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a segurança pessoal é uma variável das mais
• ••
co A crise do direito penal é abordada com mais especificidade em texto que escrevi ,em conjunto
com ANDR~ CoPPETI, para o qual remeto o leitor (STRECK, Lenio Luiz e CoPPETI, André. "O Direito
Penal e os Influxos Legislativos pós-Constituição de 1988: um modelo normativo e eclético
consolidado ou em fase de transição?" Anuário do programa de Pós-Graduaçllo em Direito da UNISINOS-
RS. São Leopoldo, 2003, pp. 225-295. Alguns conceitos foram transladados daquele para este.
Consultar, também, STRECK, Lenio Luiz e FELDENS, Luciano. Crime e Constituiçffo. A legitimidade da
funçffo investigatória do Ministério Público. Rio de Janeiro, Forense, 2003.
«l Isto para dizer o mínimo. Não se pode, contudo, desprezar outro componente que sustenta o que
se pode denominar de crise do modelo liberal-iluminista-individualista-normativista de Direito: a
metafísica equiparação que faz a dogmática jurídica entre vigência e validade, o que, sobremodo,
enfraquece a filtragem hermenêutico-constitucional do direito penal. Nesse sentido, consultar STRECK,
Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, op. cit., em especial cap. 5.
(si Uma observação necessária: os personagens "Caio, Tício, Mévio (a) são aqui utilizados como uma
crítica aos manuais de Direito, os quais, embora sejam dirigidos - ou deveriam ser - a um sistema
jurídico (brasileiro') no interior do qual proliferamJoãos, Pedros, Antonios e Josés, Marias, Terezas,
teimam (os manuais) em continuar usando personagens "idealistas/ idealizados", desconectados
da realidade social. Registre-se que até mesmo no provão do MEC os personagens Caio e Tício
(re)apareceram ... Isto decorre de uma cultura estandartizada, no interior da qual a dogmática jurídica
trabalha com prêt-à-porters significativos. Há urna proliferação de manuais, que procuram "explicar"
o Direito a partir de verbetes jurisprudenciais a-históricos e atemporais (portanto, metafísicos).
Ocorre, assim, uma ficcionalização do mundo jurídico, como se a realidade social pudesse ser
procustianamente aprisionada/moldada / explicada através de verbetes e exemplos com pretensões
universalizantes. Alguns exemplos beiram ao folclórico, como no caso da explicação do" estado de
necessidade" constante no art. 25 do Código Penal, não sendo incomum encontrar professores (ainda
hoje) usando o exemplo do naufrágio em alto mar, onde duas pessoas (Caio e Tício, personagens
comuns na cultura dos manuais) "sobem em uma tábua", e na disputa por ela, um deles é morto
(em estado de necessidade, uma vez que a tábua suportava apenas o peso de um deles ... !) Cabe,
pois, a pergunta: por que o professor (ou o manual), para explicar a excludente do estado de
necessidade, não usa um exemplo do tipo "menino pobre entra no Supermercado Carrefour e subtrai um
pacote de bolacha a mando de sua mi!e, que ni!o tem o que comer em casa?" Mas isto seria exigir demais da
dogmática tradicional. Afinal de contas, exemplos deste tipo aproximariam perigosamente a ciência
jurídica da realidade social...! Na mesma linha: em recente concurso público no RS, perguntou-se:
Caio quer matar T!cio, com veneno; ao mesmo tempo, Mévio também deseja matar Tício (e, pasmem,
com veneno!). Um não sabe da intenção assassina do outro. Ambos ministram apenas a metade da
dose letal (não fica explicado em que circunstância Tício - com certeza um idiota - bebe as duas
porções de veneno). Em conseqüência da ingestão das meia-doses, Mévio vem a perecer ... E o
concurso indagava: qual a solução jurídica? Em outro concurso, de âmbito nacional, a pergunta
dizia respeito à solução jurídica a ser dada ao caso de um gêmeo xifópago ferir o outro (com certeza,
gêmeos xifópagos andam armados, e em cada esquina encontramos vários deles ... !). Dito de outro
modo: desse modo, a cultura standart fornecida pelos manuais é reproduzida nas salas de aula e nos
concursos públicos. A propósito, há um manual que, para explicar a diferença entre culpa consciente
e dolo eventual, utiliza um exemplo a partir do ato de um jardineiro, que quer cortar as ervas
daninhas e corta o caule da flor. ... Não podemos esquecer, finalmente, o clássico exemplo do açúcar
e do arsênico, utilizado, há várias décadas, para explicar o conceito de crime impossível...! Esta é a
apenas a ponta do iceberg, e que retrata a dura face do idealismo-que permeia o discurso jurídico,
que pode ser retratada pela seguinte anedota envolvendo o filósofo HEGEL. Conta-se que, no auge
de uma abstração filosófica, o filósofo foi interrompido por um de seus alunos, que lhe perguntou:
"Mestre, tudo isto que o senhor está dizendo não tem absolutamente nada a ver com a realidade".
Ao que HEGEL teria respondido: "Pior para a realidade" ...
161 A melhor análise acerca da criminalidade que colocam em xeque os objetivos da República é feita
por LUCIANO FELDENS, em seu Tutela Penal dos Interesses Difusos e Crimes do Colarinho Branco. Porto
Alegre, Livraria do Advogado, 2002, leitura obrigatória para quem pretende des-velar o problema
da crise paradigmática que assalta o direito brasileiro.
11> Muitos criminólogos, especialmente os que fundamentam teoricamente suas pesquisas e estudos
no paradigma da reação social, poderão afirmar que o aumento da criminalidade tem ocorrido
exatamente em função da ampliação do sistema normativo repressor. Mas esta é uma afirmação de
difícil sustentação, e cuja validade é altamente questionável e duvidosa. Ela pode ser tomada como
verdadeira para as condutas que passaram, por exemplo, a ser consideradas como delituosas, após
a promulgação da Constituição Federal de 1988, por força de normas incriminadoras que surgiram
como instrumentos jurídicos de regulamentação infraconstitucional penal de dispositivos presentes
no texto da Magna Carta brasileira. Entretanto, a mesma afirmaçifo nifo pode ser alçada a uma condiçifo
equivalente de veracidade quando referente à criminalidade tradicional, à econômica, à tributária, e às violaçôes
criminais a uma série de outros bens que já eram anteriormente protegidos pela legislaçifo pena/7. Estes nichos
de condutas delinqüenciais já previstos normativamente como tal, e que tiveram um salto quantitativo
nos últimos anos, têm suas causas numa pluralidade de fatores que as mais diversas ciências que se
imbricam com o direito penal no estudo do crime têm buscado apontar. Alguns números da realidade
brasileira ilustram bem a atual situação de crise institucional vivida pelo Estado no combate à
criminalidade. É apavorante a quantidade de crimes violentos cometidos no Brasil. Segundo dados
do Ministério da Justiça que abrangem o triênio 1999-2001, obtidos jÜnto às Secretarias Estaduais de
Segurança Pública e ao IBGE, ocorreram neste período, somente nas capitais estaduais, 64.138 mortes
violentas (1999 - 21.189, 2000 - 21.360, 2001- 21.589), sendo agregados neste conjunto homicídios
dolosos, homicídios culposos de trânsito, outros homicídios culposos, lesões corporais seguidas de
morte, roubo seguido de morte, morte suspeita e resistência seguida de morte. Se forem considerados
somente os homicídios dolosos, os números são da mesma forma assombrosos. A mesma estatística
aponta um total de 40.604 delitos desta espécie praticados no período e nos mesmos locais antes
mencionados. Ver a respeito a pagina da web do Ministério da Justiça do Governo Federal brasileiro,
a saber: http: / /www.mj.gov .br /Senasp / senasp/ estat_homicidio_dolos.htm
m CUNHA, Paulo Ferreira da. A Constituição do Crime. Coimbra, Coimbra Editora, 1998, pp. 89 e 90.
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<>Sobre esses assuntos, remeto o leitor ao meu artigo "Da proibição de excesso (Übermassverbot) à
proibição de proteção deficiente (Untermassverbot): de como não há blindagem contra normas penais
inconstitucionais". ln: (Neo)Constitucionalismo. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto
Alegre, IHJ, 2004, pp. 243 e segs.
que tem gerado uma resistência contundente por setores da dogmática mais
tradicional, que ferozmente têm sustentado a necessidade de manutenção do
paradigma penal do Esclarecimento (n>_
Nesse sentido, a lição de GrsELE CmADINO, para quem
Parece não haver qualquer dúvida sobre a validade da tese garantista clássica
no processo penal: diante do excesso ou arbítrio do poder estatal, a lei coloca à
disposição do cidadão uma infinidade de wríts constitucionais, como o habeas
corpus e o mandado de segurança. As garantias substantivas no campo do direito
penal (proibição de analogia, a reserva legal etc.) recebem no processo penal a
sua materialização a partir dos procedimentos manejáveis contra abusos, venham
de onde vierem. São conquistas da modernidade, representadas pelos
revolucionários ventos iluministas.
Portanto, contra o poder do Estado, todas as garantias, enfim, aquilo que
denominamos de garantismo negativo. A questão que aqui que se coloca,
entretanto, relaciona-se diretamente com a proteção de direitos fundamentais
de terceiros em face de atos abusivos dos agentes estatais, notadamente os juízes
e tribunais na hipótese de concessão de liberdade ou outro direito à revelia do
sistema processual-constitucional.
Pois bem. O Superior Tribunal de Justiça e parte considerável dos tribunais
da República vêm sedimentando entendimento de que o Ministério Público não
é parte legítima para interpor mandado de segurança em matéria criminal. Assim,
por exemplo, na hipótese de concessão (indevida) de liberdade provisória ou
progressão de regime, para ficar nestes dois exemplos, o Ministério Público é
parte ilegítima para buscar efeito suspensivo do recurso interposto. Neste caso,
o ato judicial não poderia ser cassado em instância superior através de medidas
acautelatórias em sede de segundo grau de jurisdição.
Assim, a questão que se coloca é: decisões concessivas de liberdade provisória
ou concessivas de progressão de regime carcerário, em flagrante contrariedade
à lei processual-penal, ficam imunes (blindadas) à remédios de urgência para
corrigi-las?
Colocando o problema de uma forma mais objetiva: como resolver um caso
em que decisão judicial, <14> de forma indevida e ilegal, restabeleceu, contra legem,
115'Com relação ao "caso Melara", deixo de opinar acerca do mérito, pela simples razão de que, para
mim, o dispositivo do art. 112, com a nova redação que lhe deu a Lei n.º 10.792/03, é inconstitucional.
Ou seja, conforme deixei claro nos autos do incidente de inconstitucionalidade que suscitei junto à
s•. Câmara Criminal do TTRS - Agravo n. 0 70.008.229.775 - não era permitido ao legislador tomar
dispensáveis os laudos técnicos. Nesse exato sentido é que fiz representação ao Procurador-Geral
da República, para que ingresse com AD!n junto ao STF. Portanto, a discussão do "caso Melara"
teria outro desiderato, se o Juiz-ou o Tribunal- tivessem, em sede de controle difuso- considerado
como inconstitucional a alteração legislativa, com o que voltaria viger ao art. 112, na sua redação
anterior. Lamentavelmente, preferiu-se discutir o problema da nova redação do art. 112 da LEP nos
limites da infra-constitucionalidade ... !
(l6l Ver, nesse sentido, HC 37856 - Superior Tribunal de Justiça, Rei. Min. Laurita Vaz. Com
informações de: http:/ /www.stj.gov.br /webstj/Noticias/ detalhes_noticias.asp?seq_noticia=l 1725
m, Fora do âmbito do STF, há decisões no sentido da concessão, como o acórdão n. 70005065495- TT /
RS, verbis: Mandado de segurança. Utilização em matéria criminal. Possibilidade. Inexistência
de periculum in mora na decisão judicial. Não existem impedimentos na utilização do mandado de
segurança em matéria criminal, desde que demonstrando o 'jumus boni juris" e o "periculum in
mora", bem como a falta de recurso especifico ou ausência de efeito suspensivo aquele manejado
pela parte. Desta forma, é possível acolher esta ação, quando impetrado pelo interessado, requerendo
a outorga do efeito mencionado (suspensivo) a recurso em sentido estrito ou agravo de execução.
No caso em concreto, não se concede a segurança, não há nenhum perigo à sociedade no deferimento,
por ora, do livramento condicional ao apenado. Tanto o laudo do EOC, como a administração
penitenciária são favoráveis à concessão do beneficio, mostrando que o condenado está em condições
de retornar à sociedade. Mandado conhecido, denegando-se a segu rança. Unânime. (Mandado de
Segurança n. 0 70005065495, Sexta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sylvio Baptista
Neto, julgado em 24/10/2002).
(tB) Afasto, de pronto, as críticas no sentido de que não há, em sede de direito penal, periculum in mora
a favor da sociedade. Não fosse por outras razões apontadas no presente texto, bastaria que se
examinasse o art. 5°. caput da Constituição do Brasil, que alça a segurança (da sociedade, portanto,
das pessoas) ao status de direito fundamental. Ora, parece evidente a possibilidade da ocorrência
de periculum in mora pro societate na hipótese, v.g., de evidente erro judicial na soltura de determinado
indivíduo, considerado perigoso.
<
201Cfe. BARATTA, Alessandro. "La política Criminal y el Derecho Penal de la Constitución: Nuevas
Reflexiones sobre el modelo integrado de las Ciencias Penales". Revista de la Faculdad de Derecho de la
Universidad de Granada, n. 2, 1999, p. 110.
tzu Sobre o assunto, ver também STRECK e FELDEN, A legitimidade da Funç4o Investigatória do Ministério
Püblico, op. cit.
<m BAPTJSTA MACHADO, João. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador. Coimbra, Coimbra Editora,
1998.
23
< i Cfe. Rox1N, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3ª. ed., Lisboa, Coleção Veja Universitária,
1998, pp. 76 e segs.
1241 Cfe. SARLET, Ingo. "Constituição e Proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais
entre proibição de excesso e de insuficiência". ln: Revista de Estudos Criminais n. 12, ano 3. Sapucaia
do Sul, Editora Nota Dez, 2003, pp. 86 e segs.
c25i Diga-se de passagem que a própria Constituição não estabelece direitos fundamentais absolutos.
Há sempre a necessidade de que se realize o sopesamento diante da colisão de direitos. A liberdade
individual deve estar sujeita a condições mínimas, razoáveis, de modo que o exercício deste direito
não colida com o interesse público. Nesse passo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos
estatui: "Artigo 29: §1. Toda pessoa tem deveres para com a comunidade, em que o livre e pleno
desenvolvimento de sua personalidade é possível. §2. No exercfcio de seus direitos e liberdades, toda
pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas por lei, exclusivamente com o fim de assegurar o
devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências ... da
ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática."
'"l Cfe. CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da. Constituição e Crime. Porto, Universidade Católica
do Porto, 1995, pp. 273 e segs.
11
" Idem, ibidem.
wi Esta outra "face" do princípio da proporcionalidade adveio da jurisprudência do Tribunal
Constitucional Alemão, decidindo sobre a obrigatoriedade de conferir-se proteção jurídico-penal à
vida intra-uterina sob determinados pressupostos, cabendo destaque para a seguinte passagem da
sentença: Nos casos extremos, quando a proteção determinada pela Constitu ição não se consiga de
nenhuma outra maneira, o legislador pode estar obrigado a recorrer ao direito penal para proteger
a vida em desenvolvimento. BverfG, Urteil v. 25.02.1975-1 BVF 1-6/74.
1291 Cfe. CUNHA, op. cit., p. 273.
30
< > No sentido desse viés de proteção, consultar STRECK, Lenio Luiz e FELDENS, Luciano. Crime e
Constituição - a legitimidade da função investigatória do Ministério Público. Rio de Janeiro, Forense,
2003.
De tudo o que foi dito, não tenho receio em afirmar que, diante de uma decisão
judicial que venha, de forma indevida, conceder liberdade a determinado
indivíduo contra disposição processual-penal (port~nto, quando presentes
im Cfe. Puuoo, Carlos Berna!. EI principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales. Madrid:
Centro de Estudios Políticos e Constitucionales, 2002, pp. 798 e segs.
1321 Quando refiro a dicotomia (i)legal-(in)constitucional, faço-o tão-somente para reforçar a
argumentação, uma vez que, à toda evidência, uma lei só é válida se for constitucional; caso contrário,
lei não é.
É neste contexto que se inserem as presentes reflexões. E para não haver mal-
entendidos, faço minhas as duas advertências enfáticas de OLIVEIRA (ibidem) sobre o
assunto: a primeira é a de que, com isto, não estou aderindo ao conhecido e, no
contexto em que é dito, estúpido slogan "e os direitos humanos da vítima" -com
o que os inimigos dos direitos humanos procuram desacreditar a dura luta a seu
favor num país como o Brasil. Já a segunda remete ao fato de que de forma alguma
estou considerando com a mesma medida as violações de direitos humanos
perpetrados por regimes ditatoriais e as violências praticadas por bandidos -
mesmo se ambos são celerados.
e·, LENJO Luiz STRECK é Procurador de Justiça-RS, Doutor e Pós-Doutor em Direito, Professor dos
Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da UNISINOS-RS; Membro Catedrático da Academia
Brasileira de Direito Constitucional; Presidente de Honra do Instituto de Hermenêutica Jurfdica;
Professor convidado da UNESA-RJ e nas Universidades de Valladolid-ES e Universidade de Lisboa-
PT. Autor, entre outras obras, de Jurisdição Constitucional e Hermenêutica - Uma Nova Crítica do Direito
(2ª. ed. - Ed. Forense); Hermenêutica Jurídica E(m) Crise (5ª. ed., - Livraria do Advogado, RS; Ciência
Política e Teoria Geral do Estado (4ª. ed., Livraria do Advogado, RS); Tribunal do Júri- Símbolos e Rituais
(4ª. ed., - Livraria do Advogado, RS) .