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A natureza jurídica da delegação de poderes

ÍNDICE
1. Introdução
2. Desenvolvimento
2.1. Construções doutrinárias da natureza da delegação de poderes
2.2. A disputa argumentativa
3. Conclusão
1. Introdução
A delegação de poderes é um fenómeno que ocorre no seio da Administração Pública,
intimamente ligado ao processo de desconcentração, e possibilita que um órgão
normalmente competente para decidir em determinada matéria, através deste ato de
delegação de poderes, permita que outro órgão ou agente pratique atos administrativos
sobre a mesma matéria.1 Vejamos o art.44º/1 CPA que acolhe esta definição e que tem
relação com o art.36º do CPA. Neste último é consagrado um principio de
inalienabilidade e irrenunciabilidade que poderia à primeira vista ser um entrave à
delegação de poderes, mas tal é salvaguardado pela lei na parte final do nº1 do mesmo
preceito.
Neste comentário não me debruçarei exaustivamente sobre o modo de procedimento de
um ato de delegação de poderes, os seu requisitos de aplicação ou a sua distinção de
outras figuras afins. O objetivo é, tentando ao máximo fazê-lo com um olhar crítico,
expor as construções doutrinárias sobre a natureza jurídica desta figura que há muito
que entretém a doutrina administrativista e que constitui um exercício completamente
autónomo da discussão conceptual ou de aplicação da figura, tal como avança o
Professor Freitas do Amaral2

2. Desenvolvimento
2.1. Construções doutrinárias da natureza da delegação de poderes
De modo geral, surgem na doutrina quatro grandes opções doutrinárias de perspetivar
esta questão, vejamos então individualmente aquilo a que cada uma corresponde.
Em primeiro lugar, a tese da alienação que entende que a delegação de poderes constitui
um ato de alienação ou transmissão de competência, em que a titularidade dos poderes é
transmitida pelo delegante para o delegado.
Os Professores André Gonçalves Pereira e Marcello Caetano apresentam-nos uma
segunda opção, a tese da autorização. Concluem que ocorre uma autorização por parte
do órgão normalmente competente, conferida a um outro órgão ou agente que a lei
determina como competente sob condição de uma autorização para o exercício dessa
competência.3 Ou seja, não se verifica nenhum ato de transferência de competências,
porque o delegado já tem a competência na sua esfera jurídica antes do ato de
delegação, contudo, é uma competência condicional. Assim, aquilo que acontece é que a
manifestação de vontade do delegante habilita o exercício da competência por parte do
delegado.
Numa linha próxima da tese anterior, surge a tese do alargamento da competência do
Professor Paulo Otero que entende que a delegação de poderes é o ato através do qual o
delegado, que já é previamente titular pela lei de habilitação, passa a poder exercer e
que o delegante apenas alarga o exercício da sua competência própria ao delegado. A
sua diferença quanto à tese anteriormente referida é que existe discordância quanto ao
elemento que atribui a faculdade de exercer ao delegado. O Professor Paulo Otero já
não entende ser a lei de habilitação, mas sim a delegação levada a cabo pelo delegante 4
e que a primeira apenas atribui a titularidade dos poderes.
A tese da transferência do exercício é a terceira tese que nos é apresentada pela doutrina
administrativista, defendida pelo Professor Freitas do Amaral. Rejeita a delegação de
poderes como sendo uma alienação, uma vez que, o delegante em momento algum
perde a competência que delega, da mesma forma que o delegado não tem previamente
a competência na sua esfera com base na lei de habilitação, pelo que rejeita também a
ideia de transferência. O Professor Freitas do Amaral, parece fazer um exercício, diga-
se de passagem, bem conseguido, de distinção de titularidade e de exercício, fazendo
uso da conceção também utilizada na Teoria Geral do Direito Civil. Assim, entende que
dentro da competência existe a titularidade e o exercício da mesma, e que através da
delegação de poderes ocorre uma "transferência do exercício dos poderes" 5 da
competência própria do delegante, permanecendo a titularidade na esfera deste.
2.2. A disputa argumentativa
Ora, cumpre agora olhar para a lei, analisar as objeções levantadas pela doutrina
administrativista e daqui concluir algo.
Relativamente à tese da alienação, veja-se de imediato o art.49º/2º do CPA que consagra
o poder de avocação do delegante, isto é, a possibilidade de o delegante chamar a si o
que "entregou", passando este a ser o único a exercer os poderes outrora delegados. E é
aqui que me parece se verificar a fragilidade desta construção, muito bem apontada pelo
Professor Freitas do Amaral.6 Como vimos, a tese em análise defende uma alienação de
poderes, passando a titularidade dos mesmos para a esfera do delegado, mas
entendendo-se o verdadeiro significado de alienação, torna-se claro que seria estranho
existir uma alienação de poderes com uma possibilidade de voltar atrás, parece pouco
lógico entender que há uma verdadeira transmissão da competência pois o delegante
fica sempre com a possibilidade de avocar e se o faz é porque mantém alguma
titularidades sobre os poderes delegados. Tal como também nos aponta o Professor
Paulo Otero, esta tese deve ser abandonada, a sua admissibilidade contesta o próprio
funcionamento do regime da delegação de poderes por ir contra a possibilidade de
revogação ou de avocação como apontámos.
Vejamos agora as objeção levantadas sobre a tese da autorização. Uma das objeções
reside na ideia de competência simultânea que aparenta ser defendida pela tese em
análise. Este entendimento parece não fazer sentido quando olhando para a lei,
nomeadamente o art.44º/1 do CPA, em que delegantes podem ser agentes. Ora, os
agentes não têm competência própria, assim sendo, esta tese pareceria um pouco
desvirtuada se o delegado fosse um agente, já que este teria de ter algum tipo de
competência antes da delegação de poderes, o que vai contra a própria natureza de um
agente. Podemos ainda olhar para o art.111º/2 da CRP, que faz uso da expressão "os
seus poderes" e aparenta contrariar a ideia de autorização e de competência simultânea,
parecendo sublinhar que apenas um dos intervenientes tem verdadeiramente poderes.
O Professor Freitas do Amaral questiona ainda se assumir a existência do exercício de
uma competência própria pelo delegante não seria incompatível com a possibilidade de
ainda assim o delegante ter poderes de orientação, como aliás prevê o art.49º/1, nos
casos em que não existe uma relação de hierarquia. Parece-me que faz sentido, sendo
uma competência própria deveria exercê-la de uma forma "livre".
Outra objeção, e esta, penso que demonstra bem a situação estranha a que esta tese
poderia levar, implica que suponhamos o cenário de delegação num caso entre órgãos
de pessoas coletivas diversas, exemplo levantado pelo Professor Freitas do Amaral 7, em
que o que se sucederia era que o "órgão delegado teria uma competência própria para
prosseguir as atribuições não da pessoa coletiva a que pertence, mas da pessoa coletiva
a que pertence o delegante." Veja-se a forma como esta tese parece desafiar a lógica do
sistema administrativo.
Relativamente à tese do Professor Paulo Otero, levanta-se como grande objeção a
questão da pré-existência de competências que no extremo poderá levar a entender que
a lei prevê a existência de competências comuns, partilhadas entre os delegantes e
possíveis delegados e que todos estes órgãos e agentes seriam co-titulares das
competências que a lei considerasse passíveis de serem delegadas. Ora, como avança o
Professor Freitas do Amaral8, isto poria em causa o fundamento da desconcentração, de
que no seio da Administração Pública ocorre um fenómeno de divisão de trabalho.
A tese do Professor Freitas do Amaral, num primeiro plano, tem como grande objeção a
apontada pelo Professor Gonçalves Pereira, parece pôr em causa a teorização de que
parte Freitas do Amaral para a construção da sua tese, que é a da separação entre a
titularidade e o exercício de poderes, argumentando que não é um princípio aceitável no
âmbito do Direito Público. A isto o Professor Freitas do Amaral responde com o
fenómeno da concessão, em que os autores da segunda tese enunciada entendem existir
uma transferência de exercício de competência, de um órgão público para um órgão
privado, o que por uma questão de coerência lógica deveria levar a aceitar o mesmo
fenómeno de transferência da capacidade do exercício da competência na delegação de
poderes.
Outra das grandes objeções realizadas, prende-se com a que é apontada pelo Professor
Paulo Otero, que aponta ocorrer uma violação do principio da legalidade administrativa,
uma vez que, estaria a criar-se a possibilidade de existir um exercício de poderes que
são entregues a um determinado órgão por um ato de natureza administrativa, e não pela
lei.9 Penso que é possível responder a esta crítica e entender que a exigência da
competência ser legalmente estabelecida não é afetada, pois até que ponto não se
poderia concluir que o art.36º/1/in fine resulta como base legal para a admissibilidade
de um exercício de poderes por via de um ato de delegação, e parece ser com este
sentido que Freitas do Amaral tenta rebater a critica apontada. Aponta ainda que esta
tese não permite explicar a subdelegação, pois se o delegado não tem titularidade por
efeito da lei de habilitação, como poderá então exercer os poderes típicos do delegante
sob o subdelegado, até atendendo ao facto de que transferiu o seu exercício. 10 O
Professor Freitas do Amaral responde que o delegado recebe da lei a titularidade e o
exercício dos poderes de controlo sobre os atos do subdelegado, veja-se o art.49º do
CPA, e que o exercício do subdelegado apenas envolve o de poder tomar decisões, o
que me parece ter lógica, pois no mesmo ponto de situação fica o delegado perante o
delegante.

3. Conclusão
Tal como já referido, parece-me que a primeira tese deve ser abandonada,
principalmente face à sua incapacidade em se conciliar com as disposições legais
presentes no CPA.
Há que realçar que esta problemática não é despojada de importância prática, pelo que
entendo ser útil tentar perceber as distintas realidades práticas que surgem de aceitar
uma ou outra tese. No caso de um suposto delegado ser um agente da Administração e
agir no âmbito da delegação, mas sem que esta tenha sido concedida, o fundamento da
impugnação num caso poderia ser o do vício de forma por falta de autorização e noutro
um vício de falta de competência. No primeiro caso estaríamos perante um ato anulável
por vício de forma, enquanto no segundo caso estaríamos perante uma situação de
inexistência jurídica, esta segunda penso que protege melhor a situação em causa.
Parece-me que a tese da autorização se mostra muito desligada do sentido das
disposições legais e conceptualmente com algumas quebras lógicas, nomeadamente a
situação em que permitiria que um órgão tivesse competência própria para assumir as
atribuições de uma pessoa coletiva a que não pertence, isto porque a construção assenta
na existência de uma competência partilhada e já prévia ao ato de delegação de poderes.
Sobram-nos duas, a tese da transferência do exercício e a do alargamento da
competência ainda um pouco ligada à anterior, o que faz com que parte das objeções se
possam manter, mas que a meu ver ganha mérito quando parece de algum modo acolher
ou pelo menos aceitar a teorização de separação entre titularidade e exercício, isto
porque parece distinguir dois momentos, um prévio em que existe a titularidade do
delegado e um posterior onde existe uma modificação no âmbito do exercício de uma
competência11.
Apoiando o defendido pelo Professor Freitas do Amaral, penso que esta tese é a que a
nível conceptual com a teorização de separação entre titularidade e exercício, de
concordância legal como nos mostra o já referido artigo 111º da CRP e as disposições
do CPA e a nível de proteção de situações de usurpação de competência do eventual
delegante por parte do eventual delegado, pois conclui pela falta de competência, se
mostra a mais capaz e que por tudo isto me leva a concordar com o seu acolhimento.
1
Amaral, D. F. (2015). Curso de direito administrativo Vol.1. (p.694). Coimbra: Almedina
2
Amaral, D. F. (2015). Curso de direito administrativo Vol.1. (p.693-694). Coimbra: Almedina
3
Caetano, M. (1984). Manual de Direito Administrativo p227. Coimbra: Almedina
4
Otero, P. (1987). A competência delegada no Direito Administrativo Português. (p.197). AAFDL
5
Amaral, D. F. (2015). Curso de direito administrativo Vol.1. (p.710). Coimbra: Almedina
6
Amaral, D. F. (2015). Curso de direito administrativo Vol.1. (p.710-711). Coimbra: Almedina
7
Amaral, D. F. (2015). Curso de direito administrativo Vol.1. (p.713). Coimbra: Almedina
8
Amaral, D. F. (2015). Curso de direito administrativo Vol.1. (p.720). Coimbra: Almedina
9
Otero, P. (1987). A competência delegada no Direito Administrativo Português. (p.194). AAFDL
10
Otero, P. (1987). A competência delegada no Direito Administrativo Português. (p.194). AAFDL
11
Otero, P. (1987). A competência delegada no Direito Administrativo Português. (p.197). AAFDL

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