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DIREITOS REAIS

INTRODUÇÃO
Noção Preliminar dos Direitos Reais
Os direitos reais são, como os direitos de crédito, um subconceito dentro dos direitos
subjetivos – sendo este último um conceito de cúpula, mais abrangente. Mais especificamente, o
direito real é um direito subjetivo caracterizado por 4 qualidades, que o diferenciam em relação aos
demais direitos subjetivos: este é de natureza privada, absoluta, patrimonial, e com incidência
sobre coisas corpóreas.

Direito subjetivo
Relativamente a ser um direito subjetivo, segundo a visão predominante em Lisboa (Menezes
Cordeiro), esta modalidade traduz uma permissão normativa específica de aproveitamento de um
bem. Esta é uma definição analítica que convoca a noção de permissão, que por sua vez é da lógica
deôntica – pelo que não é só uma especificidade de Lisboa, mas encarreira, também, numa perspetiva
filosófica da lógica do dever-ser (permissão positiva ou negativa/obrigação ou permissão).
Concluindo, esta acaba por ser uma definição inspirada na filosofia analítica.
No entanto, esta definição não é dominante na escala global. Em Coimbra (Manuel de
Andrade), por exemplo, o direito subjetivo é um poder da vontade tutelado pela ordem jurídica. Esta
definição acompanha a lógica da cultura germânica de Savigny, que aprofundou todos os conceitos
genéricos no Direito (estruturando o pensamento); e Jhering, apóstolo de Savigny e criador da teoria
da jurisprudência dos conceitos. Estes, por sua vez, pertenciam à Escola Histórica Alemã, dado que
voltam às fontes diretas do Direito, testando se estas – nomeadamente, as romanas – são, realmente,
as melhores fontes.
➔ Afirmação da vontade do indivíduo, e do liberalismo económico e político: não é o Estado, mas
sim o indivíduo, do ponto de vista jurídico, que é legitimado.
Juntando-se estas duas definições, dá-se origem à definição global. No entanto, Caetano
Nunes defende a primeira definição – o direito subjetivo como uma permissão normativa específica
de aproveitamento de um bem.

Direito privado
O direito real é, também, um direito subjetivo privado – e não público. Importa, aqui, relembra
os critérios de distinção entre os dois: nomeadamente, as três teorias 1) quanto ao sujeito, 2) quanto
à posição do sujeito na relação jurídica, e 3) quanto ao interesse. Aqui, releva o facto de o Estado
poder intervir numa situação de igualdade formal com os particulares, no sentido de atuar sem
autoridade. No entanto, tal igualdade formal não significa que determinadas normas não protejam, na
mesma, a parte mais fraca, porque não existe igualdade material (ex: regras de arrendamento). De
qualquer das formas, apesar de existirem desequilíbrios do ponto de vista material, do ponto de vista
formal está-se sempre numa posição de igualdade em direito privado, porque o Estado não prossegue,
naquela relação, nenhum interesse público, como acontece no direito público.
Dito isto, o direito administrativo tem características diferentes, que limitam os direitos reais
privados – assim, os direitos reais, a propósito desta primeira caraterística, são frequentemente
limitados pelo direito público. O exemplo mais significativo disto será o direito de construção, que
é um poder que, para uma parte da doutrina, faz parte do direito de propriedade: ou seja, um
proprietário de um imóvel pode tem o direito de construir – mas, para isso, precisa de uma licença,
que já é regulada pelo direito do urbanismo, ramo de direito público.
Assim, o Direito, enquanto ordem jurídica, é bastante estruturada; mas, na vida real, muitas vezes, é
necessário mexer nas várias “gavetas”, não bastando apenas ir ver ao CC para determinar o escopo
real do direito real que um indivíduo tem.
➔ Segundo Caetano Nunes, deveria haver uma relação mais estreita entre o direito urbanismo e os
direitos reais, para melhor se perceber o conteúdo dos mesmos – nomeadamente, o da
propriedade. Isto porque, como já foi visto, em sede de direitos reais, pode-se chegar à conclusão
de que uma pessoa tem aqueles direitos; mas, depois, ela não pode fazer X coisas, nos termos do
direito do urbanismo/direito público.

Carácter absoluto
Os direitos absolutos caraterizam-se por terem uma oponibilidade erga omnes: valem perante
todos, no sentido da generalidade das pessoas (ainda que com vários limites). Já os direitos relativos
têm uma oponibilidade erga singulo: valem apenas contra certa pessoa ou um conjunto restrito de
pessoas. Denotar que esta é, também, uma contraposição analítica.
Consequentemente, a noção de parte é-nos dada pelo direito relativo: tudo o que não são partes, são
terceiros – e, em sentido analítico, tal significa o resto da humanidade. Assim, os direitos reais, sendo
absolutos, têm um confronto contra esta humanidade (supostamente), no sentido de serem oponíveis
contra toda a gente (ex: A tem um direito de propriedade sobre uma casa em Viseu – este é oponível
mesmo a alguém que vive na Inglaterra – artigo 1311, nº1 CC, “qualquer possuidor ou detentor”).
Qual a relação, então, deste tipo de oponibilidade com a eficácia externa das obrigações? Por
exemplo, A faz um contrato-promessa com C de compra e venda – no entanto, C acaba por vender
antes a B, oferecendo-se para pagar uma indemnização a A. Terá A algum direito, por B se ter
intrometido no seu direito de crédito? Não, porque tal direito é um direito relativo e não absoluto
(salvo exceções que contrariam esta distinção estrutural de raiz germânica). Assim, em direito das
obrigações, os direitos de crédito valem de forma relativa, visto que só desta forma as pessoas têm
mais liberdade (tanto para fazer o bem, como o mal).

Organização do CC:
O CC adota a chamada sistematização germânica, inspirado no BGB e não no código
napoleónico. Assim, este é dividido entre parte geral, composta por 1 livro, e parte especial, composta
por 4 livros. Dentro destes, 2 deles obedecem à distinção de direitos relativos e absolutos. A
arrumação feita é, assim, a de Manuel de Andrade: teoria geral + distinção entre direitos absolutos
e relativos. Ao nível da vida prática, tal distinção é muito importante, visto que ajuda a interpretar a
lei e, consequentemente, a aplicá-la em concreto.
A propósito disto, denota-se que os direitos reais de propriedade/de usufruto são regulados no
livro 3.º do CC, ou seja, no livro sobre o direito das coisas corpóreas ou direitos reais. No entanto, no
livro do direito das obrigações, encontram-se as garantias reais – estas estão no livro das obrigações,
mas são, na mesma, modalidades de direitos reais. Assim, estas são um tipo de direitos reais; mas
acabam, também, por relevar na relação obrigacional, enquanto figura de garantia aos direitos
obrigacionais de crédito (são, uma modalidade de garantia, e não de direito em si). Por exemplo, os
contratos-promessa com eficácia real são um direito real de aquisição, interessando à disciplina tanto
das obrigações como dos direitos reais (estando no livro II, do direito das obrigações).

Carácter patrimonial
O conceito de propriedade é falado tanto no direito privado, como no direito público –
nomeadamente, com a propriedade pública. A noção utilizada no direito privado foi sempre mais
desenvolvida; nos últimos tempos, contudo, tem-se aprofundado o conceito de propriedade sobre
coisas públicas, sendo este um conceito mimético em relação a este, no privado. De qualquer das
formas, nesta disciplina, estudam-se direitos reais com caráter patrimonial privados, e não públicos.
Além disso, o carácter patrimonial pressupõe a suscetibilidade de avaliação pecuniária: ou
seja, implica que exista uma expressão em dinheiro, monetária, pecuniária sobre aquele direito. Esta
caraterística pressupõe, consequentemente, a existência de troca/de mercado: os direitos têm
avaliação pecuniária porque há um mercado para os mesmos.
➔ Esta caraterística permite, assim, distinguir os direitos reais dos direitos de personalidade, que
também são direitos com caráter absoluto.

Incide sobre coisas corpóreas


Em termos de Direito Civil, é coisa tudo o que pode ser objeto de relações jurídicas, o que
inclui coisas incorpóreas (artigo 202º CC, existindo uma distinção entre coisas móveis e imóveis nos
artigos 203º, 204º e 205º CC). No entanto, relativamente aos direitos reais, apenas se irá focar nas
coisas corpóreas, excluindo-se, consequentemente, as coisas incorpóreas – o que exclui do âmbito
dos direitos reais os direitos de propriedade intelectual. Tal distinção provém da tradição romana,
tendo sido recuperada com a escola histórica alemã.
Em todo o caso, as noções de propriedade intelectual são muito marcadas pela vertente
cultural de propriedade. Por exemplo, no mundo moderno, são cada vez mais importantes os objetos
incorpóreos, que podem chegar a assumir mais importância do que as próprias coisas corpóreas.
➔ Nos sistemas de Common Law, fala-se muito em propriedade sobre informação/data. Já nos
sistemas de Civil Law, quando se fala sobre informação, não se fala sobre direitos sobre
informação (absolutos) em sentido estrito – no sentido em que a informação só pertence àquela
pessoa). Pelo contrário, diz-se que, se a informação era do A, mas B apoderou-se, este deve
indemnizar e devolver a A – ora, no sentido de informação getal, esta é uma lógica mais relativa,
e não absoluta (aplicável já à propriedade intelectual, como uma patente).

NOTA: Estas conceções analíticas nem sempre batem certo com os respetivos regimes jurídicos.
Por exemplo, no regime do penhor, não existe esta última característica, visto que existe penhor tanto
sobre coisas corpóreas, como sobre coisas incorpóreas (ex: ações e direitos de crédito). Isto, porque
os regimes jurídicos não são só feitos com base analíticas, mas com o próprio evoluir dos tempos,
havendo algumas inconsistências.
Conceções Doutrinárias Sobre o Direito Real
Relativamente à natureza jurídica do Direito Real, existem 3 grandes conceções –
nomeadamente, a 1) Conceção realista ou clássica; a 2) Conceção personalista; e a 3) Conceção
eclética ou mista.
Para a conceção realista ou clássica, o direito real é um poder sobre uma coisa ou, numa
formulação diferente, é uma relação entre pessoa e coisa. A este propósito, fala-se do direito real
como um direito de domínio ou de soberania.
A formulação de que existe uma relação com uma coisa costuma ser criticada – isto, porque não há
relações com objetos, mas sim com outras pessoas. No entanto, a ideia de que há um poder fático de
uma pessoa sobre uma coisa – poder de tutela jurídica – é muito válida, e é inerente à vertente clássica.
Associada a isto, está a distinção entre os direitos reais e os direitos de crédito: enquanto nos direitos
de créditos, os interesses do titular estão satisfeitos através da cooperação com outra pessoa (o
devedor); no direito real, o titular satisfaz o seu interesse através da sua própria atuação direta sobre
a coisa – ou seja, este tem um poder direto sobre a coisa. Concluindo, fora a crítica da relação com o
objeto, esta ideia é muito válida.
No entanto, outra crítica que não poderá ser afastada será o facto desta conceção não falar sobre a
oponibilidade erga omnes do direito real, uma característica que é bastante importante.
Já a conceção personalista destaca, então, esta ideia da oponibilidade erga omnes. Segundo
esta, a natureza do direito real está na oponibilidade erga omnes, ou seja, no facto de este poder ser
oposto a qualquer outra pessoa.
Aqui, há quem utilize a expressão “relação passiva universal”, no sentido de que o titular do direito
real está do lado ativo de uma relação com o resto da humanidade, que por sua vez está no lado
passivo. Esta ideia – nesta formulação – é criticada por ser artificial: na prática, o que acontece é que
o titular tem um direito exclusivo oponível perante todos – só depois, quando alguém o chatear, é que
já está numa relação jurídica com o mesmo, podendo-lhe opor o seu direito.
Descontando a formulação, a ideia de que há uma oponibilidade erga omnes é indiscutível: este é
o critério mais importante para contrapor o direito das obrigações aos direitos reais. De qualquer das
formas, esta teoria acaba por pecar por nada dizer sobre o efeito direito sobre a coisa.
Por fim, a conceção eclética, que é a mais dominante, defende a junção de ambas as teorias,
nomeadamente nos seus pontos mais fortes. Assim, para esta, os direitos reais são caracterizados por
dois elementos: 1) elemento interno, relativo ao poder direto sobre a coisa; e 2) elemento externo,
relativo à oponibilidade erga omnes. Estes lados do Direito Real têm implicâncias nas estatuições
normativas nos regimes jurídicos, relativamente aos seus efeitos jurídicos.
Na doutrina portuguesa, H. Mesquita adota uma conceção eclética, valorizando muito o lado clássico/
interno. Já Rui Pinto Duarte, que também adota uma conceção eclética, valoriza mais a faceta externa,
que carateriza tanto o CC, como a lógica germânica. No entanto, os direitos reais acabam por ter todos
ambos os lados presentes, embora com intensidades diferentes. Por exemplo, o direito de propriedade
tem ambos os lados bem presentes; mas existem outros direitos reais que já têm menor oponibilidade
ou poder direto sobre a coisa – como os direitos reais de garantia ou os direitos de aquisição, que têm
muito pouco poder direto sobre a coisa, mas bastante oponibilidade erga omnes.
➔ Assim, para os juristas que só olham para o lado interno, os direitos reais que existem são apenas
os de gozo – excluindo desta categoria os de garantia, considerados, pelo contrário, para os
personalísticos justamente como direitos reais.
Categorias de Direitos Reais
Três categorias principais
Existem três categorias principais de direitos reais: os 1) direitos de gozo; os 2) direitos de
garantia; e os 3) direitos de aquisição.
Nos direitos reais de gozo, a coisa é afeta ao uso e à fruição – ou seja, às utilidades retiradas
pelas pessoas titulares dos direitos. Assim, se os direitos reais visam a satisfação de interesses
humanos, nestes direitos reais, a satisfação do titular é feita pelo uso e apropriação de frutos pelo
proprietário – sendo este que tem um direito real de gozo. Há, aqui, uma distinção entre frutos civis
(ex: rendas do arrendamento retiradas pelo senhorio) e naturais (ex: maçã).
Alguns exemplos são o direito de propriedade, direito de usufruto, direito de superfície, direito de
uso, servidões prediais, etc.
Nos direitos reais de garantia, a coisa já é afeta ao cumprimento de uma obrigação através
do seu valor ou dos seus rendimentos, com preferência sobre os demais credores. Aqui, o lado interno
é fraco; enquanto o lado externo de oponibilidade erga omnes é mais forte.
Assim, por exemplo, A tem um bem com hipoteca pelo que, se não for pago o empréstimo, o banco
executa a hipoteca. O bem hipotecado vai ter uma execução judicial, onde vai ser vendido, sendo que
será o valor da coisa que vai ser utilizado para satisfazer o crédito do banco – existe uma satisfação
da obrigação, através do valor da coisa. Por outro lado, esta satisfação pode ser feita não através da
venda (“valor”), mas através do valor de rendas do bem (“rendimentos”), que deixam de ficar para o
senhorio, indo agora para o credor com direito real de garantia.
Consequentemente, o banco fica com preferência em relação aos demais credores: ou seja, o bem é
afeto preferencialmente à satisfação daquele crédito; se, depois disso, sobrar valor, é que se pode
dividir pelos restantes credores. Isto é um aspeto muito importante, porque convoca a oponibilidade
erga omnes (lado externo): quando há hipoteca, o banco tem oponibilidade perante os demais
credores, no sentido de ter preferência sobre qualquer outra pessoa.
Alguns exemplos mais importantes são a hipoteca (imóveis) e o penhor (móveis), ou o arresto.
Por fim, nos direitos reais de aquisição, está em causa uma possibilidade de aquisição da
coisa corpórea com preferência sobre terceiros, caso seja convencionada a eficácia real dessa
preferência – nomeadamente, através de um contrato-promessa com eficácia real ou de direito de
preferência com eficácia real (que é diferente dos contratos reais quanto à constituição, como é o caso
de alguns penhores).
Por exemplo, os comproprietários têm um direito de preferência com eficácia real. Assim, se A e B
têm cada um 50% de um único bem, mas B vende a C a sua parte, A tinha direito de preferência com
eficácia real sobre essa parte – o que significa que A pode chegar ao pé de C e opor o seu direito de
preferência ao mesmo, podendo, até, decidir unilateralmente comprar a parte que era do B ao C.
➔ No caso do pacto de preferência de estrutura obrigacional, por exemplo, B compromete-se perante
A a dar preferência à venda de uma coisa. Ora, aqui, o direito de preferência já não é oponível a
C, porque este tem estrutura meramente obrigacional – caráter relativo.
o Na vida real, não há ações de preferência.

NOTA: Os contratos geram efeitos reais – nomeadamente, A tem um direito de propriedade quando
faz um contrato-promessa de compra e venda. Este é a causa mais importante do surgimento do direito
de propriedade, que cria efeitos reais – transmissão da propriedade – e de crédito (artigo 789º CC).
No entanto, nesta disciplina, foca-se mais nas estatuições normativas, e não tanto as fontes, como os
contratos com eficácia real.

Direito de propriedade vs. Direitos reais menores


Para além destas 3 categorias, há uma distinção bipolar muito frequente entre direito de
propriedade e direitos reais menores. Daqui se retira a ideia de que o direito de propriedade é
máximo, e todos os outros, em contraposição, são menores: isto, no sentido de que tem mais poderes
e mais oponibilidade, ao passo que os restantes têm um conjunto de faculdades mais reduzidas – há
sempre um proprietário, enquanto os titulares de direitos reais menores podem ou não existi
Inserem-se na categoria de direitos reais menores todos os direitos reais menos o de
propriedade, que é o direito real máximo – e que, em condições normais, agrega em si todas as
caraterísticas reais do lado interno e externo. Já noutras figuras que coexistem no Direito Real, as
suas caraterísticas já não estão no direito de propriedade, mas sim nos direitos reais menores (ex:
direitos reais de garantia e de aquisição).
No entanto, denota-se que os direitos reais menores limitam o direito de propriedade.
Quando alguém, por vontade própria, faz surgir um direito real menor (ex: direito de usufruto), tem
uma limitação ao seu direito de propriedade, no sentido de ir limitar as faculdades desse direito – este
é uma compressão do direito de propriedade, algo que está ligado à sua característica de elasticidade.

Figuras importantes
Obrigações reais ou propter rem:
Nas obrigações reais ou propter rem, existe um direito de crédito – estrutura jurídica relativa
–, mas em que surge um direito real. Assim, do ponto de vista analítico, tal direito é uma obrigação,
mas enquadra-se no regime jurídico do direito real.
Um exemplo é o artigo 1424º, nº1 CC: uma fração autónoma é um direito de crédito, em que o
devedor é o proprietário e o credor é o condómino (ponto de vista analítico); mas tal artigo está numa
secção do CC relativo à propriedade horizontal. Assim, como é que se decide quem terá, efetivamente,
de pagar? Neste caso, será necessário perceber quem é o proprietário naquele momento – ou seja, é
uma obrigação que integra o regime de um direito real, porque para saber quem é o devedor, ter-se-á
de perceber quem é o titular do direito de propriedade.
Esta obrigação só surge, assim, pelo facto de ter o direito real e não estar dependente de
nenhum contrato, por exemplo. Do ponto de vista estrutural, é uma obrigação; mas do ponto de vista
institucional, é real – logo, é uma obrigação real.
➔ Por exemplo, A faz uma obra, em que coloca na sua casa uma marquise horrível que desvaloriza
o prédio – sendo tal proibido, este é levado a tribunal para ser forçado a destruir a obra. Ora, aqui,
a estatuição normativa é de proibição de fazer tal marquise – mas existe, ainda, outra estatuição
normativa implícita: nomeadamente, a de destruir a nova obra. Assim, sendo possível fazer uma
execução de facto, se se incumprir o dever de reparar, este “dever” leva-nos para a lógica das
obrigações – é uma obrigação de facere.
Há, no entanto, uma querela de saber se as obrigações de dare e pecuniárias podem, também, ser
reais. Por exemplo, o dever de entrega de dinheiro é uma obrigação pecuniária – pelo que, do ponto
de vista de distinção estrutural entre Direitos Reais e Direito das Obrigações, esta é uma obrigação.
No entanto, esta obrigação surge no contexto de um direito real – pelo que, do ponto de vista
institucional, ainda que seja uma obrigação, é uma parcela do regime jurídico desse direito – assim,
é uma obrigação em sentido estrito, que integra o regime jurídico do direito real: obrigação real
(posição analítica, que Caetano Nunes adota). Mais uma vez, para que uma obrigação seja uma
obrigação real, basta que surja no regime dos direitos reais – esta é a posição de Rui Pinto Duarte,
que se contrapõe à de H. Mesquita.
Concluindo, dado que a lei não dá uma definição para este conceito, existem flutuações doutrinárias
sobre o mesmo. Há a conceção ampla, segundo a qual todas as obrigações reais fazem parte do
regime dos Direitos Reais; mas também existe a conceção estrita, segundo a qual são obrigações
reais apenas aquelas com caráter positivo, e não negativo (Manuel Henriques). Mas, do ponto de vista
analítico, esta última conceção não faz muito sentido, visto que distingue as obrigações das proibições
(ou obrigações de não fazer), algo que, segundo Caetano Nunes, não tem implicâncias práticas.
Discute-se, ainda, se estas obrigações reais se transferem com a transmissão do direito real:
ou seja, pergunta-se se estas são ambulatórias (transmissíveis) – por exemplo, nos termos do artigo
1424º CC, se A comprou uma fração autónoma, passará este a ter de pagar as contas ao condomínio.
No entanto, esta lógica aplica-se, também, às dívidas que ocorreram no passado? Ou seja, fica A
obrigado a pagar as dívidas do antigo devedor? Se sim, tais obrigações são ambulatórias; se não, tais
obrigações não são ambulatórias.
Tal dúvida não está regulada na lei. No entanto, de acordo com a posição dominante, a resposta será
“depende”: as prestações pecuniárias, regra geral, não são ambulatórias; mas existem outras que, por
natureza, o são – por exemplo, o direito a desfazer a marquise, visto que é o proprietário que tem
poder direto sobre a coisa, pelo que é este, e não o antigo proprietário, que pode destruir.
Consequentemente, a resposta dependerá sempre se o cumprimento da obrigação real depende
ou não da titularidade do direito de propriedade. As obrigações pecuniárias e outras que não estão
dependentes da titularidade do direito real de propriedade não são ambulatórias; já todas as outras
terão de se transmitir para o novo proprietário. Assim, por exemplo, a obrigação do pagamento do
condómino pertence ao proprietário primitivo, visto que o cumprimento de uma obrigação pecuniária
não implica a titularidade do direito de propriedade, ainda que tal obrigação se funde precisamente
na titularidade anterior desse direito.
Concluindo, uma obrigação real é, analiticamente, uma obrigação (vínculo jurídico nos termos do
artigo 397º CC) – mas, institucionalmente, integra o regime dos direitos reais. Existe uma querela
(menos importante) de saber se as obrigações pecuniárias e de dare podem ser consideradas
obrigações reais: enquanto Caetano Nunes e Rui Pinto Duarte entende que sim, M. Mesquita entende
que não. Por fim, existe a questão (mais importante) de saber se a obrigação real em questão é ou não
ambulatória – sendo que, para a posição dominante (Rui Pinto Duarte), esta só será ambulatória se
do seu cumprimento depender a titularidade do direito de propriedade.

Ónus reais:
O ónus real é uma situação jurídica, com caráter real, em que uma coisa responde por uma
obrigação, mesmo após a sua transmissão. Por exemplo, no âmbito do artigo 744º CC, se o IMI
(imposto sobre o imóvel, antes chamado de contribuição predial) não for pago, o Estado tem um
direito real de garantia na satisfação do seu crédito na execução do património do devedor. Assim, o
fisco pode executar o devedor e, no âmbito dessa execução, pode penhorar o prédio que está na origem
da contribuição autárquica e vendê-lo em hasta pública – e, aí, o prédio responde pelo pagamento da
dívida. No entanto, o devedor pode, também, transmitir o imóvel, sendo que o novo proprietário
continua a responder por essa dívida, embora não seja ele o devedor – este ou paga a dívida que não
é sua, ou fica sem o prédio.
No entanto, esta definição não encaixa na perfeição na definição geral de ónus/encargo:
determinada vantagem que depende da adoção de um comportamento, mas que não implica uma
obrigação de atuar. Denota-se, no entanto, que a boa doutrina distingue o “ónus” do “dever”: um ónus
implica que alguém tenha de adotar um comportamento, para conseguir uma vantagem ou evitar uma
desvantagem – no entanto, tal comportamento nunca é uma imposição normativa/jurídica, existindo
alguma discricionariedade na parte do indivíduo. Este pode escolher fazer ou não tal comportamento,
sendo que isso não implica um cumprimento ou não cumprimento – é uma decisão livre, mas que
tem, como todas, consequências associadas.
Este ónus jurídico-real é, assim, um conceito mais à parte: a ideia de que a coisa responde pela dívida
é o núcleo desta definição, e não se reconduz bem à categoria geral. Assim, o facto de o devedor ter
a escolha livre de ou perde o bem ou chega-se à frente e paga a dívida, apesar de convocar a ideia
geral de ónus, é mais a definição da consequência prática do ónus real, e não a definição do ónus real
em questão.
Volta-se, aqui, à distinção entre direitos reais e obrigações (direitos de crédito). De acordo
com a perspetiva personalista ou mista que destaca o lado externo, a distinção está no carater absoluto
vs. caráter relativo do direito. Já de acordo com a conceção clássica, a distinção reside na ligação
direta à coisa nos direitos reais – sendo esta uma ligação imediata, em contraposição com a relação
mediata à coisa nos direitos de crédito, visto que nesta, o titular fica dependente de outro ser humano
para a sua satisfação, através da realização da prestação.
Neste âmbito, o primeiro critério de distinção, relativo ao lado externo, será o mais forte. No entanto,
e como já foi visto, existem direitos absolutos que não são reais; assim como existem figuras
intermédias que encaixam mal nesta distinção. Fala-se, aqui, dos direitos pessoais de gozo (de
locação, comodato, parceria pecuária e depósito), uma categoria prevista na lei. Por exemplo, no caso
do arrendamento, existe uma relação obrigacional: o contrato de arrendamento é um contrato com
efeitos meramente obrigacionais – mas a prestação dada periodicamente é uma prestação
característica, visto que, com esta, o senhorio tem o dever de disponibilizar o uso da coisa ao locatário.
Ou seja, é através da colaboração do locador que o locatário consegue usar a coisa – mas isto é uma
construção jurídica, marcada pela história: poder-se-ia conceber o direito do inquilino como um
direito real, no sentido de este ter o poder direto sobre a coisa, ainda que deva o pagamento do preço
– mas não foi essa a opção do legislador histórico (actions in persona e não actions in rem).
➔ Assim, a distinção entre direitos reais e de crédito é o precipitado histórico de Roma de ações
reais e pessoais: por exemplo, a locação dá aso a uma ação pessoal, embora implique o uso da
coisa – ele pode usar a coisa, porque tem um crédito sobre o senhorio, verificando-se aqui uma
estrutura meramente obrigacional e não real, porque não tem poder direto sobre a coisa.
o No entanto, existem também situações como a do artigo 1037º, nº2 CC, onde existe uma ação
de restituição da posse em confronto perante o locador e qualquer outra pessoa – ora, aqui já
existe uma oponibilidade erga omnes – pelo que este é um regime bipolar ou esquizofrénico.
o Ou seja, a posição do locatário tem caráter obrigacional; mas, apesar desta visão geral, existe,
pontualmente, uma tutela erga omnes mesmo contra o locador – algo que fica fora do
Direito das Obrigações, visto que este só iria dar direito a uma indemnização, e não a este
tipo de ação, que já é um aspeto típico dos Direitos Reais.
Concluindo, os direitos pessoais de gozo estão numa categoria média entre os direitos de crédito e
reais – estes são direitos relativos sui generis (Carlos F. de Almeida).

Caso prático:
1. A comprou a B uma fração autónoma num edifício em propriedade horizontal. B não pagou o IMI
relativo aos quatro anos anteriores àqueles em que a venda ocorreu, nem as contribuições para o
condomínio relativas aos dois anos anteriores à mesma data, nem, ainda, o preço do serviço de
pintura das paredes (interiores) da fração, que C fez, a seu pedido. Diga se A está obrigado a pagar
alguma das dívidas contraídas por B e se a fração autónoma responde por alguma delas.
Existe, aqui, um contrato de compra e venda de um imóvel entre A e B (artigos 874º e ss. CC).
Pressupõe-se, aqui, que foi feito o registo predial e, por isso, houve transmissão do direito de
propriedade sobre o imóvel de B para A – em relação a A, existe uma forma de aquisição da
propriedade derivada, através de contrato (artigo 1316º CC). Além disso, a constituição da
propriedade horizontal é realizada por meio de um contrato de compra e venda, estando, por isso, de
acordo com os termos do nº1 do artigo 1414º CC.
Posto isto, está-se perante três tipos de dívidas distintas: num primeiro momento, B não pagou
o IMI relativo aos quatro anos anteriores àqueles em que a venda ocorreu; posteriormente, não terá
pagado as contribuições aos condomínios relativas aos dois anos anteriores; e, finalmente, falta ainda
pagar o preço do serviço de pinturas interior feito por C. Ora, saber quem terá de pagar estas dívidas
prende-se com a discussão sobre se as obrigações reais se constituem ou não como ambulatórias – ou
seja, importa perceber se, depois de constituída a nova propriedade horizontal, devem ser cobradas
as dívidas a A (novo proprietário) ou B (antigo proprietário).

Características Comuns aos Direitos Reais


As características a ser enumeradas ajudam a perceber o confronto entre os direitos reais e
outros direitos subjetivos, aprofundando-se mais a definição dos mesmos – fala-se, então, de
princípios meramente formais, e não materiais.
A primeira característica será, claramente, a oponibilidade erga omnes – sendo que, no
entanto, há outros direitos que também têm oponibilidade erga omnes, como os de personalidade.
A segunda característica é a sequela: ou seja, o poder de seguir a coisa ou perseguir a coisa,
independentemente de todas as suas vicissitudes – manifestações da oponibilidade erga omnes.
Significa isto que, aconteça o que acontecer, o titular poderá sempre ir atrás da coisa, e revindicá-la
para si. Um corolário básico associado a esta característica é a ação de revindicação (artigo 1311º CC
– só falta acrescentar, a este, “independentemente das vicissitudes materiais que possam acontecer”).
Pode acontecer, no entanto, que nem sempre seja assim: por exemplo, se a pessoa não revindicar a
coisa durante muito tempo, a posse da mesma pode ser transmitida por usucapião, em que a posse
durante um longo período dá a aquisição da propriedade. No entanto, enquanto permanece este direito
de reivindicar, há sequela até o direito se extinguir – logo, desde que este exista, o titular poderá
sempre seguir a coisa e revindicá-la para si mesmo.
A terceira caraterística é a publicidade, sendo esta, também, uma decorrência do princípio
mais amplo da oponibilidade erga omnes. Existe, aqui, uma lógica de equilíbrio: se o titular pode
opor o seu direito sobre coisa corpórea, então os terceiros terão de conseguir saber que ela lhe
pertence.
Dentro desta ideia, existem, na história e no direito comparado, dois grandes regimes de publicidade
de Direito Real: o regime de publicidade 1) através da posse (ancestral); e o regime 2) através do
registo (moderno). Em sociedades primitivas, a propriedade era publicitada pela posse, visto que as
pessoas se conheciam e, por isso, sabiam o que cada um detinha (ex: A sabe que dita casa é de B,
porque B vive lá). No entanto, hoje em dia, tal regime é inviável, não funcionando fora da aldeia e
num contexto com mais volume populacional. Assim, a criação do registo é uma criação moderna
(pouco mais de 2 séculos), tendo começado através da hipoteca: a determinada altura, achou-se por
bem criar registos públicos da hipoteca, de forma a criar segurança no financiamento bancário – o
que implicava, assim, o registo da propriedade. Consequentemente, se se fala do registo de coisas
corpóreas, como os prédios/imóveis, fala-se de registo predial; mas existem registos que são
atualmente exigidos e que não incidem sobre coisas corpóreas – e, por isso, não interessam aqui.
➔ Ambos os regimes estão, no entanto, vetores associados à segurança – sendo que o regime atual
português, por vezes, privilegia a posse de forma anacrónica: ora, se se desvalorizar o registo, há
menos segurança bancária e, consequentemente, menos desenvolvimento económico.
o Isto porque, no CC, mesmo quando há registo predial, existem normas que continuam a
referir a publicidade através da posse – que, por vezes, até se sobrepõe. Um exemplo é o
artigo 1268º CC: a presunção derivada da posse é mais forte do que a do registo – ora, esta é
bom para sociedades feudais com mais de duzentos anos, mas no mundo atual não faz sentido.
A quarta caraterística é a tipicidade ou taxatividade: os direitos reais são um elenco fechado
– numerus clausus –, sendo que esta tipicidade joga em confronto com a liberdade de estipulação dos
contratos e obrigações, no sentido de ser um limite à liberdade negocial. Além disso, também é um
corolário da oponibilidade erga omnes: para as pessoas saberem o que lhes é oponível, para o
respeitarem, é necessário que elas conheçam, a priori, o que é considerado, por ex., “propriedade”.
A palavra “tipo” tem vários significados em direito. Enquanto aqui é usada como sinónimo de
taxatividade, o tipo também pode ser tipo negocial – por exemplo, o contrato de compra e venda,
onde o tipo é usado como alternativo a “conceito jurídico”.
No entanto, de qualquer das formas, a maioria dos conceitos jurídicos relacionados com contratos já
têm fronteiras mais incertas: por exemplo, um contrato de compra e venda tanto pode ser de pão como
de uma empresa, sendo estas duas realidades sociológicas bastante distintas. Para designar o conceito
mais aberto, utiliza-se, assim, a palavra “tipo”.
A quinta característica é a elasticidade ou consolidação: os direitos reais expandem-se e
contraem-se, em função da sua coexistência com outros direitos reais. Isto será mais evidente no
direito de propriedade, que se contrai com direitos reais menores e expande-se sem estes: apesar de
um direito de propriedade existir, este estará mais contraído se existir um direito de usufruto de outra
pessoa, e ainda uma hipoteca. A ideia essencial é que os direitos reais são elásticos: quanto mais
contraído estiverem, menos caraterísticas reais têm.
A sexta característica é a especialidade ou individualização: segundo esta, só pode haver
direitos reais sobre coisas específicas, e não sobre coisas genéricas – artigo 666º CC, relativos aos
direitos reais de garantia penhor: “certas coisas móveis”. No entanto, a identificação dessa coisa
depende do seu estatuto jurídico: artigos 202º e ss. CC.
Por exemplo, há um prédio que está a ser constituído em propriedade horizontal, pelo que, a partir
desse momento, passa a ter frações autónomas – mas só depois de as frações autónomas terem
estatuto jurídico, é que pode haver direito de propriedade sobre eles. Nomeadamente, com a
escritura pública das frações autónomas, deixa de existir um prédio, mas sim x frações autónomas,
passando a existir o direito de propriedade sobre as mesmas – e compropriedade sobre os espaços
comuns. Antes de serem registadas as frações autónomas, elas não existem juridicamente, ainda que
o prédio exista juridicamente: assim, um contrato-promessa sobre uma fração autónoma, sem que
estas estejam registadas, apenas tem efeitos obrigacionais.
A sétima característica é o princípio da atualidade ou imediação. Esta é a primeira que
convoca o lado interno dos direitos reais: ou seja, a ideia de que há um poder material e jurídico do
titular de aceder imediatamente à coisa – não sendo preciso a colaboração de ninguém para este
usufruir do seu imóvel, por exemplo. Esta caraterística da imediação é típica dos direitos reais de
gozo, mas não faz parte dos direitos reais de garantia e aquisição (onde prevalece o lado externo).
Aqui, a ideia de atualidade invoca um corolário da especialidade: não pode haver um direito real
sobre coisas futuras, porque tudo depende do estatuto jurídico-real da coisa.
➔ A propósito desta caraterística, existe o artigo 1037, nº2 CC: por um lado, formalmente, existe
mediação, no sentido em que é o senhorio que entrega a coisa – mas, por outro lado, existem
aspetos de imediação, como já se viu.
A oitava caraterística (formal) é a compatibilidade ou exclusão: podem coexistir vários
direitos reais sobre uma só coisa. No entanto, esta coexistência pode existir pacificamente, no sentido
de que são todos compatíveis; ou pode haver casos em que a lei determina que a existência de um
direito real implica a exclusão de outro direito real sobre a mesma coisa.
Associada a esta, existe uma característica da prevalência: existindo litígios sobre o direito sobre a
coisa, a lei dirá quem é o proprietário – existindo regras legais de prevalência.
A última caraterística é a consensualidade ou eficácia real imediata – princípio do
consensualismo/consensualidade. Segundo o artigo 408º, nº1 CC, a transmissão do direito real é um
efeito automático dos negócios jurídicos – ou seja, basta a vontade, ditada no negócio jurídico pelo
consenso de todas as partes, para existir esta transmissão.
Esta ideia de que por mero acordo de vontades se transmite direitos reais é de inspiração iluminista,
período histórico em que se valorizou a vontade individual. No entanto, esta ideia não é a mais feliz:
na história e no direito comparado, é frequente que a transmissão de direitos reais dependa não só da
vontade das partes, mas também do ato real (ou seja, entrega da coisa – “traditio”) – ou, quando estão
em causa bens sujeitos a registo, a inscrição do registo da transmissão. Tal é o que acontece na
Alemanha.
Já em Portugal, basta apenas o negócio jurídico: existe, assim, um sistema de título, que é o contrato,
que se opõe ao sistema de modo, que exige a posse ou o registo dessa transmissão. No entanto,
mesmo em Portugal, o sistema do título admite exceções: por exemplo, a transmissão de ações e
valores mobiliários, de acordo com a opinião dominante, segue o sistema do modo, e não do título.
Já em relação aos imóveis, a doutrina diverge entre a aplicação do sistema do tipo e a aplicação de
um sistema misto. O artigo 408, nº1 CC consagra o sistema do tipo, assim como o artigo 1317º CC –
mas o artigo 879º CC já elenca do contrato de compra e venda dois efeitos obrigacionais (entregar a
coisa e pagar o preço) e 1 real (transmissão da propriedade). Ora, esta ideia da transmissão da
propriedade reflete precisamente a ideia do consensualismo, do sistema do título – é com o contrato
que se dá a transmissão do direito real – sendo, por isso, um corolário do artigo 408º, nº1 CC. A
entrega da coisa não é, assim, uma condição para a transmissão da propriedade – depois de
transmitida da propriedade sobre direito real com o contrato, a entrega é algo meramente material.
DIREITO DE PROPRIEDADE – PARTE GERAL
Introdução – o que é propriedade?
A palavra “propriedade” terá um sentido diferente dependendo em que ramo é usada – por
exemplo, a noção utilizada em Economia não é necessariamente a mesma que é utilizada em Direito.
Assim, as noções jurídicas de propriedade pressupõem uma determinada opção ideológica do
legislador constituinte – economia de mercado marcada pela propriedade privada. Existem, assim, 3
sentidos de direito de propriedade que são utilizados nos manuais e aulas:
1. Propriedade enquanto um tipo específico do direito real: designa o direito em si – e será aquele
que vai ser utilizado mais frequentemente;

2. Propriedade enquanto o objeto de um direito real: por exemplo, a tal propriedade em Viseu–
não designa, assim, o direito que se tem sobre o prédio, mas o objeto (prédio);

3. Propriedade referente a qualquer direito real de gozo: por exemplo, na reserva da propriedade
(artigo 409º CC), o que acontece à propriedade quando ainda não foi pago o preço todo, ou quando
o comprador já tem alguns direitos reais? Na Alemanha, nestes casos, o conteúdo do direito real
de propriedade está dividida/partilhada entre o vendedor e o comprador – têm ambos
determinados mecanismos de tutela real. Assim, aqui, propriedade é sinonimo de regime
jurídico-real.

4. Há, ainda, um conceito de propriedade a nível constitucional e não civilista – conceito de


propriedade privada (artigo 62º CRP). Fica a nota que, atuando a CRP, esta protege a
propriedade privada, abarcando a propriedade em sentido estrito (todos os direitos menores) e a
propriedade privada corporativa – tudo o que são direitos com valor patrimonial, como direitos
de crédito. O conceito de “propriedade privada” é muito amplo, no sentido de património – logo,
abarca não só todos os direitos reais, como todos os direitos com valor económico.
A realidade é que não existe uma definição concreta do direito de propriedade. A definição mais
clássica será a de que o direito de propriedade é o domínio ou poder ilimitado e exclusivo sobre uma
coisa. Esta é, no entanto, uma definição muito fraca, visto que nenhum direito é verdadeiramente
ilimitado: o que se pode dizer é que, do ponto de vista comparativo, o proprietário tem mais poderes
e faculdades em relação a qualquer outro – mas claramente tem restrições, logo não é ilimitado.
➔ Outro aspeto que dificulta tal definição é que a propriedade sobre imóveis é muito diferente da
propriedade sobre moveis – pelo que uma definição de propriedade que queira servir para tudo
fica uma definição vazia. Logo, não se vai dar uma definição detalhada, que é impossível.
No entanto, o artigo 1305º CC dita alguns elementos que ajudam a perceber e a definir este
direito (enquanto tipo de direito real, e conceito jurídico aberto). Designadamente, este explicita que,
dentro do direito de propriedade, existe a faculdade de 1) uso; 2) fruição; e 3) disposição ou oneração
– ou seja, esta é uma arrumação dos poderes ou faculdades que cabem ao proprietário.
Destacam-se, ainda, alguns aspetos relativos às características formais dos direitos reais. Em
primeiro lugar, a plenitude é uma característica apenas visível no direito de propriedade, visto que,
como já se viu, este direito tenta abranger todos os poderes e faculdades – é o direito real máximo.
Em segundo lugar, o direito de propriedade é o mais elástico dos direitos reais, sendo que entra,
também, no jogo da expansão e contração. Além disso, o direito de propriedade é perpétuo, não se
extinguindo pelo decurso de um prazo (salvo os casos do artigo 1307º, nº2 CC), ao contrário de
direitos reais menores. Por fim, o direito de propriedade é, por regra, transmissível, algo que é
comum nos direitos privados com conteúdo patrimonial.

Modos de Aquisição do Direito de Propriedade (artigo 1316º CC)


Modos de aquisição da propriedade originária
1. Usucapião:
O usucapião tem como estatuição normativa o efeito de aquisição da propriedade – sendo que
poderá existir, também, o efeito de o proprietário original perder a propriedade. Já a sua previsão
normativa exige, sempre, dois pressupostos: 1) a posse; e 2) o decurso do tempo.
Esta figura torna possível o facto de o possuidor poder ser, em simultâneo, proprietário – ou
não. Por exemplo, A tem as chaves da casa de B durante 25 anos – esse fenómeno de permanência
do tempo da posse faz com que a ordem jurídica permita que seja possível, para A, adquirir o direito
de propriedade da casa através do usucapião. Isto é permitido por motivos de segurança, no sentido
em que o proprietário verdadeiro, no decurso deste tempo, não reage de forma negativa: ora, não se
está, com esta figura, a censurar o proprietário – mas assegura-se, sim, a pessoa que teve o status quo
da propriedade durante tanto tempo.
Por fim, este é um modo de aquisição originário, porque não há uma transmissão de
propriedade por parte do proprietário original – no sentido de esta não ser feita por ato de vontade,
mas sim como quebra da cadeia de transmissões.

2. Ocupação:
A ocupação, também conhecida por achamento, é um modo de aquisição de propriedade
resultante da apreensão material de coisa sem dono, com intenção de a adquirir – ou seja, terá de
haver a intenção de, com aquela coisa, fazer algo.
Importa perceber o que são coisas sem dono: estas serão ou coisas que nunca tiveram dono;
ou coisas que foram abandonadas (enquanto modo de extinção da propriedade). Historicamente, a
ocupação foi uma forma de aquisição de propriedade bastante importante – os colonos ocupam e
adquiriam terras por ocupação. Atualmente, esta forma é muito menos relevante.
Atualmente, na legislação portuguesa, só há ocupação de bens movéis, tanto coisas como
animais. Por exemplo, os caçadores ocupam as perdizes – a caça implica a ocupação, tal como a
pesca, que têm regimes especiais. Este é o conceito mais amplo; no entanto, é possível especificar o
mesmo, no sentido em que a coisa “tem de ter sido anteriormente abandonada”.
➔ Há, ainda, um regime nos artigos 1323º e ss. CC que pode ter alguma aplicação prática, dado
consagrar o dever de restituir – ora, do mesmo comportamento, não resulta a ocupação, mas sim
deveres de restituição (sendo que, no limite, só depois poderá haver ocupação).

3. Acessão:
A terceira e última forma de aquisição originaria é a acessão (artigo 1325º CC), cuja previsão
normativa tem dois pressupostos: 1) a incorporação de uma coisa noutra; e 2) a diversidade de titulares
das coisas incorporadas. Assim, a lógica será a seguinte: se as coisas tinham proprietários diferentes,
mas são incorporadas numa só coisa, essa coisa só pode ter um proprietário. Por exemplo, se A
tem um prédio rústico (terreno), mas B constrói nesse prédio um edifício – ora, o terreno e o edifício
são incorporados um no outro. A quem pertence o edifício? De uma maneira ou outra, existe uma
propriedade adquirida por acessão.
Segundo o artigo 1326º CC, a acessão pode ser natural – se resultar de fenómenos naturais
(ex: chuvas movimentam terras de um espaço para o outro) – ou industrial – se resultar de um facto
humano (ex. do edifício atrás falado). A acessão pode, ainda, ser mobiliária – no que respeita à
acessão por coisas móveis – ou imobiliária – quando pelo menos uma das coisas incorporadas é
imóvel (que será a mais estudada).
➔ Necessário ter em conta, no entanto, que há conceitos que fogem ao conceito geral de acessão.

Modos de aquisição derivada da propriedade


Transmissão por vivos:
De acordo com o artigo 1316º CC, a transmissão por vivos dá-se por contrato – sendo que a lei teria
sido mais inteligente se tivesse dito “por negócio jurídico” ou “por sucessão inter vivos”.
De qualquer das formas, será necessário falar, aqui, de 3 paradigmas de transmissão de propriedade
inter vivos que surgem na história e no direito comparado, nomeadamente:
1. Sistema do título: A propriedade transmite-se por mero efeito do contrato.
2. Sistema do modo: A transmissão da propriedade resulta de um ato autónomo ao contrato, que
pode consistir ou na entrega da coisa (traditio – tradição da coisa); ou, relativamente a bens
sujeitos a registo, na inscrição registral.
o Nos bens sujeitos a registo, em rigor, até poderá ter de se fazer um contrato distinto do de
compra e venda, apenas com o objetivo de inscrever no registo – contrato meramente
executório. Isto é o que acontece na Alemanha, o paradigma do sistema do modo: existe um
contrato com mera eficácia real autónomo e abstrato face ao contrato de promessa/contrato
de compra e veda – sendo que os seus efeitos podem permanecer ainda que este primeiro
contrato seja inválido.
3. Sistema misto.
Ora, em Portugal, vigora, como regra base, o sistema do título (artigo 408º, nº1 CC). No
entanto, esta regra não é imperativa, existindo no próprio CC exceções à mesma – por exemplo, na
hipoteca, só há transmissão da propriedade com o registo (sistema do modo); assim como no penhor,
que exige a traditio (sistema do modo).
Em relação a bens sujeitos a registo, a conjugação das regras do CC com as do registo predial
determina a existência de um sistema misto: ou seja, em que quer o contrato, quer a inscrição registral
são importantes para a transmissão da propriedade. Isto justifica-se pelo facto de o sistema do título
não oferecer tanta segurança, ao passo que no sistema do modo ou misto, existe a certeza de quem
tem o direito real com oponibilidade erga omnes – pelo que é mais seguro aplicar-se este a bens mais
valiosos, como casas, carros, etc.
➔ Relativamente aos valores imobiliários, a transmissão é, também, para a maior parte da doutrina,
através do sistema do modo.
Notas finais
Denota-se que podem existir mais formas de aquisição originária que não estão aqui – por
exemplo, as aquisições a non domino: quando há contratos de transmissão sobre móveis não sujeitos
a registo, o direito português diz que, se A vende a B, e B a C, e depois A vem invocar a invalidade
do contrato com B, isso vai repercutir-se na compra e venda entre B e C – ou seja, a invalidade
perturba toda a cadeia de transmissão. Consequentemente, anula-se o contrato entre A e B e, depois,
também o contrato entre B e C – regressando a propriedade de C para B; e de B para A.
No entanto, tal não acontece em todos os quadrantes do mundo. Em França, por exemplo, se C
adquiriu a coisa de boa-fé, não se lhe pode retirar a propriedade da mesma – existe uma proteção da
confiança nas transações. Aliás, no direito comparado, este é o regime mais frequente – mas em
Portugal, em princípio, tal não acontece.
Há, ainda, outra modalidade de aquisição originária que, efetivamente, vigora em Portugal: a
aquisição por registo predial. Por exemplo, A transmite a B e, também, a C certa coisa, sendo que
apenas C regista a mesma – ora, há aqui uma dupla transmissão. No entanto, sendo o segundo
adquirente quem regista, este pode ser protegido pela confiança do registo, podendo adquirir a
propriedade da coisa através da segurança das regras do registo. Ou seja, a propriedade de aquisição
derivada era de B – visto que, quando A vende a C, este já não tinha o direito de propriedade, pelo
que C não pode adquirir de forma derivada tal propriedade –; mas, se C adquire a propriedade através
da segurança do registo pela lei, então tal aquisição é originária e não derivada.

Modos de Extinção da Propriedade


Fala-se, aqui, especificamente de extinção absoluta (e não relativa) – sendo que esta pode ser
devido 1) à perda da coisa ou 2) à renúncia.
A perda da coisa é o perecimento físico da coisa, não no sentido de não se saber onde está,
mas, sim, no sentido de esta se extinguir/ser destruída. Ir-se-á ver que, nalguns casos, a propósito do
usufruto (direito real menor), poderá haver uma perda da coisa: por exemplo, nos termos do artigo
1480º CC, se existir um terramoto, a fração autónoma fica destruída – sendo que a pretensão
indemnizatória que esta destruição faz surgir não irá só para o proprietário, como também para o
usufrutuário. Tal direito, no entanto, é um mero sucedâneo desse direito de usufruto – será, então, um
direito de crédito, e não um direito real, do ponto de vista analítico.
Já a renúncia é o negócio jurídico unilateral de extinção do direito. O abandono é uma
modalidade de renúncia feita sem um texto, mas através de uma mera conduta: por exemplo,
atirar o saco do lixo para a lixeira é um abandono – esta é uma conduta que pode ser interpretada
como traduzindo a vontade da pessoa de renunciar ao seu direito de propriedade sobre aquilo.
A renúncia pode ser abdicativa – no sentido de ser pura, de apenas provocar o efeito jurídico de
extinção da propriedade – ou liberatória, quando também importa um meio de exoneração de uma
obrigação (por exemplo, se a lei estabelecer que é necessário fazer obras a um edifício do qual se é
titular, o mesmo poderá renunciar ao seu direito de propriedade sobre o mesmo, para não ter de gastar
dinheiro com tais obras).
➔ Já a renúncia abdicativa poderá ser complicada quando aplicada a imóveis – se se renunciar ao
mesmo de forma pura, quem é que fica como proprietário do mesmo? Ora, há quem diga que tal
não pode acontecer, porque assim não haverá dono; mas a melhor doutrina defende que, se não
houver dono, a coisa imóvel fica para o Estado, nos termos do artigo 1345º CC.
Compropriedade
Introdução
A compropriedade é uma situação de titularidade plural do direito de propriedade sobre uma
coisa, e não só de uma parte – definição diferente da dada no artigo 1403º CC. Ou seja, por exemplo,
a compropriedade de um prédio não significa que A tem uma parte e B tem outra: ambos têm plenas
faculdades e poderes sobre a coisa, e não partes especificadas da mesma (artigo 1408º CC).
Na compropriedade rural, especificamente, é comum a divisão em parcelas ou em avos (partes) –
sendo que, do ponto de vista jurídico, tal divisão em avos não tem efeitos jurídicos (sendo necessário
as partes passarem por um processo de legalização dos diferentes lotes).
➔ No entanto, se ambas as partes tiverem, durante muito tempo, a posse de uma determinada parcela,
discute-se até que ponto pode o usucapião funcionar para dividir esta propriedade. No entanto, de
qualquer das formas, o que interessa agora é destacar que a propriedade é sempre sobre a
totalidade da coisa.

Regime
Os direitos dos comproprietários são qualitativamente iguais, ainda que possam ser
quantitativamente diferentes (artigo 1403, nº2 CC). Ou seja, ambos têm o direito ao uso da coisa
comum, mas existe uma possibilidade de regulação desse uso, nos termos do artigo 1406º CC: eles
podem regular tal o uso da coisa por acordo.
No entanto, se tal acordo não existir, todos os comproprietários podem usar livremente a coisa, com
dois limites: 1) não podem destinar a coisa a um fim diferente ao que se destina; e 2) não podem
prejudicar o uso dos restantes proprietários – ou seja, privar os restantes proprietários desse uso.
Além disso, existe, também, um dever de comparticipação nas benfeitorias necessárias:
ou seja, todos têm um dever de contribuição para todas as despesas de conservação ou melhoria, que
podem ser necessárias, úteis ou voluptuárias (artigos 216º e 1411º CC). No entanto, tal contribuição
será feita na proporção das respetivas quotas – isto, porque tanto podem existir 2 comproprietários
com 50% cada, como também pode existir um caso de comproprietários em que um tem 50%, outro
20% e outro 30%. Assim, cada um irá contribuir em valor proporcional à percentagem que têm.
Quanto à administração da comparticipação/da coisa (artigo 1407º CC, que remete para o
artigo 985º CC), destaca-se que existe liberdade de estipulação de um regulamento (acordo) sobre a
mesma. No entanto, se não houver um regulamento, ou acordo em contrário, todos os
comproprietários têm igual poder de administração. Consequentemente, se existirem divergências
entre os comparticipantes em sede de adminsitração, há deliberação e decide a maioria (princípio da
suficiência da maioria, em contraposição com a unanimidade).
➔ Quanto a este último ponto, denota-se que, de acordo com os diferentes regimes jurídicos, poderá
haver tipos de maiorias diferentes. Ora, neste caso, existe um regime de dupla maioria: será
necessário existir maioria simples tanto de proprietários (democracia – voto por pessoa), como de
quotas (plutocracia – voto em função do capital).
o A dupla maioria é um regime pouco simples: nas sociedades sociais, os regimes são muitos
mais simples, existindo menos bloqueios decisórios. No entanto, aqui, o que o legislador quer
é que os comproprietários cheguem a um acordo, não tendo propriamente como objetivo
simplificar o processo de decisão.
Por fim, segundo o artigo 1412º CC, cada comproprietário tem o direito à divisão: ou seja, o
direito de exigir a divisão a todo o tempo (regra geral) – sendo que pode haver, no entanto, convenção
em contrário (convenção ou acordo de indivisibilidade). Esta convenção só pode ser como prazo
máximo de indivisibilidade 5 anos: ou seja, só é possível convencionar a indivisibilidade por um
máximo de 5 anos – depois disso, a divisibilidade é injuntiva. A divisão, por sua vez, dissolve a
compropriedade, alterando o estatuto jurídico-real da coisa: cada um fica com uma parte, tendo
titularidade exclusiva sobre a mesma. Conclui-se que a compropriedade é uma situação
tendencialmente temporária, ao contrário de outras formas de contitularidade (onde não existe o
mesmo direito à divisão)
➔ Este regime do CC é limitado por regras de direito público – nomeadamente, o direito do
urbanismo e de ordenação do território de forma extrema, que limitam o fracionamento da
propriedade privada, podendo impor-se como um obstáculo a este direito de divisão.
Quanto à alienação da quota na comunhão, o comproprietário pode dispor da sua quota, no
todo ou em parte, regra geral a todo o tempo (artigo 1408º CC). A lei estabelece, no entanto, um
direito de preferência em relação aos outros comproprietários sobre tal quota, com o objetivo de
promover, do ponto de vista da análise económica do direito, a propriedade individual, que é sempre
preferível à coletiva, do ponto de vista de gestão – assim como se impede, desta forma, que estranhos
entrem na compropriedade.
Este direito de preferência é um direito real de aquisição, sendo, em rigor, o grande paradigma dos
direitos reais de preferência: ou seja, sempre que há um direito de preferência, estas normas acabam
por reconduzir ou ao artigo 1409º, ou 1910º e 1411º CC – normas sobre os direitos reais de
preferência. Não confundir estes casos, no entanto, com aqueles em que há propriedade individual,
sobre a qual o vizinho tem direito de preferência. Além disso, estes direitos de preferência têm
oponibilidade erga omnes: é através da ação de preferência que se dá tal oponibilidade erga omnes
do direito de preferência real (artigo 1410º CC).
➔ No entanto, na realidade, isto acaba por não ser prático: ou seja, apesar de o comproprietário com
preferência ter depositado o custo económico à cabeça, como é pedido pelo artigo, só anos depois
é que terá, efetivamente, o bem – ou seja, o direito à coisa só surge anos depois, com a sentença,
e apenas se a ação for procedente. Significa isto, então, que, na prática, este investimento é
irracional e não funciona.
NOTA: Na compropriedade, a renúncia liberatória reverte a favor dos outros consortes (artigo 1411º
CC); ao passo que a renúncia abdicativa torna as coisas res nullius ou fá-las reverter para o Estado.

Outras situações de contitularidade


Fala-se, agora, de outras situações de contitularidade que não a compropriedade. Em primeiro
lugar, existe a contitularidade de créditos, onde poderá haver quer vários credores do lado ativo,
quer vários devedores do lado passivo – existe uma pluridade de pessoas.
Em segundo lugar, existe, também, a comunhão conjugal, que resulta do regime do direito
da família: as pessoas casadas são contitulares do património comum, se assim o escolherem. Este
património envolve tanto situações jurídicas ativas como passivas – ou seja, não se partilha apenas o
ativo, mas também as dívidas de ambos. Além disso, e ao contrário do que acontece na
compropriedade, na comunhão conjugal a parte não pode alienar ou diminuir a sua quota do
património: o regime da união conjugal é instrumental para o bem superior da relação conjugal, pelo
que esta alienação só pode ser feita se tal relação conjugal for extinta.
Em terceiro lugar, existe a comunhão hereditária (artigos 2079º e ss. CC): com a partilha do
património hereditário, cada uma das coisas que o compõe é adjudicada a diferentes herdeiros – no
entanto, até essa partilha se dar, o património (ativo e passivo) está numa situação de contitularidade,
pertencendo a todos os herdeiros.
Em quarto lugar, existe a comunhão societária (artigo 980º CC), no âmbito das sociedades
civis. A maioria da doutrina entende que estas sociedades não têm personalidade jurídica; no entanto,
quando a têm, como acontece nas sociedades comerciais, é a sociedade em si que tem o património –
ou seja, o conjunto de situações jurídicas ativas e passivas avaliáveis em dinheiro. O património
pertence, assim, à sociedade comercial de forma mimética de como acontece com as pessoas
singulares. Já quando as sociedades não têm personalidade jurídica, o património pertence aos sócios
– sendo esta propriedade regida não através das leis da compropriedade, mas sim das regras da
comunhão societária. Mais uma vez, só extinta a sociedade, se extingue este património comum.
Por fim, os baldios também se afiguram como uma situação de contitularidade, sendo terrenos
detidos e geridos por comunidades locais (sendo mais predominantes no mundo rural).

Notas finais
Conclui-se, assim, que a compropriedade é uma situação jurídica ativa e isolada – diferente
das comunhões que, incluindo os baldios, são patrimónios autónomos: isto é, são um conjunto de
situações jurídicas ativas e passivas com carácter patrimonial, afetas a uma finalidade especial
(património de afetação).
No entanto, denota-se que o regime da compropriedade continua a ser subsidiariamente
aplicável às comunhões (artigo 1404º CC). O que acontece frequentemente, contudo, é que os
regimes específicos destas formas são incompatíveis com as da compropriedade – por exemplo, a
regra de que não é possível alienar a quota enquanto a relação conjugal existir choca com o direito à
alienação da compropriedade. Assim, apenas na parte em que não houver regras especiais, as regras
da compropriedade podem ser subsidiariamente aplicáveis.
Destaca-se, por fim, a distinção entre a cotitularidade ou compropriedade humana e a comunhão de
origem germânica. Na comunhão germânica, não existe uma mera situação pontual, mas, sim, um
laço anterior – nomeadamente, uma finalidade superior que é prosseguida por um conjunto de pessoas
que, para tal, juntou um património comum. Mais tarde, entendeu-se, então, que esse grupo de
pessoas passava a ser visto como uma pessoa coletiva, com o seu próprio património.

Defesa da Propriedade
Este tema convoca, sobretudo, a oponibilidade erga omnes/o lado externo dos direitos reais –
estando previsto no artigo 1311º CC. Aqui, existem duas figuras: a defesa judicial e a ação direta
(artigo 1314º CC).
Relativamente à ação direta, a regra geral é a de inadmissibilidade da mesma. Esta só poderá,
então, ser usada (de forma proporcional) caso seja necessário, na existência de uma lesão atual e
eminente ou um risco que esta se concretize. Ou seja, se não for estritamente necessário agir para
prevenir aquela lesão, recorre-se não à ação direta, mas sim à defesa judicial, chamando-se a polícia
ou indo a tribunal.
Relativamente, então, à defesa judicial, esta é a figura mais importante. Especificamente,
dentro desta, dá-se enfase à ação de revindicação, um pedido condenatório previsto no artigo 1311º
CC: permite-se a restituição da coisa (estatuição normativa) a alguém, se esse alguém comprovar o
seu direito de propriedade da mesma (previsão normativa) – pelo que a existência desse direito de
propriedade em primeiro lugar é um requisito normativo.
No entanto, a prova da propriedade pode ser complexa. Existem, por isso, duas presunções de
propriedade: registo e posse, já antes falados. No entanto, se a prova não puder se feita por presunção,
diz a jurisprudência uniforme que será necessário o interessado fazer prova de uma aquisição
originária. Ou seja, não existindo presunção de propriedade, não basta alegar uma aquisição derivada
(ex: comprou a coisa) – é necessário alegar factos que possibilitem uma aquisição originária, como o
usucapião (ex: comprou a coisa a J e, entretanto, já tem a sua posse há 15 anos).
➔ Este regime, assim como o da ação direta, são aplicáveis, mutatis mutandis, à defesa de todos os
direitos reais – artigo 1315º CC.
Podem, no entanto, existir outros tipos de ação judicial, que não a ação de revindicação. Para além de
pedidos de condenação, são possíveis ações meramente declarativas: ou seja, em que se pede para
declarar X como proprietário, não existindo outras pessoas que têm o direito ao usufruto, etc. – ações
de simples apreciação negativa. No entanto, é sempre melhor pedir uma ação condenatória, do que
uma ação declarativa, dado que a declarativa, por si, não faz nada para a restituição da coisa.
Ir-se-á, mais à frente, estudar os meios de defesa da posse – sendo que os proprietários são
quase sempre possuidores, assim como titulares de outros direitos reais como o do usufruto. Significa
isto que, na realidade prática, para além da defesa da propriedade através da ação de revindicação
(aplicável também aos direitos reais menores), é possível, também, aplicar os meios de defesa da
posse (ex: proteção cautelar) – tanto de forma alternativa ou complementar.

Expropriação
A matéria da expropriação convoca não apenas o CC (artigos 1308º e ss.), mas, também, o
artigo 62º CRP, que consagra uma proibição de expropriação sem justa causa e sem
indemnização. Isto, porque os direitos fundamentais são direitos que atuam tanto no confronto com
o Estado – limitando o poder político face ao cidadão –, como no confronto perante outros cidadãos,
tendo uma eficácia horizontal. Ora, no caso da expropriação, esta proibição constituição encaixa-se
na primeira situação, tendo um conteúdo meramente negativo – imunidade face ao Estado.
Existem dois conceitos de expropriação: expropriação em sentido amplo, e expropriação em
e o sentido restrito. Em sentido amplo, expropriação abarca qualquer modo de privação de um direito
patrimonial. Já em sentido estrito, expropriação será aquela que tiver uma utilidade pública, no
sentido de existir um modo específico (e não qualquer modo) para a fazer. Dito de outra forma,
distingue-se, por um lado, um direito que alguém tem sobre um imóvel, com a sua oponibilidade erga
omnes; e, por outro lado, a constituição de um direito público sobre um imóvel, com base num
interesse de utilidade pública.
Ora, para efeitos da Cadeira, interessa a expropriação em sentido amplo de coisas corpóreas.
Assim, neste sentido, a expropriação abarca, ainda, o confisco – expropriação com carácter
sancionatório, que apaga o direito a indemnização –, e a requisição – privação temporária do exercício
dos poderes relativos (artigo 1309º CC). Abarca, também, a perda dos instrumentos do crime para o
Estado, sendo isto visto em Direito Penal como uma sanção penal acessória; e, ainda, a nacionalização
das empresas com maior valor económico.
De qualquer das formas, o importante a retirar é que estas são limitações potenciais ao direito de
propriedade: os proprietários ficam sujeitos a verem os objetos dos seus direitos expropriados,
nacionalizados ou requisitados, independentemente de qualquer ato ou omissão.

DIREITO DE PROPRIEDADE SOBRE IMÓVEIS


Noções Civilísticas vs. Noções Fiscais
Em primeiro lugar, o artigo 203º CC faz uma distinção entre as coisas móveis e imóveis, sendo
que os critérios de classificação são dados no artigo 204º CC: por negativa, o que não for imóvel nos
termos deste artigo, é móvel. No entanto, estas definições não são únicas no ordenamento jurídico
português: as leis fiscais (CIMI) têm uma noção diferente daquela que é a noção civilística de móvel,
imóvel e prédios (CC).
Para o CC, um prédio é, então, uma parte delimitada do solo com todas as suas
construções. Esta definição não se retira expressamente do CC, mas sim das espécies que existem de
“prédio”. Nomeadamente, para o artigo 204º CC, coisas imóveis são os prédios rústicos e urbanos,
assim como as águas, árvores, arbustos e frutos naturais enquanto estiverem ligados ao solo
(encaixadas na definição, portanto); além das partes integrantes nestes prédios rústicos e urbanos (ex:
um edifício construído num prédio, com cimento e tijolo, é uma parte integrante do prédio).
Consequentemente, o nº2 faz uma subdistinção entre prédio rústico – “uma parte delimitada do solo
e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica” – e prédio urbano –
“qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro”. Ambos
prédios cabem na definição mais genérica de imóvel, como uma parte delimitada incorporada no solo.
O critério distintivo entre prédio rústico e urbano é, assim, a autonomia económica: se existe um solo
com edifícios sem autonomia económica face ao mesmo, é rústico; se existe um edifício ou
construção com autonomia económica face ao seu solo, já é urbano – por exemplo, uma parcela de
terreno no meio de Lisboa, apta para construção (com licença), mas ainda sem nenhuma feita, é um
prédio rústico, visto que não existe qualquer edifício autónomo ao solo.
Já para as leis fiscais, as definições existentes vão adaptar-se à tentativa de obter mais
impostos. Por exemplo, em termos fiscais, a mesma parcela de terreno no meio de Lisboa será um
prédio urbano, e não rústico, e, consequentemente, apto a pagar mais IMI – isto porque, como está
no meio de Lisboa, irá ter mais valor económico, mesmo que ainda não tenha construções.
Assim, o artigo 2° do Código Fiscal parece adotar uma noção mais ampla de prédio que a do CC. As
definições que o mesmo código dá de “prédio urbano” e de “prédio rústico” (artigos 3° e 4º) não
coincidem com as do CC – sendo de realçar que delas resulta que, para efeitos de tal diploma, são
prédios urbanos os terrenos para construção (artigo 6º). Por exemplo, uma caravana que fica no
mesmo sítio durante muito tempo é uma construção não incorporada no solo, que está em
permanência no meio – pelo que, a níveis fiscais, já é considerado uma coisa imóvel e, mais
especificamente, um prédio urbano. No entanto, a nível civilístico, a caravana é uma coisa móvel, e
o solo, em si, já é um prédio rústico.
Mais especificamente, a classificação fiscal é tripartida: existem prédios rústicos, urbanos e mistos,
classificados sobretudo em função da sua utilidade económica. A categoria mista é desconhecida ao
CC: são mistos, para efeitos do CIMI, os prédios com partes rústica e urbana em que nenhuma das
partes possa ser tida como principal (artigo 5°, nº2).
De qualquer das formas, os prédios estão sujeitos a registo predial: um registo dos direitos
privados estudados em Direitos Reais. No entanto, existe, além disso, uma base de dados equivalente
a esta, mas ao nível da entidade fiscal, chamada de matriz predial – sendo que este registo fiscal
assenta, pois, sobre conceitos diferentes dos conceitos civilísticos, vistos no registo predial. Existe,
ainda, um terceiro registo dos prédios feito pelo Ministério Público, que coordena a administração do
território, com o objetivo de ordenar o mesmo.
A situação ideal seria haver um único registo com dados coerentes, e não três com dados diferentes e
incoerentes com a realidade: na vida prática, quando é necessário fazer transações com imóveis, é
preciso, por um lado, recolher dados do registo predial – com a delimitação civilística do prédio, ou
seja, recebendo informação sobre se o prédio é rustico ou não, de acordo com a noção civilística –;
mas, por outro lado, é necessário também recolher dados relevantes para a noção fiscal desse mesmo
imóvel. Isto é, no entanto, um problema de política pública, de acordo com Caetano Nunes.

“Extensão espacial” do direito de propriedade


De acordo com a noção secular (na Idade Média), o limite do direito de propriedade seria “o
céu e o inferno”. No entanto, e mesmo enquanto metáfora, a imagem nunca foi adequada: o espaço
aéreo, enquanto tal, por exemplo, não é suscetível de apropriação – apenas é suscetível de
preenchimento. Ou seja, de acordo com a conjugação do CC com as regras de direito público e da
CRP, há um domínio público do espaço aéreo e do subsolo.
Mais especificamente, o artigo 84º, nº1 da CRP estabelece que pertencem ao domínio público: 1)
as camadas aéreas superiores ao território acima do limite reconhecido ao proprietário ou
superficiário; e 2) os jazigos minerais, as nascentes de água mineromedicinais, as cavidades naturais
subterrâneas existentes no subsolo, com exceção das rochas, terras comuns e outros materiais
habitualmente usados na construção.
É, então, evidente que existe um problema de extensão física do direito de propriedade,
colocado por esta necessidade de o compatibilizar com as normas que atribuem ao domínio público
o espaço aéreo e partes do subsolo. O CC, no seu artigo 1344º CC, não fixa limites à extensão física
do direito de propriedade, estabelecendo apenas (nº1) que a propriedade dos imóveis abrange o espaço
aéreo e o subsolo correspondentes à superfície, com tudo o que neles se contém, e que não esteja
desintegrado do objeto do direito por lei ou por negócio jurídico. No entanto, e como se acabou de
ver, o artigo 84º, nº1 da CRP praticamente esvazia o conteúdo deste artigo 1344º CC.

O Ius Aedificandi ou Direito a Construir


O direito a construir compreende não só a faculdade de construir, mas também a de levar a
cabo os atos jurídicos e operações materiais prévias à construção – por exemplo, o loteamento e
a realização de infraestruturas urbanísticas. Como é sabido, porém, a faculdade de edificar é hoje
fortemente limitada pelas regras sobre ordenamento do território, especialmente pelas regras
urbanísticas. Nomeadamente, a realização de operações urbanísticas (ressalvadas as de pequena
monta) por particulares depende de prévia licença ou autorização administrativas.
Assim, praticamente todos os diplomas de direito urbanístico versam sobre o direito a
construir. O enquadramento constitucional deste direito é o ordenamento do território, uma das
atribuições do Estado; assim como a proteção do meio-ambiente, outro vetor essencial das
atribuições do Estado. Significa isto que, mesmo fora das áreas urbanas, os regimes de proteção do
ambiente (nomeadamente, a reserva agrícola ou a reserva ecológica nacional) também terão de ser
acondicionados, o que delimita a possibilidade de construir pelo proprietário. Concluindo, se é
verdade que o artigo 62º CRP garante o direito de propriedade privada – o que implica a atribuição
de um núcleo tendencialmente rígido de poderes aos proprietários –, não é menos verdade que o artigo
65º, nº4 CRP atribui ao Estado, às regiões autónomas e às autarquias locais o poder-dever de definir
as regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos.
Devido a isto, ao nível do direito privado, existe uma querela doutrinária e jurisprudencial
sobre o direito de construir. Uma parte da doutrina (Freitas do Amaral, Marcelo Rebelo de Sousa e
João Caupers) defende que o direito a construir é uma faculdade do direito de propriedade,
integrando a proteção constitucional desse direito – pelo que as licenças administrativas delimitam
tal faculdade. Destaca-se, dentro desta, o efeito sistémico da propriedade privada: nomeadamente, a
propriedade privada faz com que possa haver empresas privadas, existindo, com isso, riqueza
suficiente para gerar mais receitas estaduais e, consequentemente, mais serviços públicos (ideia de
que o direito de propriedade decorre do direito público e é-lhe congénito). Já outra parte da doutrina
(Sérvulo Correia, Bacelar Gouveia, Gomes Canotilho e Vital Moreira) defende que direito a
construir apenas resulta ou deriva da licença administrativa – no sentido em que, sem elas, não
há direito a construir.
A primeira posição doutrinária segue claramente o ponto de vista ideológico que defende mais a
propriedade enquanto direito humano sagrado; enquanto a segunda dá uma maior prevalência à
proteção do ambiente e ao ordenamento do território, quando em confronto com a propriedade
privada. Ora, atualmente, estes vetores passaram a fazer parte do elenco dos direitos fundamentais
constitucionais, pelo que existe uma tendência (até jurisprudencial, do TC) de, numa lógica de
confronto, desvalorizar o direito de propriedade privada.
➔ A discussão deste problema põe a claro as limitações de uma abordagem dos Direitos Reais
exclusivamente baseada no CC: não só a legislação ordinária se tem tornado cada vez mais
relevante, como as alterações do enquadramento constitucional têm repercussões irrefragáveis.
Há, no entanto, algum espaço para tentar aprofundar a jurisprudência do TC e revistar este
tema, através de uma leitura mais tipológica do tema. Ou seja, há espaço para substituir esta visão
“preto ou branco” – na medida em que ou se considera a propriedade como sagrada, o que implica a
existência do direito a construir; ou se considera a que propriedade não envolve a faculdade de
construir, só existindo esse direito se existir uma licença a construi – por uma noção intermédia que
envolve os tipos de propriedade que estejam em causa. Dito de outra forma, há certas situações em
que o direito de propriedade terá de ser mais acomodado, enquanto outros não, tendo, por isso, de
existir uma leitura intermédia do mesmo, em função dos vários tipos sociológicos da propriedade que
está em causa.
Para Rui Pinto Duarte, é duvidoso que seja possível dar uma resposta universal a este problema da
variabilidade do conteúdo do direito de propriedade: se, por exemplo, o direito de propriedade sobre
um prédio no centro de Lisboa, no qual há muitos anos existe um edifício, compreende certamente as
faculdades de manter a construção e de a reconstruir; o mesmo já não é verdade para o direito de
propriedade sobre um prédio rústico, que esteve sempre afetado à atividade agrícola.
Por isso, numa leitura mais aprofundada deste problema, deve-se ter em conta, por um lado, o
princípio da igualdade; e, por outro, o interesse público, no sentido de não permitir uma “selva
urbana”. Ou seja, se existe um terreno em malha urbana, não faz sentido retirar completamente o
direito a construir ao proprietário – pelo contrário, numa malha urbana, mesmo sem licença, tem de
haver proteção constitucional para construir, sob pena de desigualdades de tratamento dos cidadãos.
Não faz sentido que o A possa construir à vontade; enquanto o B tem de suportar os encargos
resultantes da qualidade do ambiente e do direito do urbanismo. Assim, tal proteção constitucional
deve ser traduzida numa indemnização para B, por ter suportado encargos públicos e ter sido limitado
no seu direito a construir. Concluindo, não faz sentido dizer que não há nenhuma faculdade de
construir – no limite, a pessoa terá de ser indemnizada por ter visto o seu direito limitado em
relação aos demais direitos dos cidadãos. Ou seja, o pressuposto da indemnização é a existência do
direito a construir, que foi limitado (e não criado pela licença de construir – ou, neste caso, pela não
existência da mesma).

Relações de Vizinhança (artigos 1346º e ss. CC)


Introdução
O regime jurídico das relações de vizinhança entre proprietários de prédio de imóvel fala, por
um lado, dos limites físicos dos prédios; e, por outro, dos limites às atividades desenvolvidas nos
prédios, para não prejudicar os vizinhos. Ao falar-se em vizinhança, não se está, assim, a abranger
apenas situações de contiguidade, mas também todas aquelas em que as atividades levadas a cabo
num prédio podem influenciar o exercício de poderes sobre outros. Retira-se deste regime e dos seus
limites, então, que a propriedade não é ilimitada.
➔ Na vida prática, os temas resolvidos pelas relações de vizinhança são temas que também podem
convocar outros institutos jurídicos: nomeadamente, o abuso de direito ou de atos emulativos –
atos dolosos, feitos só para prejudicar a outra pessoa (ex: um proprietário tem um vizinho que pôs
umas estacas para os dirigíveis não passarem na sua propriedade).
o Para além do instituto de abuso de direito, existe, também, caminho da aplicação horizontal
dos direitos fundamentais: ou seja, de recorrer à ideia de prejuízo para direitos fundamentais,
de forma a contestar alguma coisa feita pelo vizinho – por exemplo, A pode dizer que B
construiu demasiado alto, o que traz demasiada sombra à sua propriedade e,
consequentemente, prejudica o seu direito à saúde.
Utiliza-se, neste contexto, por vezes, a definição de “relações jurídicas reais” por Oliveira
Ascensão: apesar de os direitos reais, por terem carácter absoluto, não envolvem relações específicas,
(como acontece nos direitos de créditos, por exemplo), é verdade que, no âmbito de direitos reais,
surgem relações de vizinhança – daí tal expressão. Esta ideia de relações jurídicas reais, no entanto,
não é muito interessante, podendo mesmo ser incorreta, visto que, quando se fala dos limites aos
direitos de propriedade por força das relações de vizinhança, não se fala de uma estrutura obrigacional
– mas, sim, de limites aos direitos absolutos de propriedade. Dito de outra forma, as relações de
vizinhança não implicam que um vizinho tem um direito em relação ao vizinho do lado, podendo
exigir ao mesmo, porque não há uma estrutura obrigacional – o que há é uma limitação a um direito
real, sem uma prestação creditícia.
Por exemplo, o artigo 1348º CC diz que o proprietário tem o direito de fazer minas e escavações, mas
não pode, com elas, privar os vizinhos do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou
deslocações (nº1). Ora, existe, aqui, uma primeira delimitação positiva do direito de propriedade
enquanto direito absoluto; mas, num segundo momento, existe uma delimitação negativa do conteúdo
desse direito de propriedade – ele está impedido de fazer escavações no seu prédio, se elas puserem
em causa o prédio de outrem. No entanto, o vizinho do lado não tem, com isto, uma pretensão
creditícia: o dever de indemnizar aqui falado (nº2) só aparece, porque se fala de uma obrigação
propter rem.
➔ Este exemplo é paradigmático, visto que neste tema das relações de vizinhança, o que costuma
existir são limitações aos direitos absolutos, e não obrigações propter rem. Por isso, a ideia de
Oliveira Ascensão de estarem em causa relações jurídicas reais não é muito acertada.
o A doutrina discute a natureza das obrigações resultantes das obrigações de vizinhança. A
verdade, porém, é que não parece possível conduzir a uma só categoria as várias situações
que se incluem nas mesmas: há casos de obrigações de facere, casos de obrigações de non
facere, e até casos de servidões.
Estes limites ao direito de propriedade em função dos vizinhos são um instituto próximo, mas
diferente, das servidões prediais. Quando há uma servidão predial de passagem, existem três direitos
em jogo: 1) o direito de propriedade do prédio encravado, 2) o direito de propriedade do proprietário
vizinho, e 3) o direito real de servidão de passagem, na esfera jurídica do proprietário encravado. Ora,
nas relações de vizinhança, este direito real de servidão não existe: apenas existem os dois direitos de
propriedade. Dito de outra forma, as servidões prediais constituem um direito real autónomo, que
constrange o conteúdo típico de um direito de propriedade; já as relações de vizinhança não passam
de elementos integrantes (normais) do direito de propriedade sobre prédios.
Denota-se, ainda, que as regras a ser, aqui, estudadas, têm um caráter tradicional, no sentido
de as suas origens serem remotas, e de estarem ligadas a relações sociais antigas (e, por vezes, tidas
por antiquadas). Por exemplo, a regra quanto aos limites a construções em função das relações de
vizinhança (artigo 1360ºCC) determina que o proprietário pode construir uma janela ou porta no seu
edifício, desde que fique num intervalo de um metro e meio – no entanto, este artigo acaba por não
ser aplicado, visto que existem, quase sempre, limites à construção muito mais intensos do que estes,
descritos no direito de urbanismos. Outro exemplo será o artigo 1346º CC, quanto à emissão de fumo
e produção de ruídos: os números previstos relacionam-se com o que era considerado saudável à data
de redação do CC, em 1966 – havendo, atualmente, até um ramo de direito público que tem a ver
especificamente com a poluição sonora.
Esta dimensão tradicional tem repercussões algo contraditórias: por um lado, como se viu, faz com
que algumas regras se mostrem pouco úteis, dado serem superadas, na sua eficácia prática, por regras
administrativas; por outro lado, essas regras estão abertas a novas aplicações, apropriadas aos
problemas atuais, nomeadamente os relativos à proteção do ambiente. Assim, em rigor, grande parte
das situações previstas no CC acabarão por ser reguladas por outras áreas do direito público.
Por fim, realça-se que estas regras de vizinhança são aplicáveis a prédios rústicos – sendo
que existirão regras semelhantes para situações dentro da propriedade horizontal, em meios urbanos.
No entanto, e no que toca às regras sobre a emissão de fumo especialmente, deverá ser feito um
esforço de interpretação extensiva para estas valerem para estes meios urbanos.
NOTA: Antes de entrar na referência às situações previstas na lei portuguesa, vale, ainda, a pena citar
o agrupamento das formas de regulação das relações de vizinhança, apresentado por António
Gambaro, nomeadamente: 1) regras sobre emissões; 2) regras sobre distâncias; 3) regras sobre
comunhão; e 4) cláusula geral proibitiva do abuso de direito.

Direito de demarcação
Uma das faculdades tradicionalmente compreendidas no direito de propriedade sobre o prédio
é a de demarcação: ou seja, o proprietário tem direito a exigir o concurso dos proprietários
confinantes para a demarcação (artigo 1353º CC).Pressupostos da demarcação são, pois: 1) a
existência de dois ou mais prédios contíguos; 2) a sua pertença a titulares diferentes; e 3) a existência
de dúvidas ou divergências quanto às suas linhas divisórias.
Enquanto operação material, a demarcação consiste em colocar sinais permanentes (marcos
ou outros) das linhas divisórias de prédicas contíguos. Na prática, demarcar implica meter marcos na
extrema da propriedade, assim como testemunhas de marco – ou seja, pedras que se colocam à volta
do marco para que, se este for desviado, nota-se.
A demarcação faz-se em processo judicial, apesar de poder ser amigável. A base da
demarcação é constituída pelos títulos de cada proprietário e, na falta ou insuficiência deles, pela
posse – ou ainda, subsidiariamente, por outros meios de prova (artigo 1354º, nº1 CC). É de notar,
assim, que a ação de demarcação não se pode destinar a alterar a demarcação feita extrajudicialmente
(ou seja, por acordo) – apenas pode proceder à demarcação que não seja viável por acordo, no sentido
em que não existe uma demarcação feita anteriormente por acordo. Assim, se um proprietário quiser
alterar uma demarcação feita extrajudicialmente, terá de invocar outro direito (e, eventualmente,
intentar a correspondente ação) – por exemplo, o de anulação do negócio jurídico de demarcação
celebrado. Por outro lado, é de frisar que a ação de demarcação pressupõe que ambas as partes estejam
de acordo quanto a serem proprietários confinantes, divergindo apenas quanto à linha divisória.

Direito de tapagem
Outra das faculdades tradicionalmente reconhecidas ao proprietário é a de tapar, no sentido
de marcar, valar, rodear de sebes e praticar atos análogos no seu prédio. O CC consagra essa
faculdade, limitando-a no que respeita às valas, no seu artigo 1357º; e às sebes vivas, no nº1 do seu
artigo 1359º. Por outro lado, estabelece, ainda, certas presunções de comunhão das valas e sebes
divisórios: nomeadamente, no nº2 do artigo 1359º, e no artigo 1358º – se o proprietário puser vala ou
regueira, esta tem de ter certas características; caso contrário, presume-se que essa área é comum (ou
seja, é necessário que isto seja feito de forma a se perceber bem se a mesma ainda pertence ao prédio
do proprietário, ou se já pertence ao do vizinho).

Direito de plantação
O direito de plantação implica a permissão de plantação de árvores e arbustos até à linha
divisória dos prédios, nos termos do artigo 1366º, nº1 CC – incluindo-se, aqui, as raízes, troncos e
ramos invasores. Quanto às árvores de fruto, contrariamente ao que acontece noutras ordens jurídicas,
o dono da árvore não perde a propriedade sobre os frutos, ainda que estes caiam no terreno do vizinho.
Regra geral, a plantação de sebes vivas nas extremas é proibida, salvo se previamente se
colocarem marcos divisórios, nos termos do artigo 1359º, nº1 CC. Existem, ainda, outros aspetos
sobre este assunto – por exemplo, o artigo 1369º CC indica que as árvores ou arbustos que servem de
marcos divisórios apenas podem ser arrancados por acordo das partes.

Outras situações previstas na lei


Relativamente às emissões (artigo 1346º CC), o proprietário pode-se opor à emissão de fumos,
fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e a outros fatores
semelhantes, provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos importem prejuízo substancial
para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanem. Esta é
uma das situações em que se pode falar da aplicação horizontal dos direitos fundamentais.
Relativamente às instalações prejudiciais (artigo 1347º CC), o proprietário não pode
construir nem manter no seu prédio quaisquer obras, instalações ou depósitos de substâncias
corrosivas ou perigosas, se for de recear que possam ter sobre o prédio vizinho efeitos nocivos
não permitidos pela lei (nº1). Dado que basta, aqui, o receio, existe a possibilidade de providências
cautelares preventivas; no entanto, para situações em que se pretende proteger a saúde, por exemplo,
será mais eficaz pôr em causa a tutela dos direitos fundamentais – nomeadamente, o direito à saúde.
➔ Remete-se, aqui, para o direito público, nomeadamente quanto às “condições especiais prescritas
na lei” (nº2).
Relativamente às escavações (artigo 1348º CC), estabelece-se que a faculdade de abrir minas
ou poços e de fazer escavações tem como limite não privar os prédios vizinhos do apoio necessário
para evitar desmoronamentos ou deslocações de terra. Além disso, os lesados por infração de tal
limite têm direito a ser indemnizados pelos danos daí resultantes, mesmo que tenham sito tomadas as
precauções julgadas necessárias (nº2) – ou seja, existe aqui um regime de responsabilidade civil
objetiva, não sendo necessário que a pessoa tem atuado com culpa.
Relativamente ao regime de passagem forçada momentânea (artigo 1349º CC), os donos
dos prédios são obrigados a consentir ao acesso de terceiros aos seus prédios nas seguintes situações:
1) indispensabilidade de, para reparar algum edifício ou construção, neles levantar andaime, neles
colocar objetos ou de por eles fazer passar materiais ou praticar outros atos análogos (nº1); ou 2)
recolha por terceiros de coisas suas que acidentalmente neles se encontrem (ex: bola, roupa, etc.) –
podendo, porém, os donos impedir o acesso desde que entreguem tais coisas aos proprietários das
mesmas (nº2).
Relativamente ao escoamento natural das águas, os donos dos prédios inferiores estão
sujeitos a receber as águas que para eles correm dos prédios superiores, incluindo a terra e os
entulhos arrastados (artigo 1351º, nº1 CC). Assim, os donos dos prédios inferiores não podem fazer
neles obras que estorvem este escoamento (nº2); enquanto os donos dos prédios superiores não podem
fazer neles obras que agravem o escoamento (nº3). Além disso, também não são permitidas
obras/construção que impeça a escoação das águas do vizinho – obras defensivas das águas (artigo
1352º CC).
Relativamente à restrição à abertura de rasgões ou de plataformas em edifícios (artigos
1360º e 136º CC) em função da proximidade de outro prédio, o CC não impede que se construa até
às estremas dos prédios – esta restrição terá, então, o intuito de limitar a indiscrição. Isto será muito
pouco útil atualmente, mais uma vez devido à existência do direito do urbanismo – sendo que, em
caso de violação, poderá haver, ainda, a aquisição de uma servidão de vistas por usucapião.
Uma servidão de vistas é aplicável nas situações em que existe uma janela demasiado próxima do
vizinho, que faz com que o proprietário tenha uma vista desafogada para a propriedade desse vizinho
e, consequentemente, esse vizinho tenha menor privacidade. Se, no entanto, a situação perdurar, o
vizinho fica impedido de construir, de forma a não prejudicar a vista que o proprietário adquiriu pela
consolidação do tempo.
Relativamente às paredes e muros de meação, previstas nos artigos 1370º a 1375º CC, são
mecanismos de delimitação das extremas dos prédios – sendo que existem regras para construção do
muro, sob pena de se presumir que tais construções são comuns.
Já a questão da ruína de construção, regulada no artigo 1350º CC, atualmente tem uma
relevância prática quase insignificante. De qualquer das formas, se o edifício oferecer perigo por ruir
(artigo 1350º CC), é lícito ao proprietário deste exigir da pessoa responsável pelos danos as
providências necessárias para eliminar o perigo – este não é, então, um regime indemnizatório, mas
sim meramente preventivo.

Acessão Imobiliária
A Acessão é uma forma de aquisição originária do direito de propriedade, caracterizada por
dois requisitos: 1) a incorporação de certa coisa noutra, e 2) a diversidade de titulares. Dito de outra
forma, o fenómeno da incorporação resulta de se ter duas coisas distintas, cada uma do seu dono, e
uma integrar-se ou ser integrada na outra, passando ambas a pertencer ao mesmo dono (artigo 1325º).

Tipos de acessão
Existem dois tipos de acessão: acessão mobiliária e acessão imobiliária. Além disso,
distingue-se, nos termos do artigo 1326º, nº1 CC, a acessão natural (artigos 1327º a 1332º CC) e a
acessão industrial (artigos 1339º a 1343º CC).
Relativamente à acessão imobiliária natural, esta resulta exclusivamente das forças da
natureza. Os casos mais relevantes são os da aluvião (artigo 1328º CC) e da avulsão (artigo 1329º
CC) – por exemplo, se uma enxurrada levar pedras do quintal de A para o quintal do seu vizinho B,
este passa a ser o proprietário delas. No entanto, a acessão imobiliária natural tem uma relevância
prática muito diminuída.
Relativamente à acessão imobiliária industrial, esta dá-se quando, por facto do homem, se
confundem objetos pertencentes a diversos donos; ou quando alguém aplica o trabalho próprio a
matéria pertencente a outrem, confundindo o resultado desse trabalho com propriedade alheia.
Existem, assim, quatro casos de acessão imobiliária industrial, sendo que o mais relevante será
perceber quem fica com as obras ou com o prédio – ou seja, se o proprietário fica com as obras ou se
o construtor fica com o solo.

1. Obras com materiais alheios, em terreno próprio:


Relativamente ao artigo 1339º CC, este fala, na sua previsão normativa, de obras, sementeiras
ou plantações com materiais alheios. Ora, esta previsão descreve três elementos essenciais, sendo que
o terceiro deve ser deduzido, nomeadamente: 1) obras, sementeiras ou plantações; 2) com materiais
alheios; e 3) em terreno próprio. A estatuição normativa, por sua vez, será, a aquisição originária da
propriedade sobre os materiais, sementeiras ou plantações, por parte de “aquele que construir” – ou
seja, o autor da incorporação, que é simultaneamente o proprietário do prédio (não se especificando
é um empreiteiro, por exemplo).
Por exemplo, A é proprietário de um prédio, e utiliza materiais do vizinho B para fazer uma
construção nesse seu prédio. Aqui, A acaba por adquirir os materiais utilizados, sem o pagamento do
valor respetivo – sem prejuízo da indemnização a que haja, eventualmente, lugar. Isto, porque não
faria sentido que A, simultaneamente dono do terreno e construtor, tivesse de destruir a sua
construção; mas também não faria sentido A ficar com os materiais de B, sem que este obtivesse
qualquer tipo de compensação.
2. Obras feitas com materiais alheios, em terreno alheio:
Relativamente ao artigo 1342º CC, fala-se em casos de as obras, sementeiras ou plantações
serem feitas com materiais alheios em terreno alheio, estabelecendo que, neste caso, cabem ao dono
dos materiais os direitos conferidos no artigo 1340º CC ao autor da incorporação, esteja este de boa
ou má-fé. Assim, a acessão será a favor do proprietário do prédio, visto que, não sendo nada do
construtor do edifício, este não fica com nada – isto, se não se verificarem os requisitos do artigo
1340º CC.
Contudo, havendo culpa do dono dos materiais, o seu direito é, apenas, o de receber o valor
dos mesmos, segundo as regras do enriquecimento sem causa – tendo, ainda, este de repartir o valor
a receber com o autor da incorporação, em função do valor relativo da mão-de-obra e dos materiais,
tal como estatui o nº2 do artigo 1342º CC.

3. Prolongamento de edifício por terreno alheio:


Relativamente ao artigo 1343º CC, este consagra a hipótese de prolongamento de edifício por
terreno alheio. Este é um caso que caberia, à partida, nos artigos 1340º e 1341º CC – mas acaba por
ser um caso especial, visto que apenas parte do edifício ocupa terreno alheio. Ou seja, encaixam, aqui,
as situações em que alguém, no decurso da construção em terreno próprio, prolongar, de boa-fé, o
seu edifício por uma parcela do terreno alheio.
Assim, se decorrerem três meses ou mais sem que o proprietário do terreno ocupado se oponha
o construtor pode adquirir, por acessão, a propriedade da parcela em causa, pagando o respetivo valor
e reparando o prejuízo causado – nomeadamente, o correspondente à depreciação do resto do terreno.
Se, por outro lado, o proprietário do terreno ocupado se opuser no prazo em causa, parece, a contrário
sensu, que o construtor fica obrigado a destruir o que tiver edificado, como defende Rui Pinto Duarte.

4. Obras com materiais próprios, em terreno alheio:


Relativamente aos artigos 1340º e 1341º CC, estes tratam de obras, sementeiras e plantações
em que os materiais são próprios e o terreno é alheio – ou seja, é o proprietário dos materiais que os
usa, mas fá-lo num prédio que não lhe pertence. Nestes casos, o legislador optou por distinguir os
casos em que o construtor está de boa-fé, dos casos em que está de má-fé, o que significa que a
previsão passa a ter quatro elementos: 1) obras, sementeiras ou plantações; feitas 2) com materiais
próprios; 3) em terreno alheio; 4) de boa ou má-fé.
➔ Mais especificamente, o artigo 1340º CC tem os seguintes elementos na sua previsão normativa:
1) incorporação; 2) diversidade de titulares; 3) a existência de um imóvel; 4) a boa-fé e 5) a
superioridade do valor. Em relação à estatuição normativa, poder-se-á acrescentar a compensação
(direito do dono do terreno); assim como a extinção da propriedade primitiva, que é um efeito
espelho do efeito principal da aquisição da propriedade pelo dono da obra.
Assim, se estiver de má-fé, o proprietário do prédio tem uma escolha: ou escolhe desfazer a
obra e restituir o terreno ao seu primitivo estado, à custa do autor dela; ou, se preferir, adquire a
propriedade das coisas móveis e imóveis – ou seja, fica com a propriedade da obra, sementeira ou
plantação, existindo uma aquisição originária dos materiais por parte do outro. Já nos casos de boa-
fé, existem duas soluções possíveis: 1) se os materiais e o edifício colocado no solo alheio tiverem
um valor inferior ao mesmo, os materiais ficam para o proprietário do solo, que adquire a sua
propriedade; 2) se o edifício já tiver um valor superior ao solo, o autor das obras já adquire,
originariamente, a propriedade do prédio (terreno) que era alheia.
Artigo 1340º CC – interpretação restritiva:
A título deste regime, importa discutir as situações em que existe boa ou má-fé. Existe boa-
fé, quando há desconhecimento que o terreno era alheio ou se foi autorizado pelo dono do terreno
(artigo 1340º, nº4 CC). Todas as hipóteses de boa-fé subjetiva devem ser interpretadas de forma
extensiva para o dever de conhecimento, e não apenas o desconhecimento, no sentido de boa-fé
subjetiva ética: ou seja, há má-fé quer conhecesse; quer não conhecesse, mas devia conhecer.
Sobre este regime, há que ter em atenção à existência do princípio superficies solo cedit: ou
seja, a superfície cede ao solo. Este é um princípio muito antigo, que se prende com o facto de que se
podem realizar as obras, sementeiras ou plantações que se quiser, mas o produto final dessa
construção pertencerá, sempre, ao proprietário do solo. Por outras palavras, tudo o que for
incorporado no solo e não puder de ele ser retirado, passa a pertencer ao proprietário do solo
– por exemplo, se A plantar milho no terreno do seu vizinho B, isso não faz com que A passe a ser o
proprietário do terreno; quanto muito, o seu vizinho B passa a ser dono do milho. Assim, na
generalidade dos casos de acessão imobiliária, quem fica proprietário é o dono do imóvel.
No entanto, existem algumas exceções a este princípio. Uma delas será no caso absolutamente
excecional de prolongamento do edifício por terreno alheio. Outra será no caso ditado no artigo 1340º
CC, nomeadamente na hipótese de haver boa-fé: segundo a estatuição normativa do nº1, será o autor
da incorporação que adquire a propriedade do prédio, através do fenómeno de adquirição de
propriedade da acessão. Assim, quem faz a obra é que adquire a propriedade do terreno, e não o
contrário – ou seja, não é o proprietário adquire as coisas que foram colocadas/incorporadas na
superfície do seu prédio.
Sendo uma brecha do princípio superfícies solo cedit, a doutrina sustenta várias interpretações
restritivas deste artigo para tentar diminuir o seu campo de aplicação. Isto porque, e tal como Rui
Pinto Duarte realça, tomado à letra, o alcance deste artigo é perturbador: sempre que alguém, de boa-
fé, construísse obra em terreno alheio, sendo o valor da obra maior que o do terreno, o autor da
construção adquiriria (ou poderia adquirir) o terreno. Assim, por exemplo, o arrendatário ou
comodatário que, autorizado pelo dono, construísse no terreno arrendado ou comodato adquiriria (ou
poderia adquirir) o terreno em causa, desde que o valor da construção fosse superior ao do solo.
Consequentemente, tais fenómenos de aquisição quebram a lógica da propriedade.
➔ Fazer uma interpretação restritiva significa adicionar mais pressupostos à previsão normativa,
diminuindo a aplicabilidade da norma em questão.
Ora, o primeiro critério a ser apresentado é o critério da relação jurídica anterior, defendido
por Pires de Lima e Antunes Varela. De acordo com esta tese, a norma não é aplicável quando haja
uma relação jurídica anterior com a coisa beneficiada. Por exemplo, se o arrendatário, empreiteiro,
comodatário tem a autorização do dono do prédio para fazer a obra nessas condições, este nunca
poderia adquirir por acessão, visto ter uma relação jurídica com a coisa beneficiada.
A linguagem, aqui, não é a mais precisa, dado que existem relações jurídicas entre pessoas e não com
coisas – mas esta é apenas uma incorreção terminológica: o autor da incorporação tem uma relação
jurídica anterior com o proprietário da coisa, e não com a coisa em questão. Para além disso, esta
linha da interpretação restritiva tem a seu favor uma interpretação sistemática da lei – nomeadamente,
do regime das benfeitorias, sendo o qual o possuidor, quando realiza determinadas benfeitorias na
coisa, pode ter de ser compensado pelas mesmas.
Assim, quando há uma relação jurídica anterior entre o autor das obras e o dono do prédio, a tendência
é para utilizar as normas sobre compensação de benfeitorias – e, por isso, deve-se afastar a aplicação
do artigo 1340º CC no confronto com tal regime. Poder-se-á, também, invocar o próprio princípio
superfície solo cedis, ajudando a argumentação desta tese.
O segundo critério, proposto por Manuel Rodrigues e Manuel de Andrade, é o chamado
critério clássico. Segundo esta tese, a acessão só ocorre se a obra realizada for inovadora e
transformadora da substância da coisa – por exemplo, uma obra que altere a atividade económica do
prédio, deixando de ser rústico e passando a ser urbano. Já no exemplo do arrendatário de um terreno
agrícola que constrói um edifício para guardar as alfaias, ainda se pode considerar que este se
enquadra na finalidade tradicional do terreno – e, por isso, não pode ser considerada como uma obra
inovadora. Por outro lado, se se construir uma moradia num prédio rústico, aí já se pode considerar
que este critério se encontra preenchido.
O ponto de apoio deste critério será o princípio superfícies solo cedit, mas, de resto, este não tem
apoio na lei.
Por fim, o terceiro critério, avançado por Rui Pinto Duarte, denomina-se de critério misto.
Este corresponde à conjugação dos outros dois critérios anteriores, existindo uma aplicação
cumulativa dos mesmos: isto porque, segundo o autor, embora, por vezes, estes sejam apontados
como incompatíveis, os dois caminhos para a interpretação restritiva parecem convergentes. Ou seja,
é possível entender que, para que a acessão tenha lugar, a obra tem de ser 1) transformadora; e, além
disso, 2) imputável a quem não tenha um determinado título para a realizar – por outras palavras, a
quem não tenha relação jurídica anterior com o proprietário do prédio.
Ora, se se olhar para a letra da lei, não se encontra apoio para esta interpretação restritiva. No entanto,
esta acaba por ser sustentada com o argumento do elemento sistemático, olhando para o regime das
benfeitorias e, ainda, para critérios de justiça, alicerçados no princípio superficies solo cedit.

Outras questões do regime


O objeto da acessão é o prédio total ou apenas a parcela beneficiada?
Existe uma querela jurisprudencial sobre qual é o objeto de acessão: nomeadamente, se este
será o prédio na sua totalidade, ou a parcela do prédio onde a obra foi construída. A letra da lei diz
que se adquire todo o prédio; no entanto, a jurisprudência maioritária diz que se adquire a
parcela do terreno onde a obra foi feita. Contudo, tal corrente jurisprudencial não tem apoio na lei;
além de que joga mal, do ponto de vista sistemático, com as regras de fracionamento que visam
impedir que se proceda a um excessivo fracionamento da propriedade.
Esta é uma dúvida que já não tem a ver com a previsão normativa, quanto às interpretações
restritivas; mas sim com a estatuição normativa. No primeiro caso, para efeitos de perceber a
superioridade do valor, compara-se todo o edifício com a obra construída, e não apenas com a parcela
do prédio que está imediatamente abaixo da obra, dado que é isso que resulta da letra da lei.

Há uma aquisição automática ou um direito potestativo?


Esta é uma questão relacionada com a estatuição normativa. Ora, para a escola de Coimbra e
para a letra da lei, a aquisição é automática. Já para a escola de Lisboa, assim como para a
jurisprudência maioritária, não existe uma aquisição pela mera construção da obra, por força da lei;
o que existe com esta é um direito potestativo, suscetível de exercício através de uma declaração
negocial – operando a transmissão da propriedade através do exercício desse direito potestativo.
➔ No entanto, e de acordo com o acórdão STJ de 4.4.95, um dos requisitos da aquisição do direito
ao todo será o pagamento do valor que o prédio tinha antes das obras, pelo autor destas (ele
“adquire a propriedade ..., pagando o valor ...”) – pelo que esse pagamento deve ser tido como
um dos “factos” de cuja verificação depende a aquisição do direito. Além disso, terá também de
se não mostrar razoável que o dono do terreno fique privado do respetivo direito de propriedade
sem estar pago o seu valor ou garantido, pelo menos, esse pagamento.

Qual o valor a pagar pela aquisição?


Tal questão tem a ver, novamente, com a estatuição normativa – nomeadamente, com o seu
elemento da compensação. Mais especificamente, questiona-se aqui se a compensação é aferida pelo
valor do imóvel anterior à obra; pelo valor de imóvel anterior, mas com uma atualização em
função da inflação e atualização monetária; ou, ainda, pelo valor atual do imóvel, já com a obra.
A mais correta parece ser a 2ª hipótese, especialmente porque compensar pelo valor da obra não faz
sentido, visto que a mesma não estava lá antes, e o proprietário primitivo não a fez voluntariamente.
Aliás, parece resultar do texto da lei que o valor a pagar é o do prédio antes das obras – sendo que
adicionar a variante da atualização monetária faz sentido, visto que as coisas vão valorizando (ou
desvalorizando) ao longo do tempo.

Atravessadouros e Caminhos Públicos


Os atravessadores e caminhos públicos são limitações à propriedade sobre prédios porque
permitem que terceiros (que não o proprietário) possam passar pelo prédio, contra vontade do
proprietário. Esta é, então, uma limitação do conteúdo que integra o direito de propriedade, já que
este é um direito de uso, fruição, etc.
No direito português vigente, as limitações deste tipo resumem-se às que revestem a natureza
de servidões: nomeadamente, às servidões de passagem – o que implica que, por exemplo, B tenha o
direito de passagem pelo prédio do A, para aceder à via pública. Esta servidão pode ser adquirida por
usucapião, por contrato, ou por imposição legal (nos casos de prédios encravados). Como já foi dito,
nestas situações, existem três direitos reais: 1) o direito de propriedade do B; 2) o direito de
propriedade do A; e 3) o direito real menor de servidão de passagem do B – que limita o prévio direito
de propriedade do A.

Ora, coisa diferente será a situação de haver terceiros que usem o prédio do A enquanto
atravessadores, sem haver uma servidão de passagem – sendo que, aqui, não existe um direito real.
Devido a isso, segundo o artigo 1383º CC, regra geral os atravessadouros são abolidos; no entanto,
de acordo com o artigo 1384º CC, existem algumas exceções a essa regra. Assim, os atravessadouros
reconhecidos são aqueles: 1) dirigidos a ponte ou fonte de manifesta utilidade, se não existirem vias
públicas destinadas à sua utilização e se tais atravessadouros tiverem origem imemorial; 2) aqueles
regulados em lei especial.
Já relativamente aos caminhos públicos, denota-se que existe um acórdão de uniformização
de jurisprudência de 1989 sobre caminhos públicos, segundo o qual os caminhos que são públicos
desde tempos imemoriais devem ser reconhecidos e limitar a propriedade. Assim, no fundo, são
abolidos todos os atravessadores (artigo 1383º CC), exceto nos dois casos descritos anteriormente –
e, ainda, no caso dos caminhos públicos. Ora, tal lógica faz tábua rasa do artigo 1383º CC, sendo
totalmente contra legem, no sentido de alargar as exceções a este fora daquelas expressamente
previstas no artigo 1384º CC.
De qualquer das formas, dentro desta lógica, tem sido discutido o que significa caminho público neste
sentido. Existem, aqui, duas correntes principais: segundo uma corrente jurisprudencial, devem ser
tidos como públicos todos os caminhos que estejam no uso direto e imediato do público desde tempos
imemoriais; enquanto outra corrente sustenta que só podem ser tidos como públicos os caminhos que
sejam coisas públicas – ou seja, que pertençam a entidades públicas.
➔ Esta segunda corrente é suportada pelo artigo 1383º CC, e pareceu ser a doutrina maioritária, a
partir do CC vigente. No entanto, STJ, no seu acórdão (assento) de 19.4.1989, perfilhou a primeira
corrente, estabelecendo que “são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no
uso direto e imediato do público, constando do acórdão respetivo a afirmação de que é suficiente
para que uma coisa seja pública o seu uso direto e imediato pelo público, não sendo necessária a
sua apropriação, produção, administração ou jurisdição por pessoa coletiva de direito público”.
o É importante não confundir os caminhos públicos ou atravessadouros com os bens de
domínio público, ou ainda com a propriedade pública: por exemplo, as estradas são bens do
domínio público, pelo que não se configuram como restrições ao direito de propriedade de
qualquer privado. Além disso, será possível fazer, aqui, uma analogia entre os caminhos
públicos e os terrenos baldios.
Concluindo, os atravessadores e caminhos públicos são, assim, limitações ao direito de
propriedade.

Fracionamento e Emparcelamento de Prédios Rústicos


O fracionamento e o emparcelamento, cujo regime se encontra na Lei nº 111/2015 – lei de
direito público, marcada pela necessidade de ordenamento do território, por razões de interesse
público – ocorrem quando existem prédios que não valem pelos edifícios. Mais especificamente, o
fracionamento é a divisão física de propriedade, sendo que a lei estabelece proibições ao mesmo;
enquanto o emparcelamento é a junção de dois ou mais prédios, sendo que a lei não tenta proibir,
mas sim promover o mesmo.
Tal enquadramento legislativo tem uma faceta história, dado que a tendência histórica mostra
que o fracionamento da propriedade tem efeitos negativos, diminuindo a viabilidade económica dos
prédios rústicos – por exemplo, se os prédios são destinados a floresta, e estes forem de dimensão
muito reduzida, será mais difícil existir a sua viabilidade económica, e até do ponto de vista da
limpeza dos mesmos.
Aliás, no que respeita aos prédios rústicos, nalgumas regiões, o fenómeno é tão acentuado que dá
origem ao aparecimento de múltiplos terrenos sem a dimensão mínima adequada à sua afetação à
exploração agrícola ou florestal. Daqui que, desde há muitas dezenas de anos, o Estado tenha
formulado medidas não apenas no sentido de evitar esse fracionamento, como também no sentido de
promover a reconfiguração das propriedades – sobretudo pelo emparcelamento, ou seja, pela
aglutinação dos prédios de cada indivíduo que não atinjam a dimensão mínima desejada.
O CC, por sua vez, acolheu algumas das regras em que essas medidas se traduzem,
nomeadamente:
➔ A proibição do fracionamento dos terrenos aptos para cultura em parcelas de área inferior à
fixada como superfície mínima – sendo o critério, aqui, o da unidade de cultura, que varia em
função das regiões e dos tipos de cultura, definida nas leis de direito público (artigos 1376º, 1377º
e 1379º CC).
o Ou seja, existem regras que delimitam a unidade de cultura para cada zona – assim, um
proprietário não pode dividir um prédio seu de forma que fique com menos hectares do que
o mínimo estabelecido pela unidade de cultura daquela zona. Consequentemente, os atos de
fracionamento contrários ao disposto nos artigos 1376º e 1378º CC são nulos – sendo que tal
nulidade se estende, também, à venda do pedaço fracionado.
o No entanto, denota-se que a Lei nº 111/2015 entra em diálogo com as leis sobre a Reserva
Agrícola Nacional. Segundo este, se um prédio rústico tiver incluído na reserva agrícola
nacional, para efeitos da proibição de fracionamento, não vale a unidade de cultura, mas sim
o triplo da mesma – existindo, assim, ampliação da proibição de fracionamento.

➔ Frequentemente, são utilizadas ações de reconhecimento de adquirição originária da


propriedade, através da posse a título de usucapião, para tentar contornar este regime de
proibição de fracionamento. Assim, e sendo os atos de fracionamento contrários ao regime nulos,
o caso segue para tribunal, argumentando a parte compradora que aquela parcela de terreno é sua
por usucapião. Será, no entanto, que o juiz devia dar prevalência ao regime público de proibição
de fracionamento, perante este argumento?
o A resposta a isto é afirmativa. Determina a Lei nº 111/2015, no seu artigo 48º, que a posse de
terrenos aptos para cultura não faculta ao seu possuidor a justificação do direito a que esta diz
respeito, ao abrigo do regime da usucapião, sempre que a sua aquisição resulte de atos
contrários ao disposto no artigo 1376º do CC (nº1). Consequentemente, são nulos todos os
atos de justificação de direitos que se inserem nessa categoria (nº2 e 3).

➔ O direito de preferência consagrado no artigo 1380º CC que visa promover o emparcelamento,


com o objetivo de existir um melhor ordenamento do território e não ter propriedade rústica tão
atomizada. Este não é, assim, propriamente uma proibição de fracionamento: mais concretamente,
consagra-se o facto de os proprietários de prédios rústicos e mistos gozarem de direito de
preferência na alienação de prédios rústicos e mistos confinantes.
o Assim, se, por exemplo, A vende a C uma parcela com 8 hectares (inferior às 9 de Unidade
Cultural); mas B, enquanto proprietário de prédio confinante, tem uma parcela também de
tamanho inferior à unidade da cultura, este terá um direito de preferência sobre essa
propriedade de A. Em termos práticos, esse direito é honrado através da publicação, por parte
de A, de um anúncio público aos vizinhos nesta posição preferencial, para que se possa alertar
que esta parcela vai ser vendida.

o A previsão normativa do direito de preferência é, assim, ser proprietário de um terreno


confinante de área inferior à unidade de cultura. No entanto, poderá também existir a
situação em que um vizinho, com uma unidade de cultura inferior ou que também quer ter o
direito a preferir, mas que não esteja adjacente a este território. Neste caso, existe uma querela
jurisprudencial sobre o ónus da prova: será B que tem de alegar que C não tem um terreno
confinante; ou são A e C que precisam de alegar que C tem um prédio confinante?
▪ Tal dúvida será muito importante nas situações em que existe confusão total sobre quem
é o proprietário. Assim, uma parte da jurisprudência diz que B, ao invocar a preferência,
terá de comprovar que não há um outro terreno confinante com outro; enquanto outra
parte defende que B não tem de alegar esse facto negativo, sendo a outra parte que depois
poderá alegar, na sua contestação, a existência de que existe, de facto, outro terreno
confinante.

➔ Segundo o artigo 1382º CC, no que respeita ao emparcelamento, o CC limita-se a uma remissão
para a legislação extravagante – nomeadamente, a referida Lei nº111/2015.

NOTA: Para além das restrições ao direito de propriedade já faladas, existem – dir-se-ia,
naturalmente – as que resultam da coexistência de outros direitos reais sobre o mesmo bem e as de
natureza contratual. Além disso, o direito de propriedade sobre prédios sofre, também, restrições
impostas pelo Direito Público: nomeadamente, a expropriação (restrição máxima); as servidões
administrativas (como, por exemplo, as militares, as de aqueduto público, as de gasoduto público e
as de linhas elétricas e telefónicas); entre outras.

A Propriedade Horizontal (artigos 1414º e ss. CC)


Introdução
A propriedade horizontal é um regime especial dentro da propriedade sobre imóveis, para os
casos em que um edifício (condomínio) pertence a uma pluralidade de pessoas (condóminos), tendo
cada uma delas poder sobre uma parte específica (fração autónoma); e, todas em comum, poder sobre
as partes que não são atribuídas especificamente a uma (partes comuns). O condómino é, assim, o
proprietário na propriedade horizontal – sendo que esta expressão é a personificação do todo: o
condómino não tem personalidade jurídica autónoma, tendo, sim, uma personalidade rudimentar.
No entanto, também é possível que o edifício não esteja constituído em propriedade horizontal
– mas que cada um dos andares seja arrendado, por exemplo. Significa isto que há outros modos
jurídicos de conseguir efeitos práticos análogos àqueles que a lei portuguesa permite alcançar por
meio da propriedade horizontal – nomeadamente, o direito sobre uma parte especificada do prédio
consistir num mero direito de uso (arrendamento); ou o caso de se recorrer à figura da sociedade, por
vezes combinada com o arrendamento, para estruturar o conjunto dos direitos sobre o imóvel.
Dito por outras palavras, possível existir um prédio urbano com 4 fogos: ora, do ponto de vista
jurídico, neste caso, o prédio continua a ser uma unidade, sendo possível que um único proprietário
arrenda a quatro pessoas diferentes. Ou seja, isto não significa que exista uma alteração do estatuto
jurídico do prédio ,de forma a torná-lo em 4 frações autónomas: isso apenas acontece no prédio com
propriedade horizontal, onde existem, efetivamente, 4 proprietários –do ponto de vista jurídico,
existem 4 coisas, cada uma com um proprietário jurídico.

Enquadramento
Enquadramento sociológico:
Este instituto surge como resultado do desenvolvimento das cidades e das políticas de fomento
à aquisição de habitação própria. Especialmente, a propriedade horizontal tem grande relevo em
Portugal nas últimas décadas, marcadas pelo crédito hipotecário: a maioria dos portugueses, por força
do acesso fácil ao crédito bancário, têm habitação própria e não arrendada – podendo, com isso, ser
proprietários exclusivos (no caso das vivendas); mas, na maioria dos casos, são frações autónomas.
Isto sem prejuízo de, muito frequentemente, as mesmas se encontrarem hipotecadas para garantia dos
empréstimos bancários contraídos para a sua aquisição.
No entanto, em Portugal, o mercado de arrendamento ao longo das décadas sempre foi
ineficiente, devido ao regime do congelamento das rendas, que impede o jogo da oferta e da procura:
este, apesar de proteger o mercado do consumo e os inquilinos, a longo prazo faz com que haja menos
investimento no mercado do arrendamento. Assim, para Caetano Nunes, o congelamento das rendas
faz com que as pessoas tentem recorrer mais à propriedade horizontal – sendo que, no entanto, com
o aumento da taxa de juros, tal se vê como mais difícil. Dito de outra forma, a renda terá de conseguir
pagar o investimento – ora, como isso não acontece em Portugal, recorre-se à propriedade horizontal.
Concluindo, em Portugal, o regime de propriedade horizontal é frequente, devido à apatia do
mercado de investimento e o decréscimo das taxas de juro, que permitem o acesso da população
portuguesa ao crédito bancário para habitação.

Enquadramento legal:
O regime do CC é imperfeito, dado ser muito pouco desenvolvido e com as matérias mal
distribuídas – existe, assim, uma falta de sistematização no CC; assim como a necessidade de um
maior desenvolvimento das normas existentes.
Além disso, relativamente à organização do condomínio, discute-se até que ponto pode o
condomínio ser demandado em tribunal – ou se, pelo contrário, devem ser demandados na ação todos
os condóminos. Além disso, quanto na gestão do condomínio, discute-se se poderá haver uma gestão
de controlo do administrador. No entanto, na prática, existem regulamentos de condomínio que
avançam com estas soluções – nomeadamente, o órgão de controlo do administrador, etc. –, sem que
tenham um grande apoio legal.
O primeiro grande problema da regulação da propriedade horizontal será o da relação entre os poderes
de cada condómino e os poderes do conjunto dos condóminos. Este problema não é resolvido pela
distinção entre partes comuns e frações autónomas, na medida em que não é concebível que cada
condómino possa exercer, sem limites, o seu direito de propriedade sobre a sua fração autónoma. As
linhas de fratura entre o que é individual e o que é coletivo passam não somente pela definição do
que entra nas partes comuns e do que cabe nas frações autónomas, mas também pela definição dos
poderes do conjunto dos condóminos relativamente às frações autónomas.
O segundo grande problema da regulação da propriedade horizontal é o da organização do conjunto
dos condóminos para a condução dos assuntos que lhes cabe conduzir, enquanto conjunto. A
determinação dos casos em que é razoável exigir apenas uma maioria de vozes, e a daqueles em que
é razoável exigir a unanimidade, é exemplo de uma questão de política legislativa nessa área. Outro
exemplo está na própria estruturação do conjunto dos condóminos: será possível e conveniente manter
a figura da propriedade horizontal nos quadros de uma contitularidade “não subjetivada”, ou será
preferível (se não inevitável) optar por atribuir personalidade jurídica ao condomínio?
Ir-se-á ver, adiante, como a lei portuguesa resolve estas questões, assim como as dúvidas que os
preceitos legais respetivos levantam.
Noções introdutórias ao regime
O objeto da propriedade horizontal:
O regime da propriedade horizontal é aplicado a prédios urbanos com edifícios (artigo 1414º
CC) – podendo, no entanto, ser também aplicado a edifícios contíguos funcionalmente ligados entre
si, pela existência de partes comuns (artigo 1438º-A).
Por outro lado, nem todos os edifícios podem ser constituídos em propriedade horizontal: a
lei exige que as partes dos edifícios destinadas a constituírem frações autónomas tenham condições
de ser unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum
do prédio ou para a via pública (artigo 1414º CC). Como enfatiza José Luís Bonifácio Ramos, para
que haja propriedade horizontal, é necessária a existência de um edifício com características especiais.
As frações autónomas têm, assim, de preencher o requisito da independência (artigo 1415º CC): ou
seja, o edifício terá de ter independência do ponto de vista físico.
➔ Já o caso dos edifícios contíguos pode colocar um problema de maior complexidade de
organização do condomínio – por exemplo, será que deve haver uma sub-assembleia dos
condóminos, para além da assembleia de todos os condóminos de todos os edifícios?

Partes comuns e frações autónomas:


Como foi referido nas notas introdutórias, a existência de propriedade horizontal implica a
existência de frações autónomas e partes comuns. Quanto a isto, a principal sede legal será o artigo
1421º CC, que no seu nº1 declara que certos elementos do prédio são partes comuns obrigatórias;
enquanto o nº2 declara os elementos que são partes comuns presumidas.
Assim, nos termos do nº1, são partes comuns obrigatórias tudo o que tenha a ver com
estrutura do edifício (ex: entradas, instalações gerais de água, etc.). Tudo o que suporta a parte
estrutural do edifício terá de ser parte comum, visto que interessa a todos que o edifício não caia, por
exemplo (alíneas a) e b)). Além disso, também todos os aspetos do edifício que sejam passagens para
diversas frações autónomas terão de ser partes comuns (ex: elevadores, escadas, etc.), assim como
todas as instalações comuns (alínea c).
No entanto, este preceito levanta algumas dúvidas quanto à sua imperatividade. A favor da mesma
jogam a letra da lei e o contraste com o nº2; mas contra esta joga uma certa ideia de autonomia
privada. A doutrina, no entanto, parece ser unânime no sentido de que as realidades referidas no nº1
são necessariamente comuns.
Já as partes comuns premunidas, nos termos do nº2, serão os pátios, os jardins, etc. Este não
é, no entanto, um regime injuntivo – e, por isso, existe liberdade de estipulação: a lei permite que o
título constitutivo fixe se os elementos são partes comuns, ou se integram alguma ou algumas das
frações autónomas; mas manda presumir, na ausência de tal fixação, que são partes comuns. Por
exemplo, se no título constitutivo se estipular que aquele ascensor não é parte comum, mas pertence
a um único condómino, este irá afastar a aplicação do nº2.
No entanto, para além de serem regras supletivas, entende também a doutrina, com referência a
Oliveira Ascensão, que esta presunção pode também ser afastada pela presunção fáctica que existe
no edifício: “o uso exclusivo do condómino resulta da destinação objetiva”. Isto é, as presunções não
são apenas afastadas por estipulação, mas também se, indo visitar o edifício e olhando para a situação
objetiva do edifício, é claro que existe uma parte que não se destina a ser usada por todos os
condóminos, mas apenas por um. Logo, a presunção não significa apenas supletividade, mas também
que é uma presunção que pode ser afastada pela realidade fáctica – e não apenas pelo título
constitutivo (no sentido de que, se este fosse omissivo, implicaria uma aplicação obrigatória da norma
supletiva). Assim, se existir tal omissão, uma parte do prédio não afetada ao uso exclusivo de um dos
condóminos poderá ser tida como integrante de uma fração autónoma, quando haja elementos que
apontem nesse sentido.
Já o nº3 do artigo 1421º CC permite que o título constitutivo afete ao uso exclusivo de um
dos condóminos certas zonas das partes comuns. Esta norma não aborda o que são partes comuns ou
parte autónomas: ele presume o que são partes comuns, no sentido em que o uso desta pode exclusivo
de um dos condóminos, mas que a sua propriedade continua a ser comum. Por isso, a aplicação
deste nº3 presume-se que já se tenha resolvido o tema do nº1 e nº2 quanto a ser ou não parte comum,
aplicando-se apenas às partes comuns.
Exemplo óbvio de objeto possível de tal permissão são os terraços de cobertura (n°1, al. b)): apesar
de serem partes comuns injuntivas, estes estão afetos ao uso de uma parte autónoma – nomeadamente,
se apenas o proprietário da fração de cima tiver acesso ao mesmo. No entanto, tal situação terá de
estar estipulado no título constitutivo.
➔ A fração autónoma é, quase sempre, só um espaço. As paredes poderão ser interiores à fração
autónoma, mas são raras as paredes que não são partes comuns – aliás, tirando esse espaço, quase
tudo será parte comum. Assim, poder-se-á ter um único prédio e um único edifício em sentido
jurídico, mas dois prédios em sentido físico, com um betão armado: será, assim, uma situação de
propriedade horizontal, sendo um único edifício em sentido jurídico porque partilham o betão.

Constituição
A propriedade horizontal pode resultar de negócio jurídico, usucapião, decisão
administrativas e decisão judicial proferida em ação de divisão de coisa comum ou em processo de
inventário (artigo 1417, n°1 CC). Esta constituição da propriedade horizontal determina uma
alteração do estatuto jurídico-real do prédio urbano: ou seja, é com esta constituição que deixa
de haver um prédio urbano e uma única coisa corpórea, e passa a haver várias coisas corpóreas, a
nível jurídico.
Quanto à constituição por negócio jurídico, apesar de se pensar, aqui, em negócios inter
vivos, denota-se que alguma doutrina defende que tal negócio possa tomar forma em testamento. De
qualquer das formas, este costuma ser unilateral, no sentido de existir, apenas, uma única declaração
negocial que expressa a vontade de constituir a propriedade horizontal, por parte do proprietário.
Quanto à constituição por usucapião, é de notar que este é um caso raro, mas não impossível.
No entanto, será necessário existir uma decisão judicial a julgar se existe usucapião, pelo que, no final
das contas, a possibilidade de constituição por usucapião também reencaminha para a existência de
uma decisão judicial a reconhecer dita constituição por usucapião.
Quanto à constituição por decisão judicial, existe um problema quanto à conformidade com
a licença de utilização. Como já se viu, existem limitações publicas de índole administrativa ou
urbanista que condicionam a autonomia privada neste tema: assim, antes de construir o edifício, o
proprietário deverá apresentar o projeto à Câmara Municipal, para que esta o autorize. Esta
autorização administrativa é que vai determinar se a construção é suscetível de propriedade horizontal
ou não – algo que torna praticamente impossível constituir propriedade horizontal por usucapião,
visto que, normalmente, o detentor em causa não tem qualquer licença de utilização. Ora, sendo estas,
na sua génese, situações de ilegalidade e de inconformidade com as regras de habitabilidade e de
segurança necessárias para obter licenças de utilização, o juiz dificilmente decidirá a constituição de
propriedade horizontal por usucapião. Assim, estas situações são bastante raras, apesar de possíveis.

➔ Por exemplo, numa situação em que A e B são comproprietários que usam individualmente certas
partes há 20 anos, tratando-as como se fossem propriedade horizontal – por isso, pedem ao juiz
para declarar a propriedade horizontal (sentença constitutiva). O problema que podem enfrentar,
aqui, será a potencial inconformidade com a licença de autorização, como se vai ver a seguir.

A desconformidade do título constitutivo com a licença de utilização – ou seja, com o projeto


aprovado pela entidade pública competente – determina a nulidade do título constitutivo (artigo
1418º, nº3 CC). Por outras palavras, se o regulamento estabelecer um destino para a fração (ex: para
comércio) e a licença para a utilização outro (ex: para habitação), o negócio jurídico constitutivo será
nulo, também, nesta parte, por violar de forma expressa a licença. Discute-se, aqui, a possibilidade
de se aplicar o princípio da redução dos negócios jurídicos, previsto no artigo 292º CC: ou seja, se o
negócio jurídico em causa cumprir os pressupostos exigidos por esta disposição, ser-lhe-á retirada a
cláusula considerada nula, e o restante será eficaz. Em boa interpretação, isto também deve valer para
o caso da sentença judicial.
Por fim, quanto à constituição por decisão administrativa, é de notar que o CC não regula a
matéria, visando a referência somente a “fazer a ponte” para regras de direito administrativo. A
decisão administrativa é, no entanto, muito rara.

Título constitutivo e regulamento do condómino


A propriedade horizontal é estabelecida por um documento que tem de especificar as partes
do edifício que correspondem às várias frações autónomas e atribuir um valor relativo a cada fração
(artigo 1418º, n°1 CC) – o chamado título constitutivo. O título constitutivo poderá, então, ser um
negócio jurídico ou uma sentença corporizada em ato produtor de efeitos jurídicos, que terá sempre
de 1) especificar as partes do edifício ou os edifícios correspondentes às várias frações; e 2) fixar o
valor relativo de cada fração, em percentagem ou permilagem do valor total do prédio.
Os valores relativos das frações relevam para vários efeitos: nomeadamente, para a distribuição de
encargos de conservação e fruição (artigo 1424º CC) e com inovações (artigo 1426º, n°1 CC); assim
como para efeitos da determinação do poder de convocação da assembleia dos condóminos (artigo
1431º, n°2 CC) e do poder de voto nas deliberações dos condóminos (artigo 1430º, n°2 CC).
Para tudo ficar equilibrado e justo, a permilagem deve corresponder ao valor relativo aos metros
quadrados da fração. No entanto, nem sempre se faz uma proporção exata entre a área relativa de
cada fração e a permilagem – isto, porque é frequente que existam frações autónomas no resto-de-
chão que são destinadas ao comércio. Ora se esta proporção fosse obrigatória, tal significaria que,
para as despesas do condomínio, as lojas pagariam de forma igual; no entanto, normalmente acorda-
se que estas pagam menos para as despesas do condomínio e, por isso, terão maior permilagem.
Já quanto aos elementos facultativos, o título constitutivo pode atribuir fins (destinações) às
frações e às partes comuns – sendo que o destino das várias frações pode ser desigual (ex: umas são
destinadas a comércio, outras a habitação e outras a escritórios, etc.). Além disso, sempre que o título
constitutivo não disponha sobre o fim de cada fração, a alteração ao seu uso (efetivo) carece da
autorização da assembleia de condóminos, aprovada por maioria representativa de dois terços do
valor total do prédio (artigo 1422º, nº4 CC). No entanto, são cada vez menos os casos em que os
títulos constitutivos não mencionam os fins das frações, pois as leis administrativas obrigam à sua
definição no momento do pedido de licença da obra, e preveem o posterior controlo do cumprimento
dessa definição.
O título constitutivo pode, também, estabelecer um compromisso arbitral para a resolução dos
litígios emergentes da relação de condomínio.

Regulamento congénito vs. regulamento do condomínio:


O título constitutivo pode, ainda, a título facultativo, estabelecer um regulamento do
condomínio, chamado de regulamento congénito (artigo 1418º, nº2, alínea b) CC), que disciplina o
uso, a fruição e conservação das partes comuns e das frações autónomas (ex: não é possível estudar
música a partir das 22h) – ou seja, no fundo, regula toda a vida do condomínio. Considera-se, por
isso, que o condomínio tem um microcosmo jurídico, no sentido de, muito frequentemente, ter não
só um título, como um regulamento, que por sua vez se assimila aos estatutos da pessoa coletiva –
assim, apesar de o condomínio não ter personalidade jurídica, encontra-se numa zona cinzenta.
Se o título constitutivo, no entanto, não contiver um tal regulamento, os condóminos podem (e devem,
sempre que sejam em quantidade superior a quatro) elaborar um regulamento de condomínio – cujo
objeto, no entanto, a lei restringe à disciplina do uso, da fruição e da conservação das partes comuns,
não podendo, pois, abranger as frações autónomas (artigo 1429-Aº, n°1 CC).
O título constitutivo da propriedade horizontal está sujeito a registo predial, por força do
artigo 2°, n°1, alínea b) do respetivo código – mas o seu artigo 95º, n°1, alínea q) apenas prevê que
das inscrições de constituição de propriedade horizontal conste a existência de regulamento caso o
mesmo integre o título constitutivo (o que, como se viu, não é obrigatório), não impondo a lei que ele
seja publicitado por qualquer outra forma. Acresce que a lei não prevê nenhuma outra forma de o dar
a conhecer, nomeadamente aos interessados na aquisição das frações autónomas.
Apesar disso, parece inevitável entender que o regulamento de condomínio é oponível a qualquer
adquirente de uma fração autónoma, assim como a todos os que usem uma fração autónoma,
(nomeadamente, ao abrigo de arrendamento ou de comodato). Assim, o regulamento do condomínio
devia estar sujeito a publicidade no registo predial, apesar de não estar, visto que limita o conteúdo
da propriedade horizontal e da oponibilidade erga omnes.
Assim:

REGULAMENTO CONGÉNITO REGULAMENTO DO CONDOMÍNIO


(artigo 1418º, nº2, alínea b) (artigo 1429º-A)

Contido no título constitutivo Não faz parte do título constitutivo


Posterior, sendo que só existe se não existir o
Originário
regulamento do artigo 1418º
Regula partes comuns e frações autónomas Regula apenas partes comuns
Basta uma aprovação por maioria simples em
Aprovado pelo proprietário único do título assembleia de condómino (artigo 1432º, nº5); ou
constitutivo pode, inclusivamente, ser aprovado pelo
administrador (artigo 1429º-A, nº2)

Está sujeito a registo predial Não está sujeito a registo predial


Alteração do título constitutivo:
As alterações do título constitutivo são decididas por unanimidade: regra geral, este só é
modificável por acordo de todos os condóminos. Além disso, estas alterações têm de ser formalizadas
por escritura pública ou documento particular autenticado, nos termos dos artigos 1419º, nº1 e 2; e
1422º-A, nº4 e nº5 CC.
No entanto, existem algumas exceções a esta regra de unanimidade (nº2). Assim, esta é afastada 1)
quando for uma alteração que modifique as condições de uso, o valor relativo ou o fim (alterações
mais importantes); ou 2) quando o não consentimento é em valor inferior a 1/10 do capital do prédio.
Tal afastamento é feito por suprimento judicial: ou seja, será necessário ir, efetivamente, a tribunal
arguir a falta de unanimidade, de forma a conseguir alterar o regulamento dessa forma.
Além disso, nos termos do artigo 1422ºA, tal regra é afastada, também, relativamente às alterações
consistentes na junção de duas ou mais frações do mesmo edifício, desde que as frações a juntar
sejam contíguas – sendo este requisito, no entanto, dispensado no caso de frações correspondentes a
arrecadações e garagens. Estas alterações dependem, apenas, da intervenção dos condóminos das
frações em causa (n° 1, 2, 4 e 5). Por fim, as alterações consistentes na divisão de uma fração
dependem, salvo cláusula permissiva constante do título constitutivo, apenas da deliberação dos
condóminos aprovada sem oposição (artigo 1422-A, n° 3).
A alteração do título é, assim, em primeiro lugar, uma alteração das frações, da permilagem,
etc; mas, também, poderá ser a alteração do regulamento contido no mesmo. No entanto, fará
sentido que este regulamento congénito só possa ser alterado nos casos do artigo 1419º/1 ou, em casos
de exceção, por suprimento judicial (artigo 1419º, nº2)?
Por um lado, a favor desta necessidade da unanimidade joga a sua integração no título constitutivo –
que, nos termos do artigo 1419º, nº1 CC, só é modificável por acordo de todos os condóminos.
Por outro lado, contra essa necessidade joga o facto de, em muitos casos, o conteúdo material de um
tal regulamento não ser diferente de outro que não conste do título constitutivo (artigo 1429º-A) – o
qual parece alterável por mera maioria, nos termos do artigo 1432, n°5 CC. No entanto, tal não faz
muito sentido nos casos em que o regulamento também recai sobre o uso das frações autónomas.
Conclui-se, assim, que a lei deveria ter um regime mais flexível para alteração do regulamento
congénito.
É possível o regulamento dispor sobre outras matérias que não uso, fruição e conservação das
partes comuns – nomeadamente, sobre o funcionamento da assembleia de condóminos e o exercício
do cargo de administrador? Ora, dos artigos 1418º e 1429-Aº CC retirar-se-ia que não, visto que tal
possibilidade não está explícita; no entanto, essa conclusão parece pouco racional, e é indiciariamente
contraditada pelo artigo 1435º, n°4 CC, que parece pressupor que o regulamento pode abranger essas
outras matérias: ao poder regular as partes comuns, parece estar implícito que é possível ao
regulamento regular, também, o seu funcionamento, já que ele se inclui nas necessidades de regular
essas partes comuns.
Dentro desta discussão, existem outras dúvidas por responder: pode haver mais órgãos dos que
aqueles previstos no artigo 1430º CC – nomeadamente, um órgão de controlo que acompanha o que
faz o administrador? É possível fazer sub-assembleias de condomínio para cada edifício contíguo,
quando a propriedade horizontal incide sobre edifícios contíguos? Estas perguntas vêm das exigências
de tipicidade, enquanto contraponto da liberdade de estipulação: ou seja, a favor dessas
possibilidades, joga o princípio da autonomia privada; contra elas, já joga um certo entendimento da
tipicidade dos direitos reais.
Direitos e obrigações dos condóminos
Direitos dos condóminos:
O primeiro direito dos condóminos será o domínio e poder exclusivo sobre a fração
autónoma (artigos 1414º e 1420º, n°1 CC, entre outros). Sublinhe-se, no entanto, que apesar das
palavras do artigo 1420º, n°1 (proprietário exclusivo), este direito é claramente menos forte que o
direito de propriedade propriamente dito.
No âmbito deste, segundo o artigo 1418º, n° 2, alínea b), o regulamento congénito pode limitar o
domínio das frações autónomas. No entanto, segundo o artigo 1422º, independentemente do
regulamento, existem também regras gerais de limitação ao exercício dos direitos que pressupõem a
regra do domínio exclusivo – sendo a alínea c) do nº2 a mais importante: nomeadamente, proíbe-se
o condómino, em termos fáticos, de utilizar a fração autónoma para fim diferente do que está previsto
no título constitutivo e, por consequência, na licença de utilização. Além disso, a alínea b) proíbe,
também, o condómino de destinar a fração autónoma a usos ofensivos dos bons costumes (ex: para
prostituição). Por fim, quanto a obras inovadoras, o artigo 1425º CC será desenvolvido a seguir.
O segundo será o direito sobre as partes comuns (artigo 1420, n°1 CC, entre outros), sendo
que, para atuar sobre partes comuns, cada condómino está sujeito às deliberações dos demais
condóminos. No entanto, já perante terceiros, cada condómino pode exercer tal direito de forma
absoluta, existindo oponibilidade erga omnes. Além disso, se houver alguém que esteja a prejudicar
as partes comuns, qualquer condómino tem legitimidade própria para reivindicar a parte comum no
confronto com o terceiro, sem que seja necessário o concurso por outros condóminos.
Em terceiro, refere-se o direito de participar na administração do condomínio ou direito
de participação política (artigos 1430º e ss. CC) – nomeadamente, em sede de participação na
assembleia de condóminos. Este direito abarca, para além do direito de voto, o direito a fazer
propostas de deliberação, tentar convocar a assembleia, impugnar judicialmente as decisões, propor-
se para administrador, etc.
Em quarto, existe o direito de promover reparações indispensáveis e urgentes das partes
comuns (artigo 1427º CC): por exemplo, se existir uma fuga de água, em vez de se esperar para
deliberar sobre o que fazer, os condóminos podem atuar em ação direta ou estado de necessidade
sobre a mesma. Levanta-se, no entanto, aqui a dúvida sobre se “falta ou impedimento” significam a
inexistência e impedimento absoluto, ou se significam ausência e indisponibilidade, ainda que
temporária. De qualquer das formas, resta acrescentar que tal direito não exige o concurso dos
restantes condóminos.
Por fim, os condóminos têm o direito de, em caso de destruição do edifício ou de parte dele
que represente três quartos ou mais do seu valor, exigir a venda do prédio e participar na partilha
do produto da venda (artigo 1428, n°1 CC). Comenta-se, aqui, que o alcance deste preceito será
possibilitar a cada condómino pôr fim ao condomínio: assim, embora a lei não o explicite, trata-se de
exigir não só a venda do terreno e dos materiais, como a própria partilha do produto da venda.

Deveres dos condóminos:


O primeiro dever será o de afetar a sua fração ao fim a que esteja destinada (artigo 1422º,
n°2, alínea c) CC). Este apresenta frequentemente problemas, designadamente por força das fórmulas
genéricas usadas nos títulos constitutivos: isto porque, de acordo com o n°4 deste artigo, se o título
constitutivo nada dispuser sobre o fim da fração, a própria alteração do seu uso carece de autorização
da assembleia de condóminos, a ser tomada por maioria de dois terços do valor total do prédio.
Além disso, os condóminos têm o dever de suportar as despesas necessárias à conservação
da fração autónoma, nos termos do artigo 1424º, nº2 CC a contrário, conjugado com a primeira
parte do artigo 1420º, n°1 CC. Associado a isto, os condóminos também têm o dever de contribuir
para as despesas necessárias à conservação e à fruição das partes comuns e para os serviços de
interesse comum (artigo 1424º CC): ou seja, estes têm o dever de contribuir para as despesas
correntes, sendo esta uma autêntica obrigação propter rem. Na generalidade dos casos, tal
contribuição é paga com periodicidade mensal, e na proporção do valor das frações, nos termos do
artigo 1424º, nº1 CC, parte final.
No entanto, denota-se que, ao abrigo da liberdade de estipulação no regulamento, tais obrigações
podem estipuladas de forma diferente – existindo, no entanto, limites à mesma, não expressos na lei,
mas provenientes da experiência comum (por exemplo, parece não ser aceitável que um dos
condóminos simplesmente não pague nada).
Além disso, existe também a possibilidade de as despesas relativas ao pagamento de serviços de
interesse comum serem diferentes – nomeadamente, de estas ficarem a cargo dos condóminos em
partes iguais; ou em proporção à respetiva fruição, com respeito pelos requisitos de aprovação. Por
exemplo, é frequente que as frações autónomas destinadas ao comércio tenham um valor diferente
das restantes, sendo a sua contribuição para estas áreas comuns também diferente.
Importa referir ainda que os condóminos do rés-do-chão não têm de contribuir para as despesas com
os elevadores e lanços de escadas, nos termos dos nº 3 e 4. Além disso, o nº5 consagra também esta
ideia de que certas despesas podem ser afetas apenas a uma parte dos condóminos, no sentido de
serem estes que as usam: será o caso das rampas de acesso e plataformas elevatórias.
Em terceiro lugar, os condóminos têm o dever de contribuir, em proporção do valor das
frações, para as despesas com obras que não sejam mera conservação (artigo 1426º CC). Ou seja,
se a maioria dos condóminos decide fazer obra, tal significa que a esfera jurídica de cada condómino
passou a ter esta obrigação, desde que não seja impugnada a decisão.
Em quarto lugar, existe o dever de efetuar seguro contra incêndio da fração autónoma e
das partes comuns, nos termos do artigo 1429º CC e artigo 5° do Decreto-Lei nº 268/94, de 25 de
outubro. Este será um seguro obrigatório contra o risco de incêndio do edifício, quer quanto às frações
autónomas, quer relativamente às partes comuns.
Por fim, os condóminos têm o dever de contribuir para o fundo de reserva do condomínio,
nos termos do artigo 4° do Decreto-Lei nº268/94: ou seja, com o fim de facilitar a conservação dos
edifícios em propriedade horizontal, a lei impõe a constituição de um fundo de reserva destinado a
custear essas despesas de conservação – nomeadamente, para quando forem necessárias obras ou
quando existir qualquer outra despesa extraordinária/não-antecipável.
Se as contribuições ultrapassarem o suficiente para as despesas correntes, existe um valor de reserva
que vai ser usado como que uma “almofada”: assim, se houver qualquer problema no futuro, os
condóminos não estarão dependentes da situação económica dos condóminos nesse momento.
NOTA: Estes deveres fazem parte do estatuto jurídico do direito – assim, depois de aprovados,
mesmo que não tenham querido fazer as obras, os condóminos terão de as pagar.

Obras inovadoras
O regime das obras inovadoras – ou seja, obras que não se destinam à mera conservação do
imóvel, nos prédios em propriedade horizontal – convoca, essencialmente, os artigos 1422º e 1425º
CC. Segundo o artigo 1425º, nº1 CC, regra geral, as obras que constituem inovações dependem da
aprovação da maioria dos condóminos, devendo essa maioria representar 2/3 do valor total do
prédio – sendo, assim, necessária uma maioria qualificada. A maioria da doutrina entende que tal
regra de aplica para as obras nas partes comuns; embora exista uma parte minoritária que defende
que as obras feitas nas frações autónomas também têm de ser aprovadas por maioria qualificada – no
entanto, tal limitaria fortemente o direito de cada condómino, indo contra a prática generalizada em
Portugal, como diz Rui Pinto Duarte.
Além disso, nos termos do artigo 1422º, nº2, alínea a) CC, é especialmente vedada aos
condóminos a possibilidade de prejudicar, quer com obras novas, que por falta de reparação, a
segurança, a linha arquitetónica ou o arranjo estético do edifício. Assim, este artigo acaba por
funcionar como regime especial face ao artigo 1425º CC: ou seja, mesmo existindo maioria
qualificada que aprove a realização da obra, a mesma não pode ser feita se prejudicar algum dos
aspetos enumerados.
No entanto, o nº3 deste artigo já estatui que as obras que modifiquem a linha arquitetónica ou o arranjo
estético do edifício podem ser realizadas mediante autorização prévia dos condóminos, deliberada
por maioria representativa de 2/3 do valor total do prédio. Nesta norma já não se fala, ao contrário do
que acontece anteriormente, em “segurança”: ou seja, o nº2 implica casos de prejuízo absoluto;
enquanto o nº3 implica casos de mera modificação.
➔ Em primeiro lugar, conclui-se, então, que as obras que prejudiquem a segurança do edifício
são sempre proibidas, mesmo que autorizadas pela assembleia de condóminos – pelo que, se
mesmo assim forem levadas a cabo, as deliberações sociais poderão ser inválidas; assim como
poderá existir responsabilidade civil por parte do administrador e dos condóminos que
consentiram as obras. Se tal decisão tiver sido feita por unanimidade, os condóminos que vierem
a assumir o prédio podem demandar os que lá estavam, e pedir indemnizações por tal alteração.
➔ Em segundo lugar, no que diz respeito ao arranjo estético e à linha arquitetónica, o legislador
distingue entre prejuízo e modificação: no primeiro caso, as obras serão sempre proibidas, já
no segundo caso, tais obras poderão ser levadas a cabo após autorização da assembleia de
condóminos, deliberada por uma maioria de 2/3 do valor total do prédio.
Concluindo, as obras inovadoras terão sempre de ser aprovadas por maioria dos condóminos (2/3 do
valor total do prédio), incluindo alterações ao arranjo estético e à linha arquitetónica. Foge a esta
deliberação o prejuízo do arranjo estético e a linha arquitetónica e as obras que prejudicam a
segurança (alínea a): estas terão de ser aprovadas por unanimidade – salvo se se entenda que esta é
uma norma de interesse público e, portanto, nem por unanimidade se pode fazer.
Na opinião de Rui Pinto Duarte, apesar da ambiguidade da lei e das dificuldades de
harmonização do artigo 1425º com o n° 2 (e o nº3) do artigo 1422º CC, é de seguir a interpretação de
Pires de Lima e Antunes Varela, que entendem que o artigo 1425º, quer no seu n°1, quer no seu n°7,
só regula obras nas partes comuns. Estas previsões diferenciam-se, no entanto, na sua previsão – o
n°7, relativamente ao n°1, regula as obras capazes de prejudicar a utilização, por parte de algum dos
condóminos, tanto das coisas próprias como comuns – e na sua estatuição, no sentido de que a
maioria, mesmo representativa de dois terços do valor total do prédio, não pode permitir as obras
referidas no n°7.
Questão ainda mais difícil será a de saber como se relaciona o nº3 do artigo 1422º CC – que faz
depender as obras que modifiquem a linha arquitetónica ou o arranjo estético do edifício de
autorização prévia da assembleia de condóminos, aprovada por maioria representativa de dois terços
do valor total do prédio – com o n°1 do artigo 1425º CC. Ora, não serão todas as obras previstas no
n°3 do artigo 1422º CC inovações para efeitos do artigo 1425º CC? A restrição, que se defende, do
n°1 do artigo 1425º CC às partes comuns, acompanhada do entendimento plausível de que o nº3 do
artigo 1422º CC tem, também, em vista apenas as partes comuns (e não só as frações autónomas),
parece obter a harmonia do conjunto – sendo, ainda, compatível com a ideia de que este n°3 trata de
certo tipo de inovações, constituindo, na sua previsão, norma especial relativamente à do n°1
do artigo 1425º CC (pese, embora, o pequeno apoio de tal solução na letra dos preceitos).

Administração do condomínio
Os órgãos de administração são um centro de imputação dos efeitos de normas dentro de uma
pessoa jurídica plena ou rudimentar – ou seja, estão dentro do microcosmo jurídico. Desta forma, o
artigo 1430º CC elenca apenas dois órgãos: o administrador e a assembleia de condóminos. No
entanto, na prática regulamentar, por vezes, surgem mais órgãos, sendo discutido que se tal é
admissível ou não (sendo que Caetano Nunes defende a admissibilidade) – como, por exemplo, o
órgão de controlo da administração, que se vai reunir com o administrador numa regularidade superior
a um ano, para controlar a gestão. Tal será inteligente, de forma a toda a administração não estar
dependente apenas da assembleia de condóminos que, regularmente, é feita apenas uma vez por ano.

1. Administrador:
O administrador pode ser um dos condóminos ou um terceiro (artigo 1435º CC). Isto é
uma característica relevante, do ponto de vista da complexidade da estrutura orgânica do condomínio:
quando é um terceiro profissional, existe uma maior complexidade orgânica. Nos condomínios de
grandes dimensões, o administrador será, quase sempre, um terceiro profissional, já que a distribuição
das tarefas não será compatível com um vizinho sem experiência a cuidar.
Quanto às suas funções (artigo 1436º CC), estas enunciam não apenas os poderes de criar
efeitos jurídicos – ou seja, de atuar jurídica ou materialmente em nome da pessoa jurídica –; mas,
também, enunciam os seus deveres e a responsabilidade no exercício das funções. Assim, as
principais competências do administrador serão: 1) elaborar o orçamento das receitas e despesas
relativas a cada ano (alínea b) – o que significa que também terá de prestar contas à assembleia (alínea
j) –; 2) regular o uso das coisas comuns e a prestação dos serviços de interesse comum, caso o mesmo
não esteja previsto no regulamento do condomínio (alínea h); 3) representar o conjunto dos
condóminos perante as autoridades administrativas; e 4) elaborar o regulamento do condomínio,
quando os condóminos não procedam à mesma (artigo 1429º-A CC).
➔ Este artigo 1436º CC deverá ser lido em conjunto com o artigo 1438º CC, já que dos atos do
administrador cabe recurso para a assembleia, podendo ser convocada pelo condómino recorrente.
O administrador pode agir em nome do condomínio (artigo 1437º CC), o que significa que
o condomínio pode ter capacidade judiciária: ou seja, capacidade para ser titular dos efeitos das
normas processuais. Assim, num processo, o condomínio será parte processual ativa, sendo o
administrador o representante legal da mesma – cabendo, então, ao administrador representar a
universalidade dos condóminos (nº2).
Por vezes, na prática, surgem confusões sobre isto: frequentemente, o administrador identifica-se
como parte processual, em vez de identificar o condomínio, com personalidade jurídica rudimentar,
como parte processual. Ora, ao agir desta última forma, existirá uma maior personificação do
condomínio, no sentido de um alargamento dos seus direitos e deveres, por comparação com os
condóminos, que não serão demandados nessa sua qualidade, em conjunto.
Assim, existe uma tendência de crescente personificação, especialmente no contexto de condomínios
cada vez maiores nas cidades, dado que aí os condóminos são muitos, não sendo possível, de forma
fácil e eficaz, citá-los a todos. Esta tendência não é, no entanto, plena: em questões de reivindicação
da propriedade, fica a dúvida se o condomínio terá legitimidade, ou se devem ser os condóminos a
ser citados. De qualquer das formas, é indiscutível que cada condómino, só por si, deve poder
reivindicar as partes comuns, já que este poder é um aspeto fulcral do direito de propriedade.

2. Assembleia de condóminos:
Sublinha-se que a Assembleia é um mero órgão de administração do condomínio, o que,
entre outras consequências, implica que não tem poderes para alterar o título constitutivo. Assim, a
ata referida no n°2 do artigo 1419º CC não formaliza uma deliberação da assembleia; mas, sim, um
acordo entre condóminos, que não tem esta natureza de deliberação.
A convocatória (ato de convocar a assembleia) está regida no artigo 1432º, nº1 e 2 CC: a
mesma terá de ser descrita numa folha com a assinatura de todos os condóminos, de forma a assegurar
que os mesmos tomaram conhecimento – não sendo legal, assim, a prática vulgar de fazer a
convocação por aviso fixado num qualquer local do edifício. No entanto, atualmente, já é possível
fazer esta convocatória por correio eletrónico (nº2 do artigo 1432º).
A propósito do funcionamento dos órgãos, existe uma distinção entre órgão deliberativo e
constitutivo – sendo que, no caso das assembleias de condóminos, a lei regula os dois.
Assim, o quórum deliberativo será a quantidade de votos necessária para aprovar uma proposta de
deliberação sobre uma determinada matéria. Para este, aplica-se a regra geral de plutocracia do artigo
1432º CC: terá de existir uma maioria simples do capital investido – ou seja, terá de haver uma maioria
de votos em função do dinheiro investido, sendo que quem tem mais permilagem vota mais (ao
contrário do “voto por cabeça”). No entanto, em função das diferentes matérias, podem existir
diferentes quóruns deliberativos – pelo que poderão existir regras especiais (ex: para pedir o
suprimento judicial para a alteração do título constitutivo, é necessária uma deliberação com pelo
menos 1/10 do capital investido).
Já o quórum constitutivo (que vem primeiro) será a quantidade de votos necessária para a assembleia
iniciar os trabalhos e discutir uma determinada matéria – ou seja, para reunir a assembleia:
➔ Num primeiro momento, será necessário, para que a reunião possa começar, que estejam pessoas
suficientes para fazer o quórum deliberativo falado no nº5 – o que implica que, no nº6 do mesmo
artigo, existe um quórum constitutivo implícito: nomeadamente, a maioria dos votos
representativos de capital investido. Não existindo uma segunda convocatória, o quórum
constitutivo poderá variar, também, dependendo das matérias faladas: ou seja, por vezes, tendo
em conta uma determinada matéria, pode haver quórum constitutivo maior.

➔ Já num segundo momento, se for necessária uma segunda convocatória, esta é convocada ou na
mesma data, mas 30 minutos depois (nº7), ou numa outra data qualquer. Se nenhuma data for
fixada, a data supletiva aplicada será 1 semana depois, na mesma hora e local. Aqui, o quórum
constitutivo será mais leve: será necessário estarem presentes apenas 1/4 do valor total do prédio,
para se iniciar os trabalhos. Já relativamente ao quórum deliberativo, será necessário 1) uma
maioria simples dos condóminos presentes, e não do capital investido; e 2) uma representação de,
pelo menos, 1/4 do valor total do prédio (pressuposto, dado que é o quórum constitutivo).
Existe, ainda, um regime de aprovação das deliberações que careçam de ser aprovadas por
unanimidade (nº 8 a 11). No entanto, na realidade, bastará 2/3 do capital investido para que a
deliberação seja aprovada nestas matérias (nº8), sendo que os outros condomínios são notificados por
carta registada (nº10), valendo o seu silêncio como aprovação (nº11).
Quanto à impugnação das deliberações, o artigo 1433º, nº1 CC estabelece que as
deliberações das assembleias de condóminos contrárias à lei ou ao regulamento são anuláveis, a
requerimento de qualquer condómino que as não tenha aprovado, no prazo de 60 dias a contar das
mesmas. Este artigo prevê vários prazos, sendo o de 60 dias para impugnação perante o tribunal
o mais importante. Já o nº2 dita que a assembleia pode revogar as deliberações inválidas ou ineficazes.
No caso de ser convocada uma assembleia extraordinária para um qualquer fim em causa, o prazo
para requerer a anulação é menor, de 20 dias a contar da mesma (nº4).
A maior crítica feita a este regime é o facto de a lei não prever o vício da nulidade para casos de maior
gravidade: segundo estas normas, qualquer ilícito produz anulabilidade – algo que joga mal com
a teoria geral do negócio jurídico, que estipula que, para estes, a regra geral é a nulidade do artigo
294º CC, dado as deliberações serem enquadradas na figura do negócio jurídico. Ainda assim, é
frequente a distinção entre as invalidades absolutas – geradas pela violação de normas jurídicas
injuntivas – e as invalidades relativas – geradas pela violação de normas jurídicas supletivas ou regras
contratuais ou estatutárias –, sendo que as primeiras seriam nulas e as segundas anuláveis.
Assim, apesar de este artigo apenas referir a anulabilidade como consequência, é a opinião comum
que se deve considerar como nulas as deliberações que violem normas injuntivas. O regime dos
direitos reais é marcado pela oponibilidade erga omnes, pelo que é, em grande parte, um regime
injuntivo: ou seja, porque a delimitação dos direitos reais convoca não só o interesse do titular do
mesmo, mas também o confronto desse interesse com o dos titulares de outros direitos reais e todos
os terceiros em geral. Ora, para Caetano Nunes, assim como a doutrina mais atual, mais importante
do que a letra da lei serão os princípios subjacentes às normas jurídicas, e a interpretação sistemática
que deve ser feita dos preceitos jurídicos. Consequentemente, deve prevalecer, contra o
“esquecimento” do legislador, a proteção normal das normas injuntivas – nomeadamente, a nulidade
cominada pelo artigo 294º CC, tendo em conta o seu regime jurídico consagrado no artigo 286º CC
–, visto que estas normas injuntivas procuram, também, tutelar o interesse público, devendo tal
natureza ser protegida. Concluindo, todas as deliberações contrárias à lei devem ser nulas.
➔ Denotar que, devido ao regime ser tão lacunar, poderá ser aplicado, de forma supletiva e
necessária, o regime das sociedades anónimas (e não o regime de deliberação das associações,
dado que esse também é bastante lacunar).

Natureza do direito de condomínio


Há uma pluralidade de direitos de propriedade sobre um prédio com edifício, que incidem
isoladamente sobre as frações, e em concurso sobre as partes comuns. Isto é, assim, diferente do que
acontece na compropriedade, onde existe um único direito sobre uma única coisa, mas existe uma
pluralidade de titulares desse mesmo direito. Ao contrário, na propriedade horizontal existem
várias coisas corpóreas, sendo que cada condomínio (titular) tem um direito de propriedade
sobre a fração autónoma dele; e outro direito de propriedade, em concurso com os outros,
quanto às coisas comuns.
Conceitualmente, a propriedade horizontal é, então, a soma destas situações jurídicas
distintas. Por isso, a maioria da doutrina considera que a propriedade sobre a propriedade horizontal
é um tipo especial de direito da propriedade. Já outra parte considera que esta é um tipo
completamente autónomo do direito de propriedade, no sentido de ser um direito real autónomo.

Natureza jurídica do condomínio em si


A perspetiva dominante será a normativista: sendo o direito um conjunto de normas, é
possível, a partir daí, construir a noção de personalidade jurídica, em que os direitos e os deveres são
efeitos das normas – sendo a pessoa o centro de imputação dessas normas. Consequentemente, serão
as normas jurídicas que decidem quando é que existe uma pessoa jurídica, já que a personalidade
jurídica é uma construção jurídica, e não um dado da natureza – a própria idea de que todos os seres
humanos são pessoas jurídicas nem sempre foi constante ao longo da história (ex: escravos).
Dito de outra forma, a atribuição de personalidade jurídica é sempre uma opção normativa. Isso
explica, então, que as pessoas coletivas sejam um numerus clausus, cuja personalidade jurídica vai
mudando ao longo do tempo. Ora, dentro desta lógica, existe uma distinção entre pessoas jurídicas
plenas e pessoas jurídicas rudimentares, importada por Manuel de Andrade da doutrina alemã:
➔ Na personalidade jurídica plena, existe uma decisão de atribuir personalidade jurídica é clara,
no sentido de equiparação total aos seres humanos. Consequentemente, poderá existir uma
extensão na aplicação de certas normas: ou seja, é possível pegar no artigo 158º CC e, conjugando-
o, por exemplo, com os artigos 165º e 483º CC, forma-se uma norma relativa à responsabilidade
civil da pessoa coletiva (ex: o representante legal da associação matou alguém no exercício da
sua atividade).

➔ Na personalidade jurídica rudimentar, como será o exemplo do condomínio, não existe um


artigo como o 158º CC – ou seja, não há nenhuma norma jurídica a atribuir personalidade jurídica
e, consequentemente, não opera essa lógica de extensão. No entanto, na personalidade jurídica,
rudimentar, por vezes, alguns direitos e deveres são atribuídos não às pessoas singulares, mas a
uma entidade jurídica que não tem personalidade jurídica plena – mas que, para aqueles efeitos
pontuais, tem direitos e deveres.
Ora, quanto aos condomínios, a lei optou por não estabelecer a sua personalidade jurídica. No
entanto, a lei acaba por o dotar de alguma organicidade, sendo esses órgãos e mecanismos jurídicos
típicos de uma personalidade jurídica – embora o condomínio não seja reconhecido como uma pessoa
jurídica (ex: o condomínio paga impostos, mas não é pessoa coletiva). Assim, por regra, os direitos e
deveres e todas as situações jurídicas são dos condóminos, ou individualmente ou em cotitularidade;
mas, depois, existem situações pontuais em que estes efeitos jurídicos cabem ao condomínio enquanto
entidade jurídica e enquanto personificação (ex: personalidade judiciária) – pelo que este tem uma
espécie de personalidade jurídica rudimentar, estando numa zona cinzenta entre ter e não ter
personalidade jurídica.
➔ Para Caetano Nunes, seria mais fácil se o condomínio tivesse personalidade jurídica plena.

Outras formas de organização da propriedade coletiva privada sobre edifícios:


Com a propriedade horizontal, altera-se o estatuto jurídico do edifício que era, antigamente,
de um único proprietário, passando a haver várias frações autónomas que, depois, podem ser a vários
proprietários cada uma – existe, assim, uma propriedade coletiva privada sobre esse edifício. O
proprietário que constitui poderá ser um promotor imobiliário, que vende a consumidores no
mercado imobiliário ou para escritórios.
No entanto, a propriedade horizontal não é a única forma de haver esta propriedade coletiva
privada sobre edifícios. Por exemplo, é possível criar uma sociedade, que será proprietária exclusiva
do edifício – não estando, por isso, em propriedade horizontal, mas sim em propriedade singular –;
mas que é, em si, constituída pelos vários sócios que, na prática, podem utilizar o edifício e os diversos
apartamentos. Esta será, então, uma forma indireta de propriedade privada em coletivo – que poderá
surgir devido à inexistência de uma licença de adminsitração que autorize a propriedade horizontal,
por exemplo.
Outro exemplo serão as cooperativas de habitação. Estas funcionam como promotores
imobiliários, em que os membros da cooperação são os tais consumidores no mercado imobiliário
que se unem e fazem a promoção imobiliária – só que, neste caso, em vez de criarem a propriedade
horizontal e venderem as diversas frações autónomas, os membros da cooperativa continuam a
utilizar os apartamentos, nunca os vendendo enquanto individuais.
Além disso, o direito real de habitação periódica, um direito real menor, também implica a
existência de um edifício em propriedade coletiva. O regime de empreendimentos turísticos, no
fundo, também cria uma coisa paralela à propriedade coletiva, mas apenas reservado ao turismo.
Por fim, também é possível utilizar esquemas contratuais para estabelecer situações
semelhantes à propriedade horizontal, mas sem conteúdo real. Nestes casos, o prédio pertence a todos,
mas alguém fica com ele por efeitos obrigacionais gerados por um contrato – ou seja, convenciona-
se que alguém habita este prédio exclusivamente, ao abrigo de um contrato meramente obrigacional
(sem oponibilidade erga omes). Não se considera, pois, que existe aqui uma propriedade horizontal,
visto que está em causa um direito de crédito, e não um direito reai.

O Registo Predial
Evolução do registo predial
Os direitos reais têm a característica da oponibilidade erga omnes, sendo que essa
característica reclama publicidade: ou seja, é por serem oponíveis perante terceiros que devem ser
publicitados, precisamente para que tais terceiros saibam que estes existam, e ajam com isso em
mente.
Tradicionalmente, o mecanismo tradicional de publicidade dos direitos reais é a posse. O
regime predial, enquanto alternativa ou como sistema de publicidade dos direitos reais, é, assim, na
história da humanidade, relativamente recente. Este está, sobretudo, associado à publicidade da
hipoteca: a hipoteca é uma garantia das obrigações, sendo principalmente usada pelos profissionais
do financiamento (os bancos), sendo que a atividade bancária sempre surgiu associada à existência
de garantias. Ora, a necessidade de melhorar os meios de tornar as hipotecas conhecidas levou à
instituição deste registo: se se regista a existência de uma hipoteca, regista-se a propriedade, no
sentido de se ficar a saber quem é o proprietário daquela coisa.
A partir deste registo específico sobre imóveis (apenas associado à hipoteca), passou-se, então, para
um registo geral de direitos sobre imóveis. Por um lado, este trouxe vantagens para os credores, visto
que estes sabem se o devedor tem ou não garantia, escolhendo se querem ou não emprestar, e com
maior ou menor taxa de juros. Por outro lado, este trouxe vantagens para os compradores, visto que,
estando a comprar uma coisa registada, têm mais segurança no negócio jurídico em questão.
O registo predial visa substituir, então, a publicidade espontânea dos direitos reais sobre
prédios, nomeadamente a inerente à posse, por uma publicidade organizada, disciplinada.
Em Portugal, a primeira lei hipotecária data de 1836, sendo depois criado o Código de Registo
Predial. Continuam, no entanto, a existir vários registos públicos de imóveis além do registo predial
propriamente dito – nomeadamente, as matrizes prediais (registo feito pela autoridade tributária) e
o cadastro predial (registo feito com finalidades de ordenamento do território). Como já se viu, estes
vários registos não abrangem todos os prédios e coexistem descoordenados – pelo que o objetivo
político será o de unificação destes três registos: isto porque, assim que o registo de direitos privados
e do fisco forem harmonizados com o da cartografia, passará a ser muito mais fiável, com uma
descrição dos prédios que, realmente, se traduzem na realidade (quer quanto à área do terreno, quer
quanto às suas extremas).

Fins e objeto do registo predial


O registo predial tem, assim, um fim de publicidade (artigo 1º CRPredial) da situação jurídica
dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário. Já o seu objeto serão, então,
factos com efeitos jurídico-reais – por exemplo, a compra e venda, que tem efeito de transmissão
de propriedade, é registada, pois é esse o facto que tem efeito jurídico-real. Consequentemente, o
proprietário, em si, já não é registado, embora seja possível deduzir a identidade do mesmo, através
do registo deste mesmo facto jurídico-real.
Sem prejuízo de eventuais exceções, a inscrição no registo predial de um certo facto não
determina, só por si, que esse facto gere a aquisição de um direito para o chamado sujeito ativo do
facto sujeito a registo. Isto porque, no direito português, as aquisições de direitos sobre imóveis
tendem a resultar de negócios jurídicos (contratos ou testamentos) ou da usucapião – sendo a chamada
aquisição tabular, ou seja, a aquisição resultante da inscrição do registo não baseada num negócio
jurídico válido, excecional.
Assim, em termos gerais, relativamente à transmissão de direitos, as inscrições registais podem
desempenhar várias funções, nomeadamente:
➔ Efeito meramente enunciativo ou declarativo: O facto poderá ser meramente publicitador, com
efeitos completamente produzidos por outros factos – ou seja, fica-se apenas saber este facto.

➔ Efeito transmissivo ou constitutivo: O registo do facto poderá ser gerador, por ele próprio e
exclusivamente, de transmissão (ou constituição) dos direitos e factos integrantes de um processo
de transmissão de direitos – ou seja, só se obtém o efeito jurídico-real se se proceder à inscrição
do facto em registo, algo típico do sistema do modo.

➔ Condição de eficácia (ou de oponibilidade): O registo do facto pode ser um condicionante,


relativamente a terceiros, da produção de efeitos resultantes de outros factos. Ou seja, só com a
inscrição registral é que se garante que existe oponibilidade perante terceiros – o registo é que
consolida esta proteção face a terceiros. Consequentemente, se o registo é condição de
oponibilidade, não há lado externo sem o registo: parte dos efeitos jurídico-reais só surgem com
o registo (enquanto o lado interno é possível só através do negócio).

Princípios orgânicos do sistema português


Para estudar o sistema português de registo predial, há que observar quer as linhas essenciais
do seu funcionamento, quer as linhas essenciais da sua organização.
Relativamente ao seu carácter estatal, denota-se que o registo predial é levado a cabo pelo
Estado, por serviços estatais designados por conservatórias do registo predial – é assim, ao Estado
que pertence esta base de dados. Este carácter público (no sentido de estatal ou oficial) do registo
predial não é uma inevitabilidade, pois são conhecidos sistemas de registos prediais privados (no
sentido de não estatais ou não oficiais) – por exemplo, o registo de instrumentos financeiros e valores
imobiliários, apesar ter função pública, pode ser feito pelos privados, nomeadamente por bancos.
Relativamente à sua base real, denota-se que a informação que consta da base de dados do
registo predial é reunida em torno dos prédios, e não em torno das pessoas que podem ter
propriedade sobre o prédio. Assim, a base de dados começa por fazer uma descrição predial sobre
o prédio, sendo que os registos são feitos por referência a uma dessas descrições. Depois de reunir
essa informação predial, existe, então, um segundo nível, que são os factos geradores de informação
que se inserem sobre esses prédios – sendo aí que estão as pessoas, as partes. Concluindo, a base são
os prédios, vendo-se depois, em relação a cada prédio, quais são as pessoas que podem ter direitos
reais sobre esse prédio.
As fichas de registo são ordenadas por freguesias e, dentro de cada delas, pelos números de descrição
dos prédios (artigo 23º CRPredial). Cada ficha tem a descrição quanto a aspetos físicos – área e
confrontações –, económicos – prédio rústico ou urbano – e fiscal – ponte com a base de dados da
matriz predial – do prédio (artigo 79º CRPredial). As descrições não ficam congeladas no tempo,
podendo haver averbamentos (artigos 88º e ss. CRPredial).
Relativamente à sua descentralização, este significaria que há uma conservatória de registo
predial por cada circunscrição territorial, não havendo um registo central. Isto acontecia até 2008, em
que cada conservatória tinha os seus livros, com a sua informação sobre os prédios que estavam nas
freguesias pertencentes à circunscrição – o que implicava que os atos de registo predial tivessem de
ser requeridos e efetuados na conservatória da área de localização do prédio relevante, bem como que
as certidões dos factos registados tivessem de ser requisitadas a tal conservatória.
No entanto, este princípio é, atualmente, meramente formal, visto que a partir de 2008, foi criada uma
base de dados completamente centralizada. Assim, agora, para alterar uma inscrição, não será preciso
ir à localidade específica – pode-se fazê-lo em qualquer conservatória, ainda que o prédio não esteja
baseado na mesma.

Princípios funcionais do sistema português


Obrigatoriedade:
A obrigatoriedade tem, aqui, duas facetas, podendo ser direta ou indireta. A obrigatoriedade
direta existe em relação a determinadas entidades públicas com funções públicas – nomeadamente,
os notários. Assim, todas as entidades que têm funções publicas de formalização, têm o dever
técnico jurídico de promover o registo (artigo 8º-B CRPredial) tendo de comunicar à conservatória
a existência desses factos com efeitos jurídico-reais (ex: se fizerem uma escritura de compra e venda,
devem enviá-la).
No entanto, tal obrigatoriedade direta não existe para particulares que intervêm nos factos
geradores de efeitos jurídico-reais – o que existe é, sim, um ónus de promover o registo. Assim, tal
não será obrigatório, mas necessário, no sentido de que, enquanto o facto não for registado, na maior
parte dos casos, este não terá a oponibilidade erga omnes – ora, se se quer obter a mesma, terá de se
registar dito facto. Aliás, isto é deveras importante quando existem dúvidas sobre quem é o
proprietário de algo vendido duas vezes: nomeadamente, quem registar primeiro, fica com a
propriedade dessa coisa. Daí que para os particulares haja uma obrigatoriedade indireta, pois há um
ónus de promover o registo – existindo vantagens que estão condicionadas a esse registo.

Oficiosidade:
A oficiosidade contrapõe-se ao princípio da instância, significando, aqui, que as as entidades
que exercem funções públicas promovem o registo, independentemente da iniciativa dos
particulares. No entanto, denota-se que os sujeitos também têm legitimidade para pedir o registo,
nos termos do artigo 36º do CRPredial.

Tipicidade:
A tipicidade dos factos implica que existe um elenco taxativo, fechado, dos factos – e não
dos direitos reais – sujeitos a registo, em função dos seus efeitos jurídico-reais, nomeadamente
descrito no artigo 2º, nº1 do CRPredial. Para além dos factos que incluem a transmissão, também
serão objeto de registo as ações do artigo 3º, nº1 do CRPredial, incluindo a impugnação pauliana, os
procedimentos cautelares, etc.

Legalidade:
Segundo este princípio, o conservador do registo predial tem o poder-dever de recusar os
pedidos de registo que não se conformem com a lei (artigos 68º e ss. CRPredial). Existe, assim, um
controlo da legalidade (formal e substancial) pelo conservador, que abrange a validade do registo, o
que implica que este olhe para os documentos apresentados, para a legitimidade dos interessados,
para a regularidade formal dos títulos e para a validade dos atos neles contidos – do que lhe é pedido,
o conservador só deve registar aquilo que é conforme com a lei.
A propósito disto, distingue-se conceptualmente o sistema de registo por mera transcrição
– em que a conservatória recebe a informação de forma acrítica, colocando-a na base de dados sem
proceder a qualquer controlo em relação à legalidade formal e substancial – do sistema de registo de
controlo ou homologação, que é o sistema que vigora em Portugal. No entanto, mesmo aqui, existem
casos de registo sem qualificação, nomeadamente feitos no domínio do registo comercial, por
depósito (artigo 53º-A do respetivo Código).

Princípio do trato sucessivo:


Segundo este, a realização de cada registo de aquisição ou oneração depende do registo
prévio a favor do transmitente ou onerante. Ou seja, para transmitir ou onerar, a pessoa terá de estar
inscrita previamente no registo predial – por exemplo, se B quer transmitir ao C um imóvel, por
compra e venda (facto sujeito a registo, dado ter efeitos jurídico-reais), o conservador só vai aceitar
a inscrição deste facto, se conseguir perceber que B é, efetivamente, o proprietário. Isto implica,
então, que haja um facto anterior, com efeitos jurídico-reais, inscrito na base de dados no registo
predial do qual resulta que B é proprietário. Se, por exemplo, não tiver sido registado o facto que deu
origem à compra e venda entre B e A (anterior proprietário do imóvel), B não poderá registar o imóvel
a seu favor – e o mesmo acontecerá, então, com C, que vai ser afetado por esta situação.
➔ O controlo da legitimidade que fala o artigo 68º está precisamente relacionado com isso.
O artigo 9º CRPredial, por sua vez, determina que o os factos de que resultem transmissão de direitos
ou constituição de encargos sobre imóveis não podem, em geral, ser titulados sem que os bens estejam
definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire o direito ou contra a qual se constitui
o encargo. Fala-se, aqui, de uma regra de legitimidade ou legitimação de direitos imóveis, próxima
ao trato sucessivo, mas que em vez de regular as condições do ato de registo, regula o ato notarial –
ou seja, a elaboração do título. Assim, para fazer a própria escritura pública, também é necessário que
haja esta legitimidade, sendo esta também relevante quando se vai ao notário; e não apenas no ato
posterior de aquisição ou oneração.
No entanto, existem exceções ao princípio do trato sucessivo, ditadas no artigo 34º CRPredial,
em que se admite a inscrição registral sem observar a regra do trato sucessivo, nomeadamente:
➔ Registo de ações judiciais e procedimentos judiciais: Por exemplo, B e C tentam registar uma
compra e venda, estando B registado como proprietário na base de dados; mas D vem propor uma
ação sobre a nulidade desse facto jurídico, argumentando que seria ele, e não b, o proprietário.
Ora, neste caso, é registrável a pendência da ação, sem o conservador se ter de preocupar com o
trato sucessivo de D.
o Esta regra, no entanto, poderá levar a abusos, dando espaço para litigâncias de má-fé.

➔ Justificação notarial e justificação na conservatória, associada à aquisição de propriedade por


usucapião (artigos 116º e ss. CRPredial):
o Por exemplo, B vem dizer que tem a posse do dito imóvel há 20 anos, não interessando se
este foi registado em nome de qualquer outro terceiro. Ora, se este tem a posse naquele tempo,
quem vai passar a ser proprietário é B, não interessando, de facto, o que está na base de dados
– existindo uma aquisição originária, o trato sucessivo não faz sentido. Assim, para registar
uma aquisição originária, é necessária uma ação judicial, que é objeto de registo juntamente
com a sentença; não sendo, aí, observado o princípio do trato sucessivo.

o No entanto, a lei já prevê um mecanismo específico de reconhecimento da aquisição por


usucapião mais ágil, sem ter de se ir a tribunal – a justificação junto do notário ou do próprio
conservador. Na prática, o interessando terá de declarar, perante três testemunhas, ser, com
exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e
referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais – devendo
mencionar, quando for alegada a usucapião baseada em posse não titulada, as circunstâncias
de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam
a posse geradora da usucapião.
▪ Depois disso, é feita a citação de éditos, através de um anúncio, de potenciais
interessados – e, se ninguém disser nada em contrário, o facto gerador da propriedade é,
então, registado.

➔ Possibilidade de obter registo definitivo de penhora, arresto ou declaração de insolvência


sobre bens inscritos a favor de outrem que não o executado, requerido ou insolvente (artigo
119º CRPredial):
o Existem situações em que o credor é o banco e B é o devedor, registado como proprietário
do facto compra e venda (no qual ele adquiriu a propriedade) – ora, aqui, não foi B que
constituiu voluntariamente este ónus, mas foi o tribunal que o obrigou, pelo que há sequência
e trato sucessivo.
o No entanto, pode acontecer que o banco faça o tal registo de penhora, mas colocando C, e
não B, como devedor – algo relativamente frequente, se, por exemplo, entretanto o imóvel
foi de facto vendido a C, por B. Ora, se essa informação não for dada à base de dados do
registo predial, o conservador encontrará um desfasamento: logo, não há trato sucessivo –
o banco está a fazer uma penhora sobre o bem que tem por referência C, mas da
informação que resulta da base de dados seria B.

o Ou seja, se se seguisse o princípio do trato sucessivo, seria necessário que, primeiro, houvesse
tal inscrição, para que depois pudesse haver penhora pelo banco – por isso, aqui, abre-se uma
exceção ao mesmo: a conservadora vai aceitar uma penhora a favor do banco credor, tendo
como devedor C, ainda que a transmissão de B para C não tenha, ainda, sido registada.

o Consequentemente, é realizado o registo da penhora, de forma provisória, enquanto se


procede nos termos do artigo 119º CRPredial, de forma a verificar se a coisa pertence a B (e,
por isso, se penhoraram algo errado) ou se, efetivamente, pertence ao C – ou seja, a
conservatória cita oficiosamente o titular inscrito (B) para declarar se o bem lhe pertence.
▪ Se B se opuser a isto, o registo provisório da penhora a favor do banco permanece
enquanto o caso é levado a tribunal. Se, aí, se se chegar à conclusão que o bem não
pertencia ao C, o registo é, então, apagado.
▪ Se se chegar à conclusão que o bem pertencia a C, ou se B se remeter ao silêncio, o
registo é tornado definitivo – o que permite aos credores superar a falta de registo a favor
de um devedor.

Princípio da prioridade:
Segundo este, o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que lhe seguirem
relativamente aos mesmos bens, de acordo com a ordem da data da inscrição dos registos. Dito de
outra forma, se vários direitos registados são substancialmente incompatíveis, prevalece, regra geral,
aquele cujo registo foi realizado em primeiro lugar (artigo 6°, n°1 CRPredial). Por exemplo, se A
vende primeiro a B, e depois a C, o mesmo prédio, mas C faz primeiro o registo de aquisição, será
este, então, que prevalece como proprietário desse prédio. Na mesma lógica, se A vende um prédio a
B e, após essa venda, mas antes do registo de aquisição por parte de B, o prédio é penhorado (e a
penhora registada) no âmbito de uma execução movida por C contra A, a penhora é oponível a B
enquanto “não-proprietário” e a venda executiva do prédio terá, eficazmente, lugar.
Ainda a propósito da prioridade como princípio registral, refere-se a figura do registo
provisório, mencionada no n°3 do mesmo artigo 6°, que implica que haja, antes do negócio jurídico
ser efetivado (por exemplo, através da escritura pública, no caso de um imóvel), uma comunicação à
conservatória dessa intenção de realizar tal contrato. Ou seja, o registo provisório é feito antes da
inscrição registral “oficial”, feita depois quando já se tem o título do facto jurídico.
Como foi visto anteriormente, os registos podem ser provisórios por força de dúvidas que levantem
ao conservador, por força da sua natureza ou por ambas as razões. Por isso, os bancos exigem sempre
que se faça este registo provisório, de forma a assegurar que nada atrapalha o negócio jurídico – isto,
porque o registo definitivo, na perspetiva da propriedade, vai retroagir ao momento do registo
provisório. Ou seja, o registo provisório retroage a proteção dada pelo registo, no sentido em que, se
este não existir, só a partir do momento em que existe o registo definitivo é que existe proteção legal.
Tais registos provisórios permitem, assim, aos adquirentes e aos concedentes de crédito hipotecário
ter a certeza de que os seus direitos não serão afetados por factos ocorridos após as suas decisões de
adquirir ou de conceder crédito, e antes da data da requisição dos registos definitivos.
No entanto, tendo em conta que as aquisições e as hipotecas não podem resultar de meros registos
(implicando negócios jurídicos eficazes), levanta-se a dúvida de se, de facto, em caso de o registo
provisório ser realizado em momento anterior ao do negócio transmissivo ou constitutivo (como é o
mais frequente), a sua conversão em registo definitivo faz que este retroaja à data do registo
provisório. Por outras palavras: a prioridade garantida pelo registo provisório pode referir-se a
um momento anterior ao do negócio transmissivo ou constitutivo que estiver em causa?
➔ Como se viu, a razão de ser do registo provisório apontaria para que sim; no entanto, a regra do
artigo 408, n°1 CC vai em sentido contrário. Devido a isto, a doutrina e a jurisprudência têm
assinalado a tais registos provisórios a mera finalidade de assegurar a prioridade entre atos
incompatíveis praticados pelo transmitente – algo verificado no acórdão do STJ de 19.3.2019: “O
registo provisório de aquisição [art. 92.°, n.° 1, alínea g) do CRPredial] não pode ter por
finalidade transmudar um futuro direito (o direito do futuro adquirente) num direito atual do
futuro adquirente, como se o direito já tivesse sido transmitido, com a consequência de tornar
inadmissível o exercício de direitos de terceiros credores sobre o futuro alienante (através, por
exemplo, de um arresto). O que esse registo visa é tão-somente, assegurar a inoponibilidade
(ineficácia) no confronto do futuro adquirente dos atos incompatíveis praticados, entretanto pelo
futuro transmitente sobre a coisa. Neste caso importa convocar o disposto no art. 6.° do
CRPredial, na sua devida interpretação, de sorte que o direito que foi inscrito em primeiro lugar
(o direito do futuro adquirente) prevalece sobre os direitos (que se lhe sigam) constituídos pelo
futuro alienante a favor de terceiros”. Assim, para a jurisprudência maioritária, os efeitos do
registo provisório retroagem apenas até ao negócio jurídico constitutivo.

➔ No entanto, para Caetano Nunes, a sequência mais frequente será o modo (registo) provisório, o
título e, depois, o modo definitivo. Assim, se não houver registo provisório, só a partir do
momento em que se procede ao modo definitivo é que se goza da proteção legal fornecida pelo
registo – mas se se tiver realizado o registo provisório, tais efeitos retroagem ao mesmo. Aliás,
para este, é claro que a oponibilidade erga omnes retroage ao momento do registo provisório,
podendo surgir, inclusive, antes do título. Isto, porque a grande utilidade do registo provisório é,
precisamente, o facto de os efeitos retroagirem tão cedo.

Factos sujeitos a registo


O artigo 3º CRPredial contém a lista das ações, decisões, procedimentos e providências
sujeitos a registo; enquanto o artigo 2º do mesmo código contém a lista dos factos sujeitos a registo
– sendo este um elenco exaustivo, que leva, por isso, a concluir que a generalidade dos factos que
possam gerar efeitos jurídico-reais serão objeto de registo.
Os factos não sujeitos a registo serão, então, a usucapião e as servidões aparentes (artigo 5º,
nº2 CRPredial), sendo estes casos em que a oponibilidade dos direitos reais não depende do registo.
Relativamente à usucapião, o seu não registo justifica-se pela sua própria natureza, no sentido de ser
uma aquisição originária da propriedade, sem antecedentes e que se dá com a posse de algo durante
vários anos – o que poderá haver, em vez do registo, é uma ação judicial de reconhecimento ou um
procedimento de reconhecimento na conservatória.
Relativamente às servidões aparentes, estas não precisam de ser registadas devido ao facto de estas
já terem uma vertente de publicidade inerente: as servidões aparentes, ao contrário das servidões
feitas por negócio jurídico (que são sujeitas a registo, ao abrigo do artigo 5º, nº1, alínea a) CRPredial),
são aqueles que se mostram por sinais visíveis – consequentemente, não são então sujeitas a registo
porque são, objetivamente, visíveis (ex: A tem um prédio encravado, existindo um caminho de asfalto
que passa pelo prédio serviente e se liga à estrada).
Existem ainda outras exceções. Como se sabe, há várias garantias que são publicitadas no
registo predial, como é o caso da hipoteca (artigo 2º, nº1, alínea h) CRPredial) – feita para segurança
do credor hipotecário, mas, também, para segurança de todas as pessoas em geral. No entanto, existem
pelo menos outros dois direitos reais de garantia – privilégios creditórios e direito de retensão –
que não são sujeitos a publicidade registral, pois não estão no elenco taxativo dos factos sujeitos a
registo. São, assim, as chamadas garantias reais ocultas, no sentido de não serem publicitadas.
➔ No entanto, Caetano Nunes defende que estas deveriam, também, estar registadas por uma
questão de constitucionalidade, pois constituem limitações surpresa ao direito de propriedade,
no sentido do artigo 62º CRP.

Efeitos do registo
Efeito enunciativo ou declarativo:
O registo tem um efeito enunciativo ou declarativo, que consiste na mera publicidade
associada ao mesmo. Isto acaba por não ser, propriamente, um efeito jurídico, já que a propriedade é
um efeito sociológico – sendo isto independente de qualquer efeito jurídico específico. De qualquer
das formas, os registos dão conhecimento à comunidade dos factos que deles são objeto,
conhecimento esse que é relevante para os mais variados fins. Além disso, a um sistema registral
cujos efeitos sejam apenas enunciativos pode chamar-se “registo declarativo”.

Efeito constitutivo ou transmissivo:


Além disso, o registo poderá ter um efeito constitutivo ou transmissivo: a inscrição registral
é condição ou elemento para a transmissão ou constituição de um direito – opondo-se este efeito
ao efeito meramente declarativo, visto anteriormente. Ou seja, com neste efeito (normalmente,
associado aos sistemas de modo), por exemplo, um contrato de compra e venda de um imóvel entre
A e B só gerará apenas efeitos obrigacionais, sendo que os efeitos reais do mesmo (domínio e
oponibilidade erga omnes) apenas surgem com a inscrição do facto no registo predial.
Em Portugal, o efeito constitutivo é expressamente guardado para a hipoteca: ou seja, a
eficácia jurídico-real dos factos constitutivos da hipoteca, mesmo entre as próprias partes, depende
da realização do registo (artigo 4º, nº2 CRPredial; e artigo 687º CC). Além disso, em rigor, também
no fenómeno da inscrição tabular, é com base no registo que surgem os efeitos jurídico-reiais – no
entanto, tratando-se esta de uma hipótese patológica, acaba por ser uma zona cinzenta.

Efeito de oponibilidade perante terceiros:


O registo poderá ter um efeito de oponibilidade erga omnes: ou seja, regra geral, os factos
sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros a partir da data do registo (artigo 5º, nº1
CRPredial). Esta regra representa uma situação intermédia entre o efeito meramente enunciativo e o
efeito constitutivo: a inscrição no registo predial não tem efeitos de mera publicidade, mas também
não produz os efeitos reais todos, já que o domínio começa, logo, com o contrato. Ou seja, apesar de
os efeitos jurídico-reais apenas surgirem com o registo, na realidade, do contrato resulta logo o poder
direto sobre a coisa – pelo que o efeito jurídico real que o registo tem será, então, o lado externo, que
surge com o modo e não apenas com o título.
Dito de outra forma, se só existisse o artigo 408º CC entre nós, o que valeria era sempre o primeiro
esquema apresentado, em que o registo apenas gera publicidade, visto que a transmissão do direito
de propriedade opera por mero efeito do contrato. No entanto, especialmente nas situações de
imóveis, o ordenamento jurídico remete para o artigo 5º CRPredial, segundo o qual a oponibilidade
perante terceiros só surge com o registo – pelo que, em sede deste artigo, existe um sistema misto: o
título tem o lado interno; e o modo tem o lado externo. Já para a hipoteca, vale apenas o efeito
constitutivo: ou seja, aplica-se, a esta, não o sistema misto, mas o sistema de modo exclusivamente.

REGIME DE IMÓVEIS HIPOTECA

➔ Efeitos obrigacionais
(obrigação de entrega e
➔ Efeitos obrigacionais
CONTRATO DE CV de pagamento)
(obrigação de entrega e de
(TÍTULO)
➔ Efeito real – domínio pagamento)
(transmissão da
propriedade)

INSCRIÇÃO NO ➔ Efeito real – ➔ Efeito real – domínio +


REGISTO PREDIAL oponibilidade perante oponibilidade perante
(MODO) terceiros (nº4) terceiros (nº4)

➔ Pode-se, ainda, argumentar que este efeito constitutivo (que não surge como regra geral, porque
não existe, em Portugal, o sistema do modo de forma abrangente), também se aplica às hipóteses
de aquisição tabular (artigos 5º, nº1 e 17º, nº2 CRPredial). Esta passa da ideia do registo
enquanto proteção das transações económicas, o que implica que o direito de propriedade possa
manter-se por aquisição ope legis com fundamento no registo. Por exemplo, existe um problema
no registo R1 da compra e venda entre A e B, que gera a nulidade desse contrato – no entanto, já
existiu outra compra e venda entre B e C, com o registo R2: ora, de modo a proteger o terceiro C
de boa-fé, mantém-se a propriedade deste.
O sentido exato da regra deste artigo 5º depende, naturalmente, do conceito que se tem de
terceiros. Se por terceiros se entendessem todos à exceção dos intervenientes no facto sujeito a
registo, antes do mesmo, só se produziriam efeitos entre os neles intervenientes – o que seria quase
equivalente a atribuir um efeito constitutivo (ou transmissivo) ao registo.
Assim, o conceito de terceiros adotado pela doutrina e pela jurisprudência restringe, de há muito, o
círculo de quem está em causa: entende-se que terceiros não são todos os não intervenientes no facto
relevante, mas apenas os nele interessados. Há que enfatizar que, mesmo dentro de tal entendimento,
a própria definição de quem é interessado tem sido polémica, havendo conceções amplas e restritas
do conceito em causa. No entanto, desde 1999, é a própria lei (artigo 5º, nº4 CRPredial) que tenta
esclarecer o conceito de terceiros aqui relevante, fazendo-o de acordo com uma interpretação
restritiva, expressa nas palavras “terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido
de um autor comum direitos incompatíveis entre si”.
Assim, em geral, a eficácia – seja entre as partes, seja nas relações das partes com terceiros, bem
como, ainda, nas relações entre terceiros – dos factos sujeitos a registo não depende da efetuação
do mesmo; sendo que se excetuam os casos em que duas pessoas adquiram, de outra, direitos
incompatíveis entre si, vindo prevalecer o direito inscrito em primeiro lugar.
Efeito consolidativo:
Alguma doutrina (Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro) faz menção ao efeito
consolidativo: embora todos os efeitos jurídico-reais surjam logo num primeiro momento, é com o
registo que o direito real é consolidado. Ou seja, será com o registo que o adquirente de um direito
real fica protegido contra a possibilidade de outra pessoa adquirir, do mesmo alienante, um direito
incompatível.
No entanto, de acordo com Caetano Nunes, isto acaba por não significar nada. Além de já
existir oponibilidade perante terceiros antes do registo, a própria ideia de consolidação é abstrata –
não se sabendo mais o que significa “consolidar um direito real”. Aliás, mesmo nas situações em que
a oponibilidade só surge com o modo, não faz sentido dizer, que o direito real surge antes do mesmo.

Efeito de presunção de existência do direito registado:


O efeito presuntivo determina que a inscrição registral faz presumir a existência do direito
real registado, bem como a sua pertença ao titular do registo (artigo 7º CRPredial): ou seja, quem
tem um direito registado a seu favor presume-se titular desse direito enquanto o registo estiver em
vigor (artigo 13º CRPredial).
➔ Por exemplo, numa ação de reivindicação, A tem de alegar e provar que é proprietário. Ora, para
isso, poderá 1) alegar e provar os factos que dariam origem a uma aquisição originária (não
bastando a prova de uma mera uma aquisição derivada – artigo 1311º CC); ou 2) alegar um facto
do qual resulta uma presunção registral – no sentido de que, se A tem aquele prédio registado,
presume-se que este é o proprietário, já não tendo de alegar a sua aquisição originária, nos termos
do artigo 7º CRPredial.
No entanto, uma exceção a este efeito serão as situações em que há imputação da escritura de
justificação, que afirma a aquisição por usucapião: ou seja, tendo registo sido feito com base em tal
escritura pública, se esta foi impugnada, não pode o registo constituir qualquer presunção de que o
direito existe.
Nos termos do artigo 1268º, nº1 CC (presunção da titularidade do direito), não há apenas
uma presunção derivada do registo, mas, também, uma presunção derivada da posse: ou seja, não
é apenas o registo que faz presumir a titularidade do direito; a posse também faz presumir essa
titularidade – sendo esta, assim, outra hipótese de comprovação da titularidade do direito, em vez de
fazer prova da aquisição originária da propriedade.
O que vale, então, mais? Para Caetano Nunes, devia ser o registo. No entanto, segundo o artigo 1268º,
nº1 CC, em caso de existência das duas presunções, prevalece a que for mais antiga – critério de
prioridade temporal das presunções. Significa isto que o CC desvaloriza o registo predial, colocando
em pé de igualdade a presunção derivada do mesmo e a presunção da posse, valendo a que for anterior.

Efeito de legitimação:
O efeito de legitimação deriva do artigo 9º CRPredial e, na sua essência, está intimamente
relacionado com o princípio do trato sucessivo: a transmissão de direitos reais ou a constituição
de encargos depende da prévia inscrição dos prédios – objetos da transmissão ou constituição de
encargos – a favor do transmitente ou onerante. Do ponto de vista prático, isto significa que só se
poderá lavrar uma escritura pública se a situação do prédio em causa estiver regularizada no registo
predial – nomeadamente, só se consegue fazer a escritura pública se se mostrar ao notário a inscrição
no registo predial, através de uma certidão da conservatória. Consequentemente, o registo predial
terá, em geral, um efeito de legitimação no direito português vigente.
Por exemplo, para que B possa alienar o seu prédio a C, este tem de estar previamente inscrito no
registo predial a favor de B – caso contrário, o notário decidirá que este não tem legitimidade para
alienar a C, não lavrando a escritura de compra e venda a favor do mesmo.

Coordenação das regras sobre o registo com os demais elementos do sistema


As regras sobre registo predial têm de ser coordenadas com as demais regras vigentes,
nomeadamente com as regras constantes do CC – que determinam que, em princípio, a constituição
ou transferência de direitos reais se dá por mero efeito dos contratos (artigo 408º CC).
Especificamente, em Portugal, a base formal da luta doutrinária e jurisprudencial contra a relevância
do registo predial foi o artigo 5º, nº1 CRPredial, segundo qual os factos sujeitos a registo só produzem
efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo. O principal expediente interpretativo –
sem qualquer base hermenêutica – foi a defesa de um conceito restritivo de terceiros, limitado a
quem tenha adquirido direitos conflituantes de um mesmo transmitente ou autor. O nº4 do
mesmo artigo 5º consagra, expressamente, essa interpretação.

Querela doutrinária quanto ao artigo 5º, nº4 do CRPredial:


Como já foi referido, a doutrina encontrava-se dividida acerca da exata delimitação do
conceito de terceiro. O artigo 5º, que fala sobre a oponibilidade perante terceiros, tem como estatuição
normativa, no limite, a aquisição da propriedade por quem inscreveu em primeiro lugar – o que
estabelece, então, a oponibilidade erga omnes a favor de quem regista. No entanto, retira-se daqui
outra norma: nomeadamente, a que afirma que, no caso de dupla alienação, quem regista em
primeiro lugar ganha ope legis a propriedade – sendo a estatuição da mesma a aquisição da
propriedade pelo terceiro com base na lei.
A jurisprudência, até 1997, embora dividida, ia maioritariamente no sentido da dita
interpretação restritiva do conceito de terceiro. No entanto, contra a corrente dominante, o acórdão-
assento do STJ de 20.05.1997 estabeleceu que terceiros, para efeitos de registo predial, são todos os
que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado
por um qualquer facto jurídico anterior não registado, ou registado posteriormente.
Consequentemente, o acórdão-assento do STJ de 18.05.1999 restabeleceu a orientação tradicional,
consagrando que terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5°, são os adquirentes de boa-fé, de
um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa.
Por detrás deste acórdão estava a corrente doutrinária de Coimbra, que restringia o conceito de
terceiros para efeitos de registo predial – invocando, em seu abono, as palavras de Manuel de
Andrade: “terceiros para efeitos de registo predial são as pessoas que, do mesmo autor ou
transmitente, adquirem direitos incompatíveis (total ou parcialmente) sobre o mesmo prédio”. A
Escola de Lisboa, por sua vez, não concordava com esta restrição, assumindo que terceiros são todas
as partes que não fazem parte da relação jurídica contratual – ou seja, terceiros é o infinitivo/a
humanidade, em contraposição com o conceito de parte. Para Caetano Nunes, contudo, não há
terceiros para efeitos do registo; mas, sim, terceiros para efeitos do direito real.
De qualquer das formas, houve uma alteração legislativa para consagrar a corrente
doutrinária de Coimbra, aditando-se que o nº4 iria diminuir o campo de aplicação deste artigo 5º.
O cerne da interpretação consagrada no acórdão-assento de 1999 tornou-se, então, obviamente
incontestável, visto que dizer o contrário era, agora, contra legis. No entanto, esta alteração legislativa
não solucionou todos os problemas que surgem nesta área – nomeadamente, porque há hipóteses em
que é duvidoso se as aquisições são feitas a um mesmo transmitente.
Aqui, o caso socialmente mais relevante será o de haver lugar à penhora (e subsequente venda
executiva) de um prédio, no âmbito de uma execução movida por um terceiro; e de tal penhora ser
registada antes de o ser uma alienação voluntária a que o executado, proprietário do bem, tenha
anteriormente procedido. Exemplificando: A vende a B mas, antes desta aquisição ser registada, é
registada uma penhora realizada numa execução movida por C contra A – ora, se o registo da penhora
prevalecer, os interesses de B são prejudicados; mas se o registo da penhora ceder perante a aquisição
prévia, são os interesses dos credores (e a fé pública no registo predial) que sofrem tal prejuízo.
Como se disse, o nº4 não esclarece esta situação, apesar de ela ser a socialmente mais relevante. Na
verdade, a questão de saber se quem adquire, no âmbito de um processo executivo, adquire ao
executado não é de resposta óbvia; assim como não o é a questão de saber se os direitos do penhorante
derivam dos direitos do titular do direito penhorado. Assim, havia quem sustentasse que só as
transmissões voluntárias devem ser consideradas relevantes para efeitos desta regra, segundo a
qual são terceiros aqueles que tenham adquirido, de um autor comum, direitos incompatíveis entre si.
No entanto, havia, também, quem defendesse que os direitos do penhorante e do comprador a tal
proprietário derivam de um mesmo autor, sendo, pois, o penhorante (e o adquirente na venda
executiva), e o comprador (voluntário) terceiros no sentido em causa.
Ora, ao referir, no nº4, a expressão “autor comum”, e não “transmitente comum”, o legislador
parece ter querido abranger mais do que as transmissões voluntárias – possibilitando, pois, a defesa
da tese da prevalência, na situação-tipo discutida, do direito do penhorante (e do adquirente na venda
executiva). No entanto, a doutrina e a jurisprudência posteriores a esta alteração legislativa têm
oscilado entre as duas posições:
Por um lado, a Escola de Coimbra, com Orlando Carvalho, defende uma interpretação ultra
restritiva. Ou seja, se existem dois privados, e há uma dupla alienação de um transmitente comum –
A transmite ao B e ao C –, quem regista primeiro é que fica com a propriedade. Já na situação em que
não há um transmitente comum, mas sim um credor com uma penhora, existindo uma transmissão
involuntária – por exemplo, A transmite a C, mas no âmbito de um processo de penhora movido pelo
Banco contra A, esta é registada antes de C registar a transmissão do direito de propriedade –, Orlando
de Carvalho faz uma interpretação restritiva para proteger o cidadão, e não o banco credor. Assim,
casos como este deverão ficar fora do âmbito deste nº4. O critério será, então, a voluntariedade da
criação de direitos incompatíveis: isto é, se o autor comum promoveu a dupla alienação de forma
consciente e voluntária, deve ser aplicada a interpretação restritiva do conceito de terceiros; caso
contrário, no exemplo que se viu acima, já não deve ser aplicada a interpretação restritiva do conceito
de terceiros – ou seja, o banco, no caso, não será terceiro para efeitos do registo e, por isso, o facto
produz logo efeitos, e não apenas depois da data do respetivo registo (artigo 5º, nº1 a contrario).
➔ Na base desta conceção estão considerações de justiça e de ideologia fortemente de esquerda: na
dupla alienação voluntária, as pessoas prejudicadas tendem a ser consumidores, cidadãos normais
que estão a tentar comprar uma casa. Por sua vez, nas situações de dupla alienação involuntária,
quem penhora são os credores e os bancos, sendo que a pessoa que comprou a casa inocentemente
seria prejudicada se se considerasse aqueles como “terceiros”, para efeitos do dito nº4.
Assim, para Orlando de Carvalho, só surge a oponibilidade com o registo relativamente a terceiros
com transmissão voluntária – enquanto na transmissão não voluntária, tal oponibilidade surge logo
com o título, e não apenas depois com o modo, nos termos do artigo 408º CC.
Já segundo a Escola de Lisboa (incluindo Rui Pinto Duarte), a interpretação fixada pelo acórdão de
1999 não era a correta. Nesta, entendia-se que, por via de regra, a constituição e transmissão de efeitos
reais não se dava apenas por um ato, mas por um processo que se iniciava com o negócio que dá base
à transação económica, e acabava com a inscrição registral. Assi, o registo predial teria um efeito
transmissivo/constitutivo, no sentido em que seria uma etapa no processo de constituição/transmissão
de direitos reais. Consequentemente, esta corrente não faz uma diferenciação entre casos de dupla
alienação voluntária e involuntária, defendendo que o nº4 deverá abranger ambos os casos – falando-
se, aqui, de um transmitente comum.
Assim, o conceito de terceiros deveria ser visto como pessoas que não são partes, no sentido de toda
a humanidade. No entanto, e sendo essa ideia contra legis ao abrigo do nº4, a Escola de Lisboa vem
defender, então, que não se deve aplicar a interpretação ultra restritiva antes apresentada – de que
terceiros são apenas os que têm direitos incompatíveis adquiridos por transmissão voluntária –; mas,
sim, a interpretação de que é indiferente se os direitos incompatíveis foram adquiridos por transmissão
involuntária ou voluntária, aplicando-se o nº4 em ambos os casos. Dito de outra forma, o negócio
jurídico gera, por um lado, efeitos obrigacionais entre as partes; e, por outro, efeitos reais de
oponibilidade perante todos os terceiros que não os abrangidos pela interpretação restritiva, quer se
trate de uma dupla alienação voluntária ou involuntária.
De qualquer das formas, a verdade é que a jurisprudência continua a dar prevalência à
solução da escola de Coimbra, o que leva a concluir que o artigo 5º , nº4 CRPredial deve apenas
ser aplicado às situações de dupla alienação voluntária: o contrato só produz efeitos contra terceiros
depois da data do respetivo registo (modo). Já quanto aos casos de dupla alienação involuntária, a
oponibilidade erga omnes surge no momento da celebração do contrato (título) para todos os
terceiros, inclusive para aqueles que estariam abrangidos pela interpretação restritiva – protegendo-
se, assim, os adquirentes “normais” dos credores (que, regra geral, são bancos e empresas).
Além disso, alguma doutrina (Menezes Cordeiro) sustenta que esta proteção de terceiros só
funciona se o terceiro estiver de boa-fé (subjetiva); se não, não é protegido. Ou seja, nas situações
de dupla alienação voluntária – A vende a B e a C –, o primeiro a registar só adquire a propriedade
da coisa se estiver de boa-fé: isto é, se não conhecia nem devia conhecer que B tinha adquirido a
propriedade por contrato. Esta é uma interpretação restritiva, dado diminuir o campo de aplicação
do artigo 5º, ao adicionar mais um elemento da previsão normativa.
Para Caetano Nunes, essa tese não tem o mínimo exigível de correspondência na letra da lei, nem no
espírito – no entanto, esta tese merece largo apoio na doutrina e na jurisprudência. De qualquer das
formas, para este professor, a lógica do registo será criar segurança nas transações e estabilidade na
economia, e não tutelar a confiança jurídica: independentemente de o terceiro estar de boa-fé, o
registo irá simplificar e operar de forma automática – depois, dito terceiro poderá disputar essa
operação em tribunal, argumentando, aí, pela sua boa-fé.
Por último, sublinhe-se que a relevância prática dos problemas em causa diminuiu
radicalmente com a reforma do registo predial de 2008: sendo agora o registo obrigatório, poucos
serão os casos em que um facto posterior será registado antes de outro facto sujeito a registo.

O problema do artigo 291º CC:


O artigo 291º CC já nada tem a ver com a situação que se discutiu anteriormente, tratando-se,
agora, dos casos de alienação sucessiva, em que o primeiro negócio jurídico feito é inválido. Por
exemplo, A vende um prédio a B, mas essa venda foi provocada por coação física, sendo por isso
nula – no entanto, B regista o prédio a seu favor e, depois, vende o mesmo a C. A interpõe uma ação
de reivindicação contra B, e quer que C proceda à devolução do imóvel; mas C indica que, quando
foi registar a venda a seu favor, na base de dados, o prédio estava já a favor de B.
Ora, se se destruir o negócio entre A e B, supostamente também se destruiria o negócio
jurídico entre B e C, devido ao efeito retroativo da nulidade (artigo 289º CC). No entanto, o artigo
291º CC surge como um regime especial, que se aplica apenas aos casos em que 1) existam dois
negócios sobre o mesmo bem que 2) sejam sucessivos, assentando a transmissão visada pelo segundo
negócio numa aquisição ou constituição de direitos resultante do primeiro negócio, tendo 3) ambos
sido registados. Além disso, 4) o segundo terá de ter sido uma aquisição onerosa, e terá de 5) haver
lugar à declaração de nulidade ou à anulação do primeiro negócio, posterior ao segundo registo de
aquisição (no sentido de não existir quando este registo de aquisição é feito). Por fim, 6) o adquirente
no segundo negócio terá de ter estado de boa-fé, desconhecendo o vício do primeiro negócio.
➔ Especificamente, os requisitos de boa-fé e onerabilidade do segundo negócio jurídico são um
desvio face à regra geral de proteção de terceiros, que resulta do artigo 5º CRPredial.
Já o nº2 deste artigo diz que existe um período de três anos a respeitar: assim, se o registo
da ação de anulação ou nulidade por parte do proprietário original (A) apenas surgir depois do período
de três anos desde o negócio nulo originário, o terceiro (C) é protegido; se este registo já surgir dentro
desse período de 3 anos, o terceiro (C) não será protegido. Significa isto que, durante estes três anos,
o terceiro fica desprotegido, algo que Caetano Nunes considera injusto, dado que este não tinha como
saber da invalidade do negócio originário (não existindo, sequer, o registo da ação de nulidade) – pelo
que tal solução não faz muito sentido ao abrigo dos princípios do ordenamento jurídico.
➔ Tal já não será o argumento quando o registo da aquisição resultante do segundo negócio for feito
depois do registo da ação de nulidade ou anulação: aqui, a invalidade do primeiro negócio será
oponível ao adquirente no segundo negócio, visto que este sabia do mesmo, algo que é
inteiramente consonante com as regras estabelecidas no CRPredial.
Discute-se, ainda, se o conteúdo do artigo 291º CC é compatível com o do artigo 17º, n°2
CRPredial. Na verdade, o artigo 17º não trata do cancelamento do registo em resultado da invalidade
dos negócios dos quais derivem direitos sujeitos a registo; mas, sim, apenas dos casos de nulidade do
registo resultantes dos factos elencados no artigo 16º do CRPredial. Assim sendo, a situação regulada
no artigo 291º do CC nada tem a ver com a deste artigo 17°.
Já no que diz respeito à congruência das soluções, estes artigos são claramente incompatíveis. O
artigo 291º CC, por um lado, determina que a invalidade dos negócios de transmissão sujeitos a
registo prejudica os direitos que tenham sido transmitidos, a título oneroso, a terceiro de boa-fé – isto,
a menos que o registo da ação de declaração de nulidade ou de anulação seja feito passados mais de
três anos sobre o negócio inválido, e esteja já registada a aquisição pelo terceiro. Já o artigo 17º, n°2,
baseia-se na necessidade de proteção da fé pública do registo, ou seja, de proteção da confiança e das
expetativas dos terceiros: daí que os interesses daquele que se viu desapropriado de um direito são
postergados, em favor dos interesses daquele que confiou na exatidão do registo.

DIREITO DE PROPRIEDADE SOBRE ÁGUAS


Introdução
Em termos de considerações introdutórios, o direito de propriedade sobre águas convoca
questões de direito ambiente e questões de relevância económica, estando as duas associadas: a
água tem importância económica porque é um bem escasso – cada vez mais existem problemas
ambientais de escassez de água potável, pelo que, do ponto de vista económico, cada vez mais a água
vai ser visto como mais valiosa.
Para além disso, distinguem-se, aqui, as águas privadas e as águas públicas, com base na
propriedade privada (regulada pelo direito privado) e propriedade pública (regulada pelo direito
público). Consequentemente, este tema da propriedade privada sobre água interessa, sobretudo, ao
mundo rural, visto que nas cidades é quase tudo direito público, através de concessões por entidades
privadas ou públicas.

Razões e Alcance da Qualificação das Águas como Coisas Imóveis


Segundo o artigo 204º, nº1, alínea b) CC, as águas são imóveis sempre que se falar de 1)
águas em corrente, e de 2) depósitos naturais – isto, sempre enquanto grandes conjuntos de
aglomerados de água (e não enquanto as gotas individuais dentro desses aglomerados). Assim, por
exemplo, se existe um riacho ou rio que passe pela propriedade de A, este é proprietário das águas
em corrente que passam no seu terreno; assim como, se este tiver um lago no mesmo terreno, as águas
que estão naquele aglomerado pertencem a A. Contudo, se A destacar um copo ou bidão com água,
essa porção de água destacada já não é considerada um imóvel, porque já não é um aglomerado
– e, portanto, já não será objeto de propriedade privada, sujeita ao regime do CC.
➔ Todo este conceito e regime de propriedade sobre águas é feito através de uma construção por
analogia com a propriedade sobre o solo – daí o artigo 204º classificar as águas como imóveis.
Além disso, o artigo 1385º CC limita, depois, quais os “aglomerados” a que este regime se
aplica. Assim, o objeto deste direito será não só os aglomerados líquidos; mas também os leitos, as
margens e as construções destinadas à captação ou armazenamento das águas.

Águas Particulares: conceito e regras


Relativamente à distinção entre águas particulares e águas públicas, existe um grande
desfasamento entre o CC e a CRP – sendo necessário fazer uma interpretação restritiva do CC, de
forma que este seja aplicado conforme à CRP. Ou seja, em termos da delimitação da propriedade
privada sobre águas, o artigo 1386º CC atribui propriedade privada a vários aglomerados de águas,
incluindo as águas subterrâneas por debaixo de prédios particulares (alínea b) – é visto, assim, como
um conceito amplo.
No entanto, o artigo 84º da CRP já referencia, várias vezes, a águas que são do domínio público.
Significa isto que, por exemplo, as águas subterrâneas só são privadas se não forem
mineromedicinais; caso o sejam, já terão de ser consideradas águas públicas, nos termos do artigo
81º, nº1, alínea c) CRP.
Quanto às águas particulares, denota-se que existe um princípio da autonomia da
propriedade sobre as águas face à propriedade sobre os prédios. Ou seja, nos termos do artigo
1389º CC, o dono do prédio onde haja uma fonte ou nascente poderá ou não ser o dono das águas,
salvo se houver propriedade ou servidão a fazer de terceiros. Esta é a regra-base de todo o regime: se
a água nasce no prédio, pertence ao proprietário do prédio. No entanto, estes são objetos autónomos,
pelo que poderão ter proprietário distintos.
Já o artigo 1392º, nº1 estabelece que, se os habitantes da povoação ou casal se servem das águas há 5
anos, o curso não pode ser mudado – tendo estes direito a indemnização, caso tal seja feito (nº2). No
entanto, não se pode confundir a propriedade sobre águas em prédio alheio, com uma servidão
de águas em prédio alheio: enquanto a propriedade de águas significa a capacidade de desfasamento
– no sentido em que podem existir dois proprietários, um do prédio alheio e outro da lagoa inserida
nesse prédio alheio –; a servidão de águas implica que exista uma servidão de adequado, sem existir
propriedades sobre as águas. Ou seja, nesta última situação, o direito de propriedade do proprietário
do prédio está limitado por um direito real menor – nomeadamente, a servidão de aqueduto de outra
pessoa – não existindo aqui, no entanto, um direito de propriedade sobre as águas (ex: situação em
que A tem canos que passam pela propriedade de B para poder passar água para a sua propriedade).
Assim, nos termos do artigo 1390º, nº1, a aquisição da água das fontes e nascentes pode ser feita por
qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões,
inclusive por usucapião (nº2). Consecutivamente, segundo o artigo 1391º CC, não existe um limite
sobre a quantidade de água que se pode captar: assim, se, por exemplo, existirem dois prédios que
têm um depósito de água, e um deles captar toda a água do mesmo, tal ação não constitui uma violação
do direito de propriedade da água do outro prédio.
Já quanto aos donos de águas subterrâneas (artigo 1394º CC), estes têm um direito de procurar
águas – nomeadamente, de fazer furos –, não sendo a diminuição do caudal dos vizinhos e de terceiros
ilícita (nº2). Por exemplo, se numa superfície plana, J fizer um furão de 100m e conseguir, com este,
tirar mais água do que M consegue com o seu furão, fazendo com que M passe a não ter qualquer
água, tal ação é lícita.
➔ No entanto, tornando-se a água cada vez mais um bem escasso, existirá uma maior tendência de
considerar que as águas são públicas e, consequentemente, que regras como estas são obsoletas.
Por fim, existe o condomínio de água, nos artigos 1398º e ss. CC: é o regime da contitularidade de
águas, sendo semelhante ao que se analisou sobre a compropriedade de imóveis.

DIREITO DE PROPRIEDADE SOBRE MÓVEIS


Transmissão da propriedade sobre móveis – aspetos específicos
Quanto à ocupação, este modo de aquisição de propriedade está, para os móveis, previsto no
artigo 118º CC; sendo que, depois, existe o regime especial da caça e da pesca, que não vai ser
desenvolvido aqui. Quanto à acessão mobiliária, esta resume-se nos artigos 1333º a 1335º CC: casos
de união (ou confusão) de coisas, cuja separação deixa de ser possível sem detrimento de alguma
delas – e, consequentemente, sem prejuízo para o seu dono.
Já quanto à transmissão inter vivos, importa recordar o princípio da consensualidade ou
consensualismo, consagrado no artigo 408º CC. Significa isto que, ao contrário dos bens imóveis, a
entrega da coisa, a traditio não é relevante para efeitos de transmissão da propriedade de bens móveis
– isto, porque os efeitos reais surgem com o título e não com o modo. Assim, o que tem efeitos
transmissivos é apenas o contrato.
Assim, em Portugal, no caso de móveis, não vigora a regra de que a posse vale como título, ao
contrário do que acontece na generalidade dos países europeus: segundo esta, de origem francesa, a
pessoa que tem a coisa móvel nas suas mãos, tem a sua posse e, por isso, será considerada proprietária
da mesma. Contudo, em Portugal, dá-se uma grande importância ao título: a lei não protege a posse,
mas sim a prova da compra e venda – ou seja, a prova do título de aquisição.
Existem, no entanto, exceções a esta regra do artigo 408º CC:
➔ Existem bens móveis que estão sujeitos a registo – nomeadamente, os automóveis, aeronaves
e navio. O registo automóvel tem regras muito parecidas com o registo predial; enquanto o registo
das aeronaves e navios tem efeitos meramente enunciativos, não existindo uma regra equivalente
ao artigo 5º CRPredial. De qualquer das formas, vigora, aqui, um sistema misto (e não um sistema
de título).

➔ Se houver reserva de propriedade (artigo 409º CC), a transmissão da propriedade opera de


acordo com as regras da reserva de propriedade.

➔ Os contratos reais são, também, uma exceção ao princípio do título, visto que estes só se
formalizam com a entrega da coisa (ex: mútuo e o penhor) – ou seja, só há contrato quando, para
além das vontades, existe a traditio.
Por fim, o artigo 1301º CC visa conferir uma proteção significativa ao comprador de coisa alheia
sempre que o vendedor seja comerciante. Por exemplo, A compra algo a um comerciante que,
depois, vende a B – ora, se o contrato entre A e o comerciante é nulo e, consequentemente, o contrato
entre A e B é nulo, para quem fica a propriedade? Neste caso, e nos termos do artigo 408º CC, a
propriedade volta para A – sendo que o artigo 1301º apenas discute o tema da indemnização nestes
casos. Esta é, então, uma regra especial: A, ao destruir todo o regime, poderá ter de contribuir para a
indemnização de B.

A PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA
Introdução
A propriedade fiduciária é uma figura que não se qualifica como um direito real de
propriedade: esta é meramente doutrinária, sem qualquer carácter real e sem oponibilidade erga
omnes. Consequentemente, por não ter acolhimento legal, poderá haver flutuação doutrinária sobre a
sua definição e limites.
Como foi dito, a lei portuguesa não se refere à propriedade fiduciária – o que significa que,
por força dos princípios de legalidade e da tipicidade que norteiam os direitos reais, a propriedade
fiduciária não existe enquanto tal. Há, porém, uma discussão doutrinária muito relevante sobre
este tema, relevante no contexto da advocacia do mundo dos negócios, inspirando até alguns regimes
legais pontuais como o regime do penhor financeiro – apesar de ser uma figura cujos contornos são,
mais uma vez, meramente obrigacionais (nomeadamente, direitos de crédito), e nunca reais.

Pluralidade de Origens, Semelhança de Estrutura e Funções


Sendo de influência inglesa, a melhor maneira de compreender esta figura doutrinária será
através de direito comparado e enquadramento histórico.
Fidúcia romana
A propriedade fiduciária encontra a sua origem no direito romano, onde existiam três figuras:
1) fiducia cum creditore; 2) fiducia cum amico; e 3) fideicomissum.
Na fidúcia cum creditore (com credor), existe uma transmissão da coisa para o credor para
garantia da dívida: ou seja, é a propriedade como garantia do crédito. Por exemplo, A empresta
dinheiro a B e este, para garantir tal dívida, transmite-lhe a propriedade de um prédio – se B pagar a
dívida, A devolve-lhe essa propriedade; caso contrário, fica A como proprietário do mesmo. No
entanto, esta figura já será um salto acrescido face à hipoteca ou ao penhor, dado que, nesses casos,
a propriedade continua na posse do devedor – será apenas no caso de incumprimento por parte do
mesmo, que o credor terá um direito de preferência (e não o direito à propriedade automático) sobre
essa propriedade. Ora, neste caso de fidúcia, o credor fica logo como proprietário antes sequer de
haver qualquer incumprimento – sendo, por isso, o expoente da desproteção da coisa.
Já na fidúcia cum amico (com amigo), existe, também, uma transmissão do direito de
propriedade – no entanto, esta não é para o credor, mas sim para um amigo. Esta figura podia ter
várias funções sociais, nomeadamente para emprestar ou guardar a coisa – ou seja, o amigo fica com
a propriedade da coisa durante este tempo, sendo depois devolvida ao proprietário original.
Por fim, a figura do fideicomissum (fideicomisso) é a disposição pela qual o testador impõe
ao herdeiro (fiduciário) o encargo de conservar ou transmitir a herança, para que ele reverta,
por sua morte, a favor de outrem (fideicomissário). Ou seja, existem, aqui, duas estipulações
hereditárias: primeiro, estabelece-se que a coisa irá ser atribuída ao herdeiro; depois, esta irá reverter
para um segundo herdeiro. A propriedade do primeiro herdeiro encontra-se, assim, condicionada,
visto que este terá sempre de a transmitir ao segundo herdeiro, quando o momento para o fazer chegar.

Fidúcia germânica
Aqui, existe uma figura chamada treuihand: casos em que uma pessoa recebia a propriedade
de outrem, ficando, no entanto, esta propriedade limitada pela necessidade de proteger o interesse do
fidunciante. Esta figura germânica mediável desapareceu, tendo sido recuperada no período de
renascimento do direito alemão.
Ora, não estando previsto na lei um direito real semelhante à treuihand, o que poderá
acontecer é que as partes estipulem a forma como a propriedade terá de ser transferida – sem, no
entanto, o direito de propriedade que a parte ganha ficar limitado. Assim, estas estipulações terão um
carácter meramente obrigacional, mas não real: vigoram entre as partes, mas não perante terceiros.
Por outras palavras, o credor ou amico ficam proprietários plenos da propriedade transmitida perante
terceiros, existindo, depois, estipulações e vínculos obrigacionais que valem para as partes do
contrato; mas não para terceiros. Assim, existe apenas uma obrigação, em sentido técnico-jurídico,
de atuar em interesse de outrem.

Trust anglo-americano
Por fim, analisa-se a figura do trust anglo-americano, formado entre o settler, que é o
fiduciante – quem atribui a propriedade – e o trustee, que é o fiduciário, e criado para vários efeitos
– como, por exemplo, para efeitos de proteção do credor. Trata-se, assim, da situação em que a
propriedade é atribuída a alguém (trustee) que está sujeito à obrigação de prosseguir não o seu
interesse, mas o interesse de um terceiro (beneficiary) – sendo que este pode, ou não, coincidir com
o settler. Toda a relação terá por base uma relação de confiança: a fidúcia. A propriedade transmitida,
por usa vez, é considerado um património autónomo do trustee.
➔ Esta figura teve origem nas Cruzadas: os lordes ingleses que partiam para as cruzadas deixavam
as propriedades nas mãos do fiduciário, que devia gerir essa propriedade nos seus interesses – e,
depois, devolver a mesma, aos lordes; ou aos filhos, caso estes não voltassem da guerra.
O trust é muito comum no universo anglo-americano, sendo que os académicos de direito
comparado costumam apontá-lo como uma figura sui generis, que não tem comparação no sistema
de Civil Law. Tem, no entanto, uma grande aplicação no mundo dos negócios, no sentido em que
está associada a paraísos fiscais: o trust, estando associado a uma gestão de património alheio, faz
lembrar o fenómeno cada vez mais recorrente de pessoas fixarem empresas de gestão de património
alheio por benefícios fiscais, gerindo, assim, fortunas para que estas não pagem mais-valias ao Estado.

Características Comuns
Quanto à atribuição da propriedade, denota-se que a propriedade fiduciária atribui direitos
e poderes reais. No entanto, já quanto às limitações dos poderes do fiduciário, no âmbito das suas
relações com o beneficiário (fiduciante ou terceiro), denota-se que este está obrigado, perante o
beneficiário, a não alienar os bens em causa e a geri-los com diligência, etc.
Além disso, critica-se o facto de existir um excesso de meios face aos fins: o credor, apesar
de ter recebido a propriedade só para ser pago pela sua gestão, torna-se, na realidade, em verdadeiro
proprietário. Ora, apesar de só dever atuar no interesse de quem lhe confiou a propriedade, ele poderá,
de facto, fazer tudo o que a propriedade lhe permite – o que significa que existe um risco de desvio
ou abuso de poder. Dito de outra forma, ao se atribuir ao fiduciário um direito de propriedade absoluto
(e não limitado, do ponto de vista dos direitos reais), deixa-se o fiduciante desprotegido, do ponto de
vista dos direitos reais.
Já do ponto de vista do direito das obrigações, existe uma relação obrigacional, em que o fiduciante
tem o dever fiduciário de lealdade (máxima lealdade) perante o fiduciário. Existe, assim, uma
relação de confiança especialíssima: os deveres de lealdade costumam ser enquadrados na regra de
conduta da boa-fé, nos termos do artigo 762º CC – sendo que há, inclusive, quem defenda que esta
lealdade fiduciária (fidúcia) é, ainda, uma coisa distinta, muito mais forte do que ser apenas boa-fé.
NOTA: A determinada altura, chegou-se à conclusão de que havia uma analogia entre os
administradores das sociedades comerciais, e a figura de trust. Apesar de a empresa pertencer aos
seus administradores, a verdade é que estes também gerem propriedade alheia, tendo o poder para
fazer o que quiserem à sua empresa e aos seus ativos. No entanto, aplicar a estrutura do trust por
analogia implica estender a aplicação do conceito de direito das obrigações de dever de fieldade
fiduciária – sendo necessário distinguir que estas relações comerciais não são acompanhadas pela
aquisição da propriedade; existindo, no entanto, parecenças quanto ao excesso de meios face aos fins.

A Propriedade Fiduciária no Direito Português


A figura do fideicomisso está regulada no artigo 2286º CC, relativamente a direito das
sucessões, tendo oponibilidade erga omnes e ficando registada no registo predial. De resto, nada mais
o CC diz sobre esta figura, igual à figura do trust: no máximo, fala-se de um esquema de direito das
obrigações – de um lado, existindo um contrato com eficácia real, de transmissão de propriedade
para o fiduciário; de outro, existindo um vínculo obrigacional, em que o fiduciário se obriga a exercer
os direitos no interesse de outrem.
No entanto, esta figura terá pontos de semelhança com o pacto comissário: pacto que estipula
que, quando há incumprimento, o credor passa logo a ser proprietário da coisa que foi dada como
garantia. O artigo 694º CC proíbe a sua estipulação, precisamente devido ao risco de abuso desse
poder – consequentemente, a doutrina conclui que, não sendo isto permitido, muito menos será a
situação de o credor ser proprietário no momento que se constitui o crédito (propriedade fiduciária).
Assim, a doutrina portuguesa defende que não existe, em Portugal, propriedade fiduciária
enquanto figura autónoma, sendo impossível passar qualquer tipo de propriedade para o credor,
como se fosse uma fidúcia: é proibido transmitir propriedade antes da existência de incumprimento.
No entanto, existe um regime especial, denominado de penhor financeiro ou alineação fiduciária
em garantia: contrato entre credores que apenas podem ser instituições financeiras (bancos e figuras
equivalentes a eles), e devedores que apenas podem ser empresas, cujo objeto em garantia tem de ser
instrumentos financeiros. Neste contexto, será permitido estabelecer um pacto comissório em que,
em caso de incumprimento, o credor fica logo com a coisa dada como garantia – sendo possível,
também, fazer uma propriedade fiduciária (ou seja, que o credor fique logo com a propriedade da
coisa para satisfazer o seu crédito).

DIREITO DO USUFRUTO
O artigo 1439º CC define usufruto como o direito de gozar temporariamente e plenamente
de uma coisa ou direito, sem alterar a sua forma ou substância.

Características Essenciais
Importa, antes de mais, evidenciar que o usufruto, enquanto direito real menor, pressupõe a
coexistência com o direito de propriedade: isto é, não existe direito de usufruto sem existir direito
de propriedade – caso aconteça, a situação é denominada de “nua propriedade”, visto que o usufruto
implica direitos e faculdades que, não existindo, contraem o direito de propriedade de tal forma, que
se considera que o proprietário está nu. Consequentemente, este direito de usufruto, enquanto direito
autónomo, terá de ser alheio: a lei estabelece que a reunião do usufruto e da propriedade na mesma
pessoa determina a extinção do usufruto (artigo 1476º, n°1, alínea b) CC).
A nível dos objetos possíveis, em rigor, diz-se que o usufruto incide sobre a propriedade,
limitando-a – na terminologia tradicional, assim como na prática social, diz-se que o usufruto incide
sobre a coisa corpórea, e não sobre a propriedade: por exemplo, A tem a propriedade de um imóvel
e, em conjunto com isso, o direito menor do usufruto do mesmo. No entanto, também será possível
que A tenha, apenas, o direito de superfície, transmitindo o direito de usufruto – ora, neste caso, o
usufruto não incide sobre a coisa, mas sim sobre um direito superficiário.
Com esta maior estratificação do direito, o usufruto poderá, então, coexistir com o direito de
superfície, que é o direito real menor máximo: o superficiário fica com todo o direito da superfície,
sendo que o proprietário fica, apenas, com o que está debaixo do solo, nomeadamente quase nada.
Assim sendo, nesta situação, existem, pelo menos, três direitos reais sobre o mesmo prédio: 1) o do
fundeiro, 2) o do superficiário, e 3) o do usufrutuário da superfície. Aqui, o usufruto surge não como
um direito real menor que onera o direito de propriedade; mas, sim, como um direito real menor
que onera o direito de superfície – que, por sua vez, onera o direito de propriedade. Nestes casos,
as faculdades do usufrutuário serão essencialmente as mesmas, sendo que o direito incidirá sobre o
que está construído à superfície: tal resulta dos princípios relativos ao usufruto e ao direito de
superfície; e, ainda, da referência que o artigo 1480º, n°2 CC faz à extinção do direito de superfície.
➔ Quanto a isto, Caetano Nunes considera que os direitos reais incidem sobre coisas corpóreas,
dado haver um poder direto sobre as mesmas; sendo que depois, quanto à perspetiva de saber o
que limitam, é que se considera que estes limitam direitos.
o No entanto, denota-se que a lei também prevê a possibilidade de usufruto sobre direitos que
não incidam sobre uma coisa corpórea – por exemplo, usufruto sobre créditos.
Quanto ao seu conteúdo, este é essencialmente um conteúdo de gozo e fruição, mas não de
disposição, como resulta do artigo 1446º CC: o usufrutuário tem, pois, tendencialmente, os poderes
que cabem no direito de propriedade – salvo o poder de disposição do objeto sobre que incide.
Há, ainda, que ter em conta o artigo 1439º CC, segundo o qual o usufrutuário também não tem direito
a alterar a forma ou a substância da coisa. Assim, admitem-se algumas transformações por parte
do mesmo – ideia retirada do artigo 1449º, segundo o qual o direito de usufruto abrange as coisas
acrescidas a todos os direitos inerentes à coisa usufruída, o que suporta algum poder de transformação
–, desde que as mesmas não alteram nem a forma, nem a substância mencionada. Além disso, o artigo
1452º CC estabelece que o usufrutuário pode usar a coisa até ao ponto de ela se deteriorar, mas não
pode fazer uso diverso daquele que lhe é próprio. Por fim, em caso de perda parcial da coisa, o direito
de usufruto continua na parte restante (artigo 1478º CC).
➔ Concluindo, os últimos artigos elencados confirmam a possibilidade de transformação da coisa;
mas sempre com o limite dos artigos 1439º e 1449º CC, que proíbem a alteração da forma e
substância da coisa (ex: será proibido ao usufrutuário transformar um prédio rústico em urbano).
Denota-se, ainda, que o usufruto é um direito temporário: ao contrário do direito de
propriedade – que, por regra, é perpétuo –, o usufruto tem caráter temporário. Assim, quando o
usufruto é da titularidade de uma pessoa singular, o seu limite é a vida desse usufrutuário; já caso de
usufruto constituído a favor de duas ou mais pessoas singulares, o mesmo não pode exceder o termo
de vida do que mais viver. Por fim, no caso de o titular de usufrutos ser uma pessoa coletiva, o limite
legal é de 30 anos (artigo 1443º CC).
A ratio legis deste carácter temporário será evitar o fracionamento dos direitos reais – ou seja,
evitar as situações de divisão de propriedade, enquanto estatuto jurídico-real. Dito de outra forma, a
limitação temporal do usufruto visa impedir a perpetuação da divisão dos poderes sobre o seu objeto,
e as respetivas consequências potenciais no que toca à sua conservação e ao seu desenvolvimento:
isto, porque quando há muitos direitos reais sobre uma coisa, o aproveitamento económico da mesma
pode ser menos eficaz – por exemplo, se existir um único proprietário, existe mais liquidez e,
consequentemente, a coisa poderá mais facilmente ser utilizada para aproveitamento económico,
criado riqueza para todos. São, então, estas preocupações de desenvolvimento económico e bem-estar
que estão na origem do carácter temporário de direitos reais menores.
Além disso, o artigo 1441º CC fala sobre a possibilidade de constituir não apenas um usufruto, mas
vários usufrutos, que poderão ser usufrutos simultâneos – onde existe uma contitularidade de
situações de usufruto no mesmo período temporal (ex: avós doam a casa ao neto, mas reservam para
si o direito de lá ficarem até ambos morrerem) – ou usufrutos sucessivos – no sentido de existir
primeiro um e, depois, quanto este acaba, surge outro (ex: J tem o usufruto de uma casa durante um
certo tempo e, passado esse período de arrendamento, será B que passa a ter o usufruto da mesma).
➔ Só pode ser beneficiário do usufruto quem já seja vivo ao tempo em que o direito do primeiro
beneficiário se tome efetivo – o que limita a duração máxima do direito (artigo 1441º CC).

Transmissibilidade Limitada
A transmissão do usufruto terá de ser conjugada com as regras sobre o carácter temporário –
por exemplo, imagine-se que J tem um direito de usufruto vitalício, e decide trespassá-lo para B.
Acontece que, seguindo a regra do artigo 1443º CC, o direito de usufruto extingue-se com a morte
de quem faz o trespasse – ou seja, apesar de J passar o direito para B, o usufruto extingue-se, na
mesma, com a morte de J.
Conclui-se, assim, que o usufruto não se transmite mortis causa, nos termos do artigo 1476º, nº1,
alínea a), no sentido em que se extingue por morte do usufrutuário (primitivo) – excetuando-se, aqui,
os casos em que se extingue com o decurso de prazo certo; ou, ainda com decurso do prazo certo E
pela morte do primitivo usufrutuário, nos casos de predecessor do adquirente. O princípio da
intransmissibilidade mortis causa do usufruto limita a sua transmissibilidade do ponto de vista
económico, visto que os potenciais adquirentes, ao avaliarem o direito em causa, terão de introduzir
como fator a ter em conta o risco de vida do usufrutuário (primitivo).
No entanto, é possível existir transmissão inter vivos do direito do usufruto – algo que acaba
por ter pouca consistência económica, pelo que é pouco atrativa. De qualquer das formas, nos termos
do artigo 1444º, o usufrutuário pode trespassar, definitiva ou temporariamente, o direito de usufruto,
assim como o pode onerar. Porém, aquele a quem é trespassado o direito (trespassário) continua a ter
como limite temporal do seu direito a vida do trespassante.
O usufruto é um direito com transmissibilidade limitada, tanto do ponto de vista jurídico
(tendencialmente, não se transmite mortis causa), como do ponto de vista económico.

Âmbito Social de Aplicação


Continuando a perspetivar a figura do ponto de vista económico, note-se que a existência de
um usufruto opera a separação entre, por um lado, as faculdades de utilizar e de obter rendimento; e,
por outro, a faculdade de alienação da titularidade e da expetativa económica quanto à futura
reunificação do domínio. Consequentemente, os casos mais vulgares de constituição de usufruto serão
aqueles em que os proprietários de prédios os doam aos seus filhos – reservando, no entanto, o
usufruto vitalício dos bens doados. Desta forma, conseguem os doadores transmitir em vida os bens
em causa (nomeadamente, partilhando-os entre vários filhos) e, ao mesmo tempo, não perder o uso e
a fruição dos mesmos.

Modos de Constituição e de Extinção


A nível de modos de constituição, o usufruto pode ser constituído por contrato, testamento,
usucapião ou disposição da lei (artigo 1440º CC). Denota-se, no entanto, que a constituição por
usucapião acaba por ser uma hipótese académica, dado ser pouco plausível existir uma pessoa que
gere uma situação de posse com o conteúdo do usufruto – ou seja, que esteja no edifício à 15 anos,
mas que respeite os direitos do proprietário da mesma. Assim, a transmissão por contrato ou
testamento serão as formas mais frequentes na prática sociológica.
Além disso, existe, ainda, a constituição per translationem – o proprietário transmite a propriedade a
terceiros e deduz o usufruto para sim: ou seja, fica sem a propriedade, mas mantêm o usufruto – e
constituição per deductionem – o proprietário constitui usufruto a favor de terceiros, mas continua
proprietário da coisa em questão.
A nível dos modos de extinção, o artigo 1476º CC elenca as causas ou modos de extinção do
usufruto, nomeadamente:
➔ Morte do usufrutuário ou fim do prazo (caducidade);
➔ Renúncia;
➔ Reunião da propriedade e do usufruto na mesma pessoa – algo que está para os direitos reais como
a confusão está para o direito de obrigações.
➔ Não exercício do direito de usufruto pelo período de 20 anos – ou seja, se há uma passividade há
uma extinção do direito real menor.
➔ Perda total da coisa – sendo que, a coisa usufruída se perder, mas houver lugar a indemnização,
o usufruto passa a incidir sobre a mesma (artigos 1480º e 1481º CC).

Direitos e Obrigações do Usufrutuário


Direitos do usufrutuário
Em primeiro lugar, o usufrutuário tem como principais direitos o uso e a fruição (artigo
1439º CC): a lei define usufruto com recurso à ideia de gozo pleno, e esclarece que este engloba o
uso, a fruição e a administração – ou seja, tendencialmente, todos os poderes exercíveis sobre uma
coisa.
Além disso, este tem o direito de transferir os poderes em casos de indemnização de perda
ou deterioração da coisa (artigo 1480º CC): ou seja, este direito de usufruto passa a ser o direito não
sobre uma coisa corpórea, mas sobre uma indemnização – sendo um direito de crédito, mas que ainda
faz parte do estatuto jurídico-real. Por exemplo, no contexto de uma expropriação, terá de haver
sempre uma indemnização do proprietário – mas, se houver um usufrutuário, este terá, também, de
receber uma parte dessa indemnização.
➔ Concluindo, em caso de a coisa se perder, deteriorar, ser expropriada ou requisitada, ou de suceder
qualquer outro facto análogo e haver lugar a indemnização, o usufruto passa a incidir sobre essa.
Por fim, o usufrutuário tem o direito a ser indemnizado pelo valor das reparações
extraordinárias a que proceda licitamente (artigo 1473º CC). Ora, ao usufrutuário apenas cabe
avisar, com tempo, o proprietário, para que este, se quiser, as mandar fazer; se, porém, o proprietário
não as fizer, e tais obras forem de verdadeira utilidade, o usufrutuário poderá fazê-las a expensas suas
– e exigir, de imediato, ao proprietário o que gastou; ou, no momento da cessação do usufruto, o valor
que elas tenham, se o mesmo for inferior ao seu custo. O mesmo não se pode dizer das reparações
ordinárias, em relação às quais o usufrutuário se encontra obrigado, por força do artigo 1472º CC.

Obrigações do usufrutuário
O usufrutuário tem o dever de suportar os impostos da coisa que usufrui – nomeadamente,
o IMI (artigo 1474º CC). Além disso, este tem, também, o dever de restituir a coisa (artigo 1483º
CC), exceto os casos de usufruto vitalício, que se extinguem com a morte do usufrutuário.
Se tal lhe for exigido pelo “nu” proprietário, o usufrutuário terá o dever de prestar caução
para garantia quer da restituição dos bens, quer de eventuais deveres de indemnizar por danos
provocados aos mesmos (artigo 1468º, alínea b) CC). Associado a isto, o usufrutuário tem a obrigação
de relacionar os bens: ou seja, no momento da constituição, o usufrutuário terá de elencar os bens e
as coisas que o compõe.
Além disso, o usufrutuário tem o dever de diligência (artigo 1446º CC): ou seja, o dever de
fazer bom uso da coisa, respeitando o destino económico segundo o critério da pessoa média – que
como costuma ser o que um bom familiar faria, já que este direito de usufruto costuma aparecer em
relações familiares.
O incumprimento desta obrigação é sancionado no artigo 1482º CC, com a regra de que, se o mau
uso se tornar consideravelmente prejudicial ao proprietário, este pode exigir que os bens lhe sejam
entregues – ficando, aqui, o proprietário obrigado a pagar ao usufrutuário o eventual rendimento dos
bens –; ou que sejam aplicadas as medidas referidas para o caso de incumprimento da obrigação de
prestar caução.
Por outro lado, quando suceda que, em virtude de má administração do usufrutuário, se tornem
necessárias reparações extraordinárias, ficam as mesmas a seu cargo, ao contrário do que, em
princípio, sucederia (artigo 1473, n°1, segunda parte CC).
Por fim, o usufrutuário tem a obrigação de assegurar as despesas com reparações
ordinárias e com a administração (artigo 1472º CC) – existindo a possibilidade de renúncia
liberatória (nº3): ou seja, é possível aos titulares de direitos reais menores se eximirem aos seus
deveres e obrigações propter rem, através de uma denúncia que extingue o seu direito real menor. No
entanto, torna-se claro que o usufrutuário apenas se pode eximir das obrigações ainda não
constituídas; mas não das que tenham nascido antes dessa renúncia.
NOTA: Estes são apenas direitos e obrigações existentes no confronto com o proprietário.

O DIREITO DE USO E O DIREITO DE HABITAÇÃO


Características
O direito de uso implica a faculdade de usar e fruir, na medida das necessidades próprias
e da família (artigo 1484º, nº1 CC) – sendo que, quando o objeto é uma casa de morada, deixa-se de
falar de direito de uso, mas sim em direito de habitação (nº2); podendo o direito de uso abranger, por
exemplo, o recheio dessa casa. O regime de usufruto encontra-se nos artigos 1485º e 1490º CC –
sendo que, aos olhos do legislador, este direito de uso e de habitação são usufrutos diminuídos.
O conceito de família, aqui, não tem nada a ver com o conceito tradicional de família, quer
do ponto de vista sociológico, quer do ponto de vista do Direito da Família e Sucessões. Segundo o
artigo 1487º CC, “família” compreende, aqui, cônjuge, filhos, outros parentes a que sejam devidos
alimentos, e pessoas a que se encontrem ao seu serviço ou ao serviço das pessoas designadas. Denota-
se, no entanto, que pessoas coletivas não podem ser titulares deste direito, visto que não habitam, não
têm cônjuges, não têm filhos, etc. – não têm família.
➔ Sendo o seu conteúdo jurídico tão delimitado pelas necessidades próprias e da família, este direito
tem um carácter pessoalíssimo.
Por último, este direito não é negociável (artigo 1488º CC): ou seja, o usuário ou morador
usuário não podem trespassar ou locar o seu direito, não existindo qualquer possibilidade de oneração
ou disposição. Consequentemente, e ao contrário dos restantes direitos reais menores, o direito de uso
não pode ser penhorável – algo que não será positivo para os credores.

Modos de Constituição e Extinção


Quanto aos modos de constituição, existem referências ao direito de uso e de habitação no
Direito de Família e Sucessões – nomeadamente, no artigo 2103º-A CC, que prevê a constituição de
um direito de uso e de habitação a favor do cônjuge sobrevivo. No regime de união de facto, este
regime de uso e habitação também é usado. Como se pode calcular, não será possível usucapir os
direitos de uso e habitação (artigo 1485º CC).
Quanto aos modos de extinção, o direito de uso extingue-se pelos mesmos modos do
usufruto; assim como também se extingue quando existir uma cessação das necessidades do titular e
da sua família, nos termos do artigo 1485º CC.

Os Principais Casos
No que respeita à fonte negocial, os direitos de uso e habitação não são – ao contrário do
usufruto – de ocorrência vulgar. Em qualquer caso, o direito de habitação será o de constituição mais
frequente, por razões provavelmente ligadas à sua impenhorabilidade (decorrente da sua
inegociabilidade, atrás apontada).

O DIREITO DE SUPERFÍCIE
Origem e Âmbito Social de Aplicação
São frequentes, historicamente, as situações de dissociação do solo e do que está à superfície
(construções ou plantações), sendo que cada um pertence a pessoas diferentes: antigamente, a
economia era familiar, baseada na agricultura e pecuária – e, portanto, a atividade económica era o
que se encontrava à superfície. Aliás, figuras de dissociação entre a propriedade do solo e da
superfície já existiam no Direito Romano, sendo possível convencionar a existência de dois titulares:
o titular do solo, e o titular da superfície – afastando-se, assim, o princípio superfície cede ao solo,
segundo o qual o proprietário do solo é, também, proprietário de tudo o que está acima na superfície.
Esta tendência foi aumentando ao longo da história, sendo a figura mais relevante a da
enfiteuse: o senhor feudal teria o domínio do solo (direito de propriedade), ao passo que o enfiteuta
teria o domínio útil da superfície, trabalhando-a (direito de superfície) – consequentemente, quem
tinha o domínio útil tinha de pagar um foro ao titular do domínio direto do solo. Na enfiteuse, existia
transmissão mortis causa e inter vivos do domínio útil. No entanto, se se vir melhor, esta acabava por
ser não uma completa dissociação entre o solo e a superfície, mas sim algo muito próxima.
A CRP aboliu a enfiteuse, associada ao feudalismo. No entanto, o CC de 1966 recuperou uma hipótese
de dissociação entre a propriedade do solo e da superfície: tudo o que que está no subsolo será domínio
público; além de que existe propriedade do solo que pertence às Câmaras Municipais, que constituem
um direito de superfície e, depois, o alienam aos consumidores no mercado habitacional – políticas
modernas de urbanismo.
No entanto, como está estabelecido, o direito de superfície não tem nada a ver com a
enfiteuse: é uma inovação no plano legislativo, não tendo uma tradição histórica clássica. Esta figura
é, assim, um bom instrumento das políticas urbanísticas e de ordenamento do território em geral,
possibilitando a atribuição temporária do controlo dos solos. Não se pode, pois, estranhar, que várias
entidades públicas (em sentido lato) tenham, sobretudo nas últimas décadas, recorrido à constituição
de direitos de superfície temporários sobre solos seus, em vez de os venderem.
NOTA: O proprietário do solo é o fundeiro; e o titular do direito de superfície é o superficiário.

Contornos da Figura no CC
Faculdade de construir e de manter
Existem duas faculdades essenciais que se podem distinguir no artigo 1524º CC: a faculdade
de construir e a faculdade de manter. Feita a construção ou manutenção (sendo o aspeto mais
relevante a construção), o objeto do direito será a coisa corpórea construída – o edifício, não o solo.
Ainda se pode construir mais para cima (segundo regras de direito administrativo); mas o conteúdo
deste direito de superfície incide sobre o edifício já construído.
Ou seja, enquanto não for feita a construção, o objeto do conteúdo de direito está na faculdade
de construir; depois da construção, o objeto do direito está no edifício, na coisa corpórea.
Logo, do ponto de vista substancial, a partir do momento em que o edifício já existe, a
faculdade de o manter será extremamente parecida com o conteúdo do direito de propriedade; ao
passo que, quando este ainda não existe, a faculdade de construir será mais parecida a um direito de
aquisição, do que um direito real de gozo – isto, dado que estes últimos se traduzem na retirada da
coisa através do uso e fruição; enquanto que o que se tem aqui é uma perspetiva de ainda tentar
adquirir, e não a de usar.

Carácter temporário ou perpétuo


O direito de superfície pode ter carácter temporário ou perpétuo: ou seja, pode ser fixado
um prazo ou não. Ora, se o direito de superfície for temporário, resta ao proprietário a expectativa,
que finda o direito de superfície, de readquirir a coisa na sua plenitude. Se, no entanto, este direito
for perpétuo, não fica quase nada para o proprietário – os seus poderes ficam obsoletos.
➔ Utilizando a formulação de Oliveira Ascensão, o direito de propriedade de um solo onerado com
um direito de superfície perpétuo é um direito perpetuamente destituído de função social.
Conclui-se, assim, que os poderes e faculdades do superficiário são tão próximas do direito
de propriedade, que quase nada resta ao mesmo: o superficiário tem uma posição análoga à do
proprietário, sem limitação dos direitos reais menores.

Objetos possíveis
O superficiário pode construir obras ou plantações, nos termos do artigo 1524º CC – sendo
que, do ponto de vista sociológico, a hipótese de fazer plantações tem um conteúdo menos forte.
Além disso, o direito de superfície pode abranger mais solo do que o necessário à construção,
desde que esse solo tenha utilidade (embora não necessária) para o uso da obra.
Este direito pode, também, abranger obras tanto sobre o solo, como de baixo do solo (ex:
parques de estacionamento). Pode, ainda, incidir sobre edifício alheio – por exemplo, se o proprietário
tiver um edifício com 1 piso, o direito de superfície consiste na faculdade de elevar mais o prédio,
construindo mais pisos. A este último aspeto chama-se direito de sobreelevação – ou seja, direito de
construir obra acima de uma obra que já existe –, sendo que este não proporciona a constituição
automática de propriedade horizontal.

Coexistência com o direito de propriedade


A reunião na mesma pessoa do direito de superfície e do direito de propriedade determina a
extinção do direito de superfície, nos termos do artigo 1536, n° 1, alínea d) CC. No entanto, o direito
de propriedade coexistente com o direito de superfície – se estiverem atribuídos a pessoas diferentes
– apresenta-se altamente comprimido, no sentido de que quase todos os poderes e faculdades estão
na esfera jurídica do superficiário.
Assim, nestes casos, o direito de superfície é, também, ius in re aliena: ou seja, pressupõe a
existência simultânea, sobre o mesmo objeto, de um direito de propriedade por parte de outra
pessoa. Nos termos do artigo 1530º, é possível convencionar-se um preço total, ou uma prestação
pecuniária anual chamada cânone, que é paga pelo superficiário – mas, salvo este direito, o fundeiro
quase nada pode fazer, tendo o seu direito de propriedade ainda mais diminuído do que o do
proprietário de raiz onerado com usufruto.
De qualquer das formas, tal direito implica que o direito de superfície seja transmissível, tanto inter
vivos e mortis causa, podendo-se onerar (artigo 1534º CC) – algo que não acontece em todos os
direitos reais menores. Pode-se, ainda, constituir hipoteca sobre o mesmo (artigo 688º, nº1 CC).

Direito de superfície e propriedade horizontal


Num caso de direito de superfície organizado segundo as regras de propriedade horizontal, se
este não for perpétuo, quando o prazo acabar, o fundeiro passa a ser o proprietário da coisa exclusivo,
não se alterando o estatuto-jurídico do prédio devido a essa extinção do direito de superfície.
Assim, por exemplo, se o direito de superfície tiver um prazo de 6 anos, e o superficiário, durante
esse tempo, construir 6 frações autónomas, findo o prazo, o fundeiro passa a ser titular de um prédio
com 6 frações autónomas – casos muito frequentes nas autarquias.
➔ Convém, no entanto, frisar que os condóminos, em tal caso, são condóminos no direito de
superfície – ou seja, findo o mesmo, o seu direito não se estende ao solo, estando limitado pelo
próprio direito do fundeiro.

Modos de Constituição e de Extinção


Quanto aos modos de constituição, o direito de superfície pode ser constituído por via de
contrato, testamento ou usucapião (artigo 1528º CC) – sendo mais comum a constituição por
contrato. As hipóteses de aquisição por direitos reais menores, e não pelo direito de propriedade,
acabam por ser meramente académicas, visto que quem ocupa o prédio, irá querer a propriedade do
mesmo, e não apenas a superfície. Consequentemente, a aquisição da superfície por usucapião, por
parte de uma pessoa com um direito real menor sobre o mesmo, só acontece quando essa pessoa
conseguir impedir o exercício dos poderes pelo proprietário da coisa, impedindo-o de ser proprietário
pleno, numa lógica de inversão do título da posse.
Relativamente à alienação sobre coisas que já existem, fala-se nas situações em que o fundiário já
tinha um prédio urbano com um edifício, e escolheu alienar ao superficiário esse edifício –
reservando, no entanto, para si a propriedade do solo. Isto será possível nos termos da parte final do
artigo 1528º CC, segundo o qual é lícito constituir o direito de superfície sobre obras ou plantas já
existentes – separando, pois, o direito sobre essas obras ou plantas do direito sobre o solo. Este
fracionamento do direito real de propriedade coloca, no entanto, problemas de análise económica do
direito; mas, de qualquer forma; é o que se verifica nas políticas autárquicas, em que o Município
reserva o solo, mas aliena o direito de superfície.
Quanto aos modos de extinção do direito de superfície (artigo 1536º CC), a mesma pode ser
feita enquanto sanção pelo incumprimento da obrigação de construção ou reconstrução da obra ou
plantação no prazo aplicável (alíneas a) e b)) – sendo este, assim, um prazo de caducidade
sancionatória. Além disso, também existe a hipótese de o direito caducar por mero decurso do
prazo, caso seja temporário (alínea c); assim como se extingue com a reunião, na mesma pessoa, do
direito de superfície e do direito de propriedade (alínea d). O direito de superfície poderá, ainda,
extinguir-se com o desaparecimento ou inutilização da coisa (alínea e) – algo altamente improvável
–; e também com a expropriação da coisa por utilidade pública (alínea f).
A este elenco, acrescenta-se, ainda, a hipótese de se estabelecer uma condição resolutiva – facto
incerto que opera a resolução do direito –, tal como se lê no nº2 in fine. Assim, caso se verifique a
condição resolutiva estipulada no negócio jurídico que constitui o direito de superfície, extingue-se o
direito de superfície. A nível doutrinário, também se defende que será possível extinguir o direito por
renúncia, dado não existir nenhuma razão para restringir a autonomia privada ao não o permitir.

Consequências da extinção
Com a extinção do direito de superfície, o direito do fundeiro, pelo princípio da elasticidade,
retoma todo o seu conteúdo – mas o que é que isto, na prática, significa?
Se existir uma extinção por decurso do prazo, o fundeiro adquire, automaticamente, a obra
e as árvores (artigo 1538º CC) – aquisição essa que, contudo, dá ao superficiário direito a ser
indemnizado segundo as regras do enriquecimento sem causa, a menos que haja estipulação em
contrário (artigo 1538º, nº2 CC).
A extinção do direito de superfície por decurso do prazo implica, ainda, a extinção dos direitos reais
de gozo ou de garantia, constituídos pelo superficiário em benefício de terceiro (artigo 1539º, nº1
CC). Por exemplo, se este constituiu hipoteca, para um banco, que incide sobre o direito de superfície,
esse banco irá ver, com a extinção desse direito, a extinção da hipoteca – algo possível visto que o
banco já saberia, à partida, de que o direito de superfície tinha um prazo e, portanto, que a hipoteca
também teria.
De forma simétrica, o artigo 1540º CC estipula, também, que os direitos reais constituídos pelo
fundeiro sobre o solo se expandem à obra ou plantação – por exemplo, se o fundeiro tiver constituído,
sobre o solo, uma hipoteca, esta vai passar a incluir, também, as obras e as árvores que deixam de ser
do superficiário findo o prazo.
Se, no entanto, houver uma extinção do direito quando este era perpétuo; ou uma extinção
antes do decurso do prazo de um direito de superfície temporário, aplica-se o artigo 1541º CC. Por
força deste, os direitos reais constituídos separadamente sobre a superfície e o solo subsistem como
tal – assim se, por exemplo, o direito de superfície se extingue antes do decurso do prazo por reunião,
os direitos reais menores constituídos pelo superficiário vão permanecer na sua esfera jurídica até ao
decurso do tal prazo. Já em casos de extinção por expropriação por utilidade pública, ao fundeiro
e ao superficiário cabem partes da indemnização correspondente aos valores dos seus direitos, que
variam conforme se estava a aproximar, ou não, o fim do seu direito (artigo 1542º CC).

Direitos e Obrigações do Superficiário


Os direitos do superficiário são tão grandes que são semelhantes aos dos proprietários, no
sentido de este poder fazer quase tudo – remetendo-se, aqui, para a discussão sobre a coexistência
dos direitos de propriedade e o de superfície.
Já as obrigações do superficiário merecem ser elencadas. Este tem, antes de mais, o dever
de concluir a obra ou plantação no prazo estipulado, ou no prazo supletivo de 10 anos, sob pena de
caducidade/extinção do direito de superfície – algo que tem subentendido um poder, por parte do
superficiário, de construir a obra.
Além disso, este tem o dever de pagar um preço ou cânone, caso o mesmo exista (artigo 1530º CC),
sendo a prestação sempre pecuniária e uma obrigação propter rem – ou seja, transmitida se o direito
de superfície também o for. Também tem o dever de consentir no uso e fruição pelo fundeiro,
enquanto não for realizada a obra ou plantação (artigo 1532º CC).
Existindo um direito de preferência a favor do fundeiro (artigo 1535º CC), o superficiário tem, então,
um dever de dar essa preferência ao fundeiro. No entanto, denota-se que, do ponto de vista
sociológico, este direito acaba por não funcionar, devido a exigência de um depósito, no prazo de 15
dias, do preço devido.

NOTA: Ao fundeiro resta, então, a 1) a possibilidade de readquirir a propriedade plena em caso de


prazo; o direito a 2) receber o cânone, caso seja estipulado; e o 3) direito de preferência na alienação
do direito de preferência, com oponibilidade erga omnes (artigos 1535º e 1410º CC).

AS SERVIDÕES
Noção Geral
Uma definição possível de servidão predial será: direito, que o titular de um direito real
sobre um certo prédio (dito prédio dominante) tem, de utilizar um prédio alheio (dito prédio
serviente), para melhorar o aproveitamento do prédio dominante, no sentido de o usar e fruir melhor.
Consequentemente, existe, nas situações de servidão, três direitos: o 1) direito real de propriedade do
prédio dominante; o 2) direito real de propriedade do prédio serviente; e 3) o direito de servidão,
presente na esfera jurídica do proprietário do prédio dominante, que limita o direito do proprietário
do prédio serviente. Significa isto que o proprietário dominante irá ter dois direitos reais: um direito
de propriedade do seu prédio; e um direito de servidão predial do prédio serviente.
No entanto, o artigo 1543º CC acaba por não ver a servidão predial como um direito do
proprietário dominante, mas como um dever do proprietário serviente. Isto é criticado, visto que a
servidão predial não deve ser entendida como uma posição passiva do titular do prédio serviente;
mas, sim, como uma posição jurídica ativa, no sentido de ser um direito real do titular do prédio
dominante. Além disso, esta definição legal peca por acabar por coisificar a servidão: esta não deve
ser vista como um encargo imposto ao prédio serviente em favor do prédio dominante – os direitos e
deveres que daqui advém não são dos prédios, dado estes serem coisas; mas, sim, dos seus titulares.
Será por isso que a servidão tem natureza real: existe uma relação jurídica entre pessoas, titulares, o
que implica que sejam estes que tenham direitos e deveres.
Outra ideia importante que se retira deste artigo é que, para poder haver uma servidão predial, tem
de haver um aproveitamento do titular do prédio dominante – ou seja, o conteúdo da servidão
não pode consistir em utilidades que revertam, pessoalmente, para o dono do prédio dominante. Um
direito a utilizar um prédio alheio, sem a mediação da utilização de um outro prédio, não será uma
servidão predial, pelo que não terá caráter real (e, portanto, não será oponível erga omnes). Por
exemplo, se A estabelecer um acordo com B, segundo o qual pode usar a sua piscina, esta será uma
estipulação de carácter obrigacional e não real, visto que não há um aproveitamento do prédio de A,
mas, sim, do prédio de B, em proveito pessoal de A. Já se o exemplo implicasse A precisar de passar
águas pelo prédio de B para regar as suas plantas, então já se estará perante uma servidão predial.
Assim, deste de seja sempre utilizada para aproveitamento do prédio dominante, o conteúdo
da servidão predial pode ser muito amplo (artigo 1544º CC). Existe, aqui, um caso em que o
princípio da tipicidade dos direitos reais fica numa “zona cinzento” porque, apesar das servidões
prediais estarem no elenco de direitos reais, elas podem ter um conteúdo extremamente variado –
sendo, por isso, o princípio posto em causa materialmente. É verdade que há determinados subtipos
de servidões prediais que são descritos na lei – nomeadamente, servidões de passagem e servidões
relativas a águas –; mas esses subtipos não delimitam o que pode ser uma servidão predial na sua
totalidade. Conclui-se, então, que pode haver subtipos sociais ou mesmo atípicos, pela liberdade
de estabelecimento do conteúdo que o artigo 1554º CC dá.
➔ É importante não confundir as servidões prediais com as servidões administrativas. Estas, embora
também sejam são limitações ao direito de propriedade do prédio serviente, jogam mais com
propriedade pública, não visando o aproveitamento do prédio dominante – algo que se mostra
claro, por exemplo, nas servidões relativas a linhas elétricas ou gasodutos.

Características
As servidões são caracterizadas pela sua inseparabilidade (artigo 1545º CC): ou seja, salvas
as exceções previstas na lei, as servidões não podem ser separadas dos prédios a que pertencem – e,
consequentemente, a afetação das utilidades próprias da servidão a outros prédios importa, sempre, a
constituição de uma servidão nova e a extinção da antiga. Estes detalhes de inseparabilidade são,
então, um corolário da ideia que há um (melhor) aproveitamento do prédio dominante.
As exceções previstas na lei estão, principalmente, no artigo 1548º CC, segundo a qual os donos dos
prédios (serviente ou dominante) podem exigir a mudança do local da servidão, se a mudança lhes
for conveniente e não prejudicar os interesses do dono do outro prédio – sendo que, do ponto de vista
jurídico, a servidão continua a ser a mesma. Ora, isto entra claramente em confronto com a ideia de
inseparabilidade analisada, no sentido em que só se pode escolher uma de duas lógicas: ou 1) se
concebe a servidão em causa como desligada de um local concreto – não existindo, aí, nenhuma
separação –; ou 2) se concebe a mesma como ligada a um local concreto – pelo que, fazendo tal
mudança, existe lugar à constituição de uma servidão nova.
As servidões são, também, caracterizadas pela sua indivisibilidade (artigo 1546º CC),
segundo o qual, em qualquer dos dois fenómenos possíveis – divisão do prédio dominante e divisão
do prédio serviente –, prevalece a servidão predial.
Mais especificamente, no caso de divisão do prédio serviente, a servidão passará a onerar ambos os
prédios, no sentido de se ficar com dois prédios servientes – por exemplo, A tem um prédio que não
tem acesso à via pública, pelo que tem uma servidão para passar pelo prédio de B para o fazer; ora,
se B dividir o seu prédio com C, A poderá passar, agora, pelos dois prédios, ao abrigo da sua servidão.
Ou seja, se o prédio serviente for dividido, o titular de cada novo prédio fica sujeito à parte da servidão
que lhe cabia.
Já no caso de divisão do prédio dominante, a servidão passará a onerar ambos os prédios, no sentido
de se ficar com dois prédios dominantes – por exemplo, se A, que tinha o direito a atravessar no
prédio do B, dividir o seu prédio com D, este passará, também, a ser titular da servidão. Ou seja, se o
prédio dominante for dividido, o titular de cada prédio novo tem o direito de usar a servidão sem
alteração, nem mudança da mesma.

Tipos e Modalidades
Os subtipos da servidão predial são vários, existindo alguns regulados na lei, e outros subtipos
sociais. Tal não vem, no entanto, violar o princípio da tipicidade: os direitos reais são um elenco
fechado, no qual a servidão predial, enquanto figura, está inserida – depois, o seu conteúdo, através
dos subtipos, poderá ser alargado desta forma.
Assim, a nível legal, existem as servidões de passagem (artigos 1500º e ss. CC), que implicam a
passagem de pessoas a pé, de carro, etc. em, por exemplo, em benefício de prédio encravado. Existem,
ainda, as servidões de vistas, inserida no contexto da propriedade horizontal (artigo 1362º CC).
Por sua vez, as servidões de estilicídio (artigo 1365º CC) inserem-se nos problemas que a erosão
provocada pela queda da chuva traz. Ora, quando se constrói na extrema dos edifícios, deve-se deixar
um intervalo mínimo de 5 cm para que a chuva que cai no telhado da construção consiga escorrer no
prédio onde está inserida essa construção, e não ir para o do vizinho. Contudo, se durante vinte anos
esta regra não se cumprir, cria-se uma servidão de estilicídio, no sentido em que o proprietário fica
com o direito real de que essa erosão na propriedade do vizinho aconteça.
Por sim, existem, também, as servidões para aproveitamento de águas para gastos domésticos ou
fins agrícolas (artigo 1557º CC), de represas (artigo 1559º CC), de escoamento (artigo 1563º CC) e
de aquedutos – onde, invés de passarem pessoas, passa água através de canos (artigo 1561º CC).
Como exemplos de servidões não nomeadas no CC, referem-se as servidões de passagem de
condutas (ex: gasodutos) e cabos (ex: linhas telefónicas e elétricas), que não sejam consideradas
servidões administrativas.
Quanto às modalidades, as servidões podem ser aparentes – por sinais visíveis permanentes
que as revelem – ou não aparentes, que não se podem constituir por usucapião (artigo 1548º CC).
Além disso, as servidões podem ser legais – quando impostas por lei – ou voluntárias – quando
constituídas através da autonomia privada. Por fim, as servidões podem, também, ser positivas ou
negativas, dependendo se implicam uma conduta positiva ou uma mera abstenção.

Modos de Constituição
Relativamente às servidões legais, estas são impostas pela lei, mas não resultam
automaticamente da mesma: ou seja, o que a lei faz é atribuir um direito potestativo ao titular do
prédio dominante para, existindo uma recusa de colaboração do titular do prédio serviente, que a
servidão possa ser constituída por sentença judicial ou decisão administrativa (artigo 1547º, nº2 CC).
➔ Denota-se que existem compensações ou indemnizações pela constituição da servidão de
passagem (artigo 1554º CC), previstas para o dono do prédio serviente. Além disso, o proprietário
do prédio serviente pode, também, obstaculizar a constituição da servidão de passagem,
oferecendo-se para comprar o prédio dominante pelo seu justo valor – exceção de aquisição do
prédio entravado pelo titular do prédio serviente (artigo 1551º CC). Isto possibilita aos
proprietários, que sofreriam graves prejuízos com a constituição de uma servidão, evitá-la:
sujeitando os titulares dos prédios encravados, que invoquem o direito à servidão, a terem de os
alienar para si mesmos.
o Assim, o titular do prédio serviente está sujeito ao direito potestativo da constituição de uma
servidão de passagem – situação jurídica complexa passiva. Contudo, dentro desta situação
jurídica passiva, há uma situação jurídica ativa, nomeadamente o direito de adquirir o prédio
entravado, pagando o seu justo preço.
Existe, ainda, a constituição por destinação do pai de família (artigo 1549º CC): não há, aqui, um
prédio encravado, nem uma servidão contígua – apenas a situação de dois prédios pertencer ao mesmo
dono, fazendo este uso de um deles desta forma ao longo do tempo. Por exemplo, A, ao longo dos
tempos, utilizou sempre um dos seus prédios para atravessar, simplesmente por preferir o acesso
daquele lado; ora, se A vender ambos os prédios a B e C, respetivamente, conclui-se que C terá um
direito potestativo para constituir uma servidão de passagem pelo prédio do B, por destinação do pai
de família – ou seja, porque o seu prédio era utilizado, anteriormente, como passagem.
Já quanto às servidões voluntárias, a sua constituição já não resulta de um direito potestativo
legal: estas podem, assim, ser constituídas por contrato, testamento ou usucapião – sendo que, à
partida, será por negócio jurídico.
Denota-se, no entanto, que as servidões não aparentes não podem ser constituídas por usucapião. Isto
porque, não havendo contrato, testamento, nem direito potestativo, para haver servidão predial, será
necessário cumprir os dois pressupostos do usucapião – posse e decursos do tempo – para que esta
exista. Ora, na ausência de sinais visíveis e permanentes, dificilmente haverá posse, como se lê no
artigo 1548º, nº1 CC.
➔ As servidões prediais são direitos reais de gozo. No entanto, no momento prévio à sua
constituição, em que o titular ainda está a exercer o seu direito potestativo, o direito de servidão
será um direito real de aquisição: ou seja, o titular ainda não está a usar a passagem; está, sim, a
forçar a constituição da mesma. Por outras palavras, ao exercer o direito potestativo, o titular está
a adquirir um direito de gozo – pelo que, a nível material, está perante um direito de aquisição.

Direitos e Obrigações dos Proprietários Dominantes


Quanto aos direitos do titular do prédio dominante, este tem, em primeiro lugar, o direito
à utilização do prédio serviente para melhor aproveitamento do prédio dominante, sobre cujo
conteúdo o legislador diz compreender tudo o que é necessário para o seu uso e conservação (artigo
1565º, n°1 CC) – o que significa que o titular terá, também, o direito a fazer obras (artigo 1566º CC).
Além disso, este tem o direito a exigir a mudança do local (artigo 1568º, nº2 CC); assim como o
direito de exigir uma alteração do modo e do tempo da servidão (artigo 1568º, nº3 CC) – exigindo,
por exemplo, que pode passar entre as 9h e as 21h.
Quanto aos deveres/obrigações do titular do prédio dominante, este tem a obrigação de
suportar o custo das obras que faça no prédio serviente, salvo acordo em contrário (artigo 1567, n°1
CC). Além disso, o proprietário do prédio serviente também pode exigir a mudança de lugar (artigo
1568, nº1 CC – pelo que resulta daqui uma obrigação de suportar a mudança. Por fim, o proprietário
do prédio serviente pode, também, exigir a mudança de modo e tempo (artigo 1568º, nº3 CC) – pelo
que resulta daqui outra obrigação de suportar a mudança.

Modos de Extinção (artigo 1569º CC)


Uma das formas de extinção das servidões prediais será a reunião, na mesma pessoa, da
titularidade do prédio dominante e do prédio serviente – por exemplo, se A compra o prédio de B,
pelo qual tinha uma servidão, a mesma extingue-se. No entanto, se A voltar a vender esse prédio a C,
pode constituir uma nova servidão predial, nos termos do artigo 1550º CC.
Outras formas serão a renúncia da mesma pelo titular do prédio dominante; o decurso do
prazo, se esta tiver sido constituída temporariamente; ou o não uso da servidão durante 20 anos. No
entanto, relativamente a esta última, denota-se que a aquisição por usucapião da liberdade do prédio
(usucapio libertatis), tendo como pressupostos a não utilização e a oposição pelo titular do prédio
serviente, é um caso diferente do não uso durante 20 anos – ou seja, no caso da usucapio libertatis,
houve não exercício não por escolha, mas sim por iniciativa do proprietário serviente, que impediu
ativamente que o proprietário serviente não utilizasse a sua servidão.
Além disso, está também prevista a figura da remissão, que é uma forma de extinção por
iniciativa do titular do prédio serviente. Assim, algumas servidões (relativa às águas e do
aproveitamento justificado) podem ser extintas por remissão, através de um negócio jurídico
unilateral do titular do prédio serviente. Esta depende, no entanto, da demonstração pelo dono do
prédio serviente de que pretende fazer da água, por exemplo, um aproveitamento justificado,
incompatível com a servidão.
Por fim, existe, ainda, a figura da desnecessidade. Ora, sendo o fim e a justificação da
servidão permitir um melhor aproveitamento do prédio dominante, a inviabilidade desse fim torna a
servidão injustificada. No entanto, a lei restringe a extinção das servidões por desnecessidade às
servidões constituídas por usucapião e às servidões legais (artigo 1569º, nº2 e 3 CC).

DIREITOS REAIS NÃO ENQUADRADOS NO CC


O Direito Real de Habitação Periódica (DRHP)
Noção geral e campo social de aplicação
O direito real de habitação periódica é um direito real com pleno carácter real e oponibilidade
erga omnes (artigo 1º DL) – sendo, no entanto, mais frágil no seu lado interno do que outros direitos
reais, dado que o contacto direta com a coisa é menos intenso, dependendo daquilo que é oferecido
na prática sociológica em termos de acesso.
Mais especificamente, este é um direito de gozo temporário e cíclico para fins
habitacionais de um imóvel, legislado pelo Decreto-Lei nº 275/93. Este direito está associado ao
fenómeno do time-sharing ou multi-propriedade dentro do contexto do turismo: a determinada altura
surgiu, no mundo dos negócios, um negócio que consistia nos promotores turísticos venderem aos
consumidores do mercado turístico, uma ou mais semanas, todos os anos, na mesma zona turística.
A razão por detrás deste diploma será a proteção do turista consumidor ou investidor, estando
associado a fenómenos de massificação turística que ocorreram sobretudo nos anos 70 e 80. Por
razões económicas várias – falta de capitais próprios dos promotores, surgimento de crises
conjunturais no setor do turismo, etc. –, muitos empreendimentos feitos em tais bases negociais
enfrentaram graves problemas, sendo que os investidores sofreram as consequências disso. Ora, com
vista a restabelecer a confiança e tornar os investimentos deste tipo mais seguros, os legisladores
intervieram, procurando disciplinar a atividade e reforçar as garantias dos investidores. Em Portugal,
tal como nalguns outros países, entre essas medidas de reforço de garantias contou-se a criação de
um quadro de natureza real, para substituir aquilo que, de início, era feito com recurso a negócios
jurídicos de cariz meramente obrigacional.
Esta legislação foi seguida de uma diretiva da EU, que implicou a sua alteração: nomeadamente,
criando-se este novo tipo de direito real, cuja vertente já seria a proteção dos consumidores, ao lhes
ser atribuído um direito com oponibilidade erga omnes.
De notar que, tal como o seu antecedente, este diploma restringe o seu âmbito de aplicação
aos contratos entre profissionais e consumidores (artigo 1º, n°2) – referenciando-se, no artigo 45º, a
possibilidade de este negócio funcionar apenas com direitos meramente obrigacionais (sendo isto, no
entanto, algo que é raro de existir).

Características
O direito real de habitação periódica é um direito real menor que coexiste com o direito de
propriedade, no sentido de pressupor a existência de um direito de propriedade sobre os imóveis a
que se refere. Além disso, é um direito gozo, sendo que este tem um carácter temporário e cíclico
(artigo 1º – “período certo de tempo”, “de cada ano”).
No entanto, o negócio em si pode ser temporário – estabelece-se o gozo daquela casa de férias,
naquela semana, durante 5 anos –, ou perpétuo – estabelece-se o gozo daquela casa de férias, naquela
semana, para sempre. Por regra, este será perpétuo; no entanto, quando é temporário, a sua duração
não pode ser inferior a um ano (artigo 3º, nº1).
Além disso, a representação deste direito terá de ser feita em certificados prediais, emitidos
pela conservatória do registo predial (artigo 10º). O certificado, enquanto papel, incorpora os direitos
e legitima a transmissão da oneração – ou seja, é um mecanismo de transmissão ou oneração de
DRHP. Isto, porque a conservatória não tem, na sua base de dados, toda a informação sobre todos os
titulares de cada direito cíclico e periódico daquela unidade sujeita a DRHP – apenas tem a
informação sobre o direito de propriedade e da constituição do DRHP, dado esta ser uma alteração
do estatuto jurídico do prédio. Assim, esta informação sobre quem tem cada DRHP terá de ser
vinculada no papel, sendo que o direito acompanha o que está no documento – existindo, aqui, um
fenómeno de incorporação de direitos nos documentos (como acontece nos títulos de crédito).
➔ Isto é diferente do que acontece na propriedade horizontal, em que existe uma sub-inscrição, no
registo predial, das frações autónomas e dos seus respetivos proprietários.
Modos de constituição
Os DRHP são constituídos por um ato sujeito a escritura pública ou a documento particular
autenticado (artigo 6°, nº1). Esse ato tem de ser precedido de uma comunicação ao Turismo de
Portugal, I. P., a qual tem de descrever minuciosamente o empreendimento (artigos 5º e 6°, n°2).
Devido a ser um negócio jurídico que altera o estatuto jurídico do prédio, a constituição de DRHP
está sujeita a registo predial (artigo 8°; e artigo 2°, n°1, alínea b) CRPredial). Assim, existe um
controlo administrativo, ao nível das Câmaras Municipais e ao nível do direito urbanístico e
ordenamento do território; assim como um controlo regulatório do turismo local.
Na sequência do registo definitivo da constituição do DRHP, a conservatória emite o
certificado predial – sendo que só depois disso é que se surge na esfera jurídica do proprietário, não
só o direito de propriedade, como uma série de DRHPs, que serão colocados no mercado turístico e
alienados. Desta forma, o contrato que altera o estatuto jurídico do prédio, em si, acontece com o
título, sendo o certificado predial já a “inscrição”: ou seja, o título apenas dá lugar à obrigação de
entrega e de pagamento de um preço – sendo a declaração negocial incorporada no certificado predial
que tem o efeito jurídico-real, transmitindo-o.

Direitos e obrigações dos titulares


À semelhança do que acontece com os outros direitos reais, o título constitutivo poderá
conformar, em parte, os poderes dos titulares de DRHP: ou seja, é possível que exista uma
comunicação prévia, feita ao regulador (ao Turismo de Portugal), que contêm não só toda a
informação sobre a unidade de alojamento; mas, também, descreve os poderes e deveres dos titulares
do DRHP (artigos 5º, nº2, alínea q); e 6º, nº2) – regulamento que integra o título.
Assim, em termos de direitos, o titular de DRHP tem o direito essencial de habitar a unidade
de alojamento e usar as instalações, os equipamentos de uso comum e os serviços do empreendimento,
durante o período a que respeita (artigo 21º, alíneas a) e b)). Consequentemente, o titular tem o direito
de participação política na assembleia geral e de informação, instrumental face ao direito de
participação política (artigos 34º e 35º CC).
Além disso, este também tem o direito de transmissão e oneração (artigo 12º), no sentido em que um
consumidor poderá vender o seu direito real menor a outro consumidor. Nestes casos, a transmissão
(onerosa ou não) é total: o primeiro consumidor perde qualquer direito que teria sobre a unidade de
alojamento, passando o direito real menor a constar da esfera jurídico do outro. Diferente disto será
o direito do titular a ceder o exercício do direito de habitação, onde existe uma transmissão temporária
(ex: uma semana das duas que ele tem): não se transmite o direito real, mas sim o uso da coisa durante
um prazo estipulado.
Quanto aos seus deveres, o titular terá a obrigação única de prestação periódica (artigo 22º),
sendo esta uma obrigação propter rem ambulatória (artigo 12º, nº4).

Direitos do proprietário do empreendimento:


Quanto ao proprietário do empreendimento, denota-se que este terá os seus direitos limitados
pelo confronto com os do titular de DRHP. Assim, em primeiro lugar, existirá uma impossibilidade
de este constituir outros direitos reais sobre o prédio; assim como só pode realizar obras que
constituam inovações nas unidades de alojamento mediante o consentimento dos titulares dos DRHP,
dado em assembleia (artigo 28º). No entanto, e num reverso da medalha, o proprietário será titular de
direitos de crédito propter rem (artigos 22º, 23º e 24º).
É possível a constituição de DRHP enquanto existir hipoteca sobre o empreendimento
turístico – por exemplo, tendo sido esta necessária para que o promotor turístico obtivesse um
empréstimo ao banco –, sendo que esta irá perdurar, dado ter sido constituída antes do DRHP. No
entanto, depois da constituição do mesmo, a hipoteca, assim como qualquer outro direito real menor
de gozo ou de garantia, não pode ser constituída.

Transmissão e oneração
Como já foi dito, a transmissão inter vivos e a oneração do DRHP fazem-se por meio do
certificado predial, no qual há que inscrever a declaração de transmissão ou de oneração – estando
a assinatura do transmitente ou constituinte do ónus sujeita a reconhecimento notarial presencial
(artigo 12º, n°1).
Fala-se, ainda, de contratos-promessa (artigo 16º). Concretamente, ao perspetivar os contratos
que se referem à alienação de DRHP como sendo, necessariamente, contratos-promessa (artigos 17 a
20º), o legislador parece laborar sobre um equívoco: normalmente, não haverá um contrato-promessa
de compra e venda e, depois, um contrato compra e venda – mas, sim, apenas uma compra e venda
sem efeito real, acompanhada ou seguida do ato de transmissão consistente na declaração feita no
certificado. Concluindo, o que se tem nestas situações será um contrato definitivo de compra e
venda do DRHP (título); e, em momento posterior, a inscrição do certificado predial (modo).

Modos de extinção
A extinção deste direito pode ser dada por decurso do prazo, quando for temporário; assim
como por perda da coisa; e por denúncia – sendo este um mecanismo de proteção do consumidor,
que não o obriga a ter de pagar todos os anos a prestação se quiser sair do contrato. Além disso, prevê-
se, também, um regime de resolução do contrato por vícios do contrato aquisitivo – ou resolução ad
nutum (artigo 16º).
Não existe, no entanto, extinção por reunião: se o proprietário, a determinada altura, por
renúncia ou outro motivo qualquer, volta a ter na sua esfera jurídica o DRHP anteriormente
transmitido, este não se extingue – podendo ser, outra vez, alienado a outro titular.

Direito Real de Habitação Duradoura (DHD)


Noção geral e campo social de aplicação
O direito real de habitação duradoura é um direito real em que tanto o lado interno – o morador
vive com residência permanente, estando em contacto direto com a coisa de forma vitalícia –, como
o lado externo, de oponibilidade erga omnes, existem. Mais especificamente, este é um direito de
gozo vitalício de um imóvel alheio para residência permanente, regulado pelo Decreto-Lei
nº1/2020 – não tendo, no entanto, implantação sociológica.
O contexto da criação deste direito real é o de crise no mercado habitacional. Ou seja, um
contrato de arrendamento com eficácia meramente obrigacional implica a entrega da coisa para gozo,
mediante um preço mensal/trimestral – uma renda. No entanto, e implicando este gozo, estes direitos
encontram-se na fronteira entre direitos reais e direitos de obrigação – acabando por ser chamados
direitos pessoais de gozo, aos quais é aplicado uma parte do regime da posse. Em todo o caso, este
direito representa um direito a uma residência, podendo este ter (ou não) um limite temporal, mas que
implicará sempre direitos obrigacionais, e não reais.
Ora, o que legislador procurou fazer foi criar uma figura semelhante, mas com direitos reais: ou seja,
um regime em que o titular paga uma renda – mas que, em vez deste pagamento ter um mero efeito
obrigacional, dará lugar a um direito real de residir na coisa, com oponibilidade erga omnes. Assim,
e segundo os artigos 2º e 5º, o direito real de habitação duradoura (DHD) consiste no poder
(necessariamente resultante de contrato) de uma (ou mais do que uma) pessoa singular gozar um
imóvel alheio destinado a habitação como residência permanente, por um período vitalício,
contra o pagamento, ao proprietário, de duas contrapartidas pecuniárias.

Características
Como referido, a constituição do DHD obriga o seu titular (que a lei designa como “morador”)
ao pagamento de duas contrapartidas pecuniárias: uma caução e prestações periódicas (rendas). Ora,
a caução (artigo 6º) é paga no momento da constituição do direito, e prestada por um prazo de 30
anos – sendo que, a partir do 11º ano, começa a reverter anualmente uma parte da caução para o
proprietário. Ou seja, nos primeiros anos, a caução fica estática na posse do proprietário; depois, a
partir do 11º ano, uma parte da mesma já vai efetivamente para este, que passa agora a poder mexer
nela. Significa isto que tal prestação acaba por não ser, em rigor uma mera caução, mas também uma
contraprestação a partir desse 11º ano.
➔ Artigo 6º, nº2: “A caução é prestada por um prazo de 30 anos, sendo o seu valor inicial reduzido
em 5% ao ano a partir do início do 11º ano; e até ao final do 30º ano de vigência do DHD”.
Este direito é intransmissível mortis causa; e a transmissibilidade inter vivos é muito
limitada, visto que não pode ser feita de forma voluntária, mas apenas em caso de penhora ou venda
judicial – por exemplo, quando o morador tem dívidas, e o credor instaura uma execução contra o
morador, podendo penhorar todos os seus bens, incluindo o DHD. Consequentemente, a possibilidade
de o onerar, criar ónus ou hipotecas sobre o mesmo também é limitada.
Dito isto, o DHD está a meio caminho entre o usufruto e o direito de habitação. Por um lado, é
parecido com o usufruto visto que também não é transmitido mortis causa; mas, por outro lado, afasta-
se deste regime quanto à sua intransmissibilidade inter vivos voluntária.
Concluindo, o DHD é um direito real totalmente novo, com alguns pontos de contacto com o usufruto
e direito de habitação; mas distinto, dado exigir contrapartidas pecuniárias: o DHD é necessariamente
oneroso; ao passo que os contratos criadores de usufruto e de direito de habitação podem ser gratuitos
– sendo de enfatizar que, enquanto o DHD tem como única fonte negocial possível o contrato, o
usufruto e o direito de habitação também podem resultar de testamento.

Direitos e obrigações dos titulares


A nível de direitos, o titular tem, essencialmente, um direito de gozo do imóvel por um
período vitalício (artigo 5º, nº2): a habitação deve ser entregue pelo proprietário ao morador com um
nível de conservação, no mínimo, médio; e livre de pessoas, ónus e encargos, incluindo outros direitos
ou garantias reais – designadamente, a hipoteca.
O cumprimento desta última parte do preceito, se cumprida, assegura que o DHD não caducará em
virtude da venda judicial do imóvel, destinada a satisfazer crédito garantido por hipoteca. No entanto,
acontecendo isso, o morador terá direito de preferência sobre a propriedade (artigo 21º, nº9).
A nível de obrigações, o titular está obrigado ao pagamento, ao proprietário, de duas
contrapartidas pecuniárias: uma caução e prestações periódicas – às quais a lei evitou chamar
“rendas” (certamente por querer afastar o DHD do regime de arrendamento), mas que
economicamente, o são. Além disso, os impostos são suportados pelo morador (artigo 9°, n° 1, alínea
b)), tal como os custos com as obras para conservação ordinária, de modo a manter um nível médio
de conservação (artigos 9º, n° 1, alínea d)) – não tendo direito a benfeitorias (artigo 10º, n° 3).

Modos de extinção
Quanto aos modos de extinção, o DHD pode caducar com a morte do morador (artigo 16º) ou
pela perda da coisa. Além disso, este direito pode ser extinto pela denúncia pelo morador (artigo 17º);
pela reunião dos dois direitos na mesma pessoa; e pela resolução do contrato constitutivo (artigo 18º),
dado a proximidade com o arrendamento.

DIREITOS REAIS DE GARANTIA


Enquadramento
A utilidade dos direitos reais de garantia não está no gozo ou na fruição; mas, sim, na 1)
satisfação de um crédito, 2) mediante a venda da coisa ou os rendimentos e com 3) preferência dos
demais credores.
Este direito poderá ser analisado enquanto garantia do Direito das Obrigações: em caso de
incumprimento do crédito, existe uma garantia geral das obrigações, que é o património do devedor
(artigo 601º CC). É possível, no entanto, limitar esta responsabilidade por convenção das partes
(artigo 602º CC); caso contrário, todos os bens do devedor suscetíveis de penhora respondem pela
dívida, sem limites – independentemente de existir, ou não, uma hipoteca.
No entanto, para além disso, existem garantias especiais, que se desdobram em garantias
especiais pessoais e garantias especiais reais (artigo 656º CC):
➔ No caso das garantias pessoais, há uma vinculação de um terceiro, novo, ao pagamento da dívida
– ou seja, se o crédito não for pago, o credor poderá executar todo o património do devedor; mas,
também, pode executar todo o património do terceiro (ex: fiança).
➔ No caso das garantias reais, há a afetação primordial de uma coisa corpórea ao pagamento da
dívida, com preferência pelos demais credores – ou seja, se há uma hipoteca ou um penhor, a
coisa hipotecada vai ser afetada ao pagamento daquela dívida específica; só depois da satisfação
dessa dívida, é que a coisa pode ser afeta ao pagamento de outras dívidas.
o São estas garantias reais que aqui vão ser estudadas como direitos reais de garantia.

Características comuns
Os direitos reais de garantia podem ter origem legal – por exemplo, os privilégios creditórios
– ou negocial, abrangida pela autonomia privada. A hipoteca tanto pode ser voluntária ou legal;
enquanto o penhor, que costumava ser sempre voluntário, pode agora ser legal.
Os direitos de garantia negociais podem ser constituídos pelo próprio devedor – por exemplo, A pede
dinheiro a um banco para comprar um imóvel, constituindo hipoteca sobre este – ou por um terceiro
– por exemplo, uma mãe faz uma hipoteca para garantir uma dívida do seu filho.
As garantias reais são um desvio ao princípio da igualdade dos credores, segundo o qual os
créditos são satisfeitos na proporção dos bens do devedor, visto que implicam uma preferência de um
credor preferente, em relação aos demais credores comuns. As preferências podem ter uma hierarquia,
havendo garantias reais que privilegiam mais do que outras entre os credores preferentes: a mais forte
tende a ser o privilégio creditório, seguindo-se a hipoteca e por aí adiante. Cabe ao Tribunal, mediante
a graduação das garantias, definir qual a ordem de preferência relativa dos credores na fase de citação
dos credores com garantia real.
Também é importante ter em conta, aqui, as regra do Código de Insolvência. As regras do CC
funcionam quando há uma execução devido ao devedor não pagar uma dívida voluntariamente; no
entanto, na fase de citação, quando há muitas dívidas, existe uma execução universal ou insolvência
– deixa de fazer sentido estar-se a tramitar várias execuções singulares, pelo que se faz uma única
execução universal, em que se vendem todos os bens do devedor, tendo o juiz de fazer na mesma a
fixação da hierarquia dos credores. Ora, para esta execução universal, são reconhecidos os direitos
gerais de garantia do CC, existindo, depois, mais detalhes no CIRE.
➔ Em processo de insolvência, pode ser aprovado um plano de recuperação por uma maioria dos
credores, que poderá implicar que o tratamento dos créditos não é igual ao que resulta da lei – ou
seja, aprova-se uma hierarquia de créditos distinta da lei.
Atualmente, no entanto, há uma tendência de uniformização e harmonização dos regimes relativos a
direitos reais de garantia – por exemplo, com a figura da euro-hipoteca, assim como a diretiva
existente sobre o penhor financeiro.
NOTA: A hipoteca é a garantia real mais importante relativa a imóveis; enquanto o penhor é a
garantia real mais importante relativa a móveis.

Hipoteca
Noção geral e relevância social
A hipoteca traduz o direito do credor a ser pago, pelo valor de uma coisa certa e
determinada – proibindo-se, assim, a incidência da hipoteca sobre a totalidade dos bens, sem
especificação (artigo 756º CC) –, com preferência sobre os credores comuns.
No direito português, a hipoteca diferencia-se do penhor, antes de mais, em função dos
respetivos objetos: a hipoteca só pode incidir sobre coisas imóveis ou móveis sujeitas a registo
(artigos 686º a 689º CC); ao passo que o penhor só pode incidir sobre coisas corpóreas móveis,
créditos ou outros direitos não suscetíveis de hipoteca (artigo 666º, nº1 CC).
Historicamente, no entanto, a distinção feita era a seguinte: o penhor implicava a traditio, dado que
o credor passava a ter a posse da coisa; enquanto hipoteca, verdadeira garantia real, não implicava a
traditio. A nível de direito comparado ainda há países que seguem esta tradição romana – o que
significa que, em transações económicas internacionais, poder-se-á aplicar a legislação de outro país
e, consequentemente, ter uma hipoteca sobre coisas móveis, porque não há traditio.
➔ Existem outros países, nomeadamente a Alemanha, em que apenas o imóvel responde pela dívida
– dívida fundiária, não funcionando a regra do artigo 601º CC.
A hipoteca é importante em Portugal: nas empresas de promoção imobiliária, o crédito
hipotecário é sempre o instrumento utilizado para financiar a construção ou aquisição de um imóvel.
Ora, no contexto de um mercado imobiliário não desenvolvido, devido do congelamento das rendas,
muitos consumidores procuram adquirir imóveis (e não arrendar) – tendo, para pedir um empréstimo
ao banco, de constituir uma hipoteca sobre estes.

Espécies de hipoteca
As hipotecas podem ser legais, judiciais ou voluntárias (artigo 703º CC).
Quanto às hipotecas legais, estas resultam da lei, mas não de forma automática, dado que
ainda são sujeitas a registo – daí que se tenha de ter cuidado com o artigo 704º CC, que diz que estas
resultam “imediatamente” da lei. Os casos de hipoteca legal estão enumerados no artigo 705º CC, aos
quais há a acrescentar alguns constantes de outros diplomas.
Denota-se, contudo, que as hipotecas legais que garantem os créditos do Estado, das autarquias locais
e das instituições de segurança social, cujo registo haja sido requerido dentro dos dois meses
anteriores à data do início do respetivo processo, se extinguem com a declaração de insolvência
(artigo 97º, n° 1, alínea c) CIRE).
Quanto às hipotecas judiciais, estas não resultam de sentenças que as constituam ou ordenem
a sua constituição. A possibilidade da sua constituição, por iniciativa do credor em moldes similares
aos das hipotecas legais, resulta do mero facto de ser proferida uma sentença, ainda que não transitada
em julgado, que condene alguém numa prestação (artigo 710º CC).
Significa isto que quando se tem uma sentença condenatória, é possível constituir hipotecas sobre os
bens do devedor contra a vontade deste: este é um direito potestativo, atribuído ao credor, com a
sentença. Consequentemente, não é a sentença que cria a hipoteca, mas sim o criador, no uso deste
direito potestativo – este, sim, atribuído pela sentença.
➔ O artigo 140º CIRE diz que a hipoteca judicial não é atribuída em sentença, e não atribui
preferência em caso de insolvência.
Quanto às hipotecas voluntárias, estas são as que nascem de contrato ou negócio unilateral
(artigo 712º CC). A grande maioria das hipotecas é desta espécie, e é a ela que está ligada a enorme
relevância social da figura.

Principais regras comuns às várias espécies de hipoteca


Características processuais:
Na hipoteca, a execução é sempre injuntiva, feita no âmbito de um processo judicial, de
forma a proteger o devedor ou o proprietário do bem a executar – ao contrário do que acontece no
penhor, em que a venda pode ser feita extraprocessualmente, procedendo o próprio credor à venda
(artigo 675º CC).
Além disso, o efeito jurídico-real só surge com o registo, quer entre as partes, quer perante
terceiros – tendo este, por isso, efeito constitutivo (artigo 687º CC; e artigo 4º CRPredial). Denota-se
que esta sujeição a registo abrange todas as espécies de hipoteca: sem este, a realidade é desprovida
de natureza real.
Execução física das hipotecas:
Quanto à extensão física das hipotecas, esta abrange todas as coisas elencadas como
componentes ou partes integrantes dos imóveis (artigo 691º, nº1). No entanto, esta regra terá de
ser moderada pela mutuação física: se, entretanto, cresceu um edifício (piso novo), uma árvore, um
elevador, etc. depois da constituição da hipoteca, estes elementos novos também a vão integrar.
A regra da inclusão na hipoteca das árvores, dos arbustos, dos frutos naturais, enquanto
estiverem ligados ao solo, e das partes integrantes dos prédios, é completada pelo artigo 700º CC, do
qual resulta que o dono da coisa hipotecada, no exercício dos seus poderes de administração as pode
separar do imóvel hipotecado e alinear, sem necessidade do consentimento do titular (embora com
restrições).

Obrigações cobertas:
Quanto às obrigações cobertas, a hipoteca assegura, para além do crédito propriamente dito,
os acessórios do crédito que constem do registo (artigo 693º, nº1 CC): ou seja, tem de constar do
registo que a garantia é de um determinado crédito e, ainda, se esta inclui, ou não, os seus juros. No
entanto, a lei estabelece que, não obstante convenção em contrário, apenas são abrangidos os juros
relativos a três anos – não especificando, no entanto, quais são estes três anos, estando este problema,
atualmente, totalmente em aberto.
De qualquer das formas, esta regra pretende proteger as expectativas de terceiros quanto ao
valor máximo abrangido pela preferência hipotecária. No entanto, para Caetano Nunes, isto implica
norma desproteger o credor: como não estão cobertos todos os juros, este acaba por perder dinheiro,
no sentido em que não existirá uma proteção para uma possível desvalorização do dinheiro. Por um
lado, esta norma destruirá, completamente, a atividade dos bancos: se os devedores colapsos só pagam
juros de três anos, os juros referentes aos outros anos vão acabar por ter de ser pagos na mesma, mas
pelos devedores que cumprem, aos quais vai ser aumentada a taxa de juro.

Indivisibilidade:
Quanto à indivisibilidade, (artigo 696º CC), em caso de divisão do prédio, a hipoteca passa
a abranger todos os prédios decorrentes da divisão, respondendo cada um deles pela totalidade da
dívida garantida. Assim, a hipoteca não perde o seu âmbito ou extensão – visto que, caso contrário,
haveria uma perda da garantia efetiva. Além disso, também em caso de hipoteca com objeto plural,
que incide sobre vários prédios, todos os prédios respondem pela totalidade da dívida – ou seja, se,
por exemplo, A tem dois prédios a responder pelo crédito, ambos eles respondem pela totalidade da
dívida, e não apenas por 50% da mesma.
A mesma regra funciona em sede de propriedade horizontal: constituída a propriedade
horizontal e alterado o estatuto jurídico do prédio, este passa a integrar várias frações autónomas –
sendo que todas passarão a responder pelos créditos. Se a fração autónoma for vendida, o banco do
promotor imobiliário irá renunciar à hipoteca na parte correspondente àquela fração (sob pena de o
comprador não querer adquirir aquela fração autónoma) – ficando, no entanto, ao critério do credor
hipotecário fazer essa renúncia.
➔ A aquisição imobiliária é, quase sempre, feita com recurso a financiamento à compra e à
construção: o promotor imobiliário faz o primeiro investimento de comprar o prédio, e hipoteca
o próprio prédio que compra para garantir esse empréstimo ao banco. No entanto, depois disso,
precisa de mais dinheiro para fazer as empreitadas, pelo que hipoteca, mais uma vez, o prédio.
Ora, é possível, assim, ter-se várias hipotecas sobre o mesmo prédio.

Transmissibilidade e oneração:
Quanto à transmissibilidade e suscetibilidade de nova oneração de bens, a constituição da
hipoteca não prejudica a transmissibilidade dos bens sobre os quais incide. Assim, é proibida a
cláusula de inalienabilidade dos bens hipotecados: ou seja, a cláusula pela qual o dono se obrigaria a
não alinear ou não onerar os bens hipotecados (artigo 695º CC). No entanto, poderá ser estipulado,
no negócio jurídico de constituição da hipoteca, que a transmissão ou oneração implica o vencimento
do crédito garantido – e, portanto, espoleta a execução da hipoteca.
Ou seja, a existência de uma hipoteca não limita, de todo, a transmissibilidade do bem (no sentido de
este poder ser vendido); assim como não limita a sua oneração, podendo-se constituir novas hipotecas
(artigo 713º CC). Havendo mais do que uma hipoteca sobre um mesmo objeto, os direitos por ela
conferidos hierarquizam-se em função do momento dos seus registos (artigo 6º, nº1 CRPredial).
➔ Isto é muito frequente na prática sociológica; no entanto, acaba por não ser economicamente
viável, visto que, em termos práticos, a transmissão do bem acaba por ser limitada.
De qualquer das formas, a hipoteca é transmissível inter vivos, cedível mesmo sem o crédito
garantido (artigo 727º, nº1 CC). A hipoteca, em si mesma, enquanto garantia, tem valor económico
e, por isso, a transmissão da hipoteca pode ter interesse, para passar a garantir outro crédito que não
o que originalmente garantia. No entanto, na prática, existem alguns limites a esta regra geral de
transmissibilidade – por exemplo, no caso da fração autónoma –, o que significa que, na realidade, o
banco decide sozinho ou se quer ou não transmitir a hipoteca.
➔ O que acontece, frequentemente, é que tanto o banco que vai renunciar a hipoteca, como o banco
que vai constituir nova hipoteca estão presentes no momento da transmissão (renúncia).

Perda ou deterioração:
Em caso de perda ou deterioração (por exemplo, por tremor de terra), o direito do credor
hipotecário transforma-se num direito à indemnização (artigo 692º CC): ou seja, a hipoteca passa
a incidir sobre a indemnização. Se, no entanto, esta perda ou deterioração tiver sido feita com culpa,
será a pessoa a causou que irá indemnizar o credor – por exemplo, se o edifício for destruído por um
avião, será a companhia área que vai indemnizar.
Além disso, caso o objeto da hipoteca parecer ou se tornar insuficiente para a segurança
da dívida, o credor pode exigir a substituição ou o reforço da hipoteca (artigo 701º, nº1 CC) –
aplicando este direito de reforço, em princípio, quer à hipoteca que incida sobre bens do devedor,
quer à hipoteca que incida sobre bens de terceiro (n 2º). Não procedendo o devedor a tal substituição
ou reforço, pode o credor exigir o cumprimento imediato da obrigação garantida – ou, tratando-se de
obrigação futura, registar hipoteca sobre outros bens do devedor.
➔ Esta regra surge noutros direitos reais de garantia, de forma a proteger o credor hipotecário.

Modos de extinção da hipoteca (artigo 730º):


A hipoteca pode ser extinta se a obrigação a que serve de garantia também se extinguir:
ou seja, na medida em que a lei configura a hipoteca como necessariamente acessória de um crédito,
a extinção do crédito garantido implica a extinção da hipoteca. Consequentemente, caso a hipoteca
tenha sido transmitida para segurança de outro crédito, só a extinção desse novo crédito garantido
opera a extinção da hipoteca, sendo irrelevante a extinção do crédito originário (artigo 728º, nº2 CC).
Além disso, a hipoteca pode-se extinguir, a favor de terceiro adquirente, por decurso de
prazo: nomeadamente, 20 anos passados do registo da aquisição; e 5 anos passados do vencimento
da obrigação. Em rigor, não existe aqui uma prescrição; mas, sim, um fenómeno de caducidade.
Ainda no caso de terceiro adquirente, este – e não o devedor ou o proprietário originário da coisa
hipoteca – terá o direito potestativo de extinguir a hipoteca (artigo 721º CC) – tendo, para isso, de
pagar integralmente aos credores hipotecários as dívidas garantidas (alínea a). Este regime de
expurgação da hipoteca específico acontece muito nos grupos de sociedades, onde uma sociedade
do mesmo grupo concede uma hipoteca a favor de outra sociedade.
Voltando ao credor, a hipoteca também se poderá extinguir, enquanto direito real, pelo
perecimento da coisa, nos contornos já analisados. Por fim, também existe a possibilidade de o
credor renunciar à hipoteca, figura conhecida por distrate da hipoteca – algo que, do ponto de vista
sociológico, é muito frequente, dado ser a maneira de extinção mais fácil: apenas se tem de provar
que houve cumprimento do crédito; ou que se pode ativar o regime de expurgação da hipoteca.

Arrendamentos de imóveis hipotecados:


Muito relevante do ponto de vista social será entender qual o destino dos arrendamentos
feitos de imóveis hipotecados, em caso de execução da hipoteca. Ora, o arrendamento, apesar de
ter um carácter meramente obrigacional pessoal, tem, também, aspetos de carácter absoluto –
nomeadamente, este é juridicamente imune à transmissão da propriedade, não se extinguindo pelo
facto de o locador transmitir a propriedade a outra pessoa.
Ora, esta imunidade irá, também, ser aplicada em casos de venda judicial (artigo 1057º CC).
No entanto, e segundo o artigo 824º, nº2 CC, a venda judicial é uma venda livre de ónus e encargos:
ou seja, quando a coisa é vendida judicialmente, o Tribunal está a vendê-la limpa, desonerada – caso
contrário, não haveria compradores disponíveis. Ora, falta, então, nesta disposição uma referência ao
arrendamento, visto que, face a este artigo, as pessoas que comprassem o imóvel, no âmbito da venda
judicial, estariam a comprar também o arrendamento – algo que diminui substancialmente a cobertura
da hipoteca. Existem, assim, duas soluções para este problema:
➔ Sendo o arrendamento (ou usufruto) anterior à constituição da hipoteca, será executada a nua
propriedade, mantendo o arrendatário todos os seus direitos.
➔ Sendo o arrendamento (ou usufruto) posterior à constituição da hipoteca (registo), os direitos
reais terão de caducar quando o bem for executado, nos termos do artigo 824º CC – sob pena de
o credor hipotecário estar a ser enganado, perdendo o valor económico do imóvel com a
subsistência do arrendamento.

Hipoteca voluntária: aspetos específicos


A hipoteca voluntária pode nascer do contrato, em que figura o proprietário da coisa hipoteca
e o credor da coisa hipotecária; ou, ainda, do negócio jurídico unilateral, onde só se figura o
proprietário (artigo 712º CC). Além disso, a constituição e modificação da hipoteca voluntária sobre
imóveis podem constar não só de escritura pública ou de testamento, como de documento particular
autenticado (artigo 714º CC); já no que respeita à hipoteca sobre bens móveis, os vários diplomas
sobre registo exigem, apenas, forma escrita.
Muito importante será, aqui, a proibição de pacto comissório (artigo 694º CC): cláusula
contratual, de acordo com o qual, em caso de incumprimento, o credor hipotecário faz sua a coisa
hipotecada. É, assim, um pacto que protege muito o credor e, consequentemente, desprotege muito o
devedor, no sentido de fazer com que a propriedade vá automaticamente para o credor, sem
necessidade de uma execução judiciária. Assim, a proibição pretende, então, proteger o devedor disto,
ligando-se tradicionalmente o mesmo ao regime da usura.
➔ O regime do penhor também remete para esta norma – sendo que, do ponto de vista sociológico,
esta será mais importante nesse contexto.

Penhor
Penhor pode ser a designação de um direito real de garantia; mas, também, pode surgir como
designação do negócio jurídico ou do contrato que tem como efeito essencial a constituição desse
direito real de garantia.

Noção
O penhor é o direito do credor a ser pago com preferência dos demais credores pelo valor
da coisa corpórea móvel; ou pelo valor de créditos ou de outros direitos. O penhor pode ser
constituído pelo devedor ou pelo terceiro (artigo 667º CC). Tal como na hipoteca, o titular do direito
de penhor – pelo menos, do que recaia sobre coisas corpóreas – é considerado possuidor, mesmo
quando não esteja na detenção da coisa.
A distinção entre hipoteca e penhor é aferida pelo objeto do direito real de garantia: ou seja,
na hipoteca, existem objetos imóveis; enquanto no penhor, existem objetos móveis. No entanto, e
como já foi visto, nem sempre foi assim – utilizando-se, em contexto de direito comparado, a distinção
da traditio. Deste critério ficou, então, a ideia de que, regra geral, o penhor envolve alguma traditio:
ou seja, a coisa vai, diretamente, para as mãos do credor (sendo que há, no entanto, regimes especiais
onde isso não acontece). Assim, olhando para o penhor enquanto direito real, a traditio será um
requisito; mas, olhando, para o penhor enquanto negócio jurídico, a traditio será um dos elementos
essenciais para alguns regimes especiais: ou seja, para este, não basta o encontro de vontades – é
preciso um ato real, nomeadamente a entrega da coisa.

Objetos possíveis
Ora, quanto aos objetos possíveis (artigo 666º), o penhor pode incidir sobre coisa móvel, valor
de crédito ou outros direitos.
Deve entender-se coisa móvel enquanto coisa móvel não hipotecável: ou seja, quando a lei
fala em coisa móvel, tal deve ser interpretado no sentido de coisas não sujeitas a hipoteca, já que
alguns bens, apesar de móveis, são também suscetíveis de hipoteca por estarem sujeitos a registo (ex:
automóveis, aeronaves e embarcações). No entanto, mesmo estes poderão ser penhorados, enquanto
não estiverem registados – ex: os carros que são fabricados e levados para outros países, antes de
serem registados nesses países podem ser penhorados.
Já sobre os créditos (artigo 685º CC), estes poderão ser empenhados logo que se tornem
exigíveis (nº1): o credor pignoratício, para garantia do seu crédito, tem o direito de empenhar outro
crédito – ou seja, de executar e cobrar um segundo crédito.
Mais frequente será o penhor sobre participações sociais: ou seja, sobre uma posição jurídica
de um sócio numa sociedade, que engloba um conjunto de direitos e deveres – sendo que os sócios
de sociedades anónimas têm ações; enquanto os sócios das sociedades corpóreas têm quotas. Não
obstante, podem ser ambas empenhadas – por exemplo, se A der em penhor as sua ações no BCP, e
não pagar o crédito que está por essas garantido, o credor B passa a assumir a sua posição no BCP.
Do ponto de vista sociológico, isto é muito relevante: os negócios de maior valor são garantidos não
por hipoteca, mas por penhores sobre ações e quotas. Aplica-se, aqui, não só o CC, mas também
normas do Código dos Valores Mobiliários (artigos 81 e 103º) e do CSC (artigo 23º).
Uma das coisas discutidas na jurisprudência e doutrina é se pode haver penhor sobre um
estabelecimento comercial. Ora, existem duas maneiras de olhar para a empresa: enquanto objeto
jurídico – nomeadamente, se a empresa, em si, estiver a ser vendida – e enquanto sujeito jurídico –
isto porque, o substrato de uma sociedade comercial, aquilo que está por detrás, é uma empresa.
Assim, a noção de estabelecimento comercial é sinónima de empresa, em sentido objetivo: ou seja,
como objeto de negócios jurídicos ou como objeto de direitos reais. Consequentemente, a empresa
também poderá ser objeto do penhor: ou seja, também pode ser dada como garantia.
Outra controvérsia doutrinária será a noção de coisa composta ou universalidade de facto,
aplicadas às situações onde existe uma pluralidade de coisas móveis com um destino unitário (artigo
206º CC). Aqui, discute-se se as coisas compostas podem incluir apenas coisas corpóreas, ou também
realidades incorpóreas; e se se pode incluir neste conceito, também, situações jurídicas ativas e
passivas (direitos e deveres).
Sobre estes temas, tem havido uma tendência geral doutrinária no sentido de considerar o
estabelecimento comercial, em sentido objetivo, como sendo uma coisa composta, complexa – uma
unidade que incorpora também direitos e deveres, posições contratuais. Será esta universalidade que
pode ser objeto de contratos de compra e venda, bem como de penhor.
➔ O estabelecimento comercial é 1) um conjunto de bens (coisas), direitos e deveres, 2)
funcionalmente unificados por uma gestão unitária, e 3) afetadas ao mesmo fim. Dentro deste
conjunto de bens, direitos e deveres, estão situados mercadores, matérias-primas, posições
contratuais que esta possa ter (ex: com o banco, em contratos de funcionamento), etc. – todas
essas coisas funcionam como uma unidade com valor acrescentado, ligadas entre si para produzir
valores económicos que, individualmente, não teriam.
o A polémica doutrinária estende-se, no entanto, não apenas à natureza jurídica da figura do
estabelecimento comercial, mas também aos elementos que a compõem – discute-se, por
exemplo, se a clientela faz parte do estabelecimento comercial.
No que toca aos direitos reais de garantia, a lei não faz referência à hipoteca nem, tampouco, ao
penhor de estabelecimento comercial. Ora, não sentido falar, aqui, em hipoteca, pelo facto de o
estabelecimento comercial ser uma coisa complexa; contudo, faz todo o sentido discutir a
possibilidade de penhor de estabelecimento comercial – pelo que será necessário fazer uma
interpretação extensiva sistemática dos artigos 666º e 206º CC. Ora, no CPC, foi estabelecido que
podia haver penhora de estabelecimento comercial, o que significa que este é uma coisa composta
para efeitos da penhora. Consequentemente, deixa de haver qualquer motivo para, em razão de
propriedade, não ser também objeto de penhor: se o estabelecimento comercial pode ser objeto de
penhora, também pode ser de penhor.
Dentro dos direitos e deveres do estabelecimento comercial, podem estar imóveis – por exemplo, a
fábrica onde a empresa faz os produtos. Com isso, o estabelecimento também terá posições
contratuais e direitos de deveres nos contratos com trabalhadores e fornecedores; assim como pode
ter um contrato de locação desse mesmo imóvel – sendo, por isso, a posição de locatário do imóvel
(e não a propriedade do imóvel) que se encontra dentro desses deveres. Assim, a propósito da empresa
em sentido objetivo, a lei utiliza uma terminologia específica para alguns dos negócios que a
envolvem – sendo que a transmissão do estabelecimento comercial tem a designação de trespasse do
estabelecimento comercial (artigo 1109º CC) Por seu lado, à locação do estabelecimento comercial
chama-se de cessão de exploração do estabelecimento comercial (artigo 1112º CC).
➔ Nos regimes em que o penhor tem de envolver traditio, não se faz penhor de estabelecimento
comercial, porque não é possível que o empresário prescindia da posse do estabelecimento, sem
prescindir da sua gerência.

Obrigações cobertas
As obrigações garantidas pelo penhor podem ser futuras ou condicionais (artigo 666º, nº3
CC) – por exemplo, créditos que ainda não existem; ou que podem vir (ou não) a existir. Além do
crédito do capital, o penhor pode garantir também juros sem qualquer limite temporal, visto que o
artigo 678º CC não refere o preceito do artigo 693º, nº2 CC.

Regime comum do penhor das coisas (artigos 669º e ss. CC)


Necessidade de traditio (artigo 669º CC):
O penhor das coisas implica a necessidade de traditio: ou seja, a necessidade de entrega da
coisa empenhada, visto que o legislador caracteriza o penhor como um contrato real quoad
constitutionem. A entrega física pode, no entanto, ser substituída pela entrega de documentos – algo
muito frequente no comércio internacional: por exemplo, as mercadorias ainda estão a ser
transportadas, mas existe um documento que representa as mercadorias, pelo que se cumpre a traditio.
➔ Em certos regimes especiais, é possível, no entanto, o penhor sem desapossamento.

Convenção quanto à execução:


É possível uma convenção quanto à execução extrajudicial ou extraprocessual (artigo 675º
CC) o que, na prática, significa que se atribui a um terceiro ou ao credor pignoratício um direito
potestativo de execução extraprocessual da coisa: possibilidade de vender a coisa, executando
pelas suas próprias mãos o seu direito real de garantia. Será também lícito às partes acordarem que a
coisa empenhada seja adjudicada diretamente ao credor, por um valor a fixar pelo tribunal.
Menezes Cordeiro fala, aqui, de uma “autorização ou legitimação”, remetendo para o regime
da procuração. No entanto, aqui, estes casos acabam por ser juridicamente diferentes: trata-se, aqui,
de um fenómeno de ingerência na esfera jurídica alheia diferente do da procuração, dado que, no caso
da procuração, está-se a atuar em nome e por conta de quem atribuiu os poderes; ao passo que, aqui,
atua-se em nome próprio – o credor pignoratício vende, em nome próprio, o bem alheio, não
participando o proprietário no negócio.
➔ Estes casos são mais frequentes nas vendas de empresas, em que quem vende é o credor
pignoratício, e não o proprietário representado.
Proibição do pacto comissório:
Como já se viu, o pacto comissório é a convenção segundo a qual o credor pignoratício se
apropria da coisa, em caso de incumprimento. Tal é proibido no penhor, por remissão do artigo 678º
CC para o artigo 694º CC.
Existe, no entanto, uma figura algo semelhante – o pacto marciano –, que será permitida por prever
determinados mecanismos de avaliação de preço antes do incumprimento, garantido alguma proteção
ao devedor proprietário, não existente no pacto comissório: nomeadamente, se a coisa for avaliada
em valor superior ao valor de garantia, o credor terá de proceder à devolução do excesso.
Há, contudo, uma querela doutrinária sobre o que é realmente a proibição de pacto comissório,
e a sua distinção face ao pacto marciano. A proibição do pacto marciano é defendida, na medida
em que se entenda este como uma extensão do pacto comissário: ou seja, adotando-se uma
interpretação extensiva, ampla do conceito, o pacto marciano irá incluir-se no conceito de pacto
comissário. Pelo contrário, poder-se-á optar por uma interpretação restrita de pacto marciano e pacto
comissário, distinguindo as suas figuras.
Em todo o caso, há regimes jurídicos de penhor especiais que admitem o pacto comissório
– como, por exemplo, o regime especial de penhor financeiro. Desde 2017, o penhor mercantil ou
comercial passou a salvaguardar, expressamente, a possibilidade de pacto marciano. Quanto ao
regime comum, o que é proibido ou não depende da interpretação feita do artigo 694º CC –
sendo que, quando se optar pela interpretação restritiva e, consequentemente, pela não proibição do
pacto marciano, este quase sempre estará clausulado no contrato.

Direitos do credor pignoratício:


Além do direito principal de se fazer pagar pelo respetivo valor, em caso de incumprimento
da obrigação garantida, a lei atribui ao credor pignoratício outros direitos. Este tem o direito aos
frutos (artigo 672º CC), tanto civis ou naturais: nomeadamente participações sociais, dividendos,
lucros. Já o regime especial do CSC depende que o conteúdo deste direito esteja estipulado no
contrato.
Além disso, o credor tem o direito de defesa possessória (artigo 670º, alínea a) CC): ou seja,
este terá o direito de, enquanto possuidor, ir para tribunal defender a sua posse – direito, aliás, dado
também na aquisição da propriedade por força do decurso do tempo (usucapião). Esta defesa
possessória é atribuída, mesmo, no confronto com o proprietário.
Finalmente, o credor terá o direito a benfeitorias (artigo 670º, alínea b) CC); assim como o
direito à substituição e reforço do penhor (alínea c), caso a coisa empenhada perecer ou se tornar
insuficiente para a segurança da dívida.

Deveres do credor pignoratício (artigo 671º CC):


O credor terá o dever de guarda e administração da coisa (alínea a), tendo o fazer com
cuidado, segundo o critério do “bom pai de família” e no interesse do proprietário – tal como um
proprietário diligente.
Este dever entra na categoria dos direitos da obrigações quanto aos deveres fiduciários. Há
determinados deveres de prestação de serviços, que implicam uma confiança extrema e uma
desproporção de meios e fins – pelo que, ao se ter demasiado poderes, não se poderá abusar dos
mesmos, tendo de atuar no interesse de outrem.
Ou seja, sempre que há propriedade fiduciária não há, do ponto de vista dos direitos reais, um tipo
novo de direito real; mas, sim, uma estrutura obrigacional de um dever de atuar em interesse de
outrem. Do ponto de vista dos direitos reais, só há um direito de propriedade, atribuindo os poderes
do proprietário de forma excessiva – pelo que terá, então, de haver essa promessa obrigacional de
atuar no interesse de outrem, e não no próprio interesse.
Significa, assim, que nestes casos não há transferência de propriedade – surge, apenas, um direito real
de garantia musculado: o credor pignoratício tem a posse da coisa, tendo de a guardar e administrar
no interesse do proprietário devedor, sendo esse o seu dever fiduciário. Assim, o penhor, enquanto
direito real garantia, envolve esta posse que caracteriza a propriedade fiduciária – embora esta
necessite, além disso, da propriedade, que aqui não existe no credor, mas sim no devedor.
Concluindo, estabelece-se um dever fiduciário que faz ponte com a propriedade fiduciária e, também,
com a direção do mandato (no sentido em que se age em interesse de outrem).
Além disso, o credor também não poderá usar a coisa sem consentimento do seu dono,
exceto se tal uso for indispensável à sua conservação. Caso seja extinta a obrigação garantida, o credor
terá o dever de restituir a coisa (alínea c).

Modo de extinção (artigo 677º CC):


O regime de extinção do penhor é, essencialmente, um regime de remissão para a hipoteca,
mas com algumas nuances. Em primeiro lugar, excetua-se a prescrição. Depois, existe a referência
à restituição voluntária da coisa empenhada ou do documento representativo da coisa: ou seja,
envolvendo o penhor a traditio, a coisa oposta a esta será a restituição da coisa – havendo tal
restituição, extingue-se o penhor. Esta restituição, materialmente, constitui uma renúncia.

Regimes especiais de penhor


Penhor dos direitos (artigo 679º CC e artigo 23º CSC):
Neste regime, o objeto é direitos que tenham por objeto coisas móveis (artigo 680º CC):
por exemplo, se A tiver usufruto sobre coisa móvel, poderá ter penhor sobre ele. No entanto, daqui
excluem-se o direito de uso e habitação, pela especificidade do regime. Um dos melhores exemplos
é o penhor de direitos sociais, ações.
No entanto, o regime comum do penhor de coisas aplica-se subsidiariamente, mutatis mutandis.

Penhor financeiro (Decreto-Lei nº 105/2004):


Este regime é um dos mais relevantes, do ponto de vista sociológico, ao lado da alineação
fiduciária em garantia: propriedade fiduciária com função de garantia.
O regime do penhor financeiro é limitado quanto ao objeto e quanto aos sujeitos que podem
ser titulares de contratos de garantia financeira.
Quanto ao objeto, este pode ser numerário – ou seja, saldo em conta bancária, dinheiro –; e
instrumentos financeiros, nomeadamente valores mobiliários, instrumentos do mercado monetário e
créditos ou direitos relativos a quaisquer dos instrumentos financeiros referidos. A delimitação do
conceito de instrumento financeiro é uma decorrência do conceito de mercado financeiro: aquele em
que as empresas vão buscar capital para financiamento das empresas (artigo 5º).
Quanto aos sujeitos (artigo 3º), existe uma delimitação ativa quer do beneficiário credor pignoratício;
quer do proprietário (prestador), que cria o penhor financeiro. Ora, o beneficiário tem de ser um banco
central ou uma instituição sujeita à supervisão prudencial (ex: seguradoras); enquanto o prestador tem
de ser uma pessoa coletiva. Portanto, o penhor financeiro, na realidade, trata do financiamento das
empresas, realizado essencialmente pelos bancos.
Este regime não implica a transmissão da propriedade do objeto de garantia para o respetivo
beneficiário. Tem, no entanto, três aspetos nucleares:
1. Regime de imunidade em caso de insolvência (artigos 17º a 19º):
Este é um regime de proteção através da limitação da resolução em benefício da massa,
uma figura algo próxima da impugnação pauliana – variando, apenas, no facto de apenas o
administrador da massa, em nome dos credores, é quem tem legitimidade. Esta limitação tem, assim,
duas modalidades: uma de resolução mais simples, em que os pressupostos são os mesmos da
impugnação pauliana; e outra, automática, em que, verificados determinados pressupostos, não é
necessário fazer prova de que há prejuízo ou diminuição de garantia patrimonial – sendo que, nesta
segunda, os atos prejudiciais à massa são extintos face à declaração de insolvência (artigos 120º e
121º CIRE).
Ou seja, este regime do CIRE está próximo da impugnação pauliana, no sentido em que existe a
impossibilidade de satisfação do crédito; ou um ato de agravamento dessa impossibilidade, anterior
à existência do crédito ou feito, posteriormente, com dolo. Para além disso, o terceiro tem, também,
de ter agido em má-fé (artigo 120º, nº4 CIRE) – neste caso, avaliado pelo estabelecimento de um
período suspeito anterior ao processo de insolvência de dois anos. De qualquer das formas, a
estatuição normativa é, então a ineficácia em função do crédito – os requisitos são os mesmos.
No entanto, na resolução em benefício da massa insolvente, existem todos os credores (invés de
apenas um) numa execução universal de insolvência (invés da execução). Devido à ineficácia em
relação a todos os credores, o bem passa a fazer parte da massa insolvente para satisfação de
todos os créditos – a resolução em benefício da massa é, assim, uma impugnação pauliana universal.
No entanto, existem, depois, casos mais musculados no artigo 121º CIRE, em que os prazos
encurtam, e se torna desnecessário a prova da má-fé – por exemplo, se, no ano anterior à data do
início do insolvência, o devedor fez atos onerosos, mas desequilibrados, já não se tem de provar a
má-fé. Outro exemplo será o facto de os pagamentos feitos pelo devedor a outros credores nos seis
meses anteriores vão ser considerados ineficazes, assim como as garantias gerais constituídas nos 60
dias anteriores ao processo de insolvência. Isto, porque se presume que, se o devedor estava tão
próximo da insolvência e fez, mesmo assim, uma garantia real beneficiando um credor, este foi feito
para beneficiar um credor em detrimento dos outros, já antecipando que ia haver insolvência.
Consequentemente, o bem fica desonerado e sem garantia real, sem se ter de provar que há prejuízo
para a massa ou a má-fé do terceiro. Este regime do artigo 121º é extremamente forte porque não
se tem de provar nada, mas apenas que esta constituição tenha ocorrido no período suspeito.
Este regime de proteção automática dos credores (artigo 17º) cria, do ponto de vista dos agentes
económicos, um risco muito elevado de conceder empréstimos à empresa face a situação económica
difícil: ou seja, tal é feito para colmatar o facto de os bancos terem receito de emprestar dinheiro a
empresas em situação económica difícil. Consequentemente, os bancos terão, esta proteção,
excetuando-se a sua imunidade quando existem atuações fraudulenta.
O penhor financeiro é imune a este regime de proteção através da limitação da resolução em benefício
da massa. O simples facto de a garantia do penhor financeiro ter sido constituída num determinado
prazo antes do processo de insolvência não permite que o penhor seja resolvido. Só há, então, o limite
dos atos fraudulentos – nomeadamente, quando se atua em detrimento dos outros credores com dolo.
Portanto, no penhor financeiro, existe um regime que afasta a aplicação destes prazos, pelo que
este sobrevive à insolvência e à resolução em benefício da massa.
2. É possível convencionar um pacto comissório (artigo 11º):
No penhor financeiro, não só é admissível o pacto marciano, como também o pacto
comissório. Aqui, a lógica do legislador terá sido o facto de não haver grandes razões para proteger
o devedor por causa do objeto do penhor financeiro. Ou seja, a proibição deixa de fazer sentido porque
não há o prejuízo para o devedor verificado no regime geral: se o objeto do penhor financeira for
numerário, este terá sempre o seu valor facial, assim como as ações cotadas em bolsa.
Consequentemente, não existe o tal risco elevado de abusos pelo credor creditício.
3. Direito de disposição:
Por fim, o beneficiário da garantia (na prática os bancos) tem o direito de alinear ou
onerar o objeto da direito da garantia, como se fosse seu proprietário. Como as ações têm risco de
desvalorização, o credor do penhor financeiro pode alinear ou onerar as mesmas, substituindo o objeto
do penhor por outro objeto – por exemplo, passar de ações para numerário (artigo 9º, nº2).
Fica, porém, o credor que exerça tal direito obrigado a assegurar o interesse do constituinte
do penhor no seu objeto, nomeadamente restituindo coisa equivalente ao objeto da garantia; ou,
quando o contrato de penhor financeiro o preveja, e em caso de cumprimento pelo prestador da
garantia, entrega de quantia em dinheiro, correspondente ao valor do objeto da garantia no momento
do vencimento da obrigação de restituição (artigo 10º).

Penhor comercial ou penhor mercantil (artigo 397º Código Comercial):


Este regime é aplicável quando a dívida garantida seja uma dívida comercial. Ora, o
conceito do ato de comércio – um dos critérios para delimitar o direito de comercial – será, em
Portugal, um ato que seja regulado no Código Comercial. Encontra-se, aqui, a ideia de um elenco
fechado: porque foram estes escolhidos para ser regulados, e outros não?
Ora, o que influencia a noção de ato de comércio, como delimitada pelo legislador, é o conceito de
empresa. Em sentido objetivo, esta é um conjunto de bens direitos ou deveres de administração afetos
ao mesmo fim. No entanto, em sentido subjetivo, seta é uma organização de meios de produção, para
exploração profissional de uma atividade económica. Ora, é esta ideia de exploração profissional de
atividade económica que está subjacente aos atos de comércio, como atos praticados pela empresa.
Consequentemente, existe um penhor mercantil quando se visa garantir uma dívida associada
a uma empresa, a uma atividade económica profissional, enquanto ato de comércio – pelo que o
credor penhoratício será uma empresa. No entanto, se a obrigação garantida for considerada um ato
de comércio (ex: compra e venda para revenda), mas não estiver associada a uma empresa, também
se estará no campo do penhor mercantil.
Denota-se, por fim, que o artigo 2º do Decreto-Lei nº75/2017 estabeleceu uma norma de
admissibilidade do pacto marciano.
Penhor a favor de instituições de crédito (Decreto-Lei nº29/833:
Este regime, de grande aplicação prática no contexto de bancos e a instituições de crédito,
dispensa a entrega da coisa empenha – ou seja, existe uma desnecessidade de traditio: a coisa não
tem de ser entregue ao banco. Não havendo traditio, este não é um contrato real quoad constitutionem:
o dono devedor fica a possuí-la em nome do credor (artigo 1º). A razão de ser de tal regime será
facilitar o recurso ao crédito, possibilitando que os bens, cuja aquisição é financiada, sejam utilizados
pelas empresas, sem que estas deixem de responder pelo financiamento.
No entanto, apesar de não haver traditio, a instituição de crédito é considerada possuidor,
apesar de não ter posse – pelo que o proprietário, mantendo-se na posse da coisa, passa a ser um
possuidor alheio em nome do devedor. Isto é feito de forma ao credor pignoratício ter acesso aos
meios de defesa da posse: ou seja, existe, aqui, defesa possessória.

Penhor a favor de prestamistas (Decreto-Lei nº160/2015):


Este é um regime de proteção dos consumidores, partindo-se do princípio que quem recorre
a estas casas de penhor está em situação difícil. A casa de penhor pode fazer a venda extrajudicial –
direito potestativo de venda extrajudicial (artigo 675º CC) –, mas tal possibilidade tem de ser regulada
pelas partes, pautando-se pelo mínimo de garantias de proteção do prestador (consumidor).

Penhor a favor do exequente (artigo 807º CC):


Nas situações em há uma execução em curso, e acordo para pagamento em prestações, antes
de 2003, a execução suspendia-se enquanto o executado pagava paulatinamente as suas prestações.
Ora, isto significava que havia imensas execuções em curso, que se encontram suspensas dadas as
prestações. Assim, o legislador, para diminuir os processos pendentes em tribunais, estabeleceu que
as execuções ficam não suspensas, mas sim extintas quando há pagamento de prestações.
No entanto, um problema com isto é que, faltando um pagamento, terá de haver execução;
ora, se volta a haver execução, as coisas penhoradas têm de continuar a ficar penhoradas – pelo que,
no âmbito da execução, se as coisas penhoradas forem imóveis, passa a haver hipoteca; se eram
móveis, passa a haver penhor.
Consequentemente, este é um tipo de penhor que surge automaticamente, por força da lei, em
caso de extinção de execução para pagamento em prestações da dívida: não envolve o
desapossamento, a traditio; e acaba por não ser muito relevante do ponto de vista sociológico. É um
regime estranho, que não faz sentido nenhum em termos conceptuais, somente motivado por
cosmética de justiça.

A Consignação de Rendimentos (artigos 656º e ss. CC)


Noção geral
Como foi visto, a hipoteca e o penhor permitem ao seu titular pagar-se pelas forças do valor
de uma coisa – sendo que, no penhor, é possível convencionar a venda extrajudicial. Ora, no caso da
consignação de rendimentos, o crédito é satisfeito através dos rendimentos, e não do valor da coisa.
➔ Sinónimo de consignação de rendimentos é a terminologia anticrese.
A consignação de rendimentos foi automatizada em relação à hipoteca, mas não em relação
ao penhor – ou seja, foi automatizada em relação a imóveis. Isto porque, dentro dos direitos do
penhor, está o direito aos frutos, pelo que o regime geral do penhor já permite que, em relação a coisas
móveis, os rendimentos sejam utilizados como garantia.
A consignação de rendimentos não sobrevive à venda judicial: quando há uma venda em
execução para venda judicial de um imóvel, extinguem-se todos os direitos reais de garantia (artigo
824º, nº2 CC), inclusive a consignação de rendimentos. No entanto, esta regra acaba por jogar mal
com este regime: na consignação de rendimentos, a satisfação do crédito é dada pelos rendimentos e
não pelo valor da coisa vendida, pelo que não faz sentido vender a coisa sem consignação de
rendimentos, dado que, assim, obviamente que deixa de haver rendimentos – e, consequentemente,
deixa de haver garantia.
Por isso, o regime do artigo 824º, nº2 CC significa que a consignação de rendimentos tem uma
oponibilidade erga omnes muito fraca, que não sobrevive à venda judicial – onde tal oponibilidade
seria mais importante. Precisamente por isso, esta acaba por ter pouca relevância sociológica, não
sendo uma garantia forte – será, até, duvidoso dizer que esta é uma verdadeira garantia real.
A consignação de rendimentos pode ser não apenas uma garantia, mas também um meio de
cumprimento da obrigação: ou seja, pode ser estipulado que os rendimentos são um meio de
pagamento da obrigação, ainda antes do momento do incumprimento – por exemplo, todos os meses
as rendas geradas são para pagar o crédito.
Por fim, a consignação de receitas é uma figura semelhante à consignação de rendimentos,
mas sem carácter real, e apenas com mero carácter obrigacional: na consignação de rendimentos, há
um nível de oponibilidade erga omnes (embora não muito grande, como foi visto), o que significa
que o credor com consignação de rendimentos consegue impor a cobrança daqueles
rendimentos para satisfazer o crédito – consegue ir para tribunal e impor, perante o devedor e os
restantes credores, que a sua preferência seja acondicionada (enquanto não houver venda judicial). Já
na consignação de receitas, não há oponibilidade erga omnes, nem preferência perante os credores.

Objetos possíveis
Os objetos possíveis são os imóveis e móveis sujeitos a registo (artigo 656º, nº2) – existindo
a tal automatização relativamente à hipoteca. Entre objetos possíveis de consignação estão também
os títulos de crédito nominativos (artigo 660º, nº2 CC).

Modos de constituição
A consignação de rendimentos pode ter por fonte um negócio jurídico ou uma decisão judicial,
sendo, respetivamente, voluntária – onde pode ser constituída não só pelo devedor, como também
pelo terceiro – ou judicial (artigo 658º CC). A nível de forma, esta terá de ser constituída por escritura
pública e registo (artigo 660º CC).
Na consignação judicial, esta surge na ação executiva como meio de pagamento: ou seja, o
exequente ou 1) propõe a venda judicial para obter o seu crédito pelo valor da coisa; ou 2) fá-lo pela
consignação de rendimentos – sendo que os rendimentos da coisa vão sendo depositados no tribunal
para ir pagando o crédito. No entanto, é muito raro o exequente não escolher a venda judicial e optar
pela mera consignação de rendimentos: os credores querem ver o seu crédito satisfeito o quanto antes
– e, se optarem por esta solução, arriscam-se a que venha outro credor exigir a venda judicial, o que
fará com que percam o seu direito real de garantia.
Na consignação judicial, será o tribunal que decide onde permanecem os bens (artigo 661º
CC), sendo possível estipular se os bens sujeitos à consignação permanecem com o devedor, passam
para o credor ou ficam à guarda de terceiros. Já na consignação voluntária, existe uma grande
liberdade de estipulação, sendo possível estipular que os imóveis fiquem no poder do proprietário,
do terceiro ou do credor.

Obrigações cobertas
Tal como na hipoteca e no penhor, as obrigações garantidas podem ser condicionais ou
futuras, nos termos do artigo 656º nº1. Além disso, estas podem ser obrigação de capital ou juros, ou
ambos (nº2), sendo que os rendimentos que são obtidos vão sendo primeiro imputados aos juros e, só
depois, ao capital (artigo 661º, nº2) – ou seja, todas as modalidades são possíveis.

O modus operandi da consignação


Quando não é garantia, mas um meio de pagamento da obrigação, a consignação funciona
como tal. No entanto, quando funciona como garantia, pode-se estabelecer que as receitas sejam
utilizadas até ao pagamento da dívida; ou que apenas ocorra durante um limite temporal. De qualquer
das formas, existe um limite temporal máximo de 15 anos (artigo 659º, nº1 CC) – existindo, no
entanto, uma obrigação de prestação de contas ao credor.
Quando a propriedade fica nas mãos do credor, há um dever de administrar segundo um
proprietário diligente, e de pagar os encargos das coisas, incluindo os impostos que recaiam sobre os
seus rendimentos (artigo 663º CC) – dever fiduciário. Já a entrega dos bens a terceiro pode ser feita
a título de locação ou outro; mas o credor fica, sempre, com o direito de receber os respetivos frutos
(artigo 661º, nº1 CC).
Por fim, há uma remissão para o regime da hipoteca quanto aos modos de extinção (artigo
664º CC), exceto quanto à prescrição. Existem, ainda outras regras do regime da hipoteca para o qual
há remissão, previstas no artigo 665º CC.

Os Privilégios Creditórios (artigo 733º CC)


Razão de ser dos privilégios: os seus prós e contras
Este direito real de garantia, que resulta automaticamente da lei, traduz o direito do credor a
ser pago pelo valor da coisa determinada com preferência sobre os demais credores,
independentemente do registo.
Os principais beneficiários de privilégios creditórios são entes públicos, a começar pelo
Estado. Consequentemente, a lógica legislativa é, precisamente, proteger os créditos fiscais e da
segurança social, por exemplo. Ou seja, através de uma interpretação atualista do artigo 744º CC,
este ir-se-á aplicar ao IMI, que permite financiar as autarquias (o Estado). Em reforço deste imposto,
o legislador estabelece que este crédito fiscal beneficia de um privilégio creditório: se não for pago,
beneficia de uma garantia real. Aliás, devido à sua importância, na graduação dos vários créditos
garantidos, este é sempre o primeiro a ser pago.
No entanto, do ponto de vista da opção legislativa, a criação de privilégios creditórios é muito
polémica, no sentido de serem limitações surpresa à propriedade privada, em sentido amplo: se o
Estado é pago primeiro, a hipoteca e o penhor podem não ter substância económica quase nenhuma
– o que irá, por sua vez, levar a menos financiamento e a taxas mais elevadas para compensar,
culminando tudo em menos crescimento económico.
Devido a isto, o CC de 1966 teve várias iniciativas de abolição destas figuras – inclusive, foram
mesmo abolidas no Código de Insolvência em 1933. Atualmente, na sequência da criação de novos
Códigos, vão surgindo diplomas extravagantes que reduzem os privilégios creditórios.

Espécies de privilégios
Existem duas espécies de privilégios creditórios: 1) mobiliário e 2) imobiliário (artigo 735º,
nº1 CC). Estes podem, ainda, ser gerais, quando incidem sobre todos os bens que integram o
património de uma pessoa; ou especiais, quando incidem sobre uma coisa corpórea (nº2).
Privilégios imobiliários especiais: O IMI e o IMT são alguns exemplos, sendo que, para efeitos de
IMI, é o imóvel que gere o imposto; enquanto no IMT, o imposto é gerado pelo facto de o imóvel
estar a ser transacionado (artigo 744º CC). Outro exemplo são as despesas de justiça (artigo 743º
CC), nomeadamente sobre imóveis que estão a ser executados: quando há uma execução e é
penhorado um imóvel, a primeira coisa a ser paga são as despesas de justiça daquele processo de
execução. Também são protegidos os créditos dos trabalhadores: segundo o artigo 303º do Código
de Trabalho, o imóvel que constitui o local de trabalho é alvo de privilégio creditório a favor destes.
Privilégios imobiliários gerais: Estes eram, anteriormente, previstos para os créditos dos trabalhos –
no entanto, tal foi considerado inconstitucional, por ser demasiado imprevisível. Previsões sobre a
segurança social, IRS, IRC e salários em atraso também têm vindo a desaparecer, dado terem surgido
dois acórdãos do TC que, em 2002, consideraram os privilégios imobiliários gerais
inconstitucionais, na interpretação em que esses privilégios preferem a hipoteca, no sentido de haver
uma limitação surpresa à propriedade.
Privilégios mobiliários gerais: Previstos nos artigos 736º e 737º CC, existe, por exemplo, as despesas
de funeral do devedor; sendo que os códigos de IRS, IRC e Segurança Social também estabelecem
mais privilégios como estes. Também serão atribuídos privilégios creditórios a credores que, em sede
de recuperação de empresas, invistam dinheiro em empresa em situação economicamente difícil.
Privilégios mobiliários especiais: Estão previstos no artigo 738º CC, sendo as despesas de justiça um
exemplo.

Principais aspetos do regime


Quanto às obrigações cobertas, o privilégio creditório abrange os juros relativos aos últimos
dois anos, se estes forem devidos (artigo 734º CC). Comparando isto com o preceito afim relativo à
hipoteca (artigo 693º CC), nota-se que os privilégios creditórios só cobrem juros, e não todos os
acessórios do crédito. No entanto, julga-se aplicável a este preceito, com as devidas adaptações,
algumas das observações feitas ao n°2 do 693º: esta limitação parece ter como fim 1) equilibrar o
tratamento preferencial dado aos titulares do privilégio com as expetativas de outros credores; e 2)
estimular a diligência do credor exequente, sem o forçar a agir logo que se verifique o incumprimento.
Além disso, denota-se que esta garantia não é transmissível, até pelo paralelismo com a regra do
artigo 727º, nº1 CC (hipotecas legais), segundo o qual a hipoteca não pode ser cedida sem o crédito
assegurado, quando for inseparável do titular do bem hipotecado.
Quanto à preferência relativa dos privilégios no confronto com outros direitos reais de
garantia (artigo 745º CC), dentro dos privilégios, a ordem indicada no CC é:
1. Imobiliários especiais, que prevalecem sobre os restantes privilégios e garantias, ainda que seja
temporariamente anterior (artigo 751º CC);
2. Mobiliários especiais, sendo que prevalece o que mais cedo se houver adquirido (artigo 750º CC)
– ou seja, aqui já não gera o problema da limitação surpresa ao penhor, que o 751º gera à hipoteca.
o A hipoteca ficar abaixo do privilégio é uma limitação surpresa; já o penhor ficar numa posição
de ambiguidade quanto ao privilégio não implica nenhuma sobreposição do último sobre o
penhor – e, por isso, para Caetano Nunes, não é um problema.
3. Mobiliários gerais, que não valem contra terceiros (artigo 749º CC) – apenas têm oponibilidade
contra o devedor, pelo que não há questões de limitação surpresa.
Quanto à extinção, existe uma remissão para o regime da hipoteca; assim como para o artigo
97º CIRE, que regula a extinção dos privilégios creditórios dos entes públicos (não dos trabalhadores)
passado um limite temporal de 12 meses antes da data do início do processos de insolvência. Na
prática, nestes casos, extinguem-se os efeitos dos privilégios para “não estragar a economia”.

Natureza
Os privilégios imobiliários especiais têm o carácter real mais forte; o mesmo vale para os
mobiliários especiais. Já os mobiliários gerais não valem contra terceiros – e, por isso, não tem
oponibilidade erga omnes, logo não têm carácter real: são meras preferências no pagamento, no
âmbito da execução.
Há, ainda, a dizer que, apesar da sua proximidade, esta figura não se confunde com a da
hipoteca legal. As duas garantias têm em comum serem atribuídas por lei, assim como a sua razão
de ser: quer a hipoteca legal, quer os privilégios creditórios têm como fim reforçar a garantia de certos
créditos e privilegiá-los.
No entanto, há dois aspetos de regime que as distinguem: por um lado, a sujeição a registo da
hipoteca legal vs. a não-sujeição a registo dos privilégios creditórios; por outro, o facto de os objetos
possíveis da hipoteca legal serem apenas imóveis ou móveis sujeitos a registo vs. a existência de
privilégios com todos os tipos de objetos.

Direito de Retenção
Noção
Este é um direito concedido pela lei a um credor que detém certa coisa, de reter a mesma
enquanto não for pago (artigo 754º CC); e de satisfação do crédito pelo valor da coisa com
preferência sobre os demais credores (artigos 758º e 759º CC). A primeira faculdade mencionada é,
assim, um acréscimo quanto aos direitos reais de garantia, implicando a existência de meios de defesa
da posse; enquanto a segunda é o típico conteúdo de um direito real de garantia.
Esta pode incidir sobre móveis ou imóveis; assim como a coisa pode pertencer ao devedor
ou a um terceiro – por exemplo, o empreiteiro que faz obras num imóvel tem o direito de retenção
dessas enquanto não for pago.
A retenção da coisa é exercida extrajudicialmente, sendo um direito potestativo – ou seja, o
credor tem o ónus de reclamar o seu direito nessa execução. Quanto à satisfação do crédito através
da coisa, esta faculdade já será feita através da venda judicial no tribunal. Assim, enquanto não
houver venda judicial, o bem permanece na posse do credor – no entanto, em caso de venda judicial,
a única faculdade que sobra ao titular do direito de retenção será ser pago com preferência aos
credores hipotecários, mas depois dos privilégios creditórios (artigo 824º, nº2 CC). A partir do
momento em que há penhora, o direito de retenção tem como limite a atuação do tribunal.

Principais traços do registo


Este só é transmissível se o crédito for garantido – ou seja, não é transmissível
automaticamente (artigo 760º CC).
Existe oponibilidade erga omnes, mesmo perante o proprietário: ou seja, o credor pode reter
a coisa e satisfazer o crédito pelo seu valor no confronto com o proprietário. Além disso, esta é
também especialmente forte porque prevalece sobre a hipoteca (artigo 759º, nº2 CC), mesmo não
estando sujeito a registo – pelo que a publicidade do direito de retenção (ou seja, a possibilidade de
conhecimento da retenção pelos outros credores do dono da coisa retida) é assegurada apenas pela
situação fáctica. Mesmo que o direito seja declarado judicialmente, não é possível registá-lo.
Isto significa que o direito de retenção acaba, também, por ser uma limitação surpresa à propriedade
privada: muitos pensam que, em alguns casos, este é injusto, dado acarretar uma degradação da
posição do credor hipotecário, com a qual o mesmo não poderia contar. Assim, e à semelhança do
que sucede com os privilégios imobiliários gerais, argumenta-se pela sua inconstitucionalidade –
vindo a existir algumas tentativas de construções doutrinárias visando evitar esse resultado; assim
como algumas decisões jurisprudenciais (não generalizáveis) no mesmo sentido.
➔ Contudo, esta oponibilidade forte também lhe dá, sem dúvida, o carácter real.
Em Portugal, a opção legislativa foi a de uma técnica dupla: por um lado, existe uma cláusula
geral (artigo 754º CC) – o que lhe dá uma amplitude maior do que a que existe noutros ordenamentos
jurídicos –; e, por outro, estão também previstos casos especiais (artigo 755º CC).
Denota-se, por fim que, quanto aos modos de extinção, o artigo 761º CC faz uma remissão
para o regime da hipoteca – sendo a entrega da coisa é uma renúncia tácita.

Pressupostos
Para que seja possível a existência de um direito de retenção, são necessários os seguintes
pressupostos positivos (artigo 754º CC): 1) detenção de bem alheio; 2) dever de entregar ou restituir
esse bem alheio; 3) crédito sobre o credor dessa restituição; e 4) conexão entre o crédito do retentor
e do seu credor, no sentido de fazerem parte da mesma relação jurídica obrigacional.
Há, ainda, pressupostos negativos: ou seja, pressupostos que, quando se verificam,
determinam o afastamento do regime do direito de retenção (artigos 756º CC) – delimitando, assim,
negativamente o direito de retenção, estabelecendo uma série de situações em relação às quais este
direito não existe. Assim, não existirá direito de retenção se:
➔ A detenção do bem tenha sido obtida por meios ilícitos – desde que o eventual retentor conhecesse
essa ilicitude no momento da obtenção;
➔ O crédito do eventual retentor resulte de despesas feitas de má-fé;
➔ O bem seja impenhorável;
➔ A outra parte preste caução suficiente – o mais relevante, na prática.
Por exemplo, um empreiteiro, finalizada a obra, tem a obrigação de a entregar ao credor – ou
seja, quem encomendou a obra. Este, por sua vez, é devedor do preço perante o empreiteiro, que é
credor desta obrigação. Existem, então, aqui, dois créditos que estão conectados entre si, pelo que, se
o devedor do preço – e credor da entrega – não pagar, o empreiteiro, credor do preço – e devedor da
entrega – tem direito de retenção sobre a obra até esse pagamento ser feito.
O mesmo se diz em relação ao caso do promitente vendedor e promitente comprador: no contrato
promessa, o promitente vendedor tem o dever de entregar a coisa, mas tem direito a receber o sinal –
pelo que, enquanto não receber o sinal, pode recusar-se a entregar a coisa.

Confronto com a exceção de não cumprimento do contrato


Este regime de direito de retenção tem alguma proximidade com o regime de exceção de não
cumprimento (artigos 428º e ss. CC): em ambos os casos, existe uma faculdade de retenção e não
entrega da coisa. No entanto, enquanto o regime da exceção de não cumprimento se aplica a qualquer
prestação; o direito de retenção só aparece quando existe uma prestação e retenção da coisa. Além
disso, enquanto no regime de exceções, existem apenas efeitos obrigacionais; na retenção da coisa,
existem efeitos reais, com a oponibilidade erga omnes.
Assim, as duas principais diferentes entre estas figuras são:
➔ Na exceptio, nunca há a faculdade e obtenção de pagamento pelo valor da coisa;
➔ A exceptio só é invocável perante a outra contraente, enquanto o direito de retenção é oponível
erga omnes.
Contudo, nada obsta a que estas figuras coexistam: há casos em que o credor tem direito a
utilizar não apenas a exceção de não cumprimento, como também o direito de retenção. Em todo o
caso, o direito de retenção acaba por ser uma figura com uma força de oponibilidade muito superior
à exceção, dado permitir obter a satisfação do crédito pelo valor da coisa, com oponibilidade total.
A exceção do não cumprimento, que permite que não se pague enquanto não se for pago, tem, no
entanto, uma função social que se sobrepõe à do direito de retenção, apesar de não ter qualquer
oponibilidade erga omnes – o que significa, por exemplo, que não se pode recorrer aos meios de
defesa da posse.

Principais situações de relevância


Beneficiário de promessa de venda de imóvel (artigo 755º, nº1, alínea f) CC):
O direito de retenção do promitente-comprador apenas opera quando há entrega da coisa e,
consequentemente, traditio; estando o crédito que joga com o direito de retenção previsto no artigo
442º CC, que regula o regime do sinal. Assim, os pressupostos-base são: 1) existência de um contrato
promessa com traditio; o 2) incumprimento; e o 3) direito ao sinal em dobro.
Ora, o contrato promessa é um contrato quoad effectum com prestações recíprocas: ou seja,
com a celebração deste (entre um promitente-comprador e um promitente-vendedor), não há
transmissão de direitos reais – o que existe são deveres obrigacionais de, em determinada data,
celebrar o contrato prometido. É relativamente frequente que, com o reforço do sinal, o promitente
comprador exija a traditio da coisa – ou seja, a entrega da chave, nos casos de promotores imobiliário:
nos casos em que o edifício já está construído, e se aguarda pela sua legalização e constituição da
propriedade horizontal, existe um reforço do sinal, associado à entrega da coisa, sendo frequente que
os promitentes-compradores recebam a chave e se mudem para a fração autónoma antes mesmo de
ser celebrado o contrato definitivo (sendo o sinal, aí, já uma quantia significativa do preço final).
Significa isto que existe um direito de retenção: o promitente-comprador tem direito de retenção
sobre a coisa objeto do contrato prometido, para garantia do seu crédito – nomeadamente, até
receber o sinal em dobro, nos termos do artigo 442º CC. Esta é, assim, uma norma de proteção dos
consumidores no mercado habitacional nos casos especiais. Acontece que, socialmente, esta situação
só se verifica quando o promitente-vendedor vai à insolvência, o que torna o dever de pagar o sinal
em dobro teórico, sendo o mais provável que o promitente-comprador não receba o que lhe é devido.
O problema do direito de retenção neste jogo da hipoteca é que, no final do dia, pode
surpreender o banco que, não estando a contar que o seu devedor fizesse uma traditio do bem ao
promitente-comprador, nem com a figura do sinal em dobro, que prevalece à hipoteca, empresta uma
quantia muito elevada para a legalização do imóvel já construído. Isto será, assim, prejudicial para os
credores que têm hipoteca – limitações surpresa à propriedade privada.
Em todo o caso, no acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência nº4/2014, o Tribunal
confirma a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca, quando está em causa um
promitente-comprador consumidor – existe, assim, um apelo indiscutível à proteção do
promitente-consumidor do mercado habitacional. No entanto, quando o promitente-comprador
não for um consumidor, já não prevalece o direito de retenção sobre a hipoteca, não merecendo,
pela sua posição, aquela proteção. Contudo, continua a ser duvidosa a aplicação da prevalência,
prevista no artigo 759º nº2 CC, quando o beneficiário da promessa não é este consumidor.
Do ponto de vista económico, esta análise de jurisprudência pode ser questionável: tal gera uma
viabilização do risco em todos os consumidores ou agentes económicos, nomeadamente famílias.
Ora, se o banco não conseguir o cumprimento da hipoteca, este vai cobrar juros mais elevado na
generalidade dos das operações bancárias – nomeadamente, no crédito à habitação – para cobrir o
risco sistémico dessas situações de existência de direitos de retenção. Consequentemente, quem vai
pagar isto tudo será a generalidade dos consumidores, cujo acesso ao crédito bancário à habitação vai
ser mais caro, por força destas limitações surpresa à propriedade privada.
A hipótese alternativa seria ter regras que claramente fizessem prevalecer a hipoteca, o que
faria com que os promitentes compradores não dessem o reforço de sinal para obter a traditio.
Consequentemente, isto faria com que as pessoas não pusessem tanto dinheiro nas mãos de
promitentes-vendedores com pouca consistência, nomeadamente os promotores imobiliários de
menor confiança. No fundo, a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca faz com que os
promotores mais burlões façam a traditio mediante o pagamento de grandes quantias de reforço do
sinal – o que, depois, tem um duplo efeito negativo, por um lado, sobre a segurança jurídica, mediante
as surpresas à propriedade; e, por outro, sobre os mercados dos promotores imobiliários.

Beneficiário de promessa de venda de fração autónoma a constituir:


A jurisprudência é pacífica ao estabelecer que o direito de retenção pode operar não apenas
em relação a uma fração autónoma ou a um prédio; mas, também, em relação a um apartamento
ou parte de um prédio que ainda não está sujeita ao regime da propriedade horizontal – podendo
haver traditio do mesmo.
Isto vai contra a característica da especialidade ou individualização, segundo a qual os direitos reais
só podem incidir sobre realidades existentes juridicamente e não futuras: ou seja, que só pode haver
direitos reais sobre prédios e frações autónomas; mas não sobre apartamentos ou partes de prédios
não individualizadas juridicamente. No entanto, a jurisprudência, mais uma vez, acaba por ir contra
esta regra, permitindo que haja direito de retenção sobre um apartamento, quando o que foi penhorado
ou vendido judicialmente foi o prédio no seu todo – existe, nestes casos, um direito de retenção sobre
uma coisa, uma fração, que ainda não existe juridicamente como tal.
Assim, estes direitos aplicam-se, geralmente, em processos executivos. Quando ainda não é
constituída a fração autónoma, não é possível vender os apartamentos: apenas é possível vender o
prédio como um todo – consequentemente, não é possível (nem em venda executiva) adquirir apenas
a propriedade de uma fração autónoma que não existe.
No entanto, e segundo a característica da indivisibilidade da hipoteca, esta passa a abranger todas as
frações autónomas quando constituída a propriedade horizontal – mas, de facto, nem sequer será
preciso chegar a esse ponto. Caetano Nunes é contra estas regras jurisprudenciais, por considerar que
devem prevalecer as características supracitadas integrantes dos direitos reais.

Empreitada e direito de retenção:


Outra hipótese socialmente relevante é o já referido direito de retenção do empreiteiro,
típico nos contratos de empreitada de construção de edifícios e reconhecido pela jurisprudência:
enquanto não receber o preço, o empreiteiro pode não entregar a obra. Isto funciona, não com base
numa qualquer alínea do artigo 755º C, mas com base na cláusula geral do artigo 754º CC, dado se
verificarem os pressupostos gerais para que opere o direito de retenção.
Há, no entanto, que chamar a atenção para um problema de interpretação da lei. O artigo 754º
CC fala num crédito que resulta de despesas feitas por causa da coisa, ou seja, que aumentem o valor
da mesma. Ora, realmente, o empreiteiro realiza despesas que aumentam o valor da coisa, pelo que
faz todo o sentido gozar do direito de retenção pelas despesas sobre a mesma. Todavia, na prática
judiciária, o que tende a haver é uma reivindicação não pelas despesas, mas relativa ao preço da
empreitada – que corresponde não só às despesas/benfeitorias realizadas na coisa, mas, também, à
margem de lucro pelo serviço prestado. Consequentemente, a tendência jurisprudencial para conceder
o direito de retenção sobre as despesas e a margem de lucro não encontra total assento na letra da lei,
sendo bastante discutível.

Penhora
A penhora é um ato de processo executivo que afeta a coisa à satisfação do crédito ou de
vários créditos, que consiste, essencialmente, na apreensão da coisa pelo tribunal. Essa apreensão
de coisas móveis pode significar que a coisa é retirada ao proprietário – e fica, por exemplo,
depositada num armazém –; mas, mais frequentemente, existe uma apreensão não física, mas judicial:
ou seja, do ponto de vista jurídico, esta está nas mãos do tribunal, ficando o proprietário como
depositário da mesma. Consequentemente, a penhora consiste, mais especificamente, numa oneração
do direito do titular da coisa penhorada, da qual pode vir a resultar a extinção deste, ficando afeto
a responder pelo crédito do exequente.
Em relação a coisas móveis, esta uma apreensão pode ou não ser efetiva. Já em relação a
coisas imóveis, tradicionalmente, havia apreensão (ficando-se com a chave por exemplo), seguida de
registo da mesma – no entanto, atualmente, a penhora de imóveis começa não com uma apreensão,
mas com o registo (primeiro ato), dispensando-se frequentemente esta apreensão material. Assim, em
relação a imóveis, a penhora é essencialmente um registo.
Assim que há penhora, o proprietário pode onerar a coisa (constituir hipoteca), vender, etc.;
mas nada disso afeta a penhora – existe um regime de imunidade (artigo 819º CC). Ou seja, em
rigor, ninguém vai querer adquirir uma coisa já penhorada, já que a penhora vai prevalecer: quando
o tribunal vender a coisa judicialmente, irá retirar a propriedade aos compradores anteriores à venda
judicial e posteriores ao registo da penhora, pelo que se extinguem todos os direitos reais registados
não anterior à penhora (artigo 824º, nº2 CC).
Além disso, o artigo 822º, nº1 CC estabelece uma preferência face aos credores comuns e aos
credores com penhora subsequente, mas não sobre titulares de outros direitos reais de garantia.
Significa isto que, acima da penhora, está o privilégio creditório, o direito de retenção, a hipoteca e o
penhor. Isto tem lógica, visto que a penhora é um ato de agressão patrimonial no processo executivo
praticado por um credor que, até àquele momento, era um credor comum – ora, nesta situação, a única
solução do credor comum é avançar para a penhora, mecanismo de garantia real acessível a todos os
credores comuns, pelo que o primeiro a obtê-la será o primeiro, dentro dos comuns, a ser privilegiado.
Porém, o artigo 140º nº3 CIRE dita que a preferência resultante da penhora cessa assim que se
abre a insolvência, sendo que os credores com penhora voltam a ser credores comuns. Isto é
fundamental do ponto de vista prático: se há penhora, o credor que não tem nada pode abrir um
processo de insolvência, sendo que assim fica ao nível dos outros que tinham a penhora – poupando
dinheiro em processos executivos.
Conclui-se, assim, que os artigos 819º e 822º CC atribuem efeitos reais à penhora; mas o artigo
40º nº3 CIRE condiciona bastante este carácter real. Pelo que, no fim, a penhora acaba por ter tem
um carácter real fraco.

Arresto
Pela sua natureza processual, o arresto é uma providência cautelar: um processo urgente e
provisório, tendente a ser substituído por outro definitivo. Já do ponto de vista substantivo, o arresto
é a afetação provisória da coisa à satisfação do crédito (artigo 391º, nº2 CPC; e artigo 622º, nº2
CC). Em traços gerais, o arresto é uma penhora provisória.
Para que o arresto possa ser aplicado, são necessários os seguintes pressupostos estarem
preenchidos (artigo 619º CC): 1) existência de um crédito; e 2) “justificado receito” de perda de
garantia patrimonial – por exemplo, o facto de o devedor estar a dissipar os seus bens, ou estar prestes
a fazê-lo, ao criar uma sociedade num paraíso fiscal e transferir para lá coisas; assim como a mera
desproporção entre ativos e passivos, que também pode gerar este receio.
A grande distinção entre ao arresto e a penhora será o facto de um ser provisório; enquanto a
outra é definitiva. Mais frequentemente, avança-se com a providência cautelar, sem ainda ter a ação
declarativa – sendo que, depois de decretado o arresto, parte-se para a ação declarativa (título de
crédito) e, só depois, se avança para a ação executiva da penhora.
Analogamente à penhora, o arresto consiste, pois, numa oneração do direito do titular do
bem sobre que recai, numa sua afetação a responder pelo crédito em causa: ou seja, tem, também,
como consequência um efeito individualizador sobre os bens do devedor, que respondem pelo crédito
em causa.
Por fim, o arresto tem, também, uma oponibilidade erga omnes semelhante à da penhora,
mas com duas limitações: 1) o facto de ser uma figura provisória; 2) e o facto de o arresto,
transformando-se em penhora, cai também nas situações de insolvência – pelo que o seu carácter real
acaba por ser duplamente fraco.

Direito de Propriedade com Função de Garantia


Considerações gerais
O direito de propriedade com função de garantia implica que o credor tem um direito real
de gozo, gozando da propriedade não pelo uso e fruição, mas só com a finalidade de garantir o
crédito. Em rigor, isto será melhor do que ter a hipoteca ou um penhor, visto que, enquanto nestes
casos ainda se tem de processar a execução, se o credor já tiver propriedade com função de garantia
não precisa de uma ação de execução – a propriedade já é sua.
Existe, aqui, uma lógica da propriedade fiduciária cum creditore. A propriedade fiduciária
com função de garantia não tem regime legal, sendo apenas uma figura doutrinária. No entanto, esta
entende-se ser proibida, por maioria de razão pelo artigo 694º CC, relativo ao pacto comissório: se,
no pacto comissório, o credor só se torna proprietário quando há incumprimento e tal situação é,
mesmo assim, proibida; a propriedade fiduciária com função de garantia, em que o credor se torna
logo proprietário, não será certamente admitida pela lei.
De qualquer das formas, o direito de propriedade para a função de garantia pode-se agrupar
em dois tipos: retenção do direito pelo seu titular – ou seja, retenção até que certo evento, mormente
o cumprimento de uma obrigação pela contraparte, suceda –; e transmissão do direito para outrem
– ou seja, transmissão até que certo evento, mormente o cumprimento de uma obrigação pelo
transmitente, suceda (devendo o transmissário devolver o direito após tal evento), sendo que a
propriedade fiduciária se encaixa no segundo tipo.

A reserva de propriedade (artigo 409º CC)


A reserva de propriedade é, antes de mais, uma cláusula contratual num contrato: ou seja, só
existe em resultado de cláusula inserida num contrato de alienação (sendo o caso mais típico o de
compra e venda). O seu conteúdo aparente é o de que o direito de propriedade sobre a coisa
alineada, contrário do que sucederia na sua ausência, só se transmite em certo momento ulterior
– nomeadamente, quando o preço estiver pago.
Em rigor, o CC é expresso na admissão da reserva da propriedade, permitindo que se
condicione a mesma a qualquer evento (artigo 409º CC) – o que implica a existência de oponibilidade
erga omnes. No entanto, no caso de coisa imóvel ou de coisa móvel sujeita a registo, essa eficácia
depende do registo da própria cláusula de reserva de propriedade. Já no caso de coisa móvel não
sujeita a registo, a eficácia absoluta da reserva de propriedade não depende de nenhuma formalidade.
Frequentemente, a reserva de propriedade tem a função de garantia do crédito: o credor, para
garantir que é pago a propriedade, deixa a mesma permanecer na sua esfera jurídica, só a transferindo
quando o devedor pagar tudo. Há, no entanto, algumas querelas doutrinárias sobre a natureza da
reserva da propriedade.
Numa visão tradicional (Antunes Varela), a reserva de propriedade é justificada pelo regime de
condição suspensiva (artigo 271º CC): ou seja, esta é uma condição suspensiva imprópria da
alineação, visto que um dos efeitos do contrato – a transmissão da propriedade – fica suspenso.
Assim, o alienante mantém-se proprietário até à verificação do pagamento integral do preço.
Já outra tese considera que esta é uma condição resolutiva: ou seja, a propriedade transferiu-se para
o comprador, mas se este não pagar totalmente o preço, os efeitos do contrato acabam, e a propriedade
volta para a esfera jurídica do vendedor.
Por fim, a terceira posição doutrinária (Rui Pinto Duarte) defende a ideia de partilha de propriedade
entre o alienante e o adquirente, sendo que quer o comprador, quer o vendedor têm alguma tutela real.
Por um lado, o comprador, com o seu pagamento, vai ter tutela erga omnes na aquisição – sendo que,
enquanto não pagar tudo, normalmente terá o gozo da coisa. Por outro lado, o vendedor tem uma
propriedade com função de garantia.

O direito de propriedade do locador financeiro e outras situações similares


Uma das coisas que se discute na doutrina e jurisprudência é se a posição jurídica da reserva
do propriedade do alienante pode ser transmitida a outrem/terceiro, como um banco. Ora, nesta
situação, existem dois contratos distintos para a mesma situação, falando-se em unidade económica
de contratos.
Por exemplo, V vende a C um bem com reserva de propriedade; mas transmite a sua posição a F –
normalmente, isto acontece quando há um contrato de mútuo em prestações, em que F empresta o
dinheiro a C, para ele poder pagar essas prestações. Ora, aqui, o evento que condiciona a transferência
da propriedade é o pagamento das prestações do mútuo – pelo que existe uma coligação de contratos.
Estipula-se, ainda, que a reserva de propriedade é transferida a F, tendo a propriedade função de
garantia: ou seja, se ocorrer o pagamento, C fica proprietário; caso contrário, fica F proprietário.

Ora, nestes casos, não fará sentido que o vendedor reserve a propriedade, dado que o evento
que opera a transmissão da propriedade é o pagamento das prestações do empréstimo do comprador
ao financiador. Assim, quem fica com a reserva da propriedade é o financiador, e não o
comprador. Dito de outra forma, na locação financeira, existe um direito potestativo de aquisição da
propriedade no direito real de aquisição; nos outros, a aquisição da propriedade por quem tem o DR
de aquisição é automático.
Um problema disto é que, segundo o artigo 409 CC, o vendedor “reserva para si”, e não para terceiros
– logo, é discutível que possa haver este mecanismo de reserva de propriedade para terceiros, dado
fugir à letra da lei, estabelecendo que a partilha de propriedade possa não apenas funcionar entre
credor e devedor, mas que possa também ser feita por terceiro. Consequentemente, isto viola o
princípio da tipicidade dos direitos reais, não se criando uma modalidade nova de direito real; mas
sim, um mecanismo real novo: alienação com reserva de propriedade que atribui ao financiador uma
posição jurídica real que não tem acolhimento na lei. No entanto, este mecanismo é muito frequente
na prática sociológica.
Imagine-se o exemplo de um contrato de locação financeira de um automóvel entre o
comprador C e o financiador F: F entrega o carro, e C tem de pagar rendas mensais pelo uso desse
carro. Ora, aqui, a entrega não é definitiva – é, sim, uma disponibilização do uso durante um certo
período. No entanto, findo esse período, é atribuída a C a possibilidade de aquisição da propriedade
do carro, mediante o pagamento de um valor residual – caso de leasing.
Ora, do ponto de vista económico, o financiador irá verificar, junto do vendedor ou fornecedor, quanto
é que custa o carro; comprá-lo e, depois, irá receber rendas e, ainda, um valor residual mais juros do
comprador, de forma a conseguir obter lucros. Existe, assim, um esquema triangular: um vendedor,
um comprador e uma empresa financeira. No entanto, o negócio do financiador não é comprar carros,
mas, sim, fazer essencialmente esta operação financeira mediante uma análise de risco – assim, do
ponto de vista jurídico, não existem dois contratos: o consumidor apenas faz um contrato do qual
resulta uma locação financeira. O que existe serão quatro elementos caracterizadores: 1)
disponibilização da coisa contra um 2) pagamento de uma renda mensal e 3) aquisição de um
automóvel contra o 4) pagamento do valor residual.
Ora, nesta locação financeira, F é o proprietário, enquanto C tem um direito potestativo de aquisição
dessa propriedade, contra o pagamento de um valor residual. Assim, do ponto de vista do estatuto
jurídico-real, a propriedade está em F, com função de garantia; mas C, comprador, tem um direito
real de aquisição – se pagar todas as prestações devidas –, ou seja, um direito potestativo de ficar com
a propriedade. Existe, também, uma partilha dos efeitos jurídicos-reais: por um lado, propriedade com
função de garantia; e, por outro, direito real de aquisição.

OS DIREITOS REAIS DE AQUISIÇÃO


Aspetos Gerais
Os direitos reais de aquisição implicam uma possibilidade de aquisição da coisa com
preferência sobre terceiros, sem cooperação alheia – sendo que, aqui, não existe o lado interno (uso
e fruição), mas, sim o lado externo de oponibilidade erga omnes: o credor tem o direito de satisfazer,
com preferência, o seu crédito em relação aos demais credores, adquirindo a coisa nesse contexto.
Por vezes, existem direitos de aquisição que incidem não sobre coisas corpóreas, mas sobre
coisas incorpóreas – por exemplo, os sócios têm direito de preferência sobre as ações, relativamente
aos demais, com caráter absoluto. No entanto, em Direitos Reais, só interessam os direitos de
aquisição sobre coisas corpóreas: ou seja, são direitos reais de aquisição de direitos reais que, por
sua vez, são de gozo ou de garantia.
É discutível se os direitos de aquisição sobrevivem, ou não, à venda judicial, dado que não
existe nenhuma referência a estes no artigo 824º, nº2 CC. Assim, será necessário fazer uma
interpretação extensiva ou analógica do mesmo. Rui Pinto Duarte, por exemplo, considera que este
artigo terá de ser conjugado com o que se retira, a contrario, da segunda parte do artigo 422º CC: ou
seja, se o direito de preferência gozar de eficácia real, este procede relativamente à alienação efetuada
em execução – ou seja, os direitos em causa sobrevivem à venda judicial.
Os direitos reais de aquisição a ser estudados serão, então, o direito de preferência com
eficácia real; o contrato-promessa com eficácia real (artigo 413º CC); e a reserva de propriedade,
inserida na locação financeira (que já foi desenvolvida).
Preferência com Eficácia Real
A preferência com eficácia real é o poder de, verificados certos pressupostos (nomeadamente,
a decisão de contratar pela pessoa obrigada à preferência), celebrar certo negócio, com preterição
de quaisquer interessados que ofereçam condições iguais. Este pode ter por fonte um contrato ou a
lei, sendo que:
➔ Quando têm por fonte a lei, o respetivo titular, em caso de violação do seu direito, tem a
possibilidade de o fazer valer contra terceiros: ou seja, este tem sempre eficácia real, através da
oponibilidade erga omnes, não precisando de ser registado para tal.
o O caso paradigmático da preferência real legal é a que deriva da compropriedade (artigos
1403º e ss. CC): segundo o artigo 1409º, o comproprietário goza de prioridade no caso de
venda da quota – ou seja, se A quiser vender a um terceiro a sua quota de uma propriedade
que tem em regime de compropriedade com B e C, estes terão direito de preferência perante
este, com o objetivo de manter a coisa na titularidade das mesmas pessoas.

➔ Quando têm por fonte um contrato, os direitos de preferência podem gozar de eficácia real, caso
se verificarem os requisitos do artigo 421º CC, sendo um deles o registo (forma de publicidade);
caso contrário, estes têm efeitos meramente obrigacionais.
Assim, quando existe eficácia real, é possível opor o direito de preferência ao terceiro,
substituindo o mesmo como comprador. No entanto, se não houver eficácia real, se o terceiro avançar,
o vendedor violou a preferência feita, mas o titular não se poderá opor à compra pelo terceiro – quanto
muito, poderá exigir do vendedor uma indemnização.
Consequentemente, a eficácia real processa-se nos termos do artigo 1410º CC, de acordo com o
mecanismo de ação de preferência. No entanto, na prática, como é necessário depositar logo o preço,
tendo depois de ficar muito tempo à espera da decisão final – visto que, só com ela é que a preferência
se consagra (nº1, última parte) –, esta ação acaba por não funcionar. Inclusive, acaba por existir um
grande desincentivo económico ao exercício do direito: o titular fica sem o dinheiro durante o tempo
todo em que a ação está em tribunal; e, depois, se perder o litígio, terá ainda de pedir ao tribunal que
o devolva. Já quando a eficácia é meramente obrigacional, processa-se nos termos do artigo 798º CC,
relativa à responsabilidade obrigacional por incumprimento.

Promessa de Alienação com Eficácia Real


A promessa de alienação com eficácia real tem de ser clausulada; além de que, se for um
imóvel ou um móvel sujeito a registo, tal terá de ser registado – nestes moldes, existirá execução
específica em caso de incumprimento (artigo 1410º CC). No entanto, não existindo esta eficácia real,
o titular não poderá ir para a execução específica se, entretanto, a coisa for vendida a terceiro – pode,
no máximo, ser indemnizado por incumprimento do contrato-promessa.
Assim, estes regimes caracterizam-se por, em caso de incumprimento da obrigação de preferência, o
titular do direito ter o poder de se substituir ao adquirente da coisa no contrato por ele celebrado.
Significa isto que as alineações em incumprimento dos direitos de aquisição, nascidos de contratos-
promessa com eficácia real, são ineficazes em relação aos titulares de tais direitos.
No entanto, como é que esta oponibilidade erga omnes funciona no contrato-promessa? Ora,
num contrato-promessa de compra e venda, não existe, ainda, a propriedade, no sentido de não existir
ainda imediação do domínio sobre a coisa. Neste, apenas há um promitente-comprador e um
promitente-vendedor, sendo a prestação devida a de celebrar o contrato prometido. Este contrato tem,
assim, uma estrutura puramente relacional, obrigacional – não existe qualquer direito real, apenas
direitos de crédito.
Consequentemente, se for estabelecida uma eficácia real da promessa, essa eficácia não significa
que se transmita um direito real de gozo ou um qualquer poder de imediação sobre a coisa. A
coisa continua na propriedade do promitente-vendedor, não havendo qualquer parcela do direito de
propriedade, ou qualquer efeito jurídico- real, que se transmita para o promitente-comprador.
Contudo, como em todos os direitos reais de aquisição, apesar de não se ter o lado interno, existe o
lado externo, de oponibilidade erga omnes relativo à promessa feita. Por outras palavras a eficácia
real no contrato-promessa significa uma oponibilidade erga omnes do direito de crédito.
Isto significa que, se o promitente-vendedor, em violação do contrato-promessa, vender a
propriedade a terceiro, o promitente-comprador poderá opor a terceiro a sua promessa – indo a
Tribunal exigir que a propriedade seja transferida para ele, mediante ação de execução específica.
Esta ação de execução específica é, então, a ação com eficácia constitutiva, em que o Tribunal se
substitui às partes na compra e venda, sendo que a sentença substitui o contrato definitivo.
Além de decretar a execução específica e de desencadear todos esses efeitos, a sentença irá, também,
declarar que a propriedade do promitente-comprador prevalece sobre o terceiro, determinando o
apagamento do direito real do mesmo no registo. Se, no entanto, não houver promessa com
carácter real nesta situação, o juiz vai julgar improcedente a ação de execução específica.

Reserva de propriedade e locação financeira


Quanto à reserva de propriedade, o comprador tem uma expectativa de vir a adquirir a
propriedade, sendo que este direito é tutelado como se de um direito real de aquisição se tratasse. Já
na locação financeira, a opção de compra corresponde a um direito potestativo de aquisição da
propriedade, com eficácia erga omnes – ou seja, é um direito real de aquisição.

POSSE
Noção Geral de Posse
A posse tem vários significados. Do ponto de vista não jurídico, fala-se de posse enquanto
detenção e contacto físico com um objeto; ou enquanto contraposição à propriedade, em que alguém
não é titular, mas mero possuidor da coisa. Já do ponto de vista jurídico, a posse será a detenção de
uma coisa corpórea qualificada (artigo 1251º CC) – qualificada, no sentido de corresponder a uma
situação similar à do proprietário: ou seja, detém-se a coisa como proprietário e atua-se de acordo
com aquilo que, na prática social, é uma atuação do proprietário.
A posse é, por um lado, uma situação de facto; e, por outro lado, um regime jurídico – ou
seja, a posse tanto pode ser algo que se tem, como algo que atribui certos direitos, respetivamente
(distinção entre “ser” e “dever-ser”). Por exemplo, A andar com o seu telemóvel nas mãos é uma
situação fáctica de posse; já a possibilidade, dada pela existência dessa posse; que ele tem de fazer
uma providência cautelar, em Tribunal, para reivindicar esse mesmo telemóvel, se lhe for retirado, já
existe um direito à defesa da posse, inserido num regime jurídico de posse. Dito de outra forma, posse
é um facto que espoleta a previsão normativa; mas é, também, o conjunto de estatuições normativas
do regime jurídico da posse: este, para ser aplicado, implica uma situação fáctica de posse.
No CC, a posse é muito valorizada, visto que, tradicionalmente e no contexto rural, a
publicidade da propriedade é feita pela posse. No entanto, atualmente e num contexto urbano, já não
é possível haver o conhecimento da propriedade apenas pela posse, pelo que esta deixou de ser um
mecanismo viável dos direitos reais. Sendo a publicidade essencial, devido ao facto de os direitos
reais terem oponibilidade erga omnes, criou-se, então, o registo. De qualquer das formas, a posse
continua a ter certa função de publicidade, que faz parte da genética dos direitos reais.

Posse causal versus posse formal


A posse causal é a posse acompanhada do direito correspondente, ou a posse acompanhada
do direito a cujo exercício corresponde; enquanto a posse formal é a posse que não é acompanhada
do direito a cujo exercício corresponde. Por exemplo, um proprietário tem posse casual da sua coisa;
enquanto um ladrão já terá posse meramente formal.
Ora, sendo o possuidor causal titular do direito a que a sua posse corresponde, este poderá
invocar tal direito e obter proteção, independentemente de ter ou não, de facto, a posse da coisa. Já o
possuidor meramente formal nada terá para invocar para além da posse. Assim, a defesa da posse
tende a ceder perante a defesa do direito: se se prova que X é possuidor, mas que Z é proprietário da
coisa possuída, o Tribunal vai dar razão ao proprietário.
➔ Denotar que o efeito de usucapião, que advém da posse, para além da defesa, transforma a posse
formal na posse causal.
No entanto, do ponto de vista sociológico, a posse correspondente à propriedade será a mais
relevante: atuar como proprietário e ser visto como tal. Denota-se, no entanto, que também pode haver
posse enquanto titular de direitos reais menores, sendo que aí o mais comum será a posse causal. A
posse formal, por sua vez, corresponde quase sempre à propriedade – é puramente académica a
situação em que o “ladrão” se comporte não como proprietário, mas como usufrutuário.

Origem histórica
Tradicionalmente, existiam dois institutos jurídicos – usos e possetio –, que deram origem aos
dois principais regimes associados à posse – o usucapião e a defesa da posse. Ora, quem atua no
mundo factício com uma atuação similar ao proprietário, com o passar do tempo, por usucapião,
adquire a propriedade – no sentido em que os usos conduziam à propriedade, sendo uma regra
associada a uma ideia de segurança. Já a possetio tem uma origem jurisprudencial, sendo um instituto
processual dos interdicta que, atualmente, correspondem às defesas possessórias.
Assim, enquanto o efeito do usucapião está associado às situações de posse em sentido estrito,
a defesa possessória está associada a situações de posse não só em sentido estrito, mas, também, por
analogia, a situações similares com as de posse associadas aos direitos pessoais de gozo – por
exemplo, à locação e ao comodato.

Razões e alcance da tutela da posse


As possíveis razões da proteção jurídica à posse são: 1) a defesa da paz pública; 2) o valor da
comunidade, 3) a proteção da confiança; e 4) a aparência da titularidade de um direito – apesar de o
valor desta última ter caído, por força da expansão dos registos; e da maior frequência da formalização
por escrito dos negócios sobre coisas não sujeitas a registos (ex: obrigatoriedade de emissão de
faturas).

Conceções doutrinárias da posse (e dos seus elementos)


De acordo com a conceção subjetivista de Savigny, a posse envolve dois elementos: 1) o
corpus, que é uma relação material mantida com a coisa; e 2) o animus, que é uma intenção ou estado
subjetivo, algo do foro psíquico. Já de acordo com a conceção objetivista de Jhering, a posse
consiste apenas no corpus, não sendo necessário o animus – ou seja, não é necessária a intenção,
bastando apenas existir a relação material com a coisa.
Ora, estas conceções doutrinárias têm impacto prático, visto que a maneira como se olha e se
descreve esta situação fáctica da posse influencia a aplicação (ou não aplicação) do regime jurídico
da posse.
Consequentemente, em relação ao animus, existem três variações doutrinárias: o 1) animus domini,
que será a intenção de atuar de forma similar ao proprietário; o 2) animus possidendi, que será a
intenção de atuar como possuidor; e o 3) animus sibi habendi, que será a intenção de detenção da
coisa.
Já quanto ao corpus, pode-se entender o mesmo de uma maneira estrita, enquanto atos materiais sobre
a coisa – ou seja, o possuidor teria de ter um contacto material constante com a coisa –; ou de uma
maneira mais permissiva, enquanto possibilidade de atuar sobre a coisa, de acordo com as regras
sociais – ou seja, o possuidor teria apenas de ter algum contacto, mas não constante, tendo em conta
apenas as regras sociais (ex: estar sempre num terreno vs. não ir lá à algum tempo, mas ter a chave e
a possibilidade de, a qualquer momento, ir lá).
Ora, discute-se quais destas conceções estão consagradas na lei portuguesa. Para responder a
isto, importa analisar quais os requisitos da previsão normativa da posse.
previsões legais que acolhem uma visão subjetivista ou objetivista. Isto significa ver quais os
requisitos da previsão normativa da posse para saber quando se aplica este regime da posse.

A posse no Direito Português


A conceção acolhida no CC
Quanto ao corpus, denota-se que, em Portugal, vigora a conceção ampla (artigo 1257º, nº1
CC): a posse mantém-se não apenas enquanto durar a atuação correspondente ao exercício do direito,
como também enquanto existir possibilidade de continuar essa atuação – ou seja, a posse pode não
ser revelada por atos materiais. Segundo Oliveira Ascensão, o corpus é uma relação não material,
mas social, em cujos termos os bens se consideram em conexão com a esfera de certa pessoa.
Sendo os outros direitos reais parcelamentos da propriedade, que implicam a coexistência da mesma
(ainda que diminuída), a delimitação do corpus correspondente a cada um dos outros direitos reais é,
em concreto, tarefa difícil, que supõe a delimitação, expressa ou implícita, da propriedade. Por isso,
é mais fácil sustentar a ocorrência da posse correspondente à propriedade. Concretamente:
➔ No tocante ao usufruto e ao direito de superfície, haverá que encontrar, no comportamento do
alegado possuidor, algo que justifique não se tratar de propriedade
➔ Já o direito de condomínio só existirá se houver um comportamento de relação com outros
condóminos (mormente quanto às partes comuns) que vai além do exercício de poderes sobre um
espaço qualificável como fração autónoma.
Quanto ao animus, a Escola de Coimbra adota o subjetivismo de Savigny, enquanto a Escola
de Lisboa adota o objetivismo de Jhering. O CC é, também ele, “bipolar”, com várias normas que
apontam tanto para um lado, como para o outro.
A norma mais importante nesta querela será a do artigo 1253º, alínea a), que faz a contraposição entre
a posse em sentido estrito e a mera detenção (ou posse precária). Segundo esta distinção binária entre
detenção e posse, se o sujeito não tiver intenção de agir, este não poderá ser possuidor, pelo que não
se aplica o regime da posse. Acolhe-se, assim, a conceção de Savigny: se existir simples detenção,
não existe animus e, consequentemente, não existe posse – sendo que, aqui, existe o conceito de
animus domini, a forma mais intensa de animus. Esta será, então, a posição que a Escola de Coimbra,
assim como a quase totalidade da jurisprudência, entendem que o CC acolhe.
Em contraponto, alguns professores da Escola de Lisboa (Carvalho Fernandes e Menezes Cordeiro)
sustentam que as disposições do CC são compatíveis com um entendimento objetivista da posse –
nomeadamente, o artigo 1266º CC, que parece mostrar uma certa irrelevância do animus: isto, porque
se os que não têm razão podem ter posse, então o elemento subjetivo não é relevante. Além disso, o
artigo 1289º, nº2 CC também não parece requerer animus/intenção.
Contudo, os tribunais formam a sua convicção por presunção das regras de experiência, pelo que se
baseiam em factos objetivos: assim, se existir prova no sentido de que há uma atuação material, o
tribunal concluirá que a pessoa tinha intenção de agir como proprietária. Logo, em rigor, o que
acontece é que se tem de alegar que há animus, mas esta é provada através da existência de corpus:
não é possível suprimir a referência da alínea a) do artigo 1253º, mas a verdade é que terá de haver
alguma exteriorização, e não apenas a intenção. Para além disso, segundo o artigo 1252º, nº2 CC, o
corpus faz presumir o animus – na dúvida, aplica-se o regime da posse naquele que tiver o corpus.

Posse versus detenção


A posse, em sentido estrito, será apenas a posse em nome próprio; já à posse em nome alheio,
vista como mera detenção, e à posse precária não se aplica o regime da posse. Isto, visto que, desde
logo, o artigo 1253º CC faz a distinção clara entre detenção e posse – sendo que essa distinção implica
uma diferença entre situações onde é aplicável o regime, e situações onde não o é.
Assim, de acordo com o artigo 1253º CC, existe mera detenção e não posse, quando a pessoa: a) age
sem intenção; b) age com a tolerância do titular de direito – por exemplo, havendo um proprietário
que tolera que o vizinho use o terreno para prevenir o risco de fogos –; ou c) age como representante
ou mandatário – por exemplo, se alguém toma conta da propriedade do vizinho enquanto este não
está lá.
Além disso, denota-se que a posse durante algum tempo faculta ao possuidor, salvo disposição
em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação – ou seja, é a posse
que faculta o usucapião (artigo 1287º CC). Consequentemente, os detentores ou possuidores
precários não podem adquirir por usucapião (artigo 1290º CC). O regime das benfeitorias,
também aplicável ao possuidor (artigos 1270º, 1271º, 1273º e 1275º CC), não será aplicável ao
detentor. Também o efeito de presunção da titularidade do direito é aplicável ao possuidor (artigo
1268º CC).
Quanto ao regime de defesa da posse, surge, aqui, uma zona cinzenta na distinção entre
detentor e possuidor. À detenção não se aplica regime jurídico nenhum; no entanto, à detenção
qualificada de direitos pessoais de gozo, aplica-se, em extensão, algumas normas do regime
jurídico de defesa posse que é conferido ao possuidor (artigos 1276º e ss. CC).

Modos de aquisição da posse


A aquisição da posse, regulada no artigo 1263º CC, pode ser originária – o apossamento
(alínea a) e a inversão do título da posse (alínea d) – e derivada – a traditio (alínea b) e o constituto
possessório (alínea c). Para além disso, o artigo 1255º CC adiciona outro modo de aquisição derivada,
nomeadamente a sucessão mortis causa.
O apossamento é o ato ou conjunto de atos materiais sobre a coisa, feito de forma espontânea,
que revela o início do exercício da posse sobre uma coisa que anteriormente não se detinha – por
exemplo, agarrar alguma coisa é apossar.
A inversão do título (artigo 1265º CC) ocorre quando há uma passagem de mera detenção
para situação de posse em sentido próprio, através de atos do próprio ou de ato de terceiro – por
exemplo, uma pessoa beneficiava da mera tolerância ou era mero representante ou procurador, mas
passa a ser possuidor.
Na prática, estes atos de próprio que invertem o título são atos de oposição ao confronto com o
proprietário. Por exemplo, um dos vários comproprietários, que estava com mera tolerância, guardou
as chaves e impediu os restantes de entrar no imóvel: ora, este deixa de ter uma posse correspondente
à mera compropriedade, e passa a ter uma posse que incide na propriedade exclusiva – passa ser o
possuidor correspondente à propriedade. Outro exemplo será o caso em que um arrendatário deixe de
pagar rendas, mas passa a pagar o IMI e impede o proprietário de usar o imóvel – ora, passado 20
anos disto, este poderá adquirir o mesmo por usucapião, ultrapassando a situação mera detenção ou
até de detenção qualificada de direitos pessoais de gozo até aí existente.
Já sendo por ato de terceiro, dá-se o exemplo da situação do arrendatário que adquire a propriedade
sobre o prédio arrendado não ao seu locador, mas de um terceiro que se arrogue a qualidade de
proprietário.
A traditio é a transferência do domínio fáctico, ou seja, a entrega da coisa material ou
simbólica (artigo 1263º, alínea b) CC) – por exemplo, através da entrega de documentos referentes a
mercadoria, ou de uma chave referente a um imóvel.
O constituto possessório (artigo 1264º CC) é a transmissão da posse sem a transferência da
detenção da coisa – por exemplo, A faz uma escritura de compra e venda, mas o vendedor diz que só
entrega a chave passados dois dias. Ou seja, existe, com a escritura, a transmissão de posse, apesar
de não ter havido traditio.
➔ Isto é um caso claro em que não há atuação material da coisa, mas apenas possibilidade de acordo
com as regras de experiência social – sendo que o vendedor passa de possuidor para detentor.
A sucessão mortis causa (artigos 1255º e 2050º CC) é a transmissão da posse desde o
momento da morte do de cujus, bastando a possibilidade de atuação material sobre a coisa segundo
as normas sociais para tal.
Modos de perda da posse
Os modos de perda da posse (artigo 1267º CC) serão o abandono; o perecimento da coisa e a
retirada da coisa do comércio jurídico-privado; a transmissão (traditio); e o apossamento por terceiro
– sendo que, neste último caso, a extinção não opera automaticamente. Ou seja, durante o ano, ainda
se aplica a este o regime jurídico de terceiro; no entanto, se o apossamento por terceiro perdurar por
mais de um ano, perde-se a posse.

Conteúdo da posse
Os direitos do possuidor são, por regra, direitos no confronto com o proprietário: ou
seja, se a posse é causal e o possuidor é, simultaneamente, proprietário, nada disto interessa. Agora,
se a posse é formal, delimitam-se os direitos do possuidor em contraposição com os do proprietário.
Assim, o primeiro direito será o direito de uso, que está implícito no poder de atuar sobre a
coisa (artigo 1251º CC) – a posse é um direito real de gozo, tem uso. Para além disso, também se tem
o direito de fruição, no sentido de o possuidor ter direito aos frutos, naturais e civis, produzidos pela
coisa possuída (artigos 1270º e ss. CC).
➔ No entanto, se este agir de má-fé, terá não este direito, mas sim o dever de restituir o proprietário
(artigo 1271º CC). Pelo contrário, se houver posse com boa-fé, os frutos são do possuidor.

Além disso, se houver benfeitorias que sejam necessárias, o possuidor tem o direito a ser
indemnizado pelo proprietário, mesmo que esteja de má-fé (artigo 1273º, nº1 CC). As benfeitorias
úteis darão direito a que sejam levantadas, desde que não haja detrimento da coisa – se isto não for
possível, existirá uma compensação, de acordo com as regras do enriquecimento sem causa (artigo
1273º, nº2 CC). Já quanto às benfeitoras voluptuárias, o possuidor de boa-fé poderá levantá-las, a não
ser que haja detrimento da coisa; já se estiver de má-fé, não as poderá levantar, perdendo-as de
qualquer forma (artigo 1275º CC).

Já quanto aos deveres, denota-se que os encargos são pagos pelo titular ou pelo possuidor,
na medida dos direitos deles sob os frutos (artigo 1272 º CC). Além disso, existem deveres relativos
a riscos, de perda ou deterioração da coisa: enquanto o possuidor de boa-fé só responde por estes
se houver negligência (artigo 1249º CC), o possuidor de má-fé responde sempre, independentemente
da culpa (mesmo artigo a contrario).

➔ Este regime de responsabilidade ou de risco é aprofundado através de uma norma de compensação


do artigo 1274º CC, relacionado com o regime das benfeitorias.

Modalidades da posse
A posse pode ser titulada ou não titulada (artigo 1259º CC). Será titulada quando na sua
origem está uma forma legítima de aquisição de direitos, independentemente da legitimidade do
transmitente e da validade substancial do negócio jurídico – por exemplo, se há título e negócio
formal, ainda que a escritura pública seja nula, pode haver propriedade titulada. Consequentemente,
na posse titulada, por vezes, os prazos de usucapião são mais curtos.
Isto porque, se se adquire um título juridicamente válido (na sua forma), merece-se alguma proteção
jurídica associada ao regime da posse. No entanto, se não for titulada, a posse não merece tanta
proteção.
A posse poderá ser de boa ou má-fé. Esta é de boa-fé quando, ao momento da aquisição, o
possuidor ignore que lesa o direito de outrem (artigo 1260º CC) – ou seja, fala-se de boa-fé no sentido
subjetivo, no sentido de revelar não apenas o conhecimento, mas o dever de conhecimento: conhecia
ou não devia deixar de conhecer. Consequentemente, estará de má-fé aquele que ignora, mas fá-lo de
forma pouco diligente; assim como aquele que a adquire por violência.
➔ A posse titulada presume-se de boa-fé; e a não titulada presume-se de má-fé (nº2).
A posse poderá ser pacífica – quando não adquirida por violência – ou violenta – quando
adquirida por violência. A definição de violência tem remissão para o regime da coação física ou
moral (artigo 1261º, nº2 CC), podendo esta incidir sobre pessoas ou coisas – por exemplo, a destruição
de fechaduras é considerada violência sobre a coisa. No entanto, em rigor, a violência sobre coisas
implica coação sobre seres humanos.
A posse pode ser pública – a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados
– ou oculta – a que se exerce de modo que não seja conhecida. Fala-se, aqui, do critério da
cognoscibilidade pelos interessados (artigo 1258º CC).
A posse pode ser efetiva – quando acompanhada pela detenção, pelo corpus – ou não efetiva
– quando não é acompanhada pela detenção. Por exemplo, após o apossamento por terceiros, passa-
se a ter dois possuidores: ora, o possuidor primitivo passou a ter uma posse não efetiva (artigo 1267º,
alínea d) CC).
Por fim, a posse pode ser registada – por exemplo, o apossamento (artigo 2º CRPredial) – ou
não registada, se assim não for previsto. Denota-se, no entanto, que uma coisa é o registo da
propriedade, e outra é o regime da posse. O registo tem, entre outras consequências, a de encurtar os
prazos da usucapião (artigos 1294º e ss. CC).

Defesa da posse
O efeito principal da pessoa será o efeito de defesa da posse, que pode ter lugar judicialmente
ou extrajudicialmente. Os tipos de defesa judicial da posse são:
➔ Ação de prevenção: Ação que visa evitar uma perturbação ou um esbulho da posse que ainda
não ocorreu, mas que se apresenta como provável – um risco (artigo 1276º CC).
➔ Ação de manutenção: Ação para quando já há uma perturbação da posse, mas esta ainda não
implicou perda da posse efetiva (artigo 1278º, nº1 CC).
o Se existir um apossamento de terceiro e sobreposição de posse, o artigo 1278º, nº3 CC diz
que os critérios a utilizar são: 1) título, ou seja, a posse ser titulada; 2) antiguidade; e, por
último, 3) a posse atual.
➔ Ação de restituição: Ação para quando já há esbulho (perda total de contacto com a coisa), mas
ainda não passou um ano e ainda não se extinguiu a posse – ou seja, visa obter a recuperação da
posse efetiva.
Esta distinção conceitual cria, no entanto, dificuldades práticas, devendo ter sido apenas
previstas as ações de prevenção e manutenção. De qualquer das formas, explica-se que manter a posse
implica afastar uma perturbação, enquanto restituir a posse implica que a detenção da coisa regresse
ao possuidor.
Além disso, existe um mecanismo de defesa da posse que se distingue dos restantes por ser
uma providência cautelar (artigo 1279º) – o procedimento de restituição provisória da posse, segundo
o qual é possível existir uma tutela provisória da posse, em caso de esbulho violento. Esta é mais
forte, dado não ser necessário provar o periculum in mora – ou seja, provar o receio de mora: basta
haver posse, esbulho e violência; além de que é decidido sem contraditório prévio.
➔ Não existindo o esbulho ou violência, será possível recorrer a outra providência cautelar, mas terá
de se provar o periculum in mora.
Além disso, existe, também, a figura de embargos de terceiro (artigo 1285º CC), que tutela
atos judiciais que perturbam a posse: ou seja, quem perturba (não sendo bem esbulha, dado que isso
pressupõe um ato ilícito) é um autoridade judicial – por exemplo, a posse é ofendida por atos
ordenados judicialmente, nomeadamente por penhora ou arresto. No entanto, a lei dispensa proteção
à posse, mesmo contra esse tipo de ofensas.
Por fim, poderá, também, haver tutela extrajudicial, através de ação direta (artigo 1277º
CC), podendo ser feita tanto pelo possuidor material, como pelo possuidor formal. A remissão, aqui,
feita para o artigo 336º CC tem a ver com o princípio da proporcionalidade, que terá de ser verificado.

O efeito de presunção de titularidade do direito


Segundo este efeito, o possuidor goza da presunção de titularidade do direito (artigo 1268º
CC), o que, na prática, significa que, regra geral, através da posse, se pode provar ou presumir a
propriedade ou quaisquer outros direitos reais menores.
Ou seja, numa ação de reivindicação da propriedade, em que se pede a entrega/restituição da
coisa de que se é proprietário, será necessário provar os factos que permitem aferir uma aquisição
originária do direito de propriedade, através de um presunção. Ora, aqui, esta aferição poderá ser feita
através da prova da propriedade por posse: ou seja, pelo facto de conseguir provar que tem a
detenção e, consequentemente, que é possuidor, presume-se que este tem, também, a propriedade
dessa coisa.
Assim, quer a presunção de registo, quer a presunção da posse permitem fugir à necessidade
de fazer prova da aquisição originária. No entanto, o que acontece se uma parte reivindicar a
propriedade para si, pelo registo, quando a outra já tinha reivindicado a propriedade para si, mas pela
presunção da titularidade do direito enquanto possuidor? No confronto entre uma presunção derivada
da posse e uma presunção derivada do registo, prevalece a mais antiga – pelo que, neste caso, a
presunção que prevalece é a do possuidor.
➔ No entanto, Caetano Nunes considera que esta regra está atrasada, e que deveria prevalecer
sempre a publicidade do registo – mas o legislador colocou ambos em pé de igualdade.

A usucapião
Regime e procedimento:
Os regimes da usucapião (ou prescrição aquisitiva) é fundado em razões de segurança: é o
efeito de aquisição de direito a que corresponde a posse – podendo este direito ser de propriedade
ou outro direito real menor: por exemplo, se A atua como possuidor, com uma posse correspondente
a um usufruto, irá adquirir esse usufruto (sendo isto, contudo, um exemplo académico).
➔ A aquisição fundada na usucapião dos direitos de propriedade e outros direitos reais menores não
depende do registo do facto aquisitivo – nomeadamente, da posse (artigo 5º, nº2 CRPredial).
A previsão normativa da usucapião abarca a posse e o decurso do tempo; enquanto a
estatuição normativa será a aquisição da propriedade ou de outro direito correspondente à posse.
No entanto, existem mais estatuições normativas que esta, implícitas na letra da lei: por exemplo, a
extinção da propriedade do proprietário primitivo. Isto porque, normalmente, a usucapião é
convocada por um possuidor meramente formal, em contraposição do proprietário – e, por isso, em
regra, há a extinção da propriedade do proprietário normativo, enquanto consequência para além da
aquisição da propriedade. Esta extinção abrange, também, outros direitos reais menores associados
(como a hipoteca), ainda que registados – sendo o arrendamento um caso à parte.
➔ No entanto, pode haver, ainda, um efeito acessório de extinção da propriedade, que, no sentido
material, pode constituir uma expropriação. Nos casos de expropriação, o proprietário primitivo
vê-se privado da sua propriedade privada, pelo que será compensado nos termos do artigo 1287º
CC conjugado com o artigo 62º, nº2 CRP. Consequentemente, esta indemnização, devida pelo
possuidor ao proprietário primitivo, deveria também parte da estatuição normativa. No entanto, a
verdade é que a lei não prevê nenhuma compensação para aqueles que se vejam privados de
direitos, por força da usucapião.
A usucapião é, no entanto, um direito potestativo, não operando automaticamente: ou seja,
findo o prazo descrito, não há aquisição automática da propriedade – esta apenas se verifica se houver
um exercício voluntário deste direito potestativo (artigos 1287º e 1288º CC).
Este pode ser exercido judicialmente, mediante uma ação de reivindicação ou uma mera ação para
provar a usucapião; mas também pode operar extrajudicialmente, com recurso ao procedimento de
justificação registral – ou seja, a pessoa invoca, no notário, o usucapião com duas testemunhas,
adquirindo o direito se, depois de colocado nos éditos, ninguém contestar a mesma (artigos 116º e ss.
CRPredial). Através da justificação, a aquisição por usucapião fica a constar no registo predial
(conservatória) e, como efeito colateral, faz caducar todos os outros direitos reais incompatíveis.
Exercido o direito potestativo, a aquisição originária tem eficácia retroativa, retroagindo à
data do início da posse (artigo 1288º), mesmo que o possuidor seja de má-fé.

Princípio da especialidade ou individualização:


A usucapião apenas pode incidir sobre coisas individualizadas, de acordo com o seu
estatuto jurídico-real: ou seja, não pode haver usucapião de uma parte de um prédio, apenas podendo
incidir sobre a totalidade do mesmo; ou, quanto muito, sobre uma fração autónoma.
Atualmente, com o maior peso do interesse de ordenamento de território, os tribunais tendem
a não admitir a usucapião em violação da proibição de fracionamento do território. Isto, porque este
tema do confronto do regime de usucapião com as regras administrativas não se resume às regras de
proibição de fracionamento, mas também as regras sobre urbanização e loteamento.
Assim, tal como no mundo rural é costume invocar usucapião para fracionar prédios rústicos, para ir
contra as regras da unidade mínima de cultura; também em perímetro urbano, a usucapião pode ser
invocada como forma de ir contra as regras de loteamento. De qualquer das formas, tais ações não
serão procedentes, dado que a jurisprudência dá prevalência do direito público.
➔ E se todos forem, cada um, proprietários do seu apartamento, mas sem que exista uma constituição
jurídica de frações autónomas? O juiz apenas irá reconhecer a propriedade por usucapião e,
consequentemente, a constituição da fração autónoma, se existir uma licença de utilização.
Prazos da posse e do tempo:
Aqui, a norma mais importante quanto aos imóveis será o artigo 1296º CC: se a posse for de
má-fé, será necessário que esta perdure durante 20 anos – visto que, passado esse longo período,
cessam todos as irregularidades, incluindo a má-fé. Já se for de boa-fé, será necessário que esta
perdure durante 15 anos.
No entanto, se houver registo do título (artigo 1294º CC – prazos para a usucapião quando
há posse titulada) ou da posse (artigo 1295º CC), estes prazos podem ser encurtados –
nomeadamente, 5 ou 10 anos.
Não sendo a posse violenta ou oculta adequada à usucapião, os prazos só começam a contar
quando a posse se tornar público e/ou quando a violência cessar (artigo 1297º CC). Denotar que as
servidões prediais não aparentes e os direitos de uso e de habitação também não podem ser adquiridos
por usucapião, de todo.
Contudo, se o proprietário interpuser uma ação de reivindicação da propriedade, os prazos são
interrompidos: ou seja, qualquer citação judicial em que o proprietário manifeste a vontade de se opor
à posse, interrompe o prazo de usucapião.

Natureza da posse
Segundo Orlando de Carvalho, a posse é um mero facto e não um direito. Já segundo Oliveira
Ascensão, esta é um direito, mas não um direito real. Por fim, Manual de Andrade defende que este
é um direito real.
Ora, Caetano Nunes defende a posse é simultaneamente um facto e um direito real, no sentido
de ter tanto o lado interno (uso e fruição), como o lado externo: oponibilidade erga omnes, não no
confronto com o proprietário, mas em confronto com terceiros. Assim, a posse é um facto e, ao
mesmo tempo, um direito: uma previsão normativa, mas também um regime jurídico.
➔ Não interessa muito classificar este como direito real de gozo ou outro, visto que pode haver posse
de vários direitos reais.

Extensão da posse a outros direitos reais e não reais


Existem normas de extensão do regime jurídico da posse aos direitos reais menores, e não só
à propriedade: nomeadamente, ao direito usufruto, da superfície, das servidões, e do penhor.

Posse de direitos pessoais de gozo:


O locatário que for perturbado da coisa pode usar os meios de defesa da posse (artigo 1037º
CC). Ou seja, apesar de ser mero detentor, nos termos do artigo 1253º, alínea b), ele goza de meios
de defesa de posse. O mesmo acontece para o comodatário (artigo 1133º, nº2 CC) e depositário (artigo
1188º, nº2 CC), que podem usar, mesmo contra a contraparte, dos meios facultados pela lei ao
possuidor para defender a posse.
Isto explica-se pelo facto de aqui se estar perante uma situação de detenção qualificada. A
distinção entre a posse e a mera detenção tem zonas cinzentas – nomeadamente, os direitos pessoais
de gozo (artigo 407º CC). Isto, porque os titulares de direitos pessoais de gozo são meros detentores,
mas são detentores que beneficiam de certos aspetos do regime da posse, nomeadamente da defesa
da posse – pelo que serão, então, detentores qualificados.
➔ Contudo, Menezes Cordeiro acha que estes caem mais para o lado da posse, pelo que lhe chama
posse interdital. Já Caetano Nunes não concorda com esta posição, achando que isto não se trata
de posse, mas de mera detenção.
Existe uma grande querela doutrinária sobre estes direitos pessoais de gozo, havendo, até,
quem defende o seu carácter real (Oliveira Ascensão). Na realidade, estes são direitos reais porque
têm o lado interno e, também, algum lado externo – por exemplo, o arrendatário tem contacto direto
com a coisa, assim como tem acesso à defesa possessória (tendo, por isso, oponibilidade erga omnes
– artigo 1037º, nº2 CC).
No entanto, a tese dominante da Escola de Coimbra e de Ana Prata é que é estes são direitos de
crédito. Por exemplo, na locação, o direito será sobre um senhorio, que é quem disponibiliza a coisa
– logo, não é direito sobre uma coisa.
A terceira posição doutrinária, defendida por Rui Pinto Duarte e Menezes Cordeiro, é que os direitos
pessoais de gozo estão numa zona cinzenta, entre direitos de crédito e direitos reais. Ou seja,
estruturalmente, os direitos pessoais de gozo são vistos como direitos de crédito, mas depois têm
traços comuns com os direitos reais.

Estabelecimento comercial:
Discute-se, também, se as regras sobre a posse, como o usucapião, se podem aplicar a coisas
compostas – em particular, ao tal estabelecimento comercial. É em torno da interpretação do artigo
206º CC, que define coisa composta, e as normas de defesa da posse, que esta discussão se desenrola
– remetendo-se, aqui, para o tema do penhor de estabelecimento comercial.
Durante muito tempo, discutiu-se se podia haver penhor sobre o estabelecimento comercial.
Ora, tendo o CPC passado a ser admitir a penhora sobre o estabelecimento comercial, também será
possível admitir o penhor – pelo que também será possível defender a posse sobre um estabelecimento
comercial. Para além disso, o estabelecimento comercial, enquanto tal, pode ser objeto do direito de
propriedade – ainda que essa propriedade não seja a propriedade sobre coisas corpóreas nos artigos
1302º e ss. CC. A jurisprudência acolhe tal resposta afirmativa – sem prejuízo de o STJ ter declarado
que só é possível a usucapião relativamente aos elementos corpóreos do estabelecimento comercial.

Títulos de crédito e valores mobiliários:


Por último, há ainda a discussão doutrinária e jurisprudencial sobre a aplicação da posse sobre
títulos de crédito e valores mobiliários – ou seja, da posse sobre ações representativas de um capital
de uma sociedade anónima.
Estipula-se a ideia de que pode haver posse sobre títulos de crédito, por força da ideia de
que está em jogo um documento, que é uma coisa corpórea – ou seja, para efeitos de defesa da
posse, faz sentido aplicar esta a um documento que incorpora direitos. Também fará sentido que se
possa aplicar o usucapião: se uma pessoa tem as ações na sua posse à x anos, mesmo que não seja ela
o verdadeiro acionista, por segurança jurídica, poderei adquirir a sua propriedade. Assim, a doutrina
e a jurisprudência maioritária também apontam para que quer usucapião, quer a defesa da posse
possam ser aplicados aos títulos de crédito.
No entanto, a tendência será que estes títulos de crédito deixem de ser representados em papel,
e passem a ser em suporte eletrónico. Neste caso, torna-se mais difícil aplicar o regime da posse,
dado já não haver posse sobre um documento, algo corpóreo. Além disso, o suporte eletrónico
significa que o titular terá um terceiro, uma entidade central que faz um registo eletrónico –
caso paradigmático dos bancos: as ações e os demais títulos de crédito em suporte eletrónico estão
registados nas contas de custodia dos bancos, entidades privadas. Qual será, então, o regime jurídico
a aplicar? Será que continua a ser a posse, ou será necessário, primeiro, haver uma publicidade através
de um registo público? Não há resposta correta: é o problema das convulsões de evolução do direito.
De qualquer das formas, existe, no regime da posse, a extensão da aplicação do regime aos
títulos de crédito e valores mobiliários, no contexto de law in action – pelo menos, para documentos.

Relevância Atual da Posse e Perspetivas da Evolução


Cada vez mais, a relevância não será olhar para a posse nem para a detenção. A posse é um
mecanismo para a propriedade, sendo a usucapião um caminho para adquirir essa propriedade. Assim,
a parte de defesa é um mecanismo de manutenção do status quo, sendo acessório à propriedade.
O campo de aplicação prática das ações baseadas na posse tem vindo a estreitar-se à medida
que se tem vindo a tornar mais fácil a prova da titularidade dos bens: seja dos imóveis, em razão da
expansão do registo predial; seja dos móveis, por força da cada vez mais frequente documentação das
compras e vendas. Assim, cada vez mais é mais fácil provar a propriedade do que a posse.

A CRP E OS DIREITOS REAIS


O conceito constitucional de propriedade privada é bastante mais amplo do que o direito
infraconstitucional de direitos reais, tendo sido debatido ao longo dos séculos: aliás, as primeiras
cartas constitucionais e declarações universais fizeram sempre referência à propriedade privada
enquanto direito fundamental. No entanto, no século passado, passou a haver uma referência, no texto
das constituições, a uma função social da propriedade privada: ou seja, o proprietário não faz tudo o
que quer, dado que a propriedade implica, também, a existência de deveres, e não apenas de direitos.
Ora, no seu confronto com o constitucionalismo, os direitos reais convocam as três áreas
constitucionais: direitos e garantias; organização económica; e competência legislativa – com
destaque para esta última.
➔ Direitos fundamentais: A propriedade e os direitos reais podem ou não ter um enquadramento
enquanto direitos fundamentais – sendo que, em Portugal, o direito de propriedade privada é
análogo a um direito, liberdade e garantia.

➔ Organização económica: A constituição de direitos reais tem por pressuposto uma organização
económica baseada na propriedade privada, no funcionamento do mercado. Numa organização
económica não privada e coletivizada, regras civilísticas sobre a propriedade farão todo o sentido.
o Na CRP existe, por um lado, os três setores de propriedade (artigo 80º, alínea b) CRP):
propriedade privada, propriedade pública e propriedade cooperativa. Ora, a atividade
económica privada implica propriedade privada: se a base é o capitalismo e a economia
privada, que coexiste com a economia pública e cooperativa, mas é mais forte que estas, terá
de haver propriedade privada – isto, sem o que regime civilístico se deixe de enquadrar,
também, no setor privado dos meios de produção. Ora, a propriedade e os direitos reais que
foram analisados são instrumentos jurídicos desse setor privado dos meios de produção.
o A nível de organização económica, outro dado importante será a consagração da liberdade
de iniciativa económica privada na alínea c) do mesmo artigo, que será o mesmo que
consagrar a propriedade privada em sentido amplo: esta pode ser vista numa lógica de puro
consumo, ou do ponto de vista do setor económico.

➔ Organização política: A relação entre os direitos reais e o constitucionalismo não é tão forte,
mas, ainda assim, importa saber quais são os órgãos com competência para regular os direitos
reais. Segundo o artigo 165º CRP, no elenco de reserva relativa de competência da AR encontra-
se a expropriação e atos análogos – portanto, expropriação, em sentido material.
Consequentemente, tudo o que seja regulação da propriedade privada é da competência
concorrente da AR e do Governo.

Artigo 62º CRP


O artigo mais importante é o artigo 62º CRP, que consagra o direito de propriedade privada:
“A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos
termos da Constituição”. Aqui, propriedade será sinónimo de património ou de direitos patrimoniais
– abrangendo todos os direitos patrimoniais: não sós os direitos reais, mas também todos os outros
direitos de propriedade absolutos (como os direitos de autor) e relativos (como os direitos de crédito).
Abrange, também, a propriedade cooperativa, como as ações e as quotas. Logo, a noção constitucional
de propriedade privada é muito mais ampla que a noção civilista.
Este artigo está no título III, relativo a direitos económicos, e não no título relativo a DLG.
No entanto, este acaba por ter uma natureza análoga aos DLGs, de acordo com a doutrina e
jurisprudência constitucional. Contudo, esta não inserção explícita implica uma desvalorização face
à propriedade privada, no sentido de ter uma proteção menos intensa que os DLGs. Assim, o que será
protegido será, apenas, a dimensão essencial desses direitos patrimoniais privados – conteúdo esse
que poderá ser percebido através do nº2, que estabelece uma norma mais concreta.
Ora, por vezes, diz-se que os direitos fundamentais surgiram como imunidades no confronto com o
poder político – pelo que o núcleo do artigo 62º convoca a ideia de imunidade, nomeadamente na
imunidade contra a expropriação. Segundo o artigo 62º, nº2, esta expropriação terá de ser feita
segundo o valor de mercado, dado em grande medida pela potencialidade produtiva – por exemplo,
um prédio rústico, se for expropriado com o objetivo de edificar com vários andares, vai valer mais.
Nestes casos, até que ponto há direitos adquiridos na justa indemnização? Não há diretrizes concretas
muito fortes sobre isto no artigo 62º, deixando-se ao legislador infraconstitucional grande liberdade
para delimitar os direitos reais e todos os outros direitos patrimoniais privados. Consequentemente, é
difícil ir para o TC em matéria de direitos reais ou de direitos de crédito.
Subjacente a este artigo 62º, nº2 está o princípio da igualdade dos cidadãos perante os encargos
públicos – ou seja, se a pessoa for expropriada, vai perder a sua propriedade em função do interesse
público. É, então, esta ideia de sacrifício de uns pelo interesse público, aliada ao princípio de
igualdade, que leva à ideia de justa indemnização, para que haja uma paridade entre os cidadãos face
aos encargos públicos. Esta ideia pode surgir quer numa situação pura de expropriação, quer numa
situação de restrição da edificabilidade – sendo que, nesta segunda, a tendência jurisprudencial será
de não fazer leituras extensivas excessivas.

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