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Direito Penal II – João Maria Falcão – TB – 20/21

DIREITO PENAL II – PRÁTICAS

Aluno: João Maria Falcão

Assistente: Professora Sónia Moreira Reis

Aula n.º 1 – 23/02/2021

(Introdução à disciplina Direito Penal II. Definição de alguns conceitos importantes)

Já sabem qual a sistemática do Código Penal, os primeiros 130.º artigos representam a Parte Geral, do
art. 131.º a 389.º é a parte Especial. A parte geral é composta por meta-normas, portanto são normas
estruturantes do nosso pensamento e estruturante da própria aplicação do Código Penal. EmDireito
Penal II não vamos estudar os crimes em especial, vai estar focado nas meta-normas da parte Geral.
Mas que parte? Vai estar focado na Teoria do Crime, portanto o objeto central vão ser os arts. 10.º a
39.º, são essas as meta-normas que vão ser objeto do nosso estudo apurado.

Direito Penal II traz-nos um desfio acrescido, porque vamos estudar o caminho do crime e como se
define o crime, mas partimos sempre do caso prático. A mata B, pode ser criminalmente
responsabilizado pela morte de B? Claro que temos de começar por ir à parte especial, temos de
encontrar o tipo da Parte Especial, que neste caso seria o art. 131.º, e depois temos de proceder ao
estudo do caminho do crime para conseguirmos concluir que o agente pode ser responsabilizado
penalmente ou não. São precisamente os arts. 10.º a 39.º que centralmente nos vão explicar se o
agente praticou ou não uma ação que seja simultaneamente típica, ilícita, culposa e ilícita. São artigos
estruturantes porque a jurisprudência analisa precisamente os arts. 10.º a 39.º para apurar se o A que
matou o B pode ser responsabilizado criminalmente. Pelo caminho podemos ter as mais diferentes
variantes – A pode ter morto B por coação, por legítima defesa, etc. Esse enquadramento é feito por
estes artigos.

Perguntas do jogo:

1. O tipo do artigo do 131.º do CP é doloso ou negligente? E o art. 148.º?

Hoje em dia, o dolo e a negligência correspondem a elementos subjetivos da tipicidade. É a meta-


norma do art. 13.º do CP que nos dá uma orientação estruturante para toda a Parte Especial e
legislação extravagante. Nos termos do art. 13.º, “só é punível o facto praticado com dolo, ou nos
casos especialmente previstos na lei, com negligência”. Portanto à luz do princípio da subsidiariedade,
o legislador tomou uma opção clara. Em regra, quando o tipo nada refere, o tipo é doloso. Isto
retiramos deste art. 13.º CP. Mas no art. 137.º já há uma referência ao homicídio negligente. A mesma
regra vale para o art. 148.º CP, está previsto na lei. E o art. 203.º, e o 212.º? São dolosos. Se percorrem
os artigos relativos aos crimes contra o património 202.ºss, são esmagadoramente dolosos, porque
são uma manifestação do princípio da fragmentariedade do Direito Penal. O legislador tutela um certo
bem jurídico, mas não tem de tutelar todos os atentados ou formas de agressão contra esses bens
jurídicos. Tutelas os dolosos, mas não os negligentes.

2. O tipo do art. 131.º pode ser praticado por omissão?

O art. 10.º CP é aqui extremamente estruturante. Podemos distinguir entre crimes por comissão por
ação e por omissão. O que é isto de crimes por comissão? São aqueles que comportam um resultado,
portanto, o resultado é o que se destaca lógica e cronologicamente da conduta do agente. Se A dispara
sobre B, matando-o, nós conseguimos destacar lógica e cronologicamente a conduta matar, sendo o
resultado morte. Há crimes que comportam no resultado. Nem todos comportam o resulta, mas este
comporta, já o crime de condução por embriagues não tem resultado, pois basta a pessoa estar

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sentada a conduzir com uma taxa de álcool no sangue de 1,2 para o crime estar consumado,
independentemente de um acidente ou de um atropelamento. O que o legislador determina neste
art. 10.º é que quando um tipo legal de crime comportar um certo resultado, ou seja, crimes materiais
ou de resultado, o facto abrange não só o facto apto a produzi-lo, como também a ação adequada a
evitá-lo. Significa que em regra, quando estamos diante de um crime da Parte Especial que comporta
um resultado, ele pode ser praticado por ação através de um facere, ou então através do art. 10.º,
podemos equiparar a ação à omissão. E o art. 143.º (Ofensa à integridade física)? O que temos de
determinar primeiro? Se estamos diante de um crime comissivo.

E o art. 190.º/1? Na primeira parte nós temos alguém que se introduz na habitação de outra pessoa
sem consentimento, sem autorização, e de facto isto implica um facere, uma conduta. Mas podemos
ter a outra vertente da descrição típica, a pessoa já lá está dentro da casa e é intimado a retirar-se,
mas não sai, não se mexe, isto é já um comportamento omissivo. Foi o legislador, já na parte especial
que introduz na descrição típica descreve o comportamento tanto por ação como por omissão. A
norma comporta tanto a ação como a omissão, surge logo descrito.

E o art. 200.º/1? Pode ser praticado por omissão? Sim. É o próprio legislador que determina, na
descrição típica, que este comportamento pode ser praticado por omissão. É outro caso em que não
necessitamos de ir ao art. 10.º CP. Não basta só analisar o art. 10.º a 39.º, temos de ir às orientações
dadas pelo legislador na Parte Especial.

E o art. 284.º? Recusar é non facere – é um comportamento negativo. A recusa de médico é uma forma
negativa de conduta, está em causa uma omissão. Enquanto que no art. 200.º a pessoa genericamente
se recusa a dar auxílio a outrem, no art. 284.º é o médico que no exercício da sua função se recusa a
prestar auxílio a quem precisa. Portanto significa que ambos os artigos são praticados por omissão
que resulta da descrição típica da norma, não sendo necessário o recurso ao art. 10.º CP.

3. Se A e B estiverem lado-a-lado, e o A der um soco em B quando este estava pronto para


disparar sobre A, será que deve ser responsabilizado criminalmente?

Trata-se de uma ação típica, mas não é ilícita, pois o facto está justificado e exclui-se assim a ilicitude.
As causas de justificação vão-nos ocupar muito tempo e atenção. Estaria em causa o tipo do art. 143.º,
por isso a ação é típica no sentido em que conseguimos fazer corresponder o caso concreto com a
hipótese contida na norma. Mas quando chegamos à ilicitude, estamos diante de uma causa de
justificação pela conjugação do art. 143.º com o art. 32.º.

4. Se o A se introduzir na habitação de B, com o consentimento deste, será que pratica o crime


previsto e punível pelo art. 190.º/1 CP?

Embora o legislador se reporte no art. 190.º a consentimento, na verdade e dogmaticamente o que


aqui está em causa é o que chamamos de acordo. Um acordo que afasta a própria existência da
tipicidade. Distingue-se do consentimento enquanto causa de justificação, que exclui a ilicitude nos
termos do art. 38.º. Significa que, por vezes, na descrição típica o legislador exige para efeitos de
preenchimento da tipicidade que exista um acordo, ou uma benevolência. A conduta é atípica e não
preenche o tipo legal, logo não avançamos para a ilicitude.

5. Se A, de 15 anos matar B, pode ser responsabilizado criminalmente pelo CP?

O agente pratica uma ação típica e ilícita, mas não é culposa, o agente não é suscetível de culpa. A
incapacidade pode resultar da idade (art. 19.º) ou de anomalia psíquica (art. 20.º), ou através de
causas de exclusão da culpa, como o excesso de legítima defesa (art. 33.º) o estado de necessidade

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(art. 35.º), ou conflito de deveres (art. 37.º). Ou seja, em todos estes casos, nós excluímos a culpa, mas
a ação permanece típica e ilícita, mas não será culposa.

6. Se A, português, matar B, português, em Madrid e aí continuar a residir, será que poderá


ser responsabilizado criminalmente em Portugal pelo crime nos termos do art. 131.º?

Aqui iríamos rapidamente às regras de aplicação da lei penal no espaço. O facto foi completamente
praticado no estrangeiro, aplicando o critério da territorialidade (art. 7.º) concluímos que não
podemos seguir por este caminho. Quanto muito tentaríamos aplicar o art. 5.º/1/b) – mas o agente
continua a residir em Madrid, e não em Portugal. Poderá ser responsabilizado em Portugal? Aqui o
problema é relativo à residência, o local onde o agente se encontra e reside habitualmente, mas este
facto vai condicionar o interesse punitivo do Estado Português. Portanto, há certas condutas que até
podíamos efetivar a responsabilidade jurídico-penal, mas o legislador adiciona uma particular
exigência que é a residência em Portugal. Por isso a permanência em território português vai ser uma
condição objetiva de punibilidade, é algo que está para além da exigência de uma ação típica, ilícita e
culposa, é algo que se situa no âmbito da categoria analítica da punibilidade e que corresponde ao
último momento qualitativo do facto penalmente relevante.

Na verdade, estas questões conduzem-nos a uma outra questão: a teoria geral da infração penal. É o
que vamos estudar. As diferentes categorias de análise do crime não foram sempre as mesmas.
Tiveram uma evolução, modificadas pelas diferentes Escolas. Não só definem o crime, mas também
indiciam um caminho para saber se o agente pratica um crime, e se pode ser responsabilizado. Na
verdade, vamos estudar a metodologia científica acerca da qualificação de um facto como crime. O
crime é um conceito que vamos decompor em diferentes categorias analíticas. Deve-se a Beling o
sistema de análise categorial qualificatório pelo encontro de características comuns.

Aula n.º 2 – 02/03/2021

(Escola Clássica e Neoclássica: conceito de ação, tipicidade, Ilicitude e culpa)

Quando nós falamos da Teoria Geral da Infração Penal, nós sabemos que é o grande objeto da
disciplina de Direito Penal II. Por isso vamos estar muito focados no estudo da definição de crime. É
esse o nosso objeto. Quando entramos nesta matéria, a pergunta que nos salta é: para que serve?
Serve para determinar em que circunstâncias é que um determinado facto pode ou não ser punível
criminalmente. Se A dá um tiro em B, para sabermos se A pode ser punido criminalmente temos de
fazer uma comparação entre 1.º o facto que A praticou, o facto que decorreu (A matar B), e uma
hipótese que está contida numa norma penal incriminadora. Portanto, no caso, exige sempre que
observemos uma metodologia muito concreta que é fazermos uma comparação progressiva entre a
situação fáctica e a hipótese legal que está contida no art. 131.º CP. Esta comparação progressiva é a
de que Engish denominou de espiral hermenêutica, portanto, nós vamos numa linha contínua
comparando os dados do caso com a norma penal. Vamos fazer raciocínios de abstração, sempre
aproximados ao caso concreto, aproximando-os à situação que está contida na norma.

É muito importante que consigamos perceber que a construção do conceito de crime é a construção
de um conceito de facto punível e nós já sabemos por esta altura que se há hoje um princípio
indiscutível aceite unanimemente pela doutrina, é o princípio de que o Direito Penal é do facto, não
do agente. Este exercício de abstração é consolidado pela comparação do facto com os factos típicos
que a norma prevê.

Nós temos na Teoria Geral da Infração Penal diferentes categorias analíticas de análise do crime,
seguimos o sistema categorial classificatório em que vamos no fundo decompor o crime a partir de

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diferentes formas de análise, através de elementos de análise do crime. A partir do momento em que
temos uma ação vamos determinar se ela é típica, se é ilícita, se é culposa e se é punível. Nós sabemos
que o facto é incindível, se A mata B, nós não podemos cortar este facto aos bocados, mas sendo
incindível, a TGIP propõe a análise deste facto à luz de diversas valorações. Assim, no nosso caso
concreto – A mata B e B morre – nós vamos verificar se quando A disparou sobre o B praticou uma
ação simultaneamente típica, ilícita, culposa e punível. Ao utilizar a TGIP vamos retirar dela o que tem
de mais útil que é pegar naqueles que são os traços comuns dos diversos tipos de ilícito, previstos na
parte especial do CP e lei penal extravagante, e vamos chegar por abstração a uma definição
simultaneamente teórica e normativa do crime, o que significa que à luz desta TGIP vamos sempre
fazer a tal comparação entre os dados do caso concreto e a hipótese legal contida na norma, seguindo
exatamente o mesmo tipo de caminho.

Este estudo das diversas categorias analíticas da TGIP não foi sempre o mesmo. Esse conteúdo resulta
de uma evolução histórica das diferentes escolas da análise do crime que nos levou a três Escolas
fundamentais – a Escola Clássica (1881 – 1920); Escola Neoclássica (1915 – 1930); Escola Finalista
(1931). Há um outro contributo, o funcionalismo de Jakobs a partir do pensamento de Nicolas
Luhmann que iremos ver noutras aulas. As diferentes Escolas deram um contributo às diferentes
categorias analíticas.

Vamos ver os casos:

1. A injuria B. À luz do conceito de ação da escola clássica, A pratica uma ação


para efeitos do disposto no artigo 181.º do CP? E de acordo com a escola
neoclássica?
O conceito de ação que é defendido pela Escola Clássica, resulta de uma inspiração das ciências exatas
e foi retirado da física mecânica, é um conceito de ação naturalístico, causal e descritivo. Por isso
mesmo se diz que na Escola Clássica a ação existirá sempre que houver um movimento corpóreo que
provoque uma modificação visível no mundo exterior. A lógica era esta. Portanto, isto significa que
nós estamos perante um conceito de ação empírico e naturalista. Vai ter um efeito interessante.
Enquanto estamos a procurar responder à primeira questão. Quando nós comparamos o conceito de
ação assim construído com os dados da primeira questão nós percebemos que na prática, este
conceito de ação assim construído implica alguma apreensão pelos sentidos. Porque se é preciso um
movimento corpóreo que provoque uma alteração no mundo exterior nós precisamos desta
apreensão pelos sentidos. Tem um efeito complexo, porque na verdade a ação só pode ser típica, ou
seja, preencher a categoria analítica da tipicidade quando for lógico-formalmente subsumível ao tipo
de crime. Isto tem aqui um efeito importante: se nós exigimos para o conceito de ação o tal
movimento corpóreo, restringe de forma inadmissível o conceito de ação relevante à luz da TGIP. Foi
uma das primeiras críticas da Escola Neoclássica à Escola Clássica, pelo absurdo a que pode conduzir.
Na verdade, no crime de injúrias não temos nenhuma modificação do mundo exterior, não temos
nenhuma correspondência entre este conceito de ação naturalista, causal, descritivo e objetivo, e o
tipo de injúria que nunca diferiu muito daquilo que temos no art. 181.º CP. Reparem que a Escola
Clássica veio a reformular o conceito quando diz – há um movimento corpóreo que são as ondas
sonoras que entrariam nos tímpanos do destinatário causando vibração dos mesmos que recebe a
mensagem, então teríamos aqui o conceito de ação. Mas isto já é uma reformulação que a Escola
Clássica dirige à Escola Neoclássica que a criticou severamente. Portanto, isto serve para dizer que
este conceito de ação é insustentável ou pouco concretizado. Serve isto para dizer que o conceito de
ação que a Escola Clássica constrói não dá, verdadeiramente resposta aceitável a problemas jurídicos
que se identificam como este, de injúria, que não provoca uma modificação do mundo exterior.

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Na Escola Neoclássica é um bocadinho diferente, porque a TGIP começa verdadeiramente no conceito


de tipicidade, portanto, no fundo o conceito de ação não tem a autonomia dogmática, e por esse
motivo, o que interessaria seria o sentido normativo de ação, oferecido pelo legislador, porque seria
o legislador a dar ou não valor a determinada ação. Isto é interessante, porque o que aqui interessa é
a descrição legal, e se é isso que importa, a descrição pode conter aquilo que o legislador quiser. Ora
isto expande, naturalmente, o conceito de ação, mas ao mesmo tempo oferece menos garantias do
ponto de vista da segurança jurídica. Temos aí um problema interessante.

Por isso, respondendo à questão, pelo conceito de ação da Escola Clássica, não teríamos um
verdadeiro conceito de ação que pudesse ser tomado em linha de conta, de forma relevante, para
imputar um crime como este. Portanto só pela reformulação desta construção é que, enfim, resultou
a possibilidade de abarcar tipos como a injúria que não provoquem modificações no mundo exterior.

Já com a Escola Neoclássica é diferente, porque como o conceito de ação é um conceito social, e
começa na tipicidade, o que releva é o conteúdo normativo, é o conteúdo que o legislador oferece.
Temos aqui uma diferença enorme.

2. A vê o seu filho B de 5 anos a afogar-se numa praia deserta e nada faz para o
socorrer, apesar de ser um nadador medalhado. À luz do conceito de ação da
escola clássica, A pratica uma ação para efeitos do disposto no artigo 131.º
(cf.132.º, n.ºs 1 e 2, alínea a)) do CP? E à luz da escola neoclássica?
Há uma crítica nuclear que a Escola Neoclássica dirige à Escola Clássica que respeita aos crimes
omissivos. Reparem, a noção do conceito de ação de que parte a Escola Clássica, o tal movimento
corpóreo que modifica o mundo exterior, está pensado exclusivamente para os comportamentos por
ação, facere. Não está claramente pensado para os crimes omissivos. Isto significa que os neoclássicos
também apontaram como crítica que o conceito não abarca os crimes omissivos. Foi por isso que a
Escola Clássica reformulou o seu conceito de ação, e por isso mesmo veio sustentar que na omissão
também temos um movimento corpóreo, que é a retenção muscular. A pessoa retém os músculos, faz
força para não agir de acordo com o dever jurídico que a norma impõe, e está por isso a praticar uma
ação. Houve aqui alguém que referiu aquela lógica que o Prof.º Figueiredo Dias descreve, que na
omissão o que revelaria seria a ação procedente, o atuar precedente. Claro que aqui, no exemplo
dado, não tenho o atuar procedente que o Prof.º FD descreve, exatamente para percebermos que é
descabido esta lógica do atuar procedente. Se eu não vos dou o atuar procedente, significaria isto que
não há omissão? Isto serve para vos demonstrar que esta construção não consequente. Uma
construção da omissão assim concebida não é verdadeiramente consequente. Claro que a Escola
Neoclássica contorna esta questão, porque se é o legislador que oferece o conteúdo normativo à
conduta, seja à ação, seja à omissão, poderá ser omissão aquilo que o legislador definir. De alguma
forma estamos a espelhar a lógica feita no art. 10.º relativamente aos crimes comissivos, uma
extensão do tipo que o legislador promove por força deste art. 10.º CP. Isto também indicia que nós
não temos uma Escola única, na verdade, por vezes temos mais inspiração finalista, mas doutras temos
uma pincelada neoclássica.

3. À luz da escola clássica, o conceito de “coisa móvel alheia” e a referência a


“ilegítima intenção de apropriação” constantes do crime de furto p. e p. no
artigo 203.º do CP serão “momentos de observação objetivos, descritivos e
neutros”?
Esta é mais uma das críticas que se dirige à Escola Clássica. Para a Escola Clássica a tipicidade é sempre
exclusivamente descritiva, objetiva e neutra. Os tipos servem apenas para descrever comportamentos

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proibido, sem nenhum momento de valoração subjetiva. Isto significa que, se olharmos para a letra
do art. 203.º do CP, temos aqui a Escola Clássica em “maus lençóis”. O conceito de “coisa” não é um
conceito descritivo, objetivo e neutro, implica valoração. A “ilegítima intenção de apropriação” está
muito longe de ser um elemento objetivo, descritivo e neutro. Por isso, perceber a tipicidade, a
ilicitude como vertente exclusivamente objetivas de valoração, não é possível, não consequente.
Portanto, andou muito bem a Escola Neoclássica quando dirigiu esta crítica à Escola Clássica, vindo
dizer que a tipicidade, o tipo, quando descreve os comportamentos que são proibidos tem logo aí
indícios de ilicitude, tem logo aí elementos de facto objetivos, mas certos tipos de ilícito também vão
ter elementos subjetivos. O exemplo clássico é naturalmente o crime de furto precisamente. Se um
de nós pegar num livro que é de um colega e o leva para casa supondo que era o nosso, à luz da Escola
Clássica parece que a solução não poderia ser outra se não um comportamento típico. Porque esse
tipo deveria estar descrito de uma forma objetiva e neutra. Mas a Escola Neoclássica diz que isso não
faz sentido, porque há certos tipos de ilícito que já comportam na sua própria descrição, na sua
descrição típica, elementos subjetivos.

4. Para os clássicos, o conceito de ilicitude era formal ou material? E para os


neoclássicos? Qual a importância da distinção?
Estamos sistematicamente a dizer que na Escola Clássica a tipicidade e a ilicitude correspondem à
vertente objetiva, e tudo o que eram elementos subjetivos estavam na vertente da culpa. Isto significa
que a ilicitude na Escola Clássica era marcadamente formal, neutra e normativa. Isto quer dizer que o
comportamento é ilícito porque contraria o ordenamento jurídico como um todo, ou então não é
ilícito porque haveria alguma causa de justificação. É um tudo ou nada. Não há meio termo, porque
não há nenhuma possibilidade de ponderação.

No caso da Escola Neoclássica, já é ligeiramente diferente, porque se nós partimos de uma lógica de
danosidade social, já estamos de alguma forma aqui em busca da resposta à questão: qual é a
intensidade desta danosidade social relativamente ao bem jurídico? O que significa que a ilicitude já
tem aqui uma componente material e graduável. Significa que haverá comportamentos que tem um
grau de ilicitude maior do que outros. Pode ser comprovado quando olhamos para o tipo base e para
o tipo qualificado, p.e. o tipo de homicídio simples do art. 131.º, tem um grau de ilicitude diferente do
tipo de homicídio qualificado do art. 132.º CP, o art. 144.º, ofensa à integridade física grave, tem um
grau de ilicitude maior do que o crime de ofensa à integridade física simples do art. 143.º CP. A partir
do momento em que percebemos esta lógica, esta vertente da ilicitude como conceito graduável,
podemos entender que o facto pode ser mais, ou menos, ilícito. Que este reflexo da maior ou menor
ilicitude se pode fazer sentir na determinação concreta da medida da pena.

Em termos práticos, enquanto que na Escola Clássica a ilicitude era um tudo ou nada, ou existe ou não
existe, na Escola Neoclássica conseguimos dar um passo em frente e graduar a própria ilicitude. E isto
é a diferença marcante que no final da resposta estava à procura.

Em sede de Escola Clássica, se o tipo está preenchido está logo indiciada a ilicitude, portanto, é muito
difícil o facto ser típico, mas não ser ilícito. A Escola Neoclássica introduz a tal lógica do tipo de ilícito,
e muitos autores, como Eduardo Correia, Figueiredo Dias (não vai tão longe), Faria Costa são
influenciados por esta lógica. A Escola Neoclássica vê a tipicidade e a ilicitude como uma unidade
quase incindível, a tipicidade como a vertente objetiva, a vertente positiva, quando a ilicitude,
nomeadamente as causas de justificação seriam a vertente negativa do tipo. Sempre que alguém
atuasse por exemplo ao abrigo da legítima defesa, estaria a negar a tipicidade, seria como um
contratipo que afasta a própria tipicidade, dentro de uma lógica que seria o tipo de ilícito.

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5. Porque sabe que A, pai de B, com 3 anos de idade, é funcionário de um banco,


C rapta B e ameaça A de que caso não subtraia do banco em que trabalha
250.000,00€, matará B. A subtrai 250.000,00€ do banco e entrega-os a C. À luz
da escola clássica, que concebe a culpa como ligação psicológica entre o agente
e o facto praticado, a conduta de A será culposa? E à luz da escola neoclássica?
Esta pergunta está focada na questão da culpa. É este o problema que aqui está. Notamos que em
ambas as Escolas (Clássica e Neoclássica) fazem uma construção à maneira civilista, a culpa é que
contém o dolo e a negligência, são elementos da culpa. Mas ainda assim há aqui uma diferença
sensível e que nos levaria a responder de forma diferente à questão do caso.

Para a Escola Clássica, a conceção culpa que era adotada era uma conceção psicológica, haveria uma
conceção psicológica entre o agente e o seu facto. Portanto, o dolo e a negligência seriam verdadeiros
elementos da culpa que materializavam essa tal ligação psicológica entre o agente e a sua culpa. Como
pressuposto externo da culpa, tínhamos a imputabilidade. No presente caso, o agente atuou
dolosamente, para todos os efeitos teríamos uma ligação psicológica entre o facto do agente e o seu
dolo. Portanto, o agente seria responsabilizado criminalmente perante esta hipótese.

Para a Escola Neoclássica a conceção de culpa de que se parte é normativa, é uma conceção
psicológico-normativa de culpa. O que significa isto? Que nós temos de olhar para a valoração da
vontade, isto é, de verificar caso-a-caso se houve, ou não, vontade. Portanto, se a conduta é, ou não
censurável. Enquanto que o dolo e a negligência são modalidades de culpa, então o que isto quer
dizer? Temos aqui uma vertente normativa que chama à colação a questão da censurabilidade, a
questão de saber se o agente atuou com vontade ou não. Neste caso, o agente não atua
voluntariamente, pois atua sobre coação. Isto é um elemento externo, analisado para além do caso
concreto do dolo e negligência.

Enquanto na Escola Clássica tudo se resume à questão de saber se houve ou não dolo ou negligência,
e a haver então o agente é responsabilizado, a menos que seja inimputável. Na Escola Neoclássica
temos aqui um momento de valoração objetivo, que apela à questão de saber se o comportamento
do agente é censurável ou não.

Aula n.º 3 – 09/03/2021

(Continuação das perguntas. Caso A Mosca. Atos Reflexos v. Automatismos. Escola Funcionalista)

6. A empurra B para o chão, com o intuito de lhe subtrair a carteira, mas, porque
B grita por socorro e várias pessoas se acercam, A acaba por fugir do local,
sem nada subtrair. À luz da escola neoclássica, A praticou um crime de ofensa
à integridade física (artigo 143.º do CP) ou um crime de roubo na forma
tentada (artigos 210.º e 22.º, n.ºs 1 e 2, alíneas b) e c) do CP? E de acordo com
a escola finalista?
A pergunta 6 está fundamentalmente relacionada com a Escola Neoclássica e Finalista. Relativamente
à questão de saber se o agente pode ser responsabilizado à luz da Escola Neoclássica, é preciso
relembrar que esta Escola tem como base a filosofia dos valores de origem kantiana. A esta luz, o que
a Escola Neoclássica pretendia era retirar do mundo naturalístico do ser o Direito, para coloca-lo no
mundo do ser e do dever-ser no mundo dos sentidos e dos valores.

No plano da ação teve consequências muito importantes, porque na verdade, o que importava era o
significado social do conceito de ação, por isso era sempre o sentido normativo de uma certa atuação.

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Portanto, a análise de ação penalmente relevante começa na Escola Neoclássica e na tipicidade.


Porque é a lei que vai definir as condutas que são penalmente relevantes.

Tem consequências importantes para as categorias analíticas da TGIP que surgem depois
nomeadamente para a tipicidade e para a ilicitude. Porque ao contrário do que vimos na Escola
Clássica, na Escola Neoclássica, a tipicidade não é puramente objetiva, não comporta apenas
elementos fácticos. Se abrirem o CP no art. 131.º, verão aí já elementos objetivos, elementos fácticos:
agente – quem; conduta – matar; objeto – outra pessoa; resultado – morte; portanto, são elementos
fácticos que já a Escola Clássica tinha identificado.

Mas a Escola Neoclássica veio mostrar mais! Vem mostrar que os tipos, para além destes elementos
fácticos, descritivos, objetivos e neutros, tem ou pode ter outros elementos p.e. elementos
normativos como vimos na última aula por referência ao crime de furto (art. 203.º), a noção de “coisa”,
“móvel”, “alheia” faz apelo a algo que está para além dos elementos puramente objetivos, são
elementos normativos que exigem valoração.

Também vimos que para a Escola Neoclássica, alguns tipos de ilícito, logo na sua descrição também
comportam elementos de natureza subjetiva, também fazem apelo a elemento relacionados com a
vontade do agente. O art. 203.º é o exemplo paradigmático: “ilegítima intenção de apropriação”. Os
Neoclássicos identificaram a existência de tipos de ilícito que logo na sua descrição típica faziam apelo
à vertente subjetiva da tipicidade. Logo, a descrição típica podia exigir uma certa vontade ou conteúdo
de vontade.

Assim sendo, a tipicidade não é meramente objetiva, e a ilicitude também não. A tipicidade para além
de elementos objetivos vai comportar por vezes elementos subjetivos e normativos às vezes. O Prof.º
FD com alguma piada diz que a tipicidade e ilicitude na Escola Neoclássica estão numa relação como
o fumo e o fogo; onde há fumo há fogo. A lógica é a mesma, onde há tipicidade, há em regra ilicitude.
Daí que as causas de justificação sejam elementos negativos do tipo.

Uma outra imagem: imaginem um filme. A Escola Clássica é um filme mudo a preto e branco, sem
legendas e sem música. A Escola Neoclássica é um filme mudo já com banda sonora, é mais ligeira.
Significa que há uma marca distintiva ténue, conseguimos intuir por vezes aquele que as personagens
estão a presenciar e a sentir.

Qual é o efeito que isto tem? No nosso caso prático, o agente A empurra o B com o intuito de lhe
roubar a parteira. Mas como B grita por socorro, o A acaba por fugir e não subtrair nada. À luz da
Neoclássica, e com a imagem do filme mudo com banda sonora, víamos que A empurrava para o chão,
o B a cair no chão muito admirado várias pessoas a vir, e depois víamos o A a fugir. Só lhe podemos
atribuir o crime de ofensa à integridade física simples do art. 143.º, nem mais, nem menos. Não lhe
podemos imputar nada mais porque na verdade, não há mais elementos com que possamos contar
para resolver o caso. O que conta é o que se exterioriza.

E no caso da Escola Finalista? Como é que responderíamos? A Escola Finalista (1931) vai-se
desenvolver no pós WWI, e percebe-se durante o III Reich que o normativismo da Escola Neoclássica
não oferece garantias nenhumas. Com a passagem do Estado de Direito Formal para o Estado de
Direito Material, tentou-se ancorar toda a normatividade, inclusive a normatividade do Direito Penal,
numa via formológico-ôntológica. Portanto, a ideia da ação final ôntica. Estão em causa leis
determinadas no plano do ser. Welzel vai acentuar que toda a atuação característica da pessoa, do ser
humano se acentua no ser final. Portanto, a ação que está na base do crime, só pode ser construída
através da finalidade que ela prossegue. Na verdade, está a tentar superar o dualismo metodológico
da Escola Neoclássica, porque defendia que o Direito Penal não pode pairar nas nuvens, o Direito

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Direito Penal II – João Maria Falcão – TB – 20/21

Penal tem de descer à Terra e resolver os problemas reais, confrontar-se com a realidade. Porque vê
a lógica kantiana uma divisão artificial entre o plano do ser e do dever-ser. Quando o Direito constrói
as suas teorias, tem de respeitar as teorias ônticas, pré-jurídicas que existem efetivamente no mundo.

Welzel constrói, portanto, uma teoria da ação final ôntica. Quando a pessoa atua, a pessoa atua
antecipando mentalmente aqueles que são os fins que pretende alcançar, selecionando aqueles que
são os meios necessários para atingir esses fins.

Welzel veio considerar que a ação humana é uma antecipação intelectual de certos resultados. As
pessoas quando atuam, já sabem para o que vão. Quando atuam, atuam para atingir um certo fim. Ou
seja, escolhem os meios necessários para os atingir. O seu comportamento é a via para atingir esse
fim. Se todas as ações humanas são na verdade uma antecipação intelectual da finalidade que se
pretende atingir, a ação é final, é ôntica. Quando atua, atua pela sua vontade, para atingir um certo
fim.

Isto tem reflexo nas categorias analíticas da TGIP, nomeadamente em sede de tipicidade. Na Escola
Finalista, a tipicidade não é só objetiva como é na Escola Clássica, mas também não é composta por
elementos objetivos e subjetivos às vezes, como na Escola Neoclássica. Não é um filme a preto e
branco com música de fundo. Na Escola Finalista, estamos na crista da onda, estamos perante filmes
com música, com diálogos, com fundos, e até temos visão raio-x. Porque nós sabemos qual é a
vontade. A tipicidade é composta por elementos objetivos, descritos na norma, mas também por
elementos subjetivos, pela vontade, pelo dolo e negligencia. É com a Escola Finalista que o dolo e a
negligência deixam de ser elementos da culpa e passam a ser elementos da tipicidade. A pessoa
quando atua, fá-lo porque quer e, portanto, conheceu e quis, ou então violou um dever objetivo de
cuidado, que se vai repercutir nas categorias analíticas posteriores.

Desde logo na ilicitude, porque esta é composta pelo desvalor da ação e do desvalor do resultado.
Mas há aqui uma relação entre aquilo que o agente pratica – aquilo que o agente quer – e a
repercussão que existe no plano da ilicitude. Daí que se fala aqui numa conceção pessoal final do
ilícito, ligada diretamente ao agente.

Se a ação é ôntica, e a tipicidade é composta por elementos objetivos e subjetivos, se a vontade é logo
ponderada aí, as categorias analíticas seguintes incluem logo a vontade do agente. Na ilicitude, para
efeitos de abrigo de uma causa de justificação, não releva só a situação fáctica em que alguém (32.º)
está a repelir uma atuação ilícita, mais do que isso para poder beneficiar do regime do art. 32.º
(justifica o facto e exclui a ilicitude) é preciso que a pessoa saiba que está a repelir uma atuação atual
e ilícita. É preciso que tenha vontade de atuar assim. A vontade existe ab initio.

O propósito é subtrair a carteira de B, atirando-o ao chão para o efeito. O agente com violência
pretendia a subtração de uma coisa. O agente na verdade pretendia praticar um crime de roubo (art.
210.º) porque aqui há uso de violência, mas que não sucedeu porque o resultado saiu frustrado, o
agente não conseguiu consumar o crime e não saiu do patamar da tentativa. O agente tinha “ilegítima
intenção de apropriação” para si. À luz da Escola Finalista já lhe seria imputado de outra forma.

7. A está a caçar em zona vedada e licenciada para o efeito, cumprindo todas as


regras administrativas, técnicas e de cuidado. Vendo um arbusto a mexer,
supõe tratar-se de uma peça de caça e dispara. Todavia, acerta mortalmente
em B, outro caçador que ali se tinha introduzido sem autorização. Como seria

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o caso resolvido à luz das escolas clássica e neoclássica? E de acordo com a


escola finalista?
Em relação à pergunta 7. De facto, vamos começar a perceber que além de estudar cada uma das
categorias e a evolução da TGIP, dentro delas vamos identificar um conjunto de problemas.

Chama à colação a questão do erro. Estava numa zona vedada para o efeito, licenciada para o efeito,
cumpre todas as regras administrativas para o efeito, vê o arbusto a mexer, dispara pensando que era
um caçador e acaba por matar um caçador.

Para efeitos do art. 131.º será que lhe pode ser imputada a responsabilidade jurídico-penal? É muito
simples de responder à luz da Escola Clássica e da Escola Neoclássica. Existe uma ação típica, porque
para todos os efeitos, o agente A praticou a conduta matar outra pessoa e há aqui um nexo de
causalidade entre a conduta e o resultado, a conduta é ilícita, mas quando chegamos à culpa – na
Escola Clássica tínhamos aqui que nós diríamos que não atuou dolosamente. Se a conduta é típica e
ilícita, o sniper pode disparar sobre A para o neutralizar porque o comportamento é típico e ilícito.
Pela Escola Neoclássica também chegávamos lá – típica, ilícita, mas não culposa. Então podemos atuar
em legítima defesa contra o A por terceiro.

Mas para a Escola Finalista, a ação é final, ôntica, tem um certo objetivo, um certo desiderato a atingir.
Então, significa que a própria tipicidade, que é composta por elementos objetivos (art. 131.º - agente
– quem – comportamento – matar – resultado – morte) mas também por elementos subjetivos, os
tipos são em regra dolosos, a não ser que o legislador preveja que possam ser negligentes (art. 13.º),
então o tipo do art. 131.º é doloso. Significa então que numa hipótese como esta à luz da Escola
Finalista, a resolução do caso vai ser centrada logo aqui na tipicidade, sendo a regra do art. 13.º reflexo
da construção finalista, como também será o regime do art. 16.º/1 CP. Este artigo reporta-se ao erro
sobre as circunstâncias do facto. Concretamente, o erro sobre elementos de facto, exclui o dolo. Qual
o elemento de facto que o agente está em erro? A existência de outra pessoa, ele não sabe, tem por
consequência a exclusão do dolo. Se o dolo é o elemento subjetivo geral do tipo, e se o agente não
conheceu nem quis atuar dolosamente, não conheceu nem quis matar outra pessoa, significa que o
agente não é suscetível de responsabilidade jurídico-penal e não praticou um comportamento típico.
Se não praticou um crime típico, então não poderá um terceiro atuar sobre ele em legítima defesa.
Esta é uma das diferenças principais de resultado dogmático à luz das diferentes Escolas.

CASO PRÁTICO “A MOSCA”


A conduzia o seu automóvel numa curva quando uma mosca, que entrara através da
janela aberta do veículo, o atingiu num olho e, em consequência, A guinou o volante,
perdeu o domínio do automóvel e entrou na faixa contrária, colidindo frontalmente com
outro veículo que ali circulava. Em consequência, três pessoas ficaram feridas (artigo
143.º do CP).
Poderá A ser responsabilizado jurídico-penalmente à luz das escolas clássica,
neoclássica, finalista ou funcionalista?

Este caso foi trabalhado, é real e na jurisprudência, o agente foi condenado por se ter considerado
que havia ação. A defesa alegou em sede de recurso que não havia ação por haver uma reação de

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pânico, no sentido de um movimento reflexo. O tribunal respondeu que a defesa desconhecia o que
era tal movimento reflexo. Vamos começar exatamente por aí.

Descartes é considerado o autor do ato reflexo pois foi ele que identificou os atos reflexos e defendeu
que um estímulo exterior pode provocar uma resposta individual que não vai envolver o processo
cognitivo. Os movimentos reflexos são restritos aos casos em que os movimentos corporais
acontecem sem que haja lugar a estímulos dos nervos motrizes, por influência psíquica. Porquê?
Porque se considera que os movimentos corporais dos atos reflexos resultam imediatamente de
estímulos físicos, o movimento não resulta da intervenção da consciência, sendo que falta a
voluntariedade, não há intervenção do processo cognitivo. Descartes, no conjunto de exemplos foi
enriquecendo a lógica dos atos reflexos. O que é que pode ser um ato reflexo? Tudo aquilo que não
possa ser controlado pela consciência – os vómitos, como também o martelinho no joelho, os espirros,
fechar os olhos, etc.

Neste caso prático pergunta-se se estamos diante de um ato reflexo, de ato consciente, de vis
absoluta, actio libera in causa, ou automatismo.

Vou chamar à colação atos reflexos e automatismos. Não nos parece que seja um ato inconsciente –
a pessoa não está a dormir, não está hipnotizada, nem actio libera in causa – em que a pessoa se auto
coloca numa situação de inimputabilidade, propositadamente, nem de vis absoluta – em que utilizo o
corpo de alguém como arma. A fronteira vai ser entre o ato reflexo e o automatismo.

Temos um problema acrescido. A mosca bate no olho e a pessoa guina o volante que o leva a embater
no veículo da faixa contrária. Temos dois momentos de análise.

O que está em causa é o conceito de ação e como é que o conceito de ação é visto à luz das diferentes
escolas.

Porque é que é tão importante o conceito de ação, e quais as suas funções:

• Função de classificação (positiva): o conceito de ação deve compreender todas as formas


possíveis de crime. Deve ser tão amplo que possa abarcar os comportamentos por ação, por
omissão, os comportamentos negligentes e os dolosos; A Escola Clássica e a Escola Finalista
têm uma fraca função classificatória.
• Função sistemática (ou de definição ou ligação): é talvez a mais importante e onde a ação final
tem a maior defesa. O conceito de ação é o topo do sistema, é o conceito fundamental que se
vai repercutir e articular em todos os elementos do conceito de crime. As de mais categorias
devem retratar o conceito de ação, portanto, as classificações seguintes fazem a valoração do
objeto que é dado pelo conceito de ação.
• Função de delimitação (seletiva negativa ou garantísta): prende-se com o facto de o conceito
de ação dever permitir sempre que com ele consigamos ab initio excluir do conceito de ação
os comportamentos que não são penalmente relevantes, porque não constituem ações, sem
recurso às categorias posteriores. Quais? Atos reflexos não são ações, nem os atos
inconscientes; vis absoluta; a propósito dos automatismos discute-se muito. Mesmo autores
como FD, que rejeitam a autonomia ou a dignidade inicial ao conceito de ação, não deixa de
reconhecer relevância a esta função do conceito de ação. Há certos comportamentos que não
são ações – é o caso dos atos reflexos, dos atos inconscientes e da vis absoluta. Nos
automatismos – a doutrina diverge.

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Serão os automatismos ações penalmente relevantes?

o Escola Clássica e Neoclássica: está em causa a causalidade – a partir do momento em que haja
um comportamento voluntário há ação. Estas duas Escolas não conseguem responder à
questão.
o Finalismo também não dá resposta aos automatismos, porque a finalidade sabe tudo – há uma
sobredeterminação, portanto isto resolve o problemas dos atos reflexos, mas não resolve o
problemas dos automatismos, porque falta a finalidade consciente, e, portanto, a supra-
determinação vidente não está presente em cada momento.

o Funcionalismo: a grande inspiração de Jakobs foi Luhmann, com a sua teoria dos sistemas
sociais defendeu aqui algumas coisas interessante. Em 1.º lugar, que a sociedade moderna é
complexa e que se caracteriza pela sua diferenciação funcional – cada um tem a sua específica
função. Depois, defendeu também que é preciso diminuir as complexidades para facilitar a
vida das pessoas. Fez surgir a teoria dos sistemas sociais, reduzindo as possibilidades do
acontecer, mas o sistema funciona como um mediador, entre aquelas que são as
complexidades do mundo moderno e aquela que é a capacidade que as pessoas têm para
conhecer as diferentes possibilidades do mundo. Como o mundo é um mundo que não está
só, e interage com outros, e nessa interação, as diferentes possibilidades do acontecer gera
um elemento de conturbação, porque a pessoa não sabe o que pode esperar do outro.
o É aqui que o conceito de expectativa tem um valor muitíssimo importante, é o conceito chave.
Há expectativas cognitivas e as espectativas normativas. As expectativas cognitivas são
aquelas que podem ser adaptadas à realidade sempre que haja frustração. P.e. se a professora
não corresponder às nossas expectativas mudamos de subturma ou mudamos para método
B, são moldáveis e alteráveis. As expectativas normativas mantêm-se, mesmo que sejam
violadas, pois continuam a vigorar mesmo quando são contrariadas por factos concretos. Para
que as expectativas normativas possam ser asseguradas, vão surgir os sistemas sociais que
Luhmann defende, nomeadamente o sistema do Direito. O Direito vai coordenar os sistemas,
reduzindo a sua complexidade. E, estes diferentes subsistemas, vão permitir um modelo de
conduta para as pessoas, que mostram quais as expectativas que devem sempre vingar.
o É por isso que a norma surge em Luhmann, como expectativa de comportamentos em termos
contrafácticas, ou seja, as normas são expectativas jurídicas normativas.
o Como se processa a frustração à violação das expectativas que são geradas pela norma? Com
a sanção. Vai reafirmar a validade da norma, reafirmar as expectativas contrafácticas, que são
materializadas pelo comportamento criminoso. Esta é a grande inspiração de Jakobs.
o Jakobs constrói então o seu funcionalismo sociológico (ou sistémico) onde a função primária
do Direito é a conservação da sociedade, e não a proteção de bens jurídicos. Não está
preocupado em ir buscar a fonte dos bens jurídicos que pode ser tutelado pelo Direito Penal,
NÃO. Ele é absolutamente paradigmático e objetivista nesta matéria. É por isso necessário
tipificar os comportamentos que permitam garantir a conservação da sociedade.
o Qual vai ser a função da pena? A manutenção da norma como modelo de orientação para a
realidade social, portanto, a pena vai contrariar a negação do Direito. Há aqui um modelo de
orientação da norma para a realidade social, e não de reparação dos bens jurídicos. Jakobs vai
ainda mais longe, reafirmando que a pena é uma auto-comprovação da norma.
o O que é que o subsistema penal faz? Qual a sua função? Será a estabilização contrafáctica das
expectativas dos destinatários do sistema. Leva ao conceito normativo de competência. É que
a vida em sociedade torna cada pessoa portadora de um papel, cada um tem na vida em
sociedade um papel – um é aluno, outro professor, médico, etc. Nós temos várias

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constelações de expectativas e cada uma destas tem de ser respeitada pelo legislador e pela
norma. Para sabermos se podemos imputar um certo comportamento a um agente ou não,
teremos de reafirmar a validade da norma que foi violada, e estabilizar as tais expectativas
contrafácticas.
o Isto tem um efeito no conceito de ação da Escola Funcionalista, porque para esta, na ação, o
comportamento é definido como a evitabilidade de um resultado diferente, é a teoria da
evitabilidade individual. É precisamente o pensamento de Jakobs que considera que quando
nós estamos diante de um automatismo, temos sempre de olhar para o agente concreto. A
referência é o agente concreto que está numa situação concreta. Dá um exemplo: se numa
cirurgia médica, um médico competente cometer um erro e provocar a morte do seu paciente,
ele não pode invocar as 200 operações fantásticas que já realizou com pleno sucesso para
afastar a existência de uma ação naquele caso. Isto significa que o comportamento individual
deve ser aferido na perspetiva da evitabilidade daquilo que provocou ou não. É uma
imputação individualizada.
o Olhando para o automatismo, se ele pudesse ser neutralizado desde que esse automatismo
pudesse ser neutralizado e não houvesse falta de tempo para o processo de motivação, então
estaremos diante de uma verdadeira ação.
o Inversamente, se não houver tempo, então o agente não consegue orientar o seu
comportamento e porventura não há ação porque na lógica de Jakobs não há um
comportamento alternativo. Não há tempo para um comportamento alternativo, deixando de
ser evitável. Significa que, tendencialmente, se estivermos a resolver problemas de
automatismo, não teremos sequer uma ação. Tendencialmente não há ação nos
automatismos.

o Não temos um só funcionalismo, temos o funcionalismo de Roxin, o funcionalismo teleológico,


apesar do mesmo não se ver como tal (foi o rótulo que lhe deram). O que importareter é que a
grande candeia que orienta o pensamento de Roxin é a política criminal. O sistema que cria
Roxin vai buscar a sua inspiração às orientações da política criminal. Por isso os princípios da
necessidade da pena e dignidade da pessoa humana são valores constitutivos do Estado de
Direito, porque são na verdade os escrivos que vão permitir ao legislador a cadamomento da
responsabilidade e graduação de pena. A fonte dos bens jurídicos tem de ser identificável e
têm de ser determinável.
o Tem uma consequência importante, nomeadamente, a construção do conceito de ação que ele
apresenta – que é a lógica da teoria pessoal da ação, em que a conduta representa uma
exteriorização da personalidade. A lógica de que a pessoa atua, atua mais dramaticamente ou
menos porque isso é uma exteriorização da sua personalidade é muito interessante.
o Por isso, só haverá ação quando estiver submetida ao controlo do individuo, têm sempre de
ser controláveis pelo indivíduo. São ações aquelas que são: dominadas ou domináveis pela
vontade. Dentro desta lógica, os atos reflexos, os atos inconscientes e a vis absoluta, não são
ações nem dominadas, nem domináveis pela vontade, portanto não são ações.
o Mas os pensamentos, quando são impulsos da vontade, já podem ser expressões da
personalidade, e por isso já podem ser ações. Significa que numa certa perspetiva aqui
podemos ter alguma dificuldade em afastar este comportamento do conceito de ação que
Roxin constrói, se podermos identificar como uma expressão da personalidade.

o Eser, segundo a teoria da evitabilidade e por referência a este caso, entende que há um ato
impulsivo, entende que há uma reação voluntária da forma de curto-circuito, uma vez que há

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um impulso espiritual que é transformado em facto. Há aqui uma ação que não é suprimida
pela ação contrária que era necessária.

o As coordenadas básicas nas teorias sociais da ação dão-nos nota que são mais fracas nestes
problemas dos automatismos. Porque enquanto Jakobs ia em busca das concretas
possibilidades de ação do agente colocado na circunstância concreta. Estas teorias sociais da
ação vão em busca da pessoa média, e vão colocar a pessoa média no lugar do agente para
perceber se é evitável ou não. Só que, na verdade, o condutor concreto pode estar acima da
média, pode ter frequentado um curso de condução defensiva, mas pode também estar
abaixo da média, e com isso há aqui um desvincular do condutor concreto que estamos a
trabalhar.

o A MFP inspira-se muito na lógica de Stratenwerth e na forma como constrói o conceito de ação,
e na lógica do comportamento dirigível. A pergunta é: o comportamento global, portanto
quando a pessoa está a conduzir ou está a andar na rua, é dirigível, a pessoa consegue conduzi-
lo ou não? E como é que nós sabemos? Através do critério da previsibilidade do estímulo
externo. Porque é o estímulo externo que vai suscitar o ato que a pessoa pratica dentro do
contexto dos automatismos. Então, para MFP temos de olhar para os sinais de perigo de
acordo com as possibilidades ex ante do acontecer, e na possibilidade de evitar o automatismo
no caso concreto. A possibilidade de evitar o automatismo resulta de uma dupla valoração,
por um lado, vamos olhar para o padrão da pessoa média, e por outro vamos olhar para a
pessoa concreta e aferir as característica individuas do agente. Por exemplo, a capacidade
para travar – vamos ver o tempo de reação da pessoa média, e depoisvamos ver o tempo de
reação da pessoa em concreto.
o Isto significa que para um caso como este, a sua resposta quanto à questão de saber se estamos
diante de uma ação penalmente relevante é de sentido negativo, MFP neste exemplo não
haverá uma ação penalmente relevante porque precisamente face ao modo como o casoé
apresentado, de acordo com a pessoa média e por referência ao agente concreta, levaria à
impossibilidade de contrariar o automatismo.

Aula n.º 4 – 16/03/2021

(Sonambulismo. Vis Absoluta. Hipnose. Impulsos)

CASO “SONÂMBULO HOMICIDA”


Kenneth Parks, cidadão canadiano de Toronto, de 23 anos, casado e pai de uma bebé,
sofria de insónias agudas motivadas pelo desemprego e ainda por ter contraído várias
dívidas de jogo.
Na madrugada do dia 23 de maio de 1987, levantou-se da cama, entrou no seu carro
e conduziu cerca de 16 km até à casa dos seus sogros. Ali chegado, depois de lhe ter sido
aberta a porta, esfaqueou até à morte a sogra, de quem ele muito gostava e que o apelidava
de “pequeno gigante”. Kenneth Parks também apunhalou o sogro, que sobreviveu ao
ataque. Depois, dirigiu-se à esquadra mais próxima, onde afirmou “Creio que matei
algumas pessoas… As minhas mãos estão cheias de sangue…”, só então realizando que
tinha grandes cortes nas mãos.
Porque Kenneth Parks não se lembrava de nada do que tinha sucedido, porque não
tinha qualquer motivo para praticar os factos descritos e ainda por ter um historial longo

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de sonambulismo, pessoal e familiar, a sua defesa, sustentada em pareceres de


psiquiatras, de psicólogos, de neurologistas e de especialistas em perturbações do sono,
defendeu que Kenneth Parks estava a dormir quando cometeu os crimes, pelo que não
teria praticado qualquer ação.
Quid iuris?
Há aqui uma coisa que necessitamos de assentar, e é por isso que eu sugiro sempre que olhem para a
matéria de facto que foi dada como provada no acórdão, que comecem por identificar o problema
jurídico e os termos da solução jurídica que suja no acórdão para depois darmos a nossa própria
opinião concordando ou descordando.

A matéria de facto está estabilizada. Podemos eventualmente não concordar com ela, podemos
levantar sub-hipóteses, mas não é esse o sentido. Porque é que estou a fazer esta advertência? Porque
os alunos tendem a criar uma realidade paralela, o mundo imaginado a partir da matéria de facto dada
nas hipóteses e depois na verdade já não estão a responder à hipótese dado. Devem sempre ater à
matéria de facto. Não podem imaginar mais coisas, a não ser que seja para completar.

O que é que se conclui neste caso? Nós sabemos que o agente praticou os crime durante um episódio
de sonambulismo, isso foi dado como provado. Sabemos que o sonambulismo não é uma doença
neurológica, não é sequer uma doença psiquiatra, mas sim uma perturbação do sono.

Em regra, não há tratamento médico, mas existem boas práticas que qualquer pessoa pode seguir,
neste caso considerou-se que não havia uma doença, considerou-se que a pessoa devia adotar boas
práticas, nomeadamente evitar o stress, a privação do sono, exercício físico violento, etc. Há aqui
questões relacionadas com dívidas de jogo, há aqui questões até com os sogros, mas é com a matéria
de facto com que vamos trabalhar.

É interessante que no acórdão, a defesa sustentou haver aqui um automatismo, porque o ato teria
sido praticado pelos músculos sem o controlo da psique. Há aqui uma equivalência do automatismo
ao ato reflexo, ao espasmo ou convulsão. O que é curioso porque estivemos na última aula a distinguir
automatismo de ato reflexo, e aqui há uma associação destas duas figuras. Mas aqui não temos nem
automatismo, nem ato reflexo. Temos aqui um conjunto de atos e factos que resultaram na prática de
crimes no estado de inconsciência, provocado por uma situação de sonambulismo.

Os peritos, em sede de julgamento sustentaram que uma pessoa sonâmbula não consegue pensar,
não consegue refletir, por isso não tem nenhuma forma de controlo sobre a sua vontade. Portanto,
concluíram também que não há qualquer evidência que uma pessoa em estado de sonambulismo
possa executar um plano que tenha gizado quando estava consciente. Pelo contrário, a defesa
demonstrou em sede de julgamento através de um perito que, durante o sono profundo, a parte
cortical do cérebro não está consciente, está em coma, o que significa que as células nervosas da parte
cortical do cérebro não estão a trabalhar, não estão a dominar a pessoa, nem a forma como ele atua.

Por isso, estaríamos perante um ato inconsciente em que a vontade está ausente. Foi esta a conclusão
do acórdão, não é uma conclusão nova. Ulpiano, jurista romano, já defendia que ninguém pode ser
punido pelos seus pensamentos. Era o que estava aqui em causa – a pessoa está inconsciente, a
dormir, tem a sua parte cortical do cérebro em estado comatoso, e mesmo que tenha algum
movimento, não está no domínio da sua vontade.

Então qual é a posição dominante na doutrina, para resolver os casos em que os crimes são praticados
durante atos de sonambulismo? A posição dominante é de que não são ações, apesar de haver
diferentes fundamentações:

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• Para Jakobs, e à luz da sua teoria da evitabilidade individual, o agente não pratica atos
conscientes, não há aqui qualquer intervenção do sistema cortical, nem do sistema nervoso
central, portanto, isto significa que não pode haver aqui a contra motivação normativa que
permitia afirmar a existência de uma ação.
• Já Roxin, resolve os casos de inconsciência motivados por sonambulismo, exatamente da
mesma forma que resolve a maioria da doutrina. Aplicando a sua teoria pessoal da ação, os
movimentos que sejam praticados durante o sono, durante o sonambulismo, ainda que sejam
determinados especificamente, pois há a intervenção da psique, não intercedem no mundo
real enquanto expressão da realidade do agente. Se não há expressão da personalidade do
agente, não há ação.
• Para a Prof.ª MFP, a grande questão é saber se o comportamento global é dirigível ou não, e
neste caso considera claramente que não há dirigibilidade consciente em hipóteses de
sonambulismo. Para a Prof.ª MFP, do ponto de vista ético, da consciência e da liberdade, não
há ação. A pessoa não está livremente a decidir a cada momento. Por isso, não há ação.

Quid iuris se o agente estivesse medicado para evitar episódios de sonambulismo e:


1. Não tomasse os medicamentos porque se esqueceu e assim viesse a matar a
cônjuge, como era há muito sua vontade?
2. Não tomasse os medicamentos, colocasse uma arma na gaveta da mesa da
cabeceira, com a intenção de matar a cônjuge, o que acabou por suceder durante
o sono?
Aqui de facto, a questão central prende-se em saber se estamos diante de uma actio liberae in
causa nos termos do art. 20.º/4 CP, uma norma que releva em sede de culpa, ou se, ao invés estamos
diante de uma ação.

Se olhamos para a letra do art. 20.º/4 CP, a imputabilidade não é excluída quando a anomalia
psíquica tiver sido provocada pelo agente, com a intenção de praticar o facto. O que é que aqui temos?
Estamos perante aqueles casos em que quando a pessoa pratica um crime está num estado de
imputabilidade mas, a verdade é que esse ato que foi praticado em estado de imputabilidade resulta
de um ação livre na causa (actio liberae in causa) – significa que o agente se colocou nessa situação de
inimputabilidade intencionalmente, ou seja, houve pré-ordenação do agente quanto à auto-
colocação do agente nesse estado.

O que é importante e que o legislador exige é que essa colocação no estado de inimputabilidade
tenha sido ou resulte de um ato intencional, tem de haver intenção e vontade. Estão excluídas então
as questões de negligência em que a colocação nesse estado foi devido a comportamentos
negligentes.

Na primeira situação isso não sucede, o agente esqueceu-se de tomar a medicação. Portanto,
numa situação como essa – não há pré-ordenação – não podemos aplicar o art. 20.º/4 CP, e não
aplicando então não estamos diante de uma verdadeira ação, e por outro lado, mesmo que ele tenha
vontade de a matar, lembrando Ulpiano – ninguém pode sofrer uma pena pelos seus pensamentos.
Nem se põe aqui a negligência, porque a negligência é um elemento da tipicidade subjetiva e,
portanto, só quando chegamos ao tipo, e ao tipo subjetivo é que vamos analisar a questão de saber
se há dolo ou negligência. Mas nós estamos aqui num passo anterior, estamos na ação, se achássemos
que era uma actio liberae in causa, então já estávamos na culpa.

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Quanto ao segunda questão. Numa situação como esta, costuma-se afirmar que se o agente
contribui voluntariamente e deliberadamente para a criação das condições que permitem o
surgimento do episódio do sonambulismo, então há ação. Se ao contrário, nós verificarmos que o
agente não contribuiu voluntariamente para as condições que permitem o surgimento do
sonambulismo, então não há ação.

Não é totalmente unânime, a Professora Helena Morão, em 2016 sustentou que o caso Kenneth
Parks seria um automatismo global, em que há ausência da consciência, mas o automatismo global
ainda abrangia os comportamentos praticados durante o sonambulismo, e esse comportamento
global permitiria dizer que a condução estava abarcada – é uma figura mais global. Mas também
sustenta que nos casos em que a pessoa coloca a arma dentro da gaveta na esperança de que tenha
um ataque de sonambulismo mate a sua companheira, numa situação como esta, só muito
dificilmente se poderá responsabilizar o agente porque na verdade, não se consegue provocar o
sonambulismo externamente. Assim sendo seria muito difícil efetivar a responsabilidade jurídico-
penal sem afetar o princípio da danosidade social. Por isso, seria um caso em que estaríamos a punir
pensamentos. Isso poderia por em causa o princípio da danosidade social, da igualdade, da culpa e da
proporcionalidade. É muito restritiva. O único caso em que admitiria seria caso a pessoa deixasse de
tomar a medicação e se se comprovasse episódios em que a falta de medicação provocasse episódios
de sonambulismo com tendência para praticar crimes (está na revista da anatomia do crime).

CASO “A HIPNOTIZADORA”
Ana pretende matar o marido, Bento, que sempre a maltratou, mas não tem coragem
para o fazer por si mesma. Certo dia, durante o seu ato no circo como hipnotizadora, Ana
hipnotiza Cátia, uma das freiras que estava na assistência a acompanhar as crianças de
um colégio.
Primeiro, e para se certificar de que Cátia estava efetivamente em estado hipnótico,
empurra-a com violência contra Daniel, que também assistia ao espetáculo, que acaba
por sofrer escoriações ligeiras. Em seguida, entrega a Cátia uma arma, verdadeira e
carregada, sussurrando-lhe que deveria disparar em direção a Bento. Cátia empunha a
arma como ordenado, mas verbaliza não conseguir disparar.
Só mais tarde Bento realiza que, naquele dia, Ana modificara o número de sempre,
entregando uma arma verdadeira à convidada da assistência, e não de plástico, como era
suposto suceder.
Terão Ana e/ou Cátia praticado ações?

Quando a Ana, para se certifica que Cátia estava em estado de hipnose, lança-a sobre Daniel, temos
realmente um facto penalmente relevante – são as escoriações de Daniel – ofensa à integridade física
simples (art. 143.º) e importa apurar quem é que deve ser responsável por ela.

O problema jurídico aqui em causa é um problema de vis absoluta, nestas situações o corpo de alguém
é utilizado como um objeto de arremesso, ela utilizou a Cátia, mas também podia ter utilizado uma
pedra, uma cadeira ou o que fosse. Nestas situações de vis absoluta, a pessoa que é objeto de
arremesso não tem qualquer exteriorização da vontade, portante não está a praticar qualquer ação.

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Direito Penal II – João Maria Falcão – TB – 20/21

Podemos então concluir que as situações de vis absoluta são efetivamente aquelas em que opera a
função seletiva negativa do conceito de ação e em que se nega a existência de ação.

Em relação a Ana, temos uma ação claramente, sendo a autora material (art. 26.º/1) por praticar o
crime por si mesma. Ela utiliza Cátia como um objeto de arremesso. Por intermédio de outrem – está
a controlar a pessoa da frente – porque não é a vontade que está a ser controlada, mas sim o corpo.

As situações de vis absoluta não se devem confundir com as situações de vis compulsiva, ou coação
psicológica irresistível, porque nestas há ação! Exemplificando: se A rouba um banco sob ameaça de
que se não o fizer B mata o filho – aqui há ação. Fá-lo por uma situação de coação, mas pratica uma
ação típica e ilícita, podemos afastar a culpa, e eventualmente por B controlar a vontade de A, mas
este está a praticar uma ação.

Quanto ao segundo problema jurídico: hipnotismo. Este é o problema que aqui está. Nesta matéria,
Roxin tem um entendimento de MFP porque para Roxin entende que nos estado hipnóticos, a ação é
transmitida psiquicamente ao hipnotizado, ou seja, o hipnotizado que está a executar as ordens sobre
hipnose tem a barreira do carácter. Se a pessoa hipnotizada tem uma barreira de carácter enquanto
exteriorização da sua personalidade que o impede de praticar crimes, isso vai sempre ser manifestado.
Para todos os efeitos, consubstanciam ações todos os crimes praticados por hipnose. As ações que
são estranhas à personalidade, que ultrapassem a barreira de personalidade da pessoa, como será o
caso evidente da freira que recebe a ordem para matar outra pessoa, vai operar a barreira de
personalidade e o hipnotizado não vai praticar o comando.

A Prof.º MFP, em geral, nos casos de hipnose entende que não há ação. Porque o tal entendimento
entre o corpo e a pessoa, e a integração da ação corporal numa linha geral de ação não existe.
Diferente seria se a pessoa se autocolocar num estado de hipnose de forma deliberada e preordenada
para que, durante o estado de hipnose, pratique o crime. Aí já estamos diante de uma actio liberae in
causa (art. 20.º/4).

A freira não executa nada. Isto parece que como a freira se recusa a praticar o ato, parece que há aqui
uma intervenção da consciência e, portanto, uma interferência da vontade. Não sei se seria assim ou
não, mas a Escola de Paris e Escola de Nancy estudam profusamente no plano fáctico e no plano
normativo também até com realização de experiências os limites da expressão da vontade nos casos
de hipnotismos. A Escola de Paris nega a possibilidade de se cometerem crimes durante o hipnotismo,
materializando a lógica da barreira de carácter de Roxin. Mas a Escola de Nancy chegou a conclusões
diferentes.

Mas aqui, a Freira não cometeu nenhum crime. Seria interessante se o tivesse feito. Mas a Professora
negaria a possibilidade.

Isto tem um efeito: para a Prof.º MFP, a freira nunca poderia ser responsabilizada porque não
praticava uma ação. Mas a Ana seria a autora do crime, praticaria o crime por si mesma (art. 26.º). E
há maneira de Roxin? Haveria uma ação, faria com que a freira fosse a autora material do crime (art.
26.º) e Ana seria uma instigadora, ou seja seria ela que criaria na freira uma vontade de praticar o
crime – art. 26.º/ última parte (“quem dolosamente determinar outrem à pratica do facto para a
execução”).

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CASO “MACHO LATINO”


António, empregado de uma loja de senhora, estava a colocar alfinetes num vestido
que Berta experimentava, com o intuito de o apertar na zona do peito e, para esse efeito,
colocou os braços à volta dela e apertou-a. Incomodada, Berta empurrou António. Com
o movimento súbito, o vestido abriu-se, deixando os seios de Berta a descoberto.
Respondendo a um impulso masculino, António lançou-se sobre o peito de Berta,
cobrindo-os de beijos e mordiscando-os, o que provocou em Berta ligeiras escoriações.
Terá António praticado uma ação para efeitos do disposto no artigo 143.º do CP?
Este caso é real. Resulta de um levantamento de jurisprudência. Um conjunto de atos que a
jurisprudência qualificava sempre como não ações, o que é extremamente estranho para nós hoje.

E os atos impulsivos? Tradicionalmente também não eram vistos como ações. Já sabemos que os atos
reflexos e os atos inconscientes não são ações, nos atos reflexos não há intervenção dos nervos
motrizes, do córtex cerebral no processo de tomada de decisão.

Não é claramente isso que sucede aqui. Nós estamos diante de uma ação, todas as reações impulsivas
são na verdade ações e são explicadas pelo intuito de no caso concreto satisfazer um instituto sexual.
Para que fique claro – há ação! Não opera a função seletiva negativa do conceito de ação!

Estas reações de estados de afeto são normalmente questões em sede de culpa. Portanto, dificilmente
estará aqui algum problema em sede de ação. São de capacidade da culpa. Há uma descarga de
agressividade, há uma ação dessa descarga de afetividade e as ações são claramente direcionadas à
lesão do bem jurídico. São manifestações da personalidade do agente. Não há uma relação do
momento.

São ações, não podem ser reconduzidos a automatismos ou atos reflexos porque estamos diante de
uma lógica um pouco diferente.

MOMENTO REPETITÓRIO
1. O ato A detesta o cônjuge B. Todos os dias pensa em bater-lhe violentamente. A
praticou um comportamento jurídico-penalmente relevante?
R: Não. Se o A pensou bater em B, mas não executou materialmente a sua ideia, nós não temos
qualquer forma de exteriorização da vontade. Relembro que trabalhamos no plano do Direito Penal
do facto, e portanto precisamos sempre de factos exteriorizados, seja através de ações como de
omissões.
2. Sabendo que não tem coragem para bater em C em estado de sobriedade, D
embriaga-se até à incapacidade de culpa para o espancar, o que concretiza nos
termos planeados. Quid iuris?
R: Actio liberae in causa. Dizer só que é uma ação não está errado, mas está incompleto, temos aqui
uma especificidade, porque se D se embriaga para ter incapacidade de culpa, isso significa que pré-
ordenadamente se coloca numa situação de imputabilidade, estando então numa situação de actio
liberae in causa (art. 20.º/4).

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3. E aponta uma pistola à cabeça de F para o obrigar a falsificar um documento, o


que sucede. F pratica uma ação?
R: Sim. O F está numa situação de coação psicológica irresistível e portanto, numa situação destas, o
agente não deixa de praticar uma ação. É uma ação dominável pela vontade. O agente conhece e quer
praticar o facto típico e ilícito (art. 256.º) – não há aqui causa de justificação da ilicitude. O que se
poderia ponderar em relação a F que é obrigado a falsificar um documento tendo a arma apontada à
cabeça seria ponderar a justificação, mas em termos de culpa.
4. G desmaia numa loja de porcelanas e, ao cair, parte uma valiosa peça de um
expositor. G pratica uma ação?
R: Não. O G não pratica nenhuma ação porque está em estado de inconsciência, ele desmaia e perde
o controlo da vontade. Se está num estado de inconsciência não há ação. Todos estes casos estamos
a fazer operar a função delimitativa negativa do conceito de ação.
5. H, com pouca experiência de condução, num dia de chuva, não conseguiu parar o
automóvel num lençol de água e embateu noutro veículo provocando ferimentos
no condutor. H praticou uma ação? – resposta desenvolvida na Dropbox
R: Não. Podemos dizer que numa situação como esta, dentro da lógica da evitabilidade, nós
dificilmente conseguimos afirmar que há aqui uma ação. Desde logo, de acordo com a previsibilidade
do estímulo, quer a pessoa média, quer aquele agente em concreto dificilmente conseguiria evitar o
embate contra o lençol de água sobretudo tendo a pouca experiência do agente. A pouca experiência
parece rejeitar a previsibilidade.
6. I bebeu excessivamente num bar com desgosto por a sua equipa ter perdido e
agrediu a mulher violentamente quando ela o censurou por chegar a casa
embriagado. Quid iuris? – resposta desenvolvida na Dropbox
R: Sim. Estamos diante de uma actio liberae in causa ou não? Não, parece que ele não se tenha posto
deliberadamente naquela situação. Mas não sendo aplicável o art. 20.º/4, há possibilidade de
aplicação do art. 295.º CP que iremos trabalhar mais à frente.
7. J, toxicodependente, numa situação de privação, completamente descontrolado,
esfaqueou L para subtrair dinheiro. Quid iuris? – resposta desenvolvida na
Dropbox.
R: Sim. Temos ação, mas de novo temos de ponderar se há ou não uma auto-colocação, muito
dificilmente. Estão em busca de novo produto. A prática diz-nos que em regra são punidos por
inimputabilidade.
Aula n.º 5 – 23/03/2021
(Ação vs. Omissão. Posição de Garante. Art. 10.º CP)

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CASO “ACELERA”
Bento, automobilista, conduz em excesso de velocidade por uma avenida de imenso
tráfego, com boa visibilidade. Distraído, Bento não repara no peão Carlos, que se prepara
para atravessar na passadeira. Quando se apercebe do desastre eminente, Bento tenta
travar o automóvel, mas, apesar dos seus esforços, não consegue imobilizar a viatura a
tempo, vindo a embater no peão Carlos e a causar-lhe a morte. O facto foi praticado por
ação ou omissão?
Sistematizando a resposta: andou bem quando explicou que a questão em causa é saber se quando o
Bento provoca a morte de Carlos pratica um comportamento por ação ou se, ao invés, Bento pratica
a morte de Carlos porque não trava, ou seja, omite a ação.

Esta é aqui a questão central. O problema jurídico prende-se com as condutas que podem ser
qualificadas como ação ou por omissão. Quando nós olhamos para a Parte Especial do CP ou lei penal
extravagante, nós percebemos que os tipos comportam um conjunto de elementos fácticos. Se o A
mata o B ou C subtrai a carteira de D estão a realizar condutas. Mas a primeira questão que temos de
fazer quando olhamos para um caso concreto é perceber se essa conduta surge por ação ou por
omissão. É um problema que se coloca a montante da questão de saber se é uma ação pura, se é uma
omissão impura, se há uma posição de garante, se há um dever de agir, se aplicamos ou não o art.
10.º CP.

A doutrina concebeu um conjunto de critérios que pretendem precisamente servir como linha que
traça a fronteira entre as condutas por ação e as condutas por omissão. E claro que esta destrinça tem
reflexos muito importantes nos passos seguintes na resolução dos casos práticos, mas para a primeira
questão temos de perceber quais os critérios de distinção para apurar se estamos diante de uma ação
ou omissão.

A doutrina germânica desenvolveu o seu pensamento nesta matéria e tem uma panóplia muito rica
de critérios que nos foram emprestando.

• Um dele é o critério de Engish, o critério do dispêndio ou utilização de energia, é um critério


muito utilizado na Alemanha, mas muito criticável. No fundo, o que Engish sustentava é que
é necessário compreender se houve ou não utilização de energia que foi casualmente
determinante para a produção do resultado típico. Estava a pensar nos crimes materiais ou
de resultado, aquele que se destaca lógica e cronologicamente da conduta e do resultado.
Sempre que fazer compreende-se a utilização de energia, seria praticado por ação. Quando
não implicasse essa perda de energia seria praticado por omissão.
Claro que esta construção é altamente criticável: quid iuris se os progenitores estão na praia
com o filho, vêm o filho a afogar-se e nada fazem para socorrer e continuam a jogar raquetes?
Estão a despender energia, mas o comportamento é claramente omissivo. Portanto, este
critério de Engish que é um critério naturalístico só que não serve como critério base.

• Há outro critério defendido por Schonke, Schroder e Stree, que é o critério normativo,
basicamente sustentam que a questão deve ser resolvida normativamente, a partir da norma
de acordo com a forma de conduta que se vislumbra na norma como o centro de gravidade
do comportamento proibido. Como é que nós vislumbramos, caso a caso, o centro de
gravidade a partir da norma? Pois, isso é que é a questão! É interessante, mas altamente

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incerto e cria imensa insegurança jurídica, porque cada um pode olhar de uma forma
diferente. É muito indeterminado.

• Kaufmann desenvolve um critério interessante que radica do princípio da subsidiariedade nos


termos do qual, a regra é que os comportamentos previstos na Parte Especial estão previstos
por ação, e as omissões só subsidiariamente é que podem gerar responsabilidade jurídico-
penal, o que é um bom ponto de partida. Mas, mais uma vez, não é uma marca distintiva.

• Roxin desenvolve uma construção muito interessante: a omissão através da ação. No fundo,
Roxin constrói um critério específico para os casos difíceis, que a Prof.ª resumiu em 4
problemas típicos. Quando é que nós temos ações através de omissões?

1. Nos casos de comparticipação ativa através de um crime omissivo: quando é que acontece?
Já sabem que a comparticipação criminosa existe quando duas ou mais pessoas concorrem
para a prática de um facto penalmente relevante e também que o regime jurídico está
plasmado nos arts. 26.º e 27.º CP. Para Roxin, em certos casos é possível praticar uma ação
num crime que é estruturalmente omissivo. Exemplo: A convence B a não amamentar o seu
filho que acaba assim por morrer. O A determina B a praticar o crime de homicídio, cria em B
a vontade de homicídio – A é instigador (art. 26.º/última proposição). E B, que pratica o crime
por si mesmo por omissão, é a autora material (art. 26.º/ 1.ª proposição). Temos na verdade
aqui uma comparticipação ativa no sentido de criar numa pessoa a vontade de cometer um
crime, mas é uma comparticipação ativo no crime que em si mesmo é omissivo.

2. Omissio liberae in causa: nós já falamos nas actio liberae in causa (art. 20.º/4), as ações
livres na causa, mas também podemos ter omissões livres na causa que são omissões através
do fazer. Exemplos: A é bombeiro e se embriaga ao ponto da inimputabilidade para efeitos do
art. 20.º para não ter de intervir nas ações de salvamento ou, B que é nadador salvador
também se embriaga ao ponto da inimputabilidade para não salvar pessoas que se estavam a
afogar. Em todas estas hipóteses, no momento em que o agente pratica a sua conduta ele
omite o dever de agir que lhe é imposto, mas omite através de uma ação que é livre na causa,
porque no momento da omissão ele está num estado de inimputabilidade, mas no momento
anterior foi livre de se determinar de acordo com o Direito. É mais um caso de omissões
através de ações.

3 e 4. Interrupção de um processo causal do cumprimento de uma obrigação legal ou de um


salvamento: sendo que para estes dois últimos casos, Roxin refere especificamente que o
empregue positivo e negativo de energia, na verdade vão suprimir entre si, porque o princípio
geral para Roxin, é que um fazer que se apresenta como uma tentativa de cumprir um
imperativo (dever), subsume-se num crime de omissão, porque fracassa por uma ação.
Exemplos: A é pai de B ou A é nadador salvador, e B uma pessoa a afogar-se, e lançam uma
corda ou uma boia, nos casos em que é lançada a corda, em que se inicia o processo causal
tendente a promover a ação salvadora e depois se retira a corda, estamos perante uma
omissão através da ação, porque se dá a interrupção do processo causal do cumprimento de
uma obrigação legal (no caso de ser pai), ou então de um processo causal de salvamento
(nadador salvador). É interessante porque gerará o comportamento omissivo através de uma
ação. É preciso verificar se a interrupção foi antes ou depois de estarem reunidas as condições
para um real salvamento, para um efetivo colocar a salvo o náufrago. Porque se a pessoa
nunca chega a agarrar a corda na verdade nunca esteve nunca esteve numa situação de
segurança efetiva, e é nesse grupo de casos que cabe precisamente no 3.º e 4.º casos. Já se a

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pessoa chegou a segurar a corda, para todos os efeitos o agente criou a situação de
salvamento, interrompeu o processo de salvamento, criou as condições de salvamento
efetivas (já estava salva) e o agente quebrou, então nesse caso não estamos nestes casos
típicos, mas sim comportamentos praticados por ação. Só são aplicáveis estes casos quando
não estão reunidas as condições de salvamento efetivas.

Qual o critério de distinção que vinga hoje?

• Na linha de Stratenwerth, Figueiredo Dias e Paulo Pinto de Albuquerque, utilizam o critério de


perigo, ou o critério do risco: quando salvo a uma hipótese o agente está a aumentar ou a
criar o perigo então o crime está a ser praticado por ação. Quando o agente não diminui o
perigo que foi criado o agente está a praticar o crime por omissão. Em geral, a condução é
uma conduta que cria perigo, a condução é uma fonte de perigo da sociedade de risco em que
vivemos. Por isso, dentro desta hipótese, o agente criou ou aumentou o perigo com a sua
conduta e por isso seria praticado por ação.

• A Professora MFP tem uma inspiração funcionalista nesta matéria, uma inspiração de Jakobs.
Quando trabalhámos a Escola Funcionalista, vimos a lógica dos sistemas e subsistemas e qual
importante era a ideia de competência. Jakobs olha para os dados ontológicos e substitui pelo
conceito normativo de competência, sendo o ponto de partida.

Como a vida da sociedade é complexa, as pessoas assumem diferentes papeis, têm diferentes
funções. Portanto, cada um tem a sua competência nos quadros da sociedade em que vive, e
estas competências geram nos outros espectativa normativa quanto ao cumprimento do seu
foro de competência. No fundo, isto significa que as pessoas têm liberdade de ação, por um
lado, e por outro, são responsáveis pelas consequências dos seus próprios atos. Isto vai
fundamentar o dever jurídico que intende sobre as pessoas. Que é, no fundo, o dever jurídico
que resulta da organização da sociedade e do seu status quo geral.

Quando há uma organização defeituosa da sua competência, irá gerar responsabilidade,


porque há deveres gerais que são impostos. Há uma relação sinalagmática entre a liberdade
que é reconhecida a cada um e a responsabilidade pelas consequências que é imputada a cada
um sempre que for para lá da esfera da sua própria liberdade. No fundo, há aqui um ponto de
que parte Jakobs: o fundamento da liberdade deriva do contrato social – este tem uma
dimensão negativa, no sentido em que cada um tem os seus direitos, mas ninguém deve ser
perturbado na sua esfera de existência dos atos que outro pratique, então a tradução
normativa desta orientação não vai resultar apenas na proibição da ação, mas também a
obrigação de ação (o dever jurídico de agir) – só assim conseguimos proteger os bens jurídicos.

Nesta relação sinalagmática entre a liberdade que cada um tem e a responsabilidade que é
gerada pela ultrapassagem dos limites da liberdade de cada um, significa que há aqui um
status geral, em que cada um é competente pela sua própria esfera de organização – a partir
do momento em que ultrapassa a sua esfera podem gerar-se deveres de ordens diferenciadas.
Podemos ter deveres institucionais – o garante vai desempenhar funções de acordo com a sua
posição (funcionário público, pai ou mãe de família). (…)

No casos de circulação rodoviária cabem na auto-organização do próprio agente, não há aqui


nenhuma posição de garante derivada de um dever institucional. Estamos a extrapolar a nossa
esfera de liberdade e a entrar na esfera de liberdade do outro, e isso gera responsabilidade.

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Jakobs está sempre em busca de uma forma de simplificar os problemas que a vida em
sociedade suscita, então olha para a condução automóvel e vê uma um conjunto de ações e
omissões – porque quando estamos a conduzir nós aceleramos, travamos, mudamos ou não
as mudanças, então num sítio onde a ação domina, mas temos cada vez mais veículos
automáticos – a predominância da ação diminui e predomina a omissão – mas se estamos no
plano do status geral, da organização de acordo com a própria competência, é indiferente ser
mais predominante a ação ou a omissão, porque a lógica de funcionamento e de atuação é
sempre a mesma. A responsabilização não deve ser diferente. Leva-o a concluir que essa
diferenciação é uma criação artificial que não faz sentido, o que importa é que o agente está
a ultrapassar a sua esfera de liberdade. Se o faz por ação ou por omissão, isso é indiferente,
sendo esta a posição da Prof.ª MFP. (…)

Para a MFP, como o art. 10.º funciona como uma cláusula de extensão dos tipos da parte
especial, por ser indiferente estar diante de uma ação ou omissão porque o agente
ultrapassou a sua esfera de liberdade então imputamos o comportamento por ação.

Se nós chegamos à conclusão que o comportamento foi praticado por ação, seja por aplicação de
qualquer um dos critérios, isto significa que podemos aplicar diretamente o tipo da parte especial e
não precisamos de ir em busca de uma cláusula ou meta-norma que alargue a tipicidade.

CASO “EMPREGADA TRAIÇOEIRA”


Gustavo pretende furtar um objeto de valor que Hugo guarda em casa, pedindo
para tal ajuda a Camila, empregada doméstica de Hugo.
Como combinado, no dia seguinte Camila abre o portão da casa de Hugo para sair,
no fim do seu horário de trabalho, e “esquece-se” de o fechar, dando assim oportunidade
a Gustavo para realizar o assalto, o que acaba por suceder.
Trata-se aqui de um caso de ação ou omissão?
No caso da posição de Stratenwerth, Figueiredo Dias e Paulo Pinto de Albuquerque, se nós aplicarmos
o critério do perigo, reparem que o ato de abrir a porta não cria o perigo, uma vez que é lícito, é
adequado abrir portas. Não faz sentido considerarmos uma ação – foi o ato de OMITIR o fecho da
porta que criou o risco, Camila deveria diminuir o perigo e fechar a porta. Ao omitir esse dever,
praticou a conduta por omissão – isso é que releva para este efeito. O que não fez foi fechar a porta e
criou perigo.

Na lógica da Professor MFP, também sustentaria que numa situação como esta estaríamos diante de
um comportamento por omissão. Como? Segundo a lógica do critério do dever jurídico, do status
geral, pois a agente Camila assumiu faticamente o dever jurídico de garantir a segurança do
património da casa de Hugo. Portante, ela tinha o dever institucional que incumpriu ao não fechar a
porta faz gerar um comportamento omissivo.

Se a pergunta é: estamos diante de uma ação ou omissão, devem apresentar os diferentes critérios
de distinção entre as condutas por ação ou por omissão e não em termos abstratos! Têm de aplicar
ao caso concreto olhando para a conduta que cria o perigo ou que não neutraliza o crime.

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CASO “TESTEMUNHA SILENCIOSA”


Gioconda, Baby-Sitter de profissão, celebra contrato com os pais de Helena, de
dois anos, para tomar conta da criança durante 12 horas por dia, de segunda a sábado,
auferindo o salário mínimo nacional.
Na segunda semana de trabalho, por volta das 19:00 horas, Gioconda encontra-se
demasiado concentrada a assistir à série “Testemunha silenciosa”, como aliás fazia todos
os dias. Naquele dia, contudo, Helena dirigiu-se para a casa de banho e resolveu
experimentar a banheira, a qual ainda se encontrava cheia de água após o banho diário
da bebé. Desta forma, e por causa da distração de Gioconda, Helena veio a morrer
afogada.
Em tribunal Gioconda defende-se argumentando com a invalidade do contrato de
trabalho celebrado com os pais da criança, cujo horário ultrapassaria o máximo legal das
40horas semanais, com total ausência de remuneração das horas extraordinárias.
Pode Gioconda ser responsabilizada pela morte de Helena?
Nós sabemos que em geral, o legislador, na parte especial e lei penal extravagante prevê crimes
comissivo: os crimes materiais ou de resultado, ou seja, aqueles em que existe uma lesão efetiva ou
dano no bem jurídico. Eles tanto podem ser praticados por ação como por omissão. Mas uma ressalva:
os tipos da parte especial abarcam na sua descrição os comportamentos na forma de ação e omissão
ao mesmo tempo? A Prof.ª MFP entende que não. O sentido comunicacional que se retira dos tipos
legais é a ação, e isso significa que em geral (excecionando-se os casos em que o legislador descreve
expressamente omissões – art. 200.º, 284.º, 190.º/1) os crimes são previstos por ação. Torna-se então
imperativo olhar cuidadosamente para o art. 10.º. O art. 10.º é uma meta-norma que funciona como
uma cláusula de extensão da tipicidade, alarga o tipo incriminador, é uma cláusula de extensão da
tipicidade. (Eduardo Correia – sim, o art. 10.º restringe a tipicidade)

Quando estamos a resolver um caso, e estamos perante um comportamento omissivo, porque o


agente não diminuiu o perigo (como é o caso) temos de equiparar a omissão à ação (art. 10.º/1), mas
depois, temos de ver se há uma posição de garante – quando é que o dever jurídico previsto no art.
10.º/2 existe? quando é que podemos imputar ao agente o comportamento por omissão porque sobre
ele recai um dever jurídico que o obriga a praticar uma ação!

A doutrina construiu teorias que no fundo tentam materializar, densificar e determinar quando
estamos diante deste dever jurídico.

• A primeira destas teorias foi a teoria formal do dever jurídico desenvolvido pela doutrina
alemã. Entendia esta doutrina que a obrigação originária dos cidadãos em regra só abarcava
a violação ativa do direito, portanto, as ações. Assim, o dever de realizar atividades que evitem
danos, o mesmo é dizer: o dever jurídico que impõe uma ação pressupõe mais do que a
obrigação originária. No fundo, a obrigação originária só exigia ações – o não matar – e,
portanto, uma omissão exigiria já um dever jurídico especial. Para esta doutrina, a lei e o
contrato seriam os fundamentos jurídicos a considerar.

Também aqui temos a lógica de um contrato social teria um conteúdo negativo, isto é, “não
mates”, mas a lógica de que também advém daí um conteúdo positivo “ajuda o outro”
corresponderia a uma construção mais sofisticada, só poderia resultar de um dever jurídico
especial, não de uma lógica naturalista.

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Mais tarde, esta lógica do contrato como fonte de dever jurídico foi desenvolvida e foi somada
a ingerência, que deriva das situações em que devido a um atuar precedente do agente que
se cria uma situação de perigo que o obriga a pessoalmente neutralizar ou afastar esse perigo.
Quem cria perigos deve neutraliza-los ou afastá-los.

Claro que esta construção é altamente criticável, quid iuris se o contrato ou a lei não forem
válidos – no caso desta baby-sitter claramente não seria – é uma solução criticável, mas é
preferível dos alunos porque é objetiva XD. Entre nós, o legislador não toma posição, ao
contrário do legislador espanhol e brasileiro que explicitaram exatamente estas fontes: a lei,
o contrato e a ingerência enquanto fontes do dever jurídico de praticar uma ação.

• A teoria das funções que foi desenvolvido por Kaufmann a partir de 1959, e uma solução onde
defende que as posições de garantia defendidos pela teoria formal não podem valer pois são
insuficientes. Cria então um novo plano que são os deveres ético-sociais que fariam surgir
funções que legitimariam a existência de deveres jurídicos de agir. Nomeadamente o caso da
função de guarda de um bem jurídico concreto – caso de pais e filhos – ou a função de
vigilância de uma fonte de perigo – controlador de tráfego aéreo – pessoas que estão
obrigadas funcionalmente a controlar essas fontes de perigo.

Foi muito bem aproveitada pela doutrina e jurisprudência: a partir desta lógica de deveres
ético-sociais vieram identificar um conjunto de constelações em que o dever jurídico podia
existir, nomeadamente nas situações em que há uma assunção voluntária de deveres, os casos
de comunidade de perigo, os casos de comunidade de vida, as situações de ingerência e certas
relações de parentesco e proximidade – foram desenvolvidas outras funções.

O problema desta teoria é que comporta alguma incerteza, enquanto que a construção da
teoria formal era bastante exigente, concedia bastante segurança jurídica, dava garantia aos
cidadãos, esta teoria belisca o princípio da legalidade e o princípio da determinabilidade dos
tipos.

• No pensamento do Professor Figueiredo Dias, nós temos esta cláusula de extensão da


tipicidade (art. 10.º/1) porque há uma exigência de solidariedade, da pessoa para com os
outro na comunidade onde se insere. Há aqui uma proximidade existencial entre o “eu” e o
“outro”, é a lógica do “ser” com os “outros” – há aqui um certo exercício da virtude cristã que
deve ser respeitada. A lógica da caridade e do apoio ao próximo criam neste pensamento
posições de garantia. Mas, esta forma de solidarismo deve ter necessariamente um apoio
jurídico, e daí que o Prof.º FD rejeite um método puramente casuístico – o método dele é
tipológico. Ou seja, há vários tipos de situações que no fundo fundamentariam o dever jurídico
que recai sobre o agente.

Este regime do art. 10.º não vai sem crítica. Estudámos no 1.º semestre o princípio da
legalidade e o princípio da determinabilidade dos tipos. Se o art. 10.º é uma cláusula de
extensão da tipicidade, também deve observar o princípio da determinabilidade dos tipos. Daí
que o Prof.º Taipa de Carvalho defende que, rigorosamente, as fontes deste dever jurídico
deveriam ser a lei, o contrato, a ingerência, o domínio sobre as causas ou fontes de perigo e
as relações entre autoridades. Até propõe expandir o âmbito de aplicação do art. 200.º para
abarcar os atentados aos bens jurídicos patrimoniais de valor elevado e aumentar a pena.

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O Prof.º André Lamas Leite tem uma posição bastante interessante, que é bastante valorizada,
porque propõe que as fontes do dever jurídico de agir devem ser densificadas – porque na
verdade nem está lá nenhuma fonte. Propõe que se utilize a técnica dos exemplos padrão que
é utilizada no art. 132.º CP – homicídio qualificado – se virem, o legislador qualifica o crime de
homicídio (132.º/1) quando seja praticado em circunstâncias que revelem especial
perversidade ou censurabilidade, e depois no n.º 2 determina que são suscetíveis de revelar
especial perversidade ou censurabilidade, entre outras, as circunstâncias descritas nas alíneas.
Reforça-se o “ENTRE OUTRAS” – podem ser outras similares às que contam nas alíneas
– é a técnica dos exemplos padrão.

De alguma forma este art. 10.º, e em particular o n.º 2, quando tem esta forma genérica do
que possam ser as fontes do dever de agir, parece que belisca o princípio da determinabilidade
dos tipos.

Voltando ao pensamento do Prof.º FD, este parte do método tipológico, e sustenta a aplicação
da teoria material-formal, ou seja não é puramente formal porque as fontes não são só a lei,
o contrato e a ingerência, mas também não é meramente material, no sentido em que não é
qualquer função que pode ser considerada uma fonte do dever jurídico de agir.

A partir desta teoria material-formal, FD identifica 3 grandes grupos que fundamentam o


dever jurídico de agir:

o O dever de proteção e assistência a um bem jurídico carecido de amparo;


o Os deveres de vigilância e segurança face a uma fonte de perigos;
o As posições de monopólio.

Neste caso prático, estaríamos no primeira caso: estaria em causa um dever de proteção e
assistência a um bem jurídico carecido de amparo, e, concretamente, estaríamos diante de
uma assunção voluntária de guarda e assistência, que faria surgir, no caso, um dever jurídico
na agente de salvaguardar a vida do bebé. Significa no fundo que mais que uma assunção
contratual, há uma assunção fáctica que está fundada numa relação de confiança. Tanto pode
acontecer neste caso, como pode acontecer noutro: se um nadador salvador pede a um colega
que o substitua, o nadador salvador substituto naturalmente assume a proteção do bem
jurídico. Como também os alpinistas – se o grupo vai numa excursão há uma assunção fáctica
que impõe a diminuição do perigo.

• A Prof.ª MFP, adota um critério de juridicidade que faz nascer a posição de garante, e está
dependente de um conjunto de fatores: por um lado, este critério radica dos princípios da
igualdade, da liberdade e da responsabilidade, por outro, sempre que haja a tal perturbação
das esferas jurídicas há um desequilíbrio entre essas esferas que é necessário corrigir.
Portanto, nasce a posição de garante quando se ultrapassa a esfera de liberdade, a sua própria
esfera de ação, (…) quando seja possível justificar a transferência de responsabilidade da
vítima para o agente, ou seja, quando haja assunção de responsabilidade. Mas para que isso
aconteça tem de haver previsibilidade para o agente dessa responsabilidade que é inerente à
atividade que está a desenvolver. Portanto, para todos os efeitos, uma eventual auto-
vinculação implícita na relação tem de ser percetível e previamente aceite naquela lógica (…)

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A construção da Prof.ª MFP não é redutora, não se resume a um conjunto de casos, não é
casuística, é uma construção que parte da juridicidade, que parte da lógica de articulação de
um conjunto de princípios com relevância constitucional.

Quando estamos a aplicar o art. 10.º, estamos diante de crimes comissivos, perante as omissões
impuras ou impróprias, os crimes materiais ou de resultado em que o agente tem a tal posição de
garante. Porque há um dever que impende sobre o agente de agir e evitar o resultado.

Temos de ser assertivos na resolução de casos:

1. º Identificam no caso prático que o agente praticou a conduta por omissão, no sentido em que não
diminuiu o perigo, não praticou a ação que era esperada;

2. º Vão olhar para o art. 10.º/1 – para a equiparação da omissão à ação – e é aqui que entre a lógica
da conexão de risco e onde se analisa o problema da imputação objetiva – saber se aquele resultado
pode ser imputado ao comportamento omissivo (só vamos aprender adiante);

3. º Saber se o agente tem a possibilidade fáctico-individual de ação – é apurado individualmente.

4. º Há ou não uma posição de garante? Há um dever jurídico de agir? É aqui que vamos analisar as
diferentes teorias.

Aula n.º 6 – 13/04/2021

(Fontes do dever jurídico que obriga o agente a agir)

CASO “O POÇO”
Ernesto, proprietário de um poço em funcionamento, tem sucessivamente
colocado letreiros de perigo e uma vedação para impedir o acesso a estranhos.
Mesmo assim, Filipe, de 20 anos, rompe a vedação para furtar água, o que faz por
diversas vezes, acabando um dia por cair ao poço e morrer. Pode Ernesto ser
responsabilizado pela morte de Filipe?
Não se podem limitar a olhar para as teorias e despeja-las. Têm de aplicar as teorias ao caso. O que
está aqui dito é que o Ernesto coloca sempre letreiros de perigo e vedações para impedir o acesso a
estranhos. No fundo, o Ernesto tem o domínio de uma fonte de perigo, mas faz tudo aquilo que está
ao seu alcance para neutralizar o perigo e diminuí-lo com barreiras para impedir o seu acesso. O Filipe
é na verdade um grande artista na arte de contornar estas barreiras para retirar a água no poço até
que acaba por cair no poço. Numa situação como esta, nós podemos efetivamente tentar enquadrar
o caso no art. 131.º - porque para todos os efeitos o Filipe morreu, mas aqui a questão central é dupla:
no plano factual podemos imputar a responsabilidade da morte ao Ernesto, mas saber se há um dever
jurídico que obrigue o agente a atuar para efeitos do disposto no art. 10.º/2 CP. Aí, e
independentemente da teoria que apliquem a resposta é sempre a mesma e é de sentido negativo.

De facto, quando olhamos para a construção do Prof.º Figueiredo Dias nós conseguimos enquadrar o
caso no âmbito dos deveres de vigilância em face de uma fonte de perigo – é um dever de fiscalização
de fontes de perigo no domínio próprio, mas, o facto de enquadrarmos em abstrato, não quer dizer
que o passo logo seguinte seja a imputação do crime de homicídio ao agente. Na verdade, e se
fizermos o mesmo exercício em face do pensamento da Prof.º Fernanda Palma, nós não podemos
afirmar que quem tenha uma fonte de perigo tem sempre um dever de vigilância e segurança face à

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fonte de perigo no matter what. Aconteça o que acontecer a pessoa é sempre responsável pela
situação? Não. Traria uma insegurança jurídica insuportável e imprevisível para o Direito Penal. Todas
as precausões de segurança foram, no caso concreto, tomadas pelo agente, o que aconteceu foi uma
intromissão ilícita por parte de Filipe. Portanto, muito claramente estamos perante um limite ao
efetivar da responsabilidade jurídico-penal de Ernesto que decorre do princípio da
autorresponsabilidade do próprio Filipe e da confiança. Para todos os efeitos mesmo que
conseguíssemos enquadrar no regime do art. 131.º, mesmo que equiparássemos a ação à omissão nos
termos do art. 10.º/1, quando chegamos ao art. 10.º/2, fazemos a leitura inversa – tinha a
possibilidade fáctica de neutralização do perigo e foi efetivamente o que fez. Não pode ser
responsável pelo que fez (não estou a aplicar as teorias todas porque estou a ser mais assertiva –
aplicar na frequência todas).

CASO “XPTO”
A empresa XPTO lança no mercado um novo detergente para a roupa, com um
preço altamente competitivo, tornando-se aquele detergente o maior sucesso de vendas
do ano em pouco tempo.
Já depois da comercialização do produto, no decurso de testes regulares de
controlo de qualidade, a empresa constata que o uso prolongado daquele detergente
provoca graves episódios de alergia, com maior incidência nas crianças, mas nada faz.
Pouco depois, a imprensa relata vários casos de crianças internadas com alergias graves.
O elo em comum é a utilização do detergente comercializado pela empresa XPTO.
Quid iuris?
Atenção: a ingerência pressupõe uma atuação ilícita anterior, uma situação de perigo ilícita. Quando
o produto é colocado no mercado não há dados que possam permitir dizer que há problemas com o
mesmo. Normalmente é associado à responsabilidade do produto. A ideia que está em causa é esta:
quem fabrica medicamentos, automóveis, produtos de beleza ou tóxicos, e quem comercializa
também, tem sempre sobre o produto uma posição de domínio que é baseada sobretudo no facto de
ser essa empresa a única que está suficientemente informada sobre os riscos do produto que está
efetivamente a fabricar. Chama-se então responsabilidade pelo produto e pelas consequências que o
seu produto possa produzir em terceiros.

Há de facto um conjunto de casos clássicos. Em 1954, uma empresa que produzia um medicamento
x, que era normalmente um medicamento que as grávidas tomavam, descobriu que uma das
componentes tinha um efeito absolutamente dramático – a má formação dos fetos. A empresa
descobriu em 1954, mas o público só soube em 1961, quando foi retirado do mercado. No permeio
nasceram diversas crianças com deformações. Os líderes desta empresa foram acusados no quadro
na omissão gerada pela responsabilidade pelo produto.

Outro caso, foi o leatherspray, produto utilizado para limpeza do corpo, quando em 1980 vários
consumidores reportaram problemas respiratórios, náuseas, febres, no casos mais graves tiveram em
perigo de vida. E, exatamente como na hipótese, a empresa já no momento em que estava o produto
a ser comercializado é que dá conta dos efeitos negativos do produto. Ou seja, não sabe dos efeitos
nocivos antes. Porque se soubesse, estaríamos no âmbito do art. 282.º (ex ante) - só sabem depois e
nada fazem. Só sabem num momento ex post. Responsabilidade por omissão dolosa? Sim, têm um
dever jurídico de avisar os consumidores para os potenciais perigos.

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Estes casos – art. 144.º CP – esse tipo, pode gerar responsabilidade jurídico penal por omissão? Aqui,
a grande questão é que estamos diante dos deveres de vigilância face a uma fonte de perigo,
nomeadamente, no dever de fiscalização de uma fonte de perigo de domínio próprio que é a chamada
responsabilidade pelo produto – uma subespécie dentro desta classificação. De facto, o Prof.º FD
identifica como suscetível de gerar o dever de fiscalização das fontes de perigo no âmbito do domínio
próprio que deve gerar responsabilidade jurídico-penal. Conseguimos reconduzir ao regime do art.
10.º/2 CP. A Prof.ª MFP, é preciso demonstrar a juridicidade do dever, e como aqui foi bem
demonstrado, essa juridicidade existe também – dever resulta da auto-vinculação implícita do agente,
dentro desta lógia (quadro da distribuição de papéis na sociedade) o produtor aceitou o papel de
responsável pelo produto e é assim mesmo que tem de atuar.

Porém, há aqui uma diferença entre a situação de ingerência e de responsabilidade pelo produto.
Mesmo os autores que são mais normativos e formalistas – Taipa de Carvalho, que parte da lei, do
contrato e ingerência, identifica mais duas fontes: 1. Domínio de causas de perigo, e 2. Relações com
a autoridade; e no caso da responsabilidade pelo produto, não enquadra na situação de ingerência,
mas no domínio sobre as causas de perigo, desde que no momento da produção fosse desconhecida
a situação.

CASO “O LAGO”
Álvaro conduz o seu veículo durante a noite, num local isolado, quando, em virtude
de se encontrar em excesso de velocidade, perde o domínio do veículo, que se precipita
para um lago contíguo. Álvaro está inconsciente e com a cabeça submersa na água.
Berta, que a tudo assiste, constata que Álvaro está prestes a afogar-se mesmo junto
à margem, podendo facilmente retirá-lo da água, mas não o faz, ligando para o 112. A
autópsia revela que a causa da morte de Álvaro foi “afogamento”.
Problema jurídico central aqui é discutir se a posição de monopólio consubstancia ou não uma fonte
do dever jurídico de agir para efeitos do disposto no art. 10.º/2 CP – quando as crianças se estão a
afogar e não há mais ninguém, está um invisual na iminência de cair num poço – em todos os casos
em que não há nenhuma relação familiar, de proximidade em que o agente é o único que pode
promover a ação salvadora, essa pessoa tem o monopólio do salvamento. A pergunta é: se não o fizer
pode ou não gerar responsabilidade jurídico-penal por omissão – no caso, homicídio por omissão
impura ou imprópria.

Estamos diante do âmbito da omissão, mas dentro deste problema temos vários outros problemas:
Figueiredo Dias vs. Maria Fernanda Palma. Saber se o monopólio da ação salvadora, quando não seja
promovida essa ação salvadora pode originar responsabilidade jurídico-penal por existência de um
dever jurídico que pessoalmente obriga o agente a agir para efeitos do disposto no art. 10.º/2 CP.

Nesta matéria é nuclear saber discutir a doutrina central e é isto que dentro do ringue temos. Têm
posições muito interessantes e fundamentadas, mas é preciso saber argumentar. O art. 200.º é um
crime de perigo concreto. O perigo há de ser removido quando nos termos do art. 200.º for adotado
o meio adequado a evitar o perigo para a vida ou para a integridade física, tal como o legislador refere.
Temos de ter em atenção o n.º 3 do art. 200.º - não é punível quando se verificar grave risco para a
vida, o quando não lhe for exigível – não acontece no caso, pois respeita as possibilidades fácticas de
ação. O art. 200.º refere expressamente.

Focando a questão: realmente este caso é complexo que gera uma grande divergência na doutrina –
e até na jurisprudência que tende a seguir a posição do Prof.º FD para os casos de monopólio – ou

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monopólio acidental – situações em que a pessoa inadvertidamente se vê numa situação em que só


através da ação salvadora poderá evitar a verificação de um certo resultado. É este o problema central
aqui, sendo uma das fontes do dever segundo FD.

Para que se verifique uma situação deste género é necessário e é essa a inspiração de FD, haja uma
abissal desproporção entre o bem jurídico em perigo e o esforço exigido ao omitente no decurso do
processo de salvamento (André Lamas Leite). Era exatamente o que acontecia aqui, teria de estragar
as botas ou os sapatos para entrar na margem do rio e retirar a cabeça de dentro de água – era o que
era exigido ao agente.

O problema que se coloca aqui: esta situação de monopólio – em que a pessoa tem o domínio fáctico
da fonte de perigo – tem 3 pressupostos essenciais: 1. O agente tem o domínio absoluto do facto; 2.
O perigo é agudo e iminente; 3. É necessário que o agente tenha a possibilidade fáctica de ação (não
envolve perigo). Portanto, aplicando a construção de FD – art. 131.º, art. 10.º/1, art. 10.º/2. Para o
Prof.º FD, mesmo que não haja ligação com a vítima, vai sempre gerar responsabilidade pelo crime de
homicídio, e vai haver sempre um dever jurídico de agir.

A Prof.ª MFP diverge. Para a Prof.ª, esta via do controlo de fontes de perigo nesta acessão do Prof.º
FD é demasiado expansiva, expande demasiado a responsabilidade jurídico-penal. Estes casos de
monopólio, na verdade, geram sempre responsabilidade jurídico-penal. É inadmissível que a situação
de monopólio acidental só por si gere responsabilidade porque o dever jurídico deve resultar no
sentido possível das palavras e com a juridicidade do dever. Toda a construção de FD é criada à volta
de critérios fácticos, não tem qualquer juridicidade. Portanto, do ponto de vista da segurança jurídica
dos destinatários das normas é completamente insuportável. Pelo critério da juridicidade do dever, só
pode haver transferência da responsabilidade da vítima para o agente quando haja previsibilidade,que
aqui não há – nem se conhecem, não há acordo, nem algo parecido. Aqui o que eu queria que
percebessem é que não há uma aceitação implícita de responsabilidade. Aqui não há previsibilidade.

Numa situação como esta, a única situação possível seria reduzir o caso ao regime do art. 200.º/1 –
surge em linha com o pensamento de Taipa de Carvalho, Paulo Pinto de Albuquerque. Claramente não
era adequado para evitar o perigo telefonar para o 112 – era preciso que levantasse a cabeça da vítima
da água – era essa a ação adequada a evitar o resultado. Por esse motivo, o que teríamos aqui seria
uma responsabilidade por aplicação do art. 200.º que é uma ação PURA ou PRÓPRIA porque o
comportamento omissivo resulta diretamente da norma da parte especial- VOCÊS NÃO VÃO IMPUTAR
ESTE CRIME POR RECURSO A METANORMAS DA PARTE GERAL – isso só acontece nos crimes
COMISSIVOS – aqueles que comportam RESULTADOS, por isso e que se dizem impuros ou impróprios.

Aula extra – 19/04/2021

(Concurso de normas)

CASO “O ACIDENTE”

A conduz o seu veículo durante a noite, num local isolado, quando, em virtude de
se encontrar em excesso de velocidade, não consegue travar a tempo, embatendo em B,
que se encontra a atravessar a rua na passadeira. B fica gravemente ferido e A,
constatando isto mesmo:

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a) Liga imediatamente para o 112. B é transportado para o hospital, mas vem a


falecer em consequência dos ferimentos provocados pelo atropelamento. Por que
crime(s) responde A?
Nós já sabemos que a condução em geral é uma conduta perigosa, faz parte dos quadros da sociedade
de risco, e também já sabemos que sendo uma conduta perigosa já tem perigo. O que o agente faz é
aumentar o perigo que já existe que decorre do ato de conduzir. Quem provoca acidentes, produz
danos não cria perigo, porque já subjaz à conduta de conduzir, mas aumenta o perigo (Stratenwerth,
FD, PPA) – critério do perigo – teremos uma ação.

MFD – inspirada em Jakobs – desde que nos mantenhamos dentro dos nossos limites gerais de
responsabilidade – então temos liberdade e responsabilidade. A partir do momento que
ultrapassamos os limites da nossa responsabilidade, extravasamos os limites gerais da
responsabilidade então temos de ser responsabilizados, independentemente de ter sido praticado por
ação ou omissão. E como é indiferente ter sido por ação ou omissão, então vamos aplicar por ação –
forma predominante.

Não conseguimos extrapolar – art. 137.º - crime comissivo por ação – comporta um resultado, por
ação. Poderemos discutir também a possibilidade do crime comissivo por ação grosseira – art. 136.º/2.

b) Foge do local, em pânico. C, que a tudo assiste, telefona para o 112. B é


transportado para o hospital, mas vem a falecer em consequência dos ferimentos
provocados pelo atropelamento. Por que crime(s) responde A?
Há de facto aqui uma linha jurisprudencial e doutrinária – Inês Ferreira Leite – que defende que em
relação à responsabilidade jurídico-penal do A, que, promove o atropelamento e foge do local em
pânico, há um concurso: efetivo real (porque há duas condutas que nós conseguimos descortinar e
potenciar) e heterogêneo (porque são tipos de ilícito diferentes):

1. Crime de homicídio negligente, praticado por ação (como já vimos) – art. 137.º
2. Crime de omissão de auxílio – art. 200.º/2 – omissão pura ou própria porque o ilícito é
constituído pela mera omissão que resulta de uma tipificação diretamente plasmada pelo
legislador na PE do CP.

Nesta linha doutrinária está em causa o regime do art. 200.º/2 que traduz uma situação de ingerência
– é o caso típico. Alguém prova um acidente e foge do local. Dentro desta lógica, como o agente por
um lado destrói o bem jurídico vida – homicídio por negligência – e por outro lado cria perigo para um
destes bens jurídicos que aqui estão o agente deveria ser punido em concurso efetivo – seria o regime
do art. 30.º/1, conjugado com o regime do art. 77.º - e é precisamente neste sentido que promovem
os acórdãos TRP de 2009, quer o de 2017 – promovem o acordo efetivo, punido pelos 2 crimes.

Mas esta solução está a valorar duas vezes a tutela do bem jurídico vida: 1. Por via do crime de
homicídio, 2. Por o crime de omissão de auxílio. Se lerem o art. 200.º - esta norma tem como
fundamento a solidariedade humana que intende sobre todos os membros da sociedade, mas quando
lemos a norma, que pela inserção sistemática (capítulo VIII – contra outros bens jurídicos pessoais), o
legislador dá orientação. Quer isto significar que estamos perante um tipo que se classifica de perigo,
na medida em que o legislador não exige a lesão efetiva do bem jurídico – basta-se com criação de
perigo. Sempre que o legislador faz esta descrição – “criar perigo para…” – estamos perante um crime

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concreto. O perigo aqui é concreto. Significa que esta linha jurisprudencial está em clara violação do
art. 29.º/5 CRP.

O problema do concurso de normas ou aparente:

• Regra da subsidiariedade: por vezes há normas que estão numa relação de grau, no sentido
em que temos uma norma dominada (tutela o bem jurídico de uma forma menos intensa) face
a uma norma dominante (que tutela o bem jurídico de uma forma mais intensa). Nestas
situações de interferência entre normas, embora sejam ambas aplicadas, só vamos aplicar
uma quando a outra não tiver possibilidade de ser aplicada porque é subsidiária. Isto significa,
portanto, que há normas que tutelam melhor o bem jurídico do que outras, têm então de
ceder as normas que tutelam menos o bem jurídico – as dominadas – perante as que tutelam
mais – as dominantes.

O que significa que podemos ter mais do que uma norma dominada e dominante a concorrer para a
tutela de um bem jurídico. Quando isto acontece estamos perante um concurso que é resolvido
através da regra da subsidiariedade – esta subsidiariedade pode ser:

• Formal ou expressa: quando é o legislador que (simpaticamente) nos resolve o problema do


concurso – indica que uma certa norma só se pode aplicar quando pena mais grave não couber
por força de outra disposição legal – sempre que encontram esta fórmula isso significa que o
legislador está a indicar que esta é a norma dominada e vai ceder a aplicação a outra norma
dominante que tutele o bem jurídico mais intensa e com pena maior.

Ao longo do ano já nos confrontamos com normas deste género – p.e. o crime do art. 208.º - fruto e
uso de veículo; art. 292.º/1 - condução em estado de embriaguez; art. 293.º/2 - condução sob a
influência de substâncias psicotrópicas ou de efeito análogo. O legislador já nos está a dizer que é uma
norma subsidiária – formal ou expressa.

• Material ou implícita: resulta concretamente de uma interpretação lógica entre os preceitos


que estão em concurso. Resulta de uma discussão doutrinária e é possível fazer um apanhado
dessas regras de subsidiariedade material ou implícita:
o Relação entre atos consumados, tentados e preparatórios;
o Relação entre crimes de perigo abstrato, perigo abstrato-concreto, perigo concreto e
dano;
o Relação entre os crimes cometidos nas formas de cumplicidade, instigação e autoria;
o Relação entre o crime por omissão e o crime por ação;
o Relação entre a violação de um dever geral de auxílio (200.º) /auxílio médico (284.º)
e a violação de um dever de garante (10.º/2);
o Relação entre o crime negligente e o crime doloso;
o Relação entre o tipo de crime de embriaguez e intoxicação (295.º) e a ação livre na
causa (20.º/4).

Nós temos esta relação de grau entre normas dominantes e normas dominadas em diversos aspetos
ao longo da legislação penal, e há aqui algo que é preciso ter em conta para fazer cumprir o princípio
ne bis in idem (art. 29.º/5 CRP). Os crime de lesão efetiva ou dano – como é o crime de homicídio (art.
131.º) tutela todas as formas de ataque ao bem jurídico vida. Está em causa o dano que é gerado para
o bem jurídico vida. Portanto, significa que os crimes de lesão efetiva ou dano correspondem à norma
dominante face aos crimes de perigo, que é a norma dominada.

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Do mesmo passo – no confronto entre crimes de ação ou omissão, também a ação, por tudo aquilo
que já viram ao longo do semestre, é dominante face à omissão que é dominada.

Por outro lado, quando temos a violação de um dever de garante (quando conseguimos enquadrar o
nosso caso no regime do art. 10.º - crimes comissivo de omissão) – dominante, é essa a forma que
deve vingar em face do regime subsidiário das omissões puras ou próprias (art. 200.º) – dominada.

Significa que esta linha doutrinária choca frontalmente com estes ensinamentos – entende a MFP e
acompanha a Dr.ª Sónia Reis, que o agente deve ser punido por crime comissivo por ação apenas.
Porque o art. 200.º não tem autonomia penal quando confrontada com o crime de homicídio
negligente. O resultado que se pretende evitar no art. 200.º - criação de perigo para a vida vs. Evitar
a morte; é exatamente o mesmo que o legislador está a tentar tutelar no art. 137.º CP. Portanto, sob
pena de violação do art. 29.º/5, deve operar a subsidiariedade implícita e, portanto, o art. 200.º é
subsidiário dos crimes comissivos.

c) Foge do local, em pânico. C, que a tudo assiste, vai-se embora, sem nada fazer.
Mais tarde, B é transportado para o hospital, mas vem a falecer em consequência
dos ferimentos provocados pelo atropelamento. Por que crime(s) respondem A
e/ou C?
Como vocês disseram, em relação ao A, os problemas são exatamente os mesmos que nós vimos na
alínea anterior. Temos duas grandes posições: 1. Jurisprudência e Inês Ferreira Leite – imputar ao
agente os dois crimes em concurso real efetivo e heterogêneo (art. 77.º + 30.º/1). 2. MFP – apenas
um crime comissivo por ação.

Quanto à responsabilidade de C – é obvio que numa situação em que ele tivesse ligado para o 112, na
verdade, não desobrigaria o A, na verdade, a obrigação do art. 200.º só cessa quando for efetivamente
socorrida. Só podemos aplicar o art. 200.º/2 a partir dos limites do art. 10.º - estamos a falar de
omissões, nomeadamente omissão de salvamento de vidas, no incumprimento do dever. Só nos casos
em que estejamos diante de uma omissão e chegarmos à conclusão que o regime do art. 10.º não se
vai aplicar por não haver posição de garante, então aí é que aplicamos o art. 200.º CP.

De facto, partindo do pressuposto que mais ninguém estava por perto e que mais ninguém poderia
realizar a ação salvadora na acessão que nós temos aqui – a ação possível era ligar para o 112, dar
água talvez, e algum conforto – nós temos sempre de olhar para a base fáctica – podemos dizer que
nesse caso então tinha feito tudo o que estaria ao seu alcance, cumprindo o regime do art. 200.º/3 –
limitação fáctica importante – mas voltando:

No caso, C ausenta-se e não faz nada. Será que podemos imputar a C a morte do B por omissão? Por
não ter praticado a ação necessária para afastar aquele resultado conjugando para o efeito o art. 131.º
com o art. 10.º? Equiparação da omissão à ação é possível porque estamos diante de um crime de
resultado ou comissivo. Possibilidade fáctica de ação de acordo com os dados na hipótese também
temos. Mas temos uma posição de garante? Recai sobre o agente um dever de atuar e afastar o
resultado? MFP – não existe nas situações de monopólio acidental ou ocasional juridicidade do dever
– o agente não se vinculou de qualquer modo à assunção da responsabilidade. Portanto, só para FD é
que podíamos equiparar a omissão à ação quando estejam preenchidos os 3 requisitos fácticos que
faz depender. Dada a ausência de juridicidade não há posição de garante, a única solução será aplicar
o art. 200.º/1 – omissão de auxílio (não foi C que criou a situação).

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Normalmente quando falamos do art. 200.º costuma-se falar em atropelamentos, mas não são só
essas circunstâncias de ação possíveis – pode ser um terramoto, um tsunami, uma derrocada de um
prédio p.e. Vemos aqui como bens jurídicos tutelados: a vida, a integridade física e a liberdade – são
taxativos pelo princípio da tipicidade. À uns anos atrás, houve uns jovens que depois da escola
perseguiram um jovem, rodearam-no, fizeram o que quiseram e aquela pessoa ficou a receber maus
tratos por 15 a 20 minutos – isto só por si já estamos no âmbito do crime de sequestro (de forma
atípica), mais integridade física (esteve internado) – para além dos agressores estavam também
pessoas a assistir – pessoas que viviam num prédio que começaram a filmar. O Ministério Público
acusou todas as pessoas que estavam a assistir de omissão de auxílio – estava em causa uma situação
de grave necessidade e estava em causa o bem jurídico liberdade e integridade física. O que não está
em causa são os bens patrimoniais alheios, pois foi recusado pelo Professor Eduardo Correia.

d) Fica em estado de choque e paralisado. C, que a tudo assiste, telefona para o


112. B é transportado para o hospital, mas vem a falecer em consequência dos
ferimentos provocados pelo atropelamento. Por que crime(s) responde A?
Aqui, realmente só poderíamos imputar o crime comissivo por ação. Dentro desta lógica, a ação seria
a forma de conduta dominante e, face aos dados da hipótese, o A ter ficado em estado de choque e
paralisado – significa para todo os efeitos que ele está em estado catatónico – acontece e tem de ser
comprovado. Mas significa que as possibilidades fácticas individuais de ação que poderiam permitir o
crime de homicídio doloso por omissão não estão verificadas aqui porque não existe a possibilidade
fáctico-individual de agir.

Para quem defende a posição da Professora Inês Ferreira Leite ou da jurisprudência, porque é que não
poderíamos imputar aqui em concurso efetivo real e heterogéneo o crime comissivo por ação e o
crime do crime 200.º? Porque embora fosse ele nos termos do art. 200.º/2 a criar a situação,
estaríamos no âmbito do art. 200.º/3 – havia aqui um motivo relevante (o facto de estar num estado
catatónico) para que não lhe fosse exigido o auxílio necessário para afastar o perigo. Assim, o concurso
irá cair.

e) Regozija-se pelo facto de ter conseguido ferir gravemente o seu inimigo B.


Constata que este ainda respira e que carece de auxílio médico urgente, mas
abandona o local sem nada fazer. B vem a falecer pouco depois, em consequência
dos ferimentos provocados pelo atropelamento. Por que crime(s) responde A?
Vocês conseguem compreender que até ao momento do atropelamento é tudo igual. O dolo, tem de
ser concomitante à ação: ou seja, o agente só pode ser responsabilizado jurídico-penalmente pela
prática de homicídio doloso se o dolo existir no momento em que a conduta é praticada. Se o dolo
existir num momento posterior – se o agente vê que a vítima era afinal o seu inimigo isso é um dolo
posterior – o direito penal do facto só poderá criar responsabilidade de acordo com a imputação
subjetiva no momento da prática do facto. No momento em que se deu o atropelamento o agente
não conheceu nem quis atropelar aquela pessoa – até que só depois é que percebeu quem é que tinha
atropelado. Isto é um elemento perturbador, mas interiorizem sto já!

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Serve isto para dizer que quando o agente atropela a vítima, ele fá-lo a título de negligência – o dolo
precisa de ser concomitante à ação! O conhecimento e vontade tem de existir no momento em que
atua.

O agente ao regozijar-se, conhecendo e querendo o resultado morte – não quer prestar auxílio
querendo o resultado morte para a vítima. Por isso, o agente ponderamos o crime comissivo de
homicídio por omissão – precisamos da cláusula de extensão da tipicidade do art. 10.º CP. Mas este
está em concurso com o art. 200.º/2 CP. Mas, primeiro é preciso saber se há um dever de agir (posição
de garante, nomeadamente por ingerência) nos termos do art. 10.º/2.

Face aos dados da hipótese, a regra da subsidiariedade vai operar aqui – porque entre o crime doloso
e o crime negligente, nós temos sempre esta relação de concurso, mas como uma diferença de grau
na tutela do bem jurídico. O crime doloso é naturalmente à norma dominante (art. 13.º - elemento
subjetivo geral) – art. 131.º ou 132.º. Depois, se era para discutir esta diferença entre o art. 10.º e o
art. 200.º - nós chegamos à conclusão que há uma posição de garante que é a ingerência! Desde a
teoria das fontes formais que a ingerência é considerada uma fonte do dever jurídico – teríamos
sempre aqui uma fonte de posição de garante.

É precisamente isto que acontece no acórdão do TRL de 2015, estando em causa um crime doloso que
é unicamente imputado ao agente – é dos limites do dever geral de agir que nós construímos a partir
da análise do art. 10.º que nós concluímos que existe aqui uma posição de garante – esta é a norma
dominante. Não podemos ponderar a norma dominada, na medida em que a tutela do bem jurídico
vida que o regime do art. 200.º prevê, já está alcançada por força da imputação do crime comissivo
por omissão (homicídio).

CASO “DR. JIVAGO”

Dr. Jivago, único médico de serviço da especialidade em cardiologia no hospital


Leges Artis, ausenta-se do seu posto, para se entregar a Lara, enfermeira por quem estava
enamorado, e com quem mantinha caso de amores. Pouco depois, Ana, cônjuge de Jivago,
dá entrada naquele hospital em paragem cardiorrespiratória. Contactado pelo hospital:

a) Jivago não atende o telemóvel nem responde às mensagens, que lê, e que
demandavam o seu regresso ao serviço. Ana acaba por ser socorrida por outro
médico e é salva. Quid iuris?

Está em causa o regime do art. 284.º CP – crime de recusa de médico – é um crime de omissão pura
ou imprópria. Esta omissão pura decorre da parte especial que prevê diretamente o dever de agir em
função das circunstâncias que estão aqui expressamente referidas.

Quem pratica este crime é o médico! Este crime pressupõe uma recusa. Esta recusa não precisa de ser
expressa – pode recusar como for, tem de ser expressa por palavras, atos, por abandono, etc. Recusar
não significa exteriorizar que não atende, significa a não prestação em tempo útil quando conheça a
situação grave de urgência. Sempre que a situação de perigo tem de ser pré-existente. Já lá está e o
agente recusa a atuar.

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É necessário que: 1) o médico é o único meio indispensável – tem de haver indispensabilidade; 2)


adequação – a intervenção médica tem de ser adequada para afastar o perigo. Olhando para as
circunstâncias do caso, a Ana não morreu – se não morreu, então não há tutela do bem jurídico vida
(não é preciso). O que há a ponderar é a aplicação do regime da omissão pura ou própria nos termos
do art. 284.º em linha com o TRP de 22/02/2012. Portanto, não havendo resultado, não se pondera
tal caso.

No acórdão, a médica tinha sido obstetra, tinha acompanhado na gravidez e era a médica que estava
de serviço – ela estava investida numa posição de garante. A médica, conhecendo a situação, sabendo
da mesma, tomou a opção de não intervir. Permite a imputação de crime comissivo de homicídio por
omissão nos termos do art. 131.º + art. 10.º CP. No caso a vítima não morreu – assim, não pode ser
responsável por homicídio – nunca aconteceu.

b) Jivago regressa imediatamente ao hospital, mas, ao constatar que a paciente em


causa é Ana, sua mulher, nada faz, na esperança de que ela morra, para assim poder
livremente consumar o amor que nutre por Lara. Ana morre devido a falta de
assistência. Quid iuris?
Numa situação como esta, nós temos de fazer operar aqui a regra da subsidiariedade implícita. Se nós
conseguirmos enquadrar o caso nos quadros do dever de garante para efeitos do regime do art. 10.º/2
– então não precisamos de ir ao art. 284.º que é sempre subsidiário (como o 200.º) face ao anterior.

Na hipótese, o Dr. Jivago regressa, vê que a paciente é a sua mulher e opta por nada fazer porque quer
que ela morra – isto é dolo de homicídio. Numa situação como esta nós vamos imputar o crime de
homicídio por omissão. A fonte diverge.

Mas quando é que aplico o art. 284.º com o art. 285.º? Para isto, é necessário que o agente não
represente o resultado (neste caso, a morte). Ele deseja a morte da mulher é para o crime de homicídio
que ele tem de imputar. O art. 284.º é de facto um crime doloso – opera a regra do art. 13.º - mas a
agravação tem de ser articulada com o art. 18.º - aparentemente abarca a negligência.

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Aula n.º 7 – 20/04/2021

(sumário)

Considerando os crimes infra identificados, determine os elementos do tipo e classifique


os tipos, de acordo com o solicitado:

a) 131.º - identifique os elementos objetivos e subjetivos do tipo e classifique-o


segundo a estrutura da ação, segundo a relação que se estabelece entre a conduta
e o resultado, segundo o bem jurídico, segundo o círculo possível de AA. e segundo
o modo de execução;
O que é importante que retenham já é que a tipicidade tem elementos subjetivos e objetivos. É uma
conquista da ação final (Finalismo) que veio oferecer a dimensão subjetiva às categorias analíticas
seguintes. Nesse sentido, q ualquer tipo de ilícito que analisemos tem sempre elementos objetivos e
subjetivos. Para respeitar o princípio da legalidade e exigência de tipicidade é necessário que as
normas penais incriminadoras revelem qual é o desvalor da ação, qual é o desvalor do resultado e o
bem jurídico tutelado e isso é materializado nestes elementos. Em geral, qualquer tipo de ilícito
comporta os chamados elementos descritivos, por vezes elementos normativos e sempre o tipo de
imputação subjetivo.

Os elementos descritivos – porque são apreensíveis pelos sentidos, nós conseguimos identifica-los
externamente, são uma manifestação do mundo exterior que o legislador reduziu a escrito na norma:

• Agente;
• Conduta;
• Objeto da ação;
• Resultado;
• Nexo de causalidade/imputação objetiva;
• Bem jurídico.

Há ainda elementos que são descritivos, mas que importam uma certa valoração. P.e. o conceito de
pessoa: para saber se a pessoa está viva ou não, para além de saber se estamos diante de uma pessoa
é necessário uma certa ponderação – temos de ir buscar certos critérios que ainda conseguimos
apreender pelos sentidos, mas que já necessita de ponderação – ver se tem pulsação, ver se tem
atividade cerebral, ou mesmo se está grávida (crime de aborto). Ou mesmo o conceito de automóvel
– para efeitos do crime de furto de veículo – embora descritivo, precisam de valoração.

Por vezes ainda, há certos tipos penais do lado dos elementos objetivos do tipo, também comportam
elementos normativos (ou conceitos de Direito). O legislador utiliza conceitos jurídicos – p.e.
“documento” – o que é um documento para efeitos do art. 256.º CP? Importa uma ponderação jurídica
– é um conceito normativo.

Depois temos de olhar para os elementos subjetivos:

• Dolo – é o elemento subjetivo geral nos termos do art. 13.º CP;


• Negligência – só é punível se tiver expressamente tipificada na lei;
• Elementos subjetivos especiais.

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No caso do art. 131.º, temos de fazer uma correspondência rigorosa entre as palavras que o legislador
nos oferece e o caso. Aqui estamos a fazer em abstrato:

Elementos objetivos do art. 131.º:

o Agente – “quem”;
o Conduta – “matar”;
o Objeto da ação – “outra pessoa”;
o Resultado – “morte”;

Como é um crime que comporta um resultado, há outro elemento implícito da norma que é o nexo de
causalidade ou imputação objetiva – verificar se a conduta é apta para se verificar o resultado; outro
elemento implícito também é a tutela do bem jurídico vida.

Do lado subjetivo:

o Dolo – porque no silêncio da lei – art. 13.º CP.

Vamos passar para as classificações do tipo:


Quais são?
Os tipos, segundo a estrutura da conduta ou da ação podem ser:
• Ação;
• Omissão (pura ou própria vs. Impura ou imprópria).
Outra classificação importante é a que se estabelece entre a conduta e o resultado:
• Crimes formais ou de mera atividade – estão consumados apenas e só com a prática da
conduta, nesses casos não há o resultado que se destaca lógica e cronologicamente da
conduta do agente e que é oponível à conduta – não há resultado e não se estabelece o nexo
de imputação objetiva;
• Crimes materiais ou de resultado – são aqueles que realmente comportam o resultado onde
temos de estabelecer o nexo de imputação objetiva.

Outra classificação, segundo o bem jurídico:

• Simples – tutela um bem jurídico;


• Complexos – uma série de bens jurídicos

Ainda segundo o bem jurídico, há crimes que se dizem:

• Crimes de lesão efetiva ou dano – são aqueles que a consumação do crime implica um ataque,
um dano, uma destruição do bem jurídico tutelado pela norma;
• Crimes de perigo – na verdade a consumação do crime se basta com a criação de perigo para
os bens jurídicos que são tutelados na norma:
o Abstrato – dá-se uma antecipação da tutela do bem jurídico para estágios em que não
há qualquer relação direta ou próxima do bem jurídico tutelado;
o Abstrato-concreto – é necessário que a conduta prevista na norma seja
especificamente idónea a criar perigo do tipo do legislador prevê;
o Concreto – tem na verdade de haver um nexo de imputação objetiva entre a conduta
que o agente pratica e o resultado de perigo que se verifica no caso.

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▪ É por isso que enquanto que os crimes de perigo abstrato e abstrato-concreto


são crimes formais ou de mera atividade, conjugando as classificações – estão
consumados assim que se pratica a conduta; nos crimes de perigo concreto
nós temos um resultado (do lado da relação que se estabelece entre a
conduta e o resultado), os crimes de perigo concreto são crimes de resultado
– porque o resultado é o próprio perigo.

Segundo o ciclo possível de autores ou agentes (AA.):

• Gerais ou comuns – podem ser praticados por qualquer pessoa;


• Especiais;
• Mão própria – têm de ser praticados pelo agente – tem implicações ao nível da
comparticipação.

Segundo o modo de execução:

• Crimes instantâneos;
• Crimes duradouros:
o Permanentes – lesão que perdura no tempo;
o Habituais;
o Prática reiterada;
• Crimes de empreendimento;
• Crimes de execução livre;
• Crimes de execução vinculada;
• Crimes qualificados (agravados) pelo resultado – art. 18.º CP – correspondem a um misto de
dolo e negligência, têm um regime próprio e a Professora MFP trabalha este tipo de crimes
quando entramos na imputação subjetiva porque se situa ao nível do dolo e da negligência.

Voltando ao art. 131.º como é que classificam o crime?

Segundo a estrutura da ação:

o Ação
o Omissão (impura ou imprópria – art. 10.º CP).

Segundo a relação que se estabelece entre a conduta e o resultado:

o Crime material ou de resultado.

Segundo o bem jurídico:

o Simples; crime de lesão efetiva ou dano.


Segundo o círculo possível de autores:

o Geral ou comum.
Segundo o modo de execução:

o Execução instantânea e de forma livre.

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b) 190.º - identifique os elementos objetivos e subjetivos do tipo e classifique-o


segundo a relação que se estabelece entre a conduta e o resultado, segundo o bem
jurídico e segundo o modo de execução;
Elementos objetivos:

o Agente – “Quem”;
o Conduta – “introduzir-se na habitação de outro sem consentimento” ou “permanecer depois
de intimado a retirar-se” – comporta a omissão pura e impura;
o Objeto da ação – “habitação”;
o Resultado – não tem;
o Nexo de causalidade – não tem;
o Bem jurídico – privacidade,
Elementos subjetivos:

o Dolo – art. 190.º + art. 13.º CP.

Classificação do tipo:

Segundo a estrutura da ação:

o Ação ou Omissão;

Segundo a relação que se estabelece entre a conduta e o resultado:

o Crime formal ou de mera atividade;

Segundo o bem jurídico:

o Crime simples; de lesão efetiva ou dano – porque se comprime dramaticamente o bem


jurídico.

Segundo o círculo efetivo de autores:

o Geral ou comum.
Segundo o modo de execução:

o Crime permanente.

c) 203.º - identifique os elementos objetivos e subjetivos do tipo;


Elementos objetivos:

o Agente – “quem”;
o Conduta – “subtrair”;
o Objeto da ação – “coisa ou animal móvel alheia”;
o Resultado – não tem; PPA – apossamento;
o Nexo de causalidade – não tem;
o Bem jurídico – propriedade;

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Elementos subjetivos:

o Dolo – nos termos gerais;


o Ilegítima intenção de apropriação – elemento subjetivo especial.

d) 210.º - classifique o tipo segundo o bem jurídico;


Tipo segundo o bem jurídico:
o Complexo – vida, integridade física e propriedade;
o Crime de lesão efetiva ou dano – é preciso que haja o roubo efetivo, não basta a simples
criação de perigo, tem de haver a lesão do bem jurídico tutelado.

e) 291.º - identifique os elementos objetivos e subjetivos do tipo e classifique-o


segundo a relação que se estabelece entre a conduta e o resultado, segundo o bem
jurídico e segundo o círculo possível de AA.;
Elementos do tipo objetivos:

o Agente – “Quem”;
o Conduta – “condução”;
o Objeto da ação – “veículo”;
o Nexo de causalidade – não ouvi bem, mas acho que tem;
o Resultado – perigo;
o Bem jurídico – vida, integridade física.
o Circunstâncias da ação – alíneas a) e b).

Elementos do tipo subjetivos:

o Dolo – termos gerais;


o Negligência – art. 291.º/3.

Classificação do tipo:

Segundo a relação que se estabelece entre a conduta e o resultado:

o Crime material ou de resultado – perigo.


Segundo o bem jurídico:

o Complexo; crime de perigo concreto.


Segundo o círculo possível de autores:

o Mão própria – só quem está ao volante é que pode praticar o crime.

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f) 292.º - classifique o tipo segundo a relação que se estabelece entre a conduta e o


resultado, segundo o bem jurídico segundo o círculo possível de AA.;
Classificação do tipo:

Segundo a relação que se estabelece entre a conduta e o resultado:

o Crime formal ou de mera atividade.

Segundo o bem jurídico:

o Complexo; crime de perigo abstrato (consuma-se quando está a conduzir com uma taxa de
álcool igual ou superior a 1,2 g/l – n.º 1; abstrato-concreto (o crime consuma-se quando
esteja a conduzir com substâncias psicotrópicas e tenha um comportamento que seja apto
à criação de perigo) – n.º 2.

Segundo o círculo possível de autores:

o Mão própria.

g) 308.º, alínea a) - classifique o tipo segundo o modo de execução;


Classificação do tipo:

Segundo o modo de execução:

o Crime de empreendimento – a consumação dá-se no momento do estágio da tentativa.

h) 200.º, 203.º, 284.º e 375.º - classifique os tipos segundo o círculo possível de


Autores (AA).
Classificação do tipo:

Segundo o círculo possível de autores:

o 200.º - crime de omissão de auxílio – agente quem – à partida é um crime geral ou comum;
o 203.º - crime geral ou comum – qualquer pessoa pode praticar;
o 284.º - crime específico próprio – só pode ser praticado por médicos
o 375.º - fruto, mas a qualidade de ser funcionário faz agravar a situação – crime específico
impróprio.

Aula n.º 8 – 27/04/2021

(Imputação objetiva)

CASO “EMPURRÃO”

Durante uma discussão, Ana empurra Bruna com força. Em consequência do


empurrão, Bruna faz uma entorse no pé, sendo transportada de ambulância para o
hospital. No trajeto, a ambulância é abalroada pelo automóvel conduzido por Carlos,
vindo Bruna a ficar gravemente ferida em consequência do embate.

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Poderá Ana ser responsabilizada pelos ferimentos de Bruna? E Carlos?

O problema jurídico concreto é a interrupção do nexo causal por intervenção de terceiro. Chegámos
a ver que a teoria da CSQN não dava uma resposta satisfatória a este problema. Esta teoria considera,
na verdade, todas as condições como equivalentes, e nessa medida é uma teoria globalizante –
considera todas as condições que concorrem para o resultado em pé de igualdade.

É importante que tenham presente que até à 2.ª metade do séc. XIX em que primeiro na doutrina e
depois na jurisprudência introduzem esta fórmula da CSQN também se discutiam outras teorias.
Também se consideravam teorias individualizantes ou individualizadoras, onde se procurava a
condição que era determinante ou relevante para a produção do evento. Por essa altura, esta lógica
foi desenvolvida através da teoria da condição mais eficaz, a última condição determinante, etc. No
fundo foram discutidas várias possibilidades. Mas a que vingou foi esta visão global em que todas as
condições são equivalentes. Notem que esta é uma perspetiva naturalística, muito próxima das
ciências exatas – relações de causa e efeito. Neste sentido – foi a fórmula da supressão mental que
mais vingou introduzida em 1910. Assim, para apurar quais as condições que são causa do evento, o
julgador vai suprimir cada uma das condições. Suprimindo, vamos apurar qual a causa do evento.
Porque se suprimirmos a condição e o resultado não ocorre, então é porque é causa do evento.

Se nós suprimirmos mentalmente a conduta de C, temos que o resultado se continuaria a verificar


porque já havia atrás a conduta do A – outra condição. Por isso é que nós conseguimos compreender
que nestes casos de interrupção do nexo causal por intervenção de terceiro – a teoria CSQN não nos
dá uma resposta satisfatória. Porque este exercício de retrospetiva – em busca de todas as condições
(indo até Adão e Eva porque todas as condições são equivalentes) – não conseguimos encontrar a
verdadeira causa do facto. Esta teoria determinaria que a conduta do A é que teria sido causa
naturalística do ferimento de B. Não resolve estes problemas.

Esta fórmula não é a única possível – Frank – desenvolveu uma fórmula muito interessante para a
teoria da CSQN. Iremos ver mais adiante as fórmulas INUS e NESS, mas para Frank, este retorno ad
infinitum não pode acontecer. Para Frank era preciso que se tomasse em linha de conta só a condição
última que concorreu para o evento. Na prática – há um limite temporal para o regresso ao passado.
Assim, se nós temos uma primeira condição (A) e depois uma segunda (B), em que a segunda condição,
na verdade não incrementa ou intensifica o resultado, mas antes vem diminuí-lo, não é esta condição
(B) que devemos considerar causa do resultado, mas sim a primeira (A). Inversamente, se nós temos
uma primeira condição (C) e uma segunda (D) que potencia ou aumenta o resultado do evento lesivo,
deverá então esse evento lesivo mais grave a segunda condição (D). Esta fórmula de Frank é
interessante porque pressupõe uma barreira no processo que se pode promover.

Há aqui uma diferença essencial entre a relação causa-efeito que vai em busca do nexo de causalidade
e aquilo que se tenta fazer com a teoria da causalidade adequada, no quadro da primeira versão. A
ideia da teoria da causalidade é a de que o Direito Penal não anda em busca das causas naturalísticas
de um certo evento – o que interessa ao Direito Penal são as causas que são jurídico-penalmente
relevantes. Importa a resposta à questão normativa que se coloca. Significa, portanto, que a relação
de causa-efeito naturalísticas não colhe nos quadros do Direito Penal – o que colhe verdadeiramente
é a ideia de imputação. Imputamos objetivamente o resultado à conduta do agente. Imputar significa
atribuir à conduta do agente o início do processo causal que dará origem ao evento.

A teoria da causalidade adequada vem precisamente transformar-se numa verdadeira teoria da


imputação – esta teoria chama à colação as regras da experiência – o modo como o processo causal
se desenrola a partir de uma conduta do agente. Este juízo de prognose póstuma que é contruído vai,

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na verdade, determinar que se promova um prognóstico objetivo posterior – em que é que se traduz
isto? O juiz vai-se transportar para um momento ex ante – nunca é a pessoa, é o próprio juiz. Vai
perguntar a uma pessoa média, colocada no momento e lugar do evento, com os conhecimentos do
agente, se podia ou não prever que aquela conduta daria origem àquele resultado de acordo com um
processo causal que verificou no caso concreto.

Reparem, inicialmente, este juízo de prognose póstuma não tomava em linha de conta os concretos
ou específicos conhecimentos do agente, e isto gerava problemas sérios porque o agente podia saber
mais do que a pessoa média. Daí que a formulação inicial da teoria da causalidade adequada foi
corrigida – os específicos conhecimentos do agente foram introduzidos à posteriori no juízo de
prognose póstuma.

No fundo, nós vamos olhar para aquilo que é expectável de acordo com o normal acontecer que deriva
do comportamento do agente e que dá origem a um determinado processo causal que evoca um certo
resultado. No caso prático, vamos perguntar à pessoa média, colocada no momento e no lugar do
agente A, com os conhecimentos do agente A, se era ou não previsível que ao dar um empurrão à
vítima, que essa pessoa viesse a sofrer ofensas à integridade física graves (art. 144.º CP) derivadas de
um acidente rodoviário. Como é óbvio, podemos dizer que é um resultado previsível, mas de
verificação rara. Na verdade, a Prof.ª MFP é crítica em relação a este raciocínio, porque pode criar
alguma vagueza. Se repararem bem, estou a fazer apelo àquele juízo em abstrato e em concreto. Olhar
em abstrato para a hipótese e em concreto. Não olhamos só para a conduta e para o resultado, mas
tudo desde o comportamento até ao resultado. No permeio temos o processo causal. A conduta dá
origem a um determinado processo causal e temos de ver se é esse processo causal que tipicamente
dá origem ao resultado do modo como em concreto ele se verificou.

Assim, no caso, conseguimos verificar que esse processo causal não enquadra nem compreende
tipicamente o resultado (ofensa à integridade física grave) do modo em que tipicamente ocorre. Por
isso, a teoria da adequação que até temos consagrada no regime do art. 10.º/1 CP – até viram no
acórdão do STJ de 15/12/2011 – há de facto acolhimento na jurisprudência para efeitos de imputação
objetiva. Podemos concluir que não poderíamos imputar o resultado mais grave – isto é – ofensa à
integridade física grave nos termos do art. 144.º CP; podíamos imputar o quê? A ofensa à integridade
física simples do art. 143.º CP porque é isso eu tipicamente emana de um empurrão – a pessoa cai de
acordo com um processo causal normal.

Na verdade, pela teoria da adequação já teríamos o problema resolvido, mas temos de dominar todas
as teorias – e vamos ver a resposta da teoria do risco. A Prof.ª MFP segue a teoria da causalidade
adequada, e em geral oferece resposta adequada aos problemas de imputação objetiva, exceto a
diminuição do risco e os problemas do risco permitido.

Atenção porque esta teoria do risco é a preferida dos alunos, mas raramente é bem aplicada. O que é
importante é que percebem que a teoria do risco tem três patamares muito importantes, sendo que
a aplicação dos patamares é sucessiva, e só nos problemas mais agudos é que chegamos ao terceiro
patamar, que se prende com o alcance do tipo ou esfera de proteção da norma.

Só podemos imputar o resultado à conduta quando:

1. O agente cria um risco não permitido e a ação tenha criado um risco não permitido para o
bem jurídico que está protegido pelo tipo; ou então quando tenha aumentado/incrementado
ou impulsionado o risco não permitido;

No nosso caso prático, o agente cria um risco proibido que está protegido pela norma. Isto não chega.

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Porque é preciso:

2. Conexão do risco: esta conexão do risco exige que o perigo criado/aumentado pelo
comportamento do agente se materialize no resultado típico que se verificou. Ou seja, é
preciso que aquele perigo que traduz a potencialidade de dano para o bem jurídico se tenha
efetivamente materializado no crime concreto, no resultado que se verifica. Temos de olhar:
a. Para um momento ex ante – quando o agente atuou para apurar as características do
crime;
b. Para o momento ex post – verificar concretamente se o perigo foi produzido naquele
resultado em concreto – criou/aumentou o perigo foi o que se materializou.

No fundo, o que Roxin procura aqui é um juízo de prognose póstuma objetiva.

O agente, no caso, criou o perigo, mas esta materialização do crime só ocorre na ofensa à integridade
física simples (art. 143.º), não relativamente à ofensa à integridade física grave (art. 144.º) porque
falta a realização do perigo.

Em suma: à luz da teoria da CSQN a conduta de A foi a causa de tudo, nomeadamente a do evento
mais grave, porque se eliminarmos a conduta de A nada teria acontecido (teoria das condições
equivalentes); à luz da teoria da adequação e de acordo com o juízo de prognose póstuma, uma pessoa
média colocada no momento e lugar da agente A, com os conhecimentos da agente A, só conseguiria
prever (quer em abstrato, quer em concreto) ofensas simples – não as mais graves. Portanto, só
conseguiríamos imputar o crime do art. 143.º, praticado com dolo (art. 14.º/1), que seria ilícito,
culposo e punível; à luz da teoria do risco, o agente criou um risco proibido para o bem jurídico
protegido no art. 143.º que não se materializou no evento mais grave (art. 144.º) – só ao evento
previsto no art. 143.º CP.

CASO “DUARTE E COMPANHIA”

Na sequência de uma altercação no trânsito, Duarte e Eduardo iniciam uma acesa


discussão. A certa altura, depois de trocados insultos, Duarte pega numa pequenanavalha
que tinha consigo e fere Eduardo, deixando-lhe um corte superficial no antebraço, que,
todavia, sangra abundantemente. Naquele momento passava por ali uma ambulância,
cujos ocupantes imediatamente socorrem Eduardo e o transportam para o hospital, mas
Eduardo acaba por morrer devido à hemorragia, pois era hemofílico.

Poderá Duarte ser responsabilizado criminalmente?

O que está aqui em causa são as características especiais da vítima, portanto urge saber se o agente
pode ser responsabilizado por um evento mais grave que ocorre por força das características especiais
da vítima – aqui está um caso de homofilia, mas podemos pensar p.e. num caso em que alguém dá
uma limonada carregada de açúcar a um diabético tipo 1 – que pode provocar a morte. Nestes casos,
em que a vítima tem certas características que levam a que uma certa conduta acione um processo
causal que produza um evento muito grave e que não é típico, nem normalmente previsível – e coloca-
se saber se o resultado mais grave pode ser imputado ou não.

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Todos percebem que à luz da teoria CSQN é sempre causa. Nós suprimos mentalmente a conduta de
B e o resultado não se verificava.

Quando no caso anterior referimos que a teoria da causalidade adequada não fazia menção aos
conhecimentos especiais dos agente – nós aqui conseguimos perceber pelo contexto da hipótese que
estas duas pessoas não se conheciam. Tudo isto se dá numa altercação no trânsito, portanto,
dificilmente D sabia que E era hemofílico – as pessoas não trazem na testa que são hemofílicas ou que
têm diabetes ou HIV. Portanto, a questão é: se por hipótese eles fossem cônjuges, D saberia que E era
homofílico, e também sabe que a coagulação não se processo da mesma forma do que na
generalidade das pessoas. Portanto, qualquer corte superficial pode provocar um sangramento
absolutamente fatal. O que seria se D e E fossem cônjuges e se D fosse portador de toda esta
informação e durante uma discussão fizesse esse corte ao de leve e acabasse por morrer? Então
aplicando um juízo de prognose póstuma sem os conhecimentos específicos do agente não seria
previsível, era completamente anómalo, portanto não vamos imputar o crime de homicídio, mas o
crime de ofensa à integridade física simples. Será isto coerente se o agente conhecia tais
características da vítima? Não. Por isso é que a teoria da causalidade adequada teve de ser corrigida,
para passar a comportar também os conhecimentos específicos do agente. Porque o agente pode
saber mais do que a pessoa média. É preciso que a pessoa média saiba tanto como o agente para
apurar a previsibilidade.

Assim, se D e E forem cônjuges, D sabe que E é homofílico, logo a pessoa média, colocada nas
circunstâncias, tempo e lugar do agente, com os conhecimentos do mesmo, poderia obviamente
prever que um corte superficial no braço daria origem a um processo causal que podia desenrolar o
evento morte. Isto é completamente oposto ao caso que estamos a analisar que, no contexto de uma
briga no trânsito em que o agente não conhece a vítima, perguntamos á pessoa média se no contexto,
tempo e lugar do agente com os conhecimentos, poderia prever que um corte no braço levaria ao
resultado morte. Isto é previsível, mas de verificação absolutamente rara.

Teoria do risco: aqui, olhando para o caso concreto: quando o agente com a sua conduta corta o braço
de E, nós claramente temos um perigo criado para o bem jurídico tutelado pela norma. Quer para a
norma do art. 143.º, quer para a norma do art. 131.º - é um perigo proibido. Mas isto não chega.
Temos de ver como é que o risco proibido que foi criado para o bem jurídico se materializou no
resultado típico. No momento ex ante, temos de olhar para as concretas características do perigo
criado – que foi o corte no braço; no momento ex post temos de apurar que perigo foi produzido
concretamente naquele resultado. Mas agora já sabemos quais os concretos conhecimentos que está
dotado o agente: os normais de uma pessoa média diligente: não sabe mais, nem menos. Então,
através deste juízo de prognose póstuma objetivo – quando olhamos para o momento em que a ação
é praticada só conseguimos materializar este crime em ofensa à integridade física simples do art. 143.º
CP. Não conseguimos materializar num evento mais grave que é a morte. Porquê? O Prof.º Roxin faz
apelo ao princípio da intervenção mínima do Direito Penal, ao princípio da necessidade, ao princípio
da proteção do bem jurídico tutelado. Portanto, só podemos, dentro desta lógica, materializar o perigo
criado naquilo que são ações perigosas para o bem jurídico, ou seja, para essa concreta materialização
que ocorre. Significa que, para todos os efeitos, a conexão de risco só ocorre por referência ao evento
menos gravoso que são as ofensas à integridade física simples. Só conseguiríamos imputar o crime de
ofensa à integridade física por aplicação do art. 143.º CP.

Ação típica, ilícita, culposa e punível.

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CASO “AEROPORTO”

Fernando, agiota e exímio atirador, sabendo que Guilherme se prepara para fugir
do país para não lhe pagar uma elevada quantia em dinheiro, persegue-o até ao aeroporto
e:

a) Dispara mortalmente sobre Guilherme, antes de este poder entrar num avião
que veio a explodir 30 minutos mais tarde devido a um ataque de um bombista
suicida;
Causalidade hipotética ou virtual vs. Comportamento lícito alternativo. Qual o critério de distinção?
Nos casos de causalidade hipotética ou virtual o que acontece é que se não fora a causa real, o evento
em causa sempre se produziria por via dessa causa hipotética ou virtual – quer por comportamento
de terceiro quer por uma causa natural – P.e. este causa (comportamento de terceiro), carrasco
pronto para acionar a cadeira elétrica e alguém que se antecipa e dispara contra a vítima, ou nos casos
de assaltos em massa dos EUA (se eu não levar esta televisão, estão aqui 50 pessoas preparadas para
a levar). Poderíamos pensar que as condições de segurança já estavam efetivamente perdidas, e nesse
sentido o resultado verificar-se-ia sempre – o resultado desvalioso estava pronto para ocorrer.

Podemos pensar nestes casos que, como as condições de segurança já estão perdidas, já não seria
necessária a intervenção do Direito Penal. Mas é uma construção falaciosa porque a necessidade de
proteção de bens jurídicos, porque pressupõe o princípio da legalidade que seja o autor da causa real
aquele que é efetivamente responsabilizado do ponto de vista jurídico-penal.

Claro que, pela teoria da CSQN não conseguiríamos encontrar uma causa imputável ao nosso agente
F, porque se suprimíssemos mentalmente a conduta de F – o disparo – G sempre morreria em virtude
do ataque terrorista – ou seja, o resultado mantém-se.

Do ponto de vista da teoria da adequação, é previsível a verificação normal e pela teoria do risco
chegamos exatamente à mesma conclusão que é a imputação do evento morte à conduta de F.

Para além da discussão em torno da perda de condições de segurança do bem jurídico e do critério de
fronteira entre casos de causalidade hipotética ou virtual em face ao comportamento lícito
alternativo: i.e. enquanto que as nas situações de causalidade hipotética ou virtual essa causalidade
não se chega a verificar – deriva da conduta de um terceiro ou deriva de uma causa natural; o
comportamento lícito alternativo na verdade, deriva da conduta do próprio agente – o agente controla
os meios, mas não tem controlo do resultado; há aqui outra questão nuclear que é a posição de
Kaufmann.

Kaufmann considera que nestas situações em que se verifica uma intensificação do processo causal
de modo tal a que a verificação do resultado é inevitável, nestas situações e segundo a lógica de
Samson, a ideia é a de que o resultado desvalioso ocorre inevitavelmente. Portanto, as condições de
segurança do bem jurídico estão perdidas para todos os efeitos. Então não faz sentido estarmos a
imputar um resultado que é inevitável à conduta do agente que o praticou. Ele por acaso é o autor da
causa real, mas temos sempre ali necessariamente uma causa hipotética ou virtual a materializar-se
no resultado a jusante. Não se pode imputar o resultado à conduta do agente porque o resultado
desvalioso sempre ocorreria. Nessa medida, o desvalor do resultado desaparece. A única coisa que
permanece é o desvalor da ação do agente. Por isso justifica-se que não se impute o crime consumado,
mas punir o agente por aquilo que ele traz – o desvalor da ação – punido por tentativa.

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Claro que esta construção levaria caminhos muito tenebrosos – o Prof.º Roxin faz uma crítica enorme
partindo de um caso concreto: A moribundo é alvo de negligência médica e acaba assim por morrer
por morrer da negligência – na lógica de Kaufmann, o resultado era inevitável por causas naturais – se
era inevitável, o desvalor estava neutralizado e só poderia ser responsabilizado pelo desvalor da ação.
Mas se, estamos a falar de negligência médica – o desvalor da ação desaparece porque nos crimes
negligentes temos desvalor do resultado e não da ação. Portanto, no limite, o agente nem seria
responsabilizado jurídico-penalmente. Assim, esta construção deixaria completamente desprotegidos
aqueles que estão numa situação em que o evento morte é perto de inevitável por causas naturais –
ficaria completamente desprotegido que é inaceitável à luz do princípio da legalidade.

b) Prepara-se para disparar sobre Guilherme, mas um agente da PSP à paisana


apercebe-se e, por estar perto de Guilherme, consegue empurrá-lo, salvando-o
de morte certa, mas causando-lhe ligeiras escoriações na face e nas mãos;
Identificação do problema jurídico: diminuição do risco. Temos aqui um processo causal que emana
da conduta de F, e há uma interferência nesse processo causal que está em curso por parte do agente
da PSP. Essa interferência contribui para uma diminuição da intensidade da lesão do bem jurídico. No
fundo, o agente da PSP não inicia um novo processo causal – só temos um mesmo processo causal
cujos efeitos e resultado se torna menor pela intervenção do agente da PSP.

No fundo, o agente da PSP nestas situações típicas de diminuição do risco, consegue colocar a vítima
numa posição melhor daquela que derivaria se o processo causal inicial se tivesse concretizado. Nestas
situações de diminuição do perigo, o agente coloca o objeto da ação (“outra pessoa”) numa posição
jurídica melhor – consegue contribuir para uma diminuição da lesão do bem jurídico, temos só ofensa
à integridade física simples (art. 143.º), em vez de homicídio (art. 131.º).

Nós conseguimos perceber que tanto a teoria da CSQN como a teoria da causalidade adequada, não
ofereceriam uma resposta satisfatória para estes casos porque é evidente que há causa. Se o agente
da PSP empurrou conhecendo os efeitos, tal como uma pessoa médica colocada nas circunstâncias,
tempo e lugar podia prever – e até do ponto de vista da imputação subjetiva, o agente pode ter
conhecido e querido. O que significa, portanto, que a teoria da CSQN e causalidade adequada
promoveriam a imputação do resultado à conduta e iriam resolver o problema em sede de ilicitude
através das causas de justificação. Será que faz sentido? Não parece: temos um exemplo claro de uma
situação em que a causalidade adequada não oferece uma resposta satisfatória ao problema de
diminuição do risco.

No entanto, se aplicarmos a teoria do risco verificamos que não houve: nem criação de perigo para o
bem jurídico, nem aumento/potenciação/incremento do perigo já criado. Portanto, a teoria do risco
nega logo no primeiro patamar de imputação a existência de um perigo a montante.

O Prof.º Taipa de Carvalho que é defensor da teoria da causalidade adequada, entende que esta teoria
ainda dá resposta adequada aos problemas da diminuição do risco, não sendo necessário fazer apelo
à teoria do risco. Entende, na verdade, que esta conduta do agente que intervém no processo causal
em curso e diminui a intensidade de lesão do bem jurídico, ou seja, coloca o bem jurídico numa
situação melhor é na verdade uma conduta valiosa, porque o agente está a promover uma ação
salvadora, cujas são apreciadas no ordenamento jurídico. Assim, segundo o Prof.º Taipa de Carvalho
entende que não há desvalor da ação (fórmula típica normativa). No entanto, esta já não é uma teoria
da causalidade adequada, mas sim uma génese com bastantes alterações.

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Esta lógica de rendimento absoluto para resolver os problemas de diminuição do risco não merece
acolhimento pacífico na doutrina. O Prof.º Paulo de Sousa Mendes é muito crítico da teoria do Risco.
Entende que nas situações de diminuição do risco é preciso fazer um análise comparativa entre o
processo causal real (aquele que acontece) e o processo causal hipotético (a maior lesão do bem
jurídico – que seria a vida) do evento. Para PSM tudo depende de saber se o perigo criado ex ante se
vem ou não verificar ex post, mas isso não é objetivamente uma questão que se explique pela
diminuição do perigo portanto, não é um critério de imputação objetiva que vai operar, porque o que
é central é o grau de intensidade de lesão do bem jurídico. Sempre que estejamos diante de ações
salvadoras, justifica-se não punir o agente pelo princípio da proporcionalidade na aferição da
responsabilidade.

Esta lógica da teoria do risco não é pacífica, nem vai sem críticas. O Prof.º Figueiredo Dias utiliza a
teoria do risco como um corretivo. Normalmente os alunos gostam muito, mas não está livre de
críticas.

c) Quando Guilherme aguardava no lounge do aeroporto, coloca uma dose de


veneno na n bebida deste, enquanto Ivo, seu parceiro neste empreendimento,
coloca veneno na comida. Guilherme tudo ingere, vindo a morrer pouco depois.
A autópsia revela que foi a combinação de ambas as doses de veneno que ditou
a morte de Guilherme. Quid juris?
Todos conseguem perceber o problema jurídico que está em causa: que há causas diferentes e que é
pela conjugação das diferentes causas que o resultado se produz. Isto pode acontecer quando os
agentes estão em coautoria e o processo causal é dominado por todos por via de comparticipação
criminosa. Pode haver processos causais cumulativos – todos têm uma causa parcelar que contribui
para a verificação do resultado, mas é a conjugação das diferentes causas que dá origem ao resultado
– aqui nestas causalidades cumulativas, os agentes não conhecem nem conseguem prever o efeito
que advém da conduta do outro, não têm conhecimento do comportamento paralelo – não há
previsibilidade – podemos ter problemas sérios. P.e. este caso se não soubessem.

O mesmo acontece nos problemas de causalidade paralela ou alternativa – porque nestes casos temos
duas ou mais causas que, individualmente consideradas são aptas a produzir o evento, mas nenhum
agente conhece e consegue prever a atuação do outro. Temos um problema se a prova não passar a
dúvida em favor do arguido – não se consegue apurar qual das causas é que produziu o efeito.

Porque a teoria da CSQN não oferecia uma resposta satisfatória na sua versão inicial na fórmula da
supressão mental, e como a teoria da causalidade adequada é perspetivada como corretiva desta,
sentiu a Prof.ª MFP a necessidade de apresentar as fórmulas mais recentes da teoria da CSQN. Se se
verificou X então ocorreria Y?

• Fórmula INUS – “insufficient but necessary part of a condition which is itself


unnecessary but sufficient for the result” – pode ser interessante para explicar esta questão.
o P.e. art. 272.º CP – olhamos para uma floresta, para o incêndio de uma floresta quais
são as causas possíveis? Uma beata, um fósforo, calor, raio de sol, etc. Temos várias
causas possíveis. Na verdade, nenhuma destas causas é necessária e, isoladamente
consideradas, nenhuma é suficiente. Mas isolando uma dessas causas – um fósforo –
não é necessário para provocar um incêndio, nem é suficiente, precisamos de outros

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elementos, precisamos de folhas, vento e calor. Isto significa que o fósforo,


isoladamente considerado, não é causa e até pode ser causa insuficiente, mas
combinado com outros elementos pode contribuir para uma condição global (com
outras causas somadas) que produz o evento.
o Na fórmula INUS nós temos uma causa que, isoladamente considerada, pode ser
necessária e insuficiente, mas pode ser determinante para a causa global que produz
o evento. Para todos os efeitos, não há aqui determinismo das causas – no sentido em
que não é por termos um fósforo nas mão que irá originar um incêndio, mas sempre
que temos um fósforo na mão, combinado com outras causas, podemos estar a
contribuir para uma condição global.
o Mas, neste caso tivemos de chamar à colação outras causas – por isso a nossa causa
(que é o fósforo) é fraca; que assenta em muitos juízos e “sês” que não nos dá uma
resposta satisfatória. Precisamente por isso, a fórmula INUS foi reformulada e deu
origem à:
• Fórmula NESS - necessary element in a sufficient set.
o Imaginem que estamos todos a ter aulas num dia de tempestade e estão a carregar o
computador numa ficha. Premissa 1: “há uma tempestade”; Premissa 2: “os
computadores vão abaixo todos ao mesmo tempo”. Qual a nossa conclusão? A
tempestade foi a causa do crash dos computadores – portanto, isto siginifica que esta
causa explica de forma suficiente e bastante o resultado que nós identificámos aqui.
Assim, se ocorre X, então vamos ter essa tempestade (X) como causa suficiente para
Y (crash dos computadores).
o Portanto, a condição que nós identificamos – premissa 1 – surge como parte de uma
condição necessária e que é em si mesma suficiente.
o Quando aplicamos a fórmula NESS ao caso concreto; nós podemos ir em busca destas
fórmulas.
• P.e. causalidade hipotética ou virtual: se A dispara sobre B, nós sabemos que a premissa 1 (A
disparar sobre B) é em geral apta a produzir o evento que é a morte; e não precisamos de
olhar para as outras condições – porque esta já é suficiente;
• Esta fórmula NESS, que é corretiva da CSQN, já consegue resolver este tipo de problemas.

Para a Prof.ª MFP apesar de tudo, o que é determinante aqui, o critério determinante, é da
previsibilidade ou não do resultado. A lógica – da conexão da previsibilidade é o que temos de
encontrar relativamente a estas causas.

Aula n.º 9 – 04/05/2021

(Imputação objetiva. Imputação subjetiva)

CASO “FESTA DE S. JOÃO”

Para a preparação das festas de S. João na aldeia, João estava às primeiras horas
da manhã a colocar luzes na fachada da casa de Maria, sita no largo da igreja. Assustada
com um barulho estranho junto à janela do seu quarto, Maria acorda, levanta-se e abre
a janela, sem emitir ruído. Ao ver surgir inesperadamente o rosto de Maria, João assusta-

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se, desequilibra-se e cai desamparado, fraturando a pelve, o que determinou dor


permanente e défice neurológico, concretamente parestesia e perda de reflexos.

Quid iuris?

O evento mais grave aqui é a ofensa à integridade física grave do art. 144.º CP. Mas, à luz da teoria
CSQN era causa – o que não é aceitável. À luz da teoria da causalidade adequada, não seria previsível.

À luz da teoria do risco, para todos os efeitos, não é sequer criado um risco proibido, porque faz parte
do risco normal de vida: abrir janelas, conduzir, manusear foguetes, etc. Estamos sempre dentro do
risco normal de vida. O que leva a alguns autores a considerar que sempre que estamos diante de um
risco proibido podemos chamar à colação princípios como a confiança, ou da boa adequação e
excluímos preliminarmente qualquer questão em torno da tipicidade.

O Prof.º Américo Taipa de Carvalho, que é muito avesso à teoria do risco – considera que a teoria da
casualidade adequada contém em si as fórmulas necessárias para resolver os problemas mais difíceis.
Entende que aqueles casos em que o marido compra o bilhete de avião para a esposa viajar e cair –
estamos sempre nos casos do risco permitido. Portanto, estas ações não são sequer penalmente
relevantes e não devem ser equacionadas nestes termos. Por outro lado, tem um princípio da
confiança – que pode excluir a ponderação da imputação objetiva. O princípio da confiança releva em
sede de determinados contextos, nomeadamente em situação rodoviária. Nós assentamos no
princípio da confiança quando estamos a conduzir: se alguém emite sinais, então nós confiamos que
ele irá ter o efeito espectável. Como é que este princípio da confiança se materializa? P.e. se alguém
emite um pisca para a direita, partimos do pressuposto que se o pisca está para a direita é porque vai
efetivamente virar à direita. O princípio da confiança impede-nos de acreditar que ele irá virar para a
esquerda. Há um conjunto de situações, que derivam do princípio da confiança que fazem com que a
imputação objetiva nem seja equacionada.

A mesma coisa acontece com o princípio da adequação social: há atividades perigosas no dia-a-dia –
p.e. em fábricas, circulação rodoviária, na produção de determinados produtos, etc. Em todos estes
casos há comportamentos que são adequados do ponto de vista da adequação social, e, portanto, não
tem qualquer relevância típica. A adequação social – ATC – corretivo típico autónomo porque permite
excluir o problema da imputação objetiva.

Neste caso em concreto estaremos diante de um risco normal de vida que à luz da teoria da adequação
torna completamente imprevisível o resultado; há luz da teoria do risco não cria um risco proibido,
não passamos do 1.º patamar – não há um risco proibido para os bens jurídicos tutelados pela norma,
e logo, não há imputação objetiva. Só para a teoria da CSQN haveria imputação.

CASO “TROCAS & ALERGIAS”

Armando, vítima de um acidente rodoviário, foi transportado para o hospital mais


próximo, onde os médicos rapidamente constataram a necessidade de o submeter a uma
cirurgia de carácter urgente. Urbano, médico anestesista, com a pressa e sem se
aperceber, trocou o frasco da anestesia por um outro similar que continha uma

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substância venenosa e ministrou-a a Armando, que veio, por isso, a morrer, ainda antes
de dar entrada na sala de operações.

Todavia, Armando padecia de uma rara alergia ao excipiente anestésico


ministrado naquele estabelecimento de saúde que nunca poderia ter sido detetada em
tempo útil, pelo que este teria morrido.

Quid iuris?

Haverá causa hipotético ou virtual quando se não fosse a causa real, haveria uma causa hipotética de
terceiro ou causa natural que iria produzir o resultado. No caso do comportamento lícito alternativo,
o problema jurídico é outro. Tudo é explicado pelo próprio comportamento do agente que tudo
executa. Nós não temos aqui um processo causal paralelo a decorrer que derive da conduta de terceiro
ou eventos naturais. Temos, na verdade, um processo causal que deriva da conduta do agenteem que
até certo momento controla, mas não tem poder de controlo sobre o resultado. O resultado irá
acontecer independentemente do comportamento do agente.

Para todos os efeitos nós temos a causal real que deriva do processo causal que o agente promove, e
temos paralelamente, uma hipótese intelectual através da qual nós vamos ponderar se, em função
dos dados que apuramos a posteriori, o resultado se teria continuado a produzir caso o agente tivesse
adotado o comportamento lícito alternativo, i.e., se o agente tivesse atuado segundo a norma.

Numa situação como esta, a doutrina considera que o agente, mesmo que adotasse o comportamento
lícito alternativo e o resultado se verificasse na mesma, o agente não tem controlo sobre a verificação
do resultado – ocorre sempre. Significa que não estão reunidas as condições de igualdade deste
agente relativamente às outras pessoas, porque mesmo atuando licitamente o resultado iria sempre
produzir-se. Isto deve ser ponderado pelo ordenamento jurídico porque desaparece aqui a
necessidade de proteção do bem jurídico, na medida em que aconteceria sempre.

Em termos práticos, não é a conduta do agente que explica o resultado que ocorre. Seria,
absolutamente inútil punir o agente numa situação como esta porque, mesmo que adotasse o
comportamento lícito alternativo, não conseguiria evitar o resultado. O cumprimento da norma seria
inútil. Assim sendo, sempre que esta dúvida razoável exista, entende a doutrina que não estão
reunidas as condições para imputar o resultado à conduta do agente.

O Prof.º Roxin tem uma construção, partindo da fórmula da probabilidade próxima da certeza que o
leva a considerar que ninguém deve ser responsabilizado no caso do pêlo de cabra que não foi
desinfetado e infetou os trabalhadores da fábrica, mas que mesmo que tivesse sido desinfetado, iria
infetar na mesma. Mas já resolve de forma oposta o caso do condutor embriagado – ex. condutor que
conduz com uma taxa de álcool no sangue de 1.9 g/L, e um peão atravessa-se na estrada e o condutor
atropela-o; para Roxin, a imputação objetiva ocorre sempre, não dá relevância nenhuma ao
comportamento lícito alternativo, porque para ele o que é relevante aqui é o condutor ter violado a
norma; portanto, se viola a norma, é responsável pela situação. Quer num caso, que noutro, não há
um princípio de dúvida razoável para o réu porque há a violação de uma norma de dever – a
responsabilidade jurídico-penal deve ser imputada. Na verdade, havendo a certeza absoluta que o
resultado se iria verificar – probabilidade próxima da certeza à luz da teoria da elevação do risco.

A maioria da doutrina (incluindo MFP), sempre que há uma dúvida razoável deve atuar a favor do réu.

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Para precisar: quando aplicam a teoria do risco, o problema do comportamento lícito alternativo é
analisado a propósito da conexão do risco.

Acórdão do TRL de 26.03.2008. Temos aqui três problemas jurídicos: 1) problema da esfera de
proteção da norma porque para todos os efeitos a agente não respeita a distância de segurança e
provoca uma ultrapassagem em cima de uma passadeira; 2) a vítima faz um sinal de viragem que não
cumpre, ou seja quebra o princípio da confiança podendo estar num caso de auto-colocação da vítima;
3) comportamento lícito alternativo. O comportamento lícito alternativo releva ao nível da conexão
do risco – 2.º patamar da teoria do risco. Mas os problemas de auto-colocação da vítima já se relaciona
com o terceiro patamar da análise da teoria do risco – podemos até ter um caso de criação do perigo,
conexão do risco, mas não ter a vertente normativa de análise e negar a imputação objetiva.

Esta é uma discussão que releva no plano normativo, porque, por um lado em relação ao CLA em que
a distância de segurança não tenha sido conservada, não há garantias que o resultado se iria produzir
se fosse, portanto, gera uma questão de dúvida razoável. Depois, iniciar a ultrapassagem junto a uma
passadeira tem uma norma de proibição no Código da Estrada, mas o que se visa proteger são os
peões – os ciclistas não são peões – logo a esfera de proteção da norma não é dirigida à vítima do
caso, portanto não fazia sentido punir o agente por ter violado uma regra do código da estrada que
impedia a ultrapassagem na passadeira, porque essa proibição tutela a vida e integridade física dos
peões e não dos outros condutores. Por outro lado aqui, há uma auto-colocação da vítima, porque,
para todos os efeitos, esta vítima não teve uma atuação diligente, e é aquilo que Roxin faz
corresponder ao terceiro patamar de análise da teoria do risco em que pode haver uma auto-
colocação da vítima numa situação de perigo e isso não deve gerar no plano normativo
responsabilidade jurídico-penal do agente.

Acórdão TRP – Pitbull – preso num cadeado – o agente tem essa cerca, mas tem uma parte amovível.
Esfera de proteção – foi cumprida. O cão estava sempre preso. Logo aí tínhamos um problema. No
terceiro patamar, a senhora foi para dentro da propriedade. Se era uma vizinha – sabia perfeitamente
que o cão existia – o proprietário do cão tomou todas as diligências. É muito difícil porque implica
imputação objetiva.

CASO “VIH”

Alexandre recebe o diagnóstico de que é portador do vírus VIH e logo informa a


sua nova namorada, Berta, da malograda notícia. Apesar da insistência de Alexandre
para que passem a ter relações sexuais protegidas, Berta sempre recusa. Algum tempo
depois, e sem que Berta tivesse mantido relações sexuais com outros parceiros, fica a saber
que tem SIDA.

Quid iuris?

Numa situação como esta, não só temos um perigo que já existe, como temos materialização de
acordo com um juízo ex ante, quer de acordo com o juízo ex post daquele perigo que foi criado no
resultado que se verifica. Ou seja, os primeiros patamares estavam preenchidos, mas quando
chegamos ao terceiro patamar, ao problema de saber se o resultado se encontra dentro do alcance
do tipo, Roxin identifica os grupos e construções de casos em que verdadeiramente, ou há uma auto-
colocação – e. quando a vítima se precipita no meio do lago de gelo mais frágil e cai; ou nas situações
de hétero-colocação do perigo, p.e. pede a um barqueiro para o levar de uma margem para outra e

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há um naufrágio. Será que pode haver a imputação? Em todos estes casos, Roxin responde
negativamente – não nega que haja criação ou aumento de perigo consoante os casos, não nega que
haja risco, mas este resultado não se encontra no alcance do tipo – o tipo pretende evitar a criação de
perigo ou lesão por terceiros, não pelo próprio. Se é o próprio que se autocoloca ou pede a um terceiro
que o coloque numa situação de perigo ou risco, não faz por isso sentido que um terceiro seja
responsabilizado pelos comportamentos da vítima.

CASO “PARQUE DE SKATE”

Num parque de skates, ao ver as “manobras” de Fernando, Gonçalo decide furtar-


lhe o skate, mas confunde os skates e acaba por levar consigo o de Horácio, que é muito
parecido.

Quid iuris?

O problema jurídico é o erro sobre a identidade do objeto. O agente para todos os efeitos supõe que
está a subtrair o skate de Gonçalo quando na verdade leva a coisa de Horácio. Lembram-se quando
olhamos para as diferentes categorias da TGIP? Numa situação como esta nós diríamos que há uma
ação dominada pela vontade, típica do crime de furto do art. 203º CP, e que todos os elementos do
tipo estariam reunidos, situando-se o problema jurídico central na imputação subjetiva,
concretamente no erro sobre a identidade do objeto – urge saber se o dolo está preenchido ou não.

Recordam-se que foi explicado: temos de começar o elemento subjetivo geral que é o dolo. O dolo é
composto por dois elementos nucleares:

1. Elemento intelectual: é necessário que o agente represente e conheça todos os elementos


objetivos que estão previstos no tipo. Quais são eles? Os elementos descritivos e/ou fácticos
e os normativos (quando exista). Se os representar a todos – está preenchido – mas ainda
temos de olhar para o 2.º elemento do dolo;
2. Elemento volitivo: está associado à vontade. E a forma de vontade pode ser:
a. Dolo direto – art. 14.º/1;
b. Dolo necessário – art. 14.º/2;
c. Dolo eventual – art. 14.º/3. S

Serve isto para dizer que primeiro é necessário que os agentes representem fielmente a realidade, e
representar fielmente significa conhecer os elementos que estão descritos no tipo. Depois, se os
representar, é necessário saber se os quis efetivamente – ou seja, se teve vontade e qual foi a forma
da vontade.

Vamos fazer com os dados da hipótese:

• O agente sabia que era agente (“quem”)? Sabia;


• Sabia que estava a praticar a conduta “subtrair”? Sabia;
• Sabia que estava a dirigir a sua conduta ao objeto “coisa”? Sabia;
• Sabia que a coisa era móvel e alheia? Sabia.

Este agente tem uma representação completamente fiel dos elementos que estão descritos no tipo.
Então qual é o problema? O agente não representou totalmente a realidade fáctica; mas representou

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a realidade fáctica. De certa forma há uma desconformidade com o real. No entanto, nem toda a
desconformidade com o real gera responsabilidade jurídico-penal. Só a desconformidade com o real
que seja tipicamente relevante. O facto de a coisa ser de H, em vez de ser de G não é relevante. Porque,
em geral, o que o legislador exige para efeitos de preenchimento do elemento intelectual do dolo é
que o agente represente o género do objeto de ação. O género é a coisa. E isso o agente representou.

Assim, vocês têm de olhar para a norma e perceber se os objetos que ele queria levar e o que ele
efetivamente levou são objetos tipicamente equivalentes. Portanto, sempre que há equivalência
típica, isto é, face àquilo que o legislador propõe na norma e o que o agente representa – há uma
desconformidade com o real, mas que não atinge o género da coisa. Para o legislador, o que é proibido
é subtrair coisas móveis alheias, se elas são da titularidade do A, B ou C, para efeitos do disposto do
art. 203.º CP, é manifestamente indiferente. Não podemos aplicar o art. 16.º/1 CP.

Erradíssimo aplicar o art. 16.º/1 quando não esteja em causa o erro sobre a identidade do objeto que
não é tipicamente relevante. A resposta correta seria que: temos uma ação dominada pela vontade;
típica do crime de furto do art. 203.º CP; os elementos objetivos: descritivos e normativos estariam
todos preenchidos; o elemento subjetivo geral que é o dolo estaria verificado porque o elemento
intelectual (o agente representou todos os elementos típicos, objetivos – descritivos e normativos);
podemos dizer que este é um erro suposição, porque o agente estava em erro quanto à titularidade
da coisa, mas não há a destemia típica – não há divergência porque os objetos são tipicamente
equivalentes, sendo irrelevante – não se aplica o art. 16.º/1 CP (só se aplica quando haja discrepância
típica entre o que o agente representa e o que se verifica no caso concreto); preenchido o elemento
intelectual – passamos para o elemento volitivo – e no caso em questão, o agente conheceu e quis, e
mais – tinha intenção ilegítima de apropriação – logo, é dolo direto art. 14.º/1 CP. É uma conduta
culposa e punível.

Atenção:

• O erro sobre a identidade do objeto pode ser relevante quando essa relevância seja
oferecida pelo legislador na descrição típica. Não é este o caso, mas esse erro pode ser
relevante quando a identidade faça parte da descrição típica.

Aula extra – 05/05/2021

(Imputação subjetiva)

CASO “A CAÇADA”

Decidido a matar Bruno durante uma caçada, António cava um fosso no trilho que
aquele normalmente utiliza, coloca no fundo estacas afiadas, e à superfície uma corda,
que puxaria quando Bruno se aproximasse, para que este tropeçasse e se precipitasse no
fosso. Por fim, dissimula tudo com folhagens. No dia da caçada, António segura a corda,
expectante. Vê um vulto aproximar-se, que toma por António, e puxa a corda. Quando se
aproxima do fosso para se certificar de que António estava morto, constata que matou
outra pessoa.

Quid iuris?

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Há realmente neste caso uma desconformidade com o real, mas já sabemos que nem toda a
desconformidade com o real tem relevância para o direito penal. Só há verdadeiramente erro sobre a
factualidade típica quando a erronia representação da realidade recai sobre uma circuntância que seja
relevante para o preenchimento do tipo, ou seja, é necessário quando chegamos à imputação
subjetiva começar por analisar o elemento intelectual do dolo e perceber se o agente representou
relamente todos os elementos que estão descritos no tipo.

No caso concreto, se nós perguntarmos se o agente sabia que era agente (“quem” do art. 131.º) a
resposta é positiva; uma vez que sabia que estava a realizar a conduta “matar”; se sabia que estava a
matar outra pessoa “outrem”, a resposata também é positiva; conheceu o resultado morte e até
conheceu todo o processo causal. Neste caso temos uma clara equivalência típica entre aquele que é
o objeto da ação tipificado na norma penal incriminadora e aquele que é o objeto da ação que o agente
vem efetivamente a atingir. Há efetivamente equivalência típica entre o objeto da ação.

Este também é um caso de erro sobre a identidade da pessoa, tal como no caso anterior, o objeto da
ação (outra pessoa) está efetivamente presente no momento e no lugar da conduta. Não é a vítima
que o agente queria, mas a identidade aqui não releva para efeitos de responsabilidade, pois o
legislador proíbe que se matem pessoas. Para efeitos do art. 131.º, saber se é a pessoa A ou a pessoa
B, ou a pessoa C é tipicamente irrelevante.

É verdade que nós podemos dizer que isto pode gerar erro sobre as motivações, mas esta motivação
em concreto não é tipicamente relevante. Diferente seria se o agente, conhecendo e querendo,
matasse outra pessoa, e quando fosse confirmar que era a sua própria cônjuge. Quando tal acontece,
é uma circunstância que é suscetível de revelar uma especial perversidade ou censurabilidade nos
termo do art. 132.º/2/b) CP, e então vejam que a identidade do objeto da ação pode efetivamente ter
relevância. Quando é que tem relevância? Quando tipicamente o legislador faça apelo a uma
identidade da ação. Nesta variante que estamos a construir é o que sucede. Numa situação como esta,
em que a identidade do objeto assume relevância típica – exatamente isso que sucederia, acabasse
por matar a sua cônjuge em vez de outra pessoa – o agente não representou a situação agravante que
qualifica o tipo de homicídio, e não poderíamos aplicar o art. 132.º/2/b) porque o agente não
representou a identidade da vítima que o legislador exige para efeitos do disposto no art. 132.º/2/b).
Nessa medida, o art. 16.º/1 seria parcialmente relevante, e imputar-se-ia o crime do art. 131.º porque
o agente na verdade representou que estava a matar outra pessoa.

Sistematizando: temos uma ação dominada pela vontade, típica do crime de homicídio (art. 131.º CP)
e todos os elementos objetivos do tipo estariam preenchidos, incluído a imputação objetiva. O
problema jurídico central está ao nível da imputação subjetiva e portanto, na análise do elemento
subjetivo geral que é o dolo. Neste caso, o erro recai sobre a identidade da pessoa, ou seja temos de
analisar em sede do elemento intelectual do dolo, seria um erro suposição, na medida em que temos
aqui uma desconformidade entre o que o agente representa e o que se verifica efetivamente no caso
concreto – há uma representação errónea da realidade, mas não há desconformidade típica, uma vez
que os objetos da ação são tipicamente equivalente. Sempre que fizermos este exercício, e o agente
representa um-a-um os elementos descritos no tipo, o art. 16.º/1 não pode ter aplicação. Do lado do
elemento volitivo, quanto à forma da vontade do agente, seria dolo direto. Haveria neste caso
desvalor da ação e desvalor do resultado, não havendo causas de justificação e seria uma conduta
culposa e punível nos termos do art. 131.º e 14.º/1 CP.

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CASO “ALTAS HORAS”


Álvaro, regressando embriagado de um jantar a altas horas da noite, pretende
voltar para casa no seu automóvel, mas dirige-se para outro carro, sem reparar que não
é o seu. No momento em que tenta abrir a fechadura é surpreendido por uma autoridade
policial.

Quid iuris?

Reparem uma coisa: não confundir o regime do art. 16.º/1 parte final com o regime do art. 17.º CP
porque a questão é outra. Basicamente aí é que se coloca a dúvida quanto à questão de saber se a
generalidade das pessoas sabem se determinado facto consubstancia um crime, e que, portanto,
estamos diante de uma conduta proibida. Aí é que se discute essa questão. É evidente que todos
sabem que é proibido matar, mas recordam-se que quando o crime contra maus tratos a animais foi
tipificado? Nem todos sabiam da nova tipificação penal, era uma tipificação nova, e o legislador até
lançou uma campanha publicitária para despertar a consciência da ilicitude nas pessoas e
conhecimento sobre a proibição.

Mas não é o problema que temos aqui! O agente sabe que é crime matar, o que aconteceu foi que o
agente estava equivocado quanto à representação da realidade e o seu erro incidia sobre elementos
factuais e normativos na letra do art. 203.º CP.

Sistematizando a resposta: é obvio que estamos diante de um caso de erro de perceção – o agente
aqui não representa fielmente a realidade. Por isso a perceção dos factos está aqui ferida. O problema
coloca-se logo ao nível cognitivo, ou intelectual, porque o agente não representou todos os elementos
descritivos ou normativos que o art. 203.º CP impõe. Para vocês não se esquecerem ou equivocarem,
abram os Códigos na norma e vejam elemento a elemento descrito no tipo se o agente representou
ou não. O agente não representou no caso concreto a conduta subtrair. Porque para todos os efeitos
o agente supôs que estava a colocar a chave no seu próprio veículo. Nunca lhe passou pela cabeça que
estava a praticar a conduta subtrair do art. 203.º CP. Por isso é um erro sobre um elemento descritivo,
um elemento fáctico que está no art. 16.º/1 – “erro sobre as circunstâncias do facto” – todo o art. 16.º
é sobre as circunstâncias do facto. Portanto, todo o art. 16.º tem um problema cognitivo. O erro sobre
elementos do facto – que é o que temos aqui – mas também está em erro sobre um outro elemento:
o agente para praticar o crime do art. 203.º tem de subtrair uma coisa móvel alheia. Eles sabia que era
uma coisa móvel, mas não sabia que carro não era seu! Ele queria honestamente entrar no seu carro
e não no carro de uma pessoa qualquer. Isto significa, para todos os efeitos que o agente estava em
erro sobre o carácter alheio da coisa. Por isso estamos verdadeiramente perante o erro intelectual
sobre a factualidade típica do art. 16.º/1. Aplicando o art.16.º/1 qual é o efeito? Exclui o dolo!

Verdadeiramente a doutrina discute esta classificação: erro suposição, erro por ignorância, erro por
excesso, erro por defeito; José António Veloso – faz esta destrinça entre erro ignorância e erro
suposição: no erro suposição há uma representação errónea da realidade (que parece que é o que
sucede neste caso), enquanto que no erro ignorância há uma ausência total de representação – esta
classificação pode causar algumas dificuldades porque na verdade, o agente suponha que era o seu
carro e ignorava que era o carro de outra pessoa. MFP não se afeiçoa muito a esta destrinça. Quanto
ao erro por excesso e erro por defeito: no 1.º semestre trabalharam um livro da Prof.ª Teresa Beleza
e Frederico Lacerda da Costa Pinto – erro sobre as normas penais em branco – os critérios de distinção
são bastante interessantes. No caso do erro por excesso, para todos os efeitos, o agente faz menos do
que aquilo que pretendia fazer – faz menos porquê? Por exemplo queria matar uma pessoa e

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Direito Penal II – João Maria Falcão – TB – 20/21

confunde uma pessoa com um cão e não mata a pessoa que queria – é de excesso porque o facto
querido pelo agente tinha um grau de ilicitude muito maior. Ele queria mais. O erro por defeito é a
situação inversa: o agente faz, para todos os efeitos mais do que aquilo que queria. O agente faz mais
do que queria: o agente queria matar só um cão e confunde-se e mata uma pessoa.

Para todos os efeitos, é importante que percebam que falha o elemento intelectual do dolo a dois
níveis: quanto ao elemento descritivo conduta – “subtrair”, e quanto ao elemento normativo que se
prende com o carácter alheio da coisa. Gera um erro intelectual.

Ainda sobre estes (erros sobre elementos normativos) – importa que tenham presente que isto é de
facto muito importante para que o agente se consiga orientar para a consciência da ilicitude. O
conhecimento destes conceitos jurídicos. Mas, como a Prof.ª MFP explicou, o que é necessário é a
lógica de Mezger – da valoração paralela da esfera de um leigo. O que é isto? No fundo, o que se exige
ao agente é que conheça ou possa ter capacidade para conhecer o significado social de um certo
conceito que o legislador tipifica no CP. Recordem-se do exemplo da base dos copos – caso alemão
em que a base dos copos era usado para registar a conta do restaurante – se alguém adulterar essa
conta, pode, na verdade, estar a falsificar um recibo e gerar consequentemente responsabilidade
jurídico-penal. Assim, claramente o que o agente tem de conhecer é mais ou menos nitidamente
alguns dos efeitos práticos do conceito normativo previsto na norma. Portanto, tem de conhecer os
efeitos práticos. Tem de perceber qual o significado que o conceito assume na vida corrente em
sociedade. Porque pode ser indispensável para orientar o agente e permitir/compreender a ilicitude
do facto.

No nosso caso prático não há um problema de valoração do regime do art. 17.º - ou seja, o agente não
está em dúvida sobre o conteúdo do direito de propriedade e saber se a coisa é sua ou não porquenão
sabe muito bem qual o teor do direito de propriedade. O problema não é esse. Na verdade, o agente
sabe distinguir o que é seu e o que não é seu. O problema no caso é que o agente não sabe que aquele
carro não é o seu – é um problema de errónea perceção da realidade. O elemento intelectual não está
preenchido.

Portanto: temos uma ação dominada pela vontade; os elementos típicos do art. 203.º estão
objetivamente verificados e o problema central situa-se ao nível da tipicidade subjetiva, na análise do
elemento subjetivo geral que é o dolo, mais precisamente, ao nível do elemento intelectual ou
cognitivo; temos aqui um erro sobre a factualidade típica, tanto sobre elementos descritivos como
elementos normativos – enquadrando o caso no art. 16.º/1 é preciso acionar a sua consequência
jurídica que é a exclusão do dolo – que é sempre automática (coisa que não acontece no art. 17.º em
que depende sempre de uma valoração do julgador) – é uma das diferenças centrais entre o regime
do art. 16.º e do art. 17.º - portanto, sempre que enquadrem o caso no regime do art. 16.º, no n.º 1 –
o legislador determina (sem mais) a exclusão do dolo, é automática. Mas, do art. 16.º/1, temos sempre
de ir para o n.º 3 – exclui-se o dolo, mas fica ressalvada a punibilidade por negligência nos termos
gerais. O que é que isso significa? Significa que: esteja tipificado na lei um tipo negligente
correspondente; e que no caso concreto o agente tem efetivamente atuado com negligência. Nós
acabámos de excluir automaticamente o dolo do crime de furto (art. 203.º CP). Já sabem que a
esmagadora maioria dos crimes contra o património não estão tipificados na forma negligente. Se não
há – o art. 16.º/3 faz cessar a análise da responsabilidade jurídico-penal do agente. Não está
preenchida a categoria analítica da tipicidade, não há lugar a responsabilidade jurídico-penal.

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CASO “PERSEGUIÇÃO”

Óscar está em perseguição de Boby, cão de Luís, seu vizinho, para se vingar pela
morte do seu gato Malaquias. Quando o cão fica encurralado, Óscar pega na espingarda
e faz pontaria. No entanto, Óscar falha o alvo e vem a acertar em Berta, sem-abrigo que
se encontrava a dormir no beco e de cuja presença Óscar não se apercebera.

Quid iuris?

Para todos os efeitos, o regime dos arts. 387.º ss CP visa criar uma específica tipicidade aos maus-
tratos e morte de animais de companhia, mas não visa deixar desprotegidas as situações que antes da
introdução desse regime previstas na lei. Se olharem para o crime de dano – do art. 212.º/3 CP – a
tentativa é punível. Mesmo que consideremos que o crime tem uma moldura penal inferior a três
anos, não estaria verificada a orientação da meta-norma do art. 23.º/1, sempre teríamos a
possibilidade de encontrar uma disposição específica que determina a punibilidade da tentativa nesse
art. 212.º CP.

Desvio na trajetória ou no golpe/aberratio ictus – aqui o que temos é um erro na execução, temos
uma execução defeituosa. O agente atinge um objeto diferente daquele que era visado pelo próprio
agente. Diria que nestes casos há uma representação fiel da realidade objetiva – ao contrário do que
se passava nos erros de perceção que vimos no caso anterior – o agente representa fielmente a
realidade, só que, quando vai executar o crime, por motivos relacionados com o próprio agente ou
por motivos externos, acaba por atingir, não o objeto visado, mas um diferente. Que critério é este?
Temos dois ou mais objetos diferentes e o agente ou por imperícia sua (relativos ao próprio agente)
ou porque o objeto visado desvia-se (fatores externos) a execução resulta defeituosa. Temos dois
objetos que estão presentes no momento e no lugar da conduta: o agente faz pontaria ao cão – que
era o objeto visado, mas que não foi atingido – mas acaba por atingir outro objeto – que não teria sido
o objeto visado, mas que é efetivamente atingido.

Neste caso prático há distonia típica, no sentido em que os objetos da ação são efetivamente
diferentes – animal vs. Pessoa – os objetos não são tipicamente idênticos. É importante que vocês
tenham presente que, em geral, se entende que nestas situações em que falta a destreza psicofísica
do agente na execução do crime, não vem expressamente regulada no art. 16.º/1 CP – o art. 16.º/1
pode ter uma aplicação residual, mas estruturalmente, o art. 16.º/1 não está vocacionado para as
situações de aberratio ictus.

A generalidade dos autores tratam deste problema ao nível da imputação subjetiva a propósito do
elemento intelectual do dolo, e é exatamente o que estamos a fazer, mas a Professora Sónia Reis
defende que isto é um problema de imputação objetiva porque se coloca no patamar da estrutura da
ação, com a estrutura do comportamento do agente – saber como é que podemos imputar o resultado
de perigo para o objeto visado mas não atingido e o resultado de lesão efetiva do objeto não visado,
mas atingido à conduta do agente – porém, tem reflexos na imputação subjetiva – Teresa Beleza e
Frederico Lacerda da Costa Pinto também defendem esta visão.

O que é importante é que a resolução na doutrina não foi sempre a mesma. Esta teoria da equivalência
foi de facto durante bastante tempo a doutrina dominante. Entendia que quando os objetos eram
tipicamente idênticos (duas pessoas p.e.) – a solução deveria ser para estes casos a mesma que o erro
sobre a identidade do objeto ou da vítima – imputar um único crime doloso consumado.

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Direito Penal II – João Maria Falcão – TB – 20/21

Curiosamente, quando os objetos eram tipicamente diferentes, a teoria da equivalência dava uma
solução diferente – teremos um concurso entre tentativa e negligência. Não parece de todo que isto
seja uma boa solução.

A teoria da concretização veio responder do seguinte modo: quer aja, que não aja distonia típica
quanto ao objeto da ação, a solução deve ser sempre tendencialmente a mesma. A solução que a
maioria da doutrina defende é um concurso entre o crime na forma tentada e o crime negligente
(nunca digam negligência consumada – porque não há crimes negligentes tentados).

Uma coisa que devem dominar é a fundamentação da aplicação da teoria da concretização. Porque é
que a teoria da concretização deve vingar sobre a teoria da equivalência? Por razões de ordem típica
factual. Ver a fundamentação da MFP. Do ponto de vista de ordem descritiva e factual – nós sabemos
que vigora um Direito Penal do facto – nós vamos analisar factos. Por via do princípio da legalidade e
olhando para os dados da hipótese – o que vemos aqui é que existem duas ações contra dois objetos
diferentes. Temos uma ação que cria um perigo concreto para um objeto visado cujas condições de
segurança estão perdidas quando lhe é apontada uma arma; e um segundo objeto que é efetivamente
lesado. Temos de olhar também para a estrutura da ação: não há dolo quanto ao objeto atingido – só
há dolo quanto ao objeto visado – razão de ordem descritiva e factual.

Quanto à razão de ordem normativa e teleológica – aqui o merecimento penal que atua em aberratio
ictus é completamente diferente dos casos de erro sobre a identidade da vítima. Efetivamente é uma
situação diferente e deve ser valorada juridicamente de uma forma diferente também.

Atenção que a Prof.ª Teresa Beleza defendeu em tempos a teoria da equivalência, mas, entretanto, já
ultrapassou essa situação. Entre nós continua a defender o Prof.º Américo Taipa de Carvalho e o Prof.º
Faria e Costa. Porém, a maioria da doutrina defende a teoria da concretização com a solução tentativa
+ negligência. Há quem entenda no entanto (como a Prof.ª Sónia Reis) que quanto ao objeto não
visado, mas efetivamente atingido – temos de olhar para a vontade do agente; e se ele olhou como
possível atingir o objeto não visado, mas atingido – ou seja, podemos estar diante de casos de fronteira
entre o dolo eventual (art. 14.º/3) e a negligência consciente (art. 15.º/a)).

Portanto: há uma ação dominada pela vontade, típica do crime de dano do art. 212.º e do crime de
homicídio do art. 131.º CP.

Não imputei o crime de tentativa de morte de animal de companhia (art. 387.º), porque se fosse
aplicar essa norma, não conseguiria aplicar de forma tentada – porque para todos os efeitos, o objeto
da ação “animal de companhia” não morre e o regime do art. 23.º/1 CP tem uma regra geral que
impediria a responsabilidade jurídico-penal do agente. A regra geral para a tentativa é a do crime da
parte geral contenha uma pena superior a 3 anos. Só não será assim se a norma em concreto dispuser
em sentido contrário – o que é? A norma pode dizer que a tentativa é efetivamente punível p.e.
212.º/3, 203.º/2 CP.

Apliquei então o crime de dano – porque antes dessa tipificação, era este o enquadramento legal – e
não faz sentido agora que foi criado um regime legal especificamente para os animais de companhia
não punir só porque a tentativa não era possível. Diria que, do lado da tipicidade subjetiva –
relativamente ao objeto visado, mas não atingido – que é o animal – haverá uma tentativa de dano,
nos termos do art. 212.º e, quanto à forma de atos de execução em causa, teríamos os do art. 22.º/1
e 22.º/2/a) CP.

Relativamente ao objeto não visado, mas atingido por outra pessoa: aí teríamos claramente um
homicídio consumado. O art. 16.º/1 não regula diretamente o problema de aberratio ictus, mas disse-

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Direito Penal II – João Maria Falcão – TB – 20/21

vos que pode ter uma aplicação residual. Há aqui uma alteração do processo causal do resultado –
uma alteração; não há erro que possa retirar ao agente a oportunidade factual de se motivar com
norma – não há uma errónea representação da realidade quanto ao objeto visado, mas não atingido,
mas, esta conduta que cria diferentes riscos – cria um risco para o bem jurídico visado e cria lesão para
o bem jurídico atingido – o art. 16.º/1 tem uma solução que é naturalmente idêntica, apesar de ser
para as questões de erro intelectual. Se vocês repararem bem, para todos os efeitos o agente não viu
que estava ali aquela sem-abrigo. O agente não representou o objeto da ação “outra pessoa”. Por esse
motivo podemos dizer que o agente está em erro sobre elementos de facto do art. 16.º/1, 1.ª parte,
e isso implica a exclusão do dolo e a imputação a título de negligência. Não há causas de justificação,
a conduta é culposa. A punibilidade da tentativa é o art. 23.º CP.

Aqui teríamos um concurso efetivo ou de crimes, ideal porque numa conduta o agente cria perigo para
uma conduta e lesa outro e heterogêneo porque os tipos de crime são diferentes.

CASO “MANCHINHAS VS. NEGRO”

Severino apostou toda a sua fortuna no “Manchinhas”, o cavalo favorito para


ganhar a grande corrida do ano. Contudo, perto do final, a vitória do “Manchinhas” é
subitamente ameaçada por “Negro”, um cavalo negro que ultrapassa o favorito, num
sprint em direção à meta. Desesperado, Severino dispara um tiro que acerte no cavalo
“Negro” ou no cavaleiro, decidido a evitar a todo o custo que lhe estes estragassem a
aposta. O “Negro” cai, fatalmente ferido, mas o cavaleiro sobrevive.

Quid iuris?

Trata-se de um problema de dolo alternativo – o agente tem dolo tanto quanto ao crime de dano
relativamente ao cavalo como quanto ao crime de homicídio relativamente ao cavaleiro. O que o
agente quer é que nenhum deles chegue à meta final e vai fazer tudo aquilo que está ao seu alcance
para atingir o seu objetivo que é atingir um deles.

Se repararem bem não estamos diante de um raciocínio típico do dolo necessário porque nos casos
de dolo necessário, a consequência há de ser certo ou quase certo a partir da conduta. O resultado
que se verifica é como uma consequência lateral – um dano colateral da conduta do agente que se irá
verificar – não é exatamente isso que aqui está. Nos casos de dolo necessário – em que se concorre
com o dolo direto – o agente quer atingir um determinado objetivo, mas sabe que para o atingir tem
de realizar um outro facto típico, e esse é uma consequência inevitável. Não é isso que se passa aqui!

O agente quer qualquer um dos resultados, e quer com dolo direto – esse é o seu fim e objetivo – fazer
com que o cavalo ou cavaleiro morram. Na verdade, este é um problema jurídico que se coloca ao
nível do dolo alternativo. Atenção que o dolo alternativo não é uma forma de dolo! Como vocês já
perceberam o dolo é composto por: elemento intelectual e, só quando este está preenchido, o
elemento volitivo – as formas de vontade são: dolo direto (14.º/1), dolo necessário (art. 14.º/2) e dolo
eventual (art. 14.º/3). A figura do dolo alternativo consubstancia um problema jurídico que não tem
tradução normativa – não encontram nenhuma norma.

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Direito Penal II – João Maria Falcão – TB – 20/21

A professora MFP entende que nestas situações o agente, quer do lado da tipicidade objetiva, quer
do lado da tipicidade subjetiva – dirige uma ação dominada pela vontade – o agente faz pontaria; acho
que não há nenhuma violação do princípio in bis in idem como defende Figueiredo Dias por força do
art. 24.º/5 CRP. Na verdade, as condições de segurança dos bens jurídicos estão perdidas. A partir do
momento em que temos alguém a fazer pontaria – estamos a praticar atos de execução nos termos
do disposto do art. 22.º/2 CP. O que acontece do ponto de vista da ação é que o agente acaba por só
disparar contra um, apesar de ter posto ambos em perigo, tendo sido por mero acaso que o agente
atingiu o cavalo e não o cavaleiro. Podia ter sido a situação inversa.

Por esse motivo, punir apenas pelo crime mais grave como faz Helena Morão é pouco; mas MFP do
ponto de vista da imputação subjetiva, o agente cria perigo concreto para um bem jurídico e lesa
outro. Do lado da imputação subjetiva, este dolo direto reflete na verdade aquela que é a forma de
interpretação da vontade mais intensa que é o dolo direto. Do lado da imputação subjetiva, quer
quanto ao crime de dano, quer quanto ao crime de homicídio – teríamos sempre dolo direto. A
diferença é que o crime de dano foi consumado, o crime de homicídio não foi. Do ponto de vista da
ilicitude não há causas de justificação – é uma ação culposa e é punível. Aqui teríamos um concurso
efetivo.

Aula extra – 10/05/2021

(Imputação subjetiva)

CASO “ASAE”

Fernando é proprietário de um bar e acabara de receber as cartas de demissão de


dois dos seus três seguranças. Quando chega ao ginásio que frequenta cruza-se com
Gonçalo, participante regular em provas de culturismo e mecânico automóvel de
profissão, e logo o convida para fazer segurança no seu bar durante uma semana, até
encontrar substitutos para os seus funcionários. Todavia, logo na primeira noite, durante
uma fiscalização da ASAE, Gonçalo é constituído arguido pela prática do exercício não
licenciado da atividade de segurança (artigo 57.º do Regime do exercício da atividade de
segurança privada), mas Gonçalo alega que nunca lhe passou pela cabeça que estivesse a
cometer um crime, pois apenas queria auxiliar Fernando.

Quid iuris?

Se olharmos para o regime do art. 17.º CP, o legislador exige uma ponderação, exige que se apure se
o erro é, ou não, censurável. É necessária idêntica ponderação no caso do art. 16.º/1 CP? Não, o dolo
é excluído automaticamente, basta que uma das formas de previsão da norma esteja preenchida para
que se possa promover uma exclusão automática do dolo. Como não há tipo negligente não podemos
aplicar o regime do art. 16.º/3 CP, não há imputação subjetiva, não há tipicidade, logo não há
responsabilidade jurídico-penal.

Neste caso, o problema jurídico arranca da delimitação do art. 16.º/1 parte final face ao art. 17.º CP.
Vocês já sabem que todo este regime do art. 16.º e 17.º corresponde à tese de Doutoramento do

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Prof.º FD, portanto, o que temos nestes artigos é uma materialização da tese do Prof.º FD.
Interessante perceber a lógica que está aqui subjacente. Isto porque, em alguns países como na
Alemanha, não existe um regime similar ao nosso – todos os problemas que incidam sobre a ilicitude
e o seu conhecimento é um problema analisado todo ele em sede de culpa, numa norma equivalente
ao nosso art. 17.º CP. Em Portugal é preciso distinguir entre o art. 16.º/1 e o art. 17.º CP.

O art. 16.º, todo ele refere-se ao erro intelectual, a um erro que falha a informação – se o agente não
conhece a realidade, ou seja, não tem toda a informação para orientar a sua consciência ética então
não pode fazer essa ligação – não pode dirigir a sua consciência ética para o desvalor jurídico da
conduta que se liga à ilicitude. No caso do erro do art. 16.º/1, como o agente ignora a realidade do
ponto de vista intelectual ele não apreende o significado da conduta como sendo ilícita.

Neste caso em concreto esta pessoa tem um contacto eventual com a profissão, por isso não está a
par das regras legais que regulam este setor de atividade. Assim sendo, a generalidade das pessoas
que não exercem estas funções, dificilmente saberão que não ter uma licença específica poderá na
verdade gerar responsabilidade jurídico-penal. Significa que não conhecer as regras legais pode na
verdade levar à irresponsabilidade jurídico-penal? Pode alguém alegar que não sabia que matar era
crime?

Exatamente por isto é que é necessário analisar a diferença entre o art. 16.º/1 parte final e o art. 17.º
CP. Alguns pontos e truques de raciocínio:

• Condutas que não têm ressonância ética (são axiologicamente neutras) vs. Condutas que
têm ressonância ética (são axiologicamente relevantes):
o Há um conjunto de condutas que nós sabemos que são proibidas, mesmo que não
estivessem no CP – são condutas dum plano pré-jurídico – p.e. matar, roubar, violar;
são condutas cujo sentido da ilicitude é intrínseco, onde a generalidade das pessoas
sabe e, se não sabe, alguma coisa de errado se passa. Estas são as condutas que
têm relevância ética – são axiologicamente relevantes.
▪ Portanto – se uma pessoa pratica um facto nestes moldes, são condutas
que são em si mesmo mala in se, isto é, têm um desvalor intrínseco.
Acontece com o homicídio, com as ofensas à integridade física, com o
aborto, com a corrupção, etc.
▪ Se a pessoa desconhecer essa ilicitude, só podemos ponderar falta de
consciência da ilicitude para efeitos do art. 17.º CP.
o Existem outras condutas – que são axiologicamente neutras, são as condutas mala
mera prohibita, em que na verdade, o desvalor que se associa a essas condutas não
é eticamente relevante.
▪ O juízo de desvalor que se associam a estas condutas não está ainda
totalmente interiorizada, ou porque são proibições novas, ou porque são
proibições artificiais – p.e. criações do legislador para regular certas áreas
de atividade, ou seja, as pessoas que não têm contacto com essas áreas de
atividade não conseguem apreender que as condutas são ilícitas e
proibidas.
▪ Encontramos estes erros sobre proibições que se reportam às tais condutas
axiologicamente neutras sobretudo no Direito Penal Extravagante – fora do
CP para regular determinadas áreas profissionais.
▪ Outro exemplo: em 2011, houve uma campanha outdoor com agentes da
PSP a fazer festinhas a cães e gatos, e a explicar que não se podia maltratar

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animais – isto era o legislador a criar a consciência da ilicitude nos


destinatários das normas. Portanto, a vincular informação do carácter
proibido dos maus tratos a animais de estimação. Porque, sobretudo nos
meios mais rurais havia pessoas que não sabiam de todo. Estava a dar a
informação que necessitavam para poderem dirigir as suas condutas.
▪ Ao longo dos anos houve vários exemplos – Prof.ª MFP deu-vos o exemplo
que resulta do acórdão n.º 452/99 do TC, o caso do grupo de mulheres que
se candidatou pela 1.ª vez às autárquicas; o Prof.º FD também escreveu
sobre um caso de um Presidente da Câmara que autorizou despesas sem o
visto do Tribunal de Contas o que constitui crime. Tratava-se de um
Presidente de Câmara muito experiente, com muitos anos no cargo, mas
essa proibição era muito recente – era nova, e a falta de informação gerou
um erro intelectual, pois se a pessoa não sabia que aquela proibição existia,
então não pôde conduzir a sua conduta.
• Isto tudo para dizer que este critério do Prof.º FD é de facto mais veiculado, mas nem
sempre se sabe aplicar com rigor, daí que a Prof.ª MFP é algo crítica desta construção. A
lógica potencial da ilicitude que a Prof.ª MFP constrói com base no 1) nível profissional do
agente, 2) evidência das regras, 3) perigosidade previsível das condutas; leva à mesma
conclusão. Porque a inserção profissional desta pessoa demonstra que ela não existe – o
contacto com esta profissão é eventual.
• Também temos de fazer referência à lógica do critério setorial da Prof.ª Teresa Beleza e do
Prof.º Frederico da Costa Lacerda Pinto. Entendem que, quando a pessoa desenvolve de
forma constante uma certa linha de atividade, tem um dever acrescido de estar informado
de toda a regulamentação da área e de estar atualizado. Portanto, se a pessoa não tem
acesso a informação, em regra, esse desconhecimento só pode recair no regime do art. 17.º
CP. A única forma de recair no art. 16.º/1 parte final é se for introduzida uma regra nova
que ainda não tenha sido interiorizada dada a sua novidade.
o Quando erro recaia sobre as normas penais em branco, os Prof.ºs referem que se o
erro recair sobre a norma incriminadora, esse erro terá este mesmo regime –
tendencialmente no art. 17.º CP, se for nova – no art. 16.º/1 CP. No entanto, se
recair sobre a norma complementar – esse erro nunca pode incidir sobre o regime
do art. 16.º/1 – porque a pessoa já tem conhecimento da proibição, logo art. 17.º.
• A lógica é sempre a mesma, e todas estas visões são coincidentes.

A ideia seria estarmos diante do erro do art. 16.º/1 CP, que implica uma exclusão automática do dolo
(não há critério adicional). Vamos obrigatoriamente do n.º 1 para o n.º 3, e chegados aqui temos de
verificar que esse art. 16.º/3 exige sempre a verificação de 2 elementos:

• Temos de ter um tipo na forma negligente;


• Tem de haver negligência no caso concreto.

Mas o primeiro patamar falha logo, porque nós não temos forma negligente no caso concreto – se não
há forma negligente, não há imputação subjetiva. Logo, não há tipicidade, terminando aqui o caso
prático. Não está preenchida a categoria analítica da tipicidade, não podendo avançar no caso, logo,
não há responsabilidade jurídico-penal.

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CASO “PLANO FALHADO”

Em estado de grande perturbação devido a questões de partilhas, António decide


matar Bruno, seu primo. António faz uma espera a Bruno no parque de estacionamento
da fábrica onde este trabalha. Escondido pela folhagem, António vê Bruno aproximar-se,
acompanhado de outra pessoa, uma mulher, Carla, que com ele caminha a cerca de 1m
de distância. António dispara. Porém, nada corre como pretendia. Devido a um
movimento súbito do seu “alvo”, que pega em Carla ao colo no exato momento do disparo,
António acaba por atingir mortalmente a mulher. Além disso, afinal não era Bruno quem
se aproximava, mas Daniel, irmão de Bruno, muito parecido com ele.

Determine a responsabilidade penal de António.

Os problemas jurídicos aqui em causa são dois: 1) aberratio ictus – quando o agente faz pontaria a um
objeto e atinge outro – estão os dois objetos presentes no momento e no local em que o agente atua,
mas devido a terceiro, o agente atinge um objeto distinto do visado; 2) relativamente ao objeto visado:
o agente não atinge a pessoa que queria, mas outra devido a um erro de perceção acabou por
identificar mal o objeto que pretendia atingir.

Numa situação como esta temos, de facto, um problema de aberratio ictus e de erro sobre a
identidade do objeto, nomeadamente erro sobre a identidade da pessoa. O agente genericamente
pratica uma ação humana dominada pela vontade; típica de uma tentativa de homicídio e de um
homicídio consumado.

Pela teoria da equivalência, o agente seria punido por um único crime de homicídio doloso
consumado. Porque não há destemia típica uma vez que os objetos são tipicamente equivalentes.
Mas, dadas as críticas à teoria da equivalência, esta foi ultrapassada pela teoria da concretização (têm
de explicar os fundamentos).

A solução da teoria da concretização passa por imputar ao agente, quanto ao objeto visado, mas não
atingido, um crime de homicídio de forma tentada, e quanto ao objeto não visado, mas efetivamente
atingido, o crime de homicídio negligente. Todavia, quanto ao objeto visado, mas não atingido (Daniel
– “outra pessoa”); e o erro sobre a identidade da pessoa é irrelevante. O legislador valora da mesma
forma a pessoa B e a pessoa C. Assim, este erro não aproveita ao agente para efeitos de
responsabilidade (não se aplica o art. 16.º/1). Por isso, aqui teríamos tentativa de homicídio praticado
com dolo eventual – art. 14.º/3 CP.

Quanto ao objeto não visado, mas efetivamente atingido, o agente viu C e estava a cerca de 1m de
distância, e, para esses casos – MFP – pondera ir para além da solução modelar da teoria da
concretização (tentativa de homicídio e homicídio negligente). Isto porque, face aos dados da
hipótese, poder-se-ia discutir a fronteira entre o dolo eventual e a negligência consciente. Podemos
discutir se no momento em que o agente dispara ele representa ou não a possibilidade de atingir outra
pessoa e se se conforma com essa possibilidade.

Serve isto para dizer, que a teoria da concretização imputa efetivamente um crime na forma tentada
e outra na forma negligente – teríamos a questão resolvida. Mas há doutrina – casos de aberratio ictus

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com objeto alternativo, quanto ao objeto não visado, mas efetivamente atingido, não há nenhum
motivo para beneficiar o agente e, portanto, podemos imputar o crime na forma dolosa.

Seja como for: a conclusão será sempre punir o agente pela tentativa (art. 131.º + art. 22.º), e teríamos
aqui um concurso efetivo, ideal e homogéneo (art. 30.º/1).

(Qual a solução a dar a Carla? Se aplicar a concretização – crime de homicídio negligente – art. 137.º/1
+ 15.º/a); mas está aberta a solução de haver um crime de homicídio na forma de dolo eventual – art.
131.º + 14.º/3)

CASO “EXPLOSÃO”

Álvaro decide matar Bento. Coloca um explosivo com um temporizador no jato


particular de Bento, sabendo que o mesmo o utilizará numa deslocação naquela tarde,
rumo à Holanda, onde deverá encontrar-se com um grupo de empresários do setor das
telecomunicações. Sem que Álvaro saiba, Bento decide permanecer em Portugal e faz-se
substituir na mencionada reunião por Camané, outro funcionário da empresa. Pouco
depois de a aeronave descolar, o engenho explosivo deflagra, à hora fixada no
temporizador. Morrem todos os ocupantes do avião: Camané e dois tripulantes.

Determine a responsabilidade penal de Álvaro.

Em face dos dados da hipótese, o agente até aciona a bomba através de um temporizador. Ou seja,
temos aqui verdadeiramente uma confusão de A quanto aos alvos a atingir. Este caso serve para
discutir vários problemas:

• Quanto à tripulação, é óbvio que há aqui um homicídio praticado com dolo necessário (art.
131.º + art. 14.º/2) – é o exemplo clássico de alguém que sabe que o facto típico (morte dos
tripulantes) é uma consequência certa ou quase certa da sua conduta e o agente no caso do
dolo necessário – tripulantes – acaba por, de uma forma direta, praticar um certo facto e não
se importa com a ocorrência de um outro resultado que sabe que irá acontecer
inevitavelmente. Esse outro resultado – é uma consequência colateral que está associado à
prática do facto que leva a cabo. O agente queria, para todos os efeitos, matar B, mas sabe
que tem de matar a tripulação para atingir esse seu objetivo – 2x homicídios praticados com
dolo necessário – art. 131.º + 14.º/2 CP.

• Quanto ao problema do agente querer matar B, mas acabar por matar C – estamos diante de
uma questão de aberratio ictus ou sobre uma questão de identidade da vitima? A doutrina,
em geral, como não há um problema da falsa representação da realidade, veria aqui um
problema de aberratio ictus.
o A Professora Sónia Reis não concorda: porque no âmbito da aberratio ictus é necessário
que ambos os objetos estejam no mesmo local – o visado e o efetivamenteatingido.
Não é isso que acontece neste caso. O risco criado pelo agente só se concretiza num
único bem jurídico: B nunca esteve em perigo, portanto as condições

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de segurança nunca estiveram perdidas, nunca foi criado perigo concreto para B, só e
apenas para a vida de C. Seria perfeitamente artificial.
o Assim, para todos os efeitos: só temos um único crime de homicídio doloso e
consumado (art. 131.º), praticado com dolo direto (art. 14.º/1) porque só C estava em
perigo.

Temos então um problema nas fronteiras da aberratio ictus com o erro na identidade do objeto,
quanto a B e C; e dolo necessário quanto aos dois tripulantes.

Dito isto: temos uma ação dominada pela vontade, típica do crime de homicídio (art. 131.º), sendo
que temos dois homicídio consumados quanto aos tripulantes e um relativamente a C; e
subjetivamente é que se discute – MFP na esteira de Stratenwerth – imputa só 1x crime de homicídio
consumado praticado com dolo direto (art. 131.º e 14.º/1), não há causas de justificação, é uma ação
culposa e o agente deveria ser punido por concurso efetivo, ideal e homogéneo (art. 30.º/1); e dois
homicídios dolosos praticados com dolo necessário (art. 131.º + 14.º/2); e outro com dolo direto (art.
14.º/1), sendo que, neste ponto não haveria concurso efetivo porque se dá o mesmo tratamento no
erro sobre a identidade do objeto.

CASO “ENTERRO FATAL”

No final do enterro da mãe, quatro irmãos permanecem no cemitério a discutir


sobre partilhas. Irado, um dos irmãos, Alfredo, que sempre cuidara da mãe desde que as
irmãs se haviam mudado para Paris, descontrola-se e dá um estalo na irmã Benilde com
muita força, para que esta se cale. Todavia, em consequência do impacto, Benilde
desequilibra-se, cai, bate com a cabeça na quina de uma sepultura em mármore, e tem
morte imediata. Para não deixar testemunhas, Alfredo decide então matar as outras duas
irmãs, Carla e Daniela, e espanca-as violentamente, dando largas a toda a sua raiva.
Julgando-as já mortas, e com o intuito de se desfazer de todos os cadáveres, coloca os três
corpos em três caixões que se encontravam na capela mortuária do cemitério onde
também trabalhava. Deposita-os em seguida em três jazigos diferentes. No dia seguinte,
logo estudaria o local para sepultar os corpos. Carla recobra os sentidos de madrugada e
consegue abrir o caixão, salvando-se e alertando as autoridades. Daniela, porém, não tem
a mesma sorte. A autópsia vem a demonstrar que a causa da morte se ficou a dever a
asfixia, ocorrida dentro do caixão.

Determine a responsabilidade penal de Alfredo.

Problema jurídico: agravação do resultado e erro sobre o processo causal. Este caso prático tem, de
facto dois problemas jurídicos fundamentais: 1) crime agravado pelo resultado relativamente a B, que
leva o estalo e cai embatendo com a cabeça na sepultura e morre; 2) erro sobre o processo causal.
Aqui, está em causa o erro sobre a eficácia do processo causal como problema de resultado retardado.

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Crimes agravados pelo resultado – art. 18.º CP – consagra a figura da agravação da pena pelo
resultado. Os crimes agravados pelo resultado, a partir deste regime do art. 18.º, podem corresponder
a pelo menos um misto de duas coisas:

1. Dolo + negligência (dá uma chapada na vítima, cai e bate com a cabeça e morre, ou uma mãe
dá banho a uma criança, irrita-se com a criança, dá-lhe um estalo e a criança é projetada contra
a esquina de um roupeiro e morreu) – dolo quanto à ofensa à integridade física (crime
fundamental) e negligência quanto ao crime mais grave.
2. Negligência + negligência – isto é, o crime fundamental já é praticado por negligência –
imaginem numa situação como esta, a pessoa estava a bracejar e dá sem querer um empurrão
à sua irmã e a pessoa é projetada contra a parede e morre.

O Prof.º FD entende que no regime do art. 18.º CP, quando o legislador refere “pelo menos a título de
negligência”, entende que o mais pode ser a título de dolo, nomeadamente dolo eventual. MFP e
Sónia Reis entendem que não! Se a pessoa, por hipótese, dá um estalo já o faz prevendo a
possibilidade de a atingir com a força de impacto necessária para que a pessoa caia, bata com a cabeça
e morra, então já permite desde logo imputar o evento mais grave – dolo diretamente e o próprio
crime de homicídio.

Assim, quando o legislador no art. 18.º faz referência ao “pelo menos a título de negligência”, pelo
mais pode-se entender a negligência grosseira, que não está prevista na Parte Geral, mas sim em tipos
da Parte Especial – art. 137.º/2 CP. Os crimes agravados são tipos de crime que exigem dois nexos de
imputação objetiva e dois nexos de imputação subjetiva.

Neste caso em concreto: temos um caso clássico que vai para além da intenção do agente – porque o
crime mais grave vai para além da intenção do agente.

Nós temos dois nexos de imputação objetiva: art. 147.º/1

• Primeiro é necessário que consigam enquadrar o caso no tipo do art. 143.º CP de acordo com
as teorias que vocês estudaram do lado da imputação objetiva. Obviamente que é previsível
que dar uma chapada vai provocar ofensas no corpo para efeitos do art. 143.º, e cria um perigo
e a sua materialização no perigo que efetivamente acontece. Subjetivamente temos dolo
direto.
• Depois, o art. 147.º exige um segundo nexo de imputação objetiva – ou seja, entre o resultado
típico do art. 143.º (ofensa) e o resultado mais grave que é a morte, nós temos de conseguir
demonstrar que também aí temos um nexo de causalidade, ou melhor, um nexo de imputação
de um resultado mais grave (morte) ao crime de fundamental doloso (ofensas à integridade
física) – face ao modo como o caso está construído, a resposta é de sentido positivo.
Subjetivamente – vamos poder imputar o resultado mais grave a título de negligência. O art.
147.º precisa da conjugação do art. 18.º + art. 15.º/a) CP.

Quanto ao erro sobre o processo causal: existem vários erros possíveis sobre o processo causal. O mais
comum – erro sobre a existência do processo causal, mas também podemos ter o erro sobre a eficácia
do processo causal.

Quando trabalhámos a teoria da CSQN – ela conduzia a diversos excessos em sede de imputação
objetiva – quando é que esses excessos eram resolvidos? Normalmente em sede de imputação
subjetiva e na questão de saber se havia ou não um desvio no processo causal – e se era essencial.
Com as sucessivas correções da teoria da CSQN – a generalidade dos problemas passou a ser resolvido
em sede de imputação objetiva – interrupção do nexo causal por intervenção de terceiro, problemas

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de comportamento lícito alternativo, causas hipotéticas ou virtuais, etc. – tudo isto passa a ser
resolvido em sede de imputação objetiva. Então o que resta para o erro do art. 16.º/1?

• Ou o próprio erro do processo causal – o agente não representou que estava a promover o
processo causal – ex. alguém entrega a outrem um copo de limonada, a pessoa bebe e morre
porque é diabética tipo 1 e nem o agente sabia, nem a vítima avisou – é óbvio que é
totalmente imprevisível pela teoria da causalidade adequada que aquela pessoa tinha
diabetes – a pessoa não conheceu, nem representou o processo causal – estaria em erro sobre
a própria existência do processo causal.
• No erro sobre a eficácia do processo causal – cronologicamente o resultado pode ocorrer em
dois momentos diferentes: atraso no processo causal (retardado) ou pode haver uma
antecipação do resultado do processo causal (resultado antecipado) – ou seja, o agente sabe
que o processo causal está em curso e o resultado ou acontece antes do que ele esperava ou
acontece depois do que o agente esperava.

No nosso caso prático, o resultado acontece depois daquilo que o agente esperava – porque o agente
pensa que foi no primeiro momento quando ele dá pancada nas suas irmãs que o resultado se
produziu, mas na verdade, a hipótese revela que uma das irmãs só morre num momento posterior. O
resultado que ocorre antes do planeado ou o resultado que ocorre depois do planeado – discute-se o
dolo geral – se o agente conhece e quis matar – então deve ser responsabilizado criminalmente pelo
homicídio – doloso e consumado.

Mas só que, o facto de o resultado ser uma consequência normal da ação do agente – para alguma
doutrina, não pode levar só por si à responsabilização jurídico-penal do agente sem mais – é preciso
olhar para as circunstância do caso concreto.

o Nesse sentido: Jakobs e João Corado Neves – quando o agente espanca a vítima, ele conhece
e quer produzir essas ofensas e mais do que isso, em relação às duas outras irmãs (C e D) –
conhece e quer matar. Como não consegue lograr o seu intento que é a morte, deverá ser
imputado o crime de homicídio da forma tentada.
o Quanto a D, que veio a morrer num momento posterior – o Prof.º João Corado Neves e o Jakobs
defendem que nesse momento o agente não representou que estava em causa uma pessoa –
ele supôs que era um cadáver e não o poderíamos responsabilizar criminalmente porisso.
o A Prof.ª MFP e Stratenwerth: subjetivamente o que importa verdadeiramente é apurar se a
produção do resultado pode ser atribuído ainda a algum destes riscos que foram criados. Se,
numa situação como esta, o agente dá uns valentes estalos e murros com a finalidade de
produzir o resultado – e supondo que o resultado já ocorreu – só num segundo momento –
temos de perceber se há ou não há unidade de ação. Como é que é possível? É preciso olhar
para o caso e perceber se fazia, ou não, parte do plano do agente inicialmente espancar e
depois ocultar o cadáver. Para a Prof.ª MFP, seguindo Stratenwerth, se há unidade de ação no
sentido em que estava planeado – então a solução é próxima do dolo geral e deve ser
imputado o crime de dolo consumado. Sucede que no caso não há unidade de ação porque
tudo é feito no calor do momento – logo, só podemos imputar o crime doloso na forma
tentada praticada com dolo direto; e quanto à morte – é um erro relevante nos termos do art.
16.º/1 que só permite imputar o crime de homicídio na forma de negligência.

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Quid iuris se o agente decide dar uma pancada na cabeça da vítima para a deixar inconsciente
matando-a num segundo momento, porém, a pancada é tão forte que a vítima morre logo aí.

o Stratenwerth e MFP: é necessário saber se há unidade de ação. Se o agente acaba por


praticar o ato posterior que estava planeado – p.e. lançar a vítima a um poço, um
crime consumado; se não o chega a praticar – temos de ver se trata de um ato
preparatório (art. 21.º), ou se já estávamos num ato de execução (art. 22.º). Se A
decide matar o marido, dando-lhe um copo de leite envenenado que deixa em cima
da mesa – quando a senhora estava a fazer os preparativos e bebe o leite envenenado
– homicídio negligente; se já estivéssemos em atos de execução – homicídio doloso
consumado.

CASO “PROVISIONAL DRIVING LICENSE”

Armando, cidadão português radicado no Reino Unido há 30 anos, conduzia o seu


veículo automóvel nas ruas de Santa Maria da Feira e foi fiscalizado, mas, porque apenas
era titular de uma “provisional driving license”, emitida pela competente entidade do
Reino Unido, a DVLA (Driving and Vehicle Licensing Agency), licença equivalente às
licenças de aprendizagem emitidas pelas competentes autoridades portuguesas
(I.M.T.T.), que não autorizam a condução, foi acusado da prática de um crime de
condução sem habilitação legal, p. e p. no artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 3/98, de
3 de janeiro. Armando alega não saber que a referida licença de condução não lhe
permitia conduzir em Portugal, já que, no
 Reino Unido, a mesma licença habilita o
aprendiz a conduzir veículos automóveis desde que acompanhado por pessoa com idade
superior a vinte e um anos e portadora de carta de condução há mais de três anos, estando
vedada a condução em auto-estradas, e sendo obrigatória a utilização de um dístico “L”
aposto no veículo conduzido, e todas essas exigências estavam cumpridas no caso.

Quid iuris?

Este é um caso real que foi discutido na nossa jurisprudência. A Prof.ª MFP tratou este caso nas aulas
teóricas.

Parece-me que estamos diante de um erro do art. 16.º/1 CP e trata-se de um problema de erro sobre
as proibições legais. Não é totalmente coincidente com a lógica dos critérios que temos vindo a aplicar.
Mesmo a exigência do art. 16.º/1 – o erro ignorância não é totalmente coincidente aqui. O agente
ignora que não está habilitado para conduzir em Portugal com esta habilitação. No fundo, este agente
representa que está habilitado a conduzir e ignora por completo que esta proibição o abrange, só
considerando o erro ignorância assim.

Portanto, aqui a natureza do facto é diferente do que aquela que nós encontramos na ordem jurídica
portuguesa – é importante ter presente que se tem verificado nos últimos anos que tem havido uma
flutuação no critério do legislador nesta matéria – esta autorização em tempos foi suficiente para

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conduzir em Portugal e hoje não é. Nessa perspetiva, perguntando pela consciência potencial da
ilicitude se, o contexto e conhecimentos do agente lhe permitem estar munidos das informações
necessárias para ter um conhecimento concreto da situação para orientar a sua conduta. Tomando
em linha de conta os critérios da Prof.ª MFP: 1) inserção profissional – não; 2) a questão da evidência
das regras – realmente há uma flutuação dos critérios legais; 3) representação da evitabilidade da
conduta – era previsível? Não. Portanto, como o agente pressupõe que a incriminação não abrange o
seu caso em concreto, não é um erro ignorância, mas será algo muito próximo do regime do art.
16.º/1, ou seja, falha a consciência potencial da ilicitude. Portanto, não poderíamos imputar a norma.

Pelo art. 16.º/3 – não há um tipo na forma negligente, logo não há imputação subjetiva, o que nos
leva a concluir que não há responsabilidade jurídico-penal.

A Prof.ª há uns anos atrás teve um caso de uma senhora que viveu durante 30 anos nos EUA. Essa
senhora casou e divorciou-se 3 vezes. Cada vez que casava e se divorciada ia ao consulado português.
Quando veio cá veio renovar o BI – ao preencher o formulário colocou que era solteira, e foi acusada
por o crime de falsificação do estado civil. Problema: nos EUA existem dois estados civis: casada e
solteira. Ou seja, a agente ignorava por completo todas estas situações de estado civil que ela
desconhecia nos EUA. O MP deu razão quando foi alegado o erro sobre a proibição legal do art. 16.º/1.
O caso nem sequer foi a julgamento, foi logo arquivado porque havia um profundo desconhecimento
e ignorância destas minudências legislativas.

CASO “DESTINO”

Óscar decide matar a mulher, Patrícia, e sai mais cedo do trabalho com esse
objetivo. Distraído e com pressa, quando estava já perto da sua rua, não para numa
passadeira vindo a provocar a morte do peão. Por acaso do destino, o peão era a sua
mulher, Patrícia.

Qual a imputação subjetiva neste caso?

Este caso convoca o problema do dolo antecedente – é necessário que o dolo seja concomitante à
ação no momento em que o agente atua sob pena de estarmos a violar a orientação que o Direito
Penal do facto nos oferece. Embora o objetivo seja matar a cônjuge, no momento em que ele mata a
cônjuge, o dolo não existe – não logra porque o dolo não é concomitante à ação. Ou seja, não pode
ser responsabilizado por homicídio doloso; pois não há uma consciência concomitante – a única
possibilidade – produção do resultado morte a título de negligência (art. 137.º + art. 15.º/a)).

CASO “ASSALTO”

Luís decide assaltar uma ourivesaria famosa pelas suas joias, esperando pela noite
para o ataque. Já dentro da loja, Luís é surpreendido pelo dono, Mário, que se havia
esquecido das chaves do carro e que, ao ver Luís, grita “agarra que é ladrão”. Com o
choque da surpresa e receando vir a ser identificado mais tarde, Luís rapidamente chega

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Direito Penal II – João Maria Falcão – TB – 20/21

à conclusão de que a única forma de sair impune será matar Mário, pelo que agarra na
pistola que tinha trazido e dispara fatalmente sobre ele.

Qual a imputação subjetiva neste caso?

Este caso já saiu num exame e criou uma grande dificuldade porque, para todos os efeitos, o que o
agente queria era praticar um crime de furto qualificado (art. 204.º/1/a)). Mas o que nós temos neste
caso como problema jurídico central é a figura do dolo direto vs. Dolo necessário.

Nós já sabemos que o dolo é composto por dois elementos: o elemento intelectual (conhecer e querer
os elementos descritivos do tipo); mas para além disso é necessário que o agente queira os elementos
objetivos do tipo – trata-se do elemento volitivo. O elemento volitivo corresponde ao querer, e é aí
que se analisam as formas de dolo: 1) dolo direto (art. 14.º/1); 2) dolo necessário (art. 14.º/2) e o 3)
dolo eventual (art. 14.º/3).

O dolo é sempre o mesmo. Estas subespécies de dolo são, na verdade e só formas interpretativas de
perceber o modo como o dolo surge. O dolo é todo o mesmo.

Quanto ao dolo direto: é necessário que o facto típico seja um fim – um objetivo a atingir. É o objetivo
imediato da ação na medida em que a realização do facto típico é a meta da ação (expressão de
Stratenwerth) – p.e. imaginando que neste caso o assaltante consegue fazer o assalto – esta era a
meta do agente. Ele praticaria o crime de furto com dolo direto (art. 203 + 14.º/1).

Mas, para além de ser a sua meta, a realização de um facto típico também pode ser um meio para
atingir um fim. Ou seja, para praticar um certo facto típico, pode ser pressuposto a prática de um outro
crime. P.e. O agente quer matar C, mas não tem nenhuma arma, por isso assalta uma loja para obter
e arma e utiliza a arma para matar C. A sua meta é matar C, mas nesse caminho, pode praticar um
conjunto de crimes ainda com dolo direto para atingir o seu fim.

Significa que a relação que se estabelece no dolo direto é: fim, no sentido em que se quer atingir
aquele escopo último, mas também pode ser uma relação de meio–fim, no sentido em que para atingir
aquele objetivo, o agente pode praticar um conjunto de crimes ainda com dolo direto.

Percebe-se que, numa situação como esta, o agente quando pratica o crime de homicídio ainda o faz
enquanto meio para atingir um fim – e o fim qual era? O assalto. Ainda que o seu objetivo não seja
matar, apenas ficar incógnito, a morte fica num estádio intermédio que é incontornável para atingir o
seu objetivo final. Portanto, há dolo direto mesmo que a morte surja como um meio para atingir o fim
que visava que era permanecer incógnito.

No dolo necessário (art. 14.º/2), o facto típico é uma consequência certa, é uma consequência
necessária e incontornável do facto típico. É um dano colateral – uma consequência que o agente faz
e pratica e sabe que em virtude da sua conduta há um facto típico que inevitavelmente se irá produzir.

O agente quer um facto típico de modo direto, mas não se importa que para além desse facto típico
que é de forma direta, não se importa da ocorrência de um efeito colateral que preenche um tipo –
dolo necessário.

Assim, quando nós vamos analisar a forma de interpretação do dolo, chegamos à conclusão que
existindo uma relação meio-fim, ainda devemos considerar aqui a figura do dolo direto – regime do
art. 14.º/1 CP.

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Direito Penal II – João Maria Falcão – TB – 20/21

A maioria da doutrina entende que se pode ponderar a imputação do crime de homicídio até
qualificado por via do art. 132.º/2/g), praticado com dolo direto; relativamente ao roubo, poder-se-ia
imputar o art. 210.º/2/b) que seria qualificado por força da aplicação do art. 204.º/2/f).

A maioria da doutrina imputa os dois crimes, tanto o roubo como o homicídio.

A Prof.ª Inês Ferreira Leite tem uma posição divergente que, por força do princípio ne bis in idem,
considera que não se pode ponderar o roubo porque a violência que é exercida contra o bem jurídico
vida já está equacionada no crime de homicídio. Estaríamos a valorar duas vezes o mesmo facto. Daí
que impute unicamente o crime de homicídio qualificado e depois pondere o atentado contra a
propriedade simples.

CASO “VERY LIGHT”

“… O arguido foi assistir ao Benfica-Sporting, integrando a claque dos No Name Boys.


Do outro lado, ficavam as bancadas da Juve Leo.
No interior do estádio, o arguido ocupou as primeiras filas do sector 14, do topo sul –
previamente destinado pelas entidades oficiais competentes à claque dos “No Name
Boys”.
Em frente daquele sector, separadas pelo relvado, ficavam as bancadas do topo norte,
onde se situava, entre outros, o sector 17, destinado, pelas entidades oficiais competentes,
a ser ocupado pelos adeptos sportinguistas, mormente pela claque “Juve Leo”.
A distância entre estas duas bancadas é, em linha reta, da ordem dos duzentos metros.
Antes do início do jogo, sensivelmente quando alguns paraquedistas, largados de
helicóptero, faziam a sua aproximação ao relvado, o arguido, daquele lugar, lançou um
foguete denominado de “very-light” – com a sua mão esquerda, inclinou-se em posição
oblíqua, para cima e ligeiramente para a frente no sentido norte, retirou a proteção de
borracha que faz aparecer a patilha e empurrou esta de modo a ativar a respetiva
propulsão.
Assim acionado, o foguete “very-light” descreveu uma trajetória em arco, indo cair
para além das bancadas do topo norte do estádio, em cima de umas árvores junto aos
balneários, tendo provocado um pequeno incêndio nestas.
O arguido previra que o foguete assim disparado sobrevoasse a bancada do topo norte
do Estádio Nacional, reservada aos adeptos sportinguistas e que já na altura se
encontrava repleta de pessoas. Fê-lo de modo a que o mesmo fosse projetado de baixo
para cima, em arco, de modo a sobrevoar a bancada que avistava à sua frente.
Dez minutos depois do início do jogo, imediatamente a seguir ao primeiro golo do
Benfica, o arguido, aquando dos festejos deste golo, da segunda fila do já referido sector
14, lançou o segundo foguete “very-light”.
Verificava-se, nessa mesma altura, uma grande agitação no grupo de espectadores, e
particularmente nos elementos afetos aos “No Name Boys”, que rodeavam o arguido,
havendo abraços, empurrões, saltos, gritos e outras exaltações de grande regozijo.

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Direito Penal II – João Maria Falcão – TB – 20/21

Também desta vez, o arguido segurou o foguete “very-light” com a mão esquerda,
colocou-o obliquamente para cima e inclinado para a frente, no sentido norte, e, com a
mão direita, retirou a proteção de borracha que fez aparecer a patilha.
Em virtude do seu próprio estado de euforia e da permanente agitação das pessoas
que se encontravam junto a si, envolvendo-o, o arguido, no momento em que empurrou
a patilha que aciona a respetiva propulsão, inclinou mais o foguete do que havia feito
aquando do primeiro lançamento.
O instrumento assim disparado seguiu uma trajetória tensa e quase em linha reta,
sobrevoou os jogadores, percorreu toda a distância entre as duas bancadas e foi chocar
com o corpo da vítima, que assistia ao jogo no setor 17, do topo norte do estádio,
penetrando na região do peito, de frente para trás, da esquerda para a direita e,
ligeiramente, de baixo para cima.
Este embate provocou na vítima uma ferida perfuro-contundente na região para-
esternal esquerda, situada catorze centímetros abaixo do plano horizontal que passa pelos
ombros, tendo o orifício um diâmetro de sete centímetros, com eixo maior horizontal, com
os bordos queimados e com visualização de tecidos moles no interior.
Causou-lhe laceração da traqueia, crossa da aorta e lobos pulmonares direitos,
queimados e com pólvora aderente; hemorragias sub-endocárdicas; laceração dos arcos
posteriores da 6.ª, 7.ª e 8.ª costelas direitas e da espessura da musculatura intercostal;
congestão meningoencefálica; queimadura da musculatura peitoral direita e asfixia por
intoxicação por monóxido de carbono, lesões que, por si só ou associadas, foram causa da
morte da vítima, ocorrida pelas 16 horas e 35 minutos desse dia. (…)
Nessa noite, ao ver as imagens na televisão em companhia de um amigo, o arguido
ficou emocionado e chocado, não contendo o incómodo que as mesmas lhe causavam.”
Qual a imputação subjetiva neste caso?
Para quem já esteve num estádio de futebol, a festejo é muito grande em pleno estádio. No caso do
art. 14.º/1 – dolo direto, o conhecimento dos efeitos não tem de ser perfeita, mas a vontade é
diretamente dirigida ao facto típico. Por isso, o elemento volitivo do dolo direto é muito intenso.

No caso do dolo necessário (art. 14.º/2), o elemento volitivo também é muito forte – permite tornar
irrelevante, para caracterizar a vontade um eventual desejo que não fosse esse o primeiro, mas que
fosse ainda uma consequência necessária. Nós ainda conseguimos perceber no dolo necessário que,
para todos os efeitos, a vontade do agente estava lá. Até podemos encontrar alguma indiferença no
ordenamento jurídico porque o agente tem um certo objetivo e é lhe indiferente que para atingir esse
objetivo ele vá praticar outro facto típico – dolo necessário.

No regime do art. 14.º/3, a compreensão da posição volitiva do agente é que é o cerne do problema.
Saber se o agente tem ou não a vontade de praticar o crime é que é a questão nuclear que nós
retiramos do art. 14.º/3 “consequência possível” e “conformando-se com essa realização”.

Vejam que o art. 14.º/3 e o art. 15.º/a) CP têm um elemento em comum: a representação da
possibilidade do facto típico – o elemento intelectual está lá. Tanto no dolo eventual como na
negligência consciente. É um elo comum. O elemento diferenciador está na conformação ou não com
essa realização – se houver (dolo eventual – art. 14.º/3), se não houver (art. 15.º/a)).

O problema é que para apurarmos se há ou não conformação, nós temos na doutrina o


desenvolvimento de várias construções sobre esta matéria.

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Direito Penal II – João Maria Falcão – TB – 20/21

Quais as características da vontade que nos permitem diferenciar o dolo eventual da negligência
consciente. Os critérios tradicionais de distinção:

• Teses intelectualistas: (ver melhor) sempre que há uma probabilidade para o próprio agente
de verificação do facto típico há dolo intelectual, depois as
• Fórmulas de Frank
• Conceção da MFP: no fundo, vê a vontade a partir do conceito que se extrai logo da filosofia,
a vontade como perceção da realidade. Portanto, quando nós olhamos para o processo de
interação social, nós vemos que, por vezes, há estágios mentais que são valorados e
ponderados como critérios de interpretação com valor para o Direito Penal.

Esta teoria extrovertida da vontade da Prof.ª MFP, que é construída para interpretar o dolo
eventual. Até agora parece que todas as anteriores apenas assentavam numa conceção
introvertida, sem elementos de distinção – começa a ficar mais rica com a construção da Prof.ª
MFP. Porquê? Porque constrói a partir do pensamento de Aristóteles e da Filosofia da ação –
tende-se a afirmar que o comportamento voluntário é sempre intencional. Quando as pessoas
atuam é porque têm uma intenção, têm um objetivo a atingir. Por isso, é possível construir
raciocínios que nos permitam interpretar um modo como essa ação é realizada. Temos de
olhar para toda a lógica de execução e planeamento da execução do facto. Portanto, à
pergunta: dolo eventual ou negligência consciente é respondida por um observador, que não
é externa, mas sim íntima, olhando para o modo como o agente executa. Teoria do jogador.
O jogador profissional aceita o risco que as diferentes apostas implicam. Portanto, quando
atua, aceitando os riscos, ele quer atingir o seu resultado, comportando na sua forma de agir
e no significado social dessa ação todos os resultados. O jogador não profissional já não será
assim. O jogador não profissional está sempre em tensão. Quando MFP aplica esta teoria
extrovertida da vontade, não vai só olhar para aquela que é a vontade do agente e o concreto
comportamento (como a fórmula de Frank), mas olha para o contexto.

No âmbito do caso Lacman – o agente está no contexto de festa, no contexto de aposta, de


desafio e brincadeira. Isto não cabe no ponto de vista lógico numa premissa de jogador
profissional. Isto não é o mesmo que alguém que vai para um casino e aposta tudo até ao
último tostão com a vontade de ganhar sempre. No caso Lacman, a lógica de festa não permite
concluir pelo dolo eventual.

Já não é assim, no caso dos mendigos russos e nas correias de couro, porque aí o agente
admite todos os risco e realiza todas as diligências para o que possa acontecer. Portanto,
teríamos uma atuação com dolo eventual.

No caso “Very Light”, a Prof.ª MFP entende que no contexto de festa durante a ocorrência do jogo, o
facto do agente já ter disparado outros instrumentos, para a Prof.º MFP considera que se trata de um
jogador não profissional, o jogador não quer as consequências negativas e acredita que elas não se
vão verificar. É por isso que ele atua, porque atua como um jogador não profissional. Assim, seria
incompatível com uma lógica de exteriorização da vontade, não estando em causa o dolo, mas sim a
negligência consciente.

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Direito Penal II – João Maria Falcão – TB – 20/21

CASO “PASSMÚSICA”

António, jovem universitário do curso de gestão, decide utilizar os conhecimentos


académicos apreendidos e abrir um bar. No primeiro dia de funcionamento, durante uma
fiscalização da ASAE, é-lhe levantado um auto pela prática de um crime de violação de
direitos de autor, por estar a passar a música “El cantante” de Marc Anthony sem o
pagamento prévio da taxa devida para o efeito nos quadros do PassMúsica (artigos 195.º,
n.º 1 e 197.º do Código dos Direitos de Autor). António defende-se, argumentando supor
que já deteria todas as autorizações legais necessárias, pois já tinha na sua posse uma
autorização da Sociedade Portuguesa de Autores para a execução pública de CD’s.

Quid iuris?

É um caso real: foi discutido pela jurisprudência e foi bem resolvido. Mesmo aplicando o critério
setorial, como é uma proibição nova, é muito difícil, no momento em que isto acontece ter já
interiorizada a proibição. Portanto, percebe-se a aplicação do art. 16.º/1 e n.º 3.

CASO “ABORTO”

Conchita, cidadã de nacionalidade espanhola a passar férias em Portugal,


descobre estar grávida de 11 semanas. Conchita ingere então medicamentos que sabe
terem efeito abortivo, e provoca o aborto. Em Espanha, o aborto pode ser realizado por
opção da mulher grávida nas primeiras 12 semanas de gravidez.

Conchita pode ser responsabilizada criminalmente pela prática de um crime de


aborto p. e p. no artigo 140.º, n.º 3 do CP?

É um caso em que o agente conhece a realidade – sabe que é proibido abortar, mas só que valor mal
a realidade que conhece, no sentido em que ele supões pelo seu próprio enquadramento é proibido
ainda na semana em que se encontra realizar o aborto.

No entanto, estamos diante de uma male in se, no sentido em que se trata de uma conduta
axiologicamente relevante. O problema é que o agente valora mal a realidade. Não se trata de um
problema de informação e ignorância da realidade, mas de uma errónea valoração da realidade. O
agente, de alguma forma representa fielmente a realidade, no sentido em que sabe que é proibido
abortar, mas quanto à valoração de um certo comportamento. Adota uma valoração diferente do que
a do ordenamento jurídico lhe impõe.

Portanto, tem a sua consciência ética em tenção porque está em divergência com o legislador sobre
a valoração dessa conduta, portanto faz uma interpretação da lei que conhece, mas é errada;
portanto, esta situação apontaria para o regime do art. 17.º CP.

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Aula n.º 10 – 11/05/2021

(sumário)

Na aula de hoje vamos ver as causas de justificação vs. Causas de desculpa. É importante que
percebam onde se situam os diferentes artigos e onde analisam estes problemas.

Quando nós chegamos à categoria analítica da ilicitude, nós sabemos hoje que esta categoria não tem
uma dimensão somente objetiva – não é um puro reflexo da tipicidade objetiva e descritiva. Na
verdade, a ilicitude encerra já em si, um juízo de desvalor que é graduável: o facto pode ser mais ou
menos ilícito. Para isso, é importante que dominem dois conceitos: o desvalor da ação e o desvalor do
resultado.

A ilicitude é uma demonstração coerente de que o facto é contrário a toda a ordem jurídica e, nesse
sentido, o facto irá revelar desvalor da ação e a conduta é desvaliosa porque cria um perigo para o
bem jurídico ou porque lesa o bem jurídico. Tem esta dimensão em geral, e, no fundo, o que temos
do lado do desvalor da ação é a ideia de que ou bem que o agente pratica um comportamento que é
proibido, ou bem que o agente não pratica a ação devida. Corresponde ao desvalor da ação.

Reflexamente, se tivermos uma conduta proibida, ou omissão do dever que se impõe, podemos ter
desvalor do resultado. Portanto: 1) ou temos um desvalor do resultado no sentido em que foi lesado
um bem jurídico (olhamos para essa vertente), ou 2) foi criado um perigo para o bem jurídico – perigo
concreto.

Por vezes, os comportamento só encerram o desvalor da ação, p.e. porque é um crime de mero
resultado. Por vezes, temos um ataque completo à ordem jurídica, comporta desvalor da ação +
desvalor do resultado (p.e. crimes materiais).

Aqui chegado, é importante que percebam que a Prof.ª MFP perspetiva as causas de justificação, não
há luz das teorias dos elementos negativos do tipo (essa é uma construção da Escola Neoclássica), mas
enquanto problema de confronto ou conflito de direitos. Portanto, sempre que opera uma causa de
justificação, é uma causa de justificação jurídico-penal, mas oponível a todo o ordenamento jurídico
– daí a lógica da universalidade que nós de alguma forma retiramos da lógica do art. 131.º CP-

CASO “TENTATIVA DE VIOLAÇÃO”

Isabel encontra-se, à noite, numa rua escura que era forçada a atravessar para
chegar a casa, quando é surpreendida por Orlando, pervertido sexual, que a agarra com
intenção de a violar. Manietada e silenciada, em desespero, Isabel consegue pegar no
telemóvel e atirá-lo para um carro estacionado junto de si. Partindo-se o vidro do carro,
pertencente a Júlio, imediatamente começa a soar o alarme, pelo que Orlando foge.

Quid iuris?

Quanto a Orlando é evidente: temos uma tentativa de violação. O nosso problema jurídico não está
no lado jurídico de Orlando. Problema jurídico é em Isabel: direito de necessidade?

Vamos fazer um confronto entre os pressupostos e os requisitos da legítima defesa (art. 32.º) com o
direito de necessidade (art. 34.º). Este erro é muito frequente e temos de interpretar com rigor.

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Direito Penal II – João Maria Falcão – TB – 20/21

Metodologia: quando vocês ponderam a aplicação de uma causa de justificação têm de verificar um-
a-um os pressupostos – que são os elementos fácticos, corresponde à narrativa do facto concreto, e
temos de verificar se estão verificados ou não. Para além dos pressupostos temos também de olhar
para os requisitos que são CUMULATIVOS – se falha 1x há o afastamento do regime da causa de
justificação, conforme o caso. Depois, a partir das falhas, podemos acionar outras regras legais – mas
em termos puros, já não poderá ser aplicada a causa de justificação.

Legítima Defesa (art. 32.º)

O que é que significa uma agressão atual e ilícita na legítima defesa? É aquela que já está em curso ou
que está iminente (orientação do Prof.º FD). Parece que merece um pouco mais de rigor, daí que a
Prof.ª MFP considera que a agressão atual corresponde na verdade ao regime dos atos de execução
do art. 22.º/2. Nessas alíneas têm um critério objetivo que podem lançar mão para perceber que a
agressão é atual e ilícita – percebe-se que são aquelas que já estão a ser preenchidos os elementos
objetivos do tipo (alínea a)), ou em que as condições de segurança do bem jurídico já foram perdidas
dada a conexão espácio-temporal que nós encontramos no ato de carregar e disparar a arma (alínea
c)). Portanto deve ser assim.

Mas esta agressão atual deve ser humana – praticada por uma pessoa – não vai abarcar crimes
oriundos de atos de animais, ou de comportamentos de animais, ou de natureza. A não ser que o
animal esteja a ser utilizado como arma. Se for esse o caso – já podemos reagir.

Tem de ser ilícita. Não é só a ilicitude de Direito Penal, mas dos quadros de toda a ordem jurídica.
Significa que p.e. pode haver legítima defesa nos quadros de um dano praticado com negligência, que
não é ilícito do ponto de vista do direito penal (o dano não está verificado), mas é ilícito à luz do
ordenamento considerado como um todo.

Esta agressão há que ser contra interesses juridicamente protegidos ou do agente ou de terceiros,
mas esta agressão só poderá incidir sobre bens jurídicos do agressor, portanto da pessoa que está a
cometer a ação atual e ilícita. Na legítima defesa: direitos do agente ou terceiro vs. direitos do
agressor.

Quanto aos requisitos: como desapareceu do nosso CP à referência expressa da proporcionalidade no


regime da legítima defesa a maioria da doutrina (Figueiredo Dias), entende que a proporcionalidade
entre o bem jurídico a salvaguardar e o bem jurídico sacrificado não é operante. A verdade é que a
Professora MFP e o Prof.º Taipa de Carvalho (embora com fundamentos diferentes), defendem que a
proporcionalidade são requisitos da legítima defesa. Faz apelo ao art. 2.º Convenção Europeia dos
Direitos Humanos, ao art. 2.º (princípio da dignidade da pessoa humana) CRP, e ao art. 19.º/4 CRP, ao
regime do estado de emergência. A Prof.ª MFP diz que, em geral, não há um direito de defesa
irrestrito. Significa então que só podemos atacar o núcleo duro dos direitos, liberdades e garantias
composto pela vida, pela integridade física e pela liberdade, quando estejamos em situações da
insuportabilidade da não defesa. Só nessas situações é que o defendendo pode atacar esses bens
jurídicos do ofensor, nomeadamente nas situações de vida contra vida.

É preciso que a defesa seja necessária, só se não pudermos recorrer a outros meios (polícia) em tempo
útil ou se não conseguirmos desviar-nos da situação é que haverá necessidade de defesa. Por outro
lado, temos de olhar para a necessidade do meio – temos de fazer um juízo de prognose e verificar se
dentro dos meios que o agente tinha à sua disposição utilizou o menos gravoso.

Isto significa que mesmo em casos de insuportabilidade da não defesa, ainda temos de olhar para as
circunstâncias do caso concreto. Se p.e. o defendente tiver uma arma e o agressor não tiver, para a

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Prof.º MFP e doutrina não se deve disparar para matar, deve-se disparar para o ar, e disparar para as
pernas. Isto pode não acontecer no caso concreto como nós teorizamos.

Quanto a todas as causas de justificação do lado dos requisitos é: o conhecimento da situação – o


conhecimento dos pressupostos da causa de justificação – a pessoa deve conhecer que está em curso
uma agressão atual e ilícita, contra interesses juridicamente protegidos (do agente ou terceiro). Não
existe animus defendendi na medida em que a pessoa não se tem de defender especificamente com
o intuito de repelir aquela agressão atual e ilícita, desde que o faça dentro desta lógica – até pode
vingar-se um bocadinho de uma pessoa que é sua inimiga, mas desde que seja legitimado por uma
causa de justificação. Isto para dizer que não é preciso uma intenção de defesa, mas o conhecimento
dos pressupostos da legítima defesa ou de outra causa de justificação.

Direito de Necessidade (art. 34.º)

No Direito de Necessidade é preciso que não tenha sido a nossa agente que tenha criado esta situação
(art. 34.º/a) – só pode permitir a aplicação do regime do direito de necessidade quando estiver em
causa uma ação salvadora relativamente a terceiro. Depois, tem de haver uma superioridade do
interesse (art. 34.º/b)) – está aqui uma ponderação de interesses que faz reentrar aqueles critérios
qualitativos; alínea c) e a sua interpretação: a Prof.ª MFP faz apelo à lógica da cláusula tampão, ou
seja, há aqui uma lógica de razoabilidade que deve ser interpretada em função do princípio da
dignidade da pessoa humana. O que significa que quando esteja em causa a vida, a integridade física
e a liberdade, esta ponderação nunca pode determinar o sacrifício do bem jurídico lesado. A dignidade
da pessoa humana impede esse acionar da causa de justificação.

Nós até podemos na ponderação de interesses que o bem jurídico a salvaguardar é superior, p.e.
porque está em causa a vida de uma pessoa vs. a integridade física – como no caso de alguém está a
morrer e precisa de um rim – há uma superioridade qualitativa e quantitativa, mas a cláusula da
razoabilidade na lógica da dignidade da pessoa humana da MFP, impediria que esse sacrifício
determinasse a lesão. Isto significa que o conteúdo da alínea c) e da alínea b) não são coincidentes.
No pensamento do Prof.º FD parece que a alínea c) é só mais uma ponderação quanto ao conflito de
interesses em causa. Na lógica da prof.ª MFP é uma cláusula autónoma com conteúdo próprio que se
liga à dignidade da pessoa humana.

Legitima defesa vs. Direito de necessidade:

o Legítima defesa (art. 32.º):


• Pressupostos:
▪ Agressão atual e ilícita;
▪ Agressão contra interesses juridicamente protegidos;
• Requisitos:
▪ Necessidade da defesa – só se não nos podermos desviar da situação
▪ Necessidade do meio – temos de nos colocar num momento ex ante
e de todos os meios utilizou o menos gravoso;
▪ Conhecimento da situação defensiva – tem de saber que está a
ocorrer uma agressão atual e ilícita – ou seja, não se exige animus
defendendi – uma específica intenção de defesa;
o Direito de Necessidade (art. 34.º):
• Pressupostos:
▪ Perigo atual;
▪ Perigo que ameace interesses juridicamente protegidos;

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Direito Penal II – João Maria Falcão – TB – 20/21

• Requisitos:
▪ Necessidade do meio;
▪ Adequação da lesão;
▪ Modo de criação do perigo – não pode ser criado pelo agente – alínea
a), a menos que seja para proteger os interesses de terceiro;
▪ Superioridade do interesse (alínea b));
▪ Sacrifício razoável – cláusula de razoabilidade (alínea c)): deve ser
interpretada de acordo com a dignidade da pessoa humana – esta
ponderação não pode determinar o sacrifício do bem jurídico –
impede esse acionar;
• Conhecimento da situação perigosa.

O problema jurídico coloca-se ao nível da ilicitude, quanto à questão de saber se devemos acionar a
causa de exclusão da legítima defesa ou do direito de necessidade. Trata-se de uma ação humana
dominada pela vontade, típica do crime de dano (art. 212.º). a tipicidade objetiva e subjetiva estão
preenchidas pois segundo um juízo de prognose póstuma é previsível e espectável que pelo
comportamento da agente se tivesse destruído o carro, e o agente reconheceu e quis realizar a ação
típica – dolo direto (art. 14.º/1). Para a ilicitude (fazer um enquadramento geral desta categoria
analítica da TGIP – fazer apelo à lógica do desvalor da ação e do resultado e da colisão de direitos).
Aqui, afastada a legítima defesa por falta dos pressupostos e requisitos – têm de explicar isto. Porém,
estão preenchidos os pressupostos e requisitos do estado de necessidade. Logo, pela aplicação desta
causa de justificação, desaparece o desvalor do resultado; o desvalor do resultado deixa de vingar
porque para o ordenamento jurídico considerado na sua globalidade o resultado é valioso por estar
justificado. Da mesma forma que desaparece o desvalor do resultado, desaparece igualmente o
desvalor da ação. Como esta é uma ação salvadora, a agente está a atuar segundo uma lógica de
solidariedade do art. 34.º CP, a sua conduta deixa de ser desvaliosa e todo o seu comportamento deixa
de ser desvalioso. Por isso, contra causa de justificação, não há causa de justificação operante. Quem
está a atuar ao abrigo de uma causa de justificação não pode ver contra ele exercido uma outra causa
de justificação. O facto vê-se justificado, exclui-se a ilicitude, pelo que Isabel não é sujeita a
responsabilidade jurídico-penal.

CASO “KARATÉ”

Certa madrugada, quando Ana sai do carro de regresso a casa, repara na presença
de um homem, com cerca de 1,80m e muito encorpado, que já por diversas rondara a
porta do seu prédio. Com medo de uma eventual violação, Ana, franzina e de pequena
estatura, grita na direção do homem, avisando que sabe karaté. Porque o vulto se
aproxima, Ana desfere um golpe em direção ao estômago do agressor, que se dobra com
a dor, gritando que apenas se pretendia apresentar, pois havia-se mudado recentemente
para o prédio de Ana.

Quid Iuris?

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Face aos dados da hipótese, a nossa Ana pensa e supõe que vai ser agredida, portanto há uma
narrativa e uma ficção na sua cabeça. Esta história não tem aderência à realidade, porque na verdade,
nada disto está a acontecer. Esta agente está em erro sobre a factualidade da causa de justificação
porque percecionou mal a realidade. Porque é que percecionou mal a realidade? O erro suposição.

Não fora a circunstância de tudo se desenrolar dentro da cabeça da nossa agente, nós podíamos ter
uma agressão atual e ilícita e seria contra interesses juridicamente protegidos da própria. Se fosse
esse o caso, a nossa agente teria necessidade de defesa na lógica da Prof.ª MFP, utiliza o meio
necessário porque dentro dos meios possíveis utiliza os golpes de Karaté que conhece – exerce a força
e atinge a integridade física do suposto agressor para proteger a sua liberdade e autodeterminação, e
conheceria toda esta situação.

Problema: nada disto acontece na realidade. Falham os pressupostos da causa de justificação legítima
defesa. Mas a causa de justificação que seria aplicada no caso seria verdadeiramente a legítima defesa
porque supostamente estava a repelir uma agressão atual e ilícita.

Se a pessoa está a aproximar-se era iminente na acessão do art. 22.º/2/c) CP porque haveria a conexão
espácio-temporal entre a conduta e o contacto com o bem jurídico que faria perder as condições de
segurança do bem jurídico autodeterminação sexual.

Efeito espelho: em regra, quando falham os pressupostos de uma causa de justificação o regime a
aplicar é o do art. 16.º/2 que é exatamente aquilo que nós temos. Esta é a situação clássica de legitima
defesa putativa, porque a pessoa verdadeiramente pressupõe que está em curso uma agressão atual
e ilícita, ou supõe que existe um perigo atual ou que existe um conflito de dever, mas tudo isto não
passa de uma narrativa que o agente constrói na sua cabeça – ela não existe.

Ou seja, os pressupostos não se verificam porque tudo isto é suposto (erro suposição), mas se fosse
verdade, o agente teria os requisitos da causa de justificação verificados. É muito importante que
analisem logo o que se verifica e o que falha – neste caso se os pressupostos estivessem verificados,
os requisitos também estariam e a causa de justificação seria operante. Se vocês fizerem este exercício
nunca se enganam!

Nestas situações em que falham os pressupostos falham, mas se verificam os requisitos (se a situação
fosse real) temos um erro suposição e uma causa de justificação putativa, neste caso, legítima defesa
putativa. Qual o regime? É o do art. 16.º/2 – o agente está em erro sobre um estado de coisas que não
existe, mas se existisse excluiria o dolo. Se o estado de coisas que fundamenta esta causa de
justificação se verificasse, se realmente fosse atacar a senhora, os requisitos da legítima defesa
estariam preenchidos.

Porque é que nós aplicamos o regime do art. 16.º/2 – porque no pensamento do Prof.º FD é uma
situação estruturalmente uma situação idêntica ao erro sobre a factualidade típica do art. 16.º/1 –
porque também aqui há um erro de perceção e uma desconformidade com o real. Mas agora, esta
falha de perceção e desconformidade com o real – este erro suposição – incide sobre os pressupostos
fácticos de uma causa de justificação.

Problema jurídico central: legítima defesa putativa. Onde é que se analisa o regime do art. 16.º/2? Na
culpa. Então, sistematizando a resposta: temos uma ação humana dominada pela vontade, típica do
crime de ofensa à integridade física simples do art. 143.º CP, objetiva e subjetivamente a tipicidade
está preenchida. Chegados à ilicitude, tínhamos de explicar que os pressupostos da legítima defesa
não estariam preenchidos, mas que se a agressão atual e ilícita existisse, os requisitos da legítima
defesa estavam verificados (explicar porquê), mas como os pressupostos e os requisitos da legítima

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defesa são cumulativos, a legítima defesa não é operante. Não é operante, logo, permanece o desvalor
da ação e o desvalor do resultado. Mas quando olhamos estruturalmente para a situação, nós
percebemos que pelo art. 16.º/2 a intensidade deste desvalor desaparece e por isso é que o legislador
neste artigo, em sede de culpa, considera que se o agente está em erro sobre um estado de coisas que
se existisse permitiria excluir a ilicitude do facto, nós devemos excluir o dolo. Aqui é que podem
desenvolver as diferentes teorias à volta do dolo. Que dolo é este? É o dolo do tipo? É o dolo da culpa?
O Prof.º FD diz que é o dolo emotivo – podem fazer esta construção.

Aplicando o art. 16.º/2, a solução é a exclusão automática do dolo. Então, fica ressalva a punibilidade
por negligência nos termos gerais pelo art. 16.º/3. (art. 148.º + art. 15.º/a))

CASO “MALDADE PREVIDENTE”

Aníbal decide vingar-se de Bruno e, sabendo que o vizinho estava no estrangeiro,


lança uma pedra em direção à janela do quarto deste. O alarme dispara e, dez minutos
depois, quando a polícia chega ao local, isolado, acaba por evitar um incêndio que
deflagrara quinze minutos antes.

Quid iuris?

O nosso problema jurídico é o direito de necessidade objetivo – ou seja, neste caso, ao contrário do
anterior, falha ao agente a informação e o conhecimento da ação salvadora que se está a promover.
Faltou o elemento subjetivo da situação – faltou o conhecimento dos pressupostos da causa de
justificação.

Se o agente promove uma ação salvadora sem saber que está a promover uma ação salvadora, o que
é que resta? Desparece o desvalor do resultado? Sim! Passou a ser valioso. Mas e o desvalor da ação?
Não, porque falta a consciência de que o agente está a promover uma ação salvadora. Daí que seja
aplicável analogicamente o regime do art. 38.º/4, porque na tentativa não há desvalor do resultado,
mas desvalor da ação.

O que é que acontece na tentativa? Pode a norma conter uma pena até 3 anos, mas ter uma regra na
PE que nos diga que a tentativa é punível independentemente dessa regra geral.

Todos percebem que o que está em causa não é a legítima defesa porque não há uma agressão atual
e ilícita dominada pela vontade de uma pessoa – p.e. num automatismo não há agressão. Mas o direito
de necessidade seria operante. Teríamos um perigo atual que ameaçaria interesses juridicamente
protegidos por terceiros, portanto estariam verificados os pressupostos. Do lado dos requisitos,
verdadeiramente, estariam também preenchidos os requisitos (analisar um-a-um), exceto o
conhecimento da ação salvadora – elemento subjetivo da ilicitude.

Nós chegamos aqui e vamos ver o que falha. Estamos na lógica do efeito espelho do regime do direito
de necessidade putativo vs. direito de necessidade objetivo. Nós temos os pressupostos da causa de
justificação todos verificados. Portanto, não podemos ir para o regime do art. 16.º/2. Poderemos é
ponderar aplicar o regime do art. 38.º/4. Exige que todos os pressupostos estejam verificados e que
todos os requisitos também o estejam, exceto o conhecimento da situação, ou seja, o agente não
conhece que está a promover a ação salvadora. Numa situação como essa – regime do consentimento.
Neste art. 38.º/4 – se o consentimento não for conhecido do agente é aplicável a tentativa. O que é

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que justifica o regime? Estruturalmente, no caso da tentativa, o desvalor do resultado desaparece e


permanece apenas o desvalor da ação – é especialmente atenuado (art. 23.º).

Esse regime que está pensado para o consentimento, na verdade, faz sentido que seja aplicado sempre
que todos os pressupostos e requisitos de uma causa de justificação estejam preenchidos, exceto o
conhecimento da causa de justificação – porquê? Porque o desvalor do resultado desparece, mas
permanece o desvalor da ação, porque o agente não sabe que está a promover uma ação salvadora.
Se não sabe não deve beneficiar do mesmo regime do que aqueles que sabem que promoveram uma
ação salvadora. O facto de ter conseguido deve ser valorizado pelo ordenamento jurídico – por isso é
que nós encontramos este regime do art. 38.º/4 – que devem ser aplicadas analogicamente e bona
partem a estes casos.

Deve ser punido de acordo com o regime da tentativa ou por tentativa? Dizer que deve ser punido
por tentativa isso significa que temos de articular o art. 38.º/4 com o art. 23.º/2 – isto é vamos punir
o agente pelo crime correspondente, mas especialmente atenuada a pena de acordo com a lógica da
punição da tentativa nos termos do art. 23.º/2. Aplicar de acordo com o regime da tentativa significa
olhar para o regime como um todo, e, olhar para a questão de saber se no caso em concreto a tentativa
é punível ou não. Se for punível – punir em concreto; se não for punível (porque o crime consumado
não tem pena superior a 3 anos) então o agente não deve ser punido. Este é o entendimento da Prof.ª
MFP, porque só estamos a olhar para o desvalor da ação – então se o legislador entende que não deve
ser punido só pela tentativa, então não devemos punir o agente.

Temos uma ação humana dominada pela vontade, típica do crime de dano (art. 212.º

212.º/1 – tentativa é punível; furto – pena até 3 anos, mas a tentiva é punível. 143.º - pena até 3 anos,
mas agora já não estabelece que a tentativa é punível. Forma tentada – mas se nos tentarem dar um
estalo – justiça pelas próprias mãos.

Todos percebem que não está em causa a legítima defesa – não há nenhuma ação humana com
vontade atual; mas os requisitos estariam verificados, exceto o conhecimento da ação salvadora.
Direito de necessidade putativo vs. Direito de necessidade objetivo. A aplicação do art. 38.º/4 – exige
que os pressupostos e requisitos estejam verificados; o desvalor do resultado desaparece na tentativa
e mantém-se o desvalora da ação – + art. 73.º CP. Faz sentido que seja aplicado sempre que todos os
pressupostos e requisitos estejam verificados – exceto o conhecimento. O facto de ter conseguido
lograr deve ser valorizado pelo ordenamento jurídico é uma aplicação analógica.

Resolução do caso: temos uma ação humana dominada pela vontade típica do crime de dano (art.
212.º). Os elementos objetivos e subjetivos estariam preenchidos. O agente atuaria com dolo direto
e o problema jurídico central seria o direito de necessidade objetivo. Reparem que aqui nós vamos
resolver o problema todo em sede de ilicitude. Portanto, este art. 38.º/4 que aplicamos por analogia,
é operante nos quadros da ilicitude (explicar tudo). Portanto, o desvalor do resultado desaparece, mas
permanece o desvalor da ação porque o agente não tinha conhecimento, sendo aplicável o art. 38.º/4
CP. Como há culpa, nós chegamos ao regime da punibilidade e vamos ver se a tentativa é punível.
Temos de olhar para o regime do art. 23.º/1 e determinar a punibilidade da tentativa. No caso
concreto, a tentativa é punível nos termos do art. 212.º/2, então podemos afirmar que A seria punido
pelo crime de dano na forma tentada para efeitos do art. 212.º/2 articulado com o art. 22.º, praticado
com dolo direto (art. 14.º/1), mas beneficiando de uma atenuação da pena (art. 23.º/1 e 2, 72.º e
73.º).

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CASO “CÉSAR, O MÉDICO”

César é médico de clínica geral no Hospital SM e, numa noite especialmente


agitada, constata que Dalila, sua namorada, acaba de dar entrada em estado grave.
Imediatamente, por se tratar da sua namorada, interrompe os cuidados que prestava a
Eva (também em estado muito grave e que igualmente acabara de chegar), procede à
reanimação de Dalila e liga-a a uma máquina de suporte de vida. Mais tarde vem a
constar-se que, se César não tivesse procedido deste modo, Dalila teria morte certa,
enquanto Eva acabou por sobreviver, apesar do atraso no tratamento.

Quid iuris?

CASO “A FESTA”

Álvaro convida vários amigos para uma festa em sua casa. Bruno chega antes da
hora marcada e, aproveitando o facto de o portão estar aberto, entra em casa de Álvaro.

Bruno pratica um facto típico do artigo 190.º do CP? (Nota: não foi resolvido)

CASO “JOVENS MELIANTES”

Pelo menos uma vez por semana, Ana, Rui e Sandro, jovens colegas de escola de
15 anos de idade, dirigem-se à mercearia da esquina e provocam desacatos, ameaçam o
dono, Amílcar, e furtam vários produtos. Tudo acontece muito depressa e os meliantes
escondem a cara com máscaras, pelo que a polícia é ineficaz. Certa tarde, Amílcar está a
sair da sua carrinha quando vê Rui a aproximar-se da mercearia e a colocar a máscara.
Imediatamente, pega no dispositivo de choque elétricos que havia adquirido e descarrega-
o em Rui, que cai e bate com a cabeça no chão, ficando com um traumatismo craniano.
(Nota: não foi resolvido)

Quid iuris?

CASO “COWBOY”

Nádia sempre foi uma pessoa assustadiça, mas tudo piorou desde o confinamento.
Ontem, Nádia viu-se obrigada a sair de casa para ir à farmácia pela primeira vez em
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muitos meses. Na esquina da sua rua, Nádia deparou-se com um rapaz com aspecto de
13/14 anos com uma arma na mão, vestido de cowboy e a correr em sua direção. Em
pânico, Nádia pensou que ia ser atacada e utilizou um aparelho de choque, de proteção
pessoal, contra Óscar, repetidamente, mesmo depois de este cair no chão, já sem reação,
e de os amigos deste, vestidos de índios, explicarem que se tratava de uma festa de
aniversário ao ar livre. Mas Nádia só parou depois de ter descarregado toda a carga do
aparelho. Óscar foi transportado de urgência para o hospital, mas não recuperou da falha
cardíaca provocada pelo choque, vindo a falecer.

Quid iuris?

Este é um problema caso que a Prof.ª MFP adora e poucos têm sido as frequências e exames que isto
não aparece. Até aqui, o que é que nós vimos: vimos que podem estar preenchidos todos os
pressupostos e requisitos de uma causa de justificação, mas falta o conhecimento – art. 38.º/4;
também vimos que o efeito espelho nos leva a concluir que se os requisitos estão verificados, mas nos
falham os pressupostos – causa de justificação putativa – art. 16.º/2.

Acontece que por vezes podemos ter um concurso de erro e de excesso – não só o agente está em
erro porque verdadeiramente supõe uma realidade que não existe – supõe que está a atuar por uma
causa de justificação que não corresponde à realidade. É uma situação putativa e pensada. Não tem
aderência à realidade, e, nesse caso está em erro suposição quanto aos pressupostos de uma causa
de justificação. Mas, mesmo que essa suposição correspondesse à realidade, sempre estaria em
excesso. Isto corresponde à situação que a Prof.ª MFP chama de concurso entre erro e excesso.

Literalmente, nós não temos uma solução legal para estes problemas de erro e de excesso. Em geral,
a doutrina não trata estes problemas de forma autónoma, portanto, dir-se-ia que o agente está em
erro sobre um estado de coisas que se existisse excluiria a culpa do agente. Porque, se o agente está
em erro estaríamos no âmbito do art. 16.º/2, e se está em excesso – não haveria justificação, mas
podia haver desculpa – aplica-se a parte do erro do art. 16.º/2 que faz apelo ao estado de coisas que
excluiria a culpa do agente.

A Prof.ª MFP diz que se realmente a pessoa está em erro, e se está em excesso, porque é que vai
beneficiar do regime mais benéfico do art. 16.º/2? Esse regime legal está pensado para situações em
que se justifica na lógica do erro intelectual afastar o dolo e atenuar substancialmente a
responsabilidade jurídico-penal, porque o grau de pena é muito menor. Nos casos em que estejamos
simultaneamente perante um erro suposição e perante um erro de excesso – falham os pressupostos
e o requisitos do excesso, nós temos dois caminhos possíveis:

• Aplicar o art. 16.º/2;


• Aplicar o regime do art. 33.º/1, punindo o agente por analogia (está pensado para uma causa
de desculpa).

A Prof.ª MFP contruiu um caminho muito interessante que basicamente se reconduz a esta ideia: se
este excesso é motivado pela própria situação de erro onde a pessoa se encontra, então podemos
ponderar aplicar o art. 16.º/2 que é o regime mais benéfico. P.e. atuar em legítima defesa, mas a
agressão terminou – mas o agente pensa que vai continuar a ser agredido, então desfere mais duas
pancadas no agressor – mas isso não tem aderência à realidade. Na verdade, o agente está em

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excesso. Mas esse excesso é explicado pelo próprio erro – porque o agente não ia ser mais agredido,
é uma situação de desforço, quando há uma atuação contra uma atuação atual e ilícita que deixa de
ser atual. Nós estaríamos perante um excesso que é absorvido pelo erro do art. 16.º/2 porque o
excesso é explicado pela própria situação de erro – corresponde à lógica do 16.º/2 que é o erro
suposição, o erro intelectual que provoca o próprio excesso.

Aqui no caso, mesmo que nós olhássemos para este caso imaginando a realidade factual da agente,
i.e., mesmo que, para todos os efeitos ela estivesse na iminência de ser atacada por este cowboy, ela
descarrega o sistema até deixar de funcionar mesmo depois de ver que a pessoa está queimada no
chão. Portanto, claramente estamos numa situação de excesso de meios e portanto, o meio já há
muito deixou de ser necessário – o excesso não é motivado pelo erro. Assim, vamos para o regime do
art. 33.º/1 por analogia. Porque não faz sentido que o agente esteja a beneficiar de um regime que
estruturalmente foi pensado para erro sobre causas de justificação e não para uma situação em que
está em livre e não deve beneficiar de um regime similar que permite punir intensamente o agente
através do regime da negligência. MFP garante que o bens jurídicos sejam protegidos de forma
atenuada, mas punida.

Resumindo: ação humana dominada pela vontade, típica do crime de homicídio, praticado com dolo
eventual (131.º + 14.º/3), ilicitude: os pressupostos não estão verificado, não sendo operante (art.
32.º e 34.º), sendo uma ação típica e ilícita. Na culpa temos de chamar à colação a eventual aplicação
do art. 16.º/2 e a sua articulação com o art. 33.º/1 aplicada por analogia. A conclusão seria que como
o excesso não é motivado pelo erro, levaria à aplicação do art. 33.º/1 por analogia.

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