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Apontamentos sobre o direito penal político na Itália

entre os séculos XIX e XX 1

Floriana Colao 2

1. Penal e política: um “campo de tensão” recorrente

“Penale, giustizia e potere”. O título de um livro recente – em memória de Mario


Sbriccoli, grande historiador do direito penal prematuramente falecido – indica de modo
exemplar a orientação da historiografia em relação a este ramo da experiência jurídica 3 ,
inclusive no seu encontro com a política não como função repressiva, mas como
momento crucial da dimensão constitucional dos Estados.
Era esta a herança dos grandes “fundamentos” do Iluminismo, o princípio de
estrita legalidade in primis 4 , e os juristas italianos entre os séculos XIX e XX ofereciam
um grande contributo na construção e na colocação do sistema penal dentro da
“constituição material” do Estado. A penalística procurava um fundamento de
legitimação do seu saber disciplinar nas batalhas da civilização jurídica, como é o caso
da “penalística civil” da Itália liberal 5 , como suporte técnico ou caixa de ressonância
das pretensões estratégicas do fascismo, como no caso da torção autoritária da chamada
“escola técnico-jurídica” 6 .
Em 1861, o Reino da Itália nascia, então, sob o signo da emergência. A
insurreição de homens armados em algumas regiões da Itália meridional (definida com
o termo “brigantaggio”, cujos próprios governos atribuíam natureza política) parecia
colocar em perigo a unidade do Estado recém realizada. O poder político reagia, assim,
com leis e práticas de justiça que marcavam o sistema penal com seus “caracteres

1
Tradução: Ricardo Sontag
2
Professora de História do Direito na faculdade de Direito e na faculdade de Letras e Filosofia da
Università degli studi di Siena/Itália.
3
Penale, Giustizia, Potere. Metodi, ricerche, storiografie, a cura di Luigi Lacchè, Carlotta Latini, Paolo
Marchetti, Massimo Meccarelli, Macerata, 2007.
4
P. Costa, Pagina introduttiva (il principio di legalità: un campo di tensione nella modernità penale,
“Quaderni fiorentini”, n. 36, 2007, Principio di legalità e diritto penale, I, pp. 1-39.
5
M. Sbriccoli, La penalistica civile. Teorie e ideologie del diritto penale nell'Italia unita, in Stato e
cultura giuridica in Italia dall'Unità alla Repubblica, a cura di Aldo Schiavone, Roma-Bari, 1990, pp.
147-232
6
M. Sbriccoli, Le mani nella pasta e gli occhi al cielo. La penalistica italiana negli anni del fascismo, in
«Quaderni fiorentini», 28, 1999, vol. II, p. 817.
originários”, derrogações excepcionais ao princípio de estrita legalidade, que se
tornariam “traços permanentes”.
A Itália conhecia, em suma, um “duplo nível de legalidade” 7 , onde a lei era
flanqueada por medidas extra legem, feitas para responder às manifestações de
divergência radical, em uma lógica já experimentada pelos não-liberais Estados pré-
unitários, que a nova classe política saída do Risorgimento havia sofrido e dizia querer
combater, ao menos no plano teórico.
Por outro lado, o método da legislação penal de emergência operaria também
para além de 1948, não obstante os limites garantistas assinalados pela Constituição
republicana 8 , como, de fato, escreveu Mario Sbriccoli, “a justiça penal, entendida como
o fim para o qual o direito e o processo se consubstanciam, não é historicamente
representável dentro do esquema de um constante progresso na direção da civilização.
Ela conheceu crises e regressões, junto com fases onde se submeteu a projetos tirânicos
e de domínio político. E pode conhecê-los ainda” 9 .

2. “Penalística civil e constitucional”

Desde antes da Unificação, Francesco Carrara – jurista “uno e trino”, docente de


direito penal na Universidade de Pisa, advogado, homem político liberal – criticava de
maneira radical a lógica da razão de Estado que torcia o penal 10 , abordado por ele de

7
M. Sbriccoli, Caratteri originari e tratti permanenti del sistema penale italiano (1860-1990), in Storia
d'Italia. Annali. 14: Legge, diritto, giustizia, a cura di Luciano Violante, Torino, Einaudi, 1998, pp. 585-
551.
8
L. Ferrajoli, Diritto e ragione. Teoria del garantismo penale, Roma-Bari, Laterza, 1989.
9
M. Sbriccoli, Giustizia criminale, in Lo Stato moderno in Europa. Istituzioni e diritto, a cura di M.
Fioravanti, Roma-Bari, Laterza, 2002, p. 164.
10
N.T.: O uso do termo penal como substantivo, um pouco estranho para a língua portuguesa, deve
também ser sublinhado por inserir-se em um debate historiográfico levado a cabo por Mario Sbriccoli
contra uma abordagem meramente dogmática do direito penal, bem como contra uma abordagem típica
de uma historiografia, por assim dizer, “militante” que, preguiçosamente, só considera o direito penal
como instrumento de dominação, sem conseguir abordá-lo por outros ângulos. Dois extremos de
concepções reducionistas e unidimensionais contra as quais Sbriccoli bradava a noção pluridimensional e
transversal de história do penal, entendido “como um campo que compreende a história do direito penal,
mas que não se exaure nele, porque no penal não há somente o direito. Existem as normas, que são algo
diferente (talvez muito diferente), existem as conexões com a sociedade, os valores, os interesses, as
razões de alarme, as relações com o Estado, a relação entre ordem e garantia. Existe o controle social, que
não é direito nem legislação, não é sanção, nem sancionado, mas tem uma importância extraordinária.
Além disso, malgrado tenhamos sido habituados a pensar a partir do pressuposto segundo o qual o penal é
algo undimensional, determinado pela sua derivação integralmente estatal, a história do penal é, na
verdade, a história de uma pluralidade articulada.” (SBRICCOLI, Mario. Problemi e prospettive
dell’insegnamento in Italia. “Storia del diritto italiano”: articolazioni disciplinari vecchie e nuove. In:
GROSSI, Paolo (a cura di). L’insegnamento della storia del diritto medievale e moderno. Strumenti,
destinatari, prospettive. Milano: Giuffrè, 1993. p. 117 e ss.). Em função dessa especificidade do conceito
modo garantista como tutela do cidadão diante do poder. A notável refutação em tratar
dos delitos políticos no monumental Programma del corso di diritto criminale -
publicado a partir de 1859, e sobre o qual se formariam gerações de juristas – exprimia
uma instância garantista ao querer vincular o campo dos delitos políticos e sociais à
dimensão constitucional do novo Estado italiano, que se pretendia garante da liberdade,
da liberdade política em primeiro lugar 11 .
Um grande número de penalistas liberais seguia Carrara ao vincular o penal,
principalmente na batalha por uma nova codificação, às “liberdades públicas”, com uma
constante atenção aos aspectos políticos das escolhas técnicas. Era comum a convicção
de dever fazer da justiça o lugar de uma “civilização” geral do país, a começar pela
batalha civilizatória em favor da abolição da pena de morte 12 .
Pietro Ellero, Enrico Pessina, Emilio Brusa, Luigi Lucchini (fundador, em 1874,
da batalhadora Rivista Penale), Giovan Battista Impallomeni, colaboravam na longa
obra de redação do código, que passou para a história com o nome de Giuseppe
Zanardelli, jurista liberal ministro da justiça, que em 1889 queria muito a redação do
texto.
Justamente no direito penal político, especialmente se confrontado com a
tradição codicística antecedente, o código Zanardelli exprimia o seu traço liberal, com a
abolição da pena de morte mesmo para os delitos mais graves contra a segurança
internacional e interna do Estado, na tutela dos bens constitucionais, em primeiro plano
as liberdades políticas do cidadão, o princípio de estrita legalidade, na proibição de
analogia, na imputabilidade, na abordagem garantista da tentativa 13 .
No contexto da legislação européia que, ao menos teoricamente, pretendia dar ao
direito penal político um sistema congruente com a dimensão constitucional do Estado

de penal, seria inadequado tentar traduzi-lo por algumas das expressões em português onde ele aparece
como adjetivo (tal como “direito penal” ou “processo penal”). Por isso, a opção aqui adotada foi a de usar
o termo substantivado em português.
11
M. Sbriccoli, Dissenso politico e diritto penale in Italia tra Ottocento e Novecento. Il problema dei
reati politici dal 'Programma' di Carrara al 'Trattato' di Manzini, «Quaderni fiorentini», 2, 1973, pp.
607-702. Recentemente, também para indicações, L. Lacchè, La penalistica costituzionale e il
“liberalismo giuridico”. Problemi e immagini della legalità nella riflessione di Francesco Carrara, in
“Quaderni fiorentini”, 36, 2007, I, p. 663-695
12
M. Da Passano, La pena di morte nel Regno d'Italia (1859-1889), in I Codici preunitari e il codice
Zanardelli, Studi coordinati da Sergio Vinciguerra, Padova, Cedam, 1993, pp. 579-672.
13
M. Sbriccoli, La penalistica civile, cit., pp. 147-232; G. De Francesco, Funzioni della pena e limiti
della coercizione: caratteri ed eredità del classicismo penale, in “Quaderni fiorentini”, 36, 2007, I, pp.
611-662
de Direito 14 , o código italiano também previa para os delitos políticos uma disciplina
inspirada no favor rei: em primeiro lugar previa a proibição de extradição e um
tratamento penitenciário diferente em relação àquele reservado aos delinqüentes
comuns, a custódia honesta 15 .
Delitos de imprensa e contra a segurança do Estado eram, depois, confiados à
competência do júri, que a tradição liberal entendia como expressão da opinião pública,
livre e independente em relação ao juízo togado 16 . Anistias freqüentes eram reservadas
aos delitos cometidos em ocasião de conflitos políticos e sociais, ou motivados por eles,
como instrumentos de pacificação 17 .
Por outro lado, o “código liberal” era chamado a operar em uma Itália
“governada não-liberalmente” 18 , onde pesavam as divisões entre Norte e Sul, a questão
católica mal resolvida, a concepção oligárquica e antisocial do liberalismo, segundo a
qual as expressões de divergência política deveriam ser sujeitadas a medidas de polícia,
inspiradas no cânone da defesa social contra as classes perigosas 19 .
O positivismo criminológico, em particular, era sensível ao tema do penal como
defesa da sociedade, a começar pelas pesquisas de Cesare Lombroso da metade dos

14
Il delitto politico dalla fine dell'Ottocento ai giorni nostri, Roma, Sapere, 2000; Terrorismo e crimini
contro lo Stato, Milano, 2005. Para uma dimensão comparada, cf. também Barton L. Ingraham, Political
crime in Europe. A comparative study of France, Germany and England, Berkeley-Los Angeles- London,
1979. Para a particular experiência norte-americana, cf. Nicholas Kittrie-Eldon D. Wedlock, The Tree of
Liberty. A documentary history of Rebellion and Political crime in America, Baltimore and London,
1986.
15
Sobre o sistema penal liberal, permitam-me remeter, também, a F. Colao, Da “delitto fittizio” a
“nemico dello Stato”. Il delitto politico tra Ottocento e Novecento, Milano, 1986, pp. 1-27; G. De
Francesco, I reati di associazione politica. Storia, Costituzione e sistema nell'analisi strutturale delle
fattispecie, Milano, 1985; M. Sbriccoli, Caratteri originari, cit., particolarmente pp. 493 ss.; G. De
Francesco, Crimini di Stato, filosofia politica, diritto penale, in «Quaderni fiorentini», 30, 2001, pp. 787-
801.
16
Sobre o júri na época liberal, inclusive para indicações, cf. I giudici senza toga, a cura di E. Amodio,
Milano, 1979; P. Scaparone, La partecipazione popolare all'amministrazione della giustizia. I. Profili
storici e comparativi, Milano, 1980, pp. 109 ss; A. Padoa Schioppa, Pisanellli e la giuria penale,
Grundlagen des Rechts. Festschrift für Peter Landau zum 65. Geburdtag, Hrsg von H. R. Helmholz et
alii, Padeborn 2000, pp. 851 ss; L. Lacchè, “L'opinione pubblica saggiamente rappresentata”. Giurie e
corte d'Assise nei processi celebri tra Otto e Novcento, in Inchiesta penale e pregiudizio. Una riflessione
interdisciplinare, a cura di P. Marchetti, Napoli, 2007, pp. 89-147.
17
Vincenzo Maiello, La politica delle amnistie, in Storia d'Italia, Annali, 12, cit., pp. 937 ss
18
Sbriccoli, Giustizia criminale, cit., p. 192.
19
John A. Davis, Conflict and Control Law and Order in Nineteenth Century Italy, trad. it. di Gianpaolo
Garavaglia Legge e ordine. Autorità e conflitto nell'Italia liberale dell'Ottocento, Milano, Angeli, 1988;
Jensen Richard Bach, Liberty and order: the theory and practice of Italian public security policy. 1848 to
the crisis of the 1890, New York London, 1991. U. Allegretti, Dissenso, opposizione politica, disordine
sociale: le risposte dello Stato liberale, in Storia d'Italia, Annali, 12, cit., pp. 719-756; D. Petrini, Il
sistema di prevenzione personale tra controllo sociale ed emarginazione, ibid., pp. 893 ss.; D. Petrini, La
protezione inutile. Illegittimità delle misure praeter delictum, Napoli, Jovene, 1996; M. Pelissero, Reato
politico e flessibilità delle categorie dogmatiche, Napoli, 2000, p. 490.
anos 70 do séc. XIX 20 , até os escritos e às Difese Penali do socialista Enrico Ferri,
advogado “sociólogo” defensor de militantes camponeses e operários em processos
célebres 21 .
Justamente a chamada “escola positiva” e o chamado “socialismo jurídico”
ofereciam uma contribuição ao direito penal político ao distinguir uma delinqüência
política “evoluída” – inspirada em fins não egoístas, mas de pretenso melhoramento das
classes subalternas – e outra delinqüência “atávica”, comum, inspirada em fins
individuais. Propunham-se ao legislador medidas coercitivas e correcionais, que
privilegiavam a primeira forma de uma anomalia, que devia ser, de alguma forma,
disciplinada 22 .
Na longa crise do final do séc. XIX, o país estava abalado por manifestações de
radical oposição ao governo, organizadas por movimentos sindicais e socialistas, que
estavam estruturando-se em partidos 23 . Herdeiros do Internacionalismo, irrompia
também no cenário político europeu o “delito anárquico”, despertando grande alarme
nos governos e na opinião pública. Se para atingir a propaganda socialista a
magistratura considerava, às vezes, pelo menos o começo de um ato delituoso24 , com o
anarquismo havia a tendência de criminalizar o mero fato associativo 25 .
Em ocasião dos tumultos que estouraram no final do séc. XIX na Sicília e em
outras cidades, sobretudo em Milão, assim como com o brigantaggio, retornavam a
legislação especial e as declarações de estado de sítio, com uma brutal repressão militar.

20
C. Lombroso, Delitto, genio, follia. Scritti scelti, Torino, 1995, particularmente pp. 704-705. Sobre
Lombroso, recentemente, cf. C. Petit, Lombroso en Chicago. Presecias europea en la modern criminal
science americana, in ”Quaderni fiorentini”, 36, 2007, II, pp. 801-900
21
E. Ferri, Difese Penali, Torino, 1923. Sobre Ferri e “sua” Escola positiva” cf. M. Sbriccoli, La
penalistica civile, cit., pp. 206 ss; E. R. Papa, Enrico Ferri tra socialismo giuridico e riforme istituzionali,
in Riforme e istituzioni fra Otto e Novecento, a cura di Luigi Cavazzuoli- Carlo G. Lacaita, Manduria-
Bari-Roma, 2002, pp. 151-160
22
M. Sbriccoli, Il diritto penale sociale, in «Quaderni fiorentini», 3-4, 1974-1975, I, pp. 557-642; M.
Sbriccoli, Elementi per una bibliografia del socialismo giuridico italiano, ibid., II, pp. 873-1035;
Sbriccoli, La penalistica civile, cit., p. 147-232.
23
Sobre esse ponto, permito-me remeter a F. Colao, Il principio di legalità nell'Italia di fine Ottocento tra
“giustizia penale eccezionale” e “repressione necessaria e legale... nel senso più retto e saviamene
giuridico, il che vuol dire anche nel senso più liberale”, in “Quaderni fiorentini”, I, 36, 2007, pp. 697-
742.
24
R. Canosa-A. Santosuosso, Magistrati, anarchici e socialisti alla fine dell'Ottocento in Italia, Milano,
1981
25
A. Sciumè, «Quando la politica entra dalla porta, la giustizia fugge impaurita dalla finestra»: giudici e
sentimento della giustizia dall'Unità al primo Novecento, in Europäische und amerikanische
Richterbilder, Herausgegeben von Andrè Gouron, Laurent Mayali, Antonio Padoa Schioppa, Frankfurt
am Main, 1996, pp. 165-193; A. Sciumè, Garanzie legali e misure arbitrarie nell'Italia fin de siècle: i
processi agli anarchici, ovvero dell'errore impossibile, in Error iudicis. Juristische Wahrheit und
Justizieller Irrtum, Herausgegeben von Andrè Gouron, Laurent Mayali, Antonio Padoa Schioppa,
Frankfurt am Main, 1998, pp. 233-256
Tribunais especiais e magistratura ordinária definiam os delitos contra o Estado e contra
a ordem pública como delitos comuns, para privá-los das garantias legais 26 .
Os leaders da divergência política, que freqüentemente tinham passado por
longas prisões preventivas, tornavam-se protagonistas de processos célebres, que às
vezes se transformavam em tribuna de propaganda, como no caso de De Felice, Turati,
Anna Kuliscioff, Chiesi, Romussi 27 .
Exatamente na questão do “o que fazer com o delito político”, a “penalística
civil” oferecia a contribuição mais emblemática e reveladora da sua “ideologia penal”.
Estes juristas, docentes, advogados, às vezes parlamentares, irredutíveis ao binômio
“escola clássica – escola positiva”, com grande concretude, colhiam e geriam
lucidamente, em cada plano, científico, político, profissional, o perfil nevrálgico do
“paradoxo da liberdade” daquele momento: os valores do liberalismo político, que
podiam conflitar com o bem jurídico “segurança do Estado”, a ineliminável contradição
entre “Estado e cidadão (...) empenhados em salvaguardar um a própria existência
íntegra e o outro o direito à divergência livre, proclamada e organizada” 28 .

3. A grande guerra: laboratório jurídico do “inimigo interno”

A longa crise do final do séc. XIX concluía-se chegando a um quadro político –


a “virada liberal da Idade dos Giolitti 29 - que parecia dever recepcionar as demandas por
cidadania e dignidade que vinham do mundo do trabalho, com a demanda por uma
legislação mais atualizada, sobretudo a processual, uma justiça menos lenta e classista,

26
F. Cordova, Il '98 in Italia: il dibattito giurisprudenziale sullo stato d'assedio e l'azione dei tribunali
militari, in Intorno al 1898. Italia e Spagna nella crisi di fine secolo, a cura di S. Casmirri, Milano, 2001,
pp. 111-126; M. Malatesta, Introduzione a La morte del re e la crisi di fine secolo, in «Cheiron», XVIII,
35-36, 2001, pp. 7 ss
27
C. Latini, La sentenza “dei giornalisti”. Repressione del dissenso e uso dei tribunali penali militari, in
Inchiesta penale e pre-giudizio, Una riflessione interdisciplinare, a cura di P. Marchetti, Napoli, 2007,
pp. 243-277; L. Lacché, Una letteratura alla moda. Opinione pubblica, “processi infiniti” e pubblicità in
Italia tra Otto e Novecento, in Riti, tecniche, interessi. Il processo penale tra Otto e Novecento, Atti del
Convegno (Foggia, 5-6 maggio 2006), a cura di M. N. Miletti, Milano, 2006, pp. 459-513; L. Lacche',
“L'opinione pubblica saggiamente rappresentata”. Giurie e corti d'Assise nei processi celebri tra Otto e
Novecento, in Inchiesta penale e pre-giudizio, cit., pp. 89-147.
28
M. Sbriccoli, La penalistica civile, cit., pp. 154, p. 181.
29
G. Sabbatucci, I socialisti e l'estrema sinistra nella svolta del secolo, in Alle origini dell'età giolittiana.
La «svolta liberale» del governo Zanardelli-Giolitti 1901-1903, a cura di R. Chiarini, Venezia, 2003, pp.
62 ss; M. Scavino, La crisi di fine Ottocento e l'età giolittiana, in Le classi dirigenti nella storia d'Italia, a
cura di B. Bongiovanni e N. Tranfaglia, Roma-Bari, 2006, pp. 51-104.
uma polícia mais respeitosa aos direitos dos cidadãos em uma sociedade, como a
italiana, tocada apenas em parte pela modernidade 30 .
Sobretudo em função dos ensinamentos de Arturo Rocco – um dos protagonistas
do código penal de 1930 – e de Vincenzo Manzini – futuro artífice do código de
processo penal do mesmo ano – os penalistas adotavam para a sua disciplina os critérios
metodológicos inaugurados por Vittorio Emanuele Orlando, colocando o penal no passo
do quadro constitucional do país e assumindo a lei positiva como pilastra fundamental
da reflexão do jurista.
A “penalística civil” aportava, assim, em uma “civilística penal”, que isolava a
ciência das grandes questões políticas e sociais que a atravessaram nos decênios
precedentes 31 .
O primeiro conflito mundial representava para a história italiana um fator de
crise do Estado liberal. No terreno do direito penal, em particular, o conflito social era
percebido com particular alarme pelos governos e pela opinião pública, sobretudo diante
das tentativas de insurreição encravados pelo país em 1914 32 .
Em março de 1915, o governo emanava em regime de “plenos poderes” 33
normas que limitavam a liberdade de imprensa, criminalizando a difusão de “notícias
falsas” ou “diversas” daquelas do governo ou dos altos comandos. “Traição indireta”,
“desmoralização”, “ajuda indireta ao inimigo”, circulavam há tempos no léxico do
direito penal militar 34 . Com a legislação penal de guerra - que encontrava em Vincenzo
Manzini, na época advogado geral do Tribunal Militar de Turim, o seu mais lúcido
leitor 35 - irrompiam também no direito comum, os “supremos interesses nacionais”, o
“humilhar o espírito público”, e, pela primeira vez, a instigação aos “choques entre
partidos políticos” 36 .

30
M. Sbriccoli, Giustizia criminale, in Lo Stato moderno in Europa. Istituzioni e diritto, a cura di M.
Fioravanti, Roma-Bari, 2202, p. 197.
31
M. Sbriccoli, La penalistica civile, cit., p. 217.
32
P. Marchetti, Inchiesta penale e delitto politico. Il processo per i fatti della”Settimana rossa” ad
Ancona, in Inchiesta penale, cit., pp. 150-207
33
C. Latini, Governare l'emergenza, Delega legislativa e pieni poteri in Italia tra Otto e Novecento,
Milano, 2005, p. 58.
34
P. Vico, Diritto penale militare, Milano, 1917, p. 209.
35
V. Manzini, La legislazione penale di guerra, cit. Sobre o “pontífice do método”, M. Sbriccoli,
Codificazione civile e penale, in Dizionario del fascismo, a cura di V. De Grazia e S. Luzzatto, Torino,
2002, I, pp. 304-305; M. Sbriccoli, Le mani nella pasta, cit. p. 848.
36
A. Bernau, I provvedimenti di indole penale per le necessità di guerra, in “Rivista italiana di diritto e
procedura penale”, VI, 1915, I, p. 385; E. Florian, Lo stato di guerra e la legge penale, ivi, p. 453; U.
Anichini, La diffusione di notizie durante la guerra, ivi, p. 693; Cronaca. Per la censura giornalistica, in
“Rivista penale”, 82, 1915, p. 373; G. Rubbiani, La notizia soggetta a divieto di pubblicazione, in “La
Scuola Positiva”, 1915, p. 904.
A jurisprudência de guerra contribuía para enraizar no discurso público a
identificação da “traição indireta” e do “inimigo interno” com a propaganda socialista
que, com a escolha neutralista em 1914, teria “faltado à união com a nação” para
aproximar-se ao “internacionalismo”, e, depois, ao “mito da revolução bolchevique” 37 .
Por exemplo, a pessoa que em um comício havia declarado não querer “derramar
o sangue pela pátria em armas contra o inimigo tradicional”, mas pela “revolução que já
estava próxima” era condenado pelo Tribunal Militar de Milão, com sentença de 7 de
julho de 1917. A “propaganda subversiva para obter a paz” era qualificada como
“traição indireta” 38 .
O decreto Sacchi, que criminalizava o “disfattismo 39 ”, era aplicado para punir o
secretário do partido socialista, Costantino Lazzari, que havia convidado os prefeitos
das cidades socialistas a mobilizar-se para fazer cessar a guerra e criticado as acusações
de Orlando acerca da responsabilidade dos socialistas no desarmamento de Caporetto 40 .
A acusação de “traição indireta” atingia os vértices do partido socialista que
sustentavam a revolta que estourou em Turim em função da fome em agosto de 1917 41 .
A propaganda socialista era definida como antipatriótica 42 , mesmo pelo Tribunal de
Cassação, que confirmava a jurisprudência sobre os crimes contra o Estado como
crimes de perigo presumido, obra de pretensos “inimigos internos” 43 .
Com a queda do mito da imprensa do séc. XIX, que formava a elite civil, o
conflito deixava ao pós-guerra uma opinião pública preparada para aceitar, de um lado,
as restrições à liberdade de expressão, de outro, a construção da verdade oficial.
Começava a surgir a identificação entre imprensa e propaganda, funcional a uma
sociedade de massa direcionado para o totalitarismo 44 .
Não por acaso, as normas que limitavam a liberdade de imprensa, emanadas em
1915, seriam retomadas pelo decreto de 15 de julho de 1923, publicado depois do delito

37
E. Gentile, La grande Italia. Il mito delle nazione nel XX secolo, Roma-Bri, 2006, p. 143
38
G. Nappi, Trattato di diritto e procedura penale militare, Milano, 1917, II, p. 273 ss.
39
N.T.: disfattismo: atitude de crítica destrutiva em relação a uma iniciativa.
40
Autodifese di militanti operai e democratici italiani, a cura di S. Merli, Milano, 1958, p. 133.
41
S. Caselli, Torino e la grande guerra. Uno sguardo attraverso le sentenze del Tribunale militare, in
Fonti e problemi per la storia della giustizia militare, a cura di N. Labanca e P. P.Rivello, Torino, 2004,
pp. 222 ss
42
Autodifese, cit., p. 135, 138; G. Procacci, La legislazione repressiva e la sua applicazione, in Stato e
classe operaia durante la prima guerra mondiale, a cura di G. Procacci, Milano, 1983, pp. 41-59; G.
Procacci, La giustizia militare e la società civile nel primo conflitto mondiale, in Fonti e problemi, cit. pp.
187-215.
43
V. Manzini, La legislazione penale di guerra, cit., p. 61.
44
W. Lippman, L'opinione pubblica (1922), prefazione di N. Tranfaglia, Roma, 2000.
Matteotti 45 . Assim como a legislação penal de guerra forneceria ao Código Rocco a
solução para sancionar o “disfattismo político e econômico”, a difusão de notícias falsas
e tendenciosas, mas também a genérica “atividade nociva aos interesses nacionais”.
No primeiro pós-guerra parecia evidente que durante o conflito a razão de
Estado impôs-se sobre as razões dos direitos de liberdade e que, sobretudo, a
propaganda socialista contra a guerra fora severamente atingida 46 .
Por outro lado, parecia irremediavelmente em crise tanto as instituições do velho
Estado liberal, como a discordância manifestada pelos “críticos das ruas e dos cafés”.
Um penalista como Manzini dava voz à postura anti-parlamentar, uma das matrizes
ideológicas do fascismo, na crítica aos “políticos fariseus, polemismo, sectarismo,
desordem, burocracia” definidos como “os verdadeiros inimigos internos” daquela que
queria ser “uma nova Itália” 47 .

3. Socialistas e fascistas no direito penal

Desde 1919, a Itália já era abalada por greves, interrupções dos serviços
públicos, invasões de terras, tumultos pelo alto custo de vida, assaltos a padarias. Os
governos que se sucediam no primeiro pós-guerra ofereciam respostas incertas, entre
repressão e anistia para crimes “determinados” por “causas” ou “fins” políticos e
sociais 48 . Vinha dos juristas um côro unânime de críticas ao poder político, acusado de
incapacidade de garantir a “ordem”, palavra-chave nesses anos, contra aquilo que
parecia a ameaça de uma revolução “bolchevique”, a exemplo da Rússia
revolucionária 49 .
O nacionalista Alfredo Rocco – futuro artífice das reformas constitucionais
fascistas – tematizava o nexo entre os “sindicatos”, movidos pelo “princípio da
desagregação”, e a “crise do Estado”, lugar de prova da falência da velha Itália

45
Stampa periodica, in “Rivista Penale”, 101, 1924, p. 181.
46
F. D'Ottone, Pel diritto e per la giustizia, Fano, 1919, p. 55.
47
V. Manzini, La Legislazione penale di guerra, cit., Prefazione, in Appendice
48
G. Nappi, L'amnistia della pacificazione, in “Scuola Positiva”, 1920, p. 283.
49
Documenti criminologici. Bolscevichismo nostrano, in “Archivio di antropologia criminale, psichiatria
e scienze sociali”, 1919, p. 250; G. Escobedo, Bolscevismo amnistiaiolo, in “Giustizia Penale”, 1920, p.
661; de modo análogo, Ancora e sempre amnistie, in “Rivista Penale”, 94, 1921, p. 488.
demoliberal, neutra diante do conflito capital – trabalho, inerte diante dos seus
“inimigos” 50 .
Sobretudo as violências vinculadas às ocupações das fábricas em setembro de
1920, despertavam grande alarme na imprensa burguesa e na opinião pública, das quais
os penalistas faziam-se porta-vozes, decididos a sublinhar que as “perturbações da vida
econômica” não podiam permanecer “impunes” 51 .
No momento em que o movimento fascista desencadeava no país um clima de
intimidação e violência, com a formação de grupos armados, o discurso jurídico sobre
“socialistas e fascistas no direito penal” vertia mais uma vez para o “crime político”, e
para o confronto entre a herança liberal, garantista, que aparecia agora em crise, e a
previsão de um novo “delito político-social”, para o qual o Projeto positivista de código
penal, publicado em 1921 por Enrico Ferri, ainda concedia um favor rei 52 .
Também em polêmica com a “Escola Positiva”, a Rivista Penale hospedava um
escrito exemplar para a representação do “movimento socialista bolchevique, partido
inimigo do Estado”, delito comum contra o qual respondia a “violência fascista”,
conotada por um “motor político de restabelecimento da ordem” 53 . Lucchini
empenhava-se, particularmente, na crítica ao “bolchevismo de praça e ao governo”, que
tolerava o “subversismo” 54 do “socialismo militante na Itália, delito comum” 55 .
No momento em que uma dramática crise da legalidade parecia colocar em risco
a “estrutura nacional” 56 , até ao “exaurimento do Estado jurídico” 57 , Lucchini
reconsiderava as razões garantistas de Carrara, ainda que nobres, mas que pareciam
“ingênuas, em confronto com o bolchevismo”. Lucchini concluía que, se o legislador
pretendia, ainda, “privilegiar o delito político nas relações penais e penitenciárias”, no
horizonte liberal, devia considerar “delito comum” a política socialista, que tendia a

50
A. Rocco, Crisi dello Stato e sindacati (1920), in Scritti e discorsi politici, Milano, 1938, p. 632. Sobre
Rocco também para indicações, cf. G. Vassalli, Passione politica di un uomo di legge, ivi, pp. 13-68; M.
Sbriccoli, Rocco, Alfredo, in Dizionario del fascismo, cit., II, 2003, p. 538.
51
E. Massari, Politica e diritto penale, in “Dizionario Penale”, 1921, pp. 143 ss, 162 ss; A. De Marsico,
La difesa sociale contro le nuove forme di delitto collettivo, in “Rivista Penale”, 91, 1920, pp. 201 ss.G.
Escobedo, Quale reato commetta il macchinista, il quale si rifiuti di far partire il treno se prima non
discendano i carabinieri che viaggiano per motivi di servizio, in “Giustizia Penale, 1922, col. 786
52
E. Ferri, Relazione, cit., pp. 5 ss
53
G. Marasco, Socialisti e fascisti nel diritto penale, in “Rivista Penale”, 93, 1921, p. 278.
54
Cronaca. Politica... criminale, in “Rivista Penale”, 92, 1920, p. 544; de modo análogo, Pacificazione
degli animi e astuzie di governo, 1921, 93, pp 389 ss; Bolscevismo di piazza e di governo, in “Rivista
Penale”, 93, 1921, p. 288.
55
L. Lucchini, Il socialismo militante in Italia è un delitto comune, ivi, 95, 1922, pp. 22 ss.
56
Carattere di certi delitti politici, in “Rivista Penale”,93, 1921, p. 484.
57
Cronaca Esautorazione completa dello Stato, ivi, p. 287
“garantir a hegemonia das massas proletárias” 58 , sob pena do advento de um “Estado
socialista, ainda que sem ser bolchevique” 59 .
A penalística registrava, em suma, a dramática presença de duas Itálias,
dispostas à luta fratricida. Os fascistas eram representados como defensores do Estado,
os socialistas como subversivos, com “metade dos cidadãos dispostos a tornar-se
fascistas militantes para opor-se com força às tentativas de subversão da outra metade,
composta por subversivos e grandes demagogos” 60 .
Mesmo o penalista Adolfo Zerboglio – suposto “renegado segundo a
terminologia religiosa e política”, por ter “visto e conhecido”, durante vinte anos, “o
partido socialista” – oferecia uma significativa reconstrução do direito penal político
daqueles anos.
Mesmo sublinhando o fato de que “socialistas” e “nacionais” ofereciam
interpretações de “caráter subjetivo das suas violências”, Zerboglio atribuía aos fascistas
o mérito de ter “protegido a Itália contra um experimento bolchevique”, opondo-se à
“desvalorização da guerra e da vitória” por parte dos “vermelhos”.
Nos “anos anti-italianos de 1919 e 1920”, o “comunismo” aparecera por trás de
tudo. O fascismo, por outro lado, definido com um “ponto de interrogação”, parecia
meritório por ter “gritado ‘Viva a Itália’” e “restaurado a idéia de Estado” melhor do
que “todos os professores de direito constitucional” 61 . No mesmo volume, organizado
em 1922 por Mondolfo para a “compreensão histórica do fascismo”, Dino Grandi –
futuro ministro, que promoverá o código civil de 1942 – tematizava a “missão” do
fascismo na luta contra os “partidos anti-nacionais” 62 .
A propósito de “facções” e direito penal, a Scuola Positiva do socialista Ferri
hospedava um ensaio que pretendia demonstrar que a constituição da organização
comunista “Arditi del popolo”, em função dos escopos pré-fixados, enquadrava-se nos
extremos do crime do artigo 131 do código, delito comum relativo à formação de
bandos armados. As “milícias fascistas”, que eram tidas como “tacitamente autorizadas”

58
L. Lucchini, Delitti politici e delitti comuni, cit., p. 197
59
Cronaca Esautorazione, cit., p. 287.
60
G. Arrivabene, Il diritto nuovo, in “Dizionario Penale”, 1921, p. 4.
61
A. Zerboglio, Il fascismo. Dati, impressioni, appunti, in R. Mondolfo, Per la comprensione storica del
fascismo. Introduzione alla raccolta il fascismo e i partiti politici, Bologna, 1922. p. 44. Sobre Zerboglio
cf. M. Sbriccoli, Il diritto penale sociale, cit., pp. 577 ss; M. Sbriccoli, Elementi, cit., II, pp. 873 ss.
62
D. Grandi, Le origini e la missione del fascismo, in R. Mondolfo, Per la comprensione storica, cit., p.
61.
pelo governo, incorriam na previsão do art. 244, pertencimento a corpos armados sem
escopos delituosos, crime político ao qual são aplicáveis os relativos benefícios 63 .
A segunda edição do Trattato de Vincenzo Manzini, monumento do tecnicismo
jurídico, em 1921 descrevia as “associações subversivas”, operantes em “regime quase
anárquico” por “inércia dos governos”, assinalando “as lutas entre anarquistas e
comunistas de um lado, fascistas de outro”.
O dilema ordem-desordem, Estado-antiestado, “subversivos” – o termo
compreendia indistintamente “anarquistas, socialistas, etc” – contra “estruturas
nacionais” aparecia como o critério de diferenciação: “os primeiros, devaneando na
revolução e abandonando-se aos delitos de toda espécie, freqüentemente com ferocidade
incrivelmente vil e malvada, determinaram a atividade dos assim chamados fascistas,
primeiramente providenciais, mas depois com excessos em expedientes punitivos, os
quais não alcançaram as atrocidades dos adversários, freqüentemente levados a
injustificáveis crimes contra a liberdade individual, as pessoas e a propriedade, com a
dissimulada conivência do governo” 64 .
A leitura que a penalística oferecia deste último período da longa crise do Estado
liberal estava sintonizada com um discurso de Alfredo Rocco na Câmara, que
considerava anti-nacional o papel da “delinqüência socialista” na história da Itália, pelo
obstrucionismo parlamentar em 1889, que impedira o governo de legislar, pela
sabotagem e traição durante a guerra, até à “greve nos serviços públicos, a defesa
privada substituindo a defesa estatal por meio de tribunais vermelhos, a ocupação das
fábricas, as mortes dos veteranos de guerra, as revoltas dos militares” 65 .
Antes mesmo do decreto de anistia emanado do ministério Mussolini em
dezembro de 1922 – que limitaria o benefício somente aos (tantos) delitos cometidos
pelos fascistas por um “objetivo nacional” – o discurso público dos penalistas declinava
o tema das “duas Itálias” no caminho daquilo que Arturo Labriola chamava de “as duas
políticas”: a “opinião pública” identificava o “Estado” com a “ordem pública anti-
socialista” e as violências fascistas contra “os adversários” como uma “operação de
polícia” 66 .

63
P. Giudici, Squadre di azione fasciste e Arditi del Popolo, in “La Scuola Positiva”, 1922, I, pp. 118 ss;
de modo análogo, E. Vulterini, Arditi comunisti e squadre di azione fasciste, Bologna, 1922.
64
V. Manzini, Trattato di diritto penale italiano, Torino, 1921, V, p. 672
65
A. Rocco, Scritti e discorsi politici, cit., I, pp. 665, 705.
66
Art. Labriola, Le due politiche. Fascismo e riformismo, Napoli, 1923, p. 173
4. O sistema penal fascista

Sobretudo nos momentos de tensão mais aguda, no direito penal político da


Itália liberal, a dimensão de repressão à divergência, operada a partir do duplo canal
penalístico-judiciário e preventivo-policialesco, fora, então, decisiva para a
identificação da “ordem” com as maiorias políticas e da subversão com a atividade
sindical e socialista 67 .
Por outro lado, no setor nevrálgico do direito penal político, o regime fascista
assinala uma descontinuidade no plano ideológico e no plano de uma poderosa
produção normativa: somavam-se às violências e aos abusos no plano físico, entre 1923
e 1926, as diversas leis que pretendiam fechar jornais, associações, partidos anti-
fascistas, não somente socialistas e comunistas, mas também os grupos dos “velhos
liberais”.
A “prossecução da política do squadrismo 68 por outros meios” 69 escreveria as
páginas mais vergonhosas com a legislação anti-hebraica de 1938, com visíveis lesões
aos “fundamentos” da civilização jurídica, que passaram sob o silêncio não só dos
juristas 70 .
Nos anos do fascismo, perdia o sentido, assim, o princípio da legalidade
estrita 71 , a partir do momento que qualquer manifestação de oposição era submetida,
também, para além da repressão penal, às práticas administrativas e não jurisdicionais
de segurança nacional 72 e de polícia política 73 .

67
U. Allegretti, Dissenso, cit, pp. 719-756.
68
N.T.: o termo refere-se à estratégia utilizada pelo fascismo a partir da década de 20 de organizar-se
militarmente em grupos armados para atacar, principalmente, associações proletárias. (Cf. GENTILE,
Emilio. Fascismo. Storia e interpretazione. Laterza, 2002. p. 11)
69
M. Sbriccoli, Caratteri originari, cit., pp. 529 ss
70
G. Speciale, Giudici e razza nell'Italia fascista, Torino, 2007.Uma resenha pontual da legislação
fascista em G. Neppi Modona-M. Pelissero, La politica criminale durante il fascismo, in Storia d'Italia,
Annali, 12, cit., pp. 759-847; G. Neppi Modona, Diritto e giustizia penale, in Penale, giustizia, potere,
cit., pp. 344 ss; G. Neppi Modona, Principio di legalità e giustizia penale nel periodo fascista, in
“Quaderni fiorentini”, 36, 2007, pp. 983 ss
71
Uma resenha pontual da legislação fascista em G. Neppi Modona-M. Pelissero, La politica criminale
durante il fascismo, in Storia d'Italia, Annali, 12, cit., pp. 759-847; G. Neppi Modona, Diritto e giustizia
penale, in Penale, giustizia, potere, cit., pp. 344 ss; G. Neppi Modona, Principio di legalità e giustizia
penale nel periodo fascista, in “Quaderni fiorentini”, 36, 2007, pp. 983 ss
72
N.T.: o termo, no original, é pubblica sicurezza, mas, para evitar a confusão com o uso atual de
“segurança pública” no ordenamento jurídico-político brasileiro, optou-se por essa outra forma, uso
lingüístico que, no Brasil da mesma época, designava instituições jurídicas análogas àquelas que a autora
se refere.
73
M. Franzinelli, I tentacoli dell'Ovra, Agenti, collaboratori e vittime della polizia politica fascista,
Torino, 1999; M. Franzinelli, Delatori, Milano, 2001
O penal foi completamente separado da tradição moderna do princípio da
liberdade e reduzido a instrumento do Partido-Estado. O regime enviava delitos
antifascistas, mas também “propósitos”, ao Tribunal especial para a defesa do Estado. A
reintrodução da pena de morte 74 , inicialmente só para os delitos políticos mais graves,
apagava a tradição abolicionista, que via o seu campeão no “italiano” Cesare Beccaria.
A involução em relação ao código Zanardelli ou não era comentada ou era recepcionada
pelos juristas, salvo algumas exceções, como o livro – logo censurado pelo regime – de
Paolo Rossi 75 .
Muito se discutiu sobre o papel assumido pelos penalistas nos anos do fascismo,
sobretudo na construção do código penal e do código de processo penal de 1930, o
primeiro ainda em vigor, e o segundo superado somente em 1989.
Logo depois da Liberação, os penalistas que se filiavam ao formalismo jurídico
sustentariam que, justamente graças a um método que se pretendia somente técnico, e
não político, Arturo Rocco, Vincenzo Manzini, Edoardo Massari, haviam garantido,
também durante aqueles 20 anos, a força da lei em relação às pretensões do Estado,
freando a total fascistização totalitária do penal 76 .
Mario Sbriccoli escreveu, porém, que a indiscutível “qualidade técnica” da
penalística reduzira-se a “vetor perverso de fins políticos”, e que os níveis de força do
princípio da legalidade foram colocados em crise no que tange à efetividade desta
garantia, em função das formulações ambíguas do próprio código Rocco, que somente a
“sabedoria técnica” poderia produzir; das leis de exceção de 1925 e 1926; da legislação
racial; e da “prática do arbítrio e da afronta”.
Em relação ao código Zanardelli, mesmo o código Rocco expressava, de fato, a
inversão mais óbvia e mais evidente na disciplina reservada à divergência política 77 ,
marcada pela “obsessão contra o inimigo do Estado”, com a criminalização do conscius,
com a introdução do crimen silentii no delito contra o Estado e com a previsão de
extradição para os crimes políticos 78 .

74
G. Tessitore, Fascismo e pena di morte. Consenso e informazione, Milano, 2000, pp. 45 ss.
75
P. Rossi, La pena di morte e la sua critica, Genova, 1932.
76
M. Sbriccoli, Le mani nella pasta, cit., p. 829.
77
M. Sbriccoli, Le mani nella pasta, cit., p. 838; M. Sbriccoli, Giustizia criminale, cit., p. 197 ss;
Codificazione civile e penale, in Dizionario del Fascismo, cit., pp. 299-305.
78
Sbriccoli, Codificazione civile e penale, cit., p. 303.
Se, sobretudo na parte geral, o código Rocco não expressava um sistema
totalitário de criminalização com base política, como na Alemanha nazista 79 e na
Rússia soviética – que também conhecia as teorias da “Escola Positiva” sobre a defesa
social 80 - o específico setor do direito penal político italiano, porém, parecia aproximar-
se do “direito penal da vontade”. A “Personalidade do Estado” – no vértice da tutela –
não era configurada como bem tutelado, mas como metáfora de uma idéia superior,
quase recolocando o sistema da lesa-majestade 81 .
Neste horizonte, os penalistas destas duas décadas, “imersos na cultura do
autoritarismo”, carregaram a responsabilidade cultural de um sistema penal centrado no
“espírito de domínio”, em primeiro lugar na construção da relação entre Estado e
cidadão; contribuíram para a sedimentação de uma “ideologia e visão das coisas” –
“paradigma da superioridade-inferioridade, princípio da desigualdade, preconceito da
hierarquia social, intolerância à diversidade e os múltiplos corolários da doutrina da
força” – que mancharam profundamente o tecido da sociedade italiana, mesmo depois
do fascismo, com certas formas de “crítica da política” e de “enfado pelo princípio
democrático” 82 .
Depois da Liberação, poucas passagens da Constituição de 1848 serviam para
restituir ao penal a sua característica de medida do grau de civilidade de um país, com a
solene proclamação do princípio da legalidade, do juiz natural, da presunção de
inocência, do direito à defesa, da abolição da pena de morte e da função re-educativa da
pena.
Os códigos e as leis de segurança nacional continuavam, porém, em vigor, ainda
que transformadas por intervenções demolidoras da Corte Constitucional, e freavam a
vida civil e democrática. O sistema penal italiano parecia, de fato, envelhecido e
precisava de reformas, atrasado em relação ao desenvolvimento de um país em vias de
modernização.
A Itália, porém, era investida por uma série de emergências, que, mais uma vez,
ditavam a sua agenda para o penal: os conflitos políticos, sindicais e estudantis dos anos
sessenta, o terrorismo nos anos setenta, o crime organizado camorrista e mafioso dos

79
H. Rüping, Nazionalsozialismus und Strafrecht, in “Quaderni fiorentini”, 36, 2007, II, pp.1007-1030;
E. De Cristofaro, Legalità e pericolosità. La penalistica nazifascista e la dialettica tra retribuzione e
difesa dello Stato, ivi, pp. 1031-1082
80
M. Cossutta, Fra giustizia ed arbitrio. Il principio di legalità nell'esperienza giuridica sovietica, in
“Quaderni fiorentini”, 36, 2007, II, p. 1105.
81
M. Pelissero, Reato politico, cit., p. 490 ss
82
M. Sbriccoli, Le mani nella pasta, cit., p. 818 ss.
anos oitenta – problema nacional de longa duração -, até à corrupção política dos anos
noventa. Nas últimas décadas, em suma, o tema da legalidade foi sempre colocado em
termos de “crise” 83 .
De maneira mais geral, logo depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, no
ocidente, assistimos a um retorno do paradigma da razão de Estado, da salus populi, que
tendem a impor-se sobre as razões de direito e do princípio da legalidade, “inimigo do
abuso”. O propósito do “Presidente que protege o direito” 84 pareceu imprimir ao penal
uma torsão na direção de transformá-lo, mais uma vez, em instrumento de defesa contra
o inimigo, até o ponto de se punir “aquilo que se é, e não aquilo que se faz”, em uma
lógica de regressão cultural absolutamente inidônea para proteger a democracia 85 .
Mesmo diante da necessidade de colocar o sempre difícil encontro do penal com
a política nos diversos tempos históricos, justamente quando das graves ameaças que
incidem sobre os ordenamentos democráticos e sobre a própria convivência civil, parece
importante não renunciar à tensão, sempre problemática, na direção de um sistema penal
justo, garantista e livre 86 .
No horizonte ideal dos grandes fundamentos da modernidade jurídica bem como
da Carta da ONU, que pretende tutelar os direitos humanos, o penal deve, em suma,
impor-se como espelho da democracia 87 , recuperando a sua vocação de “meio de
garantia, instrumento de tutela das liberdades e critério de mensuração dos níveis de
civilidade de um ordenamento” 88 .

83
F. Palazzo, Legalità penale: considerazioni su trasformazione e complessità di un “principio
fondamentale”, in “Quaderni fiorentini”, 36, 2007, II, pp. 1279-1329
84
M. La Torre, “Giuristi, cattivi cristiani”. Tortura e principio di legalità, in “Quaderni fiorentini”, 36,
2007, II, p. 1533.
85
L. Ferrajoli, Il “diritto penale del nemico” e la dissoluzione del diritto penale, in “Questione giustizia”,
XXVI, 2006, n. 4, Verso un diritto penale del nemico?, pp. 804 ss.
86
M. Sbriccoli, Giustizia criminale, cit., p. 197.
87
G. Fiandaca, Legalità penale e democrazia, in “Quaderni fiorentini”, 36, 2007, II, p. 1275.
88
M. Sbriccoli, Caratteri originari, cit., p. 551.

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