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Universidade Federal Fluminense

InEAC - Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos

DSP - Departamento de Segurança Pública

Disciplina: Teoria do Direito e Estado Moderno I

Professor: Vladimir de Carvalho Luz

Aluno: Victor dos Santos Maximiano

AV2 – Carta

Caro Professor Vladimir,

Gostaria de iniciar agradecendo o primeiro contato feito pelo senhor, e dizer


que a questão levantada, ao passo de ser ousada – principalmente pelo contexto de
crise político-econômica em que emerge – fez com que eu me questionasse ainda
mais sobre pontos que, de certa forma, sempre estiveram em minha cabeça. Diante
disso, tentarei explicar na presente carta a estranheza cíclica com a qual me deparo,
colocando em debate pautas referentes ao juiz dever ou não se ater apenas à
literalidade das normas (com enfoque também a limitação do ativismo judicial),
confrontada ao positivismo do século XIX, e situando-as, atualmente, como pano de
fundo.
Estamos vivendo um período de transição político-econômico muito delicado.
Após a pandemia do Covid-19, o cenário de crise sanitária se entrelaça atualmente à
transição do fim do governo Bolsonaro e as inúmeras manifestações de seus
eleitores que clamam por intervenção militar. Seria cômico, se não fosse trágico.
Analisando a que classe pertencem majoritariamente tais protestantes, tive uma
estranheza cíclica, pois mesmo com o advento da temporalidade, podemos perceber
como as classes dominantes ainda se sentem no direito de rasgar a lei vigente ou de
encontrar brechas para que estas ajam em detrimento de seus próprios interesses.
Dito isso, voltemos ao passado, já que minha estranheza será abordada novamente
em breve.
Durante a Idade Média, o mundo feudal era descentralizado e possuía um
direito igualmente plural, em função disso, a concepção que se tinha do direito era
muito abstrata. Naquela época havia a ideia de um direito sob forte influência
religiosa e que se revelava agindo diretamente em função das vontades da Coroa e
da Nobreza, pois estes eram tidos como os representantes de Deus e de Vossa
vontade na Terra. Tal direito serviu inclusive de base para os principais filósofos
contratualistas, que tiveram suas ideias imortalizadas e que se fizeram necessárias
para diversos estranhamentos sociológicos e jurídicos no campo da descoberta.
Quanto a estes, apresentarei melhor brevemente.
Com o início da crise do feudalismo, emergia uma classe social, a burguesia.
Formada nas cidades construídas fora dos feudos, ganhou seu espaço sendo
composta pelos donos dos comércios e dos meios de produção. Contudo, a nobreza
e o clero eram ainda grande obstáculo para sua ascendência, já que a sociedade
era estamental, ou seja, com pouca mobilidade. Dito isso, retomaremos essa classe
também um pouco mais a frente.
Conforme já postulado, os filósofos conhecidos como contratualistas foram
muito importantes na transformação do pensamento feudal, que posteriormente
levaria à Revolução Francesa, um dos marcos mais importantes na história da
humanidade. Decerto, dada a grandiosidade de seus feitos, seria até mesmo injusto
achar que poderia resumir suas teorias em apenas algumas linhas, contudo, me
atinarei ao enfoque principal de cada um dos três antes de prosseguirmos.
Podendo ser considerado um “proto-positivista”, o pensador inglês Thomas
Hobbes, possuía (para a época) uma visão pioneira. Este, que era a favor do
sistema monarca, defendia que o direito deveria ser imposto e gerenciado por uma
autoridade competente, mas para isso a população deveria se submeter a um poder
absoluto e centralizado. Ele entendia que o direito era imposto e não inerente aos
indivíduos, pois outra pessoa podia atentar contra estes direitos ainda que fossem
naturais – é daí que surge inclusive sua mais famosa frase “o homem é lobo do
homem”. Para ele, o homem, em seu estado natural, por mais forte ou inteligente
que seja está sujeito a sofrer o mal proveniente de outro homem. Para isso, era
necessária uma autoridade competente e que fosse capaz de defender tais direitos,
mas, para isso, o homem precisaria estar disposto a ceder sua liberdade natural em
troca de submeter-se à esta autoridade.
Por outro lado, conhecido como “pai do liberalismo”, e oriundo da burguesia, o
filósofo inglês John Locke defendia que os homens possuíam direitos naturais – o
direito à vida, à propriedade e à liberdade - e estes eram inalienáveis. Para Locke, o
estado natural do homem não era de forma bárbara tal qual Hobbes defendia. Além
disso, para ele, a soberania reside na população, e não no Estado. Se os homens
haviam criado o “governo” como forma de preservar os direitos naturais, e há a falha
do estado de natureza, onde tais governos não são capazes de preservar, ou até
mesmo desrespeitam tais direitos, é necessária a criação do contrato social para a
transformação do estado de natureza em sociedade política. Locke defendia
arduamente e buscar fundamentar suas teorias de forma que não houvesse espaço
para a tirania, o povo tinha o direito de contestar um governo caso este não
estivesse cumprindo com suas obrigações.
Por último, mas não menos importante, temos Jean-Jacques Rousseau. O
filósofo genebrino propunha que os homens fizessem um contrato social de forma
coesa e sensata, baseando-se nas experiências políticas das antigas civilizações.
Defendia que os homens deviam se unir e formar um conjunto, suas forças deveriam
ser focadas num só objetivo. Seu enfoque era baseado na soberania livre e
verdadeira, que atendesse aos interesses do povo, e não ultrapassasse as
limitações que fossem opostas à vontade geral.
Note que, ainda que existam divergências ou focos diferentes, as teorias
postuladas pelos três pensadores supracitados se complementam de algum modo.
Ao perceber a instabilidade eminente que a falta de um ordenamento comum
poderia oferecer, se juntaram para escrever a Teoria do Contrato Social. Este é o
momento da história em que o homem abdica de sua liberdade natural para viver
como um ser em sociedade, que dita suas leis, regras, costumes e moralidades a
fim de um bom convívio. Esse é o início, o nascimento do que podemos chamar de
Estado de direito. Destarte, as teorias formuladas pelos três pensadores
supracitados foram de grande importância, mas para além, cabe dizer que diversos
filósofos da época também se encarregaram de teorizar ideias que posteriormente
seriam utilizadas nos ideais da Revolução Francesa.
Outro fator muito importante, que também serviu de propulsor para a virada
de chave necessária para a revolução, foi o movimento iluminista. Este era um
grande movimento cultural responsável por difundir o conhecimento racional,
afastando o pensamento religioso tão arraigado na sociedade. Os pensadores
iluministas propuseram a tripartição dos poderes, mais especificamente Montesquieu
(Legislativo, Executivo e Judiciário), e a separação da Igreja e do Estado, por meio
do laicismo. Dito isso, com a necessidade de transformação política, social e
econômica, e movida pelos novos pensamentos que emergiam na sociedade, a
Revolução Francesa foi apenas um resultado da crise que a França enfrentou no
final do século XVIII.
Se antes a nobreza era a classe dominante, agora seria a burguesia. Se
antes o direito jusnaturalista era o vigente, agora seria o positivismo. É importante
dizer que o direito natural, este que era vigente na sociedade feudal, não se
resume apenas a ideia universal de justiça, ou aos valores universais, como o direito
à vida, à liberdade e à igualdade. Para além, é uma doutrina fundamentada na razão
e, à caráter político, podemos analisar que foi muito bem utilizada como um artefato
da burguesia para minar o senso de justiça proveniente de um Deus, em detrimento
de um senso de justiça coeso, sensato e proveniente do Homem.
Eis que nasce, finalmente, o Estado Moderno, capaz de estabelecer
infraestrutura e estabilidade jurídica, além de refrear a conduta dos cidadãos, o que
resultaria em estabilidade comercial que, por sua vez, era favorável aos interesses
dos comerciantes e mercadores. Contudo, ainda que apossados do Estado, urge a
necessidade na burguesia de fazer mais uma reforma no campo do direito a fim de
preservar seus poderes e retirar do indivíduo a noção de justiça. E é nesse ponto da
história que surge o direito positivo. É importante pontuar que o direito positivo
consiste na totalidade das leis que regem tanto a vida social quanto as organizações
de determinado local.
Se no mundo feudal as leis eram concentradas na “manifestação da vontade
divina”, e para fins de revolução esta fora concentrada no indivíduo, sabendo que o
ser humano é arbitrário, desta vez a justiça seria deslocada do indivíduo para o
Estado. Assim, sendo o voto uma das principais característica presentes no novo
regime de Estado, a nova noção de justiça contava com a soberania do voto e com
os interesses do povo sendo defendidos no Legislativo. Cabe, inclusive, relembrar a
coroação de Napoleão Bonaparte, quando ele mesmo arranca a coroa da mão do
Papa Pio VII e coroa a si mesmo, enfatizando que ninguém estava acima de seu
poder.
Desse modo, agora temos uma burguesia carente de poder político, mas
detentora de capital, e por outro lado temos a nobreza ainda privilegiada e detentora
de poder, mas sem força política. Essa relação será, posteriormente, a base
fundadora do mercantilismo e capitalismo.
Com a criação do Código Civil Napoleônico, o positivismo ganha
expressividade. É também nesse contexto que a Escola de Exagese ganha espaço.
Nela, era defendida a necessidade do Estado ser a única fonte do direito, a
importância da vontade do legislador, além de seus representantes acreditarem
veemente que o direito deveria estar objetivado e codificado – como temos
hodiernamente o código civil, penal, do consumir, entre outros.
É interessante pontuar que, apenas após a Revolução Francesa é que
pudemos contar com um judiciário autônomo pois, após o esgotamento da “fonte
divina de justiça” e a separação dos poderes, a única fonte do direito do cidadão
passou a ser a lei. Neste período, de acordo com fontes da Revista CONJUR, o juiz
era “a boca que pronuncia a vontade da lei”, isto é, a lei era finalmente tomada na
sua literalidade. Obviamente muitos juízes ainda tentavam manter os costumes do
Antigo Regime, mas a reforma desempenhada por Napoleão, inclusive quanto à
gramática, foi uma maneira de restringir o poder destes.
Em suma, podemos observar ao longo da história como os juízes se
empenham na busca da manutenção de seus privilégios, não à toa a Escola de
Exagese vem para tentar mudar, colocando como uma das principais características
a interpretação gramatical e o culto ao texto. Mas, se naquela época os juízes eram
majoritariamente membros da nobreza, nos dias atuais são provenientes das
classes média, alta e burguesia (com pouquíssimas exceções). Nestes termos, vale
também a indagação: um indivíduo que vem de classes elitistas estaria apto/seria o
melhor para representar as massas e minorias totalitárias? Decerto reproduzirão
discursos e ideologias já enraizadas culturalmente naquela classe.
Durante o século XX, tanto a Escola de Exagese quanto o positivismo jurídico
tomaram diferentes rumos, dando maior foco para o juiz e rompendo com a tradição
da Escola acerca da interpretação literal. Grandes pensadores surgiram neste
período, como Hans Kelsen e Norberto Bobbio. Sendo o primeiro, o responsável por
conceituar a Teoria Pura do Direito, e criando um esquema de pirâmide para a
compreensão da hierarquia de um Estado.
Contudo, a norma confrontou um de seus maiores paradoxos: a Segunda
Guerra Mundial o nazismo de Adolf Hitler. Um movimento político e social fortemente
marcado pelo hiper nacionalismo, conquistado através das normas, ou seja, de
maneira legal, e que resultou na morte de milhões de pessoas. A prática do
antissemitismo, anticomunismo, racismo científico e o uso da eugenia foi legitimado.
Uma tremenda e absurda lástima. Viu-se então que o direito e a política não só
podem, como devem, andar de mãos dadas.
No fim da Segunda Guerra Mundial e no período pós-guerra, surge a
Organização das Nações Unidas e sua Declaração Universal dos Direitos Humanos,
uma maior rede de integração entre os países e também o fortalecimento de um
Direito Público Internacional. Vimos também um aumento significativo na
judicialização das demandas e, caso houvesse lacunas deixadas pelo legislador, o
judiciário teria autonomia de tomar uma decisão por si só. Atualmente, no Brasil,
principalmente pela nossa tradição inquisitorial herdada de Portugal e do direito
canônico, o juiz possui é soberano no processo, podendo agir com livre
convencimento (FERREIRA, 2004).
Isto posto – e já caminhando para os momentos finais – é importante pontuar
que com o judiciário mais autônomo temos também a expansão de seu poder. Isto
seria justamente o ativismo judicial, ou em outras palavras, quando a atuação
deste poder é expansiva e interfere em decisões de outros poderes, ou quando o
Legislativo não é capaz de preencher lacunas. Em termos práticos, colocarei a
seguir um exemplo.
Houve em 2019 a instauração de um inquérito pelo Supremo Tribunal
Federal, por intermédio da decisão do Ministro Dias Toffoli, para apurar possíveis
ataques à Suprema Corte e a seus Ministros. Consegue enxergar o erro? Um órgão
do Poder Judiciário, que tem a competência de ser imparcial, começa um inquérito –
artefato utilizado para investigar, averiguar e denunciar/acusar. Mas, sendo o órgão
que acusa, o mesmo que julga, não existirá imparcialidade. Este é apenas um dos
exemplos que violam o princípio do “juiz natural”.
Além disso, posteriormente o mesmo Deputado foi preso em flagrante após
divulgar um vídeo criticando o STF. Ocorre que, a Constituição Federal de 88
assegura que Deputados e Senadores não poderão ser presos, com exceção dos
casos em flagrante e que o crime seja inafiançável. Mas o caso em questão vai
totalmente contra isso, pois os fatos imputados não são inafiançáveis, logo, a prisão
ocorrida fora ilegal. Nestes termos, fica evidente que o juiz deve/deveria sim se
ater à literalidade das normas.
Por fim, pode-se dizer que vivemos um modelo de estado de direito
entregue a uma completa inversão de valores, onde o direito a educação e
moradia tornaram-se mercadorias dentro do sistema econômico vigente, o que
comprova a exclusão de grande parcela da população em diversos âmbitos. Tudo
isso em detrimento de interesses de grupos que, de certa forma, sempre
estiveram em posição favorável e com seus privilégios garantidos. Nosso sistema
de justiça não se reduz a imparcialidade e muito menos a ordem e progresso.
Meu caro, agradeço imensamente a atenção e espero ansiosamente por sua
reposta.

Até breve, Victor dos Santos Maximiano.

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Referências Bibliográficas

Antigamente, juiz era boca que pronunciava vontade da lei. Revista Consultor Jurídico,
10 de Junho de 2007. Acessado em 04 de Dezembro de 2022.

Disponível em: <


https://www.conjur.com.br/2007-jun-10/antigamente_juiz_boca_pronunciava_vontade_lei > .

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Tradução de


Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E.Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.

MACHADO, Giulia. O que foi o Estado Moderno? Entenda sua importância. Agosto, 2022.
Acessado em 05 de Dezembro de 2022.

Disponível em: < https://www.politize.com.br/estado-moderno/ >

FERREIRA, Marco Aurélio Gonçalves. O devido processo legal: um estudo comparado.


Imprenta: Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004.

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