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INTRODUÇÃO
Noção Preliminar dos Direitos Reais
Os direitos reais são, como os direitos de crédito, um subconceito dentro dos direitos
subjetivos – sendo este último um conceito de cúpula, mais abrangente. Mais especificamente, o
direito real é um direito subjetivo caracterizado por 4 qualidades, que o diferenciam em relação aos
demais direitos subjetivos: este é de natureza privada, absoluta, patrimonial, e com incidência
sobre coisas corpóreas.
Direito subjetivo
Relativamente a ser um direito subjetivo, segundo a visão predominante em Lisboa (Menezes
Cordeiro), esta modalidade traduz uma permissão normativa específica de aproveitamento de um
bem. Esta é uma definição analítica que convoca a noção de permissão, que por sua vez é da lógica
deôntica – pelo que não é só uma especificidade de Lisboa, mas encarreira, também, numa perspetiva
filosófica da lógica do dever-ser (permissão positiva ou negativa/obrigação ou permissão).
Concluindo, esta acaba por ser uma definição inspirada na filosofia analítica.
No entanto, esta definição não é dominante na escala global. Em Coimbra (Manuel de
Andrade), por exemplo, o direito subjetivo é um poder da vontade tutelado pela ordem jurídica. Esta
definição acompanha a lógica da cultura germânica de Savigny, que aprofundou todos os conceitos
genéricos no Direito (estruturando o pensamento); e Jhering, apóstolo de Savigny e criador da teoria
da jurisprudência dos conceitos. Estes, por sua vez, pertenciam à Escola Histórica Alemã, dado que
voltam às fontes diretas do Direito, testando se estas – nomeadamente, as romanas – são, realmente,
as melhores fontes.
➔ Afirmação da vontade do indivíduo, e do liberalismo económico e político: não é o Estado, mas
sim o indivíduo, do ponto de vista jurídico, que é legitimado.
Juntando-se estas duas definições, dá-se origem à definição global. No entanto, Caetano
Nunes defende a primeira definição – o direito subjetivo como uma permissão normativa específica
de aproveitamento de um bem.
Direito privado
O direito real é, também, um direito subjetivo privado – e não público. Importa, aqui, relembra
os critérios de distinção entre os dois: nomeadamente, as três teorias 1) quanto ao sujeito, 2) quanto
à posição do sujeito na relação jurídica, e 3) quanto ao interesse. Aqui, releva o facto de o Estado
poder intervir numa situação de igualdade formal com os particulares, no sentido de atuar sem
autoridade. No entanto, tal igualdade formal não significa que determinadas normas não protejam, na
mesma, a parte mais fraca, porque não existe igualdade material (ex: regras de arrendamento). De
qualquer das formas, apesar de existirem desequilíbrios do ponto de vista material, do ponto de vista
formal está-se sempre numa posição de igualdade em direito privado, porque o Estado não prossegue,
naquela relação, nenhum interesse público, como acontece no direito público.
Dito isto, o direito administrativo tem características diferentes, que limitam os direitos reais
privados – assim, os direitos reais, a propósito desta primeira caraterística, são frequentemente
limitados pelo direito público. O exemplo mais significativo disto será o direito de construção, que
é um poder que, para uma parte da doutrina, faz parte do direito de propriedade: ou seja, um
proprietário de um imóvel pode tem o direito de construir – mas, para isso, precisa de uma licença,
que já é regulada pelo direito do urbanismo, ramo de direito público.
Assim, o Direito, enquanto ordem jurídica, é bastante estruturada; mas, na vida real, muitas vezes, é
necessário mexer nas várias “gavetas”, não bastando apenas ir ver ao CC para determinar o escopo
real do direito real que um indivíduo tem.
➔ Segundo Caetano Nunes, deveria haver uma relação mais estreita entre o direito urbanismo e os
direitos reais, para melhor se perceber o conteúdo dos mesmos – nomeadamente, o da
propriedade. Isto porque, como já foi visto, em sede de direitos reais, pode-se chegar à conclusão
de que uma pessoa tem aqueles direitos; mas, depois, ela não pode fazer X coisas, nos termos do
direito do urbanismo/direito público.
Carácter absoluto
Os direitos absolutos caraterizam-se por terem uma oponibilidade erga omnes: valem perante
todos, no sentido da generalidade das pessoas (ainda que com vários limites). Já os direitos relativos
têm uma oponibilidade erga singulo: valem apenas contra certa pessoa ou um conjunto restrito de
pessoas. Denotar que esta é, também, uma contraposição analítica.
Consequentemente, a noção de parte é-nos dada pelo direito relativo: tudo o que não são partes, são
terceiros – e, em sentido analítico, tal significa o resto da humanidade. Assim, os direitos reais, sendo
absolutos, têm um confronto contra esta humanidade (supostamente), no sentido de serem oponíveis
contra toda a gente (ex: A tem um direito de propriedade sobre uma casa em Viseu – este é oponível
mesmo a alguém que vive na Inglaterra – artigo 1311, nº1 CC, “qualquer possuidor ou detentor”).
Qual a relação, então, deste tipo de oponibilidade com a eficácia externa das obrigações? Por
exemplo, A faz um contrato-promessa com C de compra e venda – no entanto, C acaba por vender
antes a B, oferecendo-se para pagar uma indemnização a A. Terá A algum direito, por B se ter
intrometido no seu direito de crédito? Não, porque tal direito é um direito relativo e não absoluto
(salvo exceções que contrariam esta distinção estrutural de raiz germânica). Assim, em direito das
obrigações, os direitos de crédito valem de forma relativa, visto que só desta forma as pessoas têm
mais liberdade (tanto para fazer o bem, como o mal).
Organização do CC:
O CC adota a chamada sistematização germânica, inspirado no BGB e não no código
napoleónico. Assim, este é dividido entre parte geral, composta por 1 livro, e parte especial, composta
por 4 livros. Dentro destes, 2 deles obedecem à distinção de direitos relativos e absolutos. A
arrumação feita é, assim, a de Manuel de Andrade: teoria geral + distinção entre direitos absolutos
e relativos. Ao nível da vida prática, tal distinção é muito importante, visto que ajuda a interpretar a
lei e, consequentemente, a aplicá-la em concreto.
A propósito disto, denota-se que os direitos reais de propriedade/de usufruto são regulados no
livro 3.º do CC, ou seja, no livro sobre o direito das coisas corpóreas ou direitos reais. No entanto, no
livro do direito das obrigações, encontram-se as garantias reais – estas estão no livro das obrigações,
mas são, na mesma, modalidades de direitos reais. Assim, estas são um tipo de direitos reais; mas
acabam, também, por relevar na relação obrigacional, enquanto figura de garantia aos direitos
obrigacionais de crédito (são, uma modalidade de garantia, e não de direito em si). Por exemplo, os
contratos-promessa com eficácia real são um direito real de aquisição, interessando à disciplina tanto
das obrigações como dos direitos reais (estando no livro II, do direito das obrigações).
Carácter patrimonial
O conceito de propriedade é falado tanto no direito privado, como no direito público –
nomeadamente, com a propriedade pública. A noção utilizada no direito privado foi sempre mais
desenvolvida; nos últimos tempos, contudo, tem-se aprofundado o conceito de propriedade sobre
coisas públicas, sendo este um conceito mimético em relação a este, no privado. De qualquer das
formas, nesta disciplina, estudam-se direitos reais com caráter patrimonial privados, e não públicos.
Além disso, o carácter patrimonial pressupõe a suscetibilidade de avaliação pecuniária: ou
seja, implica que exista uma expressão em dinheiro, monetária, pecuniária sobre aquele direito. Esta
caraterística pressupõe, consequentemente, a existência de troca/de mercado: os direitos têm
avaliação pecuniária porque há um mercado para os mesmos.
➔ Esta caraterística permite, assim, distinguir os direitos reais dos direitos de personalidade, que
também são direitos com caráter absoluto.
NOTA: Estas conceções analíticas nem sempre batem certo com os respetivos regimes jurídicos.
Por exemplo, no regime do penhor, não existe esta última característica, visto que existe penhor tanto
sobre coisas corpóreas, como sobre coisas incorpóreas (ex: ações e direitos de crédito). Isto, porque
os regimes jurídicos não são só feitos com base analíticas, mas com o próprio evoluir dos tempos,
havendo algumas inconsistências.
Conceções Doutrinárias Sobre o Direito Real
Relativamente à natureza jurídica do Direito Real, existem 3 grandes conceções –
nomeadamente, a 1) Conceção realista ou clássica; a 2) Conceção personalista; e a 3) Conceção
eclética ou mista.
Para a conceção realista ou clássica, o direito real é um poder sobre uma coisa ou, numa
formulação diferente, é uma relação entre pessoa e coisa. A este propósito, fala-se do direito real
como um direito de domínio ou de soberania.
A formulação de que existe uma relação com uma coisa costuma ser criticada – isto, porque não há
relações com objetos, mas sim com outras pessoas. No entanto, a ideia de que há um poder fático de
uma pessoa sobre uma coisa – poder de tutela jurídica – é muito válida, e é inerente à vertente clássica.
Associada a isto, está a distinção entre os direitos reais e os direitos de crédito: enquanto nos direitos
de créditos, os interesses do titular estão satisfeitos através da cooperação com outra pessoa (o
devedor); no direito real, o titular satisfaz o seu interesse através da sua própria atuação direta sobre
a coisa – ou seja, este tem um poder direto sobre a coisa. Concluindo, fora a crítica da relação com o
objeto, esta ideia é muito válida.
No entanto, outra crítica que não poderá ser afastada será o facto desta conceção não falar sobre a
oponibilidade erga omnes do direito real, uma característica que é bastante importante.
Já a conceção personalista destaca, então, esta ideia da oponibilidade erga omnes. Segundo
esta, a natureza do direito real está na oponibilidade erga omnes, ou seja, no facto de este poder ser
oposto a qualquer outra pessoa.
Aqui, há quem utilize a expressão “relação passiva universal”, no sentido de que o titular do direito
real está do lado ativo de uma relação com o resto da humanidade, que por sua vez está no lado
passivo. Esta ideia – nesta formulação – é criticada por ser artificial: na prática, o que acontece é que
o titular tem um direito exclusivo oponível perante todos – só depois, quando alguém o chatear, é que
já está numa relação jurídica com o mesmo, podendo-lhe opor o seu direito.
Descontando a formulação, a ideia de que há uma oponibilidade erga omnes é indiscutível: este é
o critério mais importante para contrapor o direito das obrigações aos direitos reais. De qualquer das
formas, esta teoria acaba por pecar por nada dizer sobre o efeito direito sobre a coisa.
Por fim, a conceção eclética, que é a mais dominante, defende a junção de ambas as teorias,
nomeadamente nos seus pontos mais fortes. Assim, para esta, os direitos reais são caracterizados por
dois elementos: 1) elemento interno, relativo ao poder direto sobre a coisa; e 2) elemento externo,
relativo à oponibilidade erga omnes. Estes lados do Direito Real têm implicâncias nas estatuições
normativas nos regimes jurídicos, relativamente aos seus efeitos jurídicos.
Na doutrina portuguesa, H. Mesquita adota uma conceção eclética, valorizando muito o lado clássico/
interno. Já Rui Pinto Duarte, que também adota uma conceção eclética, valoriza mais a faceta externa,
que carateriza tanto o CC, como a lógica germânica. No entanto, os direitos reais acabam por ter todos
ambos os lados presentes, embora com intensidades diferentes. Por exemplo, o direito de propriedade
tem ambos os lados bem presentes; mas existem outros direitos reais que já têm menor oponibilidade
ou poder direto sobre a coisa – como os direitos reais de garantia ou os direitos de aquisição, que têm
muito pouco poder direto sobre a coisa, mas bastante oponibilidade erga omnes.
➔ Assim, para os juristas que só olham para o lado interno, os direitos reais que existem são apenas
os de gozo – excluindo desta categoria os de garantia, considerados, pelo contrário, para os
personalísticos justamente como direitos reais.
Categorias de Direitos Reais
Três categorias principais
Existem três categorias principais de direitos reais: os 1) direitos de gozo; os 2) direitos de
garantia; e os 3) direitos de aquisição.
Nos direitos reais de gozo, a coisa é afeta ao uso e à fruição – ou seja, às utilidades retiradas
pelas pessoas titulares dos direitos. Assim, se os direitos reais visam a satisfação de interesses
humanos, nestes direitos reais, a satisfação do titular é feita pelo uso e apropriação de frutos pelo
proprietário – sendo este que tem um direito real de gozo. Há, aqui, uma distinção entre frutos civis
(ex: rendas do arrendamento retiradas pelo senhorio) e naturais (ex: maçã).
Alguns exemplos são o direito de propriedade, direito de usufruto, direito de superfície, direito de
uso, servidões prediais, etc.
Nos direitos reais de garantia, a coisa já é afeta ao cumprimento de uma obrigação através
do seu valor ou dos seus rendimentos, com preferência sobre os demais credores. Aqui, o lado interno
é fraco; enquanto o lado externo de oponibilidade erga omnes é mais forte.
Assim, por exemplo, A tem um bem com hipoteca pelo que, se não for pago o empréstimo, o banco
executa a hipoteca. O bem hipotecado vai ter uma execução judicial, onde vai ser vendido, sendo que
será o valor da coisa que vai ser utilizado para satisfazer o crédito do banco – existe uma satisfação
da obrigação, através do valor da coisa. Por outro lado, esta satisfação pode ser feita não através da
venda (“valor”), mas através do valor de rendas do bem (“rendimentos”), que deixam de ficar para o
senhorio, indo agora para o credor com direito real de garantia.
Consequentemente, o banco fica com preferência em relação aos demais credores: ou seja, o bem é
afeto preferencialmente à satisfação daquele crédito; se, depois disso, sobrar valor, é que se pode
dividir pelos restantes credores. Isto é um aspeto muito importante, porque convoca a oponibilidade
erga omnes (lado externo): quando há hipoteca, o banco tem oponibilidade perante os demais
credores, no sentido de ter preferência sobre qualquer outra pessoa.
Alguns exemplos mais importantes são a hipoteca (imóveis) e o penhor (móveis), ou o arresto.
Por fim, nos direitos reais de aquisição, está em causa uma possibilidade de aquisição da
coisa corpórea com preferência sobre terceiros, caso seja convencionada a eficácia real dessa
preferência – nomeadamente, através de um contrato-promessa com eficácia real ou de direito de
preferência com eficácia real (que é diferente dos contratos reais quanto à constituição, como é o caso
de alguns penhores).
Por exemplo, os comproprietários têm um direito de preferência com eficácia real. Assim, se A e B
têm cada um 50% de um único bem, mas B vende a C a sua parte, A tinha direito de preferência com
eficácia real sobre essa parte – o que significa que A pode chegar ao pé de C e opor o seu direito de
preferência ao mesmo, podendo, até, decidir unilateralmente comprar a parte que era do B ao C.
➔ No caso do pacto de preferência de estrutura obrigacional, por exemplo, B compromete-se perante
A a dar preferência à venda de uma coisa. Ora, aqui, o direito de preferência já não é oponível a
C, porque este tem estrutura meramente obrigacional – caráter relativo.
o Na vida real, não há ações de preferência.
NOTA: Os contratos geram efeitos reais – nomeadamente, A tem um direito de propriedade quando
faz um contrato-promessa de compra e venda. Este é a causa mais importante do surgimento do direito
de propriedade, que cria efeitos reais – transmissão da propriedade – e de crédito (artigo 789º CC).
No entanto, nesta disciplina, foca-se mais nas estatuições normativas, e não tanto as fontes, como os
contratos com eficácia real.
Figuras importantes
Obrigações reais ou propter rem:
Nas obrigações reais ou propter rem, existe um direito de crédito – estrutura jurídica relativa
–, mas em que surge um direito real. Assim, do ponto de vista analítico, tal direito é uma obrigação,
mas enquadra-se no regime jurídico do direito real.
Um exemplo é o artigo 1424º, nº1 CC: uma fração autónoma é um direito de crédito, em que o
devedor é o proprietário e o credor é o condómino (ponto de vista analítico); mas tal artigo está numa
secção do CC relativo à propriedade horizontal. Assim, como é que se decide quem terá, efetivamente,
de pagar? Neste caso, será necessário perceber quem é o proprietário naquele momento – ou seja, é
uma obrigação que integra o regime de um direito real, porque para saber quem é o devedor, ter-se-á
de perceber quem é o titular do direito de propriedade.
Esta obrigação só surge, assim, pelo facto de ter o direito real e não estar dependente de
nenhum contrato, por exemplo. Do ponto de vista estrutural, é uma obrigação; mas do ponto de vista
institucional, é real – logo, é uma obrigação real.
➔ Por exemplo, A faz uma obra, em que coloca na sua casa uma marquise horrível que desvaloriza
o prédio – sendo tal proibido, este é levado a tribunal para ser forçado a destruir a obra. Ora, aqui,
a estatuição normativa é de proibição de fazer tal marquise – mas existe, ainda, outra estatuição
normativa implícita: nomeadamente, a de destruir a nova obra. Assim, sendo possível fazer uma
execução de facto, se se incumprir o dever de reparar, este “dever” leva-nos para a lógica das
obrigações – é uma obrigação de facere.
Há, no entanto, uma querela de saber se as obrigações de dare e pecuniárias podem, também, ser
reais. Por exemplo, o dever de entrega de dinheiro é uma obrigação pecuniária – pelo que, do ponto
de vista de distinção estrutural entre Direitos Reais e Direito das Obrigações, esta é uma obrigação.
No entanto, esta obrigação surge no contexto de um direito real – pelo que, do ponto de vista
institucional, ainda que seja uma obrigação, é uma parcela do regime jurídico desse direito – assim,
é uma obrigação em sentido estrito, que integra o regime jurídico do direito real: obrigação real
(posição analítica, que Caetano Nunes adota). Mais uma vez, para que uma obrigação seja uma
obrigação real, basta que surja no regime dos direitos reais – esta é a posição de Rui Pinto Duarte,
que se contrapõe à de H. Mesquita.
Concluindo, dado que a lei não dá uma definição para este conceito, existem flutuações doutrinárias
sobre o mesmo. Há a conceção ampla, segundo a qual todas as obrigações reais fazem parte do
regime dos Direitos Reais; mas também existe a conceção estrita, segundo a qual são obrigações
reais apenas aquelas com caráter positivo, e não negativo (Manuel Henriques). Mas, do ponto de vista
analítico, esta última conceção não faz muito sentido, visto que distingue as obrigações das proibições
(ou obrigações de não fazer), algo que, segundo Caetano Nunes, não tem implicâncias práticas.
Discute-se, ainda, se estas obrigações reais se transferem com a transmissão do direito real:
ou seja, pergunta-se se estas são ambulatórias (transmissíveis) – por exemplo, nos termos do artigo
1424º CC, se A comprou uma fração autónoma, passará este a ter de pagar as contas ao condomínio.
No entanto, esta lógica aplica-se, também, às dívidas que ocorreram no passado? Ou seja, fica A
obrigado a pagar as dívidas do antigo devedor? Se sim, tais obrigações são ambulatórias; se não, tais
obrigações não são ambulatórias.
Tal dúvida não está regulada na lei. No entanto, de acordo com a posição dominante, a resposta será
“depende”: as prestações pecuniárias, regra geral, não são ambulatórias; mas existem outras que, por
natureza, o são – por exemplo, o direito a desfazer a marquise, visto que é o proprietário que tem
poder direto sobre a coisa, pelo que é este, e não o antigo proprietário, que pode destruir.
Consequentemente, a resposta dependerá sempre se o cumprimento da obrigação real depende
ou não da titularidade do direito de propriedade. As obrigações pecuniárias e outras que não estão
dependentes da titularidade do direito real de propriedade não são ambulatórias; já todas as outras
terão de se transmitir para o novo proprietário. Assim, por exemplo, a obrigação do pagamento do
condómino pertence ao proprietário primitivo, visto que o cumprimento de uma obrigação pecuniária
não implica a titularidade do direito de propriedade, ainda que tal obrigação se funde precisamente
na titularidade anterior desse direito.
Concluindo, uma obrigação real é, analiticamente, uma obrigação (vínculo jurídico nos termos do
artigo 397º CC) – mas, institucionalmente, integra o regime dos direitos reais. Existe uma querela
(menos importante) de saber se as obrigações pecuniárias e de dare podem ser consideradas
obrigações reais: enquanto Caetano Nunes e Rui Pinto Duarte entende que sim, M. Mesquita entende
que não. Por fim, existe a questão (mais importante) de saber se a obrigação real em questão é ou não
ambulatória – sendo que, para a posição dominante (Rui Pinto Duarte), esta só será ambulatória se
do seu cumprimento depender a titularidade do direito de propriedade.
Ónus reais:
O ónus real é uma situação jurídica, com caráter real, em que uma coisa responde por uma
obrigação, mesmo após a sua transmissão. Por exemplo, no âmbito do artigo 744º CC, se o IMI
(imposto sobre o imóvel, antes chamado de contribuição predial) não for pago, o Estado tem um
direito real de garantia na satisfação do seu crédito na execução do património do devedor. Assim, o
fisco pode executar o devedor e, no âmbito dessa execução, pode penhorar o prédio que está na origem
da contribuição autárquica e vendê-lo em hasta pública – e, aí, o prédio responde pelo pagamento da
dívida. No entanto, o devedor pode, também, transmitir o imóvel, sendo que o novo proprietário
continua a responder por essa dívida, embora não seja ele o devedor – este ou paga a dívida que não
é sua, ou fica sem o prédio.
No entanto, esta definição não encaixa na perfeição na definição geral de ónus/encargo:
determinada vantagem que depende da adoção de um comportamento, mas que não implica uma
obrigação de atuar. Denota-se, no entanto, que a boa doutrina distingue o “ónus” do “dever”: um ónus
implica que alguém tenha de adotar um comportamento, para conseguir uma vantagem ou evitar uma
desvantagem – no entanto, tal comportamento nunca é uma imposição normativa/jurídica, existindo
alguma discricionariedade na parte do indivíduo. Este pode escolher fazer ou não tal comportamento,
sendo que isso não implica um cumprimento ou não cumprimento – é uma decisão livre, mas que
tem, como todas, consequências associadas.
Este ónus jurídico-real é, assim, um conceito mais à parte: a ideia de que a coisa responde pela dívida
é o núcleo desta definição, e não se reconduz bem à categoria geral. Assim, o facto de o devedor ter
a escolha livre de ou perde o bem ou chega-se à frente e paga a dívida, apesar de convocar a ideia
geral de ónus, é mais a definição da consequência prática do ónus real, e não a definição do ónus real
em questão.
Volta-se, aqui, à distinção entre direitos reais e obrigações (direitos de crédito). De acordo
com a perspetiva personalista ou mista que destaca o lado externo, a distinção está no carater absoluto
vs. caráter relativo do direito. Já de acordo com a conceção clássica, a distinção reside na ligação
direta à coisa nos direitos reais – sendo esta uma ligação imediata, em contraposição com a relação
mediata à coisa nos direitos de crédito, visto que nesta, o titular fica dependente de outro ser humano
para a sua satisfação, através da realização da prestação.
Neste âmbito, o primeiro critério de distinção, relativo ao lado externo, será o mais forte. No entanto,
e como já foi visto, existem direitos absolutos que não são reais; assim como existem figuras
intermédias que encaixam mal nesta distinção. Fala-se, aqui, dos direitos pessoais de gozo (de
locação, comodato, parceria pecuária e depósito), uma categoria prevista na lei. Por exemplo, no caso
do arrendamento, existe uma relação obrigacional: o contrato de arrendamento é um contrato com
efeitos meramente obrigacionais – mas a prestação dada periodicamente é uma prestação
característica, visto que, com esta, o senhorio tem o dever de disponibilizar o uso da coisa ao locatário.
Ou seja, é através da colaboração do locador que o locatário consegue usar a coisa – mas isto é uma
construção jurídica, marcada pela história: poder-se-ia conceber o direito do inquilino como um
direito real, no sentido de este ter o poder direto sobre a coisa, ainda que deva o pagamento do preço
– mas não foi essa a opção do legislador histórico (actions in persona e não actions in rem).
➔ Assim, a distinção entre direitos reais e de crédito é o precipitado histórico de Roma de ações
reais e pessoais: por exemplo, a locação dá aso a uma ação pessoal, embora implique o uso da
coisa – ele pode usar a coisa, porque tem um crédito sobre o senhorio, verificando-se aqui uma
estrutura meramente obrigacional e não real, porque não tem poder direto sobre a coisa.
o No entanto, existem também situações como a do artigo 1037º, nº2 CC, onde existe uma ação
de restituição da posse em confronto perante o locador e qualquer outra pessoa – ora, aqui já
existe uma oponibilidade erga omnes – pelo que este é um regime bipolar ou esquizofrénico.
o Ou seja, a posição do locatário tem caráter obrigacional; mas, apesar desta visão geral, existe,
pontualmente, uma tutela erga omnes mesmo contra o locador – algo que fica fora do
Direito das Obrigações, visto que este só iria dar direito a uma indemnização, e não a este
tipo de ação, que já é um aspeto típico dos Direitos Reais.
Concluindo, os direitos pessoais de gozo estão numa categoria média entre os direitos de crédito e
reais – estes são direitos relativos sui generis (Carlos F. de Almeida).
Caso prático:
1. A comprou a B uma fração autónoma num edifício em propriedade horizontal. B não pagou o IMI
relativo aos quatro anos anteriores àqueles em que a venda ocorreu, nem as contribuições para o
condomínio relativas aos dois anos anteriores à mesma data, nem, ainda, o preço do serviço de
pintura das paredes (interiores) da fração, que C fez, a seu pedido. Diga se A está obrigado a pagar
alguma das dívidas contraídas por B e se a fração autónoma responde por alguma delas.
Existe, aqui, um contrato de compra e venda de um imóvel entre A e B (artigos 874º e ss. CC).
Pressupõe-se, aqui, que foi feito o registo predial e, por isso, houve transmissão do direito de
propriedade sobre o imóvel de B para A – em relação a A, existe uma forma de aquisição da
propriedade derivada, através de contrato (artigo 1316º CC). Além disso, a constituição da
propriedade horizontal é realizada por meio de um contrato de compra e venda, estando, por isso, de
acordo com os termos do nº1 do artigo 1414º CC.
Posto isto, está-se perante três tipos de dívidas distintas: num primeiro momento, B não pagou
o IMI relativo aos quatro anos anteriores àqueles em que a venda ocorreu; posteriormente, não terá
pagado as contribuições aos condomínios relativas aos dois anos anteriores; e, finalmente, falta ainda
pagar o preço do serviço de pinturas interior feito por C. Ora, saber quem terá de pagar estas dívidas
prende-se com a discussão sobre se as obrigações reais se constituem ou não como ambulatórias – ou
seja, importa perceber se, depois de constituída a nova propriedade horizontal, devem ser cobradas
as dívidas a A (novo proprietário) ou B (antigo proprietário).
2. Propriedade enquanto o objeto de um direito real: por exemplo, a tal propriedade em Viseu–
não designa, assim, o direito que se tem sobre o prédio, mas o objeto (prédio);
3. Propriedade referente a qualquer direito real de gozo: por exemplo, na reserva da propriedade
(artigo 409º CC), o que acontece à propriedade quando ainda não foi pago o preço todo, ou quando
o comprador já tem alguns direitos reais? Na Alemanha, nestes casos, o conteúdo do direito real
de propriedade está dividida/partilhada entre o vendedor e o comprador – têm ambos
determinados mecanismos de tutela real. Assim, aqui, propriedade é sinonimo de regime
jurídico-real.
2. Ocupação:
A ocupação, também conhecida por achamento, é um modo de aquisição de propriedade
resultante da apreensão material de coisa sem dono, com intenção de a adquirir – ou seja, terá de
haver a intenção de, com aquela coisa, fazer algo.
Importa perceber o que são coisas sem dono: estas serão ou coisas que nunca tiveram dono;
ou coisas que foram abandonadas (enquanto modo de extinção da propriedade). Historicamente, a
ocupação foi uma forma de aquisição de propriedade bastante importante – os colonos ocupam e
adquiriam terras por ocupação. Atualmente, esta forma é muito menos relevante.
Atualmente, na legislação portuguesa, só há ocupação de bens movéis, tanto coisas como
animais. Por exemplo, os caçadores ocupam as perdizes – a caça implica a ocupação, tal como a
pesca, que têm regimes especiais. Este é o conceito mais amplo; no entanto, é possível especificar o
mesmo, no sentido em que a coisa “tem de ter sido anteriormente abandonada”.
➔ Há, ainda, um regime nos artigos 1323º e ss. CC que pode ter alguma aplicação prática, dado
consagrar o dever de restituir – ora, do mesmo comportamento, não resulta a ocupação, mas sim
deveres de restituição (sendo que, no limite, só depois poderá haver ocupação).
3. Acessão:
A terceira e última forma de aquisição originaria é a acessão (artigo 1325º CC), cuja previsão
normativa tem dois pressupostos: 1) a incorporação de uma coisa noutra; e 2) a diversidade de titulares
das coisas incorporadas. Assim, a lógica será a seguinte: se as coisas tinham proprietários diferentes,
mas são incorporadas numa só coisa, essa coisa só pode ter um proprietário. Por exemplo, se A
tem um prédio rústico (terreno), mas B constrói nesse prédio um edifício – ora, o terreno e o edifício
são incorporados um no outro. A quem pertence o edifício? De uma maneira ou outra, existe uma
propriedade adquirida por acessão.
Segundo o artigo 1326º CC, a acessão pode ser natural – se resultar de fenómenos naturais
(ex: chuvas movimentam terras de um espaço para o outro) – ou industrial – se resultar de um facto
humano (ex. do edifício atrás falado). A acessão pode, ainda, ser mobiliária – no que respeita à
acessão por coisas móveis – ou imobiliária – quando pelo menos uma das coisas incorporadas é
imóvel (que será a mais estudada).
➔ Necessário ter em conta, no entanto, que há conceitos que fogem ao conceito geral de acessão.
Regime
Os direitos dos comproprietários são qualitativamente iguais, ainda que possam ser
quantitativamente diferentes (artigo 1403, nº2 CC). Ou seja, ambos têm o direito ao uso da coisa
comum, mas existe uma possibilidade de regulação desse uso, nos termos do artigo 1406º CC: eles
podem regular tal o uso da coisa por acordo.
No entanto, se tal acordo não existir, todos os comproprietários podem usar livremente a coisa, com
dois limites: 1) não podem destinar a coisa a um fim diferente ao que se destina; e 2) não podem
prejudicar o uso dos restantes proprietários – ou seja, privar os restantes proprietários desse uso.
Além disso, existe, também, um dever de comparticipação nas benfeitorias necessárias:
ou seja, todos têm um dever de contribuição para todas as despesas de conservação ou melhoria, que
podem ser necessárias, úteis ou voluptuárias (artigos 216º e 1411º CC). No entanto, tal contribuição
será feita na proporção das respetivas quotas – isto, porque tanto podem existir 2 comproprietários
com 50% cada, como também pode existir um caso de comproprietários em que um tem 50%, outro
20% e outro 30%. Assim, cada um irá contribuir em valor proporcional à percentagem que têm.
Quanto à administração da comparticipação/da coisa (artigo 1407º CC, que remete para o
artigo 985º CC), destaca-se que existe liberdade de estipulação de um regulamento (acordo) sobre a
mesma. No entanto, se não houver um regulamento, ou acordo em contrário, todos os
comproprietários têm igual poder de administração. Consequentemente, se existirem divergências
entre os comparticipantes em sede de adminsitração, há deliberação e decide a maioria (princípio da
suficiência da maioria, em contraposição com a unanimidade).
➔ Quanto a este último ponto, denota-se que, de acordo com os diferentes regimes jurídicos, poderá
haver tipos de maiorias diferentes. Ora, neste caso, existe um regime de dupla maioria: será
necessário existir maioria simples tanto de proprietários (democracia – voto por pessoa), como de
quotas (plutocracia – voto em função do capital).
o A dupla maioria é um regime pouco simples: nas sociedades sociais, os regimes são muitos
mais simples, existindo menos bloqueios decisórios. No entanto, aqui, o que o legislador quer
é que os comproprietários cheguem a um acordo, não tendo propriamente como objetivo
simplificar o processo de decisão.
Por fim, segundo o artigo 1412º CC, cada comproprietário tem o direito à divisão: ou seja, o
direito de exigir a divisão a todo o tempo (regra geral) – sendo que pode haver, no entanto, convenção
em contrário (convenção ou acordo de indivisibilidade). Esta convenção só pode ser como prazo
máximo de indivisibilidade 5 anos: ou seja, só é possível convencionar a indivisibilidade por um
máximo de 5 anos – depois disso, a divisibilidade é injuntiva. A divisão, por sua vez, dissolve a
compropriedade, alterando o estatuto jurídico-real da coisa: cada um fica com uma parte, tendo
titularidade exclusiva sobre a mesma. Conclui-se que a compropriedade é uma situação
tendencialmente temporária, ao contrário de outras formas de contitularidade (onde não existe o
mesmo direito à divisão)
➔ Este regime do CC é limitado por regras de direito público – nomeadamente, o direito do
urbanismo e de ordenação do território de forma extrema, que limitam o fracionamento da
propriedade privada, podendo impor-se como um obstáculo a este direito de divisão.
Quanto à alienação da quota na comunhão, o comproprietário pode dispor da sua quota, no
todo ou em parte, regra geral a todo o tempo (artigo 1408º CC). A lei estabelece, no entanto, um
direito de preferência em relação aos outros comproprietários sobre tal quota, com o objetivo de
promover, do ponto de vista da análise económica do direito, a propriedade individual, que é sempre
preferível à coletiva, do ponto de vista de gestão – assim como se impede, desta forma, que estranhos
entrem na compropriedade.
Este direito de preferência é um direito real de aquisição, sendo, em rigor, o grande paradigma dos
direitos reais de preferência: ou seja, sempre que há um direito de preferência, estas normas acabam
por reconduzir ou ao artigo 1409º, ou 1910º e 1411º CC – normas sobre os direitos reais de
preferência. Não confundir estes casos, no entanto, com aqueles em que há propriedade individual,
sobre a qual o vizinho tem direito de preferência. Além disso, estes direitos de preferência têm
oponibilidade erga omnes: é através da ação de preferência que se dá tal oponibilidade erga omnes
do direito de preferência real (artigo 1410º CC).
➔ No entanto, na realidade, isto acaba por não ser prático: ou seja, apesar de o comproprietário com
preferência ter depositado o custo económico à cabeça, como é pedido pelo artigo, só anos depois
é que terá, efetivamente, o bem – ou seja, o direito à coisa só surge anos depois, com a sentença,
e apenas se a ação for procedente. Significa isto, então, que, na prática, este investimento é
irracional e não funciona.
NOTA: Na compropriedade, a renúncia liberatória reverte a favor dos outros consortes (artigo 1411º
CC); ao passo que a renúncia abdicativa torna as coisas res nullius ou fá-las reverter para o Estado.
Notas finais
Conclui-se, assim, que a compropriedade é uma situação jurídica ativa e isolada – diferente
das comunhões que, incluindo os baldios, são patrimónios autónomos: isto é, são um conjunto de
situações jurídicas ativas e passivas com carácter patrimonial, afetas a uma finalidade especial
(património de afetação).
No entanto, denota-se que o regime da compropriedade continua a ser subsidiariamente
aplicável às comunhões (artigo 1404º CC). O que acontece frequentemente, contudo, é que os
regimes específicos destas formas são incompatíveis com as da compropriedade – por exemplo, a
regra de que não é possível alienar a quota enquanto a relação conjugal existir choca com o direito à
alienação da compropriedade. Assim, apenas na parte em que não houver regras especiais, as regras
da compropriedade podem ser subsidiariamente aplicáveis.
Destaca-se, por fim, a distinção entre a cotitularidade ou compropriedade humana e a comunhão de
origem germânica. Na comunhão germânica, não existe uma mera situação pontual, mas, sim, um
laço anterior – nomeadamente, uma finalidade superior que é prosseguida por um conjunto de pessoas
que, para tal, juntou um património comum. Mais tarde, entendeu-se, então, que esse grupo de
pessoas passava a ser visto como uma pessoa coletiva, com o seu próprio património.
Defesa da Propriedade
Este tema convoca, sobretudo, a oponibilidade erga omnes/o lado externo dos direitos reais –
estando previsto no artigo 1311º CC. Aqui, existem duas figuras: a defesa judicial e a ação direta
(artigo 1314º CC).
Relativamente à ação direta, a regra geral é a de inadmissibilidade da mesma. Esta só poderá,
então, ser usada (de forma proporcional) caso seja necessário, na existência de uma lesão atual e
eminente ou um risco que esta se concretize. Ou seja, se não for estritamente necessário agir para
prevenir aquela lesão, recorre-se não à ação direta, mas sim à defesa judicial, chamando-se a polícia
ou indo a tribunal.
Relativamente, então, à defesa judicial, esta é a figura mais importante. Especificamente,
dentro desta, dá-se enfase à ação de revindicação, um pedido condenatório previsto no artigo 1311º
CC: permite-se a restituição da coisa (estatuição normativa) a alguém, se esse alguém comprovar o
seu direito de propriedade da mesma (previsão normativa) – pelo que a existência desse direito de
propriedade em primeiro lugar é um requisito normativo.
No entanto, a prova da propriedade pode ser complexa. Existem, por isso, duas presunções de
propriedade: registo e posse, já antes falados. No entanto, se a prova não puder se feita por presunção,
diz a jurisprudência uniforme que será necessário o interessado fazer prova de uma aquisição
originária. Ou seja, não existindo presunção de propriedade, não basta alegar uma aquisição derivada
(ex: comprou a coisa) – é necessário alegar factos que possibilitem uma aquisição originária, como o
usucapião (ex: comprou a coisa a J e, entretanto, já tem a sua posse há 15 anos).
➔ Este regime, assim como o da ação direta, são aplicáveis, mutatis mutandis, à defesa de todos os
direitos reais – artigo 1315º CC.
Podem, no entanto, existir outros tipos de ação judicial, que não a ação de revindicação. Para além de
pedidos de condenação, são possíveis ações meramente declarativas: ou seja, em que se pede para
declarar X como proprietário, não existindo outras pessoas que têm o direito ao usufruto, etc. – ações
de simples apreciação negativa. No entanto, é sempre melhor pedir uma ação condenatória, do que
uma ação declarativa, dado que a declarativa, por si, não faz nada para a restituição da coisa.
Ir-se-á, mais à frente, estudar os meios de defesa da posse – sendo que os proprietários são
quase sempre possuidores, assim como titulares de outros direitos reais como o do usufruto. Significa
isto que, na realidade prática, para além da defesa da propriedade através da ação de revindicação
(aplicável também aos direitos reais menores), é possível, também, aplicar os meios de defesa da
posse (ex: proteção cautelar) – tanto de forma alternativa ou complementar.
Expropriação
A matéria da expropriação convoca não apenas o CC (artigos 1308º e ss.), mas, também, o
artigo 62º CRP, que consagra uma proibição de expropriação sem justa causa e sem
indemnização. Isto, porque os direitos fundamentais são direitos que atuam tanto no confronto com
o Estado – limitando o poder político face ao cidadão –, como no confronto perante outros cidadãos,
tendo uma eficácia horizontal. Ora, no caso da expropriação, esta proibição constituição encaixa-se
na primeira situação, tendo um conteúdo meramente negativo – imunidade face ao Estado.
Existem dois conceitos de expropriação: expropriação em sentido amplo, e expropriação em
e o sentido restrito. Em sentido amplo, expropriação abarca qualquer modo de privação de um direito
patrimonial. Já em sentido estrito, expropriação será aquela que tiver uma utilidade pública, no
sentido de existir um modo específico (e não qualquer modo) para a fazer. Dito de outra forma,
distingue-se, por um lado, um direito que alguém tem sobre um imóvel, com a sua oponibilidade erga
omnes; e, por outro lado, a constituição de um direito público sobre um imóvel, com base num
interesse de utilidade pública.
Ora, para efeitos da Cadeira, interessa a expropriação em sentido amplo de coisas corpóreas.
Assim, neste sentido, a expropriação abarca, ainda, o confisco – expropriação com carácter
sancionatório, que apaga o direito a indemnização –, e a requisição – privação temporária do exercício
dos poderes relativos (artigo 1309º CC). Abarca, também, a perda dos instrumentos do crime para o
Estado, sendo isto visto em Direito Penal como uma sanção penal acessória; e, ainda, a nacionalização
das empresas com maior valor económico.
De qualquer das formas, o importante a retirar é que estas são limitações potenciais ao direito de
propriedade: os proprietários ficam sujeitos a verem os objetos dos seus direitos expropriados,
nacionalizados ou requisitados, independentemente de qualquer ato ou omissão.
Direito de demarcação
Uma das faculdades tradicionalmente compreendidas no direito de propriedade sobre o prédio
é a de demarcação: ou seja, o proprietário tem direito a exigir o concurso dos proprietários
confinantes para a demarcação (artigo 1353º CC).Pressupostos da demarcação são, pois: 1) a
existência de dois ou mais prédios contíguos; 2) a sua pertença a titulares diferentes; e 3) a existência
de dúvidas ou divergências quanto às suas linhas divisórias.
Enquanto operação material, a demarcação consiste em colocar sinais permanentes (marcos
ou outros) das linhas divisórias de prédicas contíguos. Na prática, demarcar implica meter marcos na
extrema da propriedade, assim como testemunhas de marco – ou seja, pedras que se colocam à volta
do marco para que, se este for desviado, nota-se.
A demarcação faz-se em processo judicial, apesar de poder ser amigável. A base da
demarcação é constituída pelos títulos de cada proprietário e, na falta ou insuficiência deles, pela
posse – ou ainda, subsidiariamente, por outros meios de prova (artigo 1354º, nº1 CC). É de notar,
assim, que a ação de demarcação não se pode destinar a alterar a demarcação feita extrajudicialmente
(ou seja, por acordo) – apenas pode proceder à demarcação que não seja viável por acordo, no sentido
em que não existe uma demarcação feita anteriormente por acordo. Assim, se um proprietário quiser
alterar uma demarcação feita extrajudicialmente, terá de invocar outro direito (e, eventualmente,
intentar a correspondente ação) – por exemplo, o de anulação do negócio jurídico de demarcação
celebrado. Por outro lado, é de frisar que a ação de demarcação pressupõe que ambas as partes estejam
de acordo quanto a serem proprietários confinantes, divergindo apenas quanto à linha divisória.
Direito de tapagem
Outra das faculdades tradicionalmente reconhecidas ao proprietário é a de tapar, no sentido
de marcar, valar, rodear de sebes e praticar atos análogos no seu prédio. O CC consagra essa
faculdade, limitando-a no que respeita às valas, no seu artigo 1357º; e às sebes vivas, no nº1 do seu
artigo 1359º. Por outro lado, estabelece, ainda, certas presunções de comunhão das valas e sebes
divisórios: nomeadamente, no nº2 do artigo 1359º, e no artigo 1358º – se o proprietário puser vala ou
regueira, esta tem de ter certas características; caso contrário, presume-se que essa área é comum (ou
seja, é necessário que isto seja feito de forma a se perceber bem se a mesma ainda pertence ao prédio
do proprietário, ou se já pertence ao do vizinho).
Direito de plantação
O direito de plantação implica a permissão de plantação de árvores e arbustos até à linha
divisória dos prédios, nos termos do artigo 1366º, nº1 CC – incluindo-se, aqui, as raízes, troncos e
ramos invasores. Quanto às árvores de fruto, contrariamente ao que acontece noutras ordens jurídicas,
o dono da árvore não perde a propriedade sobre os frutos, ainda que estes caiam no terreno do vizinho.
Regra geral, a plantação de sebes vivas nas extremas é proibida, salvo se previamente se
colocarem marcos divisórios, nos termos do artigo 1359º, nº1 CC. Existem, ainda, outros aspetos
sobre este assunto – por exemplo, o artigo 1369º CC indica que as árvores ou arbustos que servem de
marcos divisórios apenas podem ser arrancados por acordo das partes.
Acessão Imobiliária
A Acessão é uma forma de aquisição originária do direito de propriedade, caracterizada por
dois requisitos: 1) a incorporação de certa coisa noutra, e 2) a diversidade de titulares. Dito de outra
forma, o fenómeno da incorporação resulta de se ter duas coisas distintas, cada uma do seu dono, e
uma integrar-se ou ser integrada na outra, passando ambas a pertencer ao mesmo dono (artigo 1325º).
Tipos de acessão
Existem dois tipos de acessão: acessão mobiliária e acessão imobiliária. Além disso,
distingue-se, nos termos do artigo 1326º, nº1 CC, a acessão natural (artigos 1327º a 1332º CC) e a
acessão industrial (artigos 1339º a 1343º CC).
Relativamente à acessão imobiliária natural, esta resulta exclusivamente das forças da
natureza. Os casos mais relevantes são os da aluvião (artigo 1328º CC) e da avulsão (artigo 1329º
CC) – por exemplo, se uma enxurrada levar pedras do quintal de A para o quintal do seu vizinho B,
este passa a ser o proprietário delas. No entanto, a acessão imobiliária natural tem uma relevância
prática muito diminuída.
Relativamente à acessão imobiliária industrial, esta dá-se quando, por facto do homem, se
confundem objetos pertencentes a diversos donos; ou quando alguém aplica o trabalho próprio a
matéria pertencente a outrem, confundindo o resultado desse trabalho com propriedade alheia.
Existem, assim, quatro casos de acessão imobiliária industrial, sendo que o mais relevante será
perceber quem fica com as obras ou com o prédio – ou seja, se o proprietário fica com as obras ou se
o construtor fica com o solo.
Ora, coisa diferente será a situação de haver terceiros que usem o prédio do A enquanto
atravessadores, sem haver uma servidão de passagem – sendo que, aqui, não existe um direito real.
Devido a isso, segundo o artigo 1383º CC, regra geral os atravessadouros são abolidos; no entanto,
de acordo com o artigo 1384º CC, existem algumas exceções a essa regra. Assim, os atravessadouros
reconhecidos são aqueles: 1) dirigidos a ponte ou fonte de manifesta utilidade, se não existirem vias
públicas destinadas à sua utilização e se tais atravessadouros tiverem origem imemorial; 2) aqueles
regulados em lei especial.
Já relativamente aos caminhos públicos, denota-se que existe um acórdão de uniformização
de jurisprudência de 1989 sobre caminhos públicos, segundo o qual os caminhos que são públicos
desde tempos imemoriais devem ser reconhecidos e limitar a propriedade. Assim, no fundo, são
abolidos todos os atravessadores (artigo 1383º CC), exceto nos dois casos descritos anteriormente –
e, ainda, no caso dos caminhos públicos. Ora, tal lógica faz tábua rasa do artigo 1383º CC, sendo
totalmente contra legem, no sentido de alargar as exceções a este fora daquelas expressamente
previstas no artigo 1384º CC.
De qualquer das formas, dentro desta lógica, tem sido discutido o que significa caminho público neste
sentido. Existem, aqui, duas correntes principais: segundo uma corrente jurisprudencial, devem ser
tidos como públicos todos os caminhos que estejam no uso direto e imediato do público desde tempos
imemoriais; enquanto outra corrente sustenta que só podem ser tidos como públicos os caminhos que
sejam coisas públicas – ou seja, que pertençam a entidades públicas.
➔ Esta segunda corrente é suportada pelo artigo 1383º CC, e pareceu ser a doutrina maioritária, a
partir do CC vigente. No entanto, STJ, no seu acórdão (assento) de 19.4.1989, perfilhou a primeira
corrente, estabelecendo que “são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no
uso direto e imediato do público, constando do acórdão respetivo a afirmação de que é suficiente
para que uma coisa seja pública o seu uso direto e imediato pelo público, não sendo necessária a
sua apropriação, produção, administração ou jurisdição por pessoa coletiva de direito público”.
o É importante não confundir os caminhos públicos ou atravessadouros com os bens de
domínio público, ou ainda com a propriedade pública: por exemplo, as estradas são bens do
domínio público, pelo que não se configuram como restrições ao direito de propriedade de
qualquer privado. Além disso, será possível fazer, aqui, uma analogia entre os caminhos
públicos e os terrenos baldios.
Concluindo, os atravessadores e caminhos públicos são, assim, limitações ao direito de
propriedade.
➔ Segundo o artigo 1382º CC, no que respeita ao emparcelamento, o CC limita-se a uma remissão
para a legislação extravagante – nomeadamente, a referida Lei nº111/2015.
NOTA: Para além das restrições ao direito de propriedade já faladas, existem – dir-se-ia,
naturalmente – as que resultam da coexistência de outros direitos reais sobre o mesmo bem e as de
natureza contratual. Além disso, o direito de propriedade sobre prédios sofre, também, restrições
impostas pelo Direito Público: nomeadamente, a expropriação (restrição máxima); as servidões
administrativas (como, por exemplo, as militares, as de aqueduto público, as de gasoduto público e
as de linhas elétricas e telefónicas); entre outras.
Enquadramento
Enquadramento sociológico:
Este instituto surge como resultado do desenvolvimento das cidades e das políticas de fomento
à aquisição de habitação própria. Especialmente, a propriedade horizontal tem grande relevo em
Portugal nas últimas décadas, marcadas pelo crédito hipotecário: a maioria dos portugueses, por força
do acesso fácil ao crédito bancário, têm habitação própria e não arrendada – podendo, com isso, ser
proprietários exclusivos (no caso das vivendas); mas, na maioria dos casos, são frações autónomas.
Isto sem prejuízo de, muito frequentemente, as mesmas se encontrarem hipotecadas para garantia dos
empréstimos bancários contraídos para a sua aquisição.
No entanto, em Portugal, o mercado de arrendamento ao longo das décadas sempre foi
ineficiente, devido ao regime do congelamento das rendas, que impede o jogo da oferta e da procura:
este, apesar de proteger o mercado do consumo e os inquilinos, a longo prazo faz com que haja menos
investimento no mercado do arrendamento. Assim, para Caetano Nunes, o congelamento das rendas
faz com que as pessoas tentem recorrer mais à propriedade horizontal – sendo que, no entanto, com
o aumento da taxa de juros, tal se vê como mais difícil. Dito de outra forma, a renda terá de conseguir
pagar o investimento – ora, como isso não acontece em Portugal, recorre-se à propriedade horizontal.
Concluindo, em Portugal, o regime de propriedade horizontal é frequente, devido à apatia do
mercado de investimento e o decréscimo das taxas de juro, que permitem o acesso da população
portuguesa ao crédito bancário para habitação.
Enquadramento legal:
O regime do CC é imperfeito, dado ser muito pouco desenvolvido e com as matérias mal
distribuídas – existe, assim, uma falta de sistematização no CC; assim como a necessidade de um
maior desenvolvimento das normas existentes.
Além disso, relativamente à organização do condomínio, discute-se até que ponto pode o
condomínio ser demandado em tribunal – ou se, pelo contrário, devem ser demandados na ação todos
os condóminos. Além disso, quanto na gestão do condomínio, discute-se se poderá haver uma gestão
de controlo do administrador. No entanto, na prática, existem regulamentos de condomínio que
avançam com estas soluções – nomeadamente, o órgão de controlo do administrador, etc. –, sem que
tenham um grande apoio legal.
O primeiro grande problema da regulação da propriedade horizontal será o da relação entre os poderes
de cada condómino e os poderes do conjunto dos condóminos. Este problema não é resolvido pela
distinção entre partes comuns e frações autónomas, na medida em que não é concebível que cada
condómino possa exercer, sem limites, o seu direito de propriedade sobre a sua fração autónoma. As
linhas de fratura entre o que é individual e o que é coletivo passam não somente pela definição do
que entra nas partes comuns e do que cabe nas frações autónomas, mas também pela definição dos
poderes do conjunto dos condóminos relativamente às frações autónomas.
O segundo grande problema da regulação da propriedade horizontal é o da organização do conjunto
dos condóminos para a condução dos assuntos que lhes cabe conduzir, enquanto conjunto. A
determinação dos casos em que é razoável exigir apenas uma maioria de vozes, e a daqueles em que
é razoável exigir a unanimidade, é exemplo de uma questão de política legislativa nessa área. Outro
exemplo está na própria estruturação do conjunto dos condóminos: será possível e conveniente manter
a figura da propriedade horizontal nos quadros de uma contitularidade “não subjetivada”, ou será
preferível (se não inevitável) optar por atribuir personalidade jurídica ao condomínio?
Ir-se-á ver, adiante, como a lei portuguesa resolve estas questões, assim como as dúvidas que os
preceitos legais respetivos levantam.
Noções introdutórias ao regime
O objeto da propriedade horizontal:
O regime da propriedade horizontal é aplicado a prédios urbanos com edifícios (artigo 1414º
CC) – podendo, no entanto, ser também aplicado a edifícios contíguos funcionalmente ligados entre
si, pela existência de partes comuns (artigo 1438º-A).
Por outro lado, nem todos os edifícios podem ser constituídos em propriedade horizontal: a
lei exige que as partes dos edifícios destinadas a constituírem frações autónomas tenham condições
de ser unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum
do prédio ou para a via pública (artigo 1414º CC). Como enfatiza José Luís Bonifácio Ramos, para
que haja propriedade horizontal, é necessária a existência de um edifício com características especiais.
As frações autónomas têm, assim, de preencher o requisito da independência (artigo 1415º CC): ou
seja, o edifício terá de ter independência do ponto de vista físico.
➔ Já o caso dos edifícios contíguos pode colocar um problema de maior complexidade de
organização do condomínio – por exemplo, será que deve haver uma sub-assembleia dos
condóminos, para além da assembleia de todos os condóminos de todos os edifícios?
Constituição
A propriedade horizontal pode resultar de negócio jurídico, usucapião, decisão
administrativas e decisão judicial proferida em ação de divisão de coisa comum ou em processo de
inventário (artigo 1417, n°1 CC). Esta constituição da propriedade horizontal determina uma
alteração do estatuto jurídico-real do prédio urbano: ou seja, é com esta constituição que deixa
de haver um prédio urbano e uma única coisa corpórea, e passa a haver várias coisas corpóreas, a
nível jurídico.
Quanto à constituição por negócio jurídico, apesar de se pensar, aqui, em negócios inter
vivos, denota-se que alguma doutrina defende que tal negócio possa tomar forma em testamento. De
qualquer das formas, este costuma ser unilateral, no sentido de existir, apenas, uma única declaração
negocial que expressa a vontade de constituir a propriedade horizontal, por parte do proprietário.
Quanto à constituição por usucapião, é de notar que este é um caso raro, mas não impossível.
No entanto, será necessário existir uma decisão judicial a julgar se existe usucapião, pelo que, no final
das contas, a possibilidade de constituição por usucapião também reencaminha para a existência de
uma decisão judicial a reconhecer dita constituição por usucapião.
Quanto à constituição por decisão judicial, existe um problema quanto à conformidade com
a licença de utilização. Como já se viu, existem limitações publicas de índole administrativa ou
urbanista que condicionam a autonomia privada neste tema: assim, antes de construir o edifício, o
proprietário deverá apresentar o projeto à Câmara Municipal, para que esta o autorize. Esta
autorização administrativa é que vai determinar se a construção é suscetível de propriedade horizontal
ou não – algo que torna praticamente impossível constituir propriedade horizontal por usucapião,
visto que, normalmente, o detentor em causa não tem qualquer licença de utilização. Ora, sendo estas,
na sua génese, situações de ilegalidade e de inconformidade com as regras de habitabilidade e de
segurança necessárias para obter licenças de utilização, o juiz dificilmente decidirá a constituição de
propriedade horizontal por usucapião. Assim, estas situações são bastante raras, apesar de possíveis.
➔ Por exemplo, numa situação em que A e B são comproprietários que usam individualmente certas
partes há 20 anos, tratando-as como se fossem propriedade horizontal – por isso, pedem ao juiz
para declarar a propriedade horizontal (sentença constitutiva). O problema que podem enfrentar,
aqui, será a potencial inconformidade com a licença de autorização, como se vai ver a seguir.
Obras inovadoras
O regime das obras inovadoras – ou seja, obras que não se destinam à mera conservação do
imóvel, nos prédios em propriedade horizontal – convoca, essencialmente, os artigos 1422º e 1425º
CC. Segundo o artigo 1425º, nº1 CC, regra geral, as obras que constituem inovações dependem da
aprovação da maioria dos condóminos, devendo essa maioria representar 2/3 do valor total do
prédio – sendo, assim, necessária uma maioria qualificada. A maioria da doutrina entende que tal
regra de aplica para as obras nas partes comuns; embora exista uma parte minoritária que defende
que as obras feitas nas frações autónomas também têm de ser aprovadas por maioria qualificada – no
entanto, tal limitaria fortemente o direito de cada condómino, indo contra a prática generalizada em
Portugal, como diz Rui Pinto Duarte.
Além disso, nos termos do artigo 1422º, nº2, alínea a) CC, é especialmente vedada aos
condóminos a possibilidade de prejudicar, quer com obras novas, que por falta de reparação, a
segurança, a linha arquitetónica ou o arranjo estético do edifício. Assim, este artigo acaba por
funcionar como regime especial face ao artigo 1425º CC: ou seja, mesmo existindo maioria
qualificada que aprove a realização da obra, a mesma não pode ser feita se prejudicar algum dos
aspetos enumerados.
No entanto, o nº3 deste artigo já estatui que as obras que modifiquem a linha arquitetónica ou o arranjo
estético do edifício podem ser realizadas mediante autorização prévia dos condóminos, deliberada
por maioria representativa de 2/3 do valor total do prédio. Nesta norma já não se fala, ao contrário do
que acontece anteriormente, em “segurança”: ou seja, o nº2 implica casos de prejuízo absoluto;
enquanto o nº3 implica casos de mera modificação.
➔ Em primeiro lugar, conclui-se, então, que as obras que prejudiquem a segurança do edifício
são sempre proibidas, mesmo que autorizadas pela assembleia de condóminos – pelo que, se
mesmo assim forem levadas a cabo, as deliberações sociais poderão ser inválidas; assim como
poderá existir responsabilidade civil por parte do administrador e dos condóminos que
consentiram as obras. Se tal decisão tiver sido feita por unanimidade, os condóminos que vierem
a assumir o prédio podem demandar os que lá estavam, e pedir indemnizações por tal alteração.
➔ Em segundo lugar, no que diz respeito ao arranjo estético e à linha arquitetónica, o legislador
distingue entre prejuízo e modificação: no primeiro caso, as obras serão sempre proibidas, já
no segundo caso, tais obras poderão ser levadas a cabo após autorização da assembleia de
condóminos, deliberada por uma maioria de 2/3 do valor total do prédio.
Concluindo, as obras inovadoras terão sempre de ser aprovadas por maioria dos condóminos (2/3 do
valor total do prédio), incluindo alterações ao arranjo estético e à linha arquitetónica. Foge a esta
deliberação o prejuízo do arranjo estético e a linha arquitetónica e as obras que prejudicam a
segurança (alínea a): estas terão de ser aprovadas por unanimidade – salvo se se entenda que esta é
uma norma de interesse público e, portanto, nem por unanimidade se pode fazer.
Na opinião de Rui Pinto Duarte, apesar da ambiguidade da lei e das dificuldades de
harmonização do artigo 1425º com o n° 2 (e o nº3) do artigo 1422º CC, é de seguir a interpretação de
Pires de Lima e Antunes Varela, que entendem que o artigo 1425º, quer no seu n°1, quer no seu n°7,
só regula obras nas partes comuns. Estas previsões diferenciam-se, no entanto, na sua previsão – o
n°7, relativamente ao n°1, regula as obras capazes de prejudicar a utilização, por parte de algum dos
condóminos, tanto das coisas próprias como comuns – e na sua estatuição, no sentido de que a
maioria, mesmo representativa de dois terços do valor total do prédio, não pode permitir as obras
referidas no n°7.
Questão ainda mais difícil será a de saber como se relaciona o nº3 do artigo 1422º CC – que faz
depender as obras que modifiquem a linha arquitetónica ou o arranjo estético do edifício de
autorização prévia da assembleia de condóminos, aprovada por maioria representativa de dois terços
do valor total do prédio – com o n°1 do artigo 1425º CC. Ora, não serão todas as obras previstas no
n°3 do artigo 1422º CC inovações para efeitos do artigo 1425º CC? A restrição, que se defende, do
n°1 do artigo 1425º CC às partes comuns, acompanhada do entendimento plausível de que o nº3 do
artigo 1422º CC tem, também, em vista apenas as partes comuns (e não só as frações autónomas),
parece obter a harmonia do conjunto – sendo, ainda, compatível com a ideia de que este n°3 trata de
certo tipo de inovações, constituindo, na sua previsão, norma especial relativamente à do n°1
do artigo 1425º CC (pese, embora, o pequeno apoio de tal solução na letra dos preceitos).
Administração do condomínio
Os órgãos de administração são um centro de imputação dos efeitos de normas dentro de uma
pessoa jurídica plena ou rudimentar – ou seja, estão dentro do microcosmo jurídico. Desta forma, o
artigo 1430º CC elenca apenas dois órgãos: o administrador e a assembleia de condóminos. No
entanto, na prática regulamentar, por vezes, surgem mais órgãos, sendo discutido que se tal é
admissível ou não (sendo que Caetano Nunes defende a admissibilidade) – como, por exemplo, o
órgão de controlo da administração, que se vai reunir com o administrador numa regularidade superior
a um ano, para controlar a gestão. Tal será inteligente, de forma a toda a administração não estar
dependente apenas da assembleia de condóminos que, regularmente, é feita apenas uma vez por ano.
1. Administrador:
O administrador pode ser um dos condóminos ou um terceiro (artigo 1435º CC). Isto é
uma característica relevante, do ponto de vista da complexidade da estrutura orgânica do condomínio:
quando é um terceiro profissional, existe uma maior complexidade orgânica. Nos condomínios de
grandes dimensões, o administrador será, quase sempre, um terceiro profissional, já que a distribuição
das tarefas não será compatível com um vizinho sem experiência a cuidar.
Quanto às suas funções (artigo 1436º CC), estas enunciam não apenas os poderes de criar
efeitos jurídicos – ou seja, de atuar jurídica ou materialmente em nome da pessoa jurídica –; mas,
também, enunciam os seus deveres e a responsabilidade no exercício das funções. Assim, as
principais competências do administrador serão: 1) elaborar o orçamento das receitas e despesas
relativas a cada ano (alínea b) – o que significa que também terá de prestar contas à assembleia (alínea
j) –; 2) regular o uso das coisas comuns e a prestação dos serviços de interesse comum, caso o mesmo
não esteja previsto no regulamento do condomínio (alínea h); 3) representar o conjunto dos
condóminos perante as autoridades administrativas; e 4) elaborar o regulamento do condomínio,
quando os condóminos não procedam à mesma (artigo 1429º-A CC).
➔ Este artigo 1436º CC deverá ser lido em conjunto com o artigo 1438º CC, já que dos atos do
administrador cabe recurso para a assembleia, podendo ser convocada pelo condómino recorrente.
O administrador pode agir em nome do condomínio (artigo 1437º CC), o que significa que
o condomínio pode ter capacidade judiciária: ou seja, capacidade para ser titular dos efeitos das
normas processuais. Assim, num processo, o condomínio será parte processual ativa, sendo o
administrador o representante legal da mesma – cabendo, então, ao administrador representar a
universalidade dos condóminos (nº2).
Por vezes, na prática, surgem confusões sobre isto: frequentemente, o administrador identifica-se
como parte processual, em vez de identificar o condomínio, com personalidade jurídica rudimentar,
como parte processual. Ora, ao agir desta última forma, existirá uma maior personificação do
condomínio, no sentido de um alargamento dos seus direitos e deveres, por comparação com os
condóminos, que não serão demandados nessa sua qualidade, em conjunto.
Assim, existe uma tendência de crescente personificação, especialmente no contexto de condomínios
cada vez maiores nas cidades, dado que aí os condóminos são muitos, não sendo possível, de forma
fácil e eficaz, citá-los a todos. Esta tendência não é, no entanto, plena: em questões de reivindicação
da propriedade, fica a dúvida se o condomínio terá legitimidade, ou se devem ser os condóminos a
ser citados. De qualquer das formas, é indiscutível que cada condómino, só por si, deve poder
reivindicar as partes comuns, já que este poder é um aspeto fulcral do direito de propriedade.
2. Assembleia de condóminos:
Sublinha-se que a Assembleia é um mero órgão de administração do condomínio, o que,
entre outras consequências, implica que não tem poderes para alterar o título constitutivo. Assim, a
ata referida no n°2 do artigo 1419º CC não formaliza uma deliberação da assembleia; mas, sim, um
acordo entre condóminos, que não tem esta natureza de deliberação.
A convocatória (ato de convocar a assembleia) está regida no artigo 1432º, nº1 e 2 CC: a
mesma terá de ser descrita numa folha com a assinatura de todos os condóminos, de forma a assegurar
que os mesmos tomaram conhecimento – não sendo legal, assim, a prática vulgar de fazer a
convocação por aviso fixado num qualquer local do edifício. No entanto, atualmente, já é possível
fazer esta convocatória por correio eletrónico (nº2 do artigo 1432º).
A propósito do funcionamento dos órgãos, existe uma distinção entre órgão deliberativo e
constitutivo – sendo que, no caso das assembleias de condóminos, a lei regula os dois.
Assim, o quórum deliberativo será a quantidade de votos necessária para aprovar uma proposta de
deliberação sobre uma determinada matéria. Para este, aplica-se a regra geral de plutocracia do artigo
1432º CC: terá de existir uma maioria simples do capital investido – ou seja, terá de haver uma maioria
de votos em função do dinheiro investido, sendo que quem tem mais permilagem vota mais (ao
contrário do “voto por cabeça”). No entanto, em função das diferentes matérias, podem existir
diferentes quóruns deliberativos – pelo que poderão existir regras especiais (ex: para pedir o
suprimento judicial para a alteração do título constitutivo, é necessária uma deliberação com pelo
menos 1/10 do capital investido).
Já o quórum constitutivo (que vem primeiro) será a quantidade de votos necessária para a assembleia
iniciar os trabalhos e discutir uma determinada matéria – ou seja, para reunir a assembleia:
➔ Num primeiro momento, será necessário, para que a reunião possa começar, que estejam pessoas
suficientes para fazer o quórum deliberativo falado no nº5 – o que implica que, no nº6 do mesmo
artigo, existe um quórum constitutivo implícito: nomeadamente, a maioria dos votos
representativos de capital investido. Não existindo uma segunda convocatória, o quórum
constitutivo poderá variar, também, dependendo das matérias faladas: ou seja, por vezes, tendo
em conta uma determinada matéria, pode haver quórum constitutivo maior.
➔ Já num segundo momento, se for necessária uma segunda convocatória, esta é convocada ou na
mesma data, mas 30 minutos depois (nº7), ou numa outra data qualquer. Se nenhuma data for
fixada, a data supletiva aplicada será 1 semana depois, na mesma hora e local. Aqui, o quórum
constitutivo será mais leve: será necessário estarem presentes apenas 1/4 do valor total do prédio,
para se iniciar os trabalhos. Já relativamente ao quórum deliberativo, será necessário 1) uma
maioria simples dos condóminos presentes, e não do capital investido; e 2) uma representação de,
pelo menos, 1/4 do valor total do prédio (pressuposto, dado que é o quórum constitutivo).
Existe, ainda, um regime de aprovação das deliberações que careçam de ser aprovadas por
unanimidade (nº 8 a 11). No entanto, na realidade, bastará 2/3 do capital investido para que a
deliberação seja aprovada nestas matérias (nº8), sendo que os outros condomínios são notificados por
carta registada (nº10), valendo o seu silêncio como aprovação (nº11).
Quanto à impugnação das deliberações, o artigo 1433º, nº1 CC estabelece que as
deliberações das assembleias de condóminos contrárias à lei ou ao regulamento são anuláveis, a
requerimento de qualquer condómino que as não tenha aprovado, no prazo de 60 dias a contar das
mesmas. Este artigo prevê vários prazos, sendo o de 60 dias para impugnação perante o tribunal
o mais importante. Já o nº2 dita que a assembleia pode revogar as deliberações inválidas ou ineficazes.
No caso de ser convocada uma assembleia extraordinária para um qualquer fim em causa, o prazo
para requerer a anulação é menor, de 20 dias a contar da mesma (nº4).
A maior crítica feita a este regime é o facto de a lei não prever o vício da nulidade para casos de maior
gravidade: segundo estas normas, qualquer ilícito produz anulabilidade – algo que joga mal com
a teoria geral do negócio jurídico, que estipula que, para estes, a regra geral é a nulidade do artigo
294º CC, dado as deliberações serem enquadradas na figura do negócio jurídico. Ainda assim, é
frequente a distinção entre as invalidades absolutas – geradas pela violação de normas jurídicas
injuntivas – e as invalidades relativas – geradas pela violação de normas jurídicas supletivas ou regras
contratuais ou estatutárias –, sendo que as primeiras seriam nulas e as segundas anuláveis.
Assim, apesar de este artigo apenas referir a anulabilidade como consequência, é a opinião comum
que se deve considerar como nulas as deliberações que violem normas injuntivas. O regime dos
direitos reais é marcado pela oponibilidade erga omnes, pelo que é, em grande parte, um regime
injuntivo: ou seja, porque a delimitação dos direitos reais convoca não só o interesse do titular do
mesmo, mas também o confronto desse interesse com o dos titulares de outros direitos reais e todos
os terceiros em geral. Ora, para Caetano Nunes, assim como a doutrina mais atual, mais importante
do que a letra da lei serão os princípios subjacentes às normas jurídicas, e a interpretação sistemática
que deve ser feita dos preceitos jurídicos. Consequentemente, deve prevalecer, contra o
“esquecimento” do legislador, a proteção normal das normas injuntivas – nomeadamente, a nulidade
cominada pelo artigo 294º CC, tendo em conta o seu regime jurídico consagrado no artigo 286º CC
–, visto que estas normas injuntivas procuram, também, tutelar o interesse público, devendo tal
natureza ser protegida. Concluindo, todas as deliberações contrárias à lei devem ser nulas.
➔ Denotar que, devido ao regime ser tão lacunar, poderá ser aplicado, de forma supletiva e
necessária, o regime das sociedades anónimas (e não o regime de deliberação das associações,
dado que esse também é bastante lacunar).
O Registo Predial
Evolução do registo predial
Os direitos reais têm a característica da oponibilidade erga omnes, sendo que essa
característica reclama publicidade: ou seja, é por serem oponíveis perante terceiros que devem ser
publicitados, precisamente para que tais terceiros saibam que estes existam, e ajam com isso em
mente.
Tradicionalmente, o mecanismo tradicional de publicidade dos direitos reais é a posse. O
regime predial, enquanto alternativa ou como sistema de publicidade dos direitos reais, é, assim, na
história da humanidade, relativamente recente. Este está, sobretudo, associado à publicidade da
hipoteca: a hipoteca é uma garantia das obrigações, sendo principalmente usada pelos profissionais
do financiamento (os bancos), sendo que a atividade bancária sempre surgiu associada à existência
de garantias. Ora, a necessidade de melhorar os meios de tornar as hipotecas conhecidas levou à
instituição deste registo: se se regista a existência de uma hipoteca, regista-se a propriedade, no
sentido de se ficar a saber quem é o proprietário daquela coisa.
A partir deste registo específico sobre imóveis (apenas associado à hipoteca), passou-se, então, para
um registo geral de direitos sobre imóveis. Por um lado, este trouxe vantagens para os credores, visto
que estes sabem se o devedor tem ou não garantia, escolhendo se querem ou não emprestar, e com
maior ou menor taxa de juros. Por outro lado, este trouxe vantagens para os compradores, visto que,
estando a comprar uma coisa registada, têm mais segurança no negócio jurídico em questão.
O registo predial visa substituir, então, a publicidade espontânea dos direitos reais sobre
prédios, nomeadamente a inerente à posse, por uma publicidade organizada, disciplinada.
Em Portugal, a primeira lei hipotecária data de 1836, sendo depois criado o Código de Registo
Predial. Continuam, no entanto, a existir vários registos públicos de imóveis além do registo predial
propriamente dito – nomeadamente, as matrizes prediais (registo feito pela autoridade tributária) e
o cadastro predial (registo feito com finalidades de ordenamento do território). Como já se viu, estes
vários registos não abrangem todos os prédios e coexistem descoordenados – pelo que o objetivo
político será o de unificação destes três registos: isto porque, assim que o registo de direitos privados
e do fisco forem harmonizados com o da cartografia, passará a ser muito mais fiável, com uma
descrição dos prédios que, realmente, se traduzem na realidade (quer quanto à área do terreno, quer
quanto às suas extremas).
➔ Efeito transmissivo ou constitutivo: O registo do facto poderá ser gerador, por ele próprio e
exclusivamente, de transmissão (ou constituição) dos direitos e factos integrantes de um processo
de transmissão de direitos – ou seja, só se obtém o efeito jurídico-real se se proceder à inscrição
do facto em registo, algo típico do sistema do modo.
Oficiosidade:
A oficiosidade contrapõe-se ao princípio da instância, significando, aqui, que as as entidades
que exercem funções públicas promovem o registo, independentemente da iniciativa dos
particulares. No entanto, denota-se que os sujeitos também têm legitimidade para pedir o registo,
nos termos do artigo 36º do CRPredial.
Tipicidade:
A tipicidade dos factos implica que existe um elenco taxativo, fechado, dos factos – e não
dos direitos reais – sujeitos a registo, em função dos seus efeitos jurídico-reais, nomeadamente
descrito no artigo 2º, nº1 do CRPredial. Para além dos factos que incluem a transmissão, também
serão objeto de registo as ações do artigo 3º, nº1 do CRPredial, incluindo a impugnação pauliana, os
procedimentos cautelares, etc.
Legalidade:
Segundo este princípio, o conservador do registo predial tem o poder-dever de recusar os
pedidos de registo que não se conformem com a lei (artigos 68º e ss. CRPredial). Existe, assim, um
controlo da legalidade (formal e substancial) pelo conservador, que abrange a validade do registo, o
que implica que este olhe para os documentos apresentados, para a legitimidade dos interessados,
para a regularidade formal dos títulos e para a validade dos atos neles contidos – do que lhe é pedido,
o conservador só deve registar aquilo que é conforme com a lei.
A propósito disto, distingue-se conceptualmente o sistema de registo por mera transcrição
– em que a conservatória recebe a informação de forma acrítica, colocando-a na base de dados sem
proceder a qualquer controlo em relação à legalidade formal e substancial – do sistema de registo de
controlo ou homologação, que é o sistema que vigora em Portugal. No entanto, mesmo aqui, existem
casos de registo sem qualificação, nomeadamente feitos no domínio do registo comercial, por
depósito (artigo 53º-A do respetivo Código).
o Ou seja, se se seguisse o princípio do trato sucessivo, seria necessário que, primeiro, houvesse
tal inscrição, para que depois pudesse haver penhora pelo banco – por isso, aqui, abre-se uma
exceção ao mesmo: a conservadora vai aceitar uma penhora a favor do banco credor, tendo
como devedor C, ainda que a transmissão de B para C não tenha, ainda, sido registada.
Princípio da prioridade:
Segundo este, o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que lhe seguirem
relativamente aos mesmos bens, de acordo com a ordem da data da inscrição dos registos. Dito de
outra forma, se vários direitos registados são substancialmente incompatíveis, prevalece, regra geral,
aquele cujo registo foi realizado em primeiro lugar (artigo 6°, n°1 CRPredial). Por exemplo, se A
vende primeiro a B, e depois a C, o mesmo prédio, mas C faz primeiro o registo de aquisição, será
este, então, que prevalece como proprietário desse prédio. Na mesma lógica, se A vende um prédio a
B e, após essa venda, mas antes do registo de aquisição por parte de B, o prédio é penhorado (e a
penhora registada) no âmbito de uma execução movida por C contra A, a penhora é oponível a B
enquanto “não-proprietário” e a venda executiva do prédio terá, eficazmente, lugar.
Ainda a propósito da prioridade como princípio registral, refere-se a figura do registo
provisório, mencionada no n°3 do mesmo artigo 6°, que implica que haja, antes do negócio jurídico
ser efetivado (por exemplo, através da escritura pública, no caso de um imóvel), uma comunicação à
conservatória dessa intenção de realizar tal contrato. Ou seja, o registo provisório é feito antes da
inscrição registral “oficial”, feita depois quando já se tem o título do facto jurídico.
Como foi visto anteriormente, os registos podem ser provisórios por força de dúvidas que levantem
ao conservador, por força da sua natureza ou por ambas as razões. Por isso, os bancos exigem sempre
que se faça este registo provisório, de forma a assegurar que nada atrapalha o negócio jurídico – isto,
porque o registo definitivo, na perspetiva da propriedade, vai retroagir ao momento do registo
provisório. Ou seja, o registo provisório retroage a proteção dada pelo registo, no sentido em que, se
este não existir, só a partir do momento em que existe o registo definitivo é que existe proteção legal.
Tais registos provisórios permitem, assim, aos adquirentes e aos concedentes de crédito hipotecário
ter a certeza de que os seus direitos não serão afetados por factos ocorridos após as suas decisões de
adquirir ou de conceder crédito, e antes da data da requisição dos registos definitivos.
No entanto, tendo em conta que as aquisições e as hipotecas não podem resultar de meros registos
(implicando negócios jurídicos eficazes), levanta-se a dúvida de se, de facto, em caso de o registo
provisório ser realizado em momento anterior ao do negócio transmissivo ou constitutivo (como é o
mais frequente), a sua conversão em registo definitivo faz que este retroaja à data do registo
provisório. Por outras palavras: a prioridade garantida pelo registo provisório pode referir-se a
um momento anterior ao do negócio transmissivo ou constitutivo que estiver em causa?
➔ Como se viu, a razão de ser do registo provisório apontaria para que sim; no entanto, a regra do
artigo 408, n°1 CC vai em sentido contrário. Devido a isto, a doutrina e a jurisprudência têm
assinalado a tais registos provisórios a mera finalidade de assegurar a prioridade entre atos
incompatíveis praticados pelo transmitente – algo verificado no acórdão do STJ de 19.3.2019: “O
registo provisório de aquisição [art. 92.°, n.° 1, alínea g) do CRPredial] não pode ter por
finalidade transmudar um futuro direito (o direito do futuro adquirente) num direito atual do
futuro adquirente, como se o direito já tivesse sido transmitido, com a consequência de tornar
inadmissível o exercício de direitos de terceiros credores sobre o futuro alienante (através, por
exemplo, de um arresto). O que esse registo visa é tão-somente, assegurar a inoponibilidade
(ineficácia) no confronto do futuro adquirente dos atos incompatíveis praticados, entretanto pelo
futuro transmitente sobre a coisa. Neste caso importa convocar o disposto no art. 6.° do
CRPredial, na sua devida interpretação, de sorte que o direito que foi inscrito em primeiro lugar
(o direito do futuro adquirente) prevalece sobre os direitos (que se lhe sigam) constituídos pelo
futuro alienante a favor de terceiros”. Assim, para a jurisprudência maioritária, os efeitos do
registo provisório retroagem apenas até ao negócio jurídico constitutivo.
➔ No entanto, para Caetano Nunes, a sequência mais frequente será o modo (registo) provisório, o
título e, depois, o modo definitivo. Assim, se não houver registo provisório, só a partir do
momento em que se procede ao modo definitivo é que se goza da proteção legal fornecida pelo
registo – mas se se tiver realizado o registo provisório, tais efeitos retroagem ao mesmo. Aliás,
para este, é claro que a oponibilidade erga omnes retroage ao momento do registo provisório,
podendo surgir, inclusive, antes do título. Isto, porque a grande utilidade do registo provisório é,
precisamente, o facto de os efeitos retroagirem tão cedo.
Efeitos do registo
Efeito enunciativo ou declarativo:
O registo tem um efeito enunciativo ou declarativo, que consiste na mera publicidade
associada ao mesmo. Isto acaba por não ser, propriamente, um efeito jurídico, já que a propriedade é
um efeito sociológico – sendo isto independente de qualquer efeito jurídico específico. De qualquer
das formas, os registos dão conhecimento à comunidade dos factos que deles são objeto,
conhecimento esse que é relevante para os mais variados fins. Além disso, a um sistema registral
cujos efeitos sejam apenas enunciativos pode chamar-se “registo declarativo”.
➔ Efeitos obrigacionais
(obrigação de entrega e
➔ Efeitos obrigacionais
CONTRATO DE CV de pagamento)
(obrigação de entrega e de
(TÍTULO)
➔ Efeito real – domínio pagamento)
(transmissão da
propriedade)
➔ Pode-se, ainda, argumentar que este efeito constitutivo (que não surge como regra geral, porque
não existe, em Portugal, o sistema do modo de forma abrangente), também se aplica às hipóteses
de aquisição tabular (artigos 5º, nº1 e 17º, nº2 CRPredial). Esta passa da ideia do registo
enquanto proteção das transações económicas, o que implica que o direito de propriedade possa
manter-se por aquisição ope legis com fundamento no registo. Por exemplo, existe um problema
no registo R1 da compra e venda entre A e B, que gera a nulidade desse contrato – no entanto, já
existiu outra compra e venda entre B e C, com o registo R2: ora, de modo a proteger o terceiro C
de boa-fé, mantém-se a propriedade deste.
O sentido exato da regra deste artigo 5º depende, naturalmente, do conceito que se tem de
terceiros. Se por terceiros se entendessem todos à exceção dos intervenientes no facto sujeito a
registo, antes do mesmo, só se produziriam efeitos entre os neles intervenientes – o que seria quase
equivalente a atribuir um efeito constitutivo (ou transmissivo) ao registo.
Assim, o conceito de terceiros adotado pela doutrina e pela jurisprudência restringe, de há muito, o
círculo de quem está em causa: entende-se que terceiros não são todos os não intervenientes no facto
relevante, mas apenas os nele interessados. Há que enfatizar que, mesmo dentro de tal entendimento,
a própria definição de quem é interessado tem sido polémica, havendo conceções amplas e restritas
do conceito em causa. No entanto, desde 1999, é a própria lei (artigo 5º, nº4 CRPredial) que tenta
esclarecer o conceito de terceiros aqui relevante, fazendo-o de acordo com uma interpretação
restritiva, expressa nas palavras “terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido
de um autor comum direitos incompatíveis entre si”.
Assim, em geral, a eficácia – seja entre as partes, seja nas relações das partes com terceiros, bem
como, ainda, nas relações entre terceiros – dos factos sujeitos a registo não depende da efetuação
do mesmo; sendo que se excetuam os casos em que duas pessoas adquiram, de outra, direitos
incompatíveis entre si, vindo prevalecer o direito inscrito em primeiro lugar.
Efeito consolidativo:
Alguma doutrina (Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro) faz menção ao efeito
consolidativo: embora todos os efeitos jurídico-reais surjam logo num primeiro momento, é com o
registo que o direito real é consolidado. Ou seja, será com o registo que o adquirente de um direito
real fica protegido contra a possibilidade de outra pessoa adquirir, do mesmo alienante, um direito
incompatível.
No entanto, de acordo com Caetano Nunes, isto acaba por não significar nada. Além de já
existir oponibilidade perante terceiros antes do registo, a própria ideia de consolidação é abstrata –
não se sabendo mais o que significa “consolidar um direito real”. Aliás, mesmo nas situações em que
a oponibilidade só surge com o modo, não faz sentido dizer, que o direito real surge antes do mesmo.
Efeito de legitimação:
O efeito de legitimação deriva do artigo 9º CRPredial e, na sua essência, está intimamente
relacionado com o princípio do trato sucessivo: a transmissão de direitos reais ou a constituição
de encargos depende da prévia inscrição dos prédios – objetos da transmissão ou constituição de
encargos – a favor do transmitente ou onerante. Do ponto de vista prático, isto significa que só se
poderá lavrar uma escritura pública se a situação do prédio em causa estiver regularizada no registo
predial – nomeadamente, só se consegue fazer a escritura pública se se mostrar ao notário a inscrição
no registo predial, através de uma certidão da conservatória. Consequentemente, o registo predial
terá, em geral, um efeito de legitimação no direito português vigente.
Por exemplo, para que B possa alienar o seu prédio a C, este tem de estar previamente inscrito no
registo predial a favor de B – caso contrário, o notário decidirá que este não tem legitimidade para
alienar a C, não lavrando a escritura de compra e venda a favor do mesmo.
➔ Os contratos reais são, também, uma exceção ao princípio do título, visto que estes só se
formalizam com a entrega da coisa (ex: mútuo e o penhor) – ou seja, só há contrato quando, para
além das vontades, existe a traditio.
Por fim, o artigo 1301º CC visa conferir uma proteção significativa ao comprador de coisa alheia
sempre que o vendedor seja comerciante. Por exemplo, A compra algo a um comerciante que,
depois, vende a B – ora, se o contrato entre A e o comerciante é nulo e, consequentemente, o contrato
entre A e B é nulo, para quem fica a propriedade? Neste caso, e nos termos do artigo 408º CC, a
propriedade volta para A – sendo que o artigo 1301º apenas discute o tema da indemnização nestes
casos. Esta é, então, uma regra especial: A, ao destruir todo o regime, poderá ter de contribuir para a
indemnização de B.
A PROPRIEDADE FIDUCIÁRIA
Introdução
A propriedade fiduciária é uma figura que não se qualifica como um direito real de
propriedade: esta é meramente doutrinária, sem qualquer carácter real e sem oponibilidade erga
omnes. Consequentemente, por não ter acolhimento legal, poderá haver flutuação doutrinária sobre a
sua definição e limites.
Como foi dito, a lei portuguesa não se refere à propriedade fiduciária – o que significa que,
por força dos princípios de legalidade e da tipicidade que norteiam os direitos reais, a propriedade
fiduciária não existe enquanto tal. Há, porém, uma discussão doutrinária muito relevante sobre
este tema, relevante no contexto da advocacia do mundo dos negócios, inspirando até alguns regimes
legais pontuais como o regime do penhor financeiro – apesar de ser uma figura cujos contornos são,
mais uma vez, meramente obrigacionais (nomeadamente, direitos de crédito), e nunca reais.
Fidúcia germânica
Aqui, existe uma figura chamada treuihand: casos em que uma pessoa recebia a propriedade
de outrem, ficando, no entanto, esta propriedade limitada pela necessidade de proteger o interesse do
fidunciante. Esta figura germânica mediável desapareceu, tendo sido recuperada no período de
renascimento do direito alemão.
Ora, não estando previsto na lei um direito real semelhante à treuihand, o que poderá
acontecer é que as partes estipulem a forma como a propriedade terá de ser transferida – sem, no
entanto, o direito de propriedade que a parte ganha ficar limitado. Assim, estas estipulações terão um
carácter meramente obrigacional, mas não real: vigoram entre as partes, mas não perante terceiros.
Por outras palavras, o credor ou amico ficam proprietários plenos da propriedade transmitida perante
terceiros, existindo, depois, estipulações e vínculos obrigacionais que valem para as partes do
contrato; mas não para terceiros. Assim, existe apenas uma obrigação, em sentido técnico-jurídico,
de atuar em interesse de outrem.
Trust anglo-americano
Por fim, analisa-se a figura do trust anglo-americano, formado entre o settler, que é o
fiduciante – quem atribui a propriedade – e o trustee, que é o fiduciário, e criado para vários efeitos
– como, por exemplo, para efeitos de proteção do credor. Trata-se, assim, da situação em que a
propriedade é atribuída a alguém (trustee) que está sujeito à obrigação de prosseguir não o seu
interesse, mas o interesse de um terceiro (beneficiary) – sendo que este pode, ou não, coincidir com
o settler. Toda a relação terá por base uma relação de confiança: a fidúcia. A propriedade transmitida,
por usa vez, é considerado um património autónomo do trustee.
➔ Esta figura teve origem nas Cruzadas: os lordes ingleses que partiam para as cruzadas deixavam
as propriedades nas mãos do fiduciário, que devia gerir essa propriedade nos seus interesses – e,
depois, devolver a mesma, aos lordes; ou aos filhos, caso estes não voltassem da guerra.
O trust é muito comum no universo anglo-americano, sendo que os académicos de direito
comparado costumam apontá-lo como uma figura sui generis, que não tem comparação no sistema
de Civil Law. Tem, no entanto, uma grande aplicação no mundo dos negócios, no sentido em que
está associada a paraísos fiscais: o trust, estando associado a uma gestão de património alheio, faz
lembrar o fenómeno cada vez mais recorrente de pessoas fixarem empresas de gestão de património
alheio por benefícios fiscais, gerindo, assim, fortunas para que estas não pagem mais-valias ao Estado.
Características Comuns
Quanto à atribuição da propriedade, denota-se que a propriedade fiduciária atribui direitos
e poderes reais. No entanto, já quanto às limitações dos poderes do fiduciário, no âmbito das suas
relações com o beneficiário (fiduciante ou terceiro), denota-se que este está obrigado, perante o
beneficiário, a não alienar os bens em causa e a geri-los com diligência, etc.
Além disso, critica-se o facto de existir um excesso de meios face aos fins: o credor, apesar
de ter recebido a propriedade só para ser pago pela sua gestão, torna-se, na realidade, em verdadeiro
proprietário. Ora, apesar de só dever atuar no interesse de quem lhe confiou a propriedade, ele poderá,
de facto, fazer tudo o que a propriedade lhe permite – o que significa que existe um risco de desvio
ou abuso de poder. Dito de outra forma, ao se atribuir ao fiduciário um direito de propriedade absoluto
(e não limitado, do ponto de vista dos direitos reais), deixa-se o fiduciante desprotegido, do ponto de
vista dos direitos reais.
Já do ponto de vista do direito das obrigações, existe uma relação obrigacional, em que o fiduciante
tem o dever fiduciário de lealdade (máxima lealdade) perante o fiduciário. Existe, assim, uma
relação de confiança especialíssima: os deveres de lealdade costumam ser enquadrados na regra de
conduta da boa-fé, nos termos do artigo 762º CC – sendo que há, inclusive, quem defenda que esta
lealdade fiduciária (fidúcia) é, ainda, uma coisa distinta, muito mais forte do que ser apenas boa-fé.
NOTA: A determinada altura, chegou-se à conclusão de que havia uma analogia entre os
administradores das sociedades comerciais, e a figura de trust. Apesar de a empresa pertencer aos
seus administradores, a verdade é que estes também gerem propriedade alheia, tendo o poder para
fazer o que quiserem à sua empresa e aos seus ativos. No entanto, aplicar a estrutura do trust por
analogia implica estender a aplicação do conceito de direito das obrigações de dever de fieldade
fiduciária – sendo necessário distinguir que estas relações comerciais não são acompanhadas pela
aquisição da propriedade; existindo, no entanto, parecenças quanto ao excesso de meios face aos fins.
DIREITO DO USUFRUTO
O artigo 1439º CC define usufruto como o direito de gozar temporariamente e plenamente
de uma coisa ou direito, sem alterar a sua forma ou substância.
Características Essenciais
Importa, antes de mais, evidenciar que o usufruto, enquanto direito real menor, pressupõe a
coexistência com o direito de propriedade: isto é, não existe direito de usufruto sem existir direito
de propriedade – caso aconteça, a situação é denominada de “nua propriedade”, visto que o usufruto
implica direitos e faculdades que, não existindo, contraem o direito de propriedade de tal forma, que
se considera que o proprietário está nu. Consequentemente, este direito de usufruto, enquanto direito
autónomo, terá de ser alheio: a lei estabelece que a reunião do usufruto e da propriedade na mesma
pessoa determina a extinção do usufruto (artigo 1476º, n°1, alínea b) CC).
A nível dos objetos possíveis, em rigor, diz-se que o usufruto incide sobre a propriedade,
limitando-a – na terminologia tradicional, assim como na prática social, diz-se que o usufruto incide
sobre a coisa corpórea, e não sobre a propriedade: por exemplo, A tem a propriedade de um imóvel
e, em conjunto com isso, o direito menor do usufruto do mesmo. No entanto, também será possível
que A tenha, apenas, o direito de superfície, transmitindo o direito de usufruto – ora, neste caso, o
usufruto não incide sobre a coisa, mas sim sobre um direito superficiário.
Com esta maior estratificação do direito, o usufruto poderá, então, coexistir com o direito de
superfície, que é o direito real menor máximo: o superficiário fica com todo o direito da superfície,
sendo que o proprietário fica, apenas, com o que está debaixo do solo, nomeadamente quase nada.
Assim sendo, nesta situação, existem, pelo menos, três direitos reais sobre o mesmo prédio: 1) o do
fundeiro, 2) o do superficiário, e 3) o do usufrutuário da superfície. Aqui, o usufruto surge não como
um direito real menor que onera o direito de propriedade; mas, sim, como um direito real menor
que onera o direito de superfície – que, por sua vez, onera o direito de propriedade. Nestes casos,
as faculdades do usufrutuário serão essencialmente as mesmas, sendo que o direito incidirá sobre o
que está construído à superfície: tal resulta dos princípios relativos ao usufruto e ao direito de
superfície; e, ainda, da referência que o artigo 1480º, n°2 CC faz à extinção do direito de superfície.
➔ Quanto a isto, Caetano Nunes considera que os direitos reais incidem sobre coisas corpóreas,
dado haver um poder direto sobre as mesmas; sendo que depois, quanto à perspetiva de saber o
que limitam, é que se considera que estes limitam direitos.
o No entanto, denota-se que a lei também prevê a possibilidade de usufruto sobre direitos que
não incidam sobre uma coisa corpórea – por exemplo, usufruto sobre créditos.
Quanto ao seu conteúdo, este é essencialmente um conteúdo de gozo e fruição, mas não de
disposição, como resulta do artigo 1446º CC: o usufrutuário tem, pois, tendencialmente, os poderes
que cabem no direito de propriedade – salvo o poder de disposição do objeto sobre que incide.
Há, ainda, que ter em conta o artigo 1439º CC, segundo o qual o usufrutuário também não tem direito
a alterar a forma ou a substância da coisa. Assim, admitem-se algumas transformações por parte
do mesmo – ideia retirada do artigo 1449º, segundo o qual o direito de usufruto abrange as coisas
acrescidas a todos os direitos inerentes à coisa usufruída, o que suporta algum poder de transformação
–, desde que as mesmas não alteram nem a forma, nem a substância mencionada. Além disso, o artigo
1452º CC estabelece que o usufrutuário pode usar a coisa até ao ponto de ela se deteriorar, mas não
pode fazer uso diverso daquele que lhe é próprio. Por fim, em caso de perda parcial da coisa, o direito
de usufruto continua na parte restante (artigo 1478º CC).
➔ Concluindo, os últimos artigos elencados confirmam a possibilidade de transformação da coisa;
mas sempre com o limite dos artigos 1439º e 1449º CC, que proíbem a alteração da forma e
substância da coisa (ex: será proibido ao usufrutuário transformar um prédio rústico em urbano).
Denota-se, ainda, que o usufruto é um direito temporário: ao contrário do direito de
propriedade – que, por regra, é perpétuo –, o usufruto tem caráter temporário. Assim, quando o
usufruto é da titularidade de uma pessoa singular, o seu limite é a vida desse usufrutuário; já caso de
usufruto constituído a favor de duas ou mais pessoas singulares, o mesmo não pode exceder o termo
de vida do que mais viver. Por fim, no caso de o titular de usufrutos ser uma pessoa coletiva, o limite
legal é de 30 anos (artigo 1443º CC).
A ratio legis deste carácter temporário será evitar o fracionamento dos direitos reais – ou seja,
evitar as situações de divisão de propriedade, enquanto estatuto jurídico-real. Dito de outra forma, a
limitação temporal do usufruto visa impedir a perpetuação da divisão dos poderes sobre o seu objeto,
e as respetivas consequências potenciais no que toca à sua conservação e ao seu desenvolvimento:
isto, porque quando há muitos direitos reais sobre uma coisa, o aproveitamento económico da mesma
pode ser menos eficaz – por exemplo, se existir um único proprietário, existe mais liquidez e,
consequentemente, a coisa poderá mais facilmente ser utilizada para aproveitamento económico,
criado riqueza para todos. São, então, estas preocupações de desenvolvimento económico e bem-estar
que estão na origem do carácter temporário de direitos reais menores.
Além disso, o artigo 1441º CC fala sobre a possibilidade de constituir não apenas um usufruto, mas
vários usufrutos, que poderão ser usufrutos simultâneos – onde existe uma contitularidade de
situações de usufruto no mesmo período temporal (ex: avós doam a casa ao neto, mas reservam para
si o direito de lá ficarem até ambos morrerem) – ou usufrutos sucessivos – no sentido de existir
primeiro um e, depois, quanto este acaba, surge outro (ex: J tem o usufruto de uma casa durante um
certo tempo e, passado esse período de arrendamento, será B que passa a ter o usufruto da mesma).
➔ Só pode ser beneficiário do usufruto quem já seja vivo ao tempo em que o direito do primeiro
beneficiário se tome efetivo – o que limita a duração máxima do direito (artigo 1441º CC).
Transmissibilidade Limitada
A transmissão do usufruto terá de ser conjugada com as regras sobre o carácter temporário –
por exemplo, imagine-se que J tem um direito de usufruto vitalício, e decide trespassá-lo para B.
Acontece que, seguindo a regra do artigo 1443º CC, o direito de usufruto extingue-se com a morte
de quem faz o trespasse – ou seja, apesar de J passar o direito para B, o usufruto extingue-se, na
mesma, com a morte de J.
Conclui-se, assim, que o usufruto não se transmite mortis causa, nos termos do artigo 1476º, nº1,
alínea a), no sentido em que se extingue por morte do usufrutuário (primitivo) – excetuando-se, aqui,
os casos em que se extingue com o decurso de prazo certo; ou, ainda com decurso do prazo certo E
pela morte do primitivo usufrutuário, nos casos de predecessor do adquirente. O princípio da
intransmissibilidade mortis causa do usufruto limita a sua transmissibilidade do ponto de vista
económico, visto que os potenciais adquirentes, ao avaliarem o direito em causa, terão de introduzir
como fator a ter em conta o risco de vida do usufrutuário (primitivo).
No entanto, é possível existir transmissão inter vivos do direito do usufruto – algo que acaba
por ter pouca consistência económica, pelo que é pouco atrativa. De qualquer das formas, nos termos
do artigo 1444º, o usufrutuário pode trespassar, definitiva ou temporariamente, o direito de usufruto,
assim como o pode onerar. Porém, aquele a quem é trespassado o direito (trespassário) continua a ter
como limite temporal do seu direito a vida do trespassante.
O usufruto é um direito com transmissibilidade limitada, tanto do ponto de vista jurídico
(tendencialmente, não se transmite mortis causa), como do ponto de vista económico.
Obrigações do usufrutuário
O usufrutuário tem o dever de suportar os impostos da coisa que usufrui – nomeadamente,
o IMI (artigo 1474º CC). Além disso, este tem, também, o dever de restituir a coisa (artigo 1483º
CC), exceto os casos de usufruto vitalício, que se extinguem com a morte do usufrutuário.
Se tal lhe for exigido pelo “nu” proprietário, o usufrutuário terá o dever de prestar caução
para garantia quer da restituição dos bens, quer de eventuais deveres de indemnizar por danos
provocados aos mesmos (artigo 1468º, alínea b) CC). Associado a isto, o usufrutuário tem a obrigação
de relacionar os bens: ou seja, no momento da constituição, o usufrutuário terá de elencar os bens e
as coisas que o compõe.
Além disso, o usufrutuário tem o dever de diligência (artigo 1446º CC): ou seja, o dever de
fazer bom uso da coisa, respeitando o destino económico segundo o critério da pessoa média – que
como costuma ser o que um bom familiar faria, já que este direito de usufruto costuma aparecer em
relações familiares.
O incumprimento desta obrigação é sancionado no artigo 1482º CC, com a regra de que, se o mau
uso se tornar consideravelmente prejudicial ao proprietário, este pode exigir que os bens lhe sejam
entregues – ficando, aqui, o proprietário obrigado a pagar ao usufrutuário o eventual rendimento dos
bens –; ou que sejam aplicadas as medidas referidas para o caso de incumprimento da obrigação de
prestar caução.
Por outro lado, quando suceda que, em virtude de má administração do usufrutuário, se tornem
necessárias reparações extraordinárias, ficam as mesmas a seu cargo, ao contrário do que, em
princípio, sucederia (artigo 1473, n°1, segunda parte CC).
Por fim, o usufrutuário tem a obrigação de assegurar as despesas com reparações
ordinárias e com a administração (artigo 1472º CC) – existindo a possibilidade de renúncia
liberatória (nº3): ou seja, é possível aos titulares de direitos reais menores se eximirem aos seus
deveres e obrigações propter rem, através de uma denúncia que extingue o seu direito real menor. No
entanto, torna-se claro que o usufrutuário apenas se pode eximir das obrigações ainda não
constituídas; mas não das que tenham nascido antes dessa renúncia.
NOTA: Estes são apenas direitos e obrigações existentes no confronto com o proprietário.
Os Principais Casos
No que respeita à fonte negocial, os direitos de uso e habitação não são – ao contrário do
usufruto – de ocorrência vulgar. Em qualquer caso, o direito de habitação será o de constituição mais
frequente, por razões provavelmente ligadas à sua impenhorabilidade (decorrente da sua
inegociabilidade, atrás apontada).
O DIREITO DE SUPERFÍCIE
Origem e Âmbito Social de Aplicação
São frequentes, historicamente, as situações de dissociação do solo e do que está à superfície
(construções ou plantações), sendo que cada um pertence a pessoas diferentes: antigamente, a
economia era familiar, baseada na agricultura e pecuária – e, portanto, a atividade económica era o
que se encontrava à superfície. Aliás, figuras de dissociação entre a propriedade do solo e da
superfície já existiam no Direito Romano, sendo possível convencionar a existência de dois titulares:
o titular do solo, e o titular da superfície – afastando-se, assim, o princípio superfície cede ao solo,
segundo o qual o proprietário do solo é, também, proprietário de tudo o que está acima na superfície.
Esta tendência foi aumentando ao longo da história, sendo a figura mais relevante a da
enfiteuse: o senhor feudal teria o domínio do solo (direito de propriedade), ao passo que o enfiteuta
teria o domínio útil da superfície, trabalhando-a (direito de superfície) – consequentemente, quem
tinha o domínio útil tinha de pagar um foro ao titular do domínio direto do solo. Na enfiteuse, existia
transmissão mortis causa e inter vivos do domínio útil. No entanto, se se vir melhor, esta acabava por
ser não uma completa dissociação entre o solo e a superfície, mas sim algo muito próxima.
A CRP aboliu a enfiteuse, associada ao feudalismo. No entanto, o CC de 1966 recuperou uma hipótese
de dissociação entre a propriedade do solo e da superfície: tudo o que que está no subsolo será domínio
público; além de que existe propriedade do solo que pertence às Câmaras Municipais, que constituem
um direito de superfície e, depois, o alienam aos consumidores no mercado habitacional – políticas
modernas de urbanismo.
No entanto, como está estabelecido, o direito de superfície não tem nada a ver com a
enfiteuse: é uma inovação no plano legislativo, não tendo uma tradição histórica clássica. Esta figura
é, assim, um bom instrumento das políticas urbanísticas e de ordenamento do território em geral,
possibilitando a atribuição temporária do controlo dos solos. Não se pode, pois, estranhar, que várias
entidades públicas (em sentido lato) tenham, sobretudo nas últimas décadas, recorrido à constituição
de direitos de superfície temporários sobre solos seus, em vez de os venderem.
NOTA: O proprietário do solo é o fundeiro; e o titular do direito de superfície é o superficiário.
Contornos da Figura no CC
Faculdade de construir e de manter
Existem duas faculdades essenciais que se podem distinguir no artigo 1524º CC: a faculdade
de construir e a faculdade de manter. Feita a construção ou manutenção (sendo o aspeto mais
relevante a construção), o objeto do direito será a coisa corpórea construída – o edifício, não o solo.
Ainda se pode construir mais para cima (segundo regras de direito administrativo); mas o conteúdo
deste direito de superfície incide sobre o edifício já construído.
Ou seja, enquanto não for feita a construção, o objeto do conteúdo de direito está na faculdade
de construir; depois da construção, o objeto do direito está no edifício, na coisa corpórea.
Logo, do ponto de vista substancial, a partir do momento em que o edifício já existe, a
faculdade de o manter será extremamente parecida com o conteúdo do direito de propriedade; ao
passo que, quando este ainda não existe, a faculdade de construir será mais parecida a um direito de
aquisição, do que um direito real de gozo – isto, dado que estes últimos se traduzem na retirada da
coisa através do uso e fruição; enquanto que o que se tem aqui é uma perspetiva de ainda tentar
adquirir, e não a de usar.
Objetos possíveis
O superficiário pode construir obras ou plantações, nos termos do artigo 1524º CC – sendo
que, do ponto de vista sociológico, a hipótese de fazer plantações tem um conteúdo menos forte.
Além disso, o direito de superfície pode abranger mais solo do que o necessário à construção,
desde que esse solo tenha utilidade (embora não necessária) para o uso da obra.
Este direito pode, também, abranger obras tanto sobre o solo, como de baixo do solo (ex:
parques de estacionamento). Pode, ainda, incidir sobre edifício alheio – por exemplo, se o proprietário
tiver um edifício com 1 piso, o direito de superfície consiste na faculdade de elevar mais o prédio,
construindo mais pisos. A este último aspeto chama-se direito de sobreelevação – ou seja, direito de
construir obra acima de uma obra que já existe –, sendo que este não proporciona a constituição
automática de propriedade horizontal.
Consequências da extinção
Com a extinção do direito de superfície, o direito do fundeiro, pelo princípio da elasticidade,
retoma todo o seu conteúdo – mas o que é que isto, na prática, significa?
Se existir uma extinção por decurso do prazo, o fundeiro adquire, automaticamente, a obra
e as árvores (artigo 1538º CC) – aquisição essa que, contudo, dá ao superficiário direito a ser
indemnizado segundo as regras do enriquecimento sem causa, a menos que haja estipulação em
contrário (artigo 1538º, nº2 CC).
A extinção do direito de superfície por decurso do prazo implica, ainda, a extinção dos direitos reais
de gozo ou de garantia, constituídos pelo superficiário em benefício de terceiro (artigo 1539º, nº1
CC). Por exemplo, se este constituiu hipoteca, para um banco, que incide sobre o direito de superfície,
esse banco irá ver, com a extinção desse direito, a extinção da hipoteca – algo possível visto que o
banco já saberia, à partida, de que o direito de superfície tinha um prazo e, portanto, que a hipoteca
também teria.
De forma simétrica, o artigo 1540º CC estipula, também, que os direitos reais constituídos pelo
fundeiro sobre o solo se expandem à obra ou plantação – por exemplo, se o fundeiro tiver constituído,
sobre o solo, uma hipoteca, esta vai passar a incluir, também, as obras e as árvores que deixam de ser
do superficiário findo o prazo.
Se, no entanto, houver uma extinção do direito quando este era perpétuo; ou uma extinção
antes do decurso do prazo de um direito de superfície temporário, aplica-se o artigo 1541º CC. Por
força deste, os direitos reais constituídos separadamente sobre a superfície e o solo subsistem como
tal – assim se, por exemplo, o direito de superfície se extingue antes do decurso do prazo por reunião,
os direitos reais menores constituídos pelo superficiário vão permanecer na sua esfera jurídica até ao
decurso do tal prazo. Já em casos de extinção por expropriação por utilidade pública, ao fundeiro
e ao superficiário cabem partes da indemnização correspondente aos valores dos seus direitos, que
variam conforme se estava a aproximar, ou não, o fim do seu direito (artigo 1542º CC).
AS SERVIDÕES
Noção Geral
Uma definição possível de servidão predial será: direito, que o titular de um direito real
sobre um certo prédio (dito prédio dominante) tem, de utilizar um prédio alheio (dito prédio
serviente), para melhorar o aproveitamento do prédio dominante, no sentido de o usar e fruir melhor.
Consequentemente, existe, nas situações de servidão, três direitos: o 1) direito real de propriedade do
prédio dominante; o 2) direito real de propriedade do prédio serviente; e 3) o direito de servidão,
presente na esfera jurídica do proprietário do prédio dominante, que limita o direito do proprietário
do prédio serviente. Significa isto que o proprietário dominante irá ter dois direitos reais: um direito
de propriedade do seu prédio; e um direito de servidão predial do prédio serviente.
No entanto, o artigo 1543º CC acaba por não ver a servidão predial como um direito do
proprietário dominante, mas como um dever do proprietário serviente. Isto é criticado, visto que a
servidão predial não deve ser entendida como uma posição passiva do titular do prédio serviente;
mas, sim, como uma posição jurídica ativa, no sentido de ser um direito real do titular do prédio
dominante. Além disso, esta definição legal peca por acabar por coisificar a servidão: esta não deve
ser vista como um encargo imposto ao prédio serviente em favor do prédio dominante – os direitos e
deveres que daqui advém não são dos prédios, dado estes serem coisas; mas, sim, dos seus titulares.
Será por isso que a servidão tem natureza real: existe uma relação jurídica entre pessoas, titulares, o
que implica que sejam estes que tenham direitos e deveres.
Outra ideia importante que se retira deste artigo é que, para poder haver uma servidão predial, tem
de haver um aproveitamento do titular do prédio dominante – ou seja, o conteúdo da servidão
não pode consistir em utilidades que revertam, pessoalmente, para o dono do prédio dominante. Um
direito a utilizar um prédio alheio, sem a mediação da utilização de um outro prédio, não será uma
servidão predial, pelo que não terá caráter real (e, portanto, não será oponível erga omnes). Por
exemplo, se A estabelecer um acordo com B, segundo o qual pode usar a sua piscina, esta será uma
estipulação de carácter obrigacional e não real, visto que não há um aproveitamento do prédio de A,
mas, sim, do prédio de B, em proveito pessoal de A. Já se o exemplo implicasse A precisar de passar
águas pelo prédio de B para regar as suas plantas, então já se estará perante uma servidão predial.
Assim, deste de seja sempre utilizada para aproveitamento do prédio dominante, o conteúdo
da servidão predial pode ser muito amplo (artigo 1544º CC). Existe, aqui, um caso em que o
princípio da tipicidade dos direitos reais fica numa “zona cinzento” porque, apesar das servidões
prediais estarem no elenco de direitos reais, elas podem ter um conteúdo extremamente variado –
sendo, por isso, o princípio posto em causa materialmente. É verdade que há determinados subtipos
de servidões prediais que são descritos na lei – nomeadamente, servidões de passagem e servidões
relativas a águas –; mas esses subtipos não delimitam o que pode ser uma servidão predial na sua
totalidade. Conclui-se, então, que pode haver subtipos sociais ou mesmo atípicos, pela liberdade
de estabelecimento do conteúdo que o artigo 1554º CC dá.
➔ É importante não confundir as servidões prediais com as servidões administrativas. Estas, embora
também sejam são limitações ao direito de propriedade do prédio serviente, jogam mais com
propriedade pública, não visando o aproveitamento do prédio dominante – algo que se mostra
claro, por exemplo, nas servidões relativas a linhas elétricas ou gasodutos.
Características
As servidões são caracterizadas pela sua inseparabilidade (artigo 1545º CC): ou seja, salvas
as exceções previstas na lei, as servidões não podem ser separadas dos prédios a que pertencem – e,
consequentemente, a afetação das utilidades próprias da servidão a outros prédios importa, sempre, a
constituição de uma servidão nova e a extinção da antiga. Estes detalhes de inseparabilidade são,
então, um corolário da ideia que há um (melhor) aproveitamento do prédio dominante.
As exceções previstas na lei estão, principalmente, no artigo 1548º CC, segundo a qual os donos dos
prédios (serviente ou dominante) podem exigir a mudança do local da servidão, se a mudança lhes
for conveniente e não prejudicar os interesses do dono do outro prédio – sendo que, do ponto de vista
jurídico, a servidão continua a ser a mesma. Ora, isto entra claramente em confronto com a ideia de
inseparabilidade analisada, no sentido em que só se pode escolher uma de duas lógicas: ou 1) se
concebe a servidão em causa como desligada de um local concreto – não existindo, aí, nenhuma
separação –; ou 2) se concebe a mesma como ligada a um local concreto – pelo que, fazendo tal
mudança, existe lugar à constituição de uma servidão nova.
As servidões são, também, caracterizadas pela sua indivisibilidade (artigo 1546º CC),
segundo o qual, em qualquer dos dois fenómenos possíveis – divisão do prédio dominante e divisão
do prédio serviente –, prevalece a servidão predial.
Mais especificamente, no caso de divisão do prédio serviente, a servidão passará a onerar ambos os
prédios, no sentido de se ficar com dois prédios servientes – por exemplo, A tem um prédio que não
tem acesso à via pública, pelo que tem uma servidão para passar pelo prédio de B para o fazer; ora,
se B dividir o seu prédio com C, A poderá passar, agora, pelos dois prédios, ao abrigo da sua servidão.
Ou seja, se o prédio serviente for dividido, o titular de cada novo prédio fica sujeito à parte da servidão
que lhe cabia.
Já no caso de divisão do prédio dominante, a servidão passará a onerar ambos os prédios, no sentido
de se ficar com dois prédios dominantes – por exemplo, se A, que tinha o direito a atravessar no
prédio do B, dividir o seu prédio com D, este passará, também, a ser titular da servidão. Ou seja, se o
prédio dominante for dividido, o titular de cada prédio novo tem o direito de usar a servidão sem
alteração, nem mudança da mesma.
Tipos e Modalidades
Os subtipos da servidão predial são vários, existindo alguns regulados na lei, e outros subtipos
sociais. Tal não vem, no entanto, violar o princípio da tipicidade: os direitos reais são um elenco
fechado, no qual a servidão predial, enquanto figura, está inserida – depois, o seu conteúdo, através
dos subtipos, poderá ser alargado desta forma.
Assim, a nível legal, existem as servidões de passagem (artigos 1500º e ss. CC), que implicam a
passagem de pessoas a pé, de carro, etc. em, por exemplo, em benefício de prédio encravado. Existem,
ainda, as servidões de vistas, inserida no contexto da propriedade horizontal (artigo 1362º CC).
Por sua vez, as servidões de estilicídio (artigo 1365º CC) inserem-se nos problemas que a erosão
provocada pela queda da chuva traz. Ora, quando se constrói na extrema dos edifícios, deve-se deixar
um intervalo mínimo de 5 cm para que a chuva que cai no telhado da construção consiga escorrer no
prédio onde está inserida essa construção, e não ir para o do vizinho. Contudo, se durante vinte anos
esta regra não se cumprir, cria-se uma servidão de estilicídio, no sentido em que o proprietário fica
com o direito real de que essa erosão na propriedade do vizinho aconteça.
Por sim, existem, também, as servidões para aproveitamento de águas para gastos domésticos ou
fins agrícolas (artigo 1557º CC), de represas (artigo 1559º CC), de escoamento (artigo 1563º CC) e
de aquedutos – onde, invés de passarem pessoas, passa água através de canos (artigo 1561º CC).
Como exemplos de servidões não nomeadas no CC, referem-se as servidões de passagem de
condutas (ex: gasodutos) e cabos (ex: linhas telefónicas e elétricas), que não sejam consideradas
servidões administrativas.
Quanto às modalidades, as servidões podem ser aparentes – por sinais visíveis permanentes
que as revelem – ou não aparentes, que não se podem constituir por usucapião (artigo 1548º CC).
Além disso, as servidões podem ser legais – quando impostas por lei – ou voluntárias – quando
constituídas através da autonomia privada. Por fim, as servidões podem, também, ser positivas ou
negativas, dependendo se implicam uma conduta positiva ou uma mera abstenção.
Modos de Constituição
Relativamente às servidões legais, estas são impostas pela lei, mas não resultam
automaticamente da mesma: ou seja, o que a lei faz é atribuir um direito potestativo ao titular do
prédio dominante para, existindo uma recusa de colaboração do titular do prédio serviente, que a
servidão possa ser constituída por sentença judicial ou decisão administrativa (artigo 1547º, nº2 CC).
➔ Denota-se que existem compensações ou indemnizações pela constituição da servidão de
passagem (artigo 1554º CC), previstas para o dono do prédio serviente. Além disso, o proprietário
do prédio serviente pode, também, obstaculizar a constituição da servidão de passagem,
oferecendo-se para comprar o prédio dominante pelo seu justo valor – exceção de aquisição do
prédio entravado pelo titular do prédio serviente (artigo 1551º CC). Isto possibilita aos
proprietários, que sofreriam graves prejuízos com a constituição de uma servidão, evitá-la:
sujeitando os titulares dos prédios encravados, que invoquem o direito à servidão, a terem de os
alienar para si mesmos.
o Assim, o titular do prédio serviente está sujeito ao direito potestativo da constituição de uma
servidão de passagem – situação jurídica complexa passiva. Contudo, dentro desta situação
jurídica passiva, há uma situação jurídica ativa, nomeadamente o direito de adquirir o prédio
entravado, pagando o seu justo preço.
Existe, ainda, a constituição por destinação do pai de família (artigo 1549º CC): não há, aqui, um
prédio encravado, nem uma servidão contígua – apenas a situação de dois prédios pertencer ao mesmo
dono, fazendo este uso de um deles desta forma ao longo do tempo. Por exemplo, A, ao longo dos
tempos, utilizou sempre um dos seus prédios para atravessar, simplesmente por preferir o acesso
daquele lado; ora, se A vender ambos os prédios a B e C, respetivamente, conclui-se que C terá um
direito potestativo para constituir uma servidão de passagem pelo prédio do B, por destinação do pai
de família – ou seja, porque o seu prédio era utilizado, anteriormente, como passagem.
Já quanto às servidões voluntárias, a sua constituição já não resulta de um direito potestativo
legal: estas podem, assim, ser constituídas por contrato, testamento ou usucapião – sendo que, à
partida, será por negócio jurídico.
Denota-se, no entanto, que as servidões não aparentes não podem ser constituídas por usucapião. Isto
porque, não havendo contrato, testamento, nem direito potestativo, para haver servidão predial, será
necessário cumprir os dois pressupostos do usucapião – posse e decursos do tempo – para que esta
exista. Ora, na ausência de sinais visíveis e permanentes, dificilmente haverá posse, como se lê no
artigo 1548º, nº1 CC.
➔ As servidões prediais são direitos reais de gozo. No entanto, no momento prévio à sua
constituição, em que o titular ainda está a exercer o seu direito potestativo, o direito de servidão
será um direito real de aquisição: ou seja, o titular ainda não está a usar a passagem; está, sim, a
forçar a constituição da mesma. Por outras palavras, ao exercer o direito potestativo, o titular está
a adquirir um direito de gozo – pelo que, a nível material, está perante um direito de aquisição.
Características
O direito real de habitação periódica é um direito real menor que coexiste com o direito de
propriedade, no sentido de pressupor a existência de um direito de propriedade sobre os imóveis a
que se refere. Além disso, é um direito gozo, sendo que este tem um carácter temporário e cíclico
(artigo 1º – “período certo de tempo”, “de cada ano”).
No entanto, o negócio em si pode ser temporário – estabelece-se o gozo daquela casa de férias,
naquela semana, durante 5 anos –, ou perpétuo – estabelece-se o gozo daquela casa de férias, naquela
semana, para sempre. Por regra, este será perpétuo; no entanto, quando é temporário, a sua duração
não pode ser inferior a um ano (artigo 3º, nº1).
Além disso, a representação deste direito terá de ser feita em certificados prediais, emitidos
pela conservatória do registo predial (artigo 10º). O certificado, enquanto papel, incorpora os direitos
e legitima a transmissão da oneração – ou seja, é um mecanismo de transmissão ou oneração de
DRHP. Isto, porque a conservatória não tem, na sua base de dados, toda a informação sobre todos os
titulares de cada direito cíclico e periódico daquela unidade sujeita a DRHP – apenas tem a
informação sobre o direito de propriedade e da constituição do DRHP, dado esta ser uma alteração
do estatuto jurídico do prédio. Assim, esta informação sobre quem tem cada DRHP terá de ser
vinculada no papel, sendo que o direito acompanha o que está no documento – existindo, aqui, um
fenómeno de incorporação de direitos nos documentos (como acontece nos títulos de crédito).
➔ Isto é diferente do que acontece na propriedade horizontal, em que existe uma sub-inscrição, no
registo predial, das frações autónomas e dos seus respetivos proprietários.
Modos de constituição
Os DRHP são constituídos por um ato sujeito a escritura pública ou a documento particular
autenticado (artigo 6°, nº1). Esse ato tem de ser precedido de uma comunicação ao Turismo de
Portugal, I. P., a qual tem de descrever minuciosamente o empreendimento (artigos 5º e 6°, n°2).
Devido a ser um negócio jurídico que altera o estatuto jurídico do prédio, a constituição de DRHP
está sujeita a registo predial (artigo 8°; e artigo 2°, n°1, alínea b) CRPredial). Assim, existe um
controlo administrativo, ao nível das Câmaras Municipais e ao nível do direito urbanístico e
ordenamento do território; assim como um controlo regulatório do turismo local.
Na sequência do registo definitivo da constituição do DRHP, a conservatória emite o
certificado predial – sendo que só depois disso é que se surge na esfera jurídica do proprietário, não
só o direito de propriedade, como uma série de DRHPs, que serão colocados no mercado turístico e
alienados. Desta forma, o contrato que altera o estatuto jurídico do prédio, em si, acontece com o
título, sendo o certificado predial já a “inscrição”: ou seja, o título apenas dá lugar à obrigação de
entrega e de pagamento de um preço – sendo a declaração negocial incorporada no certificado predial
que tem o efeito jurídico-real, transmitindo-o.
Transmissão e oneração
Como já foi dito, a transmissão inter vivos e a oneração do DRHP fazem-se por meio do
certificado predial, no qual há que inscrever a declaração de transmissão ou de oneração – estando
a assinatura do transmitente ou constituinte do ónus sujeita a reconhecimento notarial presencial
(artigo 12º, n°1).
Fala-se, ainda, de contratos-promessa (artigo 16º). Concretamente, ao perspetivar os contratos
que se referem à alienação de DRHP como sendo, necessariamente, contratos-promessa (artigos 17 a
20º), o legislador parece laborar sobre um equívoco: normalmente, não haverá um contrato-promessa
de compra e venda e, depois, um contrato compra e venda – mas, sim, apenas uma compra e venda
sem efeito real, acompanhada ou seguida do ato de transmissão consistente na declaração feita no
certificado. Concluindo, o que se tem nestas situações será um contrato definitivo de compra e
venda do DRHP (título); e, em momento posterior, a inscrição do certificado predial (modo).
Modos de extinção
A extinção deste direito pode ser dada por decurso do prazo, quando for temporário; assim
como por perda da coisa; e por denúncia – sendo este um mecanismo de proteção do consumidor,
que não o obriga a ter de pagar todos os anos a prestação se quiser sair do contrato. Além disso, prevê-
se, também, um regime de resolução do contrato por vícios do contrato aquisitivo – ou resolução ad
nutum (artigo 16º).
Não existe, no entanto, extinção por reunião: se o proprietário, a determinada altura, por
renúncia ou outro motivo qualquer, volta a ter na sua esfera jurídica o DRHP anteriormente
transmitido, este não se extingue – podendo ser, outra vez, alienado a outro titular.
Características
Como referido, a constituição do DHD obriga o seu titular (que a lei designa como “morador”)
ao pagamento de duas contrapartidas pecuniárias: uma caução e prestações periódicas (rendas). Ora,
a caução (artigo 6º) é paga no momento da constituição do direito, e prestada por um prazo de 30
anos – sendo que, a partir do 11º ano, começa a reverter anualmente uma parte da caução para o
proprietário. Ou seja, nos primeiros anos, a caução fica estática na posse do proprietário; depois, a
partir do 11º ano, uma parte da mesma já vai efetivamente para este, que passa agora a poder mexer
nela. Significa isto que tal prestação acaba por não ser, em rigor uma mera caução, mas também uma
contraprestação a partir desse 11º ano.
➔ Artigo 6º, nº2: “A caução é prestada por um prazo de 30 anos, sendo o seu valor inicial reduzido
em 5% ao ano a partir do início do 11º ano; e até ao final do 30º ano de vigência do DHD”.
Este direito é intransmissível mortis causa; e a transmissibilidade inter vivos é muito
limitada, visto que não pode ser feita de forma voluntária, mas apenas em caso de penhora ou venda
judicial – por exemplo, quando o morador tem dívidas, e o credor instaura uma execução contra o
morador, podendo penhorar todos os seus bens, incluindo o DHD. Consequentemente, a possibilidade
de o onerar, criar ónus ou hipotecas sobre o mesmo também é limitada.
Dito isto, o DHD está a meio caminho entre o usufruto e o direito de habitação. Por um lado, é
parecido com o usufruto visto que também não é transmitido mortis causa; mas, por outro lado, afasta-
se deste regime quanto à sua intransmissibilidade inter vivos voluntária.
Concluindo, o DHD é um direito real totalmente novo, com alguns pontos de contacto com o usufruto
e direito de habitação; mas distinto, dado exigir contrapartidas pecuniárias: o DHD é necessariamente
oneroso; ao passo que os contratos criadores de usufruto e de direito de habitação podem ser gratuitos
– sendo de enfatizar que, enquanto o DHD tem como única fonte negocial possível o contrato, o
usufruto e o direito de habitação também podem resultar de testamento.
Modos de extinção
Quanto aos modos de extinção, o DHD pode caducar com a morte do morador (artigo 16º) ou
pela perda da coisa. Além disso, este direito pode ser extinto pela denúncia pelo morador (artigo 17º);
pela reunião dos dois direitos na mesma pessoa; e pela resolução do contrato constitutivo (artigo 18º),
dado a proximidade com o arrendamento.
Características comuns
Os direitos reais de garantia podem ter origem legal – por exemplo, os privilégios creditórios
– ou negocial, abrangida pela autonomia privada. A hipoteca tanto pode ser voluntária ou legal;
enquanto o penhor, que costumava ser sempre voluntário, pode agora ser legal.
Os direitos de garantia negociais podem ser constituídos pelo próprio devedor – por exemplo, A pede
dinheiro a um banco para comprar um imóvel, constituindo hipoteca sobre este – ou por um terceiro
– por exemplo, uma mãe faz uma hipoteca para garantir uma dívida do seu filho.
As garantias reais são um desvio ao princípio da igualdade dos credores, segundo o qual os
créditos são satisfeitos na proporção dos bens do devedor, visto que implicam uma preferência de um
credor preferente, em relação aos demais credores comuns. As preferências podem ter uma hierarquia,
havendo garantias reais que privilegiam mais do que outras entre os credores preferentes: a mais forte
tende a ser o privilégio creditório, seguindo-se a hipoteca e por aí adiante. Cabe ao Tribunal, mediante
a graduação das garantias, definir qual a ordem de preferência relativa dos credores na fase de citação
dos credores com garantia real.
Também é importante ter em conta, aqui, as regra do Código de Insolvência. As regras do CC
funcionam quando há uma execução devido ao devedor não pagar uma dívida voluntariamente; no
entanto, na fase de citação, quando há muitas dívidas, existe uma execução universal ou insolvência
– deixa de fazer sentido estar-se a tramitar várias execuções singulares, pelo que se faz uma única
execução universal, em que se vendem todos os bens do devedor, tendo o juiz de fazer na mesma a
fixação da hierarquia dos credores. Ora, para esta execução universal, são reconhecidos os direitos
gerais de garantia do CC, existindo, depois, mais detalhes no CIRE.
➔ Em processo de insolvência, pode ser aprovado um plano de recuperação por uma maioria dos
credores, que poderá implicar que o tratamento dos créditos não é igual ao que resulta da lei – ou
seja, aprova-se uma hierarquia de créditos distinta da lei.
Atualmente, no entanto, há uma tendência de uniformização e harmonização dos regimes relativos a
direitos reais de garantia – por exemplo, com a figura da euro-hipoteca, assim como a diretiva
existente sobre o penhor financeiro.
NOTA: A hipoteca é a garantia real mais importante relativa a imóveis; enquanto o penhor é a
garantia real mais importante relativa a móveis.
Hipoteca
Noção geral e relevância social
A hipoteca traduz o direito do credor a ser pago, pelo valor de uma coisa certa e
determinada – proibindo-se, assim, a incidência da hipoteca sobre a totalidade dos bens, sem
especificação (artigo 756º CC) –, com preferência sobre os credores comuns.
No direito português, a hipoteca diferencia-se do penhor, antes de mais, em função dos
respetivos objetos: a hipoteca só pode incidir sobre coisas imóveis ou móveis sujeitas a registo
(artigos 686º a 689º CC); ao passo que o penhor só pode incidir sobre coisas corpóreas móveis,
créditos ou outros direitos não suscetíveis de hipoteca (artigo 666º, nº1 CC).
Historicamente, no entanto, a distinção feita era a seguinte: o penhor implicava a traditio, dado que
o credor passava a ter a posse da coisa; enquanto hipoteca, verdadeira garantia real, não implicava a
traditio. A nível de direito comparado ainda há países que seguem esta tradição romana – o que
significa que, em transações económicas internacionais, poder-se-á aplicar a legislação de outro país
e, consequentemente, ter uma hipoteca sobre coisas móveis, porque não há traditio.
➔ Existem outros países, nomeadamente a Alemanha, em que apenas o imóvel responde pela dívida
– dívida fundiária, não funcionando a regra do artigo 601º CC.
A hipoteca é importante em Portugal: nas empresas de promoção imobiliária, o crédito
hipotecário é sempre o instrumento utilizado para financiar a construção ou aquisição de um imóvel.
Ora, no contexto de um mercado imobiliário não desenvolvido, devido do congelamento das rendas,
muitos consumidores procuram adquirir imóveis (e não arrendar) – tendo, para pedir um empréstimo
ao banco, de constituir uma hipoteca sobre estes.
Espécies de hipoteca
As hipotecas podem ser legais, judiciais ou voluntárias (artigo 703º CC).
Quanto às hipotecas legais, estas resultam da lei, mas não de forma automática, dado que
ainda são sujeitas a registo – daí que se tenha de ter cuidado com o artigo 704º CC, que diz que estas
resultam “imediatamente” da lei. Os casos de hipoteca legal estão enumerados no artigo 705º CC, aos
quais há a acrescentar alguns constantes de outros diplomas.
Denota-se, contudo, que as hipotecas legais que garantem os créditos do Estado, das autarquias locais
e das instituições de segurança social, cujo registo haja sido requerido dentro dos dois meses
anteriores à data do início do respetivo processo, se extinguem com a declaração de insolvência
(artigo 97º, n° 1, alínea c) CIRE).
Quanto às hipotecas judiciais, estas não resultam de sentenças que as constituam ou ordenem
a sua constituição. A possibilidade da sua constituição, por iniciativa do credor em moldes similares
aos das hipotecas legais, resulta do mero facto de ser proferida uma sentença, ainda que não transitada
em julgado, que condene alguém numa prestação (artigo 710º CC).
Significa isto que quando se tem uma sentença condenatória, é possível constituir hipotecas sobre os
bens do devedor contra a vontade deste: este é um direito potestativo, atribuído ao credor, com a
sentença. Consequentemente, não é a sentença que cria a hipoteca, mas sim o criador, no uso deste
direito potestativo – este, sim, atribuído pela sentença.
➔ O artigo 140º CIRE diz que a hipoteca judicial não é atribuída em sentença, e não atribui
preferência em caso de insolvência.
Quanto às hipotecas voluntárias, estas são as que nascem de contrato ou negócio unilateral
(artigo 712º CC). A grande maioria das hipotecas é desta espécie, e é a ela que está ligada a enorme
relevância social da figura.
Obrigações cobertas:
Quanto às obrigações cobertas, a hipoteca assegura, para além do crédito propriamente dito,
os acessórios do crédito que constem do registo (artigo 693º, nº1 CC): ou seja, tem de constar do
registo que a garantia é de um determinado crédito e, ainda, se esta inclui, ou não, os seus juros. No
entanto, a lei estabelece que, não obstante convenção em contrário, apenas são abrangidos os juros
relativos a três anos – não especificando, no entanto, quais são estes três anos, estando este problema,
atualmente, totalmente em aberto.
De qualquer das formas, esta regra pretende proteger as expectativas de terceiros quanto ao
valor máximo abrangido pela preferência hipotecária. No entanto, para Caetano Nunes, isto implica
norma desproteger o credor: como não estão cobertos todos os juros, este acaba por perder dinheiro,
no sentido em que não existirá uma proteção para uma possível desvalorização do dinheiro. Por um
lado, esta norma destruirá, completamente, a atividade dos bancos: se os devedores colapsos só pagam
juros de três anos, os juros referentes aos outros anos vão acabar por ter de ser pagos na mesma, mas
pelos devedores que cumprem, aos quais vai ser aumentada a taxa de juro.
Indivisibilidade:
Quanto à indivisibilidade, (artigo 696º CC), em caso de divisão do prédio, a hipoteca passa
a abranger todos os prédios decorrentes da divisão, respondendo cada um deles pela totalidade da
dívida garantida. Assim, a hipoteca não perde o seu âmbito ou extensão – visto que, caso contrário,
haveria uma perda da garantia efetiva. Além disso, também em caso de hipoteca com objeto plural,
que incide sobre vários prédios, todos os prédios respondem pela totalidade da dívida – ou seja, se,
por exemplo, A tem dois prédios a responder pelo crédito, ambos eles respondem pela totalidade da
dívida, e não apenas por 50% da mesma.
A mesma regra funciona em sede de propriedade horizontal: constituída a propriedade
horizontal e alterado o estatuto jurídico do prédio, este passa a integrar várias frações autónomas –
sendo que todas passarão a responder pelos créditos. Se a fração autónoma for vendida, o banco do
promotor imobiliário irá renunciar à hipoteca na parte correspondente àquela fração (sob pena de o
comprador não querer adquirir aquela fração autónoma) – ficando, no entanto, ao critério do credor
hipotecário fazer essa renúncia.
➔ A aquisição imobiliária é, quase sempre, feita com recurso a financiamento à compra e à
construção: o promotor imobiliário faz o primeiro investimento de comprar o prédio, e hipoteca
o próprio prédio que compra para garantir esse empréstimo ao banco. No entanto, depois disso,
precisa de mais dinheiro para fazer as empreitadas, pelo que hipoteca, mais uma vez, o prédio.
Ora, é possível, assim, ter-se várias hipotecas sobre o mesmo prédio.
Transmissibilidade e oneração:
Quanto à transmissibilidade e suscetibilidade de nova oneração de bens, a constituição da
hipoteca não prejudica a transmissibilidade dos bens sobre os quais incide. Assim, é proibida a
cláusula de inalienabilidade dos bens hipotecados: ou seja, a cláusula pela qual o dono se obrigaria a
não alinear ou não onerar os bens hipotecados (artigo 695º CC). No entanto, poderá ser estipulado,
no negócio jurídico de constituição da hipoteca, que a transmissão ou oneração implica o vencimento
do crédito garantido – e, portanto, espoleta a execução da hipoteca.
Ou seja, a existência de uma hipoteca não limita, de todo, a transmissibilidade do bem (no sentido de
este poder ser vendido); assim como não limita a sua oneração, podendo-se constituir novas hipotecas
(artigo 713º CC). Havendo mais do que uma hipoteca sobre um mesmo objeto, os direitos por ela
conferidos hierarquizam-se em função do momento dos seus registos (artigo 6º, nº1 CRPredial).
➔ Isto é muito frequente na prática sociológica; no entanto, acaba por não ser economicamente
viável, visto que, em termos práticos, a transmissão do bem acaba por ser limitada.
De qualquer das formas, a hipoteca é transmissível inter vivos, cedível mesmo sem o crédito
garantido (artigo 727º, nº1 CC). A hipoteca, em si mesma, enquanto garantia, tem valor económico
e, por isso, a transmissão da hipoteca pode ter interesse, para passar a garantir outro crédito que não
o que originalmente garantia. No entanto, na prática, existem alguns limites a esta regra geral de
transmissibilidade – por exemplo, no caso da fração autónoma –, o que significa que, na realidade, o
banco decide sozinho ou se quer ou não transmitir a hipoteca.
➔ O que acontece, frequentemente, é que tanto o banco que vai renunciar a hipoteca, como o banco
que vai constituir nova hipoteca estão presentes no momento da transmissão (renúncia).
Perda ou deterioração:
Em caso de perda ou deterioração (por exemplo, por tremor de terra), o direito do credor
hipotecário transforma-se num direito à indemnização (artigo 692º CC): ou seja, a hipoteca passa
a incidir sobre a indemnização. Se, no entanto, esta perda ou deterioração tiver sido feita com culpa,
será a pessoa a causou que irá indemnizar o credor – por exemplo, se o edifício for destruído por um
avião, será a companhia área que vai indemnizar.
Além disso, caso o objeto da hipoteca parecer ou se tornar insuficiente para a segurança
da dívida, o credor pode exigir a substituição ou o reforço da hipoteca (artigo 701º, nº1 CC) –
aplicando este direito de reforço, em princípio, quer à hipoteca que incida sobre bens do devedor,
quer à hipoteca que incida sobre bens de terceiro (n 2º). Não procedendo o devedor a tal substituição
ou reforço, pode o credor exigir o cumprimento imediato da obrigação garantida – ou, tratando-se de
obrigação futura, registar hipoteca sobre outros bens do devedor.
➔ Esta regra surge noutros direitos reais de garantia, de forma a proteger o credor hipotecário.
Penhor
Penhor pode ser a designação de um direito real de garantia; mas, também, pode surgir como
designação do negócio jurídico ou do contrato que tem como efeito essencial a constituição desse
direito real de garantia.
Noção
O penhor é o direito do credor a ser pago com preferência dos demais credores pelo valor
da coisa corpórea móvel; ou pelo valor de créditos ou de outros direitos. O penhor pode ser
constituído pelo devedor ou pelo terceiro (artigo 667º CC). Tal como na hipoteca, o titular do direito
de penhor – pelo menos, do que recaia sobre coisas corpóreas – é considerado possuidor, mesmo
quando não esteja na detenção da coisa.
A distinção entre hipoteca e penhor é aferida pelo objeto do direito real de garantia: ou seja,
na hipoteca, existem objetos imóveis; enquanto no penhor, existem objetos móveis. No entanto, e
como já foi visto, nem sempre foi assim – utilizando-se, em contexto de direito comparado, a distinção
da traditio. Deste critério ficou, então, a ideia de que, regra geral, o penhor envolve alguma traditio:
ou seja, a coisa vai, diretamente, para as mãos do credor (sendo que há, no entanto, regimes especiais
onde isso não acontece). Assim, olhando para o penhor enquanto direito real, a traditio será um
requisito; mas, olhando, para o penhor enquanto negócio jurídico, a traditio será um dos elementos
essenciais para alguns regimes especiais: ou seja, para este, não basta o encontro de vontades – é
preciso um ato real, nomeadamente a entrega da coisa.
Objetos possíveis
Ora, quanto aos objetos possíveis (artigo 666º), o penhor pode incidir sobre coisa móvel, valor
de crédito ou outros direitos.
Deve entender-se coisa móvel enquanto coisa móvel não hipotecável: ou seja, quando a lei
fala em coisa móvel, tal deve ser interpretado no sentido de coisas não sujeitas a hipoteca, já que
alguns bens, apesar de móveis, são também suscetíveis de hipoteca por estarem sujeitos a registo (ex:
automóveis, aeronaves e embarcações). No entanto, mesmo estes poderão ser penhorados, enquanto
não estiverem registados – ex: os carros que são fabricados e levados para outros países, antes de
serem registados nesses países podem ser penhorados.
Já sobre os créditos (artigo 685º CC), estes poderão ser empenhados logo que se tornem
exigíveis (nº1): o credor pignoratício, para garantia do seu crédito, tem o direito de empenhar outro
crédito – ou seja, de executar e cobrar um segundo crédito.
Mais frequente será o penhor sobre participações sociais: ou seja, sobre uma posição jurídica
de um sócio numa sociedade, que engloba um conjunto de direitos e deveres – sendo que os sócios
de sociedades anónimas têm ações; enquanto os sócios das sociedades corpóreas têm quotas. Não
obstante, podem ser ambas empenhadas – por exemplo, se A der em penhor as sua ações no BCP, e
não pagar o crédito que está por essas garantido, o credor B passa a assumir a sua posição no BCP.
Do ponto de vista sociológico, isto é muito relevante: os negócios de maior valor são garantidos não
por hipoteca, mas por penhores sobre ações e quotas. Aplica-se, aqui, não só o CC, mas também
normas do Código dos Valores Mobiliários (artigos 81 e 103º) e do CSC (artigo 23º).
Uma das coisas discutidas na jurisprudência e doutrina é se pode haver penhor sobre um
estabelecimento comercial. Ora, existem duas maneiras de olhar para a empresa: enquanto objeto
jurídico – nomeadamente, se a empresa, em si, estiver a ser vendida – e enquanto sujeito jurídico –
isto porque, o substrato de uma sociedade comercial, aquilo que está por detrás, é uma empresa.
Assim, a noção de estabelecimento comercial é sinónima de empresa, em sentido objetivo: ou seja,
como objeto de negócios jurídicos ou como objeto de direitos reais. Consequentemente, a empresa
também poderá ser objeto do penhor: ou seja, também pode ser dada como garantia.
Outra controvérsia doutrinária será a noção de coisa composta ou universalidade de facto,
aplicadas às situações onde existe uma pluralidade de coisas móveis com um destino unitário (artigo
206º CC). Aqui, discute-se se as coisas compostas podem incluir apenas coisas corpóreas, ou também
realidades incorpóreas; e se se pode incluir neste conceito, também, situações jurídicas ativas e
passivas (direitos e deveres).
Sobre estes temas, tem havido uma tendência geral doutrinária no sentido de considerar o
estabelecimento comercial, em sentido objetivo, como sendo uma coisa composta, complexa – uma
unidade que incorpora também direitos e deveres, posições contratuais. Será esta universalidade que
pode ser objeto de contratos de compra e venda, bem como de penhor.
➔ O estabelecimento comercial é 1) um conjunto de bens (coisas), direitos e deveres, 2)
funcionalmente unificados por uma gestão unitária, e 3) afetadas ao mesmo fim. Dentro deste
conjunto de bens, direitos e deveres, estão situados mercadores, matérias-primas, posições
contratuais que esta possa ter (ex: com o banco, em contratos de funcionamento), etc. – todas
essas coisas funcionam como uma unidade com valor acrescentado, ligadas entre si para produzir
valores económicos que, individualmente, não teriam.
o A polémica doutrinária estende-se, no entanto, não apenas à natureza jurídica da figura do
estabelecimento comercial, mas também aos elementos que a compõem – discute-se, por
exemplo, se a clientela faz parte do estabelecimento comercial.
No que toca aos direitos reais de garantia, a lei não faz referência à hipoteca nem, tampouco, ao
penhor de estabelecimento comercial. Ora, não sentido falar, aqui, em hipoteca, pelo facto de o
estabelecimento comercial ser uma coisa complexa; contudo, faz todo o sentido discutir a
possibilidade de penhor de estabelecimento comercial – pelo que será necessário fazer uma
interpretação extensiva sistemática dos artigos 666º e 206º CC. Ora, no CPC, foi estabelecido que
podia haver penhora de estabelecimento comercial, o que significa que este é uma coisa composta
para efeitos da penhora. Consequentemente, deixa de haver qualquer motivo para, em razão de
propriedade, não ser também objeto de penhor: se o estabelecimento comercial pode ser objeto de
penhora, também pode ser de penhor.
Dentro dos direitos e deveres do estabelecimento comercial, podem estar imóveis – por exemplo, a
fábrica onde a empresa faz os produtos. Com isso, o estabelecimento também terá posições
contratuais e direitos de deveres nos contratos com trabalhadores e fornecedores; assim como pode
ter um contrato de locação desse mesmo imóvel – sendo, por isso, a posição de locatário do imóvel
(e não a propriedade do imóvel) que se encontra dentro desses deveres. Assim, a propósito da empresa
em sentido objetivo, a lei utiliza uma terminologia específica para alguns dos negócios que a
envolvem – sendo que a transmissão do estabelecimento comercial tem a designação de trespasse do
estabelecimento comercial (artigo 1109º CC) Por seu lado, à locação do estabelecimento comercial
chama-se de cessão de exploração do estabelecimento comercial (artigo 1112º CC).
➔ Nos regimes em que o penhor tem de envolver traditio, não se faz penhor de estabelecimento
comercial, porque não é possível que o empresário prescindia da posse do estabelecimento, sem
prescindir da sua gerência.
Obrigações cobertas
As obrigações garantidas pelo penhor podem ser futuras ou condicionais (artigo 666º, nº3
CC) – por exemplo, créditos que ainda não existem; ou que podem vir (ou não) a existir. Além do
crédito do capital, o penhor pode garantir também juros sem qualquer limite temporal, visto que o
artigo 678º CC não refere o preceito do artigo 693º, nº2 CC.
Objetos possíveis
Os objetos possíveis são os imóveis e móveis sujeitos a registo (artigo 656º, nº2) – existindo
a tal automatização relativamente à hipoteca. Entre objetos possíveis de consignação estão também
os títulos de crédito nominativos (artigo 660º, nº2 CC).
Modos de constituição
A consignação de rendimentos pode ter por fonte um negócio jurídico ou uma decisão judicial,
sendo, respetivamente, voluntária – onde pode ser constituída não só pelo devedor, como também
pelo terceiro – ou judicial (artigo 658º CC). A nível de forma, esta terá de ser constituída por escritura
pública e registo (artigo 660º CC).
Na consignação judicial, esta surge na ação executiva como meio de pagamento: ou seja, o
exequente ou 1) propõe a venda judicial para obter o seu crédito pelo valor da coisa; ou 2) fá-lo pela
consignação de rendimentos – sendo que os rendimentos da coisa vão sendo depositados no tribunal
para ir pagando o crédito. No entanto, é muito raro o exequente não escolher a venda judicial e optar
pela mera consignação de rendimentos: os credores querem ver o seu crédito satisfeito o quanto antes
– e, se optarem por esta solução, arriscam-se a que venha outro credor exigir a venda judicial, o que
fará com que percam o seu direito real de garantia.
Na consignação judicial, será o tribunal que decide onde permanecem os bens (artigo 661º
CC), sendo possível estipular se os bens sujeitos à consignação permanecem com o devedor, passam
para o credor ou ficam à guarda de terceiros. Já na consignação voluntária, existe uma grande
liberdade de estipulação, sendo possível estipular que os imóveis fiquem no poder do proprietário,
do terceiro ou do credor.
Obrigações cobertas
Tal como na hipoteca e no penhor, as obrigações garantidas podem ser condicionais ou
futuras, nos termos do artigo 656º nº1. Além disso, estas podem ser obrigação de capital ou juros, ou
ambos (nº2), sendo que os rendimentos que são obtidos vão sendo primeiro imputados aos juros e, só
depois, ao capital (artigo 661º, nº2) – ou seja, todas as modalidades são possíveis.
Espécies de privilégios
Existem duas espécies de privilégios creditórios: 1) mobiliário e 2) imobiliário (artigo 735º,
nº1 CC). Estes podem, ainda, ser gerais, quando incidem sobre todos os bens que integram o
património de uma pessoa; ou especiais, quando incidem sobre uma coisa corpórea (nº2).
Privilégios imobiliários especiais: O IMI e o IMT são alguns exemplos, sendo que, para efeitos de
IMI, é o imóvel que gere o imposto; enquanto no IMT, o imposto é gerado pelo facto de o imóvel
estar a ser transacionado (artigo 744º CC). Outro exemplo são as despesas de justiça (artigo 743º
CC), nomeadamente sobre imóveis que estão a ser executados: quando há uma execução e é
penhorado um imóvel, a primeira coisa a ser paga são as despesas de justiça daquele processo de
execução. Também são protegidos os créditos dos trabalhadores: segundo o artigo 303º do Código
de Trabalho, o imóvel que constitui o local de trabalho é alvo de privilégio creditório a favor destes.
Privilégios imobiliários gerais: Estes eram, anteriormente, previstos para os créditos dos trabalhos –
no entanto, tal foi considerado inconstitucional, por ser demasiado imprevisível. Previsões sobre a
segurança social, IRS, IRC e salários em atraso também têm vindo a desaparecer, dado terem surgido
dois acórdãos do TC que, em 2002, consideraram os privilégios imobiliários gerais
inconstitucionais, na interpretação em que esses privilégios preferem a hipoteca, no sentido de haver
uma limitação surpresa à propriedade.
Privilégios mobiliários gerais: Previstos nos artigos 736º e 737º CC, existe, por exemplo, as despesas
de funeral do devedor; sendo que os códigos de IRS, IRC e Segurança Social também estabelecem
mais privilégios como estes. Também serão atribuídos privilégios creditórios a credores que, em sede
de recuperação de empresas, invistam dinheiro em empresa em situação economicamente difícil.
Privilégios mobiliários especiais: Estão previstos no artigo 738º CC, sendo as despesas de justiça um
exemplo.
Natureza
Os privilégios imobiliários especiais têm o carácter real mais forte; o mesmo vale para os
mobiliários especiais. Já os mobiliários gerais não valem contra terceiros – e, por isso, não tem
oponibilidade erga omnes, logo não têm carácter real: são meras preferências no pagamento, no
âmbito da execução.
Há, ainda, a dizer que, apesar da sua proximidade, esta figura não se confunde com a da
hipoteca legal. As duas garantias têm em comum serem atribuídas por lei, assim como a sua razão
de ser: quer a hipoteca legal, quer os privilégios creditórios têm como fim reforçar a garantia de certos
créditos e privilegiá-los.
No entanto, há dois aspetos de regime que as distinguem: por um lado, a sujeição a registo da
hipoteca legal vs. a não-sujeição a registo dos privilégios creditórios; por outro, o facto de os objetos
possíveis da hipoteca legal serem apenas imóveis ou móveis sujeitos a registo vs. a existência de
privilégios com todos os tipos de objetos.
Direito de Retenção
Noção
Este é um direito concedido pela lei a um credor que detém certa coisa, de reter a mesma
enquanto não for pago (artigo 754º CC); e de satisfação do crédito pelo valor da coisa com
preferência sobre os demais credores (artigos 758º e 759º CC). A primeira faculdade mencionada é,
assim, um acréscimo quanto aos direitos reais de garantia, implicando a existência de meios de defesa
da posse; enquanto a segunda é o típico conteúdo de um direito real de garantia.
Esta pode incidir sobre móveis ou imóveis; assim como a coisa pode pertencer ao devedor
ou a um terceiro – por exemplo, o empreiteiro que faz obras num imóvel tem o direito de retenção
dessas enquanto não for pago.
A retenção da coisa é exercida extrajudicialmente, sendo um direito potestativo – ou seja, o
credor tem o ónus de reclamar o seu direito nessa execução. Quanto à satisfação do crédito através
da coisa, esta faculdade já será feita através da venda judicial no tribunal. Assim, enquanto não
houver venda judicial, o bem permanece na posse do credor – no entanto, em caso de venda judicial,
a única faculdade que sobra ao titular do direito de retenção será ser pago com preferência aos
credores hipotecários, mas depois dos privilégios creditórios (artigo 824º, nº2 CC). A partir do
momento em que há penhora, o direito de retenção tem como limite a atuação do tribunal.
Pressupostos
Para que seja possível a existência de um direito de retenção, são necessários os seguintes
pressupostos positivos (artigo 754º CC): 1) detenção de bem alheio; 2) dever de entregar ou restituir
esse bem alheio; 3) crédito sobre o credor dessa restituição; e 4) conexão entre o crédito do retentor
e do seu credor, no sentido de fazerem parte da mesma relação jurídica obrigacional.
Há, ainda, pressupostos negativos: ou seja, pressupostos que, quando se verificam,
determinam o afastamento do regime do direito de retenção (artigos 756º CC) – delimitando, assim,
negativamente o direito de retenção, estabelecendo uma série de situações em relação às quais este
direito não existe. Assim, não existirá direito de retenção se:
➔ A detenção do bem tenha sido obtida por meios ilícitos – desde que o eventual retentor conhecesse
essa ilicitude no momento da obtenção;
➔ O crédito do eventual retentor resulte de despesas feitas de má-fé;
➔ O bem seja impenhorável;
➔ A outra parte preste caução suficiente – o mais relevante, na prática.
Por exemplo, um empreiteiro, finalizada a obra, tem a obrigação de a entregar ao credor – ou
seja, quem encomendou a obra. Este, por sua vez, é devedor do preço perante o empreiteiro, que é
credor desta obrigação. Existem, então, aqui, dois créditos que estão conectados entre si, pelo que, se
o devedor do preço – e credor da entrega – não pagar, o empreiteiro, credor do preço – e devedor da
entrega – tem direito de retenção sobre a obra até esse pagamento ser feito.
O mesmo se diz em relação ao caso do promitente vendedor e promitente comprador: no contrato
promessa, o promitente vendedor tem o dever de entregar a coisa, mas tem direito a receber o sinal –
pelo que, enquanto não receber o sinal, pode recusar-se a entregar a coisa.
Penhora
A penhora é um ato de processo executivo que afeta a coisa à satisfação do crédito ou de
vários créditos, que consiste, essencialmente, na apreensão da coisa pelo tribunal. Essa apreensão
de coisas móveis pode significar que a coisa é retirada ao proprietário – e fica, por exemplo,
depositada num armazém –; mas, mais frequentemente, existe uma apreensão não física, mas judicial:
ou seja, do ponto de vista jurídico, esta está nas mãos do tribunal, ficando o proprietário como
depositário da mesma. Consequentemente, a penhora consiste, mais especificamente, numa oneração
do direito do titular da coisa penhorada, da qual pode vir a resultar a extinção deste, ficando afeto
a responder pelo crédito do exequente.
Em relação a coisas móveis, esta uma apreensão pode ou não ser efetiva. Já em relação a
coisas imóveis, tradicionalmente, havia apreensão (ficando-se com a chave por exemplo), seguida de
registo da mesma – no entanto, atualmente, a penhora de imóveis começa não com uma apreensão,
mas com o registo (primeiro ato), dispensando-se frequentemente esta apreensão material. Assim, em
relação a imóveis, a penhora é essencialmente um registo.
Assim que há penhora, o proprietário pode onerar a coisa (constituir hipoteca), vender, etc.;
mas nada disso afeta a penhora – existe um regime de imunidade (artigo 819º CC). Ou seja, em
rigor, ninguém vai querer adquirir uma coisa já penhorada, já que a penhora vai prevalecer: quando
o tribunal vender a coisa judicialmente, irá retirar a propriedade aos compradores anteriores à venda
judicial e posteriores ao registo da penhora, pelo que se extinguem todos os direitos reais registados
não anterior à penhora (artigo 824º, nº2 CC).
Além disso, o artigo 822º, nº1 CC estabelece uma preferência face aos credores comuns e aos
credores com penhora subsequente, mas não sobre titulares de outros direitos reais de garantia.
Significa isto que, acima da penhora, está o privilégio creditório, o direito de retenção, a hipoteca e o
penhor. Isto tem lógica, visto que a penhora é um ato de agressão patrimonial no processo executivo
praticado por um credor que, até àquele momento, era um credor comum – ora, nesta situação, a única
solução do credor comum é avançar para a penhora, mecanismo de garantia real acessível a todos os
credores comuns, pelo que o primeiro a obtê-la será o primeiro, dentro dos comuns, a ser privilegiado.
Porém, o artigo 140º nº3 CIRE dita que a preferência resultante da penhora cessa assim que se
abre a insolvência, sendo que os credores com penhora voltam a ser credores comuns. Isto é
fundamental do ponto de vista prático: se há penhora, o credor que não tem nada pode abrir um
processo de insolvência, sendo que assim fica ao nível dos outros que tinham a penhora – poupando
dinheiro em processos executivos.
Conclui-se, assim, que os artigos 819º e 822º CC atribuem efeitos reais à penhora; mas o artigo
40º nº3 CIRE condiciona bastante este carácter real. Pelo que, no fim, a penhora acaba por ter tem
um carácter real fraco.
Arresto
Pela sua natureza processual, o arresto é uma providência cautelar: um processo urgente e
provisório, tendente a ser substituído por outro definitivo. Já do ponto de vista substantivo, o arresto
é a afetação provisória da coisa à satisfação do crédito (artigo 391º, nº2 CPC; e artigo 622º, nº2
CC). Em traços gerais, o arresto é uma penhora provisória.
Para que o arresto possa ser aplicado, são necessários os seguintes pressupostos estarem
preenchidos (artigo 619º CC): 1) existência de um crédito; e 2) “justificado receito” de perda de
garantia patrimonial – por exemplo, o facto de o devedor estar a dissipar os seus bens, ou estar prestes
a fazê-lo, ao criar uma sociedade num paraíso fiscal e transferir para lá coisas; assim como a mera
desproporção entre ativos e passivos, que também pode gerar este receio.
A grande distinção entre ao arresto e a penhora será o facto de um ser provisório; enquanto a
outra é definitiva. Mais frequentemente, avança-se com a providência cautelar, sem ainda ter a ação
declarativa – sendo que, depois de decretado o arresto, parte-se para a ação declarativa (título de
crédito) e, só depois, se avança para a ação executiva da penhora.
Analogamente à penhora, o arresto consiste, pois, numa oneração do direito do titular do
bem sobre que recai, numa sua afetação a responder pelo crédito em causa: ou seja, tem, também,
como consequência um efeito individualizador sobre os bens do devedor, que respondem pelo crédito
em causa.
Por fim, o arresto tem, também, uma oponibilidade erga omnes semelhante à da penhora,
mas com duas limitações: 1) o facto de ser uma figura provisória; 2) e o facto de o arresto,
transformando-se em penhora, cai também nas situações de insolvência – pelo que o seu carácter real
acaba por ser duplamente fraco.
Ora, nestes casos, não fará sentido que o vendedor reserve a propriedade, dado que o evento
que opera a transmissão da propriedade é o pagamento das prestações do empréstimo do comprador
ao financiador. Assim, quem fica com a reserva da propriedade é o financiador, e não o
comprador. Dito de outra forma, na locação financeira, existe um direito potestativo de aquisição da
propriedade no direito real de aquisição; nos outros, a aquisição da propriedade por quem tem o DR
de aquisição é automático.
Um problema disto é que, segundo o artigo 409 CC, o vendedor “reserva para si”, e não para terceiros
– logo, é discutível que possa haver este mecanismo de reserva de propriedade para terceiros, dado
fugir à letra da lei, estabelecendo que a partilha de propriedade possa não apenas funcionar entre
credor e devedor, mas que possa também ser feita por terceiro. Consequentemente, isto viola o
princípio da tipicidade dos direitos reais, não se criando uma modalidade nova de direito real; mas
sim, um mecanismo real novo: alienação com reserva de propriedade que atribui ao financiador uma
posição jurídica real que não tem acolhimento na lei. No entanto, este mecanismo é muito frequente
na prática sociológica.
Imagine-se o exemplo de um contrato de locação financeira de um automóvel entre o
comprador C e o financiador F: F entrega o carro, e C tem de pagar rendas mensais pelo uso desse
carro. Ora, aqui, a entrega não é definitiva – é, sim, uma disponibilização do uso durante um certo
período. No entanto, findo esse período, é atribuída a C a possibilidade de aquisição da propriedade
do carro, mediante o pagamento de um valor residual – caso de leasing.
Ora, do ponto de vista económico, o financiador irá verificar, junto do vendedor ou fornecedor, quanto
é que custa o carro; comprá-lo e, depois, irá receber rendas e, ainda, um valor residual mais juros do
comprador, de forma a conseguir obter lucros. Existe, assim, um esquema triangular: um vendedor,
um comprador e uma empresa financeira. No entanto, o negócio do financiador não é comprar carros,
mas, sim, fazer essencialmente esta operação financeira mediante uma análise de risco – assim, do
ponto de vista jurídico, não existem dois contratos: o consumidor apenas faz um contrato do qual
resulta uma locação financeira. O que existe serão quatro elementos caracterizadores: 1)
disponibilização da coisa contra um 2) pagamento de uma renda mensal e 3) aquisição de um
automóvel contra o 4) pagamento do valor residual.
Ora, nesta locação financeira, F é o proprietário, enquanto C tem um direito potestativo de aquisição
dessa propriedade, contra o pagamento de um valor residual. Assim, do ponto de vista do estatuto
jurídico-real, a propriedade está em F, com função de garantia; mas C, comprador, tem um direito
real de aquisição – se pagar todas as prestações devidas –, ou seja, um direito potestativo de ficar com
a propriedade. Existe, também, uma partilha dos efeitos jurídicos-reais: por um lado, propriedade com
função de garantia; e, por outro, direito real de aquisição.
➔ Quando têm por fonte um contrato, os direitos de preferência podem gozar de eficácia real, caso
se verificarem os requisitos do artigo 421º CC, sendo um deles o registo (forma de publicidade);
caso contrário, estes têm efeitos meramente obrigacionais.
Assim, quando existe eficácia real, é possível opor o direito de preferência ao terceiro,
substituindo o mesmo como comprador. No entanto, se não houver eficácia real, se o terceiro avançar,
o vendedor violou a preferência feita, mas o titular não se poderá opor à compra pelo terceiro – quanto
muito, poderá exigir do vendedor uma indemnização.
Consequentemente, a eficácia real processa-se nos termos do artigo 1410º CC, de acordo com o
mecanismo de ação de preferência. No entanto, na prática, como é necessário depositar logo o preço,
tendo depois de ficar muito tempo à espera da decisão final – visto que, só com ela é que a preferência
se consagra (nº1, última parte) –, esta ação acaba por não funcionar. Inclusive, acaba por existir um
grande desincentivo económico ao exercício do direito: o titular fica sem o dinheiro durante o tempo
todo em que a ação está em tribunal; e, depois, se perder o litígio, terá ainda de pedir ao tribunal que
o devolva. Já quando a eficácia é meramente obrigacional, processa-se nos termos do artigo 798º CC,
relativa à responsabilidade obrigacional por incumprimento.
POSSE
Noção Geral de Posse
A posse tem vários significados. Do ponto de vista não jurídico, fala-se de posse enquanto
detenção e contacto físico com um objeto; ou enquanto contraposição à propriedade, em que alguém
não é titular, mas mero possuidor da coisa. Já do ponto de vista jurídico, a posse será a detenção de
uma coisa corpórea qualificada (artigo 1251º CC) – qualificada, no sentido de corresponder a uma
situação similar à do proprietário: ou seja, detém-se a coisa como proprietário e atua-se de acordo
com aquilo que, na prática social, é uma atuação do proprietário.
A posse é, por um lado, uma situação de facto; e, por outro lado, um regime jurídico – ou
seja, a posse tanto pode ser algo que se tem, como algo que atribui certos direitos, respetivamente
(distinção entre “ser” e “dever-ser”). Por exemplo, A andar com o seu telemóvel nas mãos é uma
situação fáctica de posse; já a possibilidade, dada pela existência dessa posse; que ele tem de fazer
uma providência cautelar, em Tribunal, para reivindicar esse mesmo telemóvel, se lhe for retirado, já
existe um direito à defesa da posse, inserido num regime jurídico de posse. Dito de outra forma, posse
é um facto que espoleta a previsão normativa; mas é, também, o conjunto de estatuições normativas
do regime jurídico da posse: este, para ser aplicado, implica uma situação fáctica de posse.
No CC, a posse é muito valorizada, visto que, tradicionalmente e no contexto rural, a
publicidade da propriedade é feita pela posse. No entanto, atualmente e num contexto urbano, já não
é possível haver o conhecimento da propriedade apenas pela posse, pelo que esta deixou de ser um
mecanismo viável dos direitos reais. Sendo a publicidade essencial, devido ao facto de os direitos
reais terem oponibilidade erga omnes, criou-se, então, o registo. De qualquer das formas, a posse
continua a ter certa função de publicidade, que faz parte da genética dos direitos reais.
Origem histórica
Tradicionalmente, existiam dois institutos jurídicos – usos e possetio –, que deram origem aos
dois principais regimes associados à posse – o usucapião e a defesa da posse. Ora, quem atua no
mundo factício com uma atuação similar ao proprietário, com o passar do tempo, por usucapião,
adquire a propriedade – no sentido em que os usos conduziam à propriedade, sendo uma regra
associada a uma ideia de segurança. Já a possetio tem uma origem jurisprudencial, sendo um instituto
processual dos interdicta que, atualmente, correspondem às defesas possessórias.
Assim, enquanto o efeito do usucapião está associado às situações de posse em sentido estrito,
a defesa possessória está associada a situações de posse não só em sentido estrito, mas, também, por
analogia, a situações similares com as de posse associadas aos direitos pessoais de gozo – por
exemplo, à locação e ao comodato.
Conteúdo da posse
Os direitos do possuidor são, por regra, direitos no confronto com o proprietário: ou
seja, se a posse é causal e o possuidor é, simultaneamente, proprietário, nada disto interessa. Agora,
se a posse é formal, delimitam-se os direitos do possuidor em contraposição com os do proprietário.
Assim, o primeiro direito será o direito de uso, que está implícito no poder de atuar sobre a
coisa (artigo 1251º CC) – a posse é um direito real de gozo, tem uso. Para além disso, também se tem
o direito de fruição, no sentido de o possuidor ter direito aos frutos, naturais e civis, produzidos pela
coisa possuída (artigos 1270º e ss. CC).
➔ No entanto, se este agir de má-fé, terá não este direito, mas sim o dever de restituir o proprietário
(artigo 1271º CC). Pelo contrário, se houver posse com boa-fé, os frutos são do possuidor.
Além disso, se houver benfeitorias que sejam necessárias, o possuidor tem o direito a ser
indemnizado pelo proprietário, mesmo que esteja de má-fé (artigo 1273º, nº1 CC). As benfeitorias
úteis darão direito a que sejam levantadas, desde que não haja detrimento da coisa – se isto não for
possível, existirá uma compensação, de acordo com as regras do enriquecimento sem causa (artigo
1273º, nº2 CC). Já quanto às benfeitoras voluptuárias, o possuidor de boa-fé poderá levantá-las, a não
ser que haja detrimento da coisa; já se estiver de má-fé, não as poderá levantar, perdendo-as de
qualquer forma (artigo 1275º CC).
Já quanto aos deveres, denota-se que os encargos são pagos pelo titular ou pelo possuidor,
na medida dos direitos deles sob os frutos (artigo 1272 º CC). Além disso, existem deveres relativos
a riscos, de perda ou deterioração da coisa: enquanto o possuidor de boa-fé só responde por estes
se houver negligência (artigo 1249º CC), o possuidor de má-fé responde sempre, independentemente
da culpa (mesmo artigo a contrario).
Modalidades da posse
A posse pode ser titulada ou não titulada (artigo 1259º CC). Será titulada quando na sua
origem está uma forma legítima de aquisição de direitos, independentemente da legitimidade do
transmitente e da validade substancial do negócio jurídico – por exemplo, se há título e negócio
formal, ainda que a escritura pública seja nula, pode haver propriedade titulada. Consequentemente,
na posse titulada, por vezes, os prazos de usucapião são mais curtos.
Isto porque, se se adquire um título juridicamente válido (na sua forma), merece-se alguma proteção
jurídica associada ao regime da posse. No entanto, se não for titulada, a posse não merece tanta
proteção.
A posse poderá ser de boa ou má-fé. Esta é de boa-fé quando, ao momento da aquisição, o
possuidor ignore que lesa o direito de outrem (artigo 1260º CC) – ou seja, fala-se de boa-fé no sentido
subjetivo, no sentido de revelar não apenas o conhecimento, mas o dever de conhecimento: conhecia
ou não devia deixar de conhecer. Consequentemente, estará de má-fé aquele que ignora, mas fá-lo de
forma pouco diligente; assim como aquele que a adquire por violência.
➔ A posse titulada presume-se de boa-fé; e a não titulada presume-se de má-fé (nº2).
A posse poderá ser pacífica – quando não adquirida por violência – ou violenta – quando
adquirida por violência. A definição de violência tem remissão para o regime da coação física ou
moral (artigo 1261º, nº2 CC), podendo esta incidir sobre pessoas ou coisas – por exemplo, a destruição
de fechaduras é considerada violência sobre a coisa. No entanto, em rigor, a violência sobre coisas
implica coação sobre seres humanos.
A posse pode ser pública – a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados
– ou oculta – a que se exerce de modo que não seja conhecida. Fala-se, aqui, do critério da
cognoscibilidade pelos interessados (artigo 1258º CC).
A posse pode ser efetiva – quando acompanhada pela detenção, pelo corpus – ou não efetiva
– quando não é acompanhada pela detenção. Por exemplo, após o apossamento por terceiros, passa-
se a ter dois possuidores: ora, o possuidor primitivo passou a ter uma posse não efetiva (artigo 1267º,
alínea d) CC).
Por fim, a posse pode ser registada – por exemplo, o apossamento (artigo 2º CRPredial) – ou
não registada, se assim não for previsto. Denota-se, no entanto, que uma coisa é o registo da
propriedade, e outra é o regime da posse. O registo tem, entre outras consequências, a de encurtar os
prazos da usucapião (artigos 1294º e ss. CC).
Defesa da posse
O efeito principal da pessoa será o efeito de defesa da posse, que pode ter lugar judicialmente
ou extrajudicialmente. Os tipos de defesa judicial da posse são:
➔ Ação de prevenção: Ação que visa evitar uma perturbação ou um esbulho da posse que ainda
não ocorreu, mas que se apresenta como provável – um risco (artigo 1276º CC).
➔ Ação de manutenção: Ação para quando já há uma perturbação da posse, mas esta ainda não
implicou perda da posse efetiva (artigo 1278º, nº1 CC).
o Se existir um apossamento de terceiro e sobreposição de posse, o artigo 1278º, nº3 CC diz
que os critérios a utilizar são: 1) título, ou seja, a posse ser titulada; 2) antiguidade; e, por
último, 3) a posse atual.
➔ Ação de restituição: Ação para quando já há esbulho (perda total de contacto com a coisa), mas
ainda não passou um ano e ainda não se extinguiu a posse – ou seja, visa obter a recuperação da
posse efetiva.
Esta distinção conceitual cria, no entanto, dificuldades práticas, devendo ter sido apenas
previstas as ações de prevenção e manutenção. De qualquer das formas, explica-se que manter a posse
implica afastar uma perturbação, enquanto restituir a posse implica que a detenção da coisa regresse
ao possuidor.
Além disso, existe um mecanismo de defesa da posse que se distingue dos restantes por ser
uma providência cautelar (artigo 1279º) – o procedimento de restituição provisória da posse, segundo
o qual é possível existir uma tutela provisória da posse, em caso de esbulho violento. Esta é mais
forte, dado não ser necessário provar o periculum in mora – ou seja, provar o receio de mora: basta
haver posse, esbulho e violência; além de que é decidido sem contraditório prévio.
➔ Não existindo o esbulho ou violência, será possível recorrer a outra providência cautelar, mas terá
de se provar o periculum in mora.
Além disso, existe, também, a figura de embargos de terceiro (artigo 1285º CC), que tutela
atos judiciais que perturbam a posse: ou seja, quem perturba (não sendo bem esbulha, dado que isso
pressupõe um ato ilícito) é um autoridade judicial – por exemplo, a posse é ofendida por atos
ordenados judicialmente, nomeadamente por penhora ou arresto. No entanto, a lei dispensa proteção
à posse, mesmo contra esse tipo de ofensas.
Por fim, poderá, também, haver tutela extrajudicial, através de ação direta (artigo 1277º
CC), podendo ser feita tanto pelo possuidor material, como pelo possuidor formal. A remissão, aqui,
feita para o artigo 336º CC tem a ver com o princípio da proporcionalidade, que terá de ser verificado.
A usucapião
Regime e procedimento:
Os regimes da usucapião (ou prescrição aquisitiva) é fundado em razões de segurança: é o
efeito de aquisição de direito a que corresponde a posse – podendo este direito ser de propriedade
ou outro direito real menor: por exemplo, se A atua como possuidor, com uma posse correspondente
a um usufruto, irá adquirir esse usufruto (sendo isto, contudo, um exemplo académico).
➔ A aquisição fundada na usucapião dos direitos de propriedade e outros direitos reais menores não
depende do registo do facto aquisitivo – nomeadamente, da posse (artigo 5º, nº2 CRPredial).
A previsão normativa da usucapião abarca a posse e o decurso do tempo; enquanto a
estatuição normativa será a aquisição da propriedade ou de outro direito correspondente à posse.
No entanto, existem mais estatuições normativas que esta, implícitas na letra da lei: por exemplo, a
extinção da propriedade do proprietário primitivo. Isto porque, normalmente, a usucapião é
convocada por um possuidor meramente formal, em contraposição do proprietário – e, por isso, em
regra, há a extinção da propriedade do proprietário normativo, enquanto consequência para além da
aquisição da propriedade. Esta extinção abrange, também, outros direitos reais menores associados
(como a hipoteca), ainda que registados – sendo o arrendamento um caso à parte.
➔ No entanto, pode haver, ainda, um efeito acessório de extinção da propriedade, que, no sentido
material, pode constituir uma expropriação. Nos casos de expropriação, o proprietário primitivo
vê-se privado da sua propriedade privada, pelo que será compensado nos termos do artigo 1287º
CC conjugado com o artigo 62º, nº2 CRP. Consequentemente, esta indemnização, devida pelo
possuidor ao proprietário primitivo, deveria também parte da estatuição normativa. No entanto, a
verdade é que a lei não prevê nenhuma compensação para aqueles que se vejam privados de
direitos, por força da usucapião.
A usucapião é, no entanto, um direito potestativo, não operando automaticamente: ou seja,
findo o prazo descrito, não há aquisição automática da propriedade – esta apenas se verifica se houver
um exercício voluntário deste direito potestativo (artigos 1287º e 1288º CC).
Este pode ser exercido judicialmente, mediante uma ação de reivindicação ou uma mera ação para
provar a usucapião; mas também pode operar extrajudicialmente, com recurso ao procedimento de
justificação registral – ou seja, a pessoa invoca, no notário, o usucapião com duas testemunhas,
adquirindo o direito se, depois de colocado nos éditos, ninguém contestar a mesma (artigos 116º e ss.
CRPredial). Através da justificação, a aquisição por usucapião fica a constar no registo predial
(conservatória) e, como efeito colateral, faz caducar todos os outros direitos reais incompatíveis.
Exercido o direito potestativo, a aquisição originária tem eficácia retroativa, retroagindo à
data do início da posse (artigo 1288º), mesmo que o possuidor seja de má-fé.
Natureza da posse
Segundo Orlando de Carvalho, a posse é um mero facto e não um direito. Já segundo Oliveira
Ascensão, esta é um direito, mas não um direito real. Por fim, Manual de Andrade defende que este
é um direito real.
Ora, Caetano Nunes defende a posse é simultaneamente um facto e um direito real, no sentido
de ter tanto o lado interno (uso e fruição), como o lado externo: oponibilidade erga omnes, não no
confronto com o proprietário, mas em confronto com terceiros. Assim, a posse é um facto e, ao
mesmo tempo, um direito: uma previsão normativa, mas também um regime jurídico.
➔ Não interessa muito classificar este como direito real de gozo ou outro, visto que pode haver posse
de vários direitos reais.
Estabelecimento comercial:
Discute-se, também, se as regras sobre a posse, como o usucapião, se podem aplicar a coisas
compostas – em particular, ao tal estabelecimento comercial. É em torno da interpretação do artigo
206º CC, que define coisa composta, e as normas de defesa da posse, que esta discussão se desenrola
– remetendo-se, aqui, para o tema do penhor de estabelecimento comercial.
Durante muito tempo, discutiu-se se podia haver penhor sobre o estabelecimento comercial.
Ora, tendo o CPC passado a ser admitir a penhora sobre o estabelecimento comercial, também será
possível admitir o penhor – pelo que também será possível defender a posse sobre um estabelecimento
comercial. Para além disso, o estabelecimento comercial, enquanto tal, pode ser objeto do direito de
propriedade – ainda que essa propriedade não seja a propriedade sobre coisas corpóreas nos artigos
1302º e ss. CC. A jurisprudência acolhe tal resposta afirmativa – sem prejuízo de o STJ ter declarado
que só é possível a usucapião relativamente aos elementos corpóreos do estabelecimento comercial.
➔ Organização económica: A constituição de direitos reais tem por pressuposto uma organização
económica baseada na propriedade privada, no funcionamento do mercado. Numa organização
económica não privada e coletivizada, regras civilísticas sobre a propriedade farão todo o sentido.
o Na CRP existe, por um lado, os três setores de propriedade (artigo 80º, alínea b) CRP):
propriedade privada, propriedade pública e propriedade cooperativa. Ora, a atividade
económica privada implica propriedade privada: se a base é o capitalismo e a economia
privada, que coexiste com a economia pública e cooperativa, mas é mais forte que estas, terá
de haver propriedade privada – isto, sem o que regime civilístico se deixe de enquadrar,
também, no setor privado dos meios de produção. Ora, a propriedade e os direitos reais que
foram analisados são instrumentos jurídicos desse setor privado dos meios de produção.
o A nível de organização económica, outro dado importante será a consagração da liberdade
de iniciativa económica privada na alínea c) do mesmo artigo, que será o mesmo que
consagrar a propriedade privada em sentido amplo: esta pode ser vista numa lógica de puro
consumo, ou do ponto de vista do setor económico.
➔ Organização política: A relação entre os direitos reais e o constitucionalismo não é tão forte,
mas, ainda assim, importa saber quais são os órgãos com competência para regular os direitos
reais. Segundo o artigo 165º CRP, no elenco de reserva relativa de competência da AR encontra-
se a expropriação e atos análogos – portanto, expropriação, em sentido material.
Consequentemente, tudo o que seja regulação da propriedade privada é da competência
concorrente da AR e do Governo.