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CAUSAS DE JUSTIFICAÇÃO

A expressão causa de justificação, terminologia tradicional também


já usada no Código Penal de 1886, ou causa que excluem a ilicitude,
terminologia do Código Penal de 2020, designa determinadas
circunstâncias que afastam a ilicitude da conduta do agente. As causas de
exclusão da ilicitude ou causas de justificação são, pelo menos as previstas
expressamente no Código Penal (art. 30.º): a legítima defesa, o exercício
de um direito, o cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem
legítima de autoridade e o consentimento do titular do interesse
juridicamente lesado. Portanto, quer isso dizer, o agente que cometa um
facto previsto num tipo incriminador (facto típico) não pratica facto ilícito,
sempre que o facto típico seja praticado sob o manto de uma causa de
exclusão da ilicitude, maxime, as supra indicadas.
Uma primeira nota deve ser dada a enumeração que nos apresenta o
n.º 2 do artigo 30.º do Código Penal, cuja questão é se ela obedece a regra
do numerus clausus ou é apenas exemplificativa, a opção deve recair para a
última possibilidade, pois resulta da cláusula geral de justificação do n.º 1
do mesmo artigo1 que são admissíveis todas previstas na ordem jurídica.
Assim as mencionadas no artigo constituem apenas os principais tipos
justificadores.
A relação entre a norma incriminadora e a norma justificadora indica
uma superioridade da segunda, considerando que o agente não é punido
quando pratica um facto típico, sempre que tal facto é praticado em
circunstância prevista numa norma permissiva. Em suma, como bem
ensina, Germano da Silva, entre a norma incriminadora e a justificadora há
uma relação de contradição formal2.
A prevalência da norma justificadora está expressamente prevista no
artigo 30.º do Código Penal.
As doutrinas finalistas entendem que a conduta deve revestir-se de
requisitos objectivos e subjectivos, porque em toda a conduta há um fim
subjectivo o que implica o conhecimento dos pressupostos da causa de
justificação. Pois, embora não haja muita unanimidade, mas ainda assim a
generalidade da doutrina defende a necessidade do conhecimento do
pressuposto da causa de justificação como requisito da sua validade.
1
Na causa geral de justificação, cabem causas de justificação legais não nomeadas no nº 2, v.g.,
a acção directa, o direito de correcção dos pais, assim como, causas de justificação implícitas e causas
supralegais que a doutrina e a jurisprudência venham a revelar.
2
Direito Penal Português – Teoria do Crime – Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, p.
152.

1
LEGÍTIMA DEFESA
A legítima defesa constitui o fundamento de justificação mais
consensual na dogmática penal3. O n.º 1 do art. 31.º do C.P defini-a como o
facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita
de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiros4.
Com efeito, a legítima defesa exclui a ilicitude com base em dois
fundamentos principais. Por um lado, a ideia de defesa da ordem jurídica e,
por outro lado, o direito de protecção contra bens jurídicos que sejam
ameaçados5. É a ideia da necessidade de defesa da ordem jurídica que
justifica que se sacrifiquem bens jurídicos de valor superior aos postos em
causa pela agressão, bem como que a legítima defesa não esteja limitada
por uma ideia de proporcionalidade.
Do próprio conceito de legítima defesa que nos apresenta o artigo
31.º do Código Penal parece ser razoável subtrair os seus requisitos. Assim
são requisitos da legítima defesa: uma agressão actual e ilícita contra
interesses juridicamente protegidos; a acção de defesa no sentido de que o
defensor use o meio necessário para afastar a agressão e, finalmente, o
animus defendendi6, que representa o elemento subjectivo da legítima
defesa, isto é, a indicação de que o agente agiu com a intenção de defender
o interesse jurídico tutelado. Apenas a verificação cumulativa destes três
requisitos permite afirmar estarmos perante uma verdadeira legítima
defesa.
Quanto à agressão actual e ilícita
Exige-se quanto, quanto à actualidade da agressão, que a execução
da agressão já tenha sido iniciada, ainda que possa não ter sido concluída.
No que diz respeito a ilicitude da agressão, a sua aferição não se
confina a ilicitude penal. o juízo de ilicitude é feito em relação à totalidade
da ordem jurídica7.
A agressão provocada não deixa de ser agressão ilícita, salvo no que
respeita à provocação pré-ordenada, ou seja, aquela provocação que é feita
3
A propósito, observa Figueiredo Dias, que a legítima defesa surge historicamente como o tipo
justificador mais sedimentado, mais consensual e até não há muito tempo praticamente inquestionado
nos traços fundamentais do seu regime. Direito Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 2007, p. 404.
4
A legítima defesa é um direito de autotutela de interesses juridicamente protegidos.
5
José de Faria Costa, Noções Fundamentais de Direito Penal, Coimbra Editora, 2012, p. 282.
6
Existem algumas vozes na doutrina que rejeitam o animus defendendi como requisito da
legítima defesa.
7
Isto quer dizer, que se aceita uma legítima defesa de uma agressão ilícita apenas no direito
civil, do mesmo modo que se pode aceitar uma legítima defesa de uma agressão de um inimputável.

2
com o objectivo de suscitar uma reacção ofensiva da parte do provocado
para que o agente provocador possa por sua vez reagir a coberto de defesa,
para se defender da agressão do provocado.
Quanto à defesa
A acção de defesa deve ser meio necessário para repelir a agressão.
Pelo exposto conclui-se que a defesa se tem de restringir ao uso
daquele meio que seja adequado para fazer terminar a agressão contra a
vítima. Assim fica claro, que estando em causa a defesa da ordem jurídica,
reflectida no interesse particular protegido, é de excluir qualquer exigência
de proporcionalidade, na medida em que tal exigência redundaria numa
injustiça, ao impor ao agredido uma diminuição das suas margens de
liberdade na defesa.
O desrespeito pela necessidade do meio traduz-se em um excesso de
legítima defesa, nos termos do n.º2 do artigo 31.º do Código Penal,
tornando o facto ilícito e consequentemente punível, todavia, a pena pode
ser especialmente atenuada8.
O animus defendendi
Para a legítima defesa , assim como para as restantes causas de
justificação, o agente tem de conhecer que se encontra a actuar ao abrigo de
uma permissão. O agente tem de querer evitar a agressão, o que, desde
logo, implica que o agente represente estar perante uma agressão actual e
ilícita.
ESTADO DE NECESSIDADE9
O Código Penal de 1886, não continha propriamente uma
regulamentação do direito de necessidade, também chamado de estado de
necessidade objectivo ou justificante, o que havia no Código eram preceitos
que podiam ser interpretados como consagrando, de algum modo, a figura,
por exemplo no art. 44.º onde podia-se ler, justificam o facto “os que
praticam o facto violentados por qualquer força estranha, física e
irresistível” (n.º 1) e “os que praticam o facto dominados por um medo
insusceptível de um mal igual ou maior, iminente ou em começo de
execução” (n.º 2).

8
A par do excesso de legítima defesa justificante, do nº 2, do artigo 31º do C.P, temos também
o excesso de legítima defesa desculpante, previsto no artigo 36º que é uma causa de exclusão da culpa.
9
Estado de necessidade justificante, em contraposição ao estado de necessidade desculpante,
previsto no artigo 37º do Código Penal.

3
Portanto, o artigo 32.º do Código Penal de 2020 contém pela
primeira vez, no ordenamento jurídico-penal angolano, a regulamentação
do estado de necessidade.
O direito de necessidade, para Germano da Silva10, é um direito e
como tal o facto praticado no seu exercício não é um facto ilícito. O seu
fundamento resulta do seu próprio pressuposto – estado de necessidade – e
a sua relevância assenta nos princípios gerais da ponderação de interesses e
do meio justo para o fim justo.
Também é de considerar a posição de José de Faria Costa 11, para
quem o fundamento do estado de necessidade justificante radica,
predominantemente, no princípio do interesse preponderante. Ainda para
este autor, este princípio traduz-se também em uma maior utilidade social,
na justa medida em que as margens de protecção dos bens jurídicos ou
interesses protegidos de maior valor aumentam.
No estado de necessidade, diferentemente da legítima defesa, o
titular do interesse a sacrificar para salvaguarda do interesse em perigo não
interveio na criação do perigo, ou antes, não interveio voluntariamente na
criação do perigo.
Podemos com rigor estabelecer como requisitos do estado de
necessidade (art. 32.º do C.P): o perigo actual, a adequação do meio, a
ponderação dos interesses e a razoabilidade de imposição ao lesado do
sacrifício do seu interesse.
O perigo actual
A actualidade do perigo deve ser entendida tal como na legítima
defesa, isto é, o perigo deve ser iminente ou já em produção de dano e o
facto justificado pelo direito de necessidade é destinado a evitar que o dano
se produza ou se agrave, sem possibilidade de adiar-se a sua remoção sob
pena de não produzir qualquer efeito salvador.
A causa do perigo que é pressuposto do estado (direito) de
necessidade pode advir tanto da actividade humana como de
acontecimentos naturais, diferente da agressão em legítima defesa que há-
de consistir sempre numa actividade humana12.
Na alínea a) do artigo 32.º do Código Penal estabelece-se
expressamente que a situação de perigo não pode ter sido criada pelo
10
Obra citada, p. 195.
11
Obra citada, p. 294.
12
Germano da Silva. Obra citada, p. 198.

4
agente, ou seja, não pode ter origem no titular do bem ou interesse
protegido que se encontra em situação de perigo. Porém, no que diz
respeito a interesses de terceiro, a conduta necessária do agente será lícita,
ainda que tenha sido este a causar a situação (al. a, do art. 32 do C.P, in
fine).
A adequação do meio
O artigo 32.º do Código Penal estabelece que o facto praticado tem
de ser um meio adequado para afastar o perigo. Em rigor, é essa adequação
do facto à finalidade de salvaguarda do bem ou interesse protegido que
fundamenta a exclusão da ilicitude.
Discute-se na doutrina se o critério da adequação representa um
requisito autónomo de justificação ou se já estaria implícito nos restantes
requisitos desta causa de justificação. Quanto é essa questão, parece-nos ser
de seguir a posição de José de Faria Costa, para quem a adequação deve ser
vista como elemento autónomo da justificação, que deve ser aferida quanto
a toda e qualquer acção necessária de remoção de perigo13.
A ponderação dos interesses
De acordo com o disposto na al. b) do artigo 32.º só tem lugar a
justificação por direito de necessidade se houver “sensível superioridade
do interesse a salvaguardar relativamente ao sacrificado”. Temos aqui
consagrado a teoria da ponderação de interesses, na sua forma mais rígida.
A legitimidade do facto necessário dependeria então essencialmente da
superioridade do interesse a salvaguardar no seu confronto com o interesse
sacrificado.
Põem-se, posteriormente, a questão de saber, como determinar a
superioridade de um interesse relativamente a outro?
Sobre isso assevera Germano da Silva, que o critério com que todos
estamos de acordo é de que haverá sempre que atender às escalas de
valores dos bens juridicamente protegidos estabelecidos na lei14. Porém,
Figueiredo Dias embora considere relevante a hierarquia dos bens jurídicos
em confronto, reconhece não ser possível e nem legal oferecer uma fórmula
unitária para a resolução definitiva do problema da ponderação 15. De
qualquer modo, este ilustre professor propõe como critério para análise da
hierarquia dos bens jurídicos: as molduras penais, a intensidade da lesão do
13
Obra citada, p. 298.
14
Obra citada, p. 200.
15
Obra citada, p. 445.

5
bem jurídico, o grau de perigo, a autonomia pessoal do lesado e a
“imponderabilidade” da vida de pessoa já nascida16.
A razoabilidade de imposição ao lesado do sacrifício do seu
interesse
Temos aqui uma ideia de razoabilidade de imposição de sacrifício. É
na verdade um critério complementar a ideia contida na alínea b) do artigo
32.º do Código Penal que permite acrescentar à ponderação de interesses
um critério substantivo que impede a mera ponderação objectiva17.
Não basta, para se afirmar o direito de necessidade, que o interesse
em perigo seja superior ao interesse a sacrificar, mas é ainda necessário
que seja ético-juridicamente exigível que o terceiro tolere o sacrifício do
seu bem jurídico, sendo o limite dessa exigibilidade o núcleo irredutível da
dignidade e autonomia pessoal individual18.
BIBLIOGRAFIA
COSTA, José de Faria. Noções Fundamentais de Direito Penal. Coimbra
Editora, Coimbra, 2012;
DA SILVA, Germano Marques. Direito Penal Português - Teoria do Crime -.
Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015;
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal. Coimbra Editora, Coimbra, 2007;
RODRIGUES, Orlando. Apontamentos de Direito Penal. Escolar Editora.
Lobito, 2014.
Legislação.
Código Penal (aprovado pela Lei n.º 38/20, de 11 de Novembro).

Florentino Inácio

16
Idem, pp. 446 a 450.
17
José de Faria Costa. Obra citada, p. 300.
18
Taipa de Carvalho apud Germano Marques da Silva. Obra citada, p. 202.

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