantia dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, face às possibilidades de
arbítrio e excesso do poder estadual.

1.2. No plano da fonte


a) Neste plano o princípio conduz à exigência de lei formal. Só uma lei da
Assembleia Nacional ou no quadro de uma autorização legislativa, alínea e) do artigo
164º da CRA pode definir o regime dos crimes das consequências jurídicas e
respectivos pressupostos.118
b) Outra questão, que nesta sede também se suscita, é a de saber se o princípio da
legalidade abrange apenas a lei stricto sensu ou se também a lei extra-penal, na medida
em que esta venha a ser chamada pela lei penal para fundamentar ou agravar a
responsabilidade criminal. Esta questão levanta-se a propósito das chamadas normas
penais em branco – aquelas que cominam uma pena para comportamentos que não
descrevem, mas alcançam esses comportamentos pela remissão da norma penal para
outras leis ou regulamentos. Ex.: artigo 246.º do Código Penal de 1886.
Entendem, Figueiredo Dias e Costa Andrade que, desde que a norma penal em branco
conste da lei formal, não haverão razões para, de um ponto de vista teleológico e


118
A Lei Constitucional nº 23/92 de 16 de Setembro, previa a possibilidade de o Governo, na altura o
Conselho de Ministros, poder com a autorização da Assembleia Nacional, emitir Decretos-Lei sobre a
definição dos crimes das penas e das medidas de segurança, bem como estabelecer o competente processo
criminal. O que significava que, a Assembleia Nacional era, nestas matérias titular de uma competência
apenas relativa. Actualmente, resulta da alínea e) do artigo 164º da CRA que, essa competência é agora,
absoluta, ou seja, só a Assembleia Nacional e, não mais outra entidade ou outro poder, tem competência
para definir as matérias relativas ao direito de punir do Estado.

79
racional, não ser no plano da fonte a elas aplicável o respeito pelo princípio da
legalidade.

1.3. No plano da determinabilidade


É importante que a descrição da matéria proibida, bem como de todos os requisitos de
que depende em concreto a punição, esteja perfeitamente determinável e, se torne
objectivamente motivável e dirigível à conduta dos cidadãos. Ex.: não são
perfeitamente determináveis as seguintes expressões: “é crime a conduta que ofenda
sentimento do povo”, “é crime o comportamento que ofenda os bons costumes”.
É um facto que, muitas vezes, a formulação dos tipos legais de crime não consegue
evitar a utilização de elementos normativos, cláusulas gerais, conceitos indeterminados.
Simplesmente, a sua utilização não deve obstar a “determinabilidade objectiva das
condutas proibidas” 119 , pois estes são elementos irrenunciáveis de uma teleologia
garantística que, a não ser respeitada, viola o princípio da legalidade.
Daqui o princípio segundo o qual a lei penal que fundamente ou agrave a
responsabilidade deve ser certa e determinada, sendo este o aspecto que encerra o
verdadeiro cerne do princípio, segundo Welzel e Schunemann.

1.4. No plano da analogia


Entende-se neste plano, por analogia, a aplicação por semelhança substancial, com um
caso já regulado pela lei, de uma regra jurídica, a um outro caso concreto não regulado
pela lei. Trata-se de uma analogia legis.
A analogia, como procedimento que respeita à aplicação da lei, não pode ser permitida
em Direito Penal por força do princípio da legalidade, sempre que ele funcione contra
o agente e vise fundamentar ou agravar a sua responsabilidade.
A proibição da analogia está prevista no artigo 18.º do Código Penal de 1886 e, em
termos de direito a constituir, no nº3 do artigo 1º do Projecto de Novo Código Penal da
República de Angola.

1.5. No plano da retroactividade


119
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 172.

80
A questão que aqui se levanta está relacionada com a proibição da retroactividade in
malem partem (ou seja, contra o réu), proibição que vem ínsita no princípio da
legalidade. As situações ocorrem nos casos em que após a prática de um determinado
facto, uma lei nova venha criminalizá-lo; ou, sendo o facto já crime, uma nova lei venha
prever para ele uma pena mais grave. Em qualquer destas hipóteses, há proibição de
retroactividade assente na ideia de que, ou a criminalização ou a agravação da sua
penalização, já deveriam constar de lei anterior à prática do facto120. A parte final do nº
4 do artigo 65º da CRA, ao consagrar a aplicação retroactiva das “leis penais de
conteúdo mais favorável ao arguido” quer, ao contrário dizer que, sempre que a lei nova
não for favorável ao arguido, não deve, em regra, ser aplicada.


120
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 174.

81
9.º CAPÍTULO: A INTERPRETAÇÃO E A INTEGRAÇÃO DA LEI PENAL

I. Interpretação e analogia em Direito Penal

Se a analogia é proibida, então quais são os limites da interpretação admissível em


Direito Penal?
Hoje, já ficou definitivamente afastada a ideia que vigorou com o iluminismo, segundo
a qual a separação de poderes pressupunha que, ao juiz, ficava vedada qualquer
possibilidade de interpretação da lei, uma vez que esta era emanação do poder
legislativo. “Les juges ne sont que la bouche qui prononce les paroles de la loi” ( os
juízes não são senão as bocas que pronunciam as palavras da lei). Mas, se
unanimemente se aceita que todos os conceitos, tanto os normativos como os
descritivos que a lei utiliza, sejam susceptíveis de interpretação, é legítimo que se
pergunte o que é que, em face do princípio da legalidade é susceptível de interpretação
e o que é que pertence à analogia proibida.

1. Antes de mais, é necessário que se encontre um critério de distinção teleológico


e funcional, atendendo ao conteúdo de sentido do princípio. Este critério só pode ser o
seguinte:
a) O legislador penal é obrigado a exprimir-se por palavras. Contudo, estas nem sempre
têm um único sentido. Por isso, muitas vezes, o texto legal é susceptível de
interpretação para, concretização, complementação, desenvolvimento. Por esta via se
encontra o sentido literal comum. Ora, será dentro desse limite ( do sentido literal
comum) que a interpretação deverá ser feita. Assim, toda a leitura interpretativa que
seja feita para além desse sentido, literal comum, já cai na analogia proibida. Pode-se
assim dizer que, encontra-se aqui, um verdadeiro limite da interpretação.121
b. 1) O exemplo típico que se apresenta e que foi muito discutido na doutrina e na
jurisprudência portuguesas respeitou à energia eléctrica. Perguntava-se se a energia
eléctrica poderia ser considerada “uma coisa móvel” para efeitos do crime de furto. O
Assento do Supremo Tribunal de Justiça Português de 24 de Abril de 1955 respondeu:
sim.


121
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 175 e 176.

82
Entretanto, hoje, Figueiredo Dias e Costa Andrade consideram que não, porque do
ponto de vista literal comum, a energia eléctrica não pode caber no teor da palavra
“coisa”. Esta, pressupõe uma certa materialidade, corporalidade. Por isso, o legislador
alemão criou uma disposição específica para a incriminação e subtracção de energia e
de energia eléctrica: o §248C do Código Penal Alemão. Em Portugal, o desvio de
energia alheia é punido por via de falsificação, danificação ou, eventualmente, de burla.
Em Angola, ainda vigorar o Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 1955, o desvio
de energia alheia pode ser furto ou eventualmente burla, punível nos termos do Código
Penal. Nesse sentido, em termos de direito a constituir, o Projecto de Novo Código
Penal, prevê no nº1 artigo 383º, o crime de furto de energia eléctrica e, no nº2 equipara
à energia eléctrica o gás, a água ou outro fluído que sejam subtraídos de conduta ou
instalação de redes de fornecimento e distribuição dos referidos produtos ao público.
O artigo 451.º do Código Penal prevê a Burla por Defraudação. O Tribunal da Relação
de Lisboa, no seu Acórdão de 9 de Outubro de 1954, publicado no Boletim do
Ministério da Justiça, n.º 41, a p. 159, considerou que quem ateasse fogo a coisa própria
com o fim de receber o prémio do seguro cometeria o crime de burla por defraudação.
Entende-se que, aqui, a Jurisprudência portuguesa, violou a proibição da analogia. Com
efeito, quem tem um seguro, para que possa receber o prémio, tem de comunicar à
companhia a ocorrência do incêndio. Simplesmente, a comunicação, só por si, não pode
caber no teor literal da expressão “artifício fraudulento” prevista no artigo 451.º do
Código Penal de 1886 para efeitos de burla. A jurisprudência praticou analogia pois o
que aqui existia era uma lacuna que não podia ser preenchida por recurso à analogia,
pois tratava-se de uma incriminação.
Para a República de Angola a questão permanece, mas para Portugal o artigo 219.º do
Código Penal de 1982 veio, expressamente, alterar esta situação criminalizando a burla
relativa a seguros.

b. 2) Questão já mais difícil é a de interpretação da expressão “grupo, organização ou


associação criminosa”. Pergunta-se se a expressão pode integrar apenas duas pessoas
ou se terá, necessariamente, de ser composta por três pessoas.
A Jurisprudência alemã claramente se firmou no sentido de atender a um mínimo de
três pessoas. A jurisprudência portuguesa encontra dificuldades. Com efeito, o artigo
300.º, n.º 2 do Código Penal de 1982 prevê que uma organização terrorista pode ser
composta de apenas duas pessoas. Simplesmente, o teor do artigo 299.º, n.º 1 aponta

83
para um mínimo de três pessoas. Entendem Figueiredo Dias e Costa Andrade que a
indicação deverá ser para um mínimo de três pessoas porque a relação entre duas
pessoas acaba geralmente no acordo e não propriamente na associação. 122

c) Castanheira Neves123 não trata esta questão como relativa ao conteúdo e sentido do
princípio da legalidade, mas como “um problema do cumprimento do princípio da
legalidade criminal”. Simplesmente, Figueiredo Dias e Costa Andrade entendem que a
posição teleológica e funcional imposta pelo conteúdo de sentido do princípio é que
conduzem à doutrina da proibição da analogia. É que a aplicação do Direito Penal que
agrave a responsabilidade e, por isso, ultrapasse o significado possível das palavras da
lei conduz ao arbítrio do poder do Estado e, consequentemente ofende os direitos,
liberdades e garantias das pessoas, contrariando a legitimidade das regras do Estado de
Direito.
Que critério deve, então, o intérprete seguir para dentre os diferentes sentidos, encontrar
o jurídico-penalmente imposto? Os critérios são os gerais da interpretação jurídica. A
interpretação tem de ser teleologicamente comandada, ou seja, é necessário atender-se
ao fim almejado pela norma e funcionalmente justificado, próprio da função que o
conceito desempenha no sistema.124

d) Assim expostas as considerações, não faz já sentido a preocupação metodológica


que opunha a interpretação subjectivista que tem em conta a vontade do legislador
histórico e a objectivista que se baseia nos sentidos que a regulamentação apresenta ou
assume no momento em que se faz a interpretação.
O intérprete deve estar indissoluvelmente ligado aos juízos de valor, de sentido e às
finalidades do legislador histórico e não às representações fácticas. Simplesmente, ele
tem também de levar em conta a nova realidade, as novas concepções que o legislador
histórico não teria podido considerar.
Mas, ao fazer isso, não pode ultrapassar o teor literal da regulamentação, o sentido
comum das palavras utilizadas.


122
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 176 e 177.
123
Obra referida na nota 3, pp. 106 e ss.
124
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 178.

84
e) A distinção entre analogia e interpretação é possível. 125 A interpretação e a
integração são dois momentos de um processo que é o da aplicação do direito.
Simplesmente, alguns processos mantêm-se nos quadros dos significados comuns das
palavras usadas pelo legislador. Mas outros há, em que essa conclusão ultrapassa aquele
quadro. Atendo-se a esta consideração, está-se a observar o conteúdo de sentido que
legitima o princípio da legalidade.
Acresce que, o facto de o texto da lei, o seu teor literal poder estar indeterminado, não
impede que se possa recorrer ao critério da legalidade. Ora, é exactamente essa
indeterminabilidade que conduz ao máximo de interpretação que não pode, em caso
algum, ser ultrapassado. Todos os critérios de aplicação do direito devem funcionar
dentro desse âmbito pois, só assim, estarão legitimados pelo princípio da legalidade.

II. Âmbito da proibição da analogia

A proibição da analogia vale relativamente a todos os elementos, qualquer que seja a


sua natureza, que fundamentem a responsabilidade e a agravem. Abrange assim: os
elementos constitutivos do crime que vêm descritos na parte especial do Código Penal
e legislação avulsa; as leis penais em branco, não só relativamente à parte sancionatória
mas também na parte em que remete para a norma extra-penal126; as consequências
jurídicas do crime, em tudo quanto seja desfavorável ao réu; penas e medidas de
segurança; parte sancionatória das leis penais em branco.
Quanto à parte geral do Código Penal, a proibição à analogia vale para as normas que
constituem alargamento da punibilidade, tentativa (artigo 11.º) e comparticipação
criminosa (autores, cúmplices e encobridores).

Particularmente, é permitida a analogia sempre que tiver por finalidade alargar o campo
de incidência das causas de justificação, das causas de exclusão ou atenuação da culpa
e da punibilidade, das situações que excluem ou atenuam a responsabilidade do réu .
Já, se respeitar à diminuição desse campo de incidência, a analogia não é permitida.


125
Embora Castanheira Neves entenda que a analogia tenha a ver com a realização do direito e não com
a lei.
126
EDUARDO, Correia, Direito Criminal I, pp. 145.

85
10.º CAPÍTULO: APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO E PRINCÍPIO DA
IRRETROACTIVIDADE

I. A resolução do problema da aplicação da lei no tempo é feita através do


designado direito inter-temporal.
No fundo, em Direito Penal, este direito fica reduzido ao princípio que traduz uma das
mais importantes consequências do princípio da legalidade que é a proibição da
retroactividade de tudo quanto funcione contra o réu, ou seja, para utilizar a máxima
latina in malem partem.
Este princípio que expressa a exigência constitucional de que o facto declarado punível
tem que estar anteriormente descrito numa lei penal.127

II. Determinação do Tempus Delicti


O princípio da irretroactividade tem como pressuposto a determinação do tempus
delicti, ou seja, a determinação do momento da prática do facto.
Simplesmente, o facto pode ser analisado numa acção ou numa omissão. Por isso,
dúvidas se poderão levantar com relação a esse momento pois ele pode situar-se na
conduta ou no resultado da conduta que podem ocorrer em lugar e momento
temporalmente distintos.128
Tanto para a legislação portuguesa como para a proposta de Código Penal angolano,
resultam as seguintes conclusões para a determinação do momento da prática da
infracção, ou seja, o tempus delicti:
a) O que é decisivo é a conduta do agente e não o resultado. Assim, para a função
e sentido do princípio da legalidade é esse o momento a considerar para a função de
tutela dos direitos, liberdades e garantias das pessoas.129 Se, pelo contrário, se atendesse
apenas ao resultado, levantar-se-iam os problemas que o actual Código de 1886 coloca
em relação a essa matéria o que, não obstante as regras estabelecidas, pode conduzir ao
arbítrio e ao excesso da intervenção punitiva do Estado.

127
CARVALHO, Américo Taipa de, Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 1997, pp. 35, 208;
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 183.
128
O actual Código Penal de 1866 nada prevê sobre esta matéria. Contudo, o Projecto de Código Penal
da Reública de Angola vem, no artigo 3º, resolver a questão nos termos seguintes: “O facto considera-se
praticado no momento em que o agente actuou ou, em caso de omissão, deveria ter actuado,
independentemente do momento em que o resultado típico se tenha verificado”.
129
CARVALHO, Américo Taipa de, Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 1997, pp. 54 e ss.

86
b) Como segunda conclusão, resulta que o princípio da não retroactividade e suas
consequências é aplicável a todos os comparticipantes no facto criminoso, os autores e
os cúmplices (artigos 20.º e 21.º do Código Penal de 1886 e artigos 24.º e 25.º da
proposta) porque ambos são credores da protecção de garantia que é oferecida pelo
princípio da legalidade.
c) De particular realce e como terceira conclusão é o problema que se coloca
relativamente aos crimes de conduta prolongada no tempo. Nesses crimes, uma parte
da conduta ocorre no domínio da lei antiga e outra já no domínio da lei nova. Trata-se
dos chamados crimes duradouros, também pouco correctamente designados por crimes
permanentes.
Segundo Figueiredo Dias e Costa Andrade, a melhor doutrina para solucionar o
problema da retroactividade é, a da Lei Alemã, §2.º do Código Penal. A solução vai no
sentido de considerar que o momento decisivo é o da cessação da conduta; mas,
enquanto a conduta persistir, se a lei for modificada in malem partem, não haverá
violação da proibição da retroactividade.
Esta é também a solução encontrada para o chamado crime continuado.130

III. Âmbito de aplicação da proibição: o Princípio da aplicação da lei mais


favorável

III. a) A proibição da retroactividade funciona também a favor do agente e não contra


ele. Assim, a proibição vale para:
• Todos os elementos da punibilidade
• Limitações das causas de justificação
• Limitação das causas de exclusão ou diminuição da culpa
• As consequências jurídicas do crime em geral (penas e medidas de segurança)131


130
CARVALHO, Américo Taipa de, Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 1997, pp. 61 e ss. Para
este autor, a lei nova mais grave, tratando-se de crime continuado, deve ser aplicada sempre que a
totalidade dos pressupostos da lei nova se tenham verificado na sua vigência.
131
Alguma legislação, por exemplo a Alemã §2, n.º 6 do Código Penal, defende que a proibição não deve
vigorar relativamente às medidas de segurança porque são medidas de prevenção especial positiva que
vão no sentido do bem do agente. Durante algum tempo, em Portugal e na vigência do Código Penal de
1886, Beleza dos Santos, Eduardo Correia e Cavaleiro de Ferreira defenderam a não aplicação da
proibição às medidas de segurança. Hoje, porém, a Constituição da República Portuguesa e a entrada em
vigor do Código Penal de 1982 há injunções (vejam-se os artigos 29.º, n.º 1 e n.º 3 da CRP e os artigos
1.º e 2.º do Código Penal Português) que expressamente afastam essa doutrina. É um facto que também
relativamente à realização e execução das medidas de segurança se faz sentir a necessidade de protecção

87
III. b) Apenas a lei está sujeita ao princípio da não retroactividade ou também a
jurisprudência? A jurisprudência pode também ser alterada “contra o réu”?
Em princípio, se a jurisprudência se dirige no sentido da clarificação do sentido das
normas da lei, para um melhor conhecimento da teleologia e da função de uma certa
norma jurídica, então, em atenção ao princípio da separação de poderes, a
jurisprudência poderia ser alterada contra o réu.
Simplesmente, uma alteração jurisprudencial como medida retroactiva pode da mesma
maneira que a lei e, em situação concreta, afectar os direitos, liberdades e garantias das
pessoas. Nestes casos importa que os tribunais sejam exigentes na interpretação e
ofereçam o maior número de “significações comuns que imputem ao texto da lei”.132

III. c) O princípio da aplicação da lei mais favorável

Este é o princípio que exprime a consequência teórica mais importante da proibição da


retroactividade em Direito Penal. O princípio da aplicação da lei mais favorável, lex
mellore (a melhor lei).
Vem previsto na 2.ª excepção do artigo 6.º do Código Penal de 1886. O problema que
aqui se coloca é o de saber que lei aplicar naqueles casos em que os factos ocorrem na
vigência de uma determinada lei e, mais tarde, entre em vigor uma lei nova que vem
estabelecer um regime diferente para aqueles mesmos factos.
Pergunta-se se, nesses casos, a lei nova pode ou não ser aplicada retroactivamente.133


dos direitos, liberdades e garantias das pessoas atingidas, pelo que em relação às medidas de segurança,
também devem presidir as mesmas razões que assistem às penas.
132
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 186 e 187.
133
O n.º 4 do artigo 29.º da CRP fixou com clareza o regime da retroactividade da lei penal mais
favorável. Assim, conferiu ao regime o relevo jurídico necessário para a salvaguarda dos direitos,
liberdades e garantias. Contudo, esta consagração levanta algumas questões que reputo importante
ressaltar. a) As situações de descriminalização em sentido técnico, ou seja, situações em que uma lei
posterior vem dizer que o facto deixou de ser considerado crime – trata-se do n.º 2 do artigo 2.º do Código
Penal Português. A Solução proposta é perfeitamente compreensível. Com efeito, se a concepção do
legislador se alterou, não parece ser político-criminalmente coerente manter-se uma concepção já
ultrapassada. Por outro lado, b) se a lei nova deixa de considerar a conduta como crime e passa a trata-la
como contra-ordenação, a Doutrina divide-se: b.1) CARVALHO, Américo Taipa de, Sucessão de Leis
Penais, pp. 88 e ss., entende que, ao qualificar-se a conduta como contra-ordenação é uma
descriminalização do facto. Assim, a nova lei apenas pode vigorar para o futuro. Não se aplica
retroactivamente. Outros Autores, na Alemanha, entendem que o que aqui se passa é uma alteração
modificação da concepção do legislador, no sentido de aplicar um regime mais favorável. Não há aqui
uma qualquer interrupção do juízo de sancionabilidade porque o que ocorreu foi uma modificação na
natureza da infracção. Logo, a lei nova aplica-se retroactivamente porque é mais favorável. c) Nos casos
em que a lei nova atenua as consequências jurídicas que se ligam ao facto – penas, medidas de segurança
e respectivos efeitos – entendem Figueiredo Dias e Costa Andrade que a lei nova deve aplicar-se

88
As soluções apresentadas em nota, respeitam à legislação portuguesa. Para o caso de
Angola e, em termos de direito constituído, vigora o artigo 6.º do Código Penal de
1886.134
A CRA, no n.º 4 do artigo 65.º consagra: “Ninguém pode sofrer pena ou medida de
segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou
da verificação dos respectivos pressupostos, aplicando-se retroactivamente as leis de
conteúdo mais favorável ao arguido”. Resulta daqui o regime aplicável em matéria de
lei mais favorável.
Por outro lado, o Projecto de Novo Código Penal prevê, no artigo 2.º135, as situações de
retroactividade da lei mais favorável.
Excepção ao princípio da aplicação da lei mais favorável está consagrada nas chamadas
leis temporárias e leis de emergência. As leis temporárias são as que se destinam a
vigorar durante um período determinado de tempo que elas mesmas definem (leis
temporárias em sentido amplo). Leis de emergência são aquelas que vigoram enquanto
durar uma situação de crise (leis temporárias em sentido estrito). Ambas são leis de
crise e cessam a sua vigência uma vez decorrido o período de tempo para o qual foram
criadas.
Relativamente a elas vigora o princípio da não retroactividade da lei mais favorável. a
razão de ser dessa solução reside no facto de a modificação legal ter ocorrido não por
causa de uma alteração de concepção do legislador mas de uma mudança das
circunstâncias de facto que presidiram à sua publicação (veja-se, por exemplo, em
matéria de direito penal económico).
No caso das leis temporárias e das leis de emergência não há expectativas que mereçam
ser tuteladas.136

retroactivamente, desde que mais favorável (n.º4 do artigo 2.º do Código Penal Português). d) A questão
das leis intermédias que vem muito claramente coberta tanto pelo n.º 4 do artigo 2.º do CP Português
como pelo n.º 4 do artigo 29.º da CRP é ainda de considerar. Com efeito, trata-se da seguinte situação:
Uma lei entra em vigor depois da prática do crime e vem puni-lo mais levemente. Entretanto, esta mesma
lei deixa de vigorar antes do crime ser julgado e, entra em vigor uma outra, que vem punir o mesmo
crime de forma outra vez mais severa. Pergunta-se: que lei aplicar? A intermédia que veio punir mais
levemente ou a nova lei? A resposta e: aplica-se a lei intermédia porque é a mais favorável. Para além
disso, o facto da publicação da lei intermédia fez com que o réu tivesse ganho uma posição jurídica que
lhe permite, de um ponto de vista funcional e teleológico, beneficiar da proibição da retroactividade da
lei mais grave, posterior. Logo, sempre que a lei intermédia se mostrar mais favorável, é ela que deve ser
aplicada. Saber-se quando é que um determinado regime se mostra mais favorável ao agente, só em face
do caso concreto.
134
Vide RODRIGUES, Orlando Ferreira, “Direito Penal – apontamentos”, Fasc. I, pp. 37 a 33.
135
Artigo 2.º (Aplicação da Lei no Tempo)
136
Discute-se na doutrina portuguesa da inconstitucionalidade dessa solução. CARVALHO, Américo
Taipa de, Sucessão de Leis Penais, pp. 164 e ss. entende tratar-se de uma inconstitucionalidade porque

89
11.º CAPÍTULO: O ÂMBITO DA VALIDADE ESPACIAL DA LEI PENAL137

I. O sistema de aplicação da lei penal no espaço e seus princípios constitutivos

I. 1. Os Códigos Penais têm sempre disposições relativas ao âmbito espacial das suas
normas. Elas contêm o conjunto de regras e critérios de aplicação da lei penal no espaço.
Vulgarmente, este conjunto de normas é crismado como direito penal internacional.
Porém, este designativo tem sido criticado, primeiro porque estas não são normas de
direito internacional, mas nacional e, em segundo lugar, porque elas não são normas de
colisão como as de direito internacional privado.
Por outro lado, elas também não são normas de direito internacional público. A estas,
chama-se direito internacional penal que aqui não vamos tratar.
O que pretendo trazer agora é o direito penal internacional, conjunto de normas
nacionais que regulam a aplicação da lei penal no espaço. 138

I. 2. O sistema de aplicação da lei penal no espaço baseia-se em diversos princípios e


num modelo da sua combinação. Os princípios não estão todos ao mesmo nível de
hierarquia. Existe um princípio base fundamental, o princípio da territorialidade e
princípios acessórios ou complementares que são: o princípio da nacionalidade, da
defesa do interesse nacional e o da universalidade.
I. 3. O que me interessa trazer é o que o Projecto de Novo Código Penal da República
de Angola, traz na Parte Geral, solução que vem resolver três questões fundamentais
que o Código Penal de 1866 não resolveu.
Em primeiro lugar, a questão da delimitação do espaço territorial para efeitos de
aplicação do princípio da territorialidade. Com efeito, o artigo 4.º do Projecto de Novo


o artigo 29.º da CRP não a consagra. DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito
Penal – questões fundamentais, 1996, pp. 193 e 194 defendem que não há inconstitucionalidade, porque
“nem as leis constitucionais ou os seus silêncios devem em caso algum ser interpretados contra a sua
teleologia e a sua funcionalidade específicas”.
137
A matéria referente a este capítulo é a que consta do texto RODRIGUES, Orlando Ferreira, “Direito
Penal – apontamentos”, Fasc. I, pp. 33 a 42, em virtude de ela ali estar doutrinada de acordo com o direito
constituído previsto no Código Penal de 1886. As referencias que farei serão para dar a conhecer o que
vem proposto em termos de direito a constituir.
138
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal I, pp. 164 e ss.; DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE,
Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais, 1996, pp. 195 e ss.; FURTADO dos Santos,
Boletim do Ministério da Justiça, n.º 92, 1960, pp. 159 e ss.

90
Código Penal, estabelece: “Salvo convenção internacional em contrário, a lei penal
angolana é aplicável a factos praticados em território angolano ou a bordo de navios
ou aeronaves de matrícula ou sob pavilhão angolanos, independentemente da
nacionalidade do agente.”.
Fica por aqui proposta a resolução da questão da interpretação extensiva ou aplicação
analógica do n.º 2 do artigo 6.º do Código Penal de 1866.
Em segundo lugar, a determinação do locus delicti. No artigo 6.º propõe-se: “o facto
considera-se praticado tanto no lugar em que total ou parcialmente e sob qualquer
forma de comparticipação o agente actuou ou, no caso de omissão, deveria ter actuado,
como naquele em que o resultado típico se tiver verificado”.
Fica assim resolvida a adopção da doutrina da ubiquidade em matéria de determinação
do lugar da prática da infracção.
Em terceiro lugar, o artigo 5.º vem propor a resolução de questões relativas à defesa
dos interesses jurídicos internacionais. Para esta solução é necessário que o agente seja
angolano e se encontre em angola, não sendo, por isso, em princípio, possível ser
extraditado. Este número trata ainda dos casos em que está em causa a defesa de
interesses de cidadãos angolanos e, daqueles em que se trate de crimes que, por
convenção internacional, o Estado angolano se tenha obrigado a julgar.139


139
Artigo 5.º (Aplicação da lei penal angolana a factos cometidos fora do território nacional)

91

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