Você está na página 1de 4

Cidadania e direitos

Pode-se entender cidadania como sendo a capacidade da pessoa natural viver no gozo de direitos. Direitos podem ser
definidos como garantias jurídicas que possibilitam aos indivíduos a vida em sociedade. O conceito de cidadania é
histórico, o que quer dizer que cada época desenvolveu a sua perspectiva de cidadania, a sua definição do que vem a
se um/a cidadã/o. Seguindo essa linha de raciocínio, os direitos também são históricos, ou seja, cada período e cada
sociedade vai desenvolver, vai elaborar e vai estabelecer as garantias jurídicas que atendam – ou possam atender –
suas necessidades, seus interesses.
Considerando que a vida em sociedade é marcada por conflitos, tanto de interesses quanto de necessidades, os
direitos, muitas vezes, entram em conflito entre si. Por exemplo, o direito à propriedade entra em conflito com o
direito à moradia e o direito à informação pode entrar em conflito com o direito à privacidade. Em situações como
essas, de resolução pouco fácil, pode-se pensar a partir da perspectiva utilitarista: decidir pelo que pode trazer melhor
resultado e o melhor resultado pode ser aquele que traga mais alegria para todo mundo que estiver envolvido.
A seguir, está um texto escrito pelo filósofo Leo Strauss (século XX), que alude justamente a natureza da lei e a duas
grandes concepções sobre ela: a lei como expressão de uma justiça universal e como expressão de uma vontade ou
convenção humana.
[...] 0 ataque ao direito natural em nome da história assume, na maioria dos casos, a forma seguinte: o direito
natural alega ser um direito discernível pela razão humana e universalmente reconhecido; mas a história
(incluindo a antropologia) nos ensina que tal direito não existe; em lugar da suposta uniformidade, encontramos
uma variedade indefinida de noções de direito e de justiça. Ou, em outras palavras, não pode haver direito
natural se não houver princípios imutáveis de justiça, mas a história nos mostra que todos os princípios de
justiças são mutáveis. [...] STIRAUSS. too. Introdução a filosofia política. 2014.
Visões do direito - A palavra direito possui muitos significados. Em primeiro lugar, em uma acepção geral, refere-se
àquilo que está em conformidade com algo — em especial, em conformidade com uma regra. Esse sentido da palavra
fica claro tanto na língua portuguesa, na qual o vocábulo indica algo feito corretamente, como em outras — é o caso
do inglês, por exemplo, no qual right também se aplica a algo correto. A própria origem latina de direito é bastante
interessante: directus, “reto, que segue em linha reta"; por extensão de sentido, "que segue regras preestabelecidas".
Em outro sentido, o direito é o senso ou técnica que visa possibilitar a coexistência humana. Enquanto técnica, ele se
expressa por meio de regras, que podem ser leis ou normas. O objetivo delas é justamente organizar a convivência
humana, isto é, regular os comportamentos das pessoas entre si. Durante sua história, a Filosofia compreendeu o
direito basicamente a partir de quatro visões ou posições
Direito natural - Conjunto de leis que seriam naturais ao homem, de modo que comportariam o pressuposto de serem
eternas, imutáveis, universais e necessárias. Os direitos naturais são aqueles que, por assim dizer, nascem com as
pessoas naturais, algo do tipo “nasceu tem garantia a” vida, liberdade, segurança para desenvolver potencialidades e
direito de buscar a própria felicidade. Os direitos civis se relacionam com as liberdades, elencando os direitos a
locomoção, pensamento, expressão e informação. Atribui-se ao grupo dos direitos civis a propriedade privada.
Direito como moral - Essa posição considera que o direito tem seu fundamento na moral. Nesse caso, ele seria uma
espécie de moral não muito aprimorada.
Direito como força - Essa visão compreende que o direito tem sua base na forca, ou seja, a leis teriam sua origem na
vontade dos mais fortes.
Direito como técnica social - Essa posição entende o direito como uma técnica de caráter social, cuja validade está em
sua eficácia. Cada uma dessas visões tem seus defensores.
Direitos políticos se referem à participação no processo político e no processo de decisões e é composto pelo direito
a votar – em plebiscitos e referendos -, a se candidatar a cargos públicos. Anonimato na hora do voto também faz
parte desse grupo de direitos, juntamente com o direito de protestar, de participar de movimentações populares além
de organizar e fazer parte de partidos político
Direitos sociais se referem a possibilidade de participar da riqueza que é produzida coletivamente. Não se trata de
riqueza no sentido financeiro, mas sim dos elementos que fazem parte da produção coletiva da humanidade enquanto
grande grupo de indivíduos semelhantes. Educação, moradia, alimentação, trabalho são alguns dos direitos sociais.

1
Direitos humanos seriam classificados como direitos universais, ou seja, que têm – ou deveriam ter – aplicação e
usufruto garantido para todo e qualquer ser humano no planeta. Podem ser entendidos como os que objetivam
proteger indivíduos e grupos das ações e das omissões do governo quando se trata da violação de direitos ou mesmo
que atentem contra a dignidade humana. Não devem ser reduzidos à categoria de direitos “para proteger bandidos”,
pois que são, na prática, as poucas garantias que desenvolvemos como um tipo de proteção para evitar a barbárie.
O direito natural e o jusnaturalismo - No caso do direito natural, há uma fase da Filosofia antiga e uma da moderna.
Esse direito seria uma norma constante e invariável, e as leis que existem na prática representam tentativas de ser um
reflexo dele. Isso quer dizer que as leis existentes — isto é, o direito positivo — tentam ser expressão, mais ou menos,
de uma lei eterna. Os filósofos que argumentam a favor desse ponto de vista entendem que as leis da prática são
imperfeitas e que possivelmente nunca serão perfeitas quanto a lei natural. Nesse contexto, justamente para tentar
corrigir as leis da prática, consideram ser necessário haver uma lei natural sobre a qual as sociedades possam basear-
se, usando a como critério de aperfeiçoamento das leis do dia a dia. Desse modo, os filósofos antigos diziam que o
direito positivo é uma realização aproximada e imperfeita de uma norma perfeita. Essa concepção de direito teve
grande força ao longo de séculos na história da humanidade. Pode-se dizer que Sócrates, Platão e Aristóteles
defendiam essa compreensão do direito. Igualmente o faziam os filósofos estoicos, que chagaram a formular
explicitamente essa noção. Tal tendência foi legada aos pensadores e legisladores romanos e teve continuidade
durante toda a Idade Média.
Qual a base do direito natural?
Para essa concepção, a lei humana seria uma tentativa de refletir a lei do Universo, uma tentativa de inserir a
comunidade humana na ordem racional universal. Essa tentativa faz com que uma lei que se suponha fruto do direito
natural seja tida como mais válida do que as leis que seriam meros produtos da convenção humana, da compreensão
humana ou da vontade da maioria. Essa concepção sempre teve seus críticos. Por exemplo, os sofistas diziam que toda
lei é convenção humana, como Antifonte pensava. Em diálogos de Platão, vê-se que há também aqueles que
defendiam que as leis seriam apenas produtos de uma convenção dos homens – no caso, pensavam assim Cálicles (no
diálogo Górgias) e Trasímaco e Glauco (no diálogo A república).
O direito natural pode ser visto também como critério para julgar as leis que se vão desenvolvendo ao longo do tempo.
Sem esse critério, elas seriam simplesmente fruto dos desejos dos homens. Sob esse ponto de vista, o direito seria
uma tentativa de expressão de verdadeira justiça. Resume essa visão o filósofo romano Cícero (séc. I a.C.): [...] Há
Certamente uma lei verdadeira, a reta razão conforme à natureza, difundida entre todos, constante, eterna, que,
comandando, incita ao dever e, proibindo, afasta da fraude. Nessa lei não é lícito fazer alterações, nem é lícito retirar
dela qualquer coisa ou anulála, como um todo [...] ela não será diferente em Roma, em Atenas, hoje ou amanhã, mas,
como lei única, eterna e imutável, governará todos os povos e em todos os tempos, e uma só divindade será guia e
chefe de todos. (CÍCERO, Marco Túlio. Da república, Tradução de Amador. São Paulo: abril,1973.
Os pensadores medievais mantiveram essa tradição do direito natural. Por exemplo, Agostinho de Hipona escreve: [...]
o direito natural não foi gerado por uma opinião, mas inserido em nós por uma força inata, do mesmo modo como, na
região, estão a piedade, a graça, a observância, a verdade. [...]
Já na fase moderna, a partir, aproximadamente, do século XVI, os filósofos defendem que o direito é natural, mas sua
origem, sua fonte, não é o Universo, nem Deus ou algo da ordem da transcendência, e sim a própria razão humana.
Isso quer dizer que, dentro da razão, é possível encontrar regras universais. Essa concepção é chamada, de modo geral,
de jusnaturalismo. Para essa visão, o direito não é uma técnica pela qual as comunidades humanas conseguem acessar
a justiça impressa no Universo, mas uma técnica de origem racional para organizar a existência em comunidade. Assim,
a matriz do direito natural seria a própria natureza humana. Dessa maneira, para esses filósofos, o direito natural seria
válido de toda forma, independentemente da existência de Deus ou da ordem do cosmos.
John Locke (século XVII), na obra Ensaio sobre a lei natural, considera que essa lei estava impressa no coração do
homem, não como fruto da razão, mas como algo resultante de uma potência superior. Nesse caso, a razão humana
seria a interprete (e não a autora) dessa lei.
Thomas Hobbes a lei natural é, sim, um "ditame da reta razão", porém a razão a que ele se refere é a razão humana,
que é falível, visto ser fruto da natureza do homem - consequentemente, as leis, daí advindas, são também falíveis.
Expõe o filosofo:

2
[...] Por reta razão no estado natural da humanidade entendo, ao contrário da maior parte dos escritores que a
consideram uma faculdade infalível, o ato de raciocinar, o raciocínio próprio de cada indivíduo, verdadeiro em
termos de ações que podem gerar vantagens ou prejuízos aos outros homens. Digo "própria de cada indivíduo"
porque, ainda que no Estado a razão (ou seja, a lei civil) do Estado deva ser observada por todos os cidadãos,
fora do Estado, porém, onde ninguém pode distinguir a razão correta da falsa, a não ser confrontando-a com
sua própria razão não só como regra de suas ações, realizadas por sua conta e risco, mas também como medida
das razões alheias em relação às coisas. Digo "verdadeiro", ou seja, derivado de princípios verdadeiros
corretamente elaborados, porque toda violação das leis naturais resume-se na falsidade dos raciocínios, na
estupidez dos homens que não julgam necessário a sua própria conservação cumprir seu dever para com os
outros. [...] HOBBES, Thomas. Do cidadão. São Paulo: Martins Fortes, 2002.
Esse trecho de Hobbes mostra o caráter racional do direito natural e, ao mesmo tempo, o entendimento de que é
falível a razão que abrange esse direito. Assim, e uma esfera divina ou transcendente, o direito natural vai para a esfera
da razão humana, falível.
0 direito como moral - No conceito de direito como moral, a ideia básica é a seguinte: as normas e leis do direito não
são apenas normas e leis, mas sim expressão de um conjunto de concepções de certo e errado, de bem e mal, ou seja,
de um conjunto de princípios de uma moral. Fazendo uma comparação, observa-se, por exemplo, que no direito
natural essa compreensão que, que, em dado momento, separa direito e moral, porque o direito já seria justamente
a expressão de uma justiça, ou seja, de uma concepção moral. O direito natural é tido como bom. Portanto, a moral
seria intrínseca a ele. O alemão Leibniz, no século XVII, havia começado a fazer uma espécie de separação entre as
esferas do direito e da moral. Ele dizia que o direito é uma potência moral e que a obrigação dada pela lei vem por
meio de uma necessidade moral. O filósofo entende que essa moral é natural do homem.
Para Leibniz, - a noção moral de "não prejudicar ninguém" se expressa no direito estrito, que ele chama de "justiça
comunicativa"; - o conceito moral de "atribuir a cada um o que lhe é devido" se exprime em um direito de equidade,
isto é, na "justiça distributiva"; - e a noção de moral de "viver honestamente" se expressa em um que direito de
piedade, que abarca todas as virtudes e é uma "justiça universal". Assim. o direito, para o filósofo alemão, nasce da
esfera moral.
Kant (século XVIII) segue essa linha e defende que o direito tem fundamento na moral. Ou seja, também para ele os
deveres expostos pelo direito, pelas leis e normas, expressam a moralidade humana. Mas, para o kantismo. uma ação
verdadeiramente moral vem por meio do respeito espontâneo à noção do dever. A norma moral, para o filósofo
alemão é uma lei racional e é a origem das leis do dia a dia. Já os direitos são formulados para obrigar as pessoas a
cumprir preceitos, quando elas não o fazem espontaneamente. Em outras palavras, é importante, nesse contexto,
lembrar que, para a filosofia kantiana, agir só porque a lei obriga não representa exatamente uma ação moral. A lei
humana existe, portanto, para quando os indivíduos não agem espontaneamente no sentido do respeito à sua norma
moral. Sob essa visão o direito tem um caráter necessariamente coercitivo
O direito como força - O direito como forca nega o direito natural e toma do direito como moral (sobretudo de Kant)
o caráter coercitivo da norma, fazendo dele a base de sua legitimidade. Em outras palavras, esse direito tem sua
legitimação por meio da imposição da norma, da lei. Aqui, o direito não é a expressão de uma justiça, seja divina ou
cósmica, também não é a expressão de uma razão humana (seja ela falível ou não), nem tampouco uma expressão de
uma moral intrínseca à humanidade (como pensava Kant). Para essa visão, portanto, será legítima aquela lei que for
imposta pela força; ou, como diria o sofista Trasímaco, personagem em A república, a lei justa é a lei do mais forte.
Essa noção de direito tem suas origens já na Grécia, como é possível observar nos diálogos de Platão (em Trasímaco,
Glauco, entre outros), mas sua acepção moderna nasce com Hegel (séculos XVIII-XIX). Segundo o filósofo alemão, o
direito nasce da vontade do homem. Essa expressão da vontade se consolida no Estado (o Estado moderno). Ou seja,
este é visto como expressão do direito legitimo como vontade.
Hegel considera que os Estados são encarnações do "espirito do povo", de sua autoconsciência, ou da consciência que
esse povo tem de sua verdade. Sob essa forma e compreensão, portanto, o direito é fruto da vontade do povo
encarnada no Estado. Dessa forma, o direito nasce por força do Estado, que é uma convenção. E como se trata de uma
convenção que reflete a "verdade" de um povo, ela passa a ser uma "convenção verdadeira". No lugar, então, de uma
lei cósmica ou divina, no lugar de uma lei como princípio intrínseco à razão humana, o Estado é a própria encarnação
dessa lei como produto da vontade humana. Assim, para Hegel, o direito positivo torna-se direito natural pela fora do
Estado. O direito natural ou o direito como moral era tido como tribunal ao qual os homens poderiam recorrer caso o
direito positivo fosse injusto. Na doutrina de Hegel, porém, não existe nenhum tribunal de apelação. O Estado tem
3
sempre razão. Assim, o direito não tem qualquer fundamento cósmico, divino ou racional, e sim reside puramente na
força estatal. Esse tipo de direito, portanto, prescinde da ideia de valor, de justiça e de moral.
O direito como técnica - o direito como técnica prescinde de tratar o direito como expressão da justice e de moral.
Nesse caso, somente se pode falar no direito positivo, nas leis que já existem concretamente. Para essa concepção, o
direito nada tem de transcendente, nem possui valor de uma moral absoluta. Ele é visto apenas como um instrumento
pare alcançar certos fins. Como instrumento, ale deve ser julgado de acordo com a sus eficiência, isto é, se consegue
ou não realizar os fins pretendidos sobre ele. Esses fins, em geral, são a capacidade de regulamentar e organizar a vide
humana. Nessa ideia, reaparece o princípio da convenção e utilidade já pregado por sofistas e epicuristas na
Antiguidade e, em parte, pelas filosofias modernas de Hobbes e David Hume.
O filósofo austríaco Hans Kelsen (século XX) é um dos principais defensores dessa visão do direito. Em sua obra Teoria
Pura do Direito, ele procura compreender o direito somente como norma, excluindo dele qualquer atribuição de
caráter moral ou qualquer origem cósmica, divina ou racional. Daí adjetivo “pura" caracterizando a teoria. Segundo
Kelsen, o direito é a técnica social específica de uma ordenação coercitiva. Ela pode ser julgada pela sua coerência. A
partir desses e de outros conteúdos, o teórico procura formular uma visão do direito que pretende ser cientifica e
neutra.
Assim, esse mapa das diferentes concepções de direito ajuda a organizar as pesquisas sobre a natureza das leis, suas
relações com a moral e a justiça, seu caráter coercitivo e, enfim, sua necessidade como instrumento de convivência
humana. Compreendidas as diferenças entre visões, é possível discutir e orientar a busca por um direito que consiga
dar fundamentos para uma adequada organização da vida em comunidade.
FONTES BIBLIOGRÁFICAS:
MARTINS, Mª Helena Pires; ARANHA, Mª Lúcia de Arruda. Filosofando: introdução à Filosofia, editora Moderna, 5ª ed, 2015.
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; Martins, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. SP: Ed. Moderna. 1994.
CHAUÍ, M. Iniciação à Filosofia. 3ª edição. São Paulo: Ática, 2017.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000. COTRIM, Gilberto. Fundamentos da Filosofia. SP: Ed. Saraiva. 1996.
GALLO, Silvio. Filosofia: Experiência do pensamento. 1ª ed. São Paulo: Scipione, 2014.
MELANI, R. Diálogo: primeiros estudos em Filosofia. 2ª edição. São Paulo: Moderna, 2016.
PEREIRA, Thais Helena Miguel. Filosofia e Sociologia. Thais Helena Pereira / Georgia Mendes Marinho (org.), 2018.

Você também pode gostar