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O regime dos direitos sociais

Jorge Miranda

Sumário
1. Os direitos sociais no âmbito dos direitos
fundamentais. 1.1. A evolução dos direitos
fundamentais. 1.2. Os direitos fundamentais
no Estado social de Direito. 1.3. Direitos de
liberdade e direitos sociais. 1.4. Os princípios
constitucionais. 2. O regime dos direitos sociais.
2.1. A conexão com tarefas e incumbência do
Estado. 2.2. A participação dos interessados ime-
diatos e da sociedade civil. 2.3. A dependência
da realidade constitucional. 2.4. O não retorno
da concretização. 2.5. A repartição dos custos em
razão das condições económicas dos titulares.
2.6. A adequação das formas de tutela.

1. Os direitos sociais no âmbito


dos direitos fundamentais

1.1. A evolução dos direitos


fundamentais
I − Tal como o conceito de Constituição,
o conceito de direitos fundamentais surge
indissociável da ideia de Direito liberal.
Daí que se carregue das duas características
identificadoras da ordem liberal: a postura
individualista abstracta de (no dizer de
Radbruch) um “indivíduo sem individua-
lidade”; e o primado da liberdade, da segu-
rança e da propriedade, complementadas
pela resistência à opressão.
Jorge Miranda é Professor catedrático das Apesar de todos os direitos serem ou
Faculdades de Direito da Universidade de Lis- deverem ser (por coerência) direitos de
boa e da Universidade Católica Portuguesa. todos, alguns (maxime o sufrágio) são, no
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século xix, denegados aos cidadãos que não que se verifica em Estado social de direito
possuam determinados requisitos económi- é um enriquecimento crescente em respos-
cos; outros (v. g., a propriedade) aproveitam ta às novas exigências das pessoas e das
sobretudo aos que pertençam a certa classe; sociedades.
e outros ainda (o direito de associação, em Nem se trata de um mero somatório, mas
particular de associação sindical) não é sem sim de uma interpenetração mútua, com a
dificuldade que são alcançados. consequente necessidade de harmonia e
Contrapostos aos direitos de liberdade concordância prática. Os direitos vindos
são, nesse século e no século XX, reivindica- de certa época recebem o influxo dos novos
dos (sobretudo, por movimentos de traba- direitos, tal como estes não podem deixar de
lhadores) e sucessivamente obtidos, direi- ser entendidos em conjugação com os ante-
tos económicos, sociais e culturais − direitos riormente consagrados: algumas liberdades
económicos para garantia da dignidade do e o direito de propriedade não possuem
trabalho, direitos sociais como segurança hoje o mesmo alcance que possuíam no sé-
na necessidade e direitos culturais como culo XIX, e os direitos sociais adquirem um
exigência de acesso à educação e à cultura sentido diverso consoante os outros direitos
e em último termo de transformação da garantidos pelas Constituições.
condição operária. Nenhuma Constituição Tão pouco as pretensas gerações cor-
posterior à primeira guerra mundial deixa respondem a direitos com estruturas
de os outorgar, com maior ou menor ênfase contrapostas: um caso paradigmático é o
e extensão. do direito à intimidade ou à privacidade
Sabe-se, porém, que são diversas − só plenamente consagrado no século XX.
muito mais diversas de que os do Estado E há direitos inseridos numa geração que
liberal − as configurações do Estado social. ostentam uma estrutura extrema complexa:
Os antagonismos ideológicos, os desníveis é o caso do direito ao ambiente.
de estádios de desenvolvimento e as di- Finalmente, direitos como os direitos à
ferenças de culturas e de práticas sociais autodeterminação, aos recursos naturais e
não só subjazem aos contrastes de tipos ao desenvolvimento nem sequer entram no
constitucionais como explicam realizações âmbito dos direitos fundamentais, porque
e resultados variáveis de país para país. pertencem a outra área − a dos direitos dos
II − Num resumo da evolução dos povos. Eis o que adiante se mostrará.
direitos fundamentais, indicam-se, cor- III − Nos séculos XVIII e XIX dir-se-ia
rentemente, três ou quatro gerações: a existir somente uma concepção de direitos
dos direitos de liberdade; a dos direitos fundamentais, a liberal. Não obstante as
sociais; a dos direitos ao ambiente, à auto- críticas − legitimistas, socialistas, católicas
determinação, aos recursos naturais e ao − era o liberalismo (então, cumulativamen-
desenvolvimento; e, ainda, a dos direitos te, filosófico, político e económico) que
relativos à bioética, á engenharia genética, prevalecia em todas as Constituições e de-
à informática e a outras utilizações das clarações; e, não obstante a pluralidade de
modernas tecnologias, ligados à sociedade escolas jurídicas − jusnaturalista, positivis-
de informação e à sociedade de risco. ta, histórica − era a ele que se reportavam,
Conquanto esta maneira de ver possa duma maneira ou doutra, as interpretações
ajudar a apreender os diferentes momentos da liberdade individual.
históricos de aparecimento dos direitos, o A situação muda no século XX: não tanto
termo geração, geração de direitos, afigura- por desagregação ou dissociação das três
se enganador por sugerir uma sucessão de vertentes liberais (em especial, por o libera-
categorias de direitos, umas substituindo- lismo político deixar de se fundar, necessa-
se às outras − quando, pelo contrário, o riamente, no liberalismo filosófico) quanto

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por todas as grandes correntes − religiosas, − A aceitação da natureza de princípios
culturais, filosóficas, ideológicas, políticas − da maior parte das normas de direitos
se interessarem pelos direitos do homem e fundamentais;
quase todas se afirmarem empenhadas na − O reconhecimento da complexidade de
sua promoção e na sua realização. O tema estrutura;
dos direitos do homem cessou de ser, nessa − A dimensão plural e poligonal das rela-
altura, uma exclusiva aspiração liberal. ções jurídicas;
− A produção de efeitos não só verticais
1.2. Os direitos fundamentais no (frente ao Estado) mas também horizon-
Estado social de Direito tais (em relação aos particulares);
I − A passagem para o Estado social de − A dimensão participativa e procedimen-
Direito irá reduzir ou mesmo eliminar o tal, levando a falar em status activus
cunho classista que, por razões diferentes, processualis (HÄBERLE);
ostentava antes os direitos de liberdade e − A ideia de aplicabilidade directa;
os direitos sociais. A transição do governo − A interferência não apenas do legislador
representativo clássico para a democracia mas também da Administração na con-
representativa irá reforçar ou introduzir cretização e na efectivação dos direitos;
uma componente democrática que tenderá − O desenvolvimento dos meios de ga-
a fazer da liberdade tanto uma liberdade rantia e a sua ligação aos sistemas de
− autonomia, como uma liberdade − parti- fiscalização da legalidade e da constitu-
cipação (fechando-se, assim, o ciclo corres- cionalidade;
pondente à contraposição de Constant). − O enlace com o Direito internacional.
Por um lado, não só os direitos políticos
1.3. Direitos de liberdade e direitos sociais
são paulatinamente estendidos até se che-
gar ao sufrágio universal como os direitos I − Não faltam Autores que somente
económicos, sociais e culturais, ou a maior tomam como direitos fundamentais as li-
parte deles, vêm a interessar á generalidade berdades e que relegam os direitos sociais
das pessoas. Por outro lado, o modo como para a zona das imposições dirigidas ao
se adquirem, em regime liberal ou pluralis- legislador ou para a das garantias institu-
ta, alguns dos direitos económicos, sociais e cionais. Assim como há aqueles que não
culturais a partir do exercício da liberdade admitem verdadeiras liberdades à margem
sindical, da formação de partidos, da gre- da consecução dos factores de exercício só
ve e do sufrágio mostra que os direitos da propiciados pela realização dos direitos
liberdade se não esgotam num mero jogo sociais. Mas, da óptica do Estado social de
de classes dominantes. Direito, sejam quais forem as interpreta-
II − Independentemente das divergên- ções ou subsunções conceituais, não pode
cias a nível de formulações, teorizações e negar-se a uns e outros direitos a natureza
fundamentações, ressaltam algumas ten- de direitos fundamentais.
dências comuns: Como escrevi noutra altura, já há muito
− A diversificação do catálogo, muito para tempo, em Contributo para uma teoria de in-
lá das declarações clássicas; constitucionalidade, Lisboa, 1968, p. 70-71:
− A consideração do homem situado, tra- “Tanto na concepção liberal como
duzida na relevância dos grupos e das na concepção social, deparam-se a
pessoas colectivas e na conexão com liberdade e a igualdade; porém, na
garantias institucionais; primeira, igualdade é a titularidade
− A acentuação da dimensão objectiva dos direitos e demanda liberdade
e a irradiação para todos os ramos de para todos, ao passo que, na segunda,
Direito; a igualdade é a concreta igualdade de
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agir e a liberdade a própria igualdade vés de uma igualdade sem liberdade; sujeita
puxada para acção. Na concepção às balizas materiais e procedimentais da
liberal, a liberdade de cada um tem Constituição; e susceptível, em sistema polí-
como limite a liberdade dos outros; na tico pluralista, das modulações que derivem
concepção social, esse limite prende- da vontade popular expressa pelo voto.
se com a igualdade material e situada. III − Nos direitos de liberdade ou, mais
Os direitos constitucionais de índole amplamente, nos direitos, liberdades e ga-
individualista podem resumir-se rantias, parte-se da ideia de que as pessoas,
num direito geral de liberdade, os só por o serem, ou por terem certas qualida-
direitos de índole social num direito des ou por estarem em certas situações ou
geral à igualdade.” inseridas em certos grupos ou formações
Sabemos que esta igualdade material sociais, exigem respeito e protecção por
não se oferece, cria-se; não se propõe, parte do Estado e dos demais poderes. Nos
efectiva-se; não é um princípio, mas uma direitos sociais, parte-se da verificação da
consequência. O seu sujeito não a traz como existência de desigualdades e de situações
qualidade inata que a Constituição tenha de necessidade − umas derivadas das con-
de confirmar e que requeira uma atitude dições físicas e mentais das próprias pesso-
de mero respeito; ele recebe-a através de as, outras derivadas de condicionalismos
uma série de prestações, porquanto nem é exógenos (económicos, sociais, geográficos,
inerente às pessoas, nem preexistente ao Es- etc.) − e da vontade de as vencer para esta-
tado. Onde bastaria que o cidadão exercesse belecer uma relação solidária entre todos os
ou pudesse exercer as próprias faculdades membros da mesma comunidade política.
jurídicas, carece-se doravante de actos A existência das pessoas é afectada tanto
públicos em autónoma discricionariedade. por uns como por outros direitos. Mas em
Onde preexistiam direitos, imprescindíveis, planos diversos: com os direitos, liberdades
descobrem-se condições externas que se e garantias, é a sua esfera de autodetermi-
modificam, se removem ou se adquirem. nação e expansão que fica assegurada, com
Assim, o conteúdo do direito à igualdade os direitos sociais é o desenvolvimento
consiste sempre num comportamento po- de todas as suas potencialidades que se
sitivo, num facere ou num dare. pretende alcançar; com os primeiros, é a
II − Para o Estado social de Direito, a vida imediata que se defende do arbítrio
liberdade possível − e, portanto, necessária − do poder, com os segundos, é a esperança
do presente não pode ser sacrificada em tro- numa vida melhor que se afirma; com uns,
ca de quaisquer metas, por justas que sejam, é a liberdade actual que se garante, com
a alcançar no futuro. Há que criar condições os outros é uma liberdade mais ampla e
de liberdade − de liberdade de facto, e não só efectiva que se começa a realizar.
jurídica; mas a sua criação e a sua difusão Os direitos, liberdades e garantias são
somente têm sentido em regime de liberdade. direitos de libertação do poder e, simultane-
Porque a liberdade (tal como a igualdade) amente, direitos à protecção do poder contra
é indivisível, a diminuição da liberdade − outros poderes (como se vê, quanto mais
civil ou política − de alguns (ainda quando não seja, nas garantias de intervenção do
socialmente minoritários), para outros juiz no domínio das ameaças à liberdade
(ainda quando socialmente maioritários) física por autoridades administrativas).
acederem a novos direitos, redundaria em Os direitos sociais são direitos de libertação
redução da liberdade de todos. da necessidade e, ao mesmo tempo, direitos
O resultado almejado há-de ser uma de promoção. O escopo irredutível daqueles
liberdade igual para todos, construída através é a limitação jurídica do poder, o destes é
da correcção das desigualdades e não atra- a organização da solidariedade.

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Liberdade e libertação não se separam, nais, independentemente de insuficiência
pois; entrecruzam-se e completam-se; a de meios económicos (art. 20o, no 1, 3a parte),
unidade da pessoa não pode ser truncada o direito a um limite máximo da jornada
por causa de direitos destinados a servi-la; de trabalho, ao descanso semanal e a férias
e também a unidade do sistema jurídico im- periódicas pagas [art. 59o, no 1, alínea d)], o
põe a harmonização constante dos direitos direito a que todo o tempo de trabalho con-
da mesma pessoa e de todas as pessoas. tribua para o cálculo das pensões de velhice
IV − Sustenta a doutrina dominante que e invalidez, independentemente do sector
os direitos, liberdades e garantias têm um de actividade em que tenha sido prestado
conteúdo essencialmente determinado (ou (art. 63o, no 4), o direito das mulheres tra-
determinável) ao nível das normas constitu- balhadoras a dispensa de trabalho, durante
cionais, os direitos sociais têm um conteúdo a gravidez e após o parto, por período
determinado, em maior ou menor medida, adequado, sem perda da retribuição e de
por opções do legislador ordinário. Donde, quaisquer regalias (art. 68o, no 3), o direito
uma mais vincada densidade constitucional das mães e dos pais a dispensa de trabalho
dos primeiros do que dos segundos. por período adequado, de acordo com os
Mas essa maior ou menor determinação interesses da criança e as necessidades do
ou determinabilidade do conteúdo dos agregado familiar (art. 68o, no 4), o direito
direitos, como base de distinção, deve ser ao ensino básico universal, obrigatório e
relativizada, desde logo porque deve ser gratuito [art. 74o, no 2, alínea a)] e a proibição
sempre possível apurar o lugar, a projecção de trabalho de menores em idade escolar
e o sentido essencial de quaisquer direitos (art. 69o, no 3).
dentro do sistema e, depois, porque há Repare-se, além disso, em direitos –
graus diferentes quer nos direitos, liberda- como o de protecção da saúde (art. 64o), o
des e garantias quer nos direitos sociais. É o direito à habitação (art. 65o), os direitos dos
que pode ver-se à face de alguns preceitos deficientes (art. 71o), os das pessoas idosas
da Constituição portuguesa. (art. 72o) ou o direito à fruição cultural (art.
Há direitos, liberdades e garantias que 78o) – em que, através das incumbências
não possuem, ou só possuem em pequeno do Estado destinadas à sua efectivação, se
grau, a característica de determinabilidade capta, com relativa nitidez, o conteúdo que
constitucional. É o que sucede com o direito a Constituição lhes pretende assinalar.
à identidade genética (art. 26o, no 3), com o V − A Constituição portuguesa trata em
direito à objecção de consciência (art. 41o, títulos separados os direitos a que chama
no 6), com o direito de manifestação (art. direitos, liberdades e garantias (e que corres-
44o, no 2), com o direito de autogestão (art. pondem aos clássicos direitos de liberdade
61o, no 5), com o direito de participação de e a garantia de Direito e processo penais) e
trabalhadores na gestão das unidades de os direitos económicos, sociais e culturais. Mas
produção do sector público (art. 89o), com a contraposição pode e deve ser atenuada
o direito de participação dos administrados por haver princípios comuns e por o art.
nos procedimentos administrativos (art. 17o mandar aplicar o regime dos direitos,
267o, no 5) e, de certo modo, com o direito a liberdades e garantias aos direitos de na-
indemnização em caso de responsabilidade tureza análoga.
civil das entidades públicas (art. 22o), com
1.4. Os princípios constitucionais.
o direito de acção popular (art. 52o, no 3)
e com o direito à segurança no emprego I − Princípios comuns a todos os direitos
(art. 53o). são, na Constituição portuguesa:
Em contrapartida, há direitos sociais a) O princípio da universalidade (art. 12o),
determináveis, como o de acesso aos tribu- com extensão de direitos aos portugueses

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no estrangeiro (art. 14o) e aos estrangeiros a) O princípio de reserva de lei (art. 18o, nos
em Portugal (art. 15o); 2 e 3, designadamente);
b) O princípio da igualdade (art. 13o); b) O princípio do carácter restritivo das
II − Princípios comuns com variações restrições (art. 18o, nos 2 e 3), conexo com o
ou diferenciações vêm a ser: princípio da afectação individual de direitos
a) O princípio da protecção da confiança apenas verificados os pressupostos e as garantias
com toda a amplitude inerente ao Estado da Constituição e da lei;
de Direito e conexo com o dever ou o c) O princípio do carácter excepcional da
princípio da boa fé na actuação do Estado suspensão (art. 11o);
e das demais entidades públicas (art. 266o, d) O princípio da afectação individual ape-
no 2); nas verificados os pressupostos e as garantias
b) O princípio da proporcionalidade (arts. da Constituição e da lei (arts. 27o, nos 2 e 3,
2o, 18o, no 2, 19, nos 4 e 8, 30o, no 5, 50o, no 3, 36o, no 6, etc.);
65o, no 4, 266o, no 2, 270o, 272o, no 2), com f) O princípio da autotutela através do direi-
base no qual hão-de ser resolvidas as coli- to de resistência (arts. 21o e 103o, no 3);
sões de direitos e entre direitos e deveres, e) O princípio da responsabilidade criminal
apuradas as restrições constitucionalmente em caso de violação pelos titulares dos ór-
admissíveis a direitos fundamentais, ou a gãos de poder político e pelos funcionários
sua suspensão, e (de certo modo) feitas as e agentes do Estado e das demais entidades
opções relativas à efectivação dos direitos públicas (arts. 117o, no 1 e 269o).
económicos, sociais e culturais; Depois, os direitos, liberdades e garan-
c) O princípio da eficácia jurídica dos tias entram na reserva de competência da
direitos fundamentais, envolvendo a apli- Assembleia da República, seja reserva legis-
cação imediata, directa ou indirecta, dos lativa absoluta [art. 164o, alíneas a), e), h), i),
direitos fundamentais, a vinculatividade j) e p)] e relativa [art. 165o, no 1, alínea b)],
das entidades públicas e a vinculatividade seja reserva de aprovação de convenções
das entidades privadas (art. 18o, no 1), bem internacionais [art. 161o, alínea i)]; e sobre
como a limitação recíproca dos direitos com eles está vedada, em princípio, aos órgãos
vista à sua optimização (art. 29o, no 2 da das regiões autónomas legislar [arts. 112o,
Declaração Universal) e a garantia do seu no 4 e 227o, no 1, alínea e)].
conteúdo essencial (art. 19o, no 3); IV − Princípios específicos do regime
d) O princípio da tutela jurídica, através dos direitos económicos, sociais e culturais
dos tribunais (arts. 20o, 202o, 268o, nos 4 e são:
5 e 280o, nos 1 e 2), do Provedor de Justiça a) O princípio da participação dos interessa-
(art. 23o) e do exercício de direito de petição dos na sua concretização [arts. 2o, in fine, 54o,
(art. 52o, no 1); no 5, alínea e), 59o, no 2, alínea d), 63o, no 3,
e) O princípio da responsabilidade civil 64o, no 3, alínea d), 65o, no 2, alíneas c) e d),
das entidades públicas e dos titulares dos seus 66o, no 2, 67o, no 2, alínea c), 70o, no 3, 71o, no
órgãos, funcionários e agentes em caso de vio- 3, 73o, no 3, 74o, no 2, alínea f), 75o, no 2, 78o,
lação de direitos (arts. 22o e 269o, no 1). no 2, 79o, no 2, 97o, no 2, alínea d)];
Por outro lado, os direitos, liberdades e b) O princípio da dependência da realidade
garantias, de forma explícita, e os direitos constitucional ou das condições económicas,
económicos, sociais e culturais, de forma sociais e culturais para a sua efectivação
implícita, entram nos limites materiais de [art. 9o, alínea d)];
revisão constitucional. c) O princípio da repartição dos custos em
III − Princípios específicos do regime razão das condições económicas dos beneficiá-
dos direitos, liberdades e garantias são, rios [arts. 20o, no 1, in fine, e 64o, no 2, alínea
por seu turno: a)].

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Na reserva de competência legislativa casos e com as garantias previstas na Cons-
da Assembleia da República entram apenas tituição e na lei;
as bases do sistema de ensino, com reserva d) São recentes aquisições, nuns casos,
absoluta [art. 164o, alínea i)]; e, com reserva ou explicitações e desenvolvimentos, nou-
relativa, as bases do sistema de segurança tros casos, do Estado de Direito, a aplica-
social, do serviço nacional de saúde, do ção directa dos preceitos respeitantes aos
sistema de protecção da natureza, do equilí- direitos fundamentais, com vinculação das
brio ecológico e do património cultural e do entidades públicas e privadas, o carácter
ordenamento do território e do urbanismo restritivo das restrições dos direitos, li-
[art. 165o, no 2, alíneas f), g) e z)]. berdades e garantias e o serem os direitos,
V − Diversas são, outrossim, as sedes liberdades e garantias limite material da
constitucionais: revisão constitucional;
a) Quanto aos regimes comuns a todos e) São também recentes aquisições −
os direitos, quanto ao regime comum com agora do Estado social de Direito − os prin-
variações e quanto ao regime material dos cípios sobre direitos económicos, sociais e
direitos, liberdades e garantias, o título i culturais;
da parte i; f) Revelam originalidade marcantes da
b) Quanto ao regime orgânico, o capítulo Constituição portuguesa a insistência nas
ii do título iii da parte iii, sobre competência formas de participação ou de democracia
da Assembleia da República; participativa (art. 2o) e a fiscalização da
c) Quanto à revisão constitucional, o inconstitucionalidade por omissão (art.
título ii da parte iv. 283o).
VI − Os princípios e regras enunciados
têm diversas origens: 2. O regime dos direitos sociais
a) Remontam ao constitucionalismo
liberal o princípio da universalidade, a
2.1. A conexão com tarefas e
extensão dos direitos aos portugueses no
incumbências do Estado
estrangeiro e aos estrangeiros em Portugal,
o princípio da tutela graciosa, a limitação I − O primeiro princípio específico do
recíproca dos direitos, a autotutela através regime dos direitos económicos, sociais
do direito de resistência, e a reserva de e culturais prende-se com a “tarefa fun-
competência do Parlamento sobre direitos, damental”, de carácter geral, do Estado
liberdades e garantias; de promover a efectivação dos direitos
b) Remonta ao constitucionalismo económicos, sociais, culturais e ambientais
liberal, se bem que enriquecido e transfor- [art. 9o, alínea d), da Constituição] e com
mado pelo Estado social, o princípio da as incumbências do Estado e de outras
igualdade; entidades em especial (arts. 63o, no 2, 64o,
c) Traduzem progressos no sentido do no 3, etc.).
aprofundamento do Estado de Direito os Tarefas equivalem a fins do Estado mani-
princípios da protecção da confiança e da festados em certo tempo histórico, em certa
proporcionalidade, os princípios do acesso situação político-constitucional, em certo
ao direito e da tutela jurisdicional, o prin- regime, em certa Constituição em sentido
cípio da responsabilidade civil do Estado material. Traduzem um determinado enla-
e das demais entidades públicas, alguns ce entre o Estado e a sociedade.
aspectos da reserva de lei sobre direitos, Entre elas e as funções ou actividades
liberdades e garantias e a restrição, a sus- específicas ou típicas do poder situam-se
pensão ou a privação de direitos, liberdades as incumbências, que são, ao mesmo tempo,
e garantias de qualquer pessoa apenas nos metas e acções a que o Estado fica consti-

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tucionalmente adstrito − o mais das vezes individual e regional do produto nacional,
através de normas programáticas − em a coordenação da política económica com
face dos direitos, interesses ou instituições as políticas social, educativa e cultural, a
que lhe cabe garantir, promover ou tomar defesa do mundo rural, a preservação do
efectivos; e as incumbências traduzem-se equilíbrio ecológico, a defesa do ambiente
em “imposições constitucionais” designa- e a qualidade de vida do povo português
damente em “imposições legiferantes”. (art. 90o).
II − Aquela tarefa e essas incumbências Mas a Constituição parece apostar mui-
aparecem estreitamente correlacionadas. to mais no sistema fiscal [art. 81o, alínea d),
Com a Constituição económica, desde logo in fine], destinado tanto à satisfação das
porque a efectivação dos direitos se faz necessidades financeiras do Estado e de
“mediante, a transformação e moderniza- outras entidades públicas como a uma re-
ção das estruturas económicas e sociais”. partição justa dos rendimentos e da riqueza
E aqui sobressaem, em geral, directa- (art. 103o, no 1). Por isso, o imposto sobre
mente, as incumbências de promover o o rendimento pessoal visa a diminuição
aumento do bem-estar social e económico e das desigualdades e será único e progres-
da qualidade de vida das pessoas, em espe- sivo, tendo em conta as necessidades e os
cial, das mais desfavorecidas, de promover rendimentos do agregado familiar [arts.
a justiça social, assegurar a igualdade de 104o, no 1 e 67o, no 2, alínea f)]; a tributação
oportunidades e de operar as necessárias do consumo visa adaptar a estrutura do
correcções das desigualdades na distribui- consumo à evolução das necessidades do
ção da riqueza e do rendimento, de eliminar desenvolvimento económico e da justiça
progressivamente as diferenças económicas social, devendo onerar os consumos de luxo
e sociais entre a cidade e o campo e entre o (art. 104o, no 4), e, finalmente, o regime das
litoral e o interior, de promover a correcção finanças regionais assenta nos princípios de
das desigualdades derivadas da insulari- efectiva solidariedade nacional [art. 227o, no
dade, eliminar os latifúndios e reordenar 1, alínea j)], e o das finanças locais visa a
o minifúndio [art. 81o, alíneas a), b), d), 2a justa repartição dos recursos públicos pelo
parte, e) e h)]. Estado e pelas autarquias e a necessária cor-
Em particular, no domínio da política recção de desigualdades entre autarquias
agrícola, avultam os objectivos de pro- do mesmo grau (art. 238o, no 2).
mover a melhoria da situação económica, III − Estas tarefas e incumbências
social e cultural dos trabalhadores rurais concretizam-se:
e dos agricultores, o desenvolvimento do − Pela garantia da igualdade de opor-
mundo rural, a racionalização das estrutu- tunidades entre os cidadãos [arts. 58o, no 2,
ras fundiárias e o acesso à propriedade ou à alínea b), 64o, no 3, alínea a), 73o, no 2, 74o,
posse da terra e demais meios de produção no 2, alínea d), 76o, no 1, 78o, no 2, alínea a),
directamente utilizados na sua exploração e 81o, alínea b)];
por parte daqueles que a trabalham, e de − Pela previsão de prestações pecuniá-
criar as condições necessárias para atingir rias [arts. 59o, no 1, alíneas e) e f), 63o, nos 3 e
a igualdade efectiva dos que trabalham na 4, e Lei no 45/2005, sobre rendimento social
agricultura com os demais trabalhadores de reinserção];
[art. 93o, no 1, alíneas b) e c)]. − Pela criação de instituições, sistemas
Os planos de desenvolvimento econó- e serviços [arts. 59o, no 2, 63o, nos 2 e 3, 64o,
mico e social têm por objectivo, promover, no 2, alínea a), e no 4, 67o, no 2, alínea b), 74o,
além do crescimento económico e do de- no 2, alínea b), e 75o, no 1];
senvolvimento harmonioso e integrado − Pelo estabelecimento de políticas [arts.
de sectores e regiões, a justa repartição 58o, no 1, alínea a), 64o, no 3, alínea f), 65o, no

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3, 66o, no 2, 67o, no 2, alínea h), 70o, no 2, 71o, outras; trata-se também, por um lado, de
no 2, 77o, no 2, e 78o, no 2, alínea e)]; dar lugar e voz aos destinatários e benefi-
− Pela previsão de condições [arts. 59o, ciários segundo a Constituição e a lei e, por
n 2, alínea c), 64o, no 2, alínea b), 65o, no 1,
o
outro lado, de admitir formas de comple-
71o, no 1]; mentaridade ou de concorrência entre as
− Por medidas legislativas, pura e sim- intervenções do Estado e das demais enti-
plesmente [arts. 59, no 3, 63o, no 4, 64o, no 3, dades públicas e as iniciativas das pessoas
alíneas d) e e), 67o, no 2, alíneas e) e f), 68o, e dos grupos existentes na sociedade civil.
no 4, 69o, no 3]. Assim se espera optimizar as condições
IV − De qualquer sorte, nem as tarefas de realização dos direitos e aprofundar a
do art. 9o, nem as incumbências dos arts. própria democracia.
58o, 81o, 227o, etc., envolvem um programa II − A democracia participativa [arts. 2o,
de governo. Este tem de ser muito mais in fine, e 9o, alínea c), 2a parte] traduz-se,
do que isso − um conjunto de orientações por seu turno, na atribuição aos cidadãos
políticas e medidas a adoptar ou a propor enquanto administrados, de específicos
nos diversos domínios da actividade go- direitos de participação no exercício de
vernamental, como se lê no art. 188o; e as função administrativa de Estado − maxime
tarefas situam-se a um nível diferente e su- quando estejam em causa direitos econó-
perior, necessariamente normativo. Nem se micos, sociais e culturais − e na relevância
conceberia em democracia pluralista (arts. de grupos de interesses, de associações e
2o, 10o, etc.) que fossem outra coisa senão de instituições em processos de decisão a
princípios ou limites (que, de resto, não nível do Estado.
só o Governo como os demais órgãos do A Administração pública será estrutu-
Estado, das regiões autónomas e do poder rada de modo a aproximar os serviços das
local têm de respeitar). populações e a assegurar a participação
Há um conteúdo essencial também das dos interessados na sua gestão efectiva (art.
tarefas e das incumbências que o intérprete 267o, no 1), para esse efeito, estabelecendo a
deve desvendar e o aplicador da Constitui- lei adequadas formas de descentralização
ção preservar. Para além disso, é o contra- e desconcentração, sem prejuízo da ne-
ditório político − marcado por diferentes cessária eficácia e unidade de acção e dos
opções em contraste e por conjunturas poderes de direcção e superintendência
variáveis − que imprime os ritmos, os graus do Governo (art. 267o, no 2). E, desde logo,
e os modos de realização. administração participada e descentrali-
zada encontra‑se na saúde (art. 64o, no 4) e
2.2. A participação dos interessados no ensino universitário público (art. 76o);
imediatos e da sociedade civil e administração participada e desconcen-
I − Para a Constituição não importa trada na segurança social (art. 63o, no 2),
qualquer efectivação dos direitos econó- noutras organizações que visem satisfazer
micos, sociais e culturais. Importa, por os interesses dos trabalhadores [art. 56o, no
coerência com os princípios fundamentais 2, alínea b)] e no ensino não universitário
da liberdade, do pluralismo e da parti- público (art. 77o, no 1).
cipação [arts. 2o e 9o, alíneas b) e c), entre Para além disso, são muito variados
tantos], uma efectivação não autoritária e os direitos de participação de grupos nas
não estatizante, aberta à promoção pelos decisões, inclusive legislativas, que direc-
próprios interessados e às iniciativas vindas tamente os afectem, com incidência em
da sociedade civil. direitos económicos, sociais e culturais:
Não se trata apenas de criar serviços direito das comissões de trabalhadores de
ou concretizar prestações, pecuniárias ou participar na elaboração da legislação do

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trabalho e dos planos económico-sociais às iniciativas das comunidades locais e das
que contemplem o respectivo sector [art. populações tendentes a resolver os respec-
54o, no 5, alínea d)]; direito das associações tivos problemas habitacionais, fomento da
sindicais de participar na elaboração da criação de cooperativas de habitação e da
legislação de trabalho e no controlo da autoconstrução [art. 65o, no 2, alíneas c) e
execução dos planos económico-sociais d)]; envolvimento dos cidadãos na defesa
[art. 56o, no 2, alíneas a) e c)], bem como do ambiente (art. 66o, no 2); cooperação com
de se fazer representar nos organismos de os pais na educação dos filhos [art. 67o, no 2,
concertação social [art. 56o, no 2, alínea d)]; alínea c)]; fomento e apoio das organizações
direito das associações de consumidores e juvenis (art. 70o, no 3); apoio às associações
das cooperativas de consumo de serem ou- de cidadãos portadores de deficiência (art.
vidas sobre as questões que digam respeito 71o, no 3); colaboração dos órgãos de comu-
à defesa dos consumidores (art. 60o, no 3); nicação social, das associações e fundações
direito dos interessados de participação de fins culturais, das colectividades de cul-
no planeamento urbanístico (art. 65o, no tura e recreio, das associações de defesa do
4); direito das associações representativas património cultural, das organizações de
das famílias de serem ouvidas na definição moradores e de outros agentes culturais na
da política de família [art. 67o, no 2, alínea democratização da cultura e no fomento e
b)]; direito de participação das associações na criação culturais (arts. 73o, no 3, e 78o, no
de professores, de alunos e de pais, das 2); inserção das escolas nas comunidades
comunidades e das instituições de carácter que servem [art. 74o, no 2, alínea f)]; reconhe-
científico na definição da política de ensino cimento do ensino particular e cooperativo
(art. 77o, no 2); direito de participação das (art. 75o, no 2, conexo com o art. 43o, no 4);
organizações representativas de trabalha- colaboração das escolas e das associações
dores e das organizações representativas e colectividades desportivas na promoção
das actividades económicas na definição, da cultura física e do desporto (art. 79o, no
na execução e no controlo das principais 2); estímulo do associativismo dos traba-
medidas económicas e sociais [arts. 80o, lhadores rurais e dos agricultores [art. 97o,
alínea g), e 92o, no 2]. no 2, alínea d)].
III − Em vez do exclusivismo do Estado
no desenvolvimento de actividades que 2.3. A dependência da
conduzam à efectivação de direitos econó- realidade constitucional
micos, sociais e culturais, a Constituição I − A realização dos direitos económicos,
pressupõe ou faz apelo à colaboração de sociais e culturais não depende apenas da
entidades da sociedade civil, de entidades aplicação das normas constitucionais. De-
privadas ou afins. pende também, e sobretudo, de condições
Assim: realização de obras sociais nas económico-financeiras, administrativas,
empresas, com a participação das comis- institucionais e socioculturais (entrando
sões de trabalhadores [art. 54o, no 5, alínea nestas a sedimentação, na consciência jurí-
e)]; cooperação das organizações sociais no dica geral a que, por vezes, se apela).
desenvolvimento sistemático de uma sede Não por acaso o art. 22o da Declaração
de centros de repouso e de férias [art. 59o, Universal liga os direitos económicos,
no 2, alínea d)]; apoio às instituições particu- sociais e culturais “ao esforço nacional e
lares de solidariedade social (art. 63o, no 3); à cooperação internacional, de harmonia
articulação das formas empresariais e pri- com a organização e os recursos de cada
vadas de medicina com o serviço nacional povo”. E a doutrina fala no ajustamento do
de saúde [art. 64o, no 3, alínea d)]; estímulo socialmente desejável ao economicamente
à construção privada e incentivo e apoio possível, na subordinação da efectividade

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concreta a uma reserva do possível, na ra- pela alternância. Não de uma total liberda-
ridade material do objecto da pretensão de. Não pode ser obliterado o princípio da
como limite real ou na reserva financeira proporcionalidade (lato sensu), aferido por
do possível. padrões de justiça social, solidariedade e
II − A apreciação dos factores económi- “igualdade real entre os Portugueses” [art.
cos para uma tomada de decisão quanto às 9o, alínea d), da Constituição]; e aos tribu-
possibilidades e aos meios de efectivação nais em geral e ao Tribunal Constitucional
dos direitos cabe aos órgãos políticos e le- em especial competirá descobrir eventuais
gislativos − não aos da Administração. Não inconstitucionalidades.
corresponde a uma simples operação her- Mas perante uma alteração substancial
menêutica, mas a um confronto complexo de todos aqueles condicionalismos, não
das normas com a realidade circundante. deve ter-se por legítima, ou até por ne-
De resto, sendo abundantes as normas e cessária, a própria revogação das normas
escassos os recursos, dessa apreciação po- legais concretizadoras? Eis o problema
derá resultar a conveniência de estabelecer habitualmente debatido como problema
diferentes tempos, graus e modos de efecti- do retrocesso ou de proibição do retrocesso
vação dos direitos. Se nem todos os direitos social.
económicos, sociais e culturais puderem ser
tornados plenamente operativos em certo 2.4. O não retorno da concretização
momento ou para todas as pessoas, então I − Entendo hoje que um princípio de
haverá que determinar com que prioridade não retorno de concretização das normas
e em que medida o deverão ser. O contrário de direitos económicos, sociais e culturais
redundaria na inutilização dos comandos não tem autonomia, por estar conexo com
constitucionais: querer fazer tudo ao mes- o princípio da tutela da confiança e, sobre-
mo tempo e nada conseguir fazer. tudo, ser uma decorrência do princípio da
Todavia, por regra (insista-se), o conte- eficácia jurídica dos direitos fundamentais.
údo essencial de todos os direitos deverá E, por outro lado, deixo de o ligar à proi-
sempre ser assegurado, e só o que estiver bição de retrocesso social, pelos equívocos
para além dele poderá deixar ou não de que a ideia tem gerado.
o ser em função do juízo que o legislador A despeito disso, mantenho, no essen-
vier a emitir sobre a sua maior ou menor cial, o que disse em escritos e palestras
relevância dentro do sistema constitucional anteriores.
e sobre as suas condições de efectivação. II − Assim, quando as normas legais
Vale isto dizer que também aqui se jus- vêm concretizar normas constitucionais
tifica e se impõe uma tarefa de harmoniza- não exequíveis por si mesmas, não fica
ção e concordância prática. Não se tratará, apenas cumprido o dever de legislar como
como nos direitos, liberdades e garantias, o legislador fica adstrito a não as supri-
de colisões ou conflitos de direitos (ou dos mir, abrindo ou reabrindo uma omissão.
seus conteúdos potenciais máximos). Tra- Exige-o a própria força normativa da
tar-se-, sim, de uma avaliação simultânea Constituição.
(ou dialéctica) dos direitos a efectivar e dos Não se visa com isso revestir as normas
recursos, humanos e materiais, disponíveis legais concretizadoras da força jurídica
e adequados para o efeito. própria das normas constitucionais ou
Nesta apreciação, os órgãos de decisão elevar os direitos derivados a prestações
política hão-de gozar, por certo, de uma a garantias institucionais. Essas normas
relativa margem de liberdade − da liber- continuam modificáveis como quaisquer
dade de conformação a eles inerente e outras normas ordinárias, sujeitas a con-
postulada pelo pluralismo democrático e trolo da constitucionalidade e susceptíveis

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de caducidade em caso de revisão constitu- art. 19o da Constituição quer no sentido da
cional (sem prejuízo de limites materiais). impossibilidade de suspensão dos direitos
Nem sequer vêm a prevalecer sobre outras económicos, sociais e culturais, quer no
normas ordinárias; como tais, nenhuma sentido de uma eventual suspensão não
consistência específica adquirem. ter de observar quaisquer regras ou limites,
O que se pretende é, na vigência de designadamente o respeito da reserva de
certas normas constitucionais, impedir competência legislativa parlamentar;
a abrogação pura e simples das normas 4o) Mesmo nesses casos a dignidade da
legais que com elas formam uma unidade pessoa humana postula a garantia de um
de sistema. O legislador, de acordo com os conteúdo mínimo dos direitos ou de um
critérios provenientes do eleitorado, pode mínimo material de subsistência.
adoptar outros modos e conteúdos de Há uma relação necessária constante
concretização. Nada obriga, por exemplo, entre a realidade constitucional e o estádio
a que o serviço nacional de saúde (art. 64o) de efectividade das normas, uma relação ne-
ou o sistema de ensino (arts. 74o, 75o e 76o) cessária constante entre a capacidade do Es-
tenham de obedecer sempre aos mesmos tado e da sociedade e os direitos derivados
paradigmas: podem ser, ora mais centrali- a prestações, uma relação necessária cons-
zados ora mais descentralizados, ora mais tante entre os bens económicos disponíveis
socializantes ora mais liberalizantes. O que e os bens jurídicos deles inseparáveis. E, por
não pode é o legislador deixar de prever e tudo isso, só é obrigatório o que seja possível,
organizar tal serviço e tal sistema. mas o que é possível torna-se obrigatório.
Todavia, porque os direitos económicos,
sociais e culturais estão sujeitos à reserva 2.5. A repartição dos custos em razão das
do possível, as respectivas normas concre- condições económicas dos titulares
tizadoras, por seu turno, estão sujeitas a I − Os direitos económicos, sociais e
uma reserva geral imanente de interpretação, culturais são, no contexto do Estado de
traduzida nos seguintes pontos: Direito democrático, direitos universais e
1o) Quando se verifiquem condições não direitos de classe. Tal não obsta a que,
económicas favoráveis, essas normas de- por ancorados na ideia de uma igualdade
vem ser interpretadas e aplicadas de modo real a construir, as incumbências públicas
a de delas extrair o máximo de satisfação correlativas da sua realização consintam
das necessidades sociais e a realização de alguma adequação em função das condi-
todas as prestações; ções concretas dos seus titulares ou bene-
2o) Ao invés, não ocorrendo tais condi- ficiários.
ções − em especial por causa de recessão ou Direitos de libertação de necessidade
de crise financeira − as prestações têm de e expressão de solidariedade organizada,
ser adequadas ao nível de sustentabilidade como já disse, são direitos de todos − por-
existente, com eventual redução dos seus que todos fazem parte de uma só comu-
beneficiários ou dos seus montantes; nidade e porque todos, conforme as suas
3o) Situações de extrema escassez de circunstâncias e vicissitudes, podem vir
recursos ou de excepção constitucional carecer dos correspondentes bens. Porém,
(estado de sítio ou de emergência) podem precisamente porque há desigualdades de
provocar a suspensão destas ou daquelas facto, as prestações em se projectam hão-de
normas, mas elas hão-de retomar a sua tomá-las em conta, podem ser diferenciadas
efectividade, a curto ou a médio prazo, e hão-de ser suportadas desigualmente de
logo que restabelecida a normalidade da acordo com as capacidades económicas.
vida colectiva − o que não se justifica, em É o próprio princípio de igualdade que
caso algum, é uma leitura a contrario do o exige assim como, consoante acabámos

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de ver − em face de insuperáveis limites lizados, o auxílio material às vítimas de
financeiros − a efectividade das normas crimes e de calamidades naturais, etc. A
constitucionais em relação aos direitos de- essencialidade dos bens ou a universalida-
rivados a prestações, no seu conjunto. de justificam-no.
II − Sobre o problema de saber como Por outro lado, quanto às restantes ne-
devem ser encaradas e suportadas as despe- cessidades – ou porque não afectam identi-
sas inerentes à satisfação das necessidades camente todos os cidadãos, ou porque não
colectivas, há três linhas possíveis e bem revestem para todos o mesmo significado
demarcadas: ou porque dependem de circunstâncias
a) A do Estado mínimo, que tende a atri- nem sempre previsíveis – pode justificar-se
buir todos ou quase todos esses encargos uma partilha dos custos da sua satisfação
aos indivíduos ou a grupos privados; (até porque se verifica uma partilha de be-
b) A do Estado assistencial, que tende, nefícios). O Estado deve pagar uma parte,
pelo contrário, a confiá-los ao Estado; os próprios outra parte e até onde possam
c) E a do Estado social, que aceita assu- pagar.
mir os custos de satisfação de necessidades Os que podem pagar, devem pagar. E
básicas, embora não os das demais necessi- é preferível que paguem em parte (até
dades a não ser na medida do indispensável certo limite do custo real) o serviço ou o
para assegurar aos que não podem pagar bem, directamente, por meio de taxas, e
as prestações os mesmos direitos a que têm não indirectamente, mediante impostos,
acesso aqueles que as podem pagar. por três motivos: 1) porque assim tomam
Se, obviamente, a Constituição rejeita o consciência do seu significado económico
Estado mínimo, tão pouco se compadece e social e das consequências de aproveita-
com o Estado assistencial (em face da soma rem ou não os benefícios ou alcançarem ou
de tarefas e incumbências que atribui às en- não os resultados advenientes; 2) porque,
tidades públicas, à luz do desígnio de “uma em muitos casos, podem escolher entre
sociedade mais solidária” do art. 1o). serviços ou bens em alternativa; 3) porque
Não se conforma com este por causa de mais de perto podem controlar a utilização
todo o relevo que confere à intervenção de do seu dinheiro e evitar ou atenuar o peso
grupos, associações e instituições existentes do aparelho burocrático.
na sociedade civil na efectivação dos direi- Diversamente, os que não podem pagar,
tos sociais. Depois, por causa da garantia não devem pagar (ou devem receber presta-
da propriedade e da iniciativa económica ções pecuniárias − bolsas, pensões, subsídio
privada (reforçada em sucessivas revisões). de desemprego − para poderem pagar).
Enfim, porque, expressamente, ao conside- Mas a fronteira entre necessidades bá-
rar o acesso à justiça alude à “insuficiência sicas e outras necessidades não é nunca rí-
de meios económicos” (art. 20o, no 1, atrás gida, nem definitiva. Depende dos estágios
considerado) e declara o serviço nacional de desenvolvimento económico, social e
de saúde tendencialmente gratuito “tendo cultural e da situação do país. E é também o
em conta as condições económicas e sociais sufrágio universal que, em cada momento,
dos cidadãos” [art. 64o, no 2, alínea c), na a traça, através das políticas públicas adop-
versão de 1989]. tadas pelos órgãos nele baseados.
III − Por um lado, recai sobre o Estado
assegurar, por meio de impostos, a assistên- 2.6. A adequação das formas de tutela
cia materno-infantil, os cuidados primários As normas que consagram direitos eco-
de saúde, o ensino básico e o secundário nómicos, sociais e culturais são quase todas
obrigatórios, o apoio no desemprego, a normas programáticas, conforme se sabe,
integração dos deficientes e dos margina- e a inconstitucionalidade por omissão (art.

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283o da Constituição) é a sua violação mais Afora isso, os direitos derivados a
característica. prestações seguem o regime comum de
Não deixa, porém, de se registar incons- tutela jurisdicional, de tutela através do
titucionalidade por acção na hipótese de Provedor de Justiça e dos restantes meios
normas legais contrárias, designadamente de protecção assegurados aos cidadãos.
por desvio de poder legislativo e por pre- Inclusive, enquanto com estrutura aproxi-
terição do princípio da igualdade – po- mável da dos direitos, liberdades e garan-
dendo chegar o Tribunal Constitucional a tias, poderão beneficiar das providências
emitir sentenças aditivas. Assim como na judiciais prioritárias e céleres previstas no
já apontada hipótese de revogação (não, art. 20o, no 5 da Constituição) e traduzidas
logicamente, de declaração de inconstitu- no instituto da intimação dos arts. 109o e
cionalidade) de normas legais destinadas segs. do Código de Processo nos Tribunais
a conferir exequibilidade às normas cons- Administrativos e Tributários.
titucionais, sem que elas sejam substituídas
por outras com a consequente necessária
sujeição a fiscalização.

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