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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA


ANO LECTIVO 2018/2019
DIREITO PENAL II – SUBTURMA 16

Resolução de Casos Práticos – Proposta(1)

Tipicidade Subjectiva

Erro e casos análogos

1) A, regressando embriagado de um jantar a altas horas da noite, pretende voltar para


casa no seu automóvel, mas dirige-se para outro carro, de modelo diferente, sem reparar
que não é o seu. No momento em que tenta abrir a fechadura é surpreendido por uma
autoridade policial. Quid juris?
O problema descrito na hipótese sugere a prática de um crime de furto, p.e.p. no artigo
203.º do Código Penal.
Especificamente, a situação enunciada suscita a questão da vinculação psicológica do
agente com o resultado, traduzida pelo dolo. Objecto do dolo são os elementos do tipo
objectivo, que deverão ser considerados pelo agente do ponto de vista do elemento cognitivo
e do elemento volitivo (princípio da congruência).
Na hipótese descrita, A está em erro sobre o objecto porque representa equivocamente
um elemento essencial do tipo: o carácter alheio da coisa (artigo 203º do Código Penal).
Encontramo-nos diante de um erro ignorância, previsto no artigo 16.º, número 1 do Código
Penal. Explicitando, o agente ignora que o objecto da sua acção é alheio. Como se intui, para
podermos afirmar, genericamente, que o agente “quer” furtar o carro, é indispensável que
represente que esse objecto não lhe pertence. Assim, o referido preceito determina a exclusão
do dolo do tipo, ficando contudo ressalvada a punibilidade a título negligente (artigo 16.º,
número 3 CP).
No entanto, nos termos dos artigos 13.º e 15.º do Código Penal, a negligência só será
punível quando haja expressa previsão, o que não ocorre no caso do furto.

(1)
O presente documento apresenta meras propostas de resolução dos casos práticos tratados nas aulas práticas,
e não dispensa a frequência às aulas teóricas e a consulta dos manuais de referência.

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Poder-se-ia ainda equacionar a relevância de uma acção livre na causa (artigo 20.º,
número 4 do código Penal), traduzida pela circunstância de o agente se ter voluntariamente
colocado na situação de embriaguez para não conseguir distinguir os carros e, desse modo,
praticar o furto. Todavia, não dispondo de quaisquer dados que sustentem essa conclusão,
impõe-se afastar este cenário. Assim, o agente não seria punido.

2) B quer furtar o computador portátil do seu colega C, exteriormente idêntico ao seu,


mas com tecnologia de última geração no interior. Todavia, engana-se e acaba por levar
o seu. Quid juris?
Acha-se novamente indiciada a prática de um crime de furto (artigo 203.º do Código
Penal). Havendo acção e tipicidade objectiva, impõe-se explorar a questão da tipicidade
subjectiva.
Neste caso, o agente encontra-se em erro porque atribui uma qualidade ao objecto que
ele não tem, e que é elemento essencial do facto típico. Efectivamente, para se verificar um
furto, é necessário que o objecto da acção corresponda a uma coisa móvel alheia (artigo 203.º
do Código Penal). Na presente hipótese, o agente supõe tratar-se de uma coisa móvel alheia,
o que não se verifica. Assim, o erro do agente é um erro-suposição: B supõe que o computador
possui uma qualidade essencial para o tornar passível de furto por ele. Dito de outro modo,
B julga estar a levar o computador de C que seria um objecto típico do furto, por não lhe
pertencer. O erro-suposição segue, em princípio, o regime da tentativa impossível. Com
efeito, a acção do agente dirige-se a um objecto inexistente para efeitos do preenchimento do
tipo de crime em causa: um bem próprio não é susceptível de furto pelo proprietário
Isto dito, importa verificar se a tentativa é punível no tipo de crime em causa, devendo,
nos termos do artigo 23.º, número 1 do CP, ao crime consumado corresponder uma pena
superior a 3 anos – o que não acontece (artigo 203.º, número 1 do CP: “até três anos”. Há
ainda que verificar se existe previsão especial de punibilidade por tentativa, o que se observa
no artigo 203.º, número 2 do Código Penal. Consequentemente, esta disposição diz-nos

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apenas que, em regra, as tentativas de furto simples são puníveis. Contudo, estamos perante
uma tentativa impossível, pelo que importará aferir da respectiva punibilidade, ao abrigo do
disposto no artigo 23.º, número 3 do Código Penal. Pelos dados da hipótese, nada nos leva a
crer que seja manifesta a inexistência do objecto. Assim, em princípio esta tentativa será
punível.

3) D pretende matar o ruidoso cão do seu vizinho E e, assim que anoitece, coloca-se à
janela com a arma apontada, à espera que o cão saia de casa. No momento em que vê
um vulto baixinho sair, dispara. No entanto, não se tratava do cão, mas do próprio E,
que andava de gatas à procura de um botão de punho que perdera nessa tarde e que
vem a ter morte imediata. Quid juris?
O caso descrito suscita a discussão de punibilidade de dois crimes diferentes: a morte
do vizinho – homicídio (artigo 131.º do Código Penal); e a desejada morte do cão – crime de
dano (artigo 212.º do Código Penal).
No que respeita ao homicídio de E, D ignora um elemento essencial do tipo, que é a
qualidade de “pessoa” do objecto da sua acção. Como sabemos, o homicídio só pode ter por
objecto uma pessoa. Deste modo, D encontra-se numa situação de erro sobre a pessoa, que
será relevante pelo facto de se tratar de um requisito essencial para a observância do tipo de
homicídio. Consequentemente, tal erro-ignorância permitirá excluir o dolo do tipo nos termos
do artigo 16.º, número 1 do Código Penal. Todavia, importa não esquecer a previsão do artigo
16.º, número 3 do Código Penal, que ressalva a punibilidade a título negligente. Por este
motivo, impunha-se verificar, in casu, se D tinha actuado de forma negligente. Concluindo-
se em sentido afirmativo, D responderia a título de homicídio negligente (artigo 137.º do CP).
Caso contrário, afastar-se-ia a punibilidade quanto a este crime.
No que se refere ao crime de dano, observa-se igualmente um erro: se D matou o
vizinho, não matou o cão. Trata-se agora de um erro-suposição (D supôs erroneamente estar
a disparar contra um cão, e estava a disparar contra uma pessoa), que seguirá o regime de
tentativa impossível. Em primeiro lugar, impera indagar, genericamente, da punibilidade da

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tentativa de dano, o que resulta do disposto no artigo 212.º, número 2 do Código Penal. De
seguida, cumpre aludir ao disposto no artigo 23.º, número 3 do Código Penal. Nesta sede,
dir-se-á que, não sendo manifesta a inexistência do objecto, a tentativa será punível.

4) F quer furtar o gato de G, mas engana-se e subtrai o gato de H, que é muito parecido.
Quid juris?
Encontramo-nos, neste hipótese, perante um erro sobre a identidade do objecto, já que
F pretende furtar o gato de G, mas subtrai o de H (error in persona vel objecto). O elemento
relevante para o tipo de crime em causa – o furto (artigo 203.º do Código Penal) – prescinde
completamente da concreta identidade do objecto. Deste modo, o tipo de furto encontra-se
preenchido desde que o objecto subtraído seja uma coisa móvel alheia – o que, neste caso, se
verifica: tanto o gato de G como o gato de H são coisas móveis alheias. Por isso, este erro é
perfeitamente irrelevante, sendo F punido por furto consumado (artigo 203.º do Código
Penal).

5) I pretende partir o vidro da janela de J. Atira uma pedra, mas, por falta de pontaria,
acerta em L que está na varanda do lado direito e que nem sequer tinha visto. Quid
juris?
Afirma-se, inequivocamente, a existência de comportamento humano voluntário e,
nesse sentido, de acção penalmente relevante. Importa, por isso, proceder à análise da
tipicidade.
Em termos objectivos, e quanto ao crime de dano (artigo 212.º do Código Penal), o
agente criou um risco proibido para o bem jurídico. Porém, o risco concretizado no resultado
não corresponde ao perigo típico criado pelo agente, apesar de materialmente se observar tal
concretização (o agente acertou no L ao tentar atingir a janela). Numa formulação alternativa:
o risco que produziu o resultado típico é oriundo da conduta do agente. Todavia, de acordo
com a representação e vontade de D o risco típico criado seria o risco de dano e não de ofensa
à integridade física.

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Perante estas constatações, diremos que ocaso descrito parece corresponder às


chamadas situações de erro na execução, em que o agente não provoca o risco que
inicialmente tinha previsto, acabando por desencadear um processo que conduz a uma lesão
diferente da que pretendia causar. Trata-se de um contexto comummente designado como
aberratio ictus vel impetus, caracterizado pela ocorrência de um erro na execução que produz
um resultado distinto do projectado pelo agente.
Neste concreto cenário, não se verifica uma identidade típica de objectos: sugere-se a lesão
típica de dois crimes distintos. De facto, na nossa hipótese, estaremos a olhar para uma ofensa
à integridade física (em relação a L) e a uma tentativa de dano – relativamente à janela.
No que concerne ao dano, teremos, no máximo, uma tentativa. Existe desvalor da acção
- I criou um risco para a janela, e actuou com dolo directo (artigo 14.º, número 1 do Código
Penal). No entanto, por falta de pontaria, não logrou produzir o resultado correspondente ao
perigo criado. Releva, por isso, averiguar da respectiva previsão de punibilidade, já que a
pena consagrada para o crime consumado não é superior a três anos (artigos 23.º, número 1
e 212.º, número 1 do Código Penal). No entanto, o artigo 212.º, número 2 do Código Penal
prevê a punibilidade da tentativa de dano.
Relativamente à ofensa da integridade física, ela surgirá sob forma negligente,
afirmando-se a respectiva punibilidade com recurso aos artigos 13.º e 148.º do Código Penal.

E quid juris se I acertar no canário que está na varanda do lado esquerdo e que nem
sequer tinha visto?
Partindo deste cenário, diremos que se observa novamente um erro na execução ou uma
aberratio ictus. Com efeito, E dirigira a sua acção para atingir a janela e, a final, acertou no
canário.
Aqui, haverá uma identidade típica de objecto, já que os crimes em causa são dois
crimes de dano: um sob a forma tentada, em relação à janela; e outro sob a forma consumada,
em relação ao canário. Nestes casos, discute-se se o agente deverá ser punido em concurso
(tentativa de crime de dano e dano negligente) ou se, pelo contrário, se deverá equiparar esta

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situação ao caso do erro sobre a identidade do objecto, e punir o agente por um único crime
doloso.
A este respeito, afirma-se que a solução do concurso (teoria da concretização) poderá
redundar, muitas vezes, na não punibilidade do agente. Pense-se nas situações em que a
tentativa não esteja prevista, ou não seja punível por outra qualquer razão.
A doutrina dominante tem entendido, ainda assim, que a punição em concurso será a
mais adequada, já que nas hipóteses de aberratio ictus se observa, tipicamente, a criação de
dois perigos autónomos que merecem tutela penal. Deste modo, importaria demonstrar, para
sustentar este entendimento, que teria havido criação de perigo para a janela, paralelamente
ao risco criado para o canário, que conheceu concretização no resultado proibido.
Consequentemente, no que concerne à janela, haveria uma tentativa de dano (artigos
212.º, número 2 e 23.º do Código Penal). Todavia, quanto ao canário impunha-se excluir a
punibilidade: efectivamente, não existe previsão de dano negligente, tratando-se de crime
que exige a verificação de dolo (artigo 13.º do Código Penal).

6) M quer afastar de uma competição hípica o seu rival desportivo N. Assim, dispara
para atingir N ou o cavalo deste. Quid juris se atingir o cavaleiro?
A hipótese obriga à análise da actuação de M à luz do crime de homicídio (artigo 131.º
do Código Penal) ou ofensa à integridade física (artigo 143.º do Código Penal) e dano (artigo
212.º do Código Penal).
Do ponto de vista da acção e da tipicidade objectiva, não se observam problemas de
maior. Existe comportamento humano voluntário e comprova-se a criação de um risco
proibido, materializado no resultado.
Subjectivamente, a situação descrita configura um caso de dolo alternativo, já que o
agente representa e deseja lesar ou o cavalo ou o cavaleiro, sendo indiferente atingir um ou
o outro resultado.
A este propósito, sublinha FIGUEIREDO DIAS que o agente conta com ambas as
possibilidades, e conforma-se com elas. Por esse motivo, o seu dolo deve ser afirmado quanto

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ao tipo objectivo realmente preenchido pela conduta. No caso, equivalerá isto a afirmar que,
sendo atingido o cavaleiro, o agente responderá por homicídio doloso consumado, caso se
observe a morte (artigo 131.º do Código Penal).
Em alternativa, tem alguma doutrina sugerido a possibilidade de punir o agente pela
tentativa do crime mais grave, caso esse não seja o crime consumado. No entanto, tal posição
não determinaria uma solução distinta da anterior, já que o resultado típico ocorrido – acertar
na pessoa em vez de no animal – constitui o crime mais grave. Dito de outro modo: uma vez
que o agente acertou no cavaleiro, impõe-se concluir que praticou o crime mais grave. Nestas
hipóteses, também esta perspectiva doutrinária defende a punição a título doloso consumado,
visto que não teria qualquer cabimento falar num mero crime tentado.
De acordo com MARIA FERNANDA PALMA, poderia ainda defender-se a solução de
punibilidade por dois crimes dolosos: um na forma tentada (dano – 212.º do Código Penal) e
outro na forma consumada (ofensa à integridade física do cavaleiro – 143.º do Código Penal).

Quid juris se atingir o cavalo?


Em relação ao cavalo, e adoptando a formulação de MARIA FERNANDA PALMA haverá
punição por crime de dano doloso (artigo 212.º, número 2 do Código Penal) e tentativa de
homicídio dolosa (artigo 23.º número 1 do Código Penal).
Se tal solução parece adequada e sensata à primeira vista, importa não negligenciar a
doutrina típica nesses casos. Conforme vimos, admite apenas, nesta sede, a punição por um
único crime doloso. Na verdade, o perigo só teria sido concretizado num dos resultados
típicos (a morte do cavalo).
Finalmente, cumpre referir a solução que defende a punição por tentativa do crime mais
grave, quando não sendo esse o consumado. Segundo este critério, diríamos que M
responderia por uma tentativa de homicídio dolosa (artigo 13.º, 22.º e 143.º do Código Penal),
mesmo tendo atingido o cavalo.

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7) O lança P de uma ponte sobre o Tejo para que este morra afogado. Todavia, P cai
sobre um barco que vinha a passar e morre com o embate. Quid juris?
Atendendo ao referido supra, impõe-se enquadrar a actuação de O à luz do crime de
homicídio (artigo 131.º do Código Penal). Em termos de comportamento penalmente
relevante, não se identificam quaisquer problemas.
Na verdade, o enunciado sugere uma situação de erro sobre o processo causal, em que
o agente consegue atingir o seu objectivo (no caso, matar P). Porém, alcança tal desiderato
de uma forma diferente da inicialmente concebida. É exactamente neste ponto que o erro
sobre o processo causal se distingue da aberratio ictus: nesta, o agente não consegue produzir
o resultado inicialmente almejado.
Releva, assim, abordar a problemática relativa à extensão o dolo., Sinteticamente,
cumpre saber se o dolo deverá abarcar o concreto processo causal que desembocará na
produção do resultado típico. A doutrina tradicional responde afirmativamente a esta questão,
sugerindo que a técnica estaria em saber se o resultado traduziria a ocorrência de um desvio
essencial. Nestes termos, entenda-se que se o concreto desvio fosse previsível, integraria o
respectivo dolo e o agente seria punido por crime doloso consumado; ao invés, tratando-se
de um desvio completamente imprevisível, o dolo seria excluído e salvaguardar-se-ia a
punição a título negligente.
Apesar da intuitiva razoabilidade desta construção, importa lembrar que o dolo não se
reconduz a previsibilidade, mas sim a previsão efectiva. Para haver dolo, o agente tem de,
pelo menos, prever como possível a verificação do resultado. Impõe-se, aqui, uma previsão
efectiva, uma acção “dirigida” à produção desse resultado. Por esse motivo, refere PUPPE que
quando o processo causal se desenvolve de forma completamente imprevisível, não haverá,
desde logo, imputação objectiva, pelo que o erro sobre o processo causal seria um problema
de tipicidade objectiva e não de imputação subjectiva.
Para ROXIN, diferentemente, a essência do dolo está no plano do agente.
Consequentemente, o resultado poderá ser imputado a título doloso se ainda for uma

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concretização do plano desse mesmo agente. ROXIN indica que assim acontecerá, via regra,
nos crimes de execução livre e não nos de execução vinculada.
Por seu turno, MARIA FERNANDA PALMA sublinha que nas hipóteses de processos com
risco intenso e consequências incontroláveis, não haverá verdadeiramente erro. Nesses casos
– afirma a autora –, o agente representa simultaneamente a verificação de múltiplos riscos,
sendo tais perigos concretização do risco inicialmente criado.
Daqui tende a concluir que o dolo não tem que abarcar o processo causal, bastando que
o agente represente os elementos da imputação objectiva – criação do risco proibido e
resultado como concretização desse risco – para que o crime seja imputável a título doloso.
Neste cenário, parece possível afirmar que O representa os pressupostos de imputação
objectiva, concebendo que mesmo que P não morresse por afogamento, poderia morrer por
uma outra causa, igualmente provável. Assim, dir-se-á que haverá imputação objectiva do
resultado morte de P ao comportamento de O.

8) Q envenena R, pensando tê-lo morto. Para que o seu crime não seja descoberto,
resolve então simular um acidente de automóvel: coloca R num carro e atira-o
ribanceira abaixo. R morre na explosão. Quid juris?
Acha-se novamente indiciada a prática de um crime de homicídio (artigo 131.º do
Código Penal), através de um comportamento penalmente relevante de Q.
Observa-se, na situação descrita, um caso de falta de actualidade do dolo do tipo, no
momento da prática do acto que produz o resultado lesivo do bem jurídico. Estamos, assim,
perante o problema genérico do dolus generalis. Em suma: no momento em que o agente
actua de forma dolosa, não produz o resultado típico; e na altura em que obtém o resultado
típico, não actua dolosamente.
A este respeito, a doutrina maioritária entende que o dolo, abarcando todo o processo
desencadeado pelo infractor, sustenta a punibilidade por um crime único, doloso e
consumado – no caso, homicídio doloso consumado (artigo 131.º do Código Penal).

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Sugere STRATENWERTH a mesma solução, mas apenas quando o acto subsequente de


encobrimento tivesse sido inicialmente previsto.
ROXIN, por seu turno, socorre-se dos diferentes tipos de dolo para justificar variados
tipos de punição. Para este autor, se o agente actuar apenas com dolo eventual – de homicídio,
no caso –, não faria sentido imputar, a título de dolo, todo o processo ocorrido. Tal hipótese
ficará limitada aos casos em que se observe dolo directo (artigo 14.º, número 1 do Código
Penal).
De acordo com a concepção de FIGUEIREDO DIAS, haveria que indagar se o risco que
se concretiza no resultado poderia ainda reconduzir-se ao quadro de riscos criados pela
primeira actuação. Concluindo-se em sentido afirmativo, achar-se-ia justificada a
punibilidade por crime doloso consumado. Caso contrário, restaria apenas articular uma
tentativa e um crime doloso consumado.
Efectivamente, a alternativa de punibilidade será então recorrer ao concurso efectivo e
catalogar a primeira actuação aqui descrita como tentativa de homicídio, e a segunda como
homicídio negligente. Como vimos, a acção que contém o dolo do tipo não determina o
resultado típico, produzindo-se tal resultado através daquela actuação subsequente que não é
tipicamente dolosa.
Seja como for, haverá que desconsiderar a figura do dolus generalis. Em rigor, afirmá-
la implica sempre uma ficção de dolo relativa ao segundo momento. Havendo duas acções,
o dolo não poderá ser único e geral, a não ser em casos muito pontuais.
Nos termos expostos, parece indicado punir o agente, em concurso efectivo, por
tentativa de homicídio (artigos 23.º e 131.º do Código Penal) e homicídio negligente
consumado (artigo 137.º do Código Penal).

9) S anestesia T para, em seguida, o matar por enforcamento, simulando o seu suicídio.


No entanto, T, sem que S se aperceba, morre logo com a anestesia. Quid juris?
A situação descrita parece referir-se, uma vez mais, a um problema de actualidade do
dolo. Na presente hipótese observa-se, em concreto, uma consumação antecipada do crime.

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Em coerência com o que anteriormente se explicou, estaria aqui em causa a prática de um


crime de homicídio (artigos 137.º, 22.º, 23.º e 131.º do Código Penal).
No entanto, não choca aqui considerar a punição por um único homicídio consumado,
desde logo porque o primeiro acto – aquele que, de facto, produziu a morte – é já um acto de
execução em relação ao segundo comportamento (artigo 22.º, número 2, alínea c) do Código
Penal), encontrando-se ambos perfeitamente articulados entre si. Nestas situações, parece
legítimo fazer menção ao dolus generalis. Efectivamente, visto que o agente ainda pratica a
segunda actuação (encobrir o corpo) haverá ainda margem para afirmar que o dolo homicida
se achava integrado na conduta do agente ab initio, possibilitando a punição por crime doloso
consumado.

10) U pretende ofender a integridade física de V e agride-o violentamente à beira de


uma escadaria. V desequilibra-se, cai pelas escadas abaixo e bate com a cabeça na aresta
de um degrau, tendo morte imediata. Quid juris?
Considerando os factos relatados, impunha-se analisar o preenchimento dos tipos de
crime de ofensa à integridade física (artigo 143.º do Código Penal) e homicídio (artigo 131.º
do Código Penal).
A situação mencionada obriga à ponderação de um cenário de crime agravado pelo
resultado, nos termos do artigo 18.º do Código Penal (crime preterintencional). Com efeito,
na sequência da agressão a V, U acaba por matá-lo, ainda que essa não tenha sido a sua
intenção inicial.
Estaríamos, em tese, perante uma hipótese de concurso efectivo entre os crimes de
homicídio (artigo 131.º do Código Penal) e ofensa à integridade física (artigo 143.º do Código
Penal). Por esse motivo, refere-se tipicamente que a previsão do artigo 18.º do Código Penal
constitui uma excepção ao regime do concurso.
A figura da agravação pelo resultado parte do versare in re ilícita que, por seu turno,
se traduz na convicção de que quem actua ilicitamente assume todas as consequências do

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acto que pratica. Impõe-se, contudo, uma limitação em nome do princípio da culpa, exigindo-
se não só uma clara relação de imputação objectiva, como também de imputação subjectiva.
Equivale isto a afirmar, por um lado, que o resultado morte só poderá ser imputado ao
agente se houver uma certa conexão de risco entre as duas situação sendo previsível o
segundo resultado na sequência da primeira actuação. No fundo, exige-se que no conjunto de
riscos inicialmente criados pelo agente ainda se encontre alguma conexão com o risco mais
grave ulteriormente verificado. Aqui, parece previsível que uma agressão à beira da escada
possa vir a resultar na morte da vítima. Assim, diremos que o requisito objectivo se encontra
assegurado.
É no que toca ao requisito subjectivo que se afigura necessário atender à previsão da
parte final do artigo 18.º do Código Penal. Se bem virmos, do artigo 147.º do Código Penal
parece resultar que deverá haver dolo em relação ao primeiro resultado e negligência em
relação ao segundo. Todavia, esta exigência não se revela essencial. Em rigor, fala-nos o
artigo 18.º do Código Penal em “pelo menos, negligência”, admitindo a existência de dolo
em relação ao segundo resultado.
Esta ressalva encontra-se expressamente prevista para os cenários em que o segundo
resultado não configura um tipo de crime autónomo e, como tal, poderia passar incólume.
Para evitar tal hipótese, redigiu-se o artigo 18.º do Código Penal nestes precisos termos.
Assim, no nosso caso importaria recorrer aos artigos 147.º e 18.º do Código Penal, para
sustentar que a ofensa à integridade física de V seria agravada pelo resultado morte, havendo,
quanto a nós, apenas negligência em relação ao segundo desfecho.

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Dolo eventual VS. negligência consciente

X pretendia roubar Z. Inicialmente, começou por planear o estrangulamento de


Z com um cinto até que este perdesse a consciência, para que depois lhe pudesse subtrair
os bens pretendidos. Todavia, como sabia que o estrangulamento pode, em certas
circunstâncias, provocar a morte, resolveu então bater-lhe na cabeça com um saco de
areia para, desse modo, o colocar em estado de inconsciência. Durante a execução do
facto, no entanto, o saco de areia rebentou e Z procurou resistir, envolvendo-se numa
luta com X. Nessa altura, X recorreu ao cinto que, por acaso, tinha levado e usou-o até
que Z ficasse imobilizado. Em seguida, apoderou-se dos bens de Z. Só depois lhe surgiu
a dúvida de saber se Z ainda estaria vivo e tentou reanimá-lo através dos procedimentos
habituais, mas inutilmente, uma vez que este tinha morrido sem que ele desse conta. A
que título subjectivo é a morte de Z imputável a X?

A situação descrita incita-nos a reflectir acerca das fronteiras entre o dolo eventual e a
negligência consciente, que traduzem formas distintas de conceber a imputação subjectiva e
que nem sempre surgem facilmente distinguíveis.
Dado o diferente regime de punibilidade, importa decidir num sentido ou noutro.
Como se sabe, o dolo é constituído por dois elementos: o elemento volitivo e o elemento
cognitivo, que se traduzem comummente, pelo representar e pelo querer. Na sua forma mais
intensa – o dolo directo – o agente representa e deseja a produção do resultado típico,
orientando toda a sua acção nesse sentido.
Na negligência inconsciente, contrariamente, o agente nem chega a representar a
possibilidade de verificação do resultado típico, ocorrendo este por efeito da violação do
dever de cuidado que recaía sobre o agente.
Digamos então que dolo directo e negligência inconsciente se situam nos antípodas
das concepções de tipicidade subjectiva. Existe, contudo, invariavelmente, uma zona

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intermédia que exige que se indague do critério determinante para distinguir dolo eventual
de negligência consciente (artigos 14.º, número 3, e artigo 15.º, alínea b) do Código Penal).
Um critério apontado terá sido o da teoria cognitiva da probabilidade, que se
caracterizava por querer assentar tal distinção com base no elemento cognitivo. Porém, esta
proposta contraria expressamente o texto legal, que indica negligência consciente e dolo
eventual como traduzindo a mesma intensidade do elemento cognitivo.
Posteriormente, foram apresentadas a fórmula positiva de Frank e a fórmula
hipotética de Frank. Estas construções reconduziam, respectivamente, o dolo à aceitação do
resultado típico e a negligência à confiança na não produção do resultado – fórmula positiva;
ou recorriam a um juízo hipotético que consistia em indagar se os agentes soubessem que tal
resultado se iria produzir, teriam ou não cessado a sua actuação.
Como se intui, tais fórmulas manifestaram-se insuficiente, admitindo soluções de
casos perfeitamente inadequadas.
Nesse sentido, FIGUEIREDO DIAS remete-nos para o critério da seriedade do risco a
considerar, defendendo que se tal risco for sério haverá dolo eventual e não apenas
negligência. Afasta-se, assim, a relevância da confiança, remetendo o problema para o
próprio risco de produção do resultado típico. PUPPE aproxima-se desta concepção,
afirmando como critério relevante a circunstância de saber se o risco pelo agente representado
deverá ser levado a sério.
Com a mesma ideia, embora com uma formulação distinta, surge ROXIN afirmando
que se o agente confiar normativamente, com fundamento razoável, na não produção do
resultado, haverá negligência consciente e não dolo eventual, com ressalva, contudo, para a
diferença entre confiança e esperança.
Segundo MARIA FERNANDA PALMA, o critério determinante prende-se com a
sobrevalorização dos interesses do agente em detrimento da protecção do bem jurídico. No
fundo, haveria que questionar se a actuação do agente revela que este conferiu primazia ao
seu intuito lesivo, ainda que tal implicasse a colocação em risco do bem jurídico.

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O recurso a estes critérios obrigar-nos-ia a perguntar, no caso em análise, se, por um


lado, os assaltantes tinham razões, – e efectivamente confiavam, na não produção do
resultado ou se temeram a sério o risco de matarem o Z – que era, como se viu, um risco
sério. No que concerne à confiança, não parece haver razão nenhuma para afirmar que X teria
motivos /indícios/ condições para acreditar que o resultado morte não se produziria na
situação de Z. Concomitantemente, parecem os agentes ter considerado, ainda que
anteriormente, que se tratava de um risco sério, o que nos inclina para a solução do dolo
eventual.
Apesar disso, importa atender a alguns indícios de dolo/negligência que se retiram
da relevância indirecta das teorias da probabilidade e que nos poderão fornecer, com maior
acuidade, os traços do caso em estudo.
Desde logo importa verificar se foram tomadas medidas tendentes a evitar o resultado
– que, neste caso, foram, já que X tentou reanimar Z, embora debalde; paralelamente, impera
questionar o grau de probabilidade de produção do resultado – no caso era relativamente
elevado já que a maioria das pessoas, se tiver um cinto ao pescoço e alguém a apertá-lo, tem
tendência a deixar de respirar; finalmente, cumpre aludir ao contexto motivacional do agente
– que, na nossa hipótese inclina inegavelmente para o dolo eventual, já que o agente achou
mais importante furtar os bens a Z do que evitar o riso de produção da morte da vítima.
Nesta hipótese, e apesar de terem sido tomadas medidas posteriores de precaução,
parece adequado encarar a actuação do agente como imbuída de dolo eventual e não de
negligência.
Haveria imputação subjectiva a título de dolo eventual e como tal, o agente seria
punido por homicídio simples doloso consumado (artigo 131.º do Código Penal).

Mafalda Moura Melim – Maio 2019.

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