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Do Positivismo Jurídico ao Liberalismo Igualitário:

apontamentos sobre Kelsen e Dworkin

Resumo: Desenvolve breve argumentação no sentido de mostrar


a importância do Positivismo Jurídico no Direito ocidental
contemporâneo, suas principais contribuições e a relação com o
Liberalismo Igualitário. Articula estas duas doutrinas focando o tema
da “justiça”, tema importante em ambas as abordagens doutrinárias.

Palavras-Chaves: Positivismo Jurídico, Liberalismo Igualitário,


Direito e Justiça

I. Introdução:

Há certos desafios para o Direito que, sem dúvida, fazem parte


da sua história. Questões como: o que significa e como alcançar a
justiça, como distribuir direitos, o que é ser igual, igualdade em que e
para quê, estão sem dúvida desde os gregos e os romanos. Tais
desafios fazem parte da história do Direito porque lhe são inerentes a
sua existência e sentido.

Correlatos a esses desafios ainda estão outros, tais como a


relação entre Direito e Estado, Direito e Governo. E agora, ainda
temos que lembrar do Direito no cenário internacional, pois é nesse
tempo que estamos, que o conceito de comunidade as vezes é
ampliado para dimensão internacional.

Entretanto, mesmo seguindo a linha do tempo parece ser algo


do nosso tempo a marca da discussão sobre a mudança no Direito. É
evidente que esse debate não é tão novo assim. Mas ganha nesse
tempo particularidades talvez não vistas em outros momentos nos
quais este debate esteve também aceso.

A primeira preocupação é sobre a origem das ideias e


motivações que fomentam tal debate, agora, bem estendido,
principalmente no mundo ocidental. Logo em seguida, chama
atenção, as fundamentações e justificativas para legitimar
modificações no Direito e interpretações nos ordenamentos jurídicos.
Iniciam-se os argumentos desmontando todo o Direito em vigor, ou ao
menos parte dele, para em seguida acusá-lo de preconceituoso,
ultrapassado e arbitrário. A fase seguinte é discutir sobre o vazio
jurídico que tem sempre como tônica criar dualidades conflitivas,
retornando a uma dualidade bastante pretérita da vítima e do algoz e
tentar encaixá-la no ambiente atual.

Nesse contexto, não há mais espaço para um debate a respeito


de uma justiça genuína, própria de um Direito e um ordenamento
jurídico maduro. Porém, o que pode ser observado são dois discursos
sobre justiça sendo desenvolvidos ao mesmo tempo; o discurso
doutrinário jurídico e o discurso dos movimentos sociais, dos quais a
esfera política se apropria exatamente por ser mais popular e por isso
acessível às massas.

Ocorre então o embate entre o discurso político e o discurso


jurídico em um ambiente no qual, nem sempre, o segundo é
necessariamente o vencedor, mesmo quando se trata de peleja
jurídica travada em tribunais superiores.

A evolução do Direito moderno já é tema por demais


explorado para que algo novo venha à luz. A grande questão da
atualidade não reside em encontrar algo novo e sim como reorganizar
toda a estrutura moderna que se apresenta no Direito, no Estado, na
Sociedade Civil e nas respectivas instituições.

O debate entre modernidade e pós-modernidade reflete e


caminha diretamente nessa direção, ou seja, uma reinterpretação dos
clássicos para rever tudo aquilo que engloba o que chamamos
sociedade ou mundo moderno.

Nesse sentido, há uma questão definidora e que neste


artigo seguirá como linha mestra, qual seja: Como dar respostas ao
mundo das relações humanas no século XXI como um Direito e um
Estado fundamentados nos séculos XVII e XVIII?

Sendo assim, será defendida aqui a opinião que o maior


desafio dos tempos atuais se encontra na permanente tensão entre a
validade e a eficácia do Direito, uma vez que, atualmente, encontra-se
permeado por uma profunda crise de legalidade e legitimidade.
É evidente que essa crise da legalidade e legitimidade não
tem outra origem senão a incapacidade do Direito em dar respostas
eficazes para a realidade do mundo da rua e da relação entre as
pessoas neste século XXI.

Não foi por acaso que só recentemente, no século XIX


teoria política e teoria jurídica se afastam numa ambição de tratar
como entes sempre distintos Direito e Estado. De fato, se a priori,
devem ser assim tratados como dimensões abstratas, que primeiro
são formuladas no mundo das ideias, já no plano da realidade da vida
individual e coletiva um não se realiza sem o outro.

É redundante dizer que os princípios são a origem, mas


cabe lembrar que é a “crise da modernidade” que nos obriga a
retornar aos “princípios modernos” para reaver a legitimidade e a
legalidade dentro das possibilidades do mundo pós-moderno.

Entretanto, deixando um pouco de lado as elucubrações


teóricas, é na relação íntima entre Estado e Direito que encontramos
respostas. O Direito fixando diretrizes e o Estado executando, tal
como as que orientam e dão sentido ao Estado de Direito
fundamentado nos três poderes da república.

II. Entre o Direito Natural, Direito Positivo e o Positivismo Jurídico.

A busca por uma sociedade perfeita, às vezes chamada de


“ideal”, faz parte de uma necessidade individual e grupal de retorno ao
paraíso. A literatura inglesa retrata muito bem esta questão. Tanto no
campo da teoria jurídica, política, social ou até mesmo nos romances
e contos o problema da “queda”, está presente. Em seguida, a
influência desta perspectiva vai se fazer presente na França, na
Alemanha e até mesmo na literatura russa na qual Dostoiévski é o seu
maior representante.

Mutatis Mutandis é a partir da “queda” que começam os


problemas modernos, quiçá, a própria modernidade. Vem de longe o
debate sobre um Direito ditado pelos deuses e um Direito criado pelos
homens. Mas é quando surge o interesse de se criar uma sociedade
diferente da que existia até então, ou seja, européia e medieval, é que
vai se buscar nos greco-romanos os fundamentos para um novo
modelo.
A modernidade foi um projeto que tinha como objetivo
construir um novo modelo de sociedade diferente daquela que existia
até então. Qual modelo estava sendo questionado? O modelo que
vinha até então e que passou a ser chamado pelos “modernos” de
“medieval”. De fato, o projeto moderno tinha como ambição construir
um novo modelo de sociedade no qual a Igreja e a Monarquia não
ditassem os parâmetros de conduta.

O Direito e o Estado moderno nascem de uma reação


contra as conseqüências das ações geradas pelos paradigmas que
vigoravam até então. Em regra, tanto a Igreja como a Monarquia eram
instituições com prerrogativas divinas aqui na terra. Ou seja, falavam e
agiam em nome de Deus. Tanto o Rei quanto o Papa só deviam
satisfação a Deus o que os tornava autoridades inquestionáveis e
acima de qualquer lei criada pelos homens ou até por eles mesmos.

Porém, alguns detalhes tornam-se importantes para a


compreensão do fenômeno: “modernidade”. Se até então Deus é o
centro do universo e os homens são governados por regras ou um
direito fortemente influenciado pela religião, logo o homem passará a
ser o cento do mundo e a moral será o fator orientador e aglutinador
das relações humanas.

O desenvolvimento do conhecimento racional, laico, que


passou a ser chamado de ciência também contribuiu bastante para
que o homem sentisse confiança em afastar-se da religião e buscar
um modelo de sociedade, onde ele mesmo resolvesse os próprios
problemas.

Nesse contexto, o que aqui mais interessa é que todas as


reflexões filosóficas são direcionas ao mesmo tempo tanto para o
Direito quanto para o Estado sem distinção. Mas, há uma questão que
precisava ser respondida. Como manter a ordem?

É bem verdade que as instituições que hoje chamamos de


Estado moderno e Direito moderno, não seguiram a linha reta de
transformação e evolução como os resumos dos manuais acadêmicos
costumam apresentar. E assim foi tanto na relação entre Estado e
Direito como, internamente, no que diz respeito ao universo de
abrangência de cada uma destas instituições.
Em “O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito”
(1999), Bobbio descreve muito bem os contextos e trajetórias entre
Direito Natural, Direito Positivo e Positivismo Jurídico. Salienta que
desde sedo já era reconhecida a necessidade de articular Direito
Natural e o Direito Positivo. A partir no século XVIII a antiga dicotomia
entre os direitos referidos começa a mudar de rumo. Como Bobbio
afirma:

Estas duas espécies de direito não são


consideradas diferentes relativamente à sua
qualidade ou qualificação: se uma diferença é
indicada entre ambos refere-se apenas ao seu grau
(ou gradação) no sentido de que uma espécie de
direito é considerada superior à outra, isto é postas
em planos diferentes (1999, p. 25).

Ao descrever essa evolução histórica do Direito ocidental


salienta aspectos importantes quanto ao papel desempenhado pelas
diferentes doutrinas. Mostra inclusive a importância de perceber que:
“o positivismo jurídico é uma concepção do direito que nasce quando
‘direito positivo’ e ‘direito natural’ não mais são considerados direito no
mesmo sentido, mas o direito positivo passa a ser considerado como
direito no sentido próprio” (1999, p. 26).

Mas o nascimento do positivismo jurídico retrata, antes de tudo


uma crise, na qual se envolvem o direito natural e o que veio a ser
conhecido como direito positivo, ou seja, o Direito produzido e
estabelecido pelo Estado. Daí surgem algumas questões importantes
tais como: a relação entre Direito e Estado, as fontes do Direito, e qual
a possibilidade do Direito fornecer legitimidade a todas as pretensões
modernas, principalmente com a inclusão no seu discurso do conceito
de “povo”.

Não há dúvida de que a monopolização do poder por parte no


Estado moderno implicou na necessidade de formação de um Direito
único e que, as normas consuetudinárias só poderiam ser aceitas na
medida em que, não ameaçassem a segurança da propriedade
privada e dos seus detentores.

Isso está muito claro com a formação, desenvolvimento e


influência do historicismo romântico que põem dúvidas a respeito do
otimismo iluminista que promete trazer para a sociedade humana as
possibilidades de uma vida feliz. A velha questão da “queda” e do
“paraíso”. A modernidade foi um projeto que na evolução do seu
empreendimento começou a apresentar falhas, principalmente quando
tratou de incorporar a ideia de igualdade e direitos para todos.

Bobbio lembra autores como Burke que duvidou, desde o século


XVIII, que a razão e as instituições provenientes dela, o Estado e o
Direito, fossem o suficiente para cumprir as promessas inclusas no
discurso moderno.

Na verdade o conflito que se pretende atual entre jusnaturalismo


e positivismo jurídico não tem tanta razão, se for levado em conta que
a tradição de origem do positivismo jurídico se remete à Beccaria, um
clássico jusnaturalista italiano. Mesmo rompendo com a tradição do
Direito Natural e adotando o viés utilitarista, a questão trazida pelo
Positivismo Jurídico, não nega o “ter direitos” que possam estar
ligados à pessoa humana e sim, a elaboração dos fundamentos do
Direito e qual o recorte epistemológico deve ser efetivado para que
estes fundamentos possam ser identificados. De fato, não por acaso,
é clara a influência do utilitarismo no Positivismo Jurídico logo a partir
de John Austin. Os refrões com os quais comumente é atacado o
Positivismo Jurídico opacam o sentido e a importância dessa doutrina
para o Direito moderno contemporâneo.

Mesmo já sinalizando uma modernidade em crise o Positivismo


Jurídico surge como uma possibilidade de organizar uma ordem
político-jurídica que pusesse termo aos desmandos dos subjetivismos
e vontades das elites. Como mostra Morrison, analisando a obra de
Austin:

[...] O fundamento dessa constituição – dessa –


nova ordem social – não é a vontade subjetiva ou a
vontade das elites que, fisicamente configuram a
soberania, e tampouco se reduz a uma questão de
relações de poder. [...] A norma falida da vontade
da aristocracia devia ser substituída pelo governo
racional segundo os ditames do conhecimento
positivo; uma ideia que também servia para manter
a distância as ideias de um governo por maioria
popular que o círculo benthamista passara a
defender depois de perder as esperanças de mudar
as concepções das elites dominantes. [...] A
filosofia analítica subseqüente tem valorizado rigor
intelectual e a lucidez da escrita em detrimento de
qualquer preocupação mais ampla com a realidade
social e política. Em resultado, nas últimas décadas
o positivismo jurídico passou a ser atacado por ser
um empreendimento sustentado por si mesmo e
desvinculado de qualquer contexto. [...] Austin, em
nome do rigor analítico e conceitual separou o
estudo do direito da tarefa de identificar seu
contexto social na realidade social, e também da
tarefa de identificar seus efeitos constitutivos sobre
essa mesma realidade. Tal impressão é, contudo,
resultado de uma simplificação excessiva que se
encontra no material didático habitual. [...] Para
Austin, os conceitos acham-se inseridos nos
processos sociais. Não faz sentido falar de direitos
como se eles se sustentassem sobre as suas
próprias bases – os direitos não param de pé por si
sós, mas extraem seus fundamentos da realidade
dos deveres correspondentes; deveres que devem
ser exeqüíveis para poder terem existência real
(2006, p. 255, 256, 263, 259, 264).

Diante do exposto fica claro que é injusta acusação de que


o positivismo jurídico é refratário à realidade da qual nasce o Direito e
que ainda seria resistente a mudanças e atualizações no Direito,
seguindo o compasso das mudanças no mundo das relações
humanas reais.

Para dirimir qualquer dúvida podemos recorrer à obra de Kelsen:


“O Que é Justiça?” quando o autor está ponderando sobre qual
composição de ordenamento jurídico tornaria mais viável um universo
social mais justo. Dentro dessa problemática Kelsen retoma uma das
principais questões modernas e utilitarista, a felicidade. Daí ele
pergunta o que vem a ser felicidade e retoma as lições de Platão
quando este associava felicidade a justiça. Só que Kelsen admite que
mesmo o homem diante do dilema de ter que buscar a sua felicidade
na vida social, tem que reconhecer que “nenhuma ordem social
poderá compensar totalmente as injustiças da natureza” a exemplo
das seguintes questões: “por que não tenho a aparência do outro?” ou
“por que a natureza me concedeu tão poucos atrativos? Então Kelsen
afirma: “Uma ordem social justa é impossível, mesmo diante da
premissa de que ela procura proporcionar, senão a felicidade
individual de cada um, pelo menos a maior felicidade possível ao
maior número possível de pessoas” (2001, p. 02, 03).

Mas isso não quer dizer que tal doutrina defende a aceitação da
sociedade injusta ou que o Direito nada pode fazer para alterar tal
dilema. O que torna-se evidente é a necessidade de se estabelecer
uma hierarquia de valores, que atuem como princípios, que, por sua
vez, possam de fato ordenar e fundamentar o Direito. Em outras
palavras, o que o positivismo jurídico não aceita é uma transformação
do Direito através do uso abusivo do poder discricionário das
autoridades que lhe competem.

Kelsen então traduz a questão moderna da igualdade e da


justiça nas relações humanas. Como ele escreve: “Mas quais
interesses humanos têm esse valor e qual é a hierarquia desses
valores?”. E esclarece afirmando que: “um conflito de interesses se
apresenta, todavia, quando um interesse só pode ser satisfeito à custa
de outro, ou seja, quando dois valores se contrapõem e não é possível
concretizá-los ao mesmo tempo se a concretização de um implicar a
rejeição do outro” (2006, p. 06). Em seguida ele mostra que o Direito
só pode atuar no universo das relações humanas regulando as
escolhas dos princípios e a hierarquia decorrente.

Sendo assim, os dogmas exercem função importantes pois


estão como ponto de partida para a eleição destes princípios e o
estabelecimento da hierarquia. Se a princípio tudo parece uma
questão de valores, postos inclusive na relação entre o Direito e o seu
tempo, logo se faz necessário ultrapassar os limites dos juízos de
valor, para recorrer aos juízos de realidade que são os que podem ser
verificados no mundo da realidade através da experimentação.

A questão acima, muito bem ilustrada por Kelsen, mostra a


dificuldade de igualar o diferente. Desde a Grécia antiga, retratada na
obra de Aristóteles a questão das “desigualdades originais” e a
concepção de tratar as desigualdades de forma desigual é um desafio.
O problema está na interpretação que vem sendo dada recentemente
a respeito da obra de Aristóteles, a partir do momento em que os
resumos acadêmicos distorcem completamente o sentido dos
conceitos. Os gregos consideravam que a desigualdade seria algo
natural e deveria ser mantida assim. Por isso é recente a interpretação
de ajuda, de amparo para os que são considerados desiguais, bem
retrata nas políticas compensatórias ou também chamadas de
descriminação positiva.

Habermas trouxe a mesma questão em outras palavras:

Nisso se reflete o seguinte paradoxo, embutido


nos fundamentos da validade do direito positivo; se
a função do direito consiste em estabilizar
expectativas de comportamento generalizadas,
como é que essa função pode ser preenchida por
um direito vigente modificável a qualquer momento
por uma simples decisão do legislador político?
(1997, p. 224).

Cabe então especular sobre as possibilidades do


relativismo jurídico que vem atingindo o Direito, que extrapola a
competência de sustentar a tese de que se trata apenas de uma
adaptação à realidade. O Direito vem sendo chamado a dar respostas
às mudanças e crises nas relações humanas, respaldando o que
antes era o comportamento delituoso. E agora, sob o argumento
pseudo-democrático de que é interesse da maioria ou de uma parte
significativa da sociedade e isso sem falar da igualdade das chamadas
minorias. Vemos então a importância de rever os alertas que já
haviam sido dados por aqueles que, como Burke, passaram a ser
pejorativamente chamados de conservadores.

III. Perspectivas do Positivismo Jurídico e do Liberalismo Igualitário

Até bem pouco tempo enquanto o Direito caminhava em


compasso com as tradições morais, culturais etc., os argumentos
teóricos também evoluíram no sentido de analisar em que medida o
Direito poderia estar mais próximo ou distante destas tradições.
Mesmo distante das tradições e adquirindo perfil de um Direito
estabelecido pelo Estado ou ainda com pressupostos de uma ciência
jurídica, a estabilidade jurídica, necessariamente era característica das
duas vertentes.
O conflito entre o jusnaturalismo e o direito positivo parecia
sanado através da positivação dos direitos fundamentais, quando no
final do século XX, o excessivo relativismo moral do nosso tempo
tratou de desregular todas as formas de relações sociais e humanas.
Ao mesmo tempo, a obra de Kelsen, como representante do
positivismo jurídico, volta a ser atingida por argumentos pequenos,
como as acusações de tratar-se de um direito estático e que não leva
em conta as mudanças na sociedade.

A contradição ocorre quando esses reclames atuais pregam o


afastamento de uma moral supostamente preconceituosa das
entranhas do Direito. Afirma-se também que é um Direito injusto por
não proporcionar aos menos favorecidos meios de acesso á
propriedade privada. Tem-se com isso fragilizado os ordenamentos
jurídicos, de fato, substituindo uma moral por outra, utilizando-se
valores respaldados numa tal “divida histórica”. Ou seja, estamos para
além da análise do contexto, recomendado inclusive desde os
primeiros idealizadores do positivismo jurídico. Temos então o
presente analisado por um passado distorcido e distante e o Direito
sendo chamado a dar respostas imediatas em nome da uma
sociedade mais justa. Ao mesmo tempo, a relativização dos valores
morais do nosso tempo vai ocorrer de forma intencional através das
mudanças no modelo educacional, familiar e, em seguida, difundidos
com facilidade através do aperfeiçoamento das tecnologias aplicadas
à comunicação de massa.

Mesmo nos momentos mais iniciais da obra de Kelsen o Direito


não possuía realidade em si mesmo. O Direito para o autor é
concebido como um ato de vontade por parte do legislador e demais
autoridades de competência jurídica. Até mesmo por que sua teoria na
norma não atribui caráter de verdade ou falsidade à norma e sim
validade ou invalidade. Foi, principalmente, pelo fato de buscar
separar do Direito os aspectos morais, políticos, econômicos e
históricos que os positivistas tornaram seus trabalhos passíveis às
críticas de que não relacionavam a teoria jurídica à realidade a sua
volta.

Desta forma qual seria então a origem do Direito, o seu


fundamento e vínculo a partir do qual um determinado ordenamento
jurídico brota e tem validade em uma dada sociedade? Na obra de
Kelsen a resposta está no problema da norma hipotética. Entretanto,
tal pergunta levaria a uma resposta infinita, pois se considerarmos a
Constituição como norma original, a Constituinte como norma
fundante da original, caberia sempre a pergunta sobre qual norma deu
origem à norma posterior. Em outras palavras, qual norma deu origem
à constituinte? Como esclarece Coelho:

Prosseguir-se, no entanto, neste


questionamento significa não alcançar nenhum
resultado sensato, pois a competência para editar
normas jurídicas sempre decorre de outra norma, e
esta, por sua vez somente pode ter sido editada por
uma autoridade competente. Estamos diante de
uma regressão ao infinito, sem sentido racional.
Para enclausurar o sistema jurídico, solucionando a
questão em aberto, Kelsen lança mão de uma
norma que deve sustentar o fundamento da
validade da ordem jurídica como um todo, mas que
necessariamente não tenha sido editada por
nenhum ato de autoridade. Uma norma não posta,
mas suposta (2001, p. 11,12).

Tal perspectiva de uma norma original parece se assemelhar ao


problema da origem no jusnaturalismo. Durante muito tempo, os
tratados jusnaturalistas foram interpretados de maneira a se entender
que os autores estavam apontando para uma origem enquanto marco
histórico para o Estado, a sociedade civil, e demais instituições
correlatas. Em tais escritos era corriqueira a versão de que primeiro
surge o Estado civil, racional, para em seguida, a sociedade, também
civil, fundada numa suposta racionalidade.

Foi com o advento de obras de jusfilósofos do porte de N.


Bobbio e Michel Villey, que tais equívocos começaram a ser
corrigidos. De fato, as metáforas utilizadas pelos jusnaturalistas
preenchiam também a necessidade de encontrar um ponto de origem
para o novo empreendimento teórico que estava em curso, qual seja;
a modernidade. Por isso podemos falar que a modernidade foi um
“projeto”. Cada livro escrito propunha um novo modelo de sociedade
dando ênfase ao Estado ou à sociedade civil, partindo de uma origem
suposta e hipoteticamente elaborada. Tal elaboração metaforicamente
originária é muito clara na obra de Rousseau quando ele afirma que
quando o primeiro homem colocou o pé num pedaço de terra, cercou
e afirmou ser dele aquela terra, tem-se ali a origem da propriedade
privada.

O problema da origem fora do “paraíso” é um problema


“moderno”, por isso atinge também os positivistas. Qual teria sido o
primeiro constituinte histórico? Dentro deste contexto, o positivismo
jurídico só admite como válido em Direito, o direito que esteja incluso
em ordenamento jurídico determinado pelo Estado. Daí que, enquanto
o Direito natural não foi incorporado nos ordenamentos jurídicos - e
isso só começa acontecer reconhecidamente a partir da Segunda
Guerra Mundial – esses direitos não eram reconhecidos como direito
válidos.

A discussão que cabia também e foi trazida por Kelsen era a


que dizia respeito à possibilidade de valoração moral da norma
jurídica em detrimento de buscar uma eficácia que apontasse para um
resultado rigorosamente respaldado. Tal vez seja aí que possamos
encontrar a origem dos problemas do nosso tempo; o retorno à
valoração moral da norma jurídica, mesmo que negando essa
valoração. Esconde-se essa valoração no discurso politicamente
correto da busca por justiça.

O impasse é então o seguinte: se o Direito Natural preserva


direitos que supostamente vinculam-se á natureza humana, qual a
finalidade do Direito? Preservar a ordem a partir da regulamentação
das condutas e das relações entre as pessoas ou preservar a pessoa
em detrimento da preservação da ordem social? Além disso, quando
estamos falando da ética no Direito ao que estamos nos referindo?
Talvez com o exemplo a seguir a questão fique mais clara.

O advogado A foi contratado pelo indivíduo B que matou o


indivíduo C. O problema é que A sabe que B matou C, e sabe
inclusive, onde está escondido o corpo. Cabem estão as mesmas
questões para positivistas e jusnaturalistas: Quando A se cala perante
a justiça é apenas em função da defesa do seu cliente? A defesa de
um acusado consiste em omitir um crime ou preservar o julgamento na
forma da lei? Quando A omite ou nega o reconhecimento dos crimes e
o paradeiro do corpo baseado no código de ética profissional, o que
temos é a atenção do bem jurídico vida (do que morreu) ou do bem
jurídico liberdade (do que matou)?
Os positivistas certamente responderiam que se tudo isso está
na previsão do ordenamento jurídico então é legal e é legítimo. Os
jusnaturalistas responderiam que baseado na preservação da
dignidade da pessoa humana o acusado teria que usar de todos os
recursos para provar sua inocência mesmo não sendo ele inocente. A
única pergunta que falta aos jusnaturalistas e positivista e que os dois
evitariam responder é: dado o exemplo descrito, de qual ética estão
falando quando falam da ética no Direito?

Para o positivismo jurídico a justiça é a justiça do que está


previsto no ordenamento jurídico e o Direito é um sistema de normas
não-morais. Por influência de Weber, na teoria de Kelsen, o Estado e
o Direito se equivalem e tanto em um quanto no outro há uma
perspectiva objetiva de coerção. Por essa influência weberiana é que
as normas se reduzem a imposições de sanções. Esse ordenamento
complexo de normas e bens jurídicos ao qual Kelsen se refere como
Direito é também uma questão de escolha. Passa necessariamente
pela motivação axiológica e até dogmática. O que ele se opõe, de fato,
é ao relativismo axiológico que leva ao relativismo jurídico tirando do
Direito o seu caráter puro, isento e científico. Por isso, o problema da
origem histórica da norma hipotética é tão importante para coagir e
regular o comportamento do homem decaído.

Esse problema fica mais claro na teoria de Kelsen quando é


tratada a questão da validade da norma jurídica e a vinculação à
norma fundamental. Segundo Coelho:

A validade norma jurídica, em Kelsen, depende,


inicialmente, de sua realização com a norma
fundamental. Ou por outra, é função da
manifestação de vontade de uma autoridade
competente. Como as normas jurídicas, pela
descrição realizada em preposições, integram um
sistema essencialmente dinâmico, o seu conteúdo
é irrelevante para a definição de validade. Esse é
um aspecto pouco entendido e pouco difundido da
teoria pura do direito. A norma jurídica é válida se
emana de autoridade com competência para editar,
ainda que o respectivo comando não se
compatibilize com disposição contida em normas
de hierarquia superior (2001, p. 29)
Complementando, todavia, para Kelsen a validade da norma
está em certa medida vinculada à sua eficácia. Por isso, ensina
Coelho:

Sustenta a teoria pura que tanto a norma


jurídica singularmente considerada quanto à própria
ordem jurídica como um todo deixam de ser válidas
se perdem a eficácia. [...] a validade não se
confunde com a eficácia, esta é apenas uma
condição daquela. Ou seja, pode-se sintetizar o
pensamento kelseniano sobre o assunto na
assertiva de que a ineficácia absoluta compromete
a validade da norma jurídica. Qualquer relação
entre validade e eficácia não se pode estabelecer
prontamente nos quadrantes da teoria pura do
direito (2001, p. 30, 33).

O apego da teoria pura à questão da norma, sua legitimidade,


validade e eficácia ocorre, outra vez, por conta da influência
weberiana em Kelsen. O pessimismo niilista que tanto caracterizou as
últimas décadas do século XIX e adentra pelo século XX, já vinha em
formação mesmo quando observado e ressaltado o otimismo
iluminista. Para os jusnaturalistas o problema da queda, do homem
decadente, havia sido superado com o aparecimento do conceito de
Estado moderno, que nas lições de Hobbes tinha que ser leviatã por
que tinha como objetivo tornar a conduta humana compatível com a
convivência coletiva. Entretanto, como mostra Coelho:

A antropologia kelseniana considera o homem


naturalmente inclinado a perseguir apenas a
satisfação de interesses egoístas. O
estabelecimento de uma ordem social não altera
essa realidade natural. [...] nem as normas morais
ou jurídicas se podem definir a partir da natureza
do homem, como pretendem os jusnaturalistas,
nem essa mesma natureza se pode modificar pela
vontade expressa em padrões de conduta. O
homem essencialmente egocêntrico se deixará
conduzir de acordo com as prescrições das normas
apenas se divisar vantagem – ou, pelo menos,
menor desvantagem – na obediência à ordem
social. Ao considerar oportuno comportar-se
conforme o sentido da norma, no entanto, ele ainda
continua manifestando seu caráter naturalmente
egoísta.

Por isso, o direito só pode ser entendido como


uma ordem social coativa, impositiva de sanções
(2001, p. 34, 35).

O problema agora, deste nosso século XXI, não é tanto


reconhecer a importância do Direito sancionador e sim, preservá-lo.
Trata-se agora de um relativismo axiológico e jurídico, que nem os
jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII pensaram em tal absurdo.
Tudo depende das conveniências. Quando interessa usa-se o mais
grosseiro positivismo apoderando-se do que está na lei. Em outras
vezes, os entendimentos ultrapassam os limites do bom senso,
esquecendo tudo que está escrito na nossa própria Constituição para
dar vez à influência do discurso político, não apenas interferindo no
Direito, mas, subjugando o discurso jurídico e como conseqüência, o
próprio Direito. Não é mais reconhecer os Direitos Humanos como
direitos válidos e sim, do que estamos falando quando falamos em
Direitos Humanos.

A partir das novas correntes teóricas que debatem com o


positivismo jurídico nas últimas décadas do século XX, a obra de R.
Dworkin ganha destaque, principalmente na literatura de língua
inglesa.

Apontado como importante representante da filosofia liberal


jurídica destacou-se no campo do que vem sendo chamado de
“liberalismo igualitário”. Seus trabalhos foram ganhando esse perfil na
proporção em que foi transportando a obra de J. Rawls para o
universo jurídico.

Como é sabido “Uma Teoria da Justiça” tornou-se uma


referência nas doutrinas sobre o significado de justiça e as novas
possibilidades do que poderia ser chamado de uma sociedade justa.
Rawls parte de princípios liberais para propor uma revisão do modelo
de Estado regido pela doutrina utilitarista, (ver Bem-estar Social),
mostrando que não é mais justificável que diante de tanta riqueza
ainda existam tantas disparidades que caracterizaram as sociedades
contemporâneas, inclusive entre os países ricos. Nos seus trabalhos,
enquanto neocontratualista propõe mudanças em princípios que
regem as instituições que formam e organizam o Estado, visando
obter destas instituições e na relações entre elas, resultados mais
aceitáveis do que poderia ser uma sociedade mais justa.

Seguindo esta ideia no seu confronto com o positivismo jurídico


de Hart e influenciado pelas doutrinas de Rawls e outros autores, a
questão central de Dworkin é a justiça no seu sentido amplo. Porém,
analisa e interpreta o Direito contemporâneo na realidade dos tribunais
diante das demandas, cada vez mais amplas, por novas concepções
do que é ter direitos. Rawls chamou esta questão de “as intratáveis
concepções de bem” e Dworkin aborda este mesmo tema, enfatizando
as possibilidades do Direito quando desafiando por estas demandas e
seus novos significados sobre equidade.

A teoria rawlsiana é certamente considerada uma teoria


institucionalista, pois o referido autor era professor de filosofia política
em Harvard. Tanto ele quanto Dworkin estão num ambiente onde a
palavra “crise” começa a ser generalizada. É nesse ambiente de crise
institucional generalizada que tanto Rawls quanto Dworkin ganham
notoriedade. Seguindo Gargarella que analisa a obra de Rawls e a
influência em Dworkin:

Os vínculos entre as concepções defendidas


por Rawls e Dworkin em torno da justiça são
claramente mais fortes que suas diferenças.
Dworkin preocupa-se em aperfeiçoar uma visão
como a proposta por Rawls, mas compartilhando
com ele muito dos seus pressupostos básicos. Para
Dworkin, uma concepção liberal igualitária
adequada precisa apoiar-se em quatro idéias
básicas, muito próximas às defendidas por Rawls,
Em primeiro lugar, o liberalismo igualitário deve
distinguir entre “personalidade” e as
“circunstancias” que cercam cada um. O Objetivo
desse liberalismo deve ser nesse sentido, igualar
as pessoas em suas circunstâncias, permitindo que
os indivíduos se tornem responsáveis pelos
resultados de seus gostos e ambições: se alguém,
situado em uma posição de relativa igualdade com
os demais, decide, por exemplo, empreender uma
ação muito arriscada, sabendo das possibilidades
de que ela termine mal, então, no caso de um final
infeliz em sua empreitada, deve arcar sozinho com
o resultado obtido. [...] Se uma pessoa prefere o
trabalho ao ócio, e a outra o ócio ao trabalho, então
certamente serão compensadas de modo desigual,
mas essas desigualdades não gerarão
transferências adicionais (2008, p. 67, 72).

Na mesma ambição de interpretar a obra de Dworkin, Morrison


observa que:

[...] ele procura uma objetividade para o


discurso jurídico e um novo sentido para a prática
jurídica. Uma prática que ele revigora com um
compromisso ético particular; o liberalismo jurídico.
[...] Ao longo de sua obra, Dworkin substitui o
positivismo pela abordagem interpretativa, mas
parece conservar algo do legado positivista. [...] A
teoria de Dworkin será, então, simplesmente sua
interpretação e, desse modo, prescritiva? Será que
todo o seu projeto consiste em impor sua versão do
liberalismo ao campo cada vez mais diversificado
da teoria jurídica?

Contra tal crítica, Dworkin alega estar


apresentando uma “verdade” inerente ao material.
Sua obra mais elaborada (O Império do Direito,
1986), Dworkin afirma estar trabalhando com a
concepção de direito de uma insider e se diz
preocupado em manter a “fidelidade” ao material;
sua interpretação será fiel ao empreendimento do
direito e não irá despojá-lo de seu significado
latente; ao recusar-se a discutir a natureza do
direito com observadores externos, sua
interpretação vai ignorar os comentários céticos e
articular melhor a ambição do direito para nós, de
modo que possamos unir esforços. [...] Numa
época em que a terminologia do pluralismo jurídico
tornou-se lugar-comum [...] haverá algum sentido
em que se possa falar sobre um conjunto
diversificado de práticas que abrangem o direito
moderno [...] como se existisse uma corrente
inequívoca de ideias comuns? (2006, p. 499, 500,
501).
A crítica de que o positivismo jurídico se afastou da análise
social realista para, atualmente, respaldar a posição daqueles que
defendem um relativismo jurídico acentuado ou um pluralismo jurídico
confortável, que atenda a todas as ansiedades pós-modernas postas
em pauta para o Direito, não se legitima se fizermos até mesmo uma
breve reflexão sobre os objetivos do Direito e a sua relação com o
ambiente do seu tempo. As demandas que estão aí nesse ambiente, e
cobradas para o Direito, não se tratam apenas ou simplesmente de
carência de regulação legal. Mas, também, porque não podem ser
atendidas pelas demais instituições políticas e sociais. Moldar o Direito
aos simples clamores políticos das massas é criar um socialismo
jurídico autoritário, disfarçado de luta por justiça.

Parece que o dilema da obra de Dworkin passa por estas


questões. Questionar abra do ex-professor, de forma ríspida no seu
aspecto semântico, doutrinário e epistemológico, deixou para o ex-
aluno, o desafio já trazido pelo mestre de como lidar com os “casos
difíceis”. Esses “casos difíceis” que momentaneamente parecem
pontuais, de fato, exemplificam nos tribunais o clamor de parte da
população de um grupo. O aceite deste clamor pode implicar em
violação de princípios e de direitos para a parte do grupo que não se
pronunciou. Por exemplo, o reconhecimento de cotas raciais em
universidades.

Em “Uma Questão de Princípios” Dworkin afirma que:

Um juiz que decide baseando-se em


fundamentos políticos não está decidindo com base
em fundamentos de política partidária. [...] A visão
correta, creio, é a de que os juízes baseiam e
devem basear seus julgamentos de casos
controvertidos em argumentos de princípio político,
mas não em argumentos de procedimento político.
[...] o que és Estado de Direito? Os juristas pensam
que há um ideal político distinto e importante
chamado o Estado de Direito. Mas discordam
quanto ao que é esse ideal. Há, na verdade, duas
concepções muito diferentes do Estado de Direito,
cada qual com seus partidários. A primeira é a que
chamarei de concepção “centrada no texto legal”.
Ela insiste que, tanto quanto possível, o poder do
Estado nunca deve ser exercido contra os cidadãos
individuais, a não ser em conformidade com as
regras explicitamente especificadas num conjunto
de normas públicas à disposição de todos. [...]
Chamarei a segunda concepção do Estado de
Direito de concepção “centrada nos direitos”. De
muitas maneiras, é mais ambiciosa que a
concepção centrada no livro de regras. Ela
pressupõe que os cidadãos têm direitos e deveres
morais entre si e direitos políticos perante o estado
como um todo. [..] O Estado de Direito dessa
concepção é o ideal de governo por meio de uma
concepção pública precisa dos direitos individuais.
[...] A concepção centrada nos direitos, portanto, é
mais complexa que a concepção centrada no texto
legal. [...] elas são, não obstante, compatíveis
quanto aos ideias mais gerais para uma sociedade
justa. Qualquer comunidade política será melhor,
se seus tribunais não tomares nenhuma atitude que
não as especificadas em regras publicadas
previamente, e, também, se suas instituições
jurídicas fizerem cumprir qualquer direitos que os
cidadãos individuais tenham (2005, p. 06 07, 08).

Dessa perspectiva a questão então entre o Positivismo Jurídico


e o Liberalismo Igualitário é muito mais de hermenêutica do que de
fundamentos epistemológicos ou princípios. Além disso, um “caso
difícil” nos tribunais, como foi dito, não se refere em geral a um “caso
isolado” e, mesmo quando se trata disso, logo se reflete no âmbito da
coletividade para respaldar anseios surdos ou novas perspectivas que
são instigadas.

Se o Liberalismo Igualitário de Dworkin visa promover condições


ao mesmo tempo de respeitar o livre-arbítrio e reduzir desigualdades,
como o Direito pode trazer estas respostas se a fragmentação dos
direitos pode levar ao instrumental jurídico ser muito mais
potencializador de conflitos do que solucionador?

Analisando a obra de Dworkin, Sgarbi tem o seguinte


entendimento:

No ano de 1985, também em livro constituído


pela reunião de artigos, Uma Questão de Princípio,
Dworkin continua sua trajetória teórica; agora, além
de polemizar com seus críticos, procura
desenvolver algumas ideias de LDS. Disso
resultam modificações terminológicas e
desenvolvimentos no particular da compreensão do
direito como uma prática interpretativa, ou seja, a
teoria de Dworkin sofreu ao longo dos anos
aprimoramento.

Aliás, esse processo evolutivo é por ele mesmo


reconhecido logo no prefácio do livro O Império do
Direito. [...]

Nesse sentido, com ID Dworkin se propõe


recolher e aperfeiçoar os esforços anteriores com o
objetivo de mais bem desenvolver a ideia do direito
como um conceito imperativo de uma perspectiva
do caso concreto (2009, p. 168, 169).

Tudo parece começar pela permanente dificuldade de


se estabelecer o que é o Direito e então, quais os seus fundamentos e
objetivos. Esse problema vai seguramente se refletir em situações
reais dos tribunais, onde a discricionariedade do juiz, principalmente
nos “casos difíceis”, pode passar por uma interpretação ampla e vaga
do Direito.

A questão da argumentação, ou retórica, não poderia deixar de


ser inerente ao Direito, uma vez que, não raro os argumentos e seus
fundamentos vão depender do ponto em que se encontram cada uma
das partes envolvidas e, até mesmo, o juiz que decide. Se voltarmos
àquele exemplo anterior, a respeito do advogado e do réu homicida,
podemos entender que absolver um acusado que todos sabem, matou
e escondeu o corpo para dificultar as investigações, mas por falta de
provas contundentes, é absolvido, essa absolvição, é uma “questão de
princípios”. Já a sua condenação é uma questão de “argumentos
políticos”.

Nesse sentido, não fica clara aposição de Dworkin quando


pondera que Hart valorizava pouco o papel dos princípios (SGARBI,
2009). Então o que está em jogo é a plausibilidade da segurança
jurídica ao aceitar que a decisão judicial seja resultado de uma
ponderação entre princípios e regras já estabelecidas, ou arriscar um
julgamento baseado em “argumentos políticos”, que vagueiam entre
os princípios em busca de amparo legal e, tudo em nome de uma
justiça que ninguém sabe ao certo definir qual.

IV. Conclusão

As breves argumentações desenvolvidas neste trabalho


apontam para alguns dos principais dilemas enfrentados pela teoria
jurídica no momento atual, principalmente quanto o tema central é
“justiça”.

O universo de questões aqui tratadas é reflexo de um


movimento mais complexo que vem da filosofia no seu ramo da
epistemologia. Isso começa a ocorrer num contexto de pessimismo
com relação às promessas de êxito e salvação difundidas pelo
iluminismo.

A ideia de um direito positivo e em seguida, o positivismo


jurídico, são reflexos no universo jurídico de todo aquele debate
anterior. Porém, o mais complicado é o aparecimento do fenômeno do
discurso político subjugando o discurso jurídico em função da
divulgação de promessas para as massas que não serão cumpridas.
Todos esses discursos têm uma origem bem definida e orquestrada
que envolve interesses políticos locais e geopolíticos.

Entretanto, o Direito não é um mero reflexo desse


ambiente e os juristas e doutrinados também não são espíritos puros
que buscam salvação. Desde as origens modernas, antes mesmo do
Iluminismo, já havia a certeza de que a distribuição de direitos seria
um problema muito maior do que a distribuição de deveres. Que a
sociedade moderna foi pensada e constituída em função da
propriedade privada, nunca foi novidade. E ainda, que ter liberdade,
no sentido moderno, é ter acesso a algum quinhão de propriedade,
todos já sabiam.

O problema é que os sentidos do Direito e da Democracia,


passaram a ser questionados a partir do momento em que as massas
ou, ao menos, setores dela, percebem que não terão acesso a nada.
Em outras palavras, as promessas de êxito e salvação não se
realizaram, nem se realizarão para muitos.
E então? O resultado é que, quem pode faz passeata,
outros pegam em armas para assaltar e ter o que não podem comprar
com trabalho e ainda, os demais que se drogam ou adotam postura de
bom moço esperando uma “oportunidade”.

A questão para o Direito está posta exatamente quando os


intelectuais tentam encontrar uma saída para esses dilemas. Não há
condições de resultado plausível se esquecemos todas as lições e
experiências dos autores da modernidade clássica. É engano pensar
que, o que eles escreveram é passado. Está tudo aí, como de alguma
forma sempre esteve, tanto no mundo da rua como nas doutrinas
jurídicas e políticas.

A questão está posta da seguinte forma: ou se relativiza


tudo e transformam-se as relações humanas e jurídicas num mero
jogo de dados ou busca-se outra vez, tal como tentou o positivismo
jurídico, encontrar algo no qual se possa confiar e basear decisões
jurídicas.
Referências:

Detentor da obra:
Professor Osvaldo de Oliveira Bastos Neto

Extraído do site:
http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.38280

BOBBIO, Norberto O Positivismo Jurídico: lições de filosofia do


direito. São Paulo: Ícone, 1999

COELHO, Fábio Ulha Para Entender Kelsen. São Paulo: Saraiva,


2001

DWORKIN, Ronald Uma Questão de Princípios. São Paulo: Martins


fontes, 2005

GARGARELLA, Roberto As Teorias da Justiça Depois de


Rawls: um breve manual de filosofia política. São Paulo: Martins
Fontes, 2008

HABERMAS, Jürgen Direito e Democracia: entre a faticidade e


validade. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 1997

KELSEN, Hans O Que é Justiça?. São Paulo: Martins Fontes, 2001

MORRISON, Wayne Filosofia do Direito: dos gregos ao pós-


modernismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006

SGARBI, Adrian Clássicos de Teoria do Direito. Rio de Janeiro:


Lumen Juris, 2009

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