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UNIVERSIDADE AGOSTINHO NETO

FACULDADE DE DIREITO

DIREITO PENAL I

TEXTOS DE APOIO

Luzia Bebiana de Almeida Sebastião


Luzia Sebastião Direito Penal I
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LUANDA

2020

TEXTO N.º 1
TÍTULO 1: O DIREITO PENAL E SUA CIÊNCIA NO SISTEMA JURÍDICO
ESTADUAL

1.º CAPÍTULO: O DIREITO PENAL EM SENTIDO FORMAL

I. O Conceito de Direito Penal

1. Definição (objecto do direito penal)

Não é fácbil conhecer o fenómeno criminal em toda a sua amplitude; mas a


história dá-nos notícia de que ele sempre existiu; houve até quem tivesse defendido
que o crime seria um fenómeno normal na sociedade.
A definição do conceito de crime também conheceu uma longa trajectória e do
ponto de vista “natural” não se conseguiu chegar a nenhum entendimento. Assim,
para se evitar o arbítrio, ou seja, evitar que qualquer fenómeno fosse considerado
crime, optou-se por uma perspectiva normativa ou jurídica e, com ela a designação
direito penal já que foi a essa disciplina que coube fazer a consideração jurídico-
normativa do fenómeno criminal. O direito penal passou a ser entendido como o

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conjunto de normas jurídicas que têm por objecto a definição dos crimes e a
determinação das penas que lhes corresponde 1 . Por essa razão, o sistema era
denominado monista, dado que apenas uma medida- a pena, era aplicada ao agente
do crime.
Contudo, em finais do século XIX, surgiram as medidas de segurança e, ao agente
de um crime passou a poder ser aplicada ao mesmo tempo, uma pena e uma medida
de segurança, o que levou a que o sistema passasse a ser denominado, dualista,
sistema de penas e de medidas de segurança, em que em regra se aplicava ao agente
de um crime uma única medida ou consequência jurídica. Uma pena ou uma medida
de segurança sendo que, esta última, quando fosse privativa da liberdade era apenas
aplicável aos inimputáveis2.
Em virtude dessa dupla categoria de efeitos jurídicos, a designação direito penal,
tornou-se demasiado restritiva. Talvez tivesse sido melhor dar relevo ao conjunto dos
pressupostos de que a pena depende, que é o crime e denominar-se a cadeira de
direito criminal do que ficar-se confinado à pena que é, afinal, apenas uma das
consequências jurídica.
A verdade é que as medidas de segurança são aplicadas para comportamentos que
não são realizados com culpa, ou melhor, comportamentos tomados em consideração
independentemente de culpa. Mas se a culpa é elemento essencial do conceito de
crime, então o direito das medidas de segurança não pode ser criminal e assim as
designações direito penal e direito criminal poderiam até ser consideradas
equivalentes.
Porém, de um ponto de vista formal, é preferível designar a nossa disciplina, a
nossa ciência, direito penal porque por um lado, o diploma que prevê os crimes e
trata a sua disciplina chama-se Código Penal e, por outro, oficialmente o nome
escolar utilizado sempre foi Direito Penal3.

* As referências que ao longo do texto forem sendo feitas ao Direito Penal Português devem-se, por um
lado, ao facto do Direito Penal Angolano actualmente em vigor, ter ainda como fonte aquele sistema
jurídico. Por outro lado, importa ainda considerar a proximidade dos sistemas jurídicos, da mesma
família jurídica, a família romano-germânica, o que representa uma certa tradição que não pode sem
mais ser afastada, a qual seguiremos citando ou referenciando autores cuja obras utilizaremos.
1
DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal, 1975, pp. 3 e 4.
2 DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal, 1975, p. 4

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2. Antecedentes da história do conceito

Foi a partir do movimento da codificação, século XIX, que em países como a


Alemanha, França e mesmo Portugal a designação de direito penal ganhou
preponderância. Anteriormente, mesmo com a utilização frequente dos designativos
“poena” originário do latim e “poine” proveniente do grego, a designação preferida
foi sempre direito criminal. Essa situação, em Portugal e consequentemente em
Angola (por razões históricas ligadas à situação de colónia a que Angola esteve
submetida) foi reforçada pela entrada em vigor no sistema português da Reforma
Prisional de 28 de Maio de 1936, Decreto-Lei 26642 e das medidas de segurança
introduzidas em 1892 e 1896 (que incluíram a deportação de delinquentes de difícil
ou tardia corrigibilidade, vadios, mendigos e equiparados).
Provavelmente, por virtude da introdução de todos esses diplomas, bem como da
reforma da Faculdade de Direito em 1945 pelo Artigo 3.º do Decreto-Lei 38/450, a
nomenclatura voltou a ser alterada para Direito Criminal. Mas a reforma da Faculdade
de Direito de 28 de Setembro de 1972 pelo Decreto-Lei 364, retomou a designação
Direito Penal. Esta foi a última e assim a adoptamos, também porque na Faculdade de
Direito da Universidade Agostinho Neto, esta tem sido desde a sua criação a
designação e, não encontramos razões para mudar.4

5. Conclusão

No fundo, em última análise e não apenas de uma perspectiva formal mas de um


ponto de vista teleológico e funcional, o designativo Direito Penal, merece
preferência, se bem que o melhor seria Direito das Penas e das Medidas de
Segurança.
Todavia, o importante é verificar que neste ramo de direito tudo se resolve em
função de uma consequência jurídica que se aplica – pena ou medida de segurança; e,

3
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal: questões fundamentais,
1996, p. 6
4O Professor Orlando Ferreira Rodrigues intitula as suas lições “Apontamentos
de Direito Penal”, veja-se Edição, Escolar Editora, 2014.

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ainda, que se façam os maiores esforços para se definir materialmente o crime, a


verdade é que um preceito legal só entrará a fazer parte do nosso ramo de direito se, e
quando, para se sancionar um comportamento antijurídico que ele preveja, for
prescrita uma pena ou uma medida de segurança criminais.
Estes são os instrumentos que determinam a pertinência da matéria do ramo do
direito que estamos a estudar. Tudo isto é importante quer do ponto de vista
dogmático quer científico. Todo o direito penal e sua ciência devem ser
perspectivados a partir de valorações político-criminais imanentes ao sistema. Essas
valorações encontram a sua expressão nas consequências jurídicas próprias deste
ramo do direito. Todo o direito penal e sua ciência, orientam-se para o resultado e, a
partir do resultado, as consequências jurídicas devem ser definitivamente fixadas.

6. Direito Penal e ius puniendi

6.1. Noção de Direito Penal

Podemos assim definir o direito penal como o conjunto de normas jurídicas que
ligam certos comportamentos humanos – os crimes – às consequências jurídicas que
são privativas deste ramo de direito. Destas consequências jurídicas, quer do ponto de
vista quantitativo quer qualitativo (social), a mais importante é a pena que só pode ser
aplicada ao agente que agir com culpa.
Simplesmente, ao lado da pena há outras consequências jurídicas – as medidas de
segurança – que se impõe não pela culpa do agente, mas pela sua perigosidade.
Definido nestes termos, o direito penal deve ser entendido em sentido objectivo ou
seja ius poenale. Dele distingue-se o direito penal em sentido subjectivo, ius
puniendi, que significa poder punitivo do Estado, resultado da sua competência para
considerar crime, certos comportamentos humanos e ligar-lhes sanções específicas

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(alínea e) do artigo 164º da Constituição da República de Angola (CRA) 5. Assim, o


direito penal objectivo ou ius poenale é emanação do ius puniendi.
Contudo, é importante salientar que o valor heurístico do conceito direito
penal subjectivo é diminuto, sobretudo por causa do apelo que faz ao poder soberano
do Estado. Isto pode levar a que se interprete que esse poder porque soberano é
ilimitado. Hoje, ultrapassada que ficou a concepção positivista de Estado Liberal para
o qual o legislador não tinha limites no seu poder, já não se pode fazer uma tal
interpretação. Há limites materiais e juridicamente impostos a esse poder do Estado
de criminalizar condutas – veja-se a dignidade da pessoa humana constitucionalmente
consagrada no artigo 1º da CRA: “ Angola é uma República soberana e independente,
baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade do povo angolano, que tem
como objectivo fundamental a construção de uma sociedade livre, justa, democrática,
solidária, de paz, igualdade e progresso social”. Este, constitui um limite material do
ius puniendi. Também não é linear dizer-se que à luz da CRA, os limites da
criminalização sejam impostos apenas por necessidades de política criminal, não
havendo, por conseguinte, imposições constitucionais de criminalização. 6Com efeito,
o artigo 61º da CRA, impõe a criminalização do genocídio, e dos crimes contra a
humanidade, de tal modo que é a própria CRA que tornou esse tipo de
criminalidade, insusceptível de prescrição, de amnistia e até de liberdade provisória, o
que significa que o legislador ordinário deverá criar uma norma que criminaliza
condutas dessa natureza. Neste sentido, os artigos 381º (Genocídio) e 382º (Crimes de
lesa Humanidade), respectivamente, previstos no Projecto de Novo Código Penal, são
o exemplo dessa imposição de criminalização, oriunda do Legislador Constituinte.

II. O âmbito do Direito Penal

5É importante notar que o ius puniendi é competência absoluta da Assembleia


Nacional, o que significa que apenas aquele órgão pode qualificar as condutas
como crime e estabelecer as correspondentes consequências jurídicas, penas e
medidas de segurança, bem como o respectivo processo criminal, ou seja, os
procedimentos que levam a aplicação de uma pena ou de uma medida de
segurança. Trata-se de uma competência do Poder Legislativo que não é
delegável no poder executivo, contrariamente ao que acontecia na vigência da
Lei Constitucional nº23/92
6
contrariamente ao que na doutrina portuguesa é defendido por DIAS, Jorge de Figueiredo e
ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais, 1996, pp. 7 a 9

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1. Direito Penal substantivo, Direito Penal executivo e Direito Processual


Penal

Fala-se muitas vezes em direito penal em sentido amplo (direito penal total) ou em
direito penal em sentido estrito (também designado por direito penal geral).
O Direito penal em sentido amplo ou total, também chamado de ordenamento
jurídico-penal, abrange para além do direito penal geral (substantivo), o direito
processual penal (adjectivo ou formal) e o direito de execução das penas e das
medidas de segurança ou direito penal executivo 7.
Quando nos referimos ao direito penal em sentido estrito, ou simplesmente
direito penal, queremos falar do também direito penal geral, substantivo, material
(aquele que se contém no Código Penal).

1.1. Esta distinção, que Beling designou distinção de princípio entre os “três sectores
de um idêntico ordenamento jurídico”, não apresenta do ponto de vista teórico
dificuldades de maior. Assim, o direito penal geral, substantivo, tem como objecto
de estudo a definição dos pressupostos do crime e das suas concretas formas de
aparecimento; a determinação quer em geral como em espécie das consequências
jurídicas que se ligam a esses pressupostos (penas e medidas de segurança), bem
como das formas de conexão entre os referidos pressupostos e as consequências
jurídicas.

Ao direito processual penal, adjectivo ou formal, cabe a regulamentação


jurídica dos modos de realização prática do poder punitivo estadual, mais
concretamente, a investigação do crime e a apreciação (valoração) judicial do acusado
da prática do crime, o agente.

O direito penal executivo, ocupa-se da regulamentação jurídica da concreta execução


da pena ou da medida de segurança decretada pelo tribunal na condenação proferida
no processo.

7
DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Processual Penal, I, 1974, pp. 27 e ss.

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1.2. Se de um ponto de vista teórico foi fácil distinguir entre estes ramos do direito
penal total, já de uma perspectiva prática jurídica não é tão fácil determinar as normas
que em concreto pertencem a cada um dos institutos jurídicos desses ramos do direito.
Com efeito, muitas dessas normas e institutos têm uma dupla natureza, ou
seja, são de natureza substantiva e também adjectiva ou processual e, por isso,
exprimem uma relação de “mútua complementaridade funcional”. No direito penal
angolano, esses institutos vêm previstos no Código Penal, veja o artigo 125.º, Código
de 1886, que prevê a prescrição e a amnistia; o indulto no artigo 126.º No Projecto de
Novo Código Penal artigos 129º a 137º; artigos 138º e 139º para efeitos da extinção
da pena e do procedimento criminal por morte ou por amnistia. Também aqui têm
natureza substantiva e processual. Por exemplo, a queixa que vem prevista no
Projecto de Novo Código Penal nos artigos 124º a 127º e a acusação particular
prevista no artigo 128º, são institutos do direito processual penal.
A distribuição das normas por diferentes diplomas deve-se ao facto de, por um
lado, a regulamentação directamente relativa à determinação do conteúdo da sentença
de condenação e, por isso, a concreta “execução” da sanção criminal contida na
sentença ter carácter substantivo e, por outro, as questões relativas à “exequibilidade”
ou efeito executivo da sentença, melhor dizendo, o controlo geral da execução ter
natureza processual, adjectiva8.
A queixa e a acusação particular têm ainda e apenas natureza processual ou
adjectiva, o que significa que vêm reguladas no Código de Processo Penal. Contudo,
em algumas disposições da parte especial do Código Penal, veja-se § único do artigo
359.º e § único do artigo 360.º há disposições de natureza processual, o que reafirma o
que ficou dito acerca da dupla natureza ou da relação de complementaridade
funcional que se estabelece entre os dois ramos do ordenamento jurídico-penal. A
execução das penas e das medidas de segurança, ou seja, o direito penal executivo
tem também natureza substantiva, veja-se os artigos 113.º a 124.º do Código Penal de
1886 e artigos 109º e 110º ambos do Projecto de Novo Código Penal e nos artigos
548º a 563º do Projecto de Novo Código do Processo Penal. Isto permite reafirmar a
relação de complementaridade funcional que se estabelece entre o direito penal, o
direito processual penal e o direito penal executivo.

8
Veja-se DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito Penal II Português – As consequências jurídicas do
crime” § 1056 e ss. Ainda do mesmo autor “Direito Processual Penal”, p. 28 e “Direito Processual
Penal, Lições”, 1988-89, pp. 5 e ss.

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Contudo e embora as dificuldades de determinação do carácter substantivo ou


processual destas normas é importante verificar que para determinados efeitos a
distinção é relevante. A atribuição das normas ou institutos a qualquer dos ramos do
ordenamento penal referidos (direito penal, direito processual penal e direito penal de
execução) não pode ser feita numa base apenas lógico-formal e conceptualista, deve,
ao invés, pautar-se por considerações teleológicas, axiológico-normativas e político-
criminais, decisivas, no quadro de um sistema funcional e racional.

2. Direito Penal parte geral e suas componentes

O direito penal em sentido estrito, ou direito penal geral ou somente direito penal,
é o que está contido no Código Penal e compõe-se de uma parte geral e uma parte
especial. Na parte geral, definem-se os pressupostos de aplicação da lei penal, os
elementos constitutivos do conceito de crime e as consequências que dos crimes
derivam, ou seja, as penas e as medidas de segurança 9. A parte especial contém os
crimes singulares e as consequências jurídicas que em concreto se aplicam à prática
de cada um deles.

2.1. A parte geral, produto da abstracção das concretas espécies de crime, de formas
a determinar quais são aqueles elementos que são comuns a todos eles e assim se
encontrarem as consequências jurídicas a eles aplicáveis divide-se, por sua vez, em:
fundamentos gerais do direito penal e doutrinal geral do crime ou construção
dogmática do crime10.
Nos fundamentos gerais do direito penal estuda-se, numa primeira parte, a
determinação do lugar do direito penal no sistema jurídico, a função do direito penal

9
A vigência em Angola do Código Penal de 1886 não invalida esta composição. Contudo, uma leitura
atenta das diferentes disposições e a sua comparação com o Código Penal Português em vigor permite
compreender as mudanças doutrinais na forma e no conteúdo de importantes institutos e normas. Para
melhor apreensão é de toda a utilidade consultar, também, o projecto da Parte Geral do Novo Código
Penal da República de Angola, cujo espírito já se afasta da filosofia do Código de 1886.
10
A designação doutrina geral do crime foi anteriormente conhecida por Teoria Geral da Infracção
Penal.

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no sistema social e os seus limites, as fontes e o âmbito de vigência temporal e


espacial do direito penal. Na segunda parte, estuda-se a doutrina geral do crime, ou
seja, os elementos constitutivos do conceito de crime, as formas básicas gerais,
particulares ou especiais do aparecimento do crime. Veja-se artigos 1.º a 53.º e 54º a
129º respectivamente do Código Penal Angolano de 1886, respectivamente e 1º a 58º
do Projectgo de Novo Código Penal.

2.2. A nossa atenção virar-se-á, nesta primeira fase, para a parte geral e, aqui, a
relativa aos fundamentos gerais e à doutrina geral do crime. Não se tratará dos direitos
penais especiais (direito penal militar, direito penal dos menores, direito penal
internacional, direito das medidas de segurança, direito de execução das reacções
criminais, também por alguns designado direito penitenciário, direito penal do tráfego
comercial, direito penal das sociedades, fiscal, financeiro, económico, marítimo,
médico, da imprensa, etc.) que fazem parte do direito penal em sentido amplo ou
direito penal total.

Trataremos o chamado direito penal de justiça, clássico ou principal que é


aquele que se contém no Código Penal. Mas não deixaremos de fazer uma breve
abordagem sobre o direito penal acessório, secundário ou económico-social que,
embora específico, e contido em legislação extravagante, é parte integrante pelo
menos no que à doutrina geral do crime diz respeito, do direito penal geral. De resto,
esse direito penal, pela sua teleologia, apresenta-se com um alto valor pedagógico e
de contraprova das soluções previstas para o direito penal de justiça.

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TEXTO N.º 2

2.º CAPÍTULO: A LOCALIZAÇÃO DO DIREITO PENAL NO SISTEMA


JURÍDICO

I. Direito Penal intra-estadual e direito internacional penal

Até hoje, o direito penal é, essencialmente, direito intra-estadual porque a


legislação que constitui a sua fonte é de produção nacional, estadual e são os órgãos
nacionais que o aplicam. Contudo, na última década do Sec. XX, o direito
internacional conheceu um grande desenvolvimento em matéria penal (criminal). E
nele podemos encontrar muitas normas de direito internacional de conteúdo jurídico-
penal. Vejam-se: a Declaração Universal dos Direitos do Homem; o Pacto

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Internacional dos Direitos Civis e Políticos. Para além destes há ainda a considerar:
a Convenção para a Prevenção e Sanção do Delito de Genocídio; a Convenção
contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis e Degradantes; a
Convenção contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias
Psicotrópicas; Convenções sobre Extradição, etc., todos estes ao nível da ONU e, a
Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos ao nível da União Africana,
para além de tratados e convenções bilaterais e multilaterais provenientes da SADC.
Todos eles portadores de normas cujo conteúdo jurídico é de grande relevância para
o direito penal.
É claro que estes instrumentos internacionais precisam de ser ratificados, pois só
mediante a realização desse procedimento, o Estado fica obrigado a editar normas
internas para dar corpo a essa ratificação. Às normas de direito internacional penal
que existem na preocupação de muitas agências internacionais, não subjaz a
“realidade” necessária à sua vigência, porque não são suportadas por uma instância
supranacional dotada de ius puniendi.
Alguns princípios de direito internacional geral ou comum podem servir como lei
penal incriminadora11. Com efeito, o nº1 do artigo 13º da CRA, vem precisamente
suportar esta afirmação e, em consequência, pôr em causa o princípio clássico do
direito internacional, segundo o qual o direito internacional, só poderia impor deveres
e conceder direitos aos Estados e aos poderes públicos estaduais e nunca às pessoas
singulares ou a cidadãos. 12 Assim, tanto as normas como os princípios de direito
internacional devem vigorar 13 na ordem jurídica angolana – ao lado ou mesmo acima
das leis ordinárias.
A República de Angola tem vindo a desenvolver esforços no sentido da aprovação
de um Código Penal Internacional e da criação de um Tribunal Penal Internacional.
Estes, para serem dotados de ius puniendi, terão que poder ser impostos às ordens
jurídicas internas nacionais, mesmo no caso de os não terem aceite ou reconhecido 14.

11
Artigo 13º da CRA, “O Direito internacional geral ou comum, recebido nos termos da presente
Constituição, faz parte integrante da ordem jurídica angolana”.
12
O que ficou dito na nota anterior é expressão do princípio da legalidade nullum crimen nulla poena
sine lege.
13
Veja-se o que se propõe no texto constitucional, artigo 13.º.
14
Veja-se DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal, Questões
Fundamentais, 1996, p. 16, como diferentemente se passam as coisas em Portugal. Aqui, onde pela
teoria da adopção, Gomes Canotilho e Vital Moreira na anotação n.º 1 ao artigo 8.º da CRP, entendem
que o direito internacional não se “transforma em direito interno”. Essa doutrina não se modifica

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II. O Direito Penal como parte do direito público

O direito penal é direito público por excelência; a relação que se estabelece entre o
Estado soberano, dotado do seu ius puniendi e o cidadão é de uma perfeita relação de
supra-infra ordenação. Em nenhum outro ramo de direito a relação entre a função de
preservação dos interesses e condições fundamentais à subsistência da comunidade e
o poder estadual, o poder de aplicar consequências jurídicas tão pesadas tanto para a
liberdade como para o património, é tão nítida. Em alguns casos (alguns países) essas
consequências chegam a atingir a vida e o corpo dos cidadãos.
Por estes factos, a doutrina do crime como a dos seus efeitos jurídicos estabelece uma
conexão muito estreita com o direito constitucional e a teoria do Estado. Essa conexão
encontra expressão por um lado na específica natureza das sanções deste ramo do
direito – as penas e as medidas de segurança – que negam ou limitam fortemente os
direitos fundamentais das pessoas e, por outro lado na necessidade de uma relação de
mútua referência entre a ordem axiológica (dos valores) jurídico-constitucional e a
ordem legal dos bens jurídicos que ao direito penal cabe tutelar. 15
É claro que a esfera de actuação pessoal do cidadão – a sua autonomia, auto-
realização ou autopoiese (capacidade para se satisfazer, realizar-se a si mesmo)

mesmo quando em causa estão problemas relacionados com a integração europeia. Até ao momento,
não existe um direito penal comunitário ou supranacional que seja directamente aplicável aos Estados-
membros. Por outro lado, também não se pode reconhecer às instâncias ou órgãos comunitários um
verdadeiro ius puniendi positivo, quer dizer a legitimidade para sem intermediação do legislador penal
interno impor a punibilidade de uma conduta. Qualquer sanção criminal que a Comunidade Europeia
pretenda impor, terá que fazê-lo pela via da assimilação e harmonização, ou seja, no contexto, dentro
dos limites e no quadro do direito penal nacional. Já no que se refere ao ius puniendi negativo, ou seja a
legitimidade para impor normas que reduzam ou façam recuar o direito penal estadual, o direito
comunitário prevalece sobre o nacional e, por força do princípio da unidade da ordem jurídica – “o
legislador nacional não poderá qualificar como penalmente ilícitas condutas exigidas ou autorizadas
pelo direito comunitário.” No dizer de Cuerda Riezu “a eficácia do ordenamento comunitário para
“constituir-se em legislador penal negativo dá lugar correlativamente a uma obrigação para os Estados-
membros que se analisa no dever de não punir”. É importante, contudo, salientar que esta doutrina
modificar-se-á caso venha a aprovar o Código Penal Internacional e a ser criado o Tribunal Penal
Internacional.
15
A CRA no artigo 28º expressa essa vinculação. Com efeito, o nº1 estabelece: “Os preceitos
constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias fundamentais são directamente
aplicáveis e vinculam todas as entidades públicas e privadas”. Significa que para serem aplicadas essas
normas não carecem de intermediação.

12
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constitui um limite à intervenção penal do Estado (veja-se o caso de temas como o


acordo e o consentimento16).
Porém, desde que se verifiquem os respectivos pressupostos, o ius puniendi
estadual surge como algo que já não cabe nos parâmetros da vontade dos particulares
para passar a ser uma coisa pública. Nesse sentido e considerando a importância
prática e a especificidade da elaboração teórica, o direito penal autonomizou-se do
chamado “direito público” e passou a constituir uma disciplina própria. 17

III. O direito penal e os outros ramos do direito. Autonomia e


dependência do direito penal

Não é muito fácil determinar a exacta posição que o direito penal ocupa no
contexto do sistema jurídico estadual. Relativamente ao direito constitucional ficou
já referido que a relação é de dependência tal como a de qualquer outro ramo de
direito ordinário. Mas no que respeita a outros ramos do direito ordinário,
particularmente o direito civil, administrativo processual, que muitas vezes preveem
“penas” – embora não de natureza criminal – para violações às suas normas, a questão
torna-se muito mais complexa.
Alguns autores defendem que aqueles ramos de direito é que criam a ilicitude e ao
direito penal caberia apenas uma função sancionatória dessas ilicitudes, o que o
transformaria num ramo de direito “dependente”, “acessório”, “subordinado” ou
“secundário”, face aos demais.
Outros consideram que o direito penal deve intervir com os seus próprios meios,
mas apenas como ultima ratio, ou seja quando as sanções impostas pelos outros
ramos do direito se mostrassem ineficazes ou insuficientes 18 . Assim concebido o
direito penal estaria numa situação de dependência relativamente aos outros ramos de
direito “criadores de ilicitude”.
Mas Binding partindo da tese da unidade da ilicitude defendeu não existir uma
ilicitude específica do direito penal, do direito civil ou do direito administrativo. Em

16
ANDRADE, Manuel da Costa, Consentimento e Acordo em Direito Penal, 1990 ...
17
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – Questões fundamentais,
1996, pp. 17 e 18.
18
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal I, pp. 15 e ss.

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obediência ao princípio da unidade da ordem jurídica, desde que uma acção viole um
imperativo jurídico qualquer, por essa acção, torna-se ilícita para qualquer ramo do
direito19.

III. 1. A tese da unidade da ordem jurídica e consequentemente da unidade de todo o


ilícito, não é segura e pode conduzir a equívocos ainda que se fale do carácter
fragmentário e acessório do direito penal. É que a função do direito penal é a
“protecção das condições indispensáveis da vida comunitária”, podendo neste sentido
considerar-se subsidiária, fragmentária e hoc sensu acessória. Para efeitos dessa
protecção, o direito penal escolhe dentre os diferentes comportamentos ilícitos
“aqueles que de uma perspectiva teleológica representam um ilícito geral digno de
uma sanção de natureza criminal.”20
A tarefa de selecção tem que tomar em consideração as valorações ético-
sociais do comportamento; por isso não se pode diluir do “delito geral de
desobediência” a que Binding se referia. A criminalização e a descriminalização são
fenómenos inseparáveis da evolução sócio-cultural. Contudo, eles dependem sempre
em última instância das finalidades que com o direito penal se procura servir da sua
própria teleologia e das intenções político-criminais a elas subjacentes; nunca da
forma como os outros ramos do direito fazem as suas valorações.

III. 2. Deste ponto de vista, o direito penal é autónomo e criador da sua própria
ilicitude que está ligada às suas específicas consequências jurídicas: “à especificidade,
da consequência tem de corresponder se não logicamente, ao menos teleologicamente
a especificidade dos pressupostos (do Tatbestand, no sentido da Teoria Geral do
Direito) de que aquela depende, e antes de tudo a especificidade do ilícito (mas não só
dele, como também da culpa e dos restantes pressupostos da punibilidade).” 21

19
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 19-20.
20
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 20. A este propósito COSTA ANDRADE em “A Dignidade Penal e a Carência de Tutela
Penal como referencia de uma Doutrina Teleológica Racional do Crime” in Revista Portuguesa de
Ciência Criminal, Ano 2, Fascículo 2, Abril/ Junho, 1992, pp. 173 e ss.
21
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 21.

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III. 3. Qual o específico significado da “dignidade” da matéria penal? Esta é uma


matéria que respeita à função do direito penal que mais adiante se tratará. Contudo, e
de momento, interessa dizer que a qualificação de um ilícito como penal representa
o grau máximo da contrariedade à ordem jurídica. O princípio da “unidade da
ordem jurídica” valerá, se com ele se pretender traduzir que não pode ser ilícito penal
aquilo que for lícito para a ordem jurídica geral. Já não será correcto dizer-se que
aquilo que é ilícito para o direito não penal, também o é para o direito penal. Para
efeitos do direito penal esta é a única conclusão que se pode retirar do princípio da
“unidade da ordem jurídica”22.

III. 4. Conclusão
A autonomização do direito penal face aos demais ramos do direito tem tido
importantes consequências, sobretudo técnicas conceituais e de conteúdo tanto para o
direito privado como para o direito público. A tipificação dos ilícitos jurídico-penais
reclama maiores exigências do que a dos demais ramos do direito, ainda que os
conceitos utilizados sejam idênticos ou similares. “(...) Nenhum conceito extra-penal
pode ser transposto para o direito penal, na parte incriminatória, sem que antes se
tenha determinado através de cuidada hermenêutica, se ele corresponde por inteiro à
intencionalidade e à teleologia específicas do ilícito jurídico-penal...”23.

22
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 21-22.

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TEXTO N.º 3

3.º CAPÍTULO: A CIÊNCIA DO DIREITO PENAL24

I. Da “enciclopédia das ciências criminais” à “ciência conjunta do


direito penal”

I. 1.É indiscutível que o crime é um fenómeno de patologia social muito diversificado


que resulta não apenas de condicionalismos exógenos (externos sociais) como de
substractos endógenos (internos, individuais) inerentes à mais complexa realidade que
é a realidade humana.
O que fica dito permite compreender que, durante o séc. XIX, quando a
ciência ganhou o seu verdadeiro estatuto, o crime se tenha constituído objecto de uma
multiplicidade de ciências. Antes de mais da ciência normativa do direito penal e
depois das suas disciplinas auxiliares: a filosofia, a história, a metodologia
jurídico-penal e também das chamadas ciências sociais e humanas: a sociologia,

23
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 22. O aprofundamento desta questão terá lugar quando se tratar da doutrina das causas de
justificação.
24
De leitura obrigatória SEBASTIÃO, Luzia, Sobre o Tipo de Ilícito – contributo para uma
aproximação à evolução da doutrina penal contemporânea”, Edição da Faculdade de Direito da
Universidade Agostinho Neto, Lipo-Tipo, Luanda, 2006, p. 31 a 62.

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a antropologia, a biologia, a psicologia, a psiquiatria, a caracteriologia e a


genética criminal. A este vasto conjunto de disciplinas científicas, chamou-lhe
Jiminez de Asúa a enciclopédia das ciências criminais.
Para que se realize a compreensão científica da tarefa de aplicação do direito
penal é importante que, para além do conhecimento das normas jurídico-penais, se
conheça também do contributo das demais ciências criminais. Alguns autores
pretenderam assim considerar a dogmática jurídico-penal uma ciência
interdisciplinar.25
Contudo, esta visão prejudica a teleologia e a funcionalidade que são próprias
da dogmática jurídico-penal que deve ser uma ciência de aplicação do direito, dotada
de pressupostos metodológicos específicos comandados por finalidades pático-
normativas autónomas.
Assim entendida a dogmática, as demais ciências criminais não serão mais do
que enciclopédia e por isso não poderão ter um estatuto diferente do de ciência
auxiliar da ciência estrita que é a dogmática do direito penal.

2. Até finais do séc. XIX a hoje dogmática do direito penal era a única ciência que
servia a aplicação do direito penal. Todavia, nessa altura, verificou-se que o estudo do
crime não se bastava com aquela ciência. Havia que definir estratégias de controlo
social: encontramo-nos assim no domínio da política criminal. Por outro lado, o
conhecimento empírico sobre a criminalidade e as suas causas mostrou-se
também um dado fundamental: daqui o surgimento da criminologia26.
Coube a Franz Von Liszt o mérito de na base das especiais relações que se
estabelecem entre os vários pensamentos do crime, de criar o modelo tripartido que
designou de ciência conjunta do direito penal, cuja tarefa relevaria para a aplicação do
direito penal e assim para a tarefa sócio-política de controlo do fenómeno criminal27.

25
Ciência em que se reúnem campos especiais e métodos diversificados com vista a um trabalho
comum mas capaz de coordenar correctamente os resultados parcelares especializados dentro de uma
consideração unitária nova do seu objecto global. Veja-se para mais desenvolvimentos DIAS, Jorge de
Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa “Criminologia: O homem delinquente e a sociedade
criminógena”, 1984, pp. 114 e ss.
26
Para mais desenvolvimentos sobre o surgimento da criminologia, veja-se DIAS, Jorge de Figueiredo
e ANDRADE, Manuel da Costa “Criminologia: O homem delinquente e a sociedade criminógena”,
1984, pp. 93 e ss.
27DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 25.

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A perspectiva de Franz Von Liszt não conseguiu impor-se e algumas foram as críticas
que lhe dirigiram. Assim, Karl Binding acusou Von Liszt de com a sua teoria
conjunta ter abandonado o domínio firme da lei, do conhecimento da lei e da
respectiva aplicação, para penetrar em terreno movediço como o da política e das
ciências naturais, por sinal impedido a juristas como tais. Mas a ciência conjunta do
direito penal não se perdeu e ao longo do séc. XX, constituiu-se um ponto de
referência obrigatório para uma compreensão exacta e abrangente da ciência do
direito penal em sentido estrito: a dogmática jurídico-penal28.

II. A dogmática jurídico-penal, a política criminal e a criminologia no


contexto da ciência conjunta do direito penal

Depois que Von Liszt acentuou a ideia da ciência conjunta do direito penal, levantou-
se a discussão em torno do estatuto de cada uma dessas ciências e da relação que entre
elas se deveria estabelecer. A definição de qualquer dessas questões ficou dependente
por um lado, da evolução dos pressupostos metodológicos e da compreensão do
sentido, do objecto e da função de cada uma delas no sistema social e, por outro, da
evolução da própria compreensão do sistema social no contexto de um Estado de
direito.29
Assim, no Estado de direito formal (liberal-individualista) subordinado a esquemas
rígidos de legalidade, alheio “à valoração das conexões de sentido, dos fundamentos
axiológicos e das intenções de justiça material ínsitos nos conteúdos definidos através
daqueles esquemas”, 30 neste tipo de Estado, à política criminal cabia apenas a
função de, a partir dos conhecimentos recebidos da criminologia, dirigir ao
legislador recomendações e propor-lhes directivas com vista à reforma do direito
penal. Por isso é que Von Liszt, embora defensor de uma dimensão social do direito
penal não deixou de defender, que no âmbito do direito penal em sentido amplo, a

28
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 25.; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas Básicos, 2001, pp. 3 e ss.
29
Para mais desenvolvimentos da perspectiva da Política Criminal, veja-se DIAS, Jorge de Figueiredo,
Revista da Ordem dos Advogados, 1983, p. 9; da perspectiva da criminologia, DIAS, Jorge de
Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Criminologia, 1984, pp. 93 e ss.
30
DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas Básicos, p. 10

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dogmática jurídico-penal na sua compreensão, sistematização e aplicação das


normas e dos ensinamentos científicos ocuparia o primeiro lugar na hierarquia
das referidas ciências que fazem parte da ciência conjunta. Por isso, “a dogmática
jurídico-penal (o direito penal) constituiria a barreira intransponível da política
criminal”.
Esta afirmação significou por um lado que num “Estado de direito, o
princípio da legalidade (o princípio nullum crimen nulla poena sine lege)
constituía a fronteira inultrapassável da punibilidade” e também a fronteira de
todo o fenómeno criminal31. Por outro lado, seria a dogmática penal a assinalar
tanto à política criminal como à criminologia o seu principal objecto. À
dogmática penal caberia fazer a explicitação sistemática das normas jurídico-
penais. Assim entendido, aquelas duas ciências não poderiam ocupar outra
posição que não fosse a de ciências auxiliares do direito penal 32.
No Estado social, caracterizado por ter atenuado as exigências de legalidade
formal em favor “da promoção e da realização das condições de desenvolvimento
harmónico e equilíbrio do sistema social” 33 , o social ganha predominância
enquanto o jurídico fica relegado. Dogmática jurídico-penal e política criminal
deixam de se relacionar entre si para se relacionarem directamente com o
sistema social. Assim, a política criminal e a criminologia autonomizam-se
completamente do direito penal e da sua dogmática.
O objecto da política criminal, para além de ser constituído pela infracção
penal passa também a integrar os fenómenos da patologia social, tanto da
marginalidade como da deviance34. No contexto do Estado social, o jurídico não está
separado do social mas é um seu subsistema e, porque a política criminal passa a
relacionar-se directamente com o sistema social, como já ficou dito, deixa de ser uma
simples ciência auxiliar do direito penal e sua dogmática. Contudo, em vez de se ver
acontecer uma relação de colaboração entre elas, assiste-se a um como que virar de
costas.

31
DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas Básicos, p. 10
32
DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas Básicos, p. 10
33
DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas Básicos, p. 11
34
A deviance, ou desvio social, foi uma palavra criada pela criminologia norte americana mas que
rapidamente foi aceite para expressar todos os fenómenos de patologia social ou substancialmente
aparentados com a infracção penal.

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O jurista não dá a sua contribuição para a reforma penal, nem para o


funcionamento eficaz e efectivo do sistema social. Por seu lado, a política criminal,
não mais influencia a resolução dos problemas práticos normativos de aplicação do
direito penal com os conhecimentos que traz da criminologia. E, sempre que as
proposições de política criminal se dirigirem em sentido diferente daquele que o
jurista considera legalmente imposto, a solução de qualquer caso jurídico-penal
concreto, não pode senão ser a de abandonar qualquer conclusão político criminal que
se mostre correcta e obedecer àquela que leve a sua redução e integração no sistema
jurídico-penal.
Os comando político-criminais cederão sempre e ainda, perante as exigências
da dogmática jurídico-penal e a política criminal continua a ser uma ciência auxiliar
do direito penal, apenas “competente para a reforma penal” 35

No Estado de Direito Material, caracterizado por ser um Estado democrático


e social que “mantém intocada a sua ligação ao direito, a um esquema rígido de
legalidade preocupando-se (...) com a consistência efectiva dos direitos, das
liberdades e das garantias da pessoa; mas que, por essa razão (...) se deixa mover,
dentro daquele esquema, por considerações de justiça na promoção e na realização de
todas as condições – políticas, sociais, culturais, económicas – do desenvolvimento
mais livre da personalidade ética de cada um” 36 , a função e tarefa da dogmática
jurídico-penal transforma-se.
Aqui, sobre o jurista recai a responsabilidade de procurar e encontrar a
solução mais justa para cada problema jurídico concreto da vida.
Primeiro deve encontrar-se uma solução justa (aqui o justo tem a ver com
considerações éticas e sociais) onde as valorações éticas passam a intervir na
resolução do problema concreto da vida e só depois essa solução deve ser integrada
no sistema37.
Assim entendida a questão metodológica, a política criminal ganha uma posição de
autonomia e até de transcendência perante as restantes ciências da ciência conjunta do
direito penal. Claus Roxin foi o autor que trouxe para a discussão este entendimento

35
DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas Básicos, p. 14
36
DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas Básicos, p. 15
37
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 29.

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da posição da política criminal e da função que elas desempenham no sistema do


direito penal. Por outro lado, a função da política criminal alarga-se, ou seja, para
além de relevar para a reforma da lei penal, a política criminal passa a ser também
competente para definir os limites últimos da punibilidade.
Contudo, a política criminal atinge as suas finalidades através do direito penal
e, por isso, tem que respeitar os princípios estruturais do direito da pena; daí que
Roxin tenha utilizado a máxima “o direito penal é a forma através da qual as
proposições de fins político-criminais se vazam no modus da validade jurídica”.
Por aqui se pode dizer que a política criminal ganha uma posição de topo no
conjunto da ciência conjunta do direito penal; mas há de sempre condicionar-se aos
fundamentos jurídico-políticos da concepção de Estado. A política criminal é assim
trans-sistemática (está para além do sistema) relativamente ao direito penal mas é
intra-sistemática (está contida no sistema) relativamente à concepção do Estado,
imanente (inerente) ao sistema jurídico-constitucional. As proposições de política
criminal podem também ser procuradas no quadro de valores que fazem parte do
consenso comunitário, mediado ou “positivado” pela Constituição.
A partir daqui, pode parecer que se pretende introduzir uma ciência na outra.
Mas como diz Zipf, o que se pretende com essa construção é optimizar a colaboração
entre a dogmática jurídico-penal e a política criminal. E melhor do que uma unidade
sistemática como defendeu Roxin, Figueiredo Dias e Costa Andrade, defendem que
entre os dois campos deve existir uma unidade cooperativa ou unidade funcional.38
O modo como ficou estabelecida a relação entre a dogmática jurídico-penal e a
política criminal, permite compreender a relação entre a dogmática jurídico-penal e a
criminologia. Assim, no contexto de uma ciência conjunta do direito penal, a política
criminal passa a desempenhar a função de intermediário entre a criminologia e a
dogmática jurídico-penal.
De facto, uma relação directa entre a dogmática jurídico-penal e criminologia,
sempre se mostrou problemática e pouco útil sobretudo até aos anos 60. A partir dessa
altura a criminologia passou de uma ciência puramente explicativa, para uma ciência
crítica e assim deixou-se penetrar por considerações jurídico-criminais. Isto levou por
um lado ao alargamento do seu objecto, que da explicação das causas do crime e da

38
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 30-31.

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personalidade do criminoso passou a abranger também a crítica aos sistemas de


justiça penal.
Numa primeira fase da sua evolução, a criminologia era marcadamente
empírica, etiológico-explicativa do fenómeno criminal. Nesse contexto, a relação
directa com a dogmática jurídico-penal era praticamente inviável. Num segundo
momento, a criminologia divorciou-se totalmente da dogmática jurídico-penal e isto
aconteceu nos Estados Unidos da América de tal modo que passou a ser estudada
exclusivamente nas faculdades de Letras ou Ciências Humanas. Esta situação não se
mostrou estranha uma vez que o seu objecto era constituído não só pelo crime mas
também pelo comportamento desviante.
A mudança radical dá-se nos anos 60, com o interaccionismo ou (labeling
approach), a etnometodologia e a criminologia radical de inspiração marxista. O
mérito de tudo isso deveu-se ao labelling approach por ter trazido para a discussão e
ter posto em relevo que a criminologia não era apenas uma ciência encerrada num
paradigma estritamente etiológico-explicativo mas também uma ciência compreensiva
do fenómeno criminal na sua totalidade. Assim, passa também a investigar a
totalidade do sistema de aplicação da justiça penal. Nomeadamente as instâncias
formais (a polícia, o Ministério Público, o juiz, a administração penitenciária, os
órgãos de reinserção social e a própria lei penal) e informais (a família, a escola, as
associações privadas de ajuda social) de controlo da delinquência e enfim todo o
processo de produção de delinquência.
Para além desses aspectos, a criminologia vai também ocupar-se do processo
de socialização do delinquente no seu todo, ou seja, a integração do indivíduo no
sistema social e no sistema normativo vigente. Daqui que a criminologia passa a
relacionar-se estreitamente com o processo penal e com o direito penal executivo.

Conclusão
Em conclusão pode dizer-se que hoje a dogmática jurídico-penal não pode evoluir
sem tomar em atenção o trabalho prévio realizado pela criminologia, mas esta
também não pode desenvolver-se sem a mediação da política criminal que clarifica as
finalidades e os efeitos que se esperam e se apontam à aplicação do direito penal.

22
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Por isso, dogmática jurídico-penal, política criminal e criminologia são do ponto de


vista científico âmbitos autónomos mas ligados com vista ao integral processo de
realização do direito penal numa unidade teleológico-funcional. É a esta unidade que
se chama “ciência conjunta do direito penal”. 39

39
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,

23
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TEXTO N.º 4

TÍTULO II: FUNÇÃO E LIMITES DO DIREITO PENAL

Introdução
Para que se compreenda a função que o direito penal desempenha no sistema
social e na ordem jurídica é, necessário proceder à determinação do seu objecto
material. O objecto do direito penal é o comportamento criminal e suas específicas
consequências jurídicas: as penas e as medidas de segurança. É a conjugação desses
dois elementos- a função e a determinação do objecto material- que vai permitir
estabelecer os limites do direito penal e distingui-lo das demais disciplinas que
também aplicam sanções. A análise de cada um destes aspectos permitir-nos-á
determinar a função do direito penal.

4.º CAPÍTULO: O COMPORTAMENTO CRIMINAL: SUA DEFINIÇÃO.


CONCEITO MATERIAL DE CRIME

I. A questão do conteúdo material do conceito de crime

I. 1. Considerações
O exercício do ius puniendi pelo legislador ordinário, resulta do disposto na
alínea e) do n.º 1 do artigo 164.º da CRA. O que se pretende com o conceito material
de crime é, em primeiro lugar, dar-se uma resposta à questão da legitimação, ou

1996, pp. 32 e 33.

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seja, qual a origem da legitimidade para se considerar determinados comportamentos


humanos como crimes e aplicar-lhes a respectiva sanção. Em segundo lugar, é o
conceito material de crime que nos permitirá determinar a função e os limites do
direito penal. Com efeito, só tem sentido falar-se num conceito material de crime, se
ele se situar acima e fora do direito penal legislado e puder determinar que qualidades
deve um comportamento assumir para que o legislador fique legitimado a submete-lo
a sanções criminais sempre que seja realizado – o que significa determinar os critérios
materiais do comportamento.
Assim entendido – fora do direito penal legislado – o conceito material de
crime é previamente dado ao legislador e pode constituir-se em padrão crítico tanto do
direito penal em vigor como do que vier a vigorar, ou seja, indicando ao legislador o
que é que pode e deve criminalizar e o que é que não deve criminalizar. Este conceito
material, com o recorte que se desenhou, há de permitir avaliar a correcção ou
incorrecção político-criminal, das incriminações já existentes e daquelas que se
constituirão e consequentemente discutir a questão da criminalização e
descriminalização; e ainda ligar as três ciências, a direito penal e sua dogmática, a
política criminal e a criminologia, no quadro da ciência conjunta do direito penal e
sua ligação com as disciplinas auxiliares. 40

I. 2. A perspectiva positivista-legalista
A resposta à pergunta sobre o que seja o conceito material de crime será
diferente dependendo da concepção que dominar a ciência do direito num dado
momento histórico. Assim, para que a concepção positivista-legalista de direito,
crime era tudo aquilo que o legislador legitimamente considerasse como tal. Bastava
que o legislador ameaçasse um comportamento com uma pena criminal e o
comportamento transformava-se em crime. Logo havia uma coincidência entre o
conceito formal e o conceito material de crime.
Um tal entendimento não permitira saber que qualidades deveria o comportamento
possuir para que o legislador o qualificasse como crime. Por outro lado também a
questão da legitimação ficaria por resolver uma vez que a legitimação material ficava
identificada com a observância do princípio da legalidade.

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I. 3. A perspectiva positivista-sociológica
A noção sociológica foi a primeira tentativa séria para se encontrar o conteúdo
do conceito material de crime. Dever-se-ia buscar nas múltiplas manifestações legais
do que fosse crime o que, à luz da realidade social, fosse como tal considerado. No
dizer de Garófalo (1885), algo que “existiria na sociedade humana (como crime)
independentemente das circunstâncias e das exigências de uma dada época ou
particular concepção” 41. Já Durkheim (1893) (...) 42 O que havia em comum nestas
duas concepções, seria o facto de a violação dos sentimentos constituir acto reprovado
pelos membros de cada sociedade.
A tentativa de definir materialmente o crime a partir da ideia de unidade de
sentido sociológico foi muito importante porque constituiu a primeira abordagem do
conceito como pré-legal, capaz, por conseguinte, de servir de padrão crítico do direito
vigente e a constituir, necessário ao conceito material de crime. Contudo, essa
tentativa não resultou porque imprecisa e ainda porque se mostrou demasiado ampla
para poder permitir que os limites da criminalização fossem atingidos.

I. 4. A perspectiva moral-social
A passagem do Estado de Direito Formal para o Estado de Direito material,
correspondeu à entrada no conceito material de crime de uma perspectiva moral,
(ético) social que considerou o crime como violação de deveres morais-sociais
elementares. Welzel definiu como “tarefa central” do direito penal o “assegurar a
validade dos valores ético-sociais positivos de acção”, ou seja, escreveu em 1947 que

40
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 43 a 45; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas Básicos, pp. 34 e 35.
41
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 46. Para Garófalo, o crime deveria corresponder à violação de sentimentos altruístas
fundamentais. A violação do sentimento de piedade originava o crime contra as pessoas. Já a violação
do sentimento de probidade originava o crime contra o património. Na base destes dois sentimentos
construía-se a noção de delito natural que seria mais ou menos igual para todos os povos de idêntica
raça e civilização. Esse “tipo” de delito teria como denominador comum uma conduta socialmente
danosa.
42
Figueiredo Dias e Costa Andrade, partem não de uma organização civilizacional, mas de uma
formação social politicamente organizada. Seria aqui onde os sentimentos objeto de violação deveriam
ser comuns à consciência colectiva, fortes e precisos.

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a tarefa do direito penal é garantir os valores de acção de uma atitude de acordo com o
direito”.
Esta concepção traduz uma atitude enraizada no espírito dos leigos que
transportam para o mundo terreno as noções de pecado e castigo que valem na ordem
religiosa ou a imoralidade que vigora na ordem moral. Todavia, ela não deixa de se
arvorar em padrão de crítica de um direito penal constituído ou a constituir.
Mas, ainda que uma posição como a acabada de referir se encontre enraizada na
opinião pública, o certo é que ela não pode ser defendida, uma vez que não é
função do direito penal, nem a título primário, nem a título secundário, tutelar a
virtude ou a moral. Isto porque tanto a virtude como a moral são específicas de um
grupo social e o direito penal tem que respeitar a liberdade de consciência de cada
um. Veja-se o que actualmente estabelece o artigo 41.º da CRA43.
De notar que nem mesmo as penas e as medidas de segurança, instrumentos de
que o direito penal se serve para a sua actuação se mostram adequados para fazer
valer na sociedade as normas da virtude e da moralidade. De resto, nem os
magistrados nem os tribunais se mostram legitimados para castigar o pecado e a
imoralidade. Estas são questões que respeitam à justiça divina e à consciência
individual.

4.1. A concepção apresentada mostra-se inadequada sobretudo do ponto de vista das


exigências éticas do tipo de sociedade democrática pluralista em que hoje vivemos.
Alguns autores como Georg Jellinek procuraram fundamentar esta inadequação pelo
facto de se criar uma confusão inextricável entre o direito (penal) e a moral. Outros,
ainda, procurarm defender que tal concepção conferiria ao direito penal uma função
de mera “conservação” das concepções morais-sociais vigentes, impedindo a sua
contribuição para a função de “promoção” de valores sociais, culturais e económicos
próprios do Estado de Direito Social.

43
Artigo 41º “1. A Liberdade de consciência, de crença religiosa e de culto é inviolável.
2. Ninguém pode ser privado dos seus direitos, perseguido ou isento de obrigações por motivo de
crença religiosa ou de convicção filosófica ou política.
3. É garantido o direito de objecção de consciência, nos teremos da lei.
4. Ninguém pode ser questionado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou práticas
religiosas, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis”

27
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Ora, essa função de promoção de valores sociais, não cabe ao direito penal,
mas deve ser reservada a meios não penais de política social. Por isso, neste domínio
o que é reservado ao direito penal deve ser ínfimo, mínimo.
A razão da inadequação está na natureza das sociedades pluralistas
contemporâneas onde em maior ou menor medida coexistem umas vezes de forma
pacífica ou de forma tensa “zonas de consenso com zonas de conflito”. Por outro
lado, tal inadequação também se refere às exigências morais próprias de sociedades
secularizadas onde ainda predominam os dizeres de S. Tomás de Aquino, segundo os
quais “o legislador não deve deixar-se seduzir pela tentação de tutelar com os meios
do direito penal todas as infracções à moral objectiva” 44 A negação definitiva dessa
concepção moral-social do conceito de crime pode ser situada na Alemanha Federal,
quando em 1966 e nos anos seguintes surgiu o Projecto Alternativo de Código Penal.
O Alternative – Entwurfeines Strafgestzbuch foi redigido por catorze professores de
direito penal, em resposta às objecções que na sociedade alemã suscitou o projecto
Governamental do Código Penal de 1962.
Inicialmente, a questão levantou-se em relação ao direito penal sexual. O
projecto Governamental continuou a considerar puníveis as condutas homossexuais
entre adultos como a sodomia, a “desmoralização” (kuppelei), a pornografia e
condutas análogas. Ora, o Projecto Alternativo rejeitou esta política criminal e
substituiu-a pela ideia de uma política criminal rigorosa e incensurável no sentido de
que as condutas sexuais que tivessem lugar em privado, entre adultos que nela
consentissem, não deveriam ser punidas. Neste sentido foi já legislado em Portugal,
no Código Penal de 1995 e, actualmente, no Projecto de Novo Código Penal
Angolano. Simplesmente, esta questão que se suscitou por virtude dos crimes
sexuais, muito rapidamente se estendeu e transformou em questão central da
“essência do conteúdo material do conceito de crime e da função primária do direito
penal”.45

44
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 50 e 51.
45
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 52.

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5. A perspectiva racional: a função de tutela subsidiária de bens jurídicos

A discussão acabada de apresentar conduziu à introdução na questão da


função do direito penal e a sua ligação com o conceito material de crime de uma
perspectiva funcional e racional.
Funcional, por se concluir que o conceito material de crime não podia ser deduzido
de ideias extra-jurídicas ou extra-penais mas sim encontrado a partir da função que o
direito penal desempenha no sistema jurídico-social. Racional, uma vez que o
conceito material de crime resulta da função subsidiária ou de ultima ratio de bens
jurídicos desempenhada pelo direito penal. Nesta ideia, concretiza-se juridicamente a
noção sociológica de danosidade ou de ofensividade sociais. Contudo, isto não
explica o sem número de questões que se levantam e necessitam de ser debatidas.

5. a) Aproximação à noção de bem jurídico

Embora a noção de bem jurídico seja fulcral no direito penal, ela não foi,
contudo, até hoje, determinada com a nitidez e segurança capazes de o converter num
conceito fechado e capaz de sem sombra de dúvida traçar a fronteira entre o que deve
e não deve ser criminalizado.
Não obstante o exposto, há hoje um certo consenso sobre o seu núcleo
essencial. Pode definir-se bem jurídico como “expressão de um interesse da pessoa
ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem
em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como
valioso”46.

5. a. 1) O autor que pela primeira vez chamou à atenção para a noção de bem jurídico
foi Birnbaum. Com ela pretendeu abranger o conjunto de substractos de natureza
liberal que fossem susceptíveis de servir de base para os comportamentos que os
ofendessem.
Assim, e numa primeira fase, o conceito de bem jurídico assumiu um
conteúdo individualista. Esteve identificado com interesses primários do indivíduo na
sociedade (ex.: a vida, o seu corpo, a sua liberdade, o seu património). A partir dessa

46
DIAS, Jorge de Figueiredo, “O problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal”.

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aproximação foi fácil identificar a noção de bem jurídico com a de direito subjectivo
fundamental do indivíduo, merecedor de tutela penal. A referida aproximação, que já
Feuerbach havia feito, foi aplaudida pela generalidade da doutrina liberal. A este
propósito, Rupp afirmava que “a concepção exasperadamente liberal (e positivista) de
bem jurídico fez dele um “monólito jurídico corporizado”.
A viragem decisiva para a compreensão do conceito de bem jurídico
aconteceu a partir da segunda década do séc. XX. Com efeito, desenvolveu-se na
época um conceito metodológico de bem jurídico de cariz normativista ligado aos
pressupostos neokantianos da chamada Escola Sul-Ocidental Alemã ou Escola de
Baden, onde se destacaram as figuras de Windelband e Rickert 47. A compreensão do
bem jurídico a partir do conceito metodológico é de rejeitar porque com ela o
conceito torna-se intra-sistemático e por isso perde a ligação com qualquer teleologia
político-criminal e deixa de poder ser visto enquanto “padrão crítico de aferição da
legitimidade da criminalização”48. Numa palavra, perde o interesse para determinar o
conceito material de crime.

5. a. 2) Para que a noção de bem jurídico se legitime impõe uma concepção funcional,
teleológica e racional. O conceito tem de obedecer a uma série mínima mas
irrenunciável de condições. Em primeira linha, tem que traduzir um qualquer
conteúdo material para que se possa arvorar a indicador útil do conceito material de
crime; não basta por isso que se identifique com os preceitos penais cuja essência
pretende traduzir ou com qualquer outra técnica jurídica de interpretação ou aplicação
do direito. Em segundo lugar, o conceito deve servir de padrão crítico de normas
constituídas ou a constituir. Assim, ele pode arvorar-se a critério legitimador do
processo de criminalização e descriminalização. Não poderá, por conseguinte,
aparecer como um conceito imanente ao sistema normativo jurídico-penal e dele
resultante. Antes deve apresentar-se como uma noção trans-sistemática, ou seja,
transcendente ao sistema. Em terceiro lugar, há de ser político-criminalmente
orientado; por isso intra-sistemático relativamente ao sistema social e ao sistema
jurídico-constitucional.

47
Para mais pormenores sobre a questão, veja-se CORREIA, Eduardo, Direito Criminal I, pp. 205 e ss.
Ainda do mesmo autor, Unidade e Pluralidade de Infracção, 1945.

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Feitas as anteriores considerações, levanta-se a seguinte questão: como é que o


conceito poderá obedecer a todas essas exigências e ao mesmo tempo ou do mesmo
passo lograr a materialidade e concreção tais que o tornam utilizável na tarefa de
aplicação prática do direito?49

5. b) Bem jurídico sistema social e sistema jurídico-constitucional

A resposta à pergunta acabada de formular tem sido dada pela teoria da


sociedade como teoria do sistema social. Amelung, por exemplo, baseou o conceito
material de crime e por isso o conceito de bem jurídico no conceito de dano social. O
conteúdo desta noção foi buscá-lo à teoria do sistema social de Parsons. Segundo esta
teoria da sociedade, a determinação da ordem dos bens jurídicos seria buscada na
disfuncionalidade sistémica dos comportamentos, ou seja, o sistema social tem regras
que os membros da comunidade social devem respeitar. São regras do sistema.
Sempre que aqueles as desrespeitarem estarão a comportar-se de modo disfuncional
ao sistema, ou melhor, de modo contrário ao funcionamento do sistema. Assim, para
impedir essa disfuncionalidade, o sistema recorre a sanções criminais.
No fundo, o que determina a ordem dos bens jurídicos são os comportamentos
disfuncionais ao sistema que em sentido positivo são os bens jurídicos a tutelar.
Stratenwerth de uma perspectiva mais cautelosa afirma que a determinação dos bens
jurídicos deve fazer-se a partir do sistema social de uma comunidade, fundamentado
ou legitimado pela lei fundamental. Jakobs, por seu turno, embora acentuando que a
protecção dos bens jurídicos não é uma função suficiente para o direito penal porque
“a sociedade não é nenhuma instância para a conservação e a maximização de
bens”50, acaba por aceitar que a noção de crime se fundamenta na danosidade social e
afere-se em função do respectivo sistema social.

48
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 54.
49
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 55.
50
GÜNTHER,Jakobs, Derecho Penal, Parte General Fundamentos Y Teoria de la Imputación, 2ª
Edición Corregida, Marcial Pons, Madrid,. 1997, p.56 e ss. DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE,
Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais, 1996, p. 56. Ainda DIAS, Jorge de
Figueiredo, Temas Básicos da Doutrina Penal, p. 46.

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5. b. 1) A crítica que Figueiredo Dias e Costa Andrade dirigem a essa concepção é a


da sua insuficiência para na aplicação do direito produzir os efeitos práticos que dela
se esperam. É certo que é no sistema social que se deve encontrar a fonte legitimadora
e produtora da ordem legal dos bens jurídicos. Mas é difícil encontrar-se a
concretização do conceito a partir de um apelo directo ao sistema social. Assim, a via
para se alcançar essa concretização só é encontrada quando se entende que os bens do
sistema social se transformam e se concretizam em bens jurídicos dignos de tutela
penal através da ordem axiológica jurídico-constitucional51.

5. b. 2) Em conclusão pode dizer-se que um bem jurídico político-criminalmente


vinculante só existe ali onde esteja reflectido um valor jurídico-constitucionalmente
reconhecido em nome do sistema social total e assim “pré-existe” ao ordenamento
jurídico-penal. Isto significa, por sua vez, que entre a ordem axiológica jurídico-
constitucional e a ordem legal jurídico-penal dos bens jurídicos, há de verificar-se
uma qualquer “relação de mútua referência”. Não se trata de uma relação de
identidade ou mesmo de recíproca cobertura, mas de analogia material, fundada numa
essencial correspondência de sentido e de fins.52
A correspondência de sentido por sua vez, deriva do facto de a Ordem
Constitucional constituir um quadro obrigatório de referência e critério regulador da
actividade punitiva do Estado. Só no sentido acabado de expor os bens jurídicos
protegidos pelo direito penal se podem considerar concretizações dos valores
constitucionais ou implicitamente ligados a direitos e deveres fundamentais. 53

51
Sem se atender a opinião de Figueiredo Dias e Costa Andrade em Direito Penal – questões
fundamentais, 1996, p. 57, claro está, à questão muito debatida entre jus-constitucionalistas, sobre se os
valores constitucionais são ou não susceptíveis de constituir uma verdadeira ordem axiológica (também
CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito Constitucional, I, 1980, pp. 41 e ss. e 92 e ss.), de outra
forma não poderia ser. Atente-se no que dispõe o nº2 do artigo 3.º da Constituição da República
Portuguesa e n.º 2 do artigo 18º da referida Constituição. Veja-se para o caso de Angola o nº 2 do
artigo 6º e os Artigos 57º e 58º todos da CRA.
52
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 57
53
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 57 e 58. DIAS, Jorge de Figueiredo, “Os novos rumos da Política Criminal e o Direito Penal
Português do Futuro” in Revista da Ordem dos Advogados, 1983, p. 14; “Para uma dogmática do
Direito Penal Secundário” in Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 17, 1984, pp. 10 a 15; “Sobre
os fundamentos da Doutrina Penal. O comportamento Criminal e a sua definição” in Temas Básicos da
Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, pp. 47 e 48.

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5. b. 3) A forma como a ordem axiológica constitucional se relaciona com a ordem


legal dos bens jurídicos penalmente relevante permite clarificar a distinção que do
ponto de vista jurídico-criminal e dogmático se estabelece entre o designado direito
penal de justiça, também chamado de clássico ou primário que corresponde àquele
que vem descrito nos códigos penais, por um lado e por outro lado o direito penal
secundário administrativo ou extravagante, porque contido em leis avulsas. No fundo,
a diferença entre estes dois mundos do direito penal radica de um ponto de vista
material no diferente relacionamento que o bem jurídico mantém com a ordem
axiológica constitucional.
Enquanto os crimes de direito penal de justiça se relacionam em última análise
directa ou indirectamente com a ordem jurídico-constitucional relativa aos direitos,
liberdades e garantias das pessoas artigos 30º a 75º e, o direito penal secundário de
que existem exemplos em matéria de direito penal económico (matérias penais
relativas à empresa, ao mercado do trabalho, segurança social) e ainda ao direito
financeiro, fiscal e aduaneiro, relaciona-se em primeira linha com a ordem jurídico-
constitucional relativa ao direitos sociais e à organização económica, 76º a 104º, todos
da CRA.
A diferença é ainda decisiva, quando nos referimos à actividade tutelar do
Estado. Duas zonas relativamente autónomas aqui se criam. Por um lado, a que
procura proteger a esfera de actuação pessoal, embora não necessariamente individual
do homem e por outro, a que visa a protecção da sua (do homem) esfera de actuação
social, ou seja o “homem enquanto membro da comunidade”54.

5. b. 4) A distinção que se fez entre direito penal de justiça e direito penal secundário,
não se confunde com a distinção entre direito penal e direito de mera ordenação social
ou das contravenções. Com efeito, essa confusão que muitas vezes acontece deve-se
ao facto de durante muito tempo o direito penal administrativo ter sido a fonte das
contravenções ( e ainda assim é no ordenamento jurídico angolano). No sistema
jurídico-penal português, por exemplo, esse direito administrativo deu origem à
categoria não penal mas administrativa das contra-ordenações.

54
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 58 e 59; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, p. 48 e 49.

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Contudo, hoje nos sistemas jurídicos (que não é o caso do angolano) mas do
alemão, português, espanhol, o direito penal administrativo está presente não no
direito das contraordenações, mas como direito penal, no direito penal secundário. O
direito penal administrativo é que merece ser chamado de direito penal secundário 55.
De notar, por outro lado, que os âmbitos do direito penal de justiça e do direito
penal secundário, bem como do direito penal secundário e direito das
contraordenações, não se apresentam histórica e socialmente como compartimentos
estanques; é só notar que os bens jurídicos tutelados pelo direito penal secundário
passam a bens jurídicos do direito penal de justiça e reciprocamente. De resto, pode
falar-se numa contiguidade material entre os crimes de direito penal secundário e as
contraordenações como resultado da sua origem histórica comum, da sua relevância
em zonas sociais de conflito e da sua contingência e mutabilidade.
As considerações feitas neste ponto, devem ser entendidas a título de
informação e direito a constituir. Com efeito, no actual direito penal em vigor em
Angola, a distinção faz-se entre crimes e contravenções; vejam-se os artigos 1.º e 3.º
do Código Penal de 1886, distinção que subsiste no Projecto de Novo Código Penal
artigos 142º a 146º. Não se estabeleceu, ainda, a distinção entre direito penal de
justiça, direito penal secundário e direito das contraordenações.

5. c) Dificuldades subsistentes e evolução previsível


O conceito de bem jurídico não é um conceito fechado e por isso não pode
dar-nos com segurança o que deve e não deve ser criminalizado. O bem jurídico é
“apenas” o padrão crítico insubstituível e irrenunciável com o qual se vai aferir a
legitimação da função do direito penal no caso concreto. Daí que acusar-se o conceito
de se mostrar incapaz de revelar os exactos contornos do conceito material de crime
seria uma afirmação destituída de sentido.
Mas o grande perigo da permanência da doutrina do bem jurídico como
instrumento fundamental da determinação do conceito material de crime provém,
segundo Figueiredo Dias, do seguinte: por mais que se antecipe a tutela dos bens

55
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 59; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, p. 49

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jurídicos, veja-se o caso da tentativa e hoje, cada vez mais, com a criação no direito
penal das figuras do risco e do perigo com os crimes de perigo concreto, abstracto-
concreto ou puramente abstracto, tal não se mostra suficiente para, nas sociedades dos
nossos dias, se cumprir com eficácia a função do direito penal. 56
Com efeito, alguns autores defendem que no tipo de sociedade em que hoje
vivemos e onde o desenvolvimento da técnica e da tecnologia representa para as
pessoas na realização de certas actividades, a assunção de um certo risco permitido
(como a condução automóvel, a utilização de determinadas máquinas, etc.), a
verdadeira “sociedade de perigo”, uma “sociedade de risco”, a chamada
Risikogesellschaft no dizer de Beck, o direito penal mostra-se profundamente
inadequado para exercer a função de protecção ou tutela de bens jurídicos mesmo de
cariz individualista como o liberal.
Assim, haveria que se abandonar a função de protecção e abraçar, sem mais,
numa sociedade de risco, a ideia de que o direito penal é um instrumento de governo
daquele tipo de sociedade; é um meio propulsor para se alcançar as respectivas
finalidades de governo; por isso ele ganha uma função promocional, enquanto meio
de realização da política estadual. Só assim entendida a função do direito penal, ele
pode estar à altura de se assumir com eficácia no tratamento de questões sócio-
criminais tão ingentes como as das agressões ao ambiente, a política económica,
financeira e fiscal, da droga, criminalidade organizada, etc.
Ora, Figueiredo Dias critica esta posição. Considera, que não tem legitimidade
histórica o considerar-se a actual sociedade uma sociedade de risco. Com efeito, uma
análise histórica e livre de preconceitos, leva-nos à conclusão de que o risco é algo
que sempre existiu na sociedade. Por isso, advogar o risco para antecipar a protecção
de bens jurídicos através de crimes de perigo e fazer com que o bem jurídico se
esfume e deixe de exercer a sua função de padrão crítico do direito constituído e a
constituir, não pode colher.
Ainda que o “perigo” ou o “risco” constituam a noção chave da dialéctica da
ilicitude penal, enquanto síntese entre a tese do desvalor da acção e antítese do

56
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 58 e 59; DIAS, Jorge de Figueiredo, in Jornadas de Direito Criminal. A revisão do Código
Penal, I, 1996, pp. 17 e ss. e pp. 30 e ss.

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desvalor do resultado, em nada pode contender com a negação dessa tentativa de


tornar o direito penal dos bens jurídicos num direito penal do risco ou dos perigos.57

5. c. 1) Por outro lado, ao direito penal não deve caber uma função promocional que o
transforme de direito penal de protecção de direitos fundamentais, individuais e
colectivos em instrumento de governo da sociedade. Essa função promocional estaria
em contradição com o fundamento da legitimação da intervenção penal, com sentido
dessa intervenção como ultima ratio de política social e ainda com as exigências de
salvaguarda do pluralismo e da tolerância próprios das sociedades democráticas
modernas. A função promocional converteria o direito penal em instrumento de uma
ideologia político social, factor de um qualquer milagre social, conduzindo ao
surgimento de um velho direito penal supostamente renascido. 58

5. c. 2) A conclusão deve ser no sentido de se reafirmar que o direito penal não é nem
deve tornar-se num direito de prevenção de riscos especiais e longínquos, nem de
promoção de finalidades específicas de política estadual. O direito penal é um direito
de tutela de bens jurídicos “ de preservação das condições indispensáveis da mais
livre realização possível de personalidade de cada homem na comunidade” 59.
A conclusão acabada de apresentar conduz a que:
a) Para se falar de uma correcta solução da questão da legitimação do
direito de punir estadual, legitimação que provém da própria existência do
contrato social em que cada cidadão cede ao estado parte mínima dos seus
direitos e liberdades para garantir o funcionamento sem entraves da
comunidade;
b) A regra do Estado de direito democrático, segundo a qual o Estado só
deve intervir nos direitos e liberdades fundamentais do um indivíduo, desde
que isso se torne imprescindível ao asseguramento dos direitos e liberdades
fundamentais dos outros indivíduos.

57
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 62 e 63; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, p. 49 e 50.

58
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 63.
59
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 63.

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c) Ao carácter laico e pluralista do Estado de direito contemporâneo que


o vincula a só recorrer aos meios punitivos quando esteja em jogo a tutela de
bens de relevante importância da pessoa e da comunidade e nunca para
reforçar qualquer ordem axiológica transcendente de carácter religioso,
moral, político, social ou cultural. É o que, em termos de direito constituído
prevê a CRA como já se referiu supra em 5. b. 3). Parte Geral do Projecto de
Novo Código Penal no seu artigo 41.º, já prevê que a “aplicação de penas e
de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos”.

5. c. 3) Consequências da orientação defendida


A concepção que considera que a função específica do direito penal é a tutela de
bens jurídicos, também defende que o bem jurídico é o elemento fundamental do
conceito material de crime.
Assim, importantes consequências podem daqui ser retiradas:
a) As puras violações morais não conformam a lesão de um autêntico
bem jurídico; por isso, não podem integrar o conceito material de crime. 60
b) Também proposições meramente ideológicas ou imposições de fins
(como pôr em causa a pureza da raça, propagar doutrinas contrárias a uma
certa religião ou a uma determinada concepção do Estado, fazer apologia de
uma qualquer doutrina religiosa, moral, política, social ou cultural,
ressalvando, como é óbvio a eventual ilicitude dos meios utilizados, não pode
constituir objecto de criminalização.
c) Também não pode ser crime a violação de valores de mera ordenação
que respeitem a uma certa política estadual. Esta questão prende-se com um
problema mais amplo que é o da distinção entre direito penal e direito de
mera ordenação social ou das contraordenações.

60
Com efeito, e de acordo com o Código Penal de 1886, ainda em vigor em Angola, o direito penal
sexual é entendido como um direito tutelar da “honestidade”, dos “costumes” ou dos “bons costumes”:
artigos 390 e ss. O Projecto de Novo Código Penal deixou já esse tipo de tutela porque não conformava
uma verdadeira lesão de bens jurídicos. Com a actual tutela protege-se um bem jurídico mais definido
que é a liberdade sexual e autodeterminação da pessoa na esfera sexual. Com esta tutela afasta-se a
ideia da proteção de uma qualquer moralidade que visava punir praticas sexuais consideradas desviadas
como a homossexualidade e também a prostituição, veja-se todo o Capítulo IV artigos 181º a 201º.

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As consequências acabadas de assinalar não são pura retórica. A concepção que


considera a função do direito penal como tutela de bens jurídicos tem já no direito
angolano, fundamento constitucional. Veja-se o artigos referidos supra em 5.b.3) e
artigo 41.º da Proposta Geral do Código Penal; de tal forma que uma norma
incriminatória em que não se visualize claramente um bem jurídico definido, deve ser
nula pois deve ser considerada materialmente inconstitucional e, por isso, como tal
declarada pelo Tribunal Constitucional.

6. O Critério da “necessidade” de tutela penal

a) Necessidade de tutela penal e princípio jurídico-constitucional da


proporcionalidade em sentido amplo.

Na concepção teleológico-funcional que se expôs e dentro da perspectiva


racional que se defendeu, não pode haver criminalização se não houver um bem
jurídico a tutelar; contudo o contrário já não é verdadeiro. Com efeito, não se pode
dizer que, sempre que existir um bem jurídico digno de tutela aí deve intervir o direito
penal. O que se acaba de dizer, significa que o conceito material de crime é
essencialmente construído pela noção de bem jurídico. Todavia, essa noção tem que
ser acrescida de um qualquer outro critério para poder legitimar a criminalização.
O critério como já várias vezes se referiu é o da necessidade de tutela
penal.61 A violação de um bem jurídico não é suficiente para que se desencadeie a
intervenção penal. É importante ainda que tal intervenção se mostre absolutamente
indispensável à livre realização da personalidade de cada um na comunidade. Por

61 A propósito da noção de Direito Penal, RODRIGUES, Orlando, Apontamentos de Direito Penal,


Escolar Editora, 2014, pp. 22, nota 1, fala do Princípio da Intervenção Mínima que não é mais
do que o referido Princípio da Necessidade de Tutela Penal. “ É importante referir que mesmo
nesse domínio dos valores ou interesses fundamentais o Direito Penal só realiza a protecção que
os outros ramos de direito não conseguem assegurar. É pois, um direito subsidiário ou de
recurso, dominado pelo princípio da intervenção mínima, segundo no qual o direito penal, dadas
as medidas gravosas que estabelece, deve intervir o mínimo possível isto é, o direito penal só
deve intervir, só deve ser criado, só deve tomar conta de certas situações se isso for por um lado,
necessário e, por outro, eficaz. Desdobra-se assim o princípio da intervenção mínima em dois
outros princípios o da necessidade e da eficácia. Segundo o princípio da necessidade, o legislador
só deve criar direito penal, criminalizar condutas e ameaçá-las com penas, se a protecção dos
bens jurídicos em causa não puder ser assegurada por outros ramos de direito que estabeleçam
medidas menos gravosas. Só nesse caso é necessário a intervenção do direito penal. Mas não
basta que seja necessária a intervenção do direito penal. Para que o legislador crie, diz o

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isso é que o direito penal constitui a ultima ratio da política social, sendo a sua
intervenção de natureza definitivamente subsidiária. 62
Esta limitação da intervenção penal resulta da Constituição e respeita ao
princípio da proporcionalidade em sentido amplo, já referido a propósito das
restrições aos direitos e liberdades fundamentais – que é um dos princípios inerentes
ao Estado de direito. 63 O direito penal, com as suas sanções, utiliza meios muito
gravosos para os direitos liberdades e garantias das pessoas e, por isso, só deve
intervir nos casos em que todos os outros meios se mostrem insuficientes ou
inadequados. Tal como acontecerá nos casos em que a tutela pode ser feita por meios
do direito civil ou disciplinar, por exemplo.
O mesmo acontece quando se pretende prevenir determinados ilícitos, ou seja, sempre
que a criminalização de certos comportamentos se mostre como factor de criação de
mais violações do que aquelas que a criminalização pretende evitar; veja-se os casos
dos chamados crimes sem vítima, como o consumo de droga ou de álcool, a
prostituição, a pornografia. A prevenção e controlo desses comportamentos mostra-se
mais eficaz quando deixada para meios não penais de controlo social. Assim, pode se
afirmar com segurança que a função principal do direito penal e também a essência do
conceito material de crime é a tutela subsidiária (de ultima ratio) de bens jurídicos.

b) A questão das imposições constitucionais implícitas de criminalização

O que se acaba de referir avança mais um passo na questão do relacionamento


entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos. Referiu-se
supra em 5.b.2) que essa é uma relação de mútua referência, no sentido de que todo o
bem jurídico penalmente relevante tem que encontrar uma referência expressa ou
implícita na ordem constitucional dos direitos e deveres fundamentais.
Simplesmente, e em obediência ao critério da necessidade – e
consequentemente da subsidiariedade do direito penal dos bens jurídicos –, já não será

princípio da eficácia, é também preciso que esteja convencido que o direito penal vai ser eficaz,
ou seja, que com a sua criação se vão atingir os objectivos pretendidos pelo legislador”.
62
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 66 ; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, pp. 57 a 59.

63Veja-se a propósito ARAÚJO, Raúl Carlos Vasques, INTRODUÇÃO ao Direito Constitucional


Angolano, CEDP/UAN; 2018, pp 110 a 115.

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verdadeiro dizer-se que não existem imposições jurídico-constitucionais implícitas de


criminalização. Com efeito, onde o legislador constitucional aponte expressamente a
necessidade de intervenção penal, tenha o legislador ordinário de seguir a injunção e
criminalizar os comportamentos respectivos sob pena de inconstitucionalidade (se
bem que o legislador constitucional não deixa de conceder uma margem de liberdade
ao legislador ordinário para na exacta medida determinar a concreta forma de
criminalização, bem como as respectivas sanções com que os comportamentos devem
ser ameaçados e a consequente medida da pena). 64
Já no que se refere aos casos em que tais injunções constitucionais não
existiam de forma expressa, a existência de um valor jurídico-constitucionalmente
reconhecido como integrante de um dever fundamental, não legitima sem mais a
dedução de exigência de criminalização dos comportamentos que violem,
precisamente para que não seja ultrapassado o critério da necessidade; critério que
cabe ao legislador ordinário avaliar e que só em casos extremos poderá ser jurídico-
constitucionalmente verificado. A título de exemplo, se o legislador ordinário
entender sancionar o homicídio doloso apenas com uma sanção jurídico-civil.
A questão das imposições jurídico-constitucionais implícitas de criminalização
tem sido objecto de muita discussão na doutrina e na jurisprudência de muitos países.
De facto, a propósito do aborto, por exemplo, nos países que o não criminalizam e
sugerem a aplicação de meios não penais de política social. Outro aspecto que
também respeita às injunções jurídico-constitucionais implícitas, refere-se ao direito
dos cidadãos à segurança. Haverá ou não na Constituição uma injunção que obrigue o
legislador ordinário a decidir da sua tutela?65

c) O princípio da não intervenção moderada e o movimento da descriminalização

A função do direito penal de tutela de bens jurídicos, o carácter subsidiário


dessa tutela, ligado ao princípio da necessidade, conduzem a uma proposição político-
criminal fundamental que se traduz no seguinte: para que haja um domínio eficaz
do fenómeno da criminalidade dentro de quotas sociais suportáveis é imperioso

64
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 68 ; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 59.
65
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 69 ; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 60.

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que o Estado e o seu aparelho formal de controlo do crime intervenham o menos


possível. O Estado só deve intervir na medida exacta do requerido pelo
asseguramento das condições essenciais ao funcionamento da sociedade. Este é o
princípio da intervenção moderada que passa assim a desempenhar o papel de trave
mestra de todo o novo programa político-criminal.
Resulta daqui para o conceito material de crime que:
a) Devem ser expurgados do conceito material de crime todos os
comportamentos que não acarretem lesão (ou perigo de lesão) para bens
jurídicos claramente definidos; ou que, mesmo que acarretem possam ser
contidos ou controlados por meios não penais de política jurídica ou de
política social não jurídica.
Esta implicação está contida no movimento da descriminalização.
b) Por outro lado, novos processos de criminalização – a designada
neocriminalização – só devem ser aceites como legítimos, onde novos
fenómenos sociais, antes inexistentes, raros ou socialmente pouco
significativos revelem o surgimento de novos bens jurídicos para cuja
protecção é importante fazer intervir a tutela penal em substituição da
anterior estratégia não criminal de controlo social. 66

II. A questão da definição social de crime

Expostas as notas que permitem encontrar um conceito material de crime é,


contudo, necessário salientar que a realidade criminal não resulta apenas do seu
conceito ainda que material, mas da construção social dessa realidade. A realidade
criminal é, em grande medida, resultado da sua definição social operada em última
análise pelas instâncias formais de controlo, quaisquer que sejam – a polícia, o
ministério público, o juiz, o legislador – e mesmo informais como a família, escola,
igreja, vizinhos, etc.
No fundo, a realidade do crime não deriva apenas da origem ontológica ou
ôntica (relativa ao ser) de certos comportamentos. Ela é resultado da “combinação de
determinadas qualidades materiais do comportamentos com o processo de reacção

66
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 70 e 71 ; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, pp. 61 e 62.

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social àquele, conducente à estigmatização dos agentes respectivos como criminosos


ou delinquentes”.67
Becker, fundador do labeling approach, em os Outsiders (1963, p. 9), diria
“são grupos sociais que criam a deviance ao elaborar as normas cuja violação
constitui a deviance e ao aplicar estas normas a pessoas particulares, estigmatizando-
as como marginais”. A combinação referida assume o carácter de um verdadeiro
processo de selecção do crime e do criminoso. A perseguição criminal é selectiva.
Beneficia aqueles que estão em condições de influenciar e dirigir a redução da
complexidade social de certas expressões da vida, e desfavorece aqueles que não se
encontrem nessa situação. Vejam-se os casos de com regularidade se apresentarem ou
de simplesmente não existirem nas estatísticas oficiais da criminalidade, membros de
certos extractos sociais e profissionais e aqueles que constam das listas das instâncias
formais de controlo quer sobre representação – os designados marginais: drogados,
homossexuais, prostitutas, meninos de rua, lavadores de carros, vendedores
ambulantes, etc. – e sub-representados como acontece com os magistrados, políticos,
grandes empresários, etc.
A ideia exposta permite, desde logo, afastar a tese de que o crime é um
fenómeno típico da classe de pessoas marginais, consideradas do ponto de vista da
moral social e subscrevendo a ideia da normalidade e ubiquidade do fenómeno
criminal. Essa ideia não deve, contudo, ser exagerada. Com efeito, o comportamento
criminal tem, de facto, duas componentes irrenunciáveis – o comportamento em si e a
sua definição como crime – pelo que não pode qualquer outra doutrina que a ele se
dirija esquecer essas duas vertentes.
No fundo, e procurando um paradigma integrativo, o conceito material de
crime deve ser “completado pela referência aos processos sociais de selecção,
determinantes em último termo daquilo que é realmente tratado como crime” 68.

67
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 72 ; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 62. Os itálicos são
do autor.

68
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 72 e 73 ; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, pp. 62 a 64.

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TEXTO N.º 5

5.º CAPÍTULO: AS SANÇÕES JURÍDICAS DO COMPORTAMENTO


CRIMINAL: AS PENAS CRIMINAIS

I. O problema dos “fins das penas” criminais

O problema dos fins das penas é na teoria do Direito Penal a discussão em


torno das questões fulcrais do Direito Penal: legitimação, fundamento, justificação e
função de intervenção penal estadual. 69 A questão torna-se fundamental porque o
sentido, o fundamento e as finalidades da pena criminal constituem determinação
indispensável para que se possa decidir como é que a pena deve actuar para que se
cumpra a função do direito penal. É pois necessário conjugar a problemática, fins das
penas, com o conceito material de crime, particularmente com o princípio da
necessidade para que, por aí, se co – determine a função do Direito Penal.
Os fins das penas foi um tema muito discutido ao longo dos anos pela
filosofia, pela dogmática penal e pela teoria do Estado. A sua abordagem foi feita por
três teorias fundamentais: as teorias absolutas, as relativas e as mistas ou unificadoras.

69
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 75 ; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, pp. 65 e 66.

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II. Teorias Absolutas


A pena como instrumento de retribuição

Para as teorias absolutas, a pena tem na sua essência e esgota-se na ideia de


retribuição, expiação (castigo), reparação ou compensação do mal do crime.
Quaisquer outros efeitos laterais, ainda que socialmente relevantes, como a
intimidação da generalidade das pessoas, a neutralização do delinquente ou a sua
reintegração na sociedade – ressocialização – em nada alterariam a natureza da pena.
Ela é apenas a justa paga, pelo mal cometido no passado. É um justo equivalente do
dano provocado pelo facto criminoso ou pela culpa do agente. A medida concreta da
pena que deve ser aplicada ao agente de um determinado facto criminoso só pode ser
encontrada a partir da correspondência entre a pena e o facto, ou entre a pena e a
culpa do agente. Não interferem aqui quaisquer considerações de natureza social
Assim, desde muito cedo a pena foi entendida tanto historicamente como no
sentimento cultural comunitário, como a forma de expiação do mal do crime. 70
A partir daqui, qualquer teoria dos fins das penas não se preocupa com
facto que ocorreu, com a essência e a natureza desse facto. A pena é aplicada porque
o agente pecou – formulação encontrada por Protagoras (entre 485 a.C a 415 a.C).
Esta formulação foi recebida por Platão (entre 427 a.C a 347 a.C.) e transmitida por
Seneca (65 d. C): punitur, quia peccatum est.

II. 1. 1. A concepção da pena acabada de referir encontrou o seu fundamento no


pensamento filosófico no antigo princípio de Talião – “olho por olho, dente por
dente”; na Idade Antiga quando alimentado por representações mitológicas; na
Idade Média em representações que eram já, fundamentalmente, racionalizações
religiosas segundo as quais a realização da justiça constituía um mandamento de Deus
sendo o Juiz encarregado da sua aplicação, já que era visto como o representante da

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justiça divina na Terra. Com a Idade Moderna e Contemporânea, a teoria da


retribuição foi buscar a sua fundamentação à filosofia do idealismo alemão em que se
destacaram as figuras de Kant e Hegel. 71
Kant trouxe para o direito penal o princípio da dignidade do Homem como
fim em si mesmo, como imperativo categórico. O delinquente deve ser punido porque
cometeu o crime, porque é culpado e não porque a sua punição é um bem para ele
próprio ou para a sociedade. O Homem não é um objecto porque a sua dignidade
impede que o seja. A partir destes postulados, Kant veio produzir um impacto pois
defendia uma retribuição assente nas ideias de restabelecimento da ordem
violada, intimidação, segurança, emenda.
Hegel, por seu lado considera o crime como a negação do direito e a
pena como a negação da negação (negação do crime). O crime nega o direito, a
pena nega o crime por isso é a negação da negação que vem reafirmar a validade
do direito. Hegel não aceita a ideia de prevenção pois o Homem deve ser tratado
como um ser humano que tem honra e dignidade.
Para a retribuição o crime é pressuposto e medida da pena. O mal que a
pena faz sofrer ao criminoso deve ser equivalente, adequado ao mal que o delinquente
fez sofrer à sociedade.72

II. 1. 2. Considerações
Durante muito tempo, a fundamentação das teorias absolutas da retribuição
assentou nos termos “compensação” do “mal do crime” e “igualação” do “mal da
pena”. Contudo, e passado o período do princípio de Talião, acabou-se por concluir
que a igualação ao mal da pena não podia ser fáctica, mas deveria ser normativa. Por
outro lado, haveria ainda que se saber se a retribuição assumia um carácter de
reparação de um dano real, de um dano ideal ou se intervinha aí alguma outra

70
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 77 ; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 68.
71
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 78 ; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, pp. 68 e 69.

72 Veja-se ainda, RODRIGUES, Orlando, obra citada, pp. 37 a 40.

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grandeza; finalmente se a reparação ocorria em função do desvalor do facto ou se do


desvalor da culpa do agente.
A discussão acerca desta questão já terminou e conclui-se que a
“compensação” em que a retribuição assenta, só pode ser função da culpa. Pois, se a
doutrina da retribuição se fundamenta em exigências de “justiça”, então cada pessoa
só pode ser tratada segundo a sua culpa. Acresce, que se o homem actua e por isso
deve ser tratado segundo a sua honra e liberdade, também aqui o princípio da culpa
deve presidir todo o direito penal humano, democrático e civilizado: “não há pena
sem culpa e a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa”.
O mérito das doutrinas retributivas absolutas residiu exactamente no
se ter erigido a culpa a princípio absoluto de toda a aplicação da pena e
consequentemente o negar-se determinantemente qualquer pena que violasse a
dignidade da pessoa humana73.

II. 1. 3. Crítica à doutrina retributiva


Não obstante o seu mérito, a doutrina retributiva deve desde logo ser
recusada. Primeiro porque não quer ser uma teoria dos fins das penas uma vez que
considera e trata a pena como entendida independentemente dos seus fins, como
majestade dissociada de fins, no dizer de Maurach. Com efeito, quando se indaga
sobre o fim de uma pena, está-se a questionar os efeitos que ela produz e que são
relevantes na vida da comunidade. Por isso, não pode a questão ser vista apenas como
meramente terminológica.
Em segundo lugar, a doutrina da retribuição choca com a legitimação,
fundamentação e sentido da intervenção penal. Estas só podem derivar da necessidade
de se atribuir ao Estado o direito de proporcionar as condições de existência da
comunidade e a cada cidadão o espaço indispensável para a livre realização da sua
personalidade.

73
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 79; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 69: CORREIA,
Eduardo, Direito Criminal I, p. 45 e ss. e 63 e ss.; RODRIGUES, Anabela Miranda, A Determinação
da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Coimbra Editora, 1995, pp. 152 e ss.; FERREIRA,
António de Cavaleiro, Direito Penal, 1982, p. 299.

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Ora, a realização dessa função não se compadece com ideias de expiação


ou compensação do mal do crime. É já do nosso conhecimento que o Estado
Democrático laico e pluralista em que vivemos não se pode colocar numa situação de
defensor do pecado ou do vício; não pode recorrer a uma pena totalmente dissociada
de fins nem pode ver-se como entidade terrena encarregada da realização da justiça. A
sua função é de defesa dos bens jurídicos. 74 Importa, contudo, realçar que essa
correspondência entre pena e culpa não é biunívoca, ou seja, se toda a pena pressupõe
culpa, nem toda a culpa pressupõe a aplicação de uma pena criminal. De facto, só
reclama pena, aquela culpa que acarrete a necessidade ou careça dela. 75 Só nessa
perpsectiva se pode entender que “a culpa é pressuposto e limite, mas não fundamento
da pena.”

III. Teorias Relativas

III. 1. As teorias relativas são teorias dos fins das penas. Essência: a pena é um mal
para quem a sofre. Mas é um instrumento mundial de política criminal. Por isso não
pode bastar-se com a característica de ser um mal destituído de qualquer sentido
social-positivo. Ela visa alcançar um fim de política criminal que é ou a prevenção
ou a profilaxia criminal. Desta forma, a pena pode ser utilizada como instrumento de
tutela subsidiária de bens jurídicos, próprios da função do direito penal. Contudo, esse
fim de política-criminal que a pena persegue tem que ser historicamente enquadrado e
distingue-se entre as doutrinas da prevenção geral e as da prevenção especial ou
individual.

III. 2. A Pena como instrumento de Prevenção Geral

74
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 79 e 80 ; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 70;
ROXIN, Claus, “Concepção bilateral e concepção unilateral do princípio da culpabilidade” in
Culpabilidad y Prevención en Derecho Penal (tradução de Muñoz Conde, 1981) pp. 187 e ss.;
RODRIGUES, Anabela Miranda, A Determinação ..., pp. 123 e ss.
75
De facto, não está em vigor no ordenamento jurídico penal e processual penal angolano, nem em
termos de direito constituído ou a constituir, o instituto da “dispensa da pena”, que assenta exatamente
no fundamento de não aplicação de uma pena a quem tem culpa. No ordenamento jurídico português,
esse instituto pode ser encontrado no artigo 74.º do Código Penal. A não aplicação da pena deve-se ao
facto de o crime não carecer dela porque não se apresenta qualquer exigência de prevenção.

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As doutrinas da prevenção geral têm como denominador comum, a


concepção que parte da ideia de que a pena é um instrumento político-criminal que
actua (psiquicamente) sobre a generalidade dos membros da comunidade, afastando-
os da prática de crimes. A forma de actuação é pela ameaça que através da lei a pena
constitui, a realidade que representa a aplicação judicial da pena e a efectividade da
sua execução.
A actuação estadual sobre a generalidade das pessoas, deve ser entendida
de uma dupla perspectiva: a) a pena pode ser concebida como meio de prevenção
geral negativa ou de intimidação. Com efeito, a pena serve para intimidar as outras
pessoas porque provoca um mal que faz sofrer a pessoa do delinquente; por esse
facto, essas pessoas são conduzidas a não cometer factos criminosos. Por outro lado,
b) a pena pode também ser entendida como meio de prevenção geral positiva ou de
integração. Nesse sentido, o Estado serve-se da pena para manter e reforçar a
confiança da comunidade na validade e vigência das normas que tutelam bens
jurídicos e, consequentemente, no ordenamento jurídico-penal. Perante a comunidade,
a pena revela a inquebrantabilidade da ordem jurídica.

III. 2. 1. A primeira formulação acabada de uma doutrina da prevenção geral deveu-


se a um dos mais autênticos fundadores do direito penal moderno – Paul Johann
Anselm Von Feuerback (1801). Este autor sustentou a tese da coacção psicológica
segundo a qual a primeira finalidade da pena “seria a de criar no espírito dos
potências criminosos um contra-motivo, suficientemente forte para em definitivo os
afastar da prática do crime.” Na alma do potencial criminoso degladiam-se
motivações que conduzem ao crime e contra-motivações que resultam do
conhecimento do mal da pena. Contudo, é importante que a pena seja suficientemente
poderosa para vencer a motivação para o crime, pois só assim pode contribuir
eficazmente para a prevenção.
A doutrina da coacção psicológica encontrou apoio nas doutrinas
psicológica da profundidade e nas doutrinas psicanalíticas – particularmente em Freud
(1856-1940). Na linha dessas doutrinas, as pessoas dominam as suas tendências
criminosas, quando reconhecem que quem se decida pela via do crime sofre mais
danos pessoais do que vantagens; defendem assim, que a pena tem como função

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primordial a legitimação. Por outro lado, essas doutrinas são ainda confirmadas
quando se chega à conclusão de que a pena tem como função principal a legitimação
da ordem vigente e a manutenção da estabilidade e paz jurídicas. 76
Uma perspectiva mais recente das doutrinas da prevenção geral é dada
pelas actuais teorias sistémico-sociais. Essas teorias, por um lado, reafirmam a função
de tutela subsidiária de bens jurídicos, que cabe ao direito penal para além de
encontrarem na pena, a legitimação dos seus instrumentos específicos. Por outro lado,
reforçam a redução da função da pena no sistema social à expressão simbólica de
reafirmação contra-fáctica de fidelidade devida às normas jurídicas de um dado
ordenamento positivo.77

III. 3. Contribuição das Doutrinas de Prevenção Geral


Contrariamente às doutrinas da retribuição, as doutrinas da prevenção geral
trouxeram para a teoria dos fins das penas, um contributo muito positivo. Desde logo,
porque a elas se ligou directa e imediatamente a ideia da função do direito penal de
tutela subsidiária e de ultima ratio de bens jurídicos. Entendida a função do direito
penal, exige-se que a pena actue de forma preventiva sobre a generalidade dos
membros da comunidade tanto no momento da ameaça abstracta como na aplicação
concreta ou sua execução.
Mas critica-se a prevenção geral argumentando- se que os índices de
criminalidade registada ou conhecida pela polícia e não naturalmente os de
criminalidade real – porque continuam a ser profundamente desconhecidos – mostram
que a função de prevenção geral é inefectiva; mas é indiscutível que uma tal
finalidade se cumpre relativamente à maioria esmagadora da população. De resto, o
argumento só poderia servir e provar alguma coisa contra a efectividade da pena e não
contra a finalidade que é assinalada.

III. 3. 1. Crítica às Doutrinas da Prevenção Geral

76
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 84 e 85 ; DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, O Homem delinquente
e a sociedade criminógena”, pp. 178 e ss.; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina
Penal, 2001, pp.75 e ss. Também sobre as Doutrinas da Prevenção Geral, RODRIGUES, Orlando, ob.
Cit, pp. 40, 41.
77
DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 85; RODRIGUES, Anabela
Miranda, A determinação, pp. 254 e ss.

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O grande argumento que se apresenta contra as doutrinas da prevenção


geral é o que já se apresentou a propósito de todas as doutrinas da prevenção: por
serem comandadas apenas por considerações de índole pragmática e funcional, fazem
da pena um instrumento que viola de forma inadmissível a eminente dignidade da
pessoa humana.
Com efeito, o argumento teorético que se utiliza para criticar as doutrinas
da prevenção geral põe a claro o facto de elas serem apresentadas apenas no seu cariz
negativo, ou seja, como forma de intimidação da generalidade dos cidadãos; daqui
resulta não se poder determinar o quantum de pena necessário para intimidar a
generalidade das pessoas; por outro lado, porque não logra atingir a irradicação do
crime, chega-se, muitas vezes, a aplicarem-se penas cada vez mais severas, mais
longas e, consequentemente, mais desumanas, de tal modo que o direito penal acaba
por se transformar num direito penal do terror como historicamente já aconteceu e,
assim, indiscutivelmente mais violador da dignidade humana.78
Diferentemente se passarão as coisas, se a prevenção se perspectivar numa
vertente positiva, como prevenção de integração, de tutela da confiança geral na
validade e vigência das normas do ordenamento jurídico, relacionada com a protecção
dos bens jurídicos. A seguir-se esse critério, encontrar-se-á uma pena não
propriamente uma pena exacta mas uma moldura que se apresentará como justa e
adequada à culpa do delinquente. Por outro lado, também aqui a medida concreta da
pena a aplicar ao delinquente não pode deixar de ter como limite inultrapassável a
culpa, mesmo quando seja o resultado de considerações de prevenção geral positiva.
Assim sendo, esses limites inscrevem-se justamente em nome da inviolabilidade da
dignidade pessoal. Esta posição de Figueiredo Dias e Costa Andrade é contrária à
defendida pela generalidade da doutrina alemã.
Para esta, a medida da pena deve ser dada essencialmente através da
medida da culpa; mas a culpa não se oferece ao aplicador da pena como uma medida
exacta mas como uma moldura de culpa que oscila no quadro da moldura geral entre
um máximo e um mínimo. Relativamente às questões de prevenção, elas actuam
dentro dessa moldura da culpa e, dentre as diversas penas que correspondem à culpa,

78
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 86 e 87 ; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, p.

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deve ser escolhida a que se mostre mais adequada a operar a socialização do


delinquente.79
Numa linha um tanto modificativa mas que não altera o núcleo essencial da
doutrina alemã, Roxin sustenta que em certos casos especiais “a força das
considerações de prevenção especial de socialização conduz a quebrar o próprio
limite mínimo da moldura da culpa, permitindo que a pena concreta venha a situar-se
abaixo daquele limite: em casos tais, a pena concreta deixaria já de ser adequada à
culpa e encontrar-se- ia justificada por razões imperiosas e de outro modo não
realizáveis, de socialização. 80
Anabela Rodrigues, da doutrina portuguesa, critica esta posição de Roxin,
considerando que se trata de uma “versão disfarçada de retribuição”. 81 Deste ponto de
vista, a doutrina da prevenção geral passa a oferecer um entendimento racional e
político-criminalmente fundado ao problema dos fins das penas e de muitos outros da
Dogmática penal para os quais não se encontrou ainda alternativa viável. 82

III. 3. 2. A pena como instrumento de prevenção especial ou individual


Para as doutrinas de prevenção especial ou individual, a pena é um
instrumento de actuação preventiva sobre o próprio delinquente, procurando evitar
que ele no futuro cometa novos crimes. Nesse sentido, a pena tem uma finalidade de
prevenção da reincidência, no dizer de Eser. Se o ponto de partida é unânime, já o
momento da prática encontra divergências entre os seus defensores pois coloca-se a
seguinte questão: como é que a pena vai cumprir aquela sua finalidade?
As doutrinas neste particular dividem-se entre aquelas que defendem uma prevenção
especial negativa ou de inocuização e as que sustentam uma prevenção especial
positiva ou de socialização.

a) A prevenção especial negativa ou de inocuização

79
DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime,
editorial Notícias, Lisboa, 1993, p. 224; na doutrina portuguesa, entre outros, CORREIA, Eduardo,
Direito Criminal II, pp. 62 e ss.; FERREIRA, Manuel de Cavaleiro, Direito Penal, 1989, pp. 103 e ss.;
GONÇALVES, Maia, Código Penal Anotado, anotação ao artigo 72.º.
80
ROXIN, Claus, “Culpabilidade e Prevenção em Direito Penal”, 1981, pp. 104 e ss.
81
RODRIGUES, Anabela Miranda, A determinação da Pena Privativa de Liberdade”, 1995, pp.
82
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 87 a 89 ; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas básicos da Doutrina Penal, 2001, p.

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• A prevenção deve dirigir-se apenas à intimidação individual do delinquente,


pois a sua “correcção” seria uma utopia. Assim, a pena procuraria atemorizar
o delinquente a tal ponto que o levasse a não repetir no futuro a prática de
crimes.
• A prevenção especial deveria lograr alcançar um efeito de pura defesa social
através da separação ou segregação do delinquente conseguindo-se assim a
necessária neutralização da sua perigosidade social.

b) A prevenção especial positiva ou de socialização


• A prevenção especial deve lograr a reforma interior (moral) do delinquente,
uma autêntica metanoia, ou seja, a emenda do criminoso conseguida através
da sua adesão íntima aos valores que conformam a ordem jurídica.
• A prevenção especial não se deverá dirigir propriamente a uma emenda moral
do criminoso, mas a um verdadeiro tratamento das suas tendências individuais
que conduzem ao crime, da mesma forma como se, se tratasse um doente
segundo um modelo clínico.
• A prevenção especial deveria atender ao modo de ser do delinquente, as suas
concepções, sobre a vida e sobre o mundo, a sua posição face aos juízos de
valor do ordenamento jurídico e assim criarem-se as condições para que no
futuro ele possa continuar a sua vida sem cometer crimes.

As doutrinas da prevenção especial-individual, nesta última vertente


exposta, visam a reinserção social do delinquente. 83 A grande contribuição da
prevenção especial, sobretudo quando assume a forma de prevenção especial positiva
ou de socialização, revela uma particular sintonia com a função de tutela subsidiária

83
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 89 . As doutrinas da prevenção especial segundo a doutrina penal estrangeira afirmaram-se na
segunda metade do séc. XIX por força da escola positivista sociológica italiana (Ferri, 1856-1929) e
alemã (Liszt, 1851-1919). Contudo, tanto em Portugal como em Espanha, a época histórica em que se
situa o surgimento das doutrinas da prevenção especial é anterior a essa data e encontra-se nas teses
que defenderam a escola correccionalista. Teses que convergiam na ideia de que todo o homem é, por
natureza, susceptível de ser corrigido; assim, a pena seria antes destinada a operar a correcção do
delinquente, a única e melhor forma de evitar que ele volte e continue a cometer crimes no futuro.
Estas teses tiveram a sua origem ideológica em oposição à filosofia de Krause, e a filosofia jurídico-
penal de Roeder, às teses de Kant sobre o conceito de direito e, mais vivamente saudada em Portugal
pela filosofia jurídica de Vicente Ferrer Neto Paiva. Ainda no direito português, os penalistas Levy
Maria Jordão (1831-1876) e Ayres de Gouvêa (1828-1916) fizeram dessa concepção básica o seu
estandarte que esteve na base de muitas inovações pioneiras do direito penal português.

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de bens jurídicos que afinal se pretende, quando a aplicação da pena ao delinquente


visa evitar a reincidência.
Também se deve considerar que o Estado não tem legitimidade para infligir
ao delinquente uma pena apenas como um mal, senão quando esse mal incorpora um
carácter social positivo, mesmo na defesa social, nas situações em que a socialização
se revela inalcançável mas os interesses de segurança da generalidade dos cidadãos
prevaleçam notoriamente sobre o mal que a aplicação da pena ao delinquente
representa; finalmente é importante, ainda, considerar que o Estado tem a obrigação
de apoiar aqueles que se encontrem em situação social difícil e necessitem de
reinserção.

Crítica às doutrinas da prevenção especial


Desde logo a primeira crítica às doutrinas da prevenção especial dirige-se à
forma e sentido diversificados que assumem:
• nega-se que a prevenção possa ser um meio de correcção ou emenda moral do
delinquente;
• o paradigma médico, sobretudo quando ele aparece como tratamento coactivo
das inclinações e tendências do delinquente para o crime. A crítica aqui vai no
sentido de que o Estado não tem legitimidade para coactivamente infligir
tratamentos ao delinquente já que isso significaria uma violação da liberdade
de autodeterminação do delinquente e consequentemente, de princípios
constitucionais imperativos como o da preservação da eminente dignidade
pessoal. Vejam-se os artigos 1.º a 31.º da CRA, mais precisamente nos artigos
30º e 31º.
• O pensamento da prevenção especial não pode assumir-se como finalidade
única da pena pois, a ser assim, estar-se-ia a concordar com a pena de duração
absolutamente indeterminada, aplicável enquanto persistisse a situação de
perigosidade do delinquente. Esta ideia, por sua vez, está ligada à ideia de
“incorrigibilidade” de certos delinquentes, que levaria a aplicação a pequenos
delitos de penas, por exemplo de separação de inocuação, de prisão perpétua
ou mesmo à pena de morte, quando se verificasse a repetição por virtude de
uma certa tendência incontrolável do delinquente (ex.: o pequeno burlão, o
pequeno ratoneiro).

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• Finalmente, nas situações em que a socialização se mostra desnecessária


porque o próprio agente dele não carece. Certo, embora, que não sejam muitos
os casos em que esta situação se coloca, mas não há dúvidas de que existirão.
A afirmar que o pensamento da prevenção geral positiva não pode ser visto
como solução integral do problema dos fins das penas.

IV. Teorias Mistas ou Unificadoras

Nas últimas décadas, a doutrina portuguesa, procurou encontrar uma teoria


dos fins das penas que fosse a combinação sob diversos pontos de vista das doutrinas
da retribuição, da prevenção geral e da prevenção especial. 84 A ideia base dessas
teorias mistas assenta no seguinte: a pena é na sua essência, retribuição da culpa (no
momento da sua ameaça abstracta) dirigindo-se à ressocialização do agente no
momento da execução efectiva. No fundo, a pena visaria predominantemente fins de
prevenção especial.
O que se pretende, com as teorias mistas é chamar à atenção para o
facto de que o problema dos fins das penas não se resolve com o recurso a apenas
uma das doutrinas expostas. De resto, resolver o problema dos fins das penas não é
resolver a questão do seu conteúdo e medida concretos a aplicar num certo processo
penal. Mas o que se acaba de dizer deve permitir concluir que também as teorias
mistas ou unificadoras não resolvem de forma definitiva, legítima e correcta, o
problema dos fins das penas.
Com efeito, a ideia de retribuição, enquanto ideia absoluta, sobrepõe-
se sobre doutrinas preventivas, sendo que continuam válidas as objecções feitas a
propósito das doutrinas absolutas. Quando se misturam doutrinas absolutas com
doutrinas relativas, fica-se sem se saber qual o fundamento teórico e a razão da
legitimação da intervenção da pena. Tanto o fundamento como a legitimação
assentam em concepções diferentes do direito de punir e consequentemente da
legitimação da intervenção penal estadual. 85

84
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 93; CORREIA, Eduardo, Direito Criminal I, pp. 52 e ss. Como leitura complementar, ver
RODRIGUES, Orlando, idem, pp. 41, 42 e 43.
85
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 94.

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TEXTO N.º 6

FINALIDADES E LIMITES DAS PENAS CRIMINAIS

1. A natureza exclusivamente preventiva das finalidades das penas


Na opinião de Figueiredo Dias, a pena só pode prosseguir fins de prevenção. Seja de
prevenção geral positiva ou negativa, seja de prevenção especial positiva ou negativa.
Nunca de retribuição. O fundamento do direito penal assenta na necessidade de se
subtrair da autonomia e disponibilidade de cada pessoa o mínimo dos seus direitos,
liberdades e garantias. Aqueles que sejam os indispensáveis ao funcionamento sem
entraves da sociedade, a preservação dos bens jurídicos essenciais, permitindo assim a
realização o mais livre possível da personalidade de cada um, enquanto pessoa e
enquanto membro da comunidade. Entendida nesse sentido, a pena não pode ter outra
finalidade que não seja de prevenção contra a prática de crimes no futuro.
Simplesmente, não se pode assinalar à pena finalidades só de prevenção geral
ou só de prevenção especial. Há toda uma necessidade de se combinar as duas
finalidades, embora, por vezes, essa combinação se mostre conflituante. Por outro
lado, há que saber como é que se devem comportar as duas espécies de finalidades

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aquando da decisão pelo juiz do quantum exacto da medida “concreta” da pena ou


“judicial” ou ainda rectior et simpliciter ( pura e simplesmente ) de medida da pena.
A doutrina mais recente entende, por isso, que o problema do “conflito dos fins das
penas” é no fundo o problema do “modelo de medida da pena” e inversamente. 86

2. Ponto de partida: as exigências de prevenção geral positiva ou de


integração
A finalidade primeira visada pela pena há-de ser a tutela necessária de bens
jurídicos no caso concreto. Mas a determinação da medida da pena há de também
assentar nessa ideia de tutela. Trata-se de uma tutela não retrospectiva, mas
prospectiva, ou seja, relativamente a futuros crimes e sobretudo à confiança e a
expectativa da comunidade na validade da norma violada. Em síntese, a finalidade
primária da pena é o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo
crime. Esta finalidade cobre a ideia de prevenção, de integração e, por outro lado, dá
conteúdo ao princípio da necessidade da pena, constitucionalmente previsto.
Com efeito, coube a Jakobs a formulação do princípio que já se devia ao
pensamento de Luhman, segundo o qual a finalidade primária da pena reside na
estabilização contra fáctica das expectativas na validade da norma violada.
Simplesmente, para Jakobs, a função estabilizadora da pena não assentava na defesa
de bens jurídicos porque, para este autor, a sociedade “não era nenhuma instância para
conservação e muito menos para maximização de bens”. A ideia da estabilização das
expectativas da comunidade traduz, na opinião de Figueiredo Dias e Costa Andrade
uma exasperada normatização. Se entendida da perspectiva de Jakobs, implica um
verdadeiro e perigoso resvalamento da pena e do direito penal em direcção a uma
função puramente simbólica. Entendem aqueles autores que a função social primária
do direito penal é, na verdade, a tutela de bens jurídicos e que a ideia de estabilização
das expectativas não é mais do que uma forma de tradução daquela ideia essencial.
Esta concepção da pena pode chamar-se um “realismo” ou mesmo um “sociologismo”
axiológico.
O afirmar-se que a prevenção geral positiva ou de integração constitui uma
finalidade primordial da pena e um ponto de partida para a resolução de eventuais
conflitos que se apresentem entre as diferentes finalidades preventivas, significa ter-se

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a convicção de que existe uma medida óptima de tutela de bens jurídicos e das
expectativas comunitárias que a pena se propõe alcançar; medida que, pelo principio
da necessidade não pode ser excedida por considerações de prevenção especial
derivadas de qualquer perigosidade do agente.
É verdade, que essa medida óptima de prevenção geral positiva não oferece ao
juiz o quantum exacto da pena porque abaixo desse ponto óptimo, existirão outros em
que a tutela é ainda efectiva e a pena não perdeu ainda a sua função primordial de
tutela de bens jurídicos. Assim, para Figueiredo Dias e Costa Andrade é a
prevenção geral positiva e não a culpa que fornece a moldura de prevenção em
cujos limites podem e devem actuar as considerações de prevenção especial.
Fica assim, no entender daqueles autores, deslindada uma das questões mais
discutidas a propósito do papel da prevenção geral na doutrina dos fins das penas.
Com efeito, pergunta-se se seria lícita uma elevação da pena em nome de exigências
de prevenção geral negativa ou de intimidação da generalidade das pessoas. Esta é,
sem dúvida, um efeito a considerar. Simplesmente não o efeito primário, pois este é o
de tutela de bens jurídicos.

3. Ponto de chegada: as exigências da prevenção especial, nomeadamente da


prevenção especial positiva ou de socialização.

Dentro dos limites da prevenção geral positiva ou de integração, entre aquilo


que se considera o óptimo e que a comunidade admite como susceptível para defesa
da ordem jurídica é que devem actuar os pontos de vista da prevenção especial de
modo a determinarem em última instância a medida da pena. Para tal, qualquer das
funções da prevenção especial negativa de intimidação ou inocuização e ou positiva
de socialização é relevante. Uma vez que a socialização constitui o vector mais
importante do pensamento da prevenção especial positiva, a medida de socialização
constituirá, naturalmente o critério decisivo das exigências de prevenção especial.
Mas esse critério só é chamado a actuar se o agente se mostrar carente de advertência
e a sua medida baixará até ao limite mínimo da “moldura da prevenção” ou mesmo
que ela chegue a coincidir com essa moldura.

86
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 114 e 115; RODRIGUES, Anabela Miranda, A determinação ..., 1995, pp. 44 e ss.

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O critério da carência de socialização tem levantado muita discussão na


doutrina, sobretudo em matéria de criminalidade económica do white-color crime
(Sutherland, 1961). Considera-se que o “colarinho branco” não carece de socialização
porque é um indivíduo económico-socialmente estável, tem um modo de vida
respeitável, uma estabilidade comunitária. Simplesmente, essa argumentação falha
porque a ela subjaz um errado entendimento do que seja a socialização, da perspectiva
da prevenção especial. Também o crime económico, como a fraude fiscal, o
contrabando, etc., revelam um defeito de socialização do delinquente, por isso, o
Estado, está relativamente a essas situações, obrigado a tomar as medidas necessárias
para evitar a reincidência. Este posicionamento já não se verificará relativamente
àqueles casos situacionais ou ocasionais87.
Naqueles casos em que alguns autores chamam de incorrigibilidade, em que
não há esperanças de socialização do agente, fica em aberto a possibilidade de
intimidação individual ou de inocuização. Aqui, as medidas de segurança mostram-se,
sem dúvida, adequadas a servir essa prevenção especial.

4. A culpa como limite inultrapassável da pena

É um facto que a retribuição não trouxe para a doutrina dos fins das penas
nenhuma contribuição quer quanto ao seu conteúdo, como quanto à sua história.
Porém, não se lhe pode negar o grande mérito de ter posto em evidência a
essencialidade do princípio da culpa e do significado desse princípio para o problema
dos fins das penas. Com efeito, o princípio segundo o qual “não há pena sem culpa e a
medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa” definiu a verdadeira função
da culpa no sistema punitivo.
A culpa desempenha no sistema uma função de proibição do excesso. Não
sendo, embora, o fundamento da pena, ela é contudo o seu limite inultrapassável,
quaisquer que sejam as exigências de prevenção geral positiva de integração ou
negativa de intimidação, especial positiva de socialização ou negativa de inocuização.

87
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 118 e 119; DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito Penal Económico” in Centro de Estudos
Judiciários, Ciclo de Estudos, Coimbra, 1985, pp. 36 e ss.

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Inscrita na vertente liberal do Estado de Direito, a função da culpa é estabelecer “o


máximo da pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da
pessoa humana e da garantia do desenvolvimento da sua personalidade” 88.

Conclusão
Em conclusão, a teoria da pena que é defendida no presente texto pode resumir-se
nos seguintes pontos que são, também, definidos por Anabela Rodrigues 89:
1. Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial.
2. A pena concreta é limitada e o seu máximo é inultrapassável pela medida da
culpa.
3. Dentro desse limite máximo, a pena é determinada no quadro de uma moldura
de prevenção geral de integração. O limite superior dessa moldura é dado
pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos enquanto que o limite mínimo
é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.
4. Ainda dentro dessa moldura de prevenção geral de integração, a medida da
pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra
positiva ou de socialização e só excepcionalmente negativa de intimidação ou
segurança individual.

O programa político-criminal que daqui se pode retirar, decorre directamente


do artigo 57º da CRA. Por outro lado e em termos de direito a constituir, no número 1
do artigo 40.º do Projecto de Novo Código Penal da República de Angola,
expressamente se declara que “... a aplicação de penas e das medidas de segurança
visa a protecção de bens jurídicos essenciais à subsistência da comunidade e a
reintegração do agente na sociedade” ; o número 1 do artigo 42º estabelece que “ A
culpa é pressuposto irrenunciável de aplicação de qualquer pena”, para no nº3
também deste artigo, estabelecer-se que “ em caso algum a pena pode ultrapassar a
medida da culpa..”.

5. A ESTRUTURA DA NORMA PENAL

88
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 120; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas Básicos, 2001, pp. 109 e 110.
89
RODRIGUES, Anabela Miranda, A determinação ..., 1995, pp. 152 e ss.

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5.1. As Normas Incriminadoras

As normas penais incriminadoras, têm uma estrutura que mostra bem o caracter
imperativo e sancionador do direito penal. Contudo, antes de nos referirmos às
característica dessas normas, importa salientar que, para além desse tipo, o direito
penal tem outro tipo de normas que não têm caracter sancionador. Para melhor
compreensão dessa distinção, é importante olhar para a estrutura do Código Penal. Ele
contém uma parte geral, artigos 1º a 129º do Código Penal de 1886 (ainda em vigor) e
artigos 1º a 146º do Projeto de Novo Código Penal. Estas normas não são
incriminadoras. Algumas estabelecem conceitos, como o artigo 1º do CP 1886, e
artigos 19º e 20º do Projecto de Novo CP, princípios estruturantes de direito penal
artigo 5º do CP 1886, artigo 1º do Projecto de Novo CP.
As normas incriminadoras, como o conceito diz, são aquelas que qualificam os
comportamentos como crime e estabelecem a correspondente consequência jurídica
que, à luz do CP de 1886, pode ser de prisão e multa,90 e do Projecto de Novo CP, de
prisão ou multa 91 . “As normas penais incriminadoras desdobram-se em dois

90 A distinção é relevante, porque nos termos do CP de 1886, ao condenado pode ser aplicada em
simultâneo uma pena de prisão e uma pena de multa, veja-se artigo 290º que tem como epígrafe
Violação de Segredo Profissional. “Será condenado a prisão até seis meses e multa
correspondente o funcionário : 1º que revelar segredo de que só tiver conhecimento ou for
depositário, em razão do exercício do seu emprego...”. Quando o artigo refere multa
correspondente, significa que, sendo ao condenado aplicada uma pena de 3 meses de prisão, ele
terá também de pagar três meses de multa. E porque a multa é estabelecida por quantia
monetária calculada por dia, veja-se artigo 63º , Redacção do Decreto –Lei nº 7/00 de 3 de
Novembro no CP 1886, o condenado cumprirá uma pena de 3 meses de prisão e durante esses
três meses pagará ainda, por dia, a quantia que a Sentença determinar.
91 MARCELO CAETANO, História do Direito Português ( Sécs. XII-XVI), Verbo, 1ª edição 1981, 4ª
edição 2000, pp. 248 e ss. A raiz histórica da pena de multa, vem do tempo da vingança, como
forma ou primeira fase da repressão criminal. Nesta fase, o ofendido ou os seus parentes
retribuíam o mal recebido, por um mal equivalente. “ Se o acusado era considerado homicida
passava a inimigo manifesto ou conhecido e seguiam-se então as consequências, que eram
principalmente três: 1º ., tinha de pagar a calumnia (coima) ou multa criminal , devida ao rei ou
ao senhor da terra e às vezes também aos ofendidos....” No sistema de justiça da época, justiça
privada que corresponde já a uma fase de evolução, do período da vingança privada, fazia parte a
composição, que era um espécie de acordo celebrado entre as duas partes inimigas mediante a
reparação dada directamente pelo ofensor ao ofendido, que no português da época se chamava,
corregimento da ofensa. . Essa composição tinha lugar obrigatoriamente nos delitos de menos
importância. ...” Contudo “ não se deve confundir a multa ( calumnia ou coima) que os forais
mandavam pagar com a composição. A multa era devida houvesse ou não composição, e tanto
nos homicídios como noutros crimes..” mas, por razões de política criminal, a multa surgiu no
sistema sancionatório, como pena criminal dirigida a aplicar ao condenado, e não apenas como
um mero “direito de crédito do Estado”, a partir de finais do séc. XIX , para superar a crise em
que caíram as penas de prisão de curta duração. Veja-se para mais desenvolvimentos, DIAS, Jorge
de Figueiredo, Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, Notícias, Editorial,
1ª edição Outubro de 1993, pp. 115. Interessa, contudo, trazer a razão porque hoje o Projecto de

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preceitos distintos: um preceito penal primário que afirma um valor, impondo ou


proibindo uma conduta . Artigo 349º do CP 1886 “(Homicídio voluntário simples)
Qualquer pessoa, que voluntariamente matar outra...” e um preceito secundárioN, o
segundo, que estabelece uma sanção ou pena para quem não cumprir o preceito
primário e, pelo contrário o violar “ será punida com prisão maior de dezasseis a vinte
anos . ...” O preceito primário exprime o aspecto imperativo da norma penal,
enquanto o preceito secundário exprime o aspecto sancionador.
No preceito penal primário descreve-se o comportamento lesivo dos
interesses que o Estado pretende preservar, isto é, o comportamento proibido. Este
comportamento descrito sob a forma de modelo abstracto- o tipo- é que define uma
infracção penal. No preceito penal secundário, estabelece-se a reacção que o Estado
organiza contra aqueles que desobedecendo ao imperativo da lei, levarem a cabo a
conduta proibida desenhada no preceito primário. Assim, ao preceito penal primário
corresponde a previsão e ao secundário a estatuição.92

5.2.As Penas no Projecto de Novo Código Penal


5.2.1. Os artigos 39º a 100º, tratam a matéria relativa às penas, enquanto
consequências jurídicas do crime. O Projecto prevê penas principais, Prisão e Multa;
penas de substituição, Multa, Prisão em fins- de- semana, Prestação de Trabalho a
favor da comunidade, Suspensão da execução da pena de prisão, Admoestação, Penas
acessórias , Proibição de exercício de funções, Suspensão do exercício de função,
Proibição de conduzir veículos motorizados, Expulsão do território nacional.

Novo Código Penal da República de Angola, apresenta a pena de multa como alternativa à pena
de prisão. Embora essa solução venha já do Código de 1886, não obstante não tenha
propriamente conseguido vingar, deixando para a pena de multa um papel “somente marginal e
subsidiário”, razões de política criminal ligadas ao tratamento da pequena e da média
criminalidade, Ver para mais desenvolvimentos DIAS , Jorge de Figueiredo , Direito Penal
Português, pp. 117 e ss., trouxeram a pena de multa para a posição que hoje o Projecto de Novo
Código Penal de Angola lhe concede. Veja-se artigo 205º “ (Contágio de doença sexualmente
transmissível) 1. Quem, sabendo que é portador de doença, viral ou bacteriana, sexualmente
transmissível susceptível de pôr em perigo a vida, mantiver relações sexuais com outra pessoa
sem previamente a informar desse facto é punido com pena de prisão até 2 anos, quer dizer de 3
meses a 2 anos ou com a de multa até 240 dias.” Temos aqui uma solução em que a pena de multa
é verdadeiramente utilizada como alternativa à prisão. Trata-se de um crime de perigo abstracto.

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TEXTO N.º 793

CAPÍTULO VI

6.º CAPÍTULO: AS SANÇÕES JURÍDICAS DO COMPORTAMENTO


CRIMINAL: AS MEDIDAS DE SEGURANÇA

6. As medidas de segurança no sistema sancionatório Angolano


6.1.Considerações gerais

São dois polos em que o sistema das sanções do direito penal angolano
assenta: o das penas e o das medidas de segurança. As penas têm como pressuposto e
limite irrenunciável a culpa, enquanto que as medidas de segurança, têm na base a
perigosidade (individual) do delinquente. Assim entendido o sistema ele apresenta-se
como dualista ou de duplo binário.94
Foram, o Projecto de Código Penal suíço de Carl Stoos (1893) e o “Contra-
projecto” de Liszt e Kahls (1911) que trouxeram para a dogmática a consciência da
existência de um tipo de sanções diferente das penas. Contudo, antes disso, já
Despines e Lombroso e mais tarde Ferri, defenderam a necessidade de um sistema de

92 Por todos, RODRIGUES, Orlando, ob cit, pp. 27 e 28. Para efeitos de estudo das penas, das
medidas de segurança previstas no CP de 1886, pp. 28 a 30. Para as medidas sancionatórias sem
natureza penal vejam-se pp. 30 e 31.
93
De importante consulta: RODRIGUES, Orlando Ferreira, Direito Penal I, Fasc. I.
94
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 123.

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medidas de defesa social que substituísse o anterior sistema. Mas isto não significa
que antes não existissem medidas que na linguagem do sistema mais moderno
pudessem ser reconduzidas à categoria de medidas de segurança. Significa sim que só
a partir dos referidos estudos, se ganhou maior consciência da necessidade de o
sistema de penas ser integrado por um outro de medidas que do ponto de vista
político-criminal apresentassem uma expressão diferente da das penas.
A aplicação de medidas de segurança mostrou-se, desde logo, indispensável
para o tratamento dos inimputáveis ou incapazes de culpa (menores de tenra idade,
um esquizofrénico, um oligofrénico pesado). Nestes casos, se o facto praticado e a
personalidade do agente mostrarem a existência de uma grave perigosidade, não pode
o sistema sancionatório penal deixar de intervir, sob pena de se deixar de cumprir uma
importante tarefa de defesa social que a política criminal impõe. Outra razão que
também está na base da indispensabilidade das medidas de segurança relaciona-se
com os imputáveis. Com efeito, estes são capazes de culpa; porém, pode acontecer
que os princípios que presidem à culpa e a medida da pena se revelem insuficientes
para atender à especial perigosidade, resultante das particulares circunstâncias em que
o facto ocorreu ou/e mesmo da personalidade do agente. Nestes casos, pode ficar a
ideia de por um lado se atender à culpa pela aplicação de uma pena, mas haver de se
fazer recurso a uma medida de segurança por virtude da particular perigosidade do
agente.95

6.2. Finalidades e legitimação das medidas de segurança

6.2.1. O Problema das finalidades


Finalidade prevalente: a prevenção especial
As medidas de segurança visam uma finalidade genérica de prevenção.
Pretende-se evitar que o agente volte, no futuro, a cometer factos ilícitos típicos,
garantindo-se, assim, a segurança da comunidade. Trata-se de uma finalidade de
prevenção especial ou individual. A partir daqui, a prevenção especial adquire uma
dupla função: a) uma função de segurança; b) uma função de socialização
Todavia é legítimo perguntar-se qual delas deve ser a primária. À primeira
vista, a função de segurança parece dever ter primazia já porque é a “protecção

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específica dos interesses de segurança da vida comunitária que aqui está, de uma
forma geral, em questão. 96 Contudo, a ideia é de socialização que deve presidir a
aplicação das medidas de segurança, não só porque princípios de humanidade e
socialidade dominam a constituição político-crimina, como a segurança só deverá
constituir finalidade autónoma das medidas de segurança, lá onde efectivamente a
socialização não se mostre possível.
Importante é ressaltar que, embora se considere a função de socialização
primária, não deverá entender-se que essa função se justifica só por si. É que as
medidas de segurança são aplicadas pela necessidade de prevenção da prática futura
de factos ilícitos típicos. Isto significa, que para se aplicar a medida de segurança e
consequentemente operar-se a socialização é necessário que antes de tudo, o agente
cometa um facto qualificado pela lei como ilícito-típico que se mostre como sintoma
que reclame socialização. Por outro lado, é ainda indispensável que a perigosidade do
agente se verifique, ou seja, que haja perigo de no futuro ele voltar a cometer factos
ilícitos típicos.97

6.2.2. Finalidade secundária: a prevenção geral

Se a finalidade de prevenção especial é a que justifica a aplicação ao agente de


medidas de segurança, qual será então o papel da prevenção geral? Inicialmente
houve quem defendesse que a prevenção geral não teria qualquer autonomia no
quadro das medidas de segurança. Com efeito, defendem essas opiniões que a
interdição de profissão, actividades ou exercício de direitos, não serve para afastar a
generalidade das pessoas da prática de factos ilícitos típicos; de particular realce será
a situação dos inimputáveis, já que o Homem normal não pauta a sua conduta pelo
comportamento de um inimputável.
A consideração acabada de fazer não deixa de ser relevante. Contudo, em
certas situações há medidas de segurança que podem ser criadas pelo legislador,
exactamente tendo em vista o efeito de prevenção geral ainda que sob a forma de

95
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 124.
96
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 125.
97
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 125 e 126.

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prevenção geral negativa de intimidação. 98 Por outro lado, é importante notar que a
medida de segurança é aplicada ao agente pela prática de um facto ilícito-típico; isso
só pode acontecer porque a medida de segurança tem também um função de protecção
de bens jurídicos e tutela das expectativas comunitárias na validade da norma violada,
função que é assacada à pena e que cobre a finalidade de prevenção geral positiva ou
de integração de forma autónoma e não apenas reflexa ou dependente da prevenção
especial assinalada.

6.2.3 O problema da legitimação das medidas de segurança

As medidas de segurança encontram a sua legitimidade na sua finalidade


global de defesa social de prevenção da prática de ilícitos-típicos no futuro pelo
agente. Assim se justifica que elas sejam aplicadas apenas por decisão judicial e para
elas encontram também validade, os princípios da necessidade, da subsidiariedade e
da proporcionalidade. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcional
à gravidade do ilícito-típico cometido e à perigosidade do agente. Também e, não
tendo como limite a culpa, ela é contudo, uma reacção aceitável nos quadros do
Estado de Direito e concordante com o princípio absoluto do respeito pela dignidade
da pessoa humana.
Para fundamentar a legitimação a finalidade de defesa social deve ser
conjugada com o princípio da ponderação de bens conflituantes. Na opinião de Roxin,
esse princípio defende que a liberdade da pessoa (de qualquer pessoa mesmo que
inimputável) só pode ser suprimida ou limitada “quando o seu uso conduza, com alta
probabilidade, a prejuízo de outras pessoas que, na sua globalidade, pesa mais que as
limitações que o causador de perigo deve sofrer com as medidas de segurança.” 99

6.2.4. As Medidas de Segurança no Código Penal

98
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 127, trazem o exemplo alemão: Roxin, refere a medida de segurança de inibição da faculdade
de conduzir (que) “actua sobre a generalidade de uma mais intimidante do que a pena cabida ao delito
de tráfico”.
99
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 130 e 131.

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No CP de 1886, as medidas de segurança vêm previstas no artigo 70º. “ São


medidas de segurança: 1º O internamento em manicómio criminal ; 2º o internamento
em casa de trabalho ou colónia agrícola; 3º A liberdade vigiada; 4º A caução de boa
conduta; 5º A interdição do exercício de profissão. Para além destas medidas, pode
haver prorrogação da pena aplicável aos delinquentes perigosos e aos delinquentes
anormais perigosos, artigos 67º e 68º.

O Projecto de Novo Código Penal, trata esta matéria nos artigos 39º ... 4 .
Medidas de segurança: a) Internamento; b) Suspensão de execução do internamento;
Interdição de actividades; d) Cassação de licença de condução de veículos
motorizados; e) Interdição de concessão de licença de condução de veículos
motorizados; f) Cassação de licença de porte de arma; g) Interdição de concessão de
licença de porte de arma.
São ainda aplicáveis às medidas de segurança as disposições dos artigos 40º,
41º e 42º e os artigos 101º a 119º todos do Projecto de Novo CP. É importante ter
presente, que à semelhança das penas, as medidas de segurança estão também sujeitas
ao princípio da legalidade artigo 1º nº2 “ Só pode ser aplicada medida de segurança a
estados de perigosidade cujos pressupostos estejam fixados em lei anterior à sua
verificação”. Do mesmo modo é proibida a analogia e a interpretação extensiva para
definir um estado de perigosidade ou determinar a medida de segurança que lhe
corresponda, nº3 do artigo 1º.
Pretende-se clarificar que também as medidas de segurança estão sujeitas ao
princípio da taxatividade, ou seja, só podem ser as previstas no nº4 do artigo 39º do
Projecto de Novo Código Penal e as que vierem a ser previstas em lei posterior à
publicação do Novo Código, por exemplo, em legislação avulsa. As medidas de
segurança devem ser decretadas em sentença. 100

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TEXTO N.º 8

CAPÍTULO 7: OS LIMITES DO DIREITO PENAL

1. Os limites materiais do direito penal derivam da função e da específica


natureza das sanções criminais.
Esses limites ganham um particular realce se se atender a diferentes perspectivas:
• jurídico-constitucional, relativamente ao modo de produção das leis
• jurídico-processual
De todo o modo, essas perspectivas são o resultado das especiais exigências das
garantias dos direitos dos cidadãos, indispensáveis em matéria penal. Tais limites são
em geral difíceis de traçar porque muitas vezes, em outros ramos de direito, o
legislador utiliza “penas”, embora essas assumam natureza não criminal.

Resulta do exposto que o que realmente delimita o direito penal relativamente aos
outros ramos do direito é a natureza, fundamento e as finalidades das consequências
jurídicas que aplica.

100 Á semelhança da matéria relativa às penas, as medidas de segurança serão objecto de estudo
mais detalhado, no 5º ano na cadeira de Direito Penal II.

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2. O Direito de Mera Ordenação Social (direito das contra-ordenações):


penas criminais e coimas

2.1.Do direito penal administrativo ao direito de mera ordenação social

A complexidade do tecido da ordem jurídica dos Estados contemporâneos


ultrapassa o âmbito das normas relativas aos fundamentos ético-sociais da vida em
comunidade. Contribui para essa situação, a ordem administrativa. No tempo do
Estado de Polícia iluminista desenvolveu-se uma grande esfera da administração e um
abundante ordenamento policial ainda que sem a subordinação a preceitos jurídicos.
A Revolução Francesa veio juridificar e sujeitar a administração à legalidade,
ao mesmo tempo que a actividade policial se dirigiu para a protecção antecipada de
perigos indeterminados para a consistência dos direitos subjectivos dos cidadãos.
Esses direitos subjectivos, por seu turno, estavam também sujeitos à tutela do Direito
Penal. Quando foi necessário fazer-se o enquadramento jurídico das ofensas ao
exercício policial da administração, esse foi encontrado no conceito de contravenção
mas ainda dentro do direito penal e das suas formas de infracção 101.
Por razões económicas, sociais, políticas e culturais que estiveram na base das
duas guerras mundiais, essa situação alterou-se. A administração tornou-se mais
conformadora e passou a assumir funções pertencentes a círculos mais amplos ligados
ao “cuidado com a existência” próprio do Estado social. Aqui a função mais
importante do Estado é cumprir as tarefas cada vez mais crescentes do “cuidado”, sem
transtornos e de forma dinâmica.As penas criminais mais coactivas e mais efectivas
mostraram-se aptas a intervir sempre que fosse necessário fazer vincar o imperativo
estadual, mesmo o de carácter administrativo. Isto significou que o legislador se foi
deixando embalar pela inevitável ideia de colocar o aparato das sanções criminais ao
serviço dos mais diversos fins de política criminal. Assim aconteceu o fenómeno que
se designou hipercriminalização e o surgimento do direito penal administrativo.
Na actualidade, a política criminal é comandada pelo movimento da
descriminalização pelo que a situação descrita não poderia persistir; assistiu-se assim
a uma distinção fundamental no domínio do chamado direito penal administrativo.

DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
101

1996, pp. 140.

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Nos casos em que as condutas proibidas devessem considerar-se relevantes à luz de


uma valoração prévia de carácter ético-social, elas mantinham-se no âmbito do direito
penal e passaram a fazer parte daquilo que se designou “direito penal secundário”.
Sempre que a valoração ético-social fosse considerada neutra, a ilicitude era
constituída materialmente apenas pela proibição e as condutas foram tidas como
ilícitos administrativos, sendo consequentemente atiradas para fora do direito penal.
Essas é que integraram o direito de mera ordenação social, as contra-ordenações que
afinal coincidem com a categoria (penal) das contravenções.
O surgimento das contra-ordenações teve uma dupla consequência:
a) crescimento do direito penal secundário quase sempre sob a forma de direito
penal extravagante;
b) o fim das contravenções jurídico-penais com a sua substituição pela categoria
jurídico-administrativa das contra-ordenações.102
A primeira consagração legislativa das contra-ordenações teve lugar na
Alemanha depois da Segunda Guerra Mundial, em 1949 com a Lei Penal da
Economia e, mais tarde, em 1952 com a Lei das Contra-Ordenações. Assim, Eberhard
Schimdt via expressos os seu estudos para satisfação de três ordens de razões:
a) A retirada dos quadros do direito penal de um vastíssimo número de
infracções de nula ou duvidosa relevância ético-social e sua remissão para o quadro
do direito administrativo;
b) Que essas infracções não fossem ameaçadas com penas criminais mas com
meras “advertências” sociais, sanções ordenativas ou coimas. Aqui importava que
ganhasse relevância o carácter dissuasor próprio das sanções pecuniárias.
c) Revestir o processamento dessas infracções de especificidades que permitisse
a aplicação das sanções pelos agentes administrativos encarregados da fiscalização e
controlo dessas mesmas actividades.
O modelo alemão das contra-ordenações não conseguiu de imediato obter eco
a nível internacional mas, em Portugal, Eduardo Correia adoptava-o e apresentava-o
como adequado para um direito penal português do futuro. Mais tarde, em 1974,
(Março) a Suíça aproximou-se dele em muitos aspectos, tendo sido seguida pela

102 De notar que embora tenham ocorrido mudanças na legislação portuguesa, em Angola, as
contravenções mantêm-se com a vigência do CP de 1886 e subsistirão com a entrada em vigor do
Novo Código Penal. Assim, a distinção a fazer entre crimes e contravenções, será feita a propósito
do estudo da Teoria da Infracção Penal.

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Áustria e em Novembro de 1981 pela Itália. Depois, em 1989 em Viena, no


Congresso da Association Internationale de Droit Pénal, o modelo foi recebido e
passou a ser visto como o caminho para se operar a descriminalização 103
Tem-se pensado, mesmo na Alemanha, em negar a possibilidade de se
delimitar materialmente o ilícito de mera-ordenação social do ilícito ético-socialmente
indiferente, mesmo que se trate de um ilícito de “mera” ordenação social. Esse
pensamento tem a sua razão de ser. Contudo, isso não pode servir de base para se
negar a possibilidade da delimitação.
Assim, a discussão em torno da questão de saber se o critério de distinção é
qualitativo ou quantitativo perde a sua razão de ser. Eberhard Schmidt e Eduardo
Correia consideraram o critério qualitativo; mas, o que interessa aqui salientar é que a
distinção é sempre material e não meramente formal. É claro que, mesmo com esse
critério material, o legislador em certos casos acrescenta certos critérios adicionais de
distinção e até critérios de “quantidade” quando essa é a condição da relevância
axiológico-social de uma conduta. Ou seja, ela é objectivamente grave104.
Exemplo: a alcoolemia105. Se um condutor circula com um grau de alcoolemia entre
0,5g/l e 0,8g/l isso é juridicamente uma contra-ordenação grave; se o grau de
alcoolemia se situar entre os 0,8g/l e 1,2g/l a contra-ordenação é considerada muito
grave; ao atingir o nível de 1,2g/l ou superior a conduta deixa de ser uma contra-
ordenação para passar a ser um crime. Ora, esta distinção não é meramente
quantitativa. O que se passa é que atingidos os 1,2g/l ou valor superior de álcool no
sangue, a conduta torna-se ético-socialmente relevante e passa a constituir substrato
susceptível de criminalização, uma vez que ela se torna socialmente perigosa e, por
isso, ético-socialmente censurável, independentemente de qualquer juízo jurídico de
ilicitude.106

103
Em Portugal, o ilícito de mera ordenação social foi pela primeira vez consagrado no Decreto-Lei n.º
232/79 de 14 de Julho, ainda na vigência do Código Penal de 1886. O diploma eliminou a categoria das
contravenções puníveis com pena de multa. Contudo, em seguida o Decreto-Lei n.º 232/79 substituído
pelo Decreto-Lei n.º 433/82 de 27 de Outubro que veio instituir o regime geral do direito de mera
ordenação social e respectivo processo. Este diploma sofreu, em Outubro de 1989 e Setembro de 1995,
alterações muito significativas.

104
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 130 e 131.
105
O exemplo refere-se à legislação portuguesa mas é de todo o interesse ser aqui apresentado pela sua
importância.

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Importa ainda fazer referência ao relacionamento entre o direito penal e o


direito de mera ordenação social com a ordem axiológica constitucional. É um
facto que não é a Constituição que, em cada caso, decide de forma imediata e decisiva
se certa conduta pode constituir crime ou antes uma contra-ordenação. Mas é a ela
que, em última análise, se tem de recorrer para saber, nos casos duvidosos, se o
critério material da decisão dessa qualificação jurídica foi ou não respeitado. Com
efeito, são diferentes os princípios jurídico-constitucionais tanto materiais como
orgânicos a que tanto a legislação penal como a das contra-ordenações se deve
submeter 107 . Pode-se concluir que, da autonomia do ilícito de mera ordenação
social, resulta a autonomia do direito das contra-ordenações. Primeiro do que
tudo, trata-se de uma autonomia relativa uma vez que o Código Penal é direito
subsidiário do direito substantivo das contra-ordenações. De resto, é direito
sancionatório de carácter punitivo. Em segundo lugar, a autonomia propriamente dita
revela-se em matéria como a responsabilidade das pessoas colectivas, em matéria de
culpa, do erro, da autoria e do concurso.

a. Autonomia da sanção
A sanção a aplicar em caso de contra-ordenação é a coima. Trata-se de uma
sanção exclusivamente patrimonial que se diferencia tanto na essência como nas
finalidades da pena criminal. Aqui, como na pena criminal, não presidem ideias de
retribuição. Apenas a prevenção tem lugar. Por outro lado, a coima não se liga à
personalidade do agente nem à sua atitude interna, como resultado da diferente
natureza e diferente função que a culpa joga na responsabilidade por contra-
ordenação. A coima serve para advertir, repreender pelo desrespeito a determinadas
proibições ou imposições legislativas. Assim, nada aqui temos que nos leve a ideias
de prevenção especial positiva de ressocialização. Resultam por isso, importantes
consequências para o respectivo regime: o efeito da falta de pagamento da coima é a

106
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 149.
107
A Constituição da República Portuguesa contempla esta matéria como reserva relativa de
competência e vem prevista nas alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 16.º. Na mesma direção vai a
Constituição angolana de 2010, a CRA, que prevê o regime geral de punição dos actos ilícitos de mera
ordenação social, e o respectivo processo, na alínea t) do nº1 do artigo 165º. Trata-se de matéria de
competência relativa da Assembleia Nacional.

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execução da soma devida. Nunca a sua conversão em prisão subsidiária como


acontece na multa criminal. 108

2.2. Direito penal e direito disciplinar: penas criminais e sanções (medidas)


disciplinares

2.2.1. O direito disciplinar e as suas sanções é a área que de um ponto de vista


teorético mais se aproxima do direito penal e das penas criminais. Por isso, o
comportamento no ilícito disciplinar, diferentemente do das contra-ordenações não
pode ser considerado neutro, nem tão pouco constituído pela proibição. A essência do
ilícito disciplinar e das medidas disciplinares, encontra-se no particular significado e
função que o serviço público, seus agentes, funcionários, empregados, assumem nos
quadros do Estado de direito democrático. Hoje, diferentemente de há alguns anos, a
relação que se estabelece no serviço público não é já de dever de obediência mas
estreitamente vinculado ao princípio da legalidade da administração. Têm, assim, o
funcionário e o agente administrativo, direitos profissionais e, correspectivamente
deveres, no interesse da comunidade jurídica. A relação do serviço jurídico-público
constitui-se num ilícito disciplinar e, por isso, passível de medidas (sanções)
disciplinares.

2.2.2 Do exposto resultam os critérios da distinção entre o direito penal e o


direito disciplinar. Desde logo, porque:

108
Em Portugal, pode o condenado, a seu requerimento, solicitar ao tribunal a substituição da coima
por prestação de trabalho a favor da comunidade (artigo 89.º do Decreto Lei n.º 433/82, acrescentado
pelo Decreto Lei n.º 244/95). Simplesmente, a prestação de trabalho a favor da comunidade é uma pena
criminal de prisão que tem natureza e finalidades específicas das quais se destaca a prevenção especial
positiva ou de socialização. Por isso, não pode, sem mais, ser transformada numa sanção contra-
ordenativa.

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a) o ilícito disciplinar é um ilícito interno, exclusivamente virado para o


serviço público. Constitui-se, independentemente de com ele se ver abalada a
autoridade estadual ou da Administração. Esta é uma situação diferente da que ocorre
com os “crimes cometidos no exercício de funções públicas” em que se verifica uma
lesão ou perigo de lesão daquela autoridade (nota, F.Dias, p. 154). Maurach e Zipf
consideraram-no não apenas como um minus (menos) mas como um verdadeiro aliud
(uma outra coisa) relativamente ao ilícito penal.
b) a distinção entre os dois ilícitos atinge um âmbito largamente dominado
pelo princípio da subsidiariedade. De facto, muitas das infracções disciplinares não
têm condições para serem ameaçadas com penas criminais. Mas, outras há em que
essa ameaça se mostra necessária. Razões de quantidade e qualidade podem aqui ser
invocadas para efeitos da distinção pois, dos dois critérios apresentados, resultam
importantes consequências:

b.1) Quanto às finalidades, a medida disciplinar esgota-se no asseguramento da


funcionalidade de integridade e da confiança do serviço público. Assim, são-lhe
estranhas quaisquer finalidades retributivas (que hoje defendemos que também já
não devem presidir às penas criminais).
A essência e o fundamento do ilícito disciplinar não nos conduzem a um
direito do agente, como defenderam Beleza dos Santos e Eduardo Correia 109 .
Embora se deva reconhecer que o direito disciplinar é em maior medida e
diferentemente do direito penal, um direito orientado para o agente, não se pode
esquecer que se está aqui a tratar de um direito sancionatório. Os direitos e
garantias dos arguidos impõem o respeito pelos princípios garantísticos do direito
penal. Por isso, as infracções disciplinares devem ser tipificadas.

2.2.3. Os fundamentos avançados para distinguir a autonomia do ilícito


disciplinar face ao ilícito penal, permite compreender que, ainda hoje, e
relativamente ao mesmo facto, se possa falar em cumular a responsabilidade
disciplinar com a responsabilidade criminal. Desde logo, não há qualquer choque

109
Com efeito, aqueles autores fundamentaram a sua posição argumentando que as exigências da
tipicidade das infracções e da culpa se encontram no direito disciplinar muito adormecidas por força do
princípio da legalidade no direito penal. Na verdade, no direito penal de um Estado de direito
democrático, o direito penal é um direito do facto e não do agente

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constitucional porque o princípio ne bis in idem é restrito ao não se poder julgar


duas vezes pelo mesmo crime.110
Mesmo assim, Figueiredo Dias e Costa Andrade entendem, o que
concordamos, que seria preferível nos casos em que se desencadeasse o processo
crime em primeiro lugar, esse conhecesse seu termo e nele fosse aplicada a sanção
demissão da função pública; assim, a medida disciplinar do mesmo nome ficaria
consumida por aquela e evitar-se-ia a instauração do processo disciplinar. 111
Vale a pena, a este propósito dizer que os artigos 57º e 65º do CP de 1886,
ainda em vigor, preveem a pena de demissão para os funcionários públicos. 112
Tendo sido feita referência a esse parecer e a essa jurisprudência, que respeitam ao
Código Penal de 1886, ainda em vigor em Angola, valendo, portanto,
relativamente à matéria criminal, e uma vez que não há, em Angola,
jurisprudência criminal em sentido contrário, interessa dizer, em geral, qual o
efeito da condenação em matéria de emprego. O artigo 76º do CP de 1886,
estabelece no nº 1 o seguinte: “O réu definitivamente condenado, (por sentença
transitada em julgado) a qualquer pena maior,( ou seja, as previstas no artigo
55º),incorre: 1º Na perda de qualquer emprego ou funções públicas, dignidades,
títulos, nobreza ou condecorações....” O artigo 81º desse mesmo CP de 1886
estabelece como efeito da demissão o seguinte: “o condenado à pena de demissão
de emprego, incorre: 1º Na incapacidade de tornar a servir o mesmo emprego; 2º

110
O artigo 57.º do Código Penal de 1886, ainda em vigor, prevê a pena de demissão como pena
especial aplicável aos funcionários públicos. Esta é cumulativamente aplicada a qualquer sanção
criminal. O direito disciplinar dos
111
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 157.
112 Código Penal Português, Anotado, com prefácio do Professor Doutor Beleza dos Santos, 7ª
Edição Revista e Actualizada, com Legislação, Doutrina e Jurisprudência, Coimbra Editora, 1971,
anotação ao artigo 65º, pp. 227, “ 1º a pena de demissão prevista no § único do artigo 65º do
Código Penal, como sanção penal acessória, não resulta automaticamente de decisão penal
condenatória que tenha aplicado a pena principal;2º Está pois a Administração impedida de
executar a aludida pena acessória, mesmo que, porventura, a decisão penal tenha omitido
indevidamente a pronúncia a que se refere o citado preceito do Código Penal; 3º O procedimento
disciplinar é autónomo em relação ao procedimento penal, embora se deva atender, no âmbito da
prova, ao disposto no artigo 153º do Código do Processo Penal e sem prejuízo da averiguação de
outros factos que interessem à jurisdição disciplinar; 4º Assim, e no caso concreto, terá a
Administração que instaurar o competente procedimento disciplinar.” Este é um parecer da
Procuradoria Geral da República de 10 de Maio de 1968. Publicado no Diário do Governo de 26
de Junho e no Boletim Oficial 184-128, contra Jurisprudência anterior, Acórdão do Supremo
Tribunal Administrativo de 27 de Junho de 1941, publicado no Diário do Governo, 2ª Série de 9
de Junho de 1942 que dizia o seguinte: “ Impondo a lei a pena de demissão como consequência do
julgado, a aplicação dessa pena resulta de condenação e não de um inútil e desnecessário
processo disciplinar”.

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Na perda do direito de se jubilar, aposentar ou reformar, por serviços públicos


anteriores à condenação”. Estes efeitos operam ope legis, ou seja por força da lei,
independentemente de qualquer declaração na sentença condenatória: Trata-se de
um efeito da aplicação de uma pena maior. Assim, a demissão prevista no artigo
76º nº1 do CP de 1886, deve ser aplicada mediante despacho ministerial sem
prévia instauração de processo disciplinar, ou seja, como simples execução da
decisão condenatória.
Esta solução deve ser conjugada com a que o Regime disciplinar aplicável aos
funcionários públicos e agentes administrativos previsto no Decreto nº33/91 de 26 de
Julho.113 A Propósito, o Professor Doutor Carlos Feijó ajuda-nos com o seguinte:
“Assunto: A pena de demissão do funcionário público ou agente administrativo enquanto pena
acessória nos processos crime em condenação com pena de prisão maior.

1. A PENA DE DEMISSÃO Á LUZ DO DECRETO Nº33/91

A al. e) do nº1 do artº 11 do Decreto nº33/91, de 26 de Julho, “ Regime disciplinar aplicável a


Funcionários e Agentes da Administração Pública”, estabelece que a Demissão é o afastamento
do infractor da Função Pública, podendo ser readmitido decorridos quatro anos sobre a data do
despacho punitivo desde que prove claramente através do seu comportamento que se encontra
reabilitado. Porém, podemos qualificar o afastamento do funcionário ou agente administrativo
como temporário uma vez que o legislador coloca a hipótese de o funcionário ou agente
administrativo ser readmitido.
Esta questão suscitou muitas dúvidas na interpretação e aplicação correcta da norma
relativa à admissão e, por isso, o legislador emitiu uma norma interpretativa através do Decreto
nº122/03, de 21 de Novembro (sobre a interpretação da al. e) do artº 11 do Decreto nº33/91
com a seguinte redacção:

§ Único: A disposição da al. e) do artigo 11º do Decreto nº33/91deverá ser interpretada no sentido
de que o funcionário ou agente demitido só poderá voltar a integrar os quadros da função pública,
satisfeitos os requisitos nele constantes e mediante participação em concurso público de ingresso,
conforme o previsto pelo artigo 6º e seguintes do Decreto nº22/91, de 22 de Junho.

113 DR nº31, 1ª Série de 26 de Julho de 1991.

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2. A PENA DE DEMISSÃO COMO PENA ACESSÓRIA EM CONSEQUÊNCIA DE SENTENÇA


CRIMINAL .

O art.º 76º do CP vigente, fala dos efeitos da condenação em pena de prisão maior. O nº1
deste artigo estabelece expressamente o seguinte: “ o réu definitivamente condenado a
qualquer pena maior incorre: na perda de qualquer emprego ou funções públicas, dignidade,
títulos, nobreza ou condecorações”.
A perda (demissão) do emprego ou funções públicas do funcionário ou agente condenado
por sentença criminal a que o artigo supra faz referência é uma pena acessória que deve ser
aplicada não pelo Juiz, mas sim pelo superior hierárquico competente do funcionário ou
agente condenado. A este respeito, estabelece o nº2do artigo 27º do Decreto nº33/91, que “ o
processo disciplinar é independente do processo criminal ou civil para efeitos de aplicação
das penas disciplinares”.

Para o efeito, será necessário que o Juiz, uma vez verificado que a sentença criminal transitou
em julgado, remeta cópia da sentença condenatória ao serviço do qual o funcionário ou
agente dependa para a promoção do competente processo disciplinar e consequentemente a
aplicação da respectiva pena de demissão.

Este processo, segundo Marcelo Caetano é um processo especial, por dispensar a defesa
do arguido por ser inútil, uma vez que foi produzida no processo criminal e não é susceptível
de modificar a responsabilidade disciplinar.

3. CONCLUSÕES

Nos termos acima referidos, podemos concluir que a readmissão do funcionário demitido em
sede de um processo disciplinar, passa necessariamente pela reunião de três pressupostos
cumulativos:

a Passagem de quatro anos contados da data do despacho punitivo;


b Prova de reabilitação do comportamento do funcionário demitido;
c Participação em concurso público de ingresso.

A pena de demissão enquanto pena acessória resultante de um processo crime com pena de
prisão maior, não é de aplicação automática. É necessário que o Juiz envie uma certidão da
sentença transitada em julgado ao serviço do condenado para efeitos de promoção do processo
disciplinar especial e aplicação da pena de demissão.

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O projecto de novo código penal ao prever a readmissão do funcionário público demitido após o
decurso de três anos, estará a consagrar normas que vão bulir com as vigentes sobre a matéria,
nomeadamente no que diz respeito aos requisitos exigíveis para a readmissão do funcionário
demitido uma vez ( três ou quatro)
Na eventualidade de as normas do processo disciplinar e do processo criminal estarem
simultaneamente em vigor, aplicar-se-ia a norma do CP somente nos casos em que a pena de
demissão do funcionário fosse aplicada como pena acessória.
Nos casos em que a pena de demissão do funcionário fosse aplicada como pena principal e em
processo disciplinar que não penal, aplicar-se-ia no caso de readmissão, o prazo de 4 anos;
Já nas situações em que sobre a mesma conduta promoveram-se dois processos – o disciplinar e
o criminal – aplicar-se-ia , no caso de readmissão do funcionário o prazo de 3 anos, em
homenagem ao princípio da consunção e do favor réu, isto é, o prazo de 3 anos estabelecido no CP
consumiria o de 4 previsto no Decreto nº33/91.
Ainda assim, parece que o mais razoável seria a clarificação dos regimes e aproximar o regime do
CP e do Processo Penal ao do Processo disciplinar laboral.”114
Porque a dúvida ficou suscitada, interessa, a título de exemplo, trazer o
regime que o Projecto de Novo Código Penal propõe para a pena de demissão.
Em nosso entender o CP de 1886 contém um regime mais gravoso, quanto à
problemática da cumulação da responsabilidade criminal com a disciplinar.
Com efeito o artigo 39º do Projecto, enumera as penas acessórias e nele
vem prevista a Proibição de exercício de função. Desde logo, não lhe denominou
“demissão” e sim “proibição”. O artigo 64º vem clarificar e, no nº1 estabelece que
“ o titular de cargo público, funcionário público ou agente da administração
pública, que no exercício da actividade para que foi eleito ou nomeado, cometer
crime e for condenado com pena de prisão superior a 3 anos, é também proibido
do exercício daquelas funções por um período de até 3 anos quando o facto :
a) For praticado com flagrante e grave abuso de funções ou com manifesta e
grave violação dos deveres que lhe são inerentes;
b) Revelar falta de dignidade no exercício do cargo ou da função;
c) Implicar a perda da confiança necessária ao exercício de cargo ou função;
No nº3 dispõe: “ não conta para o prazo de proibição o tempo em que o agente
estiver privado da liberdade por força de medida de coação processual, pena ou
medida de segurança. O nº5 vem ainda estabelecer o seguinte: “ Sempre que o

114Esta nota foi-nos enviada, a nosso pedido, pelo Professor Doutor Carlos Feijó. Trata-se de
uma reflexão por ele feita, que não vem publicada em nenhuma revista ou livro, nos teremos em
que está exposta. Contudo exprime, com clareza, o regime em vigor em Angola.

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titular de cargo público, funcionário público ou agente da administração pública


for condenado pela prática de crime, o tribunal comunica a condenação à
autoridade de que depende”.
Contudo, este regime, que é disciplinar administrativo, apresenta-se
menos gravoso, do que o estabelecido no CP de 1886. Na verdade, como nos foi
dado observar, ali, a demissão significa, não mais regressar, veja-se o disposto no
artigo 81º do CP 1886. Aqui, no Processo Disciplinar Administrativo, o legislador
está a utilizar a expressão proibição e não demissão, é mais leve e, do nosso
ponto de vista mais consentâneo com os fins de ressocialização do condenado
que tem natureza ctiminal. O nº1 prevê: “ salvo disposição em contrário, a
proibição e a suspensão do exercício de função pública determina a perda dos
direitos e regalias atribuídos ao titular, funcionário ou agente, pelo tempo
correspondente”, ou seja, de 3 meses a 3 anos, regime estabelecido no corpo do
artigo 64º. Depois o nº2 desta mesma disposição, prevê que a proibição “não
impossibilita o titular, funcionário ou agente de ser nomeado para cargo ou
função que possam ser exercidos sem a dignidade e a confiança que o cargo ou a
função anterior exigia”. Este número não estabelece outra restrição aos direitos
do funcionário ou agente condenado. Apenas impede que ele retorne à função
com a dignidade e confiança que eram inerentes ao cargo ou função que exercia
antes da condenação. Não há aqui qualquer ideia de afastamento definitivo que
informava a pena acessória de demissão do CP de 1886.
Consideramos assim, que este regime, conjuga melhor com o estabelecido
no Decreto 33/91de 26 de Julho do que com o Código Penal de 1886. Na verdade,
o regime do CP é mais gravoso e, sendo a sanção criminal a última ratio, sempre
que é aplicada, é ela que deve prevalecer. Assim, não só concordamos com o
Professor Carlos Feijó, quanto defende que o regime do Decreto 33/91 com a
interpretação dada pelo Decreto 122/03 de 21 de Novembro é regime mais
favorável em matéria administrativa disciplinar, como julgamos necessário e
urgente que por via legislativa se proceda à conjugação dos dois regimes, o
Administrativo Disciplinar e o Penal.

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3. Situação ainda mais problemática é a que ocorre com a medida disciplinar de


detenção, resultante do poder disciplinar militar. Tem-se questionado da
inconstitucionalidade dessa medida. Contudo, parece incompreensível que o agente
possa pelo mesmo facto sofrer uma privação da liberdade disciplinar e uma privação
de liberdade criminal.115

115 Ouvimos a opinião avisada do Sr. Dr. Florentino Inácio, Magistrado do Ministério Público do
Foro Militar, que tem lidado com a questão, e nos traz o ponto de vista do que na Magistratura
Militar se tem entendido quanto a essas questões. “A MEDIDA DISCIPLINAR DE DETENÇÃO
E O SEU CONFRONTO COM A DETENÇÃO ENQUANTO MEDIDA DE NATUREZA
CAUTELAR115
Antes de mais, é conveniente situarmo-nos relativamente ao verdadeiro problema relacionado
com a medida disciplinar de detenção, resultante da aplicação de processo disciplinar militar.
A medida de detenção é uma das elencadas no artigo 17.º das Normas Reguladoras de
Disciplina Militar, normas essas aprovadas em 22 de Novembro de 1991, pela Comissão Conjunta
Político Militar e dentro dela pela Comissão Conjunta para a reforma das Forças Armadas.
Porém, essa medida de detenção, a par de duas outras, nomeadamente a prisão domiciliar e a prisão
domiciliar agravada, implicam materialmente a privação da liberdade do arguido ou do infractor
considerando que estamos em presença de um processo disciplinar.
A questão da inconstitucionalidade discute-se não tanto, se não mesmo, em relação a
aplicação de duas medidas da mesma natureza em virtude dos mesmos factos, sendo concretamente,
uma detenção disciplinar e outra criminal, o que poria em causa o princípio “non bis in idem”, tal como
previsto no artigo 65.º, n.º 5 da CRA, mas, sim relativamente a ilegitimidade para simples Normas
Reguladoras de Disciplina Militar limitarem direitos e liberdades fundamentais.
Senão vejamos: de acordo com o artigo 164.º da CRA, alíneas b), c), e) e j), à Assembleia
Nacional compete legislar com reserva absoluta sobre direitos, liberdades e garantias fundamentais dos
cidadãos; restrições e limitações aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos; definição dos crimes,
penas, medidas de segurança, bem como das bases do processo criminal e por fim, sobre as bases
gerais da organização, do funcionamento e da disciplina das Forças Armadas Angolanas, das forças de
segurança pública e dos serviços de informação.
Somos, pelo exposto, forçados a concluir que as Normas Reguladoras de Disciplina Militar são, a luz
da Constituição de 2010, inconstitucionais 115 , por estarem em flagrante desacordo com as suas
disposições. Essa é, portanto, a primeira e provavelmente única situação que se reveste de interesse
teórico para uma abordagem a vários níveis, didáctico e processual.
Quanto à situação que unilateralmente chamamos de confronto entre detenção disciplinar e
detenção enquanto medida cautelar, parece-nos ser um falso problema, quando analisado com
profundidade.
Os processos disciplinar e criminal são autônomos entre si e de natureza diferente, o primeiro
apresenta-se como um processo administrativo e o segundo como um verdadeiro processo
jurisdicional. A verdade é que, qualquer um deles pode desencadear o outro bastando que existam
elementos que justifiquem tal decisão115.
De acordo com o artigo 40.º das Normas Reguladoras da Disciplina Militar, concluída a
instrução, pode tomar-se dentre as várias decisões, a seguinte: se a infracção cometida tiver natureza de
crime militar, remeter-se o processo para as instâncias competentes. Na mesma linha de pensamento,
dispõe o artigo 11.º da Lei dos Crimes Militares (Lei n.º 4/94, de 28 de Janeiro), que relativamente a
determinados crimes e considerando o valor especial de certas circunstâncias atenuantes, o processo-
crime poderá ser convertido em processo disciplinar.
Pelo exposto, parece ser de concluir com relativa segurança, que não podem correr
simultaneamente um processo disciplinar e um processo crime tendo como objecto os mesmos factos, e
o que está em causa é sem dúvidas, o princípio “non bis in idem”. Assim, também nos fica fácil
concluir que não pode haver detenção disciplinar e detenção enquanto medida cautelar, ao mesmo
“acusado” e pelos mesmos factos, porque relativamente ao processo disciplinar, a detenção, ainda que
uma medida inconstitucional, aplica-se no final do processo, o que significa que, por um lado, os
factos não foram convertidos em processo-crime e, por outro, processualmente quer sobre aqueles
factos não poderá haver mais nenhuma reação, seja disciplinar e muito menos criminal.

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Luzia Sebastião Direito Penal I
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III. Direito penal e direito processual: penas criminais e sanções (medidas) de


ordenação ou conformação processual.
As sanções de ordenação processual são medidas que se aplicam a quem viole
as formalidades de uma tramitação sem entraves ou abuse de poderes em situações
processuais. Tal como acontece com as medidas disciplinares, as sanções de
ordenação processual não prosseguem quaisquer finalidades de prevenção positiva
geral e especial. O que fica é apenas a ameaça, a intimidação que esgota a sua
finalidade na observância das formalidades legais do processo. Por outro lado, o
princípio da subsidiariedade do direito penal não é aqui aplicável uma vez que as
sanções penais não são neste caso adequadas, nem sequer necessárias. Exemplo de
medidas dessa natureza, é o que vem das medidas aplicáveis às infracções
disciplinares dos actos judiciais e aos que litigam de má fé.116
O direito penal fixa os pressupostos da aplicação das reacções criminais.
Indica quais são os factos que constituem crime e que consequências jurídicas a eles
devem ser aplicadas. Para que seja do conhecimento do público os factos que
constituem crime tomam a forma de modelos abstractos e gerais, os chamados tipos
legais de crime que vêm descritos na parte especial do Código Pena. Contudo, as
penas têm de ser concretizadas, individualizadas e, em consequência, aplicadas. Esta
actividade não é automática nem em é deixada ao critério dos ofendidos. É através de
um processo e por via jurisdicional, ou seja, por sentença de um tribunal que essa
individualização e aplicação da pena é feita.

Florentino Inácio

116 RODRIGUES, Orlando, ob cit, pp. 30 e 31.

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Luzia Sebastião Direito Penal I
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Com efeito e segundo Orlando Rodrigues 117“ A Justiça penal é monopólio


do Estado. De resto, a própria individualização judicial da pena pressupõe uma
actividade prévia destinada a averiguar , a investigar se o delinquente ou aquele que
como tal é apresentado, praticou ou não o acto, o crime que se lhe imputa, ao que se
segue a fase de recolha de prova ou fase instrutória.
Toda a actividade pré-processual e processual desenvolvida no sentido de
averiguar se determinado indivíduo praticou um crime e de aplicar-lhe,
posteriormente, uma pena é disciplinada por um conjunto de normas jurídicas que
constituem o direito processual penal. E o que diz dos crimes e das penas é
evidentemente válido para os estados de perigosidade e para s medidas de segurança.
O direito processual penal é, por conseguinte, o meio ou instrumento de
realização do direito penal. Os dois, são como que as duas faces de uma mesma
moeda, dominados pela ideia de protecção dos bens jurídicos fundamentais da ordem
jurídico-política e da estrutura económica da sociedade e do Estado.
De certa maneira e sem prejuízo da sua autonomia, podemos dizer que o
direito processual penal assume a forma de um direito penal global. A forma através
da qual se revela no concreto o direito penal. Nessa globalidade, o direito processual
penal é direito formal ou adjectivo e o direito penal é o direito material ou
substantivo.”

4. Direito penal e direito privado: penas criminais e penas privadas.


A distinção entre ilícito criminal e ilícito civil não é agora relevante se
atendermos a que a questão pertence à esfera de actuação dos princípios de
subsidiariedade e da necessidade e da tutela penal que foram já suficientemente
tratados. Interessa sim, distinguir entre pena criminal e pena civil.
a) todas as sanções não criminais têm em comum com as criminais o facto de
serem sanções jurídico-públicas. Neste tipo de sanção, o sancionado apresenta-se
perante o sancionador numa posição de sujeição ou supra-infra ordenação.
b) A diferença radica no facto de no direito privado as sanções se basearem numa
relação paritária ou igualitária. É o que acontece com o disposto no artigo 810.º, n.º 1
do Código Civil: a cláusula penal. Qualquer que seja a natureza desta medida

117 Ob. cit, p. 32

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indemnizatória, punitiva ou mista, a sua diferença da sanção penal é clara pelo que
ficou exposto.118

DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
118

1996, pp. 159 e ss.

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TEXTO N.º 9

8º CAPÍTULO: AS FONTES DO DIREITO PENAL

1. FONTES DO DIREITO PENAL

1.1. Fontes do Direito Penal


As fontes de direito podem ser substancias ou formais. As Fontes
substanciais ou materiais são as que constituem o fundamento do direito
penal, a realidade que o determina. Deste ponto de vista elas identificam-
se com os próprios fins, os valores e interesses sociais que constituem a
razão da existência desse Ramo do Direito.119
Contudo, mais do que as fontes materiais, interessa-nos agora tratar
das fontes formais. Estas são os modos como o direito se revela ou
manifesta. Partindo da actividade realizada pelo Estado, as fontes formais
são os actos normativos, os processos através dos quais o Estado as
normas jurídicas. Autores há que, no seio das fontes formais ainda
distinguem entre fontes directas e fontes indirectas. Sendo as primeiras
também denominadas como imediatas, aquelas que criam normas
jurídico-penais obrigatórias e as segundas também designadas
auxiliares porque apenas contribuem para criação ou revelação de novas
normas jurídicas. 120
Para a generalidade dos autores que se pronunciaram sobre as fontes
do Direito Penal em geral, 121e do Direito Penal angolano em Particular,

119 RODRIGUES, Orlando, ob. cit, pp. 48.


120 Idem, Ibidem. 48.
121Dentre outros, COSTA, José de Faria, Noções Fundamentais de Direito Penal, Introdução,
Coimbra Editora, 2007, p.125, 126. Para este autor, dentre outros, o direito penal português está
vinculado ao princípio constitucional nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege, o princípio da
legalidade que, no plano das fontes do direito penal tal princípio traduz-se em uma reserva de lei

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Luzia Sebastião Direito Penal I
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antes da Constituição de 2010, a CRA, “A única fonte formal directa de


direito penal é a lei”.122 Contudo, depois da Constituição de 2010, já se
torna difícil fazer esta afirmação com tanta segurança. Porém, seguindo a
tradição – e dado que a questão fontes do direito penal angolano será
objecto de tratamento autónomo- para , Orlando Rodrigues, as fontes
formais indirectas de direito penal são o costume, a jurisprudência e
a doutrina.
1.2. As Fontes do Direito Penal Angolano
Referimos as fontes do direito penal em geral. Cabe agora tratar, em
particular, das fontes do direito penal no ordenamento jurídico angolano.
antes de mais, é importante lembrar que cada ordenamento jurídico tem o
seu entendimento acerca da tipologia das suas fontes do direito. O
ordenamento jurídico angolano afirma, em geral, como suas fontes , a
lei, o costume , a jurisprudência , o direito internacional geral e comum e
a doutrina. É, contudo, importante verificar se essa tipologia é válida
também para o direito penal, tomando em consideração um direito penal
constituído e em vigor, e um direito penal a constituir. A distinção é aqui
feita não apenas porque está em discussão uma reforma penal, mas
sobretudo, porque está em vigor uma nova Constituição, a CRA de 2010,

que, nos termos da alínea c) do nº1 do artigo 165º da Constituição da República Portuguesa, “ é
da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre a definição dos crimes,
penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos (...) salvo autorização do governo “.
Ainda segundo Faria Costa, assim consagrado o Princípio da Legalidade encerra três vertentes
principais: a) a reserva de lei da Assembleia da República, ou Reserva de Lei stricto sensu; b) a
proibição de intervenção normativa de regulamentos; e, finalmente c ) a “ exclusão do direito
consuetudinário como fonte de definição de crimes ou punição penal”. Vertentes estas com
imediatas implicações no campo das fontes do direito penal. Na mesma direcção CARVALHO,
Américo Taipa, Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais, a Teoria Geral do Crime, 2ª
Edição, Coimbra Editora, 2008, p. 156 “ ... do que acaba de dizer-se resulta que o corolário do
princípio da legalidade do nullum crimen, nulla poena sine lege scripta, significa que a única fonte
do direito penal é a lei formal, ou seja, a lei da Assembleia da República”. BELEZA, Teresa
Pizarro, Direito Penal, 1985, p. 409; CANOTILHO, J.J. Gomes, Teoria da Legislação e Teoria da
Legislação Penal. Contributo para uma teoria da legislação” in BFD ( Boletim da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra ), Estudos em Homenagem a Eduardo Correia, I, 1988, p. 855.;
Para mais desenvolvimentos e informação sobre esta questão, veja-se SEBASTIÃO, Luzia
Bebiana, Legalidade Penal, Costume e Pluralismo Jurídico a Experiência angolana, o(s) direito(s) e
o (s) facto (s), Petrony Editora, 2019, 168 a 190.
122 RODRIGUES, Orlando, Ob. cit, p. 48 a 53.

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Luzia Sebastião Direito Penal I
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que introduziu o costume como fonte imediata de direito em geral.


Importa, por conseguinte, analisar a tipologia das fontes do direito penal
em especial.
Referimos que o sistema jurídico angolano, por razões históricas, tem
origem no sistema jurídico português e, por isso, é da família romano-
germânica que afirma o princípio da legalidade dos crimes e das penas
que, por sua vez, defende a lei como única fonte, ou pelo menos, a “fonte
por excelência” do direito penal. A afirmação do Princípio da legalidade
no território angolano, remonta à consagração do princípio na Carta
Constitucional da República Portuguesa de 1826, de acordo com o §7º do
artigo 145º, e, posteriormente, aos artigos 5º e 54º do Código Penal de
1886, não obstante o princípio só ter sido interpretado com maior clareza
no nº9 do artigo 8º da Constituição Portuguesa de 1933. Princípio que
vigorou também no ordenamento jurídico-penal angolano por força das
sucessivas Leis Constitucionais angolanas e nos termos dos artigos 5º e
54º do Código Penal de 1886, ainda em vigor.
Podemos, por conseguinte, tomar como válidas e vigentes as
proposições doutrinais quanto à função de garantia do princípio da
legalidade e quanto à função desse princípio enquanto limitador das
fontes do direito penal, concluindo, indubitavelmente, que no direito
penal angolano constituído até Fevereiro de 2010, momento da
promulgação da CRA, a lei era a fonte por excelência do direito penal.
Repare-se que não vigorava nenhuma norma que consagrasse o
costume como fonte de direito angolano em paridade com a lei, como
actualmente o faz o artigo 7º da CRA, nem tão – pouco, se interpretava
ou procurava interpretar uma concepção das fontes do direito angolano a
partir de uma perspectiva pluralista do direito.

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De recordar, que mesmo Burity da Silva123 que chegou a defender o


artigo 1º do Código Civil angolano como matriz, a partir da qual, se
deveria desenhar a tipologia das fontes do direito angolano – reconheceu
e aceitou que a entrada em vigor daquele artigo 7º da CRA veio
introduzir uma profunda alteração na hierarquia das fontes do Direito
angolano , porque não só a lei deixou de ser a única fonte imediata do
direito como o costume passou a ter a mesma dignidade jurídica e a
mesma idoneidade de criação do direito. 124
Neste sentido e quanto a nós, interessa concluir que as fontes do
direito penal angolano são o Costume e a Lei. Contudo a discussão em
torno desta afirmação terá lugar quando se tratar o princípio nullum
crimen nulla poena sine lege .

123 SILVA, Carlos Burity, “ A necessidade de Revisão do Código Civil Angolano”, in


Revista de Direito de Língua Portuguesa, RDLP, p. 8.
124 Idem, p. 8

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TEXTO Nº10

A LEI PENAL E A SUA APLICAÇÃO

9.º CAPÍTULO: O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE DA INTERVENÇÃO


PENAL

I. O Princípio Nullum crimen nula poena sine lege

1. Função, sentido e fundamentos


No Estado de direito, a protecção dos direitos, liberdades e garantias é
realizada não apenas através do Direito Penal mas também perante o Direito Penal.
Tudo isto porque, por um lado, a prevenção da prática de crimes que, afinal, é o
objectivo último que o Direito Penal visa atingir não poderia ser levada a cabo sem
que fossem impostos limites estritos à intervenção estadual em nome da defesa dos
direitos, liberdades e garantias das pessoas, procurando-se assim evitar o arbítrio.
Para tal, a intervenção penal é submetida a um estrito princípio da legalidade
cujo conteúdo essencial se pode resumir na seguinte expressão: “não pode haver
crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa”. 125

1.1. Origem histórica do Princípio


O princípio da legalidade da intervenção penal encontrou primordialmente a
sua expressão na Magna Charta Libertantum de João Sem Terra (1215) e, mais tarde,
já de modo particular no Bill of Rights (1689). A sua consagração mais moderna
encontrou-se pela primeira vez na Constituição de Maryland e Virgínia, Estados
Unidos da América, em 1776. Foi, contudo, com a Declaração dos Direitos do

DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
125

1996, pp. 159 e ss.

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Homem e do Cidadão, saída da Revolução Francesa de 1787 que o princípio ganhou


expressão definitiva.
A partir daqui, um conjunto de instrumentos internacionais relativos à
protecção dos direitos humanos foram sendo adoptados: Declaração Universal dos
Direitos do Homem em 10 Dezembro de 1948, nº1 do artigo 7.º Convenção Europeia
dos Direitos do Homem de 4 de Novembro de 1950, nº1 do artigo 15.º Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 19 de Dezembro de 1966 artigo 15º e
na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, nº2 do artigo 7º.

1.2. Fundamentos
Viu-se, pelo exposto, que o princípio da legalidade da intervenção penal tem
raízes iluministas mas a sua fundamentação é plural ou seja, podem ser considerados
fundamentos internos ou externos. Os fundamentos externos estão ligados à
concepção de Estado; importa, por isso, referir os princípios liberal democrático e o
da separação de poderes. Para o princípio liberal a intervenção do Estado na
esfera de actuação dos direitos liberdades e garantias das pessoas tem de estar
ligado à existência de uma lei, uma lei geral, anterior e abstracta, veja-se por
interpretação os artigos 67.º e 68.º da CRA. Relativamente aos princípios
democráticos e da separação de poderes, em que essa separação é entendida no
sentido da interpenetração e co-responsabilização, a intervenção penal pelo seu
peso só fica legitimada pela actuação da instância representativa do Povo no
exercício do ius puniendi; resulta daqui que qualquer intervenção penal só pode
ser feita por lei, e lei em sentido formal, ou seja, Lei da Assembleia Nacional,
alínea e) do artigo 164º da CRA.
Como fundamentos internos, apontam-se a ideia de prevenção geral e o princípio
da culpa. É certo, como diz Castanheira Neves 126 , que o verdadeiro fundamento
interno é a “axiológica normatividade do próprio direito”. Contudo, não se pode
esquecer que, para que a norma cumpra a sua função de garante da tutela dos bens
jurídicos na sua vertente “negativa”, como intimidação e, ainda na sua vertente
“positiva”, de estabilização das expectativas, os cidadãos têm de ter a oportunidade
de, através de lei anterior, escrita e certa, saber o que é permitido e o que é proibido.

126
NEVES, António de Castanheira, “Separata de Estudos Eduardo Correia”, 1988, pp. 65 e ss. e 75 e
ss.

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Por outro lado, também não seria legítimo dirigir a alguém uma censura por ter
actuado, se não existisse uma lei anterior escrita, estrita e certa considerar o
comportamento como objecto de censura, como crime.
Mesmo em relação à prevenção especial, embora sobre esta questão a maioria
da doutrina o não considere, o entendimento actual reclama a exigência do princípio
da legalidade. O comportamento que indicia a perigosidade não pode ser visto apenas
como um “sintoma ou índice da carência de socialização” mas tem de ser também
fundamento e limite da intervenção penal, ressurgindo assim a exigência da
legalidade da lei estrita.127

2. Sentido do Princípio “Nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege”

Segundo o princípio, não há crime sem que uma lei anterior o preveja,
significa que, por mais reprovável que o comportamento se apresente no seio da
comunidade, para que ele possa ser punido, é necessário que uma lei anterior o
preveja e estabeleça a respectiva consequência jurídica. Daqui que as lacunas ou os
esquecimentos do legislador funcionam contra o legislador e a favor da liberdade: ex.
Artigo 451.º do Código Penal de 1886. Por este artigo, a burla por defraudação só é
punida a favor do próprio agente. Se for entregue a um terceiro, fica claro que essa
conduta não é punida. Houve aqui uma lacuna gravíssima de punibilidade que só pode
ser atribuída ao legislador, com a consequência de que a burla a favor de 3.º fica
impune.
Se olharmos para o artigo 417º do Projecto de Novo Código Penal, que é
direito a constituir, esta lacuna desaparece, ou seja, veremos que a burla a favor de
terceiro já é punida. “ Quem, usando de qualquer meio astucioso ou enganoso, induzir
ou mantiver outrem em erro ou engano e, com o propósito de obter para si ou pra
terceiro um enriquecimento ilícito, a levar a praticar actos que lhe causem ou causem
a terceira pessoa prejuízo patrimonial é punido .....”.
A expressão nulla poena sine lege significa que “não há pena ou medida de
segurança que não venha prevista numa lei anterior”. A CRA no artigo 75º,
embora com certa deficiência de redacção, claramente refere a necessidade de lei

DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
127

1996, p. 165.

89
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anterior escrita a estabelecer penas e medidas de segurança. Aplica-se assim o


princípio da legalidade com o mesmo âmbito com que ele vigora para as penas 128.
O princípio nulla poena sine lege significa também que ao juiz é completamente
vedada a possibilidade de criar instrumentos sancionatórios criminais que não se
encontrem estritamente previstos em lei anterior.

II. Consequências (efeitos) do Princípio da Legalidade da Intervenção Penal

II. 1. As consequências do princípio da legalidade estendem-se a cinco diferentes


planos:
• extensão
• fonte
• determinabilidade
• proibição da analogia
• proibição da retroactividade

1.1. No plano da extensão


O Princípio da Legalidade não cobre toda a extensão do Direito Penal mas aquela em
que se fundamenta e agrava a responsabilidade criminal. Ex.: matérias relativas ao
tipo de ilícito, à culpa, às consequências jurídicas do crime (penas e medidas de
segurança). Estas limitações devem-se à função e ao sentido do princípio que
funciona como garantia dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, face às
possibilidades de arbítrio e excesso do poder estadual.

1.2. No plano da fonte


a) Neste plano o princípio conduz à exigência de lei formal. Só uma lei da
Assembleia Nacional pode definir o regime dos crimes das consequências jurídicas e
respectivos pressupostos, alínea e) do artigo 164º da CRA.
b) Outra questão, que nesta sede também se suscita, é a de saber se o princípio da
legalidade abrange apenas a lei stricto sensu ou se também a lei extra-penal, na

DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
128

1996, p. 168.

90
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medida em que esta venha a ser chamada pela lei penal para fundamentar ou agravar a
responsabilidade criminal. Esta questão levanta-se a propósito das chamadas normas
penais em branco – aquelas que cominam uma pena para comportamentos que não
descrevem, mas alcançam esses comportamentos pela remissão da norma penal para
outras leis ou regulamentos. Ex.: artigo 246.º do Código Penal de 1886. Entendem,
Figueiredo Dias e Costa Andrade que, desde que a norma penal em branco conste
da lei formal, não haverão razões para de um ponto de vista teleológico e racional,
não ser, no plano da fonte, a elas aplicável, o respeito pelo princípio da legalidade.

1.3. No plano da determinabilidade


É importante que a descrição da matéria proibida, bem como de todos os
requisitos de que depende em concreto a punição, esteja perfeitamente determinável e,
se torne objectivamente motivável e dirigível à conduta dos cidadãos. Ex.: não são
perfeitamente determináveis as seguintes expressões: “é crime a conduta que ofenda
o sentimento do povo”, “é crime o comportamento que ofenda os bons costumes”.
É um facto que, muitas vezes, a formulação dos tipos legais de crime não
consegue evitar a utilização de elementos normativos, cláusulas gerais, conceitos
indeterminados. Simplesmente, a sua utilização não deve obstar a “determinabilidade
objectiva das condutas proibidas”129, pois estes são elementos irrenunciáveis de uma
teleologia garantística que, a não ser respeitada, viola o princípio da legalidade.
Daqui o princípio segundo o qual a lei penal que fundamente ou agrave a
responsabilidade deve ser certa e determinada, sendo este o aspecto que encerra o
verdadeiro cerne do princípio, segundo Welzel e Schunemann.

1.4. No plano da analogia


Entende-se neste plano, por analogia, a aplicação por semelhança substancial,
com um caso já regulado pela lei, de uma regra jurídica, a um outro caso concreto não
regulado pela lei. Trata-se de uma analogia legis.

DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
129

1996, p. 172.

91
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A analogia, como procedimento que respeita à aplicação da lei, não pode ser
permitida em Direito Penal por força do princípio da legalidade, sempre que ele
funcione contra o agente e vise fundamentar ou agravar a sua responsabilidade.
O artigo 18.º do Código Penal de 1886 a prevê: “ Não é admissível a analogia ou
indução por paridade, ou por maioria de razão, para qualificar qualquer facto como
crime; sendo sempre necessário que se verifiquem os elementos essencialmente
constitutivos do facto criminoso, que a lei expressamente declarar”.
Em termos de direito a constituir, o artigo 1º do Projecto de Novo Código
Penal, estabelece no nº2 “ Não é permitido o recurso à analogia nem à interpretação
extensiva para qualificar um facto como crime, para definir um estado de
perigosidade ou para determinar a pena ou a medida de segurança que lhes
correspondem.”

1.5. No plano da retroactividade


A questão que aqui se levanta está relacionada com a proibição da
retroactividade in malem partem (contra o réu), proibição que vem ínsita no
princípio da legalidade. As situações ocorrem nos casos em que após a prática de um
determinado facto, uma lei nova venha criminalizá-lo; ou, sendo o facto já crime, uma
nova lei venha prever para ele uma pena mais grave. Em qualquer destas hipóteses, há
proibição de retroactividade assente na ideia e que, ou a criminalização ou a
agravação da sua penalização, já deveriam constar de lei anterior à prática do facto 130.

1.6. O artigo 7º da Constituição da República de Angola, a CRA

Referimo-nos ao Princípio da Legalidade da Intervenção Penal, como é


entendido pelo Direito Positivo, direito em vigor no ordenamento jurídico angolano,
aquele herdado no quadro do sistema Jurídico pertencente à família Romano
Germânica.
Interessa, porém, olhar para o artigo7º da CRA: “ É reconhecida a validade e a
força jurídica do costume que não seja contrário à Constituição, nem atente contra a
dignidade da pessoa humana”. Podemos adiantar que, não obstante a sua localização

DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
130

1996, p. 174.

92
Luzia Sebastião Direito Penal I
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sistemática entre os primeiros artigos da Constituição, na parte dedicada aos


princípios fundamentais, aqueles que “ fornecem directivas materiais de interpretação
das normas constitucionais ... vinculam o legislador no momento legiferante” e de
forma positiva e negativa a conformação legislativa, a norma do artigo 7º é uma regra
e não um princípio. Não tem as características de princípio hermenêutico nem de
princípio jurídico. É uma regra de reconhecimento através da qual serão identificadas
as regras que constam da prática consuetudinária e que as pessoas obedecem e
cumprem na convicção de que são obrigatórias, segundo decorre da noção de
costume. Com efeito, ao olharmos para o teor literal da norma do artigo 7º da CRA,
podemos admitir que “a validade e a força jurídica do costume” pretende comunicar
uma regra ou uma norma de reconhecimento de uma fonte de direito que se encontra
delimitada em função da Constituição e da dignidade da pessoa humana131. De resto
Carlos Feijó,132 embora o não tenha feito a partir de uma perspectiva metodológica,
expressamente reconhece que a Constituição angolana de 2010 “procede ao
reconhecimento expresso da fonte do Direito das comunidades tradicionais – o
costume...”. Isto é, veio reafirmar que a norma do artigo 7º é uma fonte de
reconhecimento de uma outra fonte de direito. Na norma pretende apontar para as
fontes do direito angolano e diz-nos que o costume – tal como a lei e demais fontes de
direito- se deve mover nos quadros da Constituição, conforme os artigos 6º e 226º,
ambos da CRA.
Conclui-se assim que, o artigo 7º da CRA, é uma norma –regra sobre as fontes
do direito que permite determinar o valor constitucional do costume relativamente às
demais fontes de direito, particularmente a lei. Com relação a, e nas palavras de
Bacelar Gouveia, : “ o costume não precisa de pedir licença à lei para se afirmar como
tal, ou numa versão mais radical, que no momento em que fosse reconhecido pela lei,
133
ele próprio perderia a sua autonomia conceptual e deixaria de ser um genuíno
costume.”

131 SEBASTIÃO, Luzia Bebiana de Almeida , Legalidade Penal, Costume e Pluralismo Jurídico, A
Experiência Angolana, o (s) Direito e o(s) Facto (s), Petrony Editora, Novembro de 2019, p. 361 a
363.
132 FEIJÓ, Carlos Maria, A Coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na
Ordem Jurídica Plural Angolana, Almedina, 2012, p.391. No mesmo sentido embora não de forma
directa, MACHADO, Jónatas E. M. , COSTA Paulo Nogueira, HILÁRIO, Esteves Carlos, Direito
Constitucional Angolano, 2ª Edição
133 GOUVEIA, Jorge Bacelar, Direito Constitucional de Macau, IDILP, Lisboa, 2012, p. 92

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1.7. Para uma interpretação dos nºs 2 e 3 do artigo 65º (aplicação da lei
criminal) da CRA.

O artigo 65º da CRA, consagra o Princípio da Legalidade da Intervenção


Penal, no sistema jurídico angolano. Teria o legislador constituinte pretendido
manter em relação às fontes do direito penal o regime “ clássico” que determina a
lei ( prévia, escrita, estrita e certa) como única fonte? Á primeira vista e olhando
para estes nºs 2 e 3 do artigo 65º, parece que sim. O princípio da legalidade penal
é, no dizer de António Cortês,134 um dos princípios que “ integra o núcleo da
consciência jurídica geral”.

134CORTÊS, António, O controlo da Constitucionalidade do Princípio da Tipicidade Penal- Uma


Análise Jurisprudencial, in 35º Aniversário da Constituição de 1976, Vol.II, Coimbra Editora, 1ª
Edição, Janeiro 2012, pp. 83-110, p. 83.

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9.º CAPÍTULO: A INTERPRETAÇÃO E A INTEGRAÇÃO DA LEI PENAL

I. Interpretação e analogia em Direito Penal

Se a analogia é proibida, então quais são os limites da interpretação admissível em


Direito Penal?
Hoje, já ficou definitivamente afastada a ideia que vigorou com o iluminismo,
segundo a qual a separação de poderes pressupunha que, ao juiz, ficava vedada
qualquer possibilidade de interpretação da lei, uma vez que esta era emanação do
poder legislativo. “Les juges ne sont que la bouche qui prononce les paroles de la loi”.
Mas, se unanimemente se aceita que todos os conceitos, tanto os normativos como os
descritivos que a lei utiliza sejam susceptíveis de interpretação, é legítimo que se
pergunte o que é que em face do princípio da legalidade é susceptível de interpretação
e o que é que pertence à analogia proibida.

1. Antes de mais, é necessário que se encontre um critério de distinção


teleológico e funcional, atendendo ao conteúdo de sentido do princípio. Este critério
só pode ser o seguinte:
a) O legislador penal é obrigado a exprimir-se por palavras. Contudo, estas nem
sempre têm um único sentido. Por isso, muitas vezes, o texto legal é susceptível de
interpretação. Mais, de concretização, complementação, desenvolvimento e, assim o
sentido literal comum tem de ser encontrado. Ora, será dentro desses limites que a
interpretação deverá ser feita. Assim, toda a leitura interpretativa que seja feita para
além dessa literal comum, já cai na analogia proibida. Pode.se assim dizer que o que
fica dito não constitui um critério, mas um verdadeiro limite da interpretação. 135
b. 1) O exemplo típico que se apresenta e que foi muito discutido na doutrina e na
jurisprudência portuguesas respeitou à energia eléctrica. Perguntava-se se a energia
eléctrica poderia ser considerada “uma coisa móvel” para efeitos do crime de furto. O
Assento do Supremo Tribunal de Justiça Português de 24 de Abril de 1955 respondeu:
sim.

DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
135

1996, pp. 175 e 176.

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Entretanto, hoje, Figueiredo Dias e Costa Andrade consideram que não porque, do
ponto de vista literal comum, a energia eléctrica não pode caber no teor da palavra
“coisa”. Esta pressupõe uma certa materialidade, corporalidade. Por isso, o legislador
alemão criou uma disposição específica para a incriminação e subtracção de energia e
de energia eléctrica: o §248C do Código Penal Alemão. Em Portugal, o desvio de
energias alheia é punido por via de falsificação, danificação ou, eventualmente, de
burla. Em Angola, para além de ainda vigorar o Assento do Supremo Tribunal de
Justiça de 1955, o desvio de energia alheia pode ser furto ou eventualmente burla,
punível nos termos do Código Penal.
O artigo 451.º do Código Penal prevê a Burla por Defraudação. O Tribunal da
Relação de Lisboa, no seu Acórdão de 9 de Outubro de 1954, publicado no Boletim
do Ministério da Justiça, n.º 41, a p. 159, considerou que quem ateasse fogo a coisa
própria com fim de receber o prémio do seguro cometeria o crime de burla por
defraudação. Entende-se que, aqui, a Jurisprudência portuguesa, violou a proibição da
analogia. Com efeito, quem tem um seguro, para que possa receber o prémio tem de
comunicar à companhia a ocorrência do incêndio. Simplesmente, a comunicação, só
por si, não pode caber no teor literal da expressão “artifício fraudulento” prevista no
artigo 451.º do Código Penal de 1886 para efeitos de burla. A jurisprudência praticou
analogia pois o que aqui existia era uma lacuna que não podia ser preenchida por
recurso à analogia, pois tratava-se de uma incriminação.
Para a República de Angola a questão permanece, mas para Portugal o artigo 219.º do
Código Penal de 1892 veio expressamente alterar esta situação criminalizando a burla
relativa a seguros.

b. 2) Questão já mais difícil é a de interpretação da expressão “grupo, organização ou


associação criminosa”. Pergunta-se se a expressão pode integrar apenas duas pessoas
ou se terá, necessariamente, de ser composta por três pessoas.
A Jurisprudência alemã claramente se firmou no sentido de atender a um mínimo de
três pessoas. A jurisprudência portuguesa encontra dificuldades. Com efeito, o artigo
300.º, n.º 2 do Código Penal de 1982 prevê que uma organização terrorista pode ser
composta de apenas duas pessoas. Simplesmente, o teor do artigo 299.º, n.º 1 aponta
para um mínimo de três pessoas. Entendem Figueiredo Dias e Costa Andrade que a

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indicação deverá ser para um mínimo de três pessoas porque a relação entre duas
pessoas acaba geralmente no acordo e não propriamente na associação. 136
c) Castanheira Neves 137 não trata esta questão como relativa ao conteúdo e sentido do
princípio da legalidade mas como “um problema do cumprimento do princípio da
legalidade criminal”. Simplesmente, Figueiredo Dias e Costa Andrade entendem que
a posição teleológica e funcional imposta pelo conteúdo de sentido do princípio é que
conduzem à doutrina da proibição da analogia. É que a aplicação do Direito Penal que
agrave a responsabilidade e, por isso, ultrapasse o significado possível das palavras da
lei conduz ao arbítrio do poder do Estado e, consequentemente ofende os direitos,
liberdades e garantias das pessoas, contrariando a legitimidade das regras do Estado
de Direito.
Que critério deve, então, o intérprete seguir para dentre os sentidos, encontrar o
jurídico-penalmente imposto? Os critérios são os gerais da interpretação jurídica. A
interpretação tem de ser teleologicamente comandada, ou seja, é necessário atender-se
ao fim almejado pela norma e funcionalmente justificado, próprio da função que o
conceito desempenha no sistema. 138
d) Assim expostas as considerações, não faz, já, sentido a preocupação metodológica
que opunha a interpretação subjectivista que tem em conta a vontade do legislador
histórico e a objectivista que se baseia nos sentidos que a regulamentação apresenta
ou assume no momento em que se faz a interpretação.
Não se discute que o intérprete tenha que estar indissoluvelmente ligado aos juízos de
valor, sentido e finalidades do legislador histórico e não às representações fácticas.
Simplesmente, ele tem também de levar em conta a nova realidade, as novas
concepções que o legislador histórico não teria podido considerar.
Mas, ao fazer isso, não pode ultrapassar o teor literal da regulamentação, ao sentido
comum das palavras utilizadas.
e) A distinção entre analogia e interpretação é possível. 139 A interpretação e a
integração são dois momentos de um processo que é o da aplicação do direito.

136
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 176 e 177.
137
Obra referida na nota 3, pp. 106 e ss.
138
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 178.
139
Embora Castanheira Neves entenda que a analogia tenha a ver com a realização do direito e não
com a lei.

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Simplesmente, alguns processos mantêm-se nos quadros dos significados comuns das
palavras usadas pelo legislador e outros em que essa conclusão ultrapassa aquele
quadro. Se se atender a esta consideração está-se a observar o conteúdo de sentido que
legitima o princípio da legalidade.
Acresce que o facto de o texto da lei, o seu teor literal pode estar indeterminado, não
impede que se possa recorrer ao critério da legalidade. Ora, é exactamente essa
indeterminabilidade que conduz ao máximo de interpretação que não pode, em caso
algum, ser ultrapassado. Todos os critérios de aplicação do direito devem funcionar
dentro desse âmbito pois só assim estarão legitimados pelo princípio da legalidade.

II. Âmbito da proibição da analogia

A proibição da analogia vale relativamente a todos os elementos, qualquer que seja a


sua natureza, que fundamentem a responsabilidade e a agravem. Abrange assim: os
elementos constitutivos do crime que vêm descritos na parte especial do Código Penal
e legislação avulsa; as leis penais em branco, não só relativamente à parte
sancionatória mas também na parte em que remete a parte extra-penal 140 ; as
consequências jurídicas do crime, em tudo quanto seja desfavorável ao réu; penas e
medidas de segurança; parte sancionatória das leis penais em branco.
Quanto à parte geral do Código Penal, a proibição à analogia vale para as normais que
constituem alargamento da punibilidade, tentativa (artigo 11.º) e comparticipação
criminosa (autores, cúmplices e encobridores).
Particularmente, as causas de justificação, as causas de exclusão ou atenuação da
culpa e da punibilidade, situações que excluem ou atenuam a responsabilidade do réu
podem ser aplicadas por analogia quando o resultado seja alargar o seu campo de
incidência. Já diminuir esse campo de incidência não é permitido.

140
EDUARDO, Correia, Direito Criminal I, pp. 145.

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10.º CAPÍTULO: APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO E PRINCÍPIO DA


IRRETROACTIVIDADE

I. A resolução do problema da aplicação da lei no tempo é feita através do


designado direito inter-temporal.
No fundo, em Direito Penal, este direito fica reduzido ao princípio que traduz uma das
mais importantes consequências do princípio da legalidade que é a proibição da
retroactividade de tudo quanto funcione contra o réu, ou seja, para utilizar a máxima
latina in malem partem.
Este princípio que expressa a exigência constitucional de que o facto declarado
punível tem que estar anteriormente descrito numa lei penal. 141

II. Determinação do Tempus Delicti


O princípio da irretroactividade tem como pressuposto a determinação do tempus
delicti, ou seja, a determinação do momento da prática do facto.
Simplesmente, o facto pode ser analisado numa acção ou numa omissão. Por isso,
dúvidas se poderão levantar com relação a esse momento pois ele pode situar-se na
conduta ou no resultado da conduta que podem ocorrer em lugar e momento
temporalmente distintos.142
Tanto para a legislação portuguesa como para a proposta de Código Penal angolano,
resultam as seguintes conclusões para a determinação do momento da prática da
infracção, ou seja, o tempus delicti:
a) O que é decisivo é a conduta do agente e não o resultado. Assim, para a
função e sentido do princípio da legalidade é esse o momento a considerar para a
função de tutela dos direitos, liberdades e garantias das pessoas.143 Se, pelo contrário,

141
CARVALHO, Américo Taipa de, Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 1997, pp. 35, 208;
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, p. 183.
142
O actual Código Penal de 1866 nada prevê sobre esta matéria. Contudo, a proposta do Código Penal
vem resolver a questão nos termos seguintes: “O facto considera-se praticado no momento em que o
agente actuou ou, em caso de omissão, deveria ter actuado, independentemente do momento em que o
resultado típico se tenha verificado”. Veja-se também o artigo 3.º do CP Português.
143
CARVALHO, Américo Taipa de, Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 1997, pp. 54 e ss.

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se atendesse apenas ao resultado, levantar-se-iam os problemas que o actual Código


de 1886 coloca em relação a essa matéria o que, não obstante as regras estabelecidas,
pode conduzir ao arbítrio e ao excesso da intervenção punitiva do Estado.
b) Como segunda conclusão, resulta que o princípio da não retroactividade e suas
consequências é aplicável a todos os comparticipantes no facto criminoso, os autores
e os cúmplices (artigos 20.º e 21.º do Código Penal de 1886 e artigos 24.º e 25.º da
proposta) porque ambos são credores da protecção de garantia que é oferecida pelo
princípio da legalidade.
c) De particular realce e como terceira conclusão é o problema que se coloca
relativamente aos crimes de conduta prolongada no tempo. Nesses crimes, uma parte
da conduta ocorre no domínio da lei antiga e outra já no domínio da lei nova. Trata-se
dos chamados crimes duradouros, também pouco correctamente designados por
crimes permanentes.
Segundo Figueiredo Dias e Costa Andrade, a melhor doutrina para solucionar o
problema da retroactividade é a da Lei Alemã §2.º do Código Penal. A solução vai no
sentido de considerar que o momento decisivo é o da cessação da conduta; mas,
enquanto a conduta persistir, se a lei for modificada in malem partem, não haverá
violação da proibição da retroactividade.
Esta é também a solução encontrada para o chamado crime continuado. 144

III. Âmbito de aplicação da proibição: o Princípio da aplicação da lei mais


favorável

III. a) A proibição da retroactividade funciona também a favor do agente e não contra


ele. Assim, a proibição vale para:
• Todos os elementos da punibilidade
• Limitações das causas de justificação
• Limitação das causas de exclusão ou diminuição da culpa
• As consequências jurídicas do crime em geral (penas e medidas de
segurança)145

144
CARVALHO, Américo Taipa de, Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 1997, pp. 61 e ss. Para
este autor, a lei nova mais grave, tratando-se de crime continuado, deve ser aplicada sempre que a
totalidade dos pressupostos da lei nova se tenham verificado na sua vigência.
145
Alguma legislação, por exemplo a Alemã §2, n.º 6 do Código Penal, defende que a proibição não
deve vigorar relativamente às medidas de segurança porque são medidas de prevenção especial positiva

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III. b) Só a lei está sujeita ao princípio da não retroactividade ou também a


jurisprudência? A jurisprudência pode também ser alterada “contra o réu”?
Em princípio, se a jurisprudência se dirige no sentido da clarificação do sentido das
normas legais, da lei, para um melhor conhecimento da teleologia e da função de uma
certa norma jurídica, então, em atenção ao princípio da separação de poderes, a
jurisprudência poderia ser alterada contra o réu.
Simplesmente, uma alteração jurisprudencial como medida retroactiva pode da
mesma maneira que a lei e, em situação concreta, afectar os direitos, liberdades e
garantias das pessoas. Ora, nestes casos importa, pois, que os tribunais sejam
exigentes na interpretação e ofereçam o maior número de “significações comuns que
imputem ao texto da lei”.146

III. c) O princípio da aplicação da lei mais favorável


Este é o princípio que exprime a consequência teórica mais importante da proibição
da retroactividade em Direito Penal. O princípio da aplicação da lei mais favorável,
lex mellore (a melhor lei).
Vem previsto na 2.ª excepção do artigo 6.º do Código Penal de 1886. O problema que
aqui se coloca é o de saber que lei aplicar naqueles casos em que os factos ocorrem na
vigência de uma determinada lei e, mais tarde, entre em vigor uma lei nova que vem
estabelecer um regime diferente para aqueles mesmos factos.
Pergunta-se se, nesses casos, a lei nova pode ou não ser aplicada retroactivamente.147

que vão no sentido do bem do agente. Durante algum tempo, em Portugal e na vigência do Código
Penal de 1886, Beleza dos Santos, Eduardo Correia e Cavaleiro de Ferreira defenderam a não aplicação
da proibição às medidas de segurança. Hoje, porém, a com a Nova Constituição da República
Portuguesa e com a entrada em vigor do Código Penal de 1982 há injunções (vejam-se os artigos 29.º,
n.º 1 e n.º 3 da CRP e os artigos 1.º e 2.º do Código Penal Português) que expressamente afastam essa
doutrina. É um facto que também relativamente à realização e execução das medidas de segurança se
faz sentir a necessidade de protecção dos direitos, liberdades e garantias das pessoas atingidas, pelo que
em relação às medidas de segurança, também devem presidir as mesmas razões que assistem às penas.
146
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 186 e 187.
147
O n.º 4 do artigo 29.º da CRP fixou com clareza o regime da retroactividade da lei penal mais
favorável. Assim, conferiu ao regime o relevo jurídico necessário para a salvaguarda dos direitos,
liberdade e garantias. Contudo, esta consagração levanta algumas questões que reputo importante
ressaltar. a) As situações de descriminalização em sentido técnico, ou seja, situações em que uma lei
posterior vem dizer que o facto deixou de ser considerado crime – trata-se do n.º 2 do artigo 2.º do
Código Penal Português. A Solução proposta é perfeitamente compreensível. Com efeito, se a
concepção do legislador se alterou, não parece ser político-criminalmente coerente manter-se uma
concepção já ultrapassada. Por outro lado, b) se a lei nova deixa de considerar a conduta como crime e
passa a trata-la como contra-ordenação, a Doutrina divide-se: b.1) CARVALHO, Américo Taipa de,
Sucessão de Leis Penais, pp. 88 e ss., entende que, ao qualificar-se a conduta como contra-ordenação é
uma descriminalização do facto. Assim, a nova lei apenas pode vigorar para o futuro. Não se aplica

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As soluções apresentadas em nota, respeitam à legislação portuguesa. Para o caso de


Angola e, em termos de direito constituído, vigora o artigo 6.º do Código Penal de
1886.148
Como direito a constituir, o Projecto de Constituição, prevê no n.º 2 do artigo 75.º: “A
lei penal só se aplica retroactivamente quando disso resultar beneficio para o
arguido”. Pode daqui retirar-se o entendimento sobre a aplicação da lei mais
favorável.
Por outro lado, a proposta de Código Penal prevê, no artigo 2.º 149, as situações de
retroactividade da lei mais favorável.
Excepção ao princípio da aplicação da lei mais favorável está consagrada nas
chamadas leis temporárias e leis de emergência. As leis temporárias são as que se
destinam a vigorar durante um período determinado de tempo que elas mesmas
definem (leis temporárias em sentido amplo). Leis de emergência são aquelas que
vigoram enquanto durar uma situação de crise (leis temporárias em sentido estrito).
Ambas são leis de crise e cessam a sua vigência uma vez decorrido o período de
tempo para o qual foram criadas.
Relativamente a elas vigora o princípio da não retroactividade da lei mais favorável. a
razão de ser dessa solução reside no facto de a modificação legal ter ocorrido não por
causa de uma alteração de concepção do legislador mas de uma mudança das
circunstâncias de facto que presidiram à sua publicação (veja-se, por exemplo, em
matéria de direito penal económico).

retroactivamente. Outros Autores, na Alemanha, entendem que o que aqui se passa é uma alteração
modificação da concepção do legislador, no sentido de aplicar um regime mais favorável. Não há aqui
uma qualquer interrupção do juízo de sancionabilidade porque o ocorreu foi uma modificação na
natureza da infracção. Logo, a lei nova aplica-se retroactivamente porque é mais favorável. c) Nos
casos em que a lei nova atenua as consequências jurídicas que se ligam ao facto – penas, medidas de
segurança e respectivos efeitos – entendem Figueiredo Dias e Costa Andrade que a lei nova deve
aplicar-se retroactivamente, desde que mais favorável (n.º4 do artigo 2.º do Código Penal Português).
d) A questão das leis intermédias que vem muito claramente coberta tanto pelo n.º 4 do artigo 2.º do CP
Português como pelo n.º 4 do artigo 29.º da CRP. Com efeito, trata-se da seguinte situação: Um lei
entra em vigor depois da prática do crime e vem puni-lo mais levemente. Entretanto, esta mesma lei
deixa de vigorar antes do crime ser julgado e, entra em vigor uma outra, que vem punir o mesmo crime
de forma outra vez mais severa. Pergunta-se: que lei aplicar? A intermédia que veio punir mais
levemente ou a nova lei? Responde-se a lei intermédia porque é a mais favorável. Para além disso, o
facto da publicação da lei intermédia fez com que o réu tivesse ganho uma posição jurídica que lhe
permite de um ponto de vista funcional e teleológico, beneficiar da proibição da retroactividade da lei
mais grave, posterior. Logo, sempre que a lei intermédia se mostrar mais favorável, é ela que deve ser
aplicada. Saber-se quando é que um determinado regime se mostra mais favorável ao agente, só em
face do caso concreto.
148
Vide RODRIGUES, Orlando Ferreira, “Direito Penal – apontamentos”, Fasc. I, pp. 37 a 33.
149
Artigo 2.º (Aplicação da Lei no Tempo)

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No caso das leis temporárias e das leis de emergência não há expectativas que
mereçam ser tuteladas.150

11.º CAPÍTULO: O ÂMBITO DA VALIDADE ESPACIAL DA LEI PENAL151

I. O sistema de aplicação da lei penal no espaço e seus princípios


constitutivos

I. 1. Os Códigos Penais têm sempre disposições relativas ao âmbito espacial das suas
normas. Elas contêm o conjunto de regras e critérios de aplicação da lei penal no
espaço. Vulgarmente, este conjunto de normas é crismado como direito penal
internacional. Porém, este designativo tem sido criticado, primeiro porque estas não
são normas de direito internacional, mas nacional e, em segundo lugar, porque elas
não são normas de colisão como as de direito internacional privado.
Por outro lado, elas também não são normas de direito internacional público. A estas,
chama-se direito internacional penal que aqui não vamos tratar.
O que pretendo trazer agora é o direito penal internacional, conjunto de normas
nacionais que regulam a aplicação da lei penal no espaço. 152

I. 2. O sistema de aplicação da lei penal no espaço baseia-se em diversos princípios e


num modelo da sua combinação. Os princípios não estão todos ao mesmo nível de
hierarquia. Existe um princípio base fundamental, o princípio da territorialidade e
princípios acessórios ou complementares que são: o princípio da nacionalidade, da
defesa do interesse nacional e o da universalidade.

150
Discute-se na doutrina portuguesa da inconstitucionalidade dessa solução. CARVALHO, Américo
Taipa de, Sucessão de Leis Penais, pp. 164 e ss. entende tratar-se de uma inconstitucionalidade porque
o artigo 29.º da CRP não a consagra. DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa,
Direito Penal – questões fundamentais, 1996, pp. 193 e 194 defende que não porque “nem as leis
constitucionais ou os seus silêncios devem em caso algum ser interpretados contra a sua teleologia e a
sua funcionalidade específicas”.
151
A matéria referente a este capítulo é a que consta do texto RODRIGUES, Orlando Ferreira, “Direito
Penal – apontamentos”, Fasc. I, pp. 33 a 42, em virtude de ela ali estar doutrinada de acordo com o
direito constituído previsto no Código Penal de 1886. As referencias que farei serão para dar a
conhecer o que vem proposto em termos de direito a constituir.
152
CORREIA, Eduardo, Direito Criminal I, pp. 164 e ss.; DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE,
Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais, 1996, pp. 195 e ss.; FURTADO dos Santos,
Boletim do Ministério da Justiça, n.º 92, 1960, pp. 159 e ss.

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I. 3. O que me interessa trazer é a proposta da Parte Geral do Código Penal da


República de Angola que vem resolver três questões fundamentais que o Código de
1866 não pode resolver.
Em primeiro lugar, a questão da delimitação do espaço territorial para efeitos de
aplicação do princípio da territorialidade. Com efeito, o artigo 4.º da proposta
estabelece: “Salvo convenção internacional em contrário, a lei penal angolana é
aplicável a factos praticados em território angolano ou a bordo de navios ou
aeronaves de matrícula ou sob pavilhão angolanos, independentemente da
nacionalidade do agente.”.
Fica por aqui proposta a resolução da questão da interpretação extensiva ou aplicação
analógica do n.º 2 do artigo 6.º do Código Penal de 1866.
Em segundo lugar, a determinação do locus delicti. No artigo 6.º propõe-se: “o facto
considera-se praticado tanto no lugar em que total ou parcialmente e sob qualquer
forma de comparticipação o agente actuou ou, no caso de omissão, deveria ter
actuado, como naquele em que o resultado típico se tiver verificado”.
Fica, pela proposta, resolvida a adopção da doutrina da ubiquidade em matéria de
determinação do lugar da prática da infracção.
Em terceiro lugar, o artigo 5.º vem propor a resolução de questões relativas à defesa
dos interesses jurídicos internacionais e o agente seja angolano, se encontre em angola
e, por isso, não possa ser extraditado. Também dos casos em que está em causa a
defesa de interesses de cidadãos angolanos e ainda daqueles em que se trate de crimes
que por convenção internacional o Estado angolano se tenha obrigado a julgar. 153

153
Artigo 5.º (Aplicação da lei penal angolana a factos cometidos fora do território nacional)

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Parte II

A DOUTRINA GERAL DO CRIME

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TEXTO N.º 13

TÍTULO I: PROBLEMAS FUNDAMENTAIS

13.º CAPÍTULO: A CONSTRUÇÃO DOGMÁTICA DA DOUTRINA DO CRIME


(DO FACTO PUNÍVEL)

I. Sentido, Método e estrutura do conceito de facto punível

Depois do que se referiu acerca da legitimidade do Direito Penal no Estado


democrático de direito e das considerações feitas a propósito do princípio da
legalidade, é, hoje, princípio assente em matéria de Dogmática Penal e construção da
doutrina do crime que o direito penal é um direito penal do facto e não um direito
penal do agente.

a) A questão deve ser entendida num duplo sentido; primeiro porque


regulamentação jurídico-penal liga a punibilidade a tipos de agente ou às
características da sua personalidade. Em segundo lugar as sanções são aplicadas ao
agente como resposta àqueles factos singulares e não como forma de reacção directa
contra certa personalidade ou tipo de personalidade.
b) Nos trinta anos do Séc. XX na Europa, essa discussão foi afastada por certa
doutrina, sobretudo depois que elas mereceram uma utilização para fins políticos
como aconteceu na Alemanha e na Itália. Chegou-se a propor que os tipos de factos
que integravam a matéria do direito penal fossem substituídos ou mesmo integrados
por tipos de agentes. Assim, em vez de termos o “homicídio” teríamos o “homicida”,
“o ladrão”, o “burlão”, etc.
Entretanto, discutia-se já se esses tipos de agente deveriam ser construídos numa base
naturalista ou seja, a partir das características da sua personalidade e dificuldade em
se adaptar a um certo meio social e assim ser designado tipo criminológico de agente
no entender de Wolf (1923) ou se a partir das finalidades sociais que a Ordem Jurídica

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pretendesse atingir e criava-se, a partir daqui, o designado tipo normativo de agente,


Dahm (1940, Alemanha).154
As referidas doutrinas pelo resultado que produziu a sua utilização por parte da
políticas totalitaristas, fascistas, foram pura e simplesmente afastadas, embora se diga
que a doutrina do tipo normativo de agente tivesse sido depois utilizada para limitar
os resultados negativos a que conduzia a aplicação daquele direito penal terrorista da
época da Segunda Guerra Mundial.

c) Para além do conceito de tipos de agentes, desenvolveu-se na mesma linha o


conceito de culpa referida à personalidade. Esta doutrina conheceu várias vertentes:
culpa na condução da vida, desenvolvida por Mezger em 1938, culpa da decisão da
vida formulada por Bockelmann, 1940; culpa na formação da personalidade
apresentada em Portugal por Eduardo Correia, 1945 155
Parece claro que por ligarem a punibilidade de forma directa a uma certa
personalidade, estas doutrinas são de afastar. Com efeito, se o agente conduziu a sua
vida em conflito com o dever ser jurídico-penal, se em determinado momento decidiu
tornar-se criminoso ou ainda se ao longo da sua vida não se preparou para respeitar os
comandos da lei do direito penal, não se pode por aqui defender um direito penal do
agente porque as razões expostas levariam a um alargamento das malhas da
punibilidade absolutamente incompatível com as regras do Estado de Direito
democrático.
Contudo, se tais considerações foram feitas no domínio de um direito penal do facto e
restritas a serem utilizadas como instrumentos de operação não da extensão da
punibilidade para além das fronteiras do facto mas para fundamentar e delimitar a
culpa em direito penal, muitas delas serão bem-vindas.

d) Acresce que mesmo em matéria de medidas de segurança é o facto que


constitui o fundamento e o limite dogmático do conceito geral de crime. Assim,

154
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 226; CORREIA, Eduardo, “A teoria do tipo normativo de agente”, Boletim da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, 1943, pp. 11; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas Básicos..., pp.
190.
155
CORREIA, Eduardo, “A doutrina da Culpa na formação da personalidade” in Revista de Direito e
Estudos sociais, 1945, fasc. 6, p. 24.

107
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perguntar pelo crime é falar do conceito de facto, ou melhor, do conceito de facto


punível ou de facto criminoso.
Já ficou referido que a tarefa da determinação do conceito geral de crime constitui
uma das mais ingentes a que a dogmática jurídico-penal se dedicou.156

e) A tentativa de se encontrar um conceito geral de crime aconteceu nos dois


penúltimos séculos, ou seja, séc. XVIII e XIX e foi feito utilizando-se um método que
se designou categorial classificatório, segundo o qual se tomou como base um
conceito geral – o conceito de acção.
Esse conceito foi utilizado para servir de pedra angular (base) de toda a construção
posterior, por se tratar de um conceito extenso e de reduzida compreensão. Alguns
autores criticaram este método, considerando que ele desagregava, dividia o conceito
em pedaços autónomos. Mas os defensores do método e com eles Figueiredo Dias e
Costa Andrade entendem que o método utilizado pode permitir antes alcançar uma
compreensão unitária do conceito pela tomada em consideração de forma sucessiva
dos seus elementos constitutivos. Parte-se de uma compreensão lógico-sistemática
que leva a que uma realidade unitária seja apreciada a partir de diversos pontos de
vista.
Com esse método e procedimento, chega-se à compreensão do facto, crime, como um
conjunto de cinco elementos: a acção, típica, ilícita, culposa e punível. Concepção
quadripartida, ou seja, os elementos do conceito de crime seriam a acção, a tipicidade,
a ilicitude, a culpabilidade e punibilidade. São esses os elementos que são estudados
no sistema dogmático-sistemático.

f) Foi todo o sistema acabado de referir que nos anos 30 do séc. XX é posto em
causa pela denominada Escola de Kiel. 157 No contexto político em que esta escola se
desenvolveu acabou por ser utilizada pelo nacional socialismo europeu e os seus

156
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 228; DIAS, Jorge de Figueiredo, Temas Básicos..., pp. 191.; CORREIA, Eduardo, Unidade
e Pluralidade de Infracções, 1974, pp. 94 e ss.
157
A escola de Kiel (assim designada porque o expoente máximo das suas teses, assim se chamava)
criticou os pressupostos do neokantismo. As suas ideias assentaram numa interpretação de alguns
pontos da filosofia de Hegel. A partir daqui virou as suas baterias contra aquilo que chamou de
“irrealidade”. Para esta escola, o conceito de crime não deveria ser desagregado pois isso torná-lo-ia
irreal. Por isso defende a manutenção da unidade do conceito.

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postulados nunca mais foram editados nem ganharam qualquer expressão no direito
penal.158

II. Evolução histórica da moderna doutrina geral da construção do facto


punível

A construção do conceito de crime faz parte de toda uma experiência e evolução


histórico-dogmática dos últimos dois séculos. Para tal tiveram influência as
concepções culturais, filosóficas, ideológicas e políticas. Pode-se distinguir três
grandes períodos, fases ou escolas:
a) A escola moderna que sofreu uma influência notoriamente positivista
naturalista do direito;
b) A escola neoclássica que assentou num normativismo neokantiano;
c) A escola finalista orientada para uma concepção ôntica ou ontológica do
direito ligada à fenomenologia e a uma filosofia material dos valores.

Cada uma dessas escolas procurou superar a anterior. Contudo, e como disse Jescheck
“nenhuma das teorias conseguiu afastar completamente as outras, continuando ainda
hoje vivos uns junto aos outros procedentes dos três sistemas”. 159

a) Escola Moderna (positivista-naturalista) do conceito de crime

1. Exposição
A concepção “moderna” de facto punível remonta a von Liszt e Beling (para alguns
conhecida como Escola Clássica do direito penal) e foi patrona do pensamento
científico que dominou durante a segunda metade do séc. XIX.
O direito aqui entendido com um ideal que assentava na exactidão científica própria
das ciências da natureza e deveria incondicionalmente a ela submeter-se. Assim, o
sistema do facto punível deveria também ser constituído por realidades mensuráveis

158
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 229; CORREIA, Eduardo, Unidade e Pluralidade de Infracções, 1974, pp. 92 e ss.
159
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 230; JESCHECK, Hans-Heinrich, Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4.ª Edición,
completamente corregida y ampliada, Traducción de José Luis Manzanares Samaniego, Editorial
Comares – Granada, pp. 180.

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e, por isso, empiricamente comprováveis. Quer se tratasse de realidades objectivas do


mundo exterior, quer de processos psíquicos internos (subjectivos) tudo tinha que ser
susceptível de comprovação por meio de experiência.
Desta perspectiva, o facto punível (o crime) tinha que abarcar duas vertentes – uma
que agrupava os elementos constitutivos na vertente objectiva (a acção típica e ilícita)
e outra que continha os elementos subjectivos (a acção culposa). Esta concepção
domina ainda hoje a doutrina francesa para a qual o conceito de crime integra um
elemento material e um elemento moral.

Para a escola clássica, moderna (positivista-naturalista) o conceito de crime continha


dois elementos: um elemento objectivo e um elemento subjectivo.

Elemento Objectivo
a) A acção que era um movimento corporal que determina uma modificação essa
causalmente ligada à vontade do agente.
b) Essa acção, se fosse lógico-formalmente subsumível num tipo de crime,
tornava-se típica (de notar que aqui não entra em linha de conta qualquer referencia a
valores ou a sentidos, apenas movimento físico)
c) A acção típica, tornava-se ilícita porque contrária ao direito. Só assim não
acontecia se interviesse uma causa de justificação, ou seja, uma situação de legítima
defesa, estado de necessidade, obediência hierárquica devida que, neste caso, tornaria
a acção lícita.

Elemento Subjectivo
Neste elemento, apenas haveria que se proceder à verificação da culpa.
A acção típica e ilícita tornava-se culposa sempre que fosse possível comprovar a
existência de uma ligação psicológica entre o agente (imputável, capaz de culpa) e o
facto. Tratou-se da chamada concepção psicológica da culpa. A ligação permitia
imputar o facto ao agente, a título de dolo (que era o conhecimento e a vontade de
realização do facto) ou de negligência (deficiente vontade de realização do facto).

2. Crítica
Desde logo, o conceito de acção ao exigir um movimento corpóreo e uma
modificação do mundo exterior, dificulta toda a base da construção, a tal ponto que,

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no crime de injúrias se dizia que a acção tinha de se traduzir na emissão de ondas


sonoras dirigidas ao aparelho do receptor.
Por outro lado, a tipicidade, porque reduzida a uma operação lógico-formal de
subsunção, sem se tomar em consideração o sentido social que os tipos incorporam,
era o mesmo que equiparar o acto de um cirurgião que a salva a vida de um paciente
(abrindo-lhe, por exemplo, o abdómen) com o de um faquista que abre o ventre da
vítima apenas para a roubar.
O juízo de ilicitude reduzido à ausência de uma causa de justificação mostrava-se
muito pobre se se tomar em consideração o que subjaz ao juízo de contrariedade à
ordem jurídica.
A culpa reduzida à sua concepção psicológica esqueceu-se de que o inimputável,
embora incapaz de culpa, pode agir com dolo ou com negligência. Na negligência
inconsciente, por exemplo, não há previsão do resultado. Por isso, não há qualquer
relação psicológica entre o agente e o facto.
Para além do exposto, não se pode, para efeitos de ausência de culpa, ficar reduzido
ao dolo e à negligência porque outras circunstâncias existem que podem excluir a
culpa: por exemplo, a falta de consciência do ilícito ou a inexigibilidade de outro
comportamento (casos em que não podia ser exigido outro comportamento).

3. Conclusão
Os fundamentos ideológicos e filosóficos em que assentou a concepção da Escola
Clássica, levaram à sua negação. Não se pode deixar de reconhecer o mérito desta
escola pelo facto de, pela primeira vez, se ter assente o sistema do crime numa
rigorosa metódica categorial-classificatória. Esta metódica é clara e simples, permite
distinguir as vertentes objectiva e subjectiva do conceito e, sobretudo, ressaltar uma
notável preocupação de segurança e certeza que são próprios do Estado de direito.

4. Fraquezas 160
O direito em geral e o direito penal em particular, tratam ou lidam com realidade que
ultrapassam a esfera psico-física e não se limitam ao mundo do ser. Não se esgota
numa metodologia de cariz positivista nem em operações de pura lógica-formal.

160
Pelo exposto, DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões
fundamentais, 1996, pp. 230 a 233; sobre as fraquezas da Escola Clássica, ver também, CORREIA,
Eduardo, Unidade e Pluralidade de Infracções, 1974, pp. 69 e ss.

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Assim, a partir deste ponto de vista, o conceito de crime da escola clássica estava em
condições de ser substituído por um outro.

b) Escola Neoclássica (normativista) do conceito de crime

1. Exposição
O sistema neoclássico encontra os seus fundamentos na filosofia de origem
neokantiana desenvolvida nas primeiras décadas do séc. XX, pela Escola Sul-
Ocidental Alemã ou Escola de Baden onde se destacaram as figuras de Windelband,
Rickert e Lask.

Por esta escola, o direito era ciência do espírito e, por isso, deveria ser retirado do
mundo do ser para passar a constituir o mundo do “dever ser”. Estavam aqui em causa
valores e sentidos. Assim, o sistema do crime tem que ser preenchido com essas
referências. O crime é um ilícito e o ilícito produz “danosidade social”. A culpa é
censurabilidade e o agente é censurado por ter agido como agiu, quando poderia agir
de outro modo.

Na Alemanha foi representante deste pensamento Mezger (1883-1962); em Portugal o


representante dessa escola foi Eduardo Correia (1916 – 1991).

A acção, para esta escola, continuou a ser um comportamento humano que causa uma
modificação no mundo exterior por vontade do agente. É verdade que agora recheado
com a ideia de “relevância social” e não já só o movimento em sentido físico.

A tipicidade já não era a descrição formal externa de comportamentos mas de um


ponto de vista material (do conteúdo) a tipicidade era vista como uma unidade de
sentido socialmente danoso onde deveria ser considerada a presença de elementos
objectivos e subjectivos.

O ilícito também deixou de ser a simples contrariedade ao direito para integrar


elementos objectivos e subjectivos. Só verificados esses se podia concluir pela
contrariedade ao direito. Exemplo: no furto, o ilícito deixou de ser a simples

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subtracção da coisa móvel alheia, passando a ser ilícito só quando houvesse uma
“legítima intenção de apropriação”.

A culpa é um juízo de censura – a chamada concepção normativa de culpa que passa a


integrar também elementos objectivos como a imputabilidade, ou seja, a capacidade
que o agente tem para avaliar a ilicitude do acto ou decidir-se por essa avaliação; o
dolo ou negligência como formas ou graus de culpa; a exigibilidade ou seja não poder
ser exigido ao agente um comportamento diferente, ou seja, um comportamento
conforme ao direito.

2. Crítica
Os fundamentos ideológicos e filosóficos da concepção neoclássica podem hoje ser
considerados largamente ultrapassados. Com efeito, hoje não é já defensável que a
essência do direito radique numa cisão entre o mundo do ser (a realidade) e o mundo
do dever ser (o direito). De resto, essa tese defendida até às últimas consequências
acabava por redundar nas teses do formalismo positivista.

Mas as principais críticas sobre a construção do sistema do crime vieram de Welzel


(em inúmeros estudos, em 1939 e anos seguintes). 161

Welzel atacou principalmente o conceito mecânico causalista da acção, ponto de


partida donde resultaram todos os erros posteriores do sistema. O ilícito apesar da
introdução de elementos subjectivos, continuava a ser uma entidade
fundamentalmente objectiva que não se importava com a carga ético-social que
aquele contém. Assim, podia servir para a correcção caracterizar a contrariedade da
acção à ordem jurídica. Quanto à culpa, embora assente num juízo de censura,
continuava a confundir objecto da valoração com valoração do objecto, ou seja,
continuou-se a submeter ao mesmo denominador comum características que como a
imputabilidade e a exigibilidade são elementos a que se tem de recorrer para se emitir
o juízo de valor em torno da conduta do agente e outras como o dolo e a negligência

DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
161

1996, pp. 230 e ss.

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que são verdadeiros elementos do substrato que deve ser valorado como
censurável.162

c) A Escola Finalista (ôntico-fenomenológica) do conceito de crime

1. Exposição
O normativismo de raiz neokantiana não ofereceu garantias de justiça. Haveria, então,
que se substituir definitivamente o Estado de direito formal pelo Estado de direito
material. A via normativista deveria ser substituída pela fenomenológica
“ontológica”, “ôntica”. As leis deveriam ser determinadas a partir do “ser”, da
“natureza das coisas” que uma vez estabelecidas serviriam de fundamento às ciências
do homem e consequentemente ao direito.
Hans Welzel (1904-1977) foi o defensor desse património. Transpôs para o jurídico as
ideias ôntico-fenomenológicas. Para Welzel, o importante era determinar o “ser”, a
“natureza das coisas” que se escondia sob o conceito fundamental de toda a
construção do crime – a acção.
Welzel encontrou a essência da acção humana na verificação de que o “homem dirige
finalisticamente os processos causais naturais em direcção a fins mentalmente
antecipados, escolhendo para o efeito os meios correspondentes”. 163
O conceito de acção foi entendido por Welzel como um conceito pré-jurídico que
deveria ser determinado a partir do “ser”, do existente ontologicamente. Esse conceito
uma vez aceite pelo legislador já não poderia ser, ainda que por ele, reconfirmado, ou
seja, o conceito tinha que ser aceite não apenas em si mesmo como nas suas
implicações normativas, devendo a construção do sistema do facto como do crime,
resultar daqui.164
É esta “natureza ontológica” da acção que servirá de base à construção de todo o
sistema do crime. Este era para Welzel um princípio imutável tanto no tempo como
no espaço. A partir daqui e durante as décadas que se seguiram ao fim da Segunda
Guerra Mundial, esta foi a concepção dominante. Embora se possam dirigir severas

162
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 236 e ss.
163
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 238.

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críticas à Escola Finalista, não se pode deixar de reconhecer o contributo científico


por ela trazido já que tais aquisições não tiveram ainda, até hoje, soluções
alternativas.165
Da perspectiva de Welzel podem retirar-se importantes consequências:

A primeira derivada do facto de o dolo, que tanto para a escola clássica como para a
escola neoclássica pertenciam à culpa, terem passado a pertencer ao tipo, à tipicidade.
Relembrando a Escola Neoclássica (normativista) o tipo podia, por vezes, conter
elementos subjectivos, mas o seu núcleo essencial era constituído por elementos
objectivos. O finalismo rejeitou essa postura e defendeu que o tipo é sempre
constituído por uma vertente objectiva (os elementos descritivos do agente, da
conduta, o circunstancialismo em que os facto ocorrem) e por uma vertente subjectiva
(o dolo ou, eventualmente, a negligência).

Passa-se assim de uma concepção causal-objectiva para uma concepção pessoal final
do ilícito. Só este entendimento pode verdadeiramente levar a uma concepção
normativa de culpa. Segundo o finalismo, o eero na doutrina neoclássica foi ter
juntando na culpa, tanto a valoração (juízo de censura que constitui a valoração, o
assinalar o valor de uma coisa) com o objecto da valoração (o dolo – do qual faria
parte a consciente, ao menos parcial, do ilícito e a negligência). O finalismo retira da
culpa o objecto da valoração, o dolo, e coloca-o no tipo de ilícito. Assim, a culpa fica,
como diz Figueiredo Dias e Costa Andrade, purificada e reduzida àquilo que
efectivamente deve ser.
Um puro juízo de desvalor “um autêntico juízo de censura e dela passam a fazer parte
os elementos da imputabilidade que são a consciência do ilícito (ao menos potencial)
e a exigibilidade de outro comportamento. 166

Assim, para o finalismo:


a) A acção é um comportamento humano dirigido a um fim antecipadamente
escolhido e utilizando os meios correspondentes para atingir o referido fim.

164
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 238
165
De notar que o programa da cadeira de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade
Agostinho Neto ficou aqui nos doutrinas finalistas.

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b) A tipicidade contém uma vertente objectiva (elementos descritivos da conduta


do agente e o circunstancialismo em que a conduta ocorre) e uma vertente subjectiva,
o dolo e a negligência.
c) A ilicitude é o juízo que resulta da conjugação dos elementos objectivos e
subjectivos do tipo. O juízo de ilicitude é a contrariedade à ordem jurídica. Defende-
se aqui uma concepção pessoal-final de ilícito.
d) A culpa é censurabilidade, é um juízo de censura que se dirige a agente por se
ter comportado da forma como se comportou e dela fazem parte a imputabilidade
(consciência do ilícito) e a exigibilidade (o poder-se ou não exigir do agente um outro
comportamento).

2. Críticas

a) Do ponto de vista de Figueiredo Dias e Costa Andrade, a postura


metodológica da escola finalista é de rejeitar o “ontologismo” em que se baseou e
que tornaria a doutrina da acção imutável e válida para todos os tempos e lugares,
acabou por desembocar num conceitualismo tal que não dava ao legislador opções
jurídico-política e muito menos de política criminal. Por aqui também o aplicador da
lei e o intérprete na sua actividade concretizadora estariam bloqueados. Estaria
Welzel, a final, a repetir os mesmos erros cometidos pelo velho direito natural
clássico. Ali, os conceitos do direito positivo eram preenchidos com conteúdos
considerados mais correctos e justos. Depois eram em seguida deduzidos do corpo do
direito natural e apresentados como vinculantes e livres de toda a discussão.
b) O próprio conceito de acção finalista entende-se hoje que radicou num falso
ontologismo dado que a ciência biológica defende que hoje o homem não é o único
ser vivo que antecipa os fins e escolhe os meios que pretende utilizar para alcançar
com a sua acção.167
c) Do ponto de vista normativo (dos valores) também não oferece uma base
unitária para todo o actuar humano relevante para o direito penal. A

166
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 238 e 239.
167
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões fundamentais,
1996, pp. 240

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“supradeterminação final de um processo causal é também estranha a sentidos e a


valores”.168

d) A Concepção Teleológica –funcional e Racional do Conceito de Facto


Punível.

1. Considerações preliminares
A concepção que agora se apresenta, não está a ser trazida como uma via
intermédia entre as construções normativa e finalista, embora na actualidade,
a concepção do conceito de facto punível possa, em certa medida ser
reconduzida quer a uma “ normativização da finalidade,” ou a uma
“finalização da normatividade” , 169 embora se reconheça que as posições
metodológicas as escola neo – clássica tanto sobre a estrutura naturalística ou
ôntica dos conceitos jurídicos, como sobre o domínio ilimitado das valorações
normativas, tivessem sido considerados válidos, o que Figueiredo Dias de
trás é um sistema emergente “ comandado pela convicção de que a construção
do conceito de facto punível deve apresentar –se como teleológica funcional e
racional.
Daqui deve entender-se que possui postulados próprios e
desenvolvimentos também próprios conduzidos pela convicção de que o
sistema e seus conceitos são formados por valorações que se fundamentam em
proposições de política criminal, que pertencem ao quadro de valores e as
finalidades jurídicas constitucionais. O percursor desta concepção, é KLAUS
ROXIN, que em 1970 a propósito das relações que se estabelecem entre a
política criminal e a Dogmática Jurídico-penal do sistema do facto punível.
SCHÜNEMANN e WOLTER, aprofundaram-no do ponto de vista
dogmático e o próprio ROXIN, no seu Tratado o sistematizou, tendo sido
referenciada em livros livros em homenagem ao próprio Roxin.
Em Portugal , Figueiredo Dias e Costa Andrade, dentre outros, são
expoentes e representantes dessa concepção e nós, na nossa Escola, também a
temos seguido.

168
DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, Direito Penal – questões
fundamentais, 1996, pp. 240.

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2. O conceito de acção. Discussão. Formas Básicas do aparecimento do


crime.
2.1.As funções do conceito dentro de um sistema categorial classificatório
O conceito de acção foi, desde sempre e até aqui, visto como a “ base
autónoma unitária da construção do sistema , capaz de suportar as posteriores
predicações da tipicidade, da ilicitude ( antijuridicidade) da culpa e da
punibilidade, sem contudo as pré-determinar”.170
Para que assim possa ser, o conceito tem de, segundo JESCHECK, poder
desempenhar várias funções: de classificação, de definição e de delimitação.
a) A função de classificação permitiria que ele tivesse um caracter de
conceito superior, para abranger todas as formas possíveis de
aparecimento do comportamento, tanto como acção, como omissão, forma
dolosa ou negligente.
b) Pela função de definição e ligação o conceito teria de ter capacidade para,
por um lado, abranger todas as predicações posteriores ( acção típica,
ilícita, culposa e punível), mas por outra, sem as determinar, ou seja, sem
antecipar o significado material específico de cada uma;
c) Na função de delimitação, o conceito tem de permitir que a partir dele se
excluam todas as outras formas de comportamento que não sejam
relevantes para o direito penal e para a construção dogmática do conceito
de facto punível, como ( acontecimentos naturais, comportamentos de
animais, os pensamentos, os actos reflexos).

A ter que desempenhar as funções acima referidas, o puro conceito causal


naturalístico não pode mais ser defendido, nem o pode ser o conceito puramente
normativo. Resta, o conceito de acção final e o conceito de acção social, apoiado na
ideia de que o conceito jurídico-penal de acção, não tem de ser uma mera tradução da
realidade natural ou ôntica. Ele deve traduzir sempre uma valoração social.
Assim, considerando que tanto a orientação finalista como a objectivista
social, desde que normativizadas , podem contribuir de forma decisiva, para a

169 DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal – questões fundamentais, Coimbra Editora, 2007, p.
248, 249.
170 Idem, p. 251.

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obtenção de uma síntese de factores ônticos e axiológicos, a verdade é que é preciso


encontrar um conceito que sirva, simultaneamente, a pluralidade de funções que ele
deve cumprir como suporte de todo o sistema do facto punível. Ao conceito final de
acção foi negada a possibilidade de se querer arvorar em conceito geral de acção ,
mas também o não conseguiu o conceito “ negativo de acção” nem o conceito pessoal
de acção .171
Uma vez que o conceito de acção em qualquer das concepções propostas em
que se implica um conceito pré-jurídico geral de acçap, não logrou vingar, Figueiredo
Dias, propõe que a teoria da acção ceda a primazia à teoria da realização típica do
ilícito.
Contudo, isto não significa que se deva renunciar ao pensamento categorial
classificatório na construção do conceito de facto punível, mas o que se deve fazer é
renunciar a colocar-se como elemento básico do sistema um conceito geral de acção
com as funções de classificação, definição e ligação. O que a construção se deve
ocupar é de encontrar compreendendo as concretas acções e omissões dolosas e
negligentes que se apresentem como jurídico-penalmente relevantes, tal como se
apresentam nos tipos de ilícito. Isto significa que a doutrina do facto punível, deve
ceder a primazia à doutrina da acção típica, ou da realização do tipo de ilícito e, ao
conceito de acção, apenas caberia a “ função de integrar , no âmbito da teoria do tipo,
o meio adequado de proepecção da espécie de actuação”, 172 ou como diz JESCHECK,
passando a caber-lhe apenas uma restrita função de delimitação.
Assim, dentro do sistema funcional e racional, a função que o conceito de ação
pode ter, só pode ser a de que, com ele se pretende excluir tudo o que desde o início
pode relevar para as posteriores valorações, nomeadamente, para as categorias de
proibido e permitido.
Mas a determinação do conceito de acção fica pré-judicada, precisamente
porque a categoria que vão exercer a função de estabelecer a fronteira entre o proibido
e o permitido é o Tipo. Resulta daqui que mesmo a função de delimitação não deve
ser desempenhada por um conceito geral de acção, mas por vários conceitos de acção
tipicamente conformados. Não se assiste a uma eliminação do conceito de acção, mas
o que acontece é que ele perde autonomia e capacidade para ser a pedra base do
sistema. O conceito passa a ser apenas um elemento, tal como os demais integrantes

171 Idem, ibidem, pp.254 a 258.

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do tipo. Um papel secundário no sistema teleológico com função negativa, ou seja, de


excluir da tipicidade comportamentos jurídico-penalmente irrelevantes. Já a primazia
é conferida à realização típica do ilícito.

2.2.As Formas Básicas Tipicamente Cunhadas do Facto Punível.


Um olhar pelo ordenamento jurídico leva-nos à conclusão de que os tipos de
ilícito que dele constam contêm diferenças teleológico-funcionais e, de que há
quatro formas de aparecimento do crime que devem ser tratadas de forma
autónoma. São elas: os crimes doloso de acção; os crimes negligentes de acção;
os crimes dolosos de omissão e os crimes negligentes de omissão. O usual é que
a forma de realização do tipo seja a activa. Assim, o mandato primário que as
prescrições contêm é a proibição de lesar ou pôr em perigo bens jurídicos e, em
regra, isto acontece por um comportamento activo. Este mandato de actuar em
favor dos bens jurídicos punindo também os comportamentos omissivos teria, do
ponto de vista de política criminal, um papel subordinado, pois de outro modo, o
direito penal deixaria de cumprir a sua vertente liberar que é adequada aos
princípios democráticos e do Estado de Direito que, em última análise justificam
o seu carácter de ultima ratio de política social, para se tornar num direito de
intervenção sistemática na esfera jurídica das outras pessoas, donde se esperariam
mais danos para as liberdades individuais do que aqueles que o próprio direito se
propõe evitar.
Por outro lado, também se compreende que uma política criminal que seja
consistente e coerente leva à proibição primária dos comportamentos dolosos,
comportamentos em que o agente prevê e quer o resultado, ou a realização do
tipo, do que aqueles em que o agente, ou não previu, ou se previu não quer a
realização do tipo, como acontece na negligência, em que, o conteúdo ilícito se
reconduz, em última linha à violação de um dever objectivo de cuidado e
diligênca. Estes, também só a título subordinado devem ser punidos. Quando a lei
sinta uma intensificação muito forte da tutela do bem jurídico. Estamos a referir-
nos à sociedade de risco em que actualmente vivemos ( em que cada vez mais se
conduzem viaturas, se operam máquinas, se trabalhava com substância venenosas,
em fim,) um direito penal adequado a este tipo de sociedade, reclama uma punição

172 Idem, p. 260.

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mais larga das condutas omissivas e negligentes, embora isto não cubra a
generalidade dos domínios de actuação da lei penal e só aqueles que se relacionam
173
com os novos e grandes riscos da sociedade pós-industrial.
Seguir-se-á a concepção quadripartida trazida do método categorial
classificatório para sistematizar a exposição seguinte. Assim, em primeiro lugar,
dar-se-á tratamento aos crimes doloso de acção e considerar-se-á todos os
elementos constitutivos do facto punível (Título I); seguir-se-á os crimes
negligentes de acção (Título II) e, os crimes de omissão (Título III) distinguindo
também aqui os crimes dolosos e os crimes negligentes.

3. As categorias dogmáticas
Antes de nos ocuparmos do estudo dos diferentes factos puníveis como acima
descrito, interessa tratar cada uma das categorias dogmáticas em que, segundo
o sistema teleológico funcional e racional, deve decompor-se o conceito de
facto punível que, importa recordar vem comandado por proposições político-
criminais, conforme se destacou a propósito do estudo do “Conceito Material
de Crime”. É a este propósito que se fala das categorias dignidade penal, e
Carência de tutela penal.

A dignidade penal, é a categoria que procura reduzir os bens jurídicos que


vêm previstos na constituição, tirando-os de meros bens jurídicos para bens
jurídico-penais;
A carência de tutela penal é que, introduz o critério da necessidade,
afastando as outras formas de tutela (como do direito civil, o direito
administrativo, direito disciplinar) e trazendo a tutela penal como a única
alternativa de tutela, protecção, naquela situação, através dos instrumentos
sancionatórios próprios do direito penal.
É o recurso a essas categorias que permite dar vida e conteúdo à função
do direito penal de tutela subsidiária de bens jurídicos.
Estas categorias é que permitem chegar à conclusão de que o sistema é
formado pelo tipo de ilícito e pelo tipo de culpa que constituem os
pressupostos sistemáticos que são a expressão da dignidade penal prevista no

173 Idem, p. 262.

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tipo. O tipo de ilícito concretiza o conceito material de crime, o tipo de culpa


concretiza a censurabilidade dirigida ao agente, mas referida ao ilícito típico.
O agente é censurado, porque se comportou conforme o que vem descrito no
tipo de ilícito.
Resta ainda, por referência às categorias tratar a punibilidade, que respeita de
modo específico e autónomo à “ dignidade punitiva” do facto como um todo
( condições objectivas de punibilidade e causas de exclusão da pena), ou seja,
se o facto merece ou não ser punido, ou se haverá alguma causa que leve a que
não seja punido). Carência de pena. (conceito que deverá mais tarde ser
relacionado com os de dispensa de pena, queixa e acusação particular,
suspensão do processo, institutos que pertencem à doutrina das consequências
jurídicas do crime). 174

3.1.O Tipo de Ilícito


3.1.1. Tipicidade, Ilicitude e causas de justificação
A primeira preocupação da construção do sistema do facto punível é encontrar
a concepção mais adequada das relações entre tipo e ilícito, ou entre
tipicidade e ilicitude ( antijuridicidade).
Tradicionalmente se defendeu que o tipo constituiu o primeiro degrau
valorativo da doutrina do crime, ou seja, primeiro a acção tem de corresponde
a um tipo ( ser subsumível a uma norma); depois é que se vai negar a sua
ilicitude, dizer que é ilícita, se no caso intervier uma causa de justificação.
Esta é a concepção tripartida, tipicidade, ilicitude culpa. Com esta concepção é
mais fácil resolver os casos práticos.
Na construção teleológica, funcional e racional, a prioridade cabe ao ilícito e
não ao tipo, ou seja, a categoria é concebida como ilícito –típico ou tipo de
ilícito. Devemos, por conseguinte, preocuparmo-nos em encontrar, a qual das
categorias tipo ou ilícito, se deve dar prioridade na construção do sistema.

Nesta discussão, o próprio Roxin, que é o percursor da concepção, defende


que a prioridade deve ser dada ao Tipo, porque ele é ele que exprime a acção,
a conduta, em abstracto, ou seja, independentemente da pessoa do agente e da

174 Idem, ibidem, p. 263.

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situação concreta em que ele actuou. Vê-se a acção apenas de um ponto de


vista da ameaça para motivar as pessoas a cumprir a norma, não actuando
conforme ela descreve, ou omitindo o que deve ser feito. Já no ilícito está-se a
referir à acção típica concreta tendo nela incluídos todos os elementos reais
caracterizadores.
Mas Figueiredo Dias, rejeita esta argumentação e defende o seguinte:
O direito penal tem, no sistema a função de protecção subsidiária de bens
jurídicos . Esta, mais a justificação da intervenção penal (porquê que há essa
intervenção? Para estabilizar as expectativas da comunidade na validade da
norma). São estas duas funções que se juntam como irmãs, para determinar a
função da categoria ilícito. Por isso a ela se deve dar prioridade. Com ela se
pretende traduzir o específico sentido do desvalor jurídico-penal que um
determinado (concreto) comportamento humano reveste tendo em conta as
condições concretas em que ele ocorreu. Ou seja, é o dizer-se ou qualificar-se
uma conduta concreta como penalmente ilícita que, significa que de uma
perspectiva tanto objectiva como subjectiva, que ela é desconforme com a
ordem jurídica, a ela fica ligado um juízo negativo de valor ( de desvalor).
A função que a categoria ilicitude desempenha no sistema, é não em abstracto,
mas em concreto, relativamente aos singulares comportamentos , definir o
âmbito ( até onde deve chegar) daquilo que é penalmente proibido, dando-o a
conhecer aos potencias destinatários da norma, motivando-os a comportarem-
se conforme a norma. Por este entendimento o tipo ganha o seu significado e a
ilicitude apresenta-se como verdadeiro fundamento do tipo. Assim
considerado, segundo figueiredo Dias, Todo o tipo é tipo de ilícito. 175
Concluindo
Num sistema teleológico-funcional da doutrina do crime não há lugar à
separação em categorias autónomas da tipicidade e da ilicitude. A categoria
sistemática com que se opera é ilícito típico ou tipo de ilícito. Os tipos
incriminadores e os tipos justificadores, são instrumentos conceituais que
neste sentido e sem autonomia recíproca e de forma dependente, servem a
realização da intencionalidade e da teleologia próprias daquela categoria,
o ilícito típico / tipo de ilícito.

175 Idem, p. 268, 269.

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3.1.2. A questão da localização sistemática do dolo e da negligência.


Até aqui e sobretudo pela doutrina finalista o dolo e a negligência ficavam
localizados na tipicidade. Esta questão foi objecto de grande debate na doutrina.
Saber se o dolo e a negligência se devem situar no tipo de ilícito, ou antes no tipo
de culpa. Depois de muita discussão chegou-se a considerar que dolo e
negligência são entidades complexas e integram um conjunto de elemntos
constitutivos em que uns relevam para efeitos de do tipo de ilícito subjectivo e
outros para o tipo de culpa.
Figueiredo Dias, considera que esta visão é a que melhor se adequa à forma
teleológica e funcional do sistema, pois “ o conhecimento e vontade de realização
do tipo de ilícito objectivo ( o dolo do tipo, dolo do facto, ou dolo natural) deve
ser visto como elemento constitutivo do tipo de ilícito subjecivo doloso. Enquanto
a violação do dever objectivo de cuidado deve ser vista como elemento
constitutivo do tipo de ilícito negligente.

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TEXTO DE APOIO Nº 14

O PROBLEMA DA IMPUTAÇÃO OBJECTIVA

O ACTUAL ESTADO DA QUESTÃO

A expressão “ imputação objectiva “ é utilizada com conteúdos diferentes e, no


momento actual da discussão depende do respectivo conteúdo. É, por isso importante,
saber da importância das diferentes concepções.
Os actuais seguidores de Honig- Roxin e Jescheck defendem que a relação entre a
acção e o resultado não fica adequadamente descrita com os conceitos de causalidade.
Mas este é o único ponto de contacto com a concepção antiga. A mais moderna teoria
da imputação faz depender a imputação do resultado de “algo que vai muito mais
além da mera categoria pré-jurídica, [assente na ideia] de que o fim pode ser
objectivamente perseguido. Fazem nele interferir um conjunto de critérios jurídicos,
como a criação de um perigo desaprovado, diminuição do risco, etc.,

Outras teorias fazem depender a imputação do resultado a critérios especificamente


jurídicos: desde logo, é importante saber, em que condições a produção de um
resultado pode ser atribuída ao agente.
Assim, sempre que o autor não aumentou o risco de produção do resultado,
antes pelo contrário o diminuiu, o resultado não lhe pode ser objectivamente
imputado. Também nos casos em que não exista nenhum ponto onde se possa apoiar
que o resultado a posteriori se produziria, esse resultado não pode ser objectivamente
imputado. 176

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TEXTO DE APOIO Nº 15

O TIPO-SUBJECTIVO - DE - ILÍCITO

1. O dolo como elemento do Tipo- de- ilícito

1.1Nos tipos- de –ilícito doloso, o dolo- do- tipo, 177 determina a direcçãoe o fim
do comportamento do agente. Representa o elemento geral do tipo – subjectivo
–de- ilícito . Também define a forma/regra da imputação subjectiva do resultado
típico à conduta do agente uma vez que, o CP., no Artº 11º estabelece que “ só é
punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na Lei ,
com negligência”. Artigo 13º “ 1. Age com negligência quem, por não proceder
com o cuidado a que, segundo as circusntâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de
crime e actuar sem se conformar com aquela realização; b) Não chegar sequer a
representar a possibilidade de realização desse facto.”

Quando se diz que o dolo é o elemento subjectivo geral é para acentuar, uma vez
que ele existe em todos os crimes doloso, não sendo, todavia, o único possível,
pois ao lado dele figuram outros elementos subjectivos exigidos por lei ,
relativamente a certos tipos de crime sendo, nestes casos, designados elementos
especiais.

176 De Leitura obrigatória. RODRIGUES, Orlando Ferreira, “ Apontamentos de Direito Penal”,


Escolar Editora, 2014, pp. 115 a 129.
177 “ o dolo do tipo é o dolo geral, também chamado por « dolo genérico». Os elementos
subjectivos especiais formam o que a doutrina designa « dolo específico».

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O dolo do tipo é consiste na consciência e na vontade de realização de


uma certa conduta ou da produção de um certo resultado. Pode-se assim,
distinguir no dolo- do- tipo o elemento intelectual ( no plano da consciência
que é representação dos elementos objectivos do tipo, ou seja, o conhecimento
pelo agente do crime das circunstâncias que fundamentam e agravam o tipo de
ilícito objectivamente realizado) e o elemento volitivo ( no plano da vontade , o
querer realizar aquele facto ou produzir aquele resultado). É, contudo,
necessário reconhecer que esses dois aspectos do dolo, o intelectual e o volitivo,
não são totalmente independentes um do outro; Como disse Teresa Beleza 178” o
aspecto do conhecimento se reflectirá sempre e necessariamente no aspecto
volitivo ( não se pode querer matar uma pessoa cuja presença concreta no local
do disparo se ignora”.

1.2. O elemento intelectual do dolo


Para que se possa dizer que determinada conduta preencheu o elemento
subjectivo geral de um tipo-de- ilícito doloso, o dolo do tipo, é necessário
que ele conheça, no momento em que actua ( este conhecimento deve ser
actual)todos os elementos definidores do tipo objectivo, já que o
desconhecimento de algum deles implicará a exclusão do dolo referente
àquele tipo ( estaremos assim, no domínio do erro, cujos efeitos.
estudaremos mais adiante).

Assim, para que haja dolo –do-tipo exige-se que o agente tenha:

a) Conhecimento dos elementos típicos que preexistem à sua conduta e


não são por ele provocados: ex., no homicídio, a qualidade de “ pessoa
humana” da vítima ( artigo 147º) ; na falsificação de documentos , a
qualidade de “ documento” do objecto falsificado ( artigo ); na
bigamia a existência de um casamento anterior não dissolvido ( artigo
258º), tal como o conhecimento dos elementos típicos do crime
fundamental, é de exigir o conhecimento das circunstâncias
modificativas agravantes: ex., no parricídio art ( ) que é um homicídio

178 (Ver a obra)


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em que a vítima é o pai do agente, a qualidade de pai ou mãe da vítima.


Pois, se assim não for poderá apenas ser incriminado por homicídio.
Este princípio, o conhecimento das circunstâncias modificativas, vale
também para as atenuantes modificativas:

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TEXTO DE APOIO Nº 18

O TIPO DE CULPA

I – A FUNDAMENTAÇÃO DA CULPA. As questões básicas da doutrina da


culpa

1. Questões Básicas da doutrina da culpa


Ao tratarmos a construção da doutrina do crime, referimo-nos às questões mais
importantes que a compreensão dogmática e sistemática da doutrina da culpa,
bem como a sua ( da culpa) função no sistema podem suscitar.

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Há, contudo ainda algumas questões que interessa salientar, antes que
entremos no estudo da culpa como categoria integrante do conceito de crime. A
culpa, ou o princípio da culpa , como já referimos, é fundamental para todo o
direito penal, podendo dizer-se mesmo que é um princípio jurídico-
constitucional implícito. Para que ao agente de um crime seja aplicada uma
pena, não basta que ele tenha praticado um facto ilícito típico. É ainda necessário
que o ilícito- típico tenha sido pratica com culpa. Mas para tanto é importante
saber, o que é materialmente culpa para o direito penal. Desde logo, importa
ter em conta que a culpa é uma censura jurídica, dirigida ao agente pelo facto
que praticou.

1.2 A história dogmática do conceito

Dificilmente encontraremos uma história clara sobre o princípio, mas ele


resulta de um longo caminho de afastamento do princípio da responsabilidade
objectiva, dominante no direito civil. 179
Contudo, tratar o conceito como um “ puro juízo de censura”, leva a que
ele perca o cumprimento da função que deve desempenhar no sistema o que é
indispensável para que ele mantenha o seu carácter irrenunciável. Pondo de
parte o ponto de vista que defende que a culpa é apenas um ponto de vista
diferente do da ilicitude e que se deve fazer é apreciar o mesmo substracto. O
que entendemos é que o substracto da culpa não é o tipo, porque esta é já do
tipo-de-ilícito. O substracto da culpa é o tipo de culpa. Com efeito, a culpa tem
uma função que é de limite da intervenção punitiva do Estado. Por isso, ela não
se pode esgotar apenas no próprio juízo de censura. Se assim fosse, não
saberíamos o que é que na verdade materialmente se censura: se o facto, na sua
revelação objectiva; se a inobservância da norma de dever quando o agente
podia cumprí-la, ou se a personalidade ou atitude interna manifestada no facto e
que o fundamente.
Também nada diz sobre o saber-se se a censurabilidade tem ou não em
conta a liberdade do agente, tanto sobre se podia comportar-se de modo

179Para mais aprofundamento veja-se DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal- Parte Geral,
Tomo I, 2ª Edição , Coimbra Editora, 2007, p. 511 e ss, e bibliografia constante de nota 1.

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diferente, ou sobre se o agente valoriza os bens protegidos pela ordem jurídica. O


que é importante referir é que “ a culpa jurídico-penal se encontra funcionalizada
ao sistema e, por outro que ela participa segundo o seu conteúdo, de uma culpa
ética (ético-existencial) como violação pela pessoa do dever essencial de ser-
livre.180
1.3. O Conteúdo material da culpa Jurídico- penal

A culpa jurídico –penal é funcionalizada ao sistema uma vez que ela


cumpre uma função político – criminal de limite à intervenção punitiva do
Estado, em nome da dignidade da pessoa humana. Por isso tem que participar
de um conteúdo de culpa ética , que é a violação pela pessoa do dever originário
e essencial de realização e desenvolvimento do ser livre dela e dos outros.
Para se compreender e apreender o conteúdo do conceito material de
culpa que deriva destas duas exigências é ainda necessário explicitar o valor de
garantia e de função limitadora que são ínsitos no apelo que faz à dignidade da
pessoa. Esta explicitação tem sido feita através das ideias de liberdade, igualdade
e solidariedade que são atributos que dominam a disciplina das relações sociais.
De todas elas, a liberdade é a que assume mais ditrecta relevância. A liberdade é
concebida não apenas no âmbito político, mas sobretudo enquanto expressão da
autodeterminação da pessoa na sociedade e inviolabilidade na regência da sua
conduta pessoal.
Atende-se ao valor da dignidade da pessoa no contexto democrático como
uma ideia que contém implícito o imperativo da sua encarnação nas pessoas
concretas que vivem nas sociedades reais. Isto por um alado. Por outro lado, é na
liberdade que assenta o peso da discussão em torno da culpa. Com efeito, é
através da liberdade que mais claramente se liga o “ideário liberal “, ao efeito de
limitação da responsabilidade e é através dela que a culpa se torna censura ético-
pessoal.

180 DIAS, Jorge de Figueiredo, , ob , cit, p. 513, 514.

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Actualmente, o pressuposto íntimo da culpa é a liberdade e é este que


permite determinar o que é a culpa em sentido material para o direito penal. É o
axioma onto-antropológico de todo o direito penal.

1.4. A Liberdade como Livre- arbítrio e as teses da Culpa da vontade

1.4.1. Culpa e poder concreto individual de agir de outra maneira na


situação.

Quando se fala em liberdade, a propósito do conteúdo material da culpa


conduz –se sempre ao dogma da culpa da vontade, porque dizer-se que a
liberdade é pressuposto do conceito material de culpa, ela ( a liberdade) é, em
geral, tomada como liberdade da vontade, uma liberum arbitrium indifferentiae,
enquanto possibilidade de actuar sem perturbações invencíveis, quer exógenas
ou endógenas, do mecanismo psicológico da vontade.
Assim, culpa só pode ser censurabilidade da acção, dado que o agente
poderia ter agido de outra modo, de outra maneira, naquela situação. Por isso, o
poder de agir de outra maneira é pressuposto e conteúdo material da culpa. Esta
visão mostrou-se indemonstrável e político-criminalmente insustentável 181.
A grande crítica que se dirige a esse pensamento é de que , as
determinantes endógenas ( que são os motivos) e exógenas ( que são de
natureza social) estavam até meados do SEC. X mal determinadas. A psicologia e
a sociologia tinham desenvolvido poucos estudos sobre a questão. Confundia-se
o agente concreto com o indivíduo isolado, senhor absoluto de si próprio.
Hoje a psicologia e a sociologia têm dificuldades de responder à questão
do livre arbítrio, tanto no seu ser como no seu quando ou seu quanto. A questão
passou a ser tratada pelo pensamento ontológico e filosófico- antropológico e, a
qui, já não se coloca em termos de liberdade da vontade, mas de liberdade
enquanto característica do ser que actua, ou seja, a capacidade de escolha na
situação concreta. Por isso, que essa concepção da culpa da vontade ficou
ultrapassada. 182

181 Veja-se DIAS, Jorge de Figueiredo, ob. cit. , p 516.


182 DIAS, Jorge de Figueiredo, ob.cit. p. 517.

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Acresce que essa concepção leva a consequência político-criminais


insuportáveis que põem em causa a função do conceito no sistema. Acontece que
sempre que o agente afirmasse que não teria podido agir doutro modo, a
consequência seria sempre ou a absolvição por falta de prova ligada à presunção
de inocência , o in dúbio pro reo. Por outro lado, os delinquentes habituais ou por
tendência, veriam sempre a sua pena diminuída com fundamento em não terem
podido agir de outro modo.
Neste sentido, as consequências sentir-se-iam ao nível do conteúdo da
culpa dolosa em matéria de causas de exclusão da culpa, inimputabilidade,
inexegibilidade, falta não censurável de consciência do ilícito. ( F dias p. 518).

1.4.2. Tentativas de “ abstracção”, ou “ generalização) do poder de


agir de outra maneira.

As tentativas para solucionar as teses da culpa da vontade, com a ideia de


abstracção do poder de agir de outra maneira, ou a generalização do poder que
do agente se deve esperar ou exigir, não afastaram as dificuldades.
O problema subsistiu porque o lançar-se o livre arbítrio, não se consegue
demonstrar , substituindo a antinomia, entre o poder de agir de outra maneira, (
ou capacidade de determinação pela norma ou a permeabilidade ao apelo
normativo) e as exigências mínimas da política criminal. .

1.4.3. A “ culpa” do ( ou pelo) caracter”

Uma outra via foi a de ligar o poder de agir de outra maneira e a culpa ,
não ao facto praticado , mas à personalidade do agente. Aqui, o que se pretende,
não é substituir uma responsabilidade pelo facto, por uma responsabilidade pela
personalidade. O que no fundo se defende , e aqui faz-se recordar a posição de
Eduardo Correia que “ vai ao ponto de sugerir que o fundamento e o próprio
critério da culpa do agente não deverão tentar encontrar-se na má utilização do
poder de agir de outra maneira, quanto na violação de um dever de conformação
da personalidade do agente às exigências do Direito ( FD, p. 522).

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Em conclusão, esta posição assenta no seguinte: o conteúdo material da


culpa não pode ser encontrado na má utilização de um qualquer poder de agir de
outra maneira, mas directamente na violação de um dever de conformação da
pessoa , no seu actuar, às exigências do direito ( Fd, p 521, 522). Assim, a culpa
perde a sua legitimação ética .

1.4.4. A Liberdade pessoal e a Tese da Culpa da pessoa

1.4.4.1. A concepção básica

2. O TIPO DE CULPA DOLOSO

2.1. Culpa e tipo de culpa

A culpa é um juízo de censura, por isso tem de conter uma específica


matéria de culpa que tem origem na atitude interna do agente( o que na língua
alemã se chama Gesinnung) que se manifesta no ilícito – típico, fundamenta-se
como sua obra, enquanto obra da sua pessoa ou personalidade.
Assim, tal como referimos a propósito do ilícito-típico, também a culpa
jurídico-penal não é unitária, mas dada através de tipos de culpa. O tipo de
culpa doloso e o tipo de culpa negligente. Trataremos num primeiro momento
do tipo de culpa doloso. Lembra-se que o “tipo de culpa doloso se verifica
apenas quando, em face de um ilícito-típico doloso, se comprova que a sua
prática se deve imputar a uma atitude íntima do agente contrária ou
indiferente ao direito e às suas normas”.
Sempre que essa comprovação não seja alcançada ou deva ser negada, o facto
não poderá ser punido a título de dolo, mas eventualmente a título de
negligência, caso o tipo- de- ilícito possa ser punido a título de negligência, uma
vez que a negligência só é punida nos casos especiais previstos na lei.

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Neste último caso, deveremos considerar que a punição a títtulo de


negligência significa que no tipo de ilícito doloso, existe um conteúdo de culpa
mais pesado e de que na negligência, o conteúdo de culpa é mais leve. 183

2.1. Dolo e falta de consciência do ilícito (erro sobre a ilicitude art. 15º CP
2020)

É importante tratar esta questão relativa às relações entre o dolo e a falta


de consciência do ilícito ou erro sobre a ilicitude. A relevância decorre do facto
de essa falta de consciência produzir efeito tanto ao nível do dolo como da culpa,
sobretudo em comunidades em que as concepções morais, sociais, políticas e
culturais se mostram profundamente diferentes das dominantes em países como
os da Europa (veja-se Portugal) cuja legislação constitui matriz do sistema
jurídico angolano. 184

2.1.1. Evolução do tratamento legislativo e doutrinal

2.1.2. Tese da Irrelevância para a culpa da falta de consciência do ilícito

O Código Penal Português de 1886, que vigorou em Angola até 9 de


Fevereiro de 2021, mas que continua em vigor para os processos pendentes,
estipulava no artigo 29º nºs 1 a 4 que não eximiam da responsabilidade criminal
nem a ignorância da lei penal, nem a ilusão sobre a criminalidade do facto, nem o

183 Veja-se DIAS, Jorge de Figueiredo, ob.cit., p. 529, 530.


184 Esta referência é feita por Jorge de Figueiredo Dias, a pp. 531 no final do § 6, quando
expressamente diz “ isso mesmo acontecia com Portugal quando a sua ordem jurídica era
aplicada nas colónias de forma alegadamente integral e pode hoje continuar em certa medida a
acontecer, em especial no que toca a cções “ interculturais”, nomeadamente de cidadãos
estrangeiros. Questão que se levanta a propósito da vigência no ordenamento jurídico angolano
do artigo 7º da Constituição da República de Angola, que como sabemos, equipara o costume à lei
e torna-o fonte de direito angolano.

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erro sobre a pessoa ou coisa a que se dirige o facto punível, nem a persuasão
pessoal da legitimidade do fim ou dos motivos que determinaram o facto.
Com este artigo pretendia-se legitimar a irrelevância da falta de
consciência da ilicitude para afastar o dolo ou a culpa. Em Portugal, e em
consequência, em Angola, esta irrelevância não foi contestada enquanto não foi
afirmado o princípio da culpa como máxima político-criminal fundamental. Em
Angola, esta mudança só ocorre com a entrada em vigor do Código Penal de
2020.
Esta doutrina partia da distinção entre erro de facto , que era o erro
sobre os factos, ou o tipo, que excluía o dolo e erro de direito, onde sem
autonomia, ficava enquadrado o erro sobre a consciência do ilícito, que em
princípio, seria irrelevante. Daqui que o que se podia fazer, era limitar a
aplicação da regra da irrelevância de todo o erro de direito ou de qualquer
ignorância da lei. Por isso, em alguns países, como por exemplo na itália,
procuraram ultrapassar esta questão, sobretudo naquelas categoria de pessoas
ou situações de ignorância da lei não penal ou extrapenal. Em todo o caso, a
autonomia da falta de consciência do ilícito para o dolo e para a culpa, seria
sempre negada e o princípio da culpa violado nos casos em que aquela falta não
devesse ser censurada ao agente.
Este ponto de vista que vigorou no direito português até 1982, altura em
que ocorre a entrada em vigor do novo Código Penal , substituto do Código de
1886, ( de notar que Angola ficou na doutrina do código de 1886, pois já era
independente e não procedeu à actualização da sua legislação nessa altura),
mostrou que afinal não foi a dicotomia entre facto e direito, ou erro de facto e
erro de direito que comandou o problema da consciência do ilícito. O que na
realidade comandou foi o diverso significado que estes dois tipos de erro ( erro
de facto e erro de direito), assumiram para a culpa. Daqui que, mais
recentemente, Figueiredo Dias tenha vindo defender que qualquer que seja a
solução a adoptar para a falta de consciência do ilícito , aquela ( solução) não
pode passar pela atribuição do relevo à simples ignorância do direito.
Aliás, sobre essa questão Beleza dos Santos e Eduardo Correia, sempre
defenderam que os comandos do artigo 29º do Código Penal de 1886, não
contrariavam a relevância jurídica da falta de consciência do ilícito e, buscavam a

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fundamentação do seu ponto de vista no nº7 do artigo 44º do CP de 1886,


segundo o qual “ justificam o facto, em geral, os que tiverem procedido sem
intenção criminosa [dolo] e sem culpa. Neste preceito poderia o intérprete
encontrar consagrado o princípio da culpa e, em consequência, retirar dele todas
as consequências lógico-materiais que comporta e que não sejam expressamente
contrariados pela lei. ( FD, p. 533, 534 , 535)

2.1.3. As Teses da relevância para a culpa e para o dolo da falta de


consciência do ilícito

2.1.3.1. Consciência do ilícito culpa e dolo

A doutrina portuguesa, seguiu a alemã quanto a questão da autonomia da


consciência do ilícito no erro de direito ou da ignorância da lei penal e defendeu
a sua relevância para a problemática do dolo e da culpa. Assim, defendia aquela
doutrina que não só o erro sobre a factualidade típica ( designado na doutrina
alemã como Tatbestandsirrtum ) afastava o dolo, como o erro sobre a ilicitude ou
falta de consci~encia do ilícito (designada na doutrina alemã por Verbotsirrtum,
erro sobre a proibição).
O importante nesta tese é que este tipo de erro constitui um elemento
essencial do juízo de censura , devendo a culpa ser sempre negada sempre que a
falta de consciência do ilícito não seja censurável. O problema ganhou relevo
quando se colocou a questão de saber, qual a importância do erro sobre a
ilicitude para se afirmar ou negar o dolo e, em consequência a punição a esse
título. Saber se o erro sobre a ilicitude teria o mesmo efeito de afastar ou negar o
dolo. Ou se, pelo contrário, ele seria irrelevante para a questão do dolo e
relevasse apenas para efeito de excluir a culpa quando esta não fosse censurável.
Foi, a este propósito que as doutrinas se dividiram em :
-Teoria do dolo estrita
- Teoria do dolo limitada
- Teoria da culpa estrita
- Teoria da culpa limitada

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a) A teoria do dolo estrita

Para esta teoria o cerne dos delitos dolosos, reside na consciência do


ilícito, com que o agente actuou, pois ele actua em oposição ao dever -ser
jurídico, o designado (dolus malus). Para esta teoria, o agente tem de ter actuado
com conhecimento e vontade de realização dos elementos objectivos do tipo m (
dolo natural ou dolo do facto). Só assim o agente pode ser punido a título de dolo.
Contudo, a ele ( ao agente) faltou essa consciência actual de que estava a praticar
um acto ilícito, então o dolo não pode ser afirmado e, assim o crime só poderá ser
punidpo a título de negligência se o erro sobre a ilicitude em que tenha incorrido,
poder ser evitável pu vencível, ou seja , censurável e a lei punir o crime a título
de negligência.
Assim, para esta teoria do dolo restrita, o erro sobre a ilicitude ou
sobre a proibição mereceria o mesmo tratamento do erro sobre a factualidade
típica ou sobre o tipo. 185

CRITICA à teoria da culpa restrita

A crítica vem daqueles que entendem que do ponto de vista sistémico esta
teoria esquece que o dolo esgota o seu conteúdo e função em sede de tipo
subjectivo de ilícito e não assume qualquer efeito ao nível da culpa. Por outro
lado e do ponto de política criminal, a doutrina deixaria lacunas de punibilidade
insuportáveis porque naqueles casos em que se mostrasse necessário que o
agente fosse dotado de conhecimento altamente especializado de ciência
jurídica, como conhecer os elementos normativos , seria difícil e até improvável,
dizer e muito menos se poderia presumir, que a generalidade das pessoas
tenham esse conhecimento.

185DIAS, Jorge de Figueiredo, Ob. Cit., pp. 536 537 e bibliografia constantes das respectivas
notas.

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Luzia Sebastião Direito Penal I
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b) A teoria do dolo limitada

Para esta teoria, a punição a título de dolo, para além de ocorrer nas
situações em que o agente actua com falta de consciência do ilícito, ocorre
também noutras em que o agente actua de tal modo que, não sendo embora
estritamente reconduzíveis ao conceito de dolo, lhe devem, no entanto, ser
equiparadas para efeitos prático-normativos. Deveriam ser equiparadas a todas
as hipóteses em que a falta de consciência do ilícito fica a dever-se à concepções
do agente que sejam de todo incompatíveis com os princípios da ordem jurídica
sobre o que é lícito ou ilícito, ou seja, o agente não sabe de todo em todo que
matar é proibido, ferir, violar, sequestrar, roubar, praticar actos terroristas, em
fim.
Na doutrina portuguesa, Beleza dos Santos veio defender que deverá
considerar-se haver dolo sempre que, para além da representação e vontade de
realizar o facto “ o agente sabia que a sua conduta era ilegal ou socialmente
imoral; ou , embora não soubesse, todavia pudermos afirmar que, se tivesse
conhecimento daquela ilegalidade ou imoralidade, não teria deixado de proceder
como o fez.
Na mesma linha ainda da doutrina portuguesa, Eduardo Correia, veio
inicialmente apoiar Beleza dos Santos. Mas depois embora na mesma linha veio
dizer que “ sempre que falta a consciência do ilícito o dolo deve ser negado; em
tais hipóteses, o agente deve ainda ser punido a título de dolo – ainda que, em
rigor, a censura do facto seja a de mera negligência – sempre que seja possível
assacar-lhe , em virtude precisamente daquela falta de consciência do ilícito ,
uma particular culpa na formação ou na preparação da personalidade.
Mezger, na doutrina alemã, pela mesma altura, veio também considerar
que o verdadeiro dolo resulta da conexão do dolo do facto com a consciência
actual do ilícito ( actual, quer significar, no momento da prática do facto); mas
quando a falta dessa consciência derive de uma especial configuração da
personalidade do agente, uma espécie de cegueira ou hostilidade para como o
direito, assente nas suas convicções sobre o que é certo e o que é errado, lícito e
ilícito , essa falta de consciência não pode impedir que ao agente seja aplicada a

142
Luzia Sebastião Direito Penal I
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moldura prevista no tipo. A punição deve-se não a qualquer ficção de dolo, mas
ao facto de ele, o agente ter uma personalidade onerada por uma particular “
culpa na condução da vida”. 186

CRÍTICA à teoria do dolo restrita

Figueiredo Dias, começa por concordar com as teses da teoria do dolo


limitada, sobretudo na parte em que considera que para se afirmar se atende ou
a consciência actual da ilicitude, ou a sua falta, representam uma particular
atitude íntima do gente face ao dever- ser jurídico-penal. Contudo, critica as
duas doutrinas por fazerem apelo a uma culpa do agente referida à
personalidade, incompatível com um Direito penal que deve ser um direito penal
do facto e não do agente. Por outro lado, que essas doutrinas mesmo quando
reconhecem que a ideia de dolo compreende a consciência actual do ilícito ,
acabam por em violação do princípio da culpa e prejuízo manifesto da
estabilidade jurídica, vir punir a título de dolo, factos que deveriam
conceitualmente ser afirmados como negligentes. 187

C) A teoria da culpa restrita

Esta teoria parte da ideia de que a consciência do ilícito não é na forma


actual, momento constitutivo do dolo, uma vez que este no seu factor subjectivo
se esgota no conhecimento e vontade de realização de um tipo objectivo se
esgota no conhecimento e vontade dessa realização e sim um elemento essencial
do juízo de censura da culpa, conclui que, actue sem consciência do ilícito não
possa, por falta de culpa ser punido. Mas por outro lado, também se considera ,
que quem podendo ter conhecido o ilícito tenha actue sem consciência actual
dele, tenha agido dolosamente, então deve ser punido a título de dolo. Ficando

186 DIAS, Jorge de Figueiredo, Ob. Cit., p. 5328, 539 e notas bibliográficas correspondentes.
187 DIAS, Jorge de Figueiredo, Ob. Cit., p. 539.

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absolutamente posta fora de questão qualquer punição a título de negligência.


Podendo, no entanto o crime doloso ser especialmente atenuado. 188

CRÍTICA à Teoria da Culpa restrita

Entende Figueiredo Dias que a crítica que se pode dirigir à teoria da culpa
restrita é a mesma que foi dirigida à teoria do dolo estrita, uma vez que ela
defende, como aquela que o dolo se esgota em sede do tipo de ilícito subjectivo e
que a culpa não é mais do que um mero juízo de censura, não fazendo dela parte
o objecto da valoração. Mas aceita e considera politico-criminalmente fundada a
solução para a falta de conciência do ilícito, sobretudo quando afasta o dolo nos
casos em que o erro não é censurável. Esta é uma solução que afasta o espectro
das lacunas de punibilidade devendo, por isso merecer atenção, num primeiro
momento. Porque ela também se revela inexacta para os casos em que o agente
actue erroneamente sobre a existência de uma causa de justificação ( artigo 15º
nº2) , ou nos caos de mero erro sobre a proibição artigo 15º nº1).

c) A Teoria da culpa limitada

Esta teoria defende que sempre que o agente actue com culpa é punido a
título de dolo. E que a falta de consciência do ilícito releva para efeitos da culpa .
Todavia introduziram uma importante limitação que vem admitir a punição do
agente a título de dolo já não deve ocorrer quando apesar de ter actuado com
conhecimento do ilícito e vontade de realização do tipo de ilícito, falta-lhe a
consciência de estar a praticar um ilícito porque supôs falsamente de que
actuava na base dos pressupostos materiais de uma causa de justificação.
Esta doutrina foi depois estendia, ao estado de necessidade subjectivo, os
casos em que se desconhece a proibição porque as condutas são axiologicamente
irrelevantes, como acontece com as contra- ordenações. 189

188 Idem, ibidem, p. 540.


189 Para mais aprofundamento, ver, DIAS, Jorge de Figueiredo, ob. cit. P. 541.

144
Luzia Sebastião Direito Penal I
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2.3.1.2. Primeira Conclusão

No direito Angolano que seguiu o direito Português, que por sua vez,
seguiu o direito Alemão, existem duas espécies de erros relevantes para o direito
penal, mas que produzem efeitos diferentes a saber:

a) Um exclui o dolo, é o erro sobre o Tipo, ficando ressalvada a


negligência, que só é punida nos casos especiais previstos na lei.

b) O outro exclui a culpa quando for não censurável e designa-se causa de


exclusão da culpa. Mas se for censurável, não afasta o dolo, podendo a
pena ser especialmente atenuada nº3 do artigo 15º.

Esta é uma distinção que não tem nada a ver coma distinção entre erro de facto e
erro de direito. Contudo, diferente da doutrina alemã em que o erro sobre a
proibição exclui a culpa, no direito Angolano releva para efeitos do tipo e exclui o
dolo.

Assim, no direito Angolano o erro que afasta o dolo ocorre em três situações:

a) Quando verse sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de


crime;

b) Quando verse sobre os pressupostos de uma causa de exclusão da culpa,


nº2 do artigo 15º ;

c) Quando verse sobre proibições ou imposições no caso da omissão, cujo


conhecimento seria indispensável para que a consciência do ilícito possa
ser afirmada. Nº2 do artigo 15º.

Em síntese, para fazermos a distinção entre o erro que exclui o dolo e o que não
exclui o dolo é preciso considerar que: O erro exclui o dolo ( do tipo) sempre

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Luzia Sebastião Direito Penal I
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que determine a falta do conhecimento necessário a uma correcta orientação da


consciência ética do agente para o desvalor do ilícito.

Diversamente, o erro fundamenta o dolo (da culpa) sempre, e ainda


que o agente detenha todo o conhecimento para uma correcta orientação da
consciência ética ele, todavia, actua em estado de erro sobre o caracter ilícito do
facto. Neste caso, o erro não radica ao nível da consciência psicológica, mas
da própria consciência ética, ou seja, revelando uma falta de sintonia com o
conjunto de valores ou bens jurídicos que ao direito penal cumpre
proteger. É a isto que se chama, falta de consciência ética.
Nos casos em que a conduta é contrária ao direito, mas não
concretamente ao direito penal o que obrigaria a que o agente tivesse
consciência da ilicitude penal, ou da punibilidade, a doutrina dominante defende,
que o caracter ilícito do facto cuja consciência ou falta de consciência releva para
a culpa, não se confunde com a punibilidade. 190ou com a sua natureza jurídico-
penal, pois para a afirmação do dolo, bastaria a consciência do sentido de
desvalor jurídico que à conduta se liga. Esta posição não vigou, pois casos haverá
em que apenas a ilicitude penal pode ser objecto daquela consciência, que nos
termos do nº 1 do artigo 15º releva para a culpa.
Na verdade e, em conclusão, o ilícito penal é portador de uma específica
ilicitude, que o diferencia das demais manifestações de ilicitude, por isso, uma
conduta que configure um ilícito civil, ou disciplinar, não deverá valer, pelo
menos de um ponto de vista imediato, como a consciência do ilícito que releve
para a culpa jurídico-penal.191

2.3.1.3. Desconhecimento da lei ( da proibição) e consciência do


ilícito

O que na verdade separa a falta de consciência do ilícito –típico para a


culpa da ignorância da lei ou da proibição. Se aquela consciência se basta com
uma advertência dos sentimentos do agente de que ao seu facto se liga um

190 Idem, ob.cit. p. 550, 551.


191 idem, ibidem, p. 551.

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sentido típico de desvalor , então o GENTE PODE NÃO TER CONHECIMENTO DO


PRINCÍPIO DA NORMA GERAL OU DA PROIBIÇÃO ABSTRACTAMENTE
APLICÁVEIS, mas possuir a consciência do ilícito relevante para a culpa.
Isto pode acontecer nas situações em que com a valoração jurídico-penal
da ilicitude se encontra também uma valoração mais ampla, moral, social ou
cultural de que o gente tem consciência e pode, por isso, em concreto revelar-se
mais importante e decisiva para a aquisição da concreta consciência do ilícito do
que o conhecimento da lei ou da proibição efectivamente aplicáveis.
Significa que, embora na consciência do ilícito se trate só do específico
sentido da ilicitude, essa consciência pode ser alcançada pelo agente a partir da
consciência da mais ampla valoração não jurídica e sem ter de supor o
conhecimento da lei ou da proibição efectivamente aplicáveis.

2.3.1.4. Conhecimento da lei ( da proibição) e falta de consciência do


ilícito

Pode acontecer que o agente represente, ainda que de forma actual, a lei,
a norma geral ou a proibição abstractamente aplicável ao caso e não possuir toda
a consciência relevante para a culpa. Isto acontece quando se trate de erro sobre
a existência ou os limites de uma causa de justificação ou de exclusão da culpa.
Trata-se de um erro que não exclui o dolo.
Exemplo: A, conhece a proibição de ofender a integridade física de
outrem. Todavia, ao dar um passeio com uma criança, filho de um amigo, dá-lhe
um puxão de orelhas, porque a criança disse um palavrão. Aqui A, actua
erroneamente na convicção de que pode exercer poder de correcção sobre a
criança. B, conhece a proibição de bater, mas bate em C, como meio adequado
para recuperar a bicicleta que este lhe furtou uns dias antes, na convicção errada
de que ainda age a coberto do direito de legítima defesa. .
Em qualquer destas hipóteses, não estamos em presença do erro que
exclui o dolo previsto no artigo 14º do CP de 2020, mas do erro sobre a ilicitude

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que nos termos do nº1 do artigo 15º do CP 2020, pode excluir a culpa, se não for
censurável. 192

II. CAUSAS DE EXCLUSÃO DA CULPA

1.4 – Culpa

As Causas de Exclusão da Culpa


Como referido a propósito do princípio da culpa, é unanimemente considerado que
não há responsabilidade sem culpa, pelo que não é suficiente a afirmação da ilicitude
da sua conduta para que o mesmo possa ser sancionado com uma pena. Ensinou
igualmente que é necessário ainda que a sua conduta seja culposa. Importa realçar que
até aqui abordou-se da culpa enquanto elemento do crime ou da infracção penal.

No entanto, tanto no que respeita ao conceito de culpa, como ao seu fundamento e


mesmo à sua relação com a matéria da determinação concreta da pena, são várias as
posições doutrinárias e delas não cuidaremos aqui, limitando-nos ao essencial, na
perspectiva judiciária.

Tomamos, pois, como conceito operacional, a concepção normativa da culpa, de


acordo com a qual a culpa traduz-se num juízo de censurabilidade sobre uma
certa conduta típica e ilícita resultante da imputação a alguém desse mesmo
comportamento, atribuído à sua vontade, ao seu discernimento e capacidade,
relativamente ao qual lhe era exigível que tivesse actuado de modo diverso.193

Na perspectiva da aplicação prática do direito, podem agrupar-se em três categorias


as causas que podem levar à não punição do agente pela ausência de um juízo de
culpa que são:
– Inimputabilidade,
– inexigibilidade e;

192 Idem, ob. cit. P. 554, 555, 556.

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Luzia Sebastião Direito Penal I
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– falta de consciência da ilicitude não censurável.

Vejamos, então, cada uma delas.

1.4.1 – Inimputabilidade
– em razão da idade – art.º 17.º do CP;
A inimputabilidade do agente,
– em razão de anomalia psíquica – art.º 18.º do
CP
«Prova – art.º 148.º, n.º 1 – Pericial –
192.º a 207.º do CPP»194

a) A inimputabilidade em razão da idade assenta na ideia de que a


responsabilidade penal deve ser excluída enquanto o agente não atingir uma
certa maturidade psíquica e espiritual, que o habilite a avaliar a ilicitude do
facto e a determinar-se de acordo com ela. 195

193DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL (Tomo I) Autores Dr. António João


Latas Dr. Jorge Dias Duarte Dr. Pedro Vaz Patto.
194 194 A aplicação dos preceitos legais aos sujeitos portadores de quaisquer anomalias psíquicas
serve-se dos conceitos jurídicos de imputabilidade, imputabilidade diminuída e
inimputabilidade, pelo que é ao perito (psiquiatras, psicólogos, médico-forense) a quem compete
pronunciar-se sobre a sua aplicação, pois são estes que, no âmbito do direito penal, realizam os
exames psiquiátricos – e que são neles que constituem as perícias realizadas por eles.
Aliás, aproveitamos o instante para dizer que, num primeiro momento, compete ao perito
médico-forense diagnosticar a afetação que poderá eventualmente existir, socorrendo-se dos
métodos e instrumentos científicos disponíveis, com apoio em modelos mais ou menos
mecanicistas, deterministas, biológicos, ou não, que o estádio do saber contemporâneo do perito
aconselhe. Já num segundo momento de avaliação, que se traduz num puro juízo de prognose
póstuma sobre as capacidades efetivas do agente está, pelo contrário, todo ele ferido de uma
influência normativa, porque gira em torno da pergunta sobre se podia o agente deixar de ter
feito o que fez.
Importa referir que à resposta sobre a imputabilidade passe pelo detetar, não
sinais dos quais se pode deduzir a capacidade do agente, mas pela descoberta
dos sinais perante os quais não se possa excluir a capacidade do agente,
capacidade essa que normativamente se presumiria. Assim, não se trata de
provar que o agente pôde, mas sim de, perante os sintomas apresentados, nada
indicar, em termos de probabilidade, que o agente não pôde. Disto, haverá
sempre, no fundo, e para o julgador, uma dúvida que redunda, não tanto da falta
de elementos de prova, mas relativa à natureza intrínseca do facto que se quer
saber.
195 A imputabilidade e a inimputabilidade são condições concretas do agente na ocasião do crime
e não características gerais deste.

149
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A imputabilidade penal atinge-se aos 16 anos, como resulta da Organização


Tutelar de Menores e do art.º 109.º do C. Penal de 1886, e teve acolhimento
no art.º 17.º do CP. de 2020. Todavia, quer a imputabilidade, quer a
inimputabilidade são condições concretas do agente na ocasião do
cometimento do crime e não características gerais deste.196

b) A inimputabilidade em razão de anomalia psíquica, num modelo


essencialmente misto como é o consagrado no art.º 18.º do CP. Angolano,
entre outros, depende da verificação cumulativa de dois requisitos ou
elementos que podem ser: um elemento biopsicológico, – que se traduz em
ser o agente portador de anomalia psíquica no momento da prática do facto, e
um elemento normativo, que consiste na incapacidade de avaliação da

O que é suscetível ou não de imputação é um comportamento ou um certo resultado a uma


pessoa mas, pelo fenómeno de transposição linguística, os termos imputável ou inimputável
passou a ser utilizado como se um adjetivo que é aplicado à própria pessoa essa característica de
ser ou não imputável e, portanto, de ser em termos de idade e de saúde mental, responsável pelos
seus atos. Imputare, palavra originária do latim, significa atribuir um determinado facto ao seu
agente, como «seu», pelo que a imputação é um conceito de relação entre o crime e o seu autor.
Dito de outra maneira, é a possibilidade de atribuir uma infração a alguém, a possibilidade de
estabelecer, entre a infração e o sujeito, uma ligação. No mesmo sentido, se diz que a
imputabilidade se traduz no «conjunto de qualidades pessoais que são necessárias para ser
possível a censura ao agente por ele não ter agido de outra maneira. Refere-se, pois, ao lado
endógeno do crime, sendo necessário tomar em conta os seus efeitos na vida psíquica».
Deduz-se assim que, se a imputabilidade se refere à atribuição de um determinado facto ao seu
agente como «seu», censurando o agente por não ter agido de acordo com a lei, a
inimputabilidade é o seu inverso. Não que o facto praticado não corresponda aí ao seu agente,
mas é excluída a possibilidade de realizar aquela censura ao agente.
A inimputabilidade será assim a fixação prévia da insuscetibilidade de imputação. Da definição de
inimputabilidade resulta que, sendo o homem um ser racional e livre, por sua natureza, é
normalmente imputável, pelo que a imputabilidade não necessita de comprovação, mas sim a
falta dela, ou seja, a inimputabilidade é que carece de ser provada.
Tendo em conta ideias Aristotélicas, exige-se para que um ato possa ser
atribuído ao seu autor, ser necessário que este possua uma noção exata da sua
natureza e do alcance do seu ato. Aqui, já se considerava que animais, crianças,
idiotas e loucos44 não podiam ter imputabilidade pois, para aceitar esta, exige-se
razão, discernimento e o poder de agir segundo as noções morais, pois «a
consciência e vontade livre nas acções é o modo de exercício da inteligência e
liberdade de que o homem é dotado».
196 DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL (Tomo I) Autores Dr. António João

Latas Dr. Jorge Dias Duarte Dr. Pedro Vaz Patto.

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ilicitude ou de se determinar de acordo com ela, em função da anomalia


psíquica que o afecta.197

O C. Penal de 1886 acolhia originariamente um modelo essencialmente


biológico próprio de um modelo positivista, mecanicista e estritamente causal,
em que o juízo de inimputabilidade assentava num fundamento somático –
numa doença em sentido estrito, permanente, temporária ou intermitente –
biopsicologicamente comprovável.

O Prof. Eduardo Correia, porém, entendia já resultar da correcta interpretação


da lei penal que não bastava verificar-se uma perturbação mental, sendo
necessário ainda que aquela produzisse tais efeitos que excluísse a
possibilidade de o autor se comportar de outra maneira, deixando igualmente
bem claro que a questão da inimputabilidade tem que colocar-se em relação ao
momento da prática do facto, tal como previsto no art.º 18.º, n.º 1 do C. Penal
(a chamada imputabilidade diminuída).

1.4.2 – Inexigibilidade

197 Em direito penal é comum associar a ausência de culpa à inimputabilidade, não só porque
esta constitui, como vimos no Capítulo I, um obstáculo à comprovação da culpa, mas também,
porque ambos os conceitos são como sinónimos, isto é, muitas vezes afirmar que há ausência de
culpa é o mesmo que dizer que esse indivíduo é inimputável.
Como sabemos, a afirmação da inimputabilidade surge-nos preceituada no Código Penal em
razão da razão da idade e em razão de anomalia psíquica do sujeito. Diz assim o artigo 18.º do
Código Penal vigente:
É inimputável que, por força da anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do
facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.
A imputabilidade não é excluída quando a anomalia psíquica tiver sido provada pelo agente
com a intenção de praticar o facto.
O Tribunal pode atenuar especialmente a pena quando o agente, por força de uma anomalia
psíquica grave no momento da prática do facto, tiver sensivelmente diminuída a capacidade
para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa a avaliação.
Segundo a nossa lei penal, é inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz
no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com
essa avaliação. O que este n.º 1 do art.º 18.º do CP vigente, que dá alusão à inimputabilidade de
uma forma geral, quer dizer é que é inimputável quem sofrer de qualquer transtorno mental ou
intelectual, transtorno esse que poderá ser qualquer alteração ou mau funcionamento das
faculdades psíquicas ou da inteligência que fazem com que o agente esteja impedido de
compreender o carácter ilícito do facto ou de se orientar de acordo com essa compreensão. O ato
em si que foi praticado permanece ilícito, mas tal ilicitude e concernentes consequências não
podem ser imputadas ao agente, face à sua condição psíquica.

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Os casos de inexigibilidade correspondem a situações, definidas na lei penal, em que


se reconhece que a pressão exterior sobre o facto, seja em função do perigo, do bem
jurídico lesado, ou de outros factores, ultrapassa a resistência esperada de uma
personalidade fiel ao direito (F. Dias) e elas podem caracterizar-se em:
– estado de necessidade desculpante;

A inexigibilidade – excesso asténico de legitima defesa;


«Exp.: Ataque dos insurgentes a esquadra Policial do
Cafunfo,
verso a reacção policial “Assassinato do Cafunfo”».

– obediência devida desculpante.

1.4.2.1 – Estado de necessidade desculpante

Ao contrário do direito de necessidade justificante, no estado de necessidade


desculpante só se verifica uma situação desculpante quando estiverem em perigo bens
jurídicos de natureza pessoal enumerados no art.º 37.º do C. Penal vigente: vida,
integridade física, honra e liberdade, do agente ou de terceiro;

– que o perigo não possa ser removido de outro modo;

Art.º 37.º do C.P – que ao agente não possa se exigir comportamento diferente;

– que o interesse protegido seja igual ou inferior ao sacrificado.

– a disputa pelos náufragos da única tábua disponível, donde resulta a


morte
do que dela é excluído em benefício da vida do que dela se apropria;
Exemplos:
– o alpinista que como único meio de se salvar da morte corta a corda
que o
ligava a outro, precipitando-o no abismo.

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Luzia Sebastião Direito Penal I
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Como se vê, em ambos exemplos os interesses ou bens em conflito são de valor


equivalente: vida contra vida.

A este respeito, o C. Penal de 1886 previa igualmente o estado de necessidade


desculpante a propósito do medo insuperável de mal igual ou maior (art.º 44.º, nº2 e
45.º), o qual deve entender-se como referido a uma escolha inevitável entre dois
males, desculpando o agente quando o mal que pretende evitar igual ou superior ao do
seu crime. (Cavaleiro de Ferreira.)

1.4.2.2 – Excesso asténico de legítima defesa

Conforme ensinado pela Prof. Luzia Sebastião a propósito da legítima defesa pode
suceder que o agente actue com excesso intensivo de legítima defesa, por via de
medo, perturbação ou susto, não censuráveis. Isto é, se o agente ao defender-se
provoca lesão superior à que seria necessária para sua defesa por algum dos
motivos acima enunciados, levando-o à exclusão da culpa e consequente a não
punição se o motivo for compreensível.

Mas se o medo, perturbação ou susto lhe forem censuráveis o facto é ilícito, mas a
pena pode ser atenuada, nos termos do art.º 31º, nº2 do C. Penal vigente.

1.4.3 – Falta de consciência da ilicitude não censurável

É a terceira categoria de causas de exclusão da culpa enquanto elemento da infracção


penal, para além da inimputabilidade e inexigibilidade, que já vimos, é a falta de
consciência da ilicitude não censurável.

Ainda como já foi sabiamente abordado pela Prof. Luzia Sebastião, o essencial deste
erro ao compará-lo com o erro sobre as proibições, ou erro sobre a punibilidade
enquanto erro ignorância, verifica-se quando:

a) o agente actua desconhecendo que a sua conduta é punida pela lei penal, não
lhe sendo censurável tal desconhecimento e tem como consequência,
precisamente, a exclusão da culpa.

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Luzia Sebastião Direito Penal I
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Exemplo: quando a “crueldade” do agente não lhe permite se aperceber da


ilicitude de uma omissão de auxílio, ou quando a sua “brutalidade” obsta a que
se aperceba da ilicitude dos maus tratos que inflige ou ainda quando a
“tendência pedófila” lhe obnubila a consciência da ilicitude do abuso sexual
de menor.

b) o erro sobre a punibilidade pode ainda constituir circunstância atenuante da


culpa, levando em sede de determinação judicial da pena à sua atenuação
especial.

1.4.3.1 – Obediência indevida desculpante

No entendimento do Prof. F. Dias a chamada obediência indevida desculpante, deve


ser incluída nos casos de falta de consciência da ilicitude e não de inexigibilidade,
pois trata-se de um mero regime especial da falta de consciência da ilicitude que
aflorámos agora, aplicável ao subordinado que recebeu e cumpriu a ordem que
conduziu à prática do crime.

Conforme vimos a propósito da colisão de deveres, enquanto causa de exclusão da


ilicitude, cessa o dever de obediência hierárquica quando esta conduz à prática de um
crime, pois prevalece o princípio material da legalidade em detrimento do princípio
da autoridade.

As situações previstas no art.º 38.º do C. Penal vigente, correspondem a casos em que,


objectivamente, a ordem do superior hierárquico implica a prática de um crime, mas o
subordinado age em erro, visto não se dar conta que assim é, sem que tal erro lhe seja
censurável.

O artigo igualmente se refere à falta de evidência do carácter ilícito do resultado a que


leva o cumprimento da ordem, a qual é uma evidência objectiva mas de acordo com
as *circunstâncias subjectivamente representadas pelo agente e não daquelas que
podia ou devia representar. Trata-se, assim, de uma evidência para o homem médio
colocado perante as circunstâncias que o agente representou.

154
Luzia Sebastião Direito Penal I
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A sua verificação exclui a culpa, o que não se verificará, porém, quando a ilicitude
fosse evidente no quadro das circunstâncias representadas pelo agente. Significa isto,
então, que o carácter discutível, obscuro ou controvertido da ilicitude do facto,
constituirá caso de obediência indevida desculpante, excludente da culpa.

TEXTO DE APOIO Nº 19

O INTER CRIMINIS ou Os Estádios de Realização do Crime

1. A prática do fenómeno criminal obedece a momentos de realização a que


se chama processo ou ITER CRIMINIS. Começa com uma fase em que o
agente pensa em realizar o crime (a resolução criminosa), a segunda
fase em que recolhe e organiza os meios que vai necessitar para o
cometimento do crime, (actos preparatórios), e finalmente, o momento
em que ele realiza os actos que conduzem a realização co crime
consumado ( actos de execução).

1.1. A resolução criminosa, não é punível porque, no fundo resume-se


aos meros pensamentos, as ideias, o que está na mente do agente. Os
simples pensamentos, não são puníveis. A nuda cogitatio. Se a

155
Luzia Sebastião Direito Penal I
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pessoa nada diz sobre as suas intenções, ninguém consegue saber o


que vai na sua cabeça. Para serem relevantes para o direito penal, eles
precisam de se manifestar. Enquanto momento do iter criminis, a
resolução criminosa não é punível. 198

1.2. Actos Preparatórios. O Código de 1886 dava, no artigo 14º uma


definição do que seriam actos preparatórios. Assim “ são actos
preparatórios os actos externos conducentes , a facilitar ou preparar a
execução do crime, que não constituam ainda começo de execução”.
Estes são actos normais da vida corrente, como comprar uma corda,
uma faca, medicamento para ratos, etc. são conformes com o
ordenamento social. Contudo, o Código de 1886, estabelecia no artigo
12º que se esses actos fossem classificados como crimes, por lei, ou
como contravenção por lei ou regulamento, então seriam punidos.

Os Actos preparatórios continuam, em regra a não ser punidos, salvo se


disposição legal dispuser em contrário. Artigo 336º pune com prisão, de 3 meses
a 3 anos ou multa até 360 dias os actos preparatórios dos crtimes dos artigos
316º violação de segredo do Estado, 317º Espionagem, 318º inutilização de
meios de prova, 320º inutilização de meios de defesa. 321º destruição de
estruturas ou meios militares, 323º recolha de informações de natureza militar,
325º ataque contra autoridades ou Estado Estrangeiro ou Organizações
Internacionais , e de 329º Rebelião, 330º sabotagem, 331º atentado contra o
Presidente da República e outras entidades do Estado.

Para efeitos destes crimes que são contra a segurança do Estado, os actos
preparatórios são puníveis porque constituem crime autónomo. Continuamos a
defender o que já se entendia a propósito das leis 7/78 e da Lei dos Crimes
contra a Segurança do Estado.

198 RODRIGUES, Orlando Ferreira, oc.cit. p. 246,247.

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Luzia Sebastião Direito Penal I
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No artigo 20º trata-se da tentativa199 o nº1 dá-nos a definição e o nº2 distingue


sem que seja necessário o recurso à discussão doutrinal entre critério objectivo e
critério subjectivo, das distinção entre o que são actos preparatórios e actos de
execução. Este número dois clarifica e acaba por acolher todas as doutrinas que
discutiam a questão. Assim, são actos de execução
a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime;
b) Os que forem idóneos à produção do resultado típico. Estarão
naturalmente lembrados da discussão em torno da questão da idoneidade
do meio que leva à produção do resultado típico. Idoneidade absoluta (
quando quer em concreto, quer em abstracto com o meio usado o
resultado não se verificará e equipara-se à falta de objecto material do
crime.) ( exemplo) e idoneidade relativa quando
O meio é idóneo à produção do resultado ilícito -típico, mas esse não é
atingido porque ocorreram circunstâncias que impediram a produção desse
resultado ( exemplo usou mesmo veneno, mas em quantidade insuficiente).

c) Os que , segundo a experiência comum e salvo circunstâncias


imprevisíveis, foram de natureza a fazer esperar que se lhe sigam actos
das espécies indicadas nas alíneas anteriores.

No artigo 21º trata-se da punibilidade da Tentativa . Diferentemente do que


acontecia no Código de 1886, em que a tentativa era punida quando ao crime
consumado coubesse pena de prisão maior, ou seja, 2 a 8 anos , aqui a pena é a
de 3 meses a 3 anos e note-se , estão precritas as circunstância que podem levar
à punição da tentativa.

Desde logo, a pena aplicável à tentativa é a do crime consumado, especialmente


atenuada.

Mas ela não é punível quando:

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Luzia Sebastião Direito Penal I
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a) For manifesta a ineptidão do meio empregado pelo agente ( usou farinha


de trigo);
b) A inexistência do objecto essencial à consumação do crime ( vai para
matar e encontra a vítima já morta)

Há ainda uma nota de grande importância. Desapareceu a figura da


frustração. Já não há crime frustrado. Aliás, a frustração tinha todos os elementos
da tentativa, a diferença estava em que enquanto na tentativa a execução
começava, mas não terminava por circunstâncias alheias à vontade de agente,
aqui realizavam-se todos ao actos de execução incluindo o resultado. Apenas
este não era o que o agente esperava ou pretendia. ( exemplo, o agente
pretendia matar a vítima, disparou viu a vítima cair e ficou convencido de que a
vítima tivesse morrido. Afinal C que por ali passava, socorreu-a e conseguiu
chegar a tempo ao hospital e a vítima sobreviveu.)

199 RODRIGUES, Orlando , ob. cit p. 240 a 247.

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