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CORRÊA-LIMA, Osmar Brina

O Fenômeno da Descodificação do Direito. Revista da Procuradoria-Geral da


República, 1: 239-246 – out./dez.1992

O FENÔMENO DA DESCODIFICAÇÃO DO DIREITO

I.

Chamou a minha atenção, pela sua simplicidade, clareza e objetividade, o


trabalho do Prof. João Matos Antunes Varela, catedrático das Universidades
de Coimbra e de Lisboa, intitulado "O Movimento de Descodificação do Direito
Civil" (in Estudos Jurídicos em Homenagem ao Jurista Caio Mário da Silva
Pereira, Rio, Ed. Forense, 1984, pp. 499/531). Faço dele um resumo para, em
seguida, compartilhar com o leitor algumas reflexões que acorreram à minha
mente após a sua leitura. Certamente, essa sinopse não fará jus à boa
qualidade da obra. Contudo, ela visa a facilitar a compreensão daqueles que,
por premência de tempo ou outra dificuldade, não tiveram a oportunidade de
um acesso direto àquele excelente texto.

RESUMO

1. Atualidade e complexidade do fenômeno. Na fase mais recente da


evolução do direito, iniciada a partir da 2a Grande Guerra (1939-1942), nota-
se uma tendência geral, bastante significativa, de descodificação do direito.
Há uma fuga dos códigos. O direito moderno tende a evadir-se dos códigos,
preferindo a legislação avulsa, as leis especiais. Desvaneceu-se o culto
mitológico do Código, fundado no valor transcendente do espírito sistemático.
As sociedades contemporâneas preferem transferir a definição dos estatutos
jurídicos das majestáticas comissões codificadoras para pequenos mas ativos
grupos intermediários, mais próximos das realidades concretas da vida, mais
acessíveis às preces do cenáculo político, mais permeáveis às idéias-força do
mundo atual, situados a meio termo entre o cidadão eleitor e o Estado.

2. História do movimento. Nos paises europeus, o fenômeno da alergia do


sistema ao direito codificado passa por períodos distintos e sucessivos. A
partir do séc. XVIII, até a Grande Guerra (1914-1918), ocorreu o apogeu da
codificação, sublimada no direito civil, como o ramo mais representativo do
ponto de vista ideológico e, ao mesmo tempo, de elaboração científica mais
avançada.

3. Socialização do direito privado à margem dos códigos. A partir da Grande


Guerra, a realidade social passou a exigir do Estado um intervencionismo
crescente dos poderes públicos no desenvolvimento da atividade econômica.
O problema habitacional, a industrialização dos países mais evoluídos e o
desenvolvimento dos meios de transporte provocaram, respectivamente, a
promulgação de três setores de leis esparsas: as leis do inquilinato, as leis
sobre acidentes do trabalho e as leis sobre acidentes de viação. Todas elas,
fora dos Códigos Civis, envolveram duro, porém justificado, sacrifício do
principio da autonomia da vontade e da regra clássica da responsabilidade
civil subjetiva. Paralelamente, evoluiu a disciplina dos titulos de crédito
cambiários. Criou-se assim, um dualismo morfológico e ideológico do sistema.

4. Época de descodificação do direito. Características gerais da nova


legislação. A partir da 2ª Grande Guerra, com a derrota das potências

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totalitárias do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), novo período vem a se rasgar


na evolução do Direito Civil em muitos Estados europeus.

Na Itália, com a entrada em vigor da Constituição de 1947, o Código Civil


deixou de constituir o centro geométrico de toda a ordem constituída. O
primado da legislação passou para a Constituição, quando esta lançou as
bases de uma nova sociedade ideologicamente comprometida.

Aumentou-se em quantidade e modificou-se em qualidade a legislação


especial (avulsa); esta passou a orientar-se pelos novos princípios
programáticos definidos no texto constitucional; as leis especiais
caracterizam-se por significativa alteração no quadro dos seus destinatários;
muitas delas nasceram da luta entre o poder público e os grupos de pressão
de certos estratos sociais; as leis deixaram em grande parte de constituir
verdadeiras normas gerais para constituírem estatutos privilegiados de certas
classes profissionais ou de determinados grupos políticos; formaram-se,
dentro da ordem jurídica, verdadeiros micro-sistemas legislativos, que
deliberadamente se afastam das regras gerais do jogo, aplicáveis às
restantes instituições.

5. Causas das transformações operadas. As causas das transformações


operadas são múltiplas: a) a prevenção contra o pensamento totalitário do
regime derrotado na 2ª Grande Guerra, que gerou a ênfase posta pela
Constituição italiana na definição e na tutela das liberdades políticas
fundamentais do cidadão; b) o fenômeno do associativismo (movimento
principiado nos sindicatos); c) a influência dos novos grupos sociais nas
assembléias legislativas...

6. O período da segunda fase do liberalismo na codificação do direito


português. A evolução do sistema jurídico português acompanhou, nas suas
grandes linhas, as significativas transformações que caracterizam o avanço
das legislações européias mais evoluídas. O Código Civil português de 1867,
de pura cepa individualista, chamara a si o primado de toda a ordem
constituída. Até a Grande Guerra, poucas foram as leis especiais dignas de
destaque sobre matérias compreendidas na área do direito civil.

7. A fase intermediária da progressista socialização do direito privado (1918-


1976). No período compreendido entre 1918 e 1976, desenvolveu-se
desmesuradamente a legislação especial sobre setores importantíssimos da
vida privada (leis do inquilinato, de acidentes do trabalho, de acidentes de
viação etc.). Em 1976, o novo Código Civil português procurou
inteligentemente adaptar-se ao espírito do novo direito privado. Nele foi
conferido especial relevo ao principio basilar da boa-fé e formulada a figura do
abuso do direito.

8. O período atual de descodificação do direito. O Código Civil italiano de


1942 levou muito mais longe do que o Código português de 1966 a tendência
absorcionista da legislação civil em relação ao direito privado. O Código Civil
italiano de 1942 incursiona francamente em áreas reservadas do direito do
trabalho e do direito comercial, cuja autonomia o Código português de 1966
prudentemente respeitou com o maior escrúpulo.

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9. Deslocação do primado da ordem jurídica para a Constituição de 1976. A


Constituição portuguesa de 1976, mais prolixa e mais agnóstica do que a
Constituição italiana de 1947, chamou a si várias matérias tradicionalmente
disciplinadas pela legislação civil. Criaram-se assim as condições básicas
essenciais ao processo de deslocação do centro de gravidade de todo o
sistema jurídico para o texto programático da Constituição.

10. Proliferação da legislação especial. Segundo elemento comum à evolução


do direito privado nos paises de tradição romanista (o primeiro é a
descodificação) consiste na intensa e diversificada proliferação da legislação
especial.

11. Pródomos do direito setorial. O terceiro e último traço consiste numa


tendência para a legislação setorial. As leis passam a dirigir-se não ao
cidadão, ao individuo indiferenciado, mas a grupos de pessoas (trabalhadores
subordinados, cultivadores, gestores públicos, militares, magistrados,
funcionários públicos etc.). Dentro das áreas do direito setorial vai se
esvaindo pouco a pouco a unidade e coesão do sistema. A necessidade do
consenso substitui cada vez mais a vontade soberana do Estado. O império
geral e abstrato da lei cede em face do circunstancialismo concreto e
individual do contrato. O poder do Estado dilui-se continuadamente perante a
força de pressão dos grupos sindicais. Nasce a ameaça de desagregação do
próprio Estado.

12. Reflexões finais. Há uma disputa travada entre a Constituição e o Código


Civil sobre o primado da ordem jurídica constituída. A idéia do Estado não
intervencionista, próprio da sociedade burguesa, acha-se definitivamente
ultrapassada pelas atuais concepções da justiça e da igualdade dos homens
perante a lei. A Constituição não pode limitar-se hoje a definir os direitos
políticos e as liberdades fundamentais do cidadão e a traçar a organização do
Estado, capaz de garantir a livre iniciativa dos indivíduos. O Estado social
moderno chamou a si duas funções primordiais: a de promotor ativo do bem
comum e a de garante da justiça social. Se, porém, o verdadeiro centro da
ordem jurídica é o homem - e não o Estado, apesar de integrado por homens
-, o lugar próprio para a proclamação dos direitos inerentes ao homem,
promanados da eminente dignidade do ser humano, continua a ser o Código
Civil e não a Constituição. Inscrever a proclamação de direitos dessa
natureza no texto da Constituição é dar a impressão condenável de que o
Estado pretende impor as suas idéias políticas, econômicas ou sociais na
vida privada dos indivíduos ou que tais direitos representam uma concessão
do Estado assente na frágil e oscilante tábua axiológica que a este serve de
apoio: a legalidade democrática. Importa distinguir, na implantação normativa
dos vários direitos do homem, aqueles que, respeitando às instituições
políticas, devem ser inscritos na Constituição, e aqueles que, ligados às
instituições de ordem particular (familiares, econômicos, espirituais, culturais,
etc.) continuam a ter a sua matriz adequada no estatuto fundamental do
direito privado.

Quanto à proliferação da legislação especial, há que deixar o tempo


prosseguir na ação depuradora dos excessos e das injustiças mais gritantes
da paixão dos homens, até assentar toda a poeira que empana o brilho da
nova escala axiológica do sistema. A revisão sistemática a que mais tarde se

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há de proceder porá certamente termo a muitas das assimetrias do


ordenamento jurídico atual e eliminará muitas das injustiças relativas em que
é fértil e caótica legislação em vigor.

De prognóstico mais reservado é o elemento de perturbação proveniente da


interferência dos grupos de pressão, das classes ou categorias profissionais,
na preparação, elaboração, execução e (sic) "não" aplicação das leis. Muitos
grupos intermédios têm usado da sua força (seja através de graves
manifestamente ilegítimas, seja mediante manifestações demagógicas de
rua) para impedir o Estado de governar com justiça.

II.

Já afirmei - e repito - que essa sinopse, certamente, não faz jus à obra
resumida.

Por outro lado, não me animaria a elaborá-la se não tivesse encontrado e


reconhecido no trabalho do professor português todo o mérito que ele
encerra. Fica assim o leitor mais exigente convidado a procurá-lo e lê-lo na
íntegra.

Efetuada a observação acima, passo a compartilhar com o leitor algumas das


reflexões que a leitura do trabalho induziu à minha mente.

1. Vida humana, movimento e mudança. A característica mais evidente e


marcante da vida é o movimento. O ser humano vive em sociedade (ubi
homo, ibi societas). A característica mais evidente e marcante da sociedade
é, pois, a mudança. A realidade humana (e, conseqüentemente, a social)
mostra-se profundamente controvertida, multipolarizada, ambivalente,
instável, paradoxal e dialética. O homem oscila sempre entre imanência e
transcendência; razão e emoção; sístole e diástole; saúde e doença; luta e
repouso; guerra e paz; consciência e inconsciência; amor e ódio; pulsões de
vida e de morte. A passagem do pensamento mágico-religioso para o
pensamento científico foi particularmente difícil para o homem. A fé viu-se
substituída pela dúvida metódica. Começou o crepúsculo de todos os dogmas
e de todos os ídolos. Desapareceu a ilusão da segurança. O homem sofreu
duros golpes em seu narcisismo.

2. Incursão na História Universal. Uma incursão assistemática na História


Universal apresenta alguns dados significativos.

O sistema heliocêntrico formulado por Copérnico só veio a ser consagrado


depois da difícil aceitação dos trabalhos de Galileu e Kepler. O homem
sofreu, então, duríssimo golpe em seu narcisismo no séc. XVII: descobriu que
a terra não é o centro do universo. Desalojado para um canto obscuro das
galáxias, ele precisava desesperadamente de uma compensação. Na
verdade, esse golpe no narcisismo da humanidade apenas antecipou dois
outros, igualmente duros, senão piores: um, proferido por Darwin, com a
teoria evolucionista; outro, por Freud, com a descoberta do inconsciente (Paul
Laurent Assoun, Freud, A Filosofia e os Filósofos, Rio, Ed. Francisco Alves,
1978, p. 101).

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Surgem, no séc. XVIII, as idéias iluministas, sintetizadas na Enciclopédia,


publicada a partir de 1741. É a filosofia das luzes. O homem não se acha no
centro do universo. Mas não é isso o que conta. O que, realmente, importa é
o domínio da razão alcançada pela liberdade de pensamento. A grandeza do
homem desloca-se para o seu interior. A perda representada pelo
heliocentrismo é compensada pelo antropocentrismo. O homem não se situa
mais no centro do universo, mas, em compensação é a medida deste. O
universo acha-se vazio. Deus o criou para o homem. Este converte-se em
símbolo da ordem universal. Tudo o que lhe diz respeito deve ser simetria,
ordem, perfeição. Ao Direito, concebido como ciência do dever ser (sollen)
caberia ampliar esse estado para a vida social.

A Filosofia esforçava-se para formular uma Weltanschauung, uma concepção


totalizadora do mundo, capaz de resolver, segundo um único princípio, todos
os problemas colocados pela existência, e na qual nenhuma questão
permanecesse aberta. Ressuscitava, de alguma forma, o mundo grandioso
das idéias de Platão.

Na seara jurídica, a teoria pura do Direito, formulada por Hans Kelsen,


procurou isolar a norma, dela afastando todos os elementos externos, de
ordem social, política ou filosófica. A meu ver, a obra kelseniana possui
inegável valor intrínseco. Ela também comporta uma releitura não
preconceituosa e diferente, perfeitamente compatível com a realidade atual.
Na prática, a teoria pura do direito integrou-se ao fluxo histórico da cultura e
da filosofia da época em que foi elaborada (...), e conduziu o sistema da civil
law ao positivismo jurídico mais radical, totalmente incompatível com a
realidade hodierna.

Todos aqueles fatores históricos e filosóficos já apontados, certamente, terão


influenciado a tendência codificadora do Direito.

Insinua-se aqui a idéia de que o mesmo "cimento" narcisista empregado na


construção do grandioso Palácio de Versalhes terá também sido utilizado
posteriormente, na elaboração do monumental Código Civil francês. O
Palácio de Versalhes, construído para comemorar o esplendor do reinado de
Luís XIV, continua imponente e majestoso, a desafiar o tempo. Guarda
sombrias histórias. Hoje, transformou-se em atração turística. Mas, nos dias
de fausto e glória, escondia um defeito prosaico: não possuía banheiros.

Quando a idéia totalizadora, anos depois, se traduziu em totalitarismo, no


nível político, este último explodiu, ou implodiu. Estados inteiros se
esfacelaram, com conseqüências explícitas, implícitas e insuspeitadas.
Iniciou-se também o esfacelamento dos Códigos, apontado pelo ilustre
professor português.

3. Movimentos e mudanças nos sistemas romano-germânico e anglo-


americano. Em mais de um ponto do trabalho resumido, o autor deixa claro
que se reporta tão somente ao sistema romano-germânico do Direito. Não
cuida do sistema anglo-americano, mesmo porque não é da tradição deste a
codificação. O estudo do Direito Romano revela que ele partiu de um
casuísmo empírico, até chegar, após longa evolução, e com o uso do
raciocínio lógico-indutivo, aos grandes monumentos jurídicos legados pelos

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romanos. Hoje, os países de tradição romano-germânica parecem caminhar a


passos largos para a descodificação. Enquanto isso, na Inglaterra e,
sobretudo, nos Estados Unidos nota-se um movimento inverso. O casuísmo
empírico que sempre caracterizou o direito norte-americano já começou a ser
sistematizado. Essa tendência transparece não apenas na promulgação de
vários códigos como também na notória mudança de feição dos casebooks
utilizados nas Faculdades de Direito daquele país, que passaram a incluir, de
maneira crescente, matérias doutrinarias.

A convergência dos dois sistemas - o da civil law e o da common law - já fora.


notada, entre outros, por Schlesinger, Baade, Damaska e Herzog
("Comparative Law'',- Mineola, New York, The Foundation Press, 1 988, p.
803: "slowly and gradualy, however, our approach and that of the civil law
systems seem to converge"). Em suma, os dois sistemas, visualizados com
um certo distanciamento, movem-se em direção a um hipotético ponto de
equilíbrio ideal. Mudam. A história parece repetir-se, numa oscilação
constante, na interminável caminhada para o futuro.

4. Causas da transformação. Ao analisar, no item 5, as causas da


transformação operada após o termo da última conflagração mundial e o
quadro de relações ''manifestamente hostil, em certos domínios, à codificação
do Direito", o professor lusitano escreve, textualmente: “ Em face realidade
palpável da moderna sociedade, não falta mesmo quem se interrogue sobre a
real função do jurista na formação do direito contemporâneo. Não estará o
jurisconsulto, perante a luta dos grupos que verdadeiramente comandam a
evolução do aparelho coercitivo do Estado e as pressões ideológicas que as
organizações de classe exercem sobre o oportunismo político das
assembléias, condenado a ser um mero cronista da nova corte, sem o menor
poder de intervenção na definição do direito justo?" (p. 512). Em nota de pé
de página, o autor luso cita estudos reunidos por IRTI no seu L'Età della
Codificazione, para acrescentar, indagando: "Não é aos juristas, como
intérpretes qualificados das idéias supremas de que se nutre o Direito, que
cabe, especialmente nas épocas de crise como a que o Mundo atravessa
com a atual erupção das novas categorias econômicas e sociais, ajudar a
definir o rumo certo do aparelho coercitivo da vida social? Não é ao
jurisconsulto que, nesse campo, especialmente cumpre iluminar o
pensamento europeu?"

Em suma, qual o papel do jurisconsulto na elaboração do direito na sociedade


contemporânea em face do fenômeno da descodificação do direito? Será o de
mero cronista?

Não pretendo responder direta e dogmaticamente a essa questão. Proponho-


me, entretanto, a levantar alguns elementos necessários para explicitar
melhor a própria pergunta, oferecendo, em seguida, mera sugestão para a
elaboração de uma resposta provisoriamente definitiva. Para tanto, reflitamos
um pouco sobre as expressões-chave contidas na questão e destacadas em
itálico e negrito: "jurisconsulto", "elaboração do direito" e "cronista".

Quem é o jurisconsulto? Antes de tudo, é um homem. Um homem com


características especiais, que lhe justificam aquele epíteto. Mas que
características são essas? A própria etimologia da palavra já nos fornece

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algumas pistas: aquele que, por sua experiência, costuma ser consultado
sobre matéria jurídica.

Seria, entretanto, impossível definir o exato conceito de jurisconsulto Quando


muito, poder-se-ia traçar-lhe um perfil. A maneira mais eficaz para fazê-lo
consistiria em estudar não apenas a obra, mas também a biografia de alguns
jurisconsultos consagrados pela História, procurando descobrir nesse estudo
algumas características comuns. No Brasil citaremos um morto e um vivo:
Clóvis Bevilaqua e Caio Mário da Silva Pereira.

O jurisconsulto é homem maduro, experiente, perfeitamente engajado em seu


tempo. Conhece a si mesmo. Possui boa formação humanista. Conhece bem
a Filosofia e a História. Delas sabe extrair lições importantes. Revela argúcia,
perspicácia, e espírito critico altamente aguçado. Acredita no Direito como
instrumento da Justiça e domina-lhe a técnica. Conserva a juventude do
espírito. É um sonhador idealista, sem deixar de ser realista. Não é
dogmático, nem "dono da verdade". Domina a Lógica e a Dialética. Confia em
si mesmo e no futuro. Para usar uma expressão da língua inglesa, é um open
minded.

A expressão "elaboração do direito" lembra, em primeiro lugar, o trabalho das


Casas Legislativas. Nos Estados democráticos, o Direito é elaborado pelo
Poder Legislativo, composto de representantes do povo, eleitos por este. Uma
vez eleitos, ao menos teoricamente, os deputados e senadores passam a
representar o interesse da Nação inteira, e não apenas o de seus eleitores.
Seria ingênuo, contudo, afirmar que eles não representam também o
interesse de seus eleitores. Classes trabalhadoras, classes empresariais e
outras "fazem" os seus representantes. No cadinho dos debates e
articulações políticas do Congresso Nacional, são - ou deveriam ser-
elaboradas as normas de interesse nacional. Muito dificilmente
encontraremos um jurisconsulto no Congresso Nacional. Intelectual
introspectivo, reflexivo e estudioso, o jurisconsulto raramente encontrará
disponibilidade para a política partidária Mas sua participação mostra-se
absolutamente indispensável na elaboração do direito. Será então ele
convocado para apresentar projetos ou corrigi-los. O ideal de sistematização
persiste. Apenas muda a sua configuração. Ao invés de um macro-sistema
consubstanciado num Código Civil abrangente e absorvente mais compatível
com o ideal unitário e totalizador da Weltanschauung, passam a existir os
micro-sistemas legislativos, harmônicos e interdependentes, girando em torno
do eixo constitucional. Competirá ao jurisconsulto contemporâneo a tarefa
nada fácil de evitar aquele perigo previsto pelo autor: que esses micro-
sistemas se afastem das regras gerais do jogo. Mas quais serão as regras
gerais do jogo? Onde encontrá-las? Penso que na posição atual, em que se
encontra o Direito de tradição latina, tais regras gerais são os princípios
insculpidos na Constituição. Mas cumpre considerar aqui o alerta de Roscoe
Pound no inicio deste século: não se confundem princípios com as regras
deles deduzidas. As regras costumam esconder os princípios ("Mechanical
Jurisprudence", in Columbia Law Review, 8: 605-623 (1908). Será preciso
ceder à tentação de transferir para a Constituição a mesma obsessão
totalizadora repudiada com a descodificação. Na Constituição tal obsessão
atingiria a um grau muito mais elevado, estendendo-se muito além do direito
civil e além mesmo do direito privado.

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A elaboração da Constituição Federal brasileira de 1988, por exemplo, sofreu


o impacto perturbador de grupos de pressão. O Congresso Nacional
constituinte adotou uma metodologia lógico-indutiva de articulação de muitos
lobbies diferentes. Tornou-se uma Carta extensa, na qual princípios e regras
se misturam, correndo o risco de comprometer-se em sua eficácia. Sintoma
de um desses lobbies encontra-se no inc. XVIII do art. 37: "a administração
fazendária e seus servidores fiscais terão, dentro de suas áreas de
competência e jurisdição, precedência sobre os demais setores
administrativos, na forma da lei". Qual o conteúdo, a extensão e o significado
dessa precedência?

O papel do jurisconsulto contemporâneo, a meu ver, assume maior relevo e


importância com a descodificação e a reestruturação do ordenamento jurídico
em micro-sistemas. Na elaboração dos micro-sistemas, ele será tão
importante ou mais importante que na elaboração do macro-sistema. Deverá
sair do isolamento de seu gabinete. Abrir os olhos para a realidade. Articular.
Coordenar. Orientar. Harmonizar. Sintetizar e analisar. Criticar. Conciliar.

Nada impede que o jurisconsulto seja também o cronista da ordem jurídica.


Mas, certamente, ele é muito mais que isso. O relato do cronista, quando
muito, é exegético. O jurisconsulto não se limita a relatar. O seu lugar é na
vanguarda da doutrina. Desse lugar privilegiado, ele também critica, analisa,
sintetiza, harmoniza, orienta, coordena, articula. Enxerga o passado e aponta
para o futuro. Assim agindo, contribui também para a outra elaboração do
direito, realizada diuturnamente pelas Cortes de Justiça.

Os grandes monumentos jurídicos representados pelos Códigos clássicos,


alguns relativamente conservados, outros em ruínas, continuam como marcos
históricos perenes de conquistas importantes da humanidade. Como as
esfinges egipcíacas, eles propõem o enigma para o jurisconsulto que, do seu
posto privilegiado, os contempla, sem perder a perspectiva do futuro.

A descodificação não retira o mérito do Código. Contudo, mais importante que


este é a idéia que ele representa. Tal ideal acha-se sempre presente no
espírito do jurisconsulto: o de uma caminhada incessante na busca do direito
justo. Só com essa bússola o tempo prosseguirá "na ação depuradora dos
excessos e das injustiças mais gritantes da paixão dos homens, até assentar
toda a poeira que empana o brilho da nova escala axiológica do sistema", de
que fala o jurisconsulto de além-mar (fls.).

Pessoalmente, não creio que a descodificação possa acarretar a


desnecessidade do papel do jurisconsulto na formação do Direito e, muito
menos, transformá-lo em “mero cronista da nova corte".

5. Um ato falho? Nas reflexões finais, o mestre português deixa perceber o


seu prognóstico pessimista com relação ao direito setorial, elaborado com a
"interferência dos grupos de pressão das classes ou categorias profissionais,
na preparação, elaboração, execução e não aplicação das leis". Terá querido
ironizar? Será algum erro de impressão do texto? Ou terá o autor realmente
querido afirmar que o direito setorial também se realiza com a inaplicação da

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lei? A palavra "não", constante daquela frase, parece-me intrigante. Se foi um


ato falho, este demonstra que o autor condena o direito setorial.

6. Correndo o risco de atribuir à expressão "direito setorial" algum significado


algo diferente do que lhe quis conferir o Prof. João Matos Antunes Varela,
poder-se-ia afirmar que o direito setorial se revela, hoje, em leis e Códigos
esparsos, como, por exemplo, a Lei das Sociedades por Ações, a
Consolidação das Leis do Trabalho, o Código de Defesa do Consumidor, o
Estatuto do Menor e do Adolescente, a Lei de Falências, a Lei Cambial, o
Estatuto da Magistratura, o do Ministério Público da União, os Estatutos dos
Funcionários Públicos, a Lei das Cooperativas, o Código de Propriedade
Industrial, e tantos outros.

Essa multiplicidade, essa variedade e esse emaranhado impõem ao


advogado uma especialização crescente. E, ao jurista, flexibilidade de
raciocínio, com notável capacidade de análise e de síntese; em suma, uma
mente aberta.

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