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17/04/13 Envio | Revista dos Tribunais

OS DIREITOS FUNDAMENTAIS - SUA DIMENSÃO


INDIVIDUAL E SOCIAL

OS DIREITOS FUNDAMENTAIS - SUA DIMENSÃO INDIVIDUAL E SOCIAL


Revista de Direito Constitucional e Internacional | vol. 1 | p. 198 | Out / 1992
Doutrinas Essenciais de Direitos Humanos | vol. 1 | p. 507 | Ago / 2011
Doutrinas Essenciais de Direito do Trabalho e da Seguridade Social | vol. 1 | p. 343 | Set /
2012DTR\1992\285
Jorge Miranda
Professor catedrático da Universidade de Lisboa c da Universidade Católica Portuguesa

Área do Direito: Geral

Sumário:

1.O desenvolvimento contemporâneo dos direitos fundamentais - 2.A distinção conceitual entre
direitos de liberdade e direitos sociais - 3.A estrutura dos direitos - 4.A contraposição
constitucional portuguesa entre direitos, liberdades e garantias e direitos econômicos, sociais e
culturais

1. O desenvolvimento contemporâneo dos direitos fundamentais


I - Tal como o conceito de Constituição, o conceito de direitos fundamentais surge indissociável
da idéia de Direito liberal. Daí que se carregue das duas características identificadoras da ordem
liberal: a postura individualista abstrata, de (no dizer de Radbruch) um "indivíduo sem
individualidade"; e o primado da liberdade, da segurança e da propriedade, complementadas pela
resistência à opressão.
Apesar de todos os direitos serem ou deverem ser (por coerência) direitos de todos, alguns
(máxime o sufrágio) são, no século XIX, denegados aos cidadãos que não possuam determinados
requisitos econômicos: outros ( v.g., a propriedade) aproveitam sobretudo aos que pertençam a
certa classe; e outros ainda (a associação, em particular a associação sindical) não é sem
dificuldade que são alcançados.
Contrapostos aos direitos de liberdade são nesse século e, sobretudo, no século XX reivindicados,
e sucessivamente obtidos, direitos econômicos, sociais e culturais: direitos econômicos como
garantia da dignidade do trabalho, direitos sociais como garantia de segurança na necessidade,
direitos culturais como exigência de acesso à educação e à cultura e, em último termo, de
transformação da condição operária.
II - A passagem para o Estado social irá reduzir ou mesmo eliminar o cunho classista que, por
razões diferentes, ostentavam antes uma e outra categoria de direitos. A transição do governo
representativo clássico para a democracia representativa irá reforçar ou introduzir uma
componente democrática, que tenderá a fazer da liberdade tanto uma liberdade-autonomia como
uma liberdade-participação (fechando-se, assim, o ciclo correspondente à célebre contraposição
de Benjamin Constant).
Por um lado, não só os direitos políticos são paulatinamente estendidos até se chegar ao sufrágio
universal como os direitos econômicos, sociais e culturais, ou a maior parte deles, vêm a
interessar setores crescentes da sociedade. Por outro lado, o modo como se adquirem, em regime
político pluralista, alguns dos direitos econômicos, sociais e culturais a partir do exercício da
liberdade sindical, da formação de partidos, da greve e do sufrágio mostra que os direitos de
liberdade se não esgotam no mero jogo de classes dominantes.
III - A evolução e as vicissitudes dos direitos fundamentais, seja numa linha de alargamento e
aprofundamento, seja numa linha de retração ou de obnubilação, acompanham o processo
histórico, as lutas sociais e os contrastes de regimes políticos - bem como o progresso científico,
técnico e econômico (que permite satisfazer necessidades cada vez maiores de populações cada
vez mais urbanizadas).
Do Estado liberal ao Estado social de Direito o desenvolvimento dos direitos fundamentais faz-se
no interior das instituições representativas e procurando, de maneiras bastante variadas, a
harmonização entre direitos de liberdade e direitos econômicos, sociais e culturais. Já não assim
no Estado soviético, no Estado fascista e autoritário de direita e em muitos dos regimes do
Terceiro Mundo. Ainda que com formulações semelhantes, são (para não ir mais longe) bem
diversos esses direitos na Constituição de Weimar e na Carta del Lavara, na Declaração de

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Direitos do Povo Trabalhador e Explorado e em qualquer das recentes Constituições africanas.


Seja como for, independentemente das ideologias e das terminologias, a bifurcação assim aberta
dos direitos fundamentais encontra-se, duma maneira ou doutra, em quase todas as Constituições
feitas após a primeira guerra mundial ou, pelo menos, na legislação ordinária de quase todos os
países; e, a nível internacional, está patente nos dois Pactos de 1966 - Pacto de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais e Pacto de Direitos Civis e Políticos - ou na Convenção Européia
dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e na Carta Social Européia, bem como na
Convenção Interamericana de Direitos do Homem de 1969.
2. A distinção conceitual entre direitos de liberdade e direitos sociais
I - A doutrina vê a distinção em termos muito diferentes, consoantes as premissas teóricas e o
enquadramento político-constitucional de que parte.
Não faltam Autores que somente tomam como direitos fundamentais os direitos de liberdades e
que relegam os direitos sociais para a zona das imposições dirigidas ao legislador ou para a das
garantias institucionais. Assim como há aqueles que não admitem verdadeiras liberdades à margem
da consecução dos fatores de exercício só propiciados pela realização dos direitos sociais. Na
ótica do Estado social de Direito o dualismo é imposto pela experiência: sejam quais forem as
interpretações ou subsunções conceituais, não pode negar-se a uns e outros direitos a natureza
de direitos fundamentais.
Por outro lado, enquanto que a opinião tradicional tendia a estabelecer separação rígida na base
do contraste direitos negativos - direitos positivos, os estudos das últimas décadas apontam para
uma atenuação destas características e para uma intercomunicação das duas categorias.
II - Tudo está na tensão dialética e na harmonização à procura de liberdade e igualdade.
Tanto na concepção liberal como na concepção social, deparam-se a liberdade e a igualdade;
porém, na primeira, igualdade é a titularidade dos direitos e demanda liberdade para todos, ao
passo que, na segunda, a igualdade é a concreta igualdade de agir e a liberdade a própria
igualdade puxada para ação. Na concepção liberal, a liberdade de cada um tem como limite a
liberdade dos outros; na concepção social, esse limite prende-se com a igualdade material e
situada. Os direitos constitucionais de índole individualista podem resumir-se num direito geral de
liberdade, os direitos de índole social num direito geral à igualdade.
Sabemos que esta igualdade material não se oferece, cria-se; não se propõe, efetiva-se; não é
um princípio, mas uma conseqüência. O seu sujeito não a traz como qualidade inata que a
Constituição tenha de confirmar e que requeira uma atitude de mero respeito; ele recebe-a
através de uma série de prestações, porquanto nem é inerente às pessoas, nem preexistente ao
Estado. Onde bastaria que o cidadão exercesse ou pudesse exercer as próprias faculdades
jurídicas, carece-se doravante de atos públicos em autônoma discricionariedade. Onde preexistiam
direitos, imprescindíveis, descobrem-se condições externas que se modificam, se removem ou se
adquirem. Assim, o conteúdo do direito à igualdade consiste sempre num comportamento positivo,
num facere ou num dare.
Autores há que têm nomeado no ideal da Constituição de "Estado burguês de Direito" uma
disposição negativa e crítica frente ao poder do Estado. A nota não fere, se se aplica ao momento
liberal do século passado, em que o mínimo de poder do Estado teria de reverter no máximo de
direitos individuais. Não pode, no entanto, reputar-se ajustada ao momento posterior, em que
avulta a intenção de proporcionar condições para o autêntico gozo dos direitos instituídos, em que
a sociedade é passível de ser conformada por obra do Estado em que se aguarda que este
providencie, promova, trabalhe.
Para o Estado social de Direito, a liberdade possível - e, portanto, necessária - do presente não
pode ser sacrificada em troca de quaisquer metas, por justas que sejam, a alcançar no futuro. Há
que criar condições de liberdade, mas a sua criação e a sua difusão somente têm sentido em
regime de liberdade: porque a liberdade (tal como a igualdade) é indivisível, a diminuição da
liberdade - civil ou política - de alguns (ainda quando socialmente minoritários), para outros (ainda
quando socialmente maioritários) acederem a novos direitos, redundaria em redução de liberdade
de todos.
O resultado almejado há-de ser uma liberdade igual para todos, construída através da correção
das desigualdades e não através de uma igualdade sem liberdade; sujeita às balizas materiais e
processuais da Constituição; e suscetível, em sistema político pluralista, das modulações que
derivem de vontade popular expressa pelo voto.
III - Nos direitos de liberdade parte-se da idéia de que as pessoas, só por o serem, ou por terem
certas qualidades ou por estarem em certas situações ou inseridas em certos grupos ou formações
sociais, exigem respeito e proteção por parte do Estado e dos demais poderes. Nos direitos
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sociais, parte-se da verificação da existência de desigualdades e de situações de necessidade -


umas derivadas das condições físicas e mentais das próprias pessoas, outras derivadas de
condicionalismos exógenos (econômicos, sociais, geográficos, etc.) - e da vontade de as vencer
para estabelecer igualdade efetiva e solidária entre todos os membros da mesma comunidade
política.
A existência das pessoas é afetada tanto por uns como por outros direitos. Mas em planos
diversos: com os direitos de liberdade é a sua esfera de autodeterminação e expansão que fica
assegurada, com os direitos sociais é o desenvolvimento de todas as suas potencialidades que se
pretende alcançar; com os primeiros, é a vida imediata que se defende do arbítrio do poder, com
os segundos é a esperança numa vida melhor que se afirma; com uns, é a liberdade atual que se
garante, com os outros é a liberdade futura que se começa a realizar.
Os direitos de liberdade são direitos de libertação do poder e, simultaneamente, direitos à
proteção do poder contra outros poderes (como se vê, quanto mais não seja, nas garantias de
intervenção do juiz no domínio dos atentados à liberdade física por autoridades admininistrativas).
Os direitos sociais são direitos de libertação da necessidade e, ao mesmo tempo, direitos de
promoção. O conteúdo irredutível daqueles é a limitação jurídica do poder, o destes é a
organização da solidariedade.
Liberdade e libertação não se separam, pois; entrecruzam-se e completam-se; a unidade da
pessoa não pode ser truncada por causa de direitos destinados a servi-la e também a unidade do
sistema jurídico impõe a constante correspondência dos direitos da mesma pessoa e de todas as
pessoas. Eis o que não custa, outrossim, confirmar através de uma breve análise estrutural das
duas categorias.
3. A estrutura dos direitos
I - Esclarecendo ou sublinhando o que temos vindo a dizer:
a) Direitos de liberdade não são o mesmo que direitos naturais e direitos sociais o mesmo que
direitos civis ou direitos outorgados pelo Estado. Não está aqui em causa senão uma análise de
situações jurídicas ativas de Direito positivo; mas, se assim não fosse, por certo seria incorreto
qualificar, por exemplo, de direitos naturais o direito de antena ou o direito de ação popular e
muito difícil não qualificar como tais o direito ao trabalho ou direito à segurança social.
b) Direitos de liberdade tampouco são o mesmo que direitos individuais e diretos sociais o mesmo
que direitos institucionais ou coletivos. Há direitos fundamentais institucionais (ou de instituições,
comunidades ou grupos presentes na sociedade) entre os quais se contam algumas liberdades (
v.g., a das confissões religiosas e a das associações) e, de resto, os direitos sociais apresentam-
se, de ordinário, como de titularidade individual (poucos direitos serão mais individuais que o
direito ao trabalho ou o direito ao ensino).
c) Os direitos de liberdade não se determinam por exclusão de parte por pertencerem ao ser
humano enquanto tal, como pessoa ou em aspectos incindíveis da sua personalidade ou pelo
menos enquanto cidadão, e os direitos econômicos, sociais e culturais não são direitos
fundamentais especiais, tirando a sua especialidade do bem tutelado e de uma forma de tutela
eminentemente social. Tão gerais - ou comuns - são os primeiros como os segundos direitos. Os
direitos sociais podem dizer respeito, hoje, a todas as pessoas e atingir uma pluralidade de bens. E
tão dependentes de formas organizativas podem ser alguns dos direitos de liberdade (máxime os
respeitantes ao processo penal) como os direitos sociais.
d) Nem sequer seria legítimo reconduzir os direitos de liberdade a direitos absolutos e os direitos
sociais a direitos relativos - sendo absolutos ou relativos os direitos, por transplantação de
noções de Carl Schmitt, consoante dispensassem ou não a interposição e a garantia da lei. Se a
intervenção legislativa parece sempre necessária no tocante aos direitos sociais, também há
direitos de liberdade cuja concretização não se faz, ou não se faz plenamente, sem lei, como as
garantias dos cidadãos perante a informática ou a objeção ou escusa de consciência frente ao
serviço militar; há direitos, liberdades e garantias, que constam de normas constitucionais não
exeqüíveis por si mesmas.
II - e) Os direitos de liberdade englobam, na verdade, direitos de diferente conteúdo, de variável
estrutura e passíveis de diversa concretização ou realização. Englobam liberdades, direitos
políticos, direitos irredutíveis a liberdades e a direitos políticos, garantias. Nem por isso, todavia,
deixa de se justificar a sua aglutinação - por constituírem (ou poderem constituir) um sistema
unitário à volta da idéia de liberdade e de limitação do poder (antes de mais, do poder do Estado
em abstrato e do poder dos governantes, sejam quais forem, em concreto, o que se aplica,
inclusive, aos direitos políticos) e por se traduzirem (ou poderem traduzir) num regime jurídico
comum.

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f) Fica isto também reforçado por, em muitos, senão em quase todos os direitos, liberdades e
garantias de que fala a Constituição portuguesa (p. ex.), ser possível ou juridicamente correto
destrinçar o que é direito, o que é liberdade e o que é garantia - como sucede, por exemplo, com
a reserva de intimidade da vida privada (art. 26.º) o direito de antena (art. 4.º) o direito à greve
(art. 59.º) - embora prevaleça, aqui ou ali, o elemento de direito, o elemento de liberdade ou o
elemento de garantia.
Assim, no direito à vida (art. 24.º) parece sobressair o elemento direito; contudo, igualmente aí
aparece o elemento de garantia que se traduz, nomeadamente, na proteção penal de toda a vida
humana. Relativamente à liberdade de imprensa (art. 38.º) é o elemento liberdade que está mais
presente, mas encontra-se também o elemento garantia. O direito de resistência (art. 21.º) é
fundamentalmente uma garantia, é algo de instrumental relativamente à defesa de outros direitos,
mas também é um direito (quando outros instrumentos de proteção falhem). O direito à greve é
simultaneamente um direito, uma liberdade e uma garantia; começou por ser apenas algo de lícito,
depois uma liberdade e hoje é um verdadeiro direito stricto sensu. Os direitos políticos (art. 48.º e
ss.), se, por um lado, têm um sentido de direitos, são também a garantia dos demais direitos, só
têm sentido quando exercidos em liberdade (máxime o sufrágio) e alguns são mesmo configuráveis
como liberdades (v.g., a liberdade de associação e formação de partidos políticos).
g) Por virtude dessa heterogeneidade (ou heterogeneidade aparente) de conteúdo não seria
possível, desde logo, afirmar que a contrapartida de cada direito de liberdade seja (ou seja
sempre) uma atitude de abstenção por parte do Estado - tal não poderia valer, no mínimo, para os
direitos políticos, para as garantias de processo penal e para os direitos previstos em normas não
exeqüíveis por si mesmas.
h) Nem sequer perante as liberdades a atitude do Estado vem a ser de simples abstenção.
Postulam-se condições de segurança em que possam ser exercidas, uma ordem objetiva a criar ou
a preservar (chama-se-lhe ordem pública, ordem constitucional ou legalidade democrática). O
Estado é civilmente responsável pelas violações de direitos, liberdades e garantias e deve tutela,
quer civil quer penal, contra violações provindas de quaisquer cidadãos. Quanto a algumas
liberdades, exigem-se mesmo prestações positivas ou ajudas materiais, sem as quais se frustra o
seu exercício ou o seu exercício por todos os cidadãos e todos os grupos: assim, com a liberdade
de imprensa (que implica o assegurar pela lei dos meios necessários à salvaguarda da sua
independência perante os poderes político e econômico); com a liberdade religiosa (que exige não
apenas o reconhecimentos das próprias convicções mas, também a criação de condições para a
sua prática); o direito de manifestação; com a liberdade de propaganda eleitoral (associada à
igualdade das diversas candidaturas e à imparcialidade das entidades públicas).
i) Pode e deve falar-se, sim, numa atitude geral de respeito, resultante do reconhecimento da
liberdade da pessoa de conformar a sua personalidade e de reger a sua vida e os seus interesses.
Esse respeito pode converter-se quer em abstenções quer em ações do Estado e das demais
entidades públicas ao serviço da realização da pessoa, individual ou institucionalmente
considerada - mas nunca em substituição da ação ou da livre decisão da pessoa, nunca a ponto
de o Estado penetrar na sua personalidade e afetar o seu ser. E é fundamentalmente neste
sentido de respeito e preservação da personalidade e da capacidade de ação das pessoas que se
justifica ainda dizer que os direitos de liberdade se salvaguardarão ou se efetivarão tanto mais
quanto menor for a intervenção do Estado, ao passo que os direitos sociais serão tanto mais
garantidos e efetivados quanto maior ela vier a ser.
j) Uma atitude geral de respeito obriga não apenas as entidades públicas mas ainda, em certos
casos e em certas condições - defini-las vem a ser um dos mais difíceis problemas do Direito
constitucional contemporâneo - as entidades privadas. Porque o respeito da liberdade de todos os
membros da comunidade política tem que ver não somente com as entidades públicas como
também com todos esses membros, uns perante os outros, pelo menos quando haja relações de
desigualdade ou de dependência, importa que uns respeitem a personalidade dos outros para que
possam todos conviver.
III - I) Algo de semelhante se verifica, de resto, no domínio dos direitos sociais. Embora estes
tenham como sujeitos passivos principalmente o Estado e outras entidades públicas, também não
são indiferentes a entidades privadas; também requerem (ou chegam a exigir) uma colaboração
por parte dos particulares. Chamados à tarefa da sua efetivação são o Estado e a sociedade -
conforme estipulam, em fórmula genérica, a Constituição venezuelana (art. 57.º), em sucessivos
preceitos a portuguesa (arts. 63.º, 64.º, 69.º, 75.º, etc.) e até, ao referir-se a organizações
sociais, a soviética (arts. 44.º, 46.º e 51.º.
m) Existe uma instância participativa nos direitos sociais, fundada, também ela, no respeito da
personalidade: porque se se cura de prestar bens e serviços à pessoa, não apenas é preciso
contar com o seu livre acolhimento como ainda é mais vantajoso pedir-lhe que, por si ou integrada

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em grupos, contribua para a sua própria promoção. Daí, estruturas e, por vezes, inclusive, direitos
de participação (assim, na Constituição portuguesa, os arts. 55.º, al. e), 77.º e 78.º, n. 3), de
natureza análoga à dos direitos de liberdade, os quais se apresentam como garantias da liberdade
contra o peso da burocracia ou da tecnocracia.
n) Tal como nos direitos de liberdade se recorta uma dimensão positiva, também nos direitos
sociais se encontra, pois, uma dimensão negativa. Quando a Constituição institua formas de
participação, não pode ser impedido o seu desenvolvimento: e, mais do que isso, é vedado ao
poder público restringir o acesso aos direitos sociais constitucional ou legalmente garantidos, por
meio de medidas arbitrárias.
o) A interconexão de liberdades e direitos sociais afigura-se óbvia quer no processo histórico da
sua formulação, quer no momento atual de exercício e efetivação. A liberdade sindical e o direito à
greve são instrumentos de defesa dos direitos dos trabalhadores. Há garantias ao serviço de
direitos sociais: assim, o direito à segurança no emprego em relação ao direito ao trabalho; tal
como o cidadão ameaçado ou lesado no seu direito ao ambiente pode pedir, nos termos da lei, a
cessação das causas de violação e a respectiva indenização (art. 66.º, n. 2 da Constituição
portuguesa). Em contrapartida, a efetivação dos direitos sociais propicia a realização das
liberdades ou de certas liberdades: se se assegura, por exemplo, o ensino básico universal,
obrigatório e gratuito ou a educação permanente, é para que todos possam usufruir da liberdade
de aprender e da liberdade de criação cultural.
IV - p) A maior parte dos direitos de liberdade está consignada em normas constitucionais
preceptivas e exeqüíveis por si mesmas e o seu exercício torna-se possível desde que estas sejam
aplicadas. Alguns provêm de normas não exeqüíveis, carecidos de lei a concretizá-los. Já a
totalidade (ou quase totalidade) dos direitos sociais é contemplada em normas programáticas,
normas que têm de ser seguidas não só de lei como de modificações econômicas, sociais,
administrativas ou outras; e tem de se dar um ajustamento do socialmente desejável ao
economicamente possível.
q) Imbricada como está com a vida econômica e social - e esta avaliável sempre no âmbito do
contraditório político - a realização dos direitos sociais aparece, por conseguinte, indissociável da
política econômica e social de cada momento (ao passo que a realização dos direitos de liberdade
dir-se-ia, prima facie, atividade eminentemente jurídica). E, mais ainda em sistema pluralista, as
normas constitucionais que os consagrem devem ser, por imperativo lógico, normas abertas, de
modo a receberem diversas concretizações consoante as alternativas periodicamente escolhidas
pelo eleitorado.
r) Se os direitos de liberdade têm um conteúdo essencialmente determinado (ou determinável) ao
nível das opções constitucionais, os direitos sociais têm um conteúdo determinado, em maior ou
menor medida, por opções do legislador ordinário. Donde, uma mais vincada densidade
constitucional dos primeiros do que dos segundos, sem embargo de, por via interpretativa, ser
sempre apurável o lugar e a projeção de cada direito na ordem constitucional.
s) Daqui não procede, porém, forçosamente que só os direitos, liberdades e garantias adquiram
uma densidade subjetiva autônoma, e não já os direitos sociais, implicando essa densidade uma
tendencial conformação autônoma e disponibilidade por parte dos seus titulares; e, muito menos,
que todos os direitos sociais sejam direitos a prestações não vinculadas, ao fim e ao resto
pretensões jurídicas e não verdadeiros direitos subjetivos.
Uma contraposição global tão extrema, nestes ou noutros termos, parece exagerada e acarreta o
risco de desvalorização dos direitos sociais. A relatividade dos conceitos de direitos subjetivos,
expectativas e pretensões jurídicas, a heterogeneidade das posições ativas abrangidas, tanto
pelos direitos de liberdade como pelos direitos sociais, a variedade das situações da vida não
aconselham tal qualificação em bloco. Só caso a caso, direito a direito, é possível comprovar a
sua justeza.
t) Nem se diga que os direitos sociais não são invocáveis judicialmente. Podem-no ser a par da
fiscalização da inconstitucionalidade - por ação e (onde existam mecanismos adequados) por
omissão. E podem-no ser por meio dos direitos derivados a prestações, visto que não é avisado
cindir a legislação concretizadora dos direitos sociais das normas constitucionais que os criam. A
integração dos preceitos constitucionais e legais permite configurar os direitos, em cada tempo
histórico, como uma única realidade jurídica.
4. A contraposição constitucional portuguesa entre direitos, liberdades e garantias e
direitos econômicos, sociais e culturais
I - Seja-me permitido completar o que venho dizendo com uma referência à Constituição
portuguesa (como se sabe, aprovada em 1976, objeto de larga revisão em 1982 e, em vias, de
novo, de emenda próxima, mas que não deve afetar significativamente a matéria de direitos
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fundamentais).
E isso porque a Lei Básica de Portugal dedica a sua parte I aos "Direitos e Deveres Fundamentais",
na base, justamente, do desdobramento em "Direitos, Liberdades e Garantias" e "Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais".
II - No texto inicial, o critério subjacente à divisão sistemática de direitos, liberdades e garantias e
direitos econômicos, sociais e culturais (títulos II e III) era um critério misto, na confluência de
elementos subjetivos, elementos objetivos e elementos estruturais, explicável por razões
históricas bem conhecidas.
Os direitos, liberdades e garantias eram, antes de mais, pensados como direitos do homem e de
todos os homens e, na perspectiva do Estado democrático, como direitos do cidadão e de todos
os cidadãos. Correspondiam, em segundo lugar, à totalidade dos direitos pessoais e aos mais
importantes dos direitos políticos, a que se ajuntavam alguns direitos sociais não econômicos.
Tinham a estrutura, todos eles, de direitos de liberdade (com maior ou menor acentuação, quanto
a cada um, da estrutura de direito stricto sensu, de liberdade ou de garantia). O que os
aproximava e os conglobava numa unidade parecia ser a idéia de liberdade, de liberdade civil e
política.
E essa unidade - que se manifestava logo na não divisão em capítulos do título II, ao invés do que
sucedia com o título III - significava que, para a Lei Fundamental, o homem e o cidadão surgiam
identificados e dotados de todos esses direitos. Todo o homem deveria ser cidadão e todo o
cidadão deveria ser pessoa.
Muito mais heterogêneo era o grupo dos direitos econômicos, sociais e culturais. Se aí se
concentravam os direitos dos trabalhadores e se em alguns dos outros direitos avultava uma
perspectiva laborista, ou trabalhista, este desiderato só em parte se realizava. O título III
abrangia direitos comuns e direitos particulares a certas categorias de pessoas; no seu âmbito
recaíam todos os direitos econômicos, mas nem todos os direitos sociais e culturais; e podiam
ainda aí discernir-se, quanto à estrutura, direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, direitos,
liberdades e garantias dos trabalhadores, direitos sociais de todas as pessoas, direitos sociais de
determinadas categorias de pessoas e direitos sociais dos trabalhadores.
A circunstância de Portugal se encaminhar tão tardiamente para um Estado social de Direito
explicava a acentuação (à primeira vista, de cunho oitocentista) de dois núcleos de direitos - de
liberdades e de direitos dos trabalhadores: o país emergia de um regime autoritário que tinha
negado ou fortemente reduzido muitos destes e daqueles direitos. E as vicissitudes do processo
revolucionário e constituinte justificavam uma especialíssima atenção aos direitos, liberdades e
garantias: perante as ameaças e os perigos que corria a democracia pluralista, a Assembléia
Constituinte procurou conferir-lhes um tratamento inequívoco, firme e seguro e, daí, quer o regime
reforçado dos arts. 18.º e ss., quer, entre outros, o estatuto constitucional da liberdade de
imprensa (arts. 37.º e ss.) ou da liberdade de associação sindical (art. 57.º, inicial, hoje 56.º).
O compromisso constituinte manifestado na adjunção de elementos liberais e de elementos
socialistas de diferentes origens ao copioso elenco de direitos de variados tipos não impediu, pois,
o primado dos direitos, liberdades e garantias - um primado ab origine conexo com o primado da
democracia (política) sobre todos os propósitos de modificação da ordem econômica e social.
III - A revisão constitucional de 1982 foi realizada em época de maior serenidade, já de
consolidação do regime e, em que foi também possível contar com os dados da jurisprudência dos
órgãos de fiscalização da constitucionalidade.
Como se se tivesse finalmente concluído o processo histórico europeu de comunicação entre
direitos de liberdade e direitos dos trabalhadores e entre direitos sociais e direitos de todos os
homens (ou se ele tivesse decorrido entre nós no breve período de 1976 a 1982), adotou-se agora
um critério primacialmente estrutural de distinção, embora com resquícios de outros fatores.
Deslocaram-se, por conseguinte, para o título II quase todos os direitos, liberdades e garantias
dos trabalhadores - segurança no emprego, criação de comissões de trabalhadores, liberdade
sindical, direitos das comissões de trabalhadores e das associações sindicais, direito à greve e
proibição do lock-out; e também um indiscutível direito, liberdade e garantia de todos os cidadãos,
à liberdade de escolha de profissão ou gênero de trabalho (novo art. 47.º, n. 1, antes art. 51.º n.
3). Ao mesmo tempo, dividiu-se o título em três capítulos: de direitos, liberdades e garantias
pessoais (arts. 24.º a 47.º), de direitos, liberdades e garantias de participação política (arts. 48.º
a 52.º) e de direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores (arts. 53.º a 58.º).
Complementarmente, o reforço assim prestado aos direitos dos trabalhadores foi compensado, no
compromisso político-constitucional renovado através da revisão, com a explicação da iniciativa
privada como direito fundamental (art. 61.º, e não apenas art. 85.º).

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A refundição operada no art. 9.º viria ainda a tornar bem patente a diferença de estrutura de
direitos, liberdades e garantias e de direitos econômicos, sociais e culturais em face das diversas
incumbências do Estado aí desenhadas: garantir os direitos e liberdades fundamentais (al. b),
promover a efectivação dos direitos econômicos, sociais e culturais. mediante a transformação
das estruturas econômicas e sociais, designadamente a socialização dos principais meios de
produção (al. d).
IV - Pode perguntar-se, porém, se ainda subsiste a unidade preceptiva fundamental do título II,
em virtude do caráter de direitos particulares (ou classistas) dos direitos, liberdades e garantias
dos trabalhadores aí aditados.
Admitimos que essa unidade possa parecer algo diminuída. Sem embargo, importa não esquecer
que do título II já constavam outros direitos particulares (como os dos cônjuges e dos pais ou os
dos jornalistas); que dos direitos transpostos alguns (os relativos às comissões de trabalhadores e
às associações sindicais) são meras especificações dos direitos de associação e de participação;
e, sobretudo, que os direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores em geral coenvolvem
também uma idéia de liberdade - de liberdade e desalienação aplicada a certas (numerosíssimas)
pessoas ou à situação de certas pessoas; representam um patamar de subjetivação (ou de maior
subjetivação) do estatuto dos trabalhadores.
Os direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores não possuem, no plano dos fins permanentes
da vida humana e da universalidade dos direitos, um valor tão grande como o dos direitos,
liberdades e garantias pessoais. Mas correspondem (insistimos) a necessidades de proteção diante
do poder tanto do poder político como do poder econômico - que se reconduzem à razão de ser
básica dos direitos, liberdades e garantias.
De qualquer forma, a distribuição por sucessivos capítulos permite sempre evitar assimilações
excessivas.
V - Distinguindo, a Constituição concede uma diversa - uma maior - proteção aos direitos,
liberdades e garantias frente aos direitos econômicos, sociais e culturais. Sem deixarem de ser uns
e outros direitos fundamentais e constantemente relacionados, os primeiros gozam de uma
relevância superior.
Consiste tal relevância:
a) Na decisão afirmada no preâmbulo de "garantir os direitos fundamentais dos cidadãos" e na
referência do Estado de Direito democrático ao respeito e à garantia dos direitos e liberdades
fundamentais (arts. 2.º e 9.º, al. b) - direitos e liberdades que se identificam com os direitos e
garantias do título II, já que os direitos econômicos, sociais e culturais melhor correspondem à
decisão de "abrir caminho para uma sociedade socialista no respeito da vontade do povo
português" e à "realização da democracia econômica, social e cultural";
b) Na aplicabilidade imediata das normas constitucionais atributivas de tais direitos (art. 9.º, al.
b), cit. e art. 18.º, n. 1), enquanto que a efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais
requer, como acabamos de dizer, a transformação das estruturas econômicas e sociais (citado
art. 9.º, am. d); ou seja, no caráter incondicional dos direitos, liberdades e garantias e na
dependência dos direitos econômicos, sociais e culturais da realidade constitucional;
c) Na previsão constitucional explícita de um regime específico e muito completo dos direitos,
liberdades e garantias (arts. 17.º e ss., 164.º, 167.º, 168.º e 290.º), ao passo que o regime
específico dos direitos econômicos, sociais e culturais tem de se encontrar indutivamente e é
muito menos exigente.
VI - São essas regras específicas dos direitos, liberdades e garantias:
1.º) A mencionada aplicação direta dos preceitos constitucionais (art. 18.º, n. 1, 1.ª parte);
2.º) A vinculação de todas as entidades públicas (art. 18.º, n. 1, 2.ª parte);
3.º) A vinculação das entidades privadas (art. 18.º, n. 1, 2.ª parte);
4.º) A reserva de lei (art. 18.º, n. 2, designadamente) ;
5.º) O caráter restritivo das restrições (art. 18.º, ns. 2 e 3);
6.º) O caráter excepcional da suspensão (art. 19.º);
7.º) A limitação, a suspensão ou a privação quanto a qualquer pessoa apenas nos casos e com as
garantias da Constituição e da lei (por indução a partir dos arts. 27.º, n. 2, 28.º, 29.º, 32.º, n. 4,
36.º, n. 6, 37.º, n. 3, 46.º, n. 2, etc.);
8.º) A autotutela, mediante o direito de resistência (art. 21.º);

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17/04/13 Envio | Revista dos Tribunais

9.º) A reserva de competência do Parlamento, seja reserva legislativa absoluta (art. 167.º), als.
c), d), e), f) e m)) e relativa (art. 168.º, al. b), seja a de aprovação de tratados (art. 164.º, al.
i));
10.º) Os direitos, liberdades e garantias como limite material da revisão constitucional (art. 290.º,
al. d)).
VII - Algo diversamente, regras específicas dos direitos econômicos, sociais e culturais
(apreendidas a partir de preceitos dispersos e dos princípios fundamentais da Constituição) são:
1.º) A conexão com tarefas e incumbências positivas do Estado e das demais entidades públicas;
2.º) O realce adquirido pelos elementos de promoção e de participação dos interesses, individual
ou coletivamente;
3.º) A dependência da realidade constitucional, mormente do fator econômico;
4.º) A adequação das formas de tutela.
Inexiste uma reserva geral de competência da Assembléia da República. Há apenas uma reserva
absoluta de competência legislativa quanto às bases do sistema de ensino (art. 167.º, al. e)) e
uma reserva relativa quanto às bases do sistema de segurança social e do serviço nacional de
saúde (art. 168.º, n. 1, al. f)) e quanto ao sistema de proteção da natureza, do equilíbrio
ecológico e do patrimônio cultural (art. 168.º, 1 al. g)).
Finalmente, no art. 290.º só estão abrangidos os direitos econômicos, sociais e culturais que
recaiam entre os direitos dos trabalhadores. Todavia, em face do art. 16.º, n. 2, os direitos
econômicos, sociais e culturais previstos na Declaração Universal podem ter-se por limites
implícitos de revisão constitucional.
Este o quadro da Constituição. Seria interessantíssimo compará-lo com o que se prevê para a
nova Constituição brasileira. Mas tal trabalho não pode, evidentemente ser levado a cabo neste
momento.
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