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RESUMOS PARA ESTUDOS

JUSNATURALISMO
Formas da doutrina do direito natural

O jusnaturalismo é uma doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um "direito
natural", ou seja, um sistema de normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema
constituído pelas normas fixadas pelo Estado [direito positivo]. Este direito natural tem
validade em si, é anterior e superior ao direito positivo e, em caso de conflito, é ele que deve
prevalecer. O jusnaturalismo é por isso uma doutrina antitética à do "positivismo jurídico",
segundo a qual só há um direito, aquele estabelecido pelo Estado, cuja validade independe de
qualquer referência a valores éticos.
Na história da filosofia jurídico-política, aparecem pelo menos três versões fundamentais,
também elas com suas variantes: a de uma lei estabelecida por vontade da divindade e por
esta revelada aos homens; a de uma lei "natural" em sentido estrito, fisicamente co-natural a
todos os seres animados à guisa de instinto; finalmente, a de uma lei ditada pela razão,
especifica, portanto do homem que a encontra autonomamente dentro de si. Todas partilham,
porém, da idéia comum de um sistema de normas logicamente anteriores e eticamente
superiores às do Estado, diante de cujo poder fixam um limite intransponível: as normas
jurídicas e a atividade política dos Estados, das sociedades e dos indivíduos que se oponham
ao direito natural, qualquer que seja o modo como este for concebido, são consideradas pelas
doutrinas jusnaturalistas como ilegítimas, podendo nessa condição ser desobedecidas pelos
cidadãos.

Jusnaturalismo antigo e Jusnaturalismo medieval

A figura de Antígona, na tragédia homônima de Sófocles, converte-se como que num símbolo
disso: ela se recusa a obedecer as ordens do rei, porque julga que, sendo ordens da autoridade
política, não se podem sobrepor àquelas outras que são eternas, às ordens dos deuses. A
afirmação da existência de algo "justo por natureza" que se contrapõe ao "justo por lei" é
depois completada por vários sofistas, que já desde então entendem o "justo por natureza" de
diversas maneiras, com conseqüências políticas diferentes em cada caso.
Conhecemos a sua doutrina sobre este ponto, sobretudo pela divulgação que Cícero dela fez
em Roma, em páginas que exerceram uma influência decisiva no pensamento cristão dos
primeiros séculos, no pensamento medieval e nas primeiras doutrinas jusnaturalistas
modernas. Numa célebre passagem do seu livro De Republica, Cícero defende a existência de
uma lei "verdadeira", conforme a razão, imutável e eterna, que não muda com os países e com
os tempos e que o homem não pode violar sem renegar a própria natureza humana.
Reproduzido e aceito por um dos padres da Igreja, Lactâncio, este excerto influenciou
poderosamente o pensamento cristão de cultura latina, que, tal como já havia feito o de cultura
grega no século III, acolheu a idéia de um direito natural ditado pela razão. Isto, porém,
suscitou entre os padres da Igreja graves problemas de ordem teológica, tanto por causa da
dificuldade de explicar a coexistência de uma lei natural com uma lei revelada, quanto porque
a aceitação da existência de uma lei moral, autônoma no homem, punha em causa a
necessidade da graça. Estas dificuldades afligiram, sobretudo o pensamento de Santo
Agostinho, que, em épocas diferentes, assumiu a tal respeito atitudes muito diversas.
É característica do pensamento medieval a aceitação indiscriminada do jusnaturalismo em
todas as suas versões, sem consciência da recíproca incompatibilidade existente entre elas. Ao
lado da versão naturalista de Ulpiano e da versão racionalista de Cícero [bem como da que se
devia a uma má interpretação de um diálogo tardio de Platão, de uma justiça imanente a todo

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universo como princípio da sua harmonia], a Idade Média desenvolveu a doutrina de um
direito natural que se identificava com a lei revelada por Deus a Moisés e com o Evangelho.
Esta foi, sobretudo obra de Graciano e dos seus comentaristas.
Quem pôs fim a esta confusão de idéias foi São Tomás de Aquino [século XIII], que entendeu
como "lei natural" aquela fração da ordem imposta pela mente de Deus, governante do
universo, que se acha presente na razão do homem: uma norma, portanto racional... Tomado
tradicional, ele foi e ainda é, embora não tenha sido nunca declarado pela Igreja matéria de fé,
o centro da doutrina moral e jurídico-politica católica. Contudo, dentro da teologia da Idade
Média tardia, ele foi asperamente impugnado pelas correntes voluntaristas, que tiveram seu
maior expoente em Guilherme de Ockham [século XIV]. Para estas correntes, o direito natural
é, sem dúvida, ditado pela razão, mas a razão não é senão o meio que notifica ao homem a
vontade de Deus, que pode, por conseguinte, modificar o direito natural com base no seu
arbítrio; uma tese que foi reassumida e desenvolvida, no inicio, pela Reforma protestante.

Origem do Jusnaturalismo moderno

Na realidade, a doutrina tomista da lei natural não fazia senão repetir, embora inserindo-a em
moldes teológicos, a doutrina estóico-ciceroniana da lei "verdadeira" enquanto racional.
Foi justamente em polêmica com o voluntarismo das alas extremas do calvinismo que nasceu
a doutrina usualmente considerada como origem do jusnaturalismo moderno, a doutrina do
holandês Hugo Grotius [Huig de Groot], enunciada no De jure belli ac pacis, de 1625.
No século XVII, a obra de Gtotius, graças também à sua atualidade como tratado sistemático
de direito internacional e à fama que, como tal, obteve em toda a Europa, difundiu com
grande eficácia a idéia de um direito "natural", ou seja, "não sobrenatural", um direito que
tinha a sua fonte exclusiva de validade na sua conformidade com a razão humana. Este
conceito do direito natural influiu profundamente na difusão 'da idéia da necessidade de lhe
adequar o direito positivo e a constituição política dos Estados, bem como a da legitimidade
da desobediência e dá resistência às leis e constituições que não se lhe adaptassem. Aliás, esta
tendência se desenvolveu também à margem da influência direta do jusnaturalismo inspirado
por Grotius ou dele derivado e, tendo se encontrado na Inglaterra 'com a antiga tradição
constitucionalista do país, que já havia estabelecido limitações ao poder real, achou uma
forma precisa nos Dois Tratados sobre o Governo Civil de Locke, escritos em tomo de 1680 e
publicados em 1690. Além disso, o jusnaturalismo do século XVII, tanto quanto o fora para
Grotius,foi também de grande importância, como fundamento teórico, para o direito
internacional: quase todos os tratados de direito internacional daquele tempo têm por título:
Do direito natural e das gentes.

Características do jusnaturalismo moderno

É Precisamente devido a esta sua característica que o jusnaturalismo moderno, isto é, o


jusnaturalismo dos séculos XVII e molda profundamente as doutrinas políticas de tendência
individualista e liberal, expondo com firmeza a necessidade do respeito por parte da
autoridade política daqueles que são declarados direitos inatos do indivíduo.
O próprio Estado é considerado pelo jusnaturalismo moderno mais como obra voluntária dos
indivíduos do que como instituição necessária por natureza, que era o que ensinava a maior
parte das doutrinas clássicas e medievais.
Em algumas doutrinas jusnaturalistas modernas, o individualismo é levado até o ponto de se
consideras a própria sociedade como efeito de um contrato entre os indivíduos; o contrato
social se desdobraria assim em dois momentos, pacto de união e pacto de sujeição. Mas isto' é
mais raro do que comumente se crê, porque, também entre os jusnaturalistas modernos, o
estado de natureza é geralmente representado como uma forma de sociedade; mas uma

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sociedade tão precária e incerta que se torna conveniente sair dessa situação para fazer surgir
uma instituição jurídico-política organizada.
Direitos inatos, estado de natureza e contrato social, conquanto diversamente entendidos pelos
vários escritores, são os conceitos característicos do jusnaturalismo moderno; acham-se de tal
modo presentes em todas as doutrinas do direito natural dos séculos XVII e XVIII, que se
pode falar [na verdade, impropriamente] de uma "escola do direito natural". Isto permitiu que
muitos reservassem a expressão jusnaturalismo para as doutrinas desse período histórico. E
foi isto também que criou a opinião errônea de que idéia do direito natural nasceu e foi
cultivada apenas a partir deste período, nomeadamente desde Grotius em diante.
O ideal jusnaturalista do século XVIII teve assim enormes resultados políticos: foi na doutrina
do direito natural que se inspirou, conquanto confluíssem também outros elementos históricos
e doutrinários, oriundos, sobretudo da tradição constitucionalista inglesa - a Declaração da
Independência dos estados Unidos da América [1776], onde se afirma que todos os homens
são possuidores de direitos inalienáveis, como o direito à vida, à liberdade e à busca da
felicidade; e é de caráter genuinamente jusnaturalista a Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão [1789] que constituiu um dos primeiros atos da Revolução Francesa e onde se
proclamam igualmente como "direitos naturais", dentre outros, a liberdade, a igualdade e a
propriedade.

O jusnaturalismo do século XIX

A idéia de um sistema racional e universal de normas [que se harmonizava com as tendências


da cultura iluminista, tendente à racionalização e à sistematização de todos os aspectos da
realidade e excludente das contribuições da tradição e da história, bem como de tudo aquilo
que não parecesse ditado pela razão] se opunha de modo gritante à realidade da vida jurídica
daquele tempo.
Sentia-se, por isso, uma forte necessidade de reformas legislativas que dessem ao direito
principalmente certeza; o jusnaturalismo, com sua teoria de um direito absoluta e
universalmente válido, porque ditado pela razão, era capaz de oferecer as bases doutrinais
para uma reforma racional da legislação.
Com a promulgação dos códigos, principalmente do napoleônico, o jusnaturalismo exauria a
sua função no momento mesmo em que celebrava o seu triunfo. Transposto o direito racional
para o código, não se via nem se admitia outro direito senão este. O recurso a princípios ou
normas extrínsecos ao sistema do direito positivo foi considerado ilegítimo. Negou-se até,
tirante o código austríaco de 1811, que se pudesse recorrer ao direito natural em caso de
lacuna do ordenamento jurídico positivo: triunfou o princípio característico do positivismo
jurídico [ou seja, da posição oposta ao jusnaturalismo] de que, para qualquer caso, se pode
sempre encontrar solução dentro do ordenamento jurídico do Estado.
O jusnaturalismo veio a cair, assim, no decorrer do século XIX, em total descrédito.
Sobreviveu apenas na sua forma católica, baseada na doutrina das leis de São Tomás de
Aquino, mas só no âmbito clerical, com uma finalidade conservadora e muitas vezes
reacionária, servindo, sobretudo de instrumento de contestação da legitimidade do Estado
liberal e constitucional. O adjetivo jusnaturalista é usado pelos juristas em sentido
depreciativo, para indicas conceitos ou argumentos estranhos ao campo da juridicidade, não
se entendendo mais por jurídico senão o que concerne ao direito positivo.

O jusnaturalismo contemporâneo

O jusnaturalismo despontou de novo depois da 2a Guerra Mundial, como reação ao estatismo


dos regimes totalitários. Em grande parte, o fenômeno se verificou ainda no âmbito da cultura
católica; mas também nos ambientes protestantes alemães e em medida bastante notável no
mundo laico, a idéia do direito natural se apresentou de novo e, sobretudo como dique e limite

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ao poder do Estado. E típica a tal respeito a posição tomada por um dos maiores juristas
alemães, Radbruch.
A forma em que hoje o jusnaturalismo parece ainda poder ter vitalidade é aquela em que ele
se aproxima das doutrinas sociológicas e "realistas" do direito. Estas doutrinas rejeitam o
positivismo jurídico por causa do seu formalismo, ou seja, pelo mesmo defeito que o
historicismo romântico e idealista imputava ao jusnaturalismo.
O jusnaturalismo tem hoje diante de si unia função, talvez arriscada, mas que pode ser
fecunda. O problema dos fins e dos limites desta função abrange, todavia, o problema da
relação entre o juiz e a lei e, conseqüentemente, também o problema das relações entre o
poder legislativo e o poder judiciário, na medida em que admitir que o juiz possa invocar

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