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Entre a

Impossibilidade
da Prestação e
a Alteração das
Circunstâncias
em Contexto da
Pandemia de
Covid­‑19

DIRECÇÃO­‑REGIONAL
NORTE DA ASJP
Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
Entre a
Impossibilidade
da Prestação e
a Alteração das
Circunstâncias
em Contexto da
Pandemia de
Covid­‑19

DIRECÇÃO­‑REGIONAL
NORTE DA ASJP
Título
Entre a Impossibilidade da Prestação e a
Alteração das Circunstâncias em Contexto da
Pandemia de Covid­‑19

Identificação da autoria da publicação


Direcção­‑Regional Norte da ASJP
Maximiano do Vale, Secretário
Raquel Contente Dias, Vogal
Sónia Sousa, Vogal
Carla Martins, Vogal Suplente
Daniela Cardoso, Vogal Suplente

Revisão e apoio editorial


DRNorte da ASJP

Design
Fábrica Mutante

Edição
Ciclo de webinars da DRNorte

ISBN 978-989-755-550-3
1.ª edição: Outubro de 2020
← →

Índice

Introdução II.
5 Covid­‑19 e Alteração Superveniente
das Circunstâncias
I. 22
Perturbações na Prestação Mariana Fontes da Costa
Contratual em Tempos Virulentos Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da
– Enquadramento Geral Universidade do Porto; Investigadora do CIJE –
Centro de Investigação Jurídico­‑Económica
6
Catarina Monteiro Pires III.
Advogada; Professora Auxiliar da Faculdade
de Direito da Universidade de Lisboa Covid­‑19 e Alteração Superveniente
das Circunstâncias: Critérios
Orientadores de Decisão em
Situações Tipicamente Previsíveis
39
Lina Castro Baptista
Juíza Desembargadora no Tribunal da Relação
do Porto

4 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração


das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
← →

Introdução

Nestes tempos de incerteza em que vivemos devido à Pandemia


Internacional de Covid­‑19, apenas temos como seguro que
“nada será como dantes”.

E não o será certamente também na aplicação do direito.


A perturbação social e económica grave que a Pandemia de Covid­‑19
gerou e continua a gerar, coloca desafios particulares à estabilidade do tráfego
negocial, convocando a aplicação de distintos institutos jurídicos, tais como, a
impossibilidade da prestação e a alteração superveniente das circunstâncias.
É mais do que nunca premente reflectir sobre a delimitação destes dois
institutos, que, na prática, suscitarão certamente questões de enquadramento
nem sempre fáceis de descortinar, em face ainda da vária e abundante legislação
que nestes últimos meses foi sendo publicada para acorrer à excepcionalidade
da situação em que vivemos.
Pensando nisso, a DRN da ASPJ promoveu a realização de um webinar
subordinado ao tema “Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid­‑19”, o qual teve lugar
no dia 30 de Abril de 2020 e contou com a presença, como moderadora, de
Lina Castro Baptista, Juíza Desembargadora do Tribunal da Relação do Porto, e
como oradoras, de Catarina Monteiro Pires, Advogada e Prof. Auxiliar da FDUL
e Mariana Fontes da Costa, Prof. Auxiliar da FDUP e Investigadora do CIJE.
Os textos que ora se publicam correspondem, com algumas alterações e
desenvolvimentos, à comunicação apresentada pelas oradoras no webinar, bem
assim a um trabalho especificamente elaborado pela Juíza Desembargadora
Lina Castro Baptista a propósito do tema, procurando ser um auxílio aos juízes
na dilucidação das questões jurídicas suscitadas por este quadro social, eco‑
nómico e legislativo inédito.

Saudações associativas,
A DRN da ASJP

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I
Perturbações na
Prestação Contratual
em Tempos Virulentos –
Enquadramento geral

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← 6 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
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I
Perturbações na
Prestação Contratual
em Tempos Virulentos –
Enquadramento geral
Catarina Monteiro Pires
Advogada; Professora Auxiliar da Faculdade de
Direito da Universidade de Lisboa

1. Esquema de base

1. O presente texto é publicado na sequência de uma conferência promo‑


vida pela Direção Regional do Norte da Associação Sindical dos Juízes
Portugueses e realizada em maio de 2020. Visa transmitir, de forma
sucinta e quase esquemática, algumas reflexões gerais sobre o regime
das perturbações da prestação contratual, aplicado no contexto das dis‑
rupções causadas pela atual pandemia(1). Com efeito, esta contingência
aguda de saúde pública, com contornos mundiais e natureza algo incerta,

1 O presente texto surge na sequência de uma conferência, conservando-se, por isso, um estilo simples.
Retomo várias ideias e passagens de textos de anteriores, uns publicados, outros disponibilizados na internet,
dos quais consta ampla bibliografia. Indico os seguintes: Catarina Monteiro Pires, Impossibilidade da prestação,
2017, em particular p. 236 ss, Contratos I – Perturbações na execução, Almedina, 2019, p. 78 ss, Novocoronavírus
e Crise Contratual, AAFDL, 2020, Anotação aos artigos 790.º e ss, disponível em https://aafdl.cld.bz/Novo-
Corona-virus-e-Crise-Contratual/78/, Cláusulas de preço fixo, de ajustamento de preço e de alteração material
adversa e cláusulas de força maior, ROA 2020, disponível em https://portal.oa.pt/media/131416/catarina-
monteiro-pires.pdf e Limites dos esforços e dispêndios exigíveis ao devedor para cumprir, ROA 2016, disponível
em https://portal.oa.pt/media/130278/catarina-monteiro-pires_revista-da-ordem-dos-advogados-2016-8.pdf,
Quatro proposições em torno da vinculação debitória, revisitando o Código Civil de 1966”, Revista de Direito
Civil, n.º 4, 2018 e Efeitos da alteração das circunstâncias, em O Direito, 2013 I-II, p. 181 ss.

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← 7 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
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I. Perturbações na Prestação 1. Esquema de base
Contratual em Tempos Virulentos
Enquadramento Geral

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trouxe consigo desordens e disrupções na execução de contratos, um


pouco por todo o lado e, também, no nosso País.
Atrasos nos pagamentos, dificuldades de produção, diminuição do
rendimento esperado, nomeadamente por diminuição de vendas ou de
clientela, diminuição da utilidade ou perda de utilidade do contrato ou
ainda frustração do resultado que se pretendia atingir com o contrato.
Durante o estado de emergência, somaram­‑se ainda, de forma mais genera‑
lizada, impossibilidade na entrega de bens, encerramento de instalação por
imposição legal ou por imposição administrativa, entre outros exemplos.
Os contratos permitem em regra trocar o presente pelo futuro.
Contudo, como pensar quando o futuro é inesperado, incerto e turbu‑
lento? Qual o papel dos tribunais na reação à crise? Serão institutos
tradicionalmente reservados a casos extremos, como o do artigo 437.º
do Código Civil (alteração das circunstâncias) aplicados no contexto da
atual pandemia?

2. Pensando em contratos privados onerosos e sinalagmáticos, como a com‑


pra e venda, a empreitada, o arrendamento ou a prestação de serviços,
o problema que recorrentemente surge é o de saber quem suportará o
risco destas “patologias”. Quem suportará o “risco de prestação”, desta
não se realizar? E as contingências de uma prestação atrasada? E, com
especial magnitude, quem suportará o chamado “risco da contrapres‑
tação” (do preço, da renda, etc.). O credor? O devedor? Ambos? Com
que limites?

3. A generalidade dos contratos afetados com impacto económico signi‑


ficativo não são contratos de consumo, mas sim contratos comerciais,
sendo esta constatação assumida como premissa do nosso texto, e como
delimitação do respetivo escopo. Aqui se revela, desde logo, a impor‑
tância do tema, sobretudo se pensarmos que a economia portuguesa
é muitas vezes sustentada por financiamento bancário, e não por auto‑
financiamento, nem pelo recurso ao mercado de capitais e que muitas
empresas, sobretudo pequenas e médias empresas, (sobre)vivem com
margens de liquidez reduzidas. Serão problemas do País que agora se
acentuam com a crise, a resolver estruturalmente, ou contingências a
considerar, e a atenuar, no contexto da crise?

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← 8 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
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I. Perturbações na Prestação 1. Esquema de base
Contratual em Tempos Virulentos
Enquadramento Geral

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4. De modo a fixar premissas gerais, o nosso esquema é ainda pensado para


contratos negociados: tratando­‑se de contrato de adesão, colocar­‑se­‑á
ainda um problema de validade do clausulado e seguir­‑se­‑ão os padrões
de interpretação fixados pelo regime jurídico das cláusulas contratuais
gerais quanto a relações empresariais (artigos 17.º e ss do Decreto­‑Lei
n.º 446/85, de 25 de outubro, na versão atualmente em vigor).

5. Os institutos do Código Civil que podem resolver os casos de pertur‑


bações na execução do contrato são vários, desde impossibilidade de
prestar (artigos 790.º ss), incumprimento não culposo, mora do devedor
(artigos 806.º ss), mora do credor (artigos 813.º ss), abuso do direito
(artigo 334.º), alteração de circunstâncias (artigos 437.º e 438.º), incum‑
primento culposo (artigo 801.º, n.º 2), etc. O regime civil é completo e
diversificado, mas oferece alguma complexidade, em alguns casos quanto
aos pressupostos do meio de reação, em outros quanto à delimitação de
âmbitos de aplicação de cada meio de reação.

6. Acresce a dificuldade trazida pelo que designarei como “legislação Covid­


‑19” ou “legislação de crise”. Não examinarei aqui todos os regimes apro‑
vados neste contexto, mas antecipo que, em vários casos, colocar­‑se­‑ão
dúvidas quanto ao âmbito de aplicação dos mesmos e, em particular,
quanto à questão de saber se os mesmos excluem os regimes gerais
previstos no Código Civil, sempre que a própria lei não ofereça resolva
esta interrogação. Julgo que há algumas diretrizes gerais que podem
ser utilizadas:
• Primeira, vários mecanismos legais previstos nesta legislação são exce‑
cionais, não comportando aplicação analógica (cf. artigo 11.º CC).
• Segunda, na generalidade dos casos, a solução da “legislação de crise”
não foi, até à data e para os contratos privados, a de excluir os meios de
reação previstos no Código Civil.
• Terceira: havendo vários mecanismos de reação a um problema, cabe ao
credor a escolha do concreto meio de reação.
• Quarta: o Direito não consente, muito menos num cenário de crise aguda,
aproveitamentos abusivos, estando o exercício de direitos sujeito à limi‑
tação do artigo 334.º do Código Civil (abuso do direito).

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I. Perturbações na Prestação 1. Esquema de base
Contratual em Tempos Virulentos
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• Quinta: à gravidade da crise não deve somar­‑se a distorção do opor‑


tunismo: é de admitir que o credor não deva poder ficar, por força das
regras aplicadas (isoladas ou em conjugação), melhor do que estaria se
não tivesse havido pandemia.

7. De forma muito simples, perante uma perturbação da prestação contra‑


tual no contexto da pandemia, e assumindo que não há lacuna na lei (e
que, portanto, a perturbação está regulada, como em regra será o caso),
o jurista pode basear­‑se no seguinte esquema abstrato de indagação,
sujeito a adaptação perante o caso concreto:
• Primeiro passo. O problema. Qualificação do problema em causa.
Exemplos: Aumento de custos do devedor? Atraso no cumprimento
pelo devedor? Situação económica difícil do devedor? Situação econó‑
mica difícil do credor? Perda de utilidade da prestação para o credor?
Frustração do fim programado?
• Segundo passo. O contrato. Verificação da existência de cláusulas con‑
tratuais que regulem os riscos em causa, de forma direta ou indireta.
Exemplos: cláusulas de força maior, de hardship, de alteração material
adversa, de preço fixo, de preço variável, de ajustamento de preço, etc.
e interpretação do contrato como um todo ((2)).
• Terceiro passo. Os potenciais regimes. Convocação dos regimes poten‑
cialmente aplicáveis ao problema em causa.
• Quarto passo. A interpretação da lei; a) Verificação dos pressupostos de
aplicação desse (s) regime (s); b) Esclarecimento de casos de fronteira;
c) Em concurso de regimes, esclarecimento do regime prevalecente,
em função de uma verificação detalhada do perímetro de cada regime
e da relação entre eles. Este concurso pode ser real ou aparente e pode
envolver regimes legais ou regimes legais e contratuais.
• Quinto passo. A decisão: aplicação do direito aos factos.
Não cuidarei aqui de todos estes aspetos, mas apenas, e limitadamente,
dos pontos 3 e 4. Deixo, contudo, algumas notas adicionais sobre este esquema.

2 Sobre estas cláusulas, pode ver-se o nosso artigo disponível on-line na ROA: Cláusulas de preço fixo,
de ajustamento de preço e de alteração material adversa e cláusulas de força maior, https://portal.oa.pt/
media/131416/catarina-monteiro-pires.pdf.

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I. Perturbações na Prestação 1. Esquema de base
Contratual em Tempos Virulentos
Enquadramento Geral

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8. O ponto de partida para a aplicação do Direito é o problema. Embora,


numa ação judicial, caiba às partes deduzir o pedido, estando o tribunal
limitado pelo mesmo, o juiz conhece o Direito e tem, por isso, liberdade
na (re) qualificação jurídica do problema. Temos de aceitar que o contexto
disruptivo da pandemia pode trazer problemas novos e pode recolocar
problemas antigos, acrescentando novos dilemas. Por tudo isto, este
primeiro momento assume uma importância reforçada.

9. No esquema acima descrito, o segundo passo é o da interpretação do


contrato (artigos 236.º ss). O contrato é uma auto­‑regulação privada de
interesses, expressão do exercício da autonomia privada das partes. Na
generalidade dos casos, ressalvando domínios especiais, o Direito civil
não visa fixar uma ordenação de preferências, em detrimento da liber‑
dade contratual. Há, contudo, que ter presente que a solução contratual
pode não ser evidente e pode exigir um esforço de compatibilização de
várias passagens do contrato.

10. Interpretado o contrato, o jurista convoca abstratamente um ou vários


regimes potencialmente aplicáveis. Por exemplo, se credor resolveu o
contrato, indicando que o mesmo se tornou inútil com a pandemia, ime‑
diatamente se poderá questionar se se trata de um problema de impos‑
sibilidade de prestar ou de alteração de circunstâncias. Convocando os
regimes com alguma ligação ao problema, há, depois, que investigar
com detalhe cada um deles, interpretando as normas jurídicas, e escla‑
recendo as fronteiras entre uns e outros, para no final decidir e aplicar o
regime jurídico aos factos. No ponto II seguinte analisamos precisamente
os potenciais regimes aplicáveis e no ponto III algumas dúvidas quanto
ao regime a aplicar.

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I. Perturbações na Prestação 2. Os potenciais regimes, sua interpretação
Contratual em Tempos Virulentos e delimitação
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2. Os potenciais regimes, sua interpretação e delimitação

A. Impossibilidade superveniente da prestação

É o regime central das perturbações da prestação do Código, organizado


em divisões sucessivas (artigos 790.º e ss) e dotado de alguma complexidade.
Procuraremos organizar apenas dez coordenadas gerais que poderão ser úteis(3).

1. Primeira coordenada: retomando conclusões anteriores, a doutrina portu‑


guesa dominante, bem como a jurisprudência, consideram que a impossibili‑
dade é apenas a “impossibilidade absoluta”, só existindo, portanto, impossibi‑
lidade quando “o impedimento ao cumprimento não é ultrapassável, mesmo
que com esforços e dispêndios adicionais”(4). Daqui resulta que o regime
dos artigos 790.º e ss não se aplica à mera “dificuldade em prestar”, nem à
“excessiva onerosidade” da prestação. É também esta a minha opinião(5).

2. Segunda coordenada: as prestações pecuniárias não são, em si mes‑


mas, impossíveis, nem sequer parcialmente, e só se reduzem enquanto
contraprestação, isto é, não são reduzidas si mesmas, mas por efeito da
relação de reciprocidade com outra prestação contratual. Os problemas
de tesouraria e a falta momentânea de liquidez não tornam a prestação
temporariamente impossível, mas, por força da “legislação de crise”,
podem ser aplicadas moratórias, como a moratória nas rendas prevista
na Lei n.º 4­‑C/2020, de 6 de abril ou a moratória bancária estabelecida
pelo Decreto­‑Lei n.º 10­‑J/2020, de 26 de março.

3. Terceira coordenada. Há que ter em atenção as particularidades das obri‑


gações genéricas, que preenchem grande parte das trocas comerciais.
O género, sendo puro, em regra não perece, pelo que a natureza de
uma obrigação genérica pura (cf. artigos 539.º e 540º) é, em princípio,
um obstáculo à impossibilidade de prestar (genus nunquam perit). Esta
máxima não se aplica, porém, às obrigações de género limitado.

3 Desenvolvidamente, Catarina Monteiro Pires, Impossibilidade da Prestação, p. 131 ss.


4 Catarina Monteiro Pires, Contratos I, Perturbações na execução, p. 22.
5 Nesse sentido, e com várias referências doutrinárias, Catarina Monteiro Pires, Impossibilidade da pres‑
tação, p. 523 ss.

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I. Perturbações na Prestação 2. Os potenciais regimes, sua interpretação
Contratual em Tempos Virulentos e delimitação
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4. Quarta coordenada: os artigos 545.º e ss do Código Civil estabelecem


um regime sobre a impossibilidade total, definitiva e superveniente de
alguma ou algumas das prestações, concretizando os reflexos da impos‑
sibilidade de prestar, cujos efeito geral é o previsto no artigo 790.º do
Código Civil, no quadro particular das obrigações alternativas.

5. Quinta coordenada: o efeito da impossibilidade definitiva (artigo 790.º),


seja ou não imputável ao devedor é, e apenas, o do afastamento da pre‑
tensão de cumprimento da prestação(6). Desta afirmação resultam três
corolários. Primeiro corolário: o dever de indemnizar é uma consequên‑
cia eventual e separada. Segundo corolário: O risco da contraprestação
(pagamento do preço, pagamento da renda, etc.) é também uma ques‑
tão diferente, a examinar separadamente. Terceiro corolário: nem toda a
relação obrigacional desaparece (basta pensar em deveres acessórios,
nomeadamente de notificação da ocorrência da impossibilidade, artigo
762.º, n.º 2) e pode haver lugar ao “commodum” de representação (cf.
artigos 794.º e 803.º).

6. Sexta coordenada: na impossibilidade definitiva, o risco de contrapres‑


tação depende de saber se a impossibilidade é imputável ao devedor,
imputável ao credor, não imputável às partes ou imputável a ambas as
partes. A regra central consta do artigo 795.º, mas há também regimes
especiais, como o do artigo 1227.º ou mesmo o do artigo 1040.º.

7. Sétima coordenada: na minha opinião, na falta de critério contratual e de


regra legal especial, é imputável ao credor o risco de contraprestação
em caso de violação injustificada de comandos que lhe imponham a
omissão ou a prática de certos atos, em vista à realização do programa
obrigacional, em particular à luz da regra da boa­‑fé (artigo 762.º, n.º 2)
e, ainda, caso seja possível apelar a um concreto esquema obrigacional
que lhe atribua esse mesmo risco, esquema esse que só pode ser apu‑
rado perante o contrato em causa(7).

6 Catarina Monteiro Pires, Impossibilidade da Prestação, p. 131 ss e anotação ao artigo 790.º, Novo Coronavírus
e crise contratual. Anotação ao Código Civil, 2020, pp. 86-87.
7 Retomamos a ideia que sustentámos em Catarina Monteiro Pires, Contratos I, Perturbações na Execução,
pp. 44-45 e anteriormente em Catarina Monteiro Pires, Impossibilidade da Prestação, 733 ss.

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8. Oitava coordenada: na impossibilidade temporária, além do efeito do


artigo 792.º, há uma suspensão da prestação, por aplicação analógica
do princípio subjacente ao artigo 790.º, o mesmo sucedendo, por força
do sinalagma, com a contraprestação (cf. ainda artigo 795.º);

9. Nona coordenada: a temporalização ou finalização das prestações tem


consequências quanto a mecanismos de reação. Uma prestação de prazo
absolutamente fixo pode ser imediatamente impossível, sem que haja
outras perturbações. Exemplo: acabar uma obra até determinada data
sob pena de o credor não poder obter uma licença. Nestes casos, não há
mora, nem impossibilidade temporária, mas sim impossibilidade definitiva.

10. Décima coordenada: a pandemia pode ter agravado a dificuldade de cum‑


prir de um devedor que já se encontrava em mora (de acordo com o artigo
804.º, n.º 2, o devedor considera­‑se constituído em mora quando, por
causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efetuada
no tempo devido). Neste caso, não se aplica o disposto no artigo 792º.

11. Décima primeira coordenada: tratando­‑se de impossibilidade parcial não


imputável às partes, opera uma exclusão parcial da prestação (da preten‑
são ao cumprimento natural da mesma), com reflexos, depois, na contra‑
prestação, ou uma resolução do negócio, a implicar um afastamento da
prestação, se o credor tiver perdido o interesse na prestação (cf. artigo
793.º). Se o credor tiver interesse na prestação, pode operar a prestação
do que for possível e a redução proporcional da contraprestação(8).

12. Décima segunda coordenada: a impossibilidade de prestar é direito estrito


e figura modelar do direito das perturbações da prestação. A alteração
das circunstâncias é uma cláusula geral, uma válvula de escape do sis‑
tema. Não podem ser modificadas prestações impossíveis. Não é impos‑
sível uma prestação puramente desequilibrada.

8 Catarina Monteiro Pires, Contratos I, Perturbações na Execução, p. 66.

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B. Mora do credor

1. No sistema do Código Civil português, uma das perturbações meramente


temporárias da prestação é a mora do credor, regulada nos artigos 813.º
e seguintes do Código Civil. Como escrevemos em manual recente(9),
o sistema português, como os demais sistemas europeus continentais,
reconhece uma distinção entre mora do devedor e mora do credor: reve‑
la­‑o a sistematização do Código e a própria teleologia das figuras. Na
falta de disposição contratual (o regime da mora credendi é dispositivo),
a reação do devedor pautar­‑se­‑á pelo disposto nos artigos 814.º e seguin‑
tes e dependerá da verificação dos requisitos do artigo 813.º.

2. A mora do credor pressupõe uma possibilidade de prestação por parte


do devedor, isto é, mora do credor e impossibilidade da prestação são
regimes separados e alternativos.

3. Esquematicamente, temos, pois, que a mora do credor depende de um


requisito negativo, traduzido na falta de verificação de impossibilidade
definitiva e de dois requisitos positivos, a saber: (i) a não aceitação, pelo
credor, da prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou a omissão
pelo credor dos atos necessários ao cumprimento da obrigação e (ii) a
falta de um motivo justificado para a conduta do credor.

4. O comportamento do credor, cuja recusa poderá dar origem à aplica‑


ção do regime da mora do credor, poderá traduzir­‑se num mero ato de
recusa da prestação oferecida (distinto da aceitação com reservas, que
exclui a mora), mas, também, na omissão de comportamentos positivos,
necessários ao cumprimento do programa obrigacional.

5. Não há mora do credor em virtude de recusa ou não aceitação da pres‑


tação se o devedor não oferecer a prestação conforme devida.

9 Idem, Contratos, I. Perturbações na Execução, p. 159 ss.

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6. A posição prevalecente considera que os efeitos da mora accipiendi são


independentes de culpa, ao contrário do que sucede com a mora do
devedor (cf. artigo 804.º) (10).

7. O regime da mora accipiendi visa primacialmente afastar as consequên‑


cias desfavoráveis para o devedor de uma conduta do credor, através da
exoneração do vínculo debitório e do ressarcimento de desvantagens
sofridas, não concedendo, porém, ao devedor o direito a exigir ao credor
que colabore.

C. Alteração das circunstâncias

1. O artigo 437.º, n.º 1, do Código Civil determina o seguinte: “se as cir‑


cunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem
sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do
contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que
a exigência das obrigações por ela assumidas afete gravemente os prin‑
cípios da boa­‑fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato”.
Pode haver regimes especiais, como do regime jurídico do contrato de
agência, artigo 30.º, alínea b), nos termos do qual o contrato de agência
pode ser resolvido por qualquer das partes b) se ocorrerem circunstâncias
que tornem impossível ou prejudiquem gravemente a realização do fim
contratual, em termos de não ser exigível que o contrato se mantenha
até expirar o prazo convencionado ou imposto em caso de denúncia.

2. Deixamos algumas notas sobre a alteração de circunstâncias do


Código Civil.
A norma do artigo 437.º reage à perturbação grave da paridade subja‑
cente a um contrato e radica numa ideia de justiça. Este aspeto habilita,
desde já, a uma advertência: há que resistir à tentação de aplicar a todo
o custo o artigo 437.º, além do seu quadrante próprio e da sua vocação.
Pode haver mais custos ou ser mais difícil prestar porque existe uma
pandemia, mas o sítio certo enquadrar o problema pode não ser o artigo
437.º do Código Civil. Da mesma maneira, se a expectativa de receita é

10 Com várias referências, Catarina Monteiro Pires, Impossibilidade, p. 712 ss.

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menor, em virtude da pandemia, por si só esta diminuição esperada da


receita poderá não ser uma circunstância atendível no âmbito do artigo
437.º. Recorde­‑se, ainda, a máxima que nos parece dever presidir à apli‑
cação do Direito em contexto de crise: ninguém pode ficar, por força de
regras corretivas, melhor do que estaria se não tivesse havido pandemia.

3. O princípio é o de que os contratos são para cumprir. A exceção a de


que os contratos devem ser revistos. A jurisprudência reitera esta ideia.

4. Os tribunais não estão limitados no caso de “grande alteração de circuns‑


tâncias”, mas a crise exige segurança jurídica e, tanto quanto possível,
correções globalmente ponderadas.

5. A alteração das circunstâncias não é critério delimitador dos esforços e


dispêndios exigíveis ao devedor: o devedor deve cumprir com diligência,
o que pode implicar atos de diligência preventiva (para evitar disrupções)
e de diligência reativa, para superar impedimentos ao cumprimento do
programa obrigacional. O devedor obriga­‑se a cumprir de acordo com
a diligência que lhe é exigível, densificada à luz do critério normativo da
diligência do bonus pater familias, previsto no artigo 487.º, n.º 2, aplicável
também à culpa contratual (artigo 799.º, n.º 2).

6. O ponto fundamental está na análise dos pressupostos do artigo 437.º,


sendo útil, na minha opinião, compreender este regime através de grupos
de casos, sendo os mais frequentes(11):
• Os casos de perturbação da equivalência das prestações (desequilíbrio
superveniente entre prestação e contraprestação);
• Os casos de frustração do fim programado que não sejam casos de
impossibilidade de prestar;
• Os casos de desaparecimento de pressupostos que correspondam à
“base do negócio”, desde que não sejam “conteúdo do negócio”.

7. O plano de risco do contrato desenhado pelas partes é o centro de gra‑


vidade do artigo 437.º, a boa­‑fé o elemento omnipresente no preceito.

11 Catarina Monteiro Pires, Contratos – I. Perturbações na execução, p. 197 ss.

Índice
← 17 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
I. Perturbações na Prestação 2. Os potenciais regimes, sua interpretação
Contratual em Tempos Virulentos e delimitação
Enquadramento Geral

← →

O artigo 437.º não serve para alterar a distribuição de risco projetada


pelas partes, mas sim para a preservar. O que há muitas vezes são planos
de risco difíceis de descobrir, porque dependem de alegação e prova
de várias circunstâncias e da leitura do contrato com um todo. Devem
aplicar­‑se os princípios gerais em matéria de ónus da prova: cabe à parte
interessada na modificação ou resolução alegar e provar os factos cons‑
titutivos do seu direito (cf. artigo 342.º).

8. O que a meu ver oferece grande dificuldade, tanto no direito alemão


como no direito português, é saber o que é a “base do negócio”. Base
negócio objetiva ou subjetiva ou ambas? Como se separa do conteúdo
do negócio? Tantas décadas depois, os escritos de dois Autores alemães
continuam a oferecer as pistas mais relevantes. Para Oertmann, a base do
negócio seria «a representação de um participante, que surge aquando
da conclusão do negócio, cujo significado é reconhecido e não contes‑
tado pela contraparte ou a representação conjunta de vários sujeitos
acerca da existência ou da superveniência de certas circunstâncias, em
cuja base assenta a vontade negocial». Para Larenz, a base do negócio
compreenderia ainda as circunstâncias de cuja existência ou duração
depende o significado e o fim do próprio contrato. Para Flume, o con‑
ceito de base do negócio é inoperativo e os problemas são problemas
de interpretação do contrato.

9. Muito importante é a relação entre o artigo 437.º e o tempo, considerando


o caráter temporário da pandemia. A ideia de um “equilíbrio contratual”,
quando referida a um contrato prolongado não pode ser transformada
num juízo pontual e limitado a um só momento da vida desse contrato.
Se existir um pontual desajustamento, mas se anteciparem prováveis
movimentos de sinal inverso, pode não se justificar a modificação do
contrato ao abrigo do artigo 437.º.

10. Irá certamente colocar­‑se a questão de saber se no artigo 437.º deve


ponderada toda a esfera da parte afetada ou apenas a esfera com relação
direta com o contrato. Por exemplo: o desequilíbrio no contrato em causa
não é grave, nem intensa, mas a situação económica global do devedor
é gravíssima. Deve aplicar­‑se o artigo 437.º? Na nossa opinião não, sob

Índice
← 18 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
I. Perturbações na Prestação 3. Possíveis dúvidas quanto ao regime a aplicar a
Contratual em Tempos Virulentos certos problemas: alguns exemplos
Enquadramento Geral

← →

pena de se transferir para o credor um conjunto de riscos do devedor


alheios à esfera daquele.

11. Em princípio, não há resolução nem modificação de contratos já execu‑


tados por alteração das circunstâncias.

12. Na minha opinião, o contrato pode ser resolvido ou modificado por alte‑
ração de circunstâncias de forma extrajudicial.

3. Possíveis dúvidas quanto ao regime a aplicar a certos


problemas: alguns exemplos

Analisamos seguidamente, de forma exemplificativa, duas dúvidas. No


primeiro caso, falta norma expressa, o que pode dificultar o enquadramento.
No segundo caso, está em causa uma situação de fronteira, que pode suscitar
dúvidas sobre o regime aplicável.

A. Primeiro exemplo: incerteza quanto ao regime, por falta de norma


expressa

1. A questão que aqui coloco é a de saber se no contexto da pandemia


se deve aceitar um dever de renegociar os contratos e se é possível o
recurso aos tribunais, alegando a violação de um dever de renegociar.

2. Na prática, a renegociação tem sido tratada em Portugal em dois contextos:


no contexto do artigo 437.º, como uma espécie de “antecâmara” a um início
de um processo de alteração de circunstâncias, e fora do artigo 437.º.

3. Primeira pergunta: quando ela ocorre no âmbito do artigo 437.º, quais


os mecanismos aplicáveis, se a outra parte não renegociar ou se a nego‑
ciação se frustrar por causa imputável a uma parte? Na minha opinião,
os mecanismos começam por ser os do próprio artigo 437.º. A parte
pode recorrer ao tribunal e, portanto, pedir uma modificação do contrato.
Poderá haver aqui danos e responsabilidade civil (cf. artigos 562.º ss), mas
na generalidade dos casos será muito difícil alegar e provar a existência

Índice
← 19 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
I. Perturbações na Prestação 3. Possíveis dúvidas quanto ao regime a aplicar a
Contratual em Tempos Virulentos certos problemas: alguns exemplos
Enquadramento Geral

← →

aqui a existência de danos, a não ser que haja investimentos feitos por
causa de negociações chicaneiras ou com propósitos fraudulentos.

4. Caso mais difícil: o de a renegociação não ocorrer ao abrigo do artigo


437.º, mas ao abrigo do artigo 762.º, n.º 2 do Código Civil, portanto ao
abrigo da regra da boa­‑fé. A boa­‑fé pode impor, paralelamente ao artigo
437.º em determinados tipos de contratos, designadamente em contra‑
tos prolongados, uma renegociação das prestações pecuniárias. E, neste
caso, pergunta­‑se: o incumprimento desse dever de renegociação – que
é um dever­‑processo, não é um dever­‑resultado –, pode ou não implicar
responsabilidade civil? Pode implicar responsabilidade civil, em princípio
limitada a uma indemnização pelo interesse contratual negativo (artigos
562.º ss).

B. Segundo exemplo: o problema da frustração do fim

1. Vejamos agora um segundo problema, correspondente a casos de fron‑


teira entre o regime do artigo 437.º e o regime dos artigos 790.º do CC.
Havendo uma frustração do fim, pode perguntar­‑se qual o regime apli‑
cável, na falta de disposição contratual.
2. A dúvida coloca­‑se, mais restritamente, muitas vezes entre o regime da
alteração das circunstâncias e o regime da impossibilidade de prestar.
Como diferenciar? A minha proposta destaca quatro aspetos.
• Primeiro, a frustração do fim pode ser enquadrada na impossibilidade de
prestar, em certos casos.
• Segundo, é útil a distinção entre prestação de fim neutro e prestação
de fim vinculado. Na segunda, ao contrário da primeira, há um acordo
quanto ao fim e, por isso, frustração do fim é, em si mesma, um sinal de
impossibilidade de prestar.
• Terceiro, nos casos em que a frustração do fim implique uma impossibili‑
dade, isto quer apenas dizer que a pretensão do credor ao cumprimento
natural é excluída, mas nada implica, por si só, quanto ao risco da con‑
traprestação. Para saber se a contraprestação é ou não devida há que
determinar, na falta de regime especial (como o do artigo 1227.º), se a
prestação é imputável ao credor ou se não é imputável a nenhuma das
partes (cf. artigo 795.º).

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← 20 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
I. Perturbações na Prestação 3. Possíveis dúvidas quanto ao regime a aplicar a
Contratual em Tempos Virulentos certos problemas: alguns exemplos
Enquadramento Geral

← →

• Quarto, a alteração das circunstâncias diz respeito a circunstâncias que


fundadoras do contrato, e não a vinculações assumidas através do con‑
teúdo do próprio contrato.

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← 21 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
← →

II
Covid­‑19 e alteração
superveniente das
circunstâncias

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← 22 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
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II
Covid­‑19 e alteração
superveniente das
circunstâncias
Mariana Fontes da Costa
Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto;
Investigadora do CIJE – Centro de Investigação Jurídico­‑Económica

Sumário

1. Considerações introdutórias.
2. O problema prévio da qualificação.
3. Os três elementos subjacentes ao artigo 437.º do Código Civil.
4. O direito à resolução do contrato ou à sua modificação segundo juízos
de equidade.

Índice
← 23 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
II. Covid-19 e alteração superveniente 1. Considerações introdutórias
das circunstâncias

← →

1. Considerações introdutórias(1)

Desde que se começou a conformar com maior clareza o atual cená‑


rio, o instituto da alteração superveniente das circunstâncias tem vindo a ser
invocado, com frequência, para a correção das graves perturbações negociais
ocorridas em consequência da pandemia. E bem.
Estamos a viver hoje a materialização de um dos mais nefastos exemplos
de escola em matéria de perturbações da grande base do negócio, para usar
a designação tradicional de Kegel(2).
A pandemia de Covid­‑19 é, indubitavelmente, uma perturbação de largo
espectro, que afetou e afeta de modo particularmente violento todo o equilíbrio
da vida social, pondo em causa o modo de vida das comunidades, com reflexos
numa multiplicidade de sujeitos, setores económicos e relações negociais(3).
Naqueles casos em que a sua ocorrência afetou de tal ordem a execu‑
ção dos contratos anteriormente celebrados que fez desaparecer a identidade
de esforço que lhes era inerente, pode e deve ser avaliada a possibilidade de
reconformação ou extinção da equação contratual com recurso ao instituto
da alteração superveniente das circunstâncias.
No entanto, reconhecer a adequação da figura da alteração superveniente
das circunstâncias para dar resposta a algumas das situações de perturbação
de execução contratual geradas pela pandemia não significa – de todo – elevar,

1 O presente texto corresponde, com algumas alterações e desenvolvimentos, à comunicação apresentada


no webinar “Entre a impossibilidade da prestação e a alteração das circunstâncias em contexto da pande‑
mia de Covid-19”, organizado pela Direção Regional Norte da Associação Sindical dos Juízes Portugueses,
no dia 30 de abril de 2020. O texto retoma, no essencial, algumas das conclusões expostas na nossa obra
Da Alteração Superveniente das Circunstâncias: em especial à luz dos contratos bilateralmente comerciais,
Almedina, Coimbra, 2017, analisando as suas implicações no atual contexto de pandemia e desenvolve os
tópicos apresentados no texto A atual pandemia no contexto das perturbações da grande base do negócio,
Observatório Almedina, 1 de abril de 2020, disponível online em <https://observatorio.almedina.net/index.
php/2020/04/01/a-atual-pandemia-no-contexto-das-perturbacoes-da-grande-base-do-negocio/>.
2 G. KEGEL, Empfiehlt es sich, den Einfluβ grundlegender Veränderungen des Wirtschaftslebens auf Verträge
gesetzlich zu regeln und in welchem Sinn? (Geschäftsgrundlage, Vertragshilfe, Leistungsverweigerungsrecht),
in Gutachten für den 40. Deutschen Juristentag, Mohr Siebeck, Tübingen, 1953, pp. 138 ss. e já anteriormente,
em termos menos aprofundados, G.KEGEL, H. RUPP e K. ZWEIGERT, Die Einwirkung des Krieges auf Verträge
in der Rechtsprechung Deutschlands, Frankreichs, Englands und der Vereinigten Staaten von Amerika, Walter
de Gruyter, Berlin, 1941.
3 MARIANA FONTES DA COSTA, A atual pandemia cit. No mesmo sentido, M. CARNEIRO DA FRADA, A
alteração das circunstâncias à luz do Covid-19: teses e reflexões para um diálogo, Revista da Ordem dos
Advogados, ano 80, Vol. I e II, 2020, p. 154 e A. BARRETO MENEZES CORDEIRO, Alteração das circunstâncias,
in 1.º videocast: Novo coronavírus e gestão da crise contratual – estratégias jurídicas, 9 de abril de 2020, pp.
32-33, transcrição disponível online em <www.cidp.pt>.

Índice
← 24 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
II. Covid-19 e alteração superveniente 1. Considerações introdutórias
das circunstâncias

← →

sem mais, este instituto a mecanismo primeiro de eleição na solução das inú‑
meras dificuldades com que os operadores negociais se têm deparado no
cumprimento das suas obrigações.
Quando se fala de alteração superveniente das circunstâncias, é impor‑
tante ter presente que estamos a falar de um instituto de natureza tendencial‑
mente subsidiária, com requisitos de aplicação profundamente exigentes e de
muito difícil prova, caracterizado por uma inevitável insegurança ao nível das
consequências da sua aplicação(4).
Estas dificuldades exigem, de facto, uma especial cautela na invocação
e recurso ao instituto da alteração superveniente das circunstâncias, mas não
devem ser impeditivas da aplicação dos artigos 437.º a 439.º às situações que
efetivamente neles cabem.
E, não obstante reconhecermos a maior adequação tendencial de uma
intervenção legislativa específica em fenómenos com repercussões alargadas
sobre diversas relações contratuais, como é o caso da presente pandemia(5),
este não pode ser um argumento suficiente para eximir os tribunais da apre‑
ciação casuística da possível aplicação do regime da alteração superveniente
das circunstâncias a cada contrato individual que perante eles é suscitada.
Não só é impossível ao legislador assegurar uma intervenção legislativa
exaustiva na regulação de todos os possíveis impactos da pandemia sobre os
contratos em curso, como deve prevalecer sobre as preocupações de insta‑
bilidade económica e social que uma decisão judicial possa gerar – veja­‑se o
exemplo paradigmático da recente jurisprudência em matéria de swaps na
sequência da crise económico­‑financeira de 2007 – a tarefa de assegurar a
cada cidadão o acesso à justiça no seu caso particular, para o qual o legis‑
lador não forneceu, à data em que o problema se coloca e o afeta, soluções
especialmente ajustadas. E se for necessário assegurar a revisibilidade de um
número significativo de contratos por via judicial, devem os tribunais cumprir
sem reservas esse papel que o instituto da alteração das circunstâncias os
chama a desempenhar(6).

4 Sublinhámos já esta ideia em MARIANA FONTES DA COSTA, Da Alteração Superveniente das Circunstâncias
cit., p. 370.
5 Neste sentido, por todos, A. MENEZES CORDEIRO, Tratado de direito civil. Vol. IX. Direito das obrigações.
Cumprimento e não cumprimento. Transmissão. Modificação e extinção, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2017,
p. 693, nota 2509.
6 No mesmo sentido, A. ALMEIDA SANTOS, A teoria da imprevisão ou da superveniência contratual e o novo
Código Civil, Minerva Central, Lourenço Marques, 1972, pp. 97-98 e M. CARNEIRO DA FRADA, A alteração das
circunstâncias à luz do Covid-19 cit., p. 159.

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← 25 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
II. Covid-19 e alteração superveniente 2. O problema prévio da qualificação
das circunstâncias

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2. O problema prévio da qualificação

Dada a natureza tendencialmente subsidiária da alteração superveniente


das circunstâncias, a primeira questão a que o intérprete tem de dar resposta é
a de saber se a situação em causa não caberá em algum dos inúmeros outros
institutos que o nosso ordenamento jurídico consagra para responder a ques‑
tões relacionadas com perturbações da execução das prestações contratuais,
como sejam a impossibilidade; a frustração do fim da prestação em obrigações
finalizadas(7); a mora do credor; a interpretação do contrato, entre outros(8).
Assim, por exemplo, caberão na impossibilidade superveniente muitos
dos casos em que a atividade em que se consubstanciava a prestação contra‑
tual foi proibida por lei em consequência da pandemia.
Um instituto pouco mencionado, mas que nos parece que poderá ser
chamado aqui a desempenhar um papel relevante é o da resolução por justa
causa objetiva, consagrado no artigo 30.º, b) do Decreto­‑Lei n.º 178/86, de 3
de julho relativo ao contrato de agência. Nos termos deste artigo, será possível
a resolução do contrato “se ocorrerem circunstâncias que tornem impossível
ou prejudiquem gravemente a realização do fim contratual, em termos de não
ser exigível que o contrato se mantenha até expirar o prazo convencionado ou
imposto em caso de denúncia”.
Está aqui em causa a ocorrência de circunstâncias não imputáveis a qual‑
quer das partes, por força das quais a realização do fim visado com o contrato
fica impossibilitada ou fortemente comprometida. Apesar de constar apenas do
regime jurídico do contrato de agência, tem­‑se entendido – e bem, parece­‑nos
– que se trata de um princípio geral, suscetível de aplicação analógica a outros
contratos duradouros. Esta extinção por justa causa de contratos duradouros
foi, aliás, elevada a regra geral, na recente reforma do direito das obrigações
alemão, constando agora do §314 do BGB.
Encontrando­‑se cumulativamente preenchidos os requisitos para sub‑
sunção do caso ao artigo 30.º, b) do Decreto­‑Lei n.º 178/86, de 3 de julho e ao

7 Sobre a figura da frustração do fim da prestação, em especial em obrigações ditas finalizadas, por todos,
J. BAPTISTA MACHADO, Risco Contratual e Mora do Credor (Risco da perda do valor-utilidade ou do rendi‑
mento da prestação e de desperdício da capacidade de prestar vinculada), in Obra Dispersa, Vol. I, Scientia
Iuridica, Braga, 1991, pp. 269 ss. e anteriormente, também abordando este tópico, Pressupostos da resolução
por incumprimento, in Obra Dispersa, Vol. I, Scientia Iuridica, Braga, 1991, pp. 145 ss.
8 A distinção e delimitação de fronteiras entre estas figuras e o instituto da alteração das circunstâncias é
objeto de análise no nosso, Da Alteração Superveniente das Circunstâncias cit., pp. 210 ss. e passim.

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← 26 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
II. Covid-19 e alteração superveniente 2. O problema prévio da qualificação
das circunstâncias

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artigo 437.º, n.º 1 entendemos que deve ser dada precedência à modificação
do contrato, sempre que esta tenha sido requerida em juízo por alguma das
partes e seja possível e adequada. Nos restantes casos, consideramos que
deve ser dada prioridade à resolução por justa causa objetiva, consagrada no
artigo 30.º, b) do Decreto­‑Lei n.º 178/86, dado se tratar de norma especial face
ao artigo 437.º, n.º 1(9).
Note­‑se que, dada a natureza subsidiária, mas também complemen‑
tar do instituto da alteração das circunstâncias, não é descabido pensar em
situações em que a solução resultante da aplicação de algum dos institutos
supramencionados conduz a uma situação de inexigibilidade potencialmente
coberta pelo regime da alteração superveniente das circunstâncias. Pensemos,
por exemplo, nos custos em que incorreram inúmeros devedores presos a vín‑
culos negociais que não podiam extinguir por cumprimento, devido a proibi‑
ções legais ao exercício das atividades envolvidas na execução das prestações
a que se encontravam vinculados, mas que igualmente se não extinguiram por
impossibilidade, por se tratar de impedimentos meramente temporários.

9 J. BAPTISTA MACHADO, «Denúncia-modificação» de um contrato de agência. Anotação ao acórdão do


STJ de 17 de Abril de 1986, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 120.º, 1987, pp. 190-191 e VOLKER
EMMERICH, Das Recht der Leistungsstörungen, 6.ª ed., C. H. Beck, München, 2005, pp. 468-469.

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← 27 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
II. Covid-19 e alteração superveniente 3. Os três elementos subjacentes ao artigo 437.º
das circunstâncias do Código Civil

← →

3. Os três elementos subjacentes ao artigo 437.º do Código Civil

Recorrendo a uma divisão dogmática proposta por Dieter Medicus(10) para


o §313 BGB, é possível, entendemos, reconduzir os pressupostos e requisitos
de relevância da alteração das circunstâncias no direito português a três ele‑
mentos: o elemento real; o elemento hipotético e o elemento normativo.
Começando pelo elemento real, este corresponde ao pressuposto de que
depende a aplicação do regime geral da alteração superveniente das circuns‑
tâncias e traduz­‑se na ocorrência de uma perturbação do contexto em que se
insere o contrato, com reflexos no equilíbrio deste(11). No contexto a que nos
referimos, essa perturbação corresponderá à pandemia e/ou às medidas que
foram tomadas em resposta à mesma.
Embora o âmbito natural de verificação deste pressuposto se restrinja
às perturbações ocorridas durante a vigência do contrato e invocadas antes
da execução da prestação devida, este limite temporal não constitui princípio
irrefutável, podendo a boa fé impor, excecionalmente, um alargamento deste
âmbito mesmo a alterações ocorridas apenas após a execução parcial ou com‑
pleta do contrato. Isto será particularmente relevante no caso paradigmático
dos contratos cujo fim contratual só se realiza no futuro, tornando­‑se, por força
da pandemia, inatingível(12). Será o caso de muitas “operações económicas
complexas”, que são construídas com base em coligações de contratos, unidos
por uma relação de interdependência funcional que leva a que a perturbação
sofrida por um contrato posterior se reflita nos negócios anteriores já integral‑
mente cumpridos, pondo em causa a sua função e utilidade económica(13).
O segundo elemento corresponde ao elemento hipotético e prende­‑se
com a configuração e relevância da base do negócio no nosso ordenamento
jurídico(14).

10 D. MEDICUS, Bürgerliches Recht, 19.ª ed., Carl Heymanns, Köln/Berlin/Bonn/München, 2002, pp. 108-109.
11 Sobre este elemento, de forma desenvolvida, MARIANA FONTES DA COSTA, Da Alteração Superveniente
das Circunstâncias cit., pp. 329 ss.
12 Parafraseamos aqui a expressão de KARL LARENZ, Lehrbuch des Schuldrechts, Erster Band: Allgemeiner
Teil, 14.ª ed., C. H. Beck, München, 1987, p. 329.
13 Por todos, J. SINDE MONTEIRO, Venda CIF, contrato de transporte marítimo e seguro de carga; sobre
a qualidade de “segurado”. Anotação ao acórdão do STJ de 22 de junho de 2004, Revista de Legislação e
Jurisprudência, ano 141.º, 2011, p. 110 e J. CALVÃO DA SILVA, Contratos coligados, venda em garantia e promessa
de revenda. Anotação ao acórdão do STJ, de 16 de maio de 2000, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano
133.º, 2000, p. 85.
14 Sobre este elemento, de forma desenvolvida, MARIANA FONTES DA COSTA, Da Alteração Superveniente
das Circunstâncias cit., pp. 337 ss.

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← 28 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
II. Covid-19 e alteração superveniente 3. Os três elementos subjacentes ao artigo 437.º
das circunstâncias do Código Civil

← →

Nos termos do disposto no artigo 437.º, n.º 1 do Código Civil, apenas são
relevantes as alterações supervenientes que incidam sobre as “circunstâncias
em que as partes fundaram a sua decisão de contratar”.
Ora, esta exigência remete o intérprete para uma vontade que não é pos‑
sível identificar a partir das declarações negociais (caso contrário estaríamos
perante um problema de interpretação e não de alteração das circunstâncias),
podendo essa vontade nem sequer existir, porque as partes não previram a
hipótese da ocorrência.
À semelhança da técnica legislativa utilizada no artigo 2187.º, n.º 1 do
Código Civil, respeitante à interpretação do testamento, julgamos defensável
admitir que o artigo 437.º, n.º 1 consagra uma remissão implícita para a von‑
tade hipotética das partes. Contudo, essa vontade hipotética é, neste contexto,
chamada a desempenhar uma função sindicante e não uma função integra‑
dora, a formular pela negativa: a alteração superveniente das circunstâncias
não afeta a força vinculativa do contrato, exceto nos casos em que resulte que
o mesmo não teria sido concluído nos termos adotados se as partes tivessem
representado a possibilidade daquela alteração(15).
Tendo presente esta premissa, a natureza bilateral (ou plurilateral) do
contrato impõe um juízo dúplice (ou plúrimo) na aferição da vontade hipotética
das partes em contexto de base do negócio.
Por conseguinte, e colhendo influências diretas de Manuel de Andrade(16),
quanto à parte lesada deve aferir­‑se se esta teria recusado a celebração do
contrato nos termos originais, caso tivesse representado possível a ocorrência
da perturbação. Diferentemente, o juízo relativo à vontade da contraparte tem
como função inquirir se esta conhecia ou devia conhecer a essencialidade
daquelas circunstâncias para a parte lesada e se haveria concordado com um
condicionamento do contrato à não ocorrência da alteração. A resposta nega‑
tiva a qualquer uma destas questões implica o não preenchimento da exigência
respeitante à essencialidade das circunstâncias afetadas pela alteração super‑
veniente, afastando, deste modo, a aplicação do instituto ao caso concreto.
Ora, será de admitir que quando a perturbação da grande base do negó‑
cio afeta a própria prestação contratual, será mais facilmente comprovável
o preenchimento do requisito da base do negócio, na medida em que, pela

15 IDEM, ibidem, pp. 339 ss.


16 MANUEL DE ANDRADE, Teoria geral da relação jurídica, Vol. II, reimpressão, Almedina, Coimbra, 2003,
pp. 406-407.

Índice
← 29 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
II. Covid-19 e alteração superveniente 3. Os três elementos subjacentes ao artigo 437.º
das circunstâncias do Código Civil

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dimensão dos seus efeitos, dificilmente se colocará a questão do desconhe‑


cimento ou não cognoscibilidade da essencialidade daquelas circunstâncias
pela parte contrária. Assim, por exemplo, se o encerramento das fronteiras
obriga o empreiteiro a adquirir material a preços claramente inflacionados a
um fornecedor nacional.
Porém, um problema que se colocou já a propósito da crise financeira
de 2007(17) e que será expectável que se coloque novamente, com maior acui‑
dade, diz respeito aos casos em que a perturbação gerada pela pandemia não
se reflete diretamente na prestação contratual, mas no grau de esforço exigido
do devedor por força da alteração de circunstâncias que lhe são pessoais: o
caso paradigmático será uma situação de desemprego.
Ora, se é verdade que as circunstâncias subjetivas da esfera exclusiva do
lesado não se refletem, tendencialmente, sobre a base do negócio, sendo como
tal irrelevantes, parece­‑nos que a resposta não poderá ser a mesma quando
essa circunstância assume uma dimensão social endémica, de proporções
elevadas, por consequência direta da perturbação exterior que lhe deu causa.
Na determinação da vontade hipotética das partes para aferição da base
do negócio, defendemos que o intérprete deve procurar identificar todos os
elementos subjetivos disponíveis que possam contribuir para aproximar o seu
juízo da vontade real das partes(18). Como refere Thomas Finkenauer, a referência
à mundividência dos contraentes impede decisões judiciais que coloquem no
lugar da vontade das partes a conceção do juiz quanto à solução contratual
mais justa(19).
Porém, considerando a ligação central do instituto a preocupações de
justiça comutativa, este juízo não pode nem deve assentar exclusivamente
numa vontade hipotética de natureza probabilística, mas deve ser encontrado
também com recurso a elementos normativos axiologicamente comprometidos
com o sentido da ordem jurídica, corporizado no artigo 437.º do Código Civil
pela referência à boa fé.

17 Veja-se o acórdão do STJ de 23-jan-2014 (processo n.º 1117/10.9TVLSB.P1.S1), disponível online em <www.
dgsi.pt>.
18 Em sentido distinto quanto ao peso a atribuir à vontade hipotética das partes, ainda que com resultados
não necessariamente incompatíveis, sublinhando o papel de promoção da justiça contratual objetiva do ins‑
tituto da alteração superveniente das circunstâncias, sobretudo em cenários sociais como o correspondente
à atual pandemia, M. CARNEIRO DA FRADA, A alteração das circunstâncias à luz do Covid-19 cit., p. 155.
19 THOMAS FINKENAUER, in Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, vol 2, Schuldrecht –
Allgemeiner Teil, §§241-432, 7.ª ed., C. H. Beck, München, 2016, §313, para. 16.

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← 30 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
II. Covid-19 e alteração superveniente 3. Os três elementos subjacentes ao artigo 437.º
das circunstâncias do Código Civil

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Parafraseando Mario Schollmeyer, a base do negócio subjetiva de


Oertmann deu atualmente lugar à base do negócio “subjetivo­‑normativa” da
jurisprudência dos valores(20).
Centrando a atenção no último elemento – o elemento normativo – a sua
função é a de densificar o elemento hipotético, nele sendo possível discernir
os requisitos cumulativos do não cabimento da alteração nos riscos próprios
do contrato, da sua imprevisibilidade, da inimputabilidade do lesado e da ine‑
xigibilidade do cumprimento(21).
A avaliação do não cabimento da alteração nos riscos próprios do con‑
trato depende necessariamente de uma análise casuística, assente na identi‑
ficação da equação de equilíbrio de esforço que resulta do contrato. Para este
efeito, deverá o intérprete atribuir especial relevância à distribuição de riscos
que resulta de cláusula contratual ou diretamente da lei, mas também ao tipo
contratual em causa, aos usos do setor (sobretudo nos contratos bilateralmente
comerciais) e às motivações individuais com reflexos na distribuição do esforço
prestacional entre as partes(22).
Regra geral, as perturbações geradas pela pandemia de Covid­‑19 repre‑
sentam riscos que excedem claramente os riscos típicos associados à grande
maioria dos contratos(23).
Aliás, conforme reconheceu W. Flume(24), tratando­‑se da materialização
de um exemplo paradigmático de perturbação da grande base do negócio,
será mesmo de admitir que, em regra, a distribuição dos riscos negociais feita
através de norma legal ou cláusula do contrato não está pensada para a situação
que nos encontramos a viver, salvo quando interpretação diversa seja imposta
pelo seu teor específico.

20 MARIO SCHOLLMEYER, Selbstverantwortung und Geschäftsgrundlage. Zurechnung und Haftung bei


Geschäftsgrundlagenstörungen gemäβ §313 BGB, Mohr Siebeck, Tübingen, 2014, p. 71.
21 Sobre este elemento e os requisitos a ele associados, de forma desenvolvida, MARIANA FONTES DA
COSTA, Da Alteração Superveniente das Circunstâncias cit., pp. 373 ss.
22 IDEM, ibidem, pp. 383-384.
23 A. BARRETO MENEZES CORDEIRO, Anotação ao artigo 437.º, in Novo coronavírus e crise contratual.
Anotação ao Código Civil, coord. de Catarina Monteiro Pires, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, p. 67 e MARIANA
FONTES DA COSTA, A atual pandemia cit.
24 WERNER FLUME, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, II, Das Rechtsgeschäft, 3.ª ed., Springer, Berlin/
Heidelberg/New York, 1979, pp. 523 ss. No mesmo sentido, M. CARNEIRO DA FRADA, Crise financeira mundial
e alteração das circunstâncias: contratos de depósito vs. contratos de gestão de carteiras, Revista da Ordem
dos Advogados, ano 69, vol. III/IV, 2009, p. 682 e mais recentemente, especificamente a propósito da apli‑
cação do instituto da alteração superveniente das circunstâncias a perturbações geradas pela pandemia de
Covid-19, A alteração das circunstâncias à luz do Covid-19 cit., p. 155.

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← 31 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
II. Covid-19 e alteração superveniente 3. Os três elementos subjacentes ao artigo 437.º
das circunstâncias do Código Civil

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Em matéria de distribuição de riscos por norma legal, será expectável


que um dos principais desafios em sede de delimitação do âmbito de aplica‑
ção do instituto da alteração superveniente das circunstâncias a perturbações
geradas por efeito da pandemia seja a conjugação e articulação entre o regime
consagrado nos artigos 437.º a 439.º com a legislação excecional aprovada
em resposta à pandemia.
A resposta terá de ser dada caso a caso e dependerá de um cuidado
exercício de hermenêutica para identificar a ratio legis inerente às soluções
legislativas adotadas e o seu consequente âmbito de regulação(25). Poderá dar­‑se
o caso, por exemplo, de o legislador apenas ter pretendido fornecer respostas
de alívio imediato e temporário à parte contratual e/ou socialmente mais débil,
sem com isso efetuar uma verdadeira distribuição do risco prestacional, como
nos parece ter sido o caso das moratórias nos contratos de arrendamento.
Nestes casos, será de admitir a possibilidade de a parte lesada preferir recorrer
a outros instrumentos de reequilíbrio do contrato e no limite, se assim o jus‑
tificar a natureza subsidiária e complementar do instituto, ao próprio regime
geral da alteração das circunstâncias.
Questão interessante será a de avaliar se a contraparte poderá recorrer
ao regime geral dos artigos 437.º e seguintes, invocando que a alteração das
circunstâncias provocada pela legislação excecional a colocou numa posição
de inexigibilidade face à manutenção do cumprimento da sua prestação. A res‑
posta será tendencialmente negativa, mas não nos parece poder ser afastada
neste contexto a possibilidade casuística de resposta distinta, por força da
dimensão de proteção da justiça comutativa inerente ao instituto da alteração
das circunstâncias(26).
Da redação do artigo 437.º, n.º 1 resulta ainda, na posição propugnada,
a imposição ao lesado de dois importantes ónus: o ónus de se precaver con‑
tra o que é previsível e o ónus de se precaver contra os danos emergentes da
alteração, na medida em que lhe é possível e exigível(27).
No que respeita à exigência de imprevisibilidade, poucas dúvidas existirão
de que a pandemia de Covid­‑19 apanhou de surpresa a esmagadora maioria

25 A este propósito, defende A. Barreto Menezes Cordeiro que a resposta depende de as medidas legisla‑
tivas efetivamente conseguirem repor o equilíbrio das posições contratuais ou não. – A. BARRETO MENEZES
CORDEIRO, Alteração das circunstâncias cit., p. 33.
26 Neste sentido, também, M. CARNEIRO DA FRADA, A alteração das circunstâncias à luz do Covid-19 cit.,
pp. 159-160.
27 MARIANA FONTES DA COSTA, Da Alteração Superveniente das Circunstâncias cit., p. 434.

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← 32 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
II. Covid-19 e alteração superveniente 3. Os três elementos subjacentes ao artigo 437.º
das circunstâncias do Código Civil

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dos contraentes que se vincularam a contratos celebrados até ao final do ano


de 2019. Maiores dificuldades de delimitação abstrata dos termos de preen‑
chimento do requisito se colocam, sobretudo, a partir de meados de fevereiro
de 2020, com o agravamento da situação em Itália, sendo que dificilmente se
poderá propugnar a imprevisibilidade do fenómeno quanto a contratos cele‑
brados depois do dia 11 de março, data em que a OMS declarou oficialmente
a pandemia(28).
Não poderá valer­‑se do instituto da alteração das circunstâncias o lesado
que, conhecendo ou devendo conhecer a ocorrência do evento perturbador,
opta voluntariamente por renovar um contrato anterior, ou por proceder à sua
renegociação com vista precisamente a fazer face a essa perturbação, pois
perante o contrato renovado ou renegociado não mais é possível invocar a
imprevisibilidade do evento(29).
Deve, porém, ressalvar­‑se que o juízo de imprevisibilidade não se esgota
na ocorrência do evento, recaindo igualmente sobre a dimensão expectável
das suas consequências. Deste modo, não será imprevisível a repetição das
medidas já adotadas para resposta à pandemia em caso de ocorrência de uma
segunda ou até mesmo terceira vaga, mas já poderia justificar um juízo afir‑
mativo de imprevisibilidade em contratos celebrados, renovados ou renego‑
ciados após o dia 11 de março, por exemplo, um prolongamento da pandemia
e das medidas de contenção da mesma muito para além do que apontam as
previsões oficiais(30).
No que concerne ao ónus do lesado se precaver contra os danos emer‑
gentes da alteração é expectável que as questões se coloquem, sobretudo,
ao nível do grau de diligência que lhe era exigível na adoção de medidas de
mitigação destes mesmos danos(31).

28 IDEM, A atual pandemia cit.


29 Vejam-se, a este propósito, o acórdão do STJ, de 10-jan-2013 (processo n.º 187/10.4TVLSB.L2.S1) e o
acórdão da Relação de Lisboa, de 19-set-2014 (processo n.º 400/14.9YRLSB.L1-2), ambos disponíveis em
<www.dgsi.pt>.
30 Aludindo a este elemento omnipresente de possível imprevisibilidade do desenvolvimento da pandemia,
com potencial impacto numa múltipla convocação do instituto da alteração superveniente das circunstâncias,
M. CARNEIRO DA FRADA, A alteração das circunstâncias à luz do Covid-19 cit., p. 157.
Abordando a distinção entre imprevisibilidade abstrata e imprevisibilidade concreta, no contexto do instituto
da alteração superveniente das circunstâncias, M. CARNEIRO DA FRADA e MARIANA FONTES DA COSTA,
Discussing the (ab)normality of financial crises as a relevant change of circumstances under Portuguese law, in
The effects of financial crises on the binding force of contracts – Renegotiation, rescission or revision, coord.
de Başak Başoğlu, Springer, Heidelberg, 2016, p. 230.
31 MARIANA FONTES DA COSTA, A atual pandemia cit.

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← 33 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
II. Covid-19 e alteração superveniente 3. Os três elementos subjacentes ao artigo 437.º
das circunstâncias do Código Civil

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Nesta matéria poderão surgir questões muito relevantes, como, por exem‑
plo, a de avaliar se o lesado poderá recorrer à alteração das circunstâncias,
requerendo a modificação ou extinção de um dado contrato, quando tinha
acesso a linhas de crédito a que voluntariamente não recorreu, assim con‑
tribuindo para o grau de esforço financeiro a que está sujeito; ou ainda a de
saber se o lesado tinha o dever de adaptar a atividade empresarial em função
das limitações legais, como no caso da permissão da atividade de take away
por parte dos estabelecimentos de restauração.
Nos casos regra em que a aferição subjetiva do preenchimento dos requi‑
sitos da imprevisibilidade e inimputabilidade é impossível ou inconclusiva,
deve o intérprete recorrer ao critério do bom de pai de família, tendo por base
a capacidade de previsão e a conduta que adotaria um sujeito razoavelmente
diligente, colocado nas circunstâncias concretas do contraente lesado(32).
Por fim, a imposição de que a exigência das obrigações assumidas afete
gravemente os princípios da boa fé parece remeter o intérprete para um critério
de inexigibilidade(33).
Na determinação do juízo de inexigibilidade, o intérprete tem de ter em
consideração todas as circunstâncias que foram relevantes para as partes na
fixação do equilíbrio prestacional associado ao contrato.
O primeiro elemento a ter em consideração é o acréscimo do grau de
esforço no cumprimento, que recai sobre o contraente que foi lesado com
a alteração.
Se estiver em causa um contrato de longa duração, a avaliação do pre‑
juízo do lesado tem de ter em consideração a relação jurídica integral e não
apenas os contornos que a mesma assume após a ocorrência da perturba‑
ção(34). Deste modo, não haverá prejuízo relevante resultante da alteração das
circunstâncias se os lucros já alcançados anteriormente forem a ele superiores.
Para que o dano seja relevante, é ainda necessário que atinja uma intensidade
suficiente para concluir pela oposição grave da exigência de cumprimento à boa fé
e que a alteração das circunstâncias verificada tenha para com ele uma relação de
causalidade.

32 IDEM, Da Alteração Superveniente das Circunstâncias cit., pp. 449-450.


33 IDEM, ibidem, pp. 457 ss.
34 Neste sentido, PEDRO ROMANO MARTINEZ, Da cessação do contrato, 3.ª ed., reimpressão, Almedina,
Coimbra, 2017, p. 223.

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← 34 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
II. Covid-19 e alteração superveniente 3. Os três elementos subjacentes ao artigo 437.º
das circunstâncias do Código Civil

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Esta questão da causalidade poderá colocar desafios particularmente difí‑


ceis, sobretudo, ao nível do reconhecimento de relevância negativa à existência
de causa virtual, quando resulte dos elementos disponíveis e das regras da
experiência que, ainda que não tivesse ocorrido a pandemia, o lesado teria, com
toda a probabilidade, enfrentado igualmente o dano com que se confronta(35).
Nos termos do artigo 438.º do Código Civil, fica precludida a possibili‑
dade de resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstân‑
cias se o lesado se encontrava em mora no momento em que a perturbação
se verificou(36).
Trata­‑se, aqui, em essência, de uma densificação do requisito da inim‑
putabilidade suprarreferido, pelo que o artigo 438.º deve ser interpretado no
sentido de apenas se aplicar quando existe uma relação causal entre a situa‑
ção de atraso no cumprimento em que o lesado se encontrava e o impacto da
perturbação ocorrida no esforço de cumprimento(37). Ou seja, não será causa
de exclusão do regime da alteração de circunstâncias a situação de mora do
lesado que nenhuma conexão causal apresenta com o impacto da perturbação
ocorrida sobre o equilíbrio prestacional do contrato. Acresce que, nos casos
em que a alteração das circunstâncias é anterior à mora do devedor, não é o
facto de este incorrer em mora que o impede de pedir a resolução ou modifi‑
cação do contrato(38).
Considerando a teleologia da norma, defendemos que a mesma será de
aplicar quer aos casos de mora debitoris, quer às situações de mora creditoris,
desde que o contraente em mora seja, em simultâneo, o contraente lesado(39).

35 MARIANA FONTES DA COSTA, Da Alteração Superveniente das Circunstâncias cit., pp. 467-468. Vide, a
este propósito, o acórdão do STJ de 10-jan-2013 (processo n.º 187/10.4TVLSB.L2.S1) cit.
36 Este artigo é objeto de uma importante exceção em matéria de execução específica do contrato-pro‑
messa, nos termos do artigo 830.º, n.º 3, in fine do Código Civil. Sobre o fundamento e críticas a esta solução
legislativa, por todos, J. ANTUNES VARELA, Sobre o contrato-promessa, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra,
1989, pp. 165 ss. e JOÃO CALVÃO DA SILVA, Sinal e contrato-promessa, 14.ª ed., Almedina, Coimbra, 2017, p.
144.
37 Conforme defende J. Oliveira Ascensão, a letra do artigo 438.º é excessivamente ampla, pelo que a norma
deve ser objeto de interpretação restritiva, tendo em consideração a sua teleologia. – J. OLIVEIRA ASCENSÃO,
Direito Civil. Teoria Geral, Vol. III, Relações e situações jurídicas, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, p. 206.
38 Por todos, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora,
Coimbra, 1987, p. 416.
39 Em sentido distinto, defendendo que o artigo 438.º diz respeito exclusivamente à mora imputável ao
devedor, LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, A teoria da imprevisão no direito civil português, reimpressão com
nota de actualização, Quid Juris, Lisboa, 2001, p. 292.

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← 35 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
II. Covid-19 e alteração superveniente 4. O direito à resolução do contrato ou à sua modificação
das circunstâncias segundo juízos de equidade

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4. O direito à resolução do contrato ou à sua modificação segundo


juízos de equidade

Preenchidos o pressuposto e os requisitos dos artigos 437.º e 438.º do


Código Civil, pode a parte lesada pela alteração das circunstâncias requerer
a resolução do contrato, ou a sua modificação segundo juízos de equidade.
Defendemos que se trata de um direito do contraente lesado que não
admite conhecimento oficioso pelo tribunal(40).
Da leitura conjugada dos números 1 e 2 do artigo 437.º do Código Civil
resulta que a opção entre a modificação ou a resolução do contrato recai, num
primeiro momento, sobre o contraente lesado.
Contudo, e nos termos do n.º 2, caso o lesado tenha optado pela resolu‑
ção, pode a contraparte opor­‑se ao pedido, declarando aceitar a modificação.
Entendemos que a solução oposta não é admissível, não tendo a contraparte o
direito de se opor ao pedido de modificação, declarando aceitar a resolução(41).
Resulta, assim, do artigo 437.º, n.º 2 um princípio de favor negotii, assente
na preferência da modificação sobre a resolução do contrato. Esta modificação
deverá ser, porém, afastada sempre que, no caso concreto, se revele impossí‑
vel ou inadequada(42).
No entanto, parece­‑nos que se o lesado optar pela resolução do contrato
e a parte contrária a tal se não opuser nos termos do artigo 437.º, n.º 2, não
pode o juiz decretar ex officio a modificação do contrato(43).
Nos casos em que esteja em causa a modificação judicial do contrato(44),
deverá o juiz chegar a um resultado que promova a distribuição equitativa
dos danos resultantes dos riscos não cobertos pelo contrato por ambos os

40 No mesmo sentido, A. BARRETO MENEZES CORDEIRO, Anotação ao artigo 437.º cit., p. 66.
41 Neste sentido, por todos, I. GALVÃO TELLES, Manual dos contratos em geral, 4.ª ed., Coimbra Editora,
Coimbra, 2002, p. 346, nota 316 e A. ALMEIDA SANTOS, A teoria da imprevisão cit., p. 110. Em sentido oposto,
J. OLIVEIRA ASCENSÃO, Onerosidade excessiva por “alteração das circunstâncias”, in Estudos em Memória
do Professor Doutor José Dias Marques, Almedina, Coimbra, 2007, p. 529.
42 Nas palavras de J. Ribeiro de Faria, a escolha das consequências da alteração superveniente das circuns‑
tâncias não poderá ser livre, dependendo sempre da sua adequação para neutralizar a oposição à boa fé. – J.
RIBEIRO DE FARIA, Direito das obrigações, Vol. II, Almedina, Coimbra, 1990, p. 350, nota 1.
Sobre os contornos da impossibilidade e desadequação da modificação, o nosso Da Alteração Superveniente
das Circunstâncias cit., pp. 491-492.
43 No mesmo sentido, por todos, NUNO PINTO OLIVEIRA, Cláusulas acessórias ao contrato. Cláusulas de
exclusão e de limitação do dever de indemnizar e cláusulas penais, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, p. 165
e CATARINA MONTEIRO PIRES, Efeitos da alteração das circunstâncias, O Direito, I/II, 2013, p. 196.
44 A possibilidade e contornos da modificação extrajudicial do contrato será objeto de tratamento autó‑
nomo, em texto a publicar brevemente.

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← 36 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
II. Covid-19 e alteração superveniente 4. O direito à resolução do contrato ou à sua modificação
das circunstâncias segundo juízos de equidade

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contraentes, tendo como propósito a eliminação da situação de inexigibilidade


de cumprimento em que se encontra o lesado e como limite a não colocação da
contraparte numa situação de inexigibilidade de cumprimento em consequên‑
cia da modificação. Não se pretende, portanto, colocar o lesado na situação
em que estaria se não tivesse ocorrido a perturbação, mas apenas assegurar a
repartição do prejuízo excessivo gerado por essa ocorrência. Nas palavras de
W. Flume, está em causa a repartição dos riscos da realidade(45).
Considerando a natureza equitativa do juízo, deve o tribunal atender a
todos os fatores que entender relevantes na identificação da solução mais justa
para o caso concreto(46).
Aqui se incluem, desde logo, elementos como a vontade real das par‑
tes, manifestada através do pedido de modificação do contrato e através da
contestação a esse pedido; a vontade hipotética das partes, traduzida no equi‑
líbrio contratual que as partes provavelmente teriam fixado se houvessem pre‑
visto a possibilidade de ocorrência da pandemia; o comportamento das partes
e os investimentos feitos pelo lesado para atenuar a dimensão dos danos; os
custos irrecuperáveis feitos para cumprimento ou na expectativa de cumpri‑
mento do acordo negocial; o impacto dos custos incorridos com a perturbação
na vida e na atividade empresarial e/ou profissional do lesado(47)…
Conforme sublinha M. Carneiro da Frada, os critérios associados à
capacidade para suportar e externalizar o risco têm necessariamente de ser
complementados com outros critérios, como a imposição de um tratamento
igual a todos os clientes e a necessidade de assegurar as condições mínimas
de subsistência, imposta pelo princípio fundamental da dignidade da pes‑
soa humana(48).
Como resulta, aliás, também manifestado nas opções que o legislador
nacional adotou ao nível da legislação excecional, sempre que for possível e
adequado entendemos que deve o julgador dar prioridade à fixação de uma
moratória no cumprimento do contrato sobre outras medidas que impliquem
uma maior interferência sobre o conteúdo da disciplina negocial(49). Com o

45 WERNER FLUME, Rechtsgeschäft und Privatautonomie cit., p. 208 e Allgemeiner Teil, II cit., p. 500.
46 Sobre o alcance deste juízo equitativo, vide M. CARNEIRO DA FRADA e MARIANA FONTES DA COSTA,
Sobre os efeitos de crises financeiras na força vinculativa dos contratos, in Estudos Comemorativos dos 20
anos da FDUP, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2017, p. 200, nota 51, bem como as indicações bibliográficas aí
constantes.
47 MARIANA FONTES DA COSTA, Da Alteração Superveniente das Circunstâncias cit., pp. 501 ss.
48 M. CARNEIRO DA FRADA, A alteração das circunstâncias à luz do Covid-19 cit., p. 158.
49 MARIANA FONTES DA COSTA, Da Alteração Superveniente das Circunstâncias cit., p. 505.

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← 37 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
II. Covid-19 e alteração superveniente 4. O direito à resolução do contrato ou à sua modificação
das circunstâncias segundo juízos de equidade

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mesmo propósito, deve igualmente ser dada preferência à modificação quan‑


titativa das prestações sobre a sua modificação qualitativa, sempre que aquela
seja adequada e suficiente(50).
Quando esteja em causa a resolução do contrato, é nossa opinião que
a mesma pode ser requerida em juízo, ou operar por declaração extrajudicial,
nos termos gerais do artigo 436.º, n.º 1 do Código Civil(51).
Consideramos, ainda, que, em regra, a resolução por alteração superve‑
niente das circunstâncias deverá ter uma natureza não retroativa. Trata­‑se da
solução que melhor salvaguarda a estabilidade contratual e os investimentos
feitos pela contraparte, sendo que a solução contrária beneficiaria o contraente
lesado que demorasse mais tempo a invocar o direito de resolução(52).
Esta solução deverá ser, contudo, afastada, sempre que a atribuição à
resolução de efeitos retroativos seja necessária para eliminar a situação de
inexigibilidade em que se encontra o lesado. Serão, por exemplo, os casos
já mencionados supra em que o contrato perde o sentido se “cindido da sua
execução futura”(53), bem como os restantes casos em que se deva admitir a
aplicação do regime da alteração superveniente das circunstâncias a presta‑
ções já cumpridas(54).

Porto, agosto de 2020

50 IDEM, ibidem.
51 Sobre os argumentos que nos parecem decisivos para a admissibilidade da resolução extrajudicial, Idem,
ibidem, pp. 508 ss.
52 No mesmo sentido, M. CARNEIRO DA FRADA e MARIANA FONTES DA COSTA, Sobre os efeitos de crises
financeiras cit., p. 201.
53 J. OLIVEIRA ASCENSÃO, Onerosidade excessiva por “alteração das circunstâncias” cit., p. 529.
54 MARIANA FONTES DA COSTA, Da Alteração Superveniente das Circunstâncias cit., pp. 512 ss.

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← 38 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
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III
Covid­‑19 e Alteração
Superveniente das Circunstâncias:
Critérios Orientadores de Decisão
em Situações Tipicamente
Previsíveis

Índice
← 39 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
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III
Covid­‑19 e Alteração
Superveniente das Circunstâncias:
Critérios Orientadores de Decisão
em Situações Tipicamente
Previsíveis
Lina Castro Baptista
Juíza Desembargadora no Tribunal da Relação do Porto

Resumo: o presente texto traduz­‑se numa compilação de um conjunto de


ideias convocadas por casos potencialmente previsíveis decorrentes da situação
pandémica surgida em contexto da doença por Covid-19 e da aplicação da
respectiva legislação temporária e excepcional, que fui reunindo na preparação
do Webinar organizado pela “Direcção­‑Regional Norte da Associação Sindical
dos Juízes Portugueses”, no passado dia 30 de Abril de 2020, subordinada ao
tema “Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração das Circunstâncias
em Contexto da Pandemia de Covid-19”, para o qual fui convidada como
moderadora. Trata­‑se de um trabalho de pendor essencialmente prático,
direccionado para a solução de casos concretos, sempre sob a perspectiva
do aplicador do Direito.

Palavras­‑chave: pandemia internacional; estado de emergência; medidas


legislativas excepcionais e temporárias; relações obrigacionais duradouras;
alteração superveniente e anormal das circunstâncias; base do negócio; risco;
boa­‑fé; mora do lesado; dissolução versus modificação do contrato; colisão de
direito; culpa do lesado.

Índice
← 40 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
III. Covid-19 e Alteração Superveniente das 1. Introdução
Circunstâncias: Critérios Orientadores de Decisão
em Situações Tipicamente Previsíveis

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1. Introdução

É inquestionável que vivemos uma situação nacional e internacional


excepcional.
A “Organização Mundial de Saúde” qualificou, no dia 11/03/20, a
emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID­‑19 como uma
pandemia internacional.
A situação epidémica evoluiu muito rapidamente por todo o mundo e,
em particular, na União Europeia.
Como tentativa de prevenir a doença e conter a pandemia, foram
adoptadas pela generalidade dos países medidas de forte restrição de direitos
e liberdades, em particular no que respeita aos direitos de circulação e às
liberdades económicas.
Em Portugal, o Decreto do Presidente da República n.º 14­‑A/2020, de
18/03/20, declarou o estado de emergência, com a duração de 15 dias, com
fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública.
Tal declaração de estado de emergência foi renovada pelos Decretos
do Presidente da República n.º 17­‑A/2020, de 02/04/20, e n.º 20­‑A/2020, de
17/04/20.
Sequencialmente o Conselho de Ministros, através da Resolução do
Conselho de Ministros n.º 33­‑A/2020, de 30/04, declarou a situação de
calamidade, no âmbito da pandemia da doença COVID­‑19, em todo o território
nacional até 17/05/20, situação esta que, entretanto, foi sendo prorrogada, até
ser substituída por um estado de alerta em todo o país(1).
Em concreto, por força das declarações de estado de emergência, ficaram
parcialmente suspensos os direitos de deslocação e fixação em qualquer parte
do território nacional; o direito de propriedade e iniciativa económica privada;
os direitos dos trabalhadores; o direito de circulação internacional; o direito de
reunião e de manifestação; a liberdade de culto, na sua dimensão colectiva; a
liberdade de aprender e ensinar; o direito à protecção de dados pessoais e o
direito de resistência.
Em execução destas, o Governo, através dos Decretos n.º 2­‑A/2020, de
20/03/20, n.º 2­‑B/2020, de 02/04/20, e n.º 2­‑C/2002, de 17/04/20, colocou
em situação de confinamento obrigatório em estabelecimento de saúde ou no

1 Consignando-se que o presente trabalho se encontra actualizado à data de 31/07/20.

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← 41 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
III. Covid-19 e Alteração Superveniente das 1. Introdução
Circunstâncias: Critérios Orientadores de Decisão
em Situações Tipicamente Previsíveis

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respectivo domicílio um restrito conjunto de cidadãos; declarou em situação


de dever especial de protecção um outro mais extenso conjunto de cidadãos
e instituiu um dever geral de recolhimento domiciliário para todos os demais
cidadãos, com restrições relevantes aos seus direitos de deslocação.
Foram encerradas as instalações e estabelecimentos de discotecas, bares,
salões de dança ou de festa, circos, parques de diversão, parques aquáticos,
jardins zoológicos, auditórios, cinemas, teatros, museus, monumentos,
bibliotecas e arquivos, praças tauromáticas, galerias de arte, pavilhões de
congressos, campos e pavilhões desportivos, piscinas, ginásios e academias,
estádios, casinos e estabelecimentos de restauração e similares, excepto se
optassem por serviços de “take­‑away” ou de entrega ao domicílio.
Foram suspensas, na sua maioria, as actividades no âmbito do comércio a
retalho e as actividades de prestação de serviços em estabelecimentos abertos
ao público.
Recentemente a Resolução do Conselho de Ministros n.º 33­‑C/2020, de
30/04, estabeleceu uma estratégia de levantamento sequencial das medidas
de confinamento, as quais – com algumas alterações pontuais – foram sendo
aplicadas paulatinamente.
A doença por COVID­‑19, as medidas legislativas de contenção à
propagação da pandemia, e principalmente, o medo incutido pelos meios de
comunicação social, paralisaram a sociedade e a economia, com relevante
contenção do consumo privado, exponencial aumento do desemprego e
marcada diminuição da capacidade produtiva, ingredientes mais que suficientes
para provocar uma recessão económica(2).
Esta situação social e económica criou e continua a criar perturbações
e desequilíbrios contratuais que seguramente se vão replicar nos próximos
meses ou anos, reclamando a intervenção do Direito.

2 Refere, a este propósito, Carla Amado Gomes (in “Legalidade em tempos atípicos: notas sobre as medi‑
das de polícia sanitária no âmbito da pandemia” in Revista do Ministério Público – Número Especial Covid-19,
Ano 41, Junho de 2020, pág. 43) que “A pandemia provocada pelo Coronavírus tem sido consensualmente
caracterizada como a maior emergência sanitária que o mundo enfrentou desde a gripe espanhola de 1918 e
a maior crise global desde a II Guerra Mundial. É, inquestionavelmente, uma prova de fogo para os governos
e um desafio social sem precedentes.”

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← 42 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
III. Covid-19 e Alteração Superveniente das 2. Situações tipicamente previsíveis à luz do
Circunstâncias: Critérios Orientadores de Decisão regime geral do instituto
em Situações Tipicamente Previsíveis

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2. Situações tipicamente previsíveis à luz do regime geral


do instituto

O fim da Segunda Guerra Mundial marcou o início do processo de


globalização dos Direitos do Homem, como forma de combater a pobreza e
as prementes questões sociais.
O Estado de Direito do século XIX, assente numa filosofia liberal, veio dar
lugar a um Estado de Direito Social ou Estado Providência.
No âmbito do direito civil, a rapidez crescente do desenvolvimento da
vida em sociedade foi colocando novos desafios à comunidade jurídica, sendo
que o predomínio clássico do interesse na estabilidade nos contratos teve que
ir cedendo lugar a interesses de flexibilidade e adaptabilidade, especialmente
nos contratos de execução diferida ou continuada(3).
Igualmente num processo gradual de socialização, o problema da
alteração das circunstâncias no regime dos contratos passou a suscitar crescente
interesse na doutrina nacional e estrangeira, bem como na jurisprudência, em
especial na alemã.
Chegados aos dias de hoje, o regime da resolução ou modificação do
contrato por alteração das circunstâncias tem potencial aplicação em todos
os acordos contratuais uma vez que, através dele, se estabelece precisamente
“(…) um confronto entre a estabilidade e a segurança jurídica, por um lado, e
a justiça comutativa, por outro.”(4)
Aliás, em nosso entendimento, a aplicação excepcional deste instituto
é ainda uma emanação do princípio da autonomia da vontade, adaptando
o conteúdo do contrato a novas realidades imprevisivelmente surgidas ou
possibilitando a sua resolução, sempre que tal adaptação não se revelar possível(5).

3 Estas relações obrigacionais duradouras servem esquematicamente para suprir necessidades de natureza
contínua ou periódica e são juridicamente reguladas através de um “contrato-quadro” ou contrato organi‑
zatório, com função de previsão das directrizes gerais do projecto a desenvolver no futuro, e de sucessivos
contratos de execução, ou através de um contrato obrigacional unitário, mas tendencialmente com um modelo
de regulamentação pouco denso ou incluindo mecanismos de adaptação.
4 Pedro Romano Martinez (in Da Cessação do Contrato, 2.ª Edição, 2006, Almedina, pág. 157).
5 Refere, a este propósito, Manuel Carneiro da Frada (In “Crise Mundial e Alteração das Circunstâncias”
in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 69, Julho/Dezembro de 2009, pág. 678) que “(…) o querido pelas
partes, foi-o tendo em conta um determinado “ambiente” do contrato. Pelo que a inalterabilidade das obriga‑
ções assumidas – quando o seu contexto se encontra anormalmente alterado, para além de qualquer razoável
previsibilidade – não pode deixar de ser uma desconsideração, do ponto de vista substancial-valorativo, da
vontade negocial.”, concluindo, mais à frente, que a dimensão axiológica essencial do art.º 437.º do Código
Civil é a da justiça objectiva na relação entre os agentes jurídicos.

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← 43 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
III. Covid-19 e Alteração Superveniente das 2. Situações tipicamente previsíveis à luz do
Circunstâncias: Critérios Orientadores de Decisão regime geral do instituto
em Situações Tipicamente Previsíveis

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No Código Civil actual, o instituto da alteração das circunstâncias está


consagrado no art.º 437.º do Código Civil, nos seguintes termos: “Se as
circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido
uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou
à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das
obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não
esteja coberta pelos riscos próprios do contrato.” (6)
Em termos de análise preliminar de enquadramento releva particularmente
o carácter excepcional deste instituto: a sua aplicabilidade pressupõe um
processo prévio e aturado de depuração.
O regime da alteração superveniente das circunstâncias fica afastado,
desde logo, quando as próprias partes tenham, ao abrigo do princípio da
autonomia privada, disciplinado eventuais alterações futuras.

6 Anote-se que o direito europeu e internacional dos contratos tem tido uma evolução paralela à da legis‑
lação portuguesa. Assim, os Princípios Unidroit relativos aos Contratos Comerciais Internacionais determinam
que “Há hardship quando surgem acontecimentos que alteram fundamentalmente o equilíbrio das prestações,
quer por aumento do custo do cumprimento das obrigações, quer por diminuição do valor da contrapresta‑
ção e: a) esses acontecimentos se verificaram ou chegaram ao conhecimento da parte lesada depois da con‑
clusão do contrato; b) esses acontecimentos não podiam razoavelmente ser tomados em consideração pela
parte lesada no momento da conclusão do contrato; c) esses acontecimentos escapam ao controlo da parte
lesada; d) o risco desses acontecimentos não foi assumido pela parte lesada.” (Art. 6.2.2.). Bem como que os
Principles os European Contract Law dispõem que “(1) A parte permanece obrigada mesmo se o cumprimento
se tornou mais oneroso, seja porque aumentou o custo do cumprimento, seja porque diminuiu o valor da con‑
traprestação. (2) Se, porém, uma alteração de circunstâncias onerou excessivamente o cumprimento de uma
obrigação, as partes estão vinculadas ao dever de negociar a modificação ou a extinção do contrato, desde
que: (a) a alteração das circunstâncias tenha ocorrido em momento posterior à celebração do contrato; (b)
ao tempo da celebração do contrato, não fosse razoável prever a possibilidade de uma alteração de circuns‑
tâncias; (c) a parte lesada não deva, segundo o contrato, suportar o risco da alteração das circunstâncias; (3)
Se as partes não chegarem a acordo num prazo razoável, o tribunal pode: (a) extinguir o contrato, definindo a
data e os termos da cessação; ou (b) modificar o contrato, de modo a distribuir pelas partes, de forma justa e
equitativa, as vantagens e desvantagens resultantes da alteração das circunstâncias. Em qualquer dos casos,
o tribunal pode condenar a parte faltosa no dever de indemnizar os danos causados pela recusa em negociar
ou pela ruptura das negociações devidas, se esse comportamento contrariar a boa fé e o dever de lealdade
contratual.” Ainda que o Draft Commom Frame of Reference (DCFR) – esboço para um futuro Código Europeu
das Obrigações – dispõe, também de forma paralela, que: “1 – [u]ma obrigação deve ser cumprida, mesmo se
o cumprimento se tornou mais oneroso, seja porque aumentou o custo do cumprimento, seja porque diminuiu
o valor da contraprestação; 2 – Se, porém, uma alteração excepcional de circunstâncias onerou de tal modo
o cumprimento de uma obrigação contratual, ou com fonte num negócio jurídico unilateral, que é manifesta‑
mente injusto manter o dever de prestar do devedor, o tribunal pode: (a) modificar a obrigação, tornando-a
adequada e equitativa em função das novas circunstâncias; ou (b) extinguir a obrigação em data e termos
a definir pelo tribunal. 3 – O parágrafo 2 apenas se aplica se; (a) a alteração das circunstâncias ocorreu em
momento posterior ao nascimento da obrigação; (b) ao tempo da constituição da obrigação, o devedor não
previu, nem seria razoável que tivesse previsto, a possibilidade ou a dimensão daquela alteração de circunstân‑
cias; (c) o devedor não assumiu, nem é razoável considerar que tenha assumido, o risco daquela alteração de
circunstâncias; e(d) o devedor tentou, com razoabilidade e de boa fé, alcançar, por negociação, uma revisão
razoável e equitativa das condições da obrigação.”

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← 44 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
III. Covid-19 e Alteração Superveniente das 2. Situações tipicamente previsíveis à luz do
Circunstâncias: Critérios Orientadores de Decisão regime geral do instituto
em Situações Tipicamente Previsíveis

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Com efeito, as partes começaram crescentemente, com especial


predomínio nos contratos internacionais, a prever formas de regulação de
potenciais alterações das condições do contrato e/ou a fixar deveres de
renegociação, a facultar a resolução do contrato ou até a impor a inaplicabilidade
do regime da alteração das circunstâncias, designadamente através de cláusulas
de hardship(7) ou outro tipo de cláusula de estabilização, revisão, indexação ou
congelamento(8).
Nos contratos com estas características, apenas excepcionalmente se
poderá equacionar a aplicabilidade do instituto da alteração superveniente
das circunstâncias, a saber nos casos contados em que se venha a concluir
que a cláusula de hardship ou equivalente não teve a pretensão de substituir
ou afastar a aplicação de tal instituto(9).
Na generalidade das situações em que as partes não tenham incluído
cláusulas de adaptação ou renegociação, a aplicação do instituto da alteração
das circunstâncias fica, ainda assim, delimitada pela interpretação negocial à
luz da unidade do sistema jurídico, tendo sempre por pressuposto que se trata
de instituto supletivo ou residual perante o conjunto de regras de imputação
de danos.
Ou, como refere Menezes Cordeiro(10), o art.º 437.º do Código Civil “existe
e deve ser usado nos casos­‑limite em que não tenha aplicação qualquer outro
instituto”, explicando, mais à frente, que deve, previamente, apurar­‑se “se o
problema causado pela alteração não tem uma saída directa à luz dos regimes
do erro, do risco, da interpretação ou da tutela da confiança.”(11)

7 As quais são definidas por Engrácia Antunes (in Direito dos Contratos Comerciais, 2009, Almedina,
pág. 313) como “aquelas que estabelecem a renegociação do contrato quando a execução das obrigações
contratuais se tornou excessivamente onerosa para uma das partes devido a uma alteração substancial das
circunstâncias susceptível de afectar o equilíbrio global do contrato.”
8 Para maior desenvolvimento veja-se Diogo Pereira Duarte (in “A regulação contratual do risco e a alteração
das circunstâncias, a propósito dos swaps” in Revista do Direito das Sociedades, 2015, n.º 1, pág. 189 e ss.
9 Tal como refere Menezes Cordeiro (in Tratado de Direito Civil IX – Cumprimento e Não-cumprimento,
Transmissão, Modificação e Extinção, 3.ª Edição, 2017, Almedina, pág. 671): “Quando, no contrato, tenham
sido incluídas cláusulas desse tipo, as partes não ficam à mercê de todos os azares do destino; ultrapassada
uma certa medida, pode verificar-se que o clausulado não pretendeu ir mais além, no domínio da regulação
de superveniência.”
10 Ob. Cit. Tratado de Direito Civil IX, pág. 696.
11 Ob. Cit. pág. 721.

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das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
III. Covid-19 e Alteração Superveniente das 2. Situações tipicamente previsíveis à luz do
Circunstâncias: Critérios Orientadores de Decisão regime geral do instituto
em Situações Tipicamente Previsíveis

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Esta tarefa de depuração é, quase sempre, complexa e controversa,


surgindo, frequentemente, casos de fronteira, em especial com as situações
de impossibilidade definitiva(12).
No âmbito da presente situação de pandemia, haverá ainda que ponderar
em que casos as leis excepcionais e temporárias que foram sendo aprovadas
prejudicam a aplicação da lei geral do Código Civil e, em concreto, o instituto
aqui em apreciação.
A regra geral é – como se sabe – a de que a lei especial e excepcional
prefere à lei geral, no âmbito do respectivo perímetro de intervenção(13).
Atendendo a que estas normas excepcionais e temporárias se limitam a
disciplinar aspectos parcelares de alguns institutos jurídicos, deve entender­
‑se que a sua teleologia foi a de fixar os termos das modificações contratuais
adequadas aos efeitos da pandemia por COVID­‑19 nos aspectos pontuais
considerados fragilizados nos respectivos institutos jurídicos sobre que
versam(14).
Neste sentido, veja­‑se Pestana de Vasconcelos(15): “(…) estes diplomas
visam introduzir alterações ao regime destes contratos, mas de forma muito
pontual, estando, além disso, sempre dependentes da adesão dos beneficiários
– que tem carácter potestativo. Daí a regulação decorrente da vontade das
partes corporizada na modelação do conteúdo negocial (excepto naqueles
pontos em que colida com estes regimes), assim como as disciplinas gerais
dos diversos tipos contratuais, se manter.”

12 Veja-se, a este propósito, designadamente o Acórdão da Relação de Lisboa de 07/04/16, tendo como
Relator Ilídio Sacarrão Martins (proferido no Processo n.º 635/13.1TVLSB-L1-8 e disponível em www.dgsi.pt
no dia 31/07/20).
13 Aliás, estas leis assumem expressamente, nos respectivos sumários, preâmbulos e texto de lei o seu
carácter excepcional e temporário. Veja-se, designadamente, a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março (com várias
alterações, sendo a mais recente a operada pela Lei n.º 16/2020, de 29/05) que, de forma que se nos afigura
exemplificativa do espírito de todas as demais leis, determina expressamente, no respectivo art.º 9.º que
“Sem prejuízo das competências atribuídas pela Constituição e pela lei a órgãos de soberania de carácter
electivo, o disposto na presente lei, bem como no Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, prevalece sobre
normas legais, gerais e especiais que disponham em sentido contrário, designadamente as contantes da Lei
do Orçamento do Estado.”
14 Um caso paradigmático é o art.º 1040.º, n.º 2, do Código Civil que, apesar da respectiva aplicação poder
ser, em concreto, mais benéfica para o arrendatário, se deve considerar prejudicado pela entrada em vigor da
Lei n.º 4-C/2020, de 06/04, entretanto alterada pela Lei n.º 17/2020, de 29/05, atinente à mora no pagamento
das rendas. Deve, pois, entender-se que esta lei excepcional, ponderando simultaneamente os interesses de
locador e locatário em sede de pandemia, alterou a forma de disciplina do contrato de locação.
15 In “Legislação de emergência e contratos. O regime excepcional dos contratos de arrendamento e ban‑
cários” in Revista do Ministério Público – Número Especial COVID-19, Ano 41, Junho de 2020, pág. 260-261.

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Bem como Higina Castelo(16): “(…) as respostas de reequilíbrio contratual


das leis temporárias objecto deste estudo são leves, afectam prestações
escassas e não implicam modificações contratuais de relevo.”
Assim sendo, diremos – em tese geral e como critério operativo – que nos
contratos típicos cujos regimes legais foram especificamente temporariamente
modificados, tal como os dos contratos de arrendamento e contratos conexos
de exploração de imóveis para fins comerciais, os das situações de exercício de
direitos do consumidor, ao abrigo do disposto no Decreto­‑Lei n.º 67/2003, de
08/04, ou do contrato de seguro se deverá considerar prejudicada a aplicação
do instituto da alteração das circunstâncias na parte da economia negocial
alterada directamente por tais leis.
Diversamente, em todos os demais aspectos da respectiva regulamentação
ou em todos os contratos atípicos e/ou mistos haverá que se ponderar se
as medidas concretas aprovadas tiveram como resultado equilibrar as
prestações acordadas.
Sempre que se entenda que, não obstante as medidas legislativas, as
posições jurídicas das partes continuaram desequilibradas, estará legitimada
a aplicação da disposição legal do art.º 437.º do Código Civil.
Resolvidas todas estas questões delimitativas e concluindo­‑se pela
aplicabilidade potencial do instituto da alteração das circunstâncias, haverá –
num segundo momento – que apreciar da verificação dos exigentes requisitos
cumulativos consagrados no art.º 437.º do Código Civil: a ocorrência de
uma alteração anormal e imprevisível de uma circunstância relevante; a
inimputabilidade de tal anormal alteração à pessoa do devedor; a existência
de danos consideráveis e, como requisitos negativos, a não inclusão nos riscos
próprios do contrato e a não existência de uma situação prévia de mora da
parte lesada.
Passando para a análise individualizada de cada um dos requisitos
elencados, temos que o respectivo requisito central é a alteração das
circunstâncias inicialmente previstas.

16 In “O arrendamento urbano nas leis temporárias de 2020” in Revista do Ministério Público – Número
Especial COVID-19, Ano 41, Junho de 2020, pág. 351.

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Este é configurado maioritariamente pela doutrina e jurisprudência como


uma alteração do contexto, dos condicionalismos que rodearam a celebração
do negócio jurídico, essencialmente por apelo à teoria da base do negócio(17).
As circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar –
como se lê designadamente no Acórdão do Supremo Tribunal da Justiça de
10/01/13, tendo como Relator Orlando Afonso(18) – são “(…) as circunstâncias
que determinaram as partes a contratar, de tal modo que, se fossem outras, não
teriam contratado, ou tê­‑lo­‑iam feito, ou pretendido fazer, em termos diferentes.”
Esta alteração da base do negócio, diferentemente do que se passa no
domínio do erro, tem carácter objectivo “visto não se reconduzir a uma imaginária
falsa representação psicológica da manutenção de tais circunstâncias”(19) (20).
Tratando­‑se de alterações anormais que não tenham sido equacionadas
pelas partes na ocasião da celebração do contrato, a sua integração no instituto
terá de fazer­‑se com recurso à vontade hipotética das partes.
Refere, a este propósito, Mariana Fontes da Costa(21) que “Na determinação
da vontade hipotética das partes para aferição da base do negócio, deve o
intérprete procurar identificar todos os elementos subjectivos disponíveis que
possam contribuir para aproximar o seu juízo da vontade real das partes. Estes

17 Veja-se, neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/10/14, tendo como Relator Pinto de
Almeida (proferido no Processo n.º 11291/10.9TBVNG.P1.S1 e disponível em www.dgsi.pt em 31/07/20), Acórdão
da Relação de Lisboa de 24/11/16, tendo como Relatora Fátima Galante (in Colectânea de Jurisprudência Ano
XLI, Tomo V, pág. 289), Código Civil Anotado com coordenação de Ana Prata (Volume I, 2017, Almedina, pág.
559), Oliveira Ascensão (in “Onerosidade excessiva por “alteração das circunstâncias” in Revista da Ordem
dos Advogados, Ano 65, Vol. III, Dez. de 2005, versão online in www.ordemdosadvogados.pt), Pedro Romano
Martinez (in Da Cessação do Contrato, ob. cit., pág.157 e ss.), Antunes Varela (in “Resolução ou modificação
do Contrato por Alteração de Circunstâncias in Colectânea de Jurisprudência, Ano VII, 1982, Tomo 2, pág. 9 e
ss.) e Vaz Serra (in “Resolução ou Modificação dos Contratos por Alteração das Circunstâncias” in Boletim do
Ministério da Justiça, n.º 68, Julho de 1957, pág. 311 e ss.). Nos últimos anos, começa a integrar-se a alteração
superveniente das circunstâncias por apelo a outras construções jurídicas, designadamente à teoria do risco
e ao princípio da tutela da confiança, como realça Menezes Cordeiro (in “Da alteração das circunstâncias” in
Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha, 2012, Almedina, pág. 315 e ss.). Não é, contudo, este
o local próprio para aprofundar esta questão.
18 Proferido no Processo n.º 187/10.4TVLSB.L2.S1 e disponível em www.dgsi.pt no dia 31/07/20.
19 In Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/05/09, tendo como Relator Oliveira Vasconcelos (pro‑
ferido no Processo n.º 197/06.6TCFUN.S1 e disponível em www.dgsi.pt no dia 31/07/20).
20 Ao longo dos anos, a doutrina tem oscilado entre leituras subjectivas e objectivas deste instituto,
Actualmente, ainda há autores que continuam a defender que a alteração das circunstâncias tem uma “clara
perspectiva subjectivista”, designadamente Henrique Sousa Antunes (in “A alteração das circunstâncias no
direito europeu dos contratos” in Cadernos de Direito Privado, n.º 47 Julho/Setembro 2014, pág. 4).
21 In Da Alteração Superveniente das Circunstâncias (em especial à luz dos contratos comerciais), 2017,
Almedina, pág. 343.

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elementos são, depois, sujeitos a uma ponderação e integração normativas,


orientadas pelo princípio central da boa fé.”
Tendo por assente esta configuração jurídica, e passando para a análise
da situação actual, entendemos que se justifica potencialmente a aplicabilidade
deste instituto a contratos pendentes(22) sempre que a doença por COVID­‑19
e, principalmente, as consequências das medidas aplicadas em resposta à
pandemia tenham, em ligação causal, frustrado o fim negocial ou tornado o
cumprimento do contrato mais gravoso para uma das partes ou para ambas(23).
Neste contexto, a causa específica para aplicação da disciplina do
art.º 437.º do Código Civil pode ser directamente a própria pandemia e/
ou indirectamente as medidas legislativas de contenção à propagação
da pandemia(24).
Ainda neste contexto, há que ponderar que as alterações à base do
negócio são tipicamente distinguidas entre alterações à pequena e à grande
base do negócio(25), ainda que ambas enquadráveis na mesma disposição legal
do art.º 437.º do Código Civil.

22 É pacífico que, com excepção de casos de contornos muito especiais, “(...) a alteração das circunstân‑
cias não pode ser aplicada a contratos já executados, uma vez que após a troca das prestações, já passa
a ser um risco do receptor da prestação as alteração de valor que ela venha a sofrer.”, tal como se decidiu
designadamente no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/01/15, tendo como Relator Fonseca Ramos
(proferido no Processo n.º 876/12.9TBBNV-A.L1.S1). No mesmo sentido, vejam-se igualmente os Acórdãos do
mesmo Supremo Tribunal de Justiça de 17/03/10, tendo como Relator Sousa Peixoto (proferido no Processo
n.º 7/06.4TTAVR.C1.S1) e de 23/10/86, tendo como Relator Almeida Ribeiro (proferido no Processo n.º 073015),
bem como o Acórdão da Relação do Porto de 15/02/12, tendo como Relator Augusto de Carvalho (proferido
no Processo n.º 1971/06.9TVPRT.P1), todos disponíveis em www.dgsi.pt no dia 31/07/20.
23 Refere, a este propósito, Mafalda Miranda Barbosa (in “Entre a impossibilidade e a alteração superve‑
niente das circunstâncias: reflexões a propósito da pandemia de COVID-19” in Revista do Ministério Público
– Número Especial COVID-19, Ano 41, Junho de 2020, pág. 252) que “A alteração do contexto socioeconómico
e jurídico, por força da pandemia de COVID-19 – e, mais intensamente, por força das medidas de excepção
adoptadas para conter a progressão do vírus – , não pode deixar de ser vista como uma alteração anormal
das circunstâncias, atento o seu carácter inesperado (pelo menos do ponto de vista do homem médio, não
especialista em saúde pública e em epidemiologia).”
24 À luz desta mesma configuração jurídica, já não poderemos considerar aplicável a disciplina do instituto
da alteração das circunstâncias à situação de uma qualquer pessoa singular que sofra, em consequência
das medidas legais decretadas devido à pandemia por Covid-19, uma redução significativa dos respectivos
rendimentos decorrentes do trabalho, designadamente em função de despedimento ou da aplicabilidade
do regime do lay-off da sua entidade patronal e, por via disso, se tenha tornado bastante mais gravoso o
cumprimento de um certo contrato para si. Com efeito, a mera dificuldade financeira no cumprimento das
obrigações não se trata, em tese, de uma qualquer alteração dos condicionalismos concretos que rodearam
a celebração do negócio jurídico mas, ao invés, de uma mera alteração das condições de vida subjectivas de
um dos contraentes. Assim, deve entender-se que todas estas situações ficam fora do perímetro de aplicação
do instituto.
25 Seguindo uma nomenclatura de Kegel.

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Circunstâncias: Critérios Orientadores de Decisão regime geral do instituto
em Situações Tipicamente Previsíveis

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Estas últimas identificam­‑se como alterações de largo espectro, das


condições gerais da vida em sociedade, tais como catástrofes naturais, guerras,
revoluções ou crises económicas nacionais ou internacionais de grandes
proporções.
Tratam­‑se, por definição, de alterações que excedem os riscos típicos
do tráfego negocial(26), por contraposição às alterações à pequena base do
negócio com impacto social e contratual circunscrito.
O surgimento da pandemia por Covid-19 enquadra­‑se, sem qualquer
margem para dúvida, numa situação de alteração à grande base do negócio
susceptível de interferir na estabilidade dos contratos, face à acima aludida
paralisação da sociedade e a economia, com relevante contenção do consumo
privado, exponencial aumento do desemprego e marcada diminuição da
capacidade produtiva.
Se dúvidas houvesse, o nosso legislador, com a adopção do conjunto
das leis excepcionais e temporárias, reconheceu implicitamente a existência
de uma situação de alteração de largo espectro.
Com base em idêntico raciocínio, no passado, a doutrina e vários
Acórdãos dos nossos Tribunais Superiores já haviam considerado igualmente
uma situação de alteração à grande base do negócio a crise económica mundial
de 2007/2008, que teve o seu início com a crise do subprime nos Estados
Unidos da América(27).
Cita­‑se, a título meramente exemplificativo, o Acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça de 14/10/14, tendo como Relator Pinto de Almeida (acima
citado) onde se refere expressamente que “A crise económica e financeira que
se vive desde 2007/2008, pelo seu carácter anormal, estrutural e grave, pode

26 Refere, a este propósito, Menezes Cordeiro (in ob. cit. Tratado de Direito Civil IX, pág. 692 e 693) que as
grandes alterações das circunstâncias são as “modificações estruturais que venham bulir com a generalidade
das variáveis económico-sociais que caracterizam uma sociedade.”
27 Veja-se na doutrina, em termos exemplificativos, Manuel Carneiro da Frada (in Ob. Cit., pág. 683) que
justifica concretamente que “(…) a forma, inopinada e profunda, como a actual crise eclodiu, com a surpresa
de muitos ou de quase todos, mesmo especialistas, parece apontar nesse sentido. Entre os factores a pon‑
derar, há que considerar a dimensão da sua ocorrência, a sua não antecipabilidade generalizada e o facto de
radicar em causas interdependentes múltiplas que ultrapassam o poder de actuação e influência dos actores
económicos singulares (por mais poderosos que sejam) e se projectam mesmo, como crise global, para além
dos limites dos países e das várias zonas económicas do planeta.”

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← 50 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
III. Covid-19 e Alteração Superveniente das 2. Situações tipicamente previsíveis à luz do
Circunstâncias: Critérios Orientadores de Decisão regime geral do instituto
em Situações Tipicamente Previsíveis

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representar uma alteração profunda, imprevista e anormal das circunstâncias


em que as partes decidiram contratar.”(28)
A anormalidade é um requisito adicional e conformador da alteração das
circunstâncias.
A justificação é quase intuitiva: perante a ocorrência de uma alteração
objectivamente previsível não se justifica a dissolução ou a modificação do
contrato, já que as partes poderiam e deveriam tê­‑la previsto e celebrado o
contrato atendendo a esta condicionante. No limite, poderá ponderar­‑se a
aplicação do regime do erro, consagrado no art.º 252.º, n.º 1, do Código Civil.
A verificação deste requisito fica tendencialmente prejudicada nas
alterações à grande base do negócio – como o caso do Covid-19 – por, quanto a
estas, e face à sua imprevisibilidade e amplitude, os contraentes, em princípio,
não terem possibilidade de antever a sua ocorrência.
Aliás, esse raciocínio foi precisamente o adoptado em vários arestos
dos nossos Tribunais Superiores aquando da crise económica mundial de
2007/2008, como se verifica, a título exemplificativo, no Acórdão da Relação
de Lisboa de 14/06/12, tendo como Relator Sérgio Almeida(29): “A referida crise
não era, obviamente, antecipável; tanto que não o foi pela generalidade de
economistas e pelo sistema financeiro internacional. (…) É irrefragável que
existe uma alteração anormal das circunstâncias, e que se impõem cedências
aos princípios da estabilidade das obrigações e da segurança dos convénios
de modo a preservar a boa fé e o princípio da justiça material, já que as partes
não negociaram ponderando o cenário macro­‑económico entretanto ocorrido.
E não o ponderaram porque não podiam e não por displicência ou imprudência.”

A única questão relevante a definir nesta sede prende­‑se com a data a


partir da qual se deve considerar que a pandemia e consequentes medidas
legais passaram a ser objectivamente previsíveis e, como tal, excluídas do
perímetro do art.º 437.º do Código Civil.

28 Veja-se, no mesmo sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 10/04/18, tendo como Relator
Pinto de Almeida (proferido no Processo n.º 16/14.0TVLSB.L1.S1) e de 14/06/12, tendo como Relator Sérgio
Almeida (proferido no Processo n.º 187/10.4TVLSB.L2-2), o Acórdão da Relação do Porto de 06/06/16, tendo
como Relator Carlos Querido (proferido no Processo n.º 4463/14.9TBVNG-A.P1) e os Acórdãos da Relação de
Lisboa de 19/02/15, tendo como Relatora Isoleta Costa (proferido no Processo n.º 1320/11.4TVLSB.L1.8) e de
14/06/12, tendo como Relator Sérgio Almeida (proferido no Processo n.º 187/10.4TVLSB.L2-2, todos disponí‑
veis em www.dgsi.pt em 31/07/20).
29 Proferido no Processo n.º 187/10.4TVLSB.L2-2 e disponível em www.dgsi.pt em 31/07/20.

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← 51 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
III. Covid-19 e Alteração Superveniente das 2. Situações tipicamente previsíveis à luz do
Circunstâncias: Critérios Orientadores de Decisão regime geral do instituto
em Situações Tipicamente Previsíveis

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A nosso ver, tendo em conta que as primeiras notícias de casos de COVID­


‑19 na China surgiram em Janeiro do presente ano, que apenas cerca de um
mês depois se começou a falar da possibilidade de surgirem casos na Europa e
que, em 11/03/20, a “Organização Mundial de Saúde” qualificou a emergência
de saúde pública ocasionada pela doença COVID­‑19 como uma pandemia
internacional, deve situar­‑se neste último dia a data a partir da qual a ocorrência
de uma pandemia por COVID­‑19 e inerentes consequências sociais, económicas
e legais passaram a ser previsíveis(30).
Por inerência, em todos os contratos celebrados após esta data deve
entender­‑se que as partes tinham a obrigação de prever a possibilidade de
uma situação com os contornos da que ocorreu efectivamente.
Por contraponto, relativamente aos contratos celebrados até 11 de Março
de 2020, mesmo que após as primeiras notícias de surgimento da doença
na China, afigura­‑se­‑nos que as partes não tinham obrigação de prever que
a doença iria agudizar­‑se e evoluir até uma pandemia mundial, com efeitos
tão abrangentes como os que se vieram a verificar, nem que viessem a ser
aprovadas leis excepcionais, com eficácia tão marcante na vida em sociedade.
Quanto aos contratos celebrados após 11 de Março de 2020, abrangem­
‑se quer os celebrados ab initio, quer os renegociados, através de renovação
efectiva (que não seja mera renovação automática) ou celebração de contrato
de execução (na previsão de um contrato­‑quadro com sucessivos contratos de
execução).
Por inerência, em todas as situações em que – já em fase da pandemia
internacional – as partes tenham acordado renovar um contrato inicialmente
celebrado ou celebrar um novo contrato de execução deve entender­‑se que
tinham a obrigação de atender a tal situação excepcional. Não o tendo feito,
será de presumir ter sido uma opção ponderada sua(31). No limite, como se

30 No mesmo sentido, refere Mariana Fontes da Costa in “A actual pandemia no contexto das perturbação da
grande base do negócio”, in https://observatorio.almedina.net/index.php/2020/04/01/a-atual-pandemia-no‑
-contexto-dasperturbacoes-da-grande-base-do-negocio/.: “Dir-se-á que, num juízo abstracto, para os contratos
celebrados até ao final de 2019 poucas dúvidas restarão da natureza imprevisível da pandemia de Covid-19,
bem como da dimensão dos seus efeitos. Com o agravamento da situação em Itália, a partir de meados de
Fevereiro de 2020, começa a ser duvidoso o preenchimento do requisito da imprevisibilidade da pandemia
nos contratos celebrados em data posterior, sendo que dificilmente se poderá fazer este juízo afirmativo
quanto aos contratos celebrados depois do dia 11 de marco, data em que a OMS declara a pandemia.”
31 Veja-se, neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/03/16, tendo como Relatora Ana
Luísa Geraldes (proferido no Processo n.º 2528/13.3TTLSB.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt no dia 31/07/20).

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Circunstâncias: Critérios Orientadores de Decisão regime geral do instituto
em Situações Tipicamente Previsíveis

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referiu acima, poderá ponderar­‑se a aplicação do regime do erro, consagrado


no art.º 252.º, n.º 1, do Código Civil.
A inimputabilidade da anormal alteração ao devedor é um requisito que
não tem, em princípio, pertinência nas situações concretas decorrentes da
doença por Covid-19 por ser presentemente quase pacífico que se trata de
uma doença cujo surgimento e efeitos não são imputáveis a nenhuma pessoa
singular ou colectiva ou, inclusivamente, a nenhum Estado soberano.
Somente se poderá equacionar como relevante a situação­‑limite de uma
pessoa singular que, com dolo eventual ou pelo menos com negligência grosseira,
se tenha colocado voluntariamente exposta a um elevado grau de risco de
contaminação pela doença, designadamente convivendo desnecessariamente
com pessoas reconhecidamente infectadas e/ou desrespeitando as indicações
da Direcção­‑Geral da Saúde, tendo ficado infectado pela infecção por COVID­
‑19 e, em face de subsequente imposição legal de confinamento obrigatório
em estabelecimento de saúde ou no respectivo domicílio, tenha tornado o
cumprimento de um certo contrato pendente mais gravoso para si ou para
ambas as partes.
Trata­‑se, em nosso entendimento, de uma situação de violação do
dever de prevenção da infecção, relevando o comportamento do lesado pela
ocorrência ou, ao menos, pelo montante dos danos, nos termos consagrados
no art.º 570.º do Código Civil, norma de protecção directa do credor.
Não sendo seguramente este o local próprio para analisar exaustivamente
os elementos integrantes de tal disposição legal, limitamo­‑nos a adiantar que
– a nosso ver, e apesar de conscientes de que se trata de questão polémica –
não se trata aqui de uma culpa em sentido estrito, mas antes de um dever ou
de um ónus de mitigação de danos(32).
Concluindo­‑se pela verificação de uma situação com estes contornos,
haverá que se decidir em que medida os concretos danos concretos verificados
devem ser causalmente associados à conduta do lesado.
Com grande probabilidade, a conclusão será no sentido de se
considerarem todos os danos causalmente imputados à própria conduta

32 Tal como refere Joana Farajota (in A Resolução do Contrato sem Fundamento, Colecção Teses, 2015,
Almedina, pág. 312) deverá reconhecer­‑se no art.º 570.º do Código Civil “(…) a manifestação de um verda‑
deiro dever acessório de mitigar os danos resultantes do incumprimento, emergente do artigo 762.º. Dever
acessório, na medida em que o comportamento imposto não visa o cumprimento do dever principal, nem a
protecção do interesse no cumprimento, mas a protecção do património de cada uma das partes que, em
virtude da relação contratual, se tornou particularmente vulnerável à actuação da contraparte.”

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negligente do devedor. Contudo, caso se entenda que apenas parte deles serão
causalmente imputados a tal conduta, quanto aos demais deverá equacionar­‑se,
num segundo momento, o eventual preenchimento dos requisitos consagrados
no art.º 437.º do Código Civil.
No que concerne aos danos, é inquestionável a necessidade de que os
mesmos existam.
Ou seja, uma alteração superveniente das circunstâncias que não
provoque prejuízos de monta será irrelevante em termos jurídicos.
A maior dificuldade de subsunção prende­‑se, não com estes propriamente
ditos, mas com a prova de uma ligação causal entre os danos e as circunstâncias
externas que produziram alterações na base do negócio(33).
Para além disso, como já alertava Vaz Serra(34), “A perturbação do equilíbrio
contratual, que a resolução ou modificação do contrato se destinam a evitar,
deve estar para com o acontecimento imprevisível em relação de causalidade.
Portanto, se, para essa perturbação, contribuem, além do acontecimento
imprevisível, outras causas, devem estar ser tidas em atenção para o efeito de
apreciar os limites dentro dos quais será de admitir a resolução ou modificação
do contrato.”
Nestas situações de existência de causas concorrentes, deverá sempre
recorrer­‑se à aplicação da estatuição do art.º 563.º do Código Civil, a qual
– como se sabe – consagra a teoria da causalidade adequada (cuja forma
concreta de aplicação excede o âmbito de análise deste estudo).
Noutras situações, justificar­‑se­‑á ainda ponderar se, ainda que não se
tivessem verificado as circunstâncias externas, o devedor teria, da mesma
forma e com toda a probabilidade, sofrido os mesmos danos. Ou seja, casos
há em que terá que se apreciar da eventual relevância de uma causa virtual.

33 Decidiu-se designadamente no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/01/13, acima referido, que
“Não resultando provado nos presentes autos que a degradação da capacidade económica da autora – e
que a conduziu à impossibilidade de satisfazer as obrigações assumidas com o réu – se tenha ficado a dever
à crise económica internacional, não está configurada a previsão do n.º 1 do art.º 437.º do CC.”. Bem como
no Acórdão da Relação de Lisboa de 18/09/14, tendo como Relatora Ondina Alves (proferido no Processo
n.º 400/14.9YRLSB-L1-2 e disponível em www.dgsi.pt no dia 31/07/20) que “Não obstante a crise económi‑
co-financeira possa criar desequilíbrios económicos susceptíveis de provocarem alterações anormais das
circunstâncias, nem todos os incumprimentos em tempos de crise se ficam a dever a essa alteração das cir‑
cunstâncias, pelo que a doutrina da resolução ou modificação dos contratos ínsita no n.º 1 do artigo 4237.º
do Código Civil, implica a demonstração factual da correlação entre a crise económico-financeira, anormal
e inesperada, e o não cumprimento do contrato.”
34 In Ob. Cit., pág. 330.

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Por fim, decorre ainda do normativo do art.º 437.º do Código Civil a


exigência que as obrigações afectem gravemente os princípios da boa­‑fé e que
os efeitos da alteração não estejam incluídos nos riscos próprios do contrato.
Quanto ao apelo complementar e autónomo à boa­‑fé, trata­‑se de uma
referência, a nosso ver, supérflua, na medida em que esta já está pressuposta
na análise dos antecedentes requisitos, designadamente na determinação
da alteração das circunstâncias, na própria análise da anormalidade e até na
definição dos danos juridicamente atendíveis(35).
No entanto, intui­‑se que com esta referência se pretende realçar
autonomamente a necessidade de a alteração superveniente das circunstâncias
provocar um desequilíbrio no programa contratual, uma perturbação do
equilíbrio interno do contrato que afronte os princípios da boa­‑fé objectiva e
se aproxime de uma situação de inexigibilidade.
Reporta­‑se, a este aspecto, o Acórdão da Relação do Porto de 04/03/13,
tendo como Relator José Eusébio Almeida(36), ao referir que “A resolução ou
modificação do negócio jurídico por alteração das circunstâncias, nos termos
do artigo 437.º, n.º 1, do CC, impõe a demonstração (a cargo de quem se queira
prevalecer desse instituto e além do mais) da lesão, que a alteração provocou
prejuízos e estes, não cobertos pelo risco próprio do negócio, têm de ser de
tal monta que permitam concluir que a exigência das obrigações assumidas
pelo lesado afecta gravemente os princípios da boa fé.”
O risco do contrato é normalmente identificado como o conjunto de
regras que imputam às partes à evolução da execução de um certo contrato,
no que respeita aos danos supervenientes.
As regras gerais ditam que, na pendência de uma obrigação, o risco da
perda ou deterioração da coisa a prestar corre por conta do credor, correndo, ao
invés, por conta do devedor o risco da onerosidade excessiva do cumprimento
(cf. art.º 796.º e 807.º, ambos do Código Civil)(37).
Tratando­‑se de regras supletivas, que as partes podem derrogar, a
determinação da medida do risco deve, em primeira linha, ser aferida pelas
cláusulas contratuais e, na falta destas, pelas normas legais.

35 Veja-se, neste sentido, Oliveira Ascensão (in Ob. Cit.).


36 Proferido no Processo n.º 3056/11.7TBGDM.P1 e disponível em www.dgsi.pt no dia 31/07/20.
37 Refere, a este propósito, Menezes Cordeiro (in “Direito Bancário e Alteração das Circunstâncias” in Revista
do Direito das Sociedades, 2014, Número 2, pág. 361) que “(…) se o Direito atribui a um sujeito, através do
esquema do direito subjectivo, uma vantagem, é justo que corra, contra ele, a possibilidade de dano super‑
veniente casual. Ubi commoda, ibi incommoda.”

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em Situações Tipicamente Previsíveis

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O regime do risco prevalece sobre a alteração das circunstâncias(38), mesmo


que a esfera de imputação de risco contratual não seja igual relativamente a
cada uma das partes (havendo uma repartição assimétrica, no sentido de não
proporcional em termos objectivos).
Assim, a aplicabilidade da disposição legal do art.º 437.º do Código Civil
exige que os acontecimentos, ainda que imprevisíveis, não se situem dentro
da álea do contrato, nos termos conformados pelas partes(39), por não estarem
relacionados com a função central do negócio ou por excederem os limites
fixados contratualmente para a distribuição do risco.
A análise que até aqui já fizemos da disposição legal do art.º 437.º do
Código Civil demonstra tratar­‑se – também aqui – de uma delimitação negativa
desnecessária, já que a as alterações das circunstâncias apenas se podem
considerar anormais se estiverem fora dos riscos contratuais e que somente
pode existir uma perturbação do equilíbrio interno do contrato se a mesma
extravasar os riscos contratuais.
Deixando as considerações gerais, e focando­‑nos uma vez mais nas
circunstâncias actuais, diremos que ficam fora do perímetro do instituto da
alteração superveniente das circunstâncias todos os casos em que as partes
tenham previsto especificamente a atribuição do risco da ocorrência de
pandemias (normalmente a par de epidemias e catástrofes) dentro dos riscos
típicos do contrato, como acontece, com alguma frequência, no âmbito dos
contratos de seguro.
Devem igualmente entender­‑se fora do campo de aplicação deste instituto
todos os contratos em que a elevada aleatoriedade abranja o risco concreto
decorrente das consequências da situação de emergência por Covid-19.
Tipicamente será o caso dos contratos que integram o risco como
elemento contratual, tal como grande parte dos de intermediação financeira,

38 Veja-se, a este propósito e, em concreto, quanto aos swaps de taxa de juro, João Calvão da Silva (in
“Contratos Bancários e Alteração das Circunstâncias” in Boletim da Faculdade de Direito, Vol. XC, Tomo II, 2014,
Coimbra, pág. 556). Na jurisprudência, decidindo-se pela inaplicabilidade do regime do art.º 427.º do Código
Civil com base na análise dos riscos contratuais, veja-se, a título exemplificativo o Acórdão do Supremo Tribunal
de Justiça de 10/04/14, tendo como Relator Silva Gonçalves (in Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do
Supremo Tribunal de Justiça, Ano XXII, Tomo II, pág. 64 e ss.).
39 Diogo Pereira Duarte (in ob.cit. “A regulação contratual do risco e a alteração das circunstâncias”, pág.
225) refere a seguinte possibilidade excepcional: “Na realidade, deve admitir‑se que, mesmo havendo cláu‑
sulas contratuais que têm em vista regular a alteração das circunstâncias, eventos subsequentes podem
ocorrer, ainda assim, fora da intenção ou âmbitos regulatórios da referida cláusula. Nesse caso a alteração
das circunstâncias excedeu os riscos próprios do contrato, não obstante a regulação contratual do risco, e
o artigo 437.º, n.º 1, terá plena aplicação.”

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em Situações Tipicamente Previsíveis

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em que é altamente previsível que, através da respectiva interpretação do


âmbito de repartição concreta dos riscos, se conclua pela inaplicabilidade
deste regime excepcional.
No entanto, tal como realça Luís Carvalho Fernandes(40), nos negócios
aleatórios “(...) a circunstância de a repartição do risco ser aleatória não significa
que não exista um momento a partir do qual certo evento futuro deixe de se
poder considerar coberto pelo risco normal desse negócio.”
Na jurisprudência, decidiu­‑se com esta fundamentação, por referência a
um contrato de swap de taxa de juro, designadamente no Acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça de 10/10/13, tendo como Relator Granja da Fonseca(41): “Nos
contratos, como os referidos em I, em que as partes visam justamente negociar
sobre a incerteza, o risco fornece o próprio objecto contratual pelo que a
alteração das circunstâncias tem de ser de apreciável vulto ou proporções
extraordinárias: o prejuízo só justifica a resolução ou modificação do contrato
quando se verifique um profundo desequilíbrio do contrato, sendo intolerável
com a boa­‑fé que o lesado o suporte.”
Em casos excepcionais, poderá assim justificar­‑se nestas situações a
aplicação do regime da alteração das circunstâncias, devendo equacionar­‑se,
em concreto e de forma particularmente cuidadosa, se as consequências da
emergência por COVID­‑19 excedem ou não os riscos próprios do negócio.
Devem ainda considerar­‑se, em princípio, fora do campo de aplicação
deste instituto os contratos gratuitos ou mistos com liberalidades

40 In A Teoria da Imprevisão no Direito Civil português, Quid Juris, 2001, pág. 268 e ss. Veja-se, no mesmo
sentido, Oliveira Ascensão (ob. cit.),Manuel Carneiro da Frada (in Ob. Cit; pág. 668), Pedro Pais de Vasconcelos
(in Teoria Geral do Direito Civil, 7.ª Edição, 2012, Almedina, pág. 570) e Vaz Serra (ob. cit., pág. 333) e, em
sentido contrário, Menezes Cordeiro (Ob. Cit. Tratado de Direito Civil-IX, pág. 721), onde refere: “Nos contratos
de risco, que exemplificámos com os swaps, com os seguros e com investimentos em fundos de capitais de
risco ou similares, a alteração das circunstâncias é inaplicável”.
41 Proferido no Processo n.º 1387/11.5TBBCL.G1.S1. Vejam-se, no mesmo sentido, os Acórdãos da Relação
de Lisboa de 15/01/15, tendo como Relatora Maria Manuela Gomes (proferido no Processo n.º 876/12.9TVLSB.
L1-6) e de 08/05/14, tendo como Relator Ilídio Sacarrão Martins (proferido no Processo n.º 531/11.7TVLSB-L1-8)
e ainda o Acórdão da Relação de Guimarães de 31/03/13, tendo como Relatora Conceição Bucho (proferido
no Processo n.º 1387/11.5TBBCL.G1) e, em sentido contrário, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de
28/03/06, tendo como Relator Azevedo Ramos (proferido no Processo n.º 06A301) onde, em sede de defini‑
ção dos requisitos da figura, se refere: “Em segundo lugar, é necessário que a exigência da obrigação à parte
contrária afecte gravemente os princípios da boa-fé contratual e não esteja coberta pelos riscos próprios do
negócio, como acontece no caso de se tratar de um negócio aleatório.”, bem como o Acórdão da Relação
de Guimarães de 14/05/14, tendo como Relator Jorge Teixeira (proferido no Processo n.º 1726/11.9TBVRL.G1),
todos eles disponíveis em www.dgsi.pt na data de 31/07/20.

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No entanto, em raciocínio paralelo ao acima exposto, terá – da mesma


forma – que equacionar­‑se, em concreto, se as consequências da emergência
por COVID­‑19 estão abrangidas pelos riscos próprios do negócio.
Refere, a este propósito, Oliveira Ascensão(42) “(…) também os contratos
gratuitos, ou mistos com liberalidade, podem ser atingidos. O que interessa é que a
equação económica do negócio, tal como foi querida pelas partes, seja quebrada.”
Por fim, o art.º 438.º do Código Civil acrescenta um novo requisito
negativo: a parte lesada não pode suscitar o direito de resolução ou modificação
do contrato se estiver, ela própria, já numa situação prévia de mora.
Uma primeira leitura parece indiciar uma amplitude geral coincidente com
qualquer tipo de mora, baseada na estatuição do art.º 807.º, n.º 1, do Código
Civil, ao determinar a inversão do risco em caso de mora.
No entanto, à luz dos interesses em jogo, afigura­‑se­‑nos que este preceito
deverá ser interpretado restritivamente.
Damos como nossas, a este propósito, as palavras de Oliveira Ascensão(43)
“Há que procurar a ratio do preceito. Esta é clara: se nenhuma anomalia teria
surgido caso o contrato tivesse sido pontualmente cumprido, e só assim
não aconteceu em consequência da mora de quem agora invoca a lesão, a
transgressão praticada exclui que possa beneficiar do instituto. Mas sendo
assim há que distinguir, das restantes hipóteses, aquelas em que a mora é causal
para que a relação fique desequilibrada com a alteração das circunstâncias.”
Acrescentamos: na inexistência deste preceito, estas situações sempre
seriam consideradas ilegítimas à luz do instituto do abuso de direito, consagrado
no art.º 334.º do Código Civil.
A figura do abuso de direito, como se sabe, surgiu também como uma
forma de adaptação do direito à evolução das circunstâncias, igualmente
alicerçada na boa­‑fé(44).
Depois de ultrapassado este caminho estreito de verificação dos indicados
requisitos positivos e negativos de excepcional exigência, e concluindo­‑se pela
verificação, em concreto, de uma situação de alteração das circunstâncias, o

42 Ob. Cit.
43 Ob. Cit.. Veja-se, no mesmo sentido, Mariana Fontes da Costa (in ob. cit. Da Alteração Superveniente das
Circunstâncias (em especial à luz dos contratos comerciais, pág. 445.)
44 Aliás, no sentido desta tese militam as disposições legais já existentes no Código Civil que apelam pre‑
cisamente aos conceitos de onerosidade excessiva e proporcionalidade, designadamente dos art.º 829.º,
n.º 2, 1149.º e 1221.º, n.º 2.

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contrato poderá, nos termos resultantes do art.º 437.º, n.º 1, do Código Civil,
ser dissolvido ou modificado segundo juízos de equidade.
Julgar segundo a equidade será, no que respeita à aplicação deste instituto
jurídico, ponderar exaustivamente as circunstâncias específicas do caso concreto;
apelar à ideia de justiça comutativa, com os seus corolários de equivalência das
prestações, equilíbrio financeiro e justa repartição de riscos e responsabilidades
e maior atenção à consideração de argumentos de razoabilidade das soluções
e de confiança nas legítimas expectativas das partes(45).
Tratando­‑se de um direito potestativo, a escolha entre a dissolução e
a modificação do contrato cabe, evidentemente, à parte lesado, em sede de
pedido formulado judicialmente, com a certeza de que, tendo esta pedido
a resolução, a parte contrária pode opor­‑se, propondo alternativamente a
modificação do contrato.
Neste particular, e em face do princípio da conservação ou aproveitamento
dos negócios jurídicos(46), acompanhamos a opinião de Almeida Costa(47)
“Quando o tribunal (…) se encontre em face da alternativa da resolução ou da
revisão, caberá optar pelo primeiro caminho, sempre que, diante da alteração
das circunstâncias, o contrato tenha perdido a sua razão de ser ou não possa
restabelecer­‑se um equilíbrio justo. Se possível, porém, deverá salvar­‑se o
contrato, através da revisão do seu conteúdo com base em juízos de equidade.”
Não obstante esta preferência legal pela modificação do contrato,
afigura­‑se­‑nos admissível a hipótese de, perante um pedido de modificação
do contrato, a parte contrária pedir a dissolução do mesmo.
Damos como nossas, a este propósito, as palavras de Oliveira Ascensão(48):
“O art. 437/2 não o contempla. Mas temos de entender que é admitido. Não
pode ser imposto a ninguém um contrato alterado que esteja substancialmente
fora daquilo que aceitou. Nem sendo o contrato inválido isso seria possível:
a lei baseia­‑se então na vontade tendencial das partes, nos arts. 292 e 293.
Também aqui, se a outra parte não aceitar uma modificação substancial, terá
de ser decretada a resolução.”

45 Veja-se, de forma mais desenvolvida, Freitas do Amaral (in Código Civil Anotado, ob. cit. pág. 17).
46 Princípio este patente designadamente nas disposições legais dos art.º 292.º e 293.º do Código Civil
atinentes à redução e conversão do negócio jurídico.
47 In Direito das Obrigações, 12.ª Edição, 2016, Almedina, pág. 348.
48 In Ob. Cit.

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← 59 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
III. Covid-19 e Alteração Superveniente das 2. Situações tipicamente previsíveis à luz do
Circunstâncias: Critérios Orientadores de Decisão regime geral do instituto
em Situações Tipicamente Previsíveis

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Decidindo­‑se pela necessidade de “resolução” do contrato, estamos


com Luís Carvalho Fernandes(49) no sentido de que estamos em face de uma
“dissolução” (e não de uma verdadeira resolução), já que os efeitos da aplicação
da disposição legal do art.º 437.º do Código Civil só deverão ser relevantes e
eficazes após o contraente interessado ter declarado que pretendia valer­‑se dela.
Isto é, a “dissolução” do contrato não tem efeitos retroactivos, apenas
produzindo efeitos para futuro, entendimento expressamente consentido pelo
art.º 434.º do Código Civil(50).
Sendo possível a preferível opção pela modificação, o conteúdo do
contrato será revisto com base em juízos de equidade.
Deverão ter­‑se em conta as características do contrato inicial, o
investimento feito por cada uma das partes e ainda a vontade hipotética destas
se pudessem ter previsto a ocorrência de uma alteração com as características
da verificada.
Em concreto, este desiderato poderá alcançar­‑se designadamente através
do dilatamento do prazo de cumprimento das prestações, da redução do valor
económico das prestações, da diminuição das quantidades de bens a prestar
ou através da não aplicação de alguma ou algumas cláusulas contratuais,
designadamente as atinentes a cláusulas penais(51).
É muito importante realçar, como já referia Vaz Serra(52) que “A modificação
equitativa do contrato não supõe um ajustamento perfeito, isto é, que restabeleça
a relação entre os valores das duas prestações, que na data do contrato existia.
Todo o contrato de longa duração tem alguma coisa de aleatório (…). Por
conseguinte, a modificação do contrato será equitativa quando puser a parte
a coberto dos prejuízos que excedam tal medida.”
Isto é, o objectivo final não é o do restabelecimento do equilíbrio inicial
das prestações, mas antes o da reposição do equilíbrio contratual que existiria
caso não se tivesse verificado a alteração das circunstâncias.

49 In Ob. Cit., pág. 142.


50 Veja-se no mesmo sentido Mariana Fontes da Costa (in ob. cit. Da Alteração Superveniente das
Circunstâncias (em especial à luz dos contratos bilateralmente comerciais), pág. 512) e, em contrário, defen‑
dendo a aplicação do regime geral da resolução do contrato, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de
28/05/2009, tendo como Relator Oliveira Vasconcelos (proferido no Processo n.º 197/06.6TCFUN.S1 e de
20/01/00, tendo como Relator Ferreira de Almeida (proferido no Processo n.º JSTJ00040360). ambos dispo‑
níveis em www.dgsi.pt no dia 31/07/20) e Pedro Romano Martinez (ob. cit., pág. 159).
51 Diversamente já não será possível a introdução oficiosa de novas cláusulas contratuais, sem o consenso
das partes, face ao princípio da autonomia privada.
52 In Ob. Cit, pág. 351.

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← 60 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
III. Covid-19 e Alteração Superveniente das 3. Situações tipicamente previsíveis à luz da
Circunstâncias: Critérios Orientadores de Decisão legislação especial
em Situações Tipicamente Previsíveis

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Na dúvida, e uma vez que o COVID­‑19 e as subsequentes medidas


legislativas excepcionais provocaram uma imprevisível alteração à grande base
do negócio, os danos ocasionados por tal alteração superveniente deverão ser
equitativamente distribuídos pelas partes.

3. Situações tipicamente previsíveis à luz da legislação especial

Para além das situações já acima analisadas em sede de apreciação do


regime geral, importa discorrer sobre as situações tipicamente previsíveis
decorrentes da aplicabilidade da legislação excepcional entretanto surgida
desde a declaração do primeiro estado de emergência.
Em Portugal, até ao presente(53), e para além da legislação acima referida
atinente às declarações de estado de emergência e de estado de calamidade,
apenas foram estabelecidos regimes excepcionais parcelares e temporários(54).
No essencial, e sem pretensão de escalpelizar os respectivos regimes, nos
termos da Lei n.º 1­‑A/2020, de 19/03, entretanto alterada por diversos diplomas
legais e sendo o mais recente a Lei 16/2020, de 29/05, ficaram suspensas as
acções de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos
para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da
decisão final a proferir, pudesse ser colocado em situação de fragilidade por
falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa (cf. art.º 6.º­‑A)(55).
Nos termos da mesma lei (cf. art.º 8.º) suspenderam­‑se, até 30 de Setembro
de 2020, a produção de efeitos das denúncias de contratos de arrendamento
habitacional e não habitacional efectuadas pelo senhorio; a caducidade dos
contratos de arrendamento habitacionais; a produção dos efeitos da revogação,
da oposição à renovação de contratos de arrendamento habitacional e não
habitacional efectuadas pelo senhorio; o prazo indicado no art.º 1053.º do
Código Civil e a execução de hipoteca sobre imóvel que constitua habitação
própria e permanente do executado. Complementarmente determinou­‑se, pela
mesma Lei, que o encerramento de instalações e estabelecimentos ao abrigo de

53 Como já se referiu acima, este trabalho encontra-se actualizado à data de 31/07/20.


54 As próprias leis referem – no respectivo sumário – que estabelecem regimes excepcionais e temporários
de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoC-2 e da doença COVID-19 (cf.
designadamente D.L. n.º 10-F/2020, de 26/03 e Lei n.º 1-A/2020, de 19/03).
55 A aplicação desta disposição legal depende obviamente de pedido directamente apresentado pelo
arrendatário e de prova incidental da indicada “situação de fragilidade”.

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← 61 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
III. Covid-19 e Alteração Superveniente das 3. Situações tipicamente previsíveis à luz da
Circunstâncias: Critérios Orientadores de Decisão legislação especial
em Situações Tipicamente Previsíveis

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disposição legal ou medida administrativa aprovada no âmbito da pandemia não


poderia ser invocada como fundamento de resolução, denúncia ou outra forma
de extinção de contratos de arrendamento não habitacional ou de outras formas
contratuais de exploração de imóveis, nem como fundamento de obrigação de
desocupação de imóveis em que os mesmos se encontrem instalados.
Através do Decreto­‑Lei n.º10­‑F/2020, de 26/03, entretanto alterado pelo
Decreto­‑Lei n.º 20­‑C/2020, de 07/05, estabeleceu­‑se um regime especial de
cumprimento de obrigações fiscais e contribuições sociais.
Na mesma data, através do Decreto­‑Lei n.º 10­‑J/2020, de 26/03, alterado
pela Lei n.º 8/2020, de 10/04 e pelo Decreto­‑Lei n.º 26/2020, de 16/06,
estabeleceram­‑se medidas excepcionais de protecção dos créditos das famílias,
empresas, instituições particulares de solidariedade social e demais entidades
da economia social, bem como um plano especial de garantias pessoais do
Estado designadamente proibindo a revogação de linhas de crédito contratadas,
prorrogando créditos e suspendendo o pagamento de prestações de capital e
juros, com novo escalonamento no tempo e, por outro lado, autorizando que
o Estado e outras pessoas colectivas de direito público a prestar garantias
pessoais para operações de crédito ou outras operações financeiras, para
assegurar liquidez a empresas, instituições particulares de solidariedade social,
a associações sem fins lucrativos e demais entidades da economia social.
Ainda na mesma data, com o Decreto­‑Lei 10­‑G/2020 instituiu­‑se o regime
de lay­‑off simplificado, determinando que, durante esse período, as empresas
ficavam isentas do pagamento de contribuições à Segurança Social a seu cargo,
tendo ainda criado um incentivo extraordinário na retoma da actividade, para
as empresas (findo o período de lay­‑off).
Entretanto, o Decreto­‑Lei n.º 27­‑B/2020, de 19/06, estendeu o regime
de lay­‑off simplificado até 30 de Setembro de 2020 para a generalidade das
empresas e veio regulamentar um novo incentivo extraordinário à normalização
da actividade empresarial, no âmbito do Programa de Estabilização Económica
e Social.
Através da Lei n.º4­‑C/2020, de 06/04, entretanto alterada pela Lei n.º
17/2020, de 29/05, estabeleceu­‑se um regime excepcional para as situações de
mora no pagamento de renda devida nos termos de contratos de arrendamento
urbano habitacional e não habitacional, no âmbito da pandemia COVID­‑19,
determinando­‑se que, nas situações de quebra de rendimentos dos arrendatários,
o senhorio só tinha direito à resolução do contrato de arrendamento, por falta

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← 62 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
III. Covid-19 e Alteração Superveniente das 3. Situações tipicamente previsíveis à luz da
Circunstâncias: Critérios Orientadores de Decisão legislação especial
em Situações Tipicamente Previsíveis

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de pagamento das rendas vencidas nos meses em que vigorasse o estado de


emergência e no primeiro mês subsequente, se o arrendatário não efectuasse
o seu pagamento, no prazo de 12 meses contados do termo desse período ou
desde 01 de Setembro de 2020, em prestações mensais não inferiores a um
duodécimo do montante total, pagas juntamente com a renda de cada mês
(cf. art.º 3.º e 4.º). Mais se determinou que, nas situações aí determinadas,
os arrendatários habitacionais, poderiam solicitar ao “Instituto da Habitação
e da Reabilitação Urbana, I.P.” a concessão de um empréstimo sem juros para
suportar a diferença entre o valor da renda mensal devida e o valor resultante da
aplicação ao rendimento do agregado familiar de uma taxa de esforço máxima
de 35% (cf. art.º 5.º).
Nos termos do Decreto­‑Lei n.º 24­‑A/2020, de 29/05, em aditamento ao
Decreto­‑Lei n.º 10­‑A/2020, de 13/03, estabeleceu­‑se uma relevante prorrogação
dos prazos para o exercício de direitos do consumidor, determinando que
os prazos para o exercício de direitos previstos no art.º 5.º­‑A do Decreto­‑Lei
n.º 67/2003, de 08/04 (denúncia de defeitos e do exercício dos direitos de
reparação, de substituição, de redução do preço ou de resolução do contrato),
cujo término se tenha verificado entre os dias 18 de Março de 2020 e 31 de
Maio de 2020, ficavam prorrogados até 30 de Junho de 2020.
Finalmente, através do Decreto­‑Lei n.º 20­‑F/2020, de 12/05, flexibilizou­
‑se, temporariamente, o regime de pagamento do prémio de seguro e, nos
contratos de seguro em que se verificasse uma redução significativa ou
eliminação do risco coberto em decorrência das medidas legais de resposta
à pandemia, estabeleceu­‑se um direito de os tomadores requererem o reflexo
dessas circunstâncias no prémio.
Dada a dimensão e gravidade desta pandemia que – como se viu acima
– se deve qualificar como uma alteração à grande base do negócio, era, a
nosso ver, desejável que o poder legislativo português alargasse o âmbito de
intervenção legislativa, pelo menos em termos paralelos ao que já ocorreu
na Alemanha(56), em nome dos princípios constitucionais da igualdade, da
proporcionalidade e da protecção da confiança.

56 O Governo Federal da Alemanha propôs e o Parlamento aprovou, logo no dia 26/03/20, um conjunto de
leis para adaptar a legislação vigente aos efeitos da pandemia por COVID-19. Com particular relevo, em sede
de direito das obrigações, determinou-se que, relativamente às obrigações pecuniárias decorrentes de con‑
tratos outorgados anteriormente a 08/03/20, o devedor, sendo pessoa singular ou pessoa colectiva, poderia
alegar impossibilidade temporária de cumprimento da prestação, por razões relacionadas com a pandemia,
obtendo uma dilatação do cumprimento da respectiva obrigação até 30/09/20.

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← 63 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
III. Covid-19 e Alteração Superveniente das 3. Situações tipicamente previsíveis à luz da
Circunstâncias: Critérios Orientadores de Decisão legislação especial
em Situações Tipicamente Previsíveis

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Como refere Catarina Serra (57), “(…) a crise actual configura uma
“modificação brusca das condicionantes estruturais da coexistência social”,
isto é, uma “grande” alteração das circunstâncias – e uma em grau superlativo,
que escapa às categorias dogmáticas habituais. Por isso, mais do que consentir
intervenções pontuais, por iniciativa das partes, no domínio dos contratos,
ela exige uma verdadeira reconformação legislativa do quadro em que se
desenvolvem todas as relações jurídicas.” .(58)
Esta intervenção legislativa alargada permitiria uniformizar respostas,
repartir os danos entre as partes de forma equitativa e até minorar ou resolver
situações excluídas do âmbito de aplicação dos institutos jurídicos gerais,
como a acima referida das pessoas singulares que sofram, em consequência
das medidas legais decretadas devido à pandemia por Covid-19, uma redução
significativa dos respectivos rendimentos decorrentes do trabalho.
No entanto, como relembra Carneiro da Frada, ainda que por referência
à crise financeira mundial passada(59), “(...) se uma exigência de justiça conduz
à revisibilidade de um número considerável de contratos, os tribunais devem
reconhecê­‑la nos contratos sobre os que sejam chamados a pronunciar­‑se,
sem poderem endossar a sua responsabilidade (a incertos) a pretexto da
conveniência de uma resposta legislativa mais abrangente.”
Mudando agora o nosso enfoque para os casos potencialmente previsíveis,
equacionamos como uma situação deste tipo a de sociedades comerciais
ou empresários individuais pretenderem a dissolução ou modificação de um
certo contrato duradouro, ao abrigo do disposto no art.º 437.º do Código
Civil, invocando que as consequências das medidas aplicadas em resposta à
pandemia frustraram o fim negocial ou tornaram o cumprimento do contrato
mais gravoso pelo menos para si, essencialmente por terem encerrado o
seu estabelecimento comercial ou instalações ou suspendido as respectivas
actividades comerciais ou industriais no momento da decretação do primeiro
estado de emergência por receio de exposição ao risco da doença, apesar de
a actividade por si desenvolvida não ter sido suspensa por lei.

57 In “Covid-19/Para uma legislação para a crise das empresas em tempos de “crise total” in https://obser‑
vatorio.almedina.net/index.php/2020/04/03/covid-19-para-uam-legislacao-para-a-crise-das-empresas-em‑
-tempos-de-crise-total/ disponível em 20/06/20.
58 Para mais esclarecimentos, veja-se Menezes Cordeiro (ob. cit. Tratado de Direito Civil, pág. 693 e ss.) que,
em síntese, defende que a ocorrência de acontecimentos catastróficos deve dar lugar a juízos políticos de
solidariedade, sendo esta assumida por toda a comunidade organizada e repartindo-se os danos não apenas
pelas partes contratuais, mas por todos, através do Estado.
59 In Ob. Cit., pág. 690.

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← 64 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
III. Covid-19 e Alteração Superveniente das 3. Situações tipicamente previsíveis à luz da
Circunstâncias: Critérios Orientadores de Decisão legislação especial
em Situações Tipicamente Previsíveis

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A questão prende­‑se, pois, com a aplicabilidade do instituto aos


comerciantes e sociedades que poderiam ter prosseguido com as respectivas
actividades comerciais e industriais e/ou mantido os seus estabelecimentos
sempre abertos ao público no decurso do estado de emergência, mas optaram
por os encerrar, por receio de exposição ao risco da doença por COVID­‑19,
contribuindo este comportamento para a alteração do equilíbrio contratual.
A nosso ver, trata­‑se de um caso de colisão de direitos entre o direito do
credor de cumprimento pontual da obrigação e os direitos de personalidade
do devedor, tutelados pelo art.º 70.º do Código Civil e pelos princípios
constitucionais.
Em termos gerais, resulta do disposto no art.º 762.º do Código Civil que
o devedor está obrigado a diligenciar no sentido de cumprir as prestações a
que está vinculado.
Em contraponto, os comerciantes devem, em especial, exercer a sua
actividade comercial com zelo e diligência. Para as sociedades comerciais,
resulta da estatuição do art.º 64.º do Código das Sociedades Comerciais que os
gerentes ou administradores da sociedade devem observar deveres de cuidado
e deveres de lealdade, como emanação da relação fiduciária de gestão de bens
e interesses autónomos que se estabelece no acto de constituição da mesma.
Tais deveres de cuidado, recorrendo às palavras de Menezes Cordeiro(60),
“devem ser tomados como normas de conduta que densificam, à luz dos ditames
do bom governo das sociedades, os deveres gerais de gestão. (…) A lei especifica:
(a) disponibilidade; (b) competência técnica; (c) conhecimento da actividade
da sociedade; outros tantos deveres, não taxativos, que dão um colorido geral
a toda a actuação, essencialmente fiduciária, dos administradores.”(61)
Concomitantemente o art.º 70.º do Código Civil dispõe que a lei
protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à
sua personalidade física ou moral, consagrando um princípio básico de tutela
dos direitos de personalidade.
A generalidade dos direitos de personalidade corresponde a direitos
fundamentais, consagrando a Constituição da República Portuguesa – entre
outros – os direitos à integridade pessoal (art.º 25º, nº 1) e à saúde (art.º 64º, nº 1).

60 In Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2009, Almedina, pág. 244.


61 No mesmo sentido, refere Coutinho de Abreu (in Responsabilidade civil dos administradores de socieda‑
des, 2.ª Edição, 2010, Almedina, pág. 19 e 20) que o dever de cuidado compreende “(a) o dever de controlo
ou vigilância organizativo-funcional, (b) o dever de actuação procedimentalmente correcta (para a tomada
de decisões) e (c) o dever de tomar decisões (substancialmente) razoáveis.”

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das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
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Trata­‑se de direitos absolutos, cuja protecção se tornou exponencialmente


mais premente com o surgimento da presente pandemia.
Como se sabe, o exercício de um direito pode achar­‑se limitado pela
concorrência de direitos de outras pessoas, em termos de se tornar total ou
parcialmente impossível o exercício cumulativo de todos eles.
Nestes casos de colisão de direitos, é aplicável a estatuição do art.
335º do Código Civil, sempre com fundamento em considerações de
proporcionalidade: deve ocorrer uma mútua restrição no exercício dos direitos
ou, na impossibilidade, prevalecer o direito que se entenda superior.
No caso em apreciação, e seguindo uma linha que vem sendo defendida
de forma maioritária pela nossa jurisprudência e doutrina(62), entendemos que
não há possibilidade de mútua restrição dos direitos e que o aludido direito do
credor de cumprimento pontual das obrigações deve ceder no necessário para
a defesa dos direitos de personalidade do devedor, por se dever considerar
aquele valorativamente inferior a estes.
Como refere Capelo de Sousa(63) “(...) igualmente no caso de conflito entre
um direito de personalidade e um direito de outro tipo (v.g. um direito real, um
direito de crédito, um direito familiar ou um direito público da Administração),
face sobretudo à ainda mais acentuada diversidade de bens tutelados e à
frequente ocorrência de contraposições entre bens pessoais e patrimoniais,
verifica­‑se normalmente um diferente peso jurídico em tais direitos. (....).”
Como vem sendo afirmado de forma crescente pelos especialistas na
matéria, a doença por Covid-19 é uma doença com elevada taxa de mortalidade
ou com potenciais sequelas graves (ainda não totalmente conhecidas).
Além disso, não existe ainda tratamento objectivo que destrua o vírus
respectivo, sendo que a sua erradicação só chegará previsivelmente com o
surgimento de uma vacina ou com a imunização da maioria da população.
Assim sendo, afigura­‑se­‑nos que em todas estas situações deve considerar­
‑se prevalente o receio de exposição ao risco da doença e, por inerência,
cabalmente justificada a actuação do devedor, permanecendo operante o
recurso ao instituto da alteração das circunstâncias.
A nosso ver, já deverá ter solução diversa a situação previsível dos
comerciantes e/ou sociedades comerciais que, decorridos os sucessivos
períodos de estado de emergência e de estado de calamidade, optaram por

62 Em casos paralelos.
63 In O direito geral de personalidade, 2011, Coimbra Editora, pág. 547.

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continuar com os seus estabelecimentos ou unidades industriais encerrados


continuando a invocar receio de exposição ao risco da doença.
Tendo em conta que o risco de contágio por Covid-19 passou a ser menos
elevado, o que justificou as sucessivas medidas de desconfinamento, já se
nos afigura exagerado entender que, igualmente nesta situação, o direito do
credor de cumprimento pontual das obrigações e de cuidado devem continuar
a ceder perante o direito à vida, à saúde ou à integridade física.
Por inerência, esta actuação já deverá diversamente analisar­‑se como
um comportamento negligente do lesado pela ocorrência ou, ao menos, pelo
montante dos danos, nos termos consagrados no art.º 570.º do Código Civil,
em termos paralelos a outras situações acima analisadas.
Outra questão potencialmente previsível será a de comerciantes e/ou
sociedades comerciais virem pedir em Tribunal a dissolução ou modificação
de um certo contrato duradouro invocando terem recorrido à lei especial
do lay off simplificado, o que, conjugado com as consequências das demais
medidas aplicadas em resposta à pandemia, terá determinado a frustração do
fim negocial ou tornado mais gravoso o cumprimento do contrato para si.
Tratar­‑se­‑á, a nosso ver, paralelamente à situação acima analisada, de
um outro caso de colisão de direitos, desta feita entre o direito do credor de
cumprimento pontual da obrigação e o direito do devedor de protecção das
empresas e do emprego, constitucionalmente consagrados.
A Constituição da República consagra, no respectivo art.º 53.º, o Direito
à Segurança no emprego e, no respectivo art.º 58.º, o Direito ao Trabalho,
dispondo designadamente, no n.º 2 deste último normativo, que “Para assegurar
o direito ao trabalho, incumbe ao Estado promover: a) A execução de políticas
de pleno emprego; b) A igualdade de oportunidades na escolha da profissão ou
género de trabalho e condições para que não seja vedado ou limitado, em função
do sexo, o acesso a quaisquer cargos, trabalho ou categorias profissionais; c)
A formação cultural e técnica e a valorização profissional dos trabalhadores.”
Os direitos fundamentais sociais recortam­‑se como direitos dos cidadãos
em geral a prestações de carácter económico, social e cultural.
Estruturalmente, e ao contrário dos usualmente chamados “direitos
de defesa”, impõem ao Estado uma obrigação de concretização. Sendo
necessariamente conceitos que se concretizam e evoluem historicamente,
têm necessariamente uma coloração cultural a concretizar em cada momento
histórico concreto.

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← 67 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
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Circunstâncias: Critérios Orientadores de Decisão legislação especial
em Situações Tipicamente Previsíveis

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Fazendo um resumo certeiro quanto ao seu estatuto jurídico­‑constitucional,


explica Gomes Canotilho(64): “Parece inequívoco que a realização dos direitos
económicos, sociais e culturais se caracteriza (1) pela gradualidade da sua
realização; (2) pela dependência financeira relativamente ao orçamento do
Estado; (3) pela tendencial liberdade de conformação do legislador quanto às
políticas de realização desses direitos; (4) pela insusceptibilidade de controlo
jurisdicional dos programas político­‑legislativos, a não ser quando se manifestam
em clara contradição com as normas constitucionais, ou transportem dimensões
manifestamente desrazoáveis.”
Independentemente destas especificidades, trata­‑se de direitos
fundamentais tendentes à defesa da dignidade da pessoa humana(65), vinculantes
tanto para o Estado como para os particulares, por força da estatuição do art.º
18.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Ora, como se referiu acima, no presente contexto de doença por COVID­
‑19 o Governo aprovou um conjunto de medidas extraordinárias e de carácter
urgente de apoio à continuidade da actividade económica e do emprego.
O Decreto­‑Lei 10­‑G/2020, atrás referido, instituiu o regime de lay­‑off
simplificado, determinou que, durante esse período, as empresas ficavam
isentas do pagamento de contribuições à Segurança Social a seu cargo, tendo
ainda criado um incentivo extraordinário na retoma da actividade, para as
empresas (findo o período de lay­‑off).
Este regime, que consiste na redução temporária dos períodos normais
de trabalho ou suspensão dos contratos de trabalho durante um determinado
período, foi a principal arma que o Governo utilizou para garantir a manutenção
dos empregos, auxiliar a retoma da actividade económica e garantir uma
progressiva estabilização nos planos económico e social(66).

64 In “Metodologia Fuzzy e Camaleões Normativos na problemática actual dos direitos económicos, sociais
e culturais” in Estudos sobre Direitos Fundamentais, 2.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 107.
65 Recorrendo à definição dada por Jorge Reis Novais (in Direitos Sociais – Teoria Jurídica dos Direitos
Sociais enquanto Direitos Fundamentais, Wolters Kluwer – Coimbra Editora, 2010, pág. 255) “Os direitos
fundamentais garantem juridicamente o acesso individual a bens que, pela sua importância para a dignidade
da pessoa humana, o desenvolvimento da personalidade, a autonomia, a liberdade e o bem-estar das pessoas,
a Constituição entendeu merecedores de protecção máxima, forte e estável.”
66 Aliás, refere-se expressamente no Relatório elaborado pelo Ministério da Administração Interna, de
27/04/20, sob a epígrafe “Relatório sobre a aplicação da 2.ª declaração do estado de emergência 03 de Abril
de 2020 a 17 de Abril de 2020”, que através da criação deste regime do lay-off simplificado, se pretendeu
“preservar postos de trabalho e mitigar situação de crise empresarial.”

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← 68 Entre a Impossibilidade da Prestação e a Alteração
das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
III. Covid-19 e Alteração Superveniente das 3. Situações tipicamente previsíveis à luz da
Circunstâncias: Critérios Orientadores de Decisão legislação especial
em Situações Tipicamente Previsíveis

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Isto é, as medidas em causa têm de considerar­‑se legitimadas legalmente


como defesa constitucional do direito ao trabalho e à dignidade da pessoa
humana, valor fundamental ordenador de todo o sistema jurídico.
Em face de tudo o acima exposto, reiteramos que o aludido direito do
credor de cumprimento pontual da obrigação deve ceder perante os direitos
aqui em confronto do devedor de protecção das empresas e do emprego,
considerando cabalmente justificada o recurso a estes mecanismos e
permanecendo operante o recurso ao instituto da alteração das circunstâncias.
Ainda outra questão previsível será a de sociedades comerciais ou
empresários individuais virem pedir em Tribunal a dissolução ou modificação
de um certo contrato duradouro invocando que as consequências das medidas
aplicadas em resposta à pandemia frustraram o fim negocial ou tornaram o
cumprimento do contrato mais gravoso pelo menos para si, apurando­‑se, na
sequência de excepção suscitada pela contra­‑parte ou oficiosamente pelo
tribunal, que tal sociedade comercial ou comerciante individual, podendo tê­‑lo
feito, não recorreu às medidas excepcionais e temporários de cumprimento de
obrigações fiscais e contribuições sociais, ao regime extraordinário e transitório
de protecção dos arrendatários e/ou às medidas excepcionais de protecção
dos créditos das empresas acima elencados.
Trata­‑se, em nosso entendimento e tal como se referiu acima por referência
a outras situações, de uma questão de relevância do comportamento do lesado
pela ocorrência ou montante dos danos, nos termos consagrados no art.º 570.º
do Código Civil, norma de protecção directa do credor.
Damos aqui por reproduzidas todas as considerações feitas a tal respeito,
apenas acrescentando que a diligência exigível deve ser aqui apreciada por
recurso ao conceito civilista do bonus pater familie e, estando perante um
lesado comerciante, por referência a parâmetros especiais mais exigentes,
relacionados com o profissional que age de acordo com os seus deveres
profissionais e de forma diligente, tendo sempre em vista o interesse comercial
da actividade por si desenvolvida.
Também aqui, concluindo­‑se pela verificação de uma situação com
estes contornos, haverá que se decidir em que medida os danos concretos
verificados devem ser causalmente associados à conduta do lesado e, apenas
quanto aos demais (se existirem), deverá equacionar­‑se, ainda assim, o eventual
preenchimento dos requisitos consagrados no art.º 437.º do Código Civil.

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das Circunstâncias em Contexto da Pandemia de Covid-19
III. Covid-19 e Alteração Superveniente das 3. Situações tipicamente previsíveis à luz da
Circunstâncias: Critérios Orientadores de Decisão legislação especial
em Situações Tipicamente Previsíveis

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Estas são as reflexões que se nos afiguraram relevantes no presente


quadro social e jurídico.
Estamos, contudo, conscientes de que muitas outras situações surgirão
nos nossos Tribunais.
Nós, os aplicadores do Direito, apreendemos cedo que a realidade é
sempre bem mais rica do que as situações teoricamente previsíveis.
Pensando especialmente em todas estas situações inusitadas que venham
a surgir nos tribunais, rematamos com a transcrição de uma afirmação de
Menezes Cordeiro(67) que, a nosso ver, resume toda a filosofia do instituto da
alteração das circunstâncias, devendo estar sempre presente na mente do
aplicador do direito como um guia de decisão: “A alteração das circunstâncias
representa assim uma zona de crescimento do Direito, onde o aplicador tem
de decidir na base de modelos que comportam pontos de vista contraditórios.
No fundo, ela deriva da tensão existente entre as insuficiências do Direito e o
dever imperioso de não denegar justiça, quando ela seja pedida aos tribunais.
O âmbito da alteração das circunstâncias é estreito e vê a sua margem reduzir­
‑se, de dia para dia. Mas deve manter­‑se, até como garantia de aperfeiçoamento
do sistema.”

67 In Ob. Cit. Tratado de Direito Civil IX – Cumprimento e Não-cumprimento, Transmissão, Modificação e


Extinção, pág. 682 e 683.

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2020

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