Você está na página 1de 5

A tensão entre liberalismo formalista e a releitura social do pós-guerra no direito civil

contemporâneo

1) Código Civil Napoleônico de 1804

Após a revolução francesa e a declaração universal de direitos, a ideia política


fundamental daquela sociedade passou a ser a limitação do poder do Estado e a primazia
da burguesia em criar as próprias regras jurídicas que pautariam suas relações comerciais,
familiares etc. com a menor intervenção possível por parte do Poder Público.
Desse modo, ao contrário de uma noção imperativista segundo a qual o direito é
produto do Estado, de um soberano e ao povo cabe apenas cumprir ou sofrer a punição,
o pós-revolução francesa instaurou uma ideia de que os indivíduos possuem poder
negocial, isto é, o poder de criar relações vinculantes. O símbolo máximo dessa
concepção é o contrato, entendido como um acordo de vontade livremente pactuado
entre sujeitos racionais, que se encontram em igualdade de condições1 e assim são
aptos a criar as regras que pautarão suas relações.
É preciso lembrar aqui que uma das bases do liberalismo clássico é a crença de que
todo sujeito já nasce com direitos, dentre eles a propriedade, de modo que um Estado só
é legítimo se respeitar tais direitos, os quais não foram por ele criados, mas que são
naturais.
Para garantir uma mudança completa de mentalidade da sociedade francesa, a qual
era culturalmente forjada na Monarquia, acreditava o novo governo que se deveria forjar
um novo código de leis, o qual seria então capaz de, por meio da força, transformar
inteiramente tal sociedade. Inspirado em princípios idealizados e supostamente inspirados
na razão natural, acreditava-se que tal código poderia moldar a sociedade, transformando-
a segundo os ideais liberais.

1
Esse pressuposto de igualdade é hoje visto como uma ingenuidade. Em todo caso, é importante lembrar
que se trata de uma época dominada por uma deturpação da concepção kantiana de que todos os seres
humanos são iguais por compartilharem o atributo inseparável da dignidade da pessoa humana. Todavia,
o que era uma afirmação filosófica se tornou uma espécie de hipocrisia, na medida em que se usou esse
pressuposto para desconsiderar as profundas diferenças sociais, legitimando assim a exploração de uns
sobre os outros. Como afirmou o historiador do direito alemão Franz Wieacker, tratar todos os cidadãos
como se fosse o comerciante burguês proprietário de terras foi o pecado original do século XIX.
Para isso, foi forjado um ambicioso código de leis, imenso e supostamente capaz de
dar conta de todos os atos da vida civil, do nascimento à morte, passando por contratos,
casamento, testamento, relações de propriedade etc.
Chamado de código civil napoleônico, tal legislação pode ser vista como o primeiro
código no sentido moderno que tem essa palavra para nós, isto é, um conjunto de leis
capaz de dar uma resposta a qualquer problema que se apresentasse ao Poder Judiciário2.
Em todo caso, como os juízes permaneciam os mesmos, formados nas bases do antigo
regime, acreditou-se que a melhor forma de impedir que a velha cultura contaminasse o
projeto revolucionário era obrigando os juízes a seguirem fielmente o código,
interpretando-o literalmente, como “a mera boca da lei”, para usar a expressão de
Montesquieu.
Tal noção de que os Juízes devem ficar adstritos à lei e interpretá-la literalmente ficou
conhecida como escola da exegese com relação ao código civil napoleônico e em termos
gerais como formalismo ou (equivocadamente) como positivismo.
Além de impedir que os valores retrógrados dos juízes influenciassem em seus
julgamentos, a ideia de aplicação literal da lei limita também o poder das autoridades e
consequentemente o poder do Estado, garantindo assim o ideal de livre circulação de bens
e serviços e livre contrato entre os particulares. A não ser que violassem alguma das
disposições bem gerais do código como os vícios e defeitos do negócio jurídico, o
contrato seria considerado válido.
O termo conhecido para ilustrar essa força vinculante dos contratos é pacta sunt
servanda (o contrato faz lei entre as partes). Isso significa que, se duas partes assinaram
um contrato, é como se houvesse uma lei entre elas. Se uma das duas descumprir o pacto,
pode a outra acionar a Justiça e pedir o cumprimento forçado do contrato, também
chamado coercitivo.
Também a propriedade tinha caráter absoluto, tendo o proprietário o direito de dispor
livremente de seus bens móveis e imóveis sem quaisquer restrições de ordem social.

2) Pós-guerra, crítica ao positivismo e emergência da funcionalização do direito civil

222
É preciso ter em mente aqui que legislações na antiguidade eram vistas como elementos que poderiam
auxiliar no julgamento, mas o ato de Julgar não era visto como um mero seguimento de uma regra pré-
determinada feita por uma autoridade competente. É preciso ter consciência história para não enxergar
institutos do passado com o olhar do presente.
Embora desde o fim da primeira guerra já existissem autores discutindo temas como
a relativização dos contratos por força da teoria da imprevisão, foi apenas após a
segunda guerra mundial e a Shoah (ou holocausto) que a maior mudança
paradigmática3 ocorreu nos fundamentos do direito.
Seria impossível tratar de todos os elementos históricos que condicionaram tal
mudança, razão pela qual me centrarei em apenas 3, que considero indispensáveis.

1) Virada teórica – Da norma fechada aos princípios e cláusulas abertas

Por várias razões, o pensamento jurídico do pós-guerra motivou o surgimento de


uma série de correntes críticas ao positivismo jurídico e ao formalismo que fora tão
popular na época do código civil napoleônico.
A principal delas pode ser chamada de virada ética e se caracteriza por várias
tentativas de reinserir argumentos morais na prática jurídica, usando-os ao lado das
leis e até contra as leis para definir qual a resposta correta para determinada situação.
Importante lembrar que no famoso julgamento de Nuremberg vários juízes
argumentaram que não mandaram pessoas para os campos de concentração por
vontade própria, mas que estavam apenas seguindo às leis. Por essa e outras razões,
algumas historicamente falsas, muitos juristas passaram a defender que o positivismo
jurídico colaborou com o nazismo, uma vez que, ao centrar o estudo e a prática do
direito apenas na aplicação dos códigos legais, retirou dos juristas o senso crítico que
poderia torna-los capazes de avaliar a dimensão do que estavam fazendo.
Frente a isso, teorias como a tópica de Viehweg, a teoria dos princípios de autores
como Ronald Dworkin e Robert Alexy, a nova retórica de Chaim Perelman, todas de
alguma forma pressupunham que a decisão judicial envolve um conjunto de razões
que não se encontram apenas na letra fria da lei, mas exigem um raciocínio mais
amplo, que englobe uma análise social e mesmo ética da situação envolvida.
Ao lado disso, várias Constituições passaram a incorporar direitos humanos tais
como na declaração universal de 1948. Tais direitos como vida, igualdade, liberdade,
geralmente tendo como fundamento central a dignidade da pessoa humana, visavam
servir como uma espécie de mínimo ético, isto é, um núcleo de direitos mínimos que
impediriam futuros governos de avançar além dessa linha. O grande objetivo era levar

3
Esse termo é usualmente usado em referência ao livro de Thomas Kuhn “A estrutura das revoluções
científicas”.
a cabo aquilo que o filósofo alemão Theodor Adorno chamou de o princípio ético por
excelência da contemporaneidade, a saber impedir que Auschwitz se repita.

De certo modo, os dois elementos acima apontados se juntam na medida em


que, em uma sociedade pluralista na qual diversas noções de certo e errado e
diversas visões de mundo convivem sem que normas religiosas ou valores
comunitários possam unificar esse pensamento, os padrões éticos comuns
precisarão vir de algum lugar, e supôs-se que os direitos humanos poderiam
fornecer essa base.

2) Virada Política

Outra importante distinção vem com as mudanças no liberalismo, que deixou de


ser individualista como no século XIX e passou em vários países a refletir uma
preocupação com o que se convencionou chamar “Estado de bem estar social”
(Wellfare State) caracterizado por uma intervenção ativa do Estado na garantia de
direitos individuais (vida, liberdade) e sociais (saúde, educação, moradia) básicos.
Nesse contexto, discussões como a função social dos contratos e da propriedade,
a igualdade material entre homens e mulheres e várias outras questões foram trazidas
à tona e passaram a fazer parte do debate jurídico.
Assim, as Constituições do pós-guerra não apenas trouxeram um rol de direitos
fundamentais como também foram inspiradas nessa concretude um Estado de bem estar
social, a exemplo da Constituição Federal de 1988.
Além disso, movimentos políticos como o movimento feminista e movimento
negro passaram especialmente nos Estados Unidos a denunciar a suposta universalidade
da lei como uma farsa, já que a lei, feita por homens brancos em grande maioria,
funcionava (e funciona) como uma espécie de auto-legislação. Se é assim, então aplicar
a lei de forma literal não significa necessariamente ser imparcial, já que a lei foi desde o
início feita apenas por uma parcela da sociedade.
Alguns grupos dentro de tais movimentos, a exemplo dos panteras negras e de certos
grupos dentro do feminismo chegaram a contestar o liberalismo mesmo em sua versão
mais social igualitária. Todavia, tais reivindicações não chegaram a ter forte eco nem na
jurisprudência e nem nas teorias do direito que se tornaram centrais nesse momento
histórico.
3) Constitucionalização do Direito Civil

Como se sabe, todas as demais normas jurídicas de um ordenamento


jurídico precisam estar em consonância com a norma superior, geralmente uma
Constituição. Nesse sentido, a expressão ‘constitucionalizar’ o direito civil pode
parecer uma redundância, já que todas as áreas e inclusive o direito civil precisam
obviamente estar em consonância com a Constituição.
Todavia, tal expressão precisa ser compreendida no contexto teórico e
político mais amplo delineado nos parágrafos anteriores. Assim, mais do que
dizem o óbvio, tal fenômeno significa reler o direito civil a luz desses valores mais
sociais e menos individualistas, valores a respeito da igualdade de gênero, da
proteção das pessoas vulneráveis etc.
Também do ponto de vista teórico isso implica dar mais ênfase a princípios
e cláusulas gerais do que a normas mais fechadas e diretas. Essa foi a intenção
explícita do Código Civil de 2002, como se pode ver em artigos como o 113, 187,
421, 422, etc.
Mais importante que detalhes técnicos, isso implica inserir o que se
convencionou chamar de um papel funcionalista ao direito civil. Isso significa
que, ao aplicar determinado instituto como por exemplo a adoação, dever-se-á
levar em consideração não apenas o que diz literalmente determinado artigo de
lei, mas também qual a função desse artigo na sociedade, que problemas ele visa
responder, qual deve ser a finalidade a partir da qual ele deve ser pensado.
Na medida em que, de acordo com a Constituição, os direitos fundamentais
e a dignidade humana são os elementos mais importantes, isso implica para o
direito civil uma ruptura significativa, na medida em que sua história é
profundamente individualista, patrimonialista e totalmente alheia a tal tipo de
análise.

Hoje em dia, não é possível afirmar uma visão positivista liberal ou


principiológica social seja totalmente hegemônica. Talvez se possa dizer que
a maior parte dos autores e autoras de direito civil tende mais à segunda
visão e que a jurisprudência tende à primeira, mas mesmo tal afirmação teria
algo de arbitrário.

Você também pode gostar