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A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO: ALGUMAS

CONSIDERAÇÕES PARA ANÁLISE

Citar: REIS, J. R. . A constitucionalização do Direito Privado: algumas considerações para


análise.Revista Atos & Fatos (Curso de Direito da Celer Faculdades), v. 1, p. 126-139, 2009.

Jorge Renato dos Reis1

Introdução

Inicialmente, cabe mencionar que, embora muitos tratem como sinônimos


as expressões “publicização” e “constitucionalização” do direito privado, entende-
se, à esteira dos ensinamentos de Paulo Luiz Netto Lôbo, possuirem significados
distintos.

Publicização é o processo de intervenção estatal, especialmente no âmbito


legislativo, o que aliás, bem caracteriza o Estado Social do século XX. Reduz-se,
através da intervenção estatal, a autonomia privada, a fim de proteger
juridicamente o hipossuficiente. Como exemplo desta ação intervencionista ou
dirigista do legislador no campo legislativo infraconstitucional, retirando do Código
Civil matérias inteiras, transformadas em ramos autônomos, denominados pela
doutrina como microssistemas jurídicos, tem-se o direito do trabalho, o
parcelamento do solo urbano, a incorporação e o condomínio de edifícios, o direito
agrário, o direito do inquilinato, os direitos autorais e, mais recentemente, o direito
do consumidor, entre outros.2

1
Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa
Cruz do Sul – UNISC, Mestre em Desenvolvimento Regional pela UNISC, Doutor em Direito Pela
Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, Pós-Doutor pela Universidade de Salerno, na Itália.
2
LOBO, Paulo Luiz Netto, Constitucionalização do Direito Privado. P. 02. Farol Jurídico.
http://www.faroljurídico.com.br.. 2000.
Já o processo de constitucionalização objetiva submeter o direito positivo
privado aos fundamentos de validade constitucionalmente estabelecidos, ou seja,
é fazer uma releitura do direito civil à luz dos princípios e regras constitucionais. É
interpretar o direito civil à luz da constituição e não o contrário.

Apesar do Direito Privado ser muito mais antigo que o Direito


Constitucional, como espécie do gênero Direito Público e, muito em razão disto,
ter sido sempre considerado como um direito autônomo, na verdade está
integrado dentro de um sistema jurídico que, como tal, possui a Constituição
Federal como lei maior, como norma-princípio a ser seguida por toda a exegese
da legislação infraconstitucional que lhe está subordinada. 3

O presente estudo estabelece suas considerações acerca deste processo


denominado de “constitucionalização” do direito privado, necessitando, para tanto,
resgatar as características individualistas que marcaram o liberalismo da
codificação oitocentista a partir do Código Napoleônico, a fim de ter como porto de
chegada a repersonalização do direito privado no Estado Democrático de Direito,
sendo este, nas palavras de Lênio Luiz Streck, como um “plus normativo em
relação ao (...) Estado Social de Direito”, e onde a sua conformação estatal, que
se caracteriza pelo compromisso com a efetivação da igualdade material,

3
A divisão entre Direito Público e privado, não tem sua origem pacificada, enquanto alguns dizem ter sua
origem no Direito Romano, como Werson Rego, outros como Finger, alegam ter originado da sistematização
procedida por Jean Domat, cuja obra serviu para a delimitação do conteúdo que foi introduzido no Código de
Napoleão. Finger cita ainda, em nota em separado, que segundo ensinamento da Prof. M. Celina B. de
Moraes, citando R. Savatier e Caio Mário, que, ao contrário do que se apregoa por vezes, a divisão
metodológica entre direito público e privado não tem origem no Direito Romano. Neste, o jus civile, os
direitos dos cidadãos, era um direito que hoje poder-se-ia classificar como público. (REGO, Werson, O direito
social e o direito do consumidor: uma nova forma de pensar o direito e a sociedade. Revista Forense
Imobiliária, nº 07, novembro/2000, p. 31-35. FINGER, Julio César. Constituição e direito privado: algumas
notas sobre a chamada constitucionalização do direito civil. A Constituição concretizada: construindo pontes
com o público e o privado. Porto Alegre:Livraria do Advogado. 2000. p. 85-105). Diz, aliás, Ricardo Luiz
Lorenzetti, que o Direito Privado passou a ser o Direito Constitucional aplicado, pois nele se detecta o projeto
de vida em comum que a Constituição impõe. (Fundamentos do Direito Privado. Trad. Vera Maria Jacob de
Fradera. São Paulo:RT. 1998. p. 253)
representa uma ruptura com o paradigma da produção de direito do Estado
Liberal-individualista.4

1 A codificação no Estado Liberal-individualista como centro do


sistema jurídico

Liberdade para os antigos era a liberdade política, os escravos em Roma,


podiam negociar e alguns, inclusive, conseguiram enriquecer, todavia, não
possuíam liberdade política, não eram considerados cidadãos.

Já, na idade média, de forma descentralizada nos diversos feudos, e,


posteriormente, na idade moderna, com a formação dos Estados Modernos, com o
surgimento da burguesia, o poder político concentrou-se, de forma absoluta,
respectivamente, nas mãos dos senhores feudais, e, após, nas mãos dos reis,
inexistindo, nos dois períodos, qualquer proteção normativa aos direitos
individuais.

Com o advento da Revolução Francesa, que ocorreu a fim de combater


esse absolutismo dos reis nos Estados Modernos de então, o poder arbitrário
exercido pelo soberano foi substituído pela Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, marco do final da Idade Moderna e início da
Idade Contemporânea, fruto da Revolução Burguesa.

Inaugurou-se, assim, o Estado Liberal, do individualismo jurídico e da


igualdade formal, onde “todos são iguais perante a lei”. A partir de então a
liberdade era vista como ser livre para ser proprietário e poder contratar.

4
STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(em) Crise: Uma exploração hermenêutica da Construção do
Direito. Porto Alegre:Livraria do Advogado. 1999. P. 31/45. Entretanto, como o próprio autor menciona,
ainda, no País, há a ausência da implantação do modo de produção jurídica própria do Estado Democrático de
Direito, ou seja, ainda não ocorreu a sua efetivação in concreto no Brasil.
As constituições elaboradas a partir de então asseguravam, de um modo
geral, os direitos fundamentais de liberdade e igualdade, atualmente denominados
de primeira geração, muito especialmente liberdade e igualdade para exercer os
direitos econômicos, concedendo aos indivíduos a autonomia da vontade a fim de
poderem regular seus interesses, sem a intervenção estatal.

O fundamento da liberdade individual era a propriedade, especialmente, a


propriedade imobiliária, que representava a materializadora da riqueza,
considerada sagrada5, e o contrato que era a forma de transferência dessa
riqueza.

Essas constituições liberais-individualistas asseguravam uma obrigação


negativa do Estado, ou seja, obrigação de não intervir nas relações privadas.
Diferentemente das constituições sociais que determinam uma obrigação positiva
do Estado, ou seja, obrigação do Estado intervir a fim de reduzir as
desigualdades, estabelecendo o equilíbrio nas relações privadas.

A codificação em geral, mas especialmente os códigos civis, que se


seguiram ao Estado Liberal, influenciados pelo individualismo jurídico,
característica maior do liberalismo, como o do Brasil, tiveram como paradigma o
cidadão proprietário, dotado de patrimônio, ou seja, este era o homem comum
tutelado pela norma civil, deixando, em conseqüência, a grande maioria das
pessoas fora de sua tutela.

É neste período que foi editado o Código de Napoleão, marco histórico das
liberdades individuais, cujo modelo foi seguido por todos os códigos editados
posteriormente, período conhecido como o período da codificação oitocentista, em
razão do seu século, nos anos de 1800.

5
Conforme menciona o artigo 17 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789; “Sendo a
propriedade um direito sagrado e inviolável”.
O anterior Código Civil Brasileiro, embora aprovado em 1916 e entrado em
vigor em 1917, na verdade foi elaborado nos fins do século XIX e, a exemplo do
novo código6, também permaneceu nas casas legislativas por longo período até
sua aprovação e entrada em vigor em 01.01.1917.

Foi, portanto, o anterior código civil, fruto, ainda, desse período liberal da
codificação e, como regra, seguiu sua tendência, que, objetivava, em razão da
influência da Revolução Francesa e da Declaração dos Direitos do Homem, fixar a
maior liberdade ao indivíduo, considerando a todos como iguais, obedecendo aos
princípios da igualdade formal do liberalismo político e econômico que
predominava.

Estes códigos civis, portanto, que se seguiram à edição do Código de


Napoleão, possuíam como paradigma, seguindo, também, as idéias iluministas e
jusnaturalistas, que influenciaram a Revolução Burguesa, o cidadão dotado de
patrimônio, o burguês livre do controle ou impedimentos do Estado.

Liberdade, portanto, para os contemporâneos ao Estado Liberal, era


concebida como não impedimento pelo Estado do direito de usar, gozar e dispor
de sua propriedade, ou seja, dispor, na forma lato sensu, de sua propriedade sem
impedimentos e interferências do Estado, salvo os mínimos ditados pela ordem
pública e pelos bons costumes.7

A história demonstrou, no entanto, que a codificação liberal, sob a máxima


de “todos são iguais perante a lei”, teve como conseqüência a exploração do mais
fraco pelo mais forte. Estando o Estado ausente da regulação econômica e
possuindo as pessoas, consideradas iguais, aqui considerado unicamente o seu

6
O novo Código Civil, Lei 10.406/02, embora aprovado em 10.01.2002, e entrado em vigor após um ano de
período de vacância, teve seu projeto de lei, de número 634, apresentado na Câmara dos Deputados, no
longínquo ano de 1975.
7
Ao contrário, para os antigos, no período greco-romano, liberdade era poder exercer a ação política. Livres,
portanto, eram os que podiam participar do autogoverno da cidade. Os demais eram escravos, ainda que com
liberdade econômica. Na antiga Roma os escravos exerciam a atividade econômica, eram livres para exerce-
la, alguns até enriqueciam, mas a cidadania era-lhes negada.
caráter formal, ampla liberdade de contratar, por óbvio que o economicamente
mais forte utilizava-se deste seu poder econômico a fim de impor a sua vontade
sobre os demais. Conforme ensina Burdeau, citado por Lobo, houve duas etapas
na condução do movimento liberal e na existência do Estado Liberal: “a primeira, a
da conquista da liberdade; a segunda, a da exploração da liberdade”.8

Consumou-se, em conseqüência, por força da igualdade formal de direitos


subjetivos, aquilo que Lôbo chama de “darwinismo jurídico” 9, com a hegemonia
dos economicamente mais fortes, até porque as constituições deste período
limitavam-se a determinar o Estado mínimo, sem maiores interferências no plano
econômico e nada regulando sobre as relações privadas.

A igualdade, fundada na idéia abstrata de pessoa, partindo de um


pressuposto meramente formal, baseado na autonomia da vontade, e na
iniciativa privada, no entanto, veio acompanhada de um paradoxo, que
traduz uma conseqüência do modelo liberal-burguês de bens sobre o ser,
impedindo a efetiva valorização da dignidade humana, o respeito à justiça
10
distributiva e à igualdade material ou substancial.

Todavia, em razão das reações a este Estado mínimo e dos conflitos


gerados, este Estado Liberal, sem a interferência do Estado na ordem econômica
e social, entrou em declínio.

As mudanças econômicas e sociais originárias da revolução industrial e


tecnológica, causaram profundas transformações no sistema do direito privado, o
que determinou a necessidade de transformação no sistema liberal vigente.

O individualismo liberal positivado nos códigos oitocentistas, muito


especialmente no Código de Napoleão e nos que o seguiram os princípios, nos
quais o centro de proteção era o indivíduo proprietário, foi-se reduzindo

8
LOBO. Paulo Luiz Netto. Do Contrato no Estado Social..Maceió:EDUFAL. 1983. p.32.
9
LOBO, 2000, p. 03.
10
RAMOS, Carmem Lúcia Silveira. A Constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras.
Repensando fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Luiz Edson Fachin (coord.) Rio de
Janeiro:Renovar. 1998. p. 05.
gradativamente, a partir do início do século XX, muito especialmente, a partir da
transformação social que ocorreu na Europa após a primeira grande guerra.

2 A mudança de paradigma de produção do direito

A sociedade dita “pós-moderna”, não mais aceitava o paradigma da


igualdade formal e da autonomia da vontade pregada pelo Estado Liberal,
exigindo providências do Estado no sentido de prestar uma proteção mais efetiva.

A intervenção estatal na matéria econômica-jurídica, que passa a ocorrer a


partir de então, demonstra, assim, a definitiva superação do individualismo do
século XIX, e a conseqüente decadência do liberalismo econômico e político pela
ingerência do Estado, com princípios autoritários, na economia privada e na vida
jurídica em geral.

Passou, então, o Estado a intervir na organização da vida econômica a fim


de estabelecer um equilíbrio entre os particulares, buscando diminuir as
desigualdades materiais existentes. Na Europa chegou-se a estabelecer o Welfare
State ou Estado Providência, para os franceses, ou, ainda, Estado do Bem Estar
Social, onde o Estado deixou sua condição passiva de “não fazer” e passou a ter
uma atuação ativa na efetivação de uma justiça social.11

No Brasil não se chegou a atingir o Welfare State, porém houve sem dúvida
o Estado Interventor com a edição de diversas leis esparsas, também
denominadas de microssistemas jurídicos, retirando do Código Civil diversas

11
Cf. MORAIS, José Luiz Bolzan de, em As crises do estado contemporâneo América latina:cidadania,
desenvolvimento e estado. In: VENTURA, D. de F. de Lima (Org.) Porto Alegre:Livr. Adv., 1996, p. 88.
Welfare State ou Estado de Bem-Estar Social “adjudica a idéia de uma comunidade solidária onde ao poder
público cabe a tarefa de produzir a incorporação dos grupos sociais aos benefícios da sociedade
contemporânea” vindo em contraponto ao modelo de Estado Liberal, onde o Estado representa apenas o papel
de garantidor da paz social, onde a sociedade é composta de “indivíduos livres e iguais”.
regulações, em razão de que este ainda fundamentado no sistema individualista
liberal não reunia condições de regular os interesses sociais, ensejando o
processo da publicização do direito privado, como já se viu.

Dessa forma, a regulação da vida privada, até então exclusiva do direito


civil, passa a se subordinar à Constituição. Diversos institutos até então regulados
pelo Código Civil, passam, sob o paradigma da constituição, a ser positivados
pelos microssistemas jurídicos. A constituição assume o seu status de lei superior
e passa a ser o centro do ordenamento jurídico, irradiando seus princípios
normativos à toda a legislação denominada infraconstitucional.

A população passa a exigir a funcionalidade das normas jurídicas e do


sistema como um todo, com isso a função social12 passa a ser a tônica na doutrina
e na jurisprudência.

Ainda neste período a Constituição de 1934 foi a primeira a mencionar a


função social da propriedade13, mas é a partir da Constituição de 1988, que
efetivamente se estabelece uma reforma no modo de pensar o direito privado no
Brasil.

3 A repersonalização do direito privado

Em razão do princípio da constitucionalidade há a exigência que todos os


atos praticados o sejam de acordo com seus princípios sob pena de inexistência,
nulidade, anulabilidade ou ineficácia. Desta forma toda a legislação
infraconstitucional torna-se constitucionalizada, extinguindo a idéia de um direito
civil autônomo em relação ao direito constitucional.

12
Quanto à função social do contrato ver: REIS, Jorge Renato dos. A função social do Contrato. In Revista do
Direito. Santa Cruz do Sul:Edunisc. 2002.
13
Nesse sentido ver a obra de Leal, Rogério Gesta, A função social da propriedade e da cidade no
Brasil:aspectos jurídicos e políticos. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 1998.
Os princípios constitucionais, entre eles o da dignidade da pessoa
humana (CF, art. 1º, inciso III), que é sempre citado como um
princípio-matiz de todos os direitos fundamentais, colocam a
pessoa em um patamar diferenciado do que se encontrava no
Estado Liberal. O direito civil, de modo especial, ao expressar tal
ordem de valores, tinha por norte a regulamentação da vida
privada unicamente sob o ponto de vista do patrimônio do
indivíduo. Os princípios constitucionais, em vez de apregoar tal
conformação, têm por meta orientar a ordem jurídica para a
realização de valores da pessoa humana como titular de interesses
14
existenciais, para além dos meramente patrimoniais.

Dessa forma muda o paradigma do direito privado, ao invés da proteção


patrimonial ditada pelo ideal burguês, do sistema liberal, passa-se a proteger a
pessoa humana, ocorre o fenômeno da despatrimonialização15 do direito privado,
ou seja, em obediência à sua constitucionalização, há a predominância do o
princípio da dignidade humana, referido acima, por Finger, como princípio matriz,
e referido por Fachin, como “princípio cardeal organizativo dentro do sistema
jurídico” 16, defendido no artigo primeiro da Constituição Federal.

A Constituição Federal de 1988 erigiu como fundamento da República a


dignidade da pessoa humana. Tal opção colocou a pessoa como centro
das preocupações do ordenamento jurídico, de modo que todo o sistema,
que tem na Constituição sua orientação e seu fundamento, se direciona
para a sua proteção. As normas constitucionais (compostas de princípios
e regras), centradas nessa perspectiva, conferem unidade sistemática a
todo o ordenamento jurídico. (...) Opera-se, pois, em relação ao Direito
dogmático tradicional, uma inversão do alvo de preocupações do
ordenamento jurídico, fazendo com que o Direito tenha como fim último a
proteção da pessoa humana, como instrumento para seu pleno
17
desenvolvimento.

14
FINGER, 2000, p. 94.
15
PERLINGIERI, Pietro. “Depatrimonializzazione” e diritto civile. In: Scuole, tendeze e metodi: problemi
del diritto civile. Napoli:Edizione Scientifiche Italiane, 1988, p. 177. Perlingieri explica que a
despatrimonizalização do direito civil não quer significar a exclusão do conteúdo patrimonial no direito, mas
sim a operacionalização do sistema econômico, com diversificação na sua valoração qualitativa, ou seja,
direcionar para a produção mas sempre e, especialmente, respeitando a dignidade da pessoa humana,
juntamente com o respeito ao meio ambiente, propiciando, assim, a distribuição das riquezas com uma maior
justiça.
16
FACHIN, Luiz Edson. Apreciação crítica do Código Civil de 2002 na perspectiva Constitucional do Direito
Civil Contemporâneo. Revista Jurídica. Nº 304. São Paulo:Notadez Informação Ltda. Fevereiro/2003. p. 18.
17
FACHIN, 2003, p. 17.
Ocorre, assim, a repersonalização do direito privado, no sentido de
(re)colocar o indivíduo no topo da proteção deste direito privado, onde se pode
citar, nesse sentido, o atual Código Civil Pátrio, que regula os principais institutos
civilísticos como a propriedade e os contratos, subordinados à sua função social e
à boa-fé.

4 Consequências normativas da primazia do texto constitucional – O


novo Código Civil Pátrio

Apesar daqueles que defendiam, e ainda defendem, a descodificação do


direito privado, o projeto 634/75, finalmente, após longa hibernação nas casas
legislativas federais, foi transformado na Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002,
tendo sido nominado como o novo Código Civil Brasileiro.

Esse código, ainda que considerando as críticas a ele existentes 18, e,


embora tenha mantido a estrutura do Código Civil de 1916, procurou afastar-se
das concepções individualistas, seguindo orientação de acordo com o processo de
socialização do direito contemporâneo. Apesar, também, das críticas no sentido
de que já estaria desatualizado, em razão da demorada tramitação legislativa19, e,
por isso, já necessitaria uma reestruturação20. Miguel Reale21, quanto a isso, é
enfático a responder tais críticas:

18
Nesse sentido, Fachin (2003) é enfático ao criticar o fato de que a “racionalidade que permeia todo o
Código Civil de 2002 está ligada à proteção à apropriação e da circulação de bens, abstraindo-se os seres
humanos concretos que estarão envolvidos nas relações jurídicas ali previstas”. Cita, também, Gustavo
Tepedino (Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro:Renovar, 1999, p. 438) que, igualmente, ao comentar a
nova racionalidade do Código Civil de 2002, ao elencar os quatro personagens do código civil de 1916 – o
marido, oproprietário, o contratante e o testador – que eram o objeto da atenção do codificador da época,
renascem redivivos com o novo código civil, só que agora em companhia de um quinto personagem: o
empresário.
19
Nesse sentido: GONÇALVES, Carlos Roberto. Principais Inovações no Código Civil de 2002.São
Paulo:Saraiva. 2002, p. 04
20
Foi apresentado à Câmara dos Deputados, no período da vacatio legis, Projeto de Lei, de autoria do
Deputado Ricardo Fiúza, relator da Comissão Especial encarregada da eleboração do novo código civil, de nº
6960/2002, com proposta de alteração de 160 artigos.
A prevalecer entendimento dessa natureza, um código jamais lograria ser
aprovado, pois sobretudo no mundo contemporâneo, a todo instante
surge a necessidade de novas leis aditivas, as quais devem ser objeto de
legislação especial. A promulgação de um código não estanca o
processo legislativo, sendo compreensível que ele poderá a qualquer
22
momento ser reajustado ou completado.

Reale, ainda, justifica que a diretriz que norteou a comissão elaboradora do


projeto foi no sentido de acolher somente matéria substancial que já tivesse sido
objeto da devida experiência jurídica. O que justifica a omissão quanto a temas
relacionados aos contratos na internet ou os relativos aos shopping centers, como
os levantados pela Ordem dos Advogados do Brasil.23

Deixando de lado tais questionamentos, o fato é que o novo Código Civil


vem sufragado pelo paradigma de conteúdo social, determinado pelos princípios
constitucionais da Carta de 1988, com desapego à letra da lei e ao individualismo
que marcaram o anterior diploma civil.

Prova disso são os princípios básicos caracterizadores do novo diploma,


como o da socialidade, que “reflete a prevalência dos valores coletivos sobre os
individuais, sem perda, porém, do valor fundamental da pessoa humana”; o da
eticidade, o qual se funda “no valor da pessoa humana como fonte de todos os
demais valores”, priorizando a eqüidade, a boa-fé, a justa causa, juntamente com
os demais princípios éticos como a probidade, etc. onde o caso concreto
determinará o justo; e o da operabilidade, que determina a real e pronta efetivação
do Direito, buscando-se evitar o complicado, afastando-se as perplexidades e
complexidades e aproximando-se do simples e objetivo, como a adoção de critério
a fim de distinguir os institutos da prescrição e decadência, que tanto
atormentavam os operadores do direito no código anterior.24

21
Miguel Reale foi o supervisor da comissão de juristas responsável pela elaboração do projeto de lei 634/75,
que deu origem ao novo Código Civil.
22
REALE, Miguel. Estudos Preliminares do Código Civil. São Paulo:Revista dos Tribunais. 2003. p. 15/16.
23
REALE, 2003, p. 16/17.
24
GONÇALVES, 2002, p. 05.
Possui, o novo Código Civil, em seu corpo normativo, instrumentos
adequados a dar efetividade a esses princípios caracterizadores. Pode-se citar
nesse sentido a positivação de um capítulo destinado à proteção dos direitos da
personalidade, desde a proteção ao nome até o direito de se dispor do próprio
corpo para fins científicos ou altruísticos. Há, também, a regulação da teoria da
lesão e do estado de perigo, incluídos no rol dos defeitos do negócio jurídico, que
proporcionam a possibilidade de anulação do negócio jurídico realizado com
enriquecimento sem causa de um à custa do empobrecimento do outro.

Importante instrumento, sem dúvida alguma, diz respeito ao direito das


obrigações, que bem caracteriza o viés social, determinado pelos princípios
constitucionais. Há, nesse sentido, a regulamentação da resolução do negócio
jurídico por onerosidade excessiva, positivando o princípio da teoria da
imprevisão, o qual já vinha há largo período sendo utilizado pela jurisprudência
pátria, visando a manutenção do equilíbrio econômico do contrato, com
abrandamento do princípio da pacta sunt servanda em benefício da cláusula rebus
sic stantibus. Com igual importância, há, ainda nessa parte, a proteção da
liberdade de contratar, porém em razão e nos limites da função social do contrato
e em obediência aos princípios da probidade e da boa-fé.

No direito das coisas, o novo diploma civil traz novo conceito de posse, que
qualifica como posse-trabalho, “que se traduz em trabalho criador, quer este se
corporifique na construção de uma residência, quer se concretize em
investimentos de caráter produtivo ou rural”25, com conseqüente redução do prazo
da usucapião, especialmente quando configurada a posse-trabalho. O novo
Código Civil não deixa de reconhecer o direito privado da propriedade, mas
determina que deve ser exercido em consonância com as suas finalidades
econômicas e sociais e de forma a preservar, conforme determinação em lei

25
GONÇALVES, 2002, p. 08.
especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio
histórico e artístico, devendo, também, ser evitada a poluição do ar e das águas.

Importantes inovações instrumentais são trazidas, pelo novo Código Civil,


no direito de família, como a destinação de um título para reger o direito pessoal, e
de outro para o direito patrimonial da família; a positivação em sede
infraconstitucional da igualdade entre os filhos em direitos e qualificações, como
determinado pela Carta de 1988; a materialização da paridade entre os cônjuges
no exercício da sociedade conjugal, resultando no poder familiar em substituição
ao antigo e revogado poder marital; a ampliação do conceito de família, com a
regulação da união estável como entidade familiar, nos termos do artigo 226 da
Constituição Federal, entre tantas outra inovações com igual importância.

Finalmente no direito das sucessões, importantes inovações foram


realizadas, completando os princípios caracterizadores do novo diploma, como a
inclusão do cônjuge supérstite no rol dos herdeiros necessários, a alteração da
ordem de vocação hereditária, permitindo ao cônjuge sobrevivente concorrer, em
alguns casos em que não possui direito à meação, com os descendentes, e, em
qualquer caso, em igualdade de condições com os ascendentes, a
regulamentação dos direitos sucessórios dos companheiros na união estável,
além de diversas outras alterações importantes.

Certamente que muitas outras inovações de igual importância foram


introduzidas pelo novo Código Civil, que, também, ilustram os seus princípios
caracterizadores, e que demonstram a preocupação do legislador com o viés
social que deve norteá-lo, além de que mereceriam maiores estudo os aqui
elencados de forma sumaríssima. Todavia, face os objetivos do presente texto,
cabe, nesse momento, tão somente enunciá-los.

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