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Disciplina: Constituição, Identidade e Luta por Reconhecimento

FICHAMENTO DO SEMINÁRIO 03 (manhã)

Identidade, Estado e Constituição

Texto base:

MOREIRA, Nelson Camatta. Fundamentos de uma Teoria da Constituição Dirigente.


Conceito Editorial. 2010

CAP. IV FUNDAMENTOS FILOSÓFICO-POLÍTICOS PARA A EDIFICAÇÃO


DA “TCDAPMT”: ESTADO, POLÍTICA DO RECONHECIMENTO E
SENTIMENTO CONSTITUCIONAL

A preocupação com as questões sociais, associadas à preocupação com a liberdade e


com os direitos individuais do cidadão (preâmbulo da Constituição 1988), torna-se a
tônica do dirigismo constitucional (...).

Nesse processo de efetiva atuação de um Estado Democrático de Direito (...). O que se


espera do Estado contemporâneo brasileiro é, num primeiro momento, a superação da
chamada “tutela paternalista” (...).

É importante ressaltar aqui que, nesta luta hercúlea, o Estado, como lócus de resistência
humanística – como guardião da “certeza” e da “segurança” jurídicas – na complexa
contemporaneidade (pós-)moderna, conta com o poderoso reforço simbólico dos
direitos humanos fundamentais.

(...) a distinção entre as expressões “direitos fundamentais” e “direitos humanos”, que


pode ser apresentada a partir da noção de concreção positiva, uma vez que o termo
“direitos humanos” se revelou conceito mais amplo e impreciso que a noção de “direitos
fundamentais”, de tal maneira que estes possuem contornos mais precisos e restritos, na
medida em que podem ser reconhecidos como o conjunto de direitos e liberdades
institucionalmente reconhecidos e garantidos pelo direito positivo de determinado
Estado. Os direitos fundamentais, portanto, nascem e se desenvolve com as
Constituições.

Os direitos fundamentais entendidos, em seu “nascedouro”, como último fundamento de


existência, como verdadeiras conquistas em face do Estado, na contemporaneidade,
paradoxalmente, assumem o papel de último fundamento de existência do Estado.
Uma perspectiva possível, portanto – para se enfocar a importância dos direitos
fundamentais, não só para os indivíduos, mas para a manutenção do próprio Estado -,
está intimamente ligada ao reconhecimento da diferença, ou seja, a partir do sentido
ambivalente dos direitos fundamentais o Estado consegue ainda “sobreviver”, ligando-
se ao futuro. E o futuro, “por ser desconhecido, faz medo. É, pois, uma necessidade
imperiosa para qualquer sociedade, pelo menos quando forja alguma ideia do amanhã,
dar estatuto e tratamento a esse medo coletivo”.

E para que o Estado se mantenha, convivendo com os riscos contemporâneos, é de suma


importância a presença do discurso mediador dos direitos fundamentais.

O raciocínio moderno, portanto, da soberania que opunha Estado e sociedade civil, não
pode ser desenvolvido mais hegemonicamente, principalmente em relação aos direitos
humanos, pois, diante da complexidade que envolve o aparelho de Estado, este se
tornou quase importante para garantir as políticas internas de implementação e garantia
dos direitos fundamentais, bem como insuficiente para a defesa dos direitos humanos
em face do choque provocado pela globalização neoliberal.

(...) teoria lefortiana de que se deve constantemente reinventar e atualizar a democracia,


por se tratar “da criação ininterrupta de direitos, da subversão contínua de estabelecidos,
da reinstituição permanente do social e do político” (...).

(...) não basta que novos direitos sejam reclamados em face de transformações sociais, é
preciso também buscar a abertura de espaços para as discussões a partir de variados
pontos de vista, sobretudo com base em novos paradigmas ou em paradigmas
revisitados à luz das necessidades, bem como considerando as dificuldades sociais
contemporâneas.

(...) é válido frisar o que a doutrina constitucional – no esforço de oferecer um


arcabouço teórico-prático para a construção da cidadania, com condições materiais
mínimas para a existência digna (...) – tem entendido por princípio da proibição (ou
vedação) do retrocesso social em matéria de direitos fundamentais ou por princípio da
não reversibilidade dos direitos fundamentais sociais.

Por essa teoria (da proibição de retrocesso social), Cristina Queiroz entende que, de uma
sorte, “uma vez consagrada legalmente ‘as prestações sociais’, o legislador não pode
depois eliminá-las, sem alternativas ou compensações”.

Diante disso, verifica-se a conexão da dimensão social dos direitos fundamentais com a
temática aqui desenvolvida, pois a discussão em torno do conteúdo e da aplicação
desses direitos envolvem, necessariamente, a atuação do Estado e, consequentemente, a
justificação da necessidade de “manifestação concreta” de um Constitucionalismo
dirigente em prol da coletividade (...).
Em contraposição ao discurso defensivo da irreversibilidade dos direitos fundamentais
sociais, não se pode deixar de se referir ao argumento da reserva do possível, que, em
síntese, pode ser compreendida como a impossibilidade de prestação ou a ausência de
recursos materiais necessários ao cumprimento do dever prestacional previsto pelo texto
constitucional que torna o cidadão “credor do Estado” de um mínimo social de bens
constitucionalmente assegurados (...).

(...) o que se pode concluir de plano é que a crise provocada pelo choque entre o
discurso garantidor dos direitos sociais – que precisam ser efetivados para
proporcionarem ao menos as condições mínimas de inserção e reconhecimento sociais –
e o discurso limitador da reserva do impossível acaba desaguando, em última análise, na
crise do Estado social (...).

(...) a noção básica de soberania – “entendida originalmente como situação eficiente de


uma força material empenhada em construir e garantir sua supremacia e unidade na
esfera política (...).

(...) o que, seguramente, se pode afirmar é que o modelo tradicional apresentado a partir
dos séculos XV-XVI sofreu impactos altamente contundentes e deformadores em seu
percurso histórico, em especial, a partir da segunda metade do século XX.

Em outras palavras, resume-se a crise como um fenômeno que não pode ser ignorado,
mas que, ao mesmo tempo, não faz desaparecer o poder, e sim uma determinada forma
de organização do poder, que teve seu ponto de força no conceito político-jurídico de
Soberania.

Em vista disso, é possível afirmar que “a maior crise desde a Grande Depressão da
década de 30 ocorreu na administração republicana de George W. Bush. E as respostas
intervencionistas também.

Nesse sentido, o atual presidente francês Nicolas Sarkozy enfatiza: “A ideia de um


mercado todo poderoso operando sem regras e sem nenhuma intervenção política é uma
loucura. Os tempos de autorregulação do mercado, do laissez faire, chegaram ao fim.
Acabou o mercado que esta sempre certo”.

(...) o Estado social é necessário. Seja (ainda) no centro, seja na periferia do capitalismo
(pós)moderno. Nesses meses que sucederam os abalos causados pela crise de origem
norte-americana com seus desdobramentos em escala mundial em diferentes ambientes
de discussão, o consenso, quase geral, gravita em torno da necessidade de atuação
estatal.
(...) o Estado, mais vivo do que nunca, assume, neste final de primeira década deste
século, novos desafios, entre eles, o principal está justamente no paradoxal diálogo com
o então avassalador, e ora decadente, neoliberalismo, Nesse contexto é que se convoca
novamente a discussão sobre a possibilidade ainda de efetivação do texto constitucional.

O princípio da dignidade da pessoa humana pode ser considerado como o ponto


convergente de todo o ordenamento constitucional em relação à defesa e concretização
dos direitos fundamentais, em especial, os sociais (...).

(...) ineditamente na história do constitucionalismo brasileiro, a dignidade humana foi


reconhecida como fundamento do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, III, da
Constituição de 1988), sendo ainda citada em vários outros capítulos do texto
constitucional.

Sintetizando, com castro, entende-se que o Estado Constitucional Democrático da


atualidade é um Estado de abertura constitucional radicado no princípio do ser humano.

(...) ao afirmar, no texto constitucional, a dignidade humana, o constituinte buscou


colocar o ser humano como credor de “bens” necessários para que ele alcance uma vida
digna como pessoa, isto é, como ser concreto, individual, racional e social. A busca
desses “bens” estabelece deveres de justiça para o Estado, para a sociedade e para a
própria pessoa.

Assim, esses recursos necessários à vida digna, quando considerados na perspectiva da


comunidade, são chamados de valores. Os valores integram o “bem comum”, o
conjunto de condições que permitem a todos os membros da comunidade alcançarem a
vida digna. Os valores formam o conteúdo dos deveres da justiça social. Assim, o
desenvolvimento, enquanto valor, deve orientar a atividade econômica pública e
privada.

Contudo, a precariedade do cenário social de civilizações periféricas – como a


brasileira, marcadas por um quadro geral de “cidadanias precárias” – ainda sugere
intervenções estatais básicas, nos moldes previstos pelos Constitucionalismo dirigente,
até porque a efetivação de direitos sociais passa, primordialmente, pelo Estado que,
paradoxalmente, conforme já dito, ainda é soberano.

(...) no Brasil há inúmeros integrantes do povo vítimas de injustiças socioeconômicas


(exploração, exclusão e/ou privação de condições materiais mínimas de vida) e,
concomitantemente ou não, vítimas de injustiças culturais.
Então, daqui em diante, adiciona-se, de forma interativa, ao sofrimento político a dor da
subintegração jurídica.
“A subintegração significa a dependência de critérios do sistema (político, econômico,
jurídico etc) sem acesso às suas prestações.

Por outro lado, cumpre registrar, a sobreintegração – privilégio desfrutado pelos


“sobrecidadãos”, (...) – “implica acesso aos benefícios do sistema sem dependência de
suas regras e critérios”.

O fetichismo da lei no Brasil é unilateralista, funciona como mecanismo de


discriminação social. Dirige-se, normalmente, aos subintegrados. A interpretação
legalista é normalmente aplicada àqueles que não se encontram em condições de exercer
os seus direitos, mesmo que estes sejam “garantidos” legal e constitucionalmente. Trata-
se de falta de acesso ao direito e, por conseguinte, de “exclusão social”,

Os indivíduos estão subordinados rigorosamente às prescrições coativas, mas não têm


acesso aos direitos. A rigidez legislativa, parcial e discriminatória, contraria a própria
legalidade, que implica a generalização de conteúdos e procedimentos da ordem jurídica
em termos isonômicos.

(...) com inspiração em Neves, aos e referir à noção de “concretização


desconstitucionalizante” ou “desconstitucionalização fática”, a concretização
normativo- jurídica do texto constitucional é bloqueada de modo permanente e
generalizado por fatores econômico-políticos, não havendo nenhuma relação consistente
entre o texto e a concretização. Como resultado, a Constituição não se torna uma
referência válida para os cidadãos, em geral, e para os agentes públicos, em particular,
cuja atividade se desenvolve apesar dela e até contra seus dispositivos.

À Constituição, então, é atribuída a “responsabilidade pelos graves problemas sociais e


políticos (...) como se eles pudessem ser solucionados mediante as respectivas emendas
ou revisões constitucionais.

Assim, no campo do direito, como tentativa de “controle” às investidas do Estado que


age de maneira totalmente tendenciosa - direcionada privilegiadamente para “eterna
busca do equilíbrio financeiro” e para “tranquilização do mercado” -, a hermenêutica, de
cariz filosófico, aplicada à jurisdição constitucional, procura ofertar as condições de
possibilidade para que o jurista dispa-se de sua armadura positivista e atue em prol da
efetivação dos direitos sociais.

(...) é preciso também tentar resgatar ou mesmo implementar a tradição de um


sentimento de pertencimento do cidadão à Constituição, o ser-no-mundo, como um ser-
na-constituição. A Constituição como um existencial.
O termo sentimento constitucional, assim como o termo consciência constitucional,
conduz para o seguinte objetivo: a integração da cidadania na ratio (razão de ser) e no
telos (finalidade) da ordem constitucional.

No caso do Brasil, além da noção da sua força normativa – legado da tradição


constitucional europeia do século XX (pós-Segunda Guerra) -, a compreensão da
Constituição como dirigente, programática e compromissária é fundamental para se
atribuir sentido à relação Constituição-Estado-Sociedade.

O texto constitucional estabelece a linguagem comum para a construção do


reconhecimento intersubjetivo. Ele delimita o âmbito da palavra e da ação (Arendt).

De acordo com Canotilho, a “consciência humana” deve ser colocada no centro da


Teoria da Constituição. Com isso, o reconhecimento intersubjetivo se expressa como
pressuposto indispensável às relações sociais, políticas e jurídicas. A dignidade
intersubjetivamente compartilhada, no sentido tayloriano de “levar o outro em
consideração”, representa uma dimensão simbólica insubstituível, sem a qual padecem
de inefetividade qualquer regra jurídica que busca a assegurar a dignidade humana.

E a imagem de inferioridade interiorizada na identidade de enorme parcela de


indivíduos brasileiros contribuiu para formação (e constante renovação) de um imenso
contingente de subcidadãos.

No Brasil, há dificuldades de se implementar o discurso de Constituição Dirigente


compromissária de 1988 porque a cidadania brasileira ainda está em fase de formação.

(...) como instituição guardiã das promessas constitucionais, é indubitável que a atuação
da Jurisdição Constitucional seja extremamente salutar na luta pela concretização das
promessas da modernidade descumpridas no Brasil.

Na verdade, quando se fala em sentimento constitucional, fala-se diretamente do


sentimento de pertencimento do povo, não de uma minoria (privilegiada) do povo, mas
de todo o povo, à Constituição entendida não como uma carta utópica, mas como um
plano de atuação capaz de conduzir permanentemente os rumos de um Estado brasileiro
que ainda precisa (e muito!) assumir-se como social.

Na verdade, ao se invocar Constituição como fundamento (sem fundo) numa


perspectiva de uma Teoria Adequada a Países de Modernidade Tardia, deve-se
considerar o povo.
(...) o sentimento constitucional também pode contribuir como um alento para o
sofrimento político. Pode funcionar, justamente com o reconhecimento político, como
uma espécie de cura para humilhação social.

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