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Tipicidade Subjectiva
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O presente documento apresenta meras propostas de resolução dos casos práticos tratados nas aulas práticas,
e não dispensa a frequência às aulas teóricas e a consulta dos manuais de referência.
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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ANO LECTIVO 2017/2018
DIREITO PENAL II – SUBTURMA 15
3) D pretende matar o ruidoso cão do seu vizinho E e, assim que anoitece, coloca-se à
janela com a arma apontada, à espera que o cão saia de casa. No momento em que vê
um vulto baixinho sair, dispara. No entanto, não se tratava do cão, mas do próprio E,
que andava de gatas à procura de um botão de punho que perdera nessa tarde e que
vem a ter morte imediata. Quid juris?
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4) F quer furtar o gato de G, mas engana-se e subtrai o gato de H, que é muito parecido.
Quid juris?
Encontramo-nos, neste hipótese, perante um erro sobre a identidade do objecto, já que
F pretende furtar o gato de G, mas subtrai o de H (error in persona vel objecto). O elemento
relevante para o tipo de crime em causa – o furto (artigo 203.º do Código Penal) – prescinde
completamente da concreta identidade do objecto. Deste modo, o tipo de furto encontra-se
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preenchido desde que o objecto subtraído seja uma coisa móvel alheia – o que, neste caso, se
verifica. Por isso, este erro é perfeitamente irrelevante, sendo F punido por furto consumado.
5) I pretende partir o vidro da janela de J. Atira uma pedra, mas, por falta de pontaria,
acerta em L que está na varanda do lado direito e que nem sequer tinha visto. Quid
juris?
O caso descrito parece corresponder às chamadas situações de erro na execução, em
que o agente não provoca o risco que inicialmente tinha previsto, acabando por desencadear
um processo que conduz a uma lesão diferente da que pretendia causar. Trata-se de uma
situação comummente designada como aberratio ictus vel impetus, e que se caracteriza por
um erro na execução que produz um resultado distinto do projectado pelo agente.
Neste cenário não se verifica uma identidade típica de objectos: provoca-se a lesão típica de
dois crimes distintos. De facto, na nossa hipótese, estaremos a olhar para uma ofensa à
integridade física (em relação a L) e a uma tentativa de dano – relativamente à janela.
No que concerne ao dano, tratar-se-á sempre de uma tentativa. Releva, por isso,
averiguar da respectiva previsão de punibilidade, já que a pena consagrada para o crime
consumado não é superior a três anos (artigos 23.º, número 1 e 212.º, número 1 do Código
Penal). No entanto, o artigo 212.º, número 2 do Código Penal prevê a punibilidade da
tentativa de dano.
Relativamente à ofensa da integridade física, ela surgirá sob forma negligente,
afirmando-se a respectiva punibilidade com recurso aos artigos 13.º e 148.º do Código Penal.
E quid juris se I acertar no canário que está na varanda do lado esquerdo e que nem
sequer tinha visto?
Se I acertar no canário, haverá uma identidade típica de objecto, já que os crimes em
causa são crimes de dano: um sob a forma tentado em relação à janela; e outro sob a forma
consumada, em relação ao canário. Nestes casos, discute-se se o agente deverá ser punido
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em concurso ou se, pelo contrário, se deverá equiparar esta situação ao caso do erro sobre a
identidade do objecto, e punir o agente por um único crime doloso.
A este respeito, afirma-se que a solução do concurso poderá redundar, muitas vezes, na
não punibilidade do agente. Pense-se nas situações em que a tentativa não esteja prevista, ou
não seja punível por outra qualquer razão.
A doutrina dominante tem entendido, ainda assim, que a punição em concurso será a
mais adequada, já que nas hipóteses de aberratio ictus se observa, tipicamente, a criação de
dois perigos autónomos que merecem tutela penal.
Consequentemente, no que concerne à janela, haveria uma tentativa de dano (artigos
212.º, número 2 e 23.º do Código Penal). Todavia, quanto ao canário impunha-se excluir a
punibilidade: efectivamente, não existe previsão de dano negligente, tratando-se de crime
que exige a verificação de dolo (artigo 13.º do Código Penal).
6) M quer afastar de uma competição hípica o seu rival desportivo N. Assim, dispara
para atingir N ou o cavalo deste. Quid juris se atingir o cavaleiro?
A situação descrita configura um caso de dolo alternativo, já que o agente representa e
deseja lesar ou o cavalo ou o cavaleiro, sendo indiferente atingir um ou o outro resultado.
Nitidamente, há aqui um duplo dolo, direccionado não só ao cavalo como também ao
cavaleiro.
A este propósito, sublinha FIGUEIREDO DIAS que o agente conta com ambas as
possibilidades, e conforma-se com elas. Por esse motivo, o seu dolo deve ser afirmado quanto
ao tipo objectivo realmente preenchido pela conduta. No caso, equivalerá isto a afirmar que,
sendo atingido o cavaleiro, o agente responderá por homicídio doloso consumado (artigo
131.º do Código Penal).
Em alternativa, tem alguma doutrina sugerido a possibilidade de se punir o agente pela
tentativa do crime mais grave, caso esse não seja o crime consumado. No entanto, tal posição
não determinaria uma solução distinta da anterior, já que o resultado típico ocorrido – acertar
na pessoa em vez de no animal – constitui o crime mais grave. Dito de outro modo: um vez
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que o agente acertou no cavaleiro, impõe-se concluir que praticou o crime mais grave. Nestas
hipóteses, também esta perspectiva doutrinária defende a punição a título doloso consumado,
uma vez que não teria qualquer cabimento falar num mero crime tentado.
De acordo com MARIA FERNANDA PALMA, poderia ainda defender-se a solução de
punibilidade por dois crimes dolosos: um na forma tentada (dano – 212.º do Código Penal) e
outro na forma consumada (ofensa à integridade física do cavaleiro – 143.º do Código Penal).
7) O lança P de uma ponte sobre o Tejo para que este morra afogado. Todavia, P cai
sobre um barco que vinha a passar e morre com o embate. Quid juris?
O enunciado sugere uma situação de erro sobre o processo causal, em que o agente
consegue atingir o seu objectivo (no caso, matar P), ainda que de uma forma diferente da
inicialmente concebida. É exactamente neste ponto que o erro sobre o processo causal se
distingue da aberratio ictus, já que nesta o agente não consegue que se produza o resultado
inicialmente resultado.
A questão em torno desta situação reconduz-se à pergunta relativa à extensão o dolo,
no sentido de que releva saber se o dolo deve abarcar o processo causal ou não. A doutrina
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tradicional responde afirmativamente a esta questão, afirmando que a técnica estaria em saber
se o resultado traduziria a ocorrência de um desvio essencial. Assim, dizia-se que se o
concreto desvio fosse previsível, integraria o dolo e o agente seria punido por crime doloso
consumado; se fosse completamente imprevisível o desvio que conduziu ao resultado, o dolo
seria excluído e salvaguardar-se-ia a punição a título negligente.
Apesar da razoabilidade desta construção, importa lembrar que o dolo não se reconduz
a previsibilidade, mas sim a previsão efectiva. Para haver dolo, o agente tem de prever como
possível a verificação do resultado. No dolo, o que tem de existir é uma previsão efectiva,
uma acção “dirigida” à produção desse resultado. Por esse motivo, diz PUPPE que quando o
processo causal se desenvolve de forma completamente imprevisível, não haverá, desde logo,
imputação objectiva, pelo que o erro sobre o processo causal seria um problema de tipicidade
e não de imputação subjectiva.
Para ROXIN, diferentemente, a essência do dolo está no plano do agente, pelo que o
resultado poderá ser imputado a título doloso se ainda for uma concretização do plano desse
mesmo agente. ROXIN indica que assim acontecerá, via regra, nos crimes de execução livre
e não nos de execução vinculada.
Por seu turno, MARIA FERNANDA PALMA sublinha que nas hipóteses de processos com
risco intenso e consequências incontroláveis, não haverá verdadeiramente erro. Nesses casos
– afirma a autora –, o agente representa simultaneamente a verificação de outros riscos, sendo
tais perigos concretização do risco inicialmente criado.
Daqui tende a concluir-se que o dolo não tem que abarcar o processo causal, bastando
que o agente represente os elementos da imputação objectiva – criação do risco proibido e
resultado como concretização desse risco – para que o crime seja imputável a título doloso.
Neste caso, parece possível afirmar que O representa os pressupostos de imputação objectiva,
concebendo que mesmo que P não morresse por afogamento, poderia morrer por uma outra
causa, igualmente provável. Assim, dir-se-á que haverá imputação objectiva do resultado
morte de P ao comportamento de O.
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8) Q envenena R, pensando tê-lo morto. Para que o seu crime não seja descoberto,
resolve então simular um acidente de automóvel: coloca R num carro e atira-o
ribanceira abaixo. R morre na explosão. Quid juris?
O que se verifica na situação descrita é um caso de falta de actualidade do dolo do tipo,
no momento da prática do acto que produz o resultado. De facto, prevê-se para estas situações
a designação de dolus generalis. A este respeito, a doutrina maioritária entende que o dolo,
abarcando todo o processo, permite a punibilidade por um crime único, doloso e consumado
– no caso, homicídio doloso consumado (artigo 131.º do Código Penal).
Sugere STRATENWERTH a mesma solução, mas apenas nos casos em que o acto de
encobrimento tivesse sido previsto, legitimando assim punição tão severa.
ROXIN, por seu turno, socorre-se dos diferentes tipos de dolo para justificar variados
tipos de punição. Para este autor, se o agente actuar apenas com dolo eventual, não faz sentido
imputar, a título de dolo, todo o processo, devendo tal acontecer apenas nos casos de dolo
directo.
De acordo com a concepção de FIGUEIREDO DIAS, haveria que indagar se o risco que
se concretiza no resultado poderia ainda reconduzir-se ao quadro de riscos criados pela
primeira actuação. Concluindo-se em sentido afirmativo, achar-se-ia justificada a
punibilidade por crime doloso consumado. Caso contrário, restaria apenas articular uma
tentativa e um crime doloso consumado
Efectivamente, a alternativa de punibilidade será então recorrer ao concurso efectivo
real e catalogar a primeira actuação aqui descrita como tentativa de homicídio, e a segunda
como homicídio negligente. De facto, o que aqui se encontra em causa é o problema da
actualidade do dolo, já que a acção que contém o dolo do tipo não determina o resultado
típico, produzindo-se tal resultado através daquela actuação que não é tipicamente dolosa.
Solução a este problema passa por desconsiderar a figura do dolus generalis, já que
afirmá-la implica sempre uma ficção de dolo relativa ao segundo momento. Havendo duas
acções, o dolo não poderá ser único e geral, a não ser em casos muito pontuais.
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Nos termos expostos, parece indicado punir o agente, em concurso efectivo real, por
tentativa de homicídio (artigos 23.º e 131.º do Código Penal) e homicídio negligente
consumado (artigo 137.º do Código Penal).
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acto que pratica. Impõe-se, contudo, uma limitação em nome do princípio da culpa, exigindo-
se não só uma clara relação de imputação objectiva, como também de imputação subjectiva.
Equivale isto a afirmar que o resultado morte só poderá ser imputado se houver uma
certa conexão de risco entre as duas situação e a outra, sendo o segundo resultado previsível
na sequência da primeira actuação. Aqui, parece previsível que quando se agride alguém à
beira da escada essa pessoa possa vir a cair pela escadaria, pelo que o requisito objectivo se
encontra assegurado.
É no que toca ao requisito subjectivo que se afigura necessário atender à previsão da
parte final do artigo 18.º do Código Penal. Se bem virmos, do artigo 147.º do Código Penal
parece resultar que deverá haver dolo em relação ao primeiro resultado e negligência em
relação ao segundo, mas este requisito nãos e revela essencial. Em rigor, fala-nos o artigo
18.º do Código Penal em “pelo menos, negligência” o que parece sugerir que poderá haver
dolo em relação ao segundo resultado.
Esta ressalva encontra-se expressamente prevista para os cenários em que o segundo
resultado não configura um tipo de crime autónomo e, como tal, poderia passar incólume.
Para evitar tal hipótese, redigiu-se o artigo 18.º do Código Penal nestes precisos termos.
Assim, no nosso caso importaria recorrer aos artigos 147.º e 18.º do Código Penal, para
sustentar que a ofensa à integridade física de V seria agravada pelo resultado morte, havendo,
neste caso, apenas negligência em relação ao segundo desfecho.
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A situação descrita incita-nos a reflectir acerca das fronteiras entre o dolo eventual e a
negligência consciente, que traduzem formas distintas de conceber a imputação subjectiva e
que nem sempre surgem facilmente distinguíveis.
Dado o diferente regime de punibilidade, importa decidir num sentido ou noutro.
Como se sabe, o dolo é constituído por dois elementos: o elemento volitivo e o elemento
cognitivo, que se traduzem comummente, pelo representar e pelo querer. Na sua forma mais
intensa – o dolo directo – o agente representa e deseja a produção do resultado típico,
orientando toda a sua acção nesse sentido.
Na negligência inconsciente, contrariamente, o agente nem chega a representar a
possibilidade de verificação do resultado típico, ocorrendo este por efeito da violação do
dever de cuidado que recaía sobre o agente.
Digamos então que dolo directo e negligência inconsciente se situam nos antípodas
das concepções de tipicidade subjectiva. Existe, contudo, invariavelmente, uma zona
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intermédia que exige que se indague do critério determinante para distinguir dolo eventual
de negligência consciente (artigos 14.º, número 3, e artigo 15.º, alínea b) do Código Penal).
Um critério apontado terá sido o da teoria cognitiva da probabilidade, que se
caracterizava por querer assentar tal distinção com base no elemento cognitivo. Porém, esta
proposta contraria expressamente o texto legal, que indica negligência consciente e dolo
eventual como traduzindo a mesma intensidade do elemento cognitivo.
Posteriormente, foram apresentadas a fórmula positiva de Frank e a fórmula
hipotética de Frank. Estas construções reconduziam, respectivamente, o dolo à aceitação do
resultado típico e a negligência à confiança na não produção do resultado – fórmula positiva;
ou recorriam a um juízo hipotético que consistia em indagar se os agentes soubessem que tal
resultado se iria produzir, teriam ou não cessado a sua actuação.
Como se intui, tais fórmulas manifestaram-se insuficiente, admitindo soluções de
casos perfeitamente inadequadas.
Nesse sentido, FIGUEIREDO DIAS remete-nos para o critério da seriedade do risco a
considerar, defendendo que se tal risco for sério haverá dolo eventual e não apenas
negligência. Afasta-se, assim, a relevância da confiança, remetendo o problema para o
próprio risco de produção do resultado típico. PUPPE aproxima-se desta concepção,
afirmando como critério relevante a circunstância de saber se o risco pelo agente representado
deverá ser levado a sério.
Com a mesma ideia, embora com uma formulação distinta, surge ROXIN afirmando
que se o agente confiar normativamente, com fundamento razoável, na não produção do
resultado, haverá negligência consciente e não dolo eventual, com ressalva, contudo, para a
diferença entre confiança e esperança.
Segundo MARIA FERNANDA PALMA, o critério determinante prende-se com a
sobrevalorização dos interesses do agente em detrimento da protecção do bem jurídico. No
fundo, haveria que questionar se a actuação do agente revela que este conferiu primazia ao
seu intuito lesivo, ainda que tal implicasse a colocação em risco do bem jurídico.
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