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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

ANO LECTIVO 2017/2018


DIREITO PENAL II – SUBTURMA 15

Resolução de Casos Práticos – Proposta(1)

A ilicitude

A instalou uma bomba no automóvel de B, sua ex-mulher, de modo a que esta, ao


ligar o motor, a fizesse explodir. Nesse dia, no entanto, B emprestou o carro ao filho de
ambos, C.
A, que tinha ficado escondido a vigiar, ao ver o filho abrir a porta do carro, tentou
impedi-lo de entrar, dando-lhe um valente empurrão. C, não reconhecendo o pai no
escuro, tirou um canivete suíço do bolso para se defender e espetou-o no abdómen de A,
ferindo-o gravemente.
Nesse momento, D, polícia, presenciando a agressão de C a A, disparou na
direcção de C, ferindo-o.
Determine a responsabilidade jurídico-penal de A, C e D.

A conduta de A deverá ser analisada à luz do crime de ofensa à integridade física


simples (artigo 143.º do Código Penal). Com efeito, A dá um empurrão ao filho com o
expresso intuito de o impedir de, ao ligar o carro, explodir com ele.
No que se refere à imputação objectiva do resultado à actuação de A, não parece haver
grandes dúvidas, já que se cria um risco proibido para um bem jurídico, e esse risco traduz-
se no próprio resultado.
No que concerne aos elementos do dolo, tanto o elemento volitivo como o intelectual
se encontram dotados de grande intensidade, já que agente dirige a sua acção para a lesão da
integridade física de C. A actua com dolo directo (artigo 14.º, número 1 do Código Penal).

(1)
O presente documento apresenta meras propostas de resolução dos casos práticos tratados nas aulas práticas,
e não dispensa a frequência às aulas teóricas e a consulta dos manuais de referência.

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De acordo com a descrição da hipótese, parece haver indícios de justificação no


comportamento de A, já que ele só empurra o filho para evitar que ele morra no decurso da
explosão.
Seriam equacionáveis, aqui, duas causas de justificação: o direito de necessidade
(artigo 34.º do Código Penal) e o consentimento presumido (artigo 39.º do Código Penal).
De facto, no que se refere ao direito de necessidade (artigo 34.º do Código Penal), há um
perigo que ameaça a vida de C, o que viabiliza a actuação de A – apesar de a situação ter sido
por ele voluntariamente criada (alínea a); observa-se, ademais, sensível superioridade entre
o interesse de C que seria lesado e aquele que efectivamente se lesa (b); e é mais que razoável
impor ao lesado o sacrifício desse seu interesse – integridade física – em relação à natureza
do interesse ameaçado – a vida.
Neste sentido, dir-se-á que a agressão de A é lícita por se encontrar justificada nos
termos do direito de necessidade.
Perante a conclusão de que a agressão de A é lícita, afigura-se determinante indagar das
consequências de facada de C ao pai. Com efeito, C considera estar a agir em legítima defesa
(artigo 32.º do Código Penal) – já que representa, subjectivamente, todos os elementos desta
causa de justificação.
Contudo, e como já vimos, A age ao abrigo de uma outra causa de justificação, o que
torna a sua agressão lícita, e impede que C se defenda legitimamente.
No entanto, é manifesto que C se encontra em erro sobre os elementos essenciais de
uma causa de justificação pelo que, de acordo com o artigo 16.º, número 2 do Código Penal,
excluir-se-ia o dolo da culpa.
Não obstante, ao espetar um canivete suíço no abdómen do pai, C age em excesso
intensivo em legítima defesa, o que significa que mesmo que os pressupostos do artigo 32.º
do Código Penal se encontrassem verificados, a agressão continuaria a ser ilícita. De acordo
com o texto, não parece que o excesso surja na sequência do erro, e muito menos que seja
motivado por medo asténico (artigo 33.º, número 2 do Código Penal).

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Assim, o agente será punido nos termos do artigo 33.º, número 1 do Código Penal (por
analogia), podendo verificar-se uma especial atenuação da pena.
Em relação a D, o facto de ser polícia leva-nos a perguntar se a legítima defesa policial
tem requisitos especiais. Poder-se-ia equacionar esse cenário relativamente à especial
exigência de proporcionalidade, já que, para estes agentes, corresponde ao exercício de um
dever. No caso descrito, a ofensa à integridade física de C foi inequivocamente realizada com
dolo directo (artigo 14.º, número 1 do Código Penal). Assim, tal agressão parece respeitar as
exigências do artigo 32.º do Código Penal, uma vez que estávamos perante uma agressão
actual – C estava esfaquear A; e ilícita – nos termos anteriormente descritos.
Questionável seria, eventualmente, a verificação do requisito do meio necessário,
atendendo à circunstância de D ter usado de uma arma para repelir a agressão em curso. No
entanto, entende-se que D não actuou em excesso de legítima defesa, o que implicaria que o
seu comportamento se achasse justificado.

II

E circulava à noite, embriagado, conduzindo o seu automóvel, quando atropelou


F.
F foi transportado ao hospital, chegando ao mesmo tempo que G, vítima de um
outro acidente. H, médico de serviço, pensando, em função do diagnóstico por si
realizado, que ambos precisavam de ser ligados a um reanimador pulmonar, decidiu
ligar G, pois só dispunha de uma máquina e G era seu amigo. F morreu. Porém,
descobriu-se posteriormente que afinal só F precisava do ventilador, uma vez que G
teria sobrevivido mesmo não sendo ligado à máquina.
I, filho de F, procurou saber a morada de E, para vingar a morte do pai. Uma vez
descoberta a morada, I dirigiu-se a casa de E, transportando consigo uma arma de fogo.
Nessa noite, E regressava a casa, conduzindo mais uma vez embriagado. Não vendo I,
que se encontrava numa zona escura da estrada, atropela-o sem gravidade, no preciso

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momento em que I se preparava para disparar contra E (facto do qual E não se


apercebeu).
Determine a responsabilidade jurídico-penal de H e E.

No que respeita à actuação de H, estaremos perante um homicídio por acção – se


considerarmos que foi a escolha de G que determinou a morte de F (artigo 131.º do Código
Penal) – ou por omissão – se se atentar ao facto de lhe ter sido negado a reanimador (artigos
131.º e 10.º do Código Penal). No que concerne à imputação subjectiva, haverá dolo
necessário (artigo 14.º, número 2 do Código Penal).
Contudo, não se encetará esta discussão pelo facto de, aparentemente, o
comportamento de H se encontrar justificado, ao abrigo de conflito de deveres (artigo 36.º
do Código Penal). Com efeito, tal como H tinha configurado a situação, seria impossível
cumprir os dois deveres. Todavia, viria a descobrir-se que afinal o único que precisava de
reanimador era o F.
Assim, estaremos perante um erro sobre os elementos essenciais de uma causa de
justificação, reconduzível à previsão do artigo 16.º, número 2 do Código Penal. Neste sentido,
excluir-se-ia o dolo da culpa, ressalvando-se, contudo, a punibilidade a título de negligência
(artigo 16.º, número 3 do Código Penal). Importaria, então, indagar da violação, por parte de
H, de algum dever de cuidado para afirmar a sua punibilidade a título negligente. Caso tal
violação não tivesse ocorrido, o agente não seria punido.
No que concerne à actuação de E, cumpre recordar que teria atropelado F, facto que
conduziu este último ao hospital. Uma vez que sobreveio a morte de E, haveria que questionar
a responsabilidade de E pelo homicídio de F (artigo 131.º do Código Penal). A este propósito,
dúvidas não subsistem acerca do carácter activo da actuação de E, que criou um risco
proibido para o bem jurídico. No entanto, observa-se uma dificuldade em sede de imputação
objectiva. Como vimos, F não foi socorrido no hospital devido à omissão de H. Neste
contexto, concluímos pela licitude da conduta de H, ao abrigo do conflito de deveres (artigo
36.º do Código Penal). Consequentemente, impõe-se verificar se a omissão lícita de H

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interrompe o nexo causal desencadeado pelo atropelamento. Para estes efeitos, impõe-se
questionar se E poderia contar com esta omissão de H. Quer dizer, se seria previsível que F
não pudesse ser prontamente assistido no hospital. Caso assim se entendesse, a omissão de
H não interromperia o processo causal inicial, e a morte de F ainda seria imputável a E.
Todavia, de um estrita perspectiva de teoria do risco, a verdade é que o risco que se
concretizou no resultado não foi apenas o risco inicialmente criado por E. Deste modo, achar-
se-ia inviabilizada a imputação do resultado morte à actuação de E.
Já no que se refere a I, estaremos perante um caso de ofensa à integridade física simples
(143.º do Código Penal) perpetrada com negligência inconsciente (artigo 15.º, alínea b) do
Código Penal), já que E nem chegou a ver a vítima. Tratar-se-ia, por isso, de uma ofensa à
integridade física negligente (artigo 148.º do Código Penal).
Não obstante, e como nos refere a hipótese, há uma situação objectiva de legítima
defesa (artigo 32.º do Código Penal) que não é, no entanto, representada pelo agente. Tal
situação impele-nos a indagar da exigência de um elemento subjectivo no artigo 32.º do
Código Penal, visto que, em princípio, a pessoa deverá saber do que é que se está a defender,
nomeadamente para conseguir determinar qual o meio necessário. Neste sentido, haverá um
elemento subjectivo patente no sentido possível das palavras.
Ponto igualmente relevante, especialmente em termos de regime aplicável, será a
afirmação de que a exigência objectiva da justificação afasta, desde logo, o desvalor do
resultado. Deste modo, verificar-se-á apenas um desvalor da acção, que justifica a analogia
com as situações de tentativa.
Nesta sede, em que não existe o elemento subjectivo de legítima defesa, sugere-se
uma analogia com os casos previstos no artigo 38.º, número 4 do Código Penal. De facto,
também nas hipóteses em que o consentimento, embora existente, é desconhecido do agente,
poderá ainda afirmar-se o desvalor da acção. Aqui chegados, poderá optar-se por uma de
duas vias: ou se aplica integralmente o regime da tentativa (artigo 23.º do Código Penal) e
sempre que o crime for negligente não há punição; ou então recorre-se directamente ao
número 2 do artigo 23.º do Código Penal e o agente será sempre punido, com pena

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especialmente atenuada e, havendo previsão de pena para a tentativa, será esse o regime a
aplicar.
No caso descrito, se formos pela primeira via, diremos que E não será punido, já que
actuou negligentemente, como se viu. Optando pela segunda via, não teremos melhor
solução, já que não há pena prevista para a tentativa. E não seria, de qualquer das formas,
punido.

Mafalda Moura Melim – Maio 2018.

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