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2ª Lição

O Direito de Acção e os seus Limites

Bibliografia principal: Almeida, Francisco Manuel Ferreira


de, Direito processual civil, vol. I, 3ª ed., Coimbra, Editora Almedina,
2019; Andrade, Manuel Domingues de, Noções elementares de processo
civil, reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 1993; Calamandrei,
Piero, Istituzioni di diritto processuale civile, 2ª ed., Cedam, Padora, 1934;
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Diritto Processuale Civile (1900-1903), vol. I; Couture, Eduardo J.,
Fundamentos del derecho procesal civil, 4ª ed., Buenos Aires, Julio Cesar
Faira Editor, 2010; Fazzalari, Elio, «La dottrina processualistica ita-
liana: dall’azione al processo (1864-1994)», in Studi in onore di Luigi
Montesano, vol. 2, Padova, Cedam, 1997, pp. 129-141; Freitas, José
Lebre de, Introdução ao processo civil, 4ª ed., Coimbra, Coimbra Edi-
tora, 2017; Guasp, Jaime/Aragoneses, Pedro, Derecho procesal civil,
t. I, 7ª ed., Navarra, Editorial Aranzadi, 2005; Luiso, Francesco P.,
Diritto processuale civile, vol. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè Editore, 2000;
Marinoni, Luiz Guilherme, Teoria geral do processo, 2ª ed., São Paulo,
Ed. Revista dos Tribunais, 2007; Mendes, João de Castro, O direito
de acção e a sua natureza jurídica, Lisboa, 1957; Mortara, Lodovico,
Manuale della procedura civile, 7ª ed., Torino, UTET, 1913; Pekelis,
Alessandro, «Azione», in Nuovo Digesto Italiano, pp. 91-108, Torino,
UTET, 1937; Pisani, Andrea Proto, Lezioni di diritto processuale civile,

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3ª ed., Napoli, Jovene Editore, 1999; Reis, José Alberto dos, Código
de Processo Civil anotado, vol. II, 3ª ed., reimpressão, Coimbra, Coim-
bra Editora, 1981; Varela, Antunes, «O direito de acção e a sua natu-
reza jurídica», in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 125º,
pp. 325 e ss.; Zanzucchi, Marco Tullio, Diritto processuale civile, vol. I
(diritto processuale generale), Milano, Giuffrè, 1936.

Sumário: 1 – Os sentidos da palavra acção. 2 – A tese clássica ou


privatística. 3 – A superação da tese clássica pela tese moderna ou
publicista. 4 – A autonomia científica do Direito Processual Civil.
5 – Características do direito de acção. 6 – O exercício do direito de
acção e o requisito (pressuposto processual) do interesse em agir.
7 – O princípio da boa fé e os limites ao exercício do direito de acção.

1. Os sentidos da palavra acção. Tradicionalmente, os litígios,


como vimos na lição anterior, ultrapassam-se através do exercício, pela
pessoa interessada, do direito de acção. Este direito exerce-se perante
os tribunais judiciais, os julgados de paz e, em situações residuais, os
tribunais arbitrais. Mas a palavra acção, no domínio do Processo Civil,
possui vários sentidos, sendo, frequentemente, como já tivemos opor-
tunidade de assinalar, empregada com o significado de processo: diz-se
que a acção chegou ao fim ou que se encontra suspensa, por exemplo
(a palavra acção equivale aqui ao processo no seu todo).
O termo acção tem também o significado de meio ou de instru-
mento processual destinado à tutela dos direitos: afirma-se, assim, que
alguém intentou, propôs ou instaurou uma acção contra certa pessoa.
Ora, é precisamente neste sentido que o legislador emprega a palavra
acção no artigo 2º, nº 2, estatuindo que a «todo o direito (...) corresponde
a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a viola-
ção dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários
para acautelar o efeito útil da acção».

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O DIREITO DE ACÇÃO E OS SEUS LIMITES

É ainda comum afirmar-se que a acção corresponde a um direito,


pois, como atrás ficou dito, o direito de acção, que encerra o poder
de agir perante os tribunais, é, no fundo, o reverso da proibição da
autodefesa. Importa averiguar que direito, afinal, é este, compreen-
der o seu papel na emancipação do Direito Processual Civil como
Disciplina jurídica. Quem exerce o direito de acção, que direito, em
rigor, exerce? Trata-se de um poder de que espécie? Que conteúdo,
afinal, contém? Durante séculos, o direito de acção foi visto como
uma mera vertente ou faceta dos direitos subjectivos materiais, mas
esta tese não é, hoje, aceitável.
Sobre o conceito de direito de acção recaiu um profundo estudo
ao longo do século XX, o que levou o célebre processualista italiano
Calamandrei a afirmar, em 1947, com culta ironia, que as teorias
sobre o direito de acção, «como as noites da lenda, são mil e uma,
e todas maravilhosas»1. Não sabemos se as páginas escritas sobre o
direito de acção ultrapassam, ou não, os imensos volumes da mais
célebre obra literária árabe. O que sabemos, isso sim, é que muito se
escreveu sobre o tema do direito de acção. A. Pekelis, antigo Pro-
fessor da Universidade de Roma, em artigo notável sobre o tema,
concluiu que, sobre o conceito de direito de acção, «existia uma
quantidade praticamente infinita de singulares teorias» 2. Parece-
-nos, no entanto, que é possível reduzir tudo o que foi dito, afastando
alguns conceitos sem sentido ou desacertados, a duas teses funda-
mentais e antagónicas: a tese clássica ou privatística e a tese moderna ou

1
 Entre nós, em 1957, Castro Mendes publicou uma obra intitulada «o
direito de acção judicial» e, mais tarde, Antunes Varela, escreveu, na Revista de
Legislação e de Jurisprudência, Ano 125º (1992-1993), pp. 325 e ss., um trabalho
extenso e profundo sobre o tema (O direito de acção e a sua natureza jurídica). Na dou-
trina estrangeira, cumpre destacar as obras de Hellwig, Anspruch und Klagrecht,
1900; Degenkolb, Der Streit und den Begriff des Klagrechts, 1905.
2
 «Azione», in Nuovo Digesto Italiano, UTET, Torino, 1937, p. 93.

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publicista, sem cairmos na minuciosa e escusada distinção entre as


várias versões das mesmas teorias.

2. A tese clássica ou privatística. À luz desta tese, defendida


fundamentalmente pela doutrina do século XIX, o direito de acção
era um poder que integrava o núcleo do direito subjectivo material ou,
se quisermos, uma das faculdades constitutivas dos direitos mate-
riais. Para se entender melhor este ponto, configuremos o direito
subjectivo como um átomo. Pois bem, no núcleo deste átomo resi-
dia, segundo a tese clássica, um importantíssimo poder, mas latente:
o direito de acção.

poder de agir
perante os tribunais

poderes de direito
material: usar, doar,
vender, etc.

Exemplo: direito de
propriedade

Esquema 1

Exemplifiquemos com o direito de propriedade, o direito real


máximo (artigo 1302º e ss. do C.C.). Para além de todos os poderes
que integram o direito de propriedade sobre certa coisa (o poder de
usar, de doar, de vender, etc.), existia, em estado de latência, escondido
ou oculto, o poder de agir perante os tribunais. A ofensa efectiva ou
a ameaça de ofensa potenciavam ou despoletavam o exercício do direito

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O DIREITO DE ACÇÃO E OS SEUS LIMITES

de acção por parte do proprietário lesado (note-se que, à luz do prin-


cípio do pedido, esse exercício seria sempre voluntário). Quer dizer,
o direito de acção era ainda o direito subjectivo material, mas na sua
vertente agressiva e dinâmica3. O poder de defender judicialmente o
direito de propriedade (artigo 1311º do C.C.) integrava, à luz desta
visão clássica, o núcleo do próprio direito substantivo.

Outro exemplo: ao titular de um direito de crédito (pecuniário)


assiste o poder de exigir extrajudicialmente do devedor o pagamento de
certa quantia, bem como lhe pertencem outros poderes (o poder de
transmitir o crédito, por exemplo: ver o artigo 577º do C.C.). Para a
tese clássica, o poder de recorrer aos tribunais, para exigir judicialmente
o pagamento, integrava o núcleo deste direito subjectivo material.
Igualmente diríamos, à luz desta teoria, que os nossos direitos
de personalidade incluem, dentro deles, o poder de reagirmos judi-
cialmente perante as ofensas que lhes sejam dirigidas. Concluindo,
durante séculos não se distinguia nitidamente o direito de acção do
direito subjectivo material, confundindo-se os dois. E esta concepção,
à primeira vista, não deixa de ser muito sedutora.
As raízes desta tese clássica encontram-se no Direito Romano,
pois, no VI d.C., o direito de acção era definido como o direito de perse-
guir em juízo aquilo que a si é devido: jus persequendi in judicio quod sibi debe-
atur (Nihil aliud est actio quam ius quod sibi debeatur iudicio persequendi)4.
Sabemos que o pretor somente concedia a actio quando entendia que
a pessoa era titular do direito. No fundo, a actio era considerada o
próprio direito.
«Na esteira do Direito Romano ‒ frisou Couture ‒, a doutrina
considerou tradicionalmente que a acção e o direito substantivo

3
 Nas palavras de Mortara, Manuale della procedura civile, vol. I, p. 14, a tese
clássica partia da ideia de que o exercício do direito de acção se fundava, de forma
indefectível, na existência de um direito e na ocorrência da respectiva violação.
4
 Justiniano, Instituta, Livro IV, Título V.

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eram a mesma coisa. Chegou a dizer-se que a acção era o direito em


movimento, o direito elevado a uma segunda potência ou o direito
armado para a guerra»5.
Um dos expoentes máximos desta tese foi Savigny. Este céle-
bre jurista berlinense definiu do seguinte modo o direito de acção
(Klagerecht): «É o direito subjectivo quando é violado.» Quer dizer, a acção
era entendida como uma fase do direito material violado, com o qual
mantinha um vínculo de dependência funcional 6.
Windscheid, igualmente sem distinguir a acção do direito sub-
jectivo material, dizia que a acção era uma «manifestação de vida
do direito subjectivo privado»7. O célebre civilista francês Demo-
lombe, pertencente à conhecida «Escola da Exegese», por sua vez,
escreveu: «A acção é o próprio direito [subjectivo material] posto em
movimento; é o direito no estado de acção, em vez de se encontrar
em repouso; no estado de guerra, em vez de se encontrar no estado
de paz»8.
O Professor Heinrich Dernburg, na sua obra Allgemeinen Lehren
und das Sachenrecht des Privatrechts Preußens und des Reichs (1894), tra-
tou, em muitas páginas, os aspectos principais do Processo Civil

 Fundamentos del derecho procesal civil, p. 51.


5

6
 Cfr. Castro Mendes, O direito de acção judicial, p. 191. Como explica L. Mari-
noni, Teoria geral do processo, p. 163, “para Savigny o direito de ação era um direito
resultante da “transformação” pela qual o direito material passaria após ter sido
lesado. Daí o motivo pelo qual propôs o conceito de “metamorfose” para ilustrar a
situação».
7
 Die actio des römischen Civilrechts, vom Standpunkte des heutigen Rechts, Düssel-
dorf, 1856.
8
 Cours de Code Napoléon, vol. IX, Paris, 1881. Ver outras frases emblemáticas em
Castro Mendes, O direito de acção judicial, p. 188. Não se pense, contudo, que, no
século XX, não existiram Autores a defender esta tese clássica. Invrea, por exem-
plo, afirmou que onde há um direito subjectivo há o direito de acção e que este,
insistia o jurista italiano, estava contido no direito subjectivo (Interesse e azione,
R.D.P.C., 1928, p. 335).

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O DIREITO DE ACÇÃO E OS SEUS LIMITES

(desde o direito de acção ao caso julgado), facto bem demonstrativo


da falta de autonomia, na época, do Processo Civil perante o Direito
Privado. E logo ao definir o conceito de direito de acção (Das Klagrecht)
explicava que este «não era independente, mas antes se encontra
ligado à violação dos direitos materiais (materiellen Rechte)», ou seja,
consistia – segundo o ensinamento de Dernburg – «num poder
(Befugniß) inerente aos direitos privados substantivos» 9.
Concluindo, durante décadas, na esteira do Direito Romano,
os juristas reduziram o universo jurídico aos denominados direitos
subjectivos materiais, vendo o direito de acção como um importante
poder que integrava esses direitos. À primeira vista, a ideia defendida
parece correcta, mas, reflectindo com mais profundidade, percebe-
mos que não corresponde à realidade. A tese clássica precisou de
muitos séculos para ser desconstruída e ultrapassada.

3. A superação da tese clássica pela tese moderna ou publicista.


A tão sedutora quanto enganadora tese clássica acabou por ruir, aos
poucos, ao longo do século XX. É sabido que a superação de uma tese
‒ no âmbito das ciências exactas ou das ciências ditas sociais ‒ ocorre
quando entra em contradição insanável com a realidade. Mas, afinal,
que razões, argumentos ou causas conduziram ao fim da visão clássica
sobre o direito de acção? Fundamentalmente, duas razões. Vejamos,
de imediato, quais.

1ª) Em primeiro lugar, a realidade demonstra, diariamente, que,


por detrás do efectivo exercício do direito de acção, pode não existir qualquer
direito subjectivo material. A possibilidade da acção sem um direito
subjectivo material na retaguarda representa um «golpe fatal» na
tese clássica. Expliquemos porquê: frequentemente, o exercício do
direito de acção não é acompanhado pela efectiva existência de um

9
 Die Allgemeinen Lehren und das Sachenrecht des Privatrechts Preußens und des Rei-
chs, 5 Auf., Halle, Verl. der Buchh. des Waisenhauses, 1894, p. 263.

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direito subjectivo material e o juiz, em consequência, acaba por julgar


a acção improcedente. Concretizando, o autor pensa que lhe assiste o
direito a uma indemnização, ou acha, erradamente, que tem o direito
de despejar o inquilino, ou imagina, mas sem pé na realidade, ser
o proprietário de certa coisa pelo facto de a ter adquirido por usu-
capião, etc. O processo pode mesmo servir de veículo para pretensões
fantasiosas, absurdas ou ridículas, isto é, sem o mínimo fundamento.
Ora, nestes casos, o tribunal acaba por concluir, com mais facili-
dade ou com menos facilidade, que ao autor não pertence qualquer
direito ou que, apesar de o ter, não se verifica qualquer ofensa ou
ameaça de ofensa digna de relevo10. Pois bem, o juiz, sempre que
isto suceda, o que deve fazer? Deve julgar a acção improcedente.
Perguntar-se-á: mas quem exerce o direito de acção desta forma,
fá-lo impunemente, ou seja, sem qualquer censura ou «castigo»?
Esse é outro problema. Como veremos mais à frente, aquele que,
com dolo ou negligência grave, exerce o direito de acção sem funda-
mento acaba por ter de pagar uma multa ao tribunal (artigo 542º),
por causa da violação da boa fé. Mas a multa não afasta o facto de
essa pessoa ter exercido o direito de acção. O que importa, por
agora, é perceber o seguinte: por detrás do direito de acção, muitís-
simas vezes, não existe qualquer direito subjectivo material e, assim
sendo, a doutrina clássica errou ao defender que o direito de acção
residia sempre no núcleo do direito subjectivo 11. Antes pelo contrá-
rio, o direito de acção transcende o direito subjectivo material, não exige,

10
 Mortara, em 1913, observou, com agudeza, o seguinte: «É necessário dizer
que a afirmação da ofensa sofrida num direito pode corresponder ou não à verdade
(...); é possível que aquele direito cuja ofensa é afirmada não exista de facto ou que
exista mas não tenha sido efectivamente violado» (Manuale della procedura civile, vol.
I, pp. 13-15).
11
 Como explica Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, vol. 1º, p.
5, «o direito de acção não é uma emanação do direito subjectivo privado nem
depende da sua existência, bastando à constituição do processo e ao consequente

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O DIREITO DE ACÇÃO E OS SEUS LIMITES

à partida, a efectiva existência deste. A doutrina foi, em síntese, acen-


tuando a seguinte ideia ao longo do século XX: existem acções que são
instauradas sem qualquer fundamento jurídico ou factual e que, portanto, não
correspondem ao exercício de qualquer direito subjectivo material, apesar de o
autor ter exercido plenamente o seu direito de acção.
Entre nós, Alberto dos Reis ensinou, com inexcedível clareza,
a diferença entre o acto de accionar e a titularidade do direito subjectivo
material, escrevendo o seguinte: «Nunca se pôs, nem poderia pôr,
como condição para o exercício do direito de acção ou de defesa
que o autor ou o réu seja realmente titular do direito substancial que
se arroga. Seria, na verdade, absurdo que se enunciasse esta regra:
só pode demandar ou defender-se em juízo quem tem razão; ou, por
outras palavras, só é lícito deduzir no tribunal pedidos ou contesta-
ções objectivamente fundados. Só na altura em que o tribunal emite
a sentença, é que vem a saber-se se a pretensão do autor é fundada,
se a defesa do réu é conforme ao direito» 12.
A acção, observou certeiramente Castro Mendes, «transcende o
direito subjectivo, pois existe e é exercida ainda quando aquele que
a usa não tem de facto o direito subjectivo»13.
«O direito de acção ‒ escreveu, por sua vez, Zanzucchi ‒ não
pressupõe a existência de qualquer direito subjectivo substancial;
tanto assim é, que podem ser intentadas acções infundadas». 14

2ª) Em segundo lugar, o argumento fundado nas acções de simples


apreciação foi esgrimido, desde o início do século XX, com o intuito
de demonstrar que ao direito de acção nem sempre corresponde
um típico direito subjectivo material (o direito de exigir ou pretender de

direito à emanação da sentença a afirmação pelo autor, ao deduzir a pretensão, de


que tem um direito ou interesse legítimo.»
12
 Código de Processo Civil anotado, vol. II, pp. 258 e s.
13
 O direito de acção judicial, p. 182.
14
 Diritto processuale, vol. I, pp. 52 e ss.

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outrem um comportamento positivo ou negativo ou o poder de obter um efeito


material que se impõe de forma inelutável a outra pessoa). Chiovenda, em
célebre palestra que fez na Universidade de Bolonha, em Fevereiro
de 1903, argumentou do seguinte modo: «Quando alguém pede que
se declare a existência de uma relação jurídica, sem aspirar a outros
efeitos jurídicos, para além daqueles que imediatamente derivam da
apreciação, não faz valer qualquer direito subjectivo perante o adver-
sário, a não ser o próprio direito de acção, ligado a um interesse na
apreciação»15. Será este argumento válido para explicar a autonomia
do direito de acção em face dos direitos subjectivos materiais? Veja-
mos. Na realidade, o nosso Código de Processo Civil autoriza (artigo
10º, nº 3, al. a)) os pedidos de mera apreciação (positiva ou negativa). Por
exemplo, pede-se ao tribunal que se limite a declarar a existência do
direito de propriedade sobre certo terreno, sem se exigir do réu qualquer
comportamento positivo ou negativo.
É, pois, verdade que numa acção de mera apreciação, como expli-
caremos na próxima lição, o autor não exige qualquer efeito (constitu-
tivo ou condenatório), mas apenas a declaração da existência de um direito
próprio ou, até, da inexistência de um direito alheio. Neste sentido, temos
de admitir que não são directamente suportadas por um direito subjectivo
no seu sentido clássico, pois o direito subjectivo é o poder de exigir de
outrem um comportamento (positivo ou negativo) (direito subjectivo
de crédito) ou o poder de produzir um efeito material que se imporá,
de forma inelutável, ao adversário (direito subjectivo potestativo).
Por isso, Zanzucchi, na esteira de Chiovenda, afirmou ter sido
«essencialmente com base nas acções de simples apreciação que a dou-
trina moderna conseguiu demonstrar a autonomia do direito de acção

 «L’azione nel sistema dei diritti», in Saggi di Diritto Processuale Civile


15

(1900-1903), vol. I, p. 16. Note-se que Chiovenda, em 1901 («Azione», in Diz. dir.
priv.) ainda defendia que a acção era o «diritto stesso fatto valere».

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O DIREITO DE ACÇÃO E OS SEUS LIMITES

relativamente ao direito substancial»16. No fundo, à luz deste segundo


argumento, a pretensão exercida nas acções de mera apreciação reveste uma
natureza estritamente processual, como se não houvesse, na retaguarda,
qualquer posição substantiva exercida perante a Justiça.

Contra esta visão puramente processual, dir-se-á que, no fundo, o


autor de uma acção de mera apreciação visa ainda tutelar um interesse
material: o interesse material à certeza jurídica. Quer dizer, os partidários
da tese clássica, poderiam continuar a defender que o direito de acção
está contido no núcleo desse interesse material à certeza jurídica. Este
interesse, naturalmente, não se confunde com os direitos subjectivos
propriamente ditos, mas trata-se de um interesse que se situa num
plano material e não puramente processual. De qualquer modo, tal-
vez se possa afirmar que, no âmbito de uma acção de simples apreciação
negativa, o autor, no fundo, pode pretender a tutela de um direito
de personalidade, como o direito à honra. Exemplo: certo indivíduo
intenta contra outrem uma acção, pedindo a declaração judicial de
que, ao contrário daquilo que é dito pelo réu, nenhuma quantia lhe
deve. Neste singelo exemplo, parece-nos errado afirmar que o autor
somente exerce ou faz valer um direito estritamente processual.
É certo que, nas acções de simples apreciação, previstas no artigo
10º, nº 3, al. a), pode existir uma acção sem o exercício simultâneo
de um direito subjectivo material. Pensemos no autor que apenas
pede a declaração ou a constatação judicial de um facto juridicamente rele-
vante (por exemplo, a declaração da nulidade de certo negócio ou a
declaração da inexistência de um direito alheio ou de um facto).
Mas mesmo nestas situações pode ver-se um interesse material por
detrás ou, até, direitos subjectivos propriamente ditos, pelo que as
acções de simples apreciação não servem para justificar a autono-
mia do direito de acção perante os direitos subjectivos materiais.

16
 Diritto processuale, vol. I, p. 231.

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Concluindo, para justificar tal autonomia é suficiente o 1º argu-


mento atrás explicado: a possibilidade do exercício do direito de
acção sem a existência de um efectivo direito subjectivo.

4. A autonomia científica do Direito Processual Civil. A cisão


ocorrida entre o direito de acção e o direito subjectivo material
conduziu à autonomia científica da nossa Disciplina. Com efeito,
o Direito Processual Civil, até aos primórdios do século XX, não pas-
sava de uma parte subalterna ou de um apêndice do Direito Privado
ou ainda, se quisermos, de um conjunto de normas direccionadas
para os práticos do foro17. O Direito Processual «era a simples forma
de actuar o Direito Privado perante os tribunais» 18.
Carnelutti acentuou, com brilhantismo, o «passo de gigante»
que representou, para a ciência jurídica, a autonomia do direito de acção:
«Foi necessário o decurso de dezenas de séculos até que se fizesse a
distinção entre a actio e o ius. A dificuldade ‒ acrescentou o ilustre
processualista italiano ‒ estava em distinguir o direito que se faz valer
em juízo (direito subjectivo material) do direito através do qual aquele
se faz valer (direito subjectivo processual). Um dos capítulos mais inte-
ressantes da história da ciência do Direito diz respeito ao desenvolvi-
mento do conceito autónomo de acção. Hoje, este desenvolvimento
encontra-se concluído. O direito subjectivo processual pode existir
sem que exista o direito subjectivo material» 19.
Outro não menos conceituado processualista, Couture, chamou,
também, e de forma muito elucidativa, a nossa atenção para este
passo da ciência jurídica: «Na ciência do processo, a separação do
direito e da acção constitui um fenómeno análogo ao que represen-
tou para a física a divisão do átomo.» E conclui: «Foi a partir desse

17
 Cfr. Antunes Varela, Manual de processo civil, pp. 14 e ss.
18
 Castro Mendes, O direito de acção judicial, p. 160.
19
 Istituzioni del processo civile italiano (1956), vol. I, p. 193.

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O DIREITO DE ACÇÃO E OS SEUS LIMITES

momento que o direito processual adquiriu personalidade e se des-


prendeu do velho tronco do direito civil»20. Estas ideias são correc-
tíssimas e constituem um alicerce da nossa Disciplina.

direitos direito de
subjectivos acção
materiais

interesses
legalmente
protegidos

Esquema 2

5. Características do direito de acção. Uma das regras em que


assenta o processo civil é o princípio do pedido, consagrado no artigo
3º, nº 1, 1ª parte: ninguém é juiz sem um autor (nemo iudex sine actore).
Deste princípio resulta, portanto, que o direito de acção, a «chave»
da engrenagem processual, não é de exercício oficioso, no sentido de ser
o juiz a exercê-lo. O juiz, na realidade, aguarda que lhe «batam à
porta» do tribunal, pois, para além de assim salvaguardar a sua impar-
cialidade, tem de respeitar o lastro da autonomia da vontade em que
assenta o conjunto dos direitos regulado pelo Direito Privado.
O direito de acção está intimamente associado, sem dúvida, ao exer-
cício dos direitos subjectivos materiais, mas não se confunde com estes.
Se, como se concluiu, o direito de acção não é um elemento do direito
subjectivo material, o que é, afinal? Que natureza tem o direito de acção?

20
 Fundamentos del derecho procesal civil, p. 52.

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Eis, de forma sintética e ordenada, as notas definidoras do direito


de acção:

1ª) Primeiramente, configura-se como um direito fundamental, uma


garantia constitucional universal, permanente e, acrescente-se, irrenunciá-
vel (artigo 20º da CRP). Universal, uma vez que as pessoas (singulares
ou colectivas) de menores rendimentos, que pretendam exercer o
direito de acção, podem recorrer ao apoio judiciário (artigo 16º da Lei
nº 34/2004, de 29 de Julho) com o objectivo de ficarem dispensadas do
pagamento das custas e dos honorários do advogado. Este apoio é concedido
pelos serviços da Segurança Social, ou seja, pelo Estado (artigo 20º,
nº 1, da citada lei).
O direito de acção é também permanente, isto porque o Estado não
pode afastá-lo, mesmo que temporariamente. Como é sabido, apesar
das fortes restrições decretadas durante a pandemia que afectou o
nosso país ao longo de 2020 e de 2021, os tribunais não encerraram
as portas ou abstiveram-se de receber os mais variados processos.
É verdade que, quer o estado de sítio, quer o estado de emergência,
conduzem, à luz da Constituição, a uma suspensão do exercício dos
nossos direitos (cfr. art. 19º da CRP). Mas tais restrições «devem
respeitar o princípio da proporcionalidade», limitando-se ao estrita-
mente necessário para o restabelecimento da normalidade (ver nº4
da atrás mencionada norma).
Admitimos, assim, que certos processos (não urgentes) possam
ser suspensos, em especial aqueles em que os actos presenciais (por
exemplo, com a audição de um número elevado de testemunhas)
comportem um risco muito acentuado ou óbvio. Não podemos é
aceitar, mesmo no decurso de um apertado estado de emergência,
a proibição de novas acções, até porque, na esmagadora maioria dos
casos, estas são propostas e tratadas digitalmente e à distância.
Resta acrescentar que o direito de acção se deve qualificar como
um direito irrenunciável. Assim, a cláusula que, inserida num contrato,

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O DIREITO DE ACÇÃO E OS SEUS LIMITES

consagra tal renúncia (por parte de um dos contraentes ou de ambos


os contraentes) será inválida, pois viola, para além do artigo 20º da
Lei Fundamental, os artigos 2º do CPC e 809º do CC.
O que acabámos de afirmar não afasta, naturalmente, a liberdade
que temos de exercer, ou não, o direito de accionar.

2ª) Em segundo lugar, trata-se de um direito subjectivo processual,


na medida em que encerra o poder de exigir uma decisão do tribunal
(melhor, do Estado, representado por juízes e funcionários), recaindo
portanto sobre este o dever de decidir (artigo 152º, nº 1). O direito de
acção é, portanto, apenas um direito processual.
O artigo 3º, nº 2, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, com teor
idêntico ao artigo 8º, nº 1, do C.C., estatui o seguinte: «os magistra-
dos judiciais não podem abster-se de julgar com fundamento na falta,
obscuridade ou ambiguidade da lei, ou em dúvida insanável sobre o
caso em litígio, desde que este deva ser juridicamente regulado»21.
O Estado, portanto, deve a jurisdição na medida em que proíbe a
justiça privada (a jurisdição é um dever do Estado)22. Trata-se de um
direito que se exerce perante um órgão dotado de jus imperii (poder
de soberania) e, neste sentido, tem por objecto uma prestação de
direito público à actividade jurisdicional do Estado 23. Castro Men-
des explica, do seguinte modo, este ponto: «O direito à intervenção
do Estado para justa composição dum certo litígio é o direito de
acção. Ele apresenta-se como um direito relativo, um crédito público
se assim nos podemos exprimir, ocupando o lado passivo o Estado,

21
 O desrespeito por este dever pode originar o crime de denegação de justiça
(artigo 369º do Código Penal).
22
 Castro Mendes, p. 78. Vide também A. Pekelis, «Azione», in Nuovo Digesto
Italiano, UTET, Torino, 1937, p. 94: «A acção, no seu sentido técnico, surge por causa
da proibição da acção no seu sentido comum, ou seja, no sentido de acção física».
23
 Cfr. Castro Mendes, O direito de acção judicial, p. 86, e Lebre de Freitas,
Introdução ao processo civil, p. 79.

53
M IGU EL M ESQU I TA

que se faz representar nas prestações a que fica adstrito, por uma
classe especial de representantes orgânicos, os magistrados e funcio-
nários judiciais»24.
No início do século XX, Chiovenda defendeu que o juiz, em
rigor, não estava obrigado perante as partes, mas perante o Estado
que representa. Logo, segundo o seu entendimento, o direito de
acção não era o direito a uma prestação estadual, mas antes um
direito perante o adversário. Em rigor, um direito potestativo, na
medida em que por via do seu exercício se alcançava uma modifica-
ção jurídica. Dizer-se que consiste num direito contra o Estado não
passa ‒ no pensamento do célebre processualista ‒ de uma cons-
trução sem importância25. Esta visão das coisas, porém, não se nos
afigura correcta, na medida em que omite o pólo perante o qual se
exerce, directamente, o direito de acção, que é o tribunal (Estado).
Em caso de incumprimento da prestação, a responsabilidade recai,
aliás, sobre o Estado.

3ª) Em terceiro lugar, o direito de acção é autónomo relativamente


aos direitos subjectivos materiais. Isto significa, como vimos, que o
direito de acção (rectius, a sua existência e o corresponde exercício)
não pressupõe a efectiva titularidade do direito subjectivo material, assen-
tando na mera alegação do direito subjectivo, mas não na efectiva
existência deste26. Como observou Couture, «a acção existe sempre:

24
 O direito de acção judicial, p. 82.
 Cfr. Saggi di diritto processuale, vol. I, p. 265.
25

26
 Castro Mendes, O direito de acção judicial, p. 111. A ideia de que a acção (azione
cognitiva) prescinde da efectiva existência e titularidade do direito norteou, pode
dizer-se, a doutrina italiana ao longo do séc. XX (assim, Carpi, Mandrioli, Proto
Pisani, Verde, Andrioli, Grasso, Denti, Tommaseo, La China, Montesano).
Cfr. o Estudo exaustivo de E. Fazzalari, «La dottrina processualistica italiana:
dall’azione al processo (1864-1994)», in Studi in onore di Luigi Montesano, vol. 2,
pp. 136 e s.

54
O DIREITO DE ACÇÃO E OS SEUS LIMITES

com direito material ou sem ele»27. O direito de acção traduz-se num


poder instrumental: como afirma a doutrina italiana, é um direito-
-meio (diritto-mezzo).
Se fossemos defensores da tese clássica, diríamos que apenas exis-
tiam acções procedentes e que quem exercesse o direito de acção
tinha consigo o direito subjectivo material, o que não é verdade.

4ª) Em quarto lugar, é um direito de conteúdo abstracto. Esta nota


distintiva é uma consequência lógica da característica anterior. O direito
de acção, uma vez que não exige a titularidade do direito subjectivo
que se alega em juízo (este direito, na verdade, é sempre suposto ou
hipotético), atribui ao autor apenas o poder de obter uma decisão judicial
(de forma ou de mérito), mas jamais o poder de alcançar uma sentença
concretamente favorável28. O que existirá, isso sim, por parte de quem
exerce o direito de acção, é a expectativa ou a aspiração, mais fundada
ou menos fundada, da obtenção de uma sentença favorável. Mas a
esperança na vitória não pode confundir-se com a certeza na vitória29.
Nem todo o processo está fadado ao êxito, naturalmente.
Como bem explicou Emilio Betti, «a lei processual concede o
meio, mas não assegura o fim: concede apenas o poder de exigir a

27
 Fundamentos del derecho procesal civil, p. 56.
28
 Cappelletti, L’eccezione come controdiritto del convenuto, R.D.P., 1961, p. 274,
entende que, num primeiro momento, o direito de acção tem o conteúdo mais abs-
tracto possível: é o direito a uma qualquer decisão, mesmo se exclusivamente pro-
cessual; depois, num segundo momento, encontrando-se preenchidos os requisitos
de ordem processual, o direito de acção transforma-se no direito a uma decisão
sobre o mérito. O direito de acção teria ainda um terceiro momento: estando a pre-
tensão juridicamente fundada, o juiz tem o dever de a julgar favoravelmente.
29
 Chiovenda, Instituciones, vol. I, p. 58, recorre ao termo «expectativa», a pro-
pósito do direito de acção. E o mesmo faz Zanzucchi, Diritto processuale, vol. I,
p. 56, insistindo que não há mais do que uma legítima expectativa à sentença justa.

55
M IGU EL M ESQU I TA

decisão, mas não garante o seu conteúdo como favorável (come favo-
revole) ou o resultado como frutuoso (come fruttuoso)»30.
O que pode hoje dizer-se, isso sim, quanto ao conteúdo do direito
de acção, é que este comporta o direito a uma decisão justa (o direito
à justa composição do litígio) e em prazo razoável31-32. Mas que quer
isto verdadeiramente significar? Vejamos.
Objecto da acção, nas palavras de Castro Mendes, «é uma
sentença justa, devendo abstrair-se do seu conteúdo concreto» 33.
Este ponto é extremamente importante e fundamenta-se na Lei nº
67/2007, de 31 de Dezembro, um diploma que consagra o «Regime
da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Enti-
dades Públicas». Com efeito, dos artigos 12º e 13º deste diploma,
inseridos num capítulo dedicado à responsabilidade civil por danos
decorrentes do exercício da função jurisdicional, resulta que a pessoa que
exerce o direito de acção tem direito não só a uma decisão em prazo
razoável, mas também a uma decisão respeitadora da Lei (Fundamental
e ordinária) e que não assente num erro grosseiro na apreciação dos factos
(erro judiciário).
O artigo 13º, nº 1, diz-nos que «o Estado é civilmente responsável
pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente
inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na
apreciação dos respectivos pressupostos de facto.»
Se os juízes cometerem estas espécies de falhas, a parte ofendida
poderá, perante um tribunal administrativo, de acordo com o disposto

 Diritto processuale civile italiano, 11ª ed., Roma, Foro Italiano, 1936, pp. 81 e ss.
30

 Note-se que, à partida, nem sequer existe o direito a uma decisão de fundo
31

sobre a pretensão, pois este direito somente nasce, já na pendência do processo, no


momento em que se encontrarem preenchidos os pressupostos processuais.
32
 Segundo Castro Mendes, O direito de acção judicial, p. 134, o «direito de acção
judicial (...) é simplesmente o direito de exigir do Estado a prestação duma activi-
dade justa e tão relevante quanto possível, no sentido da composição do litígio.»
33
 O direito de acção judicial, p. 128.

56
O DIREITO DE ACÇÃO E OS SEUS LIMITES

no artigo 4º, nº 1, al. g), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e


Fiscais, pedir uma indemnização ao Estado, assistindo a este um direito
de regresso contra o juiz que cometeu a falha (artigo 14º, nº 1, da Lei
nº 67/2007, de 31 de Dezembro).
A violação do direito de obter a decisão num «prazo razoável»
levanta problemas difíceis. A Convenção Europeia dos Direitos do
Homem consagrou, há muito, no seu artigo 6º, nº 1, o direito à obten-
ção da decisão «num prazo razoável» (ver também o artigo 2º, nº 1,
do Código de Processo Civil). De acordo com a nossa jurisprudência,
esta violação terá de ser avaliada caso a caso, com fundamento em
diversos factores, nomeadamente a complexidade do processo e o com-
portamento das partes34.
Para além disso, a violação do prazo razoável somente dará origem
a uma indemnização se a parte, por causa dessa violação, sofreu danos
(patrimoniais ou morais). Isto significa que, sem a prova desses danos,
não haverá lugar a qualquer indemnização.

5ª) Em quinto lugar, o direito de acção pode ser caracterizado


como um direito complexo que não se esgota, em rigor, no estrito poder
de exigir uma decisão, mas antes se desdobra num amplo feixe de
poderes que vão sendo exercidos, pelo autor, ao longo do processo:
o direito à prova ou o direito de recurso emanam, afinal de contas, do
direito de acção35. O direito de acção traduz-se, segundo a melhor
doutrina italiana, numa «sequenza delle posizioni soggetive spettanti
alla parte» ou num «schema riassuntivo di situazioni soggettive.»

34
 Cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 19/12/2007 (Pinto de Almeida), C.J.
2007, t. V, pp. 196 e ss.
35
 Cfr. Proto Pisani, Lezioni, p. 214. Entre nós, ver Paula Costa e Silva, Acto e
processo, p. 150. Para E. Fazzalari, «La dottrina processualistica italiana: dall’azione
al processo (1864-1994)», in Studi in onore di Luigi Montesano, vol. 2, p. 138, o
direito de acção integra uma série de faculdades, poderes e deveres, precisamente
aqueles que são assegurados ao autor ao longo do processo até à decisão de mérito.

57
M IGU EL M ESQU I TA

Em síntese conclusiva, diremos que o direito de acção é o poder consti-


tucionalmente consagrado de exigir do tribunal, dentro de prazo razoável, uma
decisão justa. Através do exercício do direito de acção, o autor «ataca»
o réu, não directamente, mas através do tribunal. Advertimos que
as notas acabadas de enumerar caracterizam o direito de acção no
domínio do processo declarativo, mas não servem, na sua globalidade,
para definir o direito de acção no âmbito do processo executivo. Com
efeito, este não visa alcançar uma sentença ou uma decisão, mas antes
uma operação material que consiste, normalmente, na apreensão de
bens do executado. O direito de execução (ou à execução) continua a
ter por objecto uma prestação do Estado (hoje, não exclusivamente,
uma vez que os agentes de execução assumem um papel relevante
nos processos executivos), mas que se traduz numa operação e não
numa proclamação destinada a resolver uma questão de facto e uma
questão de direito.

6. O exercício do direito de acção e o requisito (pressuposto


processual) do interesse em agir. Apesar das dúvidas que envolvem
esta matéria, tem-se entendido que o exercício do direito de acção
exige, não a existência do direito subjectivo material, mas, antes,
a existência, na esfera do autor, de um interesse processual (ou interesse
em agir). Sendo manifesta a falta deste requisito, o juiz deve abster-se
de julgar o pedido deduzido na acção, quer indeferindo liminarmente
a petição inicial (art. 590º, nº 1), quer, não havendo lugar ao despa-
cho liminar, absolvendo o réu da instância (ou seja, uma decisão de
pura e simples extinção do processo baseada nos arts. 278º e 577º).
Note-se que, ao contrário do que ocorre no Código de Processo
Civil italiano36, o nosso Código não consagra expressamente o requi-

 Artigo 100: «Per proporre una domanda o per contraddire alla stessa è necessario
36

avervi interesse.»

58
O DIREITO DE ACÇÃO E OS SEUS LIMITES

sito do interesse processual37. É certo que uma norma geral, relativa


aos actos processuais ‒ o artigo 130º ‒ dispõe que «não é lícito rea-
lizar no processo actos inúteis», mas trata-se de um princípio e não
da consagração do concreto pressuposto do interesse processual.
Este silêncio da lei explica-se pelo facto de faltar um consenso geral
quanto ao sentido e aos limites do pressuposto em causa. Sempre
existiu um sector minoritário da doutrina, especialmente no estran-
geiro, a negar a existência do interesse processual, argumentando que
o problema de saber se o autor actua provido ou desprovido de inte-
resse se relaciona, afinal de contas, com o mérito ou o fundo da acção:
ter interesse é ter o direito; não ter interesse é não ter o direito 38. E,
mesmo entre os defensores do pressuposto, sempre houve quem o
desvalorizasse, afirmando, no fundo, que o «interesse processual»
pouca relevância tem na prática39.
O silêncio do nosso legislador reflecte as suas perplexidades relati-
vas ao requisito do interesse processual. Mas, em todo o caso, o facto
de não se encontrar expressamente consagrado na lei não representa
um grande problema, pois, no domínio dos pressupostos processuais, não
vale o princípio da taxatividade. Com efeito, não sendo taxativa a lista

37
 Diferentemente, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos prevê,
no artigo 39º, o «interesse processual no domínio das acções de simples aprecia-
ção»: «Os pedidos de simples apreciação podem ser deduzidos por quem invoque
utilidade ou vantagem imediata, para si, na declaração judicial pretendida, desig-
nadamente por existir uma situação de incerteza, de ilegítima afirmação por parte
da Administração, da existência de determinada situação jurídica, ou o fundado
receio de que a Administração possa vir a adoptar uma conduta lesiva, fundada
numa avaliação incorrecta da situação jurídica existente.»
38
 Satta defendeu a impossibilidade de conceber um interesse processual dis-
tinto do interesse material ou substancial. Cfr. Commentario al Codice di Procedura Civile,
I, p. 339 e ss.
39
 É o caso de Redenti, que via o interesse processual como a «quinta roda do
carro» («quinta ruota del carro»).

59
M IGU EL M ESQU I TA

das excepções dilatórias (artigos 278º e 577º), é perfeitamente possível


aceitar pressupostos processuais fora do «catálogo».
Advertimos que o interesse processual não deve confundir-se com
os interesses de natureza material que constituem o substrato dos direitos
subjectivos (v.g., o interesse relativo à constituição de uma servidão).
O interesse processual, enquanto pressuposto, não pode situar-se no
plano do mérito ou do fundo da acção ou, como já se afirmou, «não
pode ser confundido com o direito ou com o conteúdo do direito
substantivo que se faz valer em juízo»40. Como há muito acentuou
Emilio Betti, o interesse em agir «não é certamente o interesse
que constitui o conteúdo do direito deduzido em juízo ou, em geral,
o interesse protegido pela norma substantiva» 41.
Como se afere, então, a existência do interesse processual? A ave-
riguação deste requisito implica, de acordo com a melhor doutrina,
a formulação de duas questões relacionadas com dois requisitos
cumulativos:

1ª) Independentemente da existência, na retaguarda, do direito


subjectivo material, o exercício do direito de acção, para o autor, e em face
daquilo que este relata ao tribunal, é processualmente útil ou proveitoso? Não
existe interesse processual quando o efeito que o autor pretende
alcançar é objectivamente, ou seja, aos olhos do tribunal, inútil ou des-
necessário. Consequentemente, para haver interesse processual tem

 Cfr. Calamandrei, Istituzioni di diritto processuale civile, 1934, p. 125; Proto


40

Pisani, Lezioni di diritto processuale civile, p. 333; E. Grasso, «Note per un rinnovato
discorso sull’interesse ad agire», in JUS (Rivista di Scienze Giuridiche), Gennaio-
-Giugno 1968, fasc. I-II, p. 368.
41
 Diritto processuale civile italiano, 11ª ed., Roma, Foro italiano, 1936, p. 79.

60
O DIREITO DE ACÇÃO E OS SEUS LIMITES

de existir interesse no resultado ou no efeito, devendo este aferir-se na


fase inicial do processo, logo em função da pretensão deduzida 42-43.
Com acerto explica Serge Guinchard que «não existe interesse
quando a providência requerida é insusceptível de conceder ao autor
a vantagem que ele procura»44.
A doutrina recorre neste ponto, usualmente, ao seguinte exem-
plo: A intenta contra B uma acção de simples ou mera apreciação positiva,
pedindo a declaração judicial do direito de propriedade sobre um
terreno alegadamente comprado ao réu, mas sem que o autor alegue
uma situação de incerteza objectiva e grave que afecte o seu direito45.
O problema pode ser resolvido com base no pressuposto do inte-
resse processual: em face da história contada ao tribunal, o pedido
não reveste utilidade para o autor, uma vez que não assenta numa
situação de incerteza. O autor tem legitimidade, mas carece de interesse
em accionar, pois, objectivamente, o resultado que pretende alcançar
é inútil ou não lhe serve para nada.
E não nos esqueçamos de algo essencial: por detrás da situação
de incerteza objectiva e grave tem de estar sempre um litígio entre
o autor e o réu, pois a função dos juízes é dirigida à resolução de
conflitos de interesses. Assim, por exemplo, a pessoa que se tornou
proprietária por usucapião não tem interesse processual em intentar

42
 Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 10/9/13 (Jorge Arcanjo).
43
 Ricci, «Sull’accertamento della nullità e della simulazione dei contratti
come situazioni preliminari», in Studi in onore di Luigi Montesano, vol. 2º, p. 614,
entende que o interesse mencionado no artigo 100 do Código de Processo Civil
italiano implica a análise da relação de utilidade entre a providência requerida e a
situação apresentada e não se confunde com a legitimidade.
44
 Droit processuel, 1re ed., Paris, Dalloz, 2001, p. 814.
45
 Cfr. Luiso, Diritto processuale civile, I, p. 208.

61
M IGU EL M ESQU I TA

uma acção de simples apreciação se ninguém se opôs ou se opõe à


sua posse46.
É claro que o problema da falta de interesse em agir pode ser
visto de outro prisma. No fundo, faltaria ao autor o interesse mate-
rial ou substantivo à certeza jurídica e, por causa disto, a acção teria
de improceder. Ou ainda poderia dizer-se que a acção se apresenta
deficiente ao nível da causa de pedir.
O interesse processual pode também ter relevância nas acções de
condenação, especialmente nas acções inibitórias de prestação negativa ou
de condenação à não adopção de certa conduta futura47. Como se disse na
1ª lição, o litígio assenta, por vezes, numa ofensa ou agressão que
ainda não se concretizou, ou seja, numa ofensa potencial (o processo
visa, nestes casos, impedir a ocorrência de uma futura violação
do direito: trata-se da denominada tutela inibitória ou preventiva).
O autor tem de alegar circunstâncias reveladoras de que o dano,
com alta probabilidade, virá a ocorrer, ou seja, de que tem interesse
processual numa sentença que vise travar uma futura violação do
direito.
Exemplo: A quer proibir judicialmente B, seu vizinho, de fazer, no
futuro, uma festa ruidosa. O autor tem de convencer o tribunal de
que a acção é útil e, logo, que tem interesse processual no exercício
da acção. Como? Demonstrando que a realização da festa é altamente
provável e que esta, pela sua dimensão, vai lesar os seus direitos de
personalidade.
Um caso que, em princípio, se traduziria numa falta de utilidade
do pedido seria aquele em que é intentada uma acção declarativa

 Vide o Acórdão da Relação de Coimbra, de 30/6/2009 (Hélder Almeida), C.J.


46

2009, t. III, pp. 30-32.


47
 Cfr., em iguais termos, no domínio do processo administrativo, Pedro Gon-
çalves, «A acção administrativa comum», in A Reforma da Justiça Administrativa,
Coimbra, Coimbra Editora (Studia Iuridica), 2005, pp. 165 e s.

62
O DIREITO DE ACÇÃO E OS SEUS LIMITES

condenatória pelo possuidor de um título executivo. No entanto,


o exemplo esbarra com o disposto no artigo 535º, nº 2, al. c), pois
aqui se determina que o autor paga as custas quando, «munido de
um título com manifesta força executiva, recorra ao processo de
declaração.» O juiz não pode, portanto, absolver o réu da instân-
cia com fundamento na falta de interesse processual. O legislador
parte do princípio de que o autor retira utilidade da sentença con-
denatória. Por um lado, esta acaba por ser um título executivo mais
seguro; por outro lado, a sentença permite, nos termos do artigo
710º do C.C., a constituição de hipoteca judicial sobre os bens do
devedor48.

A aferição do interesse processual implica ainda a resposta a uma


segunda e diferente pergunta que enunciamos de seguida:

2ª) O exercício do direito de acção é, no caso concreto, apropriado ou ade-


quado? A via judicial é o caminho certo? Agora, já não está em causa a
utilidade do pedido, mas antes o facto de a via judicial ser apropriada ou
adequada à tutela do concreto direito (ideia de adequação do meio). Ora,
o interesse no meio ou na via judicial falta sempre que a acção não seja
legalmente adequada para o exercício do direito, sempre que o legis-
lador imponha a via extrajudicial.
Por outras palavras, e reproduzindo Calamandrei, «o interesse
processual existe nos casos em que o bem só pode ser obtido através
da via judiciária»49.
Eis um singelo exemplo: A, empregador, invocando certo com-
portamento culposo de um trabalhador (prática de furtos no local
de trabalho), intenta contra este uma acção, pedindo que o tribunal
decrete o despedimento do réu. O autor tem legitimidade e o direito

48
 Cfr. Proto Pisani, Lezioni di diritto processuale civile, p. 334.
49
 Istituzioni di diritto processuale civile, p. 127.

63
M IGU EL M ESQU I TA

de despedir o trabalhador, mas falta-lhe, objectivamente, interesse


processual na acção, pois esta é, no caso, inapropriada ou imprópria.
Na realidade, o Código do Trabalho prevê, com carácter obrigatório,
o recurso a um procedimento extrajudicial para se obter o despedimento
de um trabalhador (artigo 351º e 353º, nº 1, do Código do Trabalho:
segundo esta última norma, «no caso em que se verifique algum compor-
tamento susceptível de constituir justa causa de despedimento, o empregador
comunica, por escrito, ao trabalhador que o tenha praticado a intenção de
proceder ao seu despedimento, juntando nota de culpa com a descrição circuns-
tanciada dos factos que lhe são imputados»). Estamos, concluindo, perante
um direito potestativo de exercício extrajudicial.

7. O princípio da boa fé e os limites ao exercício do direito de


acção. Quem exerce o direito de acção (defesa) poderá, de algum
modo, ser sancionado? Já se defendeu, no passado, que o processo
era um campo amoral e que os comportamentos processuais das par-
tes não estavam sujeitos a juízos de ilicitude. Nos nossos dias, esta
ideia é insustentável.
No processo, a vitória não pode ser alcançada a qualquer preço,
ou seja, ultrapassando certos limites. A parte que, sem olhar a meios,
tudo faz para alcançar os fins acaba por ofender o princípio da boa fé
processual: a lei rejeita tais comportamentos desonestos.
O processo é perpassado pela ideia de liberdade, mas esta não é
absoluta. A engrenagem processual tem de ser, o mais possível, ilu-
minada pelo dever do comportamento probo. Precisamente por isso,
o artigo 8º faz recair sobre as partes o dever de boa fé processual.
Não se trata de um simples mandamento moral, mas de um autêntico
dever jurídico.
Agir de boa fé é actuar de forma «honesta, correcta e leal»50.

 Servimo-nos da formulação que, no domínio do Direito Civil, é apresentada


50

por Rui de Alarcão, Direito das obrigações, p. 110.

64
O DIREITO DE ACÇÃO E OS SEUS LIMITES

A parte que violar o princípio da boa fé torna-se litigante de má


fé e sofrerá sanções previstas no Código de Processo Civil. Antes,
contudo, de explicitar estas sanções, temos de enunciar os compor-
tamentos que traduzem essa espécie de litigância.
O Código de Processo Civil exige que as partes não se comportem
de certo modo, concretamente que não adoptem as condutas expli-
citadas nas alíneas a), b) e d) do artigo 542º, nº 2.

1º) Em primeiro lugar, é proibida a dedução de pedidos ou de defesas


cuja falta de fundamento a parte não devia ignorar. Exemplo: o senhorio
pede o despejo do seu inquilino, alegando, como se fosse uma causa
«válida» para esse fim, que este não tem residência permanente, no
local arrendado, há dois meses (ver artigo 1083º, nº 2, al. d), do C.C.).

2º) Em segundo lugar, é proibido mentir ou ocultar factos essenciais.


Existe, portanto, o dever de verdade e a parte torna-se litigante de má
fé quando afirma, nega ou omite factos «contra o seu melhor saber
ou contra a sua própria convicção» 51. Exemplo: vítima de um aci-
dente de trabalho numa máquina de uma serração, A processou o
empregador e a respectiva seguradora. O empregador defendeu-se,
alegando que «nem por um momento só que fosse o autor trabalhou
com a máquina durante o período em que esteve ao serviço do réu.»
Ora, vem a provar-se que o autor trabalhava com a máquina havia já
quinze dias quando ocorreu o acidente e que o facto era do conhe-
cimento da entidade empregadora. O réu negou factos de que tinha
perfeito conhecimento, deduzindo oposição cuja falta de fundamento
não ignorava52.

51
 W. Zeiss/K. Schreiber, Zivilprozessrecht, p. 81.
52
 Caso relatado no Acórdão do S.T.J. de 10/4/1984 (Melo Franco), B.M.J.
nº 336, pp. 372-377.

65
M IGU EL M ESQU I TA

Não se pense, porém, que a falta de prova dos factos alegados gera,
de forma automática, a violação da boa fé processual. As coisas não
podem passar-se deste modo, pois nem sempre é fácil demonstrar a
veracidade dos factos alegados e qualquer juiz sabe que, na esmaga-
dora maioria dos litígios, não é possível alcançar a verdade absoluta.
Somente é considerada litigante de má fé a parte que alega factos com
a plena consciência de estar a mentir ou procede a essa alegação de
forma descuidada, sem se preocupar minimamente com a eventual
falta de rigor daquilo que conta ao tribunal.

3º) Por último, a parte não pode servir-se do processo para alcan-
çar um fim ilegal (por exemplo, afectar a reputação de um médico ou
de um advogado) ou levantar incidentes desnecessários com o mero
intuito de atrasar o andamento do processo (por exemplo, levantar o já
estudado incidente da suspeição com a única finalidade de atrasar o
processo).

A violação do princípio da boa fé origina a litigância de má fé regu-


lada nos artigos 542º a 545º. Estamos perante uma responsabilidade
tipicamente processual que obedece a um regime distinto do regime
geral da responsabilidade civil. A litigância de má fé pressupõe a culpa
e esta tanto abrange o dolo, como a negligência grave (artigo 542º, nº 2),
ficando, portanto, afastada a culpa nos casos em que a parte actuou
com mera negligência (a mera culpa, prevista no artigo 483º do C.C.,
não gera litigância de má fé).
Quanto às sanções, o legislador, no artigo 542º, nº 1, aponta para a
multa e para a indemnização. Vejamos em que consistem:

A) Multa: é aplicada pelo juiz, nos termos do artigo 27º do Regu-


lamento das Custas Processuais (a Lei nº 7/2012, de 13 de Fevereiro,
alterou o nº 3 desta norma, aumentando substancialmente o valor da
multa: «Nos casos de condenação por litigância de má fé a multa é

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O DIREITO DE ACÇÃO E OS SEUS LIMITES

fixada entre 2 UC e 100 UC» ‒ antes só podia ser fixada entre 0,5 UC
e 5 UC, sendo que o valor da UC é de € 102), não reveste a natureza
de uma sanção penal, mas antes de uma sanção de cariz processual.
A multa traduz uma reacção contra o «jogo sujo» da parte que afec-
tou, através de uma conduta desonesta, incorrecta e desleal, a boa
administração da Justiça.
De acordo com a norma agora citada, o montante da multa
depende, por um lado, dos efeitos que o acto teve na «regular trami-
tação do processo» e na «correcta decisão da causa», e, por outro, da
«situação económica do agente» e da «repercussão da condenação
no património deste.»
É entendimento pacífico que o juiz não deve, sem ouvir a parte,
aplicar essa multa. Pode fazê-lo, sim, mas cumprindo o disposto no
artigo 3º, nº 353.
O artigo 531º prevê uma taxa sancionatória especial, mas, segundo
o artigo 27º do Regulamento das Custas Processuais, «a parte não
pode ser simultaneamente condenada, pelo mesmo acto processual,
em multa e em taxa sancionatória especial.»

B) Indemnização: pode ser simples (artigo 543º, nº 1, al. a)) ou agra-


vada (artigo 543º, nº 1, al. b)) e tem de ser expressamente requerida
pela parte prejudicada pela litigância de má fé no processo onde esta
ocorreu54. A indemnização simples visa cobrir as despesas que a parte,
vítima do jogo desleal, fez com o processo, basicamente aquilo que
gastou com os honorários dos advogados; a indemnização agravada,
que pressupõe uma conduta dolosa do litigante de má fé, destina-se
a compensar a parte lesada não apenas pelas despesas feitas com o

53
 Ver Acórdão do Tribunal Constitucional nº 440/94, B.M.J. nº 438, p. 84.
54
 A jurisprudência tem entendido que o pedido de indemnização só pode
ser feito no processo em que a litigância de má fé tem lugar. Cfr. Lebre de Frei-
tas/Montalvão Machado/Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, vol. 2º,
p. 222.

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M IGU EL M ESQU I TA

advogado, mas também pelos restantes prejuízos que sejam consequên-


cia directa ou indirecta da má fé (os dias de trabalho perdidos ou os
danos morais sofridos, por exemplo)55.
Resta acrescentar que o comportamento do litigante de má fé
pode originar um ilícito penal. É o caso do crime previsto no artigo
359º do Código Penal (falsidade de depoimento de parte ou decla-
ração). E, nos termos do artigo 48º do Código de Processo Penal,
o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo
penal.
Um problema surge quando, por detrás da litigância de má fé,
se encontra não a parte, mas o seu advogado. Isso passa-se tipica-
mente com o uso reprovável dos meios processuais (por exem-
plo, com o abuso do incidente da suspeição previsto nos artigos 120º
e 121º).
A parte fala através do seu advogado e, portanto, aquilo que o
advogado escreve ou diz considera-se transmitido pelo seu cliente.
O advogado é a voz da pessoa que representa: normalmente, o advo-
gado mente porque o cliente lhe mentiu ou não contou toda a ver-
dade. Nestas hipóteses, a parte é a única responsável e o advogado
esquiva-se da responsabilidade fundada na litigância de má fé. As
partes vêem o processo como uma espécie de «arena de combate»,
devendo os advogados dizer-lhes que o «jogo processual» tem limites
derivados do princípio da boa fé (artigos 85º, nº 2, als. a) e b), 103º
do Estatuto da Ordem dos Advogados).
Sendo inequívoca a responsabilidade do advogado, o juiz deve,
de acordo com o artigo 545º, comunicar o facto à Ordem dos Advo-
gados, cabendo a esta aplicar ao causídico as sanções previstas no respectivo
Estatuto. O regime justifica-se, na medida em que os juízes não exer-

55
 Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. II, pp. 277 e ss.

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cem poder disciplinar sobre os advogados e não podem aplicar-lhes


sanções56.
O instituto da litigância de má fé não cobre os depoimentos das
testemunhas ou dos peritos, pois estes não são partes. Mas, em caso
de perjúrio, ficarão sujeitos a um procedimento criminal (ver artigo
360º do Código Penal).

56
 Ver Acórdão do S.T.J. de 12/10/1999 (Silva Paixão), C.J. (Acórdãos do S.T.J.)
1999, t. III, pp. 52-53. Na doutrina, cfr. Paula Costa e Silva, Litigância de má fé,
p. 593.

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