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D ire ito P en al - P a rte G era l

Capítulo I
Introdução

1. Conceito de direito penal

Simplificadamente ,1 o direito penal ou direito criminal é a parte do ordena-


mento jurídico que define as infrações penais (crimes e contravenções) e comina as
respectivas sanções (penas e medidas de segurança ).2
Eis algumas das definições mais conhecidas: Franz von Liszt o define como o
conjunto das prescrições emanadas do Estado que ligam ao crime, como fato, a pe-
na, como conseqüência ;3 Mezger, como o exercício do poder punitivo do Estado,
que conecta ao delito, como pressuposto, a pena, como conseqüência jurídica ;4
Welzel, como a “parte do ordenamento jurídico que determina as características da
ação delituosa e lhe impõe penas ou medidas de segurança” .5
Wessels dá uma definição mais completa: “por Direito Penal designa-se a
parte do ordenamento jurídico que determina os pressupostos da punibilidade, bem
como os caracteres específicos da conduta punível, cominando determinadas penas
e prevendo, a par de outras conseqüências jurídicas, especialmente medidas de
segurança.”6 Entre nós, Frederico Marques assinala que para se ter uma noção exata
é imprescindível que nela se compreendam todas as relações jurídicas que as nor-
mas penais disciplinam, inclusive as que derivam dessa sistematização ordenadora
do delito e da pena, apresentando o seguinte conceito: “o direito penal é o conjun-
to de normas que ligam ao crime, como fato, a pena, como conseqüência, e disci-

1 Por conceito, entende-se todo o processo que to m e possível a descrição, a classificação e a previsão dos
objetos cognoscíveis. Assim entendido, esse term o tem significado generalíssimo e pode incluir qualquer
espécie de sinal ou procedimento sem ântico, seja qual for o objeto a que se refere, abstrato ou concreto,
próximo ou distante, universal ou individual. Nicola Abbagnano. Dicionário de Filosofia. S. Paulo:
M artins Fontes, 2003, p. 164.
2 De acordo com Juarez C irino, o d ireito penal é o setor do ordenam ento ju ríd ico que define crim es,
com ina penas e prevê medidas de segurança aplicáveis aos autores das condutas incrim inadas. D ireito
Penal. Parte Geral. Rio de Jan eiro: Lum en Juris, 20 0 6 , p. 3. Eis ainda o co n ceito de Luis Jim énez de
Asúa: “co n ju n to de norm as e disposições ju ríd icas que regulam o exercício do poder sancionador e
preventivo do Estado, estabelecendo o co n ceito do delito com o pressuposto da ação estatal, assim
como a responsabilidade do sujeito ativo, e associando à infração da norm a um pena finalista ou uma
medida de segurança.” La ley e el delito: curso de dogm atica penal. Caracas: ed itorial Anrés Bello,
1945, p. 17.
3 Tratado de direito penal alemão, trad. José Hygino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: Briguiet, 1899, v. 1, p. 1.
4 Tratado d e d erech o penal, 2. ed. Madrid: 1946, v. 1, p. 27-28.
5 D erecho pen al alemán, trad. Bustos e Pérez. Santiago: Ed. Jurídica de Chile, 1993, p. 1.
6 P ireito pen al , trad. Juarez Tavares, 5. ed.. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, Editor, 1976, p. 5.
Paulo Q ueiroz

plina, também, outras relações jurídicas daí derivadas, para estabelecer a aplicabi-
lidade de medidas de segurança e a tutela do direito de liberdade em face do poder
de punir do Estado.”7
Mas tais definições não são de todo exatas, estando o objeto do direito penal
além delas. Basta referir algumas normas: “não há crime sem lei anterior que o defi-
na, nem pena sem prévia cominação legal”; “ninguém pode ser punido por fato que
lei posterior deixa de considerar crime”; “considera-se praticado o crime no mo-
mento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado” (CP, arts.
fo a 40). “a pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo
mesmo crime” (art. 8e); “o resultado, de que depende a existência do crime, somen-
te é imputável a quem lhe deu causa” (art. 13); “entende-se em legítima defesa
quem...” (art. 25); “é isento de pena...” (art. 181); “considera-se funcionário públi-
co...” (art. 327).
Vê-se assim que as normas jurídico-penais não se limitam à definição de com-
portamentos delituosos, cominando-lhes as respectivas sanções. A prevalecer tão
restrito conceito, só teremos como normas penais aquelas previstas na chamada
Parte Especial dos códigos e leis penais extravagantes que prevêem as condutas
delituosas. A Parte Geral, e não raro também a Parte Especial, em vez de declarar
quais são os comportamentos criminosos ou contravencionais, trata sobretudo de
delimitar o âmbito de atuação das normas penais e de estabelecer os critérios de
interpretação/aplicação do direito penal.
Mas não apenas isso. A Constituição Federal (principalmente) e o Código
Penal definem ainda as bases e os princípios que informam o direito penal, traçan-
do-lhe o perfil, limites e contornos. Numa palavra, dão-lhe a conformação políti-
co-jurídica.
Assim, por exemplo, quando adota o princípio da legalidade, o princípio da
não-perpetuação das penas, o princípio da proporcionalidade etc.. Enfim, as nor-
mas tipicamente penais - previstas ou não num diploma penal - , ao tempo em que
fundam e estruturam o poder punitivo do Estado, fixam os princípios e regras fun-
damentais que vão governar a intervenção jurídico-penal, criando, paralelamente,
um sistema de garantias em face do exercício deste poder.
Ademais, tais definições, ao ressaltarem a relação Estado/infrator, marginali-
zam a vítima, desconsiderando o papel fundamental que esta vem de assumir no
direito penal e processual penal.8

Tratado d e direito penal. Campinas: Bookseller, 1997, p. 24.


Fala-se inclusive de vítimo-dogmática, parte da vitimologia que se ocuparia da influência do comporta-
mento da vítima na dogmática penal; havendo quem entenda (Schünemann, que desenvolve o princípio
vitimológico) que onde seja possível e exigível uma autoproteção fácil e eficaz por parte da própria víti-
ma não ocorre, propriamente, uma lesão socialmente perigosa e digna de repressão jurídico-penal, m oti-
vo pelo qual o ofendido não é, em tal caso, merecedor da proteção outorgada pelo direito penal, dado o
caráter de ultima ratio. Sobre o assunto, Roxin, D erecho penal : parte general. Madrid: Ed. Civitas, 1997,
p. 562-567.
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Cabe conceituar assim, e prelim inarm ente, o direito penal como o conjunto
das normas jurídicas que, materializando o poder punitivo do Estado, define as
infrações penais (crimes e contravenções) e comina as sanções correspondentes
(penas, medidas de segurança ou outra conseqüência legal9), estabelecendo ainda
os princípios e garantias em face do o exercício deste poder, ao tempo em que cria
os pressupostos de punibilidade.
Pode-se ainda conceituá-lo, como faz García-Pablos, sob o enfoque dinâmico
e sociológico, como sendo um dos instrumentos do controle social formal por meio
do qual o Estado, mediante determinado sistema normativo (as leis penais), castiga
com sanções negativas de particular gravidade (penas e outras conseqüências afins)
as condutas desviadas mais nocivas para a convivência, assegurando desse modo a
necessária disciplina social e a correta socialização dos membros do grupo.10
É certo também que, por meio da expressão Direito Penal, é designada a “ciên-
cia do direito penal”. Nesse sentido, o saber ou a ciência penal tem por objeto o co-
nhecimento, a interpretação, a sistematização e a crítica do direito positivo .11
Finalmente, convém advertir que todos esses conceitos são também passíveis
de crítica por confundirem, mais ou menos claramente, direito penal com legisla-
ção penal, isto é, confundem lei e direito, conforme se esclarecerá mais adiante.

1.1. Relação entre Direito Penal e Direito Processual Penal

O Direito Processual Penal é o ramo do ordenamento jurídico cujas normas


instituem e organizam os órgãos públicos que cumprem a função jurisdicional do
Estado e disciplinam os atos que integram o procedimento necessário para a apli-
cação de uma pena ou medida de segurança .12 Incumbe ao processo penal, portan-
to, definir competências, fixar procedimentos e estabelecer as medidas processuais
necessárias à realização do direito penal, razão pela qual o processo penal nada mais
é do que um continuum do direito penal, ou seja, é o direito penal em movimen-
to, e, pois, formam uma unidade.
Por conseguinte, não pode haver crime sem processo, porque é por meio do
processo penal que o Estado, que detém com exclusividade o direito de punir ,13 di-

9 Ao me referir a outra conseqüência legal , quero aludir a medidas despenalizadoras, como a suspensão con-
dicional do processo e a transação (Lei nQ9.099/95), e efeitos não penais da sentença penal condenatória
(obrigação de reparar o dano etc.), bem como adm itir a possibilidade de redefinição e flexibilização da res-
posta penal, segundo o princípio da adequação. No particular, entendo que o direito penal deve ampliar,
sensivelmente, os modos de responder ao conflito, conform e as particularidades de cada caso concreto,
buscando, à sem elhança do direito não penal (civil, administrativo), uma solução para o caso, solução que
não precisa ter necessariamente caráter de pena.
10 D erecho penai: introducción, Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 1995, p. 1-2.
11 García-Pablos, cit., p. 298.
12 Maier, Julio B. J. D erecho Procesal Penal.Tom o I: Fundamentos. 3. ed. Buenos Aires: Editores dei Puerto,
2004, p. 75.
13 Conforme assinala Aury Lopes Júnior, o processo, como instituição estatal, é a única estrutura que se reco-
nhece como legítima para a imposição da pena, visto que o direito penal é desprovido de coação direta e, di-
rá, por exemplo, se há ou não crime, se o crime está ou não provado, se a prova
obtida é ou não lícita, se o autor agiu ou não em legítima defesa, se ele é ou não cul-
pável, se houve ou não prescrição. Por isso é que entre o direito penal e o proces-
so penal há uma relação de mútua referência e complementaridade,14 visto que o
direito penal é impensável sem um processo penal (e vice-versa). Daí dizer Calmon
de Passos que a relação entre o direito material (penal, civil) e o processo não é uma
relação apenas de meio e fim, isto é, instrumental, mas uma relação integrativa,
orgânica, substancial, uma vez que o direito é socialmente construído, historica-
mente formulado, atende ao contingente e conjuntural do tempo e do espaço, e,
por isso, somente o é depois de produzido.15
Exatamente por isso, os princípios e garantias inerentes ao direito penal (lega-
lidade, irretroatividade da lei mais severa etc.) devem ser aplicados, por "igual, ao
processo penal, unitariamente, não cabendo fazer distinção no particular. Também
por isso, os constrangimentos gerados pelo processo penal jamais poderão exceder
àqueles que poderiam resultar da própria condenação, sob pena de conversão do
processo em pena antecipada, além de violação ao princípio da proporcionalidade.
Assim, não é legítima a prisão provisória sempre que à infração penal cometida for
cominada pena não privativa da liberdade ou for cabível a sua substituição por pena
restritiva de direito ou semelhante.16
Apesar disso, direito penal e processo penal não se confundem, porque, por
exemplo, a prisão provisória (prisão em flagrante, prisão preventiva) não é a pró-
pria pena cominada ao crime, nem sua antecipação, a qual pressupõe um processo,
sob pena de se confundir o processo de conhecimento com o processo de execução
(a própria execução da pena); e, neste caso, o processo, que deveria assegurar ao réu
as garantias que lhe são inerentes, com vistas à realização de um julgamento justo
ou ao menos conforme a Constituição seria um simples pretexto para se impor um
castigo antecipado a alguém e legitimar decisões arbitrárias, como se de fato pro-
cesso algum existisse.
O mesmo deve ser dito quanto à execução penal, última etapa de realização
do direito penal, a qual deve ser regida pelos princípios constitucionais do direito
e processo penal, afinal, o direito, apesar de compartimentado em ramos, pretende
ser um só. Assim, modificações legislativas criadas em desfavor do condenado não
podem atingir as condenações por crimes cometidos anteriormente à sua entrada
em vigor, sob pena de violação ao princípio da irretroatividade da lei mais severa

ferentem ente do direito privado, não tem atuação nem realidade concreta fora do processo corresponden-
te, in Introdução crítica ao Processo Penal. 4* edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 3.
14 Figueiredo Dias, Jorge. Direito Processual Penal. 1. ed„ 1974 (reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora,
2004, p. 28.
15 J. J.Calmon de Passos. Direito, poder, justiça e processo. Forense: Rio de Janeiro, 1999, p. 52 e 68.
16 Sobre isso, conferir Antônio Vieira. O Princípio da Proporcionalidade e Prisão Provisória, in Leituras
Complementares de Processo Penal. Salvador: JUSPODIVM, 2008.
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(v.g., uma lei que abolisse o livramento condicional deveria ser aplicada somente
aos crimes cometidos posteriormente à sua vigência).
Em conclusão, e contrariamente à doutrina e jurisprudência ainda hoje majo-
ritária, temos que tudo que se disser sobre o direito penal há de igualmente valer
para o direito processual penal e execução penal, necessariamente, a fim de confe-
rir-lhes tratamento unitário e conforme a Constituição .17

1.2. Mas o que é de fato o Direito?

Em primeiro lugar, o direito é um conceito, tal qual justiça, moral, ética ou esté-
tica. E como conceito, remete necessariamente a outros conceitos: lei, ordem, segu-
rança, liberdade, bem jurídico etc., que também reenviam a outros tantos, motivo
pelo qual só se pode obter um conceito de direito por meio de remissões, associações.
Em segundo lugar, o mais elaborado ou prestigiado conceito de direito é apenas
um entre vários conceitos possíveis, de sorte que traduz em última análise o ponto de
vista de seu autor ou de quem o adota, afinal outros tantos conceitos, mais ou menos
exatos, mais ou menos amplos, são igualmente possíveis. Também por isso, um con-
ceito constitui uma apreensão sempre parcial do mundo, dentro de um universo de
representações possíveis; um conceito é uma simplificação, uma redução.
Em terceiro lugar, todo conceito, como representação formal do pensamento,
pouco ou nada diz sobre o seu conteúdo, isto é, pouco ou nada diz sobre as múlti-
plas formas que ele pode histórica e concretamente assumir, até porque, embora
pretenda valer para o futuro, é pensado a partir de uma experiência passada, a reve-
lar que definir algo é de certo modo legislar sobre o desconhecido. Também por isso,
um conceito, como expressão da linguagem, é estruturalmente aberto, e, pois, pode
compreender objetos históricos os mais díspares (v.g., o conceito de legítima defesa
depende do que se entenda, em dado contexto, por “injusta agressão”, “atual ou im i-
nente”, “uso moderado dos meios necessários”, “direito próprio ou alheio” etc.).
Em quarto lugar, um conceito, que é assim socialmente construído, só é com-
preensível num espaço e tempo determinados, motivo pelo qual, com ou sem alte-

17 De modo diverso, Elm ir Duclerc (Curso Básico de D ireito Processual Penal, v. 1. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006, p. 4) sustenta que não é correto vincular a existência do direito processual ao direito penal,
mesmo porque o processo penal “nem sempre será decidido com amparo em normas de direito material
(pense-se, por exemplo, nos processos por crim e de furto, em que pode ser necessário discutir se a coisa
subtraída era ou não alheia à luz do D ireito Civil)”. Não estamos de acordo com isso, evidentemente.
Desde logo, porque o direito é um só, apesar de compartimentado em ramos, que não são compartimen-
tos estanques; segundo, porque o recurso ao conceito jurídico-penal de infração penal (no caso, crim e de
furto) é absolutamente indispensável; terceiro, porque não se pode justificar um conceito a partir de uma
exceção; finalm ente, porque o só fato de um processo penal poder ser anulado por meio de habeas eorpus
por violar normas processuais não desm ente a vinculação essencial entre direito penal e processo penal.
Além disso, o direito processo penal, am es de ser processo, é direito, e não é qualquer processo (civil,
administrativo etc.), mas processo p e n a l isto é, relativo ao direito penal. Enfim , os argumentos invocados
em favor da independência do direito processual penal dizem respeito a aspectos acidentais, não essen-
ciais, da relação político-jurídica em questão.
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ração de seus termos, está em permanente mutação, afinal um conceito encerra
uma convenção (sempre provisória), e está condicionado por pré-conceitos ou pré-
juízos. Por isso é que o legal ou ilegal, o lícito ou ilícito variam no tempo e no espa-
ço, independentemente (inclusive) da alteração dos termos da lei, até porque o direi-
to existe com ou sem leis (v.g., comunidades ou países que seguem um direito costu-
meiro). Todo conceito, assim como todo texto, pressupõe um determinado contexto.
Exatamente por isso, o que é justo hoje ou o foi ontem não será necessaria-
mente amanhã. Pode ocorrer inclusive de se ter por justo e legal num determina-
do momento algo que se tornará injusto e ilegal - e eventualmente criminoso - em
momento posterior (v.g., a discriminação de homossexuais ou de filhos havidos
fora do casamento, danos ao meio ambiente), podendo-se imaginar que no faturo,
tal como já ocorre nalguns países, muito do que atualmente é ilegal se tornará legal
(e vice-versa), como a eutanásia, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a ado-
ção por tais casais, a mudança de sexo etc. Aliás, historicamente, nem todas as pes-
soas foram consideradas como sujeitos de direito (v.g., estrangeiros, prisioneiros de
guerra, mulheres, escravos).18
Em quinto lugar, o conceito de direito, tal qual o conceito de justiça, liberda-
de, igualdade, e diferentemente do conceito de cavalo, automóvel etc., que dizem
respeito a algo concreto, não remetem a uma coisa, a um objeto, propriamente, mas
a relações e conflitos que daí resultam (v.g., pais/filhos, empresa/empregados, auto-
res/vítimas, Estado/criminosos etc.). Exatamente por isso, o direito não é um con-
junto de artigos de lei, mas um conjunto de relações humanas.19
Finalmente, todo conceito é construído pela equiparação de coisas desiguais e,
por isso, constitui uma universalização do não-universal, do singular; um conceito
nasce, portanto, da postulação de identidade do não idêntico .20 O conceito de cri-
me, por exemplo, refere-se a um sem-número de condutas que a rigor nada têm em
comum, à exceção da circunstância de estarem formalmente tipificadas: matar
alguém, subtrair coisa alheia móvel, emitir cheque sem provisão de fundos, portar
droga para consumo pessoal, abater espécime de fauna silvestre etc. (espécime que
pode variar de uma borboleta a uma onça pintada), conceitos, que, por sua vez, uni-
ficam coisas díspares. Com efeito, não existe um homicídio absolutamente igual a
outro homicídio, nem um furto absolutamente igual a outro furto, nem um crime
ambiental absolutamente igual a outro, pois as múltiplas variáveis que sempre
envolvem tais atos tornam cada ação humana singular, única, irrepetível. Enfim,
um conceito é formado pela eliminação do que há de particular em cada ato; e

18 Também por isso, não é correto criticar a justiça ou injustiça de um ato ou instituição (v. g., a escravidão)
desconsiderando o contexto em que surgiram. Não é de admirar, por isso, que no futuro, tal como já ocor-
re nalguns países, se for abolida a repressão ao tráfico ilícito, drogas passem a ser vendidas livremente em
drogarias e a história da sua repressão seja vista como selvageria ou algo similar.
19 Arthur Kaufmann. Filosofia do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.
20 Nietzsche, Friedrich. Sobre verdad y mentira en sentido extramoral. Madrid: Tecnos, 1996.
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quanto mais exato, mais abstrato e mais vazio de conteúdo se tom a .21 Os fatos são
mais ou menos semelhantes, nunca idênticos.
Aliás, a analogia, que tradicionalmente tem merecido um tratamento secun-
dário, não constitui (conforme se verá mais tarde) um elemento acidental, mas
essencial ao conhecimento/interpretação, pois o belo e o feio, o justo e o injusto, o
legal e o ilegal são construídos em verdade a partir de comparações (analogias), isto
é, recorrendo-se, conscientemente ou não, a experiências (sempre novas) de bele-
za, de justiça e de legalidade.
De tudo isso resulta que o direito não está previamente dado, pois é parte da
construção social da realidade; e, portanto, o direito não preexiste à interpretação,
mas é dela resultado, razão pela qual a interpretação não é um modo de desvelar
um suposto direito preexistente, mas a forma mesma de produção do direito.
Enfim, não é mais a interpretação que depende do direito (ou da lei), mas o direi-
to (ou a lei) que depende da interpretação.
O que é então o direito? Sob essa perspectiva, uma multidão móvel de metá-
foras e metonímias.22

1.3. Ainda o conceito de Direito: o Direito não existe23

É preciso insistir ainda que o direito não é uma coisa, isto é, não tem uma
essência, uma substância; não existe ontologicamente, independentemente da
representação que fazemos a seu respeito, porque constitui uma criação humana,
que nasce e morre com o homem, ou seja, o direito não é sólido, nem líquido, nem
gasoso, nem animal, nem vegetal.24
Com efeito, “aquilo que uma teoria do direito objetiva como d ireito ”, são pala-
vras de François Ewald, “como natureza do direito, como essência do direito, não
tem existência real. O Direito - demos-lhe maiúsculas - não existe. Ou antes, não
existe a não ser como um nome que reenvia a um objeto, mas serve para designar
uma multiplicidade de objetos históricos possíveis - que, como realidades, não têm

21 Nietzsche, Friedrich. Sobre verdad y mentira en sentido extramoral. Madrid: Tecnos: 1996.
22 Nietzsche, Friedrich. Sobre verdad y mentira en sentido extramoral. Madrid:Tecnos: 1996. Naturalmente
que com esse conceito generalíssimo, aplicável a outros saberes, fica por esclarecer o que há (se há) de
peculiar no “fenômeno" jurídico.
23 Conforme se infere de alguns conceitos: “o direito é, pois, o conjunto de condições sob as quais o arbítrio
de um se pode harmonizar com o arbítrio do outro, segundo uma lei universal da liberdade” (Kant,
Metafísica dos costumes, parte I. Lisboa: Edições 70, p. 36); “o domínio do direito é o espírito em geral; aí,
a sua baseprópria, o seu ponto de partida está na vontade livre, de tal modo que a liberdade constitui a sua
substância e o seu destino e que o sistema do direito é o império da liberdade realizada, o mundo do espí-
rito produzido como uma segunda natureza a partir de si mesmo” (Hegel, Princípios d e filosofia do direi-
to , trad. Orlando Vitorino. São Paulo, Martins Fontes, 1997, p. 12); “Direito é a ordenação heterônoma,
coercível e bilateral atributiva das relações de convivência, segundo uma integração normativa de fatos
segundo valores” (Miguel Reale, Lições prelim inares d e direito. São Paulo, Saraiva, 2005, p. 67).
24 Calmon de Passos. Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 67-68.
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os mesmos atributos, e que podem mesmo ter atributos irredutíveis”,25 de sorte


que, assim como não existem fenômenos morais, mas apenas uma interpretação
moral dos fenômenos,26 tampouco existem fenômenos jurídicos, mas só uma inter-
pretação jurídica dos fenômenos, pois nada é onticamente jurídico, lícito ou ilíci-
to, mas socialmente construído.
Em conclusão, o direito é o que dizemos que ele é, porque o direito, como de
resto quase tudo que diz respeito ao homem, não está no fato ou na norma em si,
mas na cabeça das pessoas, de modo que podemos afirmar, parafraseando o evan-
gelho (Lucas, 17:21), que o reino do direito está dentro de nós, e que nós o criamos
e recriamos permanentemente, dando-lhe distintos significados a cada momento
de sua produção segundo um dado contexto histórico-cultural. Dito de outra
forma: o direito e o não direito, tal qual o justo e o injusto, o moral e o imoral, o
ético e o estético, é em nós que ele existe!27
Daí que o direito, como o poder, não é uma coisa, mas relações/intera-
ções/interpretações/decisões, que é algo que se exerce, que se efetua, que funciona
como uma máquina social que não está situada em um lugar privilegiado ou exclu-
sivo, mas se dissemina por toda a estrutura social.28 Constitui, por isso, uma gran-
de simplificação supor que o Estado seja a única fonte de direito ou que o direito se
esgote no direito legislado,29 já que cada um carrega dentro de si seus microssiste-

25 Foucault, A norma e o direito. Lisboa: Vega, 1993, p. 160. De modo similar, Calmon de Passos afirma que
o direito “enquanto apenas formulação teórica, enunciado normativo, proposição ou juízo, ainda não é o
Direito", pois “o Direito é o que dele faz o processo de sua produção. Isso nos adverte de que nunca é algo
dado, pronto, preestabelecido ou pré-produzido, cuja aplicação é possível mediante simples utilização de
determinadas técnicas e instrumentos, com segura previsão das conseqüências”, razão pela qual “O
Direito, em verdade, é produzido a cada ato de sua produção, concretiza-se com sua aplicação e somente
é enquanto está sendo produzido ou aplicado” . Direito, poder, justiça e processo. Rio de Janeiro: Forense,
1999, p. 67-68). Não por outra razão, Oliver W endell Holmes afirmava que o que o direito realmente faz
é criar profecias sobre o que os tribunais farão de fato. Textualmente: “the prophecies o f what the courts
will do in fact, and nothing more pretentious, are what I mean by the law”, apud Arthur Kaufmann,
Filosofia do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.
26 Nietzsche, Friederich. Para além do bem e do mal, trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 92.
27 Só assim se explica, por exemplo, que, interpretando a Constituição americana, que vigora há séculos,
tenha a Suprema Corte entendido, inicialmente, que o racismo era constitucional; mais tarde (década de
1950), passou-se a considerá-la parcialmente inconstitucional; e, finalmente, a partir da década de 1970,
prevaleceu o entendimento de que o racismo é inteiramente inconstitucional. O que mudou, se o texto da
lei é o mesmo desde então? A resposta é simples: o homem que o interpreta!
28 Roberto Machado. Por uma genealogia do poder, in Michel Foucault, Microfísica do Poder. Rio de
Janeiro: Graal, 1995, p. XIV.
29 Não sem razão, Boaventura de Souza Santos refere, além do direito estatal ou territorial, o direito domés-
tico, o direito de proteção, o direito da comunidade e o direito sistêmico, classificação que não é exausti-
va. O direito doméstico - grandemente informal - é o direito do espaço doméstico, o conjunto de regras,
de padrões normativos e de mecanismos de regulação de conflitos que resulta da, e na, sedimentação das
relações sociais do agregado doméstico; o direito da produção é o direito da fábrica ou da empresa, o con-
junto de regulamentos e padrões normativos que organizam o quotidiano das relações do trabalhado assa-
lariado: códigos de fábrica, regulamentos da linha de produção, códigos de condutas dos empregados etc.;
o direito da comunidade, como sucede com o espaço da comunidade, é uma das fontes de direito mais
complexas, na medida em que cobre situações extremamente diversas, podendo ser invocado tanto pelos
grupos hegemônicos como pelos grupos oprimidos; finalmente, o direito territorial ou estatal é o direito do
D ireito Penal - Parte Geral

mas jurídicos, e os faz, ou tenta fazê-los prevalecer, nos seus espaços de intera-
ção/exercício de poder.
Dizemos, por exemplo, o direito penal, primeiro, por meio dos processos de
criminalização primária que vão culminar na edição de uma lei que diga o que é e
não é crime, porque assim o exige o princípio da legalidade (CF, art. 5e, XXXIX30);
segundo, por meio dos processos de criminalização secundária, isto é, através das
ações e reações das pessoas e instituições direta ou indiretamente relacionadas com
o crime (Judiciário, Ministério Público, Polícia, advogados, imprensa, autor, víti-
ma, parentes etc.).
Assim, se não há crime nem pena sem lei anterior que os defina, segue-se que,
por mais que uma conduta humana seja moralmente reprovável (v. g., o incesto),
se não houver lei que a declare criminosa, criminosa não é, sendo jurídico-penal-
mente irrelevante. É a lei, portanto, que cria o crime, é a lei que cria o criminoso.
Numa palavra: crime é só o que o legislador diz que é .31
Mas esse discurso não cessa aí, porque prossegue por meio dos processos de
definição e reação social, isto é, os processos de criminalização secundária, que
nada mais são do que continuum daquele. E que de certo modo a lei nada prescre-
ve, proíbe, autoriza ou permite, pois a lei prescreve ou não prescreve, proíbe ou não
proíbe, autoriza ou não autoriza, permite ou não permite o que dizemos que ela
proíbe, autoriza ou permite, de modo que a lei diz o que dizemos que ela diz.32

espaço da cidadania e, nas sociedades modernas, é o direito central na maioria das constelações de ordens
jurídicas, sendo que, ao longo dos últimos duzentos anos, foi construído pelo liberalismo político e pela
ciência jurídica como a única forma de direito existente na sociedade, in Crítica da razão indolente , São
Paulo, Cortez, 2000, p. 290 e s.
30 Prescreve o aludido artigo que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia comi-
nação legal”.
31 Apesar disso, tem razão Niklas Luhmann quando, de uma perspectiva distinta, assinala que “o direito não
se origina da pena do legislador. A decisão do legislador (e o mesmo é válido, como hoje se reconhece,
para a decisão do juiz) se confronta com uma multiplicidade de projeções normativas já existentes, entre
as quais ele opta com um grau maior ou menor de liberdade. Se não fosse assim, ela não seria uma deci-
são jurídica. Sua função, portanto, não reside na criação do direito, mas na seleção e na dignificação sim-
bólica de normas enquanto direito vinculativo. Ele envolve um filtro processual, pelo qual todas as idéias
jurídicas têm que passar para se tornarem socialmente vinculativas enquanto direito. Esses processos não
geram o direito propriamente dito, mas sim sua estrutura em termos de inclusões e exclusões; aí se deci-
de sobre a vigência ou não, mas o direito não é criado do nada. É importante ter em mente essa diferen-
ça, pois de outra forma a concepção do direito estatuído através de decisões pode ser ligada à noção total-
mente errônea da onipotência de fato ou moral do legislador. É necessário, em outras palavras, diferen-
ciar entre atribuição e causalidade. A proeminência especial do processo decisório (por instâncias legisla-
tivas ou por juizes) e sua relevância na positivação na vigência do direito não podem levar à interpretação
como algo criativo ou causai; o direito resulta de estruturas sistêmicas que permitem o desenvolvimento
de possibilidades e sua redução a uma decisão, consistindo na atribuição de vigência jurídica a tais deci-
sões” Sociologia do direito, II. Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário 80, 1985, p. 8.
32 Por isso afirma Lênio Luiz Streck que em rigor não existem julgamentos de acordo com a lei ou em desa-
cordo com ela, porque o texto normativo não contém imediatamente a norma (Müller), a qual é construí-
da pelo intérprete no decorrer do processo de concretização do direito, de sorte que, quando o juiz profe-
re um julgamento considerado contrário à lei, na realidade está proferindo um julgamento contra o que a
doutrina e a jurisprudência estabelecem como arbitrário. Conclui então que “é necessário ter em conta que
Paulo Queiroz

Aliás, e conforme assinala Umberto Eco, “um texto, uma vez separado do seu emis-
sor (bem como da intenção do seu emissor) e das circunstâncias concretas da sua
emissão (e conseqüentemente de seu referente implícito), flutua no vácuo de um
espaço potencialmente infinito de interpretações possíveis. Conseqüentemente,
texto algum pode ser interpretado segundo a utopia de um sentido autorizado fixo,
original e definitivo. A linguagem sempre diz algo mais do que o seu inacessível
sentido literal, o qual já se perdeu a partir do início da emissão textual”.33
Explicando mais concretamente: a lei prescreve que o crime de estupro con-
siste em constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave
ameaça (CP, art. 213); parece óbvio saber em que consiste o crime, pois. No entan-
to, o que vem a ser m ulher para efeitos penais? Transexual, por exemplo,, pode ser
considerada mulher para fins penais, e, portanto, vítima de estupro? Há algum
tempo uma conhecida judoca brasileira foi impedida de participar de competição
por não ser mulher segundo as regras desportivas: não seria ela, então, passível de
estupro? Práticas sadomasoquistas podem ser consideradas criminosas? Não faz
muito tempo, autores importantes afirmavam que o marido não podia responder
por crime de estupro contra a esposa, pois, diziam, entre os direitos inerentes ao
casamento estava o de o marido poder dela dispor sexualmente, razão pela qual não
lhe era dado oferecer resistência lícita .34 Ainda hoje, parte da doutrina entende que
haverá estupro nesse caso, “desde que ela tenha justa causa para a negativa”.35 Não
bastasse isso, o Código equipara a estupro violento o estupro com violência p resu -

o Direito deve ser entendido como uma prática dos homens que se expressa em um discurso que é mais
que palavras, é também comportamentos, símbolos, conhecimentos, expressados (sempre) na e pela lin-
guagem. É o que a lei manda, mas também o que os juizes interpretam, os advogados argumentam, as par-
tes declaram, os teóricos produzem, os legisladores criticam. É, enfim, um discurso constitutivo, uma vez
que designa/atribui significado a fatos e palavras", in Hermenêutica jurídica em crise. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 1999, p. 210-211.
33 Os limites da interpretação. S. Paulo: Editora Perspectiva, 2000, p. XIV. Apesar disso, e conforme sugere o
próprio título do texto (os limites da interpretação), Umberto Eco entende, com razão, que há limites à
interpretação, de sorte que nem toda interpretação é aceitável ou válida. Vide capítulo sobre interpretação.
34 Assim, Nélson Hungria: “questiona-se sobre se o marido pode ser, ou não, considerado réu no estupro,
quando, mediante violência, constrange a esposa à prestação sexual. A solução justa é no sentido negati-
vo. O estupro pressupõe cópula ilícita (fora do casamento). A cópula intra matrimonium é recíproco dever
dos cônjuges (...). O marido violentador, salvo excesso inescusável, ficará isento até mesmo da pena cor-
respondente à violência física em si mesma (excluído o crime de exercício arbitrário das próprias razões,
porque a prestação corpórea não é exigível judicialmente), pois é lícita a violência necessária para o exer-
cício regular de um direito”, in Comentários ao Código Penal Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 125-126.
Assim também, Magalhães Noronha: “as relações sexuais são pertinentes à, vida conjugal, constituindo
direito e dever recíproco dos que casam. O marido tem direito à posse sexual da mulher, ao qual ela não
pode se opor. Casando-se, dormindo sob o mesmo teto, aceitando a vida em comum, a mulher não se pode
furtar ao congresso sexual, cujo fim mais nobre é o da perpetuação da espécie. A violência por parte do
marido não constituiria, em princípio, crime de estupro, desde que a razão da esposa para não aceder à
união sexual seja mero capricho ou fútil motivo, podendo, todavia, ele responder por excesso cometido”.
Direito penal , v. 3. São Paulo: Saraiva, 27. ed., 2003.
35 Damásio de Jesus. Direito Penal. Parte Especial, 3° volume, p. 96. São Paulo: Saraiva, 2002. Paulo José da
Costa Júnior ainda hoje defende que mulher casada não pode ser vítima de estupro praticado pelo mari-
do. Curso dç Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2008.
D ireito Penal - Parte Geral

m ida, isto é, praticado contra menores de catorze anos (CP, art. 22436) ou mulher
que padeça de alienação mental, o que significa dizer que muitos namoros poderão
ser interpretados como autênticos estupros. Finalmente, o que significa ou pode
significar “constranger”?
Consideremos um outro exemplo. A Constituição veda, expressamente, as
penas de morte e cruéis (CF, art. 5Q, XLVII37). Mas o que vem a ser pena de morte
ou pena cruel? A resposta não é tão óbvia como parece.
E evidente que haverá pena de morte sempre que um juiz ou um tribunal pro-
clamar a culpa de um réu e condená-lo criminalmente à pena capital, seja com um
tiro de fuzil, seja por enforcamento, seja por qualquer outro meio. A pena de morte
é, enfim, um homicídio levado a cabo pelo Estado, legalmente. Mas veja: o art. 303,
§ 2e, da Lei n° 7.565, de 19 de dezembro de 1986 (Código Brasileiro de Aeronáuti-
ca), alterada pela Lei ne 9.614/98, bem assim o Decreto ns 5.144, de 16 de julho de
2004, que o regulamentou, previu a destruição de aeronaves “hostis ou suspeitas de
tráfico de substâncias entorpecentes e drogas afins”. Pergunta-se: não seria isso
pena de morte/cruel por juízo de exceção, constitucionalmente vedada? Apesar
disso, apreciando petição que argüia a inconstitucionalidade (não recepção) da alu-
dida lei, o Procurador-Geral da República, contrariamente, assinalou que “a medi-
da de destruição não guarda relação com a pena de morte. Aliás, sequer pode ser
considerada uma penalidade, porquanto não se busca, com sua aplicação, a expia-
ção por crime cometido. Em realidade constitui, essencialmente, medida de segu-
rança, extrema e excepcional, que só reclama aplicação na hipótese de ineficácia
das medidas coercitivas precedentes. E importante frisar que tal medida tem por
objeto a preservação da segurança nacional e a defesa do espaço aéreo brasileiro ”.38
Esse exemplo também demonstra claramente que o direito é realização/manifesta-
ção de poder: diz o que é o direito quem tem atribuição/poder para tanto.
Aliás, a própria pena privativa da liberdade, que em geral consiste no encarcera-
mento do sujeito por anos a fio num ambiente antinatural (artificial), em espaço físi-
co minúsculo, superlotado, sem salubridade, privado quase que integralmente de con-
tato com o mundo exterior, não seria ela mesma pena cruel? Não seriam as medidas
de segurança uma forma disfarçada de seqüestro por tempo indefinido?

36 Diz o referido art. 224 do Código Penal que “presume-se a violência se a vítima: a) não é maior de 14
(catorze) anos; b) é alienada mental, e o agente conhecia esta circunstância; c) não pode, por qualquer
outra causa, oferecer resistência”.
37 Dispõe o artigo: “não haverá penas: a) de morte, salvo no caso de guerra declarada, nos termos do art. 84,
XIX; e) cruéis."
38 Processo PGR 1.00.000.000836/2005-71, pronunciamento subscrito por Cláudio Lemos Fonteles, então
Procurador-Geral da República, datado de 14-3-2005. Na representação formulada (também por mim
subscrita), os autores sustentaram a violação dos seguintes princípios: a) inviolabilidade da vida (art. 5°,
caput); b) proibição da pena de morte em tempo de paz (art. 5°, XLVII, a); c) presunção de inocência (art.
5o, LVTI); d) proibição de juízo ou tribunal de exceção (art. 5o, XXXVII); e) devido processo legal (art. 5a);
f) prevalência dos direitos humanos (art. 4a, II); g) defesa da paz (art. 4&, VI); h) solução pacífica dos con-
flitos (art. 4a, VII); i) repúdio ao terrorismo (art. 4°, VII); j) legalidade; 1) proporcionalidade; e m) inviola-
bilidade da propriedade (art. 5°, caput).
Paulo Queiroz

Ademais, nenhum comportamento é criminoso em si mesmo, tudo dependen-


do das reações que desencadeia ou não desencadeia. Assim, se um pai sabe que um
seu filho lhe subtraiu valores, provavelmente não tomará isso como um fato crimi-
noso, isto é, furto, por isso não procurará a polícia, não fará funcionar a máquina
estatal; tudo não passará de um problema de família e resolvido em família.39 O
próprio Código (CP, art. 181, II) prevê isenção de pena sempre que o crime for pra-
ticado contra ascendente ou descendente. Certamente, reações diversas teriam
lugar se, ao invés de um filho, fosse autora do fato a empregada doméstica ou um
estranho. De modo similar, o tráfico ilícito pressupõe que a droga seja ilícita, as
quais são assim definidas pelo Ministério da Saúde um tanto arbitrariamente, den-
tro de um universo vastíssimo de drogas capazes de produzirem dependência físi-
ca ou psíquica, estando excluídos, por exemplo, tabaco, álcool etc. Mais: o assédio
sexual (CP, art. 216-A), embora praticável por qualquer pessoa (crime comum), é
um típico crime masculino, pois é muito raro um homem interpretar o assédio
feminino como algo ofensivo ou criminoso.
Convém repetir, portanto: o que chamados Direito são experiências, relações,
interações, interpretações, decisões.
Naturalmente que o mesmo deve ser dito de todas as demais formas de ilícito
(civil, trabalhista, administrativo), pois não há diferença ontológica quanto ao que
seja violação contratual, esbulho possessório, justa causa etc. Se o direito é um só,
uma só também é a violação ao direito (o ilícito), por conseqüência.
Logo, o direito não é só o que o legislador diz que é; é também o que os juizes
dizem que é, a partir e segundo múltiplos discursos de atores sociais múltiplos;40 é,

39 Um caso real bem ilustra isso: A foi flagrada por abusar sexualmente de sua filha (B), de dois anos, e por
isso foi presa, processada e condenada a 7 anos e 6 meses de reclusão por crime de atentado violento ao
pudor (CP, art. 214), crime hediondo (Lei nB8.072/90). O exame criminológico assim a diagnosticou: "per-
sonalidade primitiva, com nível mental baixo e conseqüente imaturidade intelectual e afetiva, que m oti-
vam os comportamentos regressivos que em ite e que demonstram a dificuldade de adaptação ao m eio
social. Evidencia baixo nível de tolerância às frustrações, às quais reage com atitudes oposicionistas e
agressivas, manifestadas através de descargas emocionais intensas, que refletem a dificuldade de controle
sobre os impulsos. Em conseqüência, o processo de inter-relação social torna-se difícil, sobretudo quando
adota atitudes de supervalorização de si mesma com o uma forma de compensar o sentim ento de inferio-
ridade que procura dissimular.” Ora, tivesse essa história se passado numa família de classe média ou alta
e outro seria o desfecho: certamente, a família submeteria A a tratamento psicológico/psiquiátrico, a ses-
sões de análise ou semelhante, e, no máximo, tiraria dela, provisória ou definitivamente, a guarda da
criança (B). Assim, não haveria polícia, nem crime, nem pena, nem prisão; tudo não passaria de um “pro-
blema de família” e resolvido em família.
40 Por essas e outras razões, Rosa Maria Cardoso da Cunha atribui ao princípio da legalidade um caráter
puramente retórico, pois não cumpre as funções que lhe são cometidas pela dogmática; antes, desempe-
nha uma função retórica que orienta a interpretação, a aplicação e a argumentação referida à lei penal.
Textualmente: “o princípio da legalidade dos delitos e das penas não constitui um garantia essencial do
cidadão em face do poder punitivo do Estado. Não determina precisamente a esfera da ilicitude penal e,
diversamente do que afirma a doutrina, não assegura a irretroatividade da lei penal que prejudica os direi-
tos do acusado. Tampouco estabelece a lei escrita como única fonte de incriminação e penas, impede o
emprego da analogia em relação às normas incriminadoras ou, ainda, evita a criação de normas penais pos-
tas em linguagem vaga e indeterminada. O caráter retórico do princípio da legalidade.” Porto Alegre:
Síntese, 1979, p. 17 e 128.
D ireito Penal - Parte G eral

pois, um discurso, uma prática (social) discursiva,41 socialmente construída,


variável no tempo e no espaço, mais ou menos previsível e, no caso penal (mas
não só nele), arbitrariamente seletiva, porque o sistema penal recruta sua clien-
tela quase sempre entre os grupos mais vulneráveis, notadamente autores de cri-
mes patrimoniais (furto, roubo, estelionato), típica criminalidade de rua, própria
de sujeitos socialmente excluídos. La ley es como las serpientes; solo pica a los
descalzos.42
Por isso que o direito não é apenas o que as normas dizem, mas também, e
principalmente, o que dizemos que as normas dizem; não é só o dever ser, mas o
ser. Tem razão, portanto, Arthur Kaufmann, quando assinala que “só quando a
norma e situação de vida, dever e ser, são postos em relação, em correspondência
um com o outro, surge o direito real: o d ireito é a correspondência entre o d ev er e
o ser. O direito é uma correspondência, não tem um caráter substancial, mas sim
relacionai, o direito no seu todo não é o complexo de artigos da lei, um conjunto
de normas, mas sim um conjunto d e relações".43
Assim, supor que a lei é o próprio direito seria confundir o mapa com o terri-
tório, o cardápio com a refeição ;44 seria confundir, enfim, discurso e realidade, teo-
ria e práxis, dever ser e ser, mesmo porque o direito constitui uma idéia, um con-
ceito, que reenvia a outros tantos conceitos, que, à semelhança de compartimentos
vazios, tem seus conteúdos preenchidos mais ou menos arbitrariamente pelas pes-
soas e autoridades que participam da sua construção social 45 Daí dizer Nietzsche
que, se houvesse uma escola para legisladores, seria importante ensinar que pala-
vras como lei, direito, dever, propriedade e crime constituem em si mesmas uma

41 No sentido do texto, Carlos Maria Cárcova escreve que “frente aos tradicionais reducionismos da teoria
jurídica (normativismo/facticismo) sustentamos a tese de que o direito deveria ser entendido como dis-
curso, com o significado que os lingüistas atribuem a essa expressão, isto é, como processo social de cria-
ção de sentido - como uma prática social discursiva que é mais do que palavras, que é, também, compor-
tamentos, símbolos, conhecimentos; que é, ao mesmo tempo, o que a lei manda, os juizes interpretam, os
advogados argumentam, os litigantes declaram, os teóricos produzem, os legisladores sancionam ou os
doutrinários criticam e sobretudo o que, ao nível dos súditos, opera como sistema de representações”.
Direito, Política e Magistratura. S. Paulo: LTR, 1996, p. 174.
42 A frase parece ser de Oscar Romero.
43 Filosofia do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, S219. Diz Del Vecchio, no entanto, a
partir de postulados kantianos, que a noção universal do direito é anterior à experiência jurídica, aos fenô-
menos jurídicos singulares, sendo a experiência apenas a aplicação ou verificação daquela forma. Assim,
“uma proposição só é jurídica na medida em que participar da forma lógica (universal) do Direito. Fora
desta forma, indiferente ao conteúdo, nenhuma experiência jurídica é possível. Sem ela, falta a qualidade
que permite adscrevê-la a esta espécie de experiência. A forma lógica do Direito é um dado a priori - ou
seja, não empírico - e constitui, precisamente, a condição da experiência jurídica em geral”, in Lições d e
filosofia do direito , Coimbra, 1979, p. 344-345.
44 A expressão é de Louk Hulsman.
45 Não sem razão dizia Kelsen, de uma perspectiva distinta, que “todo e qualquer conteúdo pode ser Direito.
Não há qualquer conduta humana que, como tal, por força do seu conteúdo, esteja excluída de ser con -
teúdo de uma norma jurídica”. Teoria Pura do Direito. S. Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 221.
Paulo Queiroz

abstração sem valor e à espera de conteúdo, cor e significado de acordo com as cir-
cunstâncias particulares que as incrementam .46
Releva notar, por fim, que, mesmo no âmbito jurídico-penal, ramo do direito
em que a dogmática parece ter atingido maior nível de sofisticação, o recurso às
categorias da tipicidade, ilicitude e culpabilidade não é capaz de desmentir o que se
vem de afirmar. É que, se sob o aspecto material, o delito não existe, segue-se logi-
camente que também o seu conceito formal-analítico - crime como fato típico, ilí-
cito e culpável - é socialmente construído, de sorte que uma dada conduta será cri-
minosa somente quando dissermos (aceitarmos) que é, uma vez que tais categorias
remetem a conceitos os mais variados: dolo, culpa, significância/insignificância, cau-
salidade, legítima/ilegítima defesa, estado de necessidade/desnecessidade, coação
física/moral/resistível/irresistível, obediência hierárquica, erro de proibição vencí-
vel/invencível, embriaguez voluntária/involuntária etc., os quais reenviam, por sua
vez, a uma infinidade de conceitos outros, como vida, honra, patrimônio, agressão
justa/injusta, intenção, previsão, consciência/inconsciência, boa/má-fé, prova líci-
ta/ilícita, exigível/inexigível, valores, princípios etc. Não bastasse isso, o manuseio
de tais conceitos se faz por vezes de modo francamente arbitrário, como acontece,
por exemplo, nos julgamentos pelo Tribunal do Júri, formado que é por leigos.
Daí dizer Castanheira Neves que “o direito é linguagem, e terá de ser conside-
rado em tudo e por tudo como uma linguagem. O que quer que seja e como quer
que seja, o que quer que ele se proponha e como quer que nos toque, o direito é-o
numa linguagem e como linguagem - propõe-se sê-lo numa linguagem (nas signi-
ficações lingüísticas em que se constitui e exprime) e atinge-nos através dessa lin-
guagem, que é”.47

1.4. Leis são necessárias?

Dizendo isso, conviria questionar, sobretudo em virtude da superprodução


legislativa dos últimos anos, em especial, emendas à Constituição e normas penais,
leis, em geral, puramente simbólicas e demagógicas, se a própria atividade legisla-
tiva não seria ela mesma uma atividade desnecessária, inútil, ao menos em relação
aos fins que lhe são tradicionalmente assinalados pelo discurso oficial. Penses nisso:
se em tua casa, tu tiveres necessidade de afixar na parede um aviso, portaria, lei ou
coisa que o valha, advertindo, por exemplo, de que “aqui é proibido matar, estu-
prar,furtar etc.”, em verdade, tu estarás, por um lado, simplesmente proclamando
o óbvio, por outro, se tiveres necessidade de semelhante expediente, é porque em
tua casa as coisas chegaram a uma tal desordem que é evidente que essa simples

46 In A minha irmã e eu. Editora Moraes: S. Paulo, 1992, p. 42-43. Anoto que se trata de um texto um tanto
apócrifo, cuja autoria atribuída a Nietzsche não foi reconhecida por Walter Kaufmann, um de seus maio-
res estudiosos.
47 Metodologia jurídica. Coimbra: Coimbra editora, 1993, p. 90.
D ireito Penal - Parte Geral

folha de papel não mudará absolutamente nada. E leis são, antes de tudo, folhas de
papel com mensagens impressas.
Parece razoável supor ademais que ninguém deixa de matar, estuprar, furtar etc.
porque existam leis que incriminam tais comportamentos; afinal, as pessoas cometem
ou deixam de cometer crimes porque têm ou não motivação para tanto: emocionais,
psicológicas, morais, culturais, religiosas, econômicas etc. Enfim, as complexas moti-
vações humanas dificilmente podem ser eficientemente debeladas pelo poder mítico
das leis. Não bastasse isso, que legitimidade pode decorrer de leis ditadas por um par-
lamento (em geral) justamente desacreditado, fundado que é num sistema represen-
tativo caduco e a serviço (quase que exclusivamente) dos grupos econômicos que
patrocinam a eleição de deputados e senadores, vereadores, prefeitos etc.?
No particular, a questão fundamental parece residir nisso, porém: pretender
mudar a realidade por meio de leis é grandemente utópico. O melhor exemplo
disso é a própria Constituição Federal cujo projeto de um Estado (Social) e
Democrático de Direito tem sido sistematicamente desacreditado pela realidade,
particularmente no que diz respeito ao capítulo dos direitos sociais: direito à edu-
cação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, entre outros. Aliás,
combater o racismo, a desigualdade social, o preconceito, o desemprego, a fome
etc. por meio de leis é apenas um modo particular de proclamar retoricamente:
“sejam bons, sejam solidários, sejam éticos, respeitem o próximo etc.”; no essencial,
a Constituição encerra, portanto, uma simples carta de (boas) intenções.
Mas os exemplos disso - inadequação da lei para transformar a realidade - são
inumeráveis no âmbito jurídico-penal, especialmente: a edição de uma lei de cri-
mes hediondos não diminuiu os índices de criminalidade; a promulgação de uma
lei de tortura não fez com que os nossos policiais se tornassem menos violentos; leis
em favor da ordem tributária não impediram que a sonegação fiscal deixasse de
crescer; leis contra a falta de decoro não obstam parlamentares de reincidirem na
infração; leis proibitivas de estupros, tráfico de drogas não parecem evitar tais deli-
tos, mesmo porque o criminoso, antes de decidir praticar uma determinada infra-
ção, não parece fazer uma prévia consulta ao Código Penal para deliberar a esse res-
peito. Pergunte sinceramente a si mesmo: “por que ainda não pratiquei estupro”?
“por que ainda não matei alguém?”, “por que ainda não assaltei um banco?” É pouco
provável que a resposta seja: “porque há uma lei que o proíbe; e se a lei for revoga-
da, eu o farei”! Pois quem tiver chegado a uma tal resposta, jamais seria obstado
pela simples existência da lei. Ordinariamente, inclusive, o autor de uma infração,
seja qual for, acredita que não será descoberto e segue adiante, se tiver motiva-
ção/disposição bastante para tanto. Note-se ainda que a eventual abolição desses
crimes não significaria autorizá-los, uma vez que tais condutas são proibidas desde
sempre pela moral, pelos costumes, pelas convenções sociais etc.
Parece certo aliás que de certo modo somos todos criminosos, reais ou poten-
ciais, seja por ação, seja por omissão, porque somos capazes de cometer as maiores
violências sob as mais diversas motivações e pretextos, as quais variam de pessoa
Paulo Queiroz

para pessoa, e são mais ou menos vis (poder, dinheiro, ciúme, ódio, inveja etc.).
Enfim, cometemos crimes pelas mesmas razões que não os cometemos: o decisivo
são sempre as motivações humanas, que mudam permanentemente, as quais podem
ter inclusive, como a história (de ontem e de hoje) o demonstra fartamente, os mais
nobres pretextos: a pátria, o bem, o amor, a honra, a Lei, a Justiça, Deus48 etc.
E de convir, assim, que as leis são (não infreqüentemente) um instrumento
retórico e demagógico de criar uma impressão, uma falsa impressão, de segurança,
criando no imaginário social a ilusão de que os problemas foram ou estão sendo
resolvidos, até porque de nada valem se não existirem mecanismos reais de efeti-
vação. E as leis parecem assumir nos dias atuais, cada vez mais, uma função mítica,
simbólica. E o legislador tem sabido tirar proveito disso, ao decidir legislar em pro-
fusão, como se a edição de novas leis, ao invés de proteção, não significasse apenas
a multiplicação de novas violações à lei e, pois, mais arbitrariedade.
Por isso é que, se se quiser tomar a sério a legislação, urge adotar um corpo
mínimo de leis: claras, precisas, absolutamente necessárias e com um mínimo de
efetividade social, pois, como há muito disse Montesquieu, as leis desnecessárias
enfraquecem e desacreditam as leis necessárias.
Problemas estruturais demandam soluções também estruturais, mesmo porque
no mais das vezes intervenções individuais apenas servem para manter as coisas
como estão, a pretexto de mudá-las e, pois, têm caráter essencialmente conservador.

1.5. Direito e arte

Parece certo que, por mais que estudemos literatura, teatro ou pintura, é
pouco provável que um dia escreveremos como um Tolstoi, representaremos
como um Charles Chapim ou pintaremos como um Picasso. E que a arte, movida
grandemente pela inspiração, requer qualidades que estão além da técnica, que
pode eventualmente ajudar a aperfeiçoá-las, mas que dificilmente fará de um
desafinado um virtuoso.
Talvez se possa dizer o mesmo do direito: uma excelente formação dogmática
não é garantia de decisões justas, porque a técnica, no direito como na arte, só pode
oferecer, na melhor das hipóteses, isso: decisões tecnicamente corretas. Mas deci-
sões tecnicamente corretas não são necessariamente decisões justas, assim como
decisões tecnicamente incorretas não são necessariamente decisões injustas (v.g.,
algumas decisões do tribunal do júri). E que uma boa interpretação, na arte como
no direito, mais do que técnica e razão, exige talento e sensibilidade. E a técnica
jurídica é apenas um meio a serviço de um fim: a justiça.

48 Em nome de Deus, por exemplo, foi e é cometida toda sorte de violência: a noite de São Bartolomeu, o
extermínio dos cátaros (ou albigenses), as cruzadas, a inquisição, os massacres patrocinados por Moisés
(Êxodo, 32: 27 e 28) ou Josué (6:21) e seus atuais seguidores: Bin Laden, Bush, além de outras formas sutis
atuais de violência, como a discriminação contra homossexuais etc.
D ireito Pen al - Parte G eral

Existem outras semelhanças entre direito e arte. Ainda hoje é muito comum
confundir lei e direito, como se fossem a mesma coisa. No entanto, confundir lei e
direito eqüivale a confundir partitura e música, que são, obviamente, coisas distin-
tas, podendo inclusive existir uma sem a outra. Com efeito, é perfeitamente possí-
vel produzir sons, melodias e música, como é comum aliás, e principalmente com-
por, sem partitura alguma, a revelar que a música independe da partitura. Pois bem,
o mesmo ocorre com o direito: é possível decidir casos sem nenhuma lei: basta pen-
sar nos conflitos havidos em comunidades mais primitivas (v.g., indígenas) ou no
com m on law , além dos inúmeros casos não disciplinados pela lei (lacuna legal). O
direito, como a música, existe com ou sem lei, com ou sem partitura.
Mas o mais importante parece residir nisso: uma mesma partitura pode ser
tocada de mil formas e ritmos, como, por exemplo, na forma de música clássica,
rock, samba etc. E cada um desses ritmos e sons variará conforme o seu intérprete,
suas influências, experiência, talento, necessidades etc. Também assim é a lei: uma
lei, por mais clara e precisa, pode ser interpretada de diversos modos, variando con-
forme os pré-conceitos, influências, experiências, motivações e sensibilidade do
seu intérprete. A lei é uma partitura que pode ser interpretada de mil formas,
embora nem todas possam ser plausíveis.
Não se deve, pois, confundir lei e direito, assim como não se deve confundir
partitura e música: a música é o que decorre da execução do músico; o direito é o
que resulta da interpretação do juiz ou tribunal. O direito, como a música, não é a
lei nem a partitura: o direito é interpretação. Algumas interpretações julgamos boas
e aplaudimos, outras julgamos ruins e condenamos.

2. Direito penal, criminologia e política criminal

Distingue-se direito penal, criminologia e política criminal.


A criminologia - expressão que remonta ao antropólogo francês Topinard (1879)
- é uma ciência empírica e interdisciplinar que se ocupa do estudo do crime, da pes-
soa do infrator, da vítima e do controle social do comportamento criminoso, e que tra-
ta de subministrar uma informação válida, contrastada, sobre a gênese, dinâmica e va-
riáveis principais do crime, assim como os programas de prevenção e controle social.49
Portanto, o objeto da criminologia já há algum tempo ampliou sensivelmen-
te, para nele se incluir, além do delito e do delinqüente e suas causas - paradigma
causal-explicativo (ou etiológico-explicativo), próprio da criminologia positiva50 - ,

49 García-Pablos, Criminologia: uma introdução a seus fundamentos teóricos, trad. Luiz Flávio Gomes. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. Kaiser define a criminologia como “o conjunto ordenado dos saberes
empíricos sobre o delito, o delinqüente, o comportamento socialmente negativo e sobre os controles de sua
conduta”. Incroducción a la criminologia, trad. Rodriguez Devera, 7. ed., Madrid: Dykinson, 1988, p. 25.
50 A chamada criminologia positiva, cujos principais representantes foram Ferri, Lombroso e Garofalo, preo-
cupava-se essencialmente em identificar as causas do crime e meios de combatê-lo eficazmente; propu-
nha uma classificação dos criminosos (nato, habitual, ocasional, louco etc.) e meios de corrigi-los, a fim de
evitar novos crimes.
o estudo da vítima e, em especial, da reação e do controle social mesmo. Diferen-
temente do direito penal, que é uma ciência do dever-ser (normativa), a crimino-
logia é uma ciência do ser, empírica, baseada na análise e na investigação da reali-
dade, por isso que, enquanto a criminologia se serve de um método indutivo, empí-
rico, o direito penal se utiliza dum método lógico, abstrato e dedutivo.51
Já a política criminal, como parte da política, constitui a sistematização das
estratégias, táticas e meios de controle social da criminalidade,52 penais e não
penais; diz respeito enfim à gestão política dos conflitos humanos por parte do
Estado, gestão que compete não só ao legislador e autoridades administrativas, mas
a todos aqueles que de algum modo operam com o direito penal, especialmente jui-
zes, membros do Ministério Público, polícias etc.
Apesar disso, criminologia, política criminal e direito penal caminham, como
ressalta García-Pablos, no sentido de um modelo integrado, imposto pela necessi-
dade de um método interdisciplinar e pela unidade do saber científico. A crimino-
logia deve incumbir-se, assim, de fornecer o substrato empírico do sistema, seu
fundamento científico; a política criminal, de transformar a experiência crimino-
lógica em opções e estratégias concretas de controle da criminalidade; por último,
o direito penal deve encarregar-se de converter em proposições jurídicas, gerais e
obrigatórias, o saber criminológico esgrimido pela política criminal,53 devendo o
direito penal ser criminologicamente fundado e político-criminalmente orientado.
Cabe afirmar, finalmente, com Baratta, que, dentre todos os instrumentos de
política criminal, o direito penal é o mais inadequado,54 sobretudo em razão da vio-
lência estrutural que lhe é inerente, de sorte que não se deve confundir controle da
criminalidade com controle penal, em face das múltiplas possibilidades de política
social utilizáveis pelo Estado para a prevenção e controle da desviação.

2.1. D ireito penal e política crim inal: há distinção realm ente?

Como se vê, a doutrina distingue direito penal, política criminal e criminolo-


gia, recorrendo, ainda que não explicitamente, à estrutura tridimensional do direi-
to: a criminologia se ocupa do crime enquanto fato; a política criminal, enquanto
valor; o direito penal, enquanto norma.55
Mas não é tão fácil estabelecer uma distinção nítida entre política criminal e di-
reito penal. Primeiro, porque o direito penal é um fenômeno político por excelência.56

51 García-Pablos, Criminologia, cit., p. 26-27.


52 Kaiser, Introducción a la criminologia , cit., p. 52.
53 García-Pablos, Criminologia, cit., p. 97-98.
54 Criminologia crítica y crítica dei derecho penal : introducción a la sociologia jurídico-penal, trad. Álvaro
Búnster, 4. ed.. Bogotá: Siglo Veintiuno Ed., 1993, p. 214.
55 Mir Puig, D erecho penal : parte general. Barcelona, 1998, p. 16.
56 O direito é uma espécie de armadura que veste e protege o corpo político, isto é, as estruturas de poder
existentes numa dada sociedade, que são as forças políticas em combate permanente. E se é de combate
que estamos falando, é de prever que os grupos mais vulneráveis, social, econômica e politicamente, sejam
D ireito Penal - Parte Geral

Afinal, sua existência mesma não decorre de uma necessidade moral, religiosa ou
ética, mas política: se num determinado momento o Estado entendeu - e ainda
entende - de se valer de leis e instituições penais para responder a determinados
conflitos, assim o fez por julgá-lo necessário à sua própria afirmação enquanto
poder. Além disso, e conforme assinala Foucault, “a lei nasce das batalhas reais, das
vitórias, dos massacres, das conquistas que têm sua data e seus heróis de horror; a
lei nasce das cidades incendiadas, das terras devastadas; ela nasce com os famosos
inocentes que agonizam no dia que está amanhecendo. Mas isso não quer dizer que
a sociedade, a lei e o Estado sejam como que o armistício nessas guerras, ou a san-
ção definitiva das vitórias. A lei não é pacificação, pois, sob a lei, a guerra continua
a fazer estragos no interior de todos os mecanismos de poder, mesmo os mais regu-
lares. A guerra é que é o motor das instituições e da ordem: a paz, na menor de suas
engrenagens, faz surdamente a guerra. Em outras palavras, cumpre decifrar a guer-
ra sob a paz: a guerra é a cifra mesma da paz. Portanto, estamos em guerra uns con-
tra os outros; uma frente de batalha perpassa a sociedade inteira, contínua e per-
manentemente, e é essa frente de batalha que coloca cada um de nós num campo
ou no outro. Não há sujeito neutro. Somos forçosamente adversários de alguém”.57
Segundo, porque a atividade do juiz é uma tarefa inevitavelmente criado-
ra, por quatro razões, ao menos, conforme assinala Robert Alexy: l 3) a incerteza da
linguagem jurídica; 2a) a possibilidade de conflitos entre normas; 3a) a ocorrência
de lacuna da lei; 4a) a possibilidade, em casos especiais, de se tomarem decisões con-
tra a letra da lei .58 E num contexto que se pretende democrático mais se acentua o
caráter criador da atividade judicial, porque a Democracia é o lugar da indetermi-
nação e da invenção, não havendo, conseqüentemente, espaço para verdades defi-
nitivas e, portanto, um único sentido, uma única resposta.59
Ademais, os limites impostos à atividade judicial e doutrinária, por traduzi-
rem, essencialmente, garantias em favor do cidadão (legalidade, proporcionalidade
etc.), as quais têm, assim, um caráter marcadamente político, tudo isso aliado à abs-
tração e vagueza dos conceitos e institutos jurídico-penais (v. g., estado de necessi-
dade, culpabilidade, crime continuado), permitem múltiplas possibilidades de in-
terpretação e aplicação válidas do direito. Por último, desde 1970 entende-se que a

suas principais vítimas, e é sob este aspecto que se deve entender a arbitrária e discriminatória seletivida-
de do sistema penal. Conseqüentemente, o direito, como realização da política, será menos injusto à medi-
da que houver menos injustiças sociais e maior equilíbrio entre as forças políticas, pois ele é a vestimen-
ta, e não o corpo. Portanto, tinha razão, no particular, Ihering, quando dizia que o fim do direito é a paz,
o meio de que se serve para consegui-lo é a luta. Enquanto o direito estiver sujeito às ameaças da injusti-
ça - e isso perdurará enquanto o mundo for mundo ele não poderá prescindir da luta, pois a vida do
direito é a luta: luta dos povos, dos governos, das classes sociais, dos indivíduos (cf. A luta p elo direito, São
Paulo: Ed. Martin Claret, 2004, p. 27).
57 Foucault, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. pp. 58-59.
58 Teoria da argumentação jurídica , trad. Zilda Silva. São Paulo: Landy, 2001, p. 268.
59 Samantha Chantal Dobrowolski, A justificação do direito e sua adequação social: uma abordagem a partir
da teoria de Aulis Aarnio. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2002, p. 120-121.
Paulo Queiroz

dogmática penal deve estar político-criminalmente orientada, segundo as bases do


Estado Constitucional de Direito (Funcionalismo), conferindo-lhe, desse modo, um
papel instrumental e auxiliar da política criminal. E sob essa perspectiva, as cate-
gorias e conceitos fundamentais do sistema tradicional são vistos como instrumen-
tos de valorações político-criminais, uma vez que os pressupostos da punibilidade
têm de orientar-se segundo os fins do Direito Penal.60
Finalmente, sabe-se hoje que o delito, que não tem consistência material ou
ontológica, é socialmente construído (teoria do etiquetamento), tendo o direito
penal um papel importante nessa definição (rotulação) do que seja crime e crimi-
noso, já que é ele que fornece a ferramenta dos que atuam com o sistema penal.
Nesse contexto, a lei penal configura, como diz Vera Andrade, apenas um marco
abstrato de decisão, no qual os agentes do controle social formal desfrutam de
ampla margem de discricionariedade na seleção que efetuam, desenvolvendo uma
atividade criadora proporcionada pelo caráter definitorial da criminalidade, pois
entre a seleção abstrata e provisória da lei e a seleção definitiva operada pelos agen-
tes de criminalização secundária (Polícia, Ministério Público, Judiciário etc.)
medeia um complexo e dinâmico processo de refração.61
E se a Constituição Federal, alfa e ômega do ordenamento jurídico e, pois, o
começo e fim da atividade judicial (e doutrinária), não estabelece fórmulas mate-
máticas para solução dos casos penais, declarando, principalmente, em termos
gerais e abstratos, o que os seus intérpretes não podem fazer, mas não o que podem
—limites essencialmente negativos de atuação força é convir que o juiz e o dou-
trinador dispõem, por conseguinte, de ampla liberdade de argumentar jurídica e
validamente.
Assim, não pode o juiz condenar alguém à pena de morte, à prisão perpétua
ou à mutilação de membros. Mas nada impediria, se tais penas fossem admitidas, de
deixar de aplicá-las em nome de determinados valores constitucionais, como a dig-
nidade da pessoa humana. Também por isso, nada o obsta de, a despeito de não
existir previsão legal para tanto, adotar o princípio da insignificância nalguns casos,
entender que a reparação do dano extingue a punibilidade no crime de emissão de
cheque sem provisão de fundos (Súmula 554 do STF) ou admitir a remição por estu-
do (Súmula 341 do STJ) etc.

60 Roxin, Funcionalismo e teoria da imputaçao objetiva, trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.
231-232. No mesmo sentido, Munoz Conde, seu discípulo, assinala que “uma dogmática absolutamente
neutra, política ou valorativamente, não pode existir. A relação entre Dogmática jurídico-penal e Política
criminal é, portanto, inevitável. Trata-se de saber, então, de que Política estamos falando; se de uma coe-
rente com os valores do Estado de Direito, a democracia, e o respeito dos direitos humanos; ou de uma
baseada na manutenção das desigualdades sociais, dos privilégios de uns poucos sobre a maioria, a supe-
rioridade da raça ariana, a instrumentalização do ser humano a serviço de valores coletivos ou estatais, ou
a negação dos direitos humanos mais elementares, como ocorreu com o Estado nacional socialista”.
Edmundo Mezger y el derecho penal de su tiempo. Valencia: Tirant lo Blanch, 2001, p. 77.
61 A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Ed., 1997, p. 260.
D ireito Penal - Parte Geral

Nesse sentido, as normas penais expressam, sem dúvida, um dado modelo


político-criminal ou, mais exatamente, vários modelos políticos (liberais, conserva-
dores etc.). Falar de direito penal é falar, assim, de um modelo político normatiza-
do que, em razão das múltiplas possibilidades de interpretação e mudança do con-
texto sociocultural, jamais será um modelo estático, mas dinâmico sempre, em per-
manente transformação. Por isso é que, por exemplo, nenhum autor se arvoraria a
defender nos dias atuais, como no passado, que o marido, em razão dos deveres do
casamento, não pode ser sujeito ativo do crime de estupro.
Disso também resulta que a atividade judicial constitui uma atividade políti-
ca por excelência ,62 mesmo porque, conscientemente ou não, o juiz adere sempre
a uma dada concepção político-criminal, dentre as várias possíveis, ainda quando
supõe de forma acrítica estar julgando “rigorosamente conforme a lei”, lei que já é
em si uma expressão política ,63 de sorte que decisões jurídicas são decisões políti-
cas. Por exemplo, em face de uma denúncia por tráfico de pequena quantidade de
droga, o juiz pode em tese adotar as seguintes decisões: 1) absolver o réu, por enten-
der inconstitucional toda norma penal em branco heterogênea, por remeter a sua
complementação a uma norma de grau inferior, no caso, uma simples portaria do
Ministério da Saúde; 2) absolver o réu, por julgar que, embora constitucional o arti-
go em questão, é insignificante a quantia apreendida; 3) condenar o réu a uma pena
intermediária (entre 5 e 15 anos de prisão); 4) condenar o réu a uma pena inferior
ao mínimo legal (4 anos de prisão), admitindo a substituição por pena alternativa,
apesar da vedação legal no particular; 5) entender que o caso não é de tráfico, mas
de porte para consumo etc.
Ao d ecid ira lide, por conseguinte, o juiz, a pretexto de aplicar a lei, faz, neces-
sariamente, dentro da le i e segundo a sua formação (liberal, conservadora etc.) polí-
tica criminal no caso concreto. A descoberta do direito é, portanto, como observa
Roxin, consideravelmente mais do que a aplicação de uma lei já determinada em
todos os seus detalhes por meio de um processo lógico de dedução. Ela é, muito
mais, a concretização de uma moldura contida na regra legal, e, ao desenvolver,
criativamente, as finalidades do legislador, faz verdadeira política criminal sob o
manto da dogmática.64 Daí se afirmar que a tarefa do juiz é construtiva e performa-
tiva, porque decide à semelhança de um diretor de cinema, que grava por horas
para editar um filme de poucos minutos, cuja síntese final é o resultado de uma

62 Não necessariamente político-partidária, exceto naqueles países em que os juizes são eleitos pelo voto e
são filiados a um partido político.
63 Como observa Hassemer, carece de sentido afirmar que o juiz tem de se ater, estritamente, ao sentido lite-
ral da lei, desconhecendo a vagueza e porosidade dos conceitos legais e as diferentes formas que têm os
juizes de compreendê-los, pois, se é verdade que a atuação judicial tão-só estabelece o marco do significa-
do das palavras da lei mediante a interpretação desta em relação ao caso, então a concepção rigorosa da
vinculação do juiz não mudará este fato, senão que o ocultará simplesmente (El pensam iento filosófico
contem porâneo. Madrid: Debate, 1992, p. 210).
64 Funcionalismo, cit., p. 245.
Paulo Queiroz

operação de montagem, isto é, de um sem-número de seleções e abduções, de con-


tinuidades e descontinuidades, de repetições e silêncios constitutivos de sentido .65
Ao sentenciar, portanto, o magistrado monta, a partir de pretensões de validade
enunciadas pelas partes, o que se chama verdade processual, lançando mão das pro-
vas, dos significantes produzidos validamente, manejando a técnica de bricolagem
jurídica, ou seja, construindo com o que tem à mão, sem o pretendido controle
racional total, existindo uma compulsão de dizer o indizível, onde a palavra falha: o
espelho da realidade na escrita que insiste em nomear, em reduzir, em racionalizar.66
Por isso, afirma Maiwald, com razão, que “não existe um limite rígido entre
política criminal, Direito Constitucional e dogmática jurídico-penal”,67 mesmo
porque o dogmático deve, tanto quanto o legislador, argumentar político^criminal-
mente, tendo de terminar de pintar, em todos os seus detalhes, o quadro do direi-
to vigente que o legislador só pode desenhar em suas linhas mestras.68 E mais dis-
cutível ainda é esta delimitação quando se entende a ciência penal não como a
mera descrição do direito como é, mas como a projeção do direito que deve ser
(Filangieri).
E bem verdade, como observa Roxin, que política criminal e dogmática não
têm as mesmas competências, pois do contrário se estaria igualando o juiz ao legis-
lador, violando o princípio da divisão de poderes, e que “a dogmática deve, muito
mais, realizar política criminal dentro da moldura da lei, isto é, dentro dos limites
da interpretação”.69 Mas isso só confirma que dogmática e política criminal são
modos de encarar e enfocar um mesmo problema - o problema da criminalidade
os quais não se opõem nem se repelem, mas, antes, se atraem e se completam
mutuamente, mesmo porque o direito não é senão um momento da política, razão
pela qual não pode nem deve a “ciência penal” simplesmente pretender descrever
o direito, mas sobretudo criticá-lo permanentemente, com vistas a implementar
não apenas um direito penal melhor, mas algo melhor do que o próprio direito
penal (Radbruch).

3. Direito penal e controle social

A vida em sociedade, precisamente porque assim o é, está sujeita a uma mul-


tiplicidade de regras de convivência, que surgem naturalmente das múltiplas inte-
rações sociais que nela se processam. Com efeito, já por ocasião do nascimento, ou
mesmo antes disso, isto é, durante a gestação, sofremos, indefesos, e de forma ine-

65 Carlos Maria Cárcova. Ficción y verdad en la escenadei Derecho, in Direito e Psicanálise:inteseções a


partir de “O Processo", de Kafka. Rio de Janeiro:2007, LumenJuris,coordenador Jacinto Nelson de
Miranda Coutinho.
66 Alexandre Morais da Rosa. Decisão penal: A bricolagem de significantes. Rio: Lumen Juris editora, 2006,
p. 365-366.
67 Apud Roxin, Funcionalismo, cit., p. 245.
68 Roxin, Funcionalismo , cit., p. 245.
69 Roxin, Funcionalismo , cit., p. 245.
D ireito Penal - Parte G eral

vitavelmente autoritária, os efeitos da socialização, que decorre do convívio fami-


liar; mais tarde, e concomitantemente a essa socialização primária, seremos subme-
tidos à socialização escolar, do trabalho, do esporte, da religião, da moral, da im-
prensa, das normas de convenção social etc. Vale dizer, a submissão a regras de
comportamento é tão natural quanto o ato mesmo de existir. A socialização é, por-
tanto, um fenômeno onipresente na ordem social: a todos persegue, a todo o tempo
e em toda parte.
A ordem jurídica e o Estado, sob essa perspectiva, não são, portanto, mais do
que o reflexo ou a superestrutura de determinada ordem social incapaz por si
mesma de regular a convivência de modo organizado e pacífico ,70 motivo pelo qual
o direito não pode ser compreendido senão em referência (e a partir) ao sistema
social em que se insere. Porque as normas jurídico-penais, consideradas em face do
sistema social e do próprio direito, não são senão um dos muitos instrumentos diri-
gidos à socialização do homem. O direito penal, em relação ao sistema social glo-
bal, é um subsistema de controle social, puramente confirmador de outras instân-
cias (família, escola) bem mais sutis e eficazes.71
Portanto, a norma penal não é o começo da socialização, mas a sua culmina-
ção. Não é todo o controle social, nem sequer é sua parte mais importante; é, mais
propriamente, como diz Munoz Conde, a parte visível de um iceberg, em que o que
não se vê (as outras instâncias formais e informais de controle) é talvez o que real-
mente importa, mesmo porque a norma penal não cria valores, nem constitui um
sistema autônomo de motivação do comportamento humano.72 Em conseqüência,
o subsistema penal como um todo ocupa e há de ocupar, dentro do sistema social,
um papel menor, secundário, já que sua função é subsidiar a intervenção de outras
instâncias de controle. Por isso que o direito penal - parte da maquinaria pesada do
Estado - só tem sentido se considerado como continuação de um conjunto de ins-
tituições, públicas ou privadas, cuja tarefa consiste igualmente em socializar e edu-
car para a convivência os indivíduos, por meio da aprendizagem e da internaliza-
ção de certas pautas de comportamento,73 motivo pelo qual somente deve ser uti-
lizado quando as demais instâncias de controle social se revelarem insuficientes. O
direito penal é a ultima ratio do controle social formal.
Se pensarmos, por exemplo, na conduta de quem emite cheque sem fundos,
dolosamente, fato ainda hoje tipificado como crime (CP, art. 171), teremos uma
idéia clara da complexidade do controle social, atuando concorrentemente com a
intervenção jurídico-penal, a saber: censura social, perda do crédito; pagamento de
juros, encerramento da conta bancária, inscrição do nome em serviços de proteção
ao crédito (sanções administrativas); protesto e/ou execução forçada do título (san-

70 Munoz Conde. D erecho penal y control social, Fundación Universitaria de Jerez. ferez: 1985, p. 24.
71 Munoz Conde, D erecho penal y control social, cit., p. 17.
72 Munoz Conde, D erecho penal y control social, cit., p. 17.
73 Munoz Conde, D erecho penal y control social, cit., p. 37.
Paulo Queiroz

ção civil); e, por fim, já agora intervindo o direito penal: indiciamento em inquéri-
to policial. E, a se tomar a sério todo esse controle prévio e/ou concomitante ao
direito penal, resultará bastante questionável a sua necessidade e adequação mesma.

4. Direito penal e moral

Muito próximas, e não raro confundidas, são as relações entre direito penal e
moral.74 Há quem afirme inclusive, como Maggiore, que o direito não é senão um
momento da vida moral ou ética.75 Entretanto, sob a égide de um Estado formal-
mente secular, como é o Estado Democrático, moral e direito não podem ser con-
fundidos, porque, enquanto a primeira visa ao aperfeiçoamento ético do homem, o
segundo quer exclusivamente possibilitar a convivência social, independentemen-
te de lograr, com fazer prevalecer suas prescrições, adesões morais por parte de seus
destinatários. Porque, como diz Rodriguez Mourullo, o direito se ocupa dos com-
portamentos na medida em que transcendam à ordem social exterior, e não pelo
que estes representam em si mesmos do ponto de vista moral, uma vez que sua fun-
ção é bem menos ambiciosa: pretende unicamente evitar as conseqüências pertur-
badoras da paz que tais condutas produzem na ordem social exterior .76
E não poderia ser diferente, até porque o respeito à moral supõe espontanei-
dade, ao passo que o direito não pode existir senão por meio da coercibilidade, isto
é, por meio da possibilidade de apelo à força, para impor suas determinações.
Assim, não pode haver uma coincidência absoluta entre preceitos morais e jurídi-
cos, pois do contrário o Estado, violando o pluralismo ideológico que a adoção do
sistema democrático implica, se converteria em Estado policial simplesmente, tal
como se pretendeu com o Livro V das Ordenações Filipinas.77 Por isso é que, por
mais imorais que sejam ou pareçam ser certos comportamentos, não se justifica a
intervenção penal salvo se forem especialmente lesivos de bem jurídico alheio
(princípio da lesividade ou de proteção de bens jurídicos).78 Não obstante isso, ain-

74 A rigor, não existe uma moral, mas “morais”, de sorte que a própria lei, independentemente de seu con-
teúdo, não deixa de ser a expressão de uma determinada moral; e mesmo uma proposta de abolição da
moral - assim, um hedonismo à Sade na verdade, abolição de uma certa moral (a moral dominante),
seria ela mesma uma forma moral; mais: não existem fenômenos morais,mas apenas uma interpretação
moral dos fenômenos (Nietzsche).
75 D erecho penal, trad. J. Ortega Torres. Bogotá: Ed. Temis, 1971, p. 24-25.
76 Derecho penal: parte general. Madrid: Ed. Civitas, 1978, p. 20.
77 Já o nome de alguns dos títulos revela a confusão entre crime e pecado, entre moral e direito: "dos here-
ges e apóstatas”, “dos feiticeiros”, “dos que benzem cães”, “dos que cometem pecado de sodomia e com ali-
márias”, respectivamente, Títulos I, III, IV e XIII.
78 Como diz Fernández Carrasquilla, o direito penal não é um instrumento de moralização ou de aperfeiçoa-
mento espiritual do homem, senão um instrumento para a preservação da paz social, pois, supor que ele
se presta à persecução do primeiro fim, significaria contrariar a liberdade de consciência e, portanto, o
pluralismo ideológico e a tolerância moral e ideológica que aquela implica. Concepto y limites dei d ere-
cho penal. Bogotá: Ed. Temis, 1992, p. 23-24,
D ireito Penal - Parte Geral

da existem no Código Penal diversos crimes que há muito deveriam ser abolidos,
como casa de prostituição (CP, art. 229), mesmo porque, a pretexto de afirmar a
liberdade sexual, a lei acaba por suprimi-la, legitimando dupla violência: contra a
suposta vítima, a quem se nega o direito de decidir por conta própria, e contra seu
parceiro/cliente, que é tratado como criminoso, ficando sujeito à pena.
Existe assim um âmbito da vida pessoal intocável pelo poder do Estado e a res-
guardo do controle público e da vigilância policial: não só as interações e os proje-
tos, mas também os erros de pensamento e de opinião.79
Apesar da distinção, não convém que as normas jurídicas contradigam as
morais, não propriamente para moralizar seus destinatários, mas para que possam ser
efetivamente respeitadas como referencial normativo, porque, como disse Savigny, o
direito serve à moralidade, não porque execute seus preceitos, mas porque assegura a
livre evolução de sua força.80 Ignorá-lo constitui um dos problemas mais sérios da
legislação penal contemporânea, que se expande sem qualquer critério, criminalizan-
do condutas moralmente indiferentes, a exemplo da legislação ambiental, que, den-
tre tantas tolices, tipifica a ação de “destruir, danificar, lesar ou maltratar, por qual-
quer modo ou meio, plantas de ornamentação de logradouros públicos ou em pro-
priedade privada alheia”, ainda que culposamente (Lei ne 9.605/98, art. 49).
Daí dizer Baumann que uma comunidade que, para sua convivência, tenha
adotado normas com cominações penais contrárias à lei moral não seria uma comu-
nidade jurídica, mas uma quadrilha de ladrões.81 Obviamente que seria um absur-
do manifesto, por exemplo, uma norma penal que, a fim de assegurar o crescimen-
to demográfico, considerasse crime “resistir ao estupro” ou similar.
Portanto, é correto dizer, com Ferrajoli, que a imoralidade é uma condição
necessária, mas jamais por si só suficiente para justificar politicamente a interven-
ção coercitiva do Estado na vida dos cidadãos.82
Mas é certo que o legislador por vezes transige com institutos claramente imo-
rais, a demonstrar que o direito é (também) uma dimensão da política. Assim, por
exemplo, quando adota nalguns casos específicos a chamada delação premiada, por
cujo meio premia o criminoso - prêmio que pode consistir na redução da pena ou
na extinção da punibilidade - que delata/trai seus comparsas.

4.1. Deus e o D ireito

Diz Michel Onfray que, apesar do triunfo (aparente) dos ideais do Iluminis-
mo, que sonhara com um direito laico e que, portanto, distinguisse e separasse,

79 Ferrajoli, D erecho y razón, cit., p. 482.


80 Citado por Baumann, D erecho penal: conceptos fimdamentales y sistema, trad. Conrado A. Finzi. Buenos
Aires: Depalma, 1981, p. 12.
81 D erecho penal, cit., p. 3.
82 D erecho y razón, cit., p. 222.
Paulo Queiroz

muito claramente, direito e moral, direito e religião, crime e pecado, ainda hoje a
episteme do direito permanece judaico-cristã, pois no essencial se mantém fiel aos
seus valores fundamentais.83 Afirma que, embora os tribunais de justiça da França
não possam ostentar símbolos religiosos nem proferir decisões com apoio na Bíblia,
no Alcorão ou na Torá, “nada existe no direito francês que contravenha essencial-
mente as prescrições da igreja católica, apostólica e romana”.84 Diz mais: o saber e
a metafísica do direito provêm diretamente da fábula do paraíso original, versão
monoteísta do mito grego de Pandora: o homem é livre, e, pois, responsável e cul-
pável; logo, por ser dotado de liberdade, pode decidir e preferir uma coisa a outra
num universo de possibilidades.85*86
Assim, o direito não seria outra coisa senão uma continuação da tradição
moral cristã por outros meios, já que todos aqueles que dele se utilizam (legislado-
res, juizes, promotores, advogados etc.) seriam meros portadores, conscientes ou
não, dos valores cristãos; por sua vez, a moral seria a continuação da religião; o
conhecimento, um continuum da moral e da religião, embora por meios diversos.87
Por conseguinte, a tão propalada separação entre direito e moral, entre direito e
religião, entre crime e pecado, seria mais aparente do que real, afinal os dois mil
anos de história e dominação ideológica do cristianismo continuariam a forjar os
sujeitos, ditando-lhes o modo correto de nascer, viver e morrer.88
Será isso exato, especialmente em relação ao direito brasileiro?
Bem, se tomássemos como referência o Livro V das Ordenações Filipinas, que
vigorou, entre nós, de 1603 a 1830, típica legislação medieval contra a qual se

83 De acordo com Emst Cassirer, a consciência teórica, prática e estética, o mundo da linguagem e do conhe-
cimento, da arte, do direito e da moral, as formas fundamentais da comunidade e do Estado, todas elas se
encontram originariamente ligadas à consciência mítico-religiosa. Linguagem e mito. S. Paulo: 2006, p. 64.
84 Tratado de ateología, física de la metafísica. Buenos Aires, Ediciones de la Flor, 2005, p. 73.
85 Idem, p. 73.
86 No particular, ele escreve o seguinte: “a máquina da colônia penitenciária de Kafka repercute diariamen-
te nos palácios chamados de Justiça europeus e em suas prisões contíguas. O choque entre o livre-arbítrio
e a eleição voluntária do Mal que legitima a responsabilidade, portanto, a culpabilidade, portanto o casti-
go, pressupõe o funcionamento de um pensamento mágico que ignora o que a obra pós-cristã de Freud
ilustra através da psico-análise e a de outros filósofos que demonstram o poder dos determinismos incons-
cientes, psicológicos, culturais, sociais, familiares, etológicos etc.”, cit., p. 75.
87 Giles Deleuze. Nietzsche e a filosofia. Lisboa: Rés-Editora, 2001, p. 148.
88 Naturalmente que isso não constitui uma exclusividade do direito, atingindo todo o conhecimento huma-
no (ético, bioético, pedagógico, político, filosófico etc.). Quanto à psiquiatria, por exemplo, Thomas Szasz
assinala que “o que denominamos Psiquiatria contemporânea e dinâmica não é um progresso notável com
relação às superstições e práticas das caças às bruxas, segundo a interpretação dos propagandistas da
Psiquiatria contemporânea, nem um retrocesso com relação ao humanismo do Renascimento e ao espíri-
to científico do Huminismo, tal como pensam os românticos tradicionalistas. Na realidade, a Psiquiatria
Institucional é uma continuação da Inquisição. O que mudou foi apenas o vocabulário e o estilo social. O
vocabulário se ajusta às expectativas intelectuais de nossa época: é um jargão pseudocientífico que paro-
dia os conceitos da ciência. O estilo social se ajusta às expectativas políticas de nossa época: é um movi-
mento social pseudoliberal que parodia os ideais de liberdade e racionalidade”. A fabricação da loucura.
Um estudo comparativo entre a inquisição e o movimento de Saúde Mental. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1976, p. 56.
D ireito Penai - Parte Geral

insurgiria a filosofia das luzes, não se teria nenhuma dúvida a esse respeito, uma
vez que ali a confusão entre Estado e Igreja era manifesta, conforme se lê de alguns
títulos, como, por exemplo, “dos hereges e apóstatas”, “dos que arrenegão ou blas-
femão de Deos, ou dos Santos”, “dos feiticeiros”, “dos que benzem cães, ou bichos
sem autoridade d’El-Rey, ou dos Prelados” (títulos I, II, III e IV) etc.
Mas poder-se-á dizer o mesmo do Brasil de hoje, que é formalmente uma
“República Federativa”, que se constitui em “Estado Democrático de Direito”, Es-
tado secular, portanto, e que tem como objetivos declarados, dentre outros, “pro-
mover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quais-
quer outras formas de discriminação”89 (CF, arts. I 9 e 3e, IV)?
Parece-nos que sim. Desde logo, porque foi o próprio Constituinte que, já no
preâmbulo da Constituição, fez consignar que a promulgava “sob a proteção de
Deus”; conferiu, ainda, efeitos civis ao casamento religioso; reconheceu a união
estável entre o h om em e a m ulher, e não simplesmente entre pessoas, independen-
temente da orientação sexual, restrição que terá importantes (e discriminatórias)
implicações no direito civil, como, por exemplo, sobre a adoção, a sucessão, direi-
tos previdenciários etc., decretando, assim, a clandestinidade das relações entre
pessoas do mesmo sexo, bem como entre parentes, tal como a lei mosaica, que dis-
põe sobre os casamentos ilícitos e as uniões abomináveis. Entre nós, sequer existe
a proibição (explícita) de os juízos e tribunais ostentarem símbolos religiosos, razão
pela qual não é incomum encontrar algum crucifixo exposto em salas de audiência.
Semelhantemente, o Código Penal pune, entre outras coisas, o aborto, a biga-
mia, a mediação para servir à lascívia de outrem, o favorecimento à prostituição, a
casa de prostituição, o rufianismo etc.; o mesmo ocorrendo quando a legislação
especial proíbe a produção, o comércio e o porte de droga ilícita, a revelar quão
presente está no direito o ideal ascético, próprio do cristianismo. É que, no parti-
cular, o legislador, tal como Moisés, está a nos dizer o que é lícito fazer e não fazer
com o corpo, assim como o que é permitido e não permitido consumir/fumar.
No essencial, aliás, as proibições penais coincidem com os dez mandamentos
(não matar, não furtar, não prestar falso testemunho).
Também é certo que muitos temas e discussões não avançam ou sequer são
colocados em pauta, a exemplo do aborto e da eutanásia, justamente em razão de
contrariarem os interesses da Igreja, para a qual a vida é um dom de Deus; logo, um
bem jurídico de que não se pode dispor.
Mas isso não é o mais importante; o mais relevante consiste no seguinte: edi-
tar uma legislação democrática ou laica não significa, necessariamente, adotar um

89 De acordo com Scarlett Marton, para Nietzsche, que critica duramente os valores do cristianismo como
falsos valores, considerado moral dos fracos, a revolução francesa, e seus ideais de igualdade e fraternida-
de, é filha e continuadora do cristianismo, tendo cabido ao primeiro a inversão de valores, ao segundo, a
sua preservação. Scarlet Marton: Nietzsche e a Revolução Francesa, in Extravagâncias: ensaios sobre a filo-
sofia de Nietzsche. S. Paulo: Discurso Editorial, 2001.
Paulo Queiroz

direito democrático ou laico, sob pena de se confundir discurso e realidade, teoria


e práxis. É que o direito, uma prática social discursiva, não é só o que as leis dizem,
mas, sobretudo, o que dizemos que as leis dizem, ou seja, o direito não é fato (um
objeto físico), mas interpretação, de sorte que, em última análise, o direito não resi-
de propriamente nos fatos ou nas normas, mas na cabeça das pessoas. Numa pala-
vra, e conforme já o assinalamos: o direito, tal qual o justo e o injusto, o ético e o
estético, é em nós que ele existe, motivo pelo qual, com ou sem alteração da reda-
ção dos textos legais, está em permanente transformação; decisiva, portanto, não é
a lei, mas o homem. E se de fato somos forjados segundo a tradição judaico-cristã,
segue-se que o direito expressará, necessariamente, esses valores.
Dito de outro modo: a pretexto de atuarem em nome da lei, juizes e-tribunais
atuariam, em verdade, em nome de Deus, o Deus do cristianismo. Afinal, embora
façamos como se a religião já não houvesse impregnado e penetrado nas nossas
consciências, corpos e almas, certo é que falamos, vivemos, amamos, sonhamos,
imaginamos, sofremos, pensamos e julgamos segundo o ensinamento judaico-cris-
tão, moldado por mais de dois mil anos de monoteísmo bíblico .90
O parecer de Onfray, ateu e hedonista, sobre tudo isso é muito claro: os três
monoteísmos, movidos por sua pulsão de morte genealógica, compartem de idên-
ticos desprezos: ódio à razão e à inteligência; ódio à liberdade; ódio a todos os livros
em nome de um único (a Bíblia, o Alcorão e a Torá); ódio à vida, ódio ao corpo, aos
desejos e pulsões. Em seu lugar, o judaísmo, o cristianismo e o islã defendem a fé e
a crença, a obediência e a submissão, o gosto pela morte, e paixão pelo além, o anjo
assexuado e a castidade, a virgindade e a fidelidade monogâmica, a esposa e a mãe,
a alma e o espírito; e tudo isso significa, em última análise: “crucifiquemos a vida e
celebremos o nada”!91

5. Caráter subsidiário do direito penal

A discussão sobre se o direito penal tem caráter constitutivo (original ou pri-


mário) ou subsidiário (sancionador ou acessório) pode ser considerada em dois sen-
tidos: social (ou político) e lógico-sistemático. Quanto ao primeiro, é pacífica a
doutrina no sentido de que o direito penal somente deve ser chamado a intervir
quando fracassem outras instâncias de controle social, como família, escola, traba-
lho, direito civil ou administrativo. Quanto ao segundo, porém, os autores diver-
gem: uns consideram que o direito penal tem natureza subsidiária; outros, consti-
tutiva. Assim, Jescheck afirma que historicamente o direito penal constitui a forma
mais antiga de manifestação do direito e regula, de maneira autônoma, e sem pre-
cisar recorrer a conceitos e funções de outros ramos do direito, áreas extensas,

90 Michel Onfray, op. cit., p. 243.


91 Cit., p. 91.
D ireito Penal - Parte G eral

como o direito à vida, à liberdade ou à honra .92 Entre nós, Cezar Bitencourt diz que
é preciso reconhecer a natureza primária e constitutiva do direito penal, e não sim-
plesmente acessória, uma vez que protege bens e interesses não protegidos por
outros ramos do direito, e, mesmo quando tutela bens já cobertos pela proteção de
outras áreas do ordenamento jurídico, ainda assim o faz de forma particular,
dando-lhes nova feição e com distinta valoração.93
Em verdade, o significado do que seja caráter constitutivo ou sancionador do
direito penal já é em si algo mal compreendido (problemático), resultando numa
resposta conseqüentemente obscura. Pensamos, porém, que em ambos os sentidos,
lógico-sistemático ou político-social, se discute uma só e mesma coisa, qual seja, a
conveniência política de apelar ou não ao direito penal para regulação de determi-
nados conflitos, é dizer, saber se são ou não suficientes outras formas de interven-
ção, jurídicas inclusive. Não se discute, portanto, como sugere Jescheck, questão
cronológica, e sim lógica: saber se o ilícito penal pressupõe um ilícito não penal. Em
qualquer sentido, o direito penal é sempre subsidiário e não primário.
Com efeito, a natureza subsidiária - e não principal - do direito penal diante
de outras formas de controle social decorre, em primeiro lugar, da circunstância de
o direito penal constituir como regra a forma mais violenta de intervenção do
Estado na vida dos cidadãos. E se o é, impõe que somente quando não forem real-
mente suficientes outros modos de intervenção cabe recorrer legitimamente ao
direito penal para proteção de bens jurídicos (princípio da proporcionalidade em
sentido amplo). Assim, já não se justifica nos dias atuais a punição da bigamia, por
exemplo, visto ser suficiente a disciplina do direito civil para resguardo da fideli-
dade conjugal e preservação da instituição do casamento: separação, divórcio, anu-
lação. E também discutível para repressão do contrabando ou descaminho (CP, art.
334) a necessidade da pena, em razão da sanção de perda do produto em favor da
União, imposta administrativamente.
O caráter subsidiário do direito penal em face de outras formas de controle
social resulta, portanto, de imperativo político-criminal proibitivo do excesso: não
se justifica o emprego de um instrumento especialmente lesivo à liberdade se se dis-
põe de meios menos gravosos e mais adequados de intervenção, sob pena de viola-
ção ao princípio da proporcionalidade. A natureza secundária das normas penais é,
assim, como diz Maurach, uma exigência político-jurldica dirigida ao legislador.94

92 Tratado de derecho penal, trad. José Luis Manzanares Samaniego, 4. ed.,Granada: Ed. Comares, 1993, p.
46. Não é exato dizer, porém, que a lei criminal tenha precedido à lei civil ou queas comunidades primi-
tivas só tenham conhecido o direito criminal, seja porque é um tanto arbitrário estabelecer, em relação às
comunidades selvagens, uma clara delimitação entre normas civis e penais, seja porque o acasalamento, o
parentesco, as permutas etc. seguiam regras próprias e não necessariamente criminais. Nesse sentido,
Bronislaw Malinowski. Crime e costume na sociedade selvagem. Brasília: Ed. UnB, 2003.
93 Manual de direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 36.
94 D erecho penal: parte general. Buenos Aires: Astrea, 1994, p. 34.
Paulo Queiroz

Mas além dessa subsidiariedade social, existe, como dito, uma subsidiariedade
lógico-sistemática (do direito penal em relação aos demais ramos do direito), que
decorre da unidade lógica do direito, já que, apesar de compartimentado em discipli-
nas, o direito é um só, não devendo haver contradições dentro do sistema. Portanto,
o ilícito, latente ou manifesto, precede à sistematização do direito penal, pois tal já é
antes objeto do direito civil, processual, tributário etc., mas sobretudo objeto do
direito constitucional, porque toda ilicitude nasce originariamente na Constituição
Federal e só derivadamente na ordem infraconstitucional. Dito de maneira mais
clara: quando a Constituição Federal declara (art. 59) que a propriedade é inviolável,
ela está criando a um tempo o lícito e o ilícito. Sim, porque, ao proclamar a inviola-
bilidade da propriedade, a Constituição está por óbvio declarando, de forma originá-
ria e genérica, a ilicitude dos atos que atentem contra esse bem jurídico.
Em conseqüência, caberá ao legislador ordinário, detalhando os limites dessa
ilicitude, eleger com critério os instrumentos de defesa (civil, administrativo, penal)
desse interesse constitucional. Disso cuida o direito civil, quando, disciplinando a
propriedade e a posse, outorga ao proprietário ou ao possuidor o direito de recorrer
à ação reivindicatória ou aos interditos possessórios, ao desforço incontinente etc.,
ante a turbação ou esbulho, de modo a atender e a dar efetividade àquele manda-
mento constitucional de inviolabilidade da propriedade. Também disso trata o legis-
lador penal quando define como crime o furto ou o roubo, que não são senão modos
qualificados de esbulho. Portanto, há uma subsidiariedade lógica entre o direito
penal (e certamente de todo o direito) e a Constituição. Porque, como disse Luiz
Carlos Perez, o direito penal é o braço armado da Constituição nacional.95
Mas essa subsidiariedade se estende também às demais formas de intervenção
jurídica (civil, administrativa, tributária), pois o direito penal quando criminaliza
determinados comportamento o faz, ou deve fazê-lo, só depois de verificado o fra-
casso dessas formas menos danosas de intervenção do Estado. O direito penal não
constitui o ilícito, portanto, limitando-se a reforçar a proteção de interesses já pro-
tegidos, ao castigar mais gravemente condutas que já são sancionados pelo direito
como um todo. O direito penal é um direito residual.
Assim, o direito penal não cria um sistema exclusivo, autônomo, de ilicitudes,
fora ou além da ordem jurídica vigente, mesmo porque, como disse Hungria, a ilici-
tude jurídica é uma só, do mesmo modo que um só é o dever jurídico,96 ou seja, todos
os preceitos primários penais pressupõem um outro preceito não penal, do qual são o
complemento e reforço.97 Mas isso não^significa que se lhe recuse autonomia em face
dos outros ramos do direito, utilizando-se de conceitos e institutos próprios que nem
sempre coincidem com os utilizados pelos demais ramos do direito.

95 Tratado de derecho pen ai Bogotá: Ed. Temis, 1967, p. 42-43.


96 Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1978, v. 1, t. 2, p. 30.
97 Grispigni, Diritto penale italiano. Milano, 1947, v. 1, p. 235.
D ireito Penal - Parte Geral

Naturalmente que não se deve tomar em termos absolutos a afirmação de que o


direito penal é a forma mais grave de intervenção do Estado na vida dos cidadãos,
pois pode ocorrer nalguns casos de a intervenção não penal (civil, administrativa)
ser até mais grave, tal como ocorre nos crimes de trânsito em que as sanções admi-
nistrativas muitas vezes são mais pesadas do que as penais.

6. Caráter fragmentário do direito penal

Conseqüentemente, o direito penal não constitui um sistema exaustivo de ili-


citudes ou de proteção de bens jurídicos (vida, integridade física, honra), mas des-
contínuo, fragmentário, já que sua intervenção pressupõe o insucesso de interven-
ções outras. É que o direito penal seleciona e tipifica condutas atendendo à rele-
vância do bem jurídico, e segundo a intensidade da lesão de que se trate, outorgan-
do-lhes uma proteção relativa. Portanto, não se protegem todos os bens jurídicos,
mas só os mais importantes, nem sequer os protege em face de qualquer classe de
atentados, mas tão-só em face dos ataques mais intoleráveis.98
Assim, nem mesmo o direito à vida recebe proteção penal absoluta, pois, por
exemplo, atos simplesmente preparatórios que visem a sua eliminação são como
regra jurídico-penalmente irrelevantes; e ordinariamente só reprime ações dolosas;
aliás o próprio direito penal tolera a morte quando autoriza o aborto necessário ou
sentimental (CP, art. 228), ou seja, o bem jurídico vida recebe uma proteção ape-
nas fragmentária. Subsidiariedade e fragmentariedade são assim verso e reverso de
uma mesma moeda: a relatividade dessa proteção extrema.

7. Ilícito penal e ilícito não penal

Em razão do que se vem de afirmar, não se pode cogitar, por força da unida-
de do direito inclusive, duma distinção qualitativa, mas quantitativa, entre o ilíci-
to penal e o ilícito não penal. Com efeito, definir ou não determinados comporta-
mentos como delituosos ou contravencionais, para os submeter a seguir a uma dis-
ciplina especialmente dura (o direito penal), é uma questão de conveniência polí-
tica. A distinção entre, por exemplo, as sanções penais e as administrativas é pura-
mente quanto ao maior rigor entre elas (diferença de grau). Assim, enquanto o
direito administrativo/tributário pune o autor dç contrabando ou descaminho com
a perda das mercadorias apreendidas, o Código Penal (art. 334) responde a essa
mesma conduta com pena de prisão de um a quatro anos; enquanto o direito civil
reprime o homicídio culposo com a reparação do dano, o direito penal apela à pena
de um a três anos de prisão (CP, art. 121, § 3a). E em todos os casos, se julgar bas-
tante a repressão administrativa ou civil, o Estado pode renunciar à intervenção

98 Rodriguez Mourullo, D erecho p en a i cit., p. 19.


Paulo Queiroz

penal, descriminalizando o comportamento em questão. Porque na diversidade de


tratamento dos fatos antijurídicos a lei não obedece a um critério de rigor científi-
co ou fundado numa distinção ontológica entre tais fatos, mas a um ponto de vista
de conveniência política, variável no tempo e no espaço."

8. Legislação especial

O Código Penal, como de resto os demais códigos, constitui, em nível infra-


constitucional, a legislação penal fundamental. Mas fora dos códigos existe uma
legislação especial cada vez mais profusa, definindo novos crimes e, por vezes, esta-
belecendo novos critérios de imputação jurídico-penal, a exemplo da Lei nQ9.605/98
(Lei de Crimes Ambientais), que adotou a responsabilidade penal da pessoa jurídica.
Exatamente por isso, dispõe o art. 12 que as regras gerais do Código aplicam-
se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso.
Vigora, no particular, o princípio da especialidade, portanto: a lei especial prevale-
ce sobre a lei geral sempre que dispuser diversa ou contrariamente (lex especialis
derogat legi generali).
Nem poderia ser diferente, já que a lei especial é editada justamente para dar
tratamento melhor e mais sistematizado a determinados temas, seja criminalizan-
do novos comportamentos, seja penalizando mais duramente, seja descriminalizan-
do, seja despenalizando etc.. Por vezes, a mesma conduta acaba por ser criminali-
zada múltiplas vezes inclusive, numa clara ofensa ao princípio n e bis idem ,
Pois bem, apesar de a lei especial prevalecer, em princípio, sobre a lei geral, o
Código Penal, por ser a legislação penal fundamental, é-lhe aplicável relativamen-
te às regras gerais, desde que a lei não disponha de forma diversa. Assim, por exem-
plo, são aplicáveis, ordinariamente, à legislação penal especial os conceitos básicos
(dolo, culpa, erro de tipo etc.), as excludentes de ilicitude (legítima defesa, estado
de necessidade etc.), as excludentes de culpabilidade (erro de proibição inevitável,
coação moral irresistível), os critérios de individualização judicial da pena (art. 59)
e as causas de extinção de punibilidade (morte do agente, prescrição), entre outros.
E certo ainda que as “regras gerais do Código” a que a alude o artigo 12 não se
confundem com a “Parte Geral”, que vai do art. 1Qao art. 120, porque também na
parte especial há regras gerais aplicáveis à legislação especial, a exemplo do concei-
to legal de funcionário público (CP, art. 327).

9. Contagem dos prazos penais e processuais penais

De acordo com o Código Penal (art. 10), na contagem dos prazos penais (v.g.,
o tempo exato de pena a ser cumprido), é incluído o dia do começo, não havendo

99 Hungria, Comentários, cit., v. 1, t. 2, p. 29.


D ireito Penal - Parte G eral

prorrogação com a superveniência de férias, sábados, domingos ou feriados. Assim,


o cumprimento de uma pena de um ano de prisão que se iniciar, por exemplo, a
qualquer hora do dia 20 de maio de 2008, terminará às 24 horas do dia 19 de maio
do ano seguinte (2009).
Apesar disso, o prazo penal será interrompido ou suspenso sempre que hou-
ver previsão legal expressa nesse sentido, tal como ocorre com os prazos de pres-
crição (CP, arts. 116 e 117).
Diversa é a contagem dos prazos processuais penais (v.g., prazo para apresen-
tar defesa prévia, alegações finais, recorrer). Com efeito, já agora é excluído o dia
do começo e o cômputo do prazo tem assim início a partir do primeiro dia útil
seguinte, incluindo-se o dia do vencimento (CPP, art. 798, § 1B).
Além disso, quando a intimação tiver lugar na sexta-feira, ou a publicação
com efeito de intimação for feita nesse dia, o prazo terá início na segunda-feira
imediata, salvo se não houver expediente, caso em que começará no primeiro dia
útil que se seguir, conforme dispõe a Súmula 310 do STF.l°° Assim, se o prazo para
a interposição do recurso de apelação se iniciou, por exemplo, no dia 5 (segunda-
feira), a contagem começará no dia 6 (terça-feira), sendo tempestivo o recurso que
for interposto até o dia 12 (segunda-feira), pois o termo final, que se deu no dia 10
(sábado), prorroga-se para o próximo dia útil., prorroga-se para o próximo dia útil.
Se o prazo estiver simultaneamente previsto em ambos os Códigos (penal e
processual penal), prevalecerá o prazo mais favorável ao acusado, isto é, o prazo do
art. 10 do CP, e não art. 798, § 1Q, do CPP. É o que se dará, por exemplo, na conta-
gem dos prazos decadenciais e prescricionais.101
Portanto, na hipótese dos arts. 103 do CP e 38 do CPP, que tratam da deca-
dência para o oferecimento de queixa pelo ofendido ou seu representante legal no
prazo de seis meses, far-se-á a contagem do prazo decadencial na forma do Código
Penal. Por isso, o que poderia parecer regra de direito processual, com previsão no
Código de Processo inclusive (prazo para oferecimento da queixa), é em verdade

100 A Súmula 310 do STF dispõe textualmente: “quando a intimação tiver lugar na sexta-feira, ou a publica-
ção com efeito de intimação for feita nesse dia, o prazo judicial terá início na segunda-feira imediata, salvo
se não houver expediente, caso em que começará no primeiro dia útil que se seguir”.
101 Nesse sentido já decidiu o Superior Tribunal de justiça:
“RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSO PENAL. DECADÊNCIA DO DIREITO DE QUEIXA.
ARTIGOS 10 E 103 DO CÓDIGO PENAL. CONTAGEM EM MESES.
Segundo precedentes “o prazo de decadência do direito de queixa, expresso em meses, conta-se na forma
preconizada no art. 10, do estatuto punitivo, na linha do calendário comum, o que significa dizer que o
prazo de um mês tem início em determinado dia e termina na véspera do mesmo dia do mês subseqüen-
te.” Recurso especial conhecido e provido (grifo nosso) (Resp. 203574 - SP. Rei. Min. José Arnaldo da
Fonseca. DJ 06.11.2000).
“PENAL. PRESCRIÇÃO. CONTAGEM EM ANOS. TERMOS INICIAL E FINAL. CP, ART. 10.
O prazo de prescrição é prazo de natureza penal, expresso em anos, contando-se na forma preconizada do
art. 10, do Código Penal, na linha do calendário comum, o que significa dizer que o prazo de um ano tem
início em determinado dia e termina na véspera do mesmo dia do mês e ano subseqüentes.” (grifo nosso)
(Resp. 188681 - SC. Rei. Min. Vicente Leal. DJ 25.09.2000).
Paulo Queiroz

regra de direito material, que, se não observada, implicará a extinção da punibili-


dade (CP, art. 107, IV).
Quanto à contagem do prazo de prisão cautelar (flagrante, temporária, pre-
ventiva etc.), prisão temporária, em especial, que pode ser decretada pelo prazo de
cinco dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada neces-
sidade, nos termos do art. 2°- da Lei ne 7.960/89, deve-se observar a regra do art. 10
do CPP,102 analogicamente, incluindo-se o dia em que se executar a ordem de pri-
são, portanto.103
Não é preciso dizer que o calendário comum a que o Código (art. 10) se refe-
re é o oficial, gregoriano, sendo que os prazos em meses são contados não pelo
número real de dias (meses com 28, 29, 30 ou 31 dias), mas de determinado dia à
véspera do mesmo dia do mês subseqüente. O mesmo ocorre quanto à contagem de
prazos em anos.104
Na contagem da pena privativa de liberdade (CP, art.ll), desprezam-se as fra-
ções de dia; logo, não há como a pena ser fixada em 15 dias e 8 horas, por exemplo.
Mas as frações de meses (dias) ou ano (meses) devem incidir na pena.
Também na pena de multa devem ser desprezadas as frações de real, ou seja,
os centavos. Apesar de o Código (art. 11) se referir às frações de cruzeiro, em razão
das sucessivas alterações na nossa moeda, é de concluir que o código faz referência
hoje às frações de real.105
Finalmente, cumpre notar que já se decidiu, apesar de opinião em sentido
contrário ,106 que não se computam nas penas de multa as frações de dias-multa,
aplicando-se, por analogia, o art. 11 do CP.

102 Art. 10 do CPP - “O inquérito deverá terminar no prazo de 10 dias, se o indiciado tiver sido preso em fla-
grante, ou estiver preso preventivamente, contado o prazo, nesta hipótese, a partir do dia em que se exe-
cutar a ordem de prisão, ou no prazo de 30 dias, quando estiver solto, mediante fiança ou sem ela”.
103 Nesse sentido: Paulo Rangel. Direito Proccssual Penal. 12. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 648.
104 MIRABETE, Julio Fabbrini. C ódigo PenaI Interpretado. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 139.
105 O Decreto-lei n° 2.284/86 criou o cruzado; a Lei nQ8.024/90 voltou a instituir o cruzeiro; a Lei n9 8.697/93
criou o cruzeiro real, sendo que, por fim, a Lei n- 8.880, atualmente vigente, criou o real.
106 MIRABETE, Julio Fabbrini. Código Penal Interpretado. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 139.

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