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A efetividade dos direitos humanos e a

cláusula da reserva do possível

Rogério Taiar

Sumário
1. Introdução. 2. Evolução histórica do con-
ceito e efetividade dos direitos fundamentais. 3.
Direitos humanos e a Carta Magna de 1988. 4.
Reserva do possível, custo dos direitos e escas-
sez dos recursos. 5. Considerações finais.

1. Introdução
A questão dos direitos humanos, por
mais estudada e lecionada que já tenha
sido, é inextinguível, dada sua dinâmica
de parceria com o ser humano, não importa
onde ele esteja e a que tempo.
É uma questão que atravessa séculos e
que se tornou mais clara e evidente justa-
mente no confronto com seu total desres-
peito – as duas Grandes Guerras Mundiais.
Mas a demanda pelo exercício de um
direito também gera custos, organização
social, que também devem ser arcados pelo
conjunto dos que usufruem do direito – a
sociedade organizada.
Nada mais justo: o fruidor do direito
está também atrelado à geração de um con-
texto social próprio à sua fruição. O Estado,
em especial nos regimes democráticos de
direito, concentra as obrigações de pla-
nejamento, orçamento e execução de atos
Rogério Taiar é Doutor em Direitos Huma-
nos pela Faculdade de Direito da Universidade
que resultem nesse “contexto propício” à
de São Paulo. Professor de Direito Internacional fruição dos direitos fundamentais.
do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) Se a todo cidadão for garantido o exer-
e da Escola Superior Diplomática (ESD). cício de seus direitos pelo simples fato de

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ter nascido, é natural concluir que nem que resultou na proteção internacional da
todos serão, no entanto, contribuintes para pessoa humana, o que até então era reco-
a geração do contexto social a que nos re- nhecido apenas “intramuros” das nações,
ferimos anteriormente. Mencione-se, como foi o término da II Grande Guerra (1945).
exemplo, as crianças, os inválidos, os idosos (Idem, p. 27)
e fácil será deduzir que apenas parcela dos Mesmo não sendo de evolução linear e
detentores dos direitos é também contri- sucessiva, pode-se identificar três gerações
buinte para sua fruição. de direitos humanos, de tal forma a dar-lhes
Isso nos leva a mais uma conclusão uma classificação e visualização institucio-
inarredável: há um limite para o que a nal da interação desses direitos nos cenários
sociedade pode suportar por meio de seu nacional e internacional, como sugere Vaz
representante, o Estado, e esse limite vai (2007, p. 27).
seguramente impor aos gestores desse A primeira geração dos direitos huma-
Estado a priorização, hierarquização, pro- nos está representada pelos direitos indi-
gramação orçamentária e de tempo para viduais, políticos e de nacionalidade. São
satisfação dos cidadãos, o que fatalmente direitos cuja efetivação demanda a abstenção
esbarrará em exceções e diversidade que de ação estatal, ou seja, a interferência do Es-
serão levadas ao Judiciário para que decida tado resulta, quase sempre, em prejuízo ou
o que é inadiável, ainda que excepcional, negação desses direitos. A segunda geração
e está lastreado nas garantias dos direitos dos direitos humanos ganha a dimensão
fundamentais. do social, cultural e econômico, sendo im-
É do que trata este trabalho, que parte de perativa, para sua efetivação, a presença
uma breve análise da evolução histórica do positiva do Estado. Tem-se que, se, nos
conceito e da efetivação dos direitos huma- direitos humanos de primeira geração, a
nos, para então discutir os direitos sociais violação se dá pela atuação do Estado, nos
deles advindos e sua aplicação dentro da de segunda geração, há que haver interfe-
“reserva do possível”, que envolve custos e rência, atuação estatal para sua efetivação,
recursos administrados pelo Estado. sendo sua omissão a violação desses direitos.
A terceira geração de direitos humanos diz
2. Evolução histórica do conceito e respeito aos direitos difusos, transindividu-
ais, supraindividuais ou metaindividuais.
efetividade dos direitos fundamentais
São os direitos resultantes e objetivos da
Os direitos humanos não eram reco- organização internacional, como paz, de-
nhecidos como tal na Antiguidade, já que senvolvimento, meio ambiente, autodeter-
eles se impõem do jogo de interesses entre minação dos povos, proteção internacional
indivíduos/coletividade e Estado. No ao consumidor e outros. (Idem, p. 27-28)
entanto, já a partir do Renascimento, eles Defende-se a historicidade desses direi-
adquirem o fundamento do Direito Natu- tos como fruto de uma elaboração, lutas e
ral, evoluindo nos séculos seguintes até o ações sociais, permitindo-se a reconstrução
estabelecimento do Estado Moderno, no histórico-epistemológica dos direitos hu-
século XX. (VAZ, 2007, p. 26-27) manos (VAZ, 2007, p. 29). Ou, nas palavras
A modernidade foi palco das doutri- de Bobbio (1992, p. 41):
nas privatista e liberal, até o surgimento e “Do ponto de vista teórico, sempre
reformulação pelas doutrinas socialistas. defendi – e continuo a defender,
Considere-se esse um período de “gesta- fortalecido por novos argumentos –
ção” dos direitos e valores econômicos, que os direitos do homem, por mais
culturais e sociais pelo viés “coletivo” e não fundamentais que sejam, são direitos
mais do indivíduo. Mas o marco divisório históricos, ou seja, nascidos em certas

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circunstâncias, caracterizadas por sidade de limitação à soberania nacional,
lutas em defesa de novas liberdades reconhecendo que os indivíduos têm di-
contra velhos poderes, e nascidos de reitos protegidos pelo direito internacional.
modo gradual, não todos de uma vez Passaram a ser discutidos, no âmbito da
e nem de uma vez por todas.” ONU, assuntos como manutenção da paz,
O Direito Humanitário é o que limita as segurança internacional, desenvolvimento
ações humanas diante dos direitos humanos de relações amistosas entre Estados, coope-
– também chamado Direito Internacional da ração internacional no plano econômico-
Guerra, por regular a violência em âmbito social-cultural, a adoção de um padrão
internacional. A Liga das Nações, criada em internacional para a saúde, o trabalho e o
1920, é decorrência direta da constatação meio ambiente, reconhecidos como de inte-
da urgência de se fixar padrões genéricos resse supranacional. (VAZ, 2007, p. 30)
sobre paz e segurança mundial. Também A Declaração Universal dos Direitos
a Organização Internacional do Trabalho Humanos também afirma o compromis-
(OIT), após a primeira Grande Guerra, é so das ordens nacional e internacional
fruto desse espírito universal, que promove relativamente aos direitos civis, políticos,
padrões internacionais de condições de tra- econômicos, sociais e culturais. Da expe-
balho e bem-estar (VAZ, 2007, p. 29). riência das duas Grandes Guerras resta o
As três últimas referências – Direito Hu- consenso sobre a necessidade de uma ética
manitário, Liga das Nações e OIT – configu- universal. A Declaração é o ápice de um
ram marcos históricos do início do processo processo que se iniciou com a Declaração
de internacionalização dos direitos huma- de Independência dos Estados Unidos, a
nos, por representarem rupturas com o que Declaração dos Direitos do Homem e do
até então se considerava, classicamente, a Cidadão e da Revolução Francesa; nesse
soberania nacional. É, no entanto, com o processo, foram reconhecidos os direitos
final da II Grande Guerra que os Direitos de igualdade essencial de todo ser humano
Humanos ganham sedimentação interna- em sua dignidade de pessoa, independen-
cional, ironicamente por deixar clara sua temente das diferenças de raça, cor, sexo,
descontinuidade e necessidade de reestru- língua, religião, opinião, origem nacional
turação no pós-guerra. (PIOVESAN, 2007, ou social, riqueza ou quaisquer outras.
p. 109; VAZ, 2007, p. 29) (Idem, p. 30-31)
A dissolução da Liga das Nações deu Tem-se, pois, que “a efetivação dos
lugar à criação da Organização das Nações direitos sociais depende da realização de
Unidas (1945), que adotou a Declaração políticas públicas por parte do Estado, o
Universal dos Direitos Humanos 1 (Re- que faz com que a proteção de um direito
solução 217 A, III) em assembleia geral social se dê pela ação estatal, e a violação
realizada em 10 de dezembro de 1948, com pela omissão do poder público”. (WANG,
a aprovação, por unanimidade, dos 48 Es- 2006, p. 3)
tados Membros.
É a partir desse documento que são 3. Direitos humanos e a
redefinidos os postulados da Teoria do Carta Magna de 19882
Estado, colocando o homem social no cen-
tro das preocupações contemporâneas. Nas palavras de Vaz (2007, p. 31), a
A instalação do Tribunal de Nuremberg, “Constituição Federal de 1988 é uma das
também instalado pelas Nações Unidas no mais avançadas do mundo em relação à
pós-guerra, consolidou a ideia da neces- proteção dos direitos humanos” e a pri-
1
Disponível em: <http://www.mj.gov.br/sedh/ 2
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm>.

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meira brasileira a elencar o princípio da funções constituintes primárias ou
prevalência dos direitos humanos como originárias.”
fundamental às relações internacionais do (…)
Estado. “Penso que a noção de cláusula pétrea
A importância que se depreende do é bem mais restrita do que a alusiva a
texto constitucional, relativamente aos direito e garantia previstos no Diplo-
Direitos Fundamentais, foi descrita de ma Maior. O artigo 60, § 4o, inciso IV,
maneira irretocável pelo ministro Marco é categórico no que veda deliberação
Aurélio Mello (2006, p. 13), que inclusive sobre proposta de emenda que vise
menciona seu papel hierárquico relativa- a abolir direito ou garantia constitu-
mente às cláusulas pétreas: cionais. Essa foi a premissa de meu
“É preciso não perder de perspecti- voto.” (Idem, p. 18)
va que as emendas constitucionais O termo “exercício dos direitos sociais
podem revelar-se incompatíveis, e individuais” aparece já no preâmbulo à
também elas, com o texto da Cons- Constituição, que em seu art. 1o, II e III,
tituição a que aderem. Daí a sua reconhece a cidadania e a dignidade da
plena sindicabilidade jurisdicional, pessoa humana como fundamentos da
especialmente em face do núcleo República Federativa do Brasil.
temático protegido pela cláusula da No artigo 3o, a Carta Maior relaciona o
imutabilidade inscrita no artigo 60, que chama de “objetivos fundamentais da
§ 4o, da Carta Federal. As denomina- República Federativa do Brasil”, a saber,
das cláusulas pétreas representam, construir uma sociedade livre, justa e soli-
na realidade, categorias normativas dária (I); erradicar a pobreza (III); promo-
subordinantes que, achando-se pré- ver o bem de todos, sem preconceitos de
excluídas, por decisão da Assembléia origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
Nacional Constituinte, do poder de outras formas de discriminação (IV).3
reforma do Congresso Nacional, O artigo 4o relaciona os princípios que
evidenciam-se como temas insuscetí- norteiam as relações internacionais: inde-
veis de modificação pela via do poder pendência nacional (I); prevalência dos
constituinte derivado direitos humanos (II); autodeterminação
(…) dos povos (III); não-intervenção (IV); igual-
Desse modo, não assiste ao Congres- dade entre os Estados (V); defesa da paz
so Nacional qualquer poder de rever (VI); solução pacífica dos conflitos (VII);
ou reapreciar o sistema de valores repúdio ao terrorismo e ao racismo (VIII);
essenciais consagrado pela Cons- cooperação entre os povos para o progresso
tituição, na qual avultam, por sua da humanidade (IX) e concessão de asilo
indiscutível relevância, o postulado político (X).4
da Federação e o princípio tutelar A Constituição Federal de 1988 classifica
dos direitos e garantias individuais, os direitos fundamentais em cinco grupos:
inclusive aqueles de índole jurídico- (1) direitos individuais (art. 5o); (2) direitos à
tributária. nacionalidade (art. 12); (3) direitos políticos
Emendas à Constituição podem, (arts. 14 a 17); (4) direitos sociais (arts. 6o e
assim, incidir, também, no vício da 193 e ss.); e (5) direitos solidários (arts. 3o
inconstitucionalidade, configurado e 225).
este pela inobservância de limitações 3
Constituição da República Federativa do Brasil,
jurídicas superiormente estabele-
1988, disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
cidas no Texto Constitucional por ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm>.
deliberação do Órgão exercente das 4
Idem.

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Quanto aos Tratados Internacionais, autoaplicáveis, os direitos econômicos,
existem quatro correntes de discussão do sociais e culturais dependem da criação
assunto, a saber: (a) hierarquia supracons- de “condições, ou seja, sua efetivação deve
titucional dos tratados de direitos humanos ser programada e progressiva”. Com a
(em função da supremacia da ordem inter- criação do Comitê de Direitos Econômicos
nacional sobre a ordem nacional); (b) hie- e Culturais das Nações Unidas, cuja com-
rarquia constitucional (incorporação pelo petência é a de monitorar a implementação
texto constitucional do direito internacio- dos direitos elencados no Pacto, os Estados
nal); (c) hierarquia infraconstitucional, mas Membros devem demonstrar, por meio de
supralegal, dos tratados (havendo conflito relatórios, as medidas tomadas, assim como
entre tratado e Constituição, esta preva- as dificuldades encontradas para a efetiva-
lecerá; havendo antinomia envolvendo o ção dos citados direitos. (Ibidem)
tratado e lei federal, prevalece o primeiro); Relativamente aos direitos sociais,
e (d) paridade hierárquica entre tratado e mencione-se a importância do Protocolo
lei federal (desde 1977, o STF equipara o Adicional à Convenção Americana sobre
tratado federal à lei federal5). Direitos Humanos em Matéria de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo
Direitos humanos econômicos, de San Salvador, 1988), que reforça, na es-
sociais e culturais fera do Sistema Interamericano de Direitos
A Rússia foi a primeira a reconhecer a Humanos, o reconhecimento dos direitos
importância desses direitos, em 1919, na humanos de segunda geração, a saber: di-
Declaração dos Direitos do Povo Traba- reito ao trabalho (art. 6o); direitos sindicais
lhador e Explorado. Outras constituições (art. 8o); direito à previdência social (art. 9o);
passaram a também institucionalizar esses direito à saúde (art. 10o); direito a um meio
direitos, como a do México (1917), a da ambiente sadio (art. 11); direito à alimen-
Alemanha (1919), a da Espanha (1931), a da tação (art. 12); direito à educação (art. 13);
Irlanda (1937) e outras. (VAZ, 2007, p. 34) direito aos benefícios da cultura (art. 14);
A promulgação da Declaração Univer- direitos à constituição e proteção da família
sal de Direitos Humanos (1948), como já (art. 15); direito da criança (art. 16); direito
se mencionou alhures, reconhece expres- do idoso (art. 17); e direito ao portador de
samente a indivisibilidade entre direitos deficiência (art. 18). (VAZ, 2007, p. 36)
civis e políticos e direitos sociais, econômi- No Brasil, a Constituição de 1988 re-
cos e sociais. Mesmo assim, foi só a partir presenta a maior conquista em termos de
de 1966 que a comunidade internacional direitos sociais. Tais direitos são citados
passou a adotar o Pacto Internacional de também a partir do Preâmbulo da CF-88 e
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, seguem especificados no decorrer de seu
que expande a relação de direitos sociais texto, como menciona-se a seguir.
contida na Declaração Universal de Direitos O art. 1o da CF-88 institui os “valores
Humanos. Tal Pacto cria obrigações para os sociais do trabalho” como fundamento da
Estados Membros, responsabilizando-os República Federativa do Brasil; o art. 3o
internacionalmente pelos casos de violação funda a “sociedade solidária”, o “desen-
de direitos econômicos, sociais e culturais volvimento nacional”, a erradicação da
contidos em seu texto. (Idem, p. 35) “pobreza e marginalização” e a redução
Enquanto os direitos civis e políticos das “desigualdades sociais e regionais”
são assegurados de imediato, por serem como objetivos fundamentais da Repúbli-
5
Para um estudo mais aprofundado, v. VAZ,
ca; o art. 4o, como se viu alhures, relaciona
2007, p. 32-33; PIOVESAN, 2007, p. 74; MORAES, os princípios que regem a Nação em suas
1997, p. 24 e ss. relações internacionais; o art. 5o é o que

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garante os direitos individuais; o art. 6o se ção desses direitos. Há que se mencionar,
refere a educação, saúde, trabalho, mora- no entanto, que tal efetivação demanda
dia, lazer, segurança, previdência social, recursos financeiros, já que não se concre-
proteção à maternidade e à infância, além tizam sem ações afirmativas por parte do
da assistência aos desamparados; o art. 7o Estado, da sociedade civil e da sociedade
estabelece direitos e garantias de trabalho internacional – ações essas que dependem
digno; o art. 43 prevê a possibilidade de de recursos orçamentários. O argumento de
articulação, pelo Estado, de uma ação em falta desses recursos ou sua escassez tem
um complexo geoeconômico e social, com o sido utilizado seguidamente por nossos
objetivo de seu desenvolvimento e redução administradores públicos, o que resulta no
de desigualdades regionais; os arts. 127 a adiamento da plena realização dos Direitos
135 estabelecem o Ministério Público e a Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais.
Advocacia como funções essenciais aos in- (Idem, p. 39)
teresses sociais; o art. 170 cria a ordem eco- Observando-se que o Pacto Internacio-
nômica, dispondo sobre: a função social da nal de DHESC é de 1966, e o Protocolo de
propriedade (II), a defesa do consumidor San Salvador é de 1988, fácil concluir que
(V), a defesa do meio ambiente (VI), a re- não se pode mais alegar falta de recursos
dução de desigualdades regionais e sociais para a efetivação de tais direitos. Mencione-
(VII), a busca do pleno emprego (VIII); o art. se, também, que o Estado de Direito tem,
182 trata da política de desenvolvimento como pressuposto essencial, a realização de
urbano; o art. 184 trata do dever – poder um Estado Orçamentário, que significa o
de desapropriação, pela União, dos imó- equilíbrio entre receitas e despesas, sendo o
veis rurais que não cumpram sua função orçamento o instrumento próprio a esse ba-
social; o art. 192 funda o sistema financeiro lanço. A alegação de falta de recursos para a
nacional com vistas a atender os interesses efetivação dos direitos econômicos, sociais
da coletividade. (Idem, p. 36-37) e culturais realça dois erros: o desrespeito
Sob o Título VIII da CF-88, institui-se aos direitos humanos e o desrespeito às
a “Ordem Social” com base no primado normas constitucionais de planejamento
do trabalho e objetivando o bem-estar e a orçamentário. (Ibidem, p. 39-40)
justiça sociais (art. 193). Ainda nesse título, De acordo com o art. 100, § 1o-A, da
a Carta Maior garante efetividade e prote- Constituição Federal, “é obrigatória a inclu-
ção: da seguridade social (arts. 194 e 195); são no orçamento das entidades de direito
da saúde (arts. 196 a 200); da previdência e público, de verba necessária ao pagamento
assistência social (arts. 201 a 204); da edu- de seus débitos oriundos de sentenças
cação (arts. 205 a 214); da cultura (arts. 215 transitadas em julgado, constantes de pre-
e 216); do desporto (art. 217) da ciência e catórios judiciários, apresentados até 1o de
tecnologia (arts. 218 e 219); da comunicação julho, fazendo-se o pagamento até o final
social (arts. 220 a 224); do meio ambiente do exercício seguinte...”.
(art. 225); da família, da criança, do adoles-
cente e do idoso (arts. 226 e 230); dos índios
4. Reserva do possível, custo dos
(arts. 231 e 232). (VAZ, 2007, p. 38)
O artigo 5o da CF-88 dispõe que todos
direitos e escassez dos recursos
os direitos são de exigibilidade imediata (§ A partir da constatação de que decisões
1o), inclusive os direitos humanos econô- judiciais podem impactar as finanças do
micos, sociais e culturais. Para a garantia Estado e resultar em priorização da apli-
de padrões mínimos de vida digna para cação dos recursos públicos (sabidamente
todos, exige-se do Poder Público que este escassos), alguns teóricos lembram que há
estabeleça estratégias políticas de efetiva- um limite fático à exigibilidade judicial

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dos direitos sociais. Tal limite seria a de- descontinuação da fabricação de determi-
pendência econômica do Estado (cobertura nado medicamento, por exemplo). Não é
orçamentária), que se expressa em decisões o caso da reserva do financeiramente possível,
judiciais pelo termo “reserva do possível”. que toca na destinação de recursos públi-
(WANG, 2006, p. 4) cos, o que é legitimamente estabelecido pe-
Tal expressão foi difundida por decisão los poderes Legislativo e Executivo. Mesmo
da Corte Constitucional alemã, proferida em vista da relevância econômica do objeto
em 1972, conhecida como Numerus Clausus, dos direitos sociais prestacionais, este é o
tratando a validade da limitação de vagas posicionamento que tem prevalecido.
em universidades públicas, tendo em vista Veja-se a Ementa de deliberação do
a pretensão de ingresso de um número Supremo Tribunal Federal, indeferindo
maior de candidatos. A Constituição ale- o pedido de Intervenção Federal 2.915-5,
mã não consagra o direito fundamental à requerida no Estado de São Paulo, moti-
educação, mas o Tribunal Constitucional vada pelo não pagamento de precatórios
entendeu que a liberdade de escolha pro- judiciais:
fissional exigia, de certa forma, o direito “Ementa: Intervenção federal. 2. Pre-
de acesso ao ensino universitário. Como se catórios judiciais. 3. Não configura-
vê, pode-se desdobrar a visão de “reserva ção de atuação dolosa e deliberada do
do possível” em dois componentes: um Estado de São Paulo com finalidade
fático e um jurídico. O componente fático de não pagamento. 4. Estado sujeito
relaciona-se à efetiva disponibilidade de a quadro de múltiplas obrigações
recursos necessários à satisfação do direito de idêntica hierarquia. Necessidade
prestacional, enquanto o componente jurí- de garantir eficácia a outras normas
dico depende de existência de autorização constitucionais, como, por exemplo,
orçamentária para o Estado incorrer nos a continuidade de prestação de
respectivos custos.6 serviços públicos. 5. A intervenção,
Como mencionado anteriormente, a efe- como medida extrema, deve atender
tivação dos Direitos Sociais é dependente à máxima da proporcionalidade. 6.
de provisão orçamentária, sendo inques- Adoção da chamada relação de pre-
tionável ser esta a primeira exigibilidade cedência condicionada entre princí-
imediata dos DHESC: a previsão nas leis pios constitucionais concorrentes. 7.
orçamentárias. Há, porém, que se discutir o Pedido de intervenção indeferido.”
tema da reserva do possível, diferenciando-o, (IF 2.915-SP, rel. Min. Marco Aurélio;
primeiramente, da reserva do financeiramente red. p/ acórdão Min. Gilmar Mendes;
possível. A primeira é gênero de que a se- j. 03.02.2003 – Tribunal Pleno – DJ
gunda é espécie. A reserva do possível está 28.11.2003). (VAZ, 2007, p. 42)
relacionada a todos os eventos formais ou A posição do Ministro Celso de Mello
materiais que impedem a efetivação dos (apud VAZ, 2007, p. 42-43) sobre o mesmo
DHESC e a reserva do financeiramente possível assunto ilustra com clareza os limites en-
refere-se apenas aos limites orçamentários contrados pelo Judiciário para a interven-
do Estado. (VAZ, 2007, p. 40) ção federal:
Tem-se como aceitável a reserva do possí- “É que a realização dos direitos eco-
vel, mesmo em nome dos direitos humanos, nômicos, sociais e culturais – além
quando da contingência de fatos da vida (a de caracterizar-se pela gradualidade
de seu processo de concretização
6
SARMENTO, Daniel. A proteção dos direitos sociais:
alguns parâmetros ético-jurídicos. Obra ainda no
– depende, em grande medida, de
prelo. A utilização dos dados contidos neste artigo um inescapável vínculo financeiro
foi gentilmente permitida pelo autor. subordinado às possibilidades or-

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çamentárias do Estado, de tal modo dos direitos humanos econômicos, sociais
que, comprovada, objetivamente, a e culturais, não sua negativa. A CF-88
incapacidade econômico-financeira tanto prevê a realização de um Estado Or-
da pessoa estatal, desta não se poderá çamentário como estabelece o orçamento
razoavelmente exigir, considerada a como instrumento de concretização desse
limitação material referida, a imedia- equilíbrio. (VAZ, 2007, p. 44-45)
ta efetivação do comando fundado no Não se trata de exigir prestação estatal
texto da Carta Política. desatrelada dos limites orçamentários, já
(...) que a própria Declaração Universal dos
– Vê-se, pois, que os condiciona- Direitos Humanos aventa a vinculação da
mentos impostos, pela cláusula da efetivação dos direitos humanos econô-
‘reserva do possível’, ao processo de micos, sociais e culturais à organização e
concretização dos direitos de segunda recursos de cada país. O que se tem exigido
geração – de implantação sempre one- é que o Estado comprove o tratamento que
rosa – traduzem-se em um binômio o direito social lesado está recebendo para
que compreende, de um lado, (1) a sua superação, tanto no passado quanto no
razoabilidade da pretensão individu- presente e no futuro. (Idem, p. 45)
al/social deduzida em face do Poder A escassez de recursos demanda do
Público e, de outro, (2) a existência de Estado escolhas – ou preferências –, o que,
disponibilidade financeira do Estado por sua vez, pressupõe preteridos. Trata-se,
para tornar efetivas as prestações aqui, portanto, da possibilidade (direito) de
positivas dele reclamadas. os preteridos buscarem, por meio do Judi-
Desnecessário acentuar-se, conside- ciário, a tutela de seus direitos. (WANG,
rado o encargo governamental de 2006, p. 3)
tornar efetiva a aplicação dos direi- Ainda que muito se tenha avançado na
tos econômicos, sociais e culturais, seara dos DHESC no país, as intervenções
que os elementos componentes do judiciais eram raras, sendo a posição do
mencionado binômio (razoabilidade Judiciário francamente ortodoxa diante
da pretensão + disponibilidade finan- do princípio da separação dos poderes.
ceira do Estado) devem configurar-se Consideravam-se indevidas as interven-
de modo afirmativo e em situação ções judiciais que implicassem controle
de cumulativa ocorrência, pois, sobre políticas públicas voltadas para a
ausente qualquer desses elementos, efetivação dos direitos sociais, seara ocupa-
descaracterizar-se-á a possibilidade da pelos poderes Legislativo e Executivo.
estatal de realização prática de tais Atualmente, tem-se uma nova visão sobre
direitos.” (ADPF 45 MC/DF/2004, o assunto e tornaram-se comuns as decisões
rel. Min. Celso de Mello). judiciais que determinam a entrega de
Observa-se, pois, que a ausência ou prestações materiais relacionadas a direitos
escassez de recursos materiais constitui sociais constitucionalmente positivados aos
barreira à efetivação dos direitos sociais, de jurisdicionados. 7
tal maneira que o cidadão que pleiteia um É preciso levar em consideração tam-
direito social ao Estado, que, por sua vez, bém, como bem lembrado por Sarmento,
alega falta de recursos financeiros e ausên- que o acesso à justiça no Brasil não é, abso-
cia de previsão orçamentária, terá negado lutamente, igualitário. Por inúmeras razões,
pelo Judiciário seu pedido, aniquilando
7
SARMENTO, Daniel. A proteção dos direitos sociais:
direitos humanos consagrados na ordem
alguns parâmetros ético-jurídicos. Obra ainda no
interna e externa. Ora, a cláusula de reserva prelo. A utilização dos dados contidos neste artigo
do possível deveria condicionar a efetivação foi gentilmente permitida pelo autor.

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há um descompasso entre os segmentos O que não se pode aceitar é que a sim-
mais excluídos e as camadas mais bem ples alegação das limitações existentes para
aquinhoadas financeiramente, o que reflete a efetivação dos direitos sociais seja moti-
um paradoxo, já que o ativismo judicial em vo bastante para isentar o Estado de suas
matéria de direitos sociais – supostamente obrigações, tendo em vista a programação
voltados para a promoção da igualdade ma- orçamentária, que deve prover recursos
terial – pode contribuir para a concentração para a efetivação progressiva e previsível
da riqueza, com a canalização de recursos desses direitos.
públicos escassos para os setores da popu- Em concordância com Sarmento 10 ,
lação já mais beneficiada socialmente.8 entendemos que, se já foi vencido, e com
Se a fruição de direitos básicos por to- sucesso, o momento de afirmação da sin-
dos os cidadãos é um dos pressupostos da dicabilidade dos direitos prestacionais, es-
democracia, a ausência dessa situação ou a tamos vivenciando a fase de racionalização
presença de um nível intolerável de desi- desse processo, que passa, ainda segundo
gualdade social comprometem a condição o mesmo autor, por dois pontos principais:
de “agentes morais independentes dos ci- (1) a superação da “euforia judicialista”
dadãos e ainda prejudicam a possibilidade que tomou conta dos meios jurídicos bra-
de que se vejam como parceiros livres e sileiros, com o reconhecimento de que o
iguais na empreitada comum de construção Poder Judiciário, apesar da relevância de
da vontade política da sociedade”.9 sua função, não é e não tem como ser, por
Saliente-se que a garantia dos direitos limitações institucionais, o protagonista no
sociais não se esgota numa tarefa jurídica, cenário da afirmação dos direitos sociais,
envolvendo um emaranhado de ações es- muito mais dependentes de políticas pú-
tatais, que compreende desde a formulação blicas formuladas e implementadas pelo
de políticas públicas, a criação de procedi- Legislativo e Executivo e da mobilização
mentos, até o dispêndio de recursos e ou- da sociedade civil; e (2) o traçado de parâ-
tras atividades não afeitas ao Judiciário. metros ético-jurídicos para as intervenções
judiciais nessa seara.
Há necessidade de mudança nos pa-
5. Considerações finais
drões sociais brasileiros, que ainda refletem
A análise dos textos pesquisados para grandes desigualdades, para redirecionar
este trabalho aponta, em primeiro lugar, os direitos sociais para seu verdadeiro
para a dimensão histórica e evolutiva dos propósito, que é a promoção da inclusão
direitos humanos. Não se trata de evolução social dos excluídos.
linear, mas dependente de inúmeros fatores
sociais.
No caso brasileiro, a Constituição Referências
Federal de 1988 recepcionou de maneira
francamente favorável os direitos humanos BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro:
internacionais e a jurisprudência deu um Campus, 1992.
importante passo ao reconhecer a plena BRASIL. Constituição da República Federativa do
justiciabilidade dos direitos sociais. No Brasil de 1988. disponível em: <http://www.planalto.
entanto, ainda se verificam barreiras de gov.br/ccivil03/Cosntituicao/Constitui%C3%A7ao.
ausência ou escassez de recursos para sua htm>. Acesso em: 8 jun. 2008.
efetivação, especialmente os financeiros. 10
SARMENTO, Daniel A proteção dos direitos sociais:
alguns parâmetros ético-jurídicos. Obra ainda no
8
Idem. prelo. A utilização dos dados contidos neste artigo foi
9
Ibidem. gentilmente permitida pelo autor.

Brasília a. 46 n. 182 abr./jun. 2009 49


DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos. SARMENTO, Daniel. A proteção judicial dos direitos
Disponível em: <http://www.mj.gov.br/sedh/ct/ sociais: alguns parâmetros ético-jurídicos. In: ______;
legisintern/ddhbibinteruniversal.htm>. Acesso em: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de (Org.). Direitos
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cretos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris (no prelo).
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